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72402 psicossomatica afFH11 102609 500 PM Page 1 Composite C M Y CM MY CY CMY K Psicossomática hoje JULIO DE MELLO FILHO MIRIAM BURD E COLABORADORES 2ª edição MELLO FILHO BURD E COLS JULIO DE MELLO FILHO MIRIAM BURD E COLABORADORES Psicossomáticahoje 2ª edição 2ed consolidase como um marco na área da saúde mental Nesta nova edição o leitor encontrará textos reconhecidos como referência no assunto muitos totalmente atualizados além de novas e importantes contribuições para este que é livrofonte brasileiro em Psicossomática Tratase de um novo vigor para essa abordagem fundamental para a compreensão e o atendimento integrais dos indivíduos Mello Filho Burd e colaboradores garantem o respeito e a premissa antropológica no trabalho do profissional da saúde tratar os pacientes e não as doenças propiciando insights clínicos e orientações práticas que garantem o cuidado eficaz de muitas patologias ABREU Cols Síndromes psiquiátricas diagnóstico e entrevista para profissionais de saúde mental ABREU HERMANO CORDÁS Cols Manual clínico dos transtornos do controle dos impulsos ANDREASEN BLACK Introdução à psiquiatria 4ed ANDREASEN N C Admirável cérebro novo vencendo a doença mental na era do genoma APA Diretrizes no tratamento da esquizofrenia guidelines APA Diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos compêndio 2006 APA Referência rápida às diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos Compêndio 2006 BARKLEY R Transtorno de déficit de atençãohiperatividade TDAH guia completo para pais professores e profissionais da saúde BARKLEY MURPHY Transtorno de déficit de atençãohiperatividade TDAH exercícios clínicos 3ed BARKLEY R Cols Transtorno de déficit de atençãohiperatividade TDAH manual para diagnóstico e tratamento 3ed BARLOW CERNY Manual clínico dos transtornos psicológicos BECK FREEMAN Terapia cognitiva dos transtornos de personalidade 2ed BECK RUSH SHAW Terapia cognitiva da depressão BECK JS Terapia cognitiva BOTEGA JN org Prática psiquiátrica no hospital geral interconsulta e emergência 2ed BROWN TE Transtorno de déficit de atenção a mente desfocada em crianças e adultos BUSSE BLAZER Psiquiatria geriátrica 2ed CAMPBELL RJ Dicionário de psiquiatria 8ed CARLAT DJ Entrevista psiquiátrica 2ed CID10 Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID10 descrições clínicas e diretrizes diagnósticas CID10 Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID10 diretrizes diagnósticas e de tratamento para transtornos mentais em cuidados primários CIRAULO Cols Interações medicamentosas em psiquiatria 3ed CONNERS C K Transtorno de déficit de atençãohiperatividade CORDÁS MORENO Cols Condutas em psiquiatria consulta rápida CORDIOLI A V TOC manual de terapia cognitivocomportamental para o transtorno obsessivocompulsivo CORDIOLI A V Vencendo o transtorno obsessivocompulsivo manual de terapia cognitivocomportamental para pacientes e terapeutas 2ed CORDIOLI AV Cols Psicofármacos consulta rápida 3ed CORDIOLI AV Cols Psicoterapias abordagens atuais 3ed DALGALARRONDO P Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 2ed DALGALARRONDO Religião psicopatologia e saúde mental DSMIV Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSMIVTR DSMIV Referência rápida aos critérios diagnósticos do DSM IVTR DUBOVSKY DUBOVSKY Transtornos do humor EARLEY P Loucura a busca de um pai na loucura do sistema de saúde EDDY J M Transtornos da conduta EDWARDS MARSHALL COOK O tratamento do alcoolismo um guia para profissionais da saúde 4ed ELMALLAKH GHAEMI Depressão bipolar um guia abrangente FIRST FRANCES PINCUS Manual de diagnóstico diferencial do DSMIVTR FLECK Cols A avaliação de qualidade de vida guia para profissionais da saúde FRIEDMAN M Transtorno de estresse agudo e estresse pós traumático GABBARD GO Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica 4ed GABBARD GO Tratamento dos transtornos psiquiátricos 4ed GITLOW S Transtornos relacionados ao uso de substâncias 2ed BIBLIOTECA ARTMED Psiquiatria GOODWIN JAMISON Doença maníacodepressiva 2ed GRAY G E Psiquiatria baseada em evidências GREENBERGER PADESKY A mente vencendo o humor HALES YUDOFSKY Tratado de psiquiatria clínica 4ed HOLLANDER SIMEON Transtornos de ansiedade HOUNIE MIGUEL Orgs Tiques cacoetes e síndrome de Tourette um manual para pacientes seus familiares educadores e profissionais da saúde IZQUIERDO I Memória KAPCZINSKI Cols Transtorno de pânico o que é como ajudar um guia de orientação para pacientes e familiares KAPCZINSKI QUEVEDO Transtorno bipolar teoria e clínica KAPCZINSKI QUEVEDO IZQUIERDO Bases biológicas dos transtornos psiquiátricos 2ed LAMBERT KINSLEY Neurociência clínica LICINIO WONG Cols Biologia da depressão LIEBERMAN TASMAN Manual de medicamentos psiquiátricos LOUZÃ Cols TDAH ao longo da vida LOUZÃ ELKIS Cols Psiquiatria básica 2ed LOWENKRON T Psicoterapia psicanalítica breve 2ed MAJ SARTORIUS Esquizofrenia 2ed MAJ SARTORIUS Transtornos depressivos 2ed MAJ Cols Transtorno obsessivocompulsivo 2ed MACKINNON MICHELS BUCKLEY A entrevista psiquiátrica na prática clínica 2ed MARANGELL Cols Psicofarmacologia MELLO MELLO KOHN Cols Epidemiologia da saúde mental no Brasil MELLO FILHO BURD Cols Psicossomática hoje 2ed MILLER ROLLNICK Entrevista motivacional preparando as pessoas para a mudança de comportamentos adictivos Livros em produção no momento da impressão desta obra mas que muito em breve estarão à disposição dos leitores em língua portuguesa MORRISON J Entrevista inicial 3ed NUNES Cols Transtornos alimentares e obesidade 2ed PLISZKA S R Neurociência para o clínico de saúde mental QUEVEDO SCHMITT KAPCZINSKI Emergências psiquiátricas 2ed REITE RUDDY NAGEL Transtornos do sono 3ed ROHDE MATTOS Princípios e práticas em TDAH SADOCK SADOCK Compêndio de psiquiatria 9ed SADOCK SADOCK Manual conciso de psiquiatria clínica 2ed SADOCK SADOCK SUSSMAN Manual de farmacologia psiquiátrica de Kaplan e Sadock 4ed SCHATZBERG COLE DEBATTISTA Manual de psicofarmacologia clínica 6ed SPITZER Cols DSMIVTR casos clínicos v2 STEKETEE PIGOTT Transtorno obsessivocompulsivo STUBBE D Psiquiatria da infância e adolescência SUPPES DENNEHY Transtorno bipolar TABORDA CHALUB ABDALLAFILHO Psiquiatria Forense TOLMAN A Depressão em adultos TORRES SHAVITT MIGUEL Orgs Medos dúvidas e manias orientações para pessoas com transtorno obsessivocompulsivo e seus familiares TOY KLAMEN Casos clínicos em psiquiatria WERLANG BOTEGA Cols Comportamento suicida YOUNG JE Terapia cognitiva para transtornos da personalidade uma abordagem focada no esquema 3ed YOUNG KLOSKO WEISHAAR Terapia do esquema guia prático YUDOFSKY HALES Neuropsiquiatria e neurociências na prática clínica 4ed ZAVASCHI Cols Crianças e adolescentes vulneráveis M527p MelloFilho Julio de Psicossomática hoje recurso eletrônico Julio de Mello Filho et al 2 ed Dados eletrônicos Porto Alegre Artmed 2010 Editado também como livro impresso em 2010 ISBN 9788536322759 1 Psicologia 2 Transtornos psicofisiológicos I Título CDU 1599 Catalogação na publicação Renata de Souza Borges CRB 101922 IniciaisEletronicoindd 2 IniciaisEletronicoindd 2 2612010 154821 2612010 154821 2010 Psicossomática Psicossomática hoje 2a edição edição JULIO DE MELLO FILHO MIRIAM BURD E COLABORADORES Versão impressa desta obra 2010 IniciaisEletronicoindd 3 IniciaisEletronicoindd 3 2612010 154821 2612010 154821 IniciaisEletronicoindd 4 IniciaisEletronicoindd 4 05012010 121614 05012010 121614 Artmed Editora SA 2010 Capa Paola Manica Preparação de originais Cristiano Silveira Pereira Leitura final Marcos Vinícius Martim da Silva e Rafael Padilha Ferreira Editora Sênior Saúde Mental Mônica Ballejo Canto Editora responsável por esta obra Carla Rosa Araújo Projeto e editoração Armazém Digital Editoração Eletrônica Roberto Carlos Moreira Vieira Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à ARTMED EDITORA SA Av Jerônimo de Ornelas 670 Santana 90040340 Porto Alegre RS Fone 51 30277000 Fax 51 30277070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume no todo ou em parte sob quaisquer formas ou por quaisquer meios eletrônico mecânico gravação foto cópia distribuição na Web e outros sem permissão expressa da Editora SÃO PAULO Av Angélica 1091 Higienópolis 01227100 São Paulo SP Fone 11 36651100 Fax 11 36671333 SAC 0800 7033444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL AUTORES JULIO DE MELLO FILHO ORG Médico Professor Adjunto de Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Rio de Janeiro Presi dente da ABMPRJ Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática MIRIAM BURD ORG Psicóloga clínica escolar e hospitalar Pósgraduada em Orien tação Educacional Medicina Psicossomática e Psicologia Mé dica Professora convidada dos Cursos de Especialização em Psicologia Médica e Medicina Psicossomática da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Estácio de Sá Vicepresidente da ABMPRJ biênio 20062008 ABRAM EKSTERMAN Médico Psicanalista Professor de Psicologia Médica Fundador e expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática Diretor do Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro Exprofessor titular de Psicologia médica e An tropologia médica da Escola de Medicina Souza Marques apo sentado ADOLPHO HOIRISCH Professor Titular de Psicologia Médica da Faculdade de Medici na da Universidade Federal do Rio de Janeiro aposentado Titular da Academia Nacional de Medicina Titular da Acade mia de Medicina do Rio de Janeiro ADOLPHO MENEZES DE MELLO Professor Titular de Pediatria da Faculdade de Medicina de Marília Doutor em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas ALEXANDRE KATHALIAN Analista titular da Sociedade psicanalítica do Rio de Janeiro IPA Professor Adjunto de Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio de janeiro Membro da International Association for Psy choanalytical Self Psychology San Diego ALFRED LEMLE Professor Titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro aposentado ALÍCIA REGINA NAVARRO DIAS DE SOUZA Professora Associada Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutora em Ci ências da Saúde Psiquiatria AMAURY DE OLIVEIRA QUEIROZ Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro aposentado Exchefe do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hos pital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Fede ral do Rio de Janeiro Membro Efetivo da Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro Rio4 ANA CRISTINA LIMONGIFRANÇA Psicóloga mestre doutora livredocente e professoraasso ciada da Universidade de São Paulo Faculdade de Economia Administração e Contabilidade Núcleo FEAUSP de Gestão da Qualidade de Vida no Trabalho Filiada à Associação Brasileira de Medicina Psicossomática desde 1987 atuou como secretá ria executiva vicepresidente e conselheira Consultora autora e pesquisadora do tema psicossomática e qualidade de vida no trabalho Desenvolveu centenas de produções científicas e cor porativas em fóruns nacionais e internacionais ANA CRISTINA M PROCACI Psicóloga ANDREA DÓRIA BATISTA Clínica e hepatologista do Real Hospital Português RecifePE ANTÔNIO FRANCO RIBEIRO DA SILVA Psiquiatra e Psicanalista Membro e Didata da Formação em Psicanálise do Círculo Psi canalítico de Minas Gerais Membro fundador do Grupo de Estudos em Psicossomática GEPSI AVELINO LUIZ RODRIGUEZ Médico especialista em Psiquiatria pela AMBABP Professor Doutor da Universidade de São Paulo do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Coordenador do Laboratório de Pesquisa Sujeito e Corpo SuCor do Institu to de Psicologia da USP Líder do Grupo de Pesquisa CNPq psicossomática psiconeurologia e promoção de saúde Dou tor em Psicologia Social pela PUCSão Paulo Presidente da Associação Brasileira de Medicina PsicossomáticaRegional de São Paulo 19881990 Presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática 19901992 Presidente do Comitê Multidisciplinar de Psicossomática da Associação Paulista de Medicina 19911993 membro do corpo clínico do Instituto de Gastroenterologia de São Paulo também atua em Consul tório Particular como psiquiatra e psicoterapêuta Psicossomaticaindd 5 Psicossomaticaindd 5 05012010 121201 05012010 121201 vi Autores CARLOS DOIN Médico com Especialização em Psiquiatria Psicossomática e Psicanálise Membro da International Psychoanalytical Association da So ciedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e da Associa ção Psicanalítica de Nova Friburgo CRISTIANA MONIZ DE ARAGÃO BAPTISTA Doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia So cial UFRJ Especialista em Psicologia Médica UERJ Pósdoutorado em Psicologia Clínica The Wright Institute Berkeley Califórnia Atualmente trabalha no Spine One Reha bitation Programs Los Gatos Califórnia DAVID EPELBAUM ZIMERMAN Médico Psiquiatra Grupoterapeuta Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre Autor de livros sobre Psicanálise e Grupoterapia ELISA MARIA PARAYBA CAMPOS Professora Doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Coordenadora do Laboratório Centro de Recuperação em Oncologia e Saúde Chronos do Instituto de Psicologia da Uni versidade de São Paulo Professora dos cursos de Graduação e Pósgraduação nessa Instituação Coordenadora do labora tório ChronosCentro Humanístico de Recuperação em On cologia e Saúde EUGÊNIO PAES CAMPOS Professor titular de Psicologia Médica do Centro Universitário Serra dos ÓrgãosRJ Doutor em Psicologia Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicosso mática FERNANDO LUIZ BARROSO Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Livre docente de clínica cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro Titular e fundador do Colégio Brasi leiro de Cirurgia digestiva CBCD Titular fundador da Socie dade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica SBCBM FRANCISCO JOSÉ TRINDADE DE BARRETO Médico clínico geral filiado ao Colégio Americano de Médicos Exprofessor da Universidade Federal de Pernambuco Chefe do Serviço de Doenças Autoimunes do Hospital Português de RecifePE FRANCISCO SALGADO Cirurgião plástico e diretor do Departamento de Pesquisas e Documentação Científica da clínica do professor Ivo Pitanguy GEORGE LEDERMAN Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Expresidente da Regional Recife da Associação Brasi leira de Medicina Psicossomática GERALDO CALDEIRA Médico gastroenterologista e psicanalista Expresidente da Asso ciação Brasileira de Medicina Psicossomática Membro Titular e do Conselho Superior da Academia Mineira de Medicina Profes sor do Curso de Pósgraduação em Psicologia Médica UFMG GISELA CARDOSO Psicóloga do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hos pital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Fede ral do Rio de Janeiro Mestre em Saúde Coletiva Instituto de Estudos em Saúde Coletiva IESCUFRJ Doutora em Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social IMSUERJ HELÁDIO FRANCISCO CAPISANO Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Exfundador e expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática IVO PITANGUY Professor Titular de Cirurgia Plástica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Instituto de Pósgraduação Carlos Chagas Rio de Janeiro Visiting Professor ISAPS Membro Titular da Academia Nacional de Medicina Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Patrono da Sociedade Brasi leira de Cirurgia Plástica FICS FACS Membro da Acade mia Brasileira de Letras Membro titular da Academia Nacional de Medicina JACQUES BINES Médico do Serviço de Oncologia Clínica do Hospital Clemen tino Fraga Filho Médico da Clínica Oncologistas Associados OAL no Rio de Janeiro JOSÉ GALVÃOALVES Chefe da 18º Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro Serviço de Clínica Médica Pro fessor Titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Fundação TécnicoEducacional Souza Marques Professor Ti tular de Clínica Médica da Universidade Gama Filho Professor Titular de Gastroenterologia da Pontifícia Universidade Católi ca do Rio de Janeiro Membro Titular da cadeira 51 da Acade mia Nacional de Medicina JOSÉ ROBERTO MUNIZ Médico psiquiatra psicanalista e terapeuta familiar Professor da Disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Ciên cias Médi cas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro JOSÉ SCHÁVELZON Titular de La Sociedade Argentina de Psicoterapia Psicanalíti ca Presidente Del Comitê de Psiconcologia de La Associación Médica Argentina Exprofessor de Cirurgia da Universidade de Buenos Aires Membro honorário e Diretor do Comitê de Psicobiologia da Asociación Médica Argentina KENETH ROCHEL CAMARGO JR Doutor em Medicina Social pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro LIA MÁRCIA CRUZ DA SILVEIRA Psicóloga Mestre em Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde NUTESUFRJ Especialista em Psicologia Médica UERJ Preceptora de Saúde Mental da Medicina da Família e Comuni Psicossomaticaindd 6 Psicossomaticaindd 6 05012010 121201 05012010 121201 Autores vii dade UERJ Hospital Universitário Pedro Ernesto Coordena dora do Núcleo de Apoio Psicopedagógico ao Residente NA PREUERJ Facilitadora do Grupo COM VIDA HUPEUERJ LISANDRE FIGUEIREDO DE OLIVEIRA Psicóloga LUCIANA RUBINSTEIN Médica Hillingdon Hospital Inglaterra LUÍS FERNANDO FARAH DE TÓFOLI Psiquiatra e Psicoterapeuta Professor Adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará Campus Sobral Doutor em Medicina Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo LUIZ ANTONIO NOGUEIRA MARTINS Livre Docente Professor Associado da Disciplina de Psicolo gia Médica e Psiquiatria Social do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo UNIFESP Coordenador do NAPREME Núcleo de As sistência e Pesquisa em Residência Médica LUIZ FERNANDO CHAZAN Psicanalista Professor da Unidade Docenteassistencial de Psi cologia Médica e Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médi cas da Universidade do Rio de Janeiro MÁRCIA PINTO FONTENELE MELLO Psicóloga clínica MARIA APARECIDA DE LUNA PEDROSA Psicóloga Mestre em Psicologia Clínica pela USP Membro da IFCLAFCL Internacional de Fóruns do Campo Lacaniano e Associação de Fóruns do Campo Lacaniano MARIA DE FÁTIMA PRAÇA DE OLIVEIRA Psicóloga Especialista na área hospitalar Diretora do serviço de Psicologia da equipes da PRF Sérgio Almeida de Oliveira no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo MARIA TEREZA MALDONADO Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRio Diretora de MTM Consultoria Psicológica Membro da American Family Therapy Association MARLENE ZORNITTA Psicóloga do Programa HIVAIDS DIP HUCFFUERJ Mes tre em Ciências na Área de Saúde Pública Escola Nacional de Saúde Pública ENSP FIOCRUZ MAURÍCIO DE ASSIS TOSTES Psiquiatra Médico do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutor em Medicina pela UFRJ MAURO DINIZ MOREIRA Doutor em Medicina pela Universidade Federal Fluminense Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universida de Federal Fluminense MIRIAM BARON Psicóloga Especiliata em psicologia Hospitalar pela Universi dade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Psicóloga clínica Psi canalista Membro Associado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro SPRJ Membro Associado da Sociedade Psicanalíti ca do Rio de Janeiro SPRJ Membro Associado da Federação Brasileira de Psicanálise FEBRASPSI Membro Associado da International Psychoanalytical Association IPA Atualmente trabalha no Instituto Ncaional do Câncer INCA OLY LOBATO Professor Titular do Departamento de Medicina Interna da Facul dade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Consultor em Medicina Psicossomática OTELO CORRÊA DOS SANTOS FILHO Médico Psicanalista Exchefe do Serviço de Psicossomática do Hospital Central do Instituto de Aposentadoria dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicosso mática PATRÍCIA CORINA ROCHA Psicóloga PAULO ROBERTO BASTOS CANELLA Livredocente de Ginecologia da UFRJ Professor Titular de Ginecologia da UFRJ Responsável pelo Ambulatório de Sexologia do Instituto de Gi necologia da UFRJ PROTÁSIO LEMOS DA LUZ Diretor da Unidade Clínica de Aterosclerose Instituto do Co ração HCFMUSP Professor Associado de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Membro titular da Academia Brasileira de Ciências RODOLPHO PAULO ROCCO Professor Titular e Chefe do Departamento de Clínica Médi ca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro SAMUEL HULAK Psiquiatra Psicoterapeuta Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicosso mática Autor de livros e artigos sobre Psicoterapia SANDRA LUCIA CORREIA LIMA FORTES Psiquiatra Professora Adjunta de Saúde Mental e Psicologia Médica do curso de Especialização em psicologia Médica e do Programa de Pósgraduação em Ciências Médicas da Faculda de de Ciências Médicas da UERJ PhD em Saúde Coletiva SÉRGIO ANTONIO BELMONT Psicanalista Membro da Associação brasileira de Psiquiatria Mestre em Psicologia Clínica USP Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Psicossomaticaindd 7 Psicossomaticaindd 7 05012010 121201 05012010 121201 SÉRGIO ZAIDHAFT Professor Assistente de Psicologia Médica da Faculdade de Me dicina da Universidade Estácio de Sá THEREZINHA LUCY MONTEIRO PENNA Médica Professora convidada do Curso de Pósgraduação em Psicologia Médica FCMUERJ Professora convidada do Cur so de Pósgraduação em Medicina Psicossomática e Psicologia viii Autores Médica da Universidade Estácio de SáRJ Exprofessora con vidada da Escola de Medicina da Universidade de Columbia Nova York Columbia University VIRGÍNIA FONTENELE EKSTERMAN Pediatra e Psicanalista Especialista em Medicina Psicossomática Membro fundador da ABMP Associação Brasileira de Medicina Psicossomática Psicossomaticaindd 8 Psicossomaticaindd 8 05012010 121202 05012010 121202 A Danilo Perestrello Helládio Francisco Capisano José Fernandes Pontes e Luiz Miller de Paiva pioneiros da Psicossomática no Brasil Julio de Mello Filho Psicossomaticaindd 9 Psicossomaticaindd 9 05012010 121202 05012010 121202 SUMÁRIO Apresentação à segunda edição 15 PARTE 1 Conceituação 1 Introdução 29 Julio de Mello Filho 2 Medicina psicossomática no Brasil 39 Abram Eksterman PARTE 2 Ensino e formação 3 Ensino de psicologia médica 49 José Roberto Muniz e Luiz Fernando Chazan 4 Relação estudante de medicinapaciente 58 Rodolpho Paulo Rocco 5 O estudante de medicina e a morte 72 Sérgio Zaidharf Andrea Doria Batista Jacques Bines e Luciana Rubinstein 6 A formação psicológica do médico 80 David Epelbaum Zimerman 7 Identidade médica 87 Adolpho Hoirisch PARTE 3 Temas básicos 8 Psicossomática o diálogo entre a psicanálise e a medicina 93 Abram Eksterman 9 Algumas considerações sobre a relação doençasociedade em psicologia médica 106 Kenneth Rochel Camargo Jr 10 Uma perspectiva psicossocial em psicossomática via estresse e trabalho 111 Avelino Luiz Rodrigues e Ana Cristina Limongi França 11 Síndrome do burnout 135 Avelino Luiz Rodrigues e Elisa Maria Parayba Campos Psicossomaticaindd 11 Psicossomaticaindd 11 05012010 121202 05012010 121202 12 Sumário 12 Histeria hipocondria e fenômeno psicossomático 153 Otelo Corrêa dos Santos Filho 13 Alexitimia e pensamento operatório a questão do afeto na psicossomática 158 Antônio Franco Ribeiro da Silva e Geraldo Caldeira 14 Psicoimunologia hoje 167 Julio de Mello Filho e Mauro Diniz Moreira 15 Reflexões sobre Michael Balint comunicando uma experiência de grupos 214 Maria Aparecida de Luna Pedrosa 16 Interconsulta hoje 223 Luiz Antonio Nogueira Martins 17 O problema da dor 235 Oly Lobato 18 Imagem corporal 255 Helládio Francisco Capisano PARTE 4 Temas específicos Trabalhos em especialidades médicas 19 Psicossomática e pediatria 273 Adolpho Menezes de Mello 20 Psicossomática e obstetrícia 288 Maria Tereza Maldonado 21 Psicossomática e câncer 296 José Schávelzon 22 Aspectos psicossomáticos em pacientes com asma brônquica 310 Alfred Lemle 23 Aspectos psicossomáticos em cardiologia mecanismos de somatização e meios de reagir ao estresse 318 Eugênio Paes Campos 24 O impacto emocional da cirurgia cardíaca 343 Maria de Fátima Praça de Oliveira e Protásio Lemos da Luz 25 O paciente e seu cirurgião 350 Fernando Luiz Barroso 26 Aspectos filosóficos e psicossociais da cirurgia plástica 356 Ivo Pitanguy e Francisco Salgado 27 Obesidade um desafio 368 Alexandre Kahtalian 28 Transplantes renais 376 Miriam Baron 29 Transplantes de medula óssea entre doadores e receptores não aparentados avanços biopsicológicos 385 Miriam Baron Psicossomaticaindd 12 Psicossomaticaindd 12 05012010 121202 05012010 121202 Sumário 13 30 A morte e o morrer a assistência ao doente terminal 389 Francisco José Trindade de Barreto PARTE 5 AIDS 31 AIDS o doente o médico e o psicoterapeuta 405 Julio de Mello Filho 32 AIDS aspectos psicossomáticos 423 Amaury Queiroz 33 Aspectos psicossomáticos e sociais da AIDS 20 anos de experiência 431 Amaury Queiroz Gisela Cardoso Marlene Zornitta e Maurício Tostes 34 Grupo de reflexão multiprofissional em AIDS uma estratégia em psicologia médica 439 Alícia Navarro Dias de Souza 35 Grupo com vida a adesão à vida frente à ameaça de morte 444 Lia Silveira 36 Hemofilia e AIDS 449 Virgínia Fontenelle Eksterman Ana Cristina M Procaci Lisandre F Oliveira Marcia Pinto Fontenelle Mello e Patrícia Corina Rocha PARTE 6 Trabalhos originais 37 Regênesis o mito da Fênix em psicossomática 461 Samuel Hulak e George Lederman 38 Desordens fictícias 468 Therezinha Lucy Monteiro Penna 39 O médico o paciente e o atendimento de emergência no Brasil 472 José Galvão Alves PARTE 7 Tratamento 40 Psicoterapia psicanalítica do paciente somático 481 Otelo Corrêa dos Santos Filho 41 Psicoterapia em instituições médicas 491 Therezinha Lucy Monteiro Penna 42 O paciente somático no grupo terapêutico 497 Eugênio Paes Campos 43 Psicossomática e neurociência 510 Carlos Doin 44 Relação médicocliente 522 Paulo Canella Psicossomaticaindd 13 Psicossomaticaindd 13 05012010 121202 05012010 121202 45 Somatização hoje 546 Sandra Lucia Correia Lima Fortes Luis Fernando Farah Tófoli e Cristina Moriz de Aragão Baptista 46 Infância e psicossomática intersubjetividade e aportes contemporâneos 563 Sérgio A Belmont 47 Diabetes mellitus uma visão psicossomática 582 Miriam Burd 48 Consultaconjunta uma estratégia de atenção integral à saúde 601 Julio de Mello Filho Lia Márcia Cruz da Silveira e Miriam Burd 14 Sumário Psicossomaticaindd 14 Psicossomaticaindd 14 05012010 121202 05012010 121202 APRESENTAÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO Após várias reimpressões do livro resolvemos fa zer uma nova edição revisada atualizada e ampliada e desta vez com a colaboração de Miriam Burd A trajetória deste livro foi francamente vitorio sa entre nós A aceitação da classe dos profissionais brasileiros de saúde mental foi praticamente integral Também nas Faculdades de Medicina e Psicologia nas disciplinas de Psicologia Médica e Psicologia Hospita lar a aceitação foi total E hoje o livro é bibliografia obrigatória em todos os concursos de psicologia de psicologia médica ou de psicossomática Tudo isso reforça o acerto dos autores e da edi tora em lançar este livro Nada mais natural portan to do que atualizálo neste momento e ampliálo fazendoo cada vez mais completo Digase todavia que em função da experiência dos autores este li vro se manteve atual e o que se busca agora é uma atualização ainda maior e a possibilidade dos leitores tomarem contato com outros poucos nomes e temas que estiveram até então ausentes A maioria dos autores ampliou seus capítulos desde pequenas modificações a grandes alterações formando praticamente um capítulo novo e substi tuindo o anterior Outros fizeram postscriptum Um importante número decidiu manter seu capítulo ori ginal sem fazer alterações Desde a primeira edição deste livro a psicosso mática e a psicologia médica sua filha dileta e primo gênita que cresceu mais do que a mãe continuaram em expansão a psicossomática principalmente no campo da psicoimunologia que domina as pesquisas em uma área da medicina Também as unidades de psicossomática nos vários serviços do hospital geral em muito se multiplicaram e hoje são praticamente obrigatórias em pediatria obstetrícia neonatologia ginecologia clínicas de adolescentes e idosos cardio logia gastroenterologia pneumologia nefrologia endocrinologia diabetes e nutrição cirurgia clínica geral e CTI A medicina e a área da saúde em geral traba lham sempre com equipes multiprofissionais num enfoque interdisciplinar que foi pioneiro na psicos somática e está sendo amplamente posto em prática A isso também se deve o trabalho da medicina social igualmente cada vez mais vitorioso Assim o profis sional da saúde brasileiro e não apenas o médico trabalha de um modo geral cada vez mais com o en foque psicossomático durante a consulta na feitura do diagnóstico bem como na prescrição terapêutica Outra prática em franco desenvolvimento é a interconsulta cada vez mais realizada pelas unidades de psicologia médica e de psicologia hospitalar tra balhando em ambulatórios e enfermarias de hospitais universitários públicos e privados Com a intercon sulta nós introduzimos a percepção da contratrans ferência do profissional de saúde na relação com seu paciente bem como os problemas e crises institucio nais interatuando com este Criase assim um espaço de reflexão em torno do ato de saúde a possibilidade de construção de uma prática realmente interdiscipli nar A esse respeito Luiz Antonio Nogueira Martins nos brinda com um capítulo novo sobre o tema no qual ele faz um resumo histórico a partir dos traba lhos de Luchina e colaboradores e enfatiza o quanto a prática da interconsulta cresceu no Brasil princi palmente com os seus trabalhos e os de Neury Botega Reis na UNICAMP em São Paulo Numa derivação da prática da interconsulta nós criamos JMF a consultaconjunta quando trabalha mos no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ e a desenvolvemos no Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ Como o nome diz tratase de uma consulta a dois no caso um profissional clíni co e um profissional psi entrevistando um mesmo pa ciente ajudandose mutuamente Esse tema constará de um novo capítulo deste livro A psicossomática não é hoje em dia apenas uma prática médica como pensavam seus pioneiros ela se espraiou por todas as áreas da saúde Assim os psicólo gos encontraram na psicossomática um excelente cam po de trabalho e estão aderindo maciçamente a essa prática Há alguns anos criaram a Sociedade de Psicolo gia Hospitalar uma entidade poderosíssima que realiza congressos com aproximadamente 3500 participantes Psicossomaticaindd 15 Psicossomaticaindd 15 05012010 121202 05012010 121202 16 Mello Filho Burd e cols Por tudo isso as entidades que congregam pro fissionais da área também se multiplicaram A prin cípio éramos apenas nós da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática depois vieram as congêne res de Psicologia Hospitalar as Associações de Psico logia da Saúde a Associação Brasileira de Intercon sulta Psiquiátrica ligada à Associação Brasileira de Psiquiatria e o grupo da Psiconeuroendocrinologia todas realizando férteis congressos com muitos par ticipantes e animados debates Contrasta com todo esse crescimento e dinamis mo a involução dos Grupos Balint em nosso meio Essa atividade que começou com Michael Balint na Ingla terra e que consistia na discussão de casos clínicos em pequenos grupos centrada na relação médicopacien te alcançou seu apogeu nas décadas de 1950 60 e 70 principalmente na Europa nos Estados Unidos no Brasil e na Argentina Houve depois um decréscimo muito acentuado na América do Sul onde praticamen te não vem mais funcionando Entre as causas desse fato podemos apontar a resistência do establishment médico às abordagens psicossociais sendo ainda o mé dico a classe profissional mais retrógrada a esse tipo de abertura E observese ainda que há cerca de um sé culo com o advento da psicanálise existe tal enfoque Outro fator é que o médico não quer ser pego no con trapé de sua contratransferência não quer que suas emoções inadequadas positivas e principalmente ne gativas venham à baila sejam expostas ao grupo Nes se sentido é possível que parte de nós profissionais de psicologia médica tenhamos errado denunciando precocemente atos de iatrogenia que os médicos não estavam ainda preparados para admitir Ademais na Interconsulta com apenas uma dupla a atuar a exposi ção contratransferencial fica contida a quatro paredes daí a preferência do médico por esse procedimento Ao mesmo tempo a interconsulta tornouse um ato de rotina enquanto o Grupo Balint é ainda uma atividade eletiva Nesse ínterim a personalidade do médico e do estudante de medicina continua a ser investigada Se por um lado podem existir fortes traços narcísicos e de onipotência levando à arrogância e à dificulda de de se igualar com os outros existe também um potencial de empatia e de amor ao próximo mescla dos com uma forte idealização que levam a um feliz encontro com outrem Na prática o coração do médico e do futuro médico balança entre uma medicina humanizada e governada pelo afeto com o paciente e outra cientí fica e mecanicista fria e impessoal governada por exames e procedimentos técnicos de diagnósticos e tratamentos Nada contra exames e procedimentos técnicos em si minha crítica se faz ao mal hábito de considerálos alternativa contra o bom e necessário relacionamento com o paciente Nós que lidamos com a psicologia do estudante de medicina sabemos que há um somatório de problemas que se imbricam durante sua formação Assim este estudante já pode trazer traços de personalidade negativos como os an teriormente apontados e um grau maior ou menor de esquizoidia dificultando a relação com os outros e irá se refugiar no discurso tecnológicocientífico da medicina como defesa psicológica contra seus proble mas de autoestima Então é preciso que o estudante seja ajudado pelos professores humanistas logo no início do cur so Em nossa Faculdade o Curso de Psicologia Médi ca se inicia no 2º ano porém os calouros têm a pos sibilidade de se inscreverem no PAPE ou no Projeto Tutoria logo que ingressam e passam por uma fase de muita ansiedade No PAPE podem ser ajudados em seus proble mas psicológicos ou pedagógicos em entrevistas indi viduais e na tutoria discutir em grupo sua inserção na faculdade aquisição de bolsas e feitura de está gios escolha de especialidades bem como qualquer problema de ordem emocional ou familiar ou de mau resultado no curso Anteriormente e paralelamente à feitura deste livro foi fundada uma Associação Brasileira de Medi cina Psicossomática sendo os fundadores professores universitários vinculados à psicanálise e essa entida de hoje se mantém com núcleos regionais por todo o Brasil e congrega além de médicos profissionais da saúde em geral sendo ou não pertencentes ao esque ma psi A ABMP mantém uma revista que vem divul gando o trabalho de psicossomática no Brasil graças principalmente ao empenho de Samuel Hulak de Per nambuco No momento a presidência do movimento está com a psicóloga Cacilda Maciel de Minas Gerais A ABMP realiza congressos brasileiros bianualmente Comecemos agora a descrever as modificações realizadas nos capítulos já existentes Avelino Luiz Rodrigues e Elisa Maria Parahyba numa fase de intensa produção científica nos brin dam com um trabalho completo sobre um tema tão atual o estresse profissional dos profissionais de saú de em suas formas deterioradas psicossóciohigiêni Curso de Psicologia Médica programa de Apoio Psicopeda gógico ao Estudante PAPE e Projeto Tutoria da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ Atualmente sou o Coordenador do Projeto Tutoria Nossa equipe prepara professores para serem tutores Um projeto semelhante é desenvolvido por residentes da UERJ coor denado por Denise Herdy Psicossomaticaindd 16 Psicossomaticaindd 16 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 17 cas no mundo de então Centrandose na pessoa do médico e do enfermeiro eles fazem uma crítica pun gente das condições de trabalho desses profissionais e das repercussões destes fatos na saúde física e men tal no exercício da profissão e da vida familiar No caso de Avelino podemos considerar este trabalho como uma extensão do seu capítulo anterior Uma Perspectiva Social em Psicossomática via estresse e trabalho escrito em colaboração com Ana Cristina Limongi O atual trabalho que é uma revisão completa do tema Burnout termina com uma pesquisa reali zada pelos autores sobre a situação laboral com 351 médicos da cidade de São Paulo culminando com a pergunta O que é que significa para você a medici na a sua prática profissional e que consequências ela tem na sua vida Geraldo Caldeira e Antônio Franco Ribeiro da Silva ampliam e atualizam seu capítulo sobre Alexi timia e Pensamento Operatório com as contribui ções de vários autores em estudos recentes sobre o assunto os trabalhos de Le Shan e David Kissen com pa cientes com problemas torácicos dentre os quais metade sofria de câncer de pulmão e a outra meta de ficou em grupo controle aqueles que não pos suíam canais suficientes para a descarga emocio nal eram muito mais predispostos a ter câncer o trabalho apresentado por Christophe Dejours com a leitura do aparelho psíquico intitulado A Terceira Tópica na qual o considera dividido um Inconsciente Primário sede dos impulsos pri mitivos pulsão de morte e um Inconsciente Secundário constituído pelo material recalcado o trabalho científico que Angélica Lie Takushi e Avelino Luiz Rodrigues apresentaram no VI Con gresso Sulmineiro de Psicossomática 2007 Divã de Procusto reflexões a partir de estudos de caso elaborado no Laboratório Sujeito e Cor po do Instituto de Psicologia da USP no qual es tudaram casos clínicos aparentemente como pa cientes alexitímicos e operatórios e o trabalho do Prof Samuel Hulak a ser breve mente publicado no seu novo livro em comuni cação pessoal 2008 em que propõe no trabalho Alexitimia e Pseudoalexitimias uma classificação das somatizações e um modelo de anamnese psi cossomática que se caracteriza por um questio nário do qual Caldeira retira algumas perguntas mais demonstrativas da alexitimia Julio de Mello Filho e Mauro Diniz Moreira um psicanalista e um imunologista fazem um PostScrip tum do seu capítulo Psicoimumologia Hoje no qual atualizam as pesquisas e os novos conhecimentos ad quiridos nessa área que é talvez o campo que apre sentou mais desenvolvimento e crescimento dentro da Psicossomática Para tanto fazem uma importante atualização dos recentes conhecimentos sobre o funcionamento do eixo neuroimune nos seus aspectos neurológicos endocrinológicos e psicológicos Trazem à baila as vá rias descobertas realizadas dentro desse campo nos últimos anos como o papel das citosinas e as novas participações dos neurohormônios ao mesmo tempo em que repenetram no campo da Psicoimumologia Clínica da asma das alergias das doenças infeccio sas do câncer e das enfermidades autoimunes Lia Silveira no seu capítulo Grupo COM VIDA con tinuando um trabalho em grupo que foi iniciado por Lyzete Macário Costa e Julio de Mello Filho com pa cientes portadores de AIDS aborda uma experiência realizada no Departamento de Medicina Integral Fa miliar e Comunitária do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ abordando os vários aspectos do enfoque grupal desses pacientes Ao contrário dos casos de AIDS descritos por Julio de Mello Filho no capítulo inicial sobre Psico terapia do Paciente Aidético em que na fase inicial da doença lidávamos quase sempre com quadros dra máticos que iam ao êxito letal defrontamonos ago ra depois do uso das terapias antirretrovirais com pacientes crônicos angustiados temerosos com as questões de contágio porém sem a presença constan te do fantasma da morte Nos grupos que passaram a ser denominados COM VIDA passouse a discutir sobre os vários fan tasmas vinculados à doença HIVAIDS como a incu rabilidade o risco de infecções secundárias o medo de contaminar pessoas queridas o perigo de se sentir alguém lesivo à comunidade O grupo passou a ser um importante instrumento terapêutico para ques tões familiares profissionais e dos cuidados com a vida em geral O trabalho vem se multiplicando e os grupos cada vez mais se tornam espaços de reflexões e de sapiência sobre as questões da vida e da morte Interconsulta Hoje de Luiz Antônio Nogueira Mar tins faz jus à contribuição de Isaac Luchina no con ceito e na prática da interconsulta que se iniciou na Argentina sobre os auspícios de sua equipe cita as pre ciosas contribuições de Neury Botega em nosso meio Neste trabalho ele destaca a prevalência dos distúrbios psiquiátricos nos hospitais gerais os be nefícios e as vantagens que a interconsulta propor ciona aos pacientes aos familiares aos profissionais de saúde e à sociedade em geral a estruturação e a Psicossomaticaindd 17 Psicossomaticaindd 17 05012010 121202 05012010 121202 18 Mello Filho Burd e cols organização dos serviços de interconsulta e por úl timo aborda a formação dos profissionais em inter consulta Oly Lobato um dos azes do movimento de psicosso mática do Rio Grande do Sul faz um aprofundamen to ainda maior no seu capítulo já anteriormente com pleto sobre O Problema da Dor É um capítulo tão consistente que vale como se fosse um tratado sobre a dor Nele o autor se refere à classificação das dores aos procedimentos farmacológicos e não farmacoló gicos utilizados para o tratamento da dor a questão das dores psicogênicas o problema da simulação a neurose de compensação os transtornos de somati zação a dor nas psicoses e finalmente o complexo problema do placebo José Schávelson uma das maiores figuras vivas de cancerologia do mundo faznos uma extensão de seu capítulo Psicossomática e Câncer enviandonos uma síntese de seu livro recém publicado Freud um homem com câncer no qual estuda o entorno médico familiar hipocondríaco de Freud que o levou a inter pretar uma lesão benigna apresentada como um tu mor maligno levandoo à morte por hiperradiação Eugênio Paes Campos em Aspectos Psicossomá ticos em Cardiologia com toda a sua experiência de excardiologista psicólogo e atual psicossomati cista reescreve seu capítulo reestudando a questão do estresse o chamado fenômeno psicossomático os mecanismos de somatização a hipocondria e a his teria a morte vudu além de enriquecer muito as considerações sobre os coronarianos e hipertensos transformandoo num capítulo ainda mais completo sobre o tema Maria de Fátima Lemos da Cruz e Protásio Le mos da Luz em O Impacto Emocional da Cirur gia Cardíaca enfatiza que hoje há uma grande dis seminação dos conhecimentos médicos na imprensa leiga e portanto o grau de informação dos pacien tes afeta a conduta dos profissionais de saúde diante dos pacientes que se submetem à cirurgia cardíaca Os próprios pacientes buscam na internet sobre seus problemas médicos sobre o tratamento e mesmo so bre o perfil dos seus médicos Maria de Fátima nos diz que este comporta mento em princípio é sadio mas é importante lembrar a capacidade de filtrar separar o bom do ruim ou o verdadeiro e o especulativo Além do mais o conhe cimento muda rapidamente e nem sempre promessas aparentemente bem fundamentadas se consolidam na prática A autora salienta que para isso os profissio nais de saúde devem estar cientes das novas exigên cias de seus pacientes e tratálas com transparências Ivo Pitanguy faz uma ampliação do seu preciosíssi mo capítulo introduzindo por exemplo o problema da cirurgia estética do nariz Aqui e ali ele faz novas contribuições ao seu texto uma das preciosidades deste livro Alexandre Kahtalian no seu capítulo Obesidade um desafio já como epígrafe nos brinda com um tre cho de Murilo Rubião A obesidade é hoje um assunto de saúde pública em alguns países do mundo ociden tal e já existe a preocupação nas escolas nas institui ções e nas famílias com a chamada comida junk food excessivamente calórica Kahtalian coloca nas suas ampliações as carac terizações das obesidades segundo o Índice de Mas sa Corporal utilizado pela ONU Chama a atenção porém para o critério que é apenas classificatório e que não leva em consideração a compleição física na avaliação do tecido adiposo excedente Sobre a recente possibilidade de cirurgia bariá trica com as técnicas restritivas ou disabsortivas para os pacientes ditos desafios ou os chamados grandes obesos o autor aponta os estudos de Fandino Vas quez e colaboradores e enfatiza que a cirurgia impli ca acompanhamento psiquiátrico e psicológico antes durante e após o ato cirúrgico Kahtalian nos diz que existem muitas notícias de sucesso dessas cirurgias que saem em jornais e re vistas Os êxitos às vezes são transitórios Relevante é para o autor no tratamento da obesidade a bio grafia do indivíduo e o eclodir da obesidade a com preensão global da história e a boa relação profissio nalpaciente que permita a ele exercer melhor o seu papel terapêutico Junto a várias medidas e trabalhos promissores o autor chama a atenção para os chamados Vigilantes do Peso e Comedores Compulsivos Anônimos que de forma leiga têm sido um importante auxiliar à clas se médica e de nutrólogos no combate persistente ao desafio da Obesidade Miriam Baron continuando a escrever sobre o tema transplante faznos agora um trabalho sobre os Trans plantes de Medula Óssea entre Doadores e Re ceptores não Aparentados falandonos sobre essa relação peculiar entre o que salva e o que é salva do não se conhecerem sobre as fantasias os desejos de encontro e o trabalho da psicologia e do serviço social com cada um isoladamente e com a dupla Na sua experiência no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro diz que Psicossomaticaindd 18 Psicossomaticaindd 18 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 19 o encontro de ambos pode ser definido a partir de um tempo determinado e em condições favoráveis definido caso a caso O paciente deve estar restabelecido e adap tado ao seu novo status fica explícito que não há como evitar eternamente o desejo do encontro de duas pes soas implicadas num evento de tão grande proporção Chamamos esse processo de quebra de anonimato Comenta que o transplante não é um procedimento simples Envolve coragem sacrifício na preparação no ato propriamente dito e depois Tratase de uma operação casada em que doador e receptor formam um par em uníssono em prol de um objetivo comum a melhora do paciente Como conclusão do trabalho realizado aponta para o aumento do número de doadores voluntários e que os cuidados nos preparos dos mesmos evitam suspensões adiamentos e desistências entre os possí veis doadores Francisco José Barreto Trindade atualiza e amplia o seu capítulo A Morte e o Morrer que trata sobre o paciente terminal e começa nos brindando com uma epígrafe em forma de poesia de sua autoria O autor desenvolve o tema A síntese dos opos tos um trabalho não verbal realizado com dese nhos Apresenta os desenhos de três pacientes e os classifica em grupos a falta de síntese a síntese lógi ca e a síntese mística Embora os aspectos da morte na velhice estejam em todo o capítulo o autor a coloca como um tópico separado Apresenta dois estudos O primeiro traba lho realizado na Holanda consistiu numa avaliação dos procedimentos e condutas de médicos e clientes em fase terminal que trouxe como resultado a legis lação da eutanásia naquele país e um segundo estu do nos Estados Unidos realizado em duas fases O autor nos diz que a comparação entre as duas fases do estudo acima não mudou o comportamento médico mas consolidou o ato do governo criando a emenda do advanced directi ve act em 1992 e o living bill que permitem ao doente escolher suas preferências de tratamento e aos médicos serem consoantes com isso em relação à prescrição de ordens médicas contra os procedimentos de ressuscita ção DNR do not ressucitate CMO comfort measures only iniciação ou suspensão de ventilação mecânica alimentação por sonda O estudo em si teve o nome de SUPPORT Study to Understand Prognoses and Prefer ences for Outcomes and Risk of Treatments Francisco Barreto nos diz que a partir desses es tudos foi criado o conceito de boa morte do ponto de vista humanitário e médicolegal e aberto o es paço para a conceituação dos Cuidados Paliativos como subespecialidade sobretudo dentro da oncolo gia e a criação dos hospices No tópico Preparo da Equipe a atitude do autor mostra a ênfase ou seu interesse maior nos Grupos de Sensibilização O autor nos diz que a reconstrução da fé faz parte do atendimento às neces sidades emocionais e espirituais do paciente sejam elas de qualquer ordem e esse apoio tanto ajuda a evitar a morte nos pacientes cirúrgicos bem como a possibili dade da eliminação do desespero e a introdução da paz nos pacientes verdadeiramente terminais Ilustra esse tema com a descrição de três casos clí nicos seus tornando seu capítulo ainda mais completo No tópico Cuidados Paliativos destaca o ex celente artigo de Karen Kehl pela evolução do con ceito e pela revisão da literatura e as publicações mais recentes que sumarizam em seis os temas que constituem uma boa morte o tratamento da dor e dos sintomas o processo decisório claro a prepara ção para a morte finitude Morreu em paz a con tribuição para os outros e a afirmação da totalidade da pessoa Amaury Queiroz de um capítulo inicial AIDS as pectos psicossomáticos no qual nos falava das com plicações psiquiátricas com uma grande variedade de quadros clínicos muito graves e ameaçadores da vida mostra que hoje em dia esses aspectos se cingem a eventuais complicações neuropsiquiátricas com um bom arsenal terapêutico capaz de tratar e até mesmo de curar tais manifestações Em função das possíveis complicações dos qua dros clínicos anteriores decidimos manter a publica ção do capítulo anterior em que há um bom inven tário das possíveis lesões neuropsiquiátricas da AIDS ao mesmo tempo em que Amaury nos brinda hoje com seu novo capítulo Aspectos Psicossomáticos e Sociais da AIDS 20 anos de experiência já com a segurança do tratamento medicamentoso e uma melhor qualidade de vida dos pacientes abordando muitos casos com terapias não farmacológicas a fim de melhorar a autoestima dos pacientes e estimular os seus aspectos de resiliência Em torno de seu conceito original de Regênesis essa interessante e curiosa criação do tema em condi ções de falso self imposto e suposto Samuel Hulak e George Lederman propõe um postscriptum como acréscimo ao seu capítulo e faz uma homenagem ao colega e coautor George Lederman que eregiu con sigo tão rico trabalho e nos brinda com um exemplo clínico altamente significativo desta condição Diz nos Hulak Psicossomaticaindd 19 Psicossomaticaindd 19 05012010 121202 05012010 121202 20 Mello Filho Burd e cols A escolha de Renata se deve à universalidade de sua história e sua característica condição de falso self im posto com somatização grave Durante a terapia ela pode examinar os ódios acumulados pela vida negada que teve pela revolta contra o self imposto e pelo atur dimento de um Ego angustiado em busca de um self perdido tão bem espelhado pelo primeiro olhar de Re nata quando nos conhecemos O autor sempre brilhante completa Renata continua em psicoterapia Tenho procurado ajudála a se desfazer dos papéis que lhe foram impos tos e sempre que possível recheando os buracos esva ziados com as pertinências descobertas ela e eu temos sofrido juntos as batalhas de uma guerra cuja conclusão desconhecemos Uma coisa entretanto sabemos ela e eu estamos em busca de Renata ela mesma e quando sofre ela me diz Dói mas não faz mal pois sinto que esta dor é mi nha só minha José Galvão Alves no seu capítulo O Médico o Paciente e o Atendimento de Emergência no Bra sil fala o tempo todo da sua vivência clínica e faz importantes adendos ao texto anterior O autor nos diz que um clima de respeito entre os plantonistas no setor de emergência ameniza o alto grau de tensão demonstra seriedade e admiração dos que sofrem e que a medi cina lida com o povo suas dores seus medos e suas an gústias e apenas um médico bom pode transformar se num bom médico Galvão Alves frisa a necessidade de um inves timento profundo do Setor de Emergência um local de perdas moral ética e humana e onde a violência urbana e as tragédias já são por demais dolorosas Sobre o domínio total dos riscos de contamina ção física de um médico o autor diz que jamais se conseguirá isso mas que se poderia tentar impedir a contaminação de nossas mentes com atos de descaso e desamor Lembra que não existe consolo para a dor o sofrimento a perda mas a mão sobre os ombros o olhar solidário e as atitudes objetivas transmi tem segurança e respeito Therezinha Penna em seu capítulo Psicoterapia em Instituições Médicas veste sua contribuição anterior com uma nova roupagem atualizada e de forma objetiva Aborda o tema das psicoterapias em hospitais com pacientes hospitalizados e ambulato riais Diznos a autora O primeiro passo ao atender a um pedido de consulto ria deve ser o de comunicar ao paciente o motivo pelo qual foi requisitada uma avaliação psicológica ou um atendimento psicoterápico É importante transmitir que embora a avaliação seja necessária por ter sido requi sitada NÃO É MANDATÓRIO que ele aceite a proposta psicoterápica Aceitar ou não o atendimento psicote rápico a possibilidade de poder optar introduz um elemento salutar de resgate de sensações de poder e de controle Para Therezinha Penna em uma terapia com pes soas portadoras de doenças graves ou crônicas uma boa adaptação e eficácia para lidar com as limitações perdas e sofrimentos impostos pela doença implica a diferença entre uma vida mais ou menos feliz ou uma melhor ou pior qualidade de vida na vigência da enfermidade A resolução favorável do ponto de vista emocional ou o adoecimento psicológico resultante da experiência de estar enfermo depende de forças homeostáticas entre a estrutura emocional recursos adaptativos e a realidade externa Eugênio Paes Campos em O Paciente Somático no Grupo Terapêutico também reescreveu seu capítulo anterior principalmente sobre a sua experiência de supervisionar grupos de hipertensos na cidade de Te resópolis pelo SUS adicionando muito material clí nico Neste trabalho que serviu de base para o seu livro recém publicado Quem cuida do cuidador que está fazendo grande sucesso ele apresenta sua visão do trabalho teórico com grupos de suporte basea dos no apoio e no holding e com grupos de elabora ção baseados na prática da psicanálise e no insight Como capítulos novos convidamos autores es pecialistas nos assuntos abordados e acreditamos que irão contemplar temas muito necessários ao entendi mento do campo da Psicossomática Esses capítulos irão preencher algumas lacunas que há muito tempo gostaríamos de têlas preenchidas Convidamos Carlos Doin um dos psicanalistas mais cultos e de pensamento mais revolucionário de nossa Sociedade de Psicanálise Telepatia e Comunicação Sutil para escrever o novo capítulo sobre Psicosso mática e Neurociên cias No seu texto Doin estuda sobre a interface psicológicapsicossomáticaneuroci ências cognitiva evolutiva Desde seu início a psicanálise vem se consti tuindo uma disciplina de duas faces um saber e um fazer do entre a ciência natural e a ciência huma na diznos Doin O ser humano se compreende no encontro de vertentes a físicoquímica a biológica somatopsíquica a antroposociológicaestrutural Escrevendo sobre a vertente naturalista Doin nos prova que Freud começou por ela Projeto de uma Psicologia Científica mas que depois a aban donou pela pouca evolução da neurologia na época Psicossomaticaindd 20 Psicossomaticaindd 20 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 21 e passou a se empenhar em pesquisas psicológicas construindo o edifício da psicanálise tal qual é conhe cido hoje em dia Surgiram assim em oposição ao universo positivista as teorias da mecânica quântica da relatividade das probabilidades das plausibilida des e aproximações A seguir Doin nos fala das correntes monista a começar com Hipócrates e dualista Platão Descar tes e mais modernamente Popper Acredito para meu uso que corpo e mente sejam duas ou uma única unidade ontológica essencial funcionan do como uma unidade funcional interagindo perma nentemente O termo neurociência engloba várias disciplinas ligadas ao sistema nervoso desde as grandes estru turas até a biologia molecular e a bioquímica de suas células Ali se alinham a neuroanatomia a neurofi siologia a neuropsicologia a neurologia clínica en tre outras Destacamse aí as técnicas de obtenção de neuroimagens encefálicas Criouse o rico campo da psicologia cognitiva que permite explicar o fenômeno do insight biológico Ah agora entendi No item evolução filogenética versus desenvolvi mento ontogenético escreve Doin Vão se formando um todo que possui forte tendência a se conservar regenerar reorganizar e restaurar a se modificar e evoluir somatopsiquicamente numa faixa mais ou menos regular e constante de desempenhos re gistrados como úteis e bons para a perpetuação da vida Por outro lado agem forças antagônicas no sentido da destruição Nosso fenótipo resulta da interação do ge nótipo com o meio ambiente físico biológico humano com as experiências da história pessoal Nesse sentido com as devidas restrições vale o dito Genética não é destino E noutro trecho sobre a relação precoce com a mãe acrescenta O pequeno ser individual se forma e se transforma em função da mãe adaptase ao mundo que principia sen do ela tende a alinharse ao que ela sente e pensa sobre tudo e sobre cada pessoa e o que é mais importante ao que ela pensa sente e espera em relação a ele E sobre a integração neuropsicossomática De fato considerando as vias neuromentais ascenden tes e descendentes de mãodupla do corpo passando pelo sistema nervoso profundo e periférico medula tronco cerebral diencéfalo cerebelo núcleos da base córtex até o córtex préfrontal fica difícil de pensar em um corpo radicalmente separado de uma mente A visão integrada somatopsíquica psicossomática é a mais compatível com os conhecimentos interdisciplina res atuais A última parte do trabalho se refere à mais im portante descoberta efetuada pela neurociência a dos neurôniosespelho feita recentemente por Rizzo latti e colaboradores na Itália Esses neurônios em um macaco por exemplo disparam quando um macaco realiza um ato de pegar uma fruta levandoo a fazer o mesmo ato São neurônios vinculados ao ato de imitar e portanto de se identificar com o outro Desse modo relacionamse a vários fenômenos psicológicos particularmente estudados pela psica nálise como a empatia a função especular materna as identificações saudáveis com as figuras de base do nosso passado e com as identificações patológicas como o fenômeno do falso self com a função alfa de Bion com o processo do apego estudado por Bowlby e com as identificações introjetivas de Melanie Klein Para Doin os neurôniosespelho e outras des cobertas das neurociências em geral ressaltaram em muito os influenciados processos inconscientes enfa tizados pela psicanálise bem como sobre a importân cia do contexto transferência contratransferência e repetição compulsiva reforçando a importância e a esperança da aplicação de técnicas psicanalíticas no tratamento das doenças mentais No capítulo Relação MédicoCliente Paulo Canella com toda a sua experiência clínicocirúrgica de gine cologista de quatro costados e de professor de medi cina nos faz um completo estudo ao mesmo tempo teórico e prático sobre esse importantíssimo tema Estuda de início as duas partes em questão o médico com seus problemas humanos a cliente como a pessoa necessitada e a relação consulta que se es tabelece entre os dois A seguir estuda o papel da instituição em que se dá a relação No que chama de formas atípicas através das quais o médico costuma se comunicar com seus pa cientes estuda as várias formas de iatrogenias habi tuais ordens e ameaças lições de moral sugestões e conselhos persuasões negação de percepções ofere cer falsos apoios ignorar problemas dar mensagens contraditórias criticar e ridicularizar o problema dos elogios fazer perguntas atender de modo impessoal e técnica A seguir Canella discorre sobre as formas te rapêuticas aquelas que possibilitam ao médico ampliar seu potencial de ação na medida em que abrem seus canais de comunicação aprofundando diálogo de pessoa a pessoa A sua base é a empatia que permite nos colocarmos na posição do outro As Psicossomaticaindd 21 Psicossomaticaindd 21 05012010 121202 05012010 121202 22 Mello Filho Burd e cols suas principais formas terapêuticas são a reflexão de sentimentos o focalizar em pistas não verbais a au toexpressão o ato de colocar limites produzindo o confronto a resolução conjunta de impasses a orien tação antecipatória e o reasseguramento A reflexão dos sentimentos para o autor é o principal veículo de transmissão da atitude clínica e depende da capacidade do terapeuta de sintonizarse com o paciente e responder a ele de acordo com sua ótica É preciso entender dois níveis na mensagem do paciente o manifesto e o latente Na reflexão dos sentimentos entramos em sintonia com o paciente e respondemos explicitamente ao nível latente da men sagem que ele nos envia focalização em pistas não verbais tom timbre expressão facial postura gestos qualidade do olhar e do sorriso etc estratégias e abordagens de lidar com as pistas não verbais perceber registrar e arquivar per ceber e apontar perceber apontar e decodificar o significado autoexpressão reflexão dos nossos sentimentos colocar limites clareza concisão e firmeza confronto dar evidência a aspectos contrastantes das mensagens do paciente resolução conjunta de impasses respeito às pró prias necessidades e às do outro orientação antecipatória clarificação descrever para o paciente o panorama geral de uma situa ção a ser enfrentada reasseguramento aliviar ansiedades e temores do paciente quando possível A seguir Canella explicita estas e várias situa ções positivas e negativas com exemplos práticos Na parte final o autor faz considerações sobre a relação médicopaciente e a evolução dos conceitos e da prática da psicossomática Somatização Hoje capítulo de Sandra Fortes Luís Fernando Tófoli e Cristiana M A Baptis ta é um dos capítulos mais completos sobre o tema mecanismos de somatização partindo das ques tões o que é somatização quem é e o que é um paciente somatizador Os autores propõem dividir o capítulo em três partes definição gênese principais fatores e meca nismos fisiopatológicos Eles discutem essas questões num subcapítulo intitulado O estado da arte da nossa compreensão do que é somatização hoje Des crevendo conceitos antigos e atuais processos disso ciativos histéricos e somatoformes abordando o pro blema das classificações psiquiátricas eles terminam classificando os somatizadores em agudos e crônicos definindo as suas características Dividem a seguir os fatores incriminados nas so matizações em individuais familiarescoletivos e li gados aos serviços de saúde descriminandoos Entre os fatores familiares e coletivos discutem longamen te o papel da cultura e o sistema de saúde A seguir abordam o fenômeno do poder de somatização da consulta médica Em relação aos fatores individuais estudam o comportamento anormal de doente e de pois a questão das alterações funcionais cerebrais nas somatizações crônicas Por último como modelo de enfermidade sínte se dos vários problemas abordados estudam a fibro mialgia em relação aos mecanismos fisiopatológicos apontados no trabalho Sérgio A Belmont no seu capítulo Infância e Psi cossomática Intersubjetividade e Aportes Con temporâneos começa já na epígrafe com uma frase do diário de um bispo em 1760 a nos chamar a aten ção para a importância dada aos problemas afetivos que interferem no desenvolvimento das crianças e são responsáveis por diversas patologias e mesmo por suas mortes Segundo Belmont a moldura dada ao seu capí tulo é dividida em três partes a primeira a dos teóricos das relações objetais destacando Donald W Winnicott pelas suas con tribuições a respeito das questões psicossomáti cas e a sua elaboração de uma teoria ponte ou em movimento entre o freudismo clássico e as suas próprias visões sobre o desenvolvimento emocio nal primitivo além do conceito going on being vir a ser como fundamental ao desenvolvimen to do indivíduo a segunda com a importância de algumas ideias da Escola Francesa de Psicossomática com Pierre Marty Michel Fain C Dejours David Soullé e Leon Kreisler entre outros pela profundidade de discussão de seu material clínico que traçam al guns princípios e fundamentos epistemológicos e clínicos representativos de seu pensamento e ação Kreisler faz uma distinção clara do psicossomático ligandoo a patologias verdadeiramente orgânicas e constratandoo vivamente com fenômenos his téricos e hipocondríacos mostra o trabalho com bebês muito pequenos nos quais havia muita di ficuldade de estabelecer relações com os objetos iniciais que os levaram a situações de merecismo e outros quadros psicossomáticos infantis e a terceira com as contribuições atuais trazidas pelas neurociências possibilitando ao autor a Psicossomaticaindd 22 Psicossomaticaindd 22 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 23 possibilidade de comprovação empírica e integra ção conceitual de várias teorias psicodinâmicas ligadas aos fenômenos psicossomáticos privile giando os autores como Meltzoff e Prinz Fogassi e Galese entre outros Sobre as contribuições das neurociências o au tor cita a importância do estabelecimento de teorias por exemplo como da imitação das áreas dos neu rônios que descarregam durante movimentos das mãos as identificações das chamadas F5 teorias que têm importância porque foram estendidas do campo de pesquisa com animais ao campo do desenvolvi mento primitivo dos seres humanos Esses estudos e outros mostram a importância da presença humana junto ao bebê desde seu nascimento assim como os cuidados dispensados a ele No tópico Clínica Psicossomática Infantil apre senta material clínico pessoal para demonstrar o que pode ser entendido como um olhar winnicottiano dos transtornos psicossomáticos na infância É de um bebê nos seus primeiros meses de vida que possui apenas um corpo e sua fisiologia como meio de ex pressão que Belmont nos fala O autor cita também o trabalho de Samuel Hu lak 2007 sobre Alexitimia e Pseudoalexitimias bem como as contribuições de Mahler Spitz Anna Freud Klein e Kohut sobre o desenvolvimento infantil O autor acrescenta um trabalho de sua autoria chamado Projeto Criação uso de teoria winnicottia na no prénatal de adolescentes e que ele pretende concretizar na prática com equipe multiprofissional atendendo grupos com grávidas entre 12 e 21 anos de idade durante toda a gestação e até o segundo ano de vida do bebê em que se utilizará de fantoches cria dos por ele e com nomes como o seio falante mãe má etc e que irão possibilitar a vivência prática da importância do brincar conceito de Winnicott No capítulo de Miriam Burd Diabetes Mellitus Uma Visão Psicossomática a autora que já nos brindou com outros trabalhos sobre diabete inova mais uma vez sobre o mesmo tema No seu trabalho dividido em três partes apresenta o atendimento de um ado lescente DM1 que descobre a doença em cetoacidose diabética e precisou ser internado em estado grave constituindose numa verdadeira aula de Psicologia Médica num hospital geral de um paciente de meia idade com DM2 já apresentando retinopatia diabé tica e deficiência visual grave atendido em consul tório privado em Psicoterapia de Apoio Psicológico e o atendimento em coterapia de um Grupo de Apoio Psicológico com Pacientes DM2 idosos no Hospital Universitário Pedro Ernesto UERJ onde a autora fez seu treinamento durante quase oito anos seguidos no Ambulatório de Diabete e Metabologia Miriam Burd na primeira parte o complementa no subitem O adolescente e as condutas de risco A personalidade falso self e o diabete e nos diz que a adolescência é um momento crítico para o controle do diabete e burlar a dieta não querer fazer os exa mes são algumas das transgressões ao tratamento e ca racterísticas de uma atuação permanente ou transitória de falso self O atendimento especial à escola e à família é outro tema que não foi esquecido pela autora Ela nos diz A escola e a família precisam estar preparadas para li dar com o diabete do aluno ou do filho Munidas de informações básicas a respeito da afecção e com um mí nimo de recursos para eventualidades extraordinárias poderão oferecer rapidamente os primeiros socorros O que é importante frizar é que a escola não substitui a família as duas são muito importantes para a criança e o adolescente e se complementam Ao dividir o capítulo em três partes o adoles cente o adulto maduro e o idoso todos diabéticos acredito que Miriam Burd conseguiu mostrar o quan to de psicossomático é o diabetes mellitus e o quanto o DM tipo 1 e o DM tipo 2 se diferem e se aproximam diante da visão da psicossomática Todos os pacientes lutam com os três pilares da doença e de seu tratamento os medicamentos orais ou injetáveis a dieta e o exercício físico O emo cional não poderia ficar de fora e a autora o incluiu como o quarto pilar Da mesma forma que para manter uma cadeira em pé precisamos das quatro pernas aos três mosqueteiros precisou se juntarem um quarto cavaleiro A autora utiliza a definição de Julio de Mello Filho em comunicação pessoal 2008 O diabetes mellitus é uma doença psicossomática por que se inicia frequentemente numa fase de estresse emocional e sofre a influência de fatores ou de distúr bios somáticos na sua evolução E a visão psicossomática Como tratar Pergun tanos a autora E ela mesma responde Através do holding suporte e do handling manejo sendo continentes como nos disse Donald Winnicott Consulta Conjunta uma Estratégia de Atenção Integral à Saúde é um novo capítulo escrito a seis Psicossomaticaindd 23 Psicossomaticaindd 23 05012010 121202 05012010 121202 24 Mello Filho Burd e cols mãos por Mello Filho seu criador Lia Márcia da Silveira e Miriam Burd Os autores trazem a impor tante técnica de treinamento em serviço a Consulta Conjunta filha dileta da Interconsulta Julio de Mello Filho nos conta em breve histórico e apresentação de um caso clínico comentado como criou a técnica em 1977 quando trabalhava no Hospital Clementino Fraga Filho e ao se transferir para o Hospital Pedro Ernesto amplioua Miriam Burd desenvolve três ca sos clínicos comentados um seu e dois de JMF mais recentes com crianças e adolescentes diabéticos de senvolvendoos na prática e Lia da Silveira nos pre senteia com os objetivos da técnica as dificuldades encontradas e apresenta algumas estratégias para identificar e diluir pontos de resistência fomentar parcerias e integrar profissionais A Consulta Conjunta é uma ação de saúde que tem como característica unir o viés assistencial ao pe dagógico na medida em que integra pessoas e sabe res na aprendizagem em serviço Atualmente a Consulta Conjunta vem sendo exercitada nos Ambulatórios do Hospital Universitá rio Pedro Ernesto da Universidade do Rio de Janeiro com o propósito de capacitar médicos e psicólogos para a prática do cuidado integral à saúde e realizada pelos alunosprofissionais do Curso de Especialização em Psicologia Médica FCMUERJ sob a supervisão do staff do Serviço Diznos os autores A prática da Consulta Conjunta potencializa o cuidado e os momentos dos profissionais ao propiciar que so lidariamente partilhem problemas reflitam sobre eles e busquem soluções evitando a prática impessoal e a reprodução padronizada Cabe aqui uma dolorosa homenagem para aqueles que neste ínterim nos deixaram cumprindo o destino final do ser humano Em 1992 estavam todos vivos produtivos e nos brindaram com inestimáveis capítulos neste livro Heladio Capisano junto com Miller de Paiva foi a alma da Psicossomática em São Paulo e um dos nossos grandes líderes no Brasil Foi nosso terceiro presidente da ABMP numa gestão que consolidou o movimento Foi também um dos pioneiros da psico terapia analítica de grupo no Brasil escrevendo um precioso trabalho sobre o tratamento em grupo da colite ulcerativa Seu trabalho sobre iatrogenia na relação médicopaciente é um dos clássicos em me dicina e como também o é sobre Imagem Corporal neste livro Professor de Psicologia Médica na Faculdade de medicina do ABC teve a ousadia naquela época meados de 1970 de realizar grupos terapêuticos com estudantes de medicina o que lhe valeu a perda do cargo de Diretor da Faculdade naquela época No final da vida tornouse um quase sábio transmitindo preciosas lições de vida às reuniões as quais comparecia Teve uma série de enfermidades antes de falecer das quais emergia sempre lúcido e revigorado Para isso teve a ajuda se sua segunda es posa Lúcia com quem fazia um casal adorável Rodolpho Rocco fez uma carreira médica com pleta Foi professor de medicina Presidente da Regio nal do Rio de Janeiro da ABMP Diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ e finalmente presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro num pe ríodo conturbadíssimo nos anos finais da ditadura militar A presença de Rocco na Chefia de Clínica do Serviço de Clínica Médica do Professor Lopes Pontes UFRJ foi a principal razão que escolhi esta Cadei ra para desenvolver meu trabalho de psicossomática Rocco foi talvez a pessoa mais equilibrada que conhe ci Sem dúvida ele era um líder carismático porém criterioso e profundamente equilibrado Seus amigos e discípulos estão no momento editando um livro so bre sua pessoa e sua obra Seu capítulo sobre O Estudante de Medicina e o Paciente é precioso não conheço coisa igual tão completo Ele faleceu de forma trágica assassinado em seu consultório por um paciente psicótico vítima de um delírio que Rocco por forças sobrenaturais esta va controlando em sua mente Que forma de morte injusta para alguém da grandiosidade e da bondade de um Rocco Rocco também teve uma segunda esposa Maria Alice que igualmente muito o ajudou em sua vida científica e na sua carreira médica George Lederman autor de um dos trabalhos mais originais desse livro Regênesis junto com Samuel Hulak faleceu ainda relativamente jovem numa morte muito sentida pelos seus colegas e ami gos de Recife onde ele era muito querido Simples modesto generoso ele desenvolveu uma bela carrei ra de psicossomaticista e psicanalista sendo muito procurado como supervisor Adolfo Menezes de Mello foi uma outra gran de perda Eu o chamava de Winnicott da pediatria brasileira Ele dominava um auditório como poucos Brilhante culto comunicativo era um prazer vêlo falar Fascinava adultos e crianças com as quais era mestre em brincar e desenhar Passou toda a sua vida em Marília onde era professor de pediatria Também perdemos Antonio Franco Ribeiro da Silva que nos fez junto com Geraldo Caldeira um excelente texto sobre Alexitimia e Pensamento Ope ratório Ele foi um dos líderes do Círculo Mineiro de Psicossomaticaindd 24 Psicossomaticaindd 24 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 25 Psicanálise um dos principais grupos lacanianos do país Sua perda foi muito sentida na classe médica de Minas Gerais por quem era muito querido Cabe aqui ainda uma homenagem ao Professor José Fernandes Pontes que em 1947 como gastro enterologista já difundia os princípios da medicina sóciopsicosomática em nosso meio como ele com sua postura integral costumava designar Foi um dos fundadores da ABMP e seu segundo presidente Era a alma do Serviço de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP ini ciando um trabalho multidisciplinar que congrega va médicos psicanalistas e outros profissionais de saúde Apesar de ter feito formação psicanalítica nun ca abandonou a gastroenterologia e a clínica médi ca inclusive como Professor em Sorocaba levando para o interior paulista nossas ideias e nossos ideais Fundou também o Instituto Brasileiro de Pesquisas em gastroenterologia estimulando a pesquisa em psi cossomática no nosso meio Deixou um grupo de as sistentes que tendo à frente Avelino Rodrigues está contribuindo para tocar a psicossomática no Brasil Para uma melhor compreensão e elaboração do conteúdo científicodidático deste livro resolvemos introduzir principalmente nesta nova edição uma série de novos casos clínicos relatados e discutidos pelos seus autores Os organizadores Psicossomaticaindd 25 Psicossomaticaindd 25 05012010 121202 05012010 121202 PARTE 1 Conceituação Psicossomaticaindd 27 Psicossomaticaindd 27 05012010 121202 05012010 121202 O termo psicossomática surgiu a partir do século passado depois de séculos de estruturação quando Heinroth criou as expressões psicossomática 1918 e somatopsíquica 1928 distinguindo os dois tipos de influências e as duas diferentes direções Contudo o movimento só se consolidou em meados deste sé culo com Alexander e a Escola de Chicago Porém as incertezas sobre a relação mentecorpo se expressam na própria denominação psicosomático com hífen ainda utilizada entre estudiosos destes fenômenos e por médicos em geral A Psicossomática evoluiu em três fases a inicial ou psicanalítíca com predomínio dos es tudos sobre a gênese inconsciente das enfermi dades sobre as teorias da regressão e sobre os benefícios secundários do adoecer entre outras b intermediária ou behaviorista caracterizada pelo estímulo à pesquisa em homens e animais tentando enquadrar os achados à luz das ciências exatas e dando um grande estímulo aos estudos sobre estresse c atual ou multidisciplinar em que vem emergindo a importância do social e da visão da Psicossomá tica como uma atividade essencialmente de inte ração de interconexão entre vários profissionais de saúde1 Só bem recentemente com contribuições como as de Engel sobre a teoria geral dos sistemas com os conceitos de Perestrello entre nós sobre a chamada Medicina da Pessoa e com a própria concepção mais recente de saúde da OMS como equilíbrio biopsicos social pôde a Psicossomática assumir seu verdadei ro papel integrador e multidisciplinar vindo a funcio nar quanto ao ensino como as antigas cadeiras de Patologia Geral na sua possibilidade de vislumbrar o complexo jogo de causas e efeitos presentes na evo lução de uma enfermidade de um modo muito mais rico e completo Psicossomática em síntese é uma ideologia so bre a saúde o adoecer e sobre as práticas de Saúde é um campo de pesquisas sobre estes fatos e ao mes mo tempo uma prática a prática de uma Medicina integral Hoje entretanto o termo psicossomática está mais restrito à visão ideológica deste movimento e às pesquisas que se fazem destas ideias ou seja sobre a relação mentecorpo sobre os mecanismos de produ ção de enfermidades notadamente sobre os fenôme nos do estresse A relativa complexidade dessas definições e desses conceitos pois há uma Medicina Psicosso mática eou Holística ou Integral etc se complica um pouco mais ainda quando surge a chamada Psi cologia Médica designação proposta na França por Pierre Schneider para este mesmo tipo de interface em Medicina e para seu ensino Dando um sentido eminentemente prático seguindo a vertente de Ba lint na Inglaterra propõe Schneider que este seja o campo de estudo da relação médicopaciente Ou a Psicologia da Prática Médica designação ainda mais abrangente proposta por Alonso Fernandez Desse modo a Psicologia Médica vem a ser o todo que con tém o particular a visão psicossomática da Medicina neste caso No Brasil o termo psicossomática é comumente utilizado para esse tipo de serviço quando se trata de um hospital público municipal ou estadual No caso das universidades das faculdades de Medicina fun cionando geralmente em conjunto com a Psiquiatria costuma chamarse de setor ou serviço de Psicologia Médica por vezes se continuando com um braço os núcleos de orientação psicopedagógica que têm a seu encargo o atendimento aos alunos que respondem às situações traumáticas do curso com reações desadap tativas várias neuróticas ou mesmo psicóticas 1 INTRODUÇÃO Julio de Mello Filho 1 José Fernandes Pontes entre nós com toda a sua qualifica ção de pioneiro do nosso movimento já havia se antecipado a este fato quando propôs a expressão sociopsicossomática para nos caracterizar Psicossomaticaindd 29 Psicossomaticaindd 29 05012010 121202 05012010 121202 30 Mello Filho Burd e cols Hoje a gama de atividades do que se chama de Psicossomática ou de Psicologia Médica2 abrange o ensino ou a prática de qualquer tipo de fenômenos de saúde e de interações entre pessoas como as relações profissionaispacientes as relações humanas dentro de uma família ou de uma instituição de saúde a questão das doenças agudas e crônicas o papel das reações adaptativas ao adoecer a invalidez a morte os recursos terapêuticos extraordinários Atualmente o papel de emissários da Psicosso mática e da Psicologia Médica vem sendo exercido não apenas por médicos psicanalistas em sua maio ria mas também por profisionais outros da saúde mental como psiquiatras e sobretudo psicólogos Estes por razões várias que incluem desde aspectos ideológicos a problemas de mercado de trabalho têm acudido em massa a este campo e é nossa tarefa atual bem acolhêlos e atendêlos Uma tarefa importante é aperfeiçoar nossa linguagem e nosso campo de co nhecimentos para melhor dialogar com outros pro fissionais de saúde que têm se dirigido para nosso campo como enfermeiros assistentes sociais e nutri cionistas por exemplo Como podemos ver evoluímos por razões vá rias da prática de uma Psicossomática dirigida ape nas a medicos para a necessidade de um campo de conhecimentos que possa se voltar para qualquer profissional de saúde não só porque estes estão in cluídos nessas práticas como também pelo fato de que estão se voltando para o universo dos fenômenos psicossomáticos e para uma prática de saúde que seja realmente integral Quanto ao médico este continua a ser o alvo maior e ao mesmo tempo o maior proble ma para aqueles que militam em Psicossomática e em Psicologia Médica Tivemos que mudar nossa bússola de uma direção que via em todo médico o agente de uma visão psicossomática e da prática de uma au têntica Psicologia Médica para uma visão pragmáti ca ensinada pelos tempos da força secular de uma dicotomia mentecorpo e de uma prática que funda mentalmente acentua tal dissociação Por isso talvez seja uma tarefa não para décadas mas para séculos corrigir esses fenômenos que são ao mesmo tempo ideológicos e decorrentes de toda uma práxis Nossa luta todavia valeu Hoje há um número muito maior de médicos e de estudantes de Medicina com uma visão sociopsicossoniática bem estabelecida do que decorre uma prática diferente voltada para as nuances do psicossocial do familiar do relacional com um investimento maior na chamada psicoterapia da pratica médica No Brasil como está exposto no trabalho de Abram Eksterman a Psicossomática particularmen te proliferou a partir do trabalho de psicanalistas em hospitais de ensino especialmente no Rio de Janeiro em São Paulo Porto Alegre e Recife Criouse a opor tunidade não só para que futuros médicos pudessem partilhar desses conhecimentos como também para influenciar jovens profissionais numa prática nessa direção A divulgação dessas ideias fora das faculda des de Medicina alcançando outros profissionais de Saúde pavimentou o terreno para a construção de uma Associação Brasileira de Medicina Psicossomáti ca que na prática já existe há mais de 20 anos Todo este intróito fazse necessário para se entender o porquê de Psicossomática Hoje Psicosso mática e não psicologia médica porque este nome consagrouse principalmente entre leigos e entre mé dicos E Hoje pela necessidade de se atualizar tudo que se pensa se pratica e se escreve a esse respeito no Brasil Aqui temse discutido e praticado muito e se publicado pouco porque o brasileiro à diferen ça do europeu do americano e mesmo do argentino é malpreparado para escrever Então digase a bem da verdade que excetuados alguns livros e outros trabalhos publicados perdeuse boa parte das exce lentes comunicações apresentadas em aulas cursos simpósios mesasredondas congressos e várias ou tras reuniões científicas sobre Psicossomática que se realizaram nos últimos anos Psicossomática Hoje pretende resgatar alguns desses fatos não somente convidando para participar desta edição os nomes mais consagrados em nosso meio como também autores mais jovens ou menos conhecidos que têm porém uma importante contri buição ainda pouco divulgada fora do ambiente mais restrito de circulação dessas ideias No Brasil a grande maioria dos que militam em Psicossomática são psicanalistas psiquiatras e psi cólogos que trabalham com referenciais analíticos na linha do que os americanos chamariam de uma Psiquiatria Dinâmica Em nosso meio praticamente não temos profissionais de orientação behaviorista e pouquíssimos profissionais envolvidos com Socio logia Médica ou Medicina Social frequentam nossas reuniões Essa situação particular explica também as peculiaridades deste livro sempre baseado numa rea lidade brasileira So fizemos exceção para um autor estrangeiro através do convite feito ao professor José Schavelzon como forma de homenageálo por suas várias publicações de renome internacional sobre 2 Em outros países como os de origem anglosaxônica não se usa uma designação ou outra e sim uma terceira Psiquiatria de Ligação e Consulta para designar atividade semelhante à que estamos descrevendo porém mais restrita a um papel de atendimento de casos psiquiátricos num hospital geral do que a uma atividade mais ampla de inter consulta que é o método mais utilizado em nosso meio Psicossomaticaindd 30 Psicossomaticaindd 30 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 31 Psicossomática e câncer e agora mais recentemen te por seu brilhante trabalho em que encara aspec tos totalmente originais sobre a doença de Freud ao comprovar que esta não era câncer porém tornou se câncer em razão de todo o tipo de iatrogenia que Freud sofreu De um modo geral Psicossomática Hoje é um li vro do que poderíamos chamar de autores em Psicos somática de segunda geração caracterizando nosso momento atual em que os pioneiros do movimento passam o bastão para aqueles que os seguem Um aspecto que acreditamos incomum em nos sa conjuntura é a presença de importantes nomes da Medicina brasileira de fora do movimento de Psicos somática escrevendo para nosso livro sobre aspectos psicológicos e psicossomáticos de suas especialidades Assim temos Rodolpho Rocco em Educação Médica Fernando Barroso em Cirurgia Geral Ivo Pitanguy em Cirurgia Estética Alfred Lemle em Pneumologia José Galvão Alves clínico com o tema até então inédito em publicações psicossomáticas sobre os aspectos psi cossociais das urgências médicas Obviamente esses autores não foram convocados ao acaso sabíamos da amplitude de suas ideologias médicas e da riqueza humanística de suas práticas profissionais Um espírito nos norteou na feitura deste livro apresentar nossa Psicossomática e nossos autores tais como são Por esse motivo contribuições não previs tas foram posteriormente aceitas e autores que apre sentaram trabalhos importantes durante a feitura do livro foram convidados a participar Poucos não pude ram corresponder ao convite feito e por esse motivo alguns centros de Psicossomática não estão represen tados nesta obra Não poderíamos entretanto num país com a extensão territorial do nosso e com um movimento psicossomático verdejante convidar todos aqueles que têm o que dizer e como dizer ao selecionar sem pre colocamos pontos de vista pessoais e concomi tantemente cometemos arbitrariedades contra aque les que não foram lembrados ou escolhidos A estes que ficaram de fora nossas escusas e a certeza de que tentamos uma publicação ampla e abrangente porém nunca perfeita e total Temos neste livro dois trabalhos introdutórios e conceituais de Abram Eksterman sobre o histórico da Psicossomática no Brasil É não só um trabalho inédito como também da maior importância para entendermos à luz dos profundos conhecimentos de Eksterman sobre as realidades médica e psicossomá tica do Brasil as raízes do nosso movimento e o por quê dos nossos rumos atuais Ao mesmo tempo é um trabalho conceitual e por tudo isso fundamental para nos introduzir nos demais temas deste livro Tenta mos classificar os demais trabalhos para fins didáti cos em temas de ensino e formação temas básicos temas específicos temas originais temas sobre trata mento e trabalhos sobre AIDS que pelo seu universo e importância ganharam um lugar à parte Porém há trabalhos ao mesmo tempo básicos e específicos outros que são originais e específicos Chama a atenção neste livro o número de tra balhos sobre a questão do ensino demonstrando não só o interesse do coordenador por esse tema como o número de autores que o estudam atualmente Sig nificativamente há um trabalho sobre o ensino de Psicologia Médica e quatro sobre a formação do es tudante de Medicina e do médico No primeiro tra balho sobre ensino de Psicologia Médica podemos destacar a importância dos grupos de reflexão com alunos na elaboração das temáticas vividas por es tes necessidade de manutenção de um ensino teó rico necessidade de um curso que acompanhe todas as etapas do currículo trabalhos práticos realizados pelos alunos como entrevistas e acompanhamentos de pacientes necessidade da presença de um Cen tro de Psicopedagogia que possibilite acompanhar os alunos francamente em crise crise do ingresso crise do terceiro ano crise do final do curso outras cri ses de ordem pessoal familiar ou institucional Os demais trabalhos embora de professores de Psicolo gia Médica em sua maioria atestam sobre o quanto é possível fazer neste campo fora do escopo do ensi no tradicional disciplinar Ou ao lado deste Assim o trabalho de Rodolpho Rocco no qual ele enfatiza a importância dos aspectos socioculturais no processo ensinoaprendizado e na relação estudantepaciente é realizado com alunos de Clínica Médica de cujo departamento ele é o professor Digase a bem da verdade que Rodolpho Rocco sempre manteve uma relação muito próxima da Psicossomática desde o Hospital São Francisco de Assis caracterizando um tipo de cooperação indispensável a nosso ensino O trabalho de Rodolpho Rocco é o único sobre o tema da relação estudantepaciente escopo sobre o qual irá se formar e modelar a primeira raiz básica e maior do nosso sucesso como profissionais O tema seguinte de Zaidhaft também professor de Psicologia Médica3 relata um trabalho feito com estudantes de Medicina em torno do tema da morte ao entrevistarem um suposto paciente terminal e sua filha O trabalho se agiganta na capacidade dos alu nos de refletirem e concluirem sobre vários aspectos 3 Zaidhaft publicou recentemente uma obra básica em Me dicina e em Psicologia Médica intitulada Morte e formação médica introduzindo o livro com uma relação entre morte arte história e psicanálise enfeixao sobre a questão da Medicina e do ensino médico Psicossomaticaindd 31 Psicossomaticaindd 31 05012010 121202 05012010 121202 32 Mello Filho Burd e cols da posição do paciente e da filha diante da morte e da vida e deles mesmos como futuros profissionais Esse trabalho ilustra a riqueza que um grupo de re flexão pode alcançar e a capacidade de alunos de ela borar um trabalho e escrever um texto aspecto que temos destacado em nossa experiência de ensino de Psicologia Médica na UERJ conforme se pode consta tar no trabalho de Muniz e Chazan a esse respeito David Epelbaum Zimerman conhecido psica nalista individual e de grupos em Porto Alegre nos mostra como conhece relação medicopaciente e educação médica num trabalho primoroso pleno de preciosidades para o tema escolhido A formação psi cológica do medico A base desse trabalho foi sua experiência em programas de educação médica con tinuada quando durante alguns anos visitou cidades do interior do Rio Grande do Sul nas quais realizava grupos de reflexão com médicos e estudantes de Me dicina Aqui vemos portanto todo o desenvolvimen to de um ensino de Psicologia Médica fora da facul dade em termos de pósgraduação O trabalho de Adolpho Hoirisch versa sobre um tema fundamental para os médicos a questão da identidade médica baseado na sua interessante tese sobre a crise de identidade que pode acometer um médico quando ele adoece É um tema que pode ser também pensado e estudado em relação a todas as repercussões que a atual crise que vivemos subem prego desprestígio social e de status deterioração de valores e de modelos ideológicos papel de bode expiatório de toda uma sociedade em crise etc atin gindo o médico e sua identidade Mas este seria um tema extenso demais para abordar no presente capí tulo Na seção de temas básicos encontramos nova mente Eksterman com o tema de há muito por ele estudado sobre as relações o diálogo como muito bem o diz entre a Psicanálise e a Psicossomática É de fato um diálogo pois há as contribuições da Psica nálise que desde Freud estruturaram a própria Psicos somática e os conceitos oriundos desta como ale xitimia e pensamento operatório que fertilizaram o pensamento psicanalítico Eksterman nos aponta quatro grandes áreas do conhecimento e da prática médica que têm especial interesse para o psicanalis ta a área da Patologia a área da relação médicopa ciente a área da formação psicológica do profissional de saúde e a área da prevenção Kenneth Camargo Júnior escrevendo sobre a relação doençasociedade recorda que a relação sociedadedoença é múltipla pois não apenas a es trutura social é causadora da doença como a própria definição de doença é antes de tudo cultural Outro aspecto que não pode ser descuidado é que a doença é ela própria um acontecimento social especialmente quando grave ou crônica É importante frisar que a consulta médica é o momento em que duas subcul turas a do médico e a do paciente entram em confronto às vezes de modo desastroso Do mes mo modo que quisemos registrar a voz da Medicina Social neste livro achamos oportuno que fosse abor dado o tema do trabalho em relação às doenças so máticas e psicossomáticas o que é feito por Avelino Rodrigues e Ana Cristina Gasparini em artigo no qual é apresentada uma importante síntese dos conceitos e principais noções atuais sobre estresse tema que é também magistralmente desenvolvido por Eugênio Campos no seu trabalho sobre Cardiologia As relações entre histeria hipocondria e fenô meno psicossomatólogo condições que ocupam o campo do psicossomático e que é preciso distinguir são o tema do interessante trabalho de Otelo Cor rea dos Santos Filho Em sua comunicação além da parte conceitual e do vértice psicanalítico através do qual diferencia as três condições ele nos ilustra com oportunos exemplos clínicos Em Alexitimia e pen samento operatório a questão do afeto na Psicosso mática Antônio Franco Ribeiro e Geraldo Caldeira fazem à luz dos trabalhos da Escola Psicossomática de Paris da Escola de Psicossomática de Boston de Joyce MaCDougall e de Kristal uma extensa revisão desses importantes conceitos que mudaram mesmo a teoria e a clínica em Psicossomática Está presente a questão de representação no paciente psicossomático e os pontos de vista de auto res lacanianos como Cuir e Dejours ainda pouco co nhecidos em nosso meio Em Psicoimunologia Hoje fazemos junto com Mauro Moreira imunologista uma revisão deste tema que introduzimos no Brasil em Concepção psicossomática visão atual 1976 São discutidas as relações entre os sistemas nervosos en dócrino e imunológico e as situações clínicas decor rentes dessas interrelações mais estudadas doenças alérgicas estados infecciosos doenças neoplásicas e autoimunes As diferentes condições relatadas são ilustradas com casos clínicos Sendo o Grupo Balint e a Interconsulta instru mentos básicos da tarefa psicossomática pensamos em trabalhos que pudessem refletir uma atualização desses procedimentos em nossa prática atual Por que por exemplo estão os Grupos Balint quase em desuso em nossos serviços de Psicossomática Maria Apare cida de Luna Pedrosa em Reflexões sobre Balint faz uma oportuna apresentação da pessoa de Balint e de sua obra recordando que ele foi analisando de Ferenczi cujas ideias foram consideradas avançadas demais para a Psicanálise de então Descreve suas es tadas em Budapest Berlim e Londres onde realizou Psicossomaticaindd 32 Psicossomaticaindd 32 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 33 seu famoso trabalho com médicos generalistas que foi a base da Psicologia Médica e dos conhecimentos atuais sobre a questão da relação médicopaciente A autora ilustra sua comunicação com um trabalho com Grupos Balint com residentes de Medicina compro vando as várias formas de resistência levantadas por estes diante desse tipo de enfoque Após uma análise dos aspectos positivos da ex periência bem como do papel e da crise das insti tuições de saúde em geral ela conclui que Não se deseja que o médico tenha que aprender Psicoterapia nem fazer Psicanálise mas se deseja que ele se trans forme em um observador qualificado que possa admi nistrar a sua pessoa Luiz Antônio Nogueira Martins abalizado pela sua extensa experiência com o tema na Escola Pau lista de Medicina escrevendo sobre lnterconsulta hoje faz uma excelente síntese sobre as complexi dades e as dificuldades desse método enfatizando entretanto vantagens e perspectivas o campo ofe rece ao interconsultor a possibilidade de ampliar sua formação profissional seja no âmbito da observação dos fenômenos ligados ao adoecer seja no campo da Psicologia e da Psicopatologia individual grupal e institucional assim como no aprendizado das com plexas interações entre os fatores biológicos e psicos sociais que coexistem no ser humano Enquanto os grupos Balint apesar de sua excelência como mo delo clínico e pedagógico praticamente caíram em desuso em nosso meio as interconsultas cresceram e se firmaram de tal modo que hoje se cogita mesmo da formação de uma entidade nacional de profissionais em Interconsulta Já os grupos Balint profundamen te prejudicados pelo modelo de saúde vigente que desprivilegia a relação médicopaciente parecenos que podem ser parcialmente resgatados nas reuniões de equipe de saúde em que situações de relaciona mento pacienteprofissionalinstituição possam ser debatidas O capítulo O problema da dor do gaúcho Oly Lobato é uma extensa apresentação e revisão geral do tema com ênfase nos aspectos psicológicos abor dando tópicos de grande interesse como depressão comportamento de dor dor no paciente com câncer dor psicogênica hipocondria conversão e simulação O último trabalho desse item de Helládio Capisano diz respeito a um importante tema para a Psicossomá tica de implicações conceituais e clínicas a questão da imagem corporal desde que foi descrita por Paul Schilder ainda em 1935 No seu trabalho claríssimo minucioso e precioso Schilder estudou entre várias questões o desenvolvimento da imagem corporal as imitações e as identificações o problema do tônus o membro fantasma a imagem da face os orifícios a dor a despersonalização a histeria e a doença orgâ nica Capisano inicia seu interessante trabalho citan do Muraro que realizou uma importante pesquisa em mulheres de várias classes sobre as imagens que têm dos seus próprios corpos No tópico referente à construção da imagem corporal ele nos faz uma cor relação entre o desenvolvimento dessa imagem com o id o ego e com as zonas erógenas Já em relação à Patologia ele nos diz Em clínica médica ou cirúrgi ca consciente ou inconscientemente o corpo é trata do como objeto externo Sobre a aparência externa no corpo ele escreve O individuo pode excluir do seu corpo certos órgãos como incluir em sua imagem corporal anéis penduricalhos e até um automóvel Em A aparência interna do corpo ele nos descreve as várias alterações da imagem corporal decorrentes de um processo psicótico em paciente por ele tratado cuja profissão lida diretamente com o corpo e com seus conteúdos internos No item seguinte de temas específicos procu ramos englobar trabalhos com uma nítida inserção numa prática realizados a partir de uma especialida de médica fosse a prática de um especialista fosse o trabalho de um profissional de Psicossomática Come çamos este tópico com o trabalho de Adolpho Mene zes de Mello que através de sua extensa experiência de pediatra psicoterapeuta e professor de Medicina apresentanos uma completa visão da Pediatria como especialidade com sua multidão de problemas psico lógicos que o pediatra com sensibilidade curiosida de e criatividade deve enfrentar O trabalho como toda a experiência de Adolpho é ilustrado com ricos e significativos exemplos clínicos Maria Tereza Mal donado autora de mais de uma dezena de livros so bre Ginecologia maternidade e problemas da mulher e do casal escreve sobre um dos temas de que ela tem mais experiência Psicossomática e Obstetrícia Numa linguagem ao mesmo tempo precisa e elegan te ela diz que a perspectiva psicossomática em Obs tetrícia nos é dada por um diagnóstico Situacional possibilitado por várias vertentes do saber a teoria psicanalítica a teoria geral dos sistemas e a teoria do vínculo A modificação de algumas intervenções de cunho psicanalítico a dinâmica dos grupos e algu mas técnicas de terapia familiar são subsídios básicos de atuação E continua A sensibilidade a criativida de a observação cuidadosa do contexto e o respeito pelas características e pelas reais necessidades das pessoas que demandam atendimento são requisitos fundamentais para que o profissional possa de fato prestar uma assistência eficaz Através de tópicos a autora caminha conosco por vários momentos e eta Psicossomaticaindd 33 Psicossomaticaindd 33 05012010 121202 05012010 121202 34 Mello Filho Burd e cols pas do processo o lugar do filho fecundação e gesta ção o parto puerpêrio e amamentação prevenção e tratamento verdadeiro Conclui escrevendo Como se pode ver o leque de possibilidades de atendimento é bastante amplo embora as condições de viabilizar projetos nesse sen tido sejam ainda bastante precárias Mas vale a pena prosseguir nas tentativas de realizar trabalhos pio neiros e dar continuidade ao que já está implantado persistindo no esforço de contribuir para a melhoria da saúde da população e na busca de melhores condi ções de vida para essas crianças que estão nascendo Este é o campo da Psicossomática que mais se desen volveu inclusive em relação aos grupos grupos de grávidas de puérperas de amamentação etc No trabalho seguinte ao mesmo tempo erudito rico e original José Schavelzon escreve sobre vários tópicos da relação psicossomática e câncer tão do seu agrado os dogmas os modelos e o narcisismo o câncer como totalidade mitos preconceitos e a ces sação de privilégios biológicos assistência emocional ao paciente com câncer cirurgia do câncer e Psicos somática Freud um paciente com câncer Como po demos perceber tratase de um trabalho abrangente sobre o problema do câncer relacionandoo com a história da Medicina e do próprio homem com o nar cisismo e com os nossos preconceitos com a possibi lidade da recuperação e com a morte ilustrandoo com a estranha e fantástica história do câncer que vitimou Freud Alfred Lemle pneumologista com grande vi vência escreve um trabalho completo sobre a asma brônquica como doença psicossomática Nesta co municação podemos encontrar as teorias dos perfis psicodinâmicos de French Alexander e Deutsch a atuação psicoterápica nas crises e entre as crises a questão do desencadeamento das crises como redi recionar a relação do asmático com a asma descrição de um trabalho conjunto entre pneumologistas e pro fissionais de Psicologia Médica impasses da relação médicopaciente em asma Em um extenso e completo trabalho Eugênio Campos excardiologista psicólogo e psicoterapeu ta discorre sobre os aspectos psicossomáticos da Cardiologia através dos tópicos papel das emoções emoções e coração o problema da escolha do órgão o paciente funcional o coronariano o hipertenso É feito um minucioso e completo estudo sobre o pro blema do estresse constituindose praticamente num capitulo à parte Em outro trabalho sobre Cardiologia Maria de Fátima Praça de Oliveira e Protásio Lemos da Luz escrevem sobre os aspectos psicológicos da cirurgia cardíaca baseados na experiência do atendimento de múltiplos casos num dos maiores centros de cirurgia cardíaca do pais Em relação à cirurgia de cardiopa tias congênitas referemse aos efeitos negativos da hospitalização à importância da presença do psi cólogo e da ludoterapia bem como à relevância do trabalho com os pais A respeito do paciente adulto referemse ao medo da morte à questão da dor ao aumento da sensibilidade do paciente e à passagem pela unidade de terapia intensiva É dado um desta que especial ao paciente coronariano e a suas preo cupações a longo prazo trabalho esportes restrições alimentares proibição de tabagismo uso crônico de medicamentos sexualidade e reprodução risco de novas cirurgias Outros trabalhos versando sobre cirurgia têm como autores dois profissionais de muito renome entre nós como Fernando Barroso e Ivo Pitanguy O artigo de Barroso é sumamente bem escrito denso contendo uma verdade em cada parágrafo Centrado na relação cirurgiãopaciente ele começa discutindo a pessoa do paciente seus medos e suas expectativas acentuando a importância das suas experiências ante riores Esereve Uma das deformações mais comuns é a que procura ver o cirurgião como ser onipotente e fantástico capaz de evitar sofrimento e morte E falando sobre a pessoa do cirurgião ele nos diz que o exercício continuado da tomada de grandes deci sões sobre a vida o sofrimento e a morte estimula no médico o crescimento da sua onipotência Se a hipertrofia da imagem deve ser evitada sua defor mação descaracterização ou apagamento constitui se em falha igualmente grave Depois de estudar o problema do pré e do pósoperatório e a questão da anestesia Barroso discute à parte o problema do pa ciente cirúrgico com doença mental dizendo que é inegável que o trabalho integrado do cirurgião com o psicoterapeuta resulta na melhor qualificação profis sional de ambos Termina o trabalho escrevendo que o cirurgião jovem acha fácil entender o paciente e difícil aprender a cirurgia Na medida em que os anos passam a maturidade ensina que a cirurgia é certa mente muito mais fácil do que aprender a ajudar as pessoas que operamos Com todo o peso de sua autoridade médica Ivo Pitanguy nos brinda com um precioso trabalho sobre Aspectos psicológicos e psicossociais da cirurgia plás tica ao mesmo tempo extenso delicado e profundo O cirurgião diz ele logo no início do seu trabalho sendo um escravo da forma e da anatomia Mui tas vezes sentese frustrado pois lidando com o ser humano o acrescentar e o tirar estão mais sujeitos às leis do próprio corpo do que à sua força criativa Aqui Pitanguy nos fala da importância da criatividade tão presente no seu trabalho tão ausente lamenta velmente da prática médica dos tempos atuais Ele desenvolve seu artigo numa série de tópicos conceito Psicossomaticaindd 34 Psicossomaticaindd 34 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 35 de beleza e de raças imagem corporal deformidade e grupo social correlação entre cirurgia estética e re paradora a face a mama e o abdome envelhecimen to relação médicopaciente pré e pósoperatório o cirurgião e a cirurgia Através de algumas afirmações de Pitanguy poderemos ter uma ideia da importância deste trabalho Tornase clara e crescente a impor tância da cirurgia plastica mas é imprescindível que o cirurgião saiba distinguir os motivos que levam um paciente a seu consultório Não se pode correr o risco de interpretações errôneas Muitas vezes o paciente transporta para uma parte do corpo comumente a face o cerne de seus problemas emocionais Até onde podemos analisar não houve necessariamente uma correlação entre satisfação ou insatisfação das pacientes com o sucesso da cirurgia Dessa forma podemos considerar que o resulta do estaria intimamente relacionado com expectativas fantasias e desejos de cada pessoa Assim o cirurgião deve ter perfeita noção crítica do seu paciente de seu plano cirúrgico e de sua própria pessoa cabendolhe responsabilidade bem maior do que simples progra mação e execução do ato operatório A obesidade condição essencialmente psicosso mática com repercussões nas cardiopatias e na hiper tensão arterial é um dos maiores problemas terapêu ticos que a medicina enfrenta pelo que é frequente sede de práticas de curandeirismo e de charlatanismo É este tema que Alexandre Kahtalian com sua expe riência de psicanalista e exendocrinologista aborda em Obesidade um desafio Ele nos faz caminhar pelas diversas condições e situações da obesidade desde seus primórdios quando a mãe que responde sempre com a oferta de alimento às solicitações várias do bebê dá os primeiros passos na direção de uma fu tura obesidade Assim pois podemos ter distorções deste tipo também em pessoas adultas cuja presença deste lado infantil coloca comida onde poderia haver a pessoa amada por exemplo É no dizer do psicanalista Fenichel uma adição sem droga comparando o comer contínuo com uma toxicofilia do tipo alcoolismo drogas etc Quando se refere a identificação e imagem corporal ele lembra que o volume corporal pode ser associado a ideias de força recordando o famoso trabalho de Glucks man e Hirsch que estudando obesos submetidos a grandes perdas corporais detectaram sentimentos de esvaziamento perda de forças como se estivessem se liquefazendo Finalmente falando sobre a rela ção profissionalpaciente Kahtalian nos diz coisas de grande validade prática É fato comum que o obeso tem enorme dificuldade em associar a hiperfagia a polifagia a situações emocionais que atravessa ou atravessou Outras vezes é a mentira que é de difícil abordagem passa a ser uma forma de controlar o médico imobilizandoo O que de modo geral des perta no medico raiva e desnorteamentos E assim acho que o pior a regressão tem um potencial muito pequeno para conter tal situação e a meu ver seria necessário que a agressividade do paciente pudesse aparecer para que o tratamento continuasse e pudes se ser mais efetivo Quanto ao tratamento psicoterá pico enfatiza as técnicas grupais principalmente em nossas instituições hospitalares Com o advento das diálises e dos transplantes renais criouse uma série de novas condições nos ser viços de nefrologia exigindo a presença de profissio nais de Psicologia Médica para fazer face a diferentes situações sejam de ameaças sejam de prolongamen to da vida Assim surgiu a chamada Psiconefrologia e é sobre este tema que Miriam Uryn escreve com sua experiência na Unidade de Transplante Renal do Hos pital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro Fa lando sobre o processo da doação ela distingue os problemas da doação familiar da situação que é vivi da quando o receptor recebe um rim de cadáver e en fatiza os resultados positivos obtidos com a realização de grupos de doadores Acentua o papel do psicólogo no seu preparo do receptor para ser submetido a um transplante e descreve o doloroso processo por que passa quando ocorre uma rejeição São feitas consi derações especiais sobre o transplante em crianças e adolescentes bem como sobre o difícil problema da ocorrência de AIDS no transplantado Todo o traba lho de Miriam é ilustrado com situações clínicas Desde os trabalhos de Elizabeth Kübler Ross a questão da assistência ao paciente terminal vem ga nhando um interesse maior tanto que diversos traba lhos vêm sendo realizados em nosso país a respeito Desta vez temos um clínico Francisco Trindade Barre to falando sobre o tema na condição de pesquisador inquieto e criativo que o caracteriza Ele começa dis tinguindo pacientes verdadeiramente terminais com um declínio inexorável para a morte potencialmente terminais que tem uma condição potencialmente re versível pseudoterminais que têm uma percepção er rônea de sua realidade mentalmente terminais cuja morte começa na mente Após escrever e discutir minuciosamente essas quatro condições o autor nos introduz em um inte ressante trabalho com desenhos que realiza com seus pacientes terminais e préterminais demonstrando como os desenhos representam a percepção profun da do doente de sua condição Esses desenhos servem de mote para um fecundo diálogo entre médico e pa ciente sobre questões como a esperança a percepção do tempo o desamparo A questão da eutanásia seja passiva seja ativa é abordada com profundidade A caminhada inexo Psicossomaticaindd 35 Psicossomaticaindd 35 05012010 121203 05012010 121203 36 Mello Filho Burd e cols rável para a morte é discutida em três tipos de situa ção trajetória prolongada trajetória rápida espera da trajetória rápida inesperada O trabalho é pleno de citações e de resumos de trabalhos estrangeiros geralmente de autores médicos americanos No item referente a AIDS temos quatro traba lhos o primeiro contém generalidades sobre a doen ça e trata da psicoterapia do paciente com AIDS o segundo discute as questões psicossociais da AIDS o terceiro aborda o problema do hemofílico com AlDS o quarto descreve um trabalho grupal realizado com profissionais de saúde que atendem pacientes com AIDS O primeiro trabalho de nossa autoria baseado no atendimento a pacientes com AIDS realizado na Seção de Psicologia Médica do Hospital Universitário Pedro Ernesto UERJ aborda os seguintes itens pro blemas psicológicos em doentes com AIDS o atendi mento aos pacientes e à equipe a questão do pacien te homossexual o atendimento grupal a pacientes soropositivo a mulher com AIDS os usuários de dro gas o paciente terminal e a morte Outros problemas abordados nesse trabalho são as complexas relações parceirosfamília interação do psicoterapeuta com a equipe médica complexidades do diagnóstico psi quiátrico e do tratamento a demência terminal e a morte do doente com AIDS O trabalho seguinte de Amaury Queiroz representando o Serviço de Psicolo gia Médica e Saúde Mental do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho UFRJ aborda os seguintes tópicos as repercussões sociopolíticas e o problema do preconceito atendimento às familias referindose ao trabalho que é realizado pelas assistentes sociais do Serviço importância dos grupos de reflexão pa pel do profissional de saúde mental junto ao clínico e ao paciente A seguir Queiroz descreve as principais reações psicológicas e psiquiátricas que acometem esses doentes reação depressiva paranoia reações maniformes e reações histeriformes O trabalho con clui com o problema da abordagem do paciente ter minal Escrevendo sobre Grupo de reflexão multipro fissional em AIDS uma estratégia em Psicologia Mé dica Alícia Navarro de Souza relata uma experiência também vivida no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho com um grupo de médicos enfermeiros assistentes sociais nutricionistas e psicólogos coor denados por Amaury Queiroz e por ela própria Este trabalho centrado nas ansiedades vivências e con flitos destes profissionais frente à tarefa comum de assistir pacientes com AIDS propiciou várias refle xões entre elas A experiência central deste grupo é a vivência da importância terapêutica de limite do conhecimento que aproxima os vários profissionais de saúde e estes dos pacientes com AlDS A relação do grupo com respeito à instituição hospitalar como um todo é claramente ambivalente O grupo deseja um reconhecimento e esta demanda de um reconhe cimento institucional é particularmente intensificada pela AIDS num conflito entre prestígio institucional e impotência terapêutica A experiência com este gru po de reflexão que foi denominado muito propria mente por um dos seus integrantes como grupo de arrisco representou uma contribuição para o estudo e a elaboração não só da intensidade conflitiva na tarefa assistencial a pacientes com AIDS como das relações conflitivas entre os diferentes profissionais que integram a equipe de saúde Há poucos anos abateuse uma quase epidemia de AIDS entre a população de hemofílicos do Rio de Janeiro o que representou uma tragédia para essas pessoas já vitimadas por uma moléstia crônica É so bre esse conjunto de fatos que versa o trabalho de Virgínia Fontenele Eksterman realizado com a co laboração de psicólogas e que relata o resultado do atendimento de pacientes hemofílicos num centro de Hematologia Num trabalho sensível elaborado com muito cuidado e escrito de forma poética as autoras começam recordando o que é a hemofilia como vi vem esses pacientes no que chamaram de uma gran de família e o modo como se contaminaram pelos crioprecipitados ao mesmo tempo vida e morte com a AIDS Com flashes de atendimentos individuais e sobretudo grupais é descrito o drama desses pacien tes sua ansiedade perplexidade e revolta diante da AIDS e da instituição que os contaminou Escrevem elas inicialmente Nosso objetivo era compreender a psicodinâmica do funcionamento mental do paciente hemofílico suas relações familiares institucionais e com a própria doença Tentávamos não rotular essas pessoas pois percebíamos que sua identidade já era comprometida Elas se colocavam sempre como he mofílicas não se sentindo homens pessoas Depen diam do sangue dos outros para serem inteiros Nesta família do hemofílico o homem é sempre sentido como fraco ameaçado a perigo e a mulher como forte e invulnerável Quando o risco da AIDS começa a se desenhar os pacientes comentam ago ra ser hemofílico é dizer que somos de um grupo de risco AIDS para o hemofílico é sinal verde para o in ferno É descrita a angústia da família principal mente da mãe diante da nova situação bem como da equipe médica O trabalho termina com a angústia do vir a morrer descrevendo o acompanhamento lado a lado desses pacientes até o instante final Concluem So fremos juntos buscando integrálos dentro de uma realidade impossível Lidamos o tempo inteiro com Psicossomaticaindd 36 Psicossomaticaindd 36 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 37 a onipotência descobrimos a dor as perdas e nossas limitações de pacientespsicólogas dentro de um uni verso de absurdos O item seguinte que denominamos de Traba lhos Originais referese a contribuições sobre temas até então inéditos em Psicossomática como Regêne sis o mito da Fênix em Psicossomática ou a questões que estejam sendo pela primeira vez abordadas em Psicossomática em nosso pais Desordens factícias e Urgências aspectos psicossociais A partir do mito da Fênix em um dos mais originais trabalhos des te livro Samuel Hulak e George Lederman criam o conceito de Regênesis como a fantasia da busca da regeneração cuja intensidade é tão fortemente de sejada que pode mobilizar as ordens destrutivas do organismo permitindo a produção de doenças psi cossomáticas severas com intenção letal Baseados em casos de sua clínica particular descrevem certas características comuns desses pacientes como inacei tação do esquema corporal fantasia de serem outra pessoa falta de criatividade existência de somati zações severas com risco letal Os casos estudados compreendiam a doença de Wegener o lupo a artrite reumatoide a infertilidade por anticorpos tumores malignos da mama e da tireoide e anorexia nervosa Nesses pacientes há sempre uma patologia nar císica e o que chamaram de falso self imposto ca racterizando um grau maior da constituição de uma estrutura falso self a partir de uma imposição e uma intrusão ambiental No manejo terapêutico desses pacientes cha mam a atenção para o funcionamento do setting como espaço potencial alertam contra as interpre tações precoces e para a necessidade de o terapeuta suportar relações de extrema fusão sem que isto des perte muita angústia ou reações contratransferenciais difíceis de serem manejadas Therezinha Penna introduz o estudo de uma condição que vem sendo pesquisada nos Estados Unidos as desordens factícias também chamada de Síndrome de Münchhausen em alusão ao famoso mentiroso que era barão Como características destes pacientes que têm uma necessidade psicológica de assumir um papel de doente ela aponta autoindu ção de infecções produção de feridas crônicas au tomedicação e simulação de doenças que é o mais comum Esses pacientes forçam internações hospitalares conseguem se submeter aos mais sofisticados e inva sivos exames abusam de analgésicos e outros medi camentos e têm geralmente internações tumultuadas Quanto à psicodinâmica destes casos que precisam ser diferenciados das doenças psicossomáticas em ge ral da histeria e da hipocondria parecem estar em jogo privação afetiva ou rejeição por parte dos pais nos primeiros anos de vida sentimentos de desva lorização e inferioridade defesas malestruturadas e primitivas incapacidade de desenvolver relações ob jetais satisfatórias Valendose de uma excelente formação clínica e de um acurado enfoque psicossomático José Galvão Alves baseado em sua vivência prática num pronto socorro do Rio de Janeiro escreve sobre os aspectos psicossociais das urgências médicas em um trabalho que é um libelo contra o estado de nossas institui ções de saúde e de como estão despreparadas para prestar assistência psicológica aos que a ela recorrem Descrevendo com muita propriedade o ambiente ao mesmo tempo carente e agressivo dos nossos pronto socorros Galvão relata uma série de condições que provocam frequentemente a iatrogenia o preconceito e a agressão da equipe médica distúrbios chamados de neurovegetativos homossexualidade alcoolismo toxicomania os velhos os suicidas A indiferença e as defesas maníacas são a forma habitual de os médicos se defenderem das angústias e frustrações inerentes às limitações institucionais e ao clima próprio das emergências Considerando os serviços de emergên cia como verdadeiros ambulatórios das classes desfa vorecidas Galvão nos fala também de sua importân cia como força inesgotável de treinamento No último tópico sobre tratamento são discuti dos três trabalhos dois sobre psicoterapia individual e um sobre psicoterapia grupal O primeiro se refere a abordagens de base psicanalítica mais tradicional e em voga em nosso meio e o segundo à psicoterapia breve técnica ainda pouco empregada no tratamento de casos psicossomáticos entre nós O terceiro tra balho versa sobre a abordagem grupal de pacientes somáticos tema sobre o qual ainda muito pouco se escreve apesar de sua enorme aplicação prática Em um trabalho muito extenso e detalhado pleno de exemplos clínicos Otelo Correa dos Santos Filho escreve sobre Psicoterapia psicanalítica do pa ciente somático tema que ele vem particularmente estudando e pesquisando De início Otelo nos apon ta duas grandes possibilidades de atenção psicológica aos doentes orgânicos Na primeira via está todo o campo da reabilitação o retorno à vida e à família o uso afetivo e sexual do corpo a reestruturação da imagem corporal a procura de um novo equilíbrio corporal principalmente narcísico A outra via e representada pela Psicoterapia A esse respeito dis correndo sobre uma base conceitual teórica que pavimenta as posições que irá tomar ele apresen ta o paciente psicossomático como carente de uma elaboração psíquica e com uma falha nos processos de simbolização A doença é desencadeada por um Psicossomaticaindd 37 Psicossomaticaindd 37 05012010 121203 05012010 121203 38 Mello Filho Burd e cols acontecimento da ordem da perda ou equivalente Tal perda não é relacionada pelo sujeito ao fenômeno somático e em geral é minimizada e bem tolerada Sobre a técnica baseada na sua experiência Otelo nos faz uma série de contribuições que a presença do terapeuta deve ser viva falante e questionadora face a face com o paciente a interpretação quando hou ver deve tratar de promover uma maior aproximação do paciente às vivências que surgem devem ser evita das interpretações psicanalíticas clássicas pois serão vividas como invasão sugestão ou ferida narcísica os pacientes relacionamse mais com as disposições verdadeiras interiores do terapeuta do que com as pa lavras que este diz Na parte final do trabalho o au tor se refere à psicoterapia do paciente somático no ambulatório das instituições resumindo do seguinte modo suas experiências a mediação da instituição é geralmente nociva pelo que cada terapeuta deve ma nejar a marcação de consultas férias etc o modelo é a psicoterapia psicanalitica de consultório e os pres supostos teórico Clínicos os referentes aos pacientes somáticos exigindo uma atitude ativa empática e pouco interpretativa essa prática exige uma reflexão constante através de reuniões regulares de discussão de casos clínicos deve ser articulada a outras práticas de psicologia médica ligadas ao ambulatório geral ou ao hospital Ao descrever com detalhes o uso da psicotera pia em hospitais gerais e particularmente as psicote rapias breves Therezinha Penna falando sobre um tema abordado por Otelo Santos Filho presta um inestimável serviço a todos nós Falando sobre a equi pe ela se refere às várias manobras através das quais os médicos empurram os pacientes difíceis para o psicoterapeuta Na hierarquia das tarefas médicas a conversa é pouco valorizada e vista como uma função menor Sobre o setting ela se refere às inadequações às quais o psicoterapeuta terá que se adaptar às questões de privacidade e sigilo e aos problemas da transposição da técnica psicanalítica para um hospital geral ao invés de uma escuta psicodinâmica Sobre as psico terapias breves propriamente ditas descreve a técni ca de crise e as técnicas supressoras de ansiedade e provocadoras de ansiedade Kaplan Quanto às táti cas empregadas refere interpretação interpretação educativa apoiar ou estimular defesas adaptativas informação promover identificações positivas com outros pacientes estímulo da afirmação pessoal O trabalho se encerra com a questão do apoio psicoló gico aos pacientes terminais O último trabalho de autoria de Eugênio Cam pos diz respeito a O paciente somático no grupo tera pêutico ou seja a perspectiva de tratarmos pacientes somáticos através de técnicas grupais Em sua forma rica e pormenorizada de abordar um tema Campos começa fazendo uma revisão do que é um paciente so mático quais os mecanismos da somatização e sobre a psicoterapia do paciente somático como introdução à questão dos grupos somáticos homogêneos A esse respeito ilustra com riqueza de detalhes o trabalho realizado com grupos de hipertensos no INAMPS de Teresópolis através do relato de várias sessões É um trabalho de grande alcance social que visa atender a toda a população de hipertensos daquela cidade A respeito desses grupos ele sintetiza O grupo de hipertensos nós o vemos não no sentido de grupo psicoterapêutico propriamente dito cujo foco é a vida do paciente mas como grupo de orienta ção e reflexão cujo foco é a doença Ao mesmo tempo visualizamos nesse tipo de grupo um efeito terapêutico claro enquanto suporte social na medida em que os pacientes estão reunidos em torno de um problema comum e sustentados por uma equipe que os apoia A seguir o autor se refere à experiência de atendimento a pacientes neuróticos e psicossomáticos no mesmo posto do INAMPS de Teresópolis agora sob um referencial de psicoterapia analítica grupal Escreve o autor sobre tal experiência O foco não é mais a doença ou a queixa física O clima do grupo é mais de elaboração e menos de suporte Os pacientes se sentem autorizados a falar mais de sua intimidade das fantasias e do lado proibido Em relação às queixas somáticas frequentemente no decorrer das sessões questionamos os pacientes sobre o que estariam falando com o corpo Interpretamos suas falas somáticas ou não em relação ao grupo a nós a situações passadas Encerrando o trabalho o autor faz uma correlação entre a função terapêuti ca e as contribuições de Winnicott holding e função materna e Kohut função Self objetal Psicossomaticaindd 38 Psicossomaticaindd 38 05012010 121203 05012010 121203 PERSPECTIVA CONCEITUAL A Medicina Psicossomática é tema recente no âmbito mundial embora seus princípios estejam con tidos na doutrina médica desde os tempos hipocrá ticos Alguns pioneiros e os principais divulgadores no Brasil ainda estão vivos para contar sua história Ergueramna sobre três teses centrais 1 A etiopatologia somática está comprometida em casos determináveis ou de forma universal com a função psicológica 2 A ação assistencial é um processo complexo de in teração social que além de incluir os conhecidos atos semiológicos diagnósticos e terapêuticos contêm elementos da vida afetiva e irracional dos participantes 3 A natureza essencial do ato médico é humanista e portanto a terapêutica deve estruturarse em função da pessoa do doente e não apenas organi zarse preventiva ou curativamente a partir do reconhecimento de uma patologia Cada uma dessas afirmações embora estejam sendo revistas na atualidade continua representan do os elementos principais das três vertentes teóricas comuns a toda concepção psicossomática Respecti vamente 1 a Psicogênica 2 a Psicologia Médica 3 a Antropologia Médica Destacando o desenvolvimento histórico da Medicina Psicossomática no Brasil poderíamos ficar tentados a percorrer cada um desses caminhos isola dos exigindo que cada qual representasse a Psicos somática Aparentemente simplificadora tal atitude reducionista nos conduziria apenas às perspectivas conhecidas com alguma ampliação ou da Patologia geral ou da conduta clínica ou da filosofia médica Para delimitarmos nosso campo de estudo creio que a mais precisa e aquela que estrutura os três aspectos num só ou seja um conceito de Medicina Psicosso mática que integre as três perspectivas a doença com sua dimensão psicológica a relação médicopaciente com seus múltiplos desdobramentos a ação terapêu tica voltada para a pessoa do doente este estendido como um todo biopsicossocial Se pudermos concor dar com essa perspectiva conceitual poderemos fixar o início do movimento psicossomático no Brasil na década de 1950 tendo como alavanca a atividade de alguns médicos dedicados ou aficionados pela Psica nálise notadamente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo Um pouco mais de 40 anos de desenvol vimento de cuja maior parte tive o privilégio de ser testemunha pessoal Por outro lado dentro de um horizonte con ceitual mais amplo multiplicaríamos de tal forma as possibilidades de uma revisão histórica que não haveria como discriminála da própria Medicina em geral tornando este estudo uma redundância con fusa Sequer haveria necessidade de se introduzir o conceito de Psicossomática se estivéssemos apenas entusiasmados em acentuar o valor etiológico das emoções em um grupo de doenças ou mesmo em toda Patologia no afã de recuperar para a Medicina a questão das relações da alma com o corpo Não creio que qualquer psicossomatólogo confunda psiquismo com alma como tampouco confunda psiquismo com cérebro Tais temas pertencem a domínios intelectu ais consagrados como a Metafísica e a Neurofisiolo gia Da mesma forma o problema do comportamento médico que parece ser o estudo central da configu ração médicopaciente em seu encontro clínico pode ser resolvido pela Deontologia e pela Psicologia So cial permeadas pela Psicanálise Com efeito um dos ramos clínicos mais recentes da Psicologia é o da Psicologia Hospitalar justamente dedicado ao com portamento clínico tanto dos doentes em sua vida em geral como na sua relação com seu médico tema também nuclear da Psicologia Médica e da chamada Medicina do Comportamento Finalmente a Filosofia Médica tem investido no tópico magno da humaniza ção do ato assistencial cerne do pensamento da An tropologia Médica vasada no século XX pela filosofia 2 MEDICINA PSICOSSOMÁTICA NO BRASIL Abram Eksterman Psicossomaticaindd 39 Psicossomaticaindd 39 05012010 121203 05012010 121203 40 Mello Filho Burd e cols da existência esta tendo como paradigma Martin Heidegger e aquela Victor von Weiszäcker A Psicossomática é portanto uma nova visão da Patologia e da Terapêutica tornando possível o axioma antropológico do objetivo médico Em outras palavras trouxe para o pensamento médicocientífi co e para a prática assistencial o mote clássico tratar doentes e não doenças Devo explicar por que considerei a Psicanálise como responsável pela estruturação da Neurofisiolo gia e da Antropologia Médica Em síntese porque a Psicanálise descobriu para a prática médica e para a Patogenia o valor da palavra e operacionalizou sua função na Terapêutica Descobriu como as tensões in ternas derivadas de impulsos de aspecto instintivo transfiguramse em sonhos fantasias e pensamentos Desenvolveu a partir dessas descobertas teorias e técnicas para utilizar essa transformação com fins te rapêuticos Aplicandoas à Patologia geral somática permitiu redimensionar a doença como um acidente biográfico e na prática clínica a relação médicopa ciente como um recurso terapêutico Além disso na medida em que é a dimensão do mundo simbólico a que traduz a essência do existir humano a Psicaná lise como veiculadora de recursos simbólicos é por definição Medicina humanizante Medicina da pes soa Assim pois a essência da descoberta psicanalíti ca representada pelo papel da palavra na Patogenia e pelo valor da palavra na Terapêutica produziu a con cepção psicossomática moderna independente das variações e dos desenvolvimentos da própria Psica nálise Não se trata de Psicanálise aplicada aos doen tes somáticos ou mesmo psicanalisar portadores de enfermidades físicas Isso nos remeteria ao próprio contexto teóricoclínico da Psicanálise Referimonos à transformação do pensamento e ato médico o pri meiro incluindo a dimensão simbólica do homem na geração da doença e da saúde e o segundo impri mindo ciência e técnica à arte de tratar doentes As tentativas e os estímulos meritórios de hu manizar a função médica estiveram sempre presentes nos grandes nomes de nossa Medicina Torres Ho mem Aluízio de Castro Miguel Couto Clementino Fraga são apenas alguns exemplos consagrados To dos na verdade inspirados na revalorização do ho mem atitude patrocinada pela filosofia positivista do século XIX à qual também se atribui injustamente a desumanização médica inspirada na derivação or gânicoempirista dessa mesma filosofia Vemos neles não os precursores mas os formadores indispensáveis da mentalidade básica para conter a ideia psicosso mática E não e por acaso que três seguidores desses grandes mestres da Medicina brasileira Clementino Fraga Filho Carlos Cruz Lima e José de Paula Lopes Pontes professores de Clínica Médica no Rio de Ja neiro abriram seus Serviços de forma pioneira para abrigar setores de Medicina Psicossomática As mesmas considerações cabem à influência de Pavlov e às consequentes concepções cérebrovisce rais de Sechenov que levaram a especulações psi cossomáticas na verdade contribuições neurofisio lógicas à Patologia e vale citar Nelson Pires com sua Clínica Psicossomática acrescida de um sugestivo subtítulo Fisiodinâmica Neurovegetativa Mesmo as contribuições de um dos pioneiros da Psicanálise no Brasil Durval Marcondes pertencem no nosso entender apenas à compreensão psicanalítica de cer tos aspectos da atividade médica Creio que o marco psicossomático na Medicina brasileira está em uma tese de livredocência daquele que se tornou seu principal divulgador Danilo Peres trello A tese inteira A Psiquiatria Atual como Psico biologia 1945 está vasada por definitivas sugestões psicossomáticas Vejamos apenas algumas citações Dia a dia os vários fatos observados na prática clí nica evidenciam que soma e psiquismo formam uma só unidade que a oposição entre os termos mental e corporal físico e anímico psíquico e somático carece de existência real bem como que tais pala vras que não representam mais que instrumentos do nosso espírito para designar acontecimentos que têm sido estudados sob ângulos diferentes Impõese pois a noção do homem como unidade psicossomá tica Por último um ponto de magno interesse o material de trabalho do médico e portanto do psi quiatra é o homem e como tal um ser humano que necessita ajuda e conforto Assim o médico além de seus conhecimentos técnicos tem de pôr em jogo tudo aquilo de que tem conhecimento como ser hu mano que também é e encarar o paciente como seu semelhante O paciente deve ser encarado não como simples máquina que precisa de reparo mas como ser necessitado que pede ajuda e proteção porque como em frase expressiva disse Peabody o que se chama quadro clínico não é o retrato de um homem dei tado no leito é o quadro impressionista do paciente rodeado pelo lar pelo trabalho pelos parentes pelas alegrias pelas mágoas pelas esperanças e pelos te mores Impõese assim ver o doente como pessoa e não somente no presente como também no passado pois como assinalou Bayliss uma das características da matéria viva conquanto não lhe seja completa mente peculiar é que seu estado em qualquer mo mento está sempre parcialmente determinado pela própria história da vida Deveríamos esperar 13 anos para que se inicias se a expansão prática dessa vigorosa proposta o que se deu no Serviço de Clínica Médica do Hospital Ge ral da Santa Casa do Rio de Janeiro 1a Cátedra de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ Psicossomaticaindd 40 Psicossomaticaindd 40 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 41 dirigida pelo Prof Clementino Fraga Filho que auto rizou Danilo Perestrello a fundar em 1958 a pioneira Divisão de Medicina Psicossomática Não lhe foi di fícil realizar a empreitada do ponto de vista pessoal embora tivesse passado as maiores dificuldades para desenvolver a tarefa Reunia em si uma experiência rara em um só médico Psiquiatria Clínica Médica Psicanálise sopesadas pela sólida cultura humanís tica e pelo agudo espírico crítico Assim a Medicina Psicossomática entrou na história da Medicina bra sileira A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MEDICINA PSICOSSOMÁTICA Realizavase em 1965 no Rio de Janeiro o XVII Congresso Brasileiro de Gastroenterologia Sugeri então a Danilo Perestrello reunido com ele em seu pequeno e memorável gabinete no Serviço de Cle mentino Fraga Filho na Santa Casa aproveitarmos a presença dos paulistas José Fernandes Pontes Hel ládio Francisco Capisano e Luiz Miller de Paiva para discutimos a possibilidade da constituição de uma so ciedade que congregasse cientificamente em âmbito nacional os interessados em Medicina Psicossomáti ca especialmente as experiências mais ou menos es parsas que tinham lugar em Porto Alegre São Paulo e Rio de Janeiro Todas patrocinadas por psicanalistas ou alunos de Psicanálise associados a atividades do centes e médicohospitalares universitários ou não Perestrello entusiasmouse com a ideia e imediata mente tornouse seu defensor Reunimonos em uma sala do Congresso quando decidimos realizar no mês de setembro do mesmo ano três meses depois a reunião de fundação convocando o máximo de cole gas interessados Escolhemos como sede da reunião o auditório da Associação Paulista de Medicina onde seriam lançadas as bases do programa societário e se elegeria uma diretoria provisória Ao mesmo tempo promoveríamos um encontro científico que seria or ganizado pelo instituto de Gastroenterologia de São Paulo dirigido por José Fernandes Pontes Assim foi feito Cento e quarenta e sete médicos principal mente do Rio de Janeiro São Paulo e Porto Alegre reuniramse em São Paulo e tornaramse membros fundadores da Associação Brasileira de Medicina Psi cossomática aclamando Danilo Perestrello seu pri meiro presidente Elegeram ainda como companhei ros da primeira diretoria executiva Oswaldo Arantes Pereira e Abram Eksterman com mandatos por dois anos após o definitivo registro do estatuto Na mes ma época foram eleitos vicepresidentes Mário Mar tins de Porto Alegre e José Fernandes Pontes de São Paulo os quais deveriam assumir a presidência por mandatos sucessivos de dois anos A nova Associação deveria ter como objetivo básico a promoção de uma nova atitude na assistêneia educação e pesquisa mé dicas a atitude psicossomática a qual visava à inte gração dos elementos psicodinâmicos e biológicos da Patologia e conformar a conduta assistencial dentro desse novo parâmetro A reunião científica presidi da por José Fernandes Pontes teve como relatores Danilo Perestrello e Abram Eksterman do Rio de Ja neiro e Milton Abramovich de Porto Alegre discor rendo sobre Tensão emocional e sua repercussão na patologia Lembro dessa ocasião crítica que sempre julguei da maior pertinência a necessidade de se en contrar uma linguagem comum entre o somatólogo e o psicólogo para que se efetivasse a integração psicossomática É possível que alguém algum dia se ocupe com a intrigante questão de por que certos médicos raros não se satisfazendo com simples contempla ção e reflexão do somático atiramse em arriscadas aventuras para além do corpo levandoos a impas ses existenciais como aos que chegou o Dr Fausto de Goethe procurando a essencialidade humana Assim foi desde o início de sua carreira com o Prof José Fernandes Pontes Já em 1944 reuniase com os psi canalistas Noemi Rudolfer Silveira e Mário Yahn no instituto Aché de São Paulo para compreender o com portamento sintomático de alguns casos de retocoli te ulcerativa Já havia lido e se entusiasmado pelos textos de Franz Alexander Flanders Dunbar e Weiss e English Em 1945 organizava um grupo de estudos o qual incluiu ainda outra psicanalista Virgínia Leone Bicudo que mais tarde durante cerca de três anos de 1965 a 1968 na Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo ministrou o curso oficial de Psico logia Médica tendo na sua equipe Luiz Miller de Pai va Nesse mesmo grupo de estudos Fernandes Pontes recebeu um exaluno Helládio Francisco Capisano Nessa época tornase assistente do Prof Cantídio de Moura Campos catedrático de Terapêutica Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Pau lo e em seu Serviço no Hospital das Clínicas recém fundado em 1943 assume a responsabilidade por um Serviço de Gastroenterologia Nesse mesmo Serviço Helládio Capisano assume um ambulatório de Medi cina Psicossomática É interessante a oposição que recebeu por essas iniciativas do Prof Pacheco e Sil va catedrático de Psiquiatria que não via com bons olhos a presença de uma psicanalista além do mais não médica numa equipe assistencial de médicos Não seria a primeira vez que um Serviço de Psicos somática nascente receberia oposição da Psiquiatria oficial O Serviço não prosperou mas o grupo sim A experiência com grupos terapêuticos em pacien tes portadores de retocolite ulcerativa foi levada por Psicossomaticaindd 41 Psicossomaticaindd 41 05012010 121203 05012010 121203 42 Mello Filho Burd e cols Fernandes Pontes ao IV Congresso das Associações Europeias e Mediterrâneas de Gastroenterologia em 1960 A mesa onde apresentou o trabalho foi dirigi da nada menos que por Truelove Em 1948 Fernan des Pontes encontra Danilo Perestrello no l Congresso PanAmericano de Gastroenterologia em Buenos Ai res Queixase a Perestrello das dificuldades que vem encontrando na implantação de seu Serviço e Peres trello recordalhe que se não fora Clementino Fraga Filho a apoiálo talvez não pudesse desenvolver seu trabalho na Psicossomática Fernandes Pontes recorda como batiam excelentes papos numa confeitaria na calle Florida quando aprendeu a vencer as resistên cias que pacientes orgânicos têm em comunicar suas dificuldades emocionais e seus dramas de vida atra vés da técnica de eco sugestão dada por Perestrello e que consistia em sublinhar para o paciente durante a anamnese as últimas palavras ou um assunto im portante que o paciente houvesse mencionado Mais tarde fundando o Instituto de Gastroenterologia de São Paulo a Psicossomática tornase um importante núcleo de pesquisa e educação Vamos encontrar já em 1947 Helládio Fran cisco Capisano instalado numa unidade de Medicina Psicossomática no Serviço de Clínica Médica do Prof Antonio de Almeida Prado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo quando publica seu trabalho sobre Neuroses Gástricas Vemolo colabo rar em seguida no Serviço de Gastroenterologia im plantado por Fernandes Pontes na Cadeira de Tera pêutica Clínica do Prof Cantídio de Moura Campos Em 1963 funda a Sociedade de Psicossomática de São Paulo a qual promove juntamente com o jornal A Folha de São Paulo um curso sobre Condições de Vida ao qual comparecem cerca de 800 ouvintes da comunidade em geral Esse curso teve como pro fessores Eduardo Etzel Mario Yahn Luiz Miller de Paiva Noemi Rudolfer Silveira e Darcy de Mendonça Uchoa o qual depois tornase professor catedrático de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina onde vai apoiar decididamente a Medicina Psicossomática publicando inclusive um livro sobre Psicologia Médi ca O êxito desse início da Sociedade leva Capisano a pensar numa Federação Brasileira de Medicina Psicossomática e e proposto Luiz Miller de Paiva para seu primeiro presidente Esses planos são postos de lado com a proposta de Danilo Perestrello de se fundar a Associação Brasileira de Medicina Psicos somática em 1965 renunciando Capisano inclusive a continuar a Sociedade de Medicina Psicossomátíca de São Paulo Trabalhando no Instituto de Gastroen terologia de São Paulo dirigido por Fernandes Pontes até 1966 passa a lecionar na Cadeira de Psicologia Médica e Psicossomática da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo dirigida então pela psi canalista Virgínia Leone Bicudo Tornandose pro fessor titular de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina do ABC de São Paulo entre 1968 e 1978 funda com Miller Paiva o Instituto de Psicossomática de São Paulo Capisano é um dos responsáveis mais importantes por uma série de congressos argentino brasileiros trazendo para o Brasil a experiência do grupo argentino liderado por Luiz Chiozza dedica do à investigação psicanalítica de sintomas orgâni cos O interesse de Luiz Miller de Paiva remonta a 1943 quando estuda a tensão prémenstrual sob o ângulo psicossomático isso no Rio de Janeiro onde após formarse em Medicina ligase a um serviço de endocrinologia interesse que nunca abandonou Com efeito vemolo em seus numerosos escritos nos anos posteriores dedicado a compreender os inter mediários neuroumorais do fenômeno psicossomáti co Conhece Perestrello como professor assistente de Waldemar Berardinelli então pontificando na Facul dade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro suas lições de Clínica Médica A visão clínica de Berardi nelli e Luiz Capriglioni impressionamno sobremanei ra Sempre comprometido com Capisano já vivendo em São Paulo multiplica com ele os cursos e aulas sobre temas psicossomáticos Em 1966 publica volu moso texto sobre Medicina Psicossomática contendo capítulos escritos por Perestrello lsac Leon Luchina outro importante autor argentino e Marcelo Blaya de Porto Alegre Esses são os três paulistas da histórica reunião da qual resultou a Associação Brasileira de Medicina Psicossomática em flagrantes biográficos que sem dúvida não fazem justiça ao que têm sido na vida médica brasileira A intenção é apenas retratar em 6 x 8 foto de passaporte para introduzir o tema da Asso ciação de Medicina Psicossomática da qual têm sido seus líderes Deveria incluir nesses esboços biográfi cos alguns traços mais de Danilo Perestrello e de mim próprio os dois cariocas presentes na reunião Sobre Perestrello deixemos Marialzira sua esposa dedica da médica de cultura invulgar e psicanalista proemi nente falar Publicou no primeiro número da revista brasileira Psicossomática dedicada a Perestrello as seguintes referências sobre seu marido Carioca diplomado pela Faculdade Nacional de Medi cina da Universidade do Brasil em 1939 Cedo é assis tente de Clínica Propedêutica Médica e da 4a Cátedra de Clínica Médica da mesma Faculdade Trabalha com seu primeiro mestre Prof Waldemar Berardinelli Interessase pelo elo psiquiatriaproblemas sociais A respeito de Guerra e Relações de Raça de Arthur Ramos escreve O futuro médico precisa estar a par de noções de Antropologia na acepção larga da palavra como modernamente é concebida e assim poderá me Psicossomaticaindd 42 Psicossomaticaindd 42 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 43 lhor realizar a sua tarefa lsso em 1943 Esperan çoso e idealista termina De posse dos conhecimentos da Clínica que individualiza e da Antropologia que generaliza poderá o futuro médico trabalhar por um mundo melhor baseado na Ciência Podese di zer que Perestrello foi o pioneiro da Psicossomática no Rio de Janeiro apesar de alguns artigos aqui e acolá terem aparecido antes dele De qualquer modo foi o batalhador incansável o arauto do ponto de vista psi cossomático no Rio de Janeiro e em algumas partes do Brasil Em 1958 no mesmo ano em que organizou sua Di visão de Medicina Psicossomática no Serviço do Prof Clementino Fraga Filho publica um volume sobre Me dicina Psicossomática contendo importantíssima cole tânea de artigos Vejamos alguns Sobre o ensino de Medicina Psicossomática de 1956 Conceito de Medi cina Psicossomática de 1951 O fator psicológico em gastroenterologia de 1946 Sobre um caso de ptiríase rósea de 1956 Alternância Psicossomática de 1954 Estudo psicanalítico da dor de cabeça de 1953 Já em 1946 no primeiro Congresso InterAmericano de Medi cina realizado no Rio de Janeiro apresenta o trabalho Importânciado fator psicológico na etiologia da úlcera gastroduodenal Sua elaboração psicossomática culmi nou no consagrado texto A Medicina da Pessoa livro publicado em 1974 lido e relido em todo o Brasil Embora eu próprio desde que me graduei em Medicina em 1959 estivesse interessado em Psicos somática tendo aberto em 1962 um Setor no Serviço de Clínica Médica do Prof Carlos Lima da Santa Casa do Rio de Janeiro 2a Cátedra de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ meu encontro com Perestrello foi o marco decisivo A partir daí sempre estivemos juntos especialmente na organização de cursos de Psicologia Médica Creio que essa influên cia também foi exercida sobre Julio de Mello Filho o qual mesmo não tendo sido um dos presentes na reunião de 1965 é inegavelmente um dos pilares da Associação Formado em Recife veio estagiar na Santa Casa do Rio de Janeiro no Serviço do Prof Edgard Magalhães Gomes em 1958 onde estudou os aspectos psicossomáticos em doentes do colágeno Familiarizandose com a obra de Balint organiza um primeiro grupo de discussão no Hospital Pedro Er nesto sobre a tarefa assistencial em 1964 Em 1966 começa no Serviço de Clínica Médica do Prof José de Paula Lopes Pontes seu setor de Medicina Psicosso mática no Hospital São Francisco de Assis Tornase livredocente em Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1976 e publica sua tese em livro já leitura obrigatória em todo o Brasil Con cepção psicossomática visão atual Em 1979 assume o Setor de Psicologia Médica da Faculdade de Medi cina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na cadeira de Psiquiatria e Psicologia Médica do Prof Jorge Alberto Costa e Silva Todos os cinco foram presidentes da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática A sequência foi a seguinte até 1986 Danilo Perestrello de 1965 até 1974 período que inclui os dois anos de im plantação institucional os dois anos próprios do seu mandato e cinco anos de indefinição institucional nos quais Mário Martins de Porto Alegre não quis assumir e São Paulo preferiu manter durante algum tempo a presidência com Perestrello José Fernandes Pontes assumiu o biênio de 1974 a 1976 Helládio Francisco Capisano de 1976 a 1978 Abram Ekster man de 1978 a 1980 Julio de Mello Filho de 1980 a 1982 Otello Correa dos Santos Filho de 1982 a 1984 Finalmente o último dos fundadores dirigiu a Associação de 1984 a 1986 Luiz Miller de Paiva Para 1o biênio de 1986 a 1988 dirigiu a Associação Samuel Hulak de Recife De 1988 a 1990 Eugênio Campos de Teresópolis e no biênio 1990 a 1992 está dirigindo a ABMP o paulista Avelio Luiz Rodrigues Clementino Fraga Filho foi feito membro honorário assim como os professores José de Paula Lopes Pon tes e Carlos Cruz Lima no final da gestão de Abram Eksterman Todos os três constituíram os ambientes clínicos que propiciaram como o de José Fernandes Pontes o desenvolvimento da Medicina Psicossomáti ca no ambiente universitário brasileiro Não é impos sível que sem eles as dificuldades iniciais tivessem se transformado em barreiras intransponíveis Em 1967 juntamente com Ataliba de Castro e sob a presidência de Danilo Perestrello organizei a I Reunião Nacional de Medicina Psicossomática o que se constituiu no primeiro Congresso Brasileiro da área e que pôde utilizar o ambiente da Academia Na cional de Medicina do Rio de Janeiro graças ao apoio de Carlos Cruz Lima então presidente da Academia Esse Congresso teve também o apoio do então minis tro da Educação o Prof Raimundo Muniz de Aragão que facilitou a vinda do Prof Michael Balint e de sua mulher Enid Balint de Londres Michael Balint foi o presidente de honra do Congresso Reuniramse cer ca de 300 congressistas lotando as dependências da Academia Podese afirmar que essa reunião marcou o início do movimento nacional da Medicina Psicos somática A data 7 e 8 de abril de 1967 Michael Balint pronunciou a conferência inaugural Medicine and Psychossomatic Medicine e sob a coordenação de Carlos Cruz Lima e moderação de Michael Balint desenvolveuse o tema oficial Relação MédicoPa ciente Os relatores oficiais foram José Femandes Pontes de São Paulo dissertando sobre O médico de família Milton Abramovich do Rio Grande do Sul sobre O valor da queixa na relação médicopa ciente Oswaldo Arantes Pereira do Rio de Janeiro sobre O valor semiológico dos exames complemen tares do ponto de vista psicossomático Helládio Psicossomaticaindd 43 Psicossomaticaindd 43 05012010 121203 05012010 121203 44 Mello Filho Burd e cols Francisco Capisano de São Paulo sobre A indicação do especialista na relação clínica Abram Eksterman do Rio de Janeiro sobre O inconsciente do médico na relação clínica Marcelo Blaya do Rio Grande do Sul sobre Atuação psicoterápica do clínico e Dani lo Perestrello do Rio de Janeiro sobre Os medica mentos na relação médicopaciente Julio de Mello Filho nessa época associouse ao movimento apre sentando na Seção de Temas Livres o trabalho Pro blemas da relação médicopaciente em portadores de colagenoses A presença do modelo da interpretação psicanalítica da patologia somática foi marcante nes sa reunião mas delinearamse duas vertentes concei tuais que influenciaram consideravelmente todos os desenvolvimentos posteriores a prática integral da Medicina que depois tomou a forma da Medicina da Pessoa como conceituada por Perestrello e o estudo aprofundado da relação médicopaciente o que per mitiu fixar os parâmetros básicos para a formulação de uma política educacional e a definitiva introdução da disciplina de Psicologia Médica na formação do médico e dos demais profissionais da área de Saúde Nessa mesma reunião tendo eu elaborado e redigido o projeto dos estatutos da Associação foram os mes mos aprovados na assembleia administrativa É interessante assinalar que as repercussões des sa primeira reunião foram na época de pouca monta no meio médico Tanto que o tema escolhido para o simpósio comemorativo do Primeiro Decênio da cria ção do Setor de Medicina Psicossomática a cargo do Prof Danilo Perestrello organizado por mim na 1a Cátedra de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro dirigida por Clementino Fraga Fi lho foi expressivamente Dificuldades da utilização efetiva da orientação psicossomática na prática médi ca Participaram Fernandes Pontes Helládio Capisa no Milton Abramovich Julio de Mello Filho Abram Eksterman Hélio de Souza Luz LF Medina de Mi nas Gerais e alguns novos discípulos de Perestrello Felix Zyngier Angelo Papi Rosa Cukier Maria de Lourdes ODonnell Alice Rosa e Carlos Doin este úl timo dirigindo um setor de Medicina Psicossomática na Cadeira de Clínica Médica do Prof Jacques Houli na Escola de Medicina e Cirurgia no Rio de Janeiro O tema aberto por ocasião desse simpósio continua em plena discussão até os dias atuais Da gestão de Helládio Capisano em diante co meça a Associação a ramificarse em Regionais pelo Brasil a partir das matrizes do Rio de Janeiro e São Paulo Capisano inaugura a Regional de Marília li derada por Alfredo Colucci e a de Campinas com Wilson Vianna e Maurício Knobel este último recém chegado de Buenos Aires para ocupar a cátedra de Psiquiatria da Universidade de Campinas UNICAMP e com importante trabalho já realizado no domínio da Psicossomática Durante minha administração inauguro a regional de Presidente Prudente em São Paulo liderada por Pedro Carlos Primo e estimulo o desenvolvimento de grupos em Juiz de Fora e Belo Horizonte Minas Gerais Taubaté São Paulo Vitó ria Espírito Santo Londrina Paraná Ribeirão Pre to São Paulo Recife Pernambuco e Salvador na Bahia Nesta última capital deixo quase constituída a Regional liderada por Raimundo Pinheiro e com o Prof de Psiquiatria da Universidade da Bahia Álvaro Rubim de Pinho Em Presidente Prudente ocorre o I Forum Brasileiro de Medicina da Pessoa entre 16 e 19 de outubro de 1980 reconhecimento à expressão já consagrada de Perestrello através do livro editado em 1974 Perestrello afastarase desde 1976 doente de toda vida profissional É o primeiro congresso em que vejo na mesma mesaredonda a discussão de Me dicina integral feita por representantes da Medicina Científica e de várias correntes de Medicina Alterna tiva notadamente espiritismo e homeopatia Especialmente na gestão seguinte a de Julio de Mello Filho a Associação toma ritmo nacional na medida em que estimula o desenvolvimento de gru pos ligados ou não a universidades em geral forma da por especialistas de várias disciplinas da área de assistência e ensino e interessados em desenvolver o estudo e a divulgação de Medicina Psicossomática Vale assimilar o esforço de Samuel Hulak e seus companheiros de Recife que fundam a revista Psi cossomática que passa a circular a partir do início de 1986 com um número homenageando Danilo Pe restrello Infelizmente a revista após oito números de excelente qualidade editorial deixa de circular em 1988 por falta de recursos PSICOSSOMÁTICA NO BRASIL DE HOJE lnspirada inicialmente no movimento psicana lítico brasileiro a Medicina Psicossomática dos anos 1990 começa a tomar outros rumos por conta de al gumas importantes trasformações na estrutura assis tencial decorrentes da intervenção maciça do Estado com a mobilização maior de atividades paramédicas e a formação de equipes multidisciplinares Funções como a de Enfermagem Assistência Social Nutrição e Psicologia comprometidas com o cuidado geral e a dimensão social da patologia além da condição existencial do doente abrem perspecti vas conectadas com a Psicossomática e a ela recorrem para buscar apoio teórico Além disso as recentes in vestigações no campo da Psiquiatria Biológica abrem o hospital para uma maior e decisiva participação do psiquiatra Várias orientações começam a tomar forma deixando de lado a orientação psicodinâmica Psicossomaticaindd 44 Psicossomaticaindd 44 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 45 original ou dela fazendo uso apenas para breves ex plicações ora da patogenia ora da conduta médica A progressiva e maciça participação do psicólo go na área de saúde nos hospitais nos ambulatórios nos postos de saúde até nos serviços clínicos parti culares nas mais variadas especialidades e tipos de atendimento tem estimulado uma crescente preocu pação com as questões psicológicas A despeito dessa efervescência do interesse no aspecto psicossocial da assistência as linhas mestras da questão psicosso mática ainda mal foram tocadas na prática Recordemos que as linhas mestras resumemse em duas l A patologia no homem sempre deve levar em conta a dimensão simbólica de que é constituído o que impõe o conhecimento dos aspectos psicossociais do doente 2 O êxito terapêutico está estreitamente vinculado à relação dinâmica médicopaciente A in trodução do psicólogo da assistente social e do psi quiatra só produzirá efeitos psicossomáticos efetivos se esses profissionais estiverem comprometidos com essas duas linhas mestras infelizmente nem sempre tem sido o caso A participação do psiquiatra no Hospital Geral tem seguido o diagnóstico fenomenológico e orga nizado serviços de Psiquiatria de Ligação Liaison Psychiatry voltados para as intercorrências psiquiá tricas nosologicamente identificáveis ou como uni dades nosográficas definidas ou como psicopatolo gias participantes de entidades clinicossomáticas Isso tem produzido assistência psiquiátrica no Hospital Geral mas não tem contribuído para o de senvolvimento da Psicossomática A participação do psicológo também padece de alguns defeitos estruturais Sua institucionalização na área de saúde particularmente nos serviços materno infantis clínicogerais e cirúrgicos tem sido orienta da segundo as necessidades de ajustar os pacientes a modelos assistenciais Prática portanto behaviorista que não favorece uma compreensão nem da relação médicopaciente nem das dificuldades psicodinâmi cas do paciente Frequentemente assim o psicólogo passa a ser mais um agente dos interesses da institui ção do que das necessidades efetivas do paciente É o modelo corrente de Psicologia Hospitalar cuja prática está longe de ser uniforme Há que se reconhecer que muitos profissionais da área de Psicologia consegui ram graças a uma adequada formação psicodinâmi ca estabelecer estratégias de atendimento próximas ao modelo preconizado pela Psicologia Médica A Psicologia Médica é o braço clinico da concep ção psicossomática original que se apoiou em seu desenvolvimento nas teorias básicas de psicanálise admiravelmente aplicada nos grupos de discussão de tarefa clínica como Michael Balint e colaborado res desenvolveram na Tavistock Clinic de Londres a partir de 1949 Com justa razão esses grupos passa ram a ser conhecidos por grupos Balint Desde 1958 Danilo Perestrello começou a realizar reuniões desse feitio no Rio de Janeiro no Hospital Geral da Santa Casa sem conhecer ainda o trabalho de Balint Hoje essa atividade é muito disseminada no Brasil e faz parte obrigatória de todas os que passam pela forma ção em Psicologia Médica Um primeiro curso de pósgraduação de espe cialização em Psicologia Médica de dois anos de du ração foi inaugurado por mim em 1983 com quaren ta alunos inscritos Tratavase até onde pude apurar de uma primeira tentativa de criar especialistas nesta área no Brasil para trabalharem como parte compo nente da equipe assistencial É possível que em futuro próximo a ideia psicos somática deixe de existir na medida em que se tornar mais comum a prática da Psiquiatria de Ligação da Psicologia Hospitalar e da Psieologia Médíca De to das a Psicologia Médica parece destinada a herdar os principais atributos da Medicina Psicossomática Com uma diferença fundamental A Medicina Psicos somática estuda as relações mentecorpo e seu foco é a patogenia Por sua vez a Psicologia Médica estuda as relações assistenciais e seu foco é a terapêutica No primeiro ressalta a questão diagnostica no segundo a atuação clínica A Psicologia Médica por isso pas sou a ser ensinada como disciplina isolada nas prin cipais Faculdades de Medicina do país Nesse sentido podese dizer que o trabalho dos pioneiros em Psi cossomática já produziu um fruto notável Mas muito ainda falta para que a Medicina da Pessoa entre no quotidiano clínico Talvez isso se dê quando a Me dicina voltarse para o fenômeno humano integral Sem isso a Psicossomática continuará sendo mais es perança do que realidade prática Isso porque persiste o maior dos desafios o efe tivo encontro do ser humano consigo próprio e com o outro Psicossomaticaindd 45 Psicossomaticaindd 45 05012010 121203 05012010 121203 PARTE 2 Ensino e formação Psicossomaticaindd 47 Psicossomaticaindd 47 05012010 121203 05012010 121203 A Psicologia Médica e um capítulo novo na his tória da Medicina Pretende estudar a psicologia do estudante do médico do paciente da relação entre estes da família e do próprio contexto institucional dessas relações Tarefa sem dúvida de grande com plexidade que por tal representa um desafio Ensinar e aprender são questões de uma vida En tretanto algumas questões que julgamos importantes serão desenvolvidas neste capítulo tendo como foco principal uma proposta de ensino Acreditamos que o ensino só produz resultado satisfatório isto é produz uma verdadeira modifica ção da conduta de acordo com Perestrello 1974 se puder diluirse no ser self do aluno apresentando lhe um saber que vai ampliar os limites de sua identi dade Segundo Allonso Fernandez 1974 se um cur so de Medicina não promover alguma modificação na personalidade do aluno este curso deve ser reavalia do pois não está cumprindo seus objetivos Pensamos que no decorrer da formação acadêmica o aluno se confronta com a doença com o doente com o seu ser médico com a morte e outras tantas situações gera doras de ansiedade Além disso percebemos que a pessoa que escolhe a Medicina como profissão já o faz frequentemente motivada pelas expectativas de solucionar questões internas nem sempre conscien tes Tudo isso vai se constituir na matéria do ensino de Psicologia Médica Ao professor caberá absorver ouvindo e entendendo essas situações O professor que não escuta o aluno falha no método e oferece um modelo de não comunicação Explicitando podemos dizer que no encontro entre duas pessoas no caso professoraluno o que é feito a conduta que o pro fessor demonstra tem muito mais alcance no outro do que o que é dito Coerência entre atos e discurso no ensino é essencial Aquilo que o professor for para o aluno servirá de modelo que este se identificando guardará dentro de si Esta questão no ensino médico é de capital impor tância pois se o professor for incapaz de se relacionar com o aluno de ouvilo de estabelecer com ele uma relação de franqueza e confiança poderá ser este o modelo apreendido É evidente que os modelos absor vidos dependerão em última análise das ansiedades do estudante do momento emocional que este esti ver vivendo de sua própria história pessoal buscan do identificações de acordo com essas características Para situações desconhecidas mobilizadoras de maior tensão procura modelos defensivos que por sua vez serão sintônicos com sua característica de personali dade Temos observado por exemplo estudantes que se identificam com modelos de médicos mais autoritá rios rígidos em lidar especialmente com situações que desconhecem e que vão evidenciar sua falta de expe riência ou conhecimento O poder aí está a serviço da insegurança da fraqueza do desconhecimento Outro elemento a ser considerado é que o ensi no de Psicologia Médica engloba o ensino do que se convencionou chamar de Medicina Psicossomática Com essa perspectiva a Psicologia Médica ga nha um status que se estende a toda a Medicina con soante com a atual dimensão de que toda a doença é psicossomática Lembramos que a Psicologia Mé dica é a psicologia da relação médicopaciente con forme nos diz Pierre Schneider 1974 Entretanto podemos ampliar tal conceituação e concordar com Allonso Fernandez 1974 quando afirma que a Psi cologia Médica é a psicologia da pratica médica Assim a Psicologia Médica tem como principal objetivo de estudo as relações humanas no contexto médico Portanto a compreensão do homem em sua totalidade no seu diálogo permanente entre mente e corpo na sua condição biopsicossocial é fundamental para a Psicologia Médica É com este sentido que fala mos em Medicina Psicossomática incluindo a Medici na da Pessoa tema brilhantemente exposto por Dani lo Perestrello 1974 em seu livro com este título É para esta prática médica por conseguinte que deve se voltar o foco de atenção do ensino de Psi cologia Médica A integração do ensino com a prática é questão indispensável A prática aqui assume duas direções 3 ENSINO DE PSICOLOGIA MÉDICA José Roberto Muniz Luiz Fernando Chazan Psicossomaticaindd 49 Psicossomaticaindd 49 05012010 121203 05012010 121203 50 Mello Filho Burd e cols 1 No contexto de ensino com as vivências do aprendizado médico no hospitalescola na rela ção com os professores acompanhando as várias etapas de formação médica do primeiro ao último ano do contato com o cadáver à pessoa doente sempre sob a ótica do estudo da Iatropatogenia 2 Na prática médica propriamente dita no ambula tório enfermaria e unidade de emergência com os avanços da Medicina CTI unidade de hemo diálise etc e suas consequências para a pessoa doente no contexto familiar o doente agudo o crônico e o terminal a relação médicopaciente nas várias áreas especializadas da Medicina a equipe de saúde as relações interpessoais entre médicos e profissionais de saúde o médico enfer mo etc Considerando a amplitude desta prática a inte gração com outras áreas da Medicina vem a facilitar e enriquecer o ensino da Psicologia Médica Temos de senvolvido trabalhos no âmbito das enfermarias e do ambulatório do Hospital Universitário Pedro Ernesto HUPE da Faculdade de Ciências Médicas da Uni versidade Estadual do Rio de Janeiro FCMUERJ o que sem dúvida ao se integrar ao ensino permite uma visão global da assistência Entretanto este é um trabalho difícil desafiador A começar pela ad ministração de programas de ensino com essa ótica considerando principalmente o corpo docente lnicialmente verificamos que este ensino quan do administrado pela cadeira de Psiquiatria mui tas vezes não alcança estas finalidades precípuas A Psiquiatria como especialidade médica constitui um saber especifico que nem sempre direciona seus obje tivos para uma maior integração com outras áreas de saber dentro da Medicina Resulta muitas vezes que o ensino de Psicologia Médica administrado dessa for ma acaba sendo um curso restrito a programas teóri cos específicos que por vezes servem mais como cur sos preparatórios à Psiquiatria propriamente dita Há principalmente uma grande perda no que diz respeito ao ensino da prática como exposto anteriormente Por outro lado o curso quando administrado por professores de Clínica Médica parece também in suficiente E aqui o que sentimos é a necessidade de uma preparação não só do aporte de conhecimento das teorias afins como também da própria participa ção emocional do professor nesse processo O proble ma pedagógico observado frequentemente se liga à ansiedade que o contexto de aprendizagem provoca no aluno e para isso se requer uma adequada abor dagem desses problemas por parte do professor En tretanto observamos colegas de Clínica Médica que conosco têm desenvolvido excelentes resultados neste processo Fica claro que não está vedada àqueles sua participação Pelo contrário é desejada até para que se incremente assim uma maior integração Pensa mos entretanto que a Psicologia Médica pelas suas peculiaridades e seu próprio corpo de saber deve se constituir em uma disciplina à parte da Psiquiatria e da Clínica Médica porém com funcionamento inte grado a ambas Um outro objetivo central do ensino de Psico logia Médica é de simples enunciado e complexa execução a prevenção da iatropatogenia E no nosso entender é o estudo a detecção das situações iatro gênicas observadas e inerentes à prática médica que vão possibilitar medidas preventivas quer no nível individual quer num contexto mais amplo Outros objetivos que contribuirão para alcançar tal prevenção são descritos na ementa do curso de Psicologia Médica para graduação da FCMUERJ compreender o homem sempre como unidade biopsicossocial perceber a importância da biografia e da persona lidade do paciente em seu modo de adoecer e na forma de se relacionar com a equipe de saúde valorizar o papel das ideologias e instituições mé dicas na prática da medicina e no relacionamento com o paciente ouvir e respeitar o paciente como ser humano e dentro do seu marco sociocultural entrevistar psicologicamente o paciente ou sua família quando necessário perceber a atmosfera psicológica que acompanha o exame do paciente e saber como manejála em proveito do relacionamento transmitir ao doente os achados obtidos suposi ções e diagnósticos em função de sua personali dade e do momento vivido solicitar os exames complementares avaliando as possíveis reações do paciente à sua execução e utilizar técnicas adequadas para lhe comunicar os resultados planejar a terapêutica conforme as necessidades globais do paciente como ser humano identificar a atuação de fatores psicossociais na gênese e evolução das enfermidades atuando de forma a tentar neutralizar seus efeitos admitir que a atitude do médico é de importân cia capital no relacionamento com o paciente e que o médico pode reagir emocional e inadequa damente perceber as dificuldades emocionais que mais frequentemente ocorrem em seu início de prática profissional conhecer o funcionamento básico da personali dade humana seus processos adaptativos e seus modos mais comuns de adoecer Psicossomaticaindd 50 Psicossomaticaindd 50 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 51 distinguir os aspectos mais característicos da saú de e da doença mental no marco sociocultural do paciente começar a distinguir os pacientes que podem re ceber ajuda psicológica do médico em geral da queles que necessitam ser encaminhados aos es pecialistas em doenças mentais Acrescentaríamos hoje mais um objetivo que é o de ter uma visão crítica da formação e prática medica e sua integração com o meio sociopolítico e cultural Com relação ao como atingir os objetivos pro postos podemos inicialmente citar Danilo Perestrello 1974 A transmissão de conhecimentos teóricos ou práticos por meio de exposições ou leitura de textos mostrase inoperante o que não ocorre na situação oposta isto é mesmo quando o ensino é ministrado sem se recor rer às aludidas exposições ou leituras quando não se utilizam inclusive terminologias técnicas e sim a lin guagem cotidiana para os sentimentos pensamentos e atos de todos nós Somente depois de certo período de treinamento com base na vivência individual pode rão os livros aprimorar e ampliar as aquisições obtidas quando então se verifica por parte dos alunos surpre endente capacidade crítica de assimilação dos textos porventura lidos Partindo do princípio de que aprendizagem é modificação da conduta é fácil verificar que pouco adiantam os conhecimentos de ordem intelectual em Psicologia Médica e Medicina Psicossomática se eles não forem experienciados na prática clínica do estu dante ou médico Não somente pouco adiantam como frequente mente e nossa observação é rica neste particular representam obstáculos para a verdadeira mudança da conduta afastando o estudante no caso o médi co do objetivo visado Podemos dizer que os textos são os exames com plementares do ensino da Psicologia Médica Ajudam no ensino mas não substituem a relação professor aluno E aqui encontramos uma das boas razões para a existência dos grupos de reflexão que serão comen tados adiante O CURSO DE PSICOLOGIA MÉDICA O curso se desenvolveu na FCMUERJ sob a co ordenação geral do Prof Julio de Mello Filho A Psi cologia Médica é ensinada durante os primeiros anos do curso de graduação da FCMUERJ Nos dois pri meiros anos tem a duração de um semestre do ano letivo cada um e tem sido ministrada recentemente em conjunto com o lnstituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro IMSUERJ Esta integração reflete esforço concreto para aprimo rar a coerência do currículo médico aproximando a versão macroscópica do social à dimensão psicológi ca do ser humano Inauguramos assim um diálogo entre duas áreas de conhecimentos que acreditamos se propõem a dar ao aluno uma visão holística do homem Em todo o curso ao longo dos três anos temos desenvolvido técnicas grupais junto aos alunos No primeiro ano o curso que se intitula Fun damentos de Saúde da Comunidade FUNSACO se divide em dois tempos o primeiro de aula expositi va e o seguinte de grupo de reflexão A programa ção teórica desenvolve os seguintes temas além dos específicos da Medicina Social o Biopsicossocial o Médico e o Curandeiro o Estresse Social a Identida de Médica e a do Estudante de Medicina Teoria da Comunicação Nos grupos temos como objetivo promover a reflexão das experiências emocionais ligadas à entra da do estudante na Faculdade de Medicina o curso de Anatomia o contato com o cadáver a utilização deste etc além de acompanhálo no projeto desen volvido pelo IMS em que o aluno é incumbido de acompanhar um paciente que chega ao ambulatório geral do HUPE para sua primeira consulta Cabe ao estudante acompanhar a trajetória do paciente sem interferir nos rumos que esta possa tomar Tratase de uma pesquisa participatória na qual o aluno não só coleta os dados observados mas também vivencia a experiência do ponto de vista pessoal Dentre outros um dos principais objetivos é colocar o estudante de Medicina no outro lado da mesa a partir da ótica do paciente e dessa maneira introduzilo desde cedo na assistência Essa experiência por sua riqueza me receria um capítulo à parte No segundo ano a turma é dividida em quatro grupos com cerca de 15 a 20 alunos cada reunindo se uma vez por semana durante uma hora e meia Cada grupo recebe com antecedência textos sobre os temas teóricos que deverão ser lidos previamen te Cabe ressaltar que todas as aulas são organizadas de maneira a privilegiar a discussão nos grupos Não recorremos mais às clássicas aulas expositivas e acre ditamos que grupos menores de alunos favorecem a participação ativa Os textos são elaborados pela equipe de profes sores ressaltando os aspectos básicos de cada unida de estudada e enriquecidos com capítulos de livros citados na bibliografia geral As discussões sobre as entrevistas parte práti ca alteramse com os temas teóricos Psicologia Evo lutiva Psicossomaticaindd 51 Psicossomaticaindd 51 05012010 121203 05012010 121203 52 Mello Filho Burd e cols crises vitais discussão das entrevistas com pessoas que lidam com situações de crise médicos bombeiros poli ciais religiosos etc primeira infância discussão das entrevistas com mães eou pais de bebês saudáveis e doentes segunda infância discussão das entrevistas com crianças eou pais saudáveis e doentes adolescência E assim sucessivamente até o tópico sobre mor te em que a aula com textos é substituída por um painel de que participam um médico clinico um filó sofo um professor de Medicina Social e um professor de Psicologia Médica As entrevistas são feitas com profissionais que lidam diretamente com a morte É importante esclarecer que essas entrevistas têm alguns objetivos principais que são 1 Estimular a visão crítica e a criatividade dos alu nos isto é eles deverão através das entrevistas procurar avaliar o que foi estudado nos grupos de discussão teórica 2 Iniciar o treinamento de entrevistar pessoas des conhecidas com o objetivo de conhecêlas obter dados etc Temos como objetivo o preparo para o futuro estudo das anamneses e da História da Pessoa no terceiro ano 3 Iniciar o desenvolvimento de uma identidade mé dica que possa tornarse capaz de ouvir o pacien te no seu contexto psicossocial 4 Estimular o contato com profissionais da área médica e de outras ouvindo sobre seu trabalho sobre suas dificuldades e gratificações 5 Ajudar a elaborar a futura crise do terceiro ano antecipando o contato com o paciente Isso permite um contato mais livre com a pessoa do paciente encontrando nos grupos de reflexão o clima elaborativo adequado E importante ressaltar que os alunos não rece bem nenhum roteiro prévio sendo a entrevista livre completamente elaborada por eles apenas partindo do tema geral O programa teórico durante o terceiro ano com preende os seguintes assuntos Conceito de Psicologia Médica Estudo de Me dicina Psicossomática Psicologia da Personalidade Aspectos Psicodinâmicos Estudo da Relação Médico Paciente Estudo dos Grupos Humanos O Normal e o Anormal A Saúde e a Doença o Adoecer Humano e os Processos Adaptativos Estudo da Vocação Médi ca Estudo da Iatrogenia e Efeito Placebeo o Médico e o Paciente diante da Morte Recursos Terapêutioos Extraordinários Relação entre Doença e Família Re lação entre Doença Cultura e Sociedade a Enfermi dade do Médico e suas Particularidades Outros temas são expostos sob forma de painéis e discussões em grupo Nos painéis temos tido a oportunidade de con vidar profissionais que através de relato de sua expe riência têm contribuído para promover um interesse maior dos alunos em assuntos pertinentes à prática médica Temas como o Médieo e o Pacicnte diante da Morte Emergências Médicas CTI Equipe de Saúde e outros ganham um lugar de discussão no decorrer do curso médico Sabemos o quanto as suntos dessa magnitude têm sido excluídos de uma atenção maior que sem dúvida merecem O ensino prático de Psicologia Médica no tercei ro ano vem sendo o maior desafio que encontramos E o momento em que o aluno de Medicina estabelece contato e compromisso com os pacientes internados nas enfermarias de Clínica Médica e quando efetiva mente procura um modelo para essa relação Como conseguir estimular o estudante a desenvolver uma abordagem uma escuta não usual de seu paciente Como ampliar o sentido de uma pesquisa semiótica E propiciar a formação de uma identidade profissio nal que possa se voltar ao atendimento das necessi dades do paciente Estas e outras são questões esti mulantes Perceber o que não é diretamente explicitado pelo paciente não é tarefa fácil Escutar o que não é dito em palavras requer um modelo de relação que de forma alguma é o habitual Procuramos através do ensino e por intermédio da relação professoraluno nos aproximar de um modelo de relação que possa em última análise ser introjetado pelo estudante As transformações ou melhor as possibilidades de mu danças nas atitudes dos estudantes estarão ligadas di retamente à intensidade das experiências emocionais vividas no decorrer de sua formação médica E desen volvendo a capacidade de elaborar seus conflitos De refletir sobre suas angústias que o estudante poderá posteriormente ouvir as angústias do paciente GRUPO DE REFLEXÃO Temos dado este nome aos grupos que desen volvemos ao longo do curso Tratase de nossa técni ca de ensino nossa ferramenta principal São grupos constituídos por até 20 alunos em média coordena dos usualmente por uma dupla de professores nas quais se discutem as situações vividas pelos alunos quer na vida acadêmica quer na relação com os pa cientes de maneira geral Psicossomaticaindd 52 Psicossomaticaindd 52 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 53 O fato de existir uma dupla de coordenadores traz algumas vantagens l Permite o treinamento do segundo coordenador atendendo à demanda do aprendizado nesta téc nica de ensino 2 Amplia a visão crítica da atuação de coordenação pois os coordenadores podem trocar vivências e opiniões entre si 3 Aumenta as possibilidades de empatia e identifi cações positivas por parte dos alunos É propício ressaltar que estes grupos não têm nenhum caráter terapêutico explicito não são feitas interpretações por parte dos coordenadores Como existe um es paço efetivo holding para a reflexão reassegu ramento da identidade através das identificações e enfrentamento dos conflitos não temos dúvidas de que esses grupos contribuem para a elaboração das crises do viver a formação médica Com relação ao material trazido pelos alunos podemos identificar alguns temas que mais frequen temente aparecem dependendo do ano que os alu nos estão cursando No primeiro ano temos observado a mobili zação dos estudantes nos primeiros contatos com a Medicina suas expectativas seus entusiasmos e suas decepções Desde o início percebemos quão marcan te é um curso de Medicina Os alunos manifestam cla ramente esse impacto quer entre seus colegas quer no grupo social a que pertencem Sentemse tratados alguns deles de maneira diferenciada entre seus fa miliares atendendo às vezes a solicitações médi cas às quais não sabem como responder Os amigos que desejam saber sobre questões médicas a roupa branca que começam a trajar já os coloca num papel diferente que frequentemente ajuda a desenvolver um sentimento de que se está iniciando algo de muito especial A curiosidade em saber em conhecer o corpo humano a vida vai logo ao encontro do estudo da Anatomia Olhar o que se tem por dentro ver como é A dissecação de cadáve res por outro lado é uma atividade de grande Signi ficação na formação da identidade médica Ela marca a diferença com qualquer outro curso de formação A violação de cadáveres ganha aqui status científico O aluno é oficialmente autorizado a profanar cadáve res Além disso a dissecação em sua dimensão sim bólica faz parte a nosso ver de um verdadeiro ritual de iniciação à prática do futuro curandeiro É no ca dáver que o aluno tem o seu primeiro paciente E este fica como um modelo de paciente ideal não incomo da não se queixa não interfere e não tem história As histórias que podem incomodar neste momento são as do próprio aluno E como aconteceu com uma aluna que no grupo de discussão manifestou estar chocada com o estudo de Anatomia e que não sabia por que passou a ter dificuldades até mesmo de se aproximar do anatômico Outros colegas no grupo começaram logo a falar sobre suas experiências com relação ao cadáver dizendo que consideravam este uma peça somente um objeto de estudo necessário a formação médica e que por isso não tinham maiores problemas em lidar com a situação A aluna insistia em dizer que ela pensava o mesmo vinha bem com isso mas num determinado momento não sabe por que passou a sentir ansiedade com as aulas o grupo evolui na discussão do tema ganhando maior com plexidade e deixando de tãosomente caracterizar a situação da dissecação do cadáver como de estudo propriamente dito Foram surgindo então questões como a de que para alguns incomodava pensar que uma peça de cadáver já tinha sido uma pessoa que aquela mão por exemplo já havia cumprimenta do várias pessoas que havia portanto uma história por trás daquelas peças Num determinado momen to a aluna que relatava suas dificuldades começa a falar da perda que sofreu com a morte de seus avós há cerca de um ano deixando vir sua emoção e que ela agora relacionava a suas dificuldades em entrar no anatômico Os grupos têm permitido aos alunos um lugar para elaborar essas emoções que por vezes dificul tam o aproveitamento do estudo que devem levar adiante Outro grupo logo no início da discussão atri buía ao cheiro forte do formol a única dificuldade em lidar com o cadáver A transfiguração do cadáver já dividido em peças o caráter racional das aulas a im portância do aprendizado científico eram os fatores alegados pelos alunos como os mais importantes para não se envolverem emocionalmente Acreditavam que esta atitude seria fundamental para o aprendiza do Mais adiante uma aluna diz que quando come çou o curso de Anatomia não conseguia estudar pelo seu envolvimento emocional e procurou orientação com um professor que lhe recomendou ver o cadá ver como um livro o que acabou ajudando Conta entretanto que gostava muito de ver filmes de terror se divertia com isso mas que desde então não con segue mais ter a mesma diversão de outrora Outros alunos neste momento do grupo passam a falar de questões pessoais como o que revela um sonho que ele não desejava a nenhum de seus colegas sonha va que era um cirurgião que operava um paciente seu pai médico por profissão e que este morre na cirurgia sem poder salválo Este aluno já havia fala do anteriormente sobre suas intenções de seguir a especialização do pai Lembra um filme que fala de fantasmas e de pessoas mortas Outro aluno diz que Psicossomaticaindd 53 Psicossomaticaindd 53 05012010 121203 05012010 121203 54 Mello Filho Burd e cols gostava deste tipo de filme como A Volta dos Mortos Vivos mas que agora depois das aulas de Anatomia deixou de ver Nesse momento o grupo atingiu uma descontração maior com muitas pessoas falando rin do e chegando a admitir que tinham medo de que abrindo uma cuba no anatômico os cadáveres pode riam virar fantasmas agarrandoos pelo pescoço As tensões finalmente ganhavam um escoadouro Entretanto cabe ressaltar que apesar da rique za do material desenvolvido pelo grupo não há in terpretação dele Os coordenadores funcionam mais no sentido de permitir a revelação dos sentimentos muitos recalcados dando aos alunos uma oportuni dade de perceber mais claramente o que acontece consigo próprios Isso tem facilitado não só a coesão dos alunos entre si como também e principalmente a elaboração de situações conflitivas no aprendizado da Medicina Permitese como no caso da revelação do sonho pelo aluno a colocação de situações mais pessoais íntimas procurando sempre criar condições propícias nesses momentos protegendo o aluno sem interpretar o material inconsciente pois isso fugiria de nossos objetivos Esse lugar o grupo de reflexão passa com esse processo a ter uma condição espe cial para o aluno onde este se sente reforçado para fazer depoimentos mais pessoais diminuindo ansie dades persecutórias Para isso é fundamental um clima de relação amistosa próxima cordial entre coordenadores e alunos Temos observado com isso que é possível dar aos alunos um encorajamento para aceitar e lidar com o emocional deixando que faça parte do seu processo de formação E dessa maneira acreditamos que possam permitir futuramente que o emocional e o imaginário de seus pacientes possam também ser aceitos No segundo ano iniciase um processo de de sidealização no que se refere a estar no curso médi co Um determinado grupo por exemplo começou a discutir e a trocar experiências sobre a época em que descobriram que Papai Noel não existia Vivenciam perdas no tocante à vida cultural e de lazer frente às exigências do curso médico estudos provas etc Questões sobre vocação identidade tratamse entre si de meninos e meninas são compatíveis com a ado lescência que ainda vivem Sentemse muitas vezes diminuídos diante de outros colegas mais graduados e de professores Um aluno com saudavel ironia trouxe para discussão o Poema em Linha Reta de Fernando Pessoa 1985 que contém versos do tipo Nunca conheci quem tivesse levado porrada Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo nunca sofreu um enxova lho Nunca foi senão príncipe todos eles príncipes na vida Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra No terceiro ano as questões voltamse mais para a identidade médica propriamente dita Que medico serei Quero ser médico Estas questões são reforçadas pelas observações que fazem nas enferma rias onde por vezes repudiam práticas observadas Nessa ocasião rejeitam a ideia de serem médicos por se identificarem mais com os pacientes e também por não possuírem ainda cultura médica consistente Pacientes não ouvidos excessivamente exami nados discussões à beira do leito pacientes sendo tratados pelos seus diagnósticos às vezes graves em voz alta etc tudo isso contribui para o desconforto sentido pelo estudante por uma identidade ainda não definida É muito comum que surja um sentimento de culpa por acreditam eles estarem usando os pacien tes para aprender sem nada dar em troca Sentemse como dizem sanguessugas Nesse particular quando o grupo de reflexão evolui satisfatoriamente eles percebem que têm muito a oferecer especialmente no tocante às rela ções humanas com carinho compreensão e respei to ajudando os pacientes no enfrentamento de suas patologias Alguns chegam inclusive a acompanhar pacientes graves em trabalhos dignos de qualquer profissional experiente Sob nossa supervisão fazem verdadeiras psicoterapias de crise como no trabalho de George M N Silva Júnior 1983 Em momentos iniciais dos grupos de reflexão podemos nos utilizar de técnicas didáticas específicas que servem para o esquentamento das discussões Destacamse grupostarefa nos quais se subdivi de a turma em grupos menores dandoselhes ques tões Após breve discussão reúnemse os subgrupos e atravês de relatores promovese a discussão geral dos temas desenvolvidos pelos respectivos grupos Utilizamos essa técnica principalmente no trabalho inicial com cada turma para com isso facilitar a emergência de temas A dramatização como técnica de ensino tem nos facilitado promover a discussão de situações práticas Temos feito dramatizações de exames físicos por ocasião de treinamento de Se miologia como por exemplo a palpação da cabeça e pescoço de um paciente que apresenta nódulos palpáveis ou da consulta de uma adolescente que vai acompanhada da mãe ao ginecologista desta so licitar receita de anticoncepcional São situações que mobilizam muito interesse e pela dramatização em si podese participar ao vivo dessas situações que permitem discussões muito enriquecedoras Psicossomaticaindd 54 Psicossomaticaindd 54 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 55 HISTÓRIA DA PESSOA Tema desenvolvido por Danilo Perestrello 1974 a História da Pessoa que foi posteriormen te sistematizada por Julio de Mello Filho e Abram Eksterman procura desenvolver a importância da co lheita de uma história que leve a uma compreensão global do ser humano e não restrita à doença apre sentada como a anamnese tradicionalmente utiliza da E uma história da pessoa e não da doença somen te Visa proporcionar ao estudante o conhecimento da pessoa com quem está lidando de sua curva de vida e permitir fazer correlações com o estar doente seja no presente ou no passado Ao mesmo tempo funcionará como treinamento para a abordagem psi cológica do paciente A colheita desses dados é tarefa que exige tato sensibilidade e respeito às peculiaridades de cada caso A habilidade virá com o acúmulo de experiência Mais importante do que cumprir um roteiro ou ter um grande número de informações é saber ouvir o paciente Durante a entrevista o estudante deverá observar as reações do paciente e as suas próprias Nenhum dado de registro com exceção do cronogra ma familiar deverá ser escrito na presença do pa ciente Outros aspectos da técnica de abordagem do pa ciente são desenvolvidos individualmente ou durante as aulas Este registro compõese de seis tópicos 1 Cronograma Familiar Dá uma ideia da posição do paciente dentro de sua família permitindo vá rias correlações Utilizase o modelo da Genética Médica que de forma simplificada reproduzimos aqui 2 Biografia resumida do doente Relato da vida do paciente como ele a vivenciou aproveitando suas próprias palavras 21 Aspectos que podem ser destacados condições de nascimento primeiros anos de vida relações com os pais e demais parentes durante a infância irmãos e relacionamentos com estes escolaridade e aproveitamento no am biente escolar jogos brinquedos e preferências aspira ções e interesses quanto à vida adulta desenvolvimento psicossexual adolescência casamento cônjuge filhos e relações fa miliares trabalho condições econômicas e relacio namento com o ambiente profissional climatério e condições de vida na velhi ce hábitos e crenças vida social traumas psíquicos e perdas de relevân cia 3 Circunstâncias de vida nas quais sobreveio a en fermidade atual Pesquisar também as circunstân cias de vida dentro das quais adoeceu anterior mente 4 Maneira como encara a enfermidade atual e fan tasias a respeito desta Reações às enfermidades passadas 5 Modificações adaptações eou desadaptações de vida decorrentes da enfermidade 6 Forma pela qual se relaciona com a equipe médica Investigar também as relações com os seus mé dicos no passado Não temos a preocupação ao treinar a colheita desta história de corrigir os alunos mas sim de fazer com que exercitem a tarefa de entrevistar uma pes soa de abordar questões conflitivas possibilitando até mesmo uma escuta mais apropriada Procuramos incentivar a troca de experiência entre os alunos para que eles possam expressarse da maneira mais livre e espontânea nos grupos de refle xão Temos priorizado a discussão de casos clínicos quer sejam de apresentação de anamneses colhidas por eles ou situações vividas na relação com os pa cientes Falamos do paciente do caso clínico e suas correlações da relação propriamente dita do tipo de personalidade do paciente seu modo de relacionar se etc deixando que o estudante fale só se assim o desejar de suas vivências de si próprio Verificamos que assinalar as ansiedades do estudante ou apontar Legenda em preto o destaque para o paciente Psicossomaticaindd 55 Psicossomaticaindd 55 05012010 121203 05012010 121203 56 Mello Filho Burd e cols as dificuldades apresentadas usualmente provoca an siedades persecutórias que não favorecem o entrosa mento grupal e principalmente o compartilhar expe riências O aluno de Medicina já vive muitas tensões com relação ao seu aprendizado Sentese ignorante inseguro e aprendiz e isso o coloca numa posição de defesa assustado com críticas de qualquer ordem E necessário respeitar esse momento para possibilitar um acolhimento destas ansiedades Com isso visamos possibilitar que o estudante va lorize seu potencial humano sua experiência pessoal como individuo Verificamos com frequência que os alunos sentemse culpados por usar seus pacientes no treino da Semiologia Médica com a repetição de anamneses e exames físicos sem dar nada em troca por sua inexperiência médica Entretanto deixam de lado as possibilidades várias de que dispõem para de senvolver um relacionamento humano que vai ao en contro das necessidades emocionais dos pacientes O nosso objetivo enquanto professores é tãosomente o de auxiliar a uma descoberta isto é proporcionar os meios através da coordenação destes grupos para que os alunos cheguem até a reflexão e daí introspecti vamente descubram e valorizem o fato de que o que buscam saber vindo de fora eles já trazem dentro de si como com acerto afirma ACS Escobar 1986 Entretanto a postura do coordenador não deve ser passiva esperando psicanaliticamente que o es tudante traga espontaneamente suas questões Temos observado melhores rendimentos nos grupos quando os coordenadores estimulam seus alunos a discutir casos clínicos A essa discussão os professores acres centam as experiências que tiveram enquanto alunos ou mesmo depois de formados e as situações difíceis por que passaram Paulatina e gradualmente poderão ser introduzidas condutas mais adequadas sempre com base nas situações apresentadas E na reunião de coordenação didática que os co ordenadores dos grupos de reflexão trocam experiên cias São discutidas as dificuldades encontradas com os diferentes grupos de alunos a condução dos semi nários teóricos os momentos críticos de cada grupo dando sempre atenção especial à maneira como se estabelece a relação dos coordenadores com seus res pectivos grupos As técnicas empregadas no funcionamento des tes grupos quer de reflexão quer de seminários teó ricos são no sentido de estimular a participação ativa dos membros possibilitando a expressão de cada um sempre numa linguagem acessível de maneira que a comunicação possa efetivamente ser conseguida da forma mais ampla possível A coordenação didática tem por finalidade não só observar o cumprimento do programa preestabelecido como também a evolução de cada grupo com seus coordenadores Temos observado que essas reuniões têm contribu ído para que coordenadores em dificuldades com seus respectivos grupos possam vir a superar fases críticas Essas fases representam em sua maioria expressões de grande resistência dos grupos em aceitar vivências emo cionais dos pacientes ou dos próprios alunos ou do ma terial teórico em si Por outro lado verificamos existi rem grupos que se identificam com uma Medicina mais organicista em que o aspecto emocional a dimensão psicodinâmica do paciente não é levado em conta Nes ses casos procuramos através da prática discussões de casos etc diluir polarizações Acreditamos que sem essas reuniões de coorde nação didática o curso sem dúvida não teria os re sultados que vêm apresentando até agora Essas fases são também discutidas pelo próprio grupo através do que chamamos avaliações grupais que são realizadas posteriormente ao final de cada semestre ou sempre que forem necessárias Essas avaliações feitas pelos alunos têm contribuído sobremaneira para o aprimo ramento do curso Ao final do curso são apresentados pelos alu nos trabalhos escritos de conclusão Essa etapa tem apresentado resultados surpreendentes além de se constituir em atividade estimulante tanto para pro fessores quanto para alunos Estes muitas vezes têm sua primeira oportunidade de redigir trabalhos científicos e de pesquisa Os temas são livres esco lhidos pelos alunos que se reúnem em grupos para seus trabalhos Assuntos dos mais variados têm sido escolhidos sendo temas de preferência A Sexualida de do Adolescente Medicina Alternativa Equipe de Saúde Identidade Médica e Escolha de Especialida de Estresse O Velho na Sociedade Relação Médico Paciente em Hospital de Ensino Relação Estudante Paciente Medicina Psicossomática Gravidez Parto e Puerpério A Figura Mítica do Médico A Criança com Medo de Médico O Paciente Crônico e muitos outros Vários destes trabalhos foram realizados a partir de pesquisas de campo com entrevistas ques tionários grupocontrole Temos tido a oportunida de de promover a publicação em revistas científicas de trabalhos selecionados tais como os de A Almei da e colaboradores 1988 AL DAnnunciacão e colaboradores 1990 KR Camargo Jr e colabora dores 1991 M Correa e colaboradores 1981 A Lewandowski e colaboradores A Lorga Jr e cola boradores 1982 C Motta e colaboradores 1986 e GMN Silva Jr e colaboradores 1983 Como forma de avaliação dos alunos além dos trabalhos escritos são realizadas provas com ques tões dissertativas Essas provas são posteriormente discutidas nos grupos numa revisão quando apro veitamos para esclarecer dúvidas e aprofundar os co nhecimentos Psicossomaticaindd 56 Psicossomaticaindd 56 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensamos neste capítulo transmitir as experiên cias que temos desenvolvido com o ensino de Psicolo gia Médica Deixamos propositalmente a concepção teórica ou melhor os fundamentos teóricos da Psico logia Médica sem o aprofundamento merecido pois pensamos priorizar aqui as dificuldades que temos en contrado na prática do ensino propriamente dito O relato de nossa experiência portanto se justifica como tentativa de procurar definir o lugar da Psicologia Mé dica na formação em Medicina tentando para isso incluíla no currículo médico Após 13 anos procuran do aprimorar a experiência neste campo percebemos que muito caminho há pela frente Conseguimos bons frutos entretanto muito há o que desenvolver Per cebemos que nossa participação efetiva na formação do estudante de Medicina necessita maior amplitude ou seja é preciso sistematizar nossa participação além do terceiro ano especialmente durante o internato em Medicina Aí é que o aluno tendo o seu paciente in crementando as vivências desta relação vai necessitar de um suporte para este desenvolvimento Como a prática médica se intensifica Acreditamos que nossa participação principalmente na discussão de casos clínicos seja fundamental para ajudar na consoli dação de uma identidade médica mais humana Entretanto temos observado resultados cons trutivos O trabalho realizado pelo Setor de Psicolo gia Médica nas enfermarias do HUPE junto à equipe e aos pacientes por exemplo tem sido cada vez mais bem recebido quando não solicitado explicitamen te Os pedidos de parecer ou interconsulta dirigidos à Psiquiatria ou à Psicologia Médica passam de for ma crescente a expressar esta demanda Não raro encontramos exalunos que nos relatam abordagens que exemplificam a compreensão mais global que adotaram dos pacientes a quem prestam assistência Outros referem que buscam aplicar nos setores onde atuam os conhecimentos assimilados Por outro lado temos ampliado o curso de ex tensão em nível de posgraduação possibilitando com isso prestar uma maior assistência às enferma rias e ambulatórios do HUPE Visamos uma maior integração com os professores de várias clínicas e consequentemente procuramos atingir também os alunos nos vários níveis de sua formação Muito ainda poderia ser acrescentado Especial mente no que diz respeito a uma desejada integração com outras disciplinas do ensino médico Cabenos entretanto finalizar deixando claro que nossos pla nos para o futuro se guiam por uma linha mestra a formação de médicos essencialmente voltados para a dimensão humana da Medicina Esperamos trabalhando o futuro REFERÊNCIAS Almeida A Alves A Barros A Nakajima M Salgado Jr W Medicina Alternativa Psicossomzitica OEDIP v3 n 1 1988 DAnnunciação A L Coelho A Mafra C Esteves G A Figura Mitica do Médico Analisada por Pacientes do HUPE Iniorm Psiq Rio de Janeiro v9 n1 2730 1990 Balint M O Médico seu Pacienre e a Doença Rio de JaneiroSão Paulo Livraria Atheneu 1975 Bleger J Temas de Psicologia Buenos Aires Edieiones Nueva Vision 1978 Camargo Jr K R Binenbojm C O Estudante de Medicina e o Pacientc Relato de um Caso Inform Psiq Rio de Janeiro v 10 n 2 p 5154 1991 Camargo Jr K R Chazan L F A Crise do Terceiro Ano e o Curso de Psicologia Médica Infonn Psiq Rio de Janeiro v 6 ri 34 p 9092 1987 Corrêa M Ramalho M Ahramovith P Marrocos R e Beck V O Paciente Terminal Inform Psiq Rio de Janeiro v 2 n 3 p 2934 1981 Eksterman A Formação Psicossomática em Ciéncias da Saúde o Ensino de Psicologia Médica Buenos Aires Congresso de Medici na Psicosomática en La Cuenca del Plata 1977 Escobar A C S Psicologia Médica instituição e Ensino Psicosso mática OEDIP v 1 ano 1 n 2 1986 Fahaer R Magaz A Temas de Psicología Médica Buenos Aires CTM 1986 Fernandez F A Psicologia MédiCayoCia1 Sevilla Paz Montal vo 1974 Jeammet P Reynaud M Consoli S Manual de Psicologia Mëdi ca São Paulo Durhan 1989 Lewandowski A BohringerB Bohringer P Silva D DAcri A Nóvoa C M Ulcera de Stress Visão Atual Psieossomatiea v 2 n 3 julser 1987 Lorga Jr A Limp C A Silveira G Camargo Jr K R O Paciente Crónico Infomt Psiq Rio de Janeiro v3 n 1 p 1114 1982 Mello Filho J Concepçáo Psicossomáticas Visao Atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1978 Mello Filho J Queiroz A Figlioulo R Psicossomatica Ensino e Prática Médica Jornal Brasileira de Medicina v 30 n 4 p 8892 abr 1976 Moita C Carvalho C Afonso D Silva E A Criança com Medo de Médico Inform Psiq Rio de Janeiro v 5 n 3 p7073 1986 MunizJ R Chazan L F Miodownik B1Jina Experiência com Grupos de Ensino de Psicologia Medica Inform Psiq Rio de Ja neiro v 2 n 1 p 1516 jariÍcv 1981 MunizJ R Integração da Psiquiatria numa Unidade Clinica de Ado lescentes Intbrm PSiq Rio de Janeiro v 4 n 4 p 7780 1983 Perestrc1loDA Medicina da Pessoa Rio de Janeiro Livraria Atheneu 1974 Pessoa F Poemas Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 Pikunas J Desenvolvtmento Humano São Paulo McGrawHill 1979 Roceo R P O Estudante de Medicina e o Paciente Rio de Janeiro Achiame 1979 Schneider P B Psicologia Aplicada a la Práelica Médica Buenos Aires Paidos 1974 Silva Jr G M N O Estudamc de Medictna C o Paciente Termtnal Inform PSíq Rio de Janeiro v 4 n 4 p 8589 1983 Zaidhaft S Morte e Formaçao Módica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 57 Psicossomaticaindd 57 05012010 121203 05012010 121203 Recebe o estudante da instituição de ensino re ferências da relação com o enfermo que irá ser sua constante na prática pósdiplomação Somos daqueles que valorizam que quanto mais precoce esse tipo de ensino seja administrado no cur rículo obrigatório ou em cursos eletivos melhores e mais aptos serão os diplomados em Medicina Para tanto interrogase existe disponibilidade temporal no currículo de graduação Quem deve en sinála quando e por quanto tempo Que valor terá esse aprendizado no âmbito das instituições universi tárias e nos trabalhos que o aluno executa em locais fora do controle da Escola Médica Como e quem deve avaliálo sob esse aspecto Perguntas desse tipo nem sempre ensejam res postas objetivas eou definitivas e o propósito da monografia é apontar aspectos do problema e sugerir possíveis soluções O PACIENTE Na realidade sócioeconômicocultural em que vivemos são muitos os doentes de que iremos cuidar com características próprias do grupo de que provêm seus conceitos e preconceitos em relação aos sistemas de saúde vigentes e em última instância aos médi cos e à equipe de saúde onde deverá estar inserido o estudante de Medicina Assim este assistirá e par ticipará dos eventos que se sucedem muitas vezes passivamente até que no decorrer do curso ganhe segurança e conhecimentos para vôo próprio O que costuma ocorrer no período do internato Aspectos sociais culturais e econômicos A relação entre o enfermo e a equipe de saúde que o trata especialmente a binária com o médi co deve levar em consideração aspectos outros que não apenas as personalidades envolvidas Portanto há que se destacar e conhecer a cultura e a sociedade em que vive o paciente No Brasil com seus conhe cidos regionalismos este pode ser ponto importante que influencia um bom ou mau relacionamento das partes interessadas Ao abordar aspectos gerais do doente consi dero as dificuldades e diferenças existentes entre o enfermo analfabeto inculto frequentemente sem di nheiro que irá recorrer aos ambulatórios e hospitais de caridade estaduais municipais e os que mantêm convênios com a previdência aí incluídos muitos dos universitários e o paciente rico culto que terá meios de usar consultórios e hospitais particulares Em nossos serviços nos hospitais de atendimento e ensino de modo geral nos defrontamos com doentes do primeiro tipo e é desses que irei me ocupar mais detalhadamente Assinalo que a grande maioria das publicações estrangeiras que tratam da relação médi copaciente o faz à base de vivências com doentes de melhor nível culturaleconômico tendo assim pouco a ver com a nossa realidade Março de 1988 Quase ao mesmo tempo que os alunos do 6 período chega J ao hospital Trazido de Manhumirim Minas Gerais por primo que mora no Rio é um rapaz de 17 anos lavrador e que nas últimas semanas mal pode fazer os trabalhos de en xada a que estava habituado cansaço e taquicardia o dificultam É retraído não olha o interlocutor faz longos silêncios para depois responder por monossí labos Acentuada anemia ao exame físico é o único achado importante Por sorteio será seu quartanista R nascido em Copacabana com excelentes notas de aproveitamento no 3o ano que pouco consegue no relacionamento No terceiro dia faço a troca coloco M lotado na mesma enfermaria aluno não tão bri lhante oriundo de Manhuaçu cidade vizinha da de J e que se mostrava interessado nele O rapport é instantâneo a começar pelo sota que Em dois dias J já fala espontaneamente ri co labora com a equipe e em dez dias obtém alta após transfusão de sangue e tratamento da necatorose M nos diz o que fez recordou sua cidade as pescarias a lavoura do milho o bom tratamento que o hospital 4 RELAÇÃO ESTUDANTE DE MEDICINAPACIENTE Rodolpho Paulo Rocco Psicossomaticaindd 58 Psicossomaticaindd 58 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 59 proporcionava conversando muito enquanto fazia a evolução diária O intuído mostrouse verdadeiro e a lição é cla ra o paciente identificouse com aquele próximo de suas raízes culturais e valores de vida que o tranquili zou e com quem pôde colaborar na própria melhoria Lembro aquilo que é tantas vezes esquecido o enfer mo fora do seu ambiente social e cultural desenrai zado tornase com frequência melancólico deprimi do desconfiado e algumas vezes hostil à abordagem médica especialmente se esta vem acompanhada de instrumental agressivo Para muitos a internação é ameaçadora pois aprenderam que só se hospitalizam casos graves ou fatais Quantos perdem tempo precioso sem procu rar assistência mais efetiva mantidos por terapêu ticas duvidosas receitadas por vizinhos curiosos empregados de farmácia Acrescento os medica mentos difundidos pela propaganda leiga de pou co ou nenhum valor lamentável e mercantilistica mente anunciados por figuras de sucesso por vezes retardam o diagnóstico de doenças graves Lembro outros exemplos e todos nós recordamos vários famílias oriundas do Mediterrâneo em que o comer bem e o estar à mesa é o momento por tradição importante do dia e nas quais o controle do diabete será difícil o hábito de induzir jovens a beber pinga tão difundido no interior como prova de virilidade as muitas proibições de alimentos que fazem mal ao fígado etc O entendimento pelo paciente de que o médico não é mais a figura mítica idealizada e supervalori zada de outros tempos as reivindicações da catego ria médica equiparandose aos outros assalariados a contestação frequente dos atos médicos e da própria Medicina como promotores maiores da saúde vêm produzindo profundas variações no relacionamento médicopaciente O que era uma relação entre o que sabe o que manda o que tem poder e aquele que necessita não sabe oprimido dirigido e obediente evoluiu para um nivelamento mais aberto e adequa do Nas relações diretas pessoais o médico deve discutir com o doente o porquê das condutas a se rem seguidas sejam exames complementares ou te rapêutica comprometendoo com o atendimento e eventualmente reformulando orientações de comum acordo O progressivo conhecimento pelo enfermo de seus direitos em relação à obtenção ou manuten ção da saúde enseja manifestações mais agressivas e contestadoras do interessado produzindo com frequência respostas de igual teor do médico es pecificamente daqueles ainda encastelados no saber e na onipotência isolados do contexto social que os rodeia Estar doente A falta ou perturbação da saúde é sentida e so frida de maneira pessoal variável de acordo com as vivências próprias anteriores de enfermidades na família ou no grupo de relações As experiências in dividuais do adoecer colocam em jogo mecanismos inconscientes de adaptação e defesa de regressão negação e racionalização principalmente Regressão O sentimento de estar doente pode pro vocála em muitas pessoas e é termo psicanalítico usado para descrever uma volta a etapas iniciais do desenvolvimento emocional O doente volta a com portarse como criança que foi isto é ele também fica numa posição frágil dependente abrindo mão de dirigir sua vida e de se bastar em atividades corri queiras Esta dependência é proporcional à gravidade da doen ça e às fantasias que o paciente faz sobre a mesma condizentes ou não com a realidade Assim o doente que tem de guardar o leito precisa de ou tra pessoa até para suas necessidades mais básicas fisiológicas alimentares de locomoção Seu conta to com o mundo é feito através das pessoas a que é ligado e que se disponham a trazer o lá fora para ele A presença do médico é aguardada com a mesma expectativa com que em outras épocas aguardava a presença da mãe que lhe trazia conforto Da mesma forma que a criança tentava adivi nhar o que havia por trás das palavras da mãe pro curando descobrir no tom de voz no olhar ou num gesto o que se passava e se poderia ficar tranquila ou não o doente hoje procura saber o que o médico está pensando se está lhe escondendo algo se ele pode ficar sereno ou não Porque regredido necessita o paciente de mais cuidado emocional pois só atendido nestas fragilida des psiquicas é que terá condições de seguir o trata mento adequado a sua afecção física Portanto se tentarmos tratar da doença ig norando o doente veremos que os resultados não serão satisfatórios Ao aprofundarmos o porquê da terapêutica não fazer efeito verificamos que ela não foi observada e o remédio não foi tomado conforme indicação mas segundo uma amiga que teve a mes ma coisa e se curou determinadas prescrições não foram seguidas porque não se pensou que fossem importantes Isso significa que na medida em que o doente não for compreendido pelo seu médico não se juntará a ele no processo de cura Esta aliança se fará com a pessoa que der apoio às sensações de desamparo e insegurança que a regressão desenca deou e a partir daí poderá seguir integralmente as prescrições Psicossomaticaindd 59 Psicossomaticaindd 59 05012010 121204 05012010 121204 60 Mello Filho Burd e cols Negação É um conceito psicanalítico desenvolvido por Anna Freud que o definiu como um mecanisno de defesa de que o inconsciente lança mão para se defender de sentimentos dolorosos A negação seria assim a substituição de algum aspecto insuportável da realidade por uma ilusão desejada Como o negar a realidade vai de encontro a uma função precípua da consciência que é a de reconhecêla e valorála criticamente para que se faça a negação é necessária a ocorrência de algo um sintoma um trauma que ameace a percepção do real Lembrome da mãe de um paciente de 14 anos que sofreu sério acidente de motocicleta do qual veio a falecer e que junto ao filho não só via o estado gravíssimo em que ele se encontrava como era man tida a par pelos médioos dos resultados de todos os exames que eram feitos Quando a avó do menino telefonou alarmada para saber o que havia aconteci do ela transmitiu todas as informações corretas e a pressão está zero para em seguida acalmála mas não se preocupe pois está tudo indo bem Sob o choque ela perdeu a capacidade de valo rar criticamente a realidade e usou a negação pres são zero assim como todas as outras evidências do caso não era coisa alguma a ilusão desejada era que tudo estivesse bem pois assim o filho se salvaria A negação é um dos mecanismos de defesa mais arcaicos pois ao escotomizar a percepção da reali dade no nosso caso a doença impede qualquer tentativa de alterála Isso frequentemente provoca reações hostis do médico ou estudante de Medicina quando desconhecem o mecanismo inconsciente que rege tais atitudes Racionalização Segundo Laplanche e Pontalis 1970 é o processo pelo qual o indivíduo procura uma explicação coerente do ponto de vista lógico para uma ação ou ideia de cujos verdadeiros motivos não se apercebe por retirar o afeto da situação É um serviço de censura que a pessoa exerce sobre si mes ma frente a situações difíceis Embora não permita que o paciente perceba de forma adequada sua doen ça ainda é um mecanismo que permite a ele cum prir as prescrições feitas pelo médico sendo por isso menos prejudicial que a negação Como as emoções desagradáveis referentes à doença não são admiti das elas não têm condições de ser elaboradas o que muitas vezes faz com que surjam fenômenos substi tutivos como insônia diarreia ou outros quaisquer sintomas psicossomáticos Exemplifico com o caso de um cliente que teve por um desastre automobilístico amputada a perna direita e que dizia às visitas uma semana após Mas que sorte Imagine se fosse meu irmão que é atleta Blum 1964 destaca outra frequente reação frente à enfermidade o medo Medo que a doença impeça projetos e desejos medo da dor ou do mal estar medo do desconhecido evolução da doença do resultado do tratamento e finalmente o medo maior da morte A índole da afecção temperamento experiência e cultura do enfermo orientarão para tal ou qual medo que predominantemente irá sentir O adoecer do médico é todo um problema à par te pelas informações que este tipo especial de doente possui e pelas próprias complexidades do ser médi co A este respeito Hoirisch 1976 na sua tese sobre Identidade Médica escreve Na crise de identidade do médico enfermo agigantase muitas vezes no con teúdo manifesto não o temor de perder a vida mas sim o medo de não voltar a ser médico Perguntase pode o médico doente tratar de outros Direitos e ganhos O papel de doente como vários outros na so ciedade é regulado e codificado por determinadas expectativas de conduta e comportamento que in cluem obrigações e privilégios Depois da abordagem de Parsons 1968 da modema prática médica muito pouco pôde ser acrescentado ao que ele então expôs sobre o papel social do enfermo É destacada em pri meiro lugar a inserção das responsabilidades e obri gações sociais O enfermo não pode tomar conta de si regressando ao estado de dependente da sua pró pria família ou da grande família social e a socieda de passa a ser mãe através das entidades estatais de previdência ou de seguros O estar doente é um direi to do enfermo e reconhecido como obrigação social desde que legitimado e atestado pelo médico que se constitui então numa verdadeira corte de apelação Na prática essa inserção se comprova por exemplo pelo não poder trabalhar ou não fazer o serviço mi litar Em segundo lugar não se espera que a pessoa fique boa por magia ou apenas por desejo próprio pois na maior parte das vezes não é responsável pela doença Nesse sentido ela é também isenta de res ponsabilidade está numa condição em que tem de ser amparada e tem direito a ajuda da família ou do estado A dependência evoca as recordações infantis que todos tivemos quando doentes cuidado especial da mãe em detrimento dos irmãos saudáveis comida na cama pratos especiais brinquedos novos Há tra ços comuns de personalidade dos enfermos regredi dos que se exagerados incomodam e até afastam os responsáveis pela terapêutica sejam familiares ou os membros da equipe de saúde destacandose egocen trismo interesses restritos dependência emocional e Psicossomaticaindd 60 Psicossomaticaindd 60 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 61 hipocondria E claro que se é percebida a não colabo ração do doente no tratamento se a vontade de ficar enfermo é maior do que a de curar as atenções e os privilégios diminuirão A mobilização daqueles que os atendem pro porcionandolhes carinho atenção e cuidados que habitualmente seriam apenas normais ou não exis tiriam dá aos enfermos compensações pelo sofrer primário da afecção Esse ganho secundário é eviden ciado a todo momento a cama da mãe o presente a enfermeiramãe as visitas as revistas e os livros a comida especial o remédio nas horas certas Nos hos pitais é frequente a recusa da alta por conta desses benefícios que cessarão com o retorno ao barraco ou às condições ruins externas Se não conscientizada e trabalhada pela equipe de saúde e pelo paciente essa recusa leva ao hospitalismo isto é à permanên cia indevida e desnecessária em termos de recupera ção de Saúde Entre nós destaco os aspectos sociais acrescidos aos emocionais é a criança ou adulto que não tem condições adequadas para comer vestir e ob ter remédios fora do hospital Deveres e perdas Esperase do doente que deseje a cura e a procu re Existe uma série de leis que protegem o enfermo assegurandolhe o direito de se cuidar asseguramen to este proporcionado tanto através do tempo licen ça no trabalho quanto de dinheiro seguros e subsí dios E a parte que cabe à sociedade fazer para que um de seus membros possa se curar A outra parte só pode ser feita pelo paciente e é evidenciada através do seu empenho em se tratar Procurar o atendimento cumprir as prescrições feitas cooperar com o médico são deveres do paciente E quando este não o faz desencadeia conflitos em várias áreas por exemplo arriscandose a perder o emprego e ao surgimento de problemas matrimoniais e familiares Algumas vezes o médico defrontase com os si muladores que usam a doença para auferir lucros tanto de carinho e proteção quanto de seguros e licen ças O que se pode fazer para ajudálos Inicialmente entender que é uma atitude doentia a pessoa se des valorizar e viver como inválido abrindo mão de toda uma série de riquezas e benefícios que a saúde propor ciona Vale então mostrar a inexistência de qualquer doença física naquele momento utilizandose da ob servação clínica arguta e dos exames complementares bem solicitados Confirmada a não afecção física cabe ao médico fazêlo entender que está usando a doença como expressão de outra carência e eventualmente encaminhálo ao psicólogo ou ao psiquiatra A neurose é uma enfermidade que adquire lu gar peculiar o neurótico era tido como responsável pela própria doença e não podia reivindicar o mesmo status de doente que tinham outros enfermos Após o desenvolvimento da psicanálise o enfoque dos neuróticos mudou A maior compreensão do incons ciente principalmente a partir das contribuições da escola kleiniana demonstrou que o ser humano não e um bloco monolítico mas tem dentro de si vários aspectos divididos e conflitantes que podem tornar se responsáveis pelo fato de o paciente não cooperar como forma de boicote a si próprio ou a alguma re lação sua Conforme o médico se torna aliado de sua parte psiquicamente saudável está feita a aliança que levará a termo a luta pela cura Se o paciente é doente mental e o psicótico é o exemplo certamente está impossibilitado de as sumir a obrigação de se curar ou procurar auxílio A sociedade se compromete a cuidálo e o faz na maioria das vezes internandoo e segregandoo do seu convívio social tomando medidas médicosociais sem consultálo as mais das vezes com apoio da família que não tem como manter exemplificando o filho esquizofrênico em casa Goffman 1951 considera cinco tipos diferentes do que chamou de instituições totais Englobou sob este título prisões internatos campos de concentra ção quartéis e certos tipos de hospitais Segundo ele são instituições que dificultam a comunicação entre seus membros e a destes com o exterior desculturam e desindividualizam os internados tratandoos como siglas ou números atingem o sentimento de privaci dade dos indivíduos ao obrigálos a executarem tare fas íntimas em regime de coletividade Dentre essas projetadas para amparar as pessoas incapazes e que representam ameaças para a sociedade estão os hos pitais psiquiátricos além dos sanatórios para tuber culose e os leprosários A perda da identidade é sentida pelos doentes quando são hospitalizados pois ao entrarem trazem consigo crenças valores atitudes relações sociais roupas Para facilitar o manejo dos enfermos e até diminuir as diferenças para poder tratálos maciça mente certas instituições privam seus pacientes das representações de si mesmos Recebem uniformes leitos e quartos numerados passando a ser um doen te entre muitos O controle inclui além dos recursos a própria mentalidade Certas organizações impedem os pacientes de usarem o telefone e outros meios de comunicação e também informarse sobre o hospital e particularmente sobre seu próprio estado esta é uma das fontes de queixa mais importante num hos pital geral O confinamento a um determinado setor do qual o paciente não pode sair sem autorização Psicossomaticaindd 61 Psicossomaticaindd 61 05012010 121204 05012010 121204 62 Mello Filho Burd e cols se por um lado permite saber onde ele se encontra por outro tende a isolálo e o impede de estabelecer relações sociais É típico o exemplo das enfermarias e quartos dos hospitais psiquiátricos O hospital não inicia o processo de despersonalização consequência as mais das vezes da própria vida impessoal das gran des cidades mas decerto pode colaborar em muito para intensificálo O ESTUDANTE Adolescência É o período de transição entre os polos da infân cia e da idade adulta apresentando como caracterís tica bem definida o aparecimento de uma nova forma biológica e psicossocial Do lado biológico o homem tornase reprodutor e de outro lado há uma reorga nização de sua personalidade assim como uma exi gência de atuação por parte da sociedade Esta lhe exigirá a observância de papéis isto é de pensar e agir de determinada maneira e o que é a crise da adolescência provoca uma crise na família Riviere diz que há um processo dialético entre o grupo fami liar cuja tarefa é socializar o adolescente e o próprio que tenta se colocar e reivindicar de acordo com suas novas exigências Deutsch 1974 mostra que a estrutura social atual dilatou o período de adolescência pois na me dida que se estendem as metas educacionais e que a sociedade não só permite mas também estimula que os jovens adiem para uma idade posterior a toma da de responsabilidades adultas a adolescência vai até os 20 anos Hoirisch 1976 aumenta esse limite achando que pode ir até os 25 anos Aberastury e Knobel 1971 sintetizam as carac terísticas do adolescente no que chamam de síndro me normal da adolescência 1 Busca de si mesmo e de sua identidade 2 Tendência a formar grupos que permitem diluir as responsabilidades de suas ações e até mesmo podem levar a atuações de aparência psicopática porem normais para esta etapa do desenvolvi mento 3 Necessidade de intelectualizar e fantasiar que aparece na preocupação do adolescente por prin cípios éticos filosóficos e sociais 4 Crise religiosa oscilando do ateísmo ao misticis mo 5 Crise na estruturação da noção do tempo vivido ora de modo infantil o aluno que se sente repro vado no primeiro dia de aula porque não vai ter tempo de estudar todo o programa ora de for ma mais adulta permitindo formular no presente projetos para o futuro 6 Evolução da sexualidade desde o autoerotismo à aquisição de uma vida genital adulta 7 Atitude social reivindicatória com tendência a as sumir atitudes antissociais diretamente relacio nada com o modo como é recebido pelo mundo adulto 8 Instabilidade de conduta variando do hostil ao amoroso 9 Necessidade de separarse progressivamente dos pais ou de seus substitutos 10 Variações constantes do humor irritabilidade depressão euforia A compreensão da adolescência possibilita pois um melhor entendimento do estudante de Medicina que na sua maioria é constituído de jovens dessa fai xa etária A dinâmica da relação e a elaboração dos con flitos inerentes a essa fase podem depender de três fatores 1 Posição do adulto frente aos questionamentos do adolescente 2 intensidade com que o adolescente precisa exerci tar suas ideias 3 Enfoque que o grupo social dá aos conflitos A posição dos adultos frente aos questionamen tos propostos pelo adolescente vai depender não só de como incorporou estereótipos sociais mas tam bém de como estão elaboradas suas ansiedades in conscientes É muito comum o adolescente despertar inveja no adulto por ser o que tem a vida pela frente e por ser seu competidor aquele que pode vir a to mar o seu lugar É importante que o professor saiba que pode ter inveja do estudante quando negada pode dar lugar a opressão sobre o aluno Estas fan tasias inconscientes estão ligadas a fases bem ante riores do desenvolvimento da espécie Experiências com macacos no cativeiro mostram que numa típica família de monos o pai mata o filho quando chega a adolescência Expectativas e ansiedades Muitas vezes o estudante de Medicina inicia o curso sem a noção exata da escolha que fez Esta pode corresponder a uma idealização feita por ele ou pela família perpetuar a tradição médica quando com parentes médicos vocação para fazer o bem e servir ao próximo e à comunidade sensibilidade es pecial para o sofrimento alheio Além disso há todo Psicossomaticaindd 62 Psicossomaticaindd 62 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 63 um prestígio que o status de médico ainda confere a magia e o poder de curar um domínio sobre as pes soas A compreensão de que estas razões não esgota vam as causas que justificassem a escolha da Medicina levou professores a se questionarem mais profunda mente Turrel enfatiza as motivações inconscientes Identificação maior ou menor com os pais e que o leva a preservar e continuar seus valores Desejo de expiar impulsos agressivos em que o exercício da Medicina o curar representa uma repa ração da agressividade sendo então uma elaboração positiva dos conflitos infantis inconscientes Curiosidade inconsciente por conhecer o corpo da mãe A criança possui normalmente esta curiosidade o corpo da mãe e algo mágico do qual sai nova vida Este interesse pode ter sido sentido pela crian ça como proibido e portanto reprimido A Medicina pode ser uma forma de resolvêlo sem o sentimento de fazer algo errado condenado Negação da morte O ser médico corresponderia a uma fantasia mágica de deter a morte Por mais que racionalmente ele saiba que vai morrer como toda a espécie há uma fantasia inconsciente de que ele poderá controlar a saúde e curar todos os males de modo onipotente Sobre a escolha da Medicina Blaya 1972 assi nala é antes de tudo uma curiosidade e um desejo consciente ou inconsciente de saber mais e cuidar melhor daquilo que sentimos como doente em nós mesmos Turrel destaca as grandes contradições com que se depara o estudante de Medicina geralmen te emergente das classes média e alta onde os pa drões éticos são muito valorizados Foramlhe sempre transmitidas inibições e cautelas referentes a sexo e se lhe exige que supere essas proibições para estudar a estrutura anatômica e as funções fisiológicas tem que examinar excrementos que sempre foram vistos com repugnância dissecar cadáveres ele que foi bem educado no respeito aos mortos inspecionar todos os orifícios do corpo humano e examinar o mais ín timo de homens e mulheres dominando sua reação pessoal assistir à morte de um paciente e continuar seu trabalho sem que sua emoção o perturbe O tra balho diário do médico constitui uma transgressão às proibições comuns e isso é exigido do estudante de Medicina implicitamente sem preparo No primeiro ano o estudante começa sua distor cida visão do doente sendo apresentado ao cadáver Diz Mello Filho 1978 oferecemlhe o cadáver como se dissessem estude este corpo sem alma este é seu material de trabalho Pura e simplesmente lhe é en tregue uma parte formalizada para dissecar e apren der e é grotesca a disputa do cadáver recémvindo pelas peças ainda não trabalhadas pela atenção do monitor sobrecarregado A seguir ele se penaliza ou não do pobre animal de experiência esquartejado Ao mesmo tempo o quadronegro cheio de fórmu las lhe mostra como é o funcionamento enzimático do corpo Frequenta laboratórios e entra em contato com máquinas e instrumentos sofisticadíssimos sem a presença do animanobile a ser examinado Logo ele aprende como atuam os remédios e decora suas do ses Tudo isso reforça sua visão da Medicina apenas organicista um preparo para ver doença e não doen tes E de repente lá está ele de branco respeitoso ouvindo a teorização da anamnese e do exame físico daquele que será seu companheiro permanente na relação binária profissional Ate então não lhe foi en sinada coisa alguma sobre a psicologia o sentir o ser da pessoa doente Em algumas faculdades já então tardiamente serão ministrados ensinamentos teóri cos da relação já iniciada Em outras nem isso O absurdo é evidenciado a partir daí São as vocações que se esboroam na realidade pois o es tudante não aguenta o sofrimento do enfermo ou a própria escolha de lidar e aí ele pode começar a entender o que seja morbidez com a dor a penúria a morte restandolhe desistir do curso ou optar pelo distanciamento do enfermo indo para a pesquisa ou laboratório São as reações defensivas da situa ção que o rodeia não participando dos trabalhos da enfermaria não identificando os fatores sociais da doença desqualificando professores para justificar a ausência Mas a maioria prossegue e frequentemente usa para apoio nessa fase de transmissão as atitudes ge rais do professor eu me adaptei vocês têm que se adaptar também É comum o uso de modelos médicos constituí dos pelos docentes Suas atitudes e comportamentos frente ao doente sua segurança e bondade identifi cados e aceitos como adequados são imitados Começa a se tornar real o que haviam intuído ou aprendido nas aulas de Psicologia a pessoa do doente é diferente do caso do doente Aquilo que os grandes clínicos do passado tinham como dom a per cepção integral somatopsíquica do enfermo é agora possível de ser transmitido despertando e aprimo rando os estudantes na relação com o paciente Terão também apoio no intemo ou residente ir mão mais velho de idade próxima à sua que recém sofreu e ainda está elaborando os mesmos problemas Este companheirismo é muito adequado para o bom trabalho das equipes de leito e nos ambulatórios É comum entre nós a especialização precoce sendo frequente alunos de 2o e 3o ano darem plan tões nas maternidades ou atenderem em ambulató rios com mínima supervisão com os óbvios riscos Psicossomaticaindd 63 Psicossomaticaindd 63 05012010 121204 05012010 121204 64 Mello Filho Burd e cols para os doentes e para sua formação Muitas vezes a escolha da especialidade baseiase na identificação com os pais professores ou profissionais de renome predominando assim o aspecto afetivo Relação com os professores O estudante chega à faculdade após exame de seleção aleatória e quase nada sabe sobre suas mo tivações conscientes e muito menos dos aspectos in conscientes envolvidos na escolha profissional Traz os vícios e conceitos do ensino formal do ensino mé dio e espera encontrar a mesma maneira de ensinar que lhe foi proporcionada até então Terá poucas surpresas Exceto em algumas facul dades que procuraram modificações curriculares mais radicais e consentâneas com o moderno ensino e a de Brasília foi o exemplo as demais limitamse a qua se só transmitir os progressos teóricoinstrumentais da profissão voltadas ainda para a prática liberal em extinção através de docentes que se tornam meros repetidores da experiência alheia lida e ouvida em livros revistas e estágios no exterior Como as pesqui sas nacionais originais e voltadas para os interesses da saúde do país são poucas e mal dotadas mesmo este estudo teórico feito tendo por base uma realida de que não a nossa O ensino continua em muitas das faculdades bancário isto é alunos sentados nos bancos ouvin tes atentos copiando as aulas em detrimento do ou tro problemático questionador em que educador e educando aprendem juntos trocando vivências pro blemas e experiências dialogando sem dominação de uma parte sobre a outra Isso requer sem dúvida que haja plena liberdade de expressão para pesqui sar criar construir aventurarse sem opressão e sem medo um dos ideais universitários Mas lá estão eles frente a frente Os estudantes inseguros e algo assustados pelas experiências e sen timentos novos que experimentam a todo momento E os professores novos ou velhos inquietos ou passi vos cansados ou dispostos e que têm entre si pontos comuns São abnegados e mal remunerados quase sempre não sabem ainda reivindicar quase sempre são modelos para os alunos sempre De modo ge ral não têm formação didática não aprenderam para exercer a função Dão aulas teóricas e práticas por imitação de modelos antigos que os impressionaram anteriormente Podem ser modelos bons ou maus Como adolescente que muitas vezes é o estu dante considera como bom aquele que lhe seja mais próximo por quem não se sinta ameaçado Este será o eleito para uma identificação sem ser necessaria mente o bom como médico Da mesma forma que um bom profissional que não estabelece relação sa tisfatória com os alunos pode ser rechaçado e com esta rejeição vão de roldão todas as suas demais qua lidades A contestação estará intimamente ligada à relação estabelecida com o professor e será menor quando houver melhor relação O monitor o residente o auxiliar de ensino possuem um papel muito importante Eles poderão servir como degrau intermediário entre o professor mais graduado e o estudante Sendo mais próximos de idade e de interesses poderão atuar como irmão mais velho aquele que por vivência pessoal mostra como funcionam os ensinamentos do pai Assim o estudante se permitirá mostrar suas dúvidas e fracas sos com menos temor e também aceitará com mais tranquilidade as críticas Docente bom será o que além da postura da correção e elegância no falar do conteúdo das aulas favorecer o contato com os alunos com a motivação humana da profissão o encarar prático da realidade social responsável tantas vezes pela doença ali expos ta o que dá uma visão mais completa do problema e que vem ao encontro da preocupação éticosocial que é tão marcada no estudante Docente mau é o que não se dá emocionalmen te ao enfermo e ao grupo de estudantes procurando manterse dominador sobre a equipe de saúde de fendendose com a onisciência que pretende ter O bom professor não nega as dificuldades emo cionais que sentiu naquelas fases diversas do curso de formação e identificase assim facilmente com o aluno A resposta é sempre gratificante e reconhecida no interesse assiduidade motivação e atenção dos estudantes Experiências várias mostram que a relação de professores e estudantes e da própria equipe de saú de entre si melhora quando compartilham de recrea ções culturais sociais e esportivas das quais às vezes também participam pacientes Há que se valorizar o lúdico RELAÇÃO ESTUDANTEPACIENTE O aluno que segue exclusivamente o currículo da maioria das faculdades só no 3o ano ou 5o6o pe ríodos terá contatos com doentes Doença aquilo que ele se prepara para curar terá significado diverso de acordo com vivências pessoais anteriores mais ou menos ameaçadoras que ocorre ram nele mesmo doenças eruptivas apendicite amig dalectomia hepatite ou em familiares infarto do pai colecistectomia da mãe pneumonia do irmão ou pri mo Para os poucos que vieram de classe social menos Psicossomaticaindd 64 Psicossomaticaindd 64 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 65 favorecida acrescento irmão morto por desidratação mãe tuberculosa pai com doença de Chagas Alguns no primeiro ou segundo ano na precoce vontade de usar a persona do doutor já examinaram e acompanharam enfermos nas maternidades e hos pitais da periferia e chegam com visões parciais em bora tiradas da realidade do que é a atenção médica aos pobres e carentes de tudo Não é a melhor orien tação porém serão esses mais desenvoltos nas anam neses iniciais que terão menores receios dos doentes e do ambiente hospitalar do que os colegas que cum priram apenas o currículo Isso reforça a suposição de muitos de que o estudante deva já no primeiro ano se incorporar ao hospital onde receberá aulas e parti cipará de visitas sob orientação e supervisão especiais de docentes da área da psicologia médica Frequentemente o terceiranista se questiona que devo exigir de mim Que exigirá de mim o instru tor E o doente Perguntas que mostram a ansiedade e a angústia pelas etapas seguintes da sua formação Roberto Figliuolo 1980 no Hospital Escola São Francisco de Assis da UFRJ fez em 1976 uma experiência com seu grupo de alunos do terceiro ano No primeiro dia de aula pediulhes apenas que fossem conversar com os pacientes com os quais futuramente fariam anamneses Conversa em aberto social diri gida à pessoa sem indagar dados de anamnese nem tinham preparo para isso Aluna L Seu enfermo homem de 60 anos fora internado por grave psoríase generalizada que não respondia aos tratamentos habituais Aspecto exter no desagradável o próprio médico responsável tinha asco de chegar ao leito L sentouse ao lado e puxou conversa o que repetiu até a alta três semanas de pois mal sabendo o que era doença porém conver sando sempre Depois fez anamnese e exame físico sem maiores dificuldades O doente melhorando foi suspenso o corticoide e obteve alta com mínimas le sões Nos poucos dias em que L não compareceu à enfermaria ao encontro ele ficou ansioso e frustra do Não houve preparação para se desligar de L a quem chamava de netinha Retornou em quinze dias piorado com lesões sangrantes apesar de voltar a usar altas doses de corticoides Aluno F Coubelhe um adolescente asmático rebelde querelante viscoso que não estudava mais e brigava constantemente com um sobrinho de cinco anos quando ia para casa Asma quase permanente não respondendo a corticoides e imunossupressores F ouvia e pedia que falasse sobre suas coisas empi nar pipa bola de gude problemas em casa O doente era acompanhado pelo Setor de Psicossomática que encarregou F de sob supervisão prosseguir Modifi couse substancialmente a evolução houve readapta ção doméstica o jovem é agora auxiliar de cozinheiro e voltou a estudar Poucas crises de asma controlada por broncodilatadores não necessitou mais da asma para estabelecer vínculos com os outros O estudante de regra não é preparado para a relação humana que vai estabelecer com o desconhe cido e as explicações que ouviu do instrutor ou que leu sobre técnicas de abordagem de enfermos não bastam para superar as ansiedades do momento Se é retraído introvertido ou inseguro a sensação é pior pois se compara com os outros colegas mais desen voltos e para ele mais aptos Por vezes vê no doente o teste que irá reprovalo tal a ignorância que julga ter Outras vezes se sente invadindo a intimidade do paciente quando este lhe conta aspectos mais reser vados da sua vida É destacada por muitos alunos a falta de priva cidade das enfermarias mesmo as de poucos leitos o que para eles torna difícil ou impossível perguntar e esclarecer tópicos julgados mais delicados da ana mnese como por exemplo hábitos sexuais Sentem se também vigiados pelos outros colegas ou médicos ali presentes e não querem arriscar expor seu pouco conhecimento Alguns até sugerem que as entrevis tas deveriam ser em pequenos consultórios anexos às enfermarias As ansiedades desse período levam os alunos a sentir sintomas ou a apresentar sinais semelhantes aos dos doentes Assim a adenomegalia da infecção da faringe passa a ser a doença de Hodgkin ou a leu cemia temidas o desconforto pósprandial é o câncer gástrico do leito A isso Eksterman denominou hi pocondria transitória do terceiranista A sedução na relação estudantepaciente é tal vez mais frequente que na relação médicopaciente e uma das explicações seria o comportamento niti damente adolescente de alguns alunos que seduzem para agradar ou conquistar o afeto e confiança dos enfermos A sedução pode ser ostensiva apesar de inconsciente Por exemplo a aluna M irrompeu em prantos na sala onde estava seu instrutor Fazia uma sondagem gástrica no seu doente quando ele acari ciou sua coxa Os presentes olharam para a minissaia e nada disseram Ou o da outra aluna morena capi tosa extrovertida que chamava os doentes de meu querido e que após ser solicitada por três dias a palpar os gânglios inguinais do paciente percebeu seu pênis ereto Todavia a sedução é também dos enfermos que presenteiam os estudantes para comprar afeto ou daqueles que querem ou precisam permanecer inter nados e que se especializam em bem contar a história e facilitar o exame físico A relação do estudante e da equipe médica com o enfermo pode ser dificultada por sua segregação pois em determinados lugares há pletora de auxilia Psicossomaticaindd 65 Psicossomaticaindd 65 05012010 121204 05012010 121204 66 Mello Filho Burd e cols res residentes internos outros alunos que con fundem papéis atribuições e obrigações dificultando ao doente conhecer e se ligar a um deles É notório que por estarem no final do aprendizado residentes e internos tudo querem fazer dando poucas oportu nidades aos mais novos O clima da enfermaria é relevante para o bom relacionamento Enfermos mal assistidos irritados descuidados pelos serviçais mostramse refratários à abordagem estudantil A manipulação excessiva faz com que muitos se retraiam se escondam fujam da enfermaria na hora em que atuam os estudantes às vezes em horário distinto do da visita médica diária Por esse motivo os 12 doentes de uma enfermaria entraram em greve recusaramse a ser objeto de au las de demonstração por uma semana Mello Filho contoume de um rapaz internado num hospital de ensino que colocou um cartaz na cama Estou proibi do de conversar e ser examinado por alunos durante uma semana A morte do paciente especialmente se for sú bita ou de jovem repercute nos outros enfermos na equipe de saúde e nos estudantes de forma variada e às vezes inesperada A interna do leito onde morrera na véspera uma moça com linfossarcoma maltratou asperamente e proibiu de entrar na enfermaria os dois quartanistas do leito eles não haviam compa recido no dia fatal estavam num congresso de estu dantes e a falta de providências resultou na morte A moça lhe era muito ligada estivera internada por duas vezes sob seus cuidados e após ai primeira re missão chegaram a sair juntas ir à praia É comum nessas circunstâncias os demais pacientes ficarem deprimidos falarem pouco se retraírem por algum tempo Se isso não for captado pelos responsáveis pela enfermaria os alunos para lá designados podem se sentir ineptos e incapazes de fazer boa anamnese ou evolução diária Falar sobre a morte é então relevante O aluno tem sentimentos complexos sobre a morte do doente frustração decepção quebra da onipotência acusa ção aos que poderiam têla evitado pensamentos so bre sua própria morte etc Será bom médico aquele estudante que sempre sentir a morte do enfermo como uma perda pessoal e não como o nada demais que alguns aprendem dos organicistas Zaidhaft 1990 estuda a fenomenolo gia da morte na formação médica de forma muito adequada É recomendável sua leitura Destaco a grande ajuda que o estudante inclu sive do terceiro ano pode dar à equipe quando se dispõe a permanecer na enfermaria durante a visita familiar Ai ele pode captar e auxiliar na solução de problemas psicossociais e comunitários indo até à vi sita domiciliar após a alta quando necessário Jouval Filho fala da decepção dos alunos do curso de relação médicopaciente da Faculdade de Brasília que participaram como observadores de consultas nos ambulatórios de Sobradinho 1974 desatenção dos médicos para com os enfermos di cotomia entre problemas orgânicos e emocionais que são para quem tem tempo a perder e assim insônia tristeza nervosismo não são valorizados exames complementares desnecessários rapidez das consultas etc Mas a relação estudantepaciente não se pro cessa exclusivamente nos hospitais e ambulatórios de ensino Ela pode ser mais dramática angustiante po rém produtiva nos hospitais de prontosocorro onde via de regra é rápida e sem consequências aparentes e por isso mesmo desvalorizada Entretanto é lá que costumam aparecer claramente a onipotência o sa dismo e a inconsequência de uns poucos médicos e estudantes É cruel e desumana a maneira como alguns tra tam a crise histérica com amônia éter subcutâneo compressão de olhos e ovários a irresponsabilidade de se deixar o caso cirúrgico grave para o plantão seguinte o exame de laboratório que não é feito pois é madrugada Mas os alunos terão também exemplos múltiplos de abnegação responsabilidade profissio nal e até de sacrifício físico nos modelos de que falei anteriormente Plantão na maternidadeescola O intemo acompanha a grávida 7o filho do pré para a sala de partos ela levando a Bíblia da qual lia trechos o que parecia confortála das do res das contrações Aproximase o momento da parição e ela tenta folhear a Bíblia O aluno lhe segura a mão e pergunta que trecho quer ouvir e ela Doutorzinho será que eu vou morrer Ele diz que não claro que não o professor avisa que está nascendo a criança última contração o choro o quase desmaio da mãe o estudante informa que é menino e após os cuidados pede ao professor para leválo à mãe e lhe diz que é o mais bonito que nasceu no plantão Ela chora lhe beija a mão pergunta seu nome e L responde Vai ser o nome do meu filho diz ela Que relação fugaz foi essa que marcará a pa ciente e o aluno pelo resto de suas vidas e que o faz pensar no descanso do plantão e após ouvir o elogio do professor pelo seu componamento humanístico na grandeza da arte que abraçou A educadora francesa Ginette Raimbault falan do sobre o ensino dos aspectos psicológicos da re lação estudantepaciente na universidade destacou Psicossomaticaindd 66 Psicossomaticaindd 66 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 67 que 25 dos alunos eram refratários ao tema e que dos outros suscetíveis uma parte tornavase motiva da para trabalhar na área de saúde mental Lembro que pode ocorrer competição declarada ou não entre os professores e os que atuam na área da Psicologia Médica e os médicos e professores pu ramente organicistas felizmente em decréscimo po dendo daí resultar mensagens duplas contraditórias dirigidas aos estudantes dificultando sua formação e o relacionamento com os pacientes VERIFICAÇÃO DA RELAÇÃO ESTUDANTEPACIENTE Achei importante que as duas partes interessa das na relação fossem ouvidas através de perguntas diretas que apurassem os aspectos relevantes e as dificuldades que ambos experimentam no contato mútuo Foram submetidos a questionários há alguns anos 120 estudantes e 44 pacientes Quis que opi nassem grupos de alunos em níveis diferentes de co nhecimento e prática Os doentes estavam internados em enfermarias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ e da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro O questionário dos pacientes continha além dos dados de identificação apenas uma pergunta Como se sentiu sendo examinado e acompanhado na sua evolução diária por estudantes de Medicina Eralhes apresentado no dia da alta pedindo toda a franqueza na resposta e com os esclarecimentos de que se destinava a trabalho de pesquisa científica Eles poderiam escrever poucos o fizeram ou ditar a resposta O questionário dos estudantes vai abaixo trans crito literalmente Discussão Análise do material obtido a Questionário dos pacientes 41 dos 44 doentes responderam dizendo que se sentiam muito bem sendo examinados pelos estudantes e as justifi cativas variavam desde que percebiam que um ajudava o outro a que é preciso colaborar aju dando como se fosse um filho meu ou os es tudantes são muito delicados e o remédio quem receita mesmo e o médico sempre com o deno minador comum de que o fato de várias pessoas ouvirem sua história é prova de interesse Apenas três revelaram desagrado um disse que é chato ser muito examinado e repetir sempre as mesmas coisas outro que o estudante não passou re médio que curasse e o terceiro contou que após se queixar de várias coisas como falta de ar não poder se locomover barriga grande dor no estô mago o estudante perguntou só isso ao que ele retrucou mais do que isso e eu já tinha mor rido Ressalto o fundamental o doente gosta de e precisa ser ouvido A maneira o modo a técnica é que têm que ser discutidos Há exceções óbvias rela tivas ao estado físico ou psíquico precários má dispo sição naquele dia traumas físicos recentes de exames complementares ou manipulações dolorosas ou mes mo a simples recusa a falar ao aluno ou a deixarse examinar A expressão filho bom referida por vários pa cientes mais idosos pode representar de fato uma identificação amorosa com o bom filho que os cuida porém pode também encobrir a defesa do velho con tra a submissão ao mais jovem Chama a atenção a ausência de críticas do pa ciente examinado por estudantes que podem come ter erros devido a sua suposta precária formação além do desconforto de ser examinado várias vezes Não há correspondência entre o sentimento do estu dante que se considera usando o paciente e o deste que não se sente usado Isso contradiz resultados obtidos em entrevistas com os próprios alunos e durante grupos operativos no hospital universitário onde os pacientes se quei xam deste fato A resposta pode esconder o medo de ser discriminado pela instituição como revide à crítica ou funcionar como penitência por tudo de bom que está recebendo ao assinalar os cuidados e o conforto que esses hospitais de regra proporcionam Uma das respostas críticas merece comentário especial É o caso do paciente com ascite que após expor várias queixas ao estudante ouve dele o só Período do Curso Este questionário destinase a trabalho sobre relacionamento estudantedoente Para que você se sinta à vontade em suas respostas ele não será identificado Por favor não o assine Muito obrigado Questões 1 Vivências e sentimentos quando de suas primeiras anamneses 2 Dificuldades na obtenção da história do paciente 3 Dificuldades que encontrou para fazer o exame físico 4 Que preparo teve previamente O questionário era entregue aos estudantes du rante as tarefas diárias na enfermaria e poderia ser respondido no momento ou quando o desejassem e a maioria levouo para casa Psicossomaticaindd 67 Psicossomaticaindd 67 05012010 121204 05012010 121204 68 Mello Filho Burd e cols isso Parece que aqui o aluno repete automatica mente uma regra da anamnese sem se dar conta da repercussão negativa iatrogênica no paciente talvez por estar distante emocionalmente dele como defesa contra as ansiedades inerentes àquele relacionamen to que é visto como tão difícil b Questionário dos estudantes 119 das 120 respos tas demonstraram o malestar que sente o aluno em examinar o paciente por se achar usandoo sem lhe dar nada em troca Apenas um respondeu que se sentiu bem por se dar conta do prazer que o enfermo tinha em falar de si da sua história e como era importante ouvilo Esta também foi a única exceção na queixa de se sentir exigido a ter que dar o que não tem em termos de diagnóstico eou tratamento na linguagem dos outros entre vistados E necessário mostrar ao estudante que ouvir o paciente representa uma parte importante do apoio de que ele necessita O enfermo assustado com sua doença na situação de dependência que esta lhe con fere muitas vezes sentindose inoportuno porque trabalhoso no ambiente familiar tem afinal alguém que não só escuta suas queixas mas que as valoriza de forma intensa detendose em aspectos que até en tão eram considerados desagradáveis Um aluno do 10o período respondeu que no ambulatório fico tão aflito em ter que pensar numa terapêutica certa que mal ouço o que o doente diz Este comentário ilustra a ansiedade muito comum principalmente entre estudantes no final do curso de necessitar conhecer toda a medicação para tratar de todos os males pois é este o ideal que julga necessá rio atingir para ser médico No item 2 obtenção da história do paciente 87 destacaram como se sentiram tensos por saber que a história tinha que ser colhida e não sabiam como fazêlo Nenhum se referiu a que isso seria conse quência de um bom relacionamento e ao contrário demonstraram que depois da história colhida é que se dedicariam a trabalhar a relação médicopaciente Pareceume que só se sentem capazes disso a partir da prescrição terapêutica Na resposta a estes dois itens chamam a aten ção a insegurança e a ansiedade demonstradas em alto grau seja pelo aspecto culposo de estar usando o paciente seja pela responsabilidade de colher uma boa história o que a meu ver parece demonstrar a falta de preparo psicológico dos estudantes para rea lizar essas tarefas A totalidade respondeu ao item 3 que houve dificuldade no exame das partes sexuais e se critica vam por isso Aliás já tinha observado como os pró prios instrutores lidam com este fato Via de regra não se referem a aspectos especiais de exames tão íntimos como também pouco ou nada ensinam sobre a investigação da vida sexual do paciente tema que fica apenas a cargo dos cursos de Psicologia Médi ca Toda nossa formação inibidora sobre sexo leva a uma dificuldade em tratálo como função natural o que só será conseguido com a familiarização do tema advinda da repetição Para tal é necessário elaborar o afeto proibido ligado ao assunto pois só assim te remos condições de tratar o sexo do paciente como função natural dele e não como área proibida que é feio invadir Além disso o estudante como adolescente que na maioria das vezes ainda é recém está aprendendo a lidar com sua própria sexualidade de forma integral Só depois de superadas suas dificuldades pessoais terá condições de lidar com os aspectos sexuais de forma objetiva e externa e não como se fosse um caso pessoal seu e do paciente Essas dificuldades com a sexualidade podem se manifestar não só durante os exames das partes sexuais como também durante toda a realização do exame físico propriamente dito principalmente quan do se trata de doentes jovens e do sexo oposto Isso foi verificado de modo muito claro durante aulas de simulação de exame físico realizadas com alunos do curso de Psicologia Médica no hospital universitário Ao item 4 94 estudantes responderam que ti nham sido preparados previamente por docentes ou por parentes próximos médicos mas 119 responde ram que não se sentiram bem mostrando a pouca eficácia deste preparo E interessante observar que os questionários funcionaram como catarse para os estudantes alguns se referindo a isto explicitamente até que enfim al guém se interessa em ouvirnos tomara que esta pesquisa sirva para nos dar mais atenção Este fato também pôde ser constatado pela forma viva emo cional participante com que relataram suas expe riências Vivências e experiências próprias Visita tipo round O interno pega a radiografia sobre a cama faz negatoscópio da janela e diz O Sr João tem graves lesões degenerativas da coluna e além disso e segue comentando em termos técnicos os achados radiológicos e fazendo correlações Vejo o doente empalidecer e ficar distante Fora internado dias antes por lombalgia muito forte irradiada para a coxa Era prestativo amável porém reservado Ao sairmos da enfermaria eis que prorrompe em choro Eu e o interno fomos conversar com ele Estou con Psicossomaticaindd 68 Psicossomaticaindd 68 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 69 denado que será dos meus filhos quanto tempo ain da tenho Ele interpretava degenerativas como câncer e as palavras desconhecidas do linguajar médico que se seguiram assustaramno mais ainda O ocorrido retra ta o que ainda sucede em muitos lugares de ensino quando alunos e professores sem perceber transmi tem informações ao paciente em linguagem equívoca e inadequada pois termos técnicos não explicitados podem ser além de incompreensíveis ameaçadores Pareceme em concordância com outros que as vi sitas às enfermarias do tipo assinalado devem ser abolidas por improdutivas no sentido de ensino e questionáveis quanto ao atendimento dos enfermos Era comum que estudantes e docentes se expan dissem em perguntas e explicações indevidas para o momento algumas vezes até querendo valorizar seus conhecimentos perante todos Muito mais adequado será que a visita geral se faça em salas ou anfiteatros próximos sem a presença do paciente reservando se ao horário próprio visita diária para evolução e tratamento e pela equipe do leito o contato com o doente O professor C conhecido organicista chama seus quatro alunos para assistirem à retossigmoidos copia do seu paciente suspeito de esquistossomose Faz com que dois deles contrafeitos toquem o reto enquanto conversa jocosamente com o doente Os ou tros dois saem da sala e são depois repreendidos pelo professor Assim vocês vão mesmo aprender nada o exame era necessário e naquela posição o doente deixa fazer tudo Esta atitude inadequada de ensinar com furor é contrária à norma básica de qualquer hospital de ensino o doente vem ao hospital em primeiro lugar para ser bem atendido e não para dar auxílio na edu cação dos estudantes Destaco que só o bom atendi mento propicia o bom ensino e é a base de qualquer pesquisa clinica O interno S recémaprovado como monitor da disciplina e substituindo um professor na aula prática desnudou como se fosse natural a jovem com dupla lesão mitral e ordenou que todo o grupo ouvisse aqueles sopros espetaculares A moça pôs o travesseiro no rosto e a série só foi interrompida porque um dos alunos recusou a ordem e repreendeu energicamente o colega mais velho pelo que expôs da doente não respeitando seus naturais pudores Creio que os casos descritos são alguns dos mui tos exemplos do quanto pode ser iatrogênico o com portamento de médicos e estudantes num hospital de ensino buscando ambos antes de mais nada ensinar e aprender a todo custo mesmo em detrimento do fundamental que é repito o atendimento adequado do paciente Assim vigiar as palavras e atitudes caso inicial evitar demonstrações intempestivas caso da retossigmosdoscopia ou respeitar os valores morais do paciente a doente cardíaca são algumas das ma neiras de o professor ensinar aos seus alunos a boa relação com o enfermo Recordo o quanto é danoso o exame físico repe tido e intensivo nas práticas de enfermaria e acres cento a vigilância necessária em relação a comen tários e perguntas na frente dos doentes pelo que podem desencadear nele de ansiedades angústias e expectativas às vezes captadas não pelo médico ou estudante mas pela enfermeira ou pelos vizinhos do leito O doente acromegálico mostravase deprimido e apático até que no rodízio quinzenal a aluna B foi ser a quartanista do leito Em poucos dias conseguiu conversando e examinandoo sempre com atenção e muito cuidado técnico mudarlhe o ânimo e a vonta de de permanecer deitado contrastando com o aluno que com ele estivera antes desinteressado e omisso Mas durou pouco Ela foi designada no novo rodízio para a enfermaria do andar de cima e a recaída psí quica do paciente foi notada quase de imediato Ca sos como este fizeram com que os rodízios passassem a ser mais espaçados pois boas relações estudante paciente não podem ser seccionadas dessa forma Nos hospitais universitários os enfermos devem ser entrevistados pela assistente social quando da in ternação e além dos esclarecimentos habituais sobre obrigações e direitos devem ser informados quanto às solicitações que vão ter por parte dos alunos e aos exames complementares a que serão submetidos ao mesmo tempo que são salientadas as vantagens da internação num hospital deste tipo Esses pacientes em comparação com os inter nados nas demais enfermarias do Serviço reagiram muito melhor à presença dos estudantes e aceitaram com maior boa vontade os exames complementares O aconselhamento dos estudantes faz parte da orientação psicopedagógica e é um procedimento natural de muitos professores que assim agem sem qualquer preparo prévio intuitivamente em suas ati vidades docentes O desejável é que isso pudesse ser transmitido de forma sistemática aos que têm a res ponsabilidade de ensinar FINALIZANDO Os questionários dos alunos mostram que o estudante de Medicina se sente na prática despre parado ansioso e inseguro mais explorador do que doador na sua relação com o paciente e isso apesar de se afirmar previamente preparado para os contatos iniciais com o doente Psicossomaticaindd 69 Psicossomaticaindd 69 05012010 121204 05012010 121204 70 Mello Filho Burd e cols Esse resultado é semelhante ao obtido por Tur rel na Universidade do Colorado onde fez uma pes quisa com os alunos do penúltimo ano metade deles cursou o semestre habitual e a outra teve além do habitual várias aulas teóricas extras sobre como lidar com o paciente No final do semestre foram aplica dos questionários e provas práticas aos estudantes e viuse que não houve diferença significativa entre os dois grupos Sua conclusão é que o necessário para lidar com o doente é dado através de vivência e não de aulas teóricas Os grupos operativos em enfermarias coorde nadas pelo setor de Psicologia trabalham sobre di ficuldades comuns a seus membros dando uma vi vência das mesmas e à medida que elas vão sendo elaboradas permitem um uso maior e melhor dos conceitos teóricos Dessa forma os problemas comuns assinalados de se sentir usando o paciente ou da dificuldade de exame dos órgãos sexuais seriam discutidos no gru po podendo então o estudante utilizar as conceitua ções teóricas A catarse observada nos questionários even tual seria canalizada de forma sistemática para os grupos e a baixa de ansiedade subsequente unida ao trabalho feito sobre os problemas dos estudantes permitiria uma maior fruição do seu embasamento teórico Além disso os grupos operativos serviriam como triagem para os estudantes que apresentassem difi culdades pessoais mais acentuadas encaminhandoos para orientação psicopedagógica e eventualmente para orientação psicoterápica O estudante de Medicina enfrenta duas crises importantes durante sua graduação a entrada para os hospitais e prontossocorros e a época da formatu ra ambas mobilizando sentimentos profundos Fre quentemente mal conhecidos por ele como negação da morte regressão emocional sedução onipotên cia vistas no paciente e nele próprio quando inicia a relação com o enfermo O medo da nãorealização profissional a incerteza do mercado de trabalho que o espera a dificuldade de se tornar independente faz com que muitos queiram continuar como estudantes sendo esta uma das explicações para a grande procu ra das residências médicas E destacada a importância do estudante na equi pe médica e acentuo que ao mesmo tempo em que ele recebe informações aprende Deve também atuar de forma efetiva colaborando com os conhecimentos que progressivamente adquire no atendimento inte gral do paciente Exemplifico o aluno de terceiro ano pode presenciar as visitas familiares assistir grupos operativos de pacientes internados e grupos operati vos de familiares providenciar lazer e atvidades cul turais para o doente visitálo domiciliarmente após a alta Relembro problemas importantes nas equipes que são o ciúme a competição e a rivalidade princi palmente entre os estudantes dos vários anos Tudo que favorece a saúde física e mental me lhora a relação com o paciente devendo ser valoriza dos os vários meios de coesão grupal como ativida des conjuntas esportivas sociais e culturais Considero que o médico é obrigado a aprender na prática profissional o que a faculdade habitualmen te não lhe dá em termos de relação médicopaciente Acho que o preparo para que essa relação seja boa tem época ideal para ter início ao chegar o aluno à faculdade Assim o estudante deve vestirse de bran co frequentar passear usufruir do hospital desde o primeiro ano recebendo a partir daí orientação psi cológica progressivamente mais complexa Penso que boa parte das relações estudantepa ciente não exitosas devemse à falta ou à insuficiência de preparo dos instrutores para orientálos Cursos compactos de Psicologia Médica ou relação médico paciente destinados especificamente aos docentes da área médica poderiam melhorálas A iatrogenia do ensino médico deve ser denun ciada para que possa diminuir e as instituições mé dicas faculdades e hospitais devem se autocriticar e avaliar permanentemente no sentido de atenuála A questão respondida pelos pacientes ressal vada a pequena amostragem sugeriu que quase todos estavam satisfeitos por serem examinados e acompanhados pelos estudantes a maioria dizendo eles me ouvem A propósito do triângulo de relacionamento nas escolas médicas das três personagens principais pro fessorestudantepaciente escreveu Fernandes Pon tes 1966 Não esquecer que o estudante é a figura mais importante se se quiser estabelecer prioridade Dele nascem diretamente o médico e o professor e poderá dar origem ao paciente tanto mais direta e facilmente quanto menos se lhe presta atenção como ser humano com a personalidade médica e humana em formação REFERÊNCIAS Aberastury AKnobel M La Adolescencia Normal B Aires Pai dós 1971 Publicado pela Artmed Editora Balint M O médico seu paciente e a doença Rio de Janeiro Atheneu 1975 Blaya M Dinámica de grupo em psiquiatria Alter n 3 p 193 1972 Blum R H Sadusk J Waterson R The management of the doctorpatient relationship New York MacGrawHill 1960 apud Entralgo P L La relación médicoenfermo Revista de Oc cidente Madrid 1964 Psicossomaticaindd 70 Psicossomaticaindd 70 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 71 Deutsch H Problemas psicológicos da adolesCénCiaRio de Ja neiro Zahar 1974 Eksterman A Formaçáo psicossomática em ciências da saúde o ensino de psicologia médica Congreso de Medicina Psicosomáti ca en La Cuenca del Plata BAires 1977 Figliuolo R Comunicação pessoal 1980 Freire P Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1975 Freud A El ego y los mecanismos de defensa Buenos Aires Pai dós 1949 Goffman E Intemados Buenos Aires Amorrortu 1961 Hoirisch A O problema da identidade médica Tese Rio de Ja neiro 1976 lllich I A expropriação da saúde Rio de Janeiro Nova Fronteira 1975 Jouval Filho H Comunicação pessoal Laplanche J Pontalis J B Vocabulário de psicanalise Rio de Janeiro Martins Fontes 1970 Mello Filho J Concepçáo psicossomática visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1978 Parsons T 777e social System New York Free Press 1968 Perestrello D A Medicina da Pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1974 Pontes J F O ensino da psicologia no currículo médico In Asso ciação Brasileira de Escolas Médicas Anais da IV Reunião Salva dor Rio de Janeiro 1966 Rocco R P O estudante de Medicina e o paciente Tese Rio de Janeiro Ed Achiamé 1979 Zaidhaft S Morte e formação médica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 71 Psicossomaticaindd 71 05012010 121204 05012010 121204 Há uma brincadeira de crianças em que ao soar a sirene de uma ambulância uma delas a que pri meiro ouve a sirene ou a mais rápida diz tocando o corpo daquela que estiver mais próxima passa morte que eu tô forte Assim também fazem todas as crianças do grupo A que não consegue passar a morte a nenhuma outra fica sendo a morta até o próximo som de sirene quando rediviva terá nova oportunidade de passála adiante Já que estamos constantemente ouvindo sire nes de ambulância seja em nossos pacientes seja em nós mesmos e o recurso mágico de passála adiante e ficarmos fortes nem sempre funciona a contento queremos propor uma brincadeira um pouco diferen te vamos deixar a morte conosco por algum tempo o que também não deixa de ser um recurso mágico para tentar controlála mas é um jogo que acredi tamos pode dar bons frutos Brinquemos então Só por uns dez minutos tentemos seguir a pista destes dois mistérios o da vida e o da morte Bem entendido não exatamente esses dois mis térios que nossa sandice também não é tão grande mas sim uma outra pista de um outro mistério o ensino médico relativo à morte E inserido no ensino médico o que a disciplina de Psicologia Médica pode fazer eou tem feito neste campo Muito já se falou sobre o afastamento dos médi cos de seus pacientes terminais sobre a importância para os doentes que os médicos não os abandonem nesta hora sobre a necessidade de se humanizar o atendimento assim por diante Por que a morte neste nosso fim de século se dá principalmente no campo médico a morte medicalizada ou por que a Medi cina chegou a um estágio em que se necessita de sua humanização são temas de que não trataremos aqui Ver a respeito S Zaidhaft 1990 e P Ariés 1991 p 623 Importanos sim neste trabalho examinar as experiências relativas à morte por que passam os estudantes de Medicina em seu processo de aprendi zagem e dentre elas como a disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ tenta pre parar os alunos para lidar com as questões desperta das pelo contato com a morte questões estas que no nosso entender são as cruciais do curso médico Deixaremos as considerações quanto a esta úl tima afirmação para o final deste trabalho e apre sentaremos agora o método que utilizamos para sua realização Método sim porque parafraseando Shakespeare 1990 p 1084 seguir a pista desses mistérios pode ser sandice mas há que se ter um mé todo para conseguir nosso objetivo Cabe lembrar que nos dois primeiros anos de seu aprendizado os alunos passam em nossa Facul dade por um curso básico em que são oferecidas dis ciplinas que não exigem o Contacto com pacientes A experiência relativa à morte se dá na disciplina de Anatomia através da dissecção de cadáveres É curio so que a iniciação dos estudantes se dê dessa forma já que tal modelo de relação com um objeto sem vida fica sendo visto por eles como o ideal a ser buscado posteriormente quando forem examinar os pacientes conforme Sapir 1972p 307 Ao ingressar em seu 5 O ESTUDANTE DE MEDICINA E A MORTE Sérgio Zaidharf Andrea Doria Batista Jacques Bines Luciana Rubinstein Sandice deixeme ficar algum tempo mais estou na pista de um mistério Razão Oue mistério Sandice De dois o da vida e o da morte peçolhe só uns dez minutos Machado de Assis Memórias Póstumas de Brás Cubas Participaram do capítulo Gabriela Costa Rego e Luiz Eduardo F Drumond Psicossomaticaindd 72 Psicossomaticaindd 72 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 73 terceiro ano do curso médico os alunos passam a ter a disciplina de Medicina Clínica I na qual aprendem a colher as histórias dos pacientes e a fazer o exame físico Com este fim em pequenos grupos orientados por um instrutor percorrem as enfermarias onde se encontram os doentes internados para aprender por exemplo a reconhecer um sopro cardíaco um es tertor a palpar um fígado assim por diante Nesse processo não há o acompanhamento diário de um paciente específico de sua internação à alta ou ao óbito Em alguns casos exceção à regra após co lherem a história os alunos por iniciativa própria vão ainda algumas vezes ver os pacientes que entre vistaram mas geralmente o contacto se restringe a um ou no máximo dois encontros para a realização da anamnese E nesse mesmo período letivo que os estudantes cursam nossa disciplina que tem a duração de um semestre sendo sua carga horária de três horas sema nais Em relação ao tema que estamos examinando os alunos têm uma aula expositiva e assistem ao filme Johnny vai à guerra Além disso um grupo de cada uma das quatro turmas em que os 80 alunos são di vididos realiza um trabalho para o qual é indicada uma bibliografia sendo solicitado que entrevistem algum paciente terminal para o aprofundamento das leituras efetuadas Este trabalho curricular é então apresentado discutido com o restante da turma Pensamos que a melhor maneira de examinar como a questão da morte é discutida em nossa disci plina e de modo geral no curso médico é ouvir a pa lavra viva de quem no momento está passando por esta experiência Por palavra viva queremos signi ficar as reflexões e os sentimentos de estudantes que ingressaram recentemente no ciclo profissional fren te a seu primeiro contacto com pacientes terminais Com este fim apresentaremos o trabalho referente a nosso tema realizado por um grupo de alunos de Psicologia Médica do 2o semestre de 1990 seguido do relato dos sentimentos experimentados por eles durante a feitura da tarefa curricular e uma discus são na parte final deste trabalho Pedimoslhes apenas uns dez minutos UM PACIENTE CRÔNICO E TERMINAL Este trabalho se baseou na leitura de textos in dicados Haynal 1983 p 232241 Hoirisch 1985 p 275289 Illich I 1975 Kübler 1987 e Queiroz 1976 p1521 e em entrevistas com um paciente in ternado no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e com sua filha e a equipe médica Tem como objetivo analisar os diversos aspectos relacionados ao acompanhamento de pacientes crônicos eou termi nais suas famílias e técnicos envolvidos com o tra tamento O paciente escolhido para ser entrevistado já havia sido visto por um membro do grupo numa aula de Semiologia não tendo sido mantida qualquer ou tra relação mais estreita anteriormente com qualquer outro componente do grupo MSS 46 anos branco masculino separado há 12 anos natural de Portugal há 36 anos no Brasil curso primário completo trabalhava como gerente de padaria atualmente aposentado tem dois filhos um rapaz de 20 anos uma moça de 18 Internado há 15 dias com queixas de queima ção na barriga e para tratamento de feridas Seu quadro teve início há 13 anos com paresia generalizada emagrecimento impotência sexual e episódios alternados de constipação e diarreia Foi diagnosticada amiloidose familiar distúrbio genético que se manifesta na idade adulta comum na região de onde veio o paciente Os sintomas são consequen tes à infiltração de vários órgãos pela proteína ami loide por exemplo nos nervos periféricos dando um quadro de polineuropatia que é o apresentado O paciente relata que já conhecia a doença por esta ter acometido seu pai duas irmãs suas outros familiares além de muitas outras pessoas em sua ci dade natal MSS encontrase caquético impossibilitado de se locomover com dificuldades na fala o que pode ser causado pela macroglossia com visão restrita incontinência urinária e fecal escaras de decúbito e sem sensibilidade superficial e profunda distalmente Mora em casa própria com boas condições de higiene com sua mãe seus dois filhos e dois dos seus irmãos ficando também próximo às casas de outros familiares seus É cuidado principalmente por sua mãe e sua filha sendo esta quem o acompanha no hospital O pai do paciente apresentou a doença quando este tinha 10 anos vindo a falecer 12 anos depois Ao surgirem nele paciente os primeiros sintomas não se sentiu surpreso por achar natural ter a mesma doença que seu pai No momento diz estar satisfeito por estar durando mais e em melhores condições que ele atribuindo estes fatos ao avanço da Medici na Refere que a separação de sua mulher coincidiu com o surgimento da impotência sexual relacionan do os dois acontecimentos Pareceunos ressentido ao falar sobre a exesposa Perguntado a respeito de seu tratamento rela tounos que há 6 anos foi desenganado pela médica que o acompanhava quando de um episódio de infec ção urinária Abandonou então aquele tratamento por acreditar que poderia viver mais Conta também Psicossomaticaindd 73 Psicossomaticaindd 73 05012010 121204 05012010 121204 74 Mello Filho Burd e cols que desejavam transferilo do hospital onde estava internado para um outro uma clínica de apoio e diz que para este segundo hospital vai quem não tem família e está para morrer e não era meu caso Nossa impressão é que o paciente deve ter se sentido desafiado ao ter sido desenganado pela médica seu relato neste momento da entrevista tinha um tom ao mesmo tempo de rancor e de vitória Quanto ao tratamento atual diz que não está sendo bem atendido não reconhece qualquer médico como seu responsável não há rotina de atendimento a não ser de professores e alunos tendo recebido apenas duas visitas médicas em 15 dias Seus curati vos são trocados uma vez ao dia enquanto em casa além do maior cuidado em sua realização esse pro cedimento é feito três vezes ao dia Refere também não se sentir atendido em relação a suas queixas pi rose e escaras de decúbito e que se for só para co mer como em casa Perguntado sobre o que espera do hospital disse que se internou com o intuito de prolongar a vida fazer alguns exames e tomar algum remédio que o alivie de sua queimação Perguntado se tinha planos para o futuro respondeu pretendo viver enquanto puder Tivemos que interromper a entrevista ao virem buscar MSS para a realização de um exame Qual não foi nossa surpresa pouco tempo depois cruza mos com ele já de volta Soubemos então que o referido exame a que o paciente iria ser submetido era uma prova de esforço que lhe exigiria capaci dade de se movimentar o que era visivelmente im possível Conversamos também com a acompanhante do paciente sua filha L 18 anos Ela é quem cuida dele em casa dandolhe banho comida e trocando os curativos enquanto sua avó se encarrega de cozi nhar e lavar suas roupas constantemente sujas Está terminando o segundo grau e diz que seus estudos ficam em parte comprometidos pelo tempo que de dica ao pai Conhece a doença sua etiologia seu curso prognóstico etc e participa de uma associação que congrega médicos portadores da enfermidade e seus familiares Acha a doença horrível e relaciona seu desencadeamento entre outros fatores a abalos emocionais estresse e má alimentação Exemplifica citando o caso de suas tias uma delas apresentou os primeiros sintomas após a morte de um filho por atro pelamento e a outra após uma gravidez complicada que havia sucedido a dois abortos espontâneos Quanto a seu pai relata que antes de apresen tar a doença se alimentava mal trabalhava exces sivamente e devido à idade que ela tinha não sabe precisar se a separação dos pais ocorreu antes ou de pois do início da doença Conta que sua mãe vinha tendo uma ligação com outro homem quando o pai fi cou doente não sabendo informar se ele teve conhe cimento desse fato Em relação à mãe diz que desde a separação tem muito pouco contacto com ela Diz que o pai reclama de depender de outras pessoas mas pensa que ele está conformado com a doença e com a possibilidade da morte preferindo no entanto manterse vivo a morrer Acha ruim o tra tamento dispensado a seu pai no hospital por con siderar que as enfermeiras desconhecem a doença e que são inaptas para cuidar dele Relata assim como o paciente que o médico veio vêlo duas vezes em 15 dias não lhe parecendo interessado no caso Segun do ela seria melhor para seu pai ficar em casa apesar de ser um alívio para a família principalmente sua avó sua internação Teme ter a doença e não quer fazer o teste diag nóstico por pensar que só lhe traria sofrimento saber que iria desenvolver a doença mais tarde Quer ter um filho apesar do risco de que ele fique doente por achar que vale a pena viver e também porque es tará presente para cuidar dele Pretende parar de estudar temporariamente e começar a trabalhar e fala sobre como será sua vida quando seu pai falecer não que eu queira que ele morra mas vai ser um alivio Diz que seu pai fez um seguro em seu nome o que facilitará sua vida em termos financeiros Quanto ao irmão que é marinhei ro e está viajando diz que ele não cuida do paciente como ela embora o pai esteja sempre reclamando dela dizendolhe que seu irmão não faria assim Dra A que acompanha MSS no ambulatório foi quem solicitou sua internação e é a responsável pelo leito em que ele se encontra Relatounos que só internou o paciente devido aos insistentes pedidos de sua mãe que lhe telefonou várias vezes pintando um quadro muito mais grave que o real Falou a res peito da doença e da inexistência de um tratamento eficaz O prognóstico é ruim sendo de 15 anos o tem po máximo de sobrevida após o surgimento dos sinto mas Segundo ela o paciente em questão encontrase em fase terminal Perguntada a respeito da frequên cia das visitas médicas respondeu que ia à enferma ria todos os dias para acompanhar o tratamento e as prescrições ficando o residente encarregado de fazer a evolução sendo esta a rotina do hospital Na entrevista que realizamos com a enfermeira chefe do posto onde se encontrava MSS ela nos informou que não há uma enfermeira específica para o atendimento de cada paciente Trabalham em es quema de plantão com revezamento diário e fazendo o que lhes cabe da melhor maneira possível cuidar das feridas do banho da medicação e das mudan ças de decúbito Relata estar insatisfeita com o salá rio que recebe e com o déficit de pessoal Devido a Psicossomaticaindd 74 Psicossomaticaindd 74 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 75 todas essas dificuldades não é possível haver uma aproximação maior com o paciente o que dificulta a relação Diz que ele reclama muito mas pensa que isso é compreensível pelo seu estado Por sentir pena dis pensa a ele maior tolerância mas não sou babá de paciente para ter que aguentar tudo Relata conhe cer a médica responsável mas nunca conversaram sobre o tratamento e prognóstico do paciente Nosso trabalho curricular consistia no exposto até aqui além de uma análise dos textos indicados e de uma conclusão Relataremos a seguir nossas an gústias e questionamentos ao realizar aquela tarefa elaborados para apresentação neste trabalho QUAL NÃO FOI NOSSA SURPRESA Ao sabermos no início do curso de Psicologia Médica que nos caberia a realização de um trabalho sobre pacientes crônicos e terminais nos sentimos ao mesmo tempo atraídos desafiados e temerosos Pensamos que isso se deveu ao fato de o tema ser delicado controvertido e até assustador Não sabía mos como nos aproximar de um doente terminal como abordálo que postura adotar e além do mais tínhamos medo de ficar aturdidos e de que o paciente percebesse nosso malestar Influenciados pela bibliografia indicada e pela crença de que câncer é sinônimo de morte iminente nosso primeiro movimento foi no sentido de procurar um paciente com essa patologia que soubesse seu diagnóstico e prognóstico pois pensamos que dessa forma o trabalho ficaria mais rico Pedimos auxílio a algumas enfermeiras para que nos designassem al gum doente que preenchesse nossa expectativa Elas sabiam informar quanto à gravidade do estado dos pacientes mas não sabiam dizer se eles tinham co nhecimento de sua situação alegando que esta infor mação é uma atribuição exclusiva dos médicos De cidimos então entrevistar MSS por ser adequado aos temas do trabalho paciente com doença crônica em fase terminal e pelo fato de já ser conhecido por um membro do grupo o que talvez tenha nos dado um pouco mais de segurança Ainda influenciados pelos textos que havíamos estudado imaginávamos encontrar um paciente pas sivo em relação a seu tratamento sozinho em sua an gústia abandonado pela família e iludido pela equipe médica Encontramos ao invés um paciente ativo na medida de suas possibilidades sabedor de seu esta do reivindicando melhor tratamento com familiares a seu lado todo o tempo em uma palavra vivo E esta foi apenas uma das muitas surpresas que tivemos ao realizar nossa tarefa curricular Uma ou tra talvez a que mais tenha nos perturbado foi sua tranquilidade ao nos descrever sua situação e sua resposta quanto a seus planos para o futuro viver enquanto puder Todos nós pensamos que em seu lugar estaría mos desesperados e que preferiríamos morrer Poste riormente nos perguntamos por que motivo tínha mos ficado tão perturbados com esta sua vontade de viver e verificamos que havia em nós um certo desejo de encontrar um paciente sem vida alguma o que se constituiria numa ameaça menor para nós Podemos pensar também a partir dessa constatação que um paciente grave inconsciente ou que não reivindique isto é mais morto que vivo talvez crie menos di ficuldades para a equipe médica em termos de um real acompanhamento e atendimento de suas ne cessidades do que alguém como MSS que apesar de quase morto se mantinha vivo questionando o tratamento recebido interagindo conosco e com sua família Em relação à entrevista com o paciente cabe re gistrar um dado curioso após termos o grupo intei ro conversado com ele percebemos que não havía mos feito qualquer pergunta que lhe desse margem a falar o que pensava sobre suas perspectivas de vida Um dos componentes do grupo com isso em mente voltou a ele e após mais algum tempo de conversa perguntou o senhor tem planos para o futuro Esta pergunta comportava na verdade duas questões uma quanto ao que pretendia fazer em ter mos objetivos e uma outra subjacente a ela quanto ao que pensava em relação à morte O paciente res pondeu não isto é formulou a resposta à pergunta manifesta e prosseguiu dizendo pretendo viver en quanto puder que era o que o entrevistador efetiva mente desejava saber Com relação à filha do paciente nos chamou a atenção sua capacidade de adaptar sua vida à doen ça e às necessidades de seu pai sem no entanto abrir mão de seus próprios projetos Dizer que o faleci mento do pai seria um alívio não significa que sua atitude em relação a ele deixe de ser predominante mente amorosa Pelo contrário talvez o fato mesmo de poder reconhecer este seu sentimento bastante compreensível por sinal é que lhe possibilite sentir e demonstrar tanta afeição por seu pai como verifi camos que fazia Discutimos longamente entre nós as dificulda des que L deve ter passado tendo que se adaptar à ausência de sua mãe e à doença de seu pai desde seus cinco ou seis anos e como estas perdas pode riam ter tido influência em seu modo de se relacionar com seu pai e consigo mesma Além evidentemente da ameaça que deve sentir de que também ela venha a apresentar a doença Psicossomaticaindd 75 Psicossomaticaindd 75 05012010 121204 05012010 121204 76 Mello Filho Burd e cols Após a entrevista impressionados com sua ati tude alguns de nós acharam que L era uma pessoa demais que lidava bem com a doença do pai e com a possibilidade de ficar doente e que sua postu ra era a melhor para ela ou seja que ela priorizava a vida apesar de todo o sofrimento e ameaça Por outro lado outros membros do grupo pensaram du rante a própria entrevista que seria um absurdo L ter um filho pelo risco de que ele ficasse doente tendo sido até perguntado a ela Você não vai ter filho não não é Quanto à sua resolução de não se submeter ao teste diagnóstico pareceunos por um lado que era uma decisão que denominaríamos positiva porque como ela disse não adianta pensar nisso agora e também por não ter como se precaver caso saiba que irá desenvolver a doença Por outro lado pensamos que é improvável que ela não pense sobre isso te nho medo de ter a doença e a decisão de não fazer o teste expressaria a fantasia de que ficará doente Afinal pode ser que ao fazer o teste descobrisse que não possui o gene causador da doença suas chances são de 50 e isso certamente a tranquilizaria De qualquer forma o que percebemos em nós foi o uso de nossas pressuposições como parâmetro para julgar o que é melhor ou pior para o outro em situações por vezes tão delicadas como esta que L atravessa e em decisões tão terríveis qual uma role tarussa como a que tem de tomar Ainda quanto a seu desejo de ter um filho pode ríamos compreender seu relato de que se o filho ficar doente ela estará presente para cuidar dele como uma tentativa de negar a possibilidade de que ela adoeça ou como expressão de que a vida em si vale a pena mesmo com este risco Em relação à família do paciente pensamos que o fato de ser uma doença conhecida por todos de ca ráter hereditário e comum numa determinada região teria ajudado a família de MSS a ter condições de se organizar de modo a melhor atender suas necessi dades sem uma desestruturação muito grande e isso se deu mesmo com a separação do casal Cremos que este contexto familiar faz com que o paciente te nha uma qualidade de vida melhor do que a que teria caso não houvesse este amparo por parte de todos Esta coesão familiar pode ser responsável também pela manutenção da esperança na vida como verifi camos em MSS e em sua filha Examinemos agora o tratamento dispensado ao paciente após a leitura dos textos indicados fi camos com a impressão de que os médicos têm mui ta dificuldade em lidar com pacientes terminais e tendem a se afastar deles Ao entrevistarmos MSS este nos relatou sua insatisfação com o atendimen to que vinha recebendo o número de visitas médi cas e a não resolução de suas queixas Estes dois elementos os textos e a entrevista se somaram e como resultado fomos procurar a médica tendo em mente a imagem de uma verdadeira carrasca O que encontramos Uma médica jovem de olhos claros magrinha serena e atenciosa que nos recebeu com a maior solicitude e se mostrou totalmente a par da situação do paciente Um outro motivo de surpresa foi sua informa ção quanto à verdadeira razão para a internação do paciente ou seja os pedidos da família Bem após essa série de surpresas passamos a nos perguntar se haveria outros motivos que nos ti vessem feito imaginar a médica como uma carrasca Talvez por termos nos sentido impotentes em relação ao caso de MSS e decepcionados com os limites da Medicina tenhamos necessitado buscar formas de atenuar a insatisfação do paciente o que poderia ser explicado pela ausência da médica e de atenuar nos sa própria frustração e impotência Em relação a esse tratamento pensamos que o mais importante é o paciente se sentir bem atendido e isso tem relação com a atitude médica O que de melhor se poderia oferecer a MSS seria uma aten ção maior por parte da profissional que poderia au mentar o número de visitas e conversar mais com o doente O fato de haver um médico residente a quem caberia este papel pela rotina do hospital não fez com que o paciente reconhecesse um médico como o seu Por outro lado percebemos que MSS apesar de assistido por todos em casa e por sua filha no hos pital não se mostrava satisfeito com isso De todas essas considerações muitas questões ficaram sem resposta para nós será que a pequena frequência de visitas médicas tem a ver com a difi culdade de lidar com o paciente que está morrendo Será que é rotina mesmo do hospital Por que será que MSS não reconhece o residente como seu mé dico Será que o paciente ficaria satisfeito com um maior número de visitas Será que sua insatisfação quanto ao atendimento é a maneira que encontrou de se queixar de sua vida Na entrevista que fizemos com a enfermeira chefe do posto onde se encontrava MSS percebe mos que nossa atitude em relação a ela foi de ataque como que novamente buscando encontrar algum car rasco a quem pudéssemos responsabilizar pelo sofri mento do paciente Apesar dessa nossa pressuposição pudemos constatar a dificuldade ou quase ausência de co municação entre os membros da equipe se é que se pode chamar de equipe as pessoas que participam do atendimento ao paciente Psicossomaticaindd 76 Psicossomaticaindd 76 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 77 DISCUSSÃO Ao nos reunirmos para a elaboração deste tra balho ocorreu um fenômeno curioso por longo tem po uns dez minutos que duraram horas falamos todos a respeito das mortes reais ou imaginadas de pessoas próximas parentes e amigos e de animais de estimação e sobre a repercussão desses eventos em nós Lembramonos então principalmente da dor pela perda da raiva do morto por nos ter deixa do da culpa pela morte do outro do medo de ser cas tigado em virtude desta culpa dos recursos mágicos utilizados para tentar afastar a morte das tentativas de reparação e do processo de elaboração do luto E isso ocorreu sem que houvesse qualquer combinação prévia nesse sentido Pareceunos posteriormente que necessitamos deste percurso como uma forma de purgar nossos mortos até para nos sentirmos mais livres para a realização do trabalho a que nos havía mos proposto Perguntamonos a partir daí por que com todo o sofrimento que falar ou pensar sobre morte acarre ta resolvemos escrever este trabalho e mais ainda por que escolhemos ser médicos já que assim estaría mos inevitavelmente lidando com ela todo o tempo Quanto ao trabalho os sentimentos despertados em nós foram semelhantes aos experimentados quan do da realização da tarefa curricular já descritos no capitulo anterior Já em relação à motivação para escolha da carreira percebemos em nós um desejo de desvendar certos mistérios em relação ao corpo humano à sexualidade à nossa própria identidade e à morte ou seja os mistérios da vida e da morte Havia também e ainda há embutida nesta escolha uma expectativa de que por sermos médicos estaría mos imunes à morte Recordamonos então do impacto que as aulas de Anatomia nos causaram e do clima de brincadeira estabelecido muitas vezes durante a realização das dissecções como tentativa de negar a morte Curio samente ao falarmos deste tema surgiram inúme ras associações com alimentação por exemplo não conseguir almoçar após dissecar banana associada a tecido adiposo e o espanto com o fato de alunos mais antigos estarem comendo enquanto dissecavam identificação com o morto com a morte através de sua ingestão Freud 1976 p 133134 170 Zai dhaft op cit p 127128 Essas primeiras experiências relacionadas a morte já como estudantes de Medicina ao mesmo tempo que nos causaram um certo choque faziam com que nos sentíssemos pertencer a um mundo à parte como que possuindo um poder conferido pelo conhecimento dos segredos do corpo humano e da morte Por outro lado ou por isso mesmo esse poder acarretava uma sensação de ter o cheiro da morte en tranhado em cada um de nós algo de que não pode ríamos mais nos desvencilhar Sigamos nosso caminho na disciplina de Me dicina Clínica 1 quinto período ou seja primeiro semestre do terceiro ano da Faculdade a morte foi se revestindo de outras características Percebemos pela primeira vez no curso médico a existência da dor do sofrimento e do medo nos pacientes que exa minávamos constatamos que doença e morte não es colhem idade pessoas às vezes mais jovens que nós com doenças letais nos sentíamos preocupados a cada órgão examinado com o futuro do possuidor daquele órgão acometido por alguma enfermidade Como aqui já não lidávamos com cadáveres mas com seres vivos o impacto foi bem maior do que o expe rimentado no curso de Anatomia Entretanto apesar de percebemos que eram seres vivos e de adquirirem para nós alguma subjetividade ao colhermos suas histórias ainda eram essencialmente corpos que so friam Algo diverso ocorreu quando da realização da tarefa solicitada pela disciplina de Psicologia Médica O título que demos à terceira parte deste trabalho devese exatamente a este fato uma sucessão de sur presas A maior delas se deu como já descrito ao percebermos que o paciente entrevistado embora em péssimo estado geral estava vivo no sentido de de sejar viver enquanto pudesse sua solicitação de um melhor atendimento etc Por que nossa surpresa e perturbação Pensamos em algumas hipóteses para compre ender este nosso sentimento é possível que estivés semos imbuídos do modelo aprendido na Anatomia o do paciente passivo como o cadáver que tínhamos dissecado é possível também que os trabalhos li dos tivessem nos influenciado a tentar encontrar um paciente sem vida alguma novamente é possível que pensássemos na morte como algo distante de nós e que quando ela viesse fazer sua colheita a fizesse de vez é ainda possível que tivéssemos ficado surpresos pelo fato de perceber que alguém com vida e não apenas um corpo que sofre pudesse vir a falecer Todas estas hipóteses podem corresponder à rea lidade e é bastante provável que assim seja No entan to a que nos parece mais plausível é a seguinte nossa perturbação seria devida ao fato de que se o paciente Um esclarecimento neste capítulo ao nos referirmos aos sentimentos despertados pela realização da tarefa curricular entendase sujeito da frase como sendo o grupo de alunos Psicossomaticaindd 77 Psicossomaticaindd 77 05012010 121204 05012010 121204 78 Mello Filho Burd e cols em questão estava para morrer mas se mantinha vivo nós que o entrevistamos e que estávamos e felizmen te ainda estamos vivos e sem qualquer doença nos vimos forçados a perceber que também carregamos a possibilidade da morte em nós mesmos A partir dessa hipótese podemos compreender nosso sentimento de que preferiríamos morrer se es tivéssemos em seu lugar Parece ser a expressão de um desejo nosso de que o paciente morra logo pois assim a morte ficaria só com ele e nós nos livraríamos dela como na brincadeira passa morte que eu tô forte Após a realização da tarefa curricular e também deste trabalho verificamos que demos muito mais destaque à filha do paciente e aos sentimentos por ela despertados que ao próprio doente Algumas hipóte ses que levantamos sua idade muito mais próxima à nossa que a do paciente o fato de ser filha como nós e não pai ou mãe o fato de ter sido mais confor tável para nós conversar com ela que com o paciente e como extensão desta última hipótese o fato de estar saudável Quer dizer foi mais fácil nos identificarmos com alguém jovem saudável mesmo sob uma ameaça como a que L vive do que com um doente terminal e isso certamente se deve às ansiedades despertadas pelo contacto oom alguém que está morrendo Ainda em relação à entrevista com L percebe mos em nós um sentimento semelhante ao experi mentado ao lidar com o paciente A pergunta você não vai ter filho não é expressaria nosso desejo de condenála à morte no caso morte de sua capacida de procriativa porque dessa forma nós é que ficarí amos vivos e férteis Este fenômeno é curioso no momento em que estamos investidos do papel de médicos escapa de nossa consciência a compreensão de que todos esta mos morrendo um pouco a cada dia e de que não te mos como saber se nós é que vamos antes da filha do paciente E ficamos então espantados com sua espe rança na vida como que desejando que ela também adoeça logo desespere e morra Ou seja sou só eu quem não adoece sou só eu quem pode levar a vida sem qualquer ameaça sou eu quem não corre perigo a morte não me pega passa morte que eu tô forte Fique bem claro que este possível desejo de passar a morte para o paciente e sua filha não era o único presente em nós Percebemonos admirando os dois por sua força de vida e tendo um sentimento de compaixão por sua dor e de pesar pela constatação de que nada poderia ser feito para ajudálos no sen tido de cura do paciente e de prevenção da doença na filha Entretanto aceitar tal realidade é profunda mente doloroso e lutamos arduamente para nos afas tar dessa certeza Pareceunos que a busca que em preendemos para encontrar algum responsável pelo sofrimento do paciente um carrasco é um exem plo claro desta nossa luta Não somente do pacien te esta busca talvez seja nossa tentativa de atenuar nosso próprio sofrimento ao constatar nosso fracasso frente ao caso do paciente e nossa impotência ao nos certificarmos de nossa própria finitude E mais ainda será que nossa procura de algum carrasco também não decorreu de uma necessidade de passar a alguém mais nossa passagem da mor te para o paciente e sua filha O carrasco que tanto buscamos somos nós Esses sentimentos que estamos relatando longe de serem originais ou exclusividade nossa não de vem diferir muito dos experimentados por outros alu nos e médicos Surge a questão então de que espaço e possibilidades são oferecidos para que se possa dis cutir estes temas no curso médico A esse respeito é curioso que o impacto senti do durante as entrevistas não tenha sido relatado no corpo do trabalho curricular mas somente durante sua apresentação para o restante da turma E possível que isso tenha ocorrido por não ter sido solicitado ex pressamente que assim fosse feito mas as entrevistas com familiares e equipe técnica também não e estas constaram do trabalho escrito Talvez haja também uma ideia de que sentimentos experimentados du rante o contacto com o paciente não podem ser con siderados como algo científico por serem puramente subjetivos algo assim No entanto mais que as hipóteses acima pensa mos que esta omissão é reveladora de um fenômeno que perpassa todo o curso médico qual seja a utiliza ção do silêncio como arma para enfrentar as questões levantadas pelo lidar com a morte E a este silêncio estão condenados não apenas os alunos mas também os pacientes Talvez o tão falado afastamento dos médicos de seus doentes terminais se deva exatamente a este fato ao ingressarmos na faculdade é como se neces sitássemos de um modelo de conduta frente a situa ções novas e angustiantes com as quais não sabemos lidar Se o modelo que vemos é o do silêncio como tentativa de se desvencilhar de sentimentos difíceis de tolerar e de pacientes difíceis de tratar este é o modelo que trataremos de seguir E é este mesmo mo delo que silencia o que temos de mais vivo em nós e o que os pacientes terminais têm de vida em si Aqui reside o que pensamos ser nosso grande fruto ao realizar este trabalho a quebra desta barrei ra do silêncio pela possibilidade de ouvir o paciente e de discutir com colegas nossas impressões frente a uma situação aflitiva para todos Evidentemente a recomendação ouvir o pa ciente também pode ser tomada como um modelo a Psicossomaticaindd 78 Psicossomaticaindd 78 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 79 ser seguido sem que haja uma reflexão ligada a essa necessidade e este é um risco que sabemos existir A esse respeito recentemente um membro de nosso grupo assistiu a uma conversa se podemos chamar assim entre um paciente e sua médica O doente re clamava de não estar sendo bem atendido numa cer ta queixa sua e ela falando ao mesmo tempo que ele dizia eu sempre ouço o paciente Ela não disse que estava tentando ouvir entender aquele doente mas sim a uma entidade inespecífica denominada pacien te Ou seja o que verificamos aqui é o uso da máxima ouvir o paciente para silenciálo Fechando o parêntese pensamos que poder con versar com colegas nos ajudou a perceber que nossas angústias não eram originais nem tão terríveis que não somos donos de uma verdade única e inquestio nável a corrigir nossas pressuposições e a tentar acei tar as diferenças Se a partir dai podemos afirmar que em nosso grupo conseguimos funcionar como uma equipe o mesmo não podemos dizer quanto à estruturação da assim chamada equipe médica A in dicação da prova de esforço sem avaliação das condi ções do paciente e o desconhecimento por parte da enfermagem quanto à noção que os doentes têm de seu diagnóstico e prognóstico são prova disso Esse fato nos surpreendeu desfavoravelmente por pensar que a equipe médica deveria trabalhar com algum entrosamento e que todos os seus compo nentes deveriam saber da situação de cada paciente guardadas as ressalvas quanto às funções específicas de cada membro da equipe Utópico isso Talvez mas nos parece fundamental que se lute para que as sim seja Havíamos proposto na introdução deste traba lho uma brincadeira de deixar a morte conosco por algum tempo Sandice Talvez Afinal o paciente en trevistado está para morrer mesmo e não há nada que se possa fazer para evitar este seu destino aliás tam bém nosso mais cedo ou mais tarde Talvez a Ra zão com quem a Sandice dialoga devesse prevalecer todo o tempo e não devêssemos dedicar quaisquer dez minutos para tentar desvendar mistérios do paciente e nossos que não são desvendáveis Entretanto mesmo sabendo de tudo isso pen samos ou melhor concluímos a partir da experiên cia que tivemos que ter uns dez minutos para ouvir o paciente seus familiares e a nós mesmos é funda mental para que não condenemos ao silêncio à mor te o paciente e a nós mesmos Chegamos a esta certeza a partir da constatação de que o fato de deixar a morte conosco por algum tempo longe de nos matar nos deixou mais vivos no sentido de mais atentos às nossas dificuldades no contacto com pacientes terminais na verdade com qualquer doente Melhor dizendo não se trata de deixar a morte conosco como algo distante inespecífico mas sim de poder conhecer a situação de vida de cada paciente específico o que pode incluir a proximidade da morte e os sentimentos daí decorrentes Ou seja na verdade este trabalho não é sobre morte da qual nada sabe mos mas sobre vida mesmo que dela reste apenas um fio E já que estamos falando de vida o que espera mos é que a nossa sucessão de surpresas ou melhor que nossa capacidade de nos surpreendermos fren te à vida persista e que nossas dúvidas permaneçam para que a cada paciente examinado não pensemos que já sabemos de antemão o que é melhor para o outro pois assim estaríamos transformando o doente num corpo que sofre e condenado ao silêncio Fique claro portanto que não estamos nos re ferindo apenas aos pacientes terminais e à aprendi zagem das questões a eles concernentes O fato de termos ficado restritos neste trabalho ao tema mor te não significa que esta seja a nossa única preocu pação Pelo contrário pensamos que por estarmos li dando com situaçõeslimite podemos utilizar nossas reflexões para o dilema vidamorte no atendimento a qualquer paciente e para a questão vidamorte no ensino médico em geral À guisa de conclusão cabe dizer que a possibili dade que tivemos durante a realização deste trabalho de discutir inúmeros pontos que nos afligiam e que de forma diferente esperamos que continuem a nos afligir só nos reforçou a convicção de que é funda mental que discussões como esta perpassem todo o curso médico e não apenas uma disciplina específica REFERÊNCIAS Ariés P O homem diante da morte Rio de Janeiro Francisco Alves 2v 1981 Freud S Totem e tabu Rio de Janeiro lmago 1976 Haynal A Manual de Medicina Psícnssomatica São Paulo Mas son 1983 Hoirisch A Eutanásia Aspectos médicos In Academia Nacio nal de Medicina Etica Médica Forum Nacional Rio de Janeiro 1985 lllich 1 A expropriação da Saúde 3ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1975 Queiroz Ao Mello Filho J O médico diante do doente crônico e da morte J Bras Med ago 1976 Skakespeare W Hamlet In The complete works oi William Shakespear New York Avenel 1990 Sapir M La formation psychologique du Médecin Paris Payot 1972 Zaidhaft S Morte e formação médicaRio de Janeiro Francisco Alves 1990 KiiblerRoss E Sobre a morte e O morrer 3ed São Paulo Mar tins Fontes 1987 Psicossomaticaindd 79 Psicossomaticaindd 79 05012010 121204 05012010 121204 À clássica e muito significante frase do psica nalista inglês Michael Balint citada em epígrafe po demos acrescentar que o médico vale principalmente pelo que de fato ele é antes do que pelo que sabe diz ou faz Por outro lado as melhores estatísticas indicam que numa média de 70 os pacientes or gânicos apresentam fatores psíquicos que desempe nham um papel importante às vezes determinante no contexto de sua doença A soma destes dois fatos estabelece de forma incontestável a enorme importância da formação psi cológica do medico e logo nos leva a perguntar como ela se processa em nosso pais Essa pergunta pode ser desdobrada em outras que se complementam que tipo de médico nossas faculdades devem formar na atualidade Qual a motivação que leva tantos jovens a procurar os caminhos da Medicina Quais os atri butos mínimos necessários para que um indivíduo se forme como um bom médico Vamos tentar responder por partes ao longo do texto Não é demais sublinhar que a formação de um bom médico se assenta no clássico tripé conheci mentos habilidades atitudes É claro que esses três aspectos estão sempre congeminados e são indis sociáveis mas podemos discriminar e conceituálos separadamente O conhecimento se organiza a partir de informações provindas dos instrutores e princi palmente de muito estudo e leitura A habilidade depende de um treinamento continuado em que o aluno saiba tirar proveito do aprendizado conferido pelas experiências vividas na práticados atos médi cos tanto as de acertos e gratificantes como também e principalmente as das baseadas na frustração dos inevitáveis erros e limitações Mas é sobretudo o de senvolvimento da atitude médica protótipo de sua formação psicológica que pretendemos abordar mais detidamente ATITUDE MÉDICA Um esboço histórico nos mostra que é muito an tiga a arte médica então exercida pelos feiticeiros Xamãs e sacerdotes enquanto que a ciência médica é muito recente apenas nascida a partir do século XIX e do ponto de vista psicológico sempre sofrendo a forte influência daqueles predecessores místicos Des sa forma até há pouco tempo a relação do médico com seu paciente era unidirecional com esse último submisso e esvaziado investindo o primeiro com uma aura de forte idealização e magia A própria termino logia corrente em medicina comprova isso Qualquer insucesso era tributado à vontade de Deus Médico que quisesse ter uma bem sucedida clientela deve ria ter um dom inato ou aprender a arte de desper tar carisma É fácil entender que quanto maior for o primitivismo e ignorância que cerca a doença maior também será o apelo ao misticismo Atualmente a tendência crescente e irreversível é a de uma maior participação do doente e da fa mília e em passos muito tímidos da comunidade enquanto paralelamente a figura do medico vai des cendo do pedestal para uma superfície mais nivelada onde ele se imporá pela sua real competência Obser vase cada vez mais que à medida que descresce O papel deificado do médico e diminui o gap entre ele e o seu paciente menos este último se conforma em 6 A FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO MÉDICO David Epelbaum Zimerman O remédio mais usado em Medicina é o próprio médico O qual como os demais medicamentos precisa ser conhecido em sua posologia reações colaterais e toxicidade M Balint A palavra clínica deriva de klinos que em grego significa na horizontal daí vem inclinado etc já que os pacientes deveriam ficar deitados Ambulatório era para os que po diam caminhar ambulare Medicamento e daí médico deriva de medicamen étimo latino que significa bruxaria Paciente vem de patiens que em latim significa passivida de E assim por diante Psicossomaticaindd 80 Psicossomaticaindd 80 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 81 seguir servil e cegamente a conduta médica que lhe é traçada e cada vez mais ele quer ser esclarecido e participativo nas decisões Dessa forma o linear binômio médicopaciente foi gradativamente se modificando para o modelo de um polígono de forças dinâmicas onde se entrecru zam necessidades desejos expectativas valores sen timentos angústias pressões etc Essas forças não se processam só na direção do médico para com a doen ça e o doente mas também com os familiares deste com o hospital e todo o seu pessoal com a institução que o paga com a sociedade que lhe cobra etc e principalmente na relação consigo próprio Devese acrescentar ainda a existência de uma crise que assola o médico brasileiro crise que apa rentemente é da Medicina mas na realidade é a de sua identidade médica Isso decorre das intensas ex tensas e rápidas mudanças de toda ordem como são por exemplo as transformações socioeconômicas as da política estatal de assistência médica as demográ ficas a proliferação de faculdades de Medicina com a formação ou deformação de um número exces sivo de profissionais a transição dos valores sociais o ter passa a ser mais importante que o ser uma desenfreada busca de lucros por parte de policlínicas e uma pressão das indústrias farmacêuticas voltadas para esse mesmo fim os céleres avanços da tecnolo gia moderna e a avalancha de novas informações a desidealização às vezes tangenciando o denegrimen to da figura do médico etc Tudo isso concorre para que o estudante se debata com dilemas deste tipo que tipo de médico quero ser posso ser devo ser ou esperam que eu seja Essas questões nos remetem ao problema das motivações que determinam a escolha da profissão médica Ao lado dos fatores mais manifestamente conscientes como por exemplo um sentimento de talento e vocação ou uma boa identificação com um progenitor médico ou a busca de status e um promis sor mercado de trabalho existem os motivos incons cientes O primeiro estudo com embasamento científico em relação à estrutura psíquica do médico se deve ao psiquiatra alemão Simmel 1926 o qual descreveu algumas das fantasias inconscientes determinantes da escolha da profissão médica Entre outras ele destacou que o exercício prático da Medicina propiciava uma adaptação do princípio do prazer ao da realidade ou seja o médico podia satisfazer os seus impulsos primá rios ver e palpar gente desnuda ter acesso ao interior do corpo e aos mistérios do nascimento sexua lidade e morte penetrar nos segredos mais íntimos das pes soas manipular urinas e fezes etc tudo isso sendo conseguido de forma sutil e com o aval de admiração da sociedade Noutras palavras o ego do médico honra o juramento de Hipócrates enquanto o seu id se grati fica Outras motivações inconscientes podem ser cita das como por exemplo o fato de ser médico permite lhe reforçar a negação da doença e portanto da sua inexorável morte já que por dissociação o paciente é a sua antítese Uma importante necessidade incons ciente cujo cumprimento é propiciado pelo exercício da medicina é o de poder fazer reparações as quais podem ser verdadeiras ou falsas e a predominância de uma ou outra dessas é que vai determinar se a atitude médica é igualmente autêntica ou falsa A própria escolha da especialidade médica em função dos conflitos inconscientes do médico assim como o tipo e grau de primitivas fantasias com que ele revestiu a imagem corporal e as funções vegetati vas orgânicas mereceria um estudo mais aprofunda do mas não cabe fazêlo aqui Retomando a linha de reflexão acerca da im portância da atitude médica é necessário enfatizar que essa acima de tudo deve manterse inalterável por maiores que sejam as pressões externas e inter nas que antes apontamos e isso só será conseguido se o médico tiver a sua identidade profissional bem definida IDENTIDADE MÉDICA A formação psicológica do médico resulta do precipitado de uma série de elementos complemen tares tais como entre outros temperamento moral personalidade ética caráter atributos do ego e iden tidade Como esses termos são assemelhados antes de prosseguir e para evitar uma confusão semânti ca é útil esclarecer os significados que aí são dados a cada um deles Temperamento resulta da têmpera dos impulsos e humores heredoconstitucionais Moral é a manifestação do tipo de superego do indivíduo e No jargão psicanalítico este termo expressa a necessidade que qualquer pessoa tem de consertar os danos reais ou fantasiados que ela imagina ter infligido às pessoas im portantes de sua vida A reparação é verdadeira quando a determinação em restaurar os danos se forma no indivíduo a partir da assunção da parte da responsabilidade que de fato lhe cabe ao que se segue a formação de uma atitude de autêntica consideração e preocupação pelos outros A reparação é denominada falsa quando movida pelo afã de apaziguar culpas os intentos reparatórios ficam embasados em recursos de natureza mágicoonipotente Psicossomaticaindd 81 Psicossomaticaindd 81 05012010 121204 05012010 121204 82 Mello Filho Burd e cols é quem lhe determina os costumes em latim costu me é mos moris de onde vem moral Personalida de de acordo com a etimologia persona é o nome que davam à máscara usada pelos atores do antigo teatro grecoromano é a forma como a imagem da pessoa impressiona os demais Ética deriva de ethos significa meio ambiente território e indica que um indivíduo não pode invadir o terreno dos demais Ca ráter como a palavra evidencia é o que caracteriza a conduta da pessoa e ela se estrutura a partir de uma adaptação no plano inconsciente entre os impulsos e os mecanismos de defesa A expressão atributos do ego diz respeito às funções e capacidades tais como as de percepção pensamento atenção memória juízo críti co linguagem e ação Identidade e a propriedade de o indivíduo independentemente das circunstâncias e de pressões manterse basicamente o mesmo a palavra identidade vem de idem que quer dizer o mesmo e portanto é a expressão do que de fato ele é A identidade de cada pessoa funciona como se fosse uma carteira de identidade isto é a nomeia dá as suas características principais e a acompanha imutável através dos tempos do espaço e da inser ção social A estruturação da identidade do indivíduo formase a partir de identificações com figuras impor tantes de sua vida e com a assunção de papéis tanto os espontâneos como os que lhe são designados ou os que imagina que os outros esperam dele Uma identidade só fica bem estabelecida quando leva o tri plo selo da autonomia da estabilidade e da autentici dade Caso contrário é possível que se trate de uma falsa identidade quer sob a forma de algum tipo de impostura ou de uma modalidade mimética a qual é lábil porque como um camaleão o indivíduo procu ra adivinhar o que esperam dele e adaptarse a isso Pode tratarse também de uma identidade ambígua caso em que a pessoa funciona com as reais capaci dades adultas mas no fundo sentese como se fosse uma criança e viceversa Como toda a identidade é resultante da inte gração de identificações parciais a introjeção de um tanto das características de pai outro tanto da mãe etc é importantc que o médico saiba discriminar quais as partes que podem estar sendo mobilizadas em determinadas situações clínicas e que podem in vadir a função médica propriamente dita Estão neste caso os médicos que se deixam seduzir ou intimidar ou se superdesvelam entre tantas outras reações que vamos abordar no tópico que segue RELAÇÃO MÉDICOPACIENTE Não é possível conceber a formação psicológica do médico em termos individualizados antes e in dispensável incluir toda a larga gama dos sentimen tos despertados nos interrelacionamentos contidos em qualquer ato médico e que estão condensados na habitual expressão relação médicopaciente a qual apesar de estar na forma singular é em verdade plu ral sempre com o envolvimento de muita gente Como esquema de exposição é útil destacar os aspectos que a meu juízo se constituem como sendo os básicos na determinação de uma boa ou má rela ção entre o medico e o seu paciente A instalação da doença costuma levar o pacien te e muitas vezes a família inteira a um estado conhecido por regressão e que consiste num retorno a um nível de funcionamento mais primitivo com a reedição de ansiedades fantasias e expectativas pró prias às da época de quando ele era criancinha Isso é mais possível de ocorrer em situações de hospitali zação especialmente em UTI em razão de o doente sentirse coagido e ameaçado na preservação de sua identidade por enfrentar um ambiente físico estra nho sucessão de rostos não familiares mudança nos hábitos na roupa na alimentação rotinas hospitala res regressivantes etc São muitos os fatores que podem ser desenca deantes da regressão mas o distúrbio emocional que surge é sempre o fruto das características da psicolo gia própria de cada indivíduo O surgimento da doença orgânica fica acrescido de profundos significados simbólicos de ordem psí quica que estão investidos na formação da imagem corporal e isso pode provocar que além do sofrimen to físico o paciente possa estar sendo invadido por sentimentos de desamparo medo confusão culpa vergonha e até o sentimento de humilhação por ter fraquejado em ter adoecido ou pela ferida narci sista em ter que reconhecer que é um mortal como qualquer outro Por outro lado é comum que uma patologia somática tenha como desencadeante certas perdas importantes de pessoas coisas afetos ou va lores às quais o indivíduo reage com o sentimento de abandono e desesperança O fenômeno pelo qual o paciente especialmen te em estado regressivo tende a repetir com o seu médico os típicos modelos de como ele se relacionava com as importantes figuras do seu passado é conhe cido como transferência a qual sob graus e níveis diferentes está sempre presente na relação médica Essa reação transferencial tanto pode ser positiva como negativa Dessa forma podese perceber que um mesmo médico pode estar sendo visto por um de terminado paciente como sendo uma mãe boa que o cuida e dá bons alimentos simbolizados nos medi camentos enquanto outro paciente pode vivenciar estes mesmos medicamento como sendo porcarias que envenenam provindas de uma mãe má Da mes Psicossomaticaindd 82 Psicossomaticaindd 82 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 83 ma forma certas manipulações médicas podem estar significando castigo para uns sedução para outros e assim por diante É o fenômeno transferencial que explica o fato de que no cotidiano clinico o médico se defronta com pacientes que vão desde um polo de extrema dependência e que o solicitam por tudo e por nada até aos de outro extremo e que apresentam uma hostilidade com um negativismo em colaborar em reconhecer melhoras etc Da mesma forma como foi destacada a transfe rência é preciso enfatizar que também o médico tem sentimentos de toda ordem em relação a seus dife rentes pacientes sendo que esse fenômeno é denomi nado contratransferência É importante no entanto diferenciar de quando se trata de contratransferência decorrente da resposta do médico às angústias nele depositadas pelo paciente ou se é uma transferência do próprio médico em relação a seu paciente pelo fato de que este possa estar lhe representando uma mãe um pai um irmão rival um filho etc Um crité rio que o médico pode utilizar mercê de uma capa cidade de autoobservação é o de reconhecer se ele apresenta de forma repetitiva os mesmos problemas com uma mesma categoria de pacientes Descrevemos separadamente a transferência e a contratransferência mas deve ficar bem claro que ambas são simultâneas e interativas sendo que elas configuram em cada situação médica um vínculo muito singular e na maioria das vezes de um curso natural e produtivo Mas há riscos quanto à possibili dade da formação de conluios inconscientes os cons cientes e melhor chamalos de pactos corruptos os quais consistem numa despercebida aliança que complementa e atende às demandas neuróticas de ambos Esse é um tópico muito importante entre outras razões óbvias pela sua alta incidência Costumamos perceber com facilidade quando o paciente procura in duzir o médico ao papel de mágico de amante etc mas o fato de que a recíproca é verdadeira é de reco nhecimento bem mais difícil A bem da verdade não se pode negar o fato nada incomum de que o médico possa estar buscando gratificações através do paciente para as suas necessidades de amizade amor prestígio poder sexo ou dinheiro O dia a dia da prática médica nos fornece uma abundância de situações de conluios médicopaciente mas para ficar em um ou dois exem plos serve o sabido fato de que não são nada raras as cirurgias que alguns médicos possam reconhecer como sendo desnecessárias mas assim mesmo as praticam quando são induzidos por pacientes masoquistas por exemplo Outro exemplo trivial de um conluio que promove uma recíproca gratificação ilusória con siste numa atitude do médico em presentear seu pa ciente com amostras grátis de medicamentos mesmo sabendo que estes não vão ajudar em nada ou pelo contrário podem causar prejuízos E assim por diante mas prefiro deixar para o leitor exercitar sua capaci dade de observação e imaginação para suplementar a extensa e poliforme exemplificação a qual pode ser colhida a partir de um adequado senso critico em rela ção aos outros colegas ou com algum esforço e cora gem em relação a si próprio O tipo de personalidade do médico é sem dúvi da um importante fator determinante da qualidade da relação médicopaciente mas a formação de um bom médico não exige um determinado tipo padro nizado pelo contrário não importa se ele é mais ou menos extrovertido circunspecto bonachão de esti lo brincalhão e assim por diante desde que conserve alguns atributos mínimos e indispensáveis que serão mais adiante especificados A predominância de cer tas características psíquicas define o tipo de persona lidade que numa descrição a mais sintética possível permite destacar os seguintes Depressivo prevalece um permanente pessimis mo negativismo e autodesvalia Maníaco um otimismo exagerado sem base real Paranoide atitude querelante e desconfiada Obssessivo rigidez e um desgastante detalhis mo Fóbico evitação de tudo que possa despertar al guma ansiedade Histórico dramatização de qualquer situação in tolerância às frustrações usa muito o recurso da seducão Esquizoide um jeito esquisito e uma acentuada dificuldade de relacionamento pessoal Psicopata o engodo é a tônica Narcisista O valor mais importante é sempre o da busca do aplauso para si Uma combinação dos itens acima descritos con verge para a conduta médica a qual fica estrutura da numa série de capacidades e atitudes internas do médico As quais somadas aos seus conhecimentos e habilidades definirão o perfil de sua formação Isso lhe exige uma série de atributos ATRIBUTOS DO MÉDICO Faz parte de sua identidade profissional que para assegurar uma consistência e coerência profis sional o médico tenha seu esquema referencial e isso consiste no conjunto de conhecimentos afetos e experiências com os quais ele pensa age e se co munica Psicossomaticaindd 83 Psicossomaticaindd 83 05012010 121205 05012010 121205 84 Mello Filho Burd e cols O médico tem de uma forma manifesta ou la tente uma relevante potencialidade de exercer uma ação psicoterápica se entendermos Psicoterapia num sentido mais amplo ou seja como significando to das as influências psicológicas aplicadas ao paciente para fins terapêuticos É importante que o médico não incorra em ex cesso na costumeira dissociação entre o psique de um lado e o soma de outro ou do órgão doente iso ladamente dissociado da integração biopsicossocial Capacidade de intuição e de empatia É útil fa zer uma distinção entre o significado de empatia e os de simpatia e intuição Essa última é uma capacidade que pertence à área cognitiva surge antes do raciocí nio lógico dedutivo e permite ao médico reconhecer aquilo que vai além do que aparece como concreto e visível Simpatia designa a qualidade de agradar e ca tivar sendo que ela tanto pode ser um dom natural e genuíno como pode ser fruto de um estudado esfor ço A empatia no entanto é uma capacidade da área afetiva e tem uma significação bem mais profunda qual seja a de poder colocarse no lugar do paciente conforme nos ensina a etimologia em estar den tro da patia a pathos do outro Não é raro que a título de empatia o médico adote uma conduta de um desvelamento excessivo quase sempre a serviço de suas próprias ansiedades o que pode leválo a borrar os indispensáveis limites que devem sempre ser mantidos Da mesma forma é imperativo que o médico saiba delimitar os distin tos papéis e funções que em todo o ato médico são atribuições respectivas do médico do paciente do fa miliar etc e isso ganha relevância quando coincide que e um médico que esteja na condição de paciente Nos casos mais extremos em que fique perturbada a delimitação da distância e dos papéis a situação mé dica restará confusa quando não caótica E de uma adequada capacidade de empatia que derivam os es senciais atributos de respeito e tolerância Capacidade de ser continente O termo conti nente vem do latim coritenere conter e aduz à capa cidade do médico poder conter nos mesmos moldes como uma mãe tranquila faz com seu filho pequeno as angústias fantasias e necessidades de seu paciente aflito especialmente aquelas que acompanham as vi vências de morte e as agudizações das crises existen ciais É igualmente importante que o médico possa ser continente de suas próprias angústias dúvidas e do não saber A falta dessa capacidade é respon sável pela atitude médica que se caracteriza por um excesso da medicação de encaminhamentos de pe didos de exames por uma devoção exagerada ou por alguma forma de fugir do doente Capacidade para se deprimir Toda e qualquer pessoa tem virtudes e defeitos alcances e limitações e comete acertos e erros O aprendizado do médico se tempera na prática da experiência especialmente das frustrantes desde que ele tenha condições para se deprimir ou seja reconhecer e se responsabilizar por suas falhas e limitações e a partir daí procurar corrigir a trajetória de sua ininterrupta formação profissional O contrário disso ocorre com aqueles que apresentam exagerados traços caracterológicos do tipo paranoide ou narcisista o que faz com que no primeiro caso estejam sempre procurando ver a responsabilidade nos outros enquanto os mais narci sistas não conseguem olhar além do seu próprio um bigo pois estão convictos que o acerto e a verdade sempre lhes pertence e por isso mesmo não toleram contestações e se dão mal com os pacientes que não melhoram logo Uma boa elaboração depressiva abre os caminhos para a discriminação individuação au tonomia reflexão e criatividade Capacidade de comunicação Sabemos que a comunicação humana não se processa pela via única da linguagem verbal Pelo contrário é muito comum que ela se expresse através de recursos não verbais entre os quais deve ser levado muito em conta o códi go da linguagem corporal contida por exemplo nos gestos posturas actings sintomas conversivos doen ças psicossomáticas etc Não há nada pior no ato médico do que o diá logo de surdos da incomunicação razão por que é da máxima importância que o médico possa traduzir a linguagem do paciente quando ela vem trazida sob signos primitivos Toda a comunicação importa um emissor de alguma mensagem e um receptor da mes ma sendo que os seus distúrbios se originam num desses dois polos ou em ambos Na pessoa do médico essas falhas mais comu mente decorrem do fato de a não saber escutar é diferente de ouvir que é uma simples função fisiológica assim como saber ver e bem mais complexo do que simplesmente olhar b ter a mente saturada por preconceitos ou seja por préconceitos c incorrer no vício daquilo que Balint chama de função apostólica consiste numa tendência co mum nos médicos a de catequizar seus pacientes com julgamentos morais e padrões de comporta mento d haver um envolvimento contratransferencial com uma perda na delimitação dos papéis Há mais de 100 anos William Motsloy em Fisiologia da Mente escreveu Quando o sofrimento não pode se expres sar através do pranto ele faz chorar outros órgãos Psicossomaticaindd 84 Psicossomaticaindd 84 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 85 e haver um descompasso semântico ou seja mui tas palavras ou jargões técnicos que para o médi co têm um significado e para o paciente podem estar tendo outro às vezes bem o oposto f dificuldade de lidar com as verdades Este tópico diz respeito à maior ou menor capacidade do mé dico em ouvir reconhecer e comunicar as verda des penosas Dentre os inúmeros exemplos contidos em meus apontamentos recolho ao acaso um muito simples o de uma médica muito competente que não conse guira chegar ao diagnóstico de um processo maligno apesar dos claros indícios clínicos percebidos pelos demais colegas que com ela participavam de uma dis cussão clínica No grupo de reflexão que se seguiu surgiu a verdade a médica era amiga da paciente e por isso teve que negar inconscientemente é claro tão dura realidade É uma arte saber comunicar com uma linguagem de compreensão clara sem nunca fu gir da verdade as meiasverdades sim são permiti das quando elas representam um respeito ao ritmo e dosagem ditados pelo paciente sem ferir a autoes tima deste e principalmente nunca desesperançálo totalmente Creio desnecessário frisar que outros atributos poderiam ser arrolados e os que foram acima men cionados são indissociados sendo que só foram des critos separadamente em razão de um esquema de exposição ALGUMAS SUGESTÕES É de consenso que tradicionalmente nossas faculdades de Medicina descuram quase completa mente da formação psicológica do médico apesar de que mais recentemente algumas delas têm es boçado um movimento no sentido reverso O exces sivo número de alunos em cada faculdade impede uma vivência mais particularizada com os médicos instrutores o que leva a um prejuízo em ter mo delos para a identificação e logo na formação da identidade médica O mercado de trabalho compele o estudante a entrar na faculdade já querendo ser especialista e lhe falta a motivação em começar o aprendizado pela atenção primária da saúde Por outro lado esses inconvenientes são compensados pelo fato de que os alunos da atual geração são sau davelmente mais contestadores e não aceitam a im posição de uma retórica se a mesma não tiver com provação concreta A formação psicológica do médico no tocante ao desenvolvimento de atitudes internas as externas são decorrências dessas exigiria que o programa cur ricular do ensino normal fosse complementado com um Programa de Educação Médica Educação para a modificação de conduta não se consegue através de aulas seminários de psico logia dinâmica palestras cursos de atualização ou qualquer outra programação teórica ou até mesmo prática se essa não for acompanhada de um efetivo espaço que propicie exercícios de reflexão sobre as vicissitudes do ato médico Dentro deste contexto e sem a menor preten são de qualquer originalidade vamos a algumas su gestões A filosofia dos responsáveis pelo ensino médico deveria estar centrada na preocupação de conseguir uma melhor média harmônica entre a parte infor mativa e afirmativa sempre dentro de um integrado tripé biopsicossocial É evidente que outros recursos modernos como videotapes circuitos de televisão dramatizações computadores etc podem e devem ser utilizados desde que isso não implique um menos cabo à experiência única e insubstituível do contato direto com a doença e o doente Um problema que se interpõe é que nem sempre os professores mesmo os competentes e bem intencio nados estão preparados para servir como um bom mo delo de formação psicológica médica e seria desejável que os mesmos participassem de grupos de reflexão de Programas de Educação Médica Continuada As atividades clínicas constantes de seminários rounds discussões clínicas etc exercidas sempre ao vivo junto ao paciente e a posterior discussão em ambiente privado dos aspectos técnicos deveria de forma sistemática ser simultânea à apreciação da atmosfera emocional que cercou o ato médico E igualmente importante por parte dos alunos do gru po de aprendizado o exercício de auto e heteroava liação da relação médicopaciente É evidente que não é preciso que o médico seja analista ou psiquiatra para reunir as necessárias condições para bem poder coordenar atividades dessa natureza Mas é desejá vel especialmente no início que um psiquiatra bem treinado participe da equipe de educação médica O realce ao bem treinado se deve ao fato de que nada é pior do que uma participação em que prevaleçam explicações de profundos psicodinamismos ou in terpretações selvagens acerca da doença do doente e Há uma diferença quanto à ideologia de aprendizado entre ensino e educação Como nos ensina a etimologia a palavra ensino alude a Colocar dentro do aluno en uma renovada carga de informação signo enquanto o termo educação indica que a essência da aprendizagem consiste em dirigir para fora ed ducare os recursos que em estado potencial já estão dentro do individuo Psicossomaticaindd 85 Psicossomaticaindd 85 05012010 121205 05012010 121205 86 Mello Filho Burd e cols do médico isso só conduz a um descrédito da teoria psicanalítica a uma falsa noção do que deve ser con duta psicoterápica e a uma crescente incomunicação entre psiquiatras e não psiquiatras Trabalho clínico com o espírito de equipes mul tidisciplinares e serviços de interconsultoria Quanto à consultoria psiquiátrica deve ficar bem claro que a função do psiquiatra consultor não é a de quebrar galhos de intercorrências psiquiátricas ou a de as sumir o atendimento da parte psíquica Sua função é a de promover condições para o médico continuar atendendo seus pacientes só que a partir de uma vi sualização mais compreensiva Da mesma forma a interconsultoria ficaria muito enriquecida a partir da instalação de unidades psiquiátricas dentro dos hos pitais gerais e de um estímulo à investigação e pes quisa dos aspectos psicossomáticos da Medicina Participação do médico em programas de pro moção de saúde mental em nível comunitário com um estímulo a que exercite a coordenação de ativi dades grupais com fins de Educação em Saúde Pri mária Promoção de programas integrativos de Educa ção Médica Continuada como apregoamos Zimer man 1980 p 155158 desde o início da vida aca dêmica com ênfase nos grupos de ref1exão O manejo técnico utilizado neste tipo de grupo consiste em que seu coordenador centralize a discus são no tema que como um denominador comum emerge da livre discussão que se estabelece a par tir do aporte das vivências clínicas O coordenador através de breves estímulos colocações e indagações mercê de uma capacidade de discriminação e sínte se ajuda o grupo a sentir indagar e incorporar um conjunto de valores que convergem para as atitudes médicas A responsabilidade pelo ensino médico e pelas chefias de serviços assistenciais deveria ser entregue a médicos sintonizados com o espírito da formação que foi preconizado ao longo deste trabalho REFERÊNCIAS Balint M The doctor his patient and the Íllness Londres Pitman Medic Public 1957 Bleger J Gmpos operativos no ensino In Temas de Psicologia São Paulo Martins Fontes 1987 Dellarosa A Grupos de Reflexión Buenos Aires Paidós 1979 Simmel E The doctor game illness and the profession of Medici ne Inr 1 Of PsychoAnal n 7 1926 Tahka Veikko O relacionamento médicopaciente Porto Alegre Artes Médicas 1988 Zimerman D E Considerações em torno de um Programa de Educação Médica Continuada Rev AMRIGS Porto Alegre v 24 n 2 p 155158 1980 Zimerman D E Aspectos psiquiátricos na prática médica O me dico e seus relacionamentos Rev Psiquiatria do RS Porto Ale gre v 3 n 1p36401981 Zimerman D E Consultoria Psiquiátrica Rev AMRIGS Porto Alegre v 27 n 2 p 271274 1983 Zimerman D E Técnicas grupais aplicadas ao ensino médico In Grupoterapia Hoje Porto Alegre Artes Médicas 1986 Grupo de reflexão é a denominação utilizada pelo psicanalista argentino Dellarosa 1979 para um tipo de atividade grupal de educaçãoaprendizagem cujo modelo de funcionamento equivale ao de outros conhecidos com denominações diferentes como por exemplo Grupo Balint Balint 1957 ou Grupo operativo de Pichon Riviere Ble ger 1987 ou Grupo F F vem de formation e de free Prefiro o termo reflexão porque este sugere mais claramente que os participantes possam se refletir uns nos outros com vistas a uma maior valorização dos aspectos positivos e a uma menor desvalorização dos neuróticos por outro lado o termo re flexão indica que a finalidade precípua do grupo é a de levar o indivíduo a flectirse sobre si próprio através do pensar e do sentir e assim leválo a aprender a aprender Psicossomaticaindd 86 Psicossomaticaindd 86 05012010 121205 05012010 121205 Psicologia Médica é uma ciência nova e se ocu pa fundamentalmente da relação médicopaciente Embora o encontro diagnóstico e terapêutico crie uma unidade funcional fazse mister estudar o que é ser médico a fim de compreender como diferentes fatores interferem na tarefa assistencial A preocupação com a identidade é milenar e se na adolescência sua consolidação é meta relevante esperase que na idade adulta dois aspectos básicos já estejam definidos o desempenho do papel profis sional e do papel heterossexual A identidade basta ver nas carteiras ou nos cabeçalhos de dossiês pessoais tem dimensões que a fundamentam e impregnam de significado tais como nome filiação naturalidade nacionalidade religião idade estado civil e profissão Enquanto tais dimensões radicam no biológico status e papel são o que de fato são configurandose a identidade etária genética e sexual Entretanto no campo psi cossocial o que se agiganta é um leque de opções em que a atividade laborativa nem sempre repre senta o objetivo colimado Há destarte pessoas que não escolheram suas profissões delas não gos tam e caso sejam médicos o grande prejudicado é o paciente Assim em circusntâncias ideais a profissão médica deveria originarse na vocação vocare cha mar Isso significa que o médico optou pelo papel porquanto se sente por ele chamado atraído e capa citado a amar sua atividade Tratase pois de uma opção adulta e o papel só pode ser exercido por quem já está suficientemente amadurecido Estes são aspectos que pavimentam o início de uma carreira ser adulto e amar a atividade profis sional Todavia há certas particularidades de ine gável importância que passaremos a ver pois per mitem aprofundar o conhecimento da identidade médica O MUNDO DE RELAÇÕES Surge em primeiro lugar a relação consigo mes mo Em sua trajetória existencial o médico passa por crises em que se altera Em que pesem grandes trans formações ditadas por crises evolutivas ou acidentais há normalmente um vínculo de integração temporal que assegura ao médico ser ele mesmo sempre Em segundo lugar há que enfocar a relação que resulta nos pares simétricos Isso quer dizer que no relacionamento com seus colegas o médico com eles se identifica positiva ou negativamente depurando e aprimorando sua identidade profissional Ao lado disso desponta a relação médicopa ciente que cria um par complementar Assim aparece a vivência contrastante eu sou eu porque não sou como o outro No caso anterior a formulação é nós médicos somos idênticos universalismo No entanto ser médico e ser paciente são condi ções que se opõem dialeticamente É de notar que o médico quando adoece se compreender as vicissitu des do enfermo ganhará uma dimensão mais huma na no exercício de sua função HOMEM OU DEUS A medicina nasceu com o sacerdócio e assim apareceu impregnada de magia religião e poder O médico das sociedades tribais e o intermediá rio entre deuses e mortais Em realidade seu poder é maior que o do próprio chefe reforçando a fanta sia arcaica do ser humano ambicioso por ser divino Na trilha mítica do herói encontramos não raro sua morte na identidade humana para renascer na identi dade divina sendo então adorado como tal A importância do status de médico no sistema social embriaga e desde os feiticeiros tribais até seus 7 IDENTIDADE MÉDICA Adolpho Hoirisch Psicossomaticaindd 87 Psicossomaticaindd 87 05012010 121205 05012010 121205 88 Mello Filho Burd e cols sucessores contemporâneos diplomados todo cuidado é pouco para não nos comportarmos como deuses A evocação do mito grego do deus da Medicina reforça a tese em questão Asclépios ou Esculápio foi além da arte de curar e começou a ressuscitar os mortos Hades ou Plutão vendo seu reino despo voado queixouse a Zeus ou Júpiter e o pai dos deuses senhor absoluto do Olimpo fulminou Asclé pios com um raio A identidade médica se deforma quando este profissional impede que o moribundo pereça com dignidade prolongando uma vida impregnada de so frimento e humilhação Outra distorção da identidade médica vinculase ao papel heróico destarte certos profissionais sentemse frustrados e até reagem com desprezo e hostilidade quando são chamados a aten der casos sem gravidade bem como a simuladores ou hipocondríacos A ideia de que a águia não pega moscas não se aplica ao exercício da Medicina INICIAÇÃO CONTRADIÇÕES E CRISES O rito de iniciação do médico passou a ser efetua do nas faculdades e a prática profissional saiu dos tem plos para se concretizar nos consultórios e hospitais A entrada do estudante na faculdade de Medi cina abre um mundo novo em que rupturas vincu ladas a contradições se sucedem com extraordinária rapidez O aluno que fora habituado a respeitar os mortos sentese agora como um profanador Aliás o contacto com o morto revestese de particular im portância constituindose em verdadeiro batismo de fogo Tal crise põe à prova a capacidade de enfrentar a morte e conviver com sua presença marcando de modo indelével a iniciação do calouro A par disso o aluno geralmente um jovem até então condicionado a sentir aversão por fezes urina secreção purulenta etc passa a partir do ingresso na faculdade a lidar com tais materiais Sucede como crise não menos relevante a tran sição do ciclo básico para o ciclo clínico Do convívio com peças anatômicas e material de laboratório en fim com o inanimado o estudante é lançado no hos pital onde no ambulatório e nas enfermarias estão pessoas vivas porém avassaladas pela doença pelo sofrimento pela mutilação pela invalidez e o que se agiganta na formação médica pela morte O acompanhamento de pacientes acometidos de doenças graves acarreta vez por outra nos estu dantes de Medicina autêntica identificação com os pacientes Os alunos chegam mesmo de tão impres sionados que ficam a experimentar os sintomas dos enfermos E o que A Eksterman chama de hipocon dria transitória do terceiro ano Outra condição que se soma às anteriores refe rese à invasão da intimidade Os estudante de Medi cina anteriormente educado a respeitar a nudez e a privacidade das pessoas quando se iniciam no ciclo profissinal devem mudar de comportamento Crises e contradições se sucedem comparando se a verdadeira corrida de obstáculos Verificam que professores de aulas bem ordenadas claras e ricas de conteúdo podem não ser bem sucedidos no exercício da clínica privada Desiludemse também com alguns mestres que tratam de modo diverso o paciente parti cular e o institucional Seguemse várias outras Vale mencionar a per da do primeiro paciente que acompanha o caso de difícil diagnóstico eou de resultados desconcertantes à terapêutica o convívio com loucos na psiquiatria a escolha da especialidade e finalmente a colação de grau SER ADULTO É inadmissível imaginar o desempenho do papel de médico sem que o indivíduo seja adulto ou velho O adulto apresenta uma série de característi cas muitas das quais indispensáveis à atividade em apreço Citemos algumas alto nível de tolerância à frustração capacidade de controlar racionalmente ou derivar adequadamente os impulsos agressivos e eró ticos capacidade de se adaptar às situações novas ter propósitos bem definidos e coerentes capacidade de suportar a realidade capacidade de fazer planos para o futuro e até mesmo prevêlo maturidade psi cossexual renúncia ao impossível etc A tudo isso que foi enfocado em relação à ma turidade agrega o velho como características mar cantes a sabedoria a prudência e a experiência É óbvio que um dos traços do velho o modo de ser conservador não pode contaminar a ciência médica timbrada como todo corpo de conhecimento pela initerrupta renovação CIENTISTA Como cientista deve o médico orientarse pela procura permanente da verdade Entretanto ocorre que muitas verdades são provisórias razão pela qual deve o médico se capacitar a substituir seus conheci mentos por outros mais atualizados e úteis sempre que necessário O espírito jovem que se confunde com o revolucionário deve nortear o cientista na busca in cessante de novos inventos e descobertas A ciência não pode ficar escravizada ao espírito conservador agora ela se supera em progressão exponencial Psicossomaticaindd 88 Psicossomaticaindd 88 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 89 Surge então a educação permanente que marca o verdadeiro cientista Congressos livros e revistas especializadas centros de estudos etc são formas de renovar conhecimentos e técnicas colimando o bem estar da clientela É direito de qualquer cientista ter religião ou pro fessar e defender ideias políticas o que não se pode aceitar é o avassalamento da ciência a preconceitos Evidentemente o trato aos pacientes é igualitário é inconcebível diferir ao sabor de religião partido políti co nível econômico relevância social etc Nunca é demais recordar a formulação de Mário Bunge 1972 segundo a qual a ciência se corrompe quando se põe a serviço da destruição do dogma do privilégio e da opressão Nessa linha importa enfatizar que o médico in tegra uma confraria elitista juramentada subordina da a rigoroso Código de Ética Se voltarmos ao passado histórico da Medicina veremos o Código de Hamurabi como enérgica adver tência à responsabilidade pecando porém pelo peso extremado das penas impostas aos médicos O insu cesso de certos tratamentos resultando em invalidez podia ser motivo suficiente para amputar as mãos dos médicos No Egito Antigo havia nos templos um livro com as regras da arte de curar Quem as violava podia ser castigado até com a pena de morte Episódio digno de alusão ocorreu na Grécia An tiga quando Alexandre condenou Glauco à crucifica ção porque abandonou um paciente febril a fim de ir ao teatro Outro aspecto merecedor de estudo referese às manchas cegas do conhecimento médico Heródoto de Halicarnasso redigiu em 450 aC o primeiro do cumento sobre a medicina egípcia Diz ele O país todo está cheio de médicos pois há médicos para os olhos outros para a cabeça outros para os dentes outros para o corpo e outros também para doenças obscuras O médico que não foge ao enigma das doen ças obscuras se não for um charlatão represen ta a figura heróica sempre disposta a saber mais da Medicina e de seus pacientes É neste mundo do desafio da ignorância que cresce o estudioso e o pesquisador sem os quais a ciência permanece estagnada Podese dizer que até o século XVI as inovações encontravam sempre grandes resistências No perío do renascentista foi quebrada a influência escolástica da Igreja e os dogmas foram substituídos pela experi mentação e pela observação sob o domínio da lógica e do raciocínio Como uma profissão verdadeiramente baseada em sólido e atualizado saber científico e uma práti ca sabidamente eficiente a Medicina autêntica não pode mais ser confundida com o charlatanismo o curandeirismo popular ou a feitiçaria O médico que abraça as práticas heterodoxas ou acientíficas distan ciase de seu verdadeiro papel SOCIEDADES MÉDICAS A exemplo das sociedades secretas que se em penham na constante busca da verdade apresentan do na sua inserção do contexto social uma clara deli mitação entre fora e dentro assim se apresentam os médicos frequentemente A denominada letra difícil os termos impreg nados de raízes gregas a anatomia prenhe de nomes próprios difíceis de memorizar a bioquímica e a far macopeia girando em torno de estruturas complexas e até mesmo de denominações que encerram um sem número de radicais desconhecidos dos leigos o co nhecimento das iatropatogenias que tira dos curan deiros populares onde se incluem os balconistas de farmácia o conhecimento dos efeitos adversos dos medicamentos tudo isso e muito mais dá maior ni tidez à delimitação que se impõe entre os iniciados nos segredos da Medicina e os profanos Como confraria elitista juramentada sentem seus integrantes a necessidade da coesão e solidarie dade análogas à das sociedades maçônicas que tam bém impõem pesadas sanções aos transgressores de seus códigos CONSIDERAÇÕES FINAIS Se a Hipócrates coube alicerçar o ensino médi co com ensinamentos profundos e bem estruturados foi na universidade medieval que o título de doutor foi criado Com o título surgiu também o status no contexto social uma educação apropriada com im portantes afiliações em diferentes instituições Assim no século XV apareceram leis que regulamentavam o exercício da Medicina criando currículos exames e concessão do grau a partir do estado a remuneração e vigilância sanitária das cidades Essa legislação se espalhou gradativamente da Sicília para a Espanha e a seguir para a Alemanha Surgiu então o papel social do médico com estabilidade e proteção para desenvolver métodos e técnicas aplicando conheci mentos de uma ciência que combatia doenças Aspecto interessante bem ilustrado no cine ma teatro e histórias em quadrinhos é a imagem do médico na sociedade contemporânea Além de pôr ênfase em seu comportamento altruísta retratase o médico em um homem como pessoa de meiaidade ou velho de cabelos encanecidos ou calvo de óculos Psicossomaticaindd 89 Psicossomaticaindd 89 05012010 121205 05012010 121205 90 Mello Filho Burd e cols que mantém sua neutralidade afetiva a despeito de comportamento sedutor e erótico das pacientes ou diante de reações hostis dos enfermos Esmaecidos os laços mágicoreligiosos tornou se o médico mais e mais um cientista Esperase sempre que o médico tenha conhecimento científico amplo profundo e atualizado além de prática para lidar eficientemente com os pacientes O interesse voltado ao bemestar do público re legando a segundo plano os ganhos materiais é uma característica marcante do papel social de médico considerado como algo singular se comparado a ou tras profissões A especificidade funcional dálhe direitos até deveres muito específicos exame físico questionar aspectos íntimos do paciente decidir internações Ao mesmo tempo sua função encerra aspectos universais da profissão isto é não emanam de casos particulares Incluise aqui por exemplo a decisão de desligar aparelhos ou ministrar entorpecentes pos sibilitando assim a chamada morte com dignidade Vale dizer há determinados procedimentos do médi co que fazem parte do comportamento universal ima nente à profissão O Xamã é uma figura altamente ilustrativa que sobrevive nas sociedades tribais do mundo atual Ora ali fica também clara a exigência da neutralida de afetiva Um dos modelos de relação xamãdoente se as senta na circulação da enfermidade É de notar que por meio de contacto físico a doença migrará do corpo do paciente para o do feiticeiro e este por sua vez a jogará para fora em um campo tabu Entretanto o as pecto importante é que apesar da doença ser incorpo rada pelo médico tribal esta não lhe causa dano Isso é válido ainda hoje visto como é de se desejar não ter o médico de contrair doenças e no modelo psiquiátrico não se envolver na loucura do enfermo Do exposto podemos concluir resumidamente que o médico é uma pessoa amadurecida um cien tista diplomado consciente da educação permanente como indispensável altruísta capaz de controlar suas emoções para preservar a relação com o paciente e não lhe causar dano com domínio de métodos e téc nicas com funções específicas e universais integrado a grupos societários isento de preconceitos no trato de paciente que ama sua atividade a pratica o bem responsável pela liderança da equipe de saúde e ins tituições de assistência ensino e pesquisa no campo da saúde obediente a preceitos éticos etc Como qualquer trabalho científico este não está completo Se motivou o leitor a pensar e descobrir outros aspectos terá atingido um de seus fundamen tais objetivos REFERÊNCIAS Bloom S W The doctor and his patient New York Free Press 1965 Bunge M Ética y Ciencia 2 ed Buenos Aires Siglc Veinte 1972 Coe R M Sociología dela Medicina 2ed Madrid Alianza Edi toria 1979 Galdston I Social and historical foundations Of modem medi cine New York BrunnerMazel 1981 Hoirisch A O Problema da Identidade Médica Tese de Concurso Rio de Janeiro 1976 Mazzei M L D S Dignidad de la Medicina y Otros ensayos mé dicos Buenos Aires Lopez Libreros 1974 Merton R M Ambivaléncia sociológica Rio de Janeiro Zahar 1979 Parsons T The social system New York Free Press 1964 Thørwald J O Segredo dos Médicus Antigos São Paulo Me lhøramentos 1985 Vilabrega1 P La relation thérapeutique Paris Flammariøn 1962 Psicossomaticaindd 90 Psicossomaticaindd 90 05012010 121205 05012010 121205 PARTE 3 Temas básicos Psicossomaticaindd 91 Psicossomaticaindd 91 05012010 121205 05012010 121205 PSICANÁLISE E MEDICINA PSICOSSOMÁTICA A Psicanálise e a Medicina Psicossomática es tão articuladas histórica e praticamente Renovar a análise dessa articulação é sempre tarefa oportuna permite revelar novos enlaces da Medicina com a Psi canálise e abrir perspectivas Antes é necessário diante da profusão de con ceitos delimitar nosso campo epistemológico A Psi canálise continua sendo uma psicologia em função do inconsciente um método de investigação da mente e uma atividade terapêutica Medicina Psicossomática por sua vez é um estudo das relações mentecorpo com ênfase na explicação psicológica da patologia so mática uma proposta de assistência integral e uma transcrição para a linguagem psicológica dos sinto mas corporais Creio desnecessário lembrar as raízes históricas desse último conceito mas vale sublinhar o tema das organoneuroses pautado no modelo de histeria de conversão como propôs o Fenichel Tem aumentado minha convicção de que a Me dicina Psicossomática deve mais ao psicanalista que à Psicanálise e talvez devesse restringir minha expo sição a esse aspecto embora o tema me obrigue a buscar principalmente os pontos de interseção das duas disciplinas Mas há que resgatar a pessoa do psicanalista como o grande arquiteto do movimento psicossomático do século XX e portanto da medicina integral e humanística enfim do discurso médico assistencial neohipocrático Valeria a pergunta o que é um psicanalista Sa bemos algumas coisas do que ele não é mais do que ele é Por exemplo não é exatamente um psicólogo ou um antropólogo um médico sociólogo educa dor filósofo ou religioso embora tenha algo de cada um desses profissionais Sabemos que na origem foi médico mas Freud repudiou essa equivalência não porque rejeitasse sua formação mas porque sempre percebeu a emergência de uma nova área do conheci mento situada entre o corpo e a mente e também nos espaços intermediários das relações interpessoais A Psicologia ocupase da mente mas isso não atende aos objetivos específicos da Psicanálise que privilegia as relações da mente assim a Sociologia estuda os elementos da constituição social e suas re lações enquanto a Psicanálise visa às raízes incons cientes das relações interpessoais Não é Antropologia porque não estuda o homem ente concreto mas a re lação dele consigo próprio tampouco assemelhase à Pedagogia porque é mais que ministrar conhecimen tos é o ato de se revelar e se autoconhecer Não se equipara à Metafísica no seu afã pelas respostas finais da Filosofia atémse apenas às origens da necessi dade de conhecer e aproximase do religioso quando aspira à verdade O religioso Deus o psicanalista a limitada verdade de si mesmo Não põe sequer a realidade entre parênteses como o faria o fenome nólogo contentase em descobrir os significados do acontecer mental O psicanalista é assim o estudioso e o profissional dos atos intermediários da vida hu mana humana enquanto coexistência significado e recriação Não é por acaso que a Psicanálise mal conse guiu construir uma linguagem própria para expres sar seus conceitos específicos e toma seguidamente empréstimos de outras ciências humanas e naturais Como também terse prestado como laboratório de infindas elucubrações intelectuais sobre o homem A Psicanálise é o lugar de criação permanente e o psi canalista é o espectador privilegiado desse momento Conforme Freud expôs em sua teoria estrutural é o momento em que a carne se faz verbo ou seja em que id se transforma em ego ou o isso se transforma em mim Nada tão absolutamente psicossomático quanto essa transformação e nada tão decididamente psica nalítico quanto o conhecimento dessa transformação Eis o ponto chave da interseção da Psicanálise com a Medicina Psicossomática Se pudéssemos dissecar to dos os componentes comprometidos na transforma ção do id em ego teríamos possivelmente respondido aos enigmas que subsistem entre a mente e o corpo 8 PSICOSSOMÁTICA O DIÁLOGO ENTRE A PSICANÁLISE E A MEDICINA Abram Eksterman Psicossomaticaindd 93 Psicossomaticaindd 93 05012010 121205 05012010 121205 94 Mello Filho Burd e cols Muitos elementos desse fenômeno complexo já foram revelados mas ainda não formam uma tota lidade coerente e significativa Já compreendemos alguns concomitantes hermenêuticos das manifesta ções físicas como desvelamos íntimos bioquimismos de delicadas operações mentais Já não nos surpre endem generalizações em que se afirma que todas as doenças males e distúrbios são psicossomáticos mesmo aqueles da clientela psicanalítica assim como a Medicina já deixou o sorriso irônico e cético ante interpretações psicanalíticas de manifestações corporais Ainda é pouco embora estejamos esmiu çando a intimidade físicoquímica das dimensões mo leculares e desvelando as mais estranhas fantasias do inconsciente É pouco para se estabelecer a unidade psicossomática em que a mente e o corpo possam ser representados mais que como partes de um todo o próprio todo o sujeito da existência O ponto teórico nodal que descreve a transfor mação do id em ego constitui a área de interseção da Psicanálise com a Medicina Psicossomática Freud quando discute a origem da própria mente Freud 1950 1900 1911 1915 1921 1923 1926 1933 e 1940 estabelece que a atividade corporal origina o id que em contato com o mundo exterior diferen cia uma capa mais superficial o ego Sugere que não só a atividade físicobiológica está representada na mente mas ela própria se transforma em mente Em bora no rigor do modelo físicoquímico de seu mestre Bruecke não creio que tenhamos hoje nada melhor para explicar a gênese da mente Entendase aqui não só a gênese dos processos mentais mas da própria existência da mente a qual resultaria da atividade biológica e dos múltiplos di namismos que intervêm na adaptação do organismo ao meio tanto para se perpetuar como espécie como para se preservar como indivíduo Assim a pergunta o que é mental é respondida pelo biológico Essa perspectiva unitária que não esgota o tema e a raiz de nossa concepção psicossomática Torna imperativo o estudo da mente como atividade biológica se qui sermos compreender o homem como um todo holos e refuga as observações ingênuas de sequências ou concomítáncias físicas e mentais como indicadores de causalidade tanto no psíquico para o somático como do somático para o psíquico O psicanalista patrocinou a contemplação do lugar onde o sistema físicocorporal se transfigura no ser humanopsicológico Um sistema abrindose para o outro e não causandoo Quando o id se transforma em ego o humano está sendo criado e assim a hu manidade Vários conceitos confluem para caracterizar esse espaço onde se transformam as atividades bio lógicas em mentais Um deles é o da transformação do processo primário em secundário ou em outros termos o que é experimentado como concreto real transmutase em algo abstrato virtual suscetível de ser consciente O alucinar tornase pensamento Ainda nesse espaço mental podemos entender como os conceitos da Escola Inglesa representados pelos dois impulsos básicos de amor e ódio corporificamse em substân cia mental do id e ensejam uma complexa trama de associações e conflitos a partir do contato sensorial com o mundo exterior apreendendo objetos tanto de dentro quanto de fora e produzindo uma espécie de casa malassombrada Assim como os conceitos de Bion que servem como o tecido conjuntivo dessas transformações através de composições caprichosas dos elementos psíquicos São enfim as hipóteses heuristicamente mais férteis para operacionalizar a retórica psicossomática no sentido de assegurar fun damento para a terapêutica psicológica da patologia com expressão corporal Portanto o corpo representase e recriase na mente produzindo significados que permitem o diá logo e a intervenção de um interlocutor A interven ção do interlocutor situação básica da psicanálise clínica não assegura na esfera somática necessaria mente influência curativa Caso estivéssemos traba lhando com a concepção dualista mente e corpo psí quico e somático poderíamos inferir relações causais no sentido da mente para o corpo como o fizemos no sentido corpo para a mente quando compreendendo o corpo como um sistema afirmamos que o corpo causa a mente ao se esgotar sua capacidade como sistema abrindose para um sistema hierarquicamen te mais complexo a própria mente Nesse caso não há sentido inverso Concebemos a mente não como substância no sentido material e concreto mas como algo que se estende para além das concepções sen soriais Por isso quando Freud expõe suas concepções sobre o aparelho mental o faz metaforicamente como uma espécie de realidade material que se esten de por espécie de espaço E um construto teórico A observação empírica da aparente influência dos processos mentais sobre as funções somáticas é que deu origem às especulações sobre a gênese psi cológica dos transtornos somáticos E sem dúvida quando estados emocionais corriqueiros são acom panhados de modificações somáticas é difícil resistir à tendência de estabelecer nexos causais entre por exemplo a tristeza e o choro a raiva e a azia o medo e a palidez a alegria e a mímica do riso São infini dades de exemplos frequentemente apontados como evidências axiomáticas das relações causais mente corpo e que engordam o rol dos argumentos em favor da psicogenia Quando tantas evidências falam pela Psicossomaticaindd 94 Psicossomaticaindd 94 05012010 121205 05012010 121205 dualidade a referência à unidade psicossomática soa como quimera metafísica Como sabemos essas explicações causais passa ram por três vertentes teóricas da Psicanálise A primeira delas e também a mais primitiva parte da premissa de energias psíquicas capazes de intervir nos fenômenos orgânicos corporais Essas energias livres ou ligadas antecipam princípios da moderna Cibernética e servem para lastrear a con cepção econômica da mente Delas derivam o conceito de libido de investi mento ou catexia e as bases dinâmicas dos processos de defesa Problemas técnicos como o da analisabili dade também receberam influência do ponto de vista econômico Dois mecanismos de fundamental impor tância estão vinculados às formulações energéticas a sublimação da qual deriva a formação cultural do ego e a formação de sintomas base para o estudo da Patologia Psicanalítica e subsídio essencial para o estudo da Patologia Geral A segunda vertente teórica referese a organiza ção simbólica da mente e tem subministrado impor tantes contribuições para a Psicolinguística Aí estão incluídos os conceitos de representação o estudo da memória o do esquecimento e falsificação da associação de ideias e dos processos de pensar nos quais Freud distinguiu uma forma primária ligada à linguagem inconsciente e uma forma secundária ligada à consciência e à comunicação Daí derivam nos dias atuais estudos para o esclarecimento psica nalítico do processo cognitivo Através de complexos processos de interação com o mundo a mente como concebida pela Psicanálise organiza as percepções e individualiza o ambiente Tal organização percep tiva é resultado do amálgama de elemetos das fan tasias inconscientes com as informações sensoriais estruturando um universo simbólico dentro do qual o individuo passa a viver É um modelo superponível ao concebido por Jacob von Uexküll 1922 deriva do do estudo do comportamento de certos animais Afirmava o grande biólogo alemão que nosso mundo circundante Mitwelt é percebido de forma diferente pelos seres vivos cada indivíduo vive de forma pró pria o seu mundo Umwelt Podese compreender destarte como a dinâmi ca mental constrói a sua realidade externa a qual por sua vez é responsável por acionar os mecanismos adaptativos do organismo E como cada indivíduo tem seu mundo o que nos seres humanos os converte em pessoas Mundo bom mau agressivo amoroso não tanto como ele o mundo de fato é mas como ele e construído O que chamamos de realidade exterior é a troposfera ecológica de cada pessoa construída a partir do universo simbólico de seu psiquismo e assim convertido a um hábitat cultural capaz de atender às necessidadcs do organismo Dessa forma os modelos ecológicos podem variar desde aqueles capazes de as segurar adaptações ótimas até aqueles psicotizados e psicotizantes que deterioram e desintegram a capaci dade adaptativa Aqui temos uma alternativa para refletir sobre a intervenção da mente sobre o corpo substancialmen te diferente daquela que sublinha relações causais A mente na medida em que constrói suas concepções de mundo e portanto o próprio ambiente onde pas sa a viver não só experimenta suas criações como reais como as empurra para fora transformandoas em objetos da cultura transfigurando a realidade ex terna O corpo terá assim de se adaptar àquele mun do particular criado pelo próprio indivíduo e pela sua cultura que passa a ser sua única realidade Assim pois não existe ambiente natural para o homem por que para ele a Natureza foi convertida em mundo humano por seus próprios processos mentais A terceira vertente teórica referese ao momen to evolutivo que o organismo privilegia nas suas de cisões adaptativas Faz parte da concepção psicana lítica o estudo pormenorizado do desenvolvimento com uma importante diferença sobre todas as demais psicologias Enquanto o modelo adotado pela Psico logia do Desenvolvimento é o do processo transfor mações ao longo da linha do tempo o da Psicanálise é o da estrutura transformações cambiantes dentro do espaço O espaço psicanalítico contém o tempo biográfico e se estrutura com ele A concepção atem poral do inconsciente permitenos entender que o mental psicanaliticamente concebido contém uma biografia sempre presente ou seja no homem his tória é um presente contínuo A memória fica sendo não a reserva do passado mas o fato préconsciente ou inconsciente de uma estrutura mental Quem pois responde às exigências do mundo exterior ao Umwelt amálgama de fantasias incons cientes com informações sensoriais Um ponto privi legiado do desenvolvimento de uma totalidade bio gráfica que se estende como estrutura Eis o esboço das interseções da Psicanálise com a Medicina Psicossomática com alguns vislumbres de como a mente e o corpo estão ligados na teoria como se articulam para produzir prazer sofrimento saúde lesão ou doença Assim o luto pode ser luto patológico nas identificações simbólicas com o mor to o corpo altera a imunidade para se adaptar a uma ecologia percebida como estéril mas que pode estar repleta de microorganismos as perdas emocionais empobrecem o ego vulnerabilizando dessa forma o corpo na medida em que seu espaço simbólico care ce de objetos amorosos e protetores enfim o mun do pode ser vivido como sendo um lugar de estresse insuportável ou ao contrário um lugar idealizado Psicossomaticaindd 95 Psicossomaticaindd 95 05012010 121205 05012010 121205 96 Mello Filho Burd e cols onde igualmente o organismo acaba lesado por não conseguir acionar defesas indispensáveis É sempre oportuno precaverse contra o entu siasmo exagerado quanto à contribuição psicanalíti ca imaginandoa uma cornucópia inesgotável de ex plicações ou uma fonte de possibilidades terapêuticas de molde a tornála panaceia universal Não creio que o modelo psicanalítico possa ser vir ao modelo médico dedicado à pesquisa etiológica A Psicanálise não me parece ciência que explique cau sas Ela expõe processos estruturas sistemas comple xos em que o conceito de causa se dilui na infinita causalidade Não é função da Psicanálise estabelecer etiologias mas gnose conhecimento Cabe portanto a insistência crítica sobre a noção de psicogênese tão em voga na Medicina Psicossomática o que chegou a produzir indicações da terapêutica psicanalítica como específica para certas doenças psicossomáticas A contribuição da Psicanálise à Patologia Geral e ace nar com uma nova concepção do adoecer e do gerar saúde a concepção psicossomática holistica Não cessa na compreensão da patogenia somá tica a contribuição da Psicanálise A Psicossomática também designa conota assistência integrada Aqui voltamos à contribuição não exatamente da Psica nálise mas do psicanalista trabalhando no Hospital Geral na medida em que pode apreender e traba lhar os aspectos irracionais das relações humanas na prática assistencial tomando como base o modelo transferencial contratransferencial da interação psi canalítica Ao lado disso estimula o médico do corpo a conviver com patologias mais sutis de expressão mental e acima de tudo conviver oom os pacientes compreendendoos Muita iatropatogenia é assim poupada respeitandose o estado do paciente neuró tico e com personalidade perturbada além de com prometer o médico com seu doente ampliando sua ação assistencial E o pediatra que inclui a mãe o obstetra que inclui o marido da gestante o clínico que se abre para o contorno social do doente o ci rurgião que pensa na família o hospital nos acom panhantes Exemplos ao acaso apenas para esboçar um novo horizonte assistencial O médico de família ressurge com uma perspectiva de ação e de compre ensão da maior abrangência das raízes inconscientes da conduta A relação médicopaciente apresentase como fonte extraordinária de recursos terapêuticos e criase uma nova disciplina a Psicologia Médica DANILO PERESTRELLO O PSICANALISTA E A MEDICINA Para destacar a pessoa do psicanalista como articulador do movimento psicossomático vou utili zar o exemplo de Danilo Perestrello Mas devo aos amantes do pensamento imparcial se é que os há uma advertência renunciei a qualquer tentativa de uma apreciação crítica e isenta das ideias médi cas e psicanalíticas de meu mestre e amigo Danilo Perestrello Não sem algumas explicações sobre essa atitude que parece perverter a boa educação científi ca e portanto desacreditar um texto que pretendo seja levado a sério Éme impossível dissociar a obra de seu autor Minha convivência intelectual com ele ao longo de muitos anos fizeramme chegar a saber sem modéstia mais do que ele mesmo publicou por que o texto mais importante Perestrello para mim o escreveu dentro de minha vida seja através da análise que com ele tive de todo trabalho conjunto que realizamos ou da associação acadêmica fundi da com a mais completa amizade Assim tudo o que disser dele e de sua obra não será certamente da perspectiva do relator desapaixonado Pelo contrário repensando suas ideias sintoas vir de sentimentos profundos e intensos com todo aquele entusiasmo das épocas felizes em que dávamos aulas juntos es crevíamos pensávamos estudávamos E ríamos a va ler principalmente dos que não sabiam rir Digo tudo isso sem pudor porque aprendi com Perestrello que o relacionamento humano se estabelece nas malhas de afetos intensos o pensamento se agrega num todo significativo a partir da capacidade de sentir a vida o homem é compreendido das profundezas de suas paixões a Natureza só faz sentido quando pode ser amada ou odiada As ideias pousadas em terra fir me são moribundos prestes a serem enterrados As ideias vivas são como barcos ao sabor dos caprichos do mar Talvez por isso Perestrello amasse o mar e por ele navegasse tanto Ele convenceume que o diálogo entre a Psica nálise e a Medicina só é possível pela presença do intérprete psicanalista Não exatamente aquele que faz interpretações como poderíamos deduzir do es quema da psicanálise terapêutica mas o que apro xima os significados de duas linguagens diferentes a biomédica e a psicológica e as torna inteligíveis entre si Também convenceume embora nunca o ti vesse declarado que a Psicanálise pode ser o alicerce da própria arte médica daquela arte que transcen dendo a simples cura de doenças restaura o mode lo hipocrático de tratar doentes o que é o cerne da própria cura Convivi com ele 13 anos no Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro de 1963 a 1976 quando se afastou por doença deixan dome no encargo de prosseguir sua obra Antes de encontrálo pela primeira vez já havia instalado na mesma Santa Casa no Serviço do Prof Carlos Cruz Lima um Setor de Medicina Psicossomática Devo a Psicossomaticaindd 96 Psicossomaticaindd 96 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 97 Cruz Lima a insistência por nossa aproximação Fui vêlo em minúscula saleta dedicada ao gabinete de Psicossomática no Serviço do Prof Clementino Fraga Filho Amável e inquieto ao mesmo tempo seus olhos penetrantes pareciam passear o tempo todo e tinha o hábito de cruzar as pernas e agitar uma delas Pare cia pensar com o corpo todo e assim dava a estranha sensação de saber demais Acho que por isso também procurei mostrar que sabia alguma coisa e despejei meus parcos conhecimentos Perestrello ficou muito quieto ouvindome com atenção e interesse e fez al gumas quantas perguntas Tive até a incrível sensa ção de terlhe ensinado alguma coisa quando sabia que ali estava aprendendo Não se tornar humilde como se poderia supor mas ouvinte Raramente me senti tão ouvido e confesso tive medo E assim fiquei sem procurálo alguns meses quando encontroume na rua insistiu para que frequentasse suas famosas reuniões de sextasfeiras e o fez com tanta convicção que não resisti mais Por que tive medo Possivelmen te por duas razões Perestrello era avassaladoramente autêntico e diante de alguém assim ficase obrigado a ser o que se é Acho que tive medo de me revelar Assim também sua intensa capacidade de ligação pes soal comprometia de imediato o interlocutor num vínculo afetivo Naquela época não estava disposto nem a me revelar nem a me comprometer em novas amizades Este é o psicanalista no Hospital Geral Suscita compromisso pessoal e autenticidade Assim era Pe restrello o psicanalista O encaixe com ele era com um catalisador que revolve as entranhas afetivas E ainda hoje o é apesar de doente Muito a propósito vejoo apor como epígrafe de um trabalho a frase de Guimarães Rosa retirada de Sagarana Eu sou é eu mesmo Disse tudo Não podia compreender a prática médica senão como um compromisso pessoal Dai sua noção sempre insistida de singularização do caso clínico Autêntico e pessoal só podia expres sarse em linguagem coloquial para os pacientes ou falando deles Os grandes discursos faziaos para in telectuais jamais para alunos ou doentes O colóquio é a linguagem do encontro e encontrar Perestrello era vivêlo porque ele vivia seu interlocutor Fui seu analisando durante minha formação psicanalitica e paciente em terapia de grupo na Santa Casa Embo ra sendo seu aluno discípulo colaborador e amigo acho que nunca cheguei a conhecêlo muito bem É muito esquisito até para mim fazer essa revelação mas é isso exatamente o que sinto Não se pense con tudo que emprego o sentido de conhecer como habi tualmente fazemos É claro que o conhecia intelectual afetiva e pessoalmente Falo do conhecer em que o outro se revela a partir da ocupação do seu espaço pessoal E quando o outro se define e se limita Hoje creio saber por quê Perestrello não se empurrava para dentro de ninguém Não se projetava como o fazem as pessoas quando estabelecem certo grau de ligação afetiva Ele estava ali mas não se metia dentro do interlocutor Ao contrário estando ali permitia a reflexão Na ver dade meu convívio com ele sempre aumentou o co nhecimento que tinha de mim mesmo embora nunca estivesse muito certo a respeito dele Não era uma atitude artificialmente profissional Era apenas ele Não havia na sua convivência disputa por saber textos ou citações aquilo que a intelectualidade elegante faz ostentando um saber emprestado dos outros Seu saber empurrava para a vida para o autoconhecimento para a percepção do paciente Os nomes técnicos ou os autores famosos pouco importavam Costumava dizer pilheriando que quem afirmara tal ou qual coisa fora o famoso professor francês PeritPois Era contra o estereótipo por isso seu discurso frequentemente era despojado embora fosse um cuidadoso diria mesmo minucioso cultorestudante dos autores e de suas obras interes savase mais pelo que a própria pessoa tinha a dizer Não tinha modéstia quando esta soasse falsa e assim não era portador do saber artificial construído essencialmente nos gabinetes de leitura mesmo sen do frequentador pertinaz desses mesmos gabinetes Errava com convicção e corrigiase tão logo percebes se o erro até psicanalisando o que é raro E aprendia com os alunos Acho que por isso fez discípulos Fala va fácil porque falava da alma e as frases fluíam com destino certo o ouvinte As aulas as construía ao sabor da convivência Não importa o tema dizia importa conhecer a pessoa e ao médico a pessoa do doente O tema é sempre o mesmo as palavras é que variam Não foi por outra razão que chegou a planejar e propor o que na época pareceu in sólito aos especialistas em Educação um curso de pósgraduação em Psicologia Médica sem especificar temas Não foi compreendido e não houve o curso Fi quei com o encargo de organizarlhe os cursos de gra duação Construí programas articulei a disciplina e discriminei temas As aulas de Psicologia Médica na Escola de Medicina Souza Marques ministrávamos em conjunto para uma audiência de quase duzentos alunos Frequentemente perguntavame entrando na sala de aula Qual é o tema de hoje Sobre o que Perestrello disse e escreveu sua bi bliografia extensa pode se encarregar Perestrello 1958 1974 1986 Não é difícil seguir seus passos conceituais Sua obra está permeada de coerência com seus princípios humanistas O homem e o doen te foram desde o princípio seu mote e seu foco de preocupações Pouco importava que na época fosse professor de Clínica Médica Psiquiatria adepto da Psicossomaticaindd 97 Psicossomaticaindd 97 05012010 121205 05012010 121205 98 Mello Filho Burd e cols Psicologia lndividual de Adler psicobiologista entu siasta de Adolf Meyer ou psicanalista E que tipo de psicanalista ele foi e que escola seguiu na época de sua plena atividade profissional não como hoje afas tado por doença insidiosa Foi psicanalista toutcourt aquele que alicerça em si próprio os fundamentos da Psicanálise e os reestrutura continuamente através do estudo crítico das novas contribuições Creio que isso só é exequível numa constituição pessoal parti cular quando o saber se integra ao ser A pessoa de Perestrello conjugava de preferência o verbo ser ao invés do ter E na medida em que se é tornase im possível o sectarismo Perestrello discorreu sobre o homem doente seu sofrimento seu pathos Suas teses essenciais sempre estiveram definidas a a importância da biografia na estruturação e defi nição da doença b a importância do significado emocional na com preensão antropológica do sintoma c a importância da relação médicopaciente na or ganização de uma estratégia assistencial O primeiro tópico referese à patogenia o se gundo ao diagnóstico o terceiro à terapêutica E assim que configurou sua Psicossomática em parâme tros basicamente clínicos e a transformou na Medici na da Pessoa intermediado pela Psicanálise Ao longo dos anos em que participei de suas reuniões clínicas todas as semanas ouvindo e pen sando os casos clínicos apresentados perguntavame como conseguia ele transfigurar um simples relato no cenário vivo de uma relação médicopaciente Seria porque como psicanalista introduzia novos signifi cados extraídos da linguagem inconsciente Ou se ria resultado de uma arte oculta apenas revelada a um prestidigitador do conhecimento Mais uma vez a resposta veio do óbvio A razão de seu êxito é que ele era um psicanalista que não estava fazendo psi canálise Compreendi com certa melancolia diante de tanto esforço despendido embora não de todo inútil meu e de tantos outros que o psicanalista no hospital geral não está ali para fazer psicanálise mas para ser psicanalista E se pudermos diferenciar claramente entre uma coisa e outra talvez possamos abrir uma perspectiva inteiramente inusitada não só no papel do psicanalista na patologia somática como na própria arte de psicanalisar PSICANÁLISE E PSICANALISTA Estamos habituados a pensar sobre os profissio nais em função do que fazem Assim um atleta é uma pessoa que faz esportes um professor é o que ensina um médico o que trata doentes e cura doenças um mecânico o que trabalha com ferramentas e constrói ou conserta máquinas um alfaiate o que faz roupas um psicanalista o que faz psicanálise Se perguntás semos igualmente a uma criança o que é uma pedra ele poderia nos dizer que é uma coisa para jogar ou para bater A uma menina de nove anos a quem perguntaram o que fazia o pai respondeu que era psicanalista E à professora que fizera a pergunta insistindo sobre o que era um psicanalista respondeu a menina depois de pensar um pouco um descom pliquento Portanto quando procuramos definir um profissional continuamos como uma criança concei tuandoo pelo que faz Não pelo que é Um atleta que é um cultor do corpo também pode estar assustado com a morte é além disso alvo de admiração não só por suas habilidades como por representar ideais físicos e cada atleta é algo diferente do outro Em criança admirava a habilidade de um jardi neiro cortando grama com seu longo alfanje a quem gostava de ajudar varrendo as pontas cortadas Seus movimentos perfeitos e sua postura causavamme profunda impressão Eram metódicos e certeiros nunca falhava O rosto era sereno todo salpicado de pontas de barba meio oculto por um chapéu de palha molengo roto em várias partes por onde so bressaiam pontas de palha pedindo também para se rem podadas Porque eu nunca consegui vêlo apenas como um profissional de jardim conheci o jardi neiro Jamais o definiria por sua função Como com primir um amante de plantas flores paisagens em um cuidador de jardins Como é alguém que sente a vegetação vivelhe seus brotos e sabe quando pre cisa de água ou de adubo ao qual aliás não tratam como adubo mas como comida E a tratam de fazer saborosa para suas plantas familiares para quem sorriem quando as veem verdes floridas ou com fru tos e com elas têm conversas parecendo ouvirlhes as vozes e ciumentos as protegem de mausolhados como é a vida mental o mundo simbólico de um jar dineiro Esse de minha infância observandome na faina de varrer a grama cortada advertiume Faça de modo que você não precise voltar para trás Ouvi o como a um sábio A frase repercutiu fundo na alma desfazendo meus modos atrapalhados em voltar sem pre para trás catando restos de grama que na minha pressa deixara de varrer Mas afinal o que havia de notável na frase daquele homem rústico desprovido de letras enrugado pelo sol e encanecido pela idade Frase que ficou em minha memória impregnada de paisagem e de afeto pela Natureza É porque vinha da experiência autêntica de vi ver Parecia emergir dos golpes certeiros do alfanje do plantio correto em covas perfeitas nas quais as plantas Psicossomaticaindd 98 Psicossomaticaindd 98 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 99 pareciam se acomodar como num leito mágico Sua frase nascia da força do viver e sua sabedoria da ex periência de conviver Assim aprendi que jardineiro é mais que uma relação de trabalho é uma configuração existencial que acomoda relações ímpares e salpica de significados seu contorno humano E no que se refere ao psicanalista É ele um de cifrador um hermeneuta um intérprete um desvela dor do inconsciente Não isso ele não é isso ele faz Um psicanalista é mais do que ele faz E se discuto o fato de que a Medicina Psicossomática deve mais ao psicanalista que à Psicanálise é mister esclarecer o que é afinal um psicanalista Estou convencido de que o psicanalista come çou a partir da Interpretação dos Sonhos e a Psicaná lise dos Estudos sobre a Histeria Neste último a Psi canálise assentou seus objetivos decifrar sintomas compreender a dinâmica mental e organizar ações transformadoras da vida psíquica Na Interpretação dos Sonhos o psicanalista transcende sua função e encontrase submerso em seu hábitat o mundo mí tico E que mundo é esse É a recriação humana do mundo natural mundo natural que por sua vez está dentro da constituição orgânica do homem enfim desdobrado nas múltiplas manifestações do universo físico Usando a sensoriabilidade interna e externa o homem capta seus múltiplos sinais organizase num amálgama de sensação e fantasia e assim recons truindo a realidade percebea Psicanalista é o contemplador permanente des se ato de criar o universo humano universo cujo nú cleo é o espaço mental onde continuamente fundem se sensopercepções que se transfiguram em sonhos e fantasias expressandose nas infinitas transcrições míticas cujo produto final é a cultura Por ela cultu ra o homem realiza seus sonhos na medida em que os empurra e os impõe à realidade natural Ele psi canalista como ente transfigurado pela Psicanálise é ao mesmo tempo produto autor e contemplador dessa metamorfose No cruzar a realidade física e a realidade humana é a testemunha o operário e a matéria em transformação Este é creio o âmago do problema da interpretação Não está no elemento a ser decifrado nem em sua transcrição Mas no ato de interpretar No wo Es war so Ich werde onde era id seja ego o elemento essencial da frase é a vírgula a pausa onde um se transforma em outro Nessa pau sa está o psicanalista como intérprete do processo A presença do intérprete pareceme também o aspecto mais notável do drama de Édipo Aristóteles afirma que a tragédia é o desfecho infeliz por erro de interpretação do personagem Laio manda matar Édipo ainda bebê por um erro de interpretação do oráculo mais tarde Édipo abandona Corinto e seus pais adotivos por outro erro de interpretação do orá culo de Delfos por outro erro de interpretação Édipo mata seu próprio pai na estrada e diante da Esfinge ela própria supondose corretamente interpretada em seu enigma o que entendo que foi outro erro se mata Quem é que tendo uma só voz tem às ve zes dois pés ás vezes três às vezes quatro e quanto mais débil é mais pés tem perguntou a Esfinge Na tragédia de Sófocles percebese que só Tirésias o adivinho intérprete sabe a resposta E em torno de Tirésias e de sua extraordinária capacidade que gira o desfecho Sua revolução contém a transfiguração dos personagens e em suas mãos está o próprio destino de Tebas Quem é Tirésias o adivinho Um entre muitos mitos nos conta que Tirésias desempatou a disputa entre Zeus e Hera a respeito de quem gozava mais no ato sexual Zeus opinava que era a mulher e Hera o homem Tirésias consultado replicou Se as partes do prazer amoroso podem ser contadas em dez cor responderá três vezes três para as mulheres e uma só para os homens Graves 1958 Hera castigouo com a cegueira e Zeus em compensação concedeulhe a visão interior Que significava esse extraordinário dote concedido por Zeus Nada menos que compre ender as razões dos deuses no destino dos homens Pois os próprios deuses gregos os elementos máxi mos de seus mitos eram a representação dos ideais humanos Os gregos que ainda não compreendiam physis Natureza procuravam o entendimento nas musas Por isso os gregos são o berço do humanismo Em nenhuma outra cultura fomos tão longe no enten dimento do Homem sobretudo do mundo humano Freud recupera a figura de Tirésias na cultura moderna Tornouse ele próprio Tirésias redivivo ao colocarse no centro da disputa sexual e no centro do universo mítico Eis que o psicanalista é o Tirésias atual ou pelo menos tenta sêlo O PSICANALISTA E A MEDICINA PSICOSSOMÁTICA Voltemos ao mito edípico Em outro momento apresentei com todo o atrevimento possível minha contribuição interpretativa ao mito edípico centran dome no que considero o momento culminante o encontro com a Esfinge Naquela ocasião lembrei a propósito do Corpo como linguagem Eksterman 1985 que não passaria despercebida a um psicana lista a insistência com que a Esfinge referiase a pés na frase que propõe o enigma a Édipo Recordemola Quem é que tendo uma só voz tem às vezes dois pés às vezes três as vezes quatro e quanto mais débil é mais pés tem Assim quando ouvi o enigma não pude deixar de olhar para os pés de Édipo e nada me Psicossomaticaindd 99 Psicossomaticaindd 99 05012010 121205 05012010 121205 100 Mello Filho Burd e cols Pacto psicossomático que só um gênio como Goethe pôde descrevera Também Freud engajouse na empreitada des cobrir a unidade essencial do homem E começou conferindo peso científico ao mais abstrato e subjeti vo de seus rincões o mundo onírico Esse é o desafio da Esfinge O ser tripartido e um Um também deve ser o ser dividido que é o Ho mem Um com quê Um em quê Ou apenas Um Psicossomática com outros nomes é pois o de safio permanente à inteligência do homem Não im porta que Helmholtz tenha usado esse vocábulo pela primeira vez em 1818 Se olharmos atentamente as pinturas de Lascaux veremos a preocupação do homem de Neanderthal com o enigma psicossomá tico Ali imprimiu seu alimento o bisonte o ca çador e o ato de caçar Que relação conseguiu esse Tirésias primitivo estabelecer entre esse desenho e a realidade Que pretendia deixando a marca mítica de seu mundo nas paredes mais recônditas de suas cavernas Talvez apenas a mágica de sua interpreta ção e portanto de sua criação Ali ficou o retrato de sua mente a pintura o gesto necessário para ligar sua substância mental aos objetos de seu mundo O sofrimento do homem diz a Bíblia decorre de sua separação original Sua cara depende do retorno a sua unidade essencial O que hoje podemos entender como seu problema psicossomático Em outro trabalho que intitulei O médico como psicanalista Eksterman 1978 recordei as quatro contribuições da Psicanálise no campo médico Assi naloas novamente aqui 1 um método terapêutico das neuroses 2 um método de investigação da personalidade cujos resultados permitiram aumentar considera velmente a eficácia dos tratamentos psicológicos das caracteropatias das psicoses e dos distúrbios emocionais da infância 3 uma psicologia em função do inconsciente cujo modelo teórico possibilitou interpretar sintomas orgânicos dentro de uma hermenêutica análoga à adotada para os fenômenos conversivos 4 o estudo das relações de objeto cujo modelo transferencialconstratransferencial tem escla recido alguns enigmas da interação emocional médicopaciente E continuei adiante Como sabemos essa pers pectiva de solução do clássico problema corpomente provocou considerável entusiasmo estimulando a emergência de teorias dispostas a unificar o conhe cimento da patologia do psíquico e do somático Contudo não tiveram êxito pois levadas à prática clínica acabavam sugerindo critérios terapêuticos pareceu tão óbvio nos pés de Édipo estava a cha ve do enigma portanto numa parte de seu próprio corpo Ali em seus pés estava o estigma de ação de Laio seu pai Aqueles pés gordos deformados quan do bebê atados que foram por um cravo metálico Ali estava sua identidade e alternativa para o desfe cho trágico através de uma interpretação correta A resposta É o homem dada à Esfinge quem supôs estivesse correta era insuficiente Era necessário sa ber quem era o Homem que amaldiçoava Tebas Ou quem era o centro da maldição Era ele próprio Édipo Se apenas tivesse olhado para seus pés entendido a linguagem de sua desven tura infantil impressa na sua deformação corporal jamais teria entrando naquela cidade origem e fim de sua tragédia Não conhecendo sua história teve de cumprir o oráculo como se este constituísse um man dato imperativo Assim a resposta à Esfinge seria É o homem Édipo Eu A Esfinge é um corpo mítico Por isso é construí da de várias partes de figuras diversas Tem cabeça de mulher corpo de leão asas de águia e cauda de serpente Esse tipo de construção não é para descrever um monstro é antes para representar uma ideia que deve suscitar determinado estado emocional e esti mular o retorno a si mesmo É um estímulo ao co nhecete a ti mesmo presente em toda a mitologia e em toda a filosofia grega A mulher é nossa origem a águia representa o espaço o leão símbolo da força vive na terra e a serpente símbolo da sabedoria é o elo da terra com os céus espaço É a serpente no Gênese que encanta o homem primitivo Adam com o fruto da sabedoria A Esfinge é o símbolo do enigma psicossomático A Édipo é dada a tarefa de decifrar o enigma e reunir o que parece eternamente separado a psyché e o soma a mente e o corpo Essa pretensão unificadora aparece como tema central em todos os mitos históricos e os mistérios das religiões que deles derivaram dãonos conta des se objetivo básico reunir Ao alcançar essa unidade essencial o ser humano comum convertese em um sábio e partilha a sabedoria dos deuses tornandose como eles um criador E o que pretendiam os sacer dotes dos tempos védicos ao tomar a beberragem soma assim como os parsis de Zoroastro O mesmo percebemos nas práticas de ioga dos vedantistas esti mulando a kundalini representada por uma serpente a unir os centros do corpo aos centros espirituais E o que o cabalista místico judeu busca na decifração do nome de Deus ou na representação mística do Homem O que dizer das duas Cidades de Santo Agostinho É assim que Fausto pede a Mefistófeles o encontro dele consigo próprio de seu intelecto hi pertrofiado de ideias com a carne palpitante de vida Psicossomaticaindd 100 Psicossomaticaindd 100 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 101 duplos psíquicos e somáticos levantando questões insolúveis como as relativas à prioridade entre uma abordagem clínica psicanalítica ou mista face a uma patologia diagnosticada como psicossomática Dai decorrem as tentativas de unificar através da Psicanálise as várias separações ou melhor disso ciações do conhecimento e da prática médica E isso depende vale sublinhar outra vez mais do psicana lista que da Psicanálise E agora poderíamos dizer de certos psicanalistas que como Perestrello consegui ram mais que praticar ser intérpretes Há pois quatro grandes áreas do conhecimento e da prática médica que têm especial interesse para o psicanalista A primeira referese à patologia Os primeiros estudos derivados da Psicanálise e que deram origem à Psicossomática moderna corresponderam ao pro blema da psicogenia de certos transtornos somáticos como por exemplo a asma brônquica o eczema a hipertensão essencial a úlcera péptica o hipertireoi dismo a colite ulcerativa a enxaqueca Quando Pe restrello assinalou que todas as doenças são psicos somáticas Perestrello 1964 recebeu críticas por pretender um reducionismo ao absurdo da questão psicossomática Hoje é assente que a questão psicos somática é a de toda patologia Fica a pergunta por que houve a dissociação entre mental e somático da patologia E que ainda persiste na concepção psico lógicopsiquiátrica por um lado e somática por outro do sofrimento bem como das consequências práticas na terapêutica Ambas ainda disputam suas áreas de domínio na patologia nos tratamentos e insistem nas interrelações O fato de que um transtorno neurótico pareça mais psicológico ou uma lesão orgânica pareça mais somática e portanto sua orientação terapêutica seja manipulável ora mais por recursos físicos ora mais por psicológicos não significa que ambos não sejam igual mente psicossomáticos O problema não está na pato logia está na mente do pesquisador e na do terapeuta Ele é quem dissocia a enfermidade e o sofrimento que são unitários psicossomáticos em sua origem e noso logia Por que o faz é a nossa questão Saber o que é ou não psicossomático tornase assim irrelevante A resposta não vem da Psicanálise embora pu dessemos conjecturar com base em grande núme ro de mecanismos de defesa contra a lesão física a morte a invalidez e a loucura A resposta pode ser apreendida da observação do psicanalista com o pro blema Não aquele que busca a causa da patologia como o fizeram os pioneiros que descreveram psico dinamismos causadores de patologias orgânicas mas o que percebe o doente submerso em sua construção simbólica particular em que a doença é apenas mais um componente necessário Em outros termos o psicanalista percebe a di mensão simbólica da existência além da visão bioló gica fisicalista do terapeuta biomédico São visões propriamente não se completam nem se antagoni zam São apenas perspectivas diferentes permitem configurar o doente ofuscado pela visão da doença O psicanalista pois revela o doente presença perma nente e invisível Traz à percepção a figura do asmá tico do eczematoso do hipertenso do ulceroso do hipertireoideo do colítico do enxaquecoso Revela o doente Procede como Tirésias que denunciou por trás da doença de Tebas o homem Édipo É assim que procedia Perestrello em suas reu niões clínicas Fazia o doente revelarse do quadro geral apresentado pelo relator de um caso clínico quadro que poderia ser representado como uma Ges talt de fundo e figura O médico absorto na imagem da patologia tornaa figura de um fundo que é o do ente A figura recortada do fundo patologia é pois uma abstração teórica e se confundida com a reali dade prática de forma o ato terapêutico Perestrello valorizando a pessoa e interessandose pela vida do doente progressivamente destacavao da Gestalt passando a sobressair como figura de um fundo que agora passava a ser a doença Isso era possível pelas peculiaridades do psicanalista Perestrello que acen tuava a importância da relação interpessoal Tal re velação da presença do doente mudava o destino dos procedimentos terapêuticos nem tanto por seus conteúdos mas pela forma como passavam a ser de senvolvidos E o que permitia a singularização do caso clí nico e ensejava a Medicina da Pessoa Perestrello 1974 Notável postura que lembra os procedimentos hipocráticos da Escola de Cós onde o médico con vivia com seus doentes antes de medicálos E as sim fazendo percebia as peculiaridades do doente moldando sua terapêutica para aquele doente em especial Por essa razão considero as propostas de Perestrello como neohipocráticas e pareceme que sua efetivação só se tornou possível por ele ser psi canalista A segunda fase referese à relação médico paciente A utilização da convivência como recurso terapêutico Balint 1957 é derivada da noção psi canalítica de campo transferencial Como na prática psicanalítica o campo transferencial é construído pela interpenetração dos elementos históricos dos participantes da relação Esse campo transferencial organiza o ambiente clínico o diálogo a cognição e o ato terapêutico O ambiente clínico é responsável pelo apoio holding que o paciente regredido pela enfermidade e pela privação necessita para enfrentar o estresse múltiplo desencadeado pela enfermida de pelas revivescências de conflitos históricos pelos Psicossomaticaindd 101 Psicossomaticaindd 101 05012010 121205 05012010 121205 102 Mello Filho Burd e cols exames traumáticos e pela hospitalização eventual O dialogo além dos aspectos psicoterápicos que lhe são inerentes é a fonte de informação privilegiada ao proporcionar ao médico o saber que necessita do estado do doente A cognição joga papel básico na elaboração diagnostica O ato terapêutico enfim é decorrência do am biente clínico do diálogo e do diagnóstico e se orien ta pelos vetores emocionais do campo transferencial A recomendação tradicional de que o médico não deve se envolver emocionalmente com o doente é contradita pela observação psicanalítica Ao contrá rio o médico está sempre enredado emocionalmente com a pessoa ou pessoas que estiver atendendo O grau de ignorância dessa situação emocional deter minará a qualidade da condução dos procedimentos clínicos A terceira referese à formação psicológica do profissional de saúde Nesse sentido a partir dos conhecimentos de Medicina Psicossomática desen volveuse a disciplina conhecida como Psicologia Médica que intervem na formação do profissional de saúde Medicina Enfermagem Assistência So cial Odontologia Nutrição e que pretende através de técnicas de aprendizagem ativas a familiarização do estudante com a dimensão mítica e irracional da mente entre outros temas da vida mental Permite sobretudo lidar com problemas relativos a iatropato genia induzidos pelo campo transferencial São ainda tentativas incipientes e cujos efeitos costumam ser observados por enquanto muito adiante na práti ca profissional Mas já se pode perceber o questiona mento de algumas estruturas assistenciais rígidas e pouco humanas e inclusive sua transformação pa rece derivar dessas influências na formação profissio nal Entre elas O pleito pela humanização da relação médicopaciente e dos hospitais a transformação dos ambientes pediátricos e maternoinfantis a insistên cia no alojamento conjunto e aleitamento materno a preparação psicológica do paciente cirúrgico o in teresse pela avaliação psicológica do paciente subme tido a cirurgia plástica reparadora a análise crítica e sistemática da tarefa assistencial pelos chamados gru pos Balint a formação de equipes multidisciplinares para tratamento de pacientes terminais e pacientes dependentes de atenção médica continuada desde os diabéticos aos dialisados a modificação da estru tura das UTIs E só posso continuar com um etc Na verdade o grau de influência merece uma pesquisa pormenorizada embora curiosamente os serviços de Psicologia Médica continuem com frequência como cinderelas nos hospitais onde estão instalados A quarta e última área é a da prevenção Essa aponta para o futuro embora já tivesse discorrido so bre o tema Eksterman 1983 Gostaria apenas de consignar refletindo sobre toda a investigação psi canalítica realizada a respeito do desenvolvimento humano que o modelo básico preventivo do qual podemos derivar todos os demais é aquele em que representamos um bebê instalado com segurança no colo de uma mãe sadia PSICOSSOMÁTICA E PSICANÁLISE Resta examinar a influência que a Psicossomáti ca exerceu exerce ou deverá exercer sobre a Psicaná lise tarefa sobremaneira antipática para aqueles que consideram a Psicanálise um território epistemologi co autossuficiente Considero este um problema mais do psicanalista que de sua área de conhecimento Um problema de identidade pessoal projetado sobre ciência Freud tinha em alto apreço a interdiscipli naridade Freud 1913 Seu construto teórico fun damental o inconsciente produziu tais influências sobre a cultura do século XX que dificilmente po derão ser elas avaliadas com o devido critério Dele inconsciente deriva a noção de processo primário de pensar do imaginário da função onírica da fanta sia e fantasma do impulso e processos defensivos Mesmo os modelos teóricos extraídos do estudo das relações de objeto desde Melanie Klein e Fairbairn passando por Winnicott e Balint até modernamente O Kenberg M Mahler e H Kohut antecipados pelos estudos adaptativos do ego de H Hartmann e segui dores só fizeram ampliar a importância do conceito de inconsciente O mundo irracional perscrutado pela pequisa do inconsciente tornouse nas décadas atuais tão importante como o racional a partir de Descartes Aos poetas míticos esoteristas e sobretudo aos sonhado res foram abertas as portas do interesse científico não certamente pelos seus métodos de conhecer mas pelos objetos de seu conhecimento Um eu sinto logo é parece até substituir o eu penso logo existo O afeto e não a razão passou a ser o objeto privile giado da própria razão E diferente a cultura atual bafejada pela Psicanálise daquela intimista e tímida do final do século passado caracterizado por lesprit de fin de siècle como bem assinalou H Ellenberger Lá beirando os 1900 ansiavase pela intimidade da alma pelo oculto pela outra versão da realidade na medida em que já se vivia oprimido pelo império da razão Hoje nos anos finais de mais um século a in timidade da alma parece ser objeto do tráfico popu lesco em trocas impudicas e baratas na feiralivre da cultura Não é por acaso que se acena com algo até mais oculto que o inconsciente o self Esse não é o momento para uma análise crítica da progressiva vulgarização do discurso psicanalítico Psicossomaticaindd 102 Psicossomaticaindd 102 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 103 empurrado para um pseudossaber da intimidade hu mana levando com indesejada frequência à ideali zação quanto à abrangência e possibilidades práticas desse discurso Talvez por isso a Psicanálise se feche nos seus esteios teóricos procurando originalidade expositiva e rejeitando como bárbaras as demais contribuições ao conhecimento do homem beiran do então os expurgos ideológicos das ortodoxais religiosas e políticas Como disse considero esse um problema mais do psicanalista e por extensão da instituição psicanalítica que da Psicanálise Basta ve rificar quantas desconfianças sobrevivem nos encon tros entre profissionais tão afins como o psiquiatra e o psicanalista Estamos distantes daqueles primórdios quan do a Psicanálise estudava doenças criando até algu mas nosografias Hoje estamos comprometidos com a identidade a realização pessoal a superação do sofrimento Se não fôssemos psicanalistas diria que estamos criando uma comunidade pitagórica Esses novos objetivos que mobilizam na atualidade tanto a teoria quanto a prática do psicanalista são o que mais tem influenciado o pensamento psicossomático contemporâneo confluindo dessa forma com a An tropologia Médica no seu interesse por temas éticos e margeando a Sociologia a interação do doente com sua cultura e seu mundo social É interessante notar que possivelmente o início dessa virada da Psicanáli se do nosográfico para o antropológico começou no Luto e Melancolia Freud 1917 quando foi introdu zida no foco do cenário psicanalítico a imagem fugi dia do objeto Daí a psicologia das massas a análise do ego e a noção desconcertante do superego Foram os estudos de Melanie Klein e seus seguidores que principalmente desenvolveram esses passos iniciais um pé no Luto e Melancolia outro no Além do Princí pio do Prazer com as noções finais sobre impulsos de vida e de morte A Escola Inglesa destacou o que não era ob jeto de dentro do que era sujeito bem como as relações entre um e outro desde o princípio do de senvolvimento ontogenético Dessa forma emergiu a exigência de se evidenciar a identidade na me dida em que a análise discriminava entre o sujeito e objeto entre o eu e o outro além de esmiuçar os mecanismos de dissolução e resolução dos objetos endopsíquicos bem como da experiência de fusão lembrando esta última processos simbióticos Para os mesmos objetivos a identidade e por outros ca minhos desenvolveramse os estudos dos processos de formação e adaptação do ego de H Hartmann e seguidores entremesclados pelos estudos de Winni cott sobre desenvolvimento e self os de M Balint so bre a integridade do eu e finalmente Spitz e Bowlby buscando nas interações primitivas os fatores de in tegração e desintegração Completando a extraordi nária expansão da Psicanálise assim como de seus interesses terapêuticos Bion investe em formulações básicas sobre a intimidade de pensar e Lacan sobre a intimidade da linguagem inconsciente caminhando ao lado da concepção do homem como animal sim bólico do filósofo Ernst Cassirer considerado o mais eminente neokantiano de nosso século Essa acentuação no problema da identidade e do self parece realizar um antigo pleito de Freud que sempre deixou transparecer seu interesse sobre uma concepção mais abrangente do homem mesmo não pretendendo uma entologia ou um Weltanschauung Ambicionou desde o Projeto uma teoria da mente que permitisse conhecer o significado da existência humana Muito mais que um médico Freud foi um especulador da natureza humana e seu estudo das neuroses pode ser considerado o grande pretexto para abrir as portas da alma ao conhecimento cientí fico como bem assinalou Bettelheim Talvez seja isso o que se pretenda hoje em dia com a expressão self ou seja aquilo que o sujeito é Caminhouse muito desde a hipnose de uma puérpera em 1892 para que pudesse amamentar seu filho até as amplas pretensões de formação do self da atualidade Saberia Freud que ao tratar aquela puérpera curandoa de sua inibição estava ensejando o estimulo ao vínculo maternoinfantil e assim estabelecendo o núcleo central de um self mais sadio naquele bebê Eis o exemplo de preven ção em psicanálise Não deixa de chamar a atenção o paradoxo de que a Psicanálise inspiradora da noção de totalida de na Medicina moderna ajudandoa a transcender a simples visão da doença e recuperar a percepção do ser humano doente esteja ela própria Psicaná lise perdida no dualismo conceitual mentecorpo E justamente Freud talvez o maior de todos os de silusionantes da cultura moderna tenha ensejado uma dicotomia tão importante no conhecimento do homem doente a ponto de nos dias atuais procu rarse uma linguagem exclusiva para os fenômenos psicológicos distanciandoos ainda mais de uma concepção unitária Se o psicológico era o canto des prezado de Meynert o cérebro é o tópico esquecido da Psicanálise O que dizer então do resto do corpo Por esse caminho dicotomizado as ideologias unicistas dos mestres de Freud Helmholtz Bruecke Meynert foram marginalizadas Sabemos que eram radical mente orgânicas fisicalistas mas pretendiam uma unidade necessária para a compreensão do homem e até que ponto esses mestres embora Helmholtz tives se influência apenas indireta estavam incorretos ao tentar reduzir os fenômenos humanos às leis gerais Psicossomaticaindd 103 Psicossomaticaindd 103 05012010 121205 05012010 121205 104 Mello Filho Burd e cols da Natureza Poderíamos dizer que suas assertivas levaram a um erro trágico a desumanização clínica a incompreensão e o desleixo com os sentimentos sobretudo aqueles que pertencem à intimidade de cada um Mas não creio que estivessem equivocados quanto ao seu objetivo científico Procuravam a seu modo essa unidade biológica essencial que conduz à integridade Nesse caminho foi Cannon o fisiologis ta assim como Adolf Meyer o psiquiatra e também Selye Entre nós Perestrello o psicanalista Creio que Freud também pretendia o mesmo encontrar a ponte que une o mental ao somático uma espécie de volta à unidade perdida nos Estudos sobre a Histeria em 1895 A lição que a Psicossomática aprendeu da Psica nálise ou seja voltando ao mote de Perestrello não há doenças psicossomáticas todas as doenças são psicossomáticas nos leva talvez a deduzir que não há um objetivo psicanalítico senão aquele que pos sa se integrar às demais áreas da biologia humana Se com sua microaudiologia o psicanalista ouve os murmúrios do inconsciente e os decodifica numa lin guagem com sentido isso não faz dele psicanalista um misantropo investigador isolado dos demais in teresses humanos Um outro erro trágico de Édipo foi recortar sua experiência com a Esfinge de dois con textos essenciais sua história e a história de Tebas Tendoa recortado sua resposta foi digna apenas de um charadista esperto Se no seu encontro com a Es finge incluísse sua história e a história de Tebas veria que o homem a que se referiu era ele próprio e que em Tebas seria cumprido o oráculo que justo naquele momento estava em suas mãos modificar através de uma interpretação completa e integradora Comentários de que o psicanalista só tem a ver com seu reduto transferencial são comuns Pratica mente abstraise a pessoa É exatamente o que o psicanalista no hospital geral critica em seus colegas médicos veem apenas órgãos doentes abstraindo a pessoa Entendo que trabalhar com a transferência não significa reduzir a pessoa a um campo transfe rencial E creio insuficiente recuperarmos essa noção de pessoa através de um conceito mais sofisticado como o de self embora já seja um avanço Recuperar a pessoa e com ela estabelecer uma relação analítica pareceme a resposta que a Psicossomática pode dar à Psicanáli se de cujo seio nasceu e em cuja intimidade elaborou uma nova imagem do ser humano A pessoa é mais que um self ou uma identidade Compreendêla não é apenas aterse às suas comunicações verbais ou mes mo extraverbais recortandoa de seu contexto bioló gico e social Se como teóricos da Psicanálise pode mos ser especialistas na prática psicanalítica clínica só consigo visualizar um holismo radical embora não simpatize com qualquer tendência radical Assim entendi o psicanalista Perestrello comigo com sua vida com seu ensino com sua obra com seus alunos e com seus doentes Estabelecia relação com totalidades Para ele não fazia sentido interpretar um sintoma orgânico senão dentro da Gestalt históricocircunstancial do paciente Hoje advertiria ampliando seu ponto de vis ta que a tentativa de reduzir o fenômeno orgânico à dinâmica dos processos mentais tratandoo como expressão linear de um conflito endopsíquico e por tanto suscetível de interpretação de conteúdo in consciente é uma inadequação clínica que pode levar a riscos iatropatogênicos consideráveis Pois mobiliza atividade pulsional que invadindo um ego debilitado e desorganizado pela doença física amplia a lesão do corpo É aqui que vemos a importância da construção do setting ambiente clínico como elemento essen cial do próprio ato terapêutico na medida em que facilita elementos de relação simbiótica necessários à recuperação do ego lesado por fundas feridas narcísi cas desencadeadas pela lesão orgânica Reencontramos pensando na pessoa do doen te a ação terapêutica interdisciplinar indispensável a meu ver no tratamento do paciente psicótico fre quentemente recomendável em crianças e adolescen tes e sem dúvida absolutamente indicada nos doen tes orgânicos E continuando a pensar na pessoa do analisando creio que não seria demais lembrar a importância do que ele diz de forma manifesta entu siasmados pelo discurso latente no campo transferen cial não raro enveredase pela negação do que está efetivamente sendo dito como se tudo fosse possível transcrever e como se essa transcrição sempre fosse absoluta e necessária Saber ouvir ensinou a Psica nálise aos médicos que praticam sua clínica nos sofri mentos orgânicos Restou ao psicanalista aplicar esse ensinamento a sua própria prática Voltar à imagem do jardineiro de minha infân cia Se contasse essa história numa sessão psicana lítica com o terapeuta submerso no campo transfe rencial creio que posso imaginar que interpretações essa minha historinha poderia suscitar Afinal tam bém sou psicanalista Como exercício clínico nada mais interessante Mas é um equívoco quase cômico confundir modelo brinquedo exercício teórico com a realidade Há os que fazem isso tornandose alvo da caricatura e do humorista Quando lembrei que Perestrello e eu ríamos a valer principalmente dos que não sabiam rir referia me em parte a esses sisudos e espertos interpreta dores de tudo Mas infelizmente temos uma desig nação etimologicamente trágica para uma disciplina tão essencialmente humana como a nossa Psicaná Psicossomaticaindd 104 Psicossomaticaindd 104 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 105 lise E sem dúvida Freud analisava Mas não fa zia só isso Reconstruía também a memória o ego as funções mentais recuperava as relações do passado e patrocinado pela transformação psíquica estabele cia novas relações Isso não seria psicossíntese Ou talvez antropossíntese O carinho com que recordo o jardineiro é a sín tese de minha experiência infantil recuperada pela ação transfigurada da psicanálise de Perestrello Pa rece o cenário de um conto de fadas mas é mais do que isso É a descoberta da magia da vida mesmo que evocada pelo longo alfanje da morte Talvez seja exatamente essa a unidade buscada e que Freud ge nialmente expôs em sua última teoria dos instintos A unidade no diálogo entre a vida e a morte REFERÊNCIAS Balint M The doctor his patient end the illness New York Int Univ Press 1987 Bettelheim B Freud mans soul New YorkKnopf 1983 Bion WR Elements of psychoanalysis London Heineman 1963 Cassirer E An essay on man New Haven Yale 1944 Eksterman A O médico como psicanalista In Contribuições psicanalíticas a Medicina PSiCoSsomáticaSão Paulo ABMP vI 1978 O psicanalista no Hospital Geral VIII Congr Brasileiro de Psicanálise Rio de Janeiro 1980 Prevenção e psicanálise XII Congresso Intcmacional de Psicorerapia Rio de Janeiro 1982 Psychotherapy in General Hospital 136ª Reunião Anual da American Psychiatric Association New York 1983 O Corpo como Linguagem X Congresso Brasileiro de Psi canálise Rio de Janeiro 1985 Ellenberger H F The discovery of the unconscious The history and evolution of dynamic Psychiatry New York Basic Books 1970 Freud S A case ofsuccessful trearment by hypnotism SE I 1982 Project for a scientiiic Psychology SE I 1950 Srudies on hysteria SE II 1985 Interpretation of dreams SE V cap VII 1900 Fomiulations ou tlie two principles of mental functio ningSE XII 1911 The Claims OPsychoAnalysis to Scientitîc interest S E XIII 1913 The uncnriscious SE XIV 1915 Mouming and Melancliolia SE XIV 1917 Beyond the pleasure principle SE XVIII 1920 Group Psychology and the analysis of the ego SE XVIII 1921 The ego and lhe id SE XIX 1920 Inhibitions symptoms and anxiety SE XX 1926 New intmductory lectures On PsychoAnalysis XXXI XXXV SE XXII 1933 An Outline oí Psychoanalysis SE XXIII 1940 Goldstein K La Structure de lOrganisme Paris Galli mard 1951 Graves R Greek Myths 1958 Perestrello D Medicina Psicossomática R de Janeiro Borsoi 1958 Stellungnahme und Tátigkeitsbericht aus Brasilien In Trai ning in Psychosomatic Medicine New York Basic Books 1964 A Medicina da Pessoa Ric de Janeiro Atheneu 1974 Trzábalhos selecionados de Psicanálise Psicossomática e Psiculu gia Módica Rio de Janeiro Atheneu 1976 Segal H Intmduction te the work OfMcIanie Klein London Hei neman 1964 Uexküll J vcn Ideas para una Ooncepción biológica del mundud Madrid Calpe 1922 Psicossomaticaindd 105 Psicossomaticaindd 105 05012010 121205 05012010 121205 Algumas palavras têm a característica contradi tória de mais esconder do que revelar significados Isso ocorre frequentemente com termos originados em áreas técnicas e que caem no uso popular como aconteceu por exemplo com vários conceitos oriun dos da Psicanálise como recalque frustração e até mesmo inconsciente Da mesma forma certos termos que transitam em áreas sujeitas a controvérsias de cunho ideológico também estão sujeitos a este tipo de paradoxo pa lavras como democracia participação ou povo têm acepções diversas dependendo de quem as enuncia Social é uma dessas palavras Subjacente à ideia de sociedade existe uma concepção de como é ou deveria ser a organização coletiva dos homens o que remete para uma série de outras discussões in clusive a respeito da definição de homens que se tem em mente Quando falamos em sociedade estamos falando de situações concretas de um arcabouço jurídico de relações de trabalho e até de localizações geográficas mas também estamos falando de uma intrincada rede de significados que não só está subentendida em tudo o que descrevemos anteriormente como molda a própria percepção que os indivíduos que a com põem têm em si próprios e do mundo que os cerca e mesmo da linguagem utilizada para descrever tudo isso Mesmo a produção científica não é infensa a esta contaminação cultural Até quando estamos descrevendo objetivamente fenômenos o fazemos a partir de nossos referenciais Um bom exemplo disso é o surgimento das analogias mecânicas para descre ver o funcionamento de tudo o homem ao univer so quando o processo de industrialização torna as máquinas elementos familiares na paisagem humana Esse tipo de situação é particularmente visível nas Ci ências Sociais em particular na Antropologia Cate gorias inteiras do pensamento antropológico primi tivo selvagem entre outras têm muito mais a ver com o óbvio etnocentrismo de quem observa do que com qualquer característica intrínseca de quem é ob servado salta aos olhos nestes casos um julgamento implícito de valor Outra dificuldade metodológica é central para a Medicina Uma vez que a experimentação com seres humanos é obviamente restrita as evidências de relações causais dependem em larga margem de estudos epidemiológicos que procuram estabelecer comparações entre populações diferentes ou em dois momentos distantes no tempo da mesma popula ção Entretanto como consequência do fato acaciano de que neste caso só se encontra o que se procura os vieses ideológicos dos pesquisadores já se impõem no momento mesmo do desenho do estudo Dito de outra forma o que o pesquisador define como fator potencial de adoecimento é o que vai ser estudado e outros componentes podem ser deixados de lado Um exemplo concreto talvez esclareça melhor esse ponto houve um momento há alguns anos em que vários estudos provavam uma estreita relação entre morta lidade infantil e número de filhos por casal Por conta disso entidades defensoras do controle compulsório da natalidade utilizaram esses estudos como embasa mento para suas teses Ocorre que havia outro fator fortemente associado aos dois tanto à mortalidade infantil quanto ao tamanho da prole a pobreza das populações estudadas Outra fonte importante de distorções diz respei to ao que poderíamos chamar de naturalização das relações sociais Num dos trabalhos que consulta mos o autor escandinavo ao comentar investigações sobre um possível papel das relações sexuais préma ritais na determinação de casamentos malsucedidos confessase surpreso que alguém pudesse considerar esse tipo de evento como problema evidentemente com uma ponta de ironia além de questionar bas tante o que viria a ser um casamento bemsucedido Da mesma forma uma série de conceitos e estruturas basilares de nossa sociedade tendem a ser tomados como universais tanto geográfica como historica mente Assuntos como família profissão trabalho 9 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO DOENÇASOCIEDADE EM PSICOLOGIA MÉDICA Kenneth Rochel Camargo Jr Psicossomaticaindd 106 Psicossomaticaindd 106 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 107 papéis sexuais infância e outros são vistos como uni formes e diferenças eventuais são debitadas ao pri mitivismo de outras sociedades Assim sendo a organização social pode ser vis ta por alguns como uma extensão ampliada da orga nização biológica numa visão positivista que iguala agrupamentos humanos aos de abelhas ou cupins ou enquadrada dentro de modelos cibernéticos cientifi camente neutros Um dos artigos que consultamos trazia o seguinte trecho Nossa definição de socieda de deveria ser tão biológica quanto possível deveria abranger todas as formas de sociedade humana E mais adiante Esta definição parece aplicável tan to a pássaros quanto a seres humanos é tão relevante para os cidadãos de Nova Iorque como para as tribos do deserto do Kalahari Kagan 1971 Os grifos são nossos Neste trabalho optamos por outras visões que procuram detectar nas formas de organização humana não uma enganosa cooperação mas lutas mais ou menos aparentes conflitos de interesses e sobretudo desigualdades Dessa forma ao discutirmos categorias sociais é importante ter sempre em mente que estamos dis correndo sobre algo que é a um só tempo externo e interno ao ser humano criatura e criador Pois se o ser humano cria as sociedades tudo aquilo que de finimos como atributos humanos língua ciência moral ética educação organização política são em última análise construções sociais internalizadas pelo ser humano ao longo de sua vida Mais que isso o fato social como diria Durkheim tem uma qualida de coercitiva de imposição externa ao indivíduo até mesmo talvez principalmente contra seus desejos Um conceito chave encontrado tanto na Psica nálise quanto na Antropologia embora com acepções ligeiramente diferentes é o de representação Pode mos definilo provisoriamente como uma construção psíquica com componentes conscientes e inconscien tes que simboliza objetos e categorias mais ou menos abrangentes moldada dialeticamente a partir da inte ração do indivíduo com as culturas das qualis faz parte o porque dos plurais será explicado mais adiante Assim a ideia de casa por exemplo car rega dentro de si uma representação média para uma determinada população de um objeto consti tuída a partir da experiência concreta Mas para cada indivíduo casa evoca afetos com significado próprio dentro da experiência de cada um Assim é que para alguns pacientes internados a maior ansiedade é po der voltar para a sua casa enquanto para outros o hospital é ele próprio casa no sentido de lar As varias culturas elaboram discursos com graus variados de complexidade procurando abranger suas relações internas com outras culturas com o mun do natural Há vários discursos possíveis do ponto de vista antropológico pouco importando se um e mais verdadeiro do que outro Assim dentro des se ponto de vista o discurso médico é apenas mais um dos discursos sobre a doençasaúde aquele que nos médicos gostamos de acreditar como científico verdadeiro mesmo que nem sempre seja assim O que temos observado é que na verdade o discurso médico acaba por ser uma forma bastante eficiente de manter o paciente alienado de sua própria situa ção Quantas vezes não ouvimos coisas do tipo não adianta explicar nada para estas pessoas são igno rantes O que efetivamente ocorre e que situações que poderiam ser entendidas são expostas num jar gão ininteligível a não ser para quem já é iniciado À época em que este trabalho estava sendo escrito iniciouse a vacinação contra meningite no Rio de Ja neiro Num posto de vacinação cartazes orientavam pais e mães que vacinavam seus filhos nos seguintes termos Se seu filho apresentar petéquias exantema equimoses procure um posto de saúde Quantas pessoas não médicas mesmo com excelente nível de instrução podem decifrar tal lista de sinais Esta é uma das razões independentemente de qualquer eficácia terapêutica da preferência de determinados setores populacionais pelos curandeiros eles pelo menos explicam o que as pessoas sentem em termos que elas podem entender porque ambos curandeiro e paciente fazem parte de um mesmo recorte social Por outro lado esta explicação é em si terapêutica Levi Strauss 1975 e Loyolla 1984 Da mesma forma que seus pacientes um médi co vê o mundo através do filtro de suas representa ções Mesmo deixando de lado os significados parti culares de cada um existem concepções comuns a respeito de coisas como saúde doença tratamento entre outras alimentadas pelo processo de ensino aprendizado formal ou não os vários estágios que acadêmicos fazem ao longo de sua formação são cha mados por alguns de currículo paralelo expondo os futuros médicos de forma sistemática à tradição oral de sua profissão Dessa forma consolidamse representações e modos de agir que passam através das gerações de médicos muitas das quais francamente hostis aos pa cientes que atendemos molambos pés inchados são termos que se ouvem nos corredores de hospi tais de prontosocorro endereçados aos pacientes Crenças também se solidificam desse modo mesmo sem base empírica como por exemplo a ideia cor rente de que um paciente só sai satisfeito de uma consulta se tiver em mãos uma receita Tais crenças são poderosas o suficiente para impedir que o médico enxergue para além delas seu paciente Outro aspecto relevante é que dentro de uma organização social maior como um país ou uma cida Psicossomaticaindd 107 Psicossomaticaindd 107 05012010 121205 05012010 121205 108 Mello Filho Burd e cols de várias subculturas se agitam se tocam e às vezes entram em confronto aberto em rebeliões e conflitos de rua Ao mesmo tempo um indivíduo pode fazer parte de várias destas microssociedades às vezes so frendo como resultado de conflito de lealdade O que importa para nossos fins é que estas várias pequenas culturas emprestam aos seus constituintes uma vi são de mundo que determina seus valores sua ética e mesmo o modo como percebem e cuidam de seus padecimentos Isso quando não é ela própria fonte de sofrimento como nos mostra Freud no MalEstar na Civílização 1930 Assim a relação sociedadedo ença é múltipla não apenas pode a estrutura social ser causadora de doenças como a própria definição de doença é antes de tudo cultural Um fato bastante simples pode ilustrar esta úl tima afirmação Bem poucas pessoas podem afirmar de modo isento que tiveram prazer na primeira vez que fumaram um cigarro Ainda assim com o correr do tempo e com o estímulo social sob a forma de comportamento do grupo do qual fazia parte tenta tiva de emular o pai ou outro modelo de identifica ção pressão publicitária dos meios de comunicação o fumante aprende a gostar a ter prazer no uso do cigarro Ou seja alguma coisa aparentemente tão primitiva biológica quase como o prazer pode ser aprendido como parte do processo de viver em socie dade Da mesma forma a percepção da dor é também sujeita a modulações socioculturais Inúmeros traba lhos de antropólogos e cientistas sociais mostram que o limiar de dor é maior entre saxões do que entre latinos por exemplo Poderíamos ainda lembrar toda a discussão sobre a mobilidade das pulsões quanto aos seus objetos ver por exemplo O Instinto e suas Vicissitudes também de Freud 1915 Assim dificilmente poderia ser surpreendente a afirmativa feita acima de que a própria ideia de doen ça é também socialmente determinada No entanto os médicos agem de forma geral como se as doen ças fossem objetos concretos esvaziados de qualquer significado seja ele psíquico seja ele cultural Isso faz com que frequentemente aquilo que o médico vê como problema seja bastante diverso das preocupa ções do paciente Não raro observamos em nossa experiência com pacientes ambulatoriais em Clínica Médica pessoas entrarem e saírem de consultas com a frustrante sensação de que nenhuma de suas doen ças teve qualquer solução e que o médico acrescen tou algumas novas Dito de outra forma a doença depende tanto de quem a tem quanto de quem a diagnostica ou de onde se diagnostica Determina das reações que podem ser encontradas em qualquer manual de Psiquiatria com sintomas psicopatológicos podem ser parte integrante de rituais culturalmente estabelecidos e perfeitamente admissíveis portan to Existem certas situações que despertam no médi co respostas que dificilmente poderíamos qualificar de cientificamente fundamentais exemplo típico está na relação com a Morte Houve uma determina da ocasião em que uma paciente de uma enfermaria onde trabalhávamos faleceu Era uma menina de 12 anos acometida de uma neoplasia rara Sua mãe ao perceber que a filha havia morrido apresentou um quadro que poucos hesitariam em qualificar como conversivo desfaleceu e colocouse deitada com os olhos abertos imóvel A identificação com a filha morta era óbvia como era óbvio o processo de luto que ali se iniciava Não obstante outros profissionais presentes insistiam na necessidade de administração de um tranquilizante àquela senhora A dor de uma mãe pela perda de uma filha deixava de ser um even to de sua vida e passava a ser sintoma passível por tanto de medicalização Foi necessária uma intensa negociação para que se evitasse a tranquilização compulsória da mãe da paciente parece também cla ro que a demanda pelo medicamento era basicamen te da equipe e no devido tempo a mesma voltou a si e chorou como qualquer mãe faria Ainda nesse aspecto devemos ter em mente que ao tomar a decisão de procurar um médico as pessoas já se dão algum diagnóstico E fato estabele cido que todo paciente traz fantasias mais ou menos conscientes sobre sua doença Mais do que isso es tas fantasias são referidas a uma nosologia e estão hierarquizadas em termos de gravidade Assim para uma pessoa que tenha no seu próprio corpo uma fer ramenta de trabalho doenças que ameacem a ativi dade física são mais graves porque implicam o risco até de perda do emprego A febre por exemplo é tida como sintoma de gravidade No que diz respeito ao médico as fantasias também estão presentes mas travestidas de racio nalidade Via de regra exames complementares que gerem uma imagem ou um valor numérico são mais prontamente aceitos como expressão da verdade mesmo que não haja qualquer razão científica para isso Também costumamos hierarquizar as doenças de nossos pacientes de acordo com nosso interesse acadêmico entre outras coisas Desse modo doen ças evidenciadas objetivamente são mais graves do que as ditas funcionais independentemente de qualquer consideração relativa ao sofrimento dos pa cientes que deveria ao menos em tese ser o referen cial da prática médica Quantos pacientes não foram classificados com a tristemente famosa condição de não ter nada simplesmente para negarlhes qual quer ajuda Numa outra perspectiva a vida em sociedade pode ser fonte de sofrimento e doença É importante frisar que esta não é uma relação mecânica em que Psicossomaticaindd 108 Psicossomaticaindd 108 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 109 o sofrimento social levaria imediatamente ao ado ecimento Dentro dessa ótica observações feitas em países ocupados militarmente à época da Segunda Guerra Mundial que constataram uma menor inci dência de úlceras pépticas nessas circunstâncias se riam inexplicáveis É óbvio que uma série de fatores desde a forma como o indivíduo lida internamente com situações desagradáveis até o seu perfil genético modulam e interferem na resposta dada às tensões sociais Da mesma forma parece claro que socieda des diferentes tendem a oferecer chances diferentes para que seus constituintes se protejam destas ten sões em aspectos como oferta de emprego mecanis mos de seguridade social proteção à segurança li berdade de expressão apoio interpares peer support entre outros Do ponto de vista da mediação psicofisiológica ou melhor ainda psicofisiopatológica entre fenô menos sociais e o adoecimento uma linha bastante óbvia é a do estudo do estresse entendido aqui em sentido estrito no que diz respeito às alterações neu rohormonais que será conduzido em outra parte No que nos concerne pareceunos mais interessante tentar descrever o modo como situações sociais de sencadeiam a resposta genérica do estresse com a óbvia intermediação psíquica Essa relação é bastante clara e bastante bem es tabelecida em algumas doenças em especial as car diovasculares Não podemos deixar de lado entre tanto situações bem menos aparentes Vários outros modos de adoecer podem estar relacionados a situa ções sociais até porque as respostas adotadas nessas situações além da intervenção psicofisiológica direta muitas vezes representam agressões ao próprio orga nismo Quando estão em dificuldades as pessoas fu mam mais tomam álcool e outras drogas e assumem comportamentos que podem colocar em risco sua in tegridade física ou mesmo suas vidas Mais ainda as condições de vida de uma maneira geral tornamse mais insalubres com um pior nível de vida e inver samente tendem a decrescer com a melhora daque le O estudo de Friedrich Engels sobre a incidência de tuberculose pulmonar em operários britânicos no decorrer do processo de industrialização é clássico mostrando que com a melhora da qualidade de vida dessa população a incidência de tuberculose decaiu mesmo que se soubesse o que causava a tuberculose Fica claro portanto que as sociedades huma nas umas mais outras menos dividemse em classes com interesses muitas vezes divergentes antagôni cos até as quais têm controle sobre partes variáveis de sua produção artística de bens de consumo de assistência médica etc bem como do poder políti co Também é evidente que os impactos sociais reper cutem de forma diferente em classes diferentes e que essa diferença será tanto maior quanto mais desigual for uma dada sociedade A forma como cada indiví duo percebe e reage a esses impactos entretanto dá se pela interação desses aspectos externos vincu lados à sua classe com o conjunto de representações internas de que dispõe para lidar com cada situação específica Não fosse por isso frente a uma ameaça de desemprego coletivo todos os indivíduos na mes ma condição deveriam reagir de uma mesma forma fosse ela qual fosse na realidade vemos que as coisas não se passam dessa forma Mais ainda como já dis semos antes a própria percepção é filtrada pelo con junto de representações grupaisindividuais Assim sendo se a ameaça de demissão é vista por exemplo como algo que atinge a todos indiscriminadamente o sofrimento individual pode ser menor Por outro lado se a situação é vista como insolúvel ou se as pessoas perdem a esperança de dias melhores certa mente o impacto será maior Nessas circunstâncias embora cada qual encare a situação à sua maneira é bastante razoável supor que os indicadores sanitários desta população expresso pela incidência de várias doenças bem como as chamadas condutas antisso ciais consumo de drogas delinquência etc etc certamente mostrarão uma piora acentuada Outro aspecto que não pode ser descuidado é que a doença é ela própria um acontecimento so cial especialmente quando grave ou crônica Mais que isso a doença é parte integrante de nossas vidas Wolf 1971a discorrendo sobre padrões de ajusta mento social Diz textualmente que a doença é uma reação às mais do que um efeito das forças no civas Noutro trabalho esse mesmo autor 1971b faz uma ilação que chega a ser revolucionária falan do dos eventos que levam à morte súbita ele escreve Se existe uma significação adaptiva num mecanismo que resulta na morte cardíaca devese considerar que a morte é às vezes a solução definitiva para um problema premente Logo em meio a um sofrimento intolerável devido a uma doença incurável ou situa ção de vida a morte pode ser o que melhor atende às necessidades do individuo Assim doença e morte são eventos da vida das pessoas e portanto parte in tegrante do tecido social O esforço maior da etnografia método pelo qual a Antropologia estuda uma sociedade é et nografar o etnógrafo como forma de diminuir ao mínimo inevitável a influência que suas próprias concepções poderiam ter na descrição daquilo que se observa Talvez seja chegado o momento de o médico ser ele próprio um etnógrafo não apenas de seus pacientes mas também e principalmente da Me dicina e de si mesmo Talvez o esforço contínuo de reflexão sobre os condicionantes de nossa prática nos permita criar pontes que nos reaproximem de nossos Psicossomaticaindd 109 Psicossomaticaindd 109 05012010 121206 05012010 121206 110 Mello Filho Burd e cols pacientes fonte primeira de nosso conhecimento e objetivo último de nossa prática Finalizando é importante frisar que a consulta médica é o momento em que duas subculturas a do médico e a do paciente entram em confronto às vezes de modo desastroso Enquanto estas linhas estão sendo escritas assistimos uma vez mais ao ressurgimento da tática de atribuir aos profissionais de saúde em especial o médico a responsabilidade pela situação caótica da assistência médicosanitária em nosso país Dessa forma o que deveria ser um momento de cooperação entre alguém que busca aju da e outro que a oferece passa a ser uma disputa entre adversários desde o início Assim sendo parece oportuno apontar caminhos que sirvam para recupe rar as funções terapêuticas dessa relação REFERÊNCIAS Appels A Falger P ed The role of psychosocial factors in the pathogenesis of coronary heart disease Psychother Psychosom n 34 1980 Boltanski L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1984 Freud S El malestar en la cultura Madrid Biblioteca Nueva 1930 Los instintos y sus destinos Madrid Biblioteca Nueva 1915 Hertoft P Some comments on premarital Sex in Scandinavia In Levi Lennart Society Stress and disease v 3 Oxford Oxford University Press 1978 Kagan A Epidemiology and society stress and disease In Levi Lennart Society Stress and disease Oxford Oxford University Press 1971 leviStrauss C A eficácia simbólica In Antropologia estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975 O feiticeiro e sua magia In Antropologla estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975 Loyolla M Médicos e curandeiros São Paulo Difel 1984 Luz M T Natural racional social Tese IFICSUFRJ Rio de Ja neiro 1987 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1979 Patterns of social adjustment and disease Levi Lennart Society Stress and dlsease Oxford Oxford University Press 1971 Wolf S Psychosocial forces in myocardial infarction and Sud den death In Levi Lennart Society Stress and disease Oxford Oxford University Press 1971 Psicossomaticaindd 110 Psicossomaticaindd 110 05012010 121206 05012010 121206 As questões da promoção da saúde não decor rem somente de fatores meramente individuais mas também de manifestações em dimensões coletivas sobre o que propomos esta reflexão especialmente sobre a cultura das relações de trabalho Este assunto hoje é diretamente proporcional a sua complexidade Desde que Hans Seyle 1947 1965 em 1936 utilizou pela primeira vez o termo stress na forma aportuguesada estresse em Me dicina um grande número de pesquisas e publicações foram produzidas dentro desta linha de pensamento pois a riqueza deste conceito e a operacionalidade do modelo propiciaram o descortinar de um grande horizonte No entanto houve algumas distorções im portantes que infelizmente se popularizaram Muitas vezes tivemos a impressão de que o termo estresse havia se tornado uma panaceia Assim sendo tornase quase obrigatório darmos início a este texto com uma série de considerações ainda que elas se mostrem para muitos leitores algo maçantes e cansativas Sabemos que o rigor e a lógica não demarcam ou caracterizam o pensamento científico já que são condições necessárias ao próprio discurso inteligen te como afirma Castro 1978 Dessa forma algumas condições devem ser preenchidas antes de se carac terizar um discurso como científico Antes de tudo temos que delimitar com a maior clareza e objetividade possíveis os objetos que estão em questão Caso esta précondição não seja satisfei ta o trabalho não poderá reivindicar para si o esta tuto científico Será metodologicamente considerado inadequado e portanto suas conclusões e resultados não poderão ser confiáveis Estas premissas da metodologia científica atingem em cheio os meandros deste tema Estres se doen ça e Psicossomática constituem excelentes exemplos de termos que são usualmente utilizados sem muito rigor evidenciandose uma predominân cia de conceitos que derivam do senso comum que em geral são excessivamente vagos ou ainda quan do no plano dos saberes científicos ignorase que o significado dos termos varia muito de um jargão téc nico para outro tornando o texto hermético e propí cio a malentendidos O discurso científico exige que o sentido das palavras seja restrito com o intuito de tornálo preciso e com fronteiras o mais claro possí veis sob pena de criarmos uma torre de Babel E pior dando a impressão de que estamos falando a mesma coisa situação esta que fica muito próxima daquela que descrevemos como psicótica Apenas para exemplificar podemos citar um excelente trabalho realizado por Vingerhoets e Mar celissen 1988 em que os autores apresentam nove caminhos diferentes sobre estresse Embora seja pos sível nas pesquisas verificar um certo grau de cola boração entre estes diferentes vértices notadamente nos últimos anos graças aos estímulos da interdis ciplinaridade ainda assim é possível perceber que muitos autores tomam os seus referenciais como os únicos e bem conhecidos ignorando as premissas aqui sumarizadas O fato é que existem enormes con trovérsias na definição do conceito de estresse Ado taremos uma categorização que evidenclará de uma forma mais ou menos consistente referencial episte mológico do tema De uma forma geral esta linha de pesquisa concentrase sob perspectivas psicofísiológi cas psicológicas e psicossociais Esta diversidade em si não constitui problema algum Sob uma perspectiva democrática e algo bas tante positivo e até louvável pois estes vértices não são excludentes entre si ao contrário complemen 10 UMA PERSPECTIVA PSICOSSOCIAL EM PSICOSSOMÁTICA VIA ESTRESSE E TRABALHO Avelino Luiz Rodrigues Ana Cristina Limongi França Psicossomaticaindd 111 Psicossomaticaindd 111 05012010 121206 05012010 121206 112 Mello Filho Burd e cols tamse e ajudam a construir um conjunto organiza do de conhecimentos de uma aproximação holística para a promoção de saúde É aqui por este vértice da mais recente epistemologia que se insere o discurso da modernidade em Psicossomática Existe também uma confusão conceitual em re lação ao termo Psicossomática embora isso não seja explicitado o que possibilita a falsa ideia de que a noção de Psicossomática seja homogênea quando na verdade não é Concretamente e este advérbio é de grande importância quando pensamos em pesquisa e prática na promoção de saúde existe um grande nú mero de significados e tendências na Psicossomática o que revela a dificuldade ou mesmo a impossibilida de de estabalecermos um estatuto preciso e definitivo para a Psicossomática O significado do termo que aparentemente nos traria menor dificuldade seria a noção de doença Mas um olhar atento mostranos que isso não é ver dade E este é outro ponto fundamental que gosta ríamos de destacar Doenças respectivas causas e compreensão de seus processos apresentamse no decorrer da história em constante mutação Não iremos nos aprofundar demasiadamente na história da Medicina apenas o suficiente para que tenhamos alguns elementos que permitam compre ender pelo menos um pouco mais o estado presente da prática médica visto que ela está profundamente ligada à noção de doença E no seu combate ela está historicamente legitimada Retornemos à áurea época para a Medicina de Pasteur e Koch cujas descobertas criaram as condiçoes para se obter uma explicação mais racio nal dos processos de adoecer notadamente das do enças infectocontagiosas Do laborioso trabalho des tes cientistas desenvolveuse o imponente edifício da bacteriologia e a introdução neste campo do conhe cimento do rigor científico Estes feitos fizeram de Koch o detentor do Prêmio Nobel de 1905 A partir desse momento as ideias sobre cau salidade ou seja sobre a compreensão do processo de determinação das doenças concentramse quase exclusivamente na ideia de contágio em que o or ganismo é o receptáculo da doença Surge a ilusão ideológica de que a bacteriologia iria liberar a Me dicina dos complexos determinantes econômicos so ciais e políticos E o desenvolvimento da enfermidade seguia mais ou menos a representação da Zoologia da Botânica e da Biologia Exemplificando assim como as pragas são capazes de afetar uma lavoura e a extensão ou não deste comprometimento era en tendido como uma forma de competição entre duas espécies a da plantação versus a praga também estaria acontecendo mais ou menos a mesma coisa quando o organismo humano era acometido por um microorganismo Essa forma de pensar as doenças tornouse hegemônica no sentido dado por Gramsci Gruppi 1981 ou seja como ideia dominante e que determina a direção No nosso caso da pesquisa e práxis sobre a causalidade das doenças Mais alguns aspectos devem ser destacados No plano particular da Medicina evidentemente pro duto cultural determinado pelo momento histórico intensificamse os estudos médicos mais na tentativa de localização das sedes das doenças no organismo e aclarar os sinais e sintomas clínicos Este redirecio namento propiciou um grande desenvolvimento do método clínico que por suas características prioriza a dimensão particular do indivíduo o modelo hos pitalar de cuidado especializado individualizado e curativo deixando em plano bastante secundário os estudos e ideias de incorporar a dimensão do coletivo como causa das doenças A forma de ver descrever e interpretar ou em outras palavras o método científico não é o mesmo para os diferentes vértices da realidade que pode se constituir de aspectos físicos químicos e bio lógicos cujo campo é organizado pelas Ciências Na turais e de aspectos sociais e psicológicos que têm as suas próprias bases de ordenamento que são das Ciéncias Humanas e Sociais Quando forem verificadas alterações mórbidas através de sinais ou seja quando houver manifesta ção física ou química objetiva da doença os métodos das Ciências Naturais são úteis e exatos enquanto que quando olhamos e enfrentamos questões psi cossociais e históricas tais métodos se mostram ina dequados porque não nos fornecem instrumentos para a objetivação de tais vértices da realidade Existe pois a necessidade de se diferenciar as diversas categorias do ser humano ser biopsicosso cial para criarmos um terreno favorável a uma lei tura adequada Estamos falando de categorias que possuem seus próprios métodos de verificação e ob jetivação ainda que todos esses elementos estejam presentes compondo a realidade humana Há que se criar condições para a apreensão tam bém da dimensão coletiva do processo saúdedoença e suas determinações sociais Hoje através do método interdisciplinar é possível à Medicina Psicossomática que tem pretensões holísticas envolverse na análise das estruturas sociais pensandoas como um dos fa tores de risco na cadeia etiológica das doenças Quando a explicação do processo de adoecer escapava da ideia de contágio surgiram outras tentativas de compreen são como a constituição e a hereditariedade ou ainda as doenças passavam a ser chamadas de idiopáticas essenciais ou inespecíficas Psicossomaticaindd 112 Psicossomaticaindd 112 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 113 As preocupações sobre a saúde do trabalhador vêm desde a época da revolução industrial a ponto de Virchow afirmar o proletariado em grau sempre crescente tornouse a vítima de doenças e epidemias seus filhos ou morriam prematuramente ou se tor navam incapacitados Nessa mesma época surgem esforços na tentativa de regulamentar a higiene das condições de trabalho Mas notese que as preocupa ções ainda enfatizam um certo modelo ecológico ou seja as condições higiênicosanitárias e nutricio nais O indivíduo adoeceria se o organismo ficasse exposto a determinados agentes físicos A legislação trabalhista de vários países a brasileira entre elas re conhece a relação de causa e efeito de vários agentes físicos químicos e biológicos na produção das doen ças ditas ocupacionais Bem menos tranquila é a aceitação mesmo em países economicamente mais avançados do fato de ser o trabalho enquanto forma de organização e muito menos em razão de sua pró pria natureza fator morbigênico em si em que pese o crescente número de evidências Pitta 1990 Está posto pela própria experiência e pelo co nhecimento acumulado até os dias de hoje que o modelo que tem como paradigma médico a Biologia tem encontrado dificuldade em gerar novos conhe cimentos que permitam a compreensão de inúmeros problemas de saúde principalmente aqueles que afli gem as regiões mais industrializadas As enfermidades e isso ficará bastante eviden te naquelas que decorrem do processo de estresse enquanto fenômeno humano têm componentes só ciohistóricos e psicológicos que não podem ser com preendidos sem ajuda de métodos adequados Assim a objetivação do processo de saúde doença pelo vértice de uma Psicossomática com pretensões holísticas procura adicionar aos conhe cimentos gerados pela Medicina através do método BioFísicoQuímico um outro conjunto de saberes que nos mostra as facetas do ser humano enquanto Ser Psicológico e Social por intermédio das Ciências Humanas e Sociais O método que se impõe é o inter disciplinar que nos possibilita observar o fenômeno humano como um processo extremamente complexo e de mútua interação entre a infraestrutura biológica e a superestrutura social mediada pelo psicológico Nas palavras de Gilberto Freire 1983 o ser hu mano é um todo biológica ecológica e sociocultural mente determinado E seu bemestar além de físico psicossocial está dependente e relacionado a situa ções que o envolvem como membro de um grupo em particular e de uma comunidade e mais do que isso de um sistema sociocultural em geral e não apenas de sua herança biológica ou de fatores ecológicos E importante ampliarmos a nossa capacidade de entendimento sobre o comportamento dos indivíduos no que eles são influenciados socialmente Esta in fluência históricosocial se faz de acordo com o grupo social ao qual eles pertencem e que reforçará ou puni rá os seus comportamentos As emoções ainda que se jam respostas universais de um organismo submetem se às influências sociais Lane 1986 Assim aquilo que nos entristece ou nos alegra decorre da visão de mundo que se adquire através do contato social Na verdade todo fenômeno humano é um fenômeno so cial como também a ordem social existe unicamente como produto da atividade humana Vamos aprofun dar um pouco mais esta questão pois ela merece ser melhor apreendida Algumas linhas acima através de Lane observamos que o comportamento humano é determinado pelo menos em grande parte através da interrelação do indivíduo com o grupo do qual ele faz parte Ora o ser humano é dotado de algumas par ticularidades que o diferenciam de todos os animais da escala zoológica E importante frisar que desenvol vimentos orgânicos significativos se completam após o nascimento do bebê Por conseguinte o organismo humano desenvolveuse em interação com o seu am biente social grupo no qual se insere e assim muitas das funções orgânicas são fortemente influenciadas e serão determinadas socialmente Talvez um exemplo bastante evidente do que pretendemos demonstrar está no estudo da lingua gem a emissão da voz fenômeno físico abre a pos sibilidade de combinar os sons em palavras que a gramática articula em frases fenômeno psicológico constróise o discurso que é produzido dentro de um contexto social no qual o indivíduo está localizado fenômeno psicossocial A palavra tem um caráter instrumental altamen te significativo para a sobrevivência e formação do homem diferenciandoo de outras espécies animais na medida em que permite a transmissão do co nhecimento para outros homens e essa capacidade garante a criação da cultura Cultura e discurso estão intimamente articula dos de forma que o conteúdo do discurso sempre contém uma impregnação ideológica O ser humano está em constante movimento e a todo momento surgem situações que exigem dele uma solução Este contínuo movimentarse é deter minado em parte pelo conjunto das necessidades inconscientes e pelas exigências da cultura Um bom exemplo disso é o trabalho que pode ser fonte de satisfação e criador de condições para a satisfação de necessidades inclusive as instintivas Este contínuo movimentarse para buscar a satisfação é em geral movido por emoções muitas vezes inconscientes disso decorre a criação de situa ções de que surge a necessidade de se obter soluções o que gera a ação Psicossomaticaindd 113 Psicossomaticaindd 113 05012010 121206 05012010 121206 114 Mello Filho Burd e cols A linguagem surge como algo que medeia a ação Por um lado ela tem um caráter instrumental na medida em que expressa ao outro uma comunica ção e por outro lado um conteúdo ideológico cultu ral que está a ela vinculado A emoção busca a expressão por meio da lin guagem para solucionar o estado de necessidade e obter a satisfação No entanto se esse processo for total ou parcial mente bloqueado e em geral este bloqueio é de ori gem ideológica e cultural a solução não é adequada a ação mostrase comprometida e a emoção fica con tida o que implica que a manifestação da emoção então fazse de forma indireta eou simbólica Aproximamonos muito neste momento dos conceitos de somatização e conversão Um bom exemplo do que pretendemos demons trar é facilmente observado na primeira infância onde o verbal é incipiente mas a ação ideológica está presente nos valores emitidos pelo comportamento dos adultos não é provavelmente a palavra mais emitida pelos pais e geram na criança emoções ne gativas para as quais ela não encontra soluções per manecendo assim contidas e se manifestando de for mas indiretas eou simbólicas Lane 1985 Temos então um modelo que nos ajuda a pensar a integração psicossomática via linguagem desde seu momento mais físico da emissão da voz passan do por seus momentos mais psicológicos na articula ção de frases até atingirmos o psicossocial através do conteúdo do discurso Nosso próximo passo e dar sentido a este co nhecimento em uma situação prática concreta da clínica Para tanto vamos eleger a doença coronária como nosso objeto Sabemos que estruturas objetivamente alienan tes como as condições e modo de organização do trabalho alienado que se caracterizam por trabalho coercitivo sem criatividade em que o indivíduo que o executa não tem controle sobre o seu processo de trabalho sendo a tarefa aborrecida e intensidade e duração arbitrariamente decididos com relações de trabalho fragmentadas e competitivas têm a possi bilidade de produzir sentimentos que se denominam experiência subjetiva da alienação que se caracteri za por sensação de falta de poder insatisfação frus tração O trabalho produz também sentimentos de alhea mento e impressão de que se situa em um alie nado mundo hostil e insensível Esta experiência subjetiva da alienação tem sido correlacionada como um dos fatores de risco da doen ça coronária Podemos citar aqui o trabalho de senvolvido por Dreyfuss Shanon e Sharon em que demonstram que existe maior risco de doença co ronária em pessoas que experimentam um pequeno controle sobre suas vidas nas quais a relação entre o esforço despendido e a realização é muito incerta e relatam conflitos com o seu contexto de vida Outros dados de observação que se acrescen tam a este podem ser localizados nos estudos que têm sido efetuados sobre a relação entre doença co ronária e a denominada Personalidade tipo A fato já há algum tempo demonstrado A nós interessa des tacar que a Personalidade tipo A frequentemente é encontrada em indivíduos envolvidos em uma luta constante para obter um número ilimitado de coisas em um período relativamente curto que enfrentam os esforços contrários e reprimem fortemente senti mentos de frustração hostilidade e insegurança Tal conjunto aproximase muito daquilo que foi acima categorizado como sentimentos subjetivos da aliena ção qual seja experiência de falta de poder insatis fação e frustração Vale ainda ressaltar que o comportamento ma nifesto que caracteriza a Personalidade tipo A é extre mamente estimulado e reforçado no contexto do tra balho na medida em que é estimulada a competição entre os colegas de trabalho que se rivalizam para obter gratificação e promoção que se esforçam para produzir mais e melhor dentro de prazos rigorosos e que frequentemente levam trabalho para casa Frente ao que foi exposto podemos perceber que há uma relação segura evidente entre o risco de doença coronária e o tipo de organização social do trabalho Quanto aos outros fatores de risco de doença coronária a dieta hábito de fumar falta de exercício e antecedentes familiares com exceção desta última Emoções Sintoma Palavra comunicação Conteúdo ideológico Busca expressão para solucionar o estado que foi criado Se o processo for bloqueado Solução fica prejudicada emoção fica contida Emoção manifestase indiretamente eou simbólica FIGURA 101 Psicossomaticaindd 114 Psicossomaticaindd 114 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 115 revelam uma forma de viver de organizarse frente às vicissitudes da vida que merecem uma investigação igualmente detalhada Podemos dizer que o ser humano é compelido pelos seus impulsos biológicos à busca de alimentos Esses impulsos extremamente plásticos na espécie humana sofrem influência direta de fatores sociais que são internalizados incorporados na interrela ção que se estabelece com os membros de seu gru po social em especial a família Isso nos conduz ao seguinte o ser humano é obrigado pela sua consti tuição biológica a buscar a satisfação instintiva esta é geralmente canalizada através de vias socialmente determinadas como o quê e quando comer o dia a hora o local a conveniência a atividade profissional as regras de ética hábitos etc Berger 1987 Ou tro exemplo da plasticidade do organismo humano e de sua disposição especial para sofrer as influências sociais é a sexualidade humana suficientemente do cumentada na Antropologia Essa ideia holística foi concisamente estabeleci da por Wooder em seu livro Biologia e Linguagem no significado da palavra pessoa que inclui a noção de que todo indivíduo é membro de uma comunidade de pessoas Essa comunidade determina que espécie esta pessoa será e até mesmo sua existência depende dela Pessoa membro de um grupo social é o ponto inicial de uma unidade indivisível do qual as noções de corpo e mente são abstraídas através de uma es tratégia metodológica com o propósito de estudálas Lipowski 1984 MECANISMO DE FORMAÇÃO DOS SINTOMAS O conceito de Medicina Psicossomática enquan to método de investigação científica e prática na pro moção de saúde é bastante recente organizandose há cerca de 50 anos Rodrigues 1989 No entanto tem apresentado uma rápida evolução Por um lado o avanço demonstra um grande esforço e interesse em relação a esta modalidade de saber por outro gerou uma certa confusão em relação ao significado da ex pressão psicossomática Rodrigues loc cit Este termo psicossomática foi introduzido na Medicina em 1818 por Helmholtz e tinha naquela ocasião o sentido de designar as doenças somáticas que surgiam tendo como fator etiológico os aspectos mentais Rodrigues 1989 e Mello Filho 1983 Na moderna Psicossomática esse conceito evoluiu para o estudo da pessoa como ser histórico que é um sis tema único constituído por três subsistemas corpo mente e social Acabou assim adquirindo a configu ração de um verdadeiro movimento médioo aplicado à promoção de saúde dentro desses princípios Pelo menos no seio do Intemational College of Psychosomatic Medicine e da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática a concepção de Psicossomá tica hoje não se configura como ramo da Psiquiatria E uma atitude de Medicina Integral que concebe o ser humano tanto na saúde como na doença como um ser biopsicossocial Isso implica que o profissio nal da área da saúde deve ir além da realidade física dos pacientes sem no entanto negála Eksterman 1978 Procura adicionar aos tradicionais saberes médicos calcados dentro de uma metodologia pró pria das ciências naturais ou seja aquele conjunto de conhecimentos sobre os sinais e sintomas orgâni cos todo um conhecimento que deriva das ciências humanas e sociais Descartamse portanto as noções ou raciocínios etiológicos tendentes ao biologismo ao psicologismo e ao sociologismo O conceito de holismo básico para a Medici na Psicossomática foi introduzido na Medicina por Smutes em 1926 O termo advém do grego holos que significa todo Esse conceito estabelece noções acerca da natureza biopsicossocial do homem na saúde e na doença bem como o respectivo tratamen to Lipowski 1984 Rodrigues 1989 e Prite 1987 O estudo e a pesquisa devem sempre levar em conta a pessoa como um todo e não as partes isoladas Pon tes loc cit A Medicina Psicossomática investiga e oferece caminhos para uma prática na promoção de saúde mais voltada para o paciente portanto menos volta da para o sintoma ou para a doença Seu avanço só tem sido factível graças à possibilidade de diferentes e complexas disciplinas serem utilizadas de forma in tegrada Dessa maneira a Psicossomática tem seus pilares assentados sobre os conhecimentos da Fisio logia em especial da Psicofisiologia da Psicologia Social da Patologia Geral das Psicologias Dinâmicas notadamente a Psicanálise e das concepções holís ticas Esse tipo de perspectiva desemboca em um tipo de proposta metodológica interdisciplinar em que os diferentes subsistemas da unidade biopsicossocial humana são adequados e concomitantemente abor dados Entendese aqui por método interdisciplinar uma postura científica que trata das interações e dos métodos comuns às diferentes especialidades Japiassu 1976 Isso é básico Sem a adoção de tal método fica impossível pensamos em Psicossomática como proposta assistencial integral É fundamental a insistência de se levar em con sideração a totalidade do ser humano e das circuns tâncias que o rodeiam para termos uma compreensão mais ampla dos processos de adoecer A totalidade surge quando se leva em conta a pessoa o doente e não a doença Daí a tendência atual da Psicosso Psicossomaticaindd 115 Psicossomaticaindd 115 05012010 121206 05012010 121206 116 Mello Filho Burd e cols mática de compreender os processos de adoecer não como um evento casual na vida de uma pessoa mas sim representando a resposta de um sistema de uma pessoa que vive em uma sociedade De uma pessoa que nessa sociedade vive em relação recíproca com outros sistemas inclusive outras pessoas e que é parte ativa de uma microestrutura familiar inserida na macroestrutura social e cultural situada em de terminado ambiente físico e que procura resolver do melhor modo possível os problemas da sua existên cias no mundo Pontes O estudo e a compreensão da biografia do indivíduo nos permite perceber que os fenômenos humanos têm sempre uma motivação nada acontecendo por acaso Assim o processo de adoecer deixa de ser um evento casual e passa a ser integrado à sua biografia O indivíduo no decorrer do seu desenvolvimento constrói e estrutura formas de ser e reagir aos diferentes estímulos aos quais pode ser submetido no sentido de manter a homeostase do sistema humano Wolff em 1952 já demonstrava que os distúrbios da relação do homem com o seu ambiente físico e psicossocial podem gerar emoções desprazerosas e estimular reações de vários tipos A doença é uma reação ativa do organismo e não ape nas um efeito aos estímulos nocívos A Organização Mundial de Saúde em relatório datado de 1986 afir ma que há uma multiplicação de manifestações de doenças decorrentes de desequilíbrios psicossociais sendo esta a mais frequente razão de consultas médi cas chegando a cerca de 50 nas regiões mais indus trializadas e 25 naquelas menos industrializadas No saber contemporâneo podemos afirmar que o ho mem é capaz de responder às ameaças simbólicas de correntes da interação social e não apenas às amea ças concretas biológicas como os microorganismos e ou físicas e químicas Assim situações como quebra de laços familiares e da estrutura social privação de necessidades básicas obstáculos à realização pessoal separação perda de emprego viuvez aposentadoria entre outros são tão potencialmente danosos à pes soa quanto os fatores concretos acima citados O sindicalista Carlos Aparecido Clemente coor denador do Departamento de Segurança do Sindica to dos Metalúrgicos de Osasco disse o seguinte em uma recente mesaredonda sobre saúde no contex to organizacional no dia em que o profissional da área de saúde perguntar ao paciente como é o seu trabalho como está no trabalho onde como e com quem mora quanto tempo demora para ir de casa para o trabalho e viceversa teremos uma revolução no atendimento e na promoção de saúde Um gran de número de estudos epidemiológicos de Psicofi siologia e de Psicoendocrinologia demonstram que são vários os agentes ambientais e sócioeconômicos culturais na sociedade industrial e urbana potencial mente patogênicos O ser humano tem apresentado dificuldades em reagir de forma adequada nos diz Lennart Levi diretor do Karolinska Institut de Es tocolmo considerada a instituição de referência da OMS para os estudos da influência dos fatores psi cossociais no ser humano Dentro dessa perspectiva podese compreender um grande número de doen ças senão a maioria das doenças mais frequentes do homem urbano contemporâneo que denunciam expressam e relevam a forma de uma pessoa viver a sua interação com o mundo Assim a compreensão da Patologia dentro da perspectiva de um processo histórico e interrelacio nal amplia e enriquece os conhecimentos sobre os complexos mecanismos biofísicoquímicos relaciona dos com o processo de adoecer É de fundamental importância abrir espaço para compreender que a situação de conflito seja do indiví duo consigo mesmo seja do indivíduo com a circuns tância à qual está submetido geradora de emoção é suficiente para originar transtomos funcionais e estes se repetidos e persistentes alteram a vida ce lular acarretando a lesão orgânica e suas complica ções Pontes loc cit A emoção é um fenômeno que ocorre simultaneamente no nível do subsistema do corpo e no nível do subsistema processos mentais Aquilo que no nível dos sentimentos é medo raiva dor tristeza alegria fome no corpo concomitante mente se expressa através de modificações no subsis tema somático através de modificações das funções motoras secretoras e de irrigação sanguínea Este conjunto de alterações é coordenado pelo conjunto hipotálamohipófise e sistema límbico que foram as sim explanados por Fernandes Pontes A disfunção pode resultar da alteração de fibra muscular lisa que existe ubiquitariamente em vários órgãos Assim a pessoa pode apresentar disfunções motoras no nível do aparelho digestivo vômitos síndrome hipoestêni ca diarreia prisão de ventre discinesias do apare lho respiratório asma bronquite do aparelho geni turinário disúria cólica pielouretral dismenorreia polaciúria vaginismo taquiespermia do aparelho circulatório hipertensão arterial diastólica enxa queca cefaleia de tensão de pele neurodermites eczemas pruridos e de outros órgãos e aparelhos A disfunção quando secretora manifestase não só na produção de muco mas também na produção de secreções endócrinas na produção de hormônios do aparelho digestivo secreção gástrica pancreática biliar e entérica A disfunção da irrigação sanguínea nos órgãos exerce importante papel na determinação de processos agudos e crônicos e na dependência da intensidade da repetição e da duração deles pode ocasionar a diminuição da resistência damucosa a outros agentes agressivos surgindo hemorragias e Psicossomaticaindd 116 Psicossomaticaindd 116 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 117 ulcerações de extensão e profundidades variáveis As alterações destas três funções parciais ocorrem em combinações múltiplas ao sabor das mais varia das situações de vida ligadas a sentimentos de raiva hostilidade medo dor malestar fome humi lhação depressão desesperança desalento tristeza e melancolia E suas apresentações na clínica são as mais variadas Manter a vida enquanto se luta para ganhála nem sempre é fácil O desgaste a que as pessoas são submetidas no seu processo de viver é um dos cofato res mais potentes no desenvolvimento de doenças ESTRESSE E DOENÇA DE ADAPTAÇÄO Um bom referencial que nos ajuda a nós mé dicos a compreender melhor estes processos está nos estudos desenvolvidos por Hans Seyle endocri nologista radicado no Canadá sobre o estresse Seyle utilizou este termo para denominar aquele conjun to de reações que um organismo desenvolve ao ser submetido a uma situação que exige esforço para a adaptação Na verdade a todo instante estamos fazendo movimentos de adaptação ou seja tentativas de nos ajustarmos às mais diferentes exigências seja do am biente externo seja do mundo interno este vasto mundo de ideias sentimento desejos expectativas sonhos imagens etc que cada um tem dentro de si Assim o politraumatizado de um acidente de trânsi to a mãe que se preocupa com o filho o operário que trabalha em um ambiente barulhento ou perigoso para sua integridade o executivo que luta para cum prir os prazos o jogador de futebol estão em situa ção de estresse Tambem nós já experimentamos si tuações de vida relacionadas ou não com o trabalho que nos exigiram um esforço adicional experimen tando esta situação de estresse ou seja aquele de nominador comum de todas as reações de adaptação SISTEMA LÍMBICO OU SISTEMA NERVOSO CENTRAL Informações e respostas Recebe processa emite e regula dos e para os mundos Pelos mensageiros Nervosos e químicos inclusive hormônios dão origem à Externo Interno Físico ecologia e que Células e órgãos inclusive nervoso Sentimentos Inibição à satisfação das forças instintivas Conflito interno ou intrapsíquico Conflito interno ou intrapsíquico Competente latente em níveis de sentimentos Competente manifesto em nível do soma Discinesias Discrinias Distúrbios circulatórios Disabsorção etc Malestar Angústia Disfunção ou distonia sintoma com Hemorragia infecção reação alérgica e imunitária litíase neoplasias Tensão dos sentimento Tensão celular e visceral Inflamação Permeabilidade capilar necrose Ulceração Dependendo da intensidadeduração Repetição da constelação etiologica Complicações Tensão emocional sistema límbico Soma Sociocultural etologia Processos mentais FIGURA 102 Mecanismo de formação de sintomas e doenças pela teoria da psicologia dinâmica psicanalítica Pontes et al Reproduzido da Apos tila do Curso de Psicologia Médica Abordagem Sóciopsicossomática Psicossomaticaindd 117 Psicossomaticaindd 117 05012010 121206 05012010 121206 118 Mello Filho Burd e cols de um organismo Seyle loc cit O referido autor demonstrou em trabalhos aqui mencionados e pu blicados a partir de 1936 que o organismo quando exposto a um esforço desencadeado por um estímulo percebido como ameaçador à homeostase seja ele fí sico químico biológico ou mesmo psicossocial apre senta a tendência de responder de forma uniforme e inespecífica anatômica e fisiologicamente respostas estas que constituem uma síndrome A esse conjunto de reações inespecíficas na qual o organismo parti cipa como um todo ele chamou de Síndrome Geral de Adaptação que resumidamente vamos expor Ela consiste em três fases Reação de Alarme Fase de Re sistência e Fase de Exaustão Não é necessário que a fase se desenvolva até o final para que haja o estres se e é evidentemente só nas situações mais graves que se atinge a última fase a de exaustão A Reação de Alarme subdividese em dois tempos o shock e o contrashock Parte desta reação assemelhase à Re ação de Emergência de Cannon Rodrigues 1989 Pontes 1987 célebre fisiologista responsável pelo desenvolvimento das noções de homeostase Cannon percebeu que quando um animal era submetido a es tímulos agudos ameaçadores da homeostase inclusi ve medo fome dor e raiva apresentava uma reação em que o animal se preparava para a luta ou para a fuga Esta reação caracterizase por a aumento da frequência cardíaca e da pressão ar terial para permitir que o sangue circule mais ra pidamente e portanto cheguem aos tecidos mais oxigênio e nutrientes b contração do baço levando mais glóbulos verme lhos à corrente sanguínea acarretando mais oxi gênio para o organismo c o fígado libera açúcar armazenado na corrente sanguínea para que seja utilizado como alimento e consequentemente mais energia para os mús culos e cérebro d redistribuição sanguínea diminuindo o fluxo para a pele e vísceras aumentando para múscu los e cérebro e aumento da frequência respiratória e dilatação dos brônquios para que o organismo possa cap tar e receber mais oxigênio f dilatação pupilar com exoftalmia para aumentar a eficiência visual g aumento do número de linfócitos na corrente san guínea para reparar possíveis danos aos tecidos Tais reações são desencadeadas por descargas adrenérgicas da medula da suprarenal e de noradre nalina em fibras pósganglionares Paralelamente é acionado o eixo hipotálamohipófisesuprarenal que desencadeia respostas mais lentas e prolongadas e que desempenha um papel crucial na adaptação do organismo ao estresse a que está sendo submetido O estímulo agudo provoca a secreção no hipotálamo do hormônio corticotrophin releasing hormone que por sua vez determina a liberação de ACTH da adenohi pófise além de outros neuro hormônios e peptídeos cerebrais como as betaendorfinas que atuam sobre o componente doloroso do estresse STH prolactina etc O ACTH desencadeia a síntese e a secreção de glicocorticoides pelo córtex da suprarenal Estabele cese então um mecanismo de feedback negativo com os glicocorticoides atuando sobre o eixo hipotálamo hipofisário Essas reações são mediadas pelo sistema diencéfalohipofisário visto que não surgem em ani mais de experimentação que tiveram a hipófise ou parte do diencéfalo destruídos Se os agentes estres santes desaparecem tais reações tendem a regredir no entanto se o organismo e obrigado a manter seu esforço de adaptação entra em uma nova fase que é chamada Fase de Resistência que se caracteriza ba sicamente pela reação de hiperatividade córticosu prarenal sob mediação diencéfalohipofisária com aumento do córtex da suprarenal atrofia do baço e de estruturas linfáticas leucocitose diminuição de eosinófilos e ulcerações Se os estímulos estressores continuarem a agir ou se tornarem crônicos e repetitivos a resposta ba sicamente se mantém mas com duas características diminuição da amplitude e antecipação das respostas Poderá ainda haver falha nos mecanismo de defesa com desencadeamento da terceira fase que é a de Exaustão com retorno à Fase de Alarme dificuldade na manutenção de mecanismos adaptativos perda de reservas e morte Seyle 1965 e 1947 Rodrigues 1989a Mello Filho 1983 Pontes 1987 Granboulan 1988 As reações de estresse resultam pois dos esfor ços de adaptação No entanto se a reação ao agres sor for muito intensa ou se o agente do estresse for muito potente eou prolongado poderá haver como consequência doença ou maior predisposição ao de senvolvimento de doença Pois a reação protetora sistêmica desencadeada pelo estresse pode ir além da sua finalidade e dar lugar a efeitos indesejáveis É oportuno lembrarmos mais uma vez Levi 1971 o ser humano é capaz de adaptarse ao meio ambiente desfavorável mas esta adaptação não ocorre impune mente O perigo parece ser maior nas situações em que a energia mobilizada pelo estresse psicoemocio nal não pode ser consumida Aliás Seyle op cit nos lembra que as doenças de adaptação são conse quências do excesso de hostilidade ou de excesso de reações de submissão Além disso a possibilidade de que o organismo contenha memória afetiva sistema límbico hipotálamo conectados com o córtex de si Psicossomaticaindd 118 Psicossomaticaindd 118 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 119 tuações de estresse anteriores perpetua o potencial nocivo Granboulan 1988 As proposições acima podem ser mais facilmen te comprovadas nas doenças em que notoriamente há um componente de esforço de adaptação como por exemplo nas úlceras digestivas nas alterações dis pépticas crises hemorroidárias alterações da pres são arterialditas essenciais alterações na parede dos vasos sanguíneos alguns tipos de doenças renais alterações inflamatórias do aparelho gastrintestinal diversas afecções derrnatológicas alterações metabó licas várias manifestações alérgicas artrites reumáti cas e reumatoides perturbações sexuais comprome timento do sistema imunológico e algumas alterações tiroidianas A lista de doenças poderia ser imensa princi palmente na dependência da formação do profissio nal médico mas existem dados epidemiológicos que não podem ser ignorados que situam em cerca de 25 a prevalência da morbidade psiquiátrica nos consultórios de clínica geral Cubi 1989 Wilkinson 1986 acredita que a percentagem de morbidade psiquiátrica não detectada na clínica geral chega na Inglaterra a cerca de 33 a 60 no nível de atenção primária à saúde Se nos limitarmos ao nosso tema podemos perceber que várias das patologias hoje es tudadas pela Medicina do Trabalho têm íntima cor relação com o estresse O desgaste a que as pessoas são submetidas nos ambientes e nas relações com o trabalho é fator dos mais significativos na determina ção de doenças Cremos que este trabalho não escapa ao conhecimento médico mas também é fato que o espaço dedicado na anamnese à investigação desses aspectos é pequeno em relação à sua importância Não nos estenderemos contudo no estudo das doenças ocupacionais e suas relações com a teoria do estresse Vamos deternos numa das linhas possíveis ainda que de uma forma introdutória que é o estudo entre os agentes estressores psiçossociais e o trabalho A importância desses agentes estressores os psicossociais é hoje reconhecida pela imensa maioria dos médicos Sabemos que são tão potentes quanto os microorganismos ou a insalubridade no desencade amento de doenças Um recente projeto de lei sueco de saúde pública afirma Nossa saúde depende em grande parte de nossas condições e modo de vida E são estas as mais frequentes razões de consultas médicas nas regiões mais desenvolvidas afetando in diferentemente as mais variadas classes sociais Ou seja tanto o operário como o executivo são passíveis de apresentar alterações no seu funcionamento devi do aos agentes estressores psicossociais Sabemos que as reações de estresse são natu rais e até necessárias para a própria vida no entan to sob algumas circunstâncias elas podem se tornar prejudiciais ao funcionamento do indivíduo Já nos referimos a isto O gráfico ao lado pode ilustrar o que tentamos transmitir A CULTURA EMPRESARIAL O conjunto de práticas e as redes de significa dos compartilhados em grupamentos sociais formam o processo cultural Tem permanência de tempo tem caráter de coletividade e tem continuidade além da vida de quem a cria Laraia 1988 Este processo rea liza a construção social da realidade Uma cultura adquire conformação e caráter específicos graças à coerência e unidade de suas instituições sociais Tais instituições possibilitam a continuidade social e cons tituem os instrumentos efetivos do seu equilíbrio Laraia 1988 Esta conceituação considera a cons trução transformação e manutenção deste fenômeno da vida em comum organizada para o viver e o sobre viver humano Para Mello Filho 1988 a cultura é o resulta do das atitudes ideias e condutas compartilhadas e transmitidas pelas pessoas de uma sociedade jun tamente com as respectivas transformações isto é invenções métodos de investigação do ambiente e objetos manufaturados As características da cultura representam po tencialidades adaptativas e estressoras dentro da numerosa gama de possibilidades de transformações reproduções e expressões próprias da complexidade Área de melhor performance Estresse no trabalho PERFORMANCE NO TRABALHO FIGURA 103 Performance no trabalho Psicossomaticaindd 119 Psicossomaticaindd 119 05012010 121206 05012010 121206 120 Mello Filho Burd e cols e riqueza humanas No entanto existem processos culturais que limitam e moldam a expressão desta natureza sobre o que Geertz in Laraia op cit p 58 afirma um dos mais significativos fatos sobre as pessoas é a constatação de que todos nascem com um equipamento para viver mil vidas mas temrinam tendo vivido uma só O homem não é apenas o pro dutor da cultura mas também num sentido especifi camente biológico o produto da cultura Analisando as influências culturais sob o enfo que das manifestações psicossomáticas existem es tudos em que a atuação da cultura sobre o biológico se torna evidente no processo do adoecer e do curar Por exemplo o surgimento de sintomas de malestar provocados pela ingestão combinada de determina dos alimentos leite com manga Outro exemplo é a sensação de fome nos horários de alimentação esta belecidos diferentemente em cada cultura Relatase também o caso de africanos removidos violentamen te de seu continente ou seja de seu ecossistema e de seu contexto cultural que transportados para uma terra estranha perdiam a motivação para continuar vivos Nessas ocasiões ocorriam muitos suicídios e o mal denominado banzo traduzido como Sauda de Os casos de curas decorrentes da fé no remédio ou na religião são outros exemplos Nessa dinâmica estão os processos psicosso ciais Eles são constituídos em parte por percepções e atitudes dos indivíduos e em parte por elementos culturais que direcionam os vínculos reproduzem e recriam valores sobre vários fatos da realidade Os critérios específicos sobre saúde doença indivíduo trabalho produtividade força vulnerabi lidade são construídos pela cultura e transformadas pelos indivíduos Os elementos culturais objetivamse quando os indivíduos dão significados à queixa psicossomática às atitudes dos indivíduos doentes às reações do gru po de trabalho à frequência no ambulatório e a ou tras situações cotidianas A cultura é edificada a partir do meio ambiente O meio ambiente é o mundo externo e a realidade imediata Realidade esta que segundo Berger e Luck mann 1987 é decorrente da vida cotidiana que se apresenta interpretada pelos homens e é subjetiva mente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente Existem estudos realizados por Wittkower sobre estresse cultural conforme relata Mello Filho 1983 a partir dos quais é possível relacionar respostas psicos somáticas e cultura Neles foram identificados aspec tos culturais estressantes como o uso acentuado de tabus saturação de valores instabilidade de modelos culturais privação de vida social rigidez de normas e condições minoritários Esses dados demonstram que as respostas psicossomáticas sofrem influências dife rentes em cada cultura ou subculturas AS RELAÇÕES EMPRESAPESSOA Toda empresa é um conjunto sociocultural com plexo organizado para realização de serviços fabrica ção de coisas transformação ou extração de produtos da natureza Segundo Lapassade 1983 constituise de um sistema de redes de status e papéis Possui coordenação das atividades de uma série de pessoas para consecução de algum serviço ou produto por meio da divisão de trabalho e através da hierarquia de autoridade e responsabilidade Este complexo de pessoas com seus modos próprios transforma e provoca transformações no trabalho que se realiza no espaço empresarial Suas atividades visam à satisfação de necessidades organi zacionais e individuais a partir de limites estruturais e tecnológicos sobre os quais se processam acomoda ções dentro e fora do espaço empresa Katz e Kahn 1976 afirmam que na organiza ção há uma interpretação dos sistemas de autoridade e recompensa na qual processos de desenvolvimen to por cujo intermédio os grupos adquirem mecanis mo regulatório e uma estrutura de autoridade não são independentes mas sim interativos Na cultura empresarial em função desta uni lateralidade de apreensão do comportamento so bressaem valores objetivos e impessoais isto é não contando com a emoção vêse o individuo de forma incompleta com habilidades específicas para a rea lização de tarefas isolado das suas características de ser das suas experiências de vida Dessa forma durante a relação indivíduoempresa há uma cisão do comportamento de um lado a força de trabalho com subordinação às regras da empresa de outro o vivenciar emoções nem sempre expressas adequada mente A relação com a empresa está representada por uma ou mais pessoas que já pertencem à organização às quais foram atribuídas responsabilidades adminis trativas para falar em nome da empresa O falar em nome da empresa envolve a legitimação dos mo delos administrativos da política administrativa e do controle da conduta O processo de firmar contrato de trabalho na verdade caracterizase por acatar as normas os valores e os procedimentos utilizados de forma coletiva e em geral coletivamente aceitos Nas empresas brasileiras este processo é objetivado a partir da Consolidação das Leis do Trabalho CLT que regulamenta o registro a remuneração o repou so o afastamento a validade de atestados médicos as condições especiais para o trabalho da mulher do Psicossomaticaindd 120 Psicossomaticaindd 120 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 121 menor as atividades insalubres e penosas e as resci sões contratuais Ao celebrar o contrato de trabalho a pessoa com todos os fenômenos intrapessoais e interacionais que caracterizam sua identidade acata as normas or ganizacionais A pessoa quando é admitida na empre sa traz consigo sua história sua personalidade e uma forma de funcionar tanto orgânica como psíquica e social E tende a produzir nas suas relações não só as expectativas mas também sua história que vai inte ragir com o sistema de organização manutenção e de adaptação do indivíduo do grupo da empresa O homem organizacional passa a maior parte de seu tempo dentro de uma estrutura empresarial burocratizada e realiza um conjunto de tarefas com graus diferentes de complexidade Convive com ou tros indivíduos em função da realização dessas tare fas e de suas afinidades pessoais que procura realizar dentro desse contexto Leva toda sua potencialidade psíquica para o espaço da empresa o pensamento a intuição o sentimento o julgamento Mira y Lopez 1949 Sua potencialidade física as características mentais as anatômicas as fisiológicas e as sensitivas E sua potencialidade social a história de vida expe riências adquiridas os valores introjetados a capaci dade de compartilhar A entrada da pessoa para o sistema empresa é celebrada através da Consolidação das Leis do Tra balho CLT de práticas administrativas e de proce dimentos seletivos específicos Implícito a este mo mento formase o contrato psicológico de trabalho Caracterizase por um conjunto de expectativas que se estabelecem entre o indivíduo e a empresa acer ca das características de comportamento profissional produtivo das responsabilidades da remuneração dos incentivos e dos benefícios Este pacto geralmen te não é explicitado de forma direta mas é fator de terminante no processo adaptativo do indivíduo na empresa Alguns aspectos contidos na cultura organizacio nal e nas características das pessoas indicam as pro váveis características deste contrato Entretanto estas expectativas e proposições informais ficam encobertas e só emergem em momentos de crise ou intervenções específicas em programas de mudança organizacio nal referentes às respostas psicossomáticas Para atuação deste homem organizacional apenas alguns aspectos são utilizados estimulados e aceitos Frequentemente ocorre fragmentação e desarticulação das suas dimensões vitais biopsicos sociais visando a um enquadramento homogêneo e predeterminado a partir do cargo ou função Cargos e funções propostos projetados em modelos estáticos pobres e limitados com um referencial preestabeleci do de forma incompleta e obsoleta Não se pretende o trabalho para o homem mas o homem para o tra balho Arendt 1983 p 248 faz a seguinte reflexão sobre a autonomia da pessoa no seu trabalho o animal laborans pode escapar à sua difícil situação como prisioneiro do ciclo interminável do processo vital à eterna sujeição à necessidade do labor e do consumo unicamente através da mobilização de ou tra capacidade humana a capacidade de fazer fabri car e produzir o que é atributo do homo faber o qual como fazedor de instrumentos não só atenua as dores e as fadigas do labor como erige um mundo de durabilidade Com relação à sobrevivência aspecto direta mente ligado à vinculação com o trabalho coletivo Codo 1985 destaca que a sobrevivência de um or ganismo depende em última instância da capacidade física biológica e psicológica de transformar o meio a sua imagem e semelhança portanto de autotransfor marse à imagem e semelhança do meio O grupo de trabalho legitima as articulações entre interesses individuais coletivos e empresariais Formamse redes de influências com processos rela tivos à cooperação competição conflitos nível de motivação e pressões externas Formamse também redes de afetos emoções e sentimentos entre as pes soas com as quais se mantêm variada frequência e intensidade de convivência Na prática as atividades empresariais se efeti vam ao nível dos pequenos agrupamentos organiza dos com os subsistemas grupais da estrutura organi zacional da empresa O equilíbrio é um dos processos determinantes da dinâmica do grupo Está associado ao contexto amplo em que está inserido Sobre os grupos Lewin citado por Amado 1982p 94 afirma que grupos são totalidades dinâmicas que resultam das intera ções entre seus membros Estes grupos realizam for mas de equilíbrio no seio de um campo de forças E em função da organização perceptiva do espaço so cial que as energias postas em jogo se completam e se combatem A reciprocidade no grupo é elemento definitivo na estrutura de grupos e na empresa É uma expec tativa constante Se dentro do grupo de trabalho na empresa a regra é não quebrar ou não parar a pro dução se ocorre esta quebra em função de doença estabelecese uma condição de suspensão da recipro cidade atingindose vínculos de produtividade que existem entre os indivíduos desse grupo Desenca deiamse novos tipos de vínculos em função dos sin tomas e a alteração de comportamento do queixoso novos fatores da dinâmica do grupo Para Rodrigues 19881990 esta interrelação pessoaempresa será mais ou menos conflituosa quanto maiores forem as Psicossomaticaindd 121 Psicossomaticaindd 121 05012010 121206 05012010 121206 122 Mello Filho Burd e cols diferenças de expectativas dos dois polos ou quanto mais rígidos eles forem com relação à capacidade de adaptação TRABALHO E PRODUTUVIDADE Trabalho é fator básico na empresa Caracteri zase pelo esforço planejado sobre a manipulação ou transformação da natureza atingindose os mais di versos objetivos frequentemente reduzidos à busca da produtividade eficaz É obtido com o investimento de energia sobre atividades ou conjunto de tarefas que é a força de trabalho Em nível pessoal constitui uma das condições determinantes para identidade e integração do indivíduo na sociedade Para Marx 1988 v1 p202 trabalho é Um processo de que participam o homem e a natureza processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona regula e controla seu intercâmbio mate rial com a natureza Entretanto Marx ib indica que quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho é imensa a distância histórica que medeia sua condição e a do homem pri mitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira o qual constitui a lei de terminante do seu modo de operar e ao qual tem que subordinar sua vontade A ergonomia ciência que trata do conjunto de interrelações sob o enfoque da adaptação e do des gaste do indivíduo e da máquina aponta para as fal sas crenças a respeito de ritmo de trabalho para a repetitividade de tarefas para as atividades motoras para previsão e controle das situações de trabalho O trabalho envolve demandas de necessidades indivi duais e organizacionais em sintonia Quando elas não são atendidas as vinculações pessoasempresa modi ficamse e criamse processos patogênicos de adap tação como o desligamento da empresa a perda de promoções ou o isolamento na carreira profissional Assim quando não ocorre a sintonia nas interações em nível grupal ou organizacional surgem os confli tos Conflitos decorrentes de necessidades opostas ativadas ao mesmo tempo Argyris 1957 aborda o conflito dentro da inte ração indivíduoorganização e situa o comportamen to humano em uma organização como originário de fatores individuais de pequenos grupos informais e de fatores organizacionais Esses fatores atuam de forma isolada ou combinada Bleger 1984 considera que a ação individual das organizações depende da estabilidade e da neces sidade contínua de crítica e de melhoramento Para ele a instituição é o meio pelo qual os seres humanos podem enriquecer empobrecer ou se esvaziar como seres humanos o que comumente se chama de adap tação O melhor grau de dinâmica da instituição não é dado pela ausência de conflitos mas sim pela possi bilidade de superálos dentro do limite institucional O conflito é um elemento normal e imprescindível no desenvolvimento e em qualquer manifestação huma na A patologia do conflito se relaciona mais do que com a existência do próprio conflito com a ausência dos recursos necessários para resolvêlos ou dinami zálos A estereotipia é uma das defesas institucionais frente ao conflito mas se transforma assim mesmo em um problema atrás do qual é necessário encontrar os conflitos que se aludem ou evitam Spink 1982 analisando aspectos de conflito e estereotipia como processo dinâmico da organização aponta o trabalhar que desencadeia processos neuro tizantes Para o autor modelos de trabalho são uma forte determinação para a emergência de conflitos Esses conflitos ocorrem em função de áreas de atrito que criam por uso de autoridades por incompatibi lidades entre tarefas estabelecidas para as diferentes funções além de confusão nos limites e nos compor tamentos específicos em determinados processos de produção Dentre os poucos autores que observaram as res postas psicossomáticas na empresa Argyris 1957 afir ma que as doenças psicossomáticas representam um mecanismo defensivo em que o indivíduo transforma um problema psicológico num problema fisiológico O mesmo autor aponta que entre os membros da alta ad ministração são comuns as úlceras enquanto entre os empregados são comuns dores de cabeça e costas de pressões dúbias Em ambos os casos são reações adap tativas às ansiedades experimentadas no trabalho ESTRESSORES PSICOSSOCIAIS Um grande número de pesquisas realizadas con cordam que o conflito entre as metas e a estrutura da empresa de um lado e as necessidades individuais de autonomia realização e identidade é um gran de agente estressor importante Levi 1971 A de sumanização do trabalho presente na produção em grande escala que tem como característica marcante a mecanização e a burocratização tornamse agentes estressantes porque atentam contra as necessidades individuais de satisfação e realização entre outras Estes aspectos têm sido destacados por diferentes au tores e estão presentes independentemente do siste ma político dominante seja ele modo de produção capitalista socialista ou misto ibidem O filme de Chaplin Tempos Modemos ilustra muito bem esse Psicossomaticaindd 122 Psicossomaticaindd 122 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 123 tema Embora frequentemente se faça a correlação entre ser humano e máquina a verdade é que ele não é O trabalhador que é transformado em uma máqui na de apertar parafusos perde a noção do processo de produção como um todo tem o ritmo de trabalho fora do se controle perde o poder de decisão sobre o seu trabalho Assim tem a sua autoestima diminuí da seu trabalho não é percebido como importante ou interessante não vê que seu esforço é socialmen te significativo e não há reforço na sua identidade através do trabalho Não é difícil interpretar tudo isso como uma ameaça à dignidade humana pois são jus tamente essas necessidades que devem ser satisfeitas no local de trabalho Além desses fatores outros autores citam os se guintes liderança do tipo autoritário execução de ta refas sob pressão falta de conhecimento no processo de avaliação de desempenho e de promoção carência de autoridade e de orientação excesso de trabalho e grau de interferência na vida particular que este pode ter Levy 1971 Peter Spink 1982 nos diz o seguinte o que muitas empresas têm de desumano é o seu pró prio modelo de trabalho um modelo que diariamente sistematicamente violenta e restringe as reais capaci dades de um pessoa dentro de um escritório ou de uma fábrica Muito provavelmente estas reais capacidades estão ligadas a potencialidades intelectuais e emocio nais que sofrem constantes negações e sanções a partir de interesses pessoais que embora aplicadas em nome da produtividade pouco têm a ver com ela A American Management Association publicou uma pesquisa que realizou com executivos portanto de classe social diferente da do apertador de parafu sos em que mostrava quais eram as necessidades que as pessoas procuravam satisfazer no trabalho Surgiu o seguinte recompensa material progresso na carrei ra reconhecimento status na comunidade satisfação no trabalho percepção do trabalho como algo signifi cativo tranquilidade doméstica preservação da saú de e segurança no trabalho Bauk 1985 Frente a estressores psicossociais notadamente quando suas necessidades não estão sendo satisfeitas o indivíduo tende a reagir ou melhor dizendo ajus tarse basicamente de duas maneiras Levy 1971 1 Ajuste ativo o indivíduo expressa o seu desejo de mudança na estrutura a que está submetido afastase ou solicita transferência do serviço vo luntariamente tem participação em movimentos trabalhistas organizados ou não 2 Ajuste passivo é o mais comum e conduz à alienação sentido sociológico do termo o indivíduo passa a depreciar o trabalho e sentilo como um peso e não como fonte de satisfação O objetivo tornase apenas a remuneração de condi ções físicas e higiênicas o trabalho passa a ser sentido como desinteresan te e não envolvente que passa a ser instrumen talizado de forma que as satisfações só são en contradas fora do local de trabalho em diferentes maneiras de consumo absenteísmo maior predisposição à doenças pela falta de coe rência social do sistema em que o indivíduo está inserido e que atua como um agente estressor psi cossocial Ou seja a ocorrência de manifestações de doença em um meio de trabalho e um índice importante para se verificar o nível de saúde des te meio agora não somente em termos higiênico sanitários mas também em termos de saúde so cial que pode comprometer o indivíduo inclusive biologicamente Os dois últimos itens citados costumam de saguar no médico do trabalho Para abordar estas questões o absenteísmo e manifestações de doenças como indicativos de desgaste e ajuste passivo da maneira mais eficiente possível o médico deve agir com tato ter em mente que as questões de saúde no tadamente aquelas já referidas e que se incluem neste tipo de raciocínio não se resolvem apenas pela via do biológico ou da repressão São problemas que fazem parte de um contexto maior muitas vezes de respon sabilidade da empresa e o médico não pode ser o profissional que apenas torna apto o corpo para o tra balho O maior número de mortes no Brasil devese às doenças cardiovasculares As doenças isquêmicas do coração e a hipertensão arterial estão ocorrendo cada vez com maior frequência em indivíduos jovens e especificamente em determinadas categorias pro fissionais independentemente da classe social Todas as pesquisas feitas até agora indicam que as causas são o ritmo de trabalho a exigência irrecorrível de atenção e todos os condicionamentos que envolvam o homem e o trabalho Lacar 1984 Alguns estudos dirigidos de forma específica à relação estresse e trabalho mostram que mudanças no trabalho que interferem na motivação no tipo de trabalho executado no aumento da exigência de pro dutividade são suficientes para comprometerem não só o desempenho profissional mas também funções orgânicas como alteração da secreção de catecolami nas favorecendo o surgimento de hipertensão arte Psicossomaticaindd 123 Psicossomaticaindd 123 05012010 121206 05012010 121206 124 Mello Filho Burd e cols rial e alteração no metabolismo dos lipídeos plasmá ticos provocando hiperlipidemias importante fator na arterioesclorose A doença coronária conforme já foi demonstrado por Groen 1976 está intimamente ligada à relação do indivíduo com seu trabalho Também situações como promoção aumento de salário sucesso e elogios são capazes de aumentar a secreção de catecolaminas Levy 1971 Bauk 1985 pois são também estímulos psicossociais importantes Isso nos ajuda a compreender porque algumas pesso as adoecem às vezes bastante gravemente frente a eventos tidos como muito agradáveis A DIMENSÃO PSICOSSOCIAL NO PROCESSO SAÚDEDOENÇA Para a Organização Mundial de Saúde OMS saúde representa um completo bemestar físico men tal e social e não apenas ausência de doença De jours 1987 a partir desta definição reforça o fator processo para a dimensão saúdedoença e não esta do Eksterman 1986b afirma que a saúde não é um produto espontâneo da natureza Segundo o autor a saúde como a doença é uma construção humana uma faz uma sinfonia e a outra uma sintomatolo gia Seligman Silva 1986 com relação ao traba lho afirma que saúde mental é um processo em que as agressões dirigidas à mente pela vida laboral são confrontadas pelas fontes de vitalidade e saúde re presentadas pelas resistências de natureza múltipla individuais e coletivas que funcionam como preser vadoras da identidade dos valores e da dignidade dos trabalhadores A mesma autora ib cita estudos de McQueen e Segrist sobre as influências psiconeuroen dócrinas determinadas por vivências prolongadas de tensão de origem social que afetem a competência imunológica do organismo Segundo a autora as ações morbígenas de caráter essencialmente socioe conômico exercem influências através de diferentes vias social psicológica e do próprio corpo do traba lhador instrumentalizado pelo processo laboral em caminhos que se cruzam numa trama dinamizada por inúmeras interações Donnangelo e Pereira 1971 partindo da aná lise do objeto da prática médica afirmam que não é apenas a ciência do corpo mas o próprio corpo que constitui o objeto da prática médica e ainda mais o corpo normal ou patológico suscetível de uma mani pulação com vistas a determinados efeitos Souza e Veras 1983 afirmam que em um sis tema social em que a grande maioria da população dispõe apenas da sua própria força de trabalho para garantir sua subsistência o corpo é visto fundamen talmente como instrumento de trabalho E a doença representa então uma dupla ameaça tanto no sentido de afetar sua saúde como sua capacidade produtiva Roberto Machado Foucault 1985 comenta os seguintes aspectos relacionados a poder e corpo Onde o corpo não é um objeto natural uma coisa é uma prática social e como tal constituída historica mente O poder intervém materialmente atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos o seu cor po e que se situa no nível do próprio corpo social e não acima dele penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micropoder ou subpoder Estas articulações entre poder corpo e busca da sobrevivência relacionamse aos aspectos da patolo gia do trabalho documentados por Dejours 1987 de onde respostas psicossomáticas entre outros re cursos emergem como mecanismos de resistência estratégicos na sua sobrevivência que formam uma ideologia defensiva Destaca que a organização do trabalho age sobre a economia psicossomática Basta enfatizar que a organização do trabalho determina o conteúdo da tarefa através da divisão do trabalho Não somente o conteúdo significativo mas também o conteúdo ergonômico quer dizer os gestos a postura e os ambientes físicos e químicos que de certo modo visam à economia do corpo em situação de trabalho A organização do trabalho é causa de uma fragi lização somática na medida em que ela pode bloquear os esforços do trabalhador para adequar o modo ope ratório às necessidades de sua estrutura mental O conflito entre a economia psicossomática e a organi zação do trabalho potencializa os efeitos patogênicos das más condições físicas químicas e biológicas do trabalho Friedmann 1983 p168 afirma que quando não há possibilidade de afirmação da personalidade no trabalho ocorrem processos de depressão e tensão nervosa permanente E acrescenta muitas pessoas que se sentem insatisfeitas hesitam sob a pressão do meio em confessálo a si próprias e menos ainda ao seu círculo de relações sentimento de estar insa tisfeito no trabalho e mesmo infeliz pode ser profun damente reprimido como é no casamento Não obstante sintomas que não escapam ao analista como os sonhos a tensão nervosa a insônia a fadiga geral a hipertensão arterial as úlceras e outras mani festações psicossomáticas podem revelar a existência destes sentimentos inconscientes Os critérios de saúde nas empresas sofrem in fluência das práticas administrativas e do modo de conceber as pessoas para o trabalho organizado A saúde física ou mental não foi incorporada no con texto dos pressupostos das escolas tradicionais de administração Este aspecto é tratado apenas atra vés de referenciais ergonômicos das condições de Psicossomaticaindd 124 Psicossomaticaindd 124 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 125 segurança do trabalho com os procedimentos da análise de acidentes e de doenças ocupacionais ape nas de ordem física Tratamento que é praticado em função de determinação legal ou de queda de ren dimento de trabalho Assim na prática empresarial desenvolveramse de um lado diversas abordagens do psiquismo para a motivação e de outro a análise de condições ambientais adversas e os modos de pro dução A ideologia de trabalho e as crenças sobre a organização continuam sendo fatores importantes de desgaste físico e psíquico mesmo considerandose as novas escolas administrativas com enriquecimento de tarefas rodízios e planos de carreiras A emergência de sintomas não específicos ainda tem sido tratada como fator secundário da dinâmica organizacional o que se reflete nas políticas intemas de saúde A saúde está articulada na empresa com a manutenção da força de trabalho A percepção desta força de trabalho sofre influência da própria história da atuação médica o indivíduo deve ser um recurso estável forte e confiável um tipo muito especial de máquina que não quebra Da saúde depende a per manência do funcionário na empresa ou nela se pro jeta o sucesso profissional Esta crença tornase real dentro do processo de adaptação para suportar ne gar e até superar mesmo que temporariamente pro blemas decorrentes de agentes patogênicos em nível físico e mental Em princípio o indivíduo não pode e não deve quebrar deve suportar as adversidades e recriálas para sentirse bemsucedido na sua vida organizacional Possas 1981 esclarece que o profissional mé dico constrói mentalmente um projeto de organismo normal antes de tentar moldálo à realidade Este modelamento é adaptado às características sociocul turais Muitas vezes à técnica médica impõese uma prática social determinando a qualidade da percep ção e classificação dos sintomas Portanto a prática médica na empresa reproduz modelos da saúde pú blica e com ela interage A relação do profissional de saúde mais espe cialmente do médico pode ser caracterizada como a relação entre a pessoa que alivia o sofrimento e a pessoa que está sofrendo O médico é socialmente reconhecido como detentor do conhecimento e da técnica das intervenções e dos padrões de saúde e doença Estes são os valores da cultura organizacio nal que formam os códigos perceptuais sobre os crité rios de administração e práticas de saúde na empresa e interagem com o fenômeno psicossomático Eles compõem o cenário invisível mas influente no espa ço organizacional de onde emergem as mais diversas práticas e recursos terapêuticos Lacaz op cit Seligman Silva op cit Cohn 1985 Sato 1988 e vários outros pesquisadores relatam situações em que condições físicas do traba lho comprometem o estado de saúde incapacitando a pessoa para o trabalho em diversos espaços de tempo Quando a característica é prevalente na esfera mental esta incapacitação ocorre num prazo mais longo Mello 1988 comenta situações de doença as sociadas a momentos de intensa dor física ocupando lugar de destaque em narrativas colhidas em campo junto a mulheres da periferia de São Paulo A autora narra que a sobrevivência depende da aptidão física para a labuta qualquer deficiência na máquina do corpo constitui ameaça de extema gravidade PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NA EMPRESA Os recursos terapêuticos institucionalizados na empresa são o ambulatório e o atestado médico o serviço conveniado e público Para ali convergem as queixas e os sintomas que não foram superados pela pessoa dentro do seu cotidiano dentro ou fora da empresa Os recursos altemativos são a automedica ção as chamadas medicinas alternativas e algumas seitas religiosas O tratamento dos sintomas apre sentam condutas de caráter medicamentoso quan do há posologia prescrita pelo médico ou enfermeiro ou então o doente automedicase psicoterapêutico quando se busca uma compreensão psíquica dos sintomas através da conscientização de sua dinâmi ca inter e intrapessoal e mágico quando se adota comportamentos recursos e rituais específicos para exorcizar a dor A posição do departamento médico como um setor intemo da empresa subordinado a diretorias administrativas influi nos critérios de diagnóstico conduta acompanhamento liberação ou retorno do paciente para o trabalho Aliada a esta inserção no sistema produtivo a legislação trabalhista atribui ao atestado médico uma força de lei O atestado médico homologado pela empresa é um dos poucos instrumentos para abono de faltas isto é significa para qualquer funcionário ausência do trabalho sem perda da remuneração independentemente do parecer da chefia ou grupo de trabalho O funcionário dessa forma diante de comprometimentos socioeconômicos de segurança física familiares e outros dos mais variados muitas vezes busca no departamento médico a justificativa para sua ausência justificada que pode não ser pro priamente de saúde Esses aspectos tomam o poder de decisão de serviço médico complexo e abrangente Frequen temente os médicos devem dar ou rejeitar suporte para demandas que não são propriamente de saúde no trabalho Psicossomaticaindd 125 Psicossomaticaindd 125 05012010 121206 05012010 121206 126 Mello Filho Burd e cols Nesse cenário acontecem várias influências psicossociais às quais Souza e Veras op cit p 11 referemse da seguinte forma Em um sistema social onde a grande maioria da população dispõe apenas da sua força de trabalho para garantir sua subsistên cia o corpo é visto fundamentalmente como instru mento de trabalho E a doença representa então uma dupla ameaça tanto no sentido de afetar sua saúde como sua própria capacidade de produtividade Nes se enfoque os autores abordam dinâmicas presentes no processo de adoecer o estar doente o sentirse doente e o poder ficar doente que caracterizam a po sição individual relativa das pessoas Dentre os efeitos limitadores da percepção sobre a realidade o estereótipo é um dos mais importantes pois envolve distorções sobre a realidade e a intro jeção de crenças sobre articulações desta realidade que podem chegar à negação de fatos desta mesma realidade Nele ocorre a estigmatização constituída pelas expectativas construídas culturalmente anali sada por Goffman 1982 p 61 como um processo em que a manipulação do estigma é uma ramifi cação de algo básico na sociedade ou seja a estereo tipia ou o perfil de nossas expectativas normativas em relação à conduta e ao caráter As práticas na empresa influem no desdobra mento dos sintomas provocando a estigmatização do sujeito que relata com frequência sintomas de qual quer ordem O estigma ocorre não sobre o sintoma mas a partir da frequência com que é expresso e a partir do seu nivel de visibilidade Os fatos organi zacionais apontam a presença do corpo dentro de dimensões saúdedoença capacidadeincapacidade nas interações sociais Interações que além de apre sentarem cargas emocionais específicas no nível in dividual trazem representações significativas de valores e representações organizacionais A estigma tização ocorre a partir de uma diferença de compor tamento considerado normal porque é aceito social mente Caractcriza uma situação de desvio O estigma é uma relação entre atributos e este reótipos Velho 1987 Cada grupamento social cria regras específicas Se por uma questão de poder elas são impostas aos seus membros então o desvio ocor re a partir dessas mesmas regras Tal desvio provoca a individualização que é o mascaramento da per cepção de fatos da realidade em função de crenças sociais Costumeiramente as diferenças se transfor mam em divergências A percepção de desvio decorre da fragmentação de fatos que são percebidos apenas em nível individual Mesmo que tenham presença em nível coletivo Combinadas à história de vida com as mani festações orgânicas eou psicoemocionais reinciden tes o doente tornase particularmente suspeito da responsabilidade da emergência do só psicológico dentro da relação empresasaúdetrabalho Algumas vezes esse doente tornase depositário destas cren ças ratificando a tendência de julgamentos estigma tizados Fato decorrente da desinformação e do grau de consciência sobre a interação biopsicossocial na manifestação dos sintomas Há casos em que os indivíduos estigmatizados manipulam sua própria identidade Acomodamse e usam os ganhos secundários derivados da situação de restrições sociais Na atitude do estigmatizado observase que sintomas incorporam o estigma que prejudica a identidade social O doente fica desacre ditado perante os outros Costumeiramente recaem sobre o doente percepções de fraqueza oportunismo infelicidade ou frustração Quando a incapacidade diminui a produção avaliase como fraqueza mas se apesar de doente o indivíduo mantém a produção transformase em força A alta frequência dos sintomas rompe com a norma social dos atributos do bom funcionário que é trabalhador e continente ao trabalho A individua lização que é um processo de estigmatização atua como mecanismo de controle do comportamento des viante em defesa dos valores da organização e das crenças a respeito da obrigação de controle sobre as manifestações em que o sintoma não e visível O sofrimento pessoal é intrínseco à dor à queixa e aos sintomas Daí a tendência de individualização ratificada pelos desdobramentos sociais de rejeição compaixão e culpa Esses fatores extrínsecos são ava liados como secundários na evolução dos sintomas o responsável é o indivíduo porque o comportamento desviante nele está objetivado Alguns indicadores podem nos ajudar na detec ção de pessoas em que a ação dos agentes de estresse estão determinando um comprometimento de seu de sempenho no sentido biopsicossocial São eles que da da eficiência ausências repetidas insegurança nas decisões sobrecarga voluntária de trabalho aumento do consumo de cigarros de alimentos e drogas uso abusivo de medicamentos ou agravamento de doen ças Rodrigues 1990 E importante frisar mais uma vez que as rea ções de estresse não são as bandidas da história es tão presentes em todos os momentos de nossa vida são tão importantes que não podemos viver sem elas pois nos auxiliam em todos os momentos de adaptação que necessitamos Assim como a alimenta ção e o exercício físico se estiverem dentro de limites adequados satisfatórios serão benéficos O trabalho também pode ser fonte de satisfação realização sub sistência mas frequentemente se torna uma verdadei ra prisão em decorrência das más condições em que é realizado o trabalho da desatenção a programas de Psicossomaticaindd 126 Psicossomaticaindd 126 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 127 prevenção e promoção da saúde Daí a necessidade de resgatar a dimensão coletiva do fenômeno estres se sobre o enfoque de uma Medicina Psicossomática realmente efetiva Em seguimento à nossa exposição vamos apre sentar duas metodologias de compreensão e inter venção psicossocial em psicossomática que se com plementam e sustentam o conteúdo teórico deste capítulo A primeira tratase de um caso clínico atendido em consultório onde procuramos observar a relação de um indivíduo com o seu trabalho e de como as atividades profissionais podem ser vinculadas à pul são de morte e não de vida eou de realização pessoal e profissional A segunda enfoca e destaca um modelo de in tervenção e compreensão psicossocial na psicologia do trabalho numa perspectiva psicossomática que escapa da compreensão e intervenção individual do processo saúdedoença CASO CLÍNICO A situação clínica a seguir resulta de minha experiência clínica Os dados do paciente e outras informações que po deriam permitir a sua identificação foram modificados sem prejuízo no entanto do conteúdo da história e dos objeti vos propostos ROBERTO 27 anos filho único de um casal oriundo da Europa Central pai e empresário de razoável sucesso casado há três anos tem uma filha de 2 anos engenheiro ocupa cargo de gerência em empresa multinacional quando retornou do país matriz desta empresa onde realizou está gio de aperfeiçoamento Foi encaminhado pelo seu Clínico Geral No começo de fevereiro de 2008 foi diagnosticado gas trite erosiva também sentia dor e queimação nos braços o tórax quente dormência em extremidades sic além de ansiedade irritabilidade dificuldades de sono bruxismo e dor de cabeça hemilateral que sugere disfunção tempo mandibular Posteriormente apresentou quadro semelhan te associado a taquicardia mal estar intenso sendo levado por três vezes à PS onde realizou vários exames inclusive ECGs sem alterações Relata que naquela ocasião passava por momento de grande sobrecarga de trabalho tanto que não pode comemorar o seu aniversário pois estava viajando muito Sua vida tem sido dominada pelo trabalho sai da em presa tarde quando chega em casa sua filha e esposa estão dormindo Tem dificuldade em sair mais cedo tanto em função da sobrecarga de trabalho como também porque acredita ser uma desconsideração para com os subalter nos e outros membros da equipe sair do trabalho antes deles No início deste ano conseguiu tirar férias sic e foi para o litoral com esposa e filha no entanto teve que interrom pêla pois foi solicitado que retornasse à empresa em fun ção de problemas na produção No entanto diz não estar satisfeito com sua produtivi dade e que tem muitas coisas pendentes para resolver Se olharmos para esta situação clínica apenas pela perspectiva individual jovem extremamente responsável cioso de seus deveres e obrigações com espírito de equipe e colaboração em função de um nível de exigência extremamente alto severo e rigo roso tornase de tal forma voltado com seu trabalho que este ocupa quase todo o espaço de sua vida men tal a ponto de distanciarse dos demais aspectos de sua vida Esta forma de funcionamento pode terlhe pro vocado um desgaste progressivo e por consequência as manifestações de ansiedade e a somatização no sentido lato Ainda por essa perspectiva é possível neste fragmento de história clínica identificar os principais indicadores para o diagnóstico de uma reação de es tresse ou distresse como pode ser demonstrado no seguinte raciocínio queda da eficiência insegurança nas decisões tomadas de decisão começam a ser proteladas sobrecarga voluntária de trabalho grande nível de tensão irritabilidade explosões emocionais sentimentos de desconfiança tendência ao pensamento onipotente com dimi nuição da possibilidade em reconhecer limites uso de medicamentos drogas eclosão ou agravamento de doenças Chega ao consultório às 2045h Sua aparência é de alguém que está exausto Diz estou no limite estamos vivendo um momento de concorrência alguém preparou um cronograma maluco quase inviável tivemos uma dis cussão na empresa alguns são contra o cronograma mas fui da opinião de que devemos aceitar Reconhece que o cronograma proposto necessariamente demandará uma carga de trabalho significativa percebo que no decorrer deste discurso há certa ponta de orgulho quando destaca a capacidade de trabalho a coesão de sua equipe e a dis posição para o sacrifício Logo em seguida com muita raiva critica o pessoal de outro departamento que se comporta como peão de obra visto que não fica no ser viço além do tempo obrigatório pois não são pagos para fazer hora extra Esse tipo de comportamento é interpretado por Ro berto como falta de espírito de colaboração e de equipe e complementa será que eles não percebem que estamos em uma guerra Que se a gente não luta vai morrer Não Psicossomaticaindd 127 Psicossomaticaindd 127 05012010 121206 05012010 121206 128 Mello Filho Burd e cols tem outra saída senão trabalhar 12 14 horas por dia sába do domingo no meu departamento nós colaboramos não é a toa que somos considerados a elite os eleitos O Fulano referindose ao gerente do departamento dos peões é um incompetente não sabe motivar seus funcionários por isso eles não colaboram Em outro momento mais adiante comenta que a em presa dispensou vários funcionários a máquina está enxu ta quem não tinha como colaborar foi embora Em outro encontro Roberto mais uma vez com a apa rência de muito cansado entra na sala com uma embalagem de suco e diz estou tentando tomar este suco desde às 14 horas são 2100 hoje chutei o balde em uma reu nião às vezes parece que o pessoal não sabe decidir temos prazos compromissos cronogramas a cumprir e as pessoas são muito reativas isso não dá aquilo também não quero saber se não dá vai ter de dar Continua a frase com ênfa se um misto de angústia e raiva Não dá prá perder tempo não tenho tempo pra discussões inúteis essas reuniões são um saco o tempo é curto e se não cumprir o cronograma e não participar da concorrência vai morrer Quem não está disposto a colaborar devia ir embora agora é a hora de produzir crescer mostrar serviço Todo mundo sabe que daqui a 10 anos outros virão para nos substituir quem não crescer for promovido vai perder o emprego e não vai conseguir outro com 37 ou 40 anos São muitos os vértices que poderiam dirigir nosso olhar para essa situação A angústia de morte a sensação de desamparo ainda que não reconheci das e negadas que demandam defesas igualmente intensas como a onipotência A vivência de desam paro ocupa um lugar proeminente na segunda teo ria da angústia de Freud remete à impotência em face da realização de uma ação que consiga dar um fim a um estado de tensão interna gerada por uma necessidade não satisfeita A percepção ainda que parcial a este estado de desamparo é vivida como um trauma uma angústia sinal ao narcisismo com o consequente desenvolvimento de angústia Para Klein remete à angustia de aniquilamento ou de morte ou seja uma vivência de intensa ameaça à sobrevivência ou de antecipação de uma catástrofe eminente sendo que esta experiência é acompanha da de fantasias ou sentimentos de impotência fren te a situações exteriores ou interiores interpretadas como perigosas contra as quais a pessoa se sente incapaz além das defesas onipotentes surge a pro jeção da ameaça aos objetos que são vividos como persecutórios e a experiência emocional de agressi vidade hostilidade em relação aos objetos perce bidos como perseguidores Esse exemplo real pareceme claro demonstra como o trabalho pode surgir como fator de morte e não de vida Podemos nos perguntar de onde derivam tão intensas angústias e que provocam efeitos tão de vastadores como podemos observar nessa história clínica De forma sucinta a necessidade em asse gurar os predicados socialmente valorizados pela cultura Sabemos que a cultura através do proces so de socialização impõe traços de conduta e as pirações que dirigem o indivíduo na busca de seu tipo psicológico coerente a esta cultura ideal que muitas vezes incita a desempenhos que excedem suas possibilidades o que provocará feridas narcísi cas e evocará representações associadas a vivência de desamparo o que para Freud está intimamente correlacionado a três principais fontes de angústia perda do amor do objeto de castração e da punição do superego para Klein pulsão de morte ansieda de persecutória e angústia de aniquilamento ou de morte Figura 102 O indivíduo no decorrer de seu desenvolvi mento gradualmente vai sendo confrontado com problemas mais complexos como a manutenção de sua existência e de sua própria família sua posição social seu desenvolvimento profissional e a garantia do emprego Tal complexidade tem se mostrado não só cres cente mas também mais precoce na vida das pessoas notadamente no que tange ao trabalho Jovens são imersos em um ambiente onde predomina uma com petição hostil não raro ameaçadora e que ao mesmo tempo exige um grande controle sobre seus próprios sentimentos e impulsos em um momento de suas vi das em que se deveria privilegiar o desenvolvimento o aprendizado e a evolução pessoal emocional e pro fissional Existe uma tendência que vem se desenhando nos últimos anos nas empresas onde profissionais ra zoavelmente jovens são recrutados para funções de grande complexidade responsabilidade e competiti vidade Funções estas que em um tempo recente só eram desempenhadas por profissionais considerados mais experientes e maduros emocionalmente em ter mos de tempo na carreira UM MODELO DE INTERVENÇÃO O projeto foi apresentado na 40a Reunião Anual da SBPC em julho de 1988 e dentre aproximada mente 3000 trabalhos apresentados foi indicado entre os 100 pelo interesse econômico social e po lítico para matérias em órgãos de comunicação do evento Dados genéricos do projeto foram apresenta dos em outubro de 1989 no 10th World Congress of the International College of Psychosomatic Medicine em Madrid Essas contingências da pesquisa geraram sintonia de dados e socialização de informações den tro e fora da empresa Psicossomaticaindd 128 Psicossomaticaindd 128 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 129 CASO CLÍNICO Lambari O OPERÁRIO DE UMA FÁBRICA O Sr Ambrósio Pereira da Silva mais conhecido como LAMBARI é funcionário de uma empresa metalúrgica Há cinco anos ele trabalha na mesma seção já tendo operado três tipos diferentes de máquinas Começou como ajudan te hoje é operador O LAMBARI é casado pai de quatro filhos mora longe da empresa Só ele trabalha fora a esposa cuida da casa e dos filhos Ultimamente ele está com acúmulo de trabalho e a chefia controla bastante os funcionários e o serviço Em ge ral trabalha de 10 a 12 horas por dia contando a hora extra Com muita frequência trabalha aos sábados e ás vezes aos domingos e feriados Nos fins de semana o LAMBARI não costuma sair para muito longe sempre aproveita para dormir e descansar Quando dá tempo gosta de jogar futebol e de um bom papo tomando uns aperitivos com os amigos no bar As vezes sente dores no corpo ou malestar como dor de cabeça palpitações no coração empachamento dor no estômago pressão alta falta de ar dor nas juntas insônia dor no fim da coluna tontura constipação falta de apetite e batedeira no coração Quando isso acontece vai ao am bulatório que receita um medicamento para aliviar a dor ou se vira a sua moda Nestes dias quando não está passando bem sente que alguma coisa muda no seu relacionamento com os chefes e os colegas no trabalho A partir das entrevistas e das discussões prelimi nares foram elaboradas 63 perguntas agrupadas em 5 áreas para serem relacionadas á história projetiva As áreas consideradas fundamentais foram o indivíduo na empresa as relações entre a empresa e os sintomas as práticas terapêuticas a realidade imediata A maioria das entrevistas foi realizada no con sultório médico da empresa Algumas vezes por falta de espaço ou para evitar o deslocamento do sujeito para o ambulatório realizouse as entrevistas nas sa las de enfermaria e de treinamentos no restaurante da gerência ou na sala de trabalho do sujeito A história foi datilografada e colada num cartão e durante a entrevista foi lida para o sujeito Depois da leitura o cartão com a história ficou em cima da mesa à disposição do entrevistado As instruções foram as seguintes Estamos estudando alguns aspectos das doenças e dos malestares no dia a dia das empresas Por isso gostaríamos que você senhor respondesse algu mas perguntas a partir da história que será lida É muito importante que você senhor pergunte se tiver alguma duvida ou se desejar algum escla recimento a mais Neste questionário não apare cera nenhum dado pessoal Serão entrevistadas de 65 a 70 pessoas da empre sa dos seguintes setores pessoal da produção mestres e encarregados pessoal de relações in dustriais gerentes e diretores Cada um receberá um número O seu número será X Estou fazendo isso para garantir a liber dade das respostas As informações aqui colhidas farão parte de um estudo que será desenvolvido para você e para a empresa A amostra e as subamostras grupos por função e nível hierárquico Foram entrevistados 68 sujeitos que constituíram 5 subamostras com critério seletivo Fezse um corte vertical de modo a abranger todos os níveis hierárquicos desde os serviços gerais produção direta supervisor técnicos staff de relações in dustriais administração e alta gerência confor me quadro com a distribuição e características descritas no quadro seguinte A faixa etária dos sujeitos variou entre 21 e 60 anos com um pouco menos da metade da população 43 possuindo de 31 a 40 anos A subamostra su pervisão B apresentou o maior índice 67 de funcionários entre 41 e 50 anos Objetivo Apresentação e discussão dos resultados quantitativos da pesquisa Participantes Sujeitos das entrevistas individuais com representantes dos seguintes tipos de atuação na empresa produção supervisão relações industriais gerenciamento e saúde Formação dos grupos Quatro grupos heterogêneos com até 20 participantes Duração das sessões 3 horas Horários um grupo de manhã 9 às 12h dois gru pos à tarde 14 às 17h e um grupo à noite 19 às 22h Roteiro básico Primeiro momento dinâmica de grupo recorte de figuras humanas explicação dos objetivos do seminário exposição dos conceitos de queixas psicossomá ticas somatização percepção e cultura organiza cional Segundo momento apresentação das categorias de respostas mani festadas nas entrevistas a partir da história O Caso do Operário de uma Fábrica Psicossomaticaindd 129 Psicossomaticaindd 129 05012010 121206 05012010 121206 130 Mello Filho Burd e cols QUADRO 101 Distribuição e características da amostra SUBAMOSTRAS NÚMERO CARACTERÍSTICAS A PRODUÇÃO 28 func 12 not produção direta de peças para motores Operários dos setores de montagem usinagem banco de testes manutenção e serviços gerais 16 diurno representantes da CIPA e da comissão de fábrica B SUPERVISÃO 9 func 4 not subgerentes mestres encarregados 5 diurno tarefas de supervisão de grupos de operários C RELAÇÕES INDUSTRIAIS 9 func diurno técnicos da divisão de relações industriais dos setores de segurança treinamento pesquisa e rotinas de pessoal desenvolvimento de projetos e atividades de manutenção preparação e acompanhamento do pessoal da empresa D DIREÇÃO 10 func diurno gerentes de desenvolvimento de pessoal comunicações e processamento cargos e salários segurança do trabalho produção diretores de produção relações industriais e presidente E SAÚDE 12 func 2 not enfermeiros recepcionistas médico clinico médico do trabalho psicoterapeuta dentista e médicogerente 10 diur atendimento administrativo e clínico da saúde dos funcionários Atuam com o pessoal do período diurno e noturno Terceiro momento avaliação dos participantes sobre os resultados Quarto momento demonstração dos principais conceitos abordados nos comentários relacionandoos especialmente às características das causas atribuídas á queixa psicossomática às formas de terapêutica dentro e fora da empresa aos comportamentos dos indi víduos com relação ao doentequeixoso à visão saúdedoença no contexto sócioorganizacional ao fenômeno psicossomático individual ou cole tivo e à significância das respostas Os resultados e desdobramentos destes seminá rios estão relatados no item A dimensão interativa da pesquisa ANÁLISE DAS RESPOSTAS As respostas a cada pergunta foram analisadas e agrupadas em categorias O número de categorias variou inevitavelmente de uma questão para outra A análise de conteúdo que orientou esse proces so baseouse na similaridade de temáticas Para facili tar a comunicação foram atribuídos títulos sintéticos para cada categoria de respostas TRATAMENTO ESTATÍSTICO Por ter sido utilizada amostra seletiva compos ta por subamostras em que algumas se constituíram da metade ou até da população global do segmento hierárquico correspondente adotouse o cálculo de porcentagens ponderadas quadros na página seguin te para um tratamento estatístico descritivo O objetivo estatístico foi organizar as respostas sem generalizar os dados apenas descrevêlos Por ser um trabalho exploratório foram utilizadas mais perguntas do que o usual Isso ocorreu para garan tir uma delimitação mais real do objeto de análise Essa característica entretanto afetou a possibilidade de uma análise estatística diferencial diante da grande quanti dade de variáveis 63 e o pequeno número relativo de sujeitos 68 subdivididos em 5 subamostras Psicossomaticaindd 130 Psicossomaticaindd 130 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 131 A análise inferencial ocorreu porém em nível qualitativo a partir do tratamento estatístico descriti vo e da discussão dos conteúdos das respostas O tratamento estatístico descritivo está estrutu rado com dois cortes o primeiro com as porcenta gens de cada resposta sobre o total de respostas o segundo com as porcentagens de cada resposta nas subamostras que estão calculadas no quadro das por centagens ponderadas a seguir A apresentação das respostas na amostra geral foi estruturada em gráfico de setores E o detalha mento das respostas de cada subamostra foi estrutu rado através dos gráficos de barras de forma a per mitir comparação entre elas As respostas foram analisadas a partir das rele vâncias quadro abaixo isto é das diferenças e das semelhanças indicadas nas porcentagens pondera das Considerouse relevante toda diferença a partir de 20 entre as porcentagens comparadas varian do no entanto o número de sujeitos na amostra e nas subamostras Fator de relevância igual ou maior a 20 número mínimo de sujeitos a representam Subamostra B supervisão 2 sujeitos C rel industriais 2 sujeitos D direção 2 sujeitos Subamostra E saúde 3 sujeitos Subamostra Aprodução 6 sujeitos Amostra GERAL 13 sujeitos DIMENSÃO INTERATIVA Processo A proposta de realizar uma pesquisa de forma que houvesse inserção significativa e socialização dos dados foi polarizada realizada em seis momentoschave O PRIMEIRO momento ocorreu durante o ma peamento da empresa que projetado de forma am pla especificouse a partir das visitas da disponibili dade dos funcionários e da troca de informações com o pessoal da empresa Nesse sentido o ambulatório foi o centro de muitas informações Ali foram cole tados dados sobre tipos de queixa características dos pacientes usuais e influência da sua localização des te serviço nos comportamentos dos funcionários em relação ao seu uso está localizado em frente á área da produção local que apresenta maior demanda de sintomas Nas visitas e entrevistas procurouse atuar de acordo com os segmentos e responsabilidades hie rárquicos já existentes o que facilitou o acesso aos diversos locais da empresa O SEGUNDO momento foi a construção do instrumentochave a história do Lambari com dados contundentes daquele cenário A definição de um local e um espaço específico foi importante para a inserção da pesquisadora pois permitiu estabilidade nos trabalhos de consulta a documentos dados esta tísticos e contatos com os funcionários da empresa Havia falta de espaço na empresa Reservouse um local com mesa e cadeira ao lado das salas de cura tivos Neste momento ocorreu troca de material mé dico e psicológico O TERCEIRO momento aconteceu durante rea lização das entrevistas individuais em que se dialo gou de forma significativa clarificouse expectativas do indivíduo com a empresa e revelouse aspectos pessoais vividos mas desconhecidos do próprio su jeito Houve espontaneidade nas verbalizações e mui tos dados reveladores Muitos sujeitos sentiramse familiarizados com o cenário e o personagem Verba lizavam Conheço este cara mas este não sou eu Puxa parece um lugar que conheço Poucos sujei tos recorreram à releitura da história Alguns des confiavam do objetivo daquela entrevista outros se posicionaram claramente identificados ou não iden tificados Isto é se eram iguais ou diferentes daquele personagem central justificavam esta posição de for ma moral ou funcional O QUARTO momento interativo emergiu nos seminários para devolução dos dados Houve troca e reflexão A empresa e os participantes permitiram a gravação de todos os seminários Os assuntos mais discutidos foram os conceitos da dinâmica psicosso mática tipos de sintomas atitudes das pessoas e da empresa Os grupos que participaram dos seminários eram heterogêneos sob os aspectos funcionais e hie rárquicos A característica grupos heterogêneos foi positiva pois reduziramse através da discussão dos dados barreiras e mitos entre cargos pessoas e me canismos psicológicos No primeiro seminário participaram o diretor de relações industriais o gerente de produção a ge rente de desenvolvimento de pessoal o gerente do serviço de saúde um enfermeiro mestres encarrega dos operários e uma psicóloga convidada Ocorreram interações em nível de esclarecimento do gerente da área de saúde sobre diagnóstico somatizações causa das por frustrações pessoais e avaliação sobre a per cepção de paternalismo da organização em relação aos doentes Outro tema comentado neste seminário foi a alimentação fornecida pelo restaurante da em presa Este aspecto havia sido uma das causas indi cadas para o aparecimento de sintomas ou malestar na empresa Psicossomaticaindd 131 Psicossomaticaindd 131 05012010 121207 05012010 121207 132 Mello Filho Burd e cols O segundo seminário foi particularmente rico Estavam presentes o presidente da empresa o mé dicopsiquiatra um representante da comissão de fábrica o enfermeiro alguns funcionários da área administrativa e a assistente social Nesta sessão du rante a discussão dos dados um dos operários trouxe a questão do tratamento psicológico da filha inicial mente comentada por ele como uma pessoa apenas conhecida O seu relato desencadeou discussões so bre preconceito com o psicológico e sobre o padrão de saúde na empresa Em determinado momento o médico dirigiuse ao presidente chamandoo pelo nome Um dos funcionários administrativos ao perce ber só naquele momento a posição hierárquica da quela pessoa que vinha participando largamente das discussões e dinâmicas de grupo expressou sua sa tisfação em vêlo discutindo abertamente sobre este tipo de assunto O horário previsto foi ultrapassado O terceiro seminário foi realizado à noite Es tiveram presentes o gerente daquele turno operá rios e o mestre de um dos setores mais insalubres da empresa uma pessoa com facilidade de expressão e carisma Participaram também uma analista de de sempenho com a qual não houve oportunidade de realizar a entrevista específica e uma convidada sua irmã que tinha interesse pelo tema O quarto seminário foi composto por funcioná rios da empresa dos mesmos segmentos hierárquicos anteriores a dentista o pessoal do escritório em maior número que em sessões anteriores e uma as sistente social convidada As discussões mais signifi cativas relacionaramse a dúvidas sobre diagnósticos importância desse tipo de assunto na empresa e ne cessidade de divulgação O aspecto mais comentado foi a doença como malandragem e a automedicação por indicação de colegas e conhecidos Neste seminá rio um dos participantes contou um curioso caso de automedicação que transcrevemos Um funcionário nosso com problemas de coluna tomou aquele mate rial que faz aço Chumbo Não não é chumbo Parece uma cera Porque disseram que era bom Então ele derreteu aquilo e tomou Ah Breu É breu Porque disseram que breu era bom pra coluna Tomou breu e ficou sentado lá risos Esses seminários não esgotaram as expectativas dos participantes Foi cobrado durante um deles o livro uma discussão mais detalhada e distribuição antecipada do material Depois dos seminários foi preparada uma pequena apostila com os textos apre sentados e as conclusões do trabalho Esta apostila não chegou a ser distribuída na empresa Apenas um exfuncionário que havia sido sujeito da pesquisa solicitou a apresentação do tema e do material a um grupo de administradores de pessoal Relatos dos seminários abertos Olha houve uma questão que não foi trazida aí que é a seguinte se sabe que ele fica doente A grande maioria disse que sabe todo mundo sabe o que sente Só que não consegue às vezes interpretar bem Então como respostas a gente tem assim que 75 das pessoas cada uma sabe que não está bem Então acha que em princípio as pessoas sabem que não estão bem Um outro grupo acha que não sabe porque se soubesse se trataria o que não é tão simples assim O sujeito muitas vezes bem se dá conta porque ele não sabe Porque se soubesse ele sararia ele iria tentar se tratar E também tem aqueles sin tomas que você só percebe quando você conhece A única coisa que tem é o complexo de culpa será que a minha dor de cabeça é psicológica será que esta dor de estômago é de fundo emocional Tem este outro lado do complexo também que acaba atrapalhando mais a solução do problema Porque vai ser difícil lo calizar a origem ou as origens Então eu gostaria de saber do doutor Ernesto como é que um médico conhece as pessoas quando elas estão falando a verdade se é pelo jeito pela fisionomia Dentro desse parágrafo eu acho que todos nós temos um pouco do Lambari Aqui todos nós sentimos a mesma coisa O problema é ver se dá para gostar do que a gente faz Você diz em relação a gostar do que faz tem que ha ver uma visão um pouco mais complexa mais ampla do que é gostar do que faz Eu posso gostar de pintar mas tenho um trabalho em substituição Eu gosto do que eu faço Agora tem uma outra pergunta que eu me faço que é quanto a questionar ao emprego e ao empregador substitui o espaço para não ter que questionar outras coisas na vida dele Relato Todo o resto da minha vida Cadê o meu lazer cadê a minha mulher os meus filhos Será que era essa mu lher que eu queria Coisas que tudo isso fica muito escondido atrás da faltaacho que o emprego concreti za muito todo o social A malandragem aparece primeiro num sentido de confusão porque não sabe o que sente ali no meio principalmente quando são determinadas situações E a outra é uma forma de negar isto é eu não gosto de aceitar que doença é uma coisa corriqueira que cada um pode ter Eu só quero acreditar que eu não posso ter isto é que eu sou forte Então estas duas afirmações as duas hipóteses são essas que tem influência da cultu ra que e a outra saída que é a mentira Psicossomaticaindd 132 Psicossomaticaindd 132 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 133 A gente vivia com dor de cabeça Aí o Divaldo chegou um enfermeiro novo que ele falou corre lá que tem um remédio bom pra dor de cabeça Eu corri lá e o que era Uma ampola de novalgina que ele quebrava botava no copo e dava pra gente tomar Sarava E o pessoal corre daqui que esse negócio é bom porque fica Martelinho É martelinho dá um martelinho que eu sabia que era ampola de novalgina Então quando você falou nisso aí eu lembrei que o outro disse do remé dio que era bom aí eu tomei também daquelas am polas tamanho família de novalgina pôs num copo porque a novalgina é injetável Acabou a dor de cabeça na hora o enfermeiro era bom Teve um colega nosso aí que abandonou o cargo por que não podia chegava em casa roubaram o cara mataram o cara roubaram tudo e ainda dava a propriedade dele e isso é possível Realmente isso aí é uma grande preocupação a pessoa está trabalhando aqui e está pensando na família O QUINTO momento interativo aconteceu du rante a tabulação e construção dos gráficos no Se tor de Gráficos e Atendimento ao Usuário do Centro de Processamento de Dados Neste período que du rou aproximadamente 8 meses foi lançado o jornal interno da empresa e uma das chamadas da capa era Você sabe o que é somatização escrito pela médica clínica do ambulatório Enquanto os gráficos estavam sendo impressos funcionários que frequen tavam esta sala queriam saber quem era o Lambari Observavam os gráficos com as causas dos sintomas e as respostas sobre o uso secundário da doença a malandragem ou a desculpa para não trabalhar O assunto parecialhes familiar Havia curiosidade so bre quem era o personagem hipotético e comentários sobre a realidade daqueles dados O SEXTO momento foi a entrega de um exem plar da dissertação para cada sujeito para a Co missão de Fábrica e para a Biblioteca do Clube de Funcionários Após essa entrega serão programadas sessões para discussão detalhada sobre o conteúdo desta dissertação Este será o sexto e último momen to da pesquisa Esses processos interativos sintetizados nos mo mentos descritos foram importantes para a empresa para a construção da pesquisa para os sujeitos e para a pesquisadora Para a empresa pela possibilidade de abordagem e aprofundamento de um tema emergen te com padrões administrativos e técnicos diferentes dos usuais Para a elaboração desta dissertação no que se refere à qualidade das fontes utilizadas e aos recursos funcionais e tecnológicos disponibilizados na empresa Para os indivíduos da empresa pela possibili dade de aquisição de novos conhecimentos sobre a dinâmica psicossocial da saúdedoença para seu au toconhecimento identificação de alguns elementos desconhecidos da sua realidade organizacional e tro ca de percepções sobre a dimensão psicossocial das respostas psicossomáticas Houve interesse de outras empresas em discutir o tema foram publicados artigos em revistas especia lizadas de recursos humanos por parte da pesquisa dora e apresentação do tema em congressos de recur sos humanos de psicologia da saúde de ergonomia e de medicina psicossomática O projeto foi apresentado na 40a Reunião Anual da SBPC em julho de 1988 e dentre aproximadamen te 3000 trabalhos apresentados foi indicado entre os 100 pelo interesse econômico social e político para matérias em órgãos de comunicação do evento Dados genéricos do projeto foram apresentados em outubro de 1989 no 10th World Congress of the International College of Psychosomatic Medicine em Madrid Estas contingências da pesquisa geraram sintonia de dados e socialização de informações dentro e fora da empresa REFERÊNCIAS Amado G Guittet A A dinâmica da comunicação nos grupos 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1982 Arendt M A condição humana Rio de Janeiro Forense Univer sitária 1983 Argyris C Personalidade e organização O conflito entre o siste ma e o indivíduo Rio de Janeiro Renes 1957 Bauk D A Stress Rev Bras de Saúde Ocupacional São Paulo Fundacentro v 13 n 50 1985 Berger L P Luckmann T A construção social da realidade 7 ed Petrópolis Vozes 1987 Bleger J Psicohigiene e psicologia institucional Porto Alegre Art med 1984 Castro C M A prática da pesquisa São Paulo McGraw Hill do Brasil 1978 Cohn A et al Acidentes do trabalho São Paulo Brasiliense 1985 Cubi R Los transtomos psicopatológicos en la atención sanitaria primaria aspectos epidemiológicos In Detección de transtornos psicopatológicos en atención primaria Barcelona Sociedad Cata lana de Medicina Psicossomática 1989 Dejours C A loucura do trabalho São Paulo Oboré 1987 Fonte Transcrição da disssertação Era uma vez um certo Lambari do só psicológico à revelação social Ana Cristina Limongi França Gasparini PUC São Paulo 1990 orien tador profdr Peter Spink publicado também em Psicologia do Trabalho Psicossomática valores e práticas organiza cionais Editora Saraiva São Paulo 2008 Psicossomaticaindd 133 Psicossomaticaindd 133 05012010 121207 05012010 121207 134 Mello Filho Burd e cols Donnangelo M C F Pereira L Saúde e sociedade São Paulo Duas Cidades 1979 Eksterman A O ensino da psicologia médica Revista Psicossomá tica Recife OEDIP janmar 1986a A medicina do ser Revista Psicossomática v 1 Recife OEPID julset 1986b Contribuições psicanalíticas à Psicossomática Associação Brasileira de Medicina Psicossomática São Paulo 1978 Foucault M Microfísica do poder 5 ed Rio de Janeiro Graal 1985 Freire G Médicos doentes e contextos sociais uma abordagem so ciológica Rio de Janeiro Globo 1983 Friedmann G O trabalho em migalhas São Paulo Perspectiva 1983 Goffman E Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada 4 ed Rio de Janeiro Zahar 1982 Granboulan V Mercuel A Stress y Depresión Semaine des Hos pitaux Paris Expansion Scientifique Française 1988 Groen J J Psychossomatics aspects of ischemia heart disease In Modem Trends in Psychossomatic Medicine London Butterworths 1976 Gruppi L O conceito de hegemonia em Gramsci São Paulo Edi tora Geral 1981 Japiassu H Interdisciplinaridade e patologia do saber Rio de Ja neiro Imago 1976 Katz D Kahn R L Psicologia social das organizações 2ed São Paulo Atlas 1976 Lacaz F A Ribeiro M P et al De que adoecem e morrem os tra balhadores São Paulo Diesat 1984 Lane S T M O que é psicologia social São Paulo Brasiliense 1986 Lane S T Codo W et al Psicologia social o homem em movi mento 2 ed São Paulo Brasiliense 1985 Lapassade G Grupos organizações e instituições 2 ed Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 Laraia R B Cultura um conceito antropológico 3 ed Rio de Janeiro Zahar 1988 Levy L Society stress and disease London Oxford University Press 1971 Limongi Gasparini A C F Era uma vez um certo Lambari um estudo sobre respostas psicossomáticas na empresa desde o só psicológico à revelação social Dissertação de Mestrado Pontíficia Universidade Católica São Paulo 1989 Lipowski Z J What does the word psychossomatie really mean A historical and semantic inquiry Psichossom Med v 46 n 2 p1531711984 Loyola M A Médicos e curandeiros conflito social e saúde São Paulo Difel 1983 Marx K O Capital Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1988 Mello S L Trabalho e sobrevivência São Paulo Ática 1988 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual 3 ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 Mira y Lopez E Os fundamentos da psicanálise Rio de Janeiro Cieutífica 1949 Pontes J F et al Curso de Psicologia Médica Abordagem Sócio psicossomática 2 ed São Paulo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Gastroenterologia IBEPEGE 1987 Pitta A Hospital dor e morte como ofício São Paulo Hucitec 1990 Possas C Saúde e trabalho Rio de Janeiro Graal 1981 Rodrigues A L Estresse e trabalho Revista Psicorama v 9 n 2 São Paulo Roche 198890 manuscrito Palestra apresentada no VII Congresso Bra sileiro de Medicina Psicossomática de Belo Horizonte 1990 Conceito atual de psicossomática Temas de Medicina Psi cossomática volume 1 São Paulo Roche 1982a Rodrigues A L Rodrigues D M Introdução à história da Medi cina Psicossomática Temas de Medicina Psicossomática v 1 São Paulo Roche 1989b Sato L Trahalho pode levar ao suicídio Rev Trabalho e Saúde São Paulo Diesat junago 1988 Seligman Silva E Crise econômica trabalho e saúde mental In Crise Trabalho e Saúde Mental no Brasil São Paulo Traço 1986 Seyle H Stress a tensão da vida 2 ed São Paulo IBRASA 1965 The general adaptation syndrome and disease of adapta tion 1 Cli Metab v 6 n 117 1947 Souza L R Veras R Ideologia e saúde In Saúde e Trabalho no Brasil IBASE Petrópolis Vozes 1983 Spink P K Quando trabalhar e neurotizante Rev Psicologia Atual v 5 n 27 São Paulo Spagat ago 1982 Velho G Desvio e divergência 5 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987 Vingerhoets A J J M Marcelissen F H G Stress Research its present status issues for future developments SUC Sci Med v 26 n 31988 Wilkinson G Overview of mental healtli practices in primary care setting Washington National lnstitute of Mental Health 1986 Wolff HG Life Stress and bodily changes A formulation In Life Stress and Bodily Disease Baltimore Williams and Wilkins 1950 Psicossomaticaindd 134 Psicossomaticaindd 134 05012010 121207 05012010 121207 BURNOUT Considerações preliminares uma visão geral De início uma consideração acerca do uso do termo em inglês Uma das razões disso é o fato de se tratar de um termo já consagrado sendo inclusive assim utilizado em diversas línguas Outra razão é a própria complexidade do conceito por ele designado a qual torna difícil encontrar tradução adequada e há por fim o sentido metafórico do termo o qual abordaremos adiante Trabalhos em língua espanhola Diaz Gonzáles e Rodrigo 1994 e francesa Gran than 1985 ou mantêm no título o termo burnout e usam no texto a denominação Síndrome do Esgo tamento Profissional entre parênteses afirmam es tarem se reportando ao burnout ou utilizam a tra dução no título do trabalho mas aí já colocada entre parênteses Rodrigues 1998 Algo semelhante acontece com o termo stress criado por Hans Selye pois não importa qual a língua utilizada ele costuma aparecer no original em inglês Rodrigues 1998 Segundo o Websters College Dictionary 1990 burnout significa to exhaust oneself or become or apathetic through overwork stress or intense activity Talvez a partir da definição de burnout do Websters pudéssemos traduzilo por exaustão desgaste ou mesmo esgotamento Acredito serem os mais pró ximos da ideia transmitida pelo dicionário Porém como demonstra a literatura sobre burnout o signifi cado expresso pelo Websters é falho e incompleto e não transmite a complexidade da ideia Por exemplo o vocábulo esgotamento exclui do conceito as forças do contexto social e a complexa interação entre as condições sociais e a experiência pessoal Rodrigues 1998 mantendo a síndrome em uma perspectiva in dividual Como afirma Maslach 1982 o termo bur nout evoca o extinguir de uma chama uma cápsula vazia a chama de um archote agonizante e também a perda de entusiasmo no envolvimento com outras pessoas perda de energia de dedicação e disposição em dedicarse aos outros Em modelo mais recente Carroll e White 1984 definem o burnout como um constructo usado para esclarecer a redução do de sempenho tanto qualitativa como quantitativamen te da pessoa no trabalho Tais pessoas experimentam um distress biopsicossocial ou uma doença fruto da exposição aos estressores e às situações de frustração superiores à sua capacidade de tolerância e seus re cursos para mobilizar mecanismos de enfrentamento considerados eficazes para lidar com o stress e a frus tração oriundos da situação à qual está submetido Maslach 1982 O conceito assim leva considera a relação do indivíduo com o trabalho além das forças sociais atuantes na organização do trabalho Rodri gues 1998 Segundo Dejours 1994 na relação do homem com o trabalho devem ser ressaltados três fa tos o organismo do trabalhador é objeto permanente de excitações não só exógenas quanto endógenas o trabalhador não chega ao local de trabalho como uma máquina nova possui uma história tem desejos e motivações e uma estrutura de personalidade No trabalho nem sempre o individuo dá vazão satisfató ria à sua energia psíquica em termos econômicos o prazer ou o desprazer na execução da tarefa ocorre com a diminuição ou não da carga psíquica do traba lho Sem tal diminuição da descarga psíquica o tra balho se torna fatigante A síndrome do burnout SB é extremamente complexa Pode ser investigada em diferentes níveis de organização seja no nível individual seja no orga nizacional E é claro abordar cada um destes níveis requer a utilização de modelos e metodologias espe cíficas Rodrigues 1998 Freudenberger 1975 lançou o termo burnout em 1975 seguido de Maslach 1982 em 1976 Os trabalhos destes pioneiros tiveram como foco princi pal a exaustão emocional a fadiga e a frustração em profissionais decorrentes ou do desgaste resultan te do contato com pessoas ou da não satisfação das expectativas e dos projetos do indivíduo em relação à profissão O conceito teve de início receptividade positiva Maslach 1984 Após algum tempo porém 11 SÍNDROME DO BURNOUT Avelino Luiz Rodrigues Elisa Maria Parayba Campos Psicossomaticaindd 135 Psicossomaticaindd 135 05012010 121207 05012010 121207 136 Mello Filho Burd e cols surgiram críticas severas como por exemplo a de não passar de nova apresentação de velhos temas ou apenas de manifestações depressivas em resposta às objeções quanto à própria existência da Síndrome do Burnout SB Millan 2007 Kirwan e Armstrong 1995 afirmam que embora a síndrome do SB apre sente algumas semelhanças com as reações depressi vas decorrentes de transtornos de ajustamento após uma situação de stress deve ser considerada uma síndrome à parte por estar nitidamente relaciona da ao trabalho e costumar ser temporária E citam Paine 1984 e Freudenberger 1981 defensores da existência da síndrome por ela possuir um grupo es pecífico de sintomas surgidos sempre em conjunto evidenciando uma entidade reconhecível Diaz Gon záles e Rodrigo 1994 acrescentam o seguinte racio cínio existe certa semelhança entre os sintomas da SB e a síndrome de depressão essencial descrita por Pierre Marty neste quadro não existe sintomatologia depressiva manifesta o indivíduo continua a desem penhar as atividades cotidianas sem os grandes sin tomas de depressão descritos nas síndromes depres sivas psiquiátricas ou de autoacusação no entanto a relação com o ambiente profissional e social fica pre judicada pois o indivíduo deixa sem grande envol vimento afetivo frias e distantes as relações com as outras pessoas e delas não obtém prazer Na compa ração entre burnout e depressão convém ainda citar Vieira e colaboradores 2006 embora apareçam as sociados com frequência vários estudos mostram que burnout e depressão são conceitualmente diferentes eles citam Freudenberger 1987 para quem o es tado depressivo no burnout é temporário e orienta do para uma situação precisa na vida da pessoa no caso o trabalho e Maslach 2001 para o qual o burnout afeta apenas o campo profissional enquanto a depressão atinge todas as áreas da vida do indivi duo Brenninkmeyer apud Vieira et al 2006 assim sintetiza as diferenças com a síndrome depressiva No burnout as pessoas 1 aparentam mais vitalidade e são mais capazes de obter prazer nas atividades 2 raramente apresentam perda de peso retardo psicomotor e ideação suicida 3 os sentimentos de culpa se os têm são mais rea listas 4 atribuem à sua indecisão e inatividade a fadiga 5 a insônia é com mais frequência inicial e não ter minal Vale citar também o trabalho de Schwartzmann 2004 sobre o tema e no qual realiza revisão siste mática da literatura sobre os conceitos de stress bur nout e depressão Já para Maslach 1982 muitos questionamen tos em relação ao SB decorrem de importantes distor ções ocorridas no desenvolvimento e uso do conceito principalmente por ser um constructo recente dando margem à utilização do modelo de forma equivoca da ou inadequada E segundo ela para conhecer o conceito é fundamental terse a consciência de não se tratar de conceito simples O pesquisador deve to mar conhecimento das referências fundamentais na literatura e ter um claro entendimento do verdadeiro significado de burnout A partir da década de 1980 cresceu a produ ção científica sobre SB Rodrigues 1998 Maslach 1984 Deixou de ser considerado um campo isolado de pesquisa e incorporouse à imensa área do estu do sobre o stress diferenciandose por focalizar o stress no trabalho stress ocupacional na perspec tiva psicossocial Rodrigues 1998 Na área de saú de as contribuições podem ser inúmeras no estudo da relação médico paciente das relações entre os componentes da equipe de saúde das relações entre estes profissionais e o local e condições de trabalho Maslach 1984 Além disso fornece subsídios para a compreensão da interferência do estilo e qualidade de vida na saúde do ser humano e de como as esco lhas pessoais podem ser determinadas pela intensi dade do impacto da situação estressante vivida pelo sujeito Rodrigues 1998 Importante assinalar o caráter insidioso da SB Autores como Maslach 1982 Freudenberger 1975 e Paine 1984 ressaltam a SB corrói pro gressivamente a relação entre o sujeito e sua ativida de profissional Alguns autores destacam a importância do contexto sóciohistórico no qual foi desenvolvido o conceito e na proeminência por ele alcançada Cher nis 1984 Além do maior conhecimento quanto aos complexos mecanismos psicossociais envolvidos nas relações profissionais para eles o burnout é tão antigo quanto à noção de stress no trabalho e da vivência de frustração profissional mas mantinha O Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde em sua 10a edição reserva o código F43 aos Transtornos de ajustamento e os caracteriza como estados de angústia subjetiva e perturbação emocional usualmente interferindo com o funcionamento e desem penho sociais e que surgem em um período de adaptação a uma mudança significativa de vida ou em consequência de um evento de vida estressante As formas clínicas ou os aspectos predominantes podem surgir sob a forma de reações depressivas mistas de ansiedade e depressão e com alterações da conduta Psicossomaticaindd 136 Psicossomaticaindd 136 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 137 se de certa forma oculto tornandose visível frente às dramáticas mudanças das últimas décadas Tais mudanças provocaram incremento no stress na frustração na insatisfação com a profissão com o decréscimo do reconhecimento social e das possibi lidades de ascensão profissional social e econômica Rodrigues 1998 Para Arnetz 1997 por exemplo as pesquisas relacionando o trabalho médico ao stress enfocam principalmente a urgência do tempo as demandas de alta produtividade a necessidade contínua de de senvolver novas rotinas e conhecimentos o contato frequente com pessoas em distress e o ritmo rápido das mudanças nos aspectos organizacionais e econô micos na atividade médica O conceito de burnout O conceito foi desenvolvido na década de 1970 tendo como pioneiros Cristina Maslach 1982 psi cóloga social e Herbert J Freudenberger 1975 psicanalista Para ambos burnout é o preço pago pelo profissional por sua dedicação ao cuidar de outras pessoas Freudenberger 1975 ou por sua luta bus cando uma grande realização Dejours 1994 Em ambos a SB é fruto de situações de traba lho notadamente entre os profissionais cujo objeto de trabalho é o contato com pessoas em especial aque les denominados profissionais de ajuda nos Esta dos Unidos da América ou profissionais da saúde A SB seria a resposta emocional à exposição ao stress crônico em função de relações intensas no traba lho com outras pessoas Freudenberger 1975 ou a de profissionais com grandes expectativas em relação ao sucesso na carreira os quais apesar de enorme dedicação à profissão não alcançaram o retorno es perado Para Dejours 1994 o nível de expectativa é dramaticamente oposto à realidade e estas pessoas persistem em tentar alcançar estas expectativas suas trajetórias se tornam turbulentas problemáticas e o resultado é uma depleção dos recursos individuais e um comprometimento de suas habilidades Outros aspectos inerentes ao conceito da SB são destacados por Pines e colaboradores 1981 Se gundo eles os profissionais além de expostos a fre quentes situações de stress experimentam a vivência de oferecer muito em comparação ao recebido Ou seja o retorno em termos de gratificação é reduzi do insuficiente frente às expectativas em relação à profissão surgindo com maior frequência quando a relação com a profissão é baseada em grande idealis mo e entusiasmo Segundo Maslach 1982 a SB é uma síndro me caracterizada por três aspectos básicos 1 exaustão emocional 2 despersonalização 3 redução da realização pessoal e profissional Exaustão emocional Frente à intensa carga emocional fruto do con tato frequente e penoso com pessoas em situações de sofrimento o indivíduo pode desenvolver uma exaustão emocional O profissional sentese esgota do com pouca energia disponível para o dia seguin te de trabalho e tem a impressão de não ter como recuperar as energias Esta carência de energia deixa os profissionais pouco tolerantes irritáveis nervosos amargos no ambiente de trabalho e até mesmo fora dele com familiares e amigos Ro drigues 1998 Tais profissionais sentemse pouco capacitados a cuidar dos outros e dar de si As re lações com o trabalho e com a vida ficam insatis fatórias e pessimistas Para escapar do progressivo desgaste emocional em mecanismo defensivo tendem a assumir atitudes distantes evitam contato com os pacientes reduzindoo ao mínimo apenas o indispensável para o trabalho Tornamse pouco generosos insensíveis e muitas vezes apresentam comportamento rígido com rotinas inflexíveis im parciais Webster 1990 Freudenberger 1975 Se gundo Rodrigues 1998 rotulam e referemse aos pacientes como a objetos e o relacionamento fazse quase só em função dos rótulos a histérica do 4º andar do diagnóstico aquele ulceroso ou de um número a mulher do leito 7 Segundo Maslach 1976 os médicos são os re presentantes ideais destes mecanismos de distancia mento e muitos médicos até acreditam tratarse de prérequisito para um atendimento adequado De maneira um pouco diferente da de Masla ch Pines 1981 assim descreve os sintomas da SB malestar exaustão ou fadiga esgotamento e perda de energia mental e física com sentimentos de in felicidade desamparo diminuição da autoestima perda do entusiasmo com a profissão e com a vida em geral além da sensação de disporem de poucos recursos para cuidar de outros Rodrigues 1998 Despersonalização Aqui despersonalização é termo que vem da so ciologia diferindo daquele da psicopatologia Trata se do distanciamento emocional exacerbado com frie za e indiferença frente às necessidades dos outros e insensibilidade Rodrigues 1998 Os contatos ficam impregnados por uma visão e atitudes negativas fre Psicossomaticaindd 137 Psicossomaticaindd 137 05012010 121207 05012010 121207 138 Mello Filho Burd e cols quentemente desumanizados a consciência de seu trabalho lidar com seres humanos fica comprometi da e há perda de aspectos humanitários na interação pessoal O profissional ao assumir tal atitude desu manizada deixa de perceber os outros como seme lhantes com sentimentos impulsos e pensamentos que ele mesmo pode ter perdendo assim a capaci dade de identificação e empatia com as pessoas em busca de ajuda e tratamento Webster 1990 Freu denberger 1975 Os pacientes não são mais perce bidos como seres humanos tornamse coisas ob jetos a serem reparados São agora um transtorno um problema a ser resolvido um incômodo Assim o contato com os pacientes será apenas indulgente e a atitude será de intolerância irritabilidade ansie dade com exacerbação de aspectos onipotentes da personalidade A atitude para com os pacientes tornase depre ciativa os mesmos são tratados de forma pejorativa deles sempre se espera o pior Os contatos são pouco ou nada corteses os apelos e necessidades são aten didos com dificuldade e por vezes o atendimento fica até comprometido tecnicamente O desejo é ter os pa cientes o mais distante possível Redução da realização pessoal e profissional Neste quadro de deterioração da atividade a realização pessoal e profissional fica extremamente comprometida Segundo Freudenberger 1975 a SB surge principalmente nas áreas tidas pelas pesso as como as mais promissoras para suas realizações Os médicos desejam ter através de sua atividade enorme impacto positivo nas pessoas Querem ser ca pazes de proporcionar saúde e bem estar Procuram ser competentes e reconhecidos pela comunidade e alcançar boa situação econômica No entanto muitos têm a sensação de estar batendo a cabeça dia após dia ano após ano Desenvolvem então intensos sen timentos de decepção e frustração Rodrigues 1998 Com o incremento da exaustão emocional e da des personalização e de suas consequências há não raro um senso de inadequação e surge o sentimento de ter falhado em seus ideais normas conceitos e com os pacientes Dejours 1994 Freudenberger 1975 Fica a sensação de ter se tornado outro tipo de pessoa di ferente bem mais fria e descuidada A consequência é a queda da autoestima e a eventual depressão FONTES DE BURNOUT São considerados como fontes de burnout O envolvimento com as pessoas e o contexto social e do trabalho Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 O envolvimento com as pessoas O stress é considerado intrínseco à prática dos profissionais de saúde pelas próprias características da profissão Gardner Hall 1981 Serry et al 1994 Mcraine Brandsma 1988 McCue 1982 em estudo clássico vê no trabalho em saúde exige o contato com situações plenas de conteúdos emocionais intensos como o sofrimento o medo a sexualidade e morte O encontro entre profissionais da saúde e pa ciente tem na ansiedade uma das principais caracte rísticas Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardi ni 2006 A ansiedade está em ambos pelo receio de cada um de não atingir o fim desejado tratase as sim de um contato comprometido pois dele se espe ra um resultado Pontes Rodrigues Rodrigues1980 Rodrigues Campos Pardini 2006 Por outro lado alguns pacientes apresentam situ ações particularmente difíceis de serem vividas pelos profissionais pois o sofrimento trazido pelo paciente ou é estranho ou familiar demais para o profissional estudos com enfermagem confirmam isso revelando incremento do burnout em atendimentos a pacientes em situações de risco e em serviços com altas taxas de mortalidade Simon 1987 Linda et al 2002 Na atividade em saúde os profissionais enfren tam constantemente situações de crise precisam ser tolerantes frente às expressões de frustração dos pa cientes Rodrigues 1998 advindas do fato de esta rem doentes de ter de suportar a dor e o sofrimento ou da convivência com o sintoma de necessitar de auxílio de outrem da ameaça da perda de poder so bre si mesmo e tais reações mobilizadas pelo medo dor raiva ou vergonha precisam ser acolhidas pelo profissional Questões semelhantes podem ser obser vadas na enfermagem Pela própria natureza deste trabalho a sociedade e principalmente os doentes e seus familiares esperam de tais profissionais desem penho isento de erros o trabalho deve ser realizado Desumanização é um conceito desenvolvido por psicólogos sociais e tem sido empregado no estudo de determinadas situações da interação humana notadamente aquelas que envolvem diferentes formas de violência Ver os trabalhos de Bernard V Ottenberg P e Redle F Desumanização A composite psychological defense in relation to modern war In Behavior Science and Human Survival ed Schwebel M Palo alto Science and Behavior SBoks 1965 Kelman MC Violence without moral restraint Reflections on the dehumanization of victims and Victimizers Journal of Social Issues 291973 p2561 Vail DJ Dehumaniza tion and the institutonal career Springfield Ill Charles Thomas 1966 Psicossomaticaindd 138 Psicossomaticaindd 138 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 139 sempre da melhor maneira possível e o enfermeiro precisa ser íntegro respeitoso e cheio de compaixão Arnold Povar Howell 1987 No entanto os profis sionais raciocinam de maneira análoga O American Board of Internal Medicine descreve como qualidades centrais do médico a integridade o respeito e a com paixão conforme assinala Arnold e colaboradores 1987 exigindo onipotentemente deles mesmos uma conduta perfeita na qual o erro mesmo sendo considerado possível é pouco ou nada tolerado Por outro lado o paciente a nível inconsciente reproduz de forma mais evidente com o médico mas também com todos os profissionais de saúde senti mentos experimentados na infância em relação aos pais ou figuras substitutas e espera do médico posi ções idênticas às adotadas por suas figuras importan tes ou seja atitude protetora afetuosa autoritária etc Rodrigues Campos Pardini 2006 O paciente se sentirá frustrado ou satisfeito caso o médico assu ma ou não as posições desejadas inconscientemente Em casos de frustração apresentam agressividade e colaboram pouco com o tratamento Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 A dor o medo e a frustração são estímulos bastante potentes para desencadear no paciente uma postura agressi va para com o médico É frequentemente uma relação de amor e ódio Pontes Rodrigues Rodrigues 1980 Mas estes aspectos constituem uma via de duas mãos Por parte do médico as relações familiares iniciais também se mostram igualmente importantes na de terminação de suas posturas frente ao paciente e do tipo de relação médicopaciente por ele desenvolvida ChristieSeely Fernandez Paradis 1984 Crouch 1986 Mengel 1989 do tipo de prática médica alme jada e de suas expectativas quanto à profissão De acordo com inúmeros estudos a comunica ção profissionalpaciente não é fácil e com frequên cia os pacientes não seguem as orientações recebi das do médico Geersten Gray Ward 1973 Esta frequente dificuldade adicional não deve ser vista apenas como resultado de atitudes transferenciais carregadas de afetos negativos Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Por vezes os pa cientes possuem crenças próprias sobre as doenças crenças construídas a partir de seus conhecimentos e valores e que constituem importante mecanismo com o qual enfrentar a doença notadamente as de curso crônico Willians Wood sd Se os profissionais não estiverem atentos a esta possibilidade o desgaste da relação será inevitável Estes diferentes aspectos da profissão são gera dores de um tipo de stress cuja característica principal é o fato social e suas interações humanas usualmente complexas embora o profissional nem sempre tenha esta percepção Maslach 1976 Para quem busca auxílio a situação da qual padece é sempre comple xa importante uma ameaça à sua integridade física mental ou moral gerando muito medo Sem uma in teração produtiva entre o profissional e o paciente e são inúmeros os fatores a determinar este desacerto o resultado do trabalho e a consequente gratifica ção da realização do mesmo será decepcionante para ambos podendo daí surgir o burnout Niku 2004 Como já assinalamos as interações são carrega das de afeto e são também formas de comunicação E não comunicam apenas a presença de elementos geradores de dor ou prazer mas fundamentalmente explicitam as necessidades e a solicitação de receber ajuda visando satisfazêlas Rodrigues 1998 Rodri gues Campos Pardini 2006 Para Szasz 1975 o modelo mais primitivo do significado comunicativo da dor e do prazer surge durante as primeiras semanas de vida O grito do bebê provoca uma sensação ex tremamente dolorosa nos pais Impulsionaos a agir afastando o desconforto da criança e assim também o seu próprio sofrimento Deyo Linus Sullivan 1981 Ao aliviar o sofrimento da criança os pais recebem ou tra comunicação indicando poderem eles cessar sua ação pois a necessidade foi satisfeita Quero chamar atenção neste contexto para o fato de que numa in teração entre A e B cada qual procura no estado afe tivo do outro orientação para o seu próprio estado de espírito Em outras palavras o afeto de A é um sinal para B e o afeto de B funciona como sinal para A No relacionamento médicopaciente por exemplo a dor do paciente ordena ao médico tomar uma providência Se ele puder alterar o sinal do paciente tanto paciente como médico se sentirão bem Se não conseguir o mé dico se sente mal Rodrigues 1998 Maslach 1982 A experiência de cuidar de pessoas doentes faz bem ao profissional é portanto uma relação de mútua de pendência Timothy Johnson 1990 Uma das características marcantes da atuação do médico Malasch e dos demais profissionais de saúde é a de buscar sempre realizar o melhor tra balho Lutam o tempo todo todososdias semana apóssemana mêsapósmês atendendo pessoas com demandas físicas e emocionais bastante significativas e usualmente com expectativas superiores às possi bilidades do profissional O empenho em compreen der e combater o sofrimento é sem dúvida uma das características principais do ser humano Nenhuma cultura deixou de se preocupar com a doença Sim bolicamente o trabalho médico lembra o castigo de Sísifo o qual por ter enganado Tânatos foi condena do pelos Deuses a rolar um bloco de pedra montanha acima No entanto mal chegando ao topo o bloco rola montanha abaixo e Sísifo recomeça a tarefa in terminável Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Brandão 1966 Psicossomaticaindd 139 Psicossomaticaindd 139 05012010 121207 05012010 121207 140 Mello Filho Burd e cols Em sua complexa tarefa o profissional de saúde experimenta níveis significativos de stress o conceito de burnout nos ajuda a melhor entender a complexi dade destas situações EXPRESSÕES DO BURNOUT EM FUNÇÃO DO RELACIONAMENTO COM AS PESSOAS Observar as pessoas através de uma perspectiva negativa Quatro aspectos são importantes na gradativa mudança entre os profissionais da forma de perce ber as pessoas que os procuram Tais aspectos intrín secos à própria atividade dos profissionais da área de saúde Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 são O objetivo da relação é lidar com problemas A profissão existe em função de pessoas com problemas de saúde eou outras dificuldades Ro drigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Seu objeto de trabalho é o sofrimento humano e a busca de alívio Carnevale et al 2006 Aquilo de positivo e saudável no ser humano recebe bem me nos atenção e consideração no trabalho em saúde E quando os pacientes melhoram não retornam só o fazendo quando suas situações não foram bem re solvidas Assim é pequena a interação com base em aspectos prazerosos e positivos A existência de um número cada vez maior de pacientes crônicos torna tal situação bastante presente Rodrigues 1998 Ro drigues Campos Pardini 2006 O médico frente a este tipo de paciente abandona sua necessidade de ser um curador onipotente contentandose ape nas em assistir o doente muitas vezes em declínio constante durante anos e até décadas Tähka 1988 Estes retornos podem despertar no profissional sen sação de fracasso e ansiedade Este aspecto e o foco do trabalho centrado nos problemas e no sofrimento desgastam o profissional Ele tem a vivência de ser sugado quotidianamente podendo desenvolver uma sensação de desamparo e atitudes negativas pejo rativas e até mesmo rudes e cínicas em relação aos clientes Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Par dini 2006 Ausência ou carência de reconhecimento Nestas relações profissionais ou não existe re conhecimento ou ele é com frequência sujeito a críticas Os médicos acreditam e em muitos casos isso é verdade que a sociedade tem uma série de expectativas em relação à postura deles no trabalho devem ser acolhedores pacientes e generosos jamais frios ou hostis Porém se correspondem às expecta tivas positivas não recebem reconhecimento por isso Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 e se as mesmas não forem preenchidas as críticas são intensas It is a chronic nowin situation either you loose or you get nothing Maslach 1982 Muitos médicos queixamse do fato de os clien tes eou familiares expressarem apenas críticas Co mentários sobre a tarefa estar sendo conduzida de forma eficaz e com bons resultados são raros Assim é comum o médico desenvolver sentimentos de não ser compreendido surgindo a frustração a raiva e a postura hostil defensiva Os contatos passam a ser desagradáveis e fica a noção de não compensar o es forço empregado e nem de tentar melhorar a vida dos outros Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Vale aqui ressaltar alguns aspectos relativos à organização do trabalho face à influência desta ins tância no reconhecimento ou não do trabalho médi co pelos pacientes A relação de confiança e conside ração antes predominante vem progressivamente se deteriorando O fenômeno não é privilégio da medi cina brasileira embora talvez tenha aqui expressão mais contundente em países como os Estados Uni dos ou da Europa Ocidental observase o mesmo fe nômeno Maslach 1976 Kirwan Armstrong 1995 Copeman 1990 As mudanças na prática médica das últimas décadas provocaram fortes impactos na rela ção entre os médicos e suas atividades a satisfação com o trabalho está comprometida bem como o nível de remuneração e há uma perda do controle sobre o tratamento encaminhamentos e outros aspectos da tarefa médica Reames Jr Dunstone 1989 Os anos de 1980 caracterizaramse por uma divisão do mercado público assalariado ou conveniado e pela expansão dos planos privados de assistência os quais com o credenciamento de profissionais re presentaram para os médicos a perda da prática li beral Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Assim houve uma perda crescente da autono mia do exercício profissional e redução da remunera ção O resultado foi um perfil de profissional com pelo menos três vínculos de trabalho uma re muneração baixa a difícil sobrevivência profissional adequada com reflexos negativos na qualidade da assistência médica prestada e o desgaste do tra balho médico com a categoria revelando desconfian ças em relação ao sistema e ao mesmo tempo sua impotência e desesperança em corrigir trajetórias e recuperar conquistas Mesquita 1997 Psicossomaticaindd 140 Psicossomaticaindd 140 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 141 O nível de stress emocional A natureza do trabalho médico produz relaciona mentos com características depressivas aflitivas e si tuações muito estressantes Quando pouca ou nenhu ma ajuda pode ser fornecida não raro o profissional adota uma postura distante Isso fica bem evidente nos casos de pacientes com diagnóstico de câncer ou ou tras patologias de prognóstico reservado Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 O médico pode ser mobilizado pelos mesmos preconceitos cole tivos em relação à doença e ser tomado por sentimen tos de frustração e raiva frente à própria impotência passa então a adotar um comportamento aversivo evitando ao máximo o contato pessoal com o paciente e seus familiares conscientemente ou não pode ainda tornarse agressivo se não com o paciente e familiar com membros da equipe e colegas Outra atitude co mum é lançar mão de posturas que falseiam a reali dade não informando o real diagnóstico ao paciente ou mesmo a familiares adulterando a realidade reve lando a dificuldade em lidar com o stress emocional desencadeado pela gravidade da situação Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Possibilidade de mudança ou melhora Nossa percepção sobre as pessoas são influen ciadas pela possibilidade delas em responder às nos sas intervenções Freudenberger 1975 Pessoas que não apreciam a presença do profissional que não lhes fornecem retorno positivo ou não seguem suas orien tações com frequência despertam atitudes negativas e facilitam o desenvolvimento de um relacionamento desumanizado Tais pessoas provocam nos profissio nais a ideia de que seus esforços são ineficazes e que é perda de tempo dedicarse a elas Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Lidar com pacientes crônicos pode se tornar um desafio pois eles representam um problema cons tante e sem fim Se a prática do médico for mui to orientada para a cura a relação com este tipo de paciente será desgastante e pouco prazerosa Rodri gues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Há uma espécie de compromisso entre os médicos de ajudar o paciente a recuperar a sua saúde o mais rápi do possível Clearihan 1991 no entanto em várias situações isso não é possível como por exemplo nos tratamentos paliativos ou pacientes terminais e po dem desencadear em médicos sentimentos de frus tração e de que falharam Whippen Canellos 1991 em suas tarefas Estas ocorrências tornamse impor tantes fontes do burnout Ou seja as expectativas do médico em relação aos objetivos a serem alcançados no seu exercício profissional constituem importantes fatores de burnout Deckard Hicks Hamory 1992 NO CONTEXTO SOCIAL E DE TRABALHO Altos níveis de burnout estão associados a bai xos níveis de satisfação organizacional e altos níveis de exaustão emocional estão correlacionados a bai xas avaliações quanto a aspectos organizacionais e qualidade de vida no trabalho Gardner Hall 1981 Deckard Metererko Field 1994 O contato entre o profissional e o cliente é fre quentemente realizado no contexto formal de uma instituição Com o incremento da medicina tecno lógica o acesso do médico a estes recursos se faz principalmente pela via institucional Mesmo os mé dicos cuja atividade é desenvolvida em consultório em tempo parcial ou integral necessitam estabelecer um vínculo com uma instituição hospitalar ou clínica seja para utilizar a tecnologia seja para desenvolver o trabalho com pacientes nos casos de internação Ro drigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Por outro lado a infiltração progressiva e dominan te observada a partir dos anos de 1980 de institui ções de caráter eminentemente mercantil como os segurossaúde e as medicinas de grupo resultou em novas configurações do exercício da medicina tanto a institucional quanto a da clínica privada324 A dependência quase absoluta de instituições resul ta na perda da autonomia na queda expressiva da remuneração e na diminuição do poder e do pres tígio social Estes aspectos dão um excelente retrato do profissional médico nos dias de hoje Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Além disso o contexto organizacional determina e estrutura os relacionamentos no local de trabalho entre o profissional e o paciente entre os profissionais entre a equipe médica e o pessoal administrativo Estes aspec tos bem como o tipo e local de trabalho determinarão maior ou menor stress e são fontes do burnout Um aparente paradoxo merecedor de estudo mais aprofundado é o de se por um lado o desen volvimento do conhecimento na medicina é enorme são espetaculares as contribuições da medicina à nossa capacidade de sobreviver e à nossa qualidade de vida nunca na história da medicina houve tan tos instrumentos para prevenir doenças e a morte Martini 1988 de outro a competência dos pro fissionais tem sido questionada Timothy Johnson 1990 e a profissão médica nunca esteve em condi ção tão desfavorável Light Levine 1988 É consen so no mundo ocidental que a profissão médica está em crise Stella e Nogueira Martins 1997 relatam a ocorrência de um Congresso Internacional realizado Psicossomaticaindd 141 Psicossomaticaindd 141 05012010 121207 05012010 121207 142 Mello Filho Burd e cols pela Associação Médica da Noruega intitulado The physician role in transition is Hippocrates sick cujo objetivo era discutir a profissão médica em função das profundas transformações da profissão por exemplo na remuneração no estilo de vida no comportamento ético do médico e nas relações entre médicos e pacientes Kernicick sd A Associação Médica Norueguesa criou um instituto de pesquisa com o objetivo de desenvolver estudos sobre diver sos aspectos da profissão médica inclusive o stress profissional e o desgaste físico e emocional stress burnout impairment Os profissionais médicos estão abatidos e sentemse impotentes Timothy Johnson 1990 Por sua vez pacientes e familiares relatam insatisfação com os profissionais médicos Reinhardt 1972 e com experiências desagradáveis em hospi tais Muitas vezes tais pessoas foram vítimas de uma negligência psicológica Mason 1961 Não é dife rente no Brasil Machado 1997 em pesquisa sobre os médicos no Brasil assinala recentes pesquisas de opinião realizadas no país atestam o crescente descontentamento da população com os serviços de saúde e apontam a prática médica como objeto cen tral de suas críticas Os médicos são assim alvo de queixas críticas acusações e por vezes de processos éticos nos Conselhos Profissionais E em muitos ca sos o profissional recebeu as críticas dos clientes e familiares sem ter sido responsável pelas normas e desacertos da instituição ou pela política que deter mina o que deve ser feito e como deve ser feito Ro drigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Fontes de burnout no contexto social e do trabalho O excesso de solicitações que resulta em sobrecarga Costuma ser uma das fontes mais citadas pelos médicos Pode ser emocional ou física e caracterís tica básica do stress quando as solicitações excedem a capacidade das pessoas de responder a elas Se há um excesso de informações eou de solicitações e além disso em ritmo acelerado nem sempre as pes soas conseguem mobilizar os mecanismos necessários para ajudálas a lidar com tal sobrecarga e os impactos desta situação acabam resultando em um desgaste im portante e insatisfação no trabalho Johnson 1995 Conforme Arnetz 1997 40 dos médicos pesquisa dos independente do sexo relatavam apresentar um nível de cansaço diário ou quase diariamente que os impossibilitava de interagir com seus familiares Em muitos serviços a quantidade de pacientes a serem atendidos em um período curto é excessiva face às ne cessidades do atendimento Tamayo Troccoli 2002 O volume de pacientes é sempre intenso nos Serviços Públicos Universitários e de Medicina de Grupo e os médicos são obrigados a efetuar número grande de atendimentos em tempo muito reduzido E a tensão aumenta se o caso requer cuidado e atenção maiores Isso ocorre tanto na prática do clínico quan to e com maior frequência em especialidades nas quais a ameaça à vida do paciente é iminente Doan Wiggns 1995 Molassiotis e Van Den Akker 1995 examinaremos estes aspectos mais adiante A questão da sobrecarga de trabalho ocorre também com outros profissionais de saúde por exemplo na enfermagem produzindo o burnout neste sentido destacamos o trabalho de Vinacci Alpi e Alvaran Flórez 2004 so bre o stress laboral em auxiliares de enfermagem A perda do controle sobre o seu trabalho O burnout costuma ser alto nos profissionais sem o controle sobre suas atividades Maslach 1982 Al tos índices de exaustão emocional estão relacionados com perda da autonomia e do controle sobre suas atividades Rodrigues 1998 A perda de controle é um dos fatores mais importantes na satisfação no tra balho e na qualidade do atendimento Breslau No vac Wolf 1978 e Lichenstein citados por Deckard e ocorre quando o profissional perde a liberdade de decidir o que e quando fazer Mesmo não sendo per cebidas suas razões a perda de autonomia representa importante stress emocional Desencadeia a sensação de desamparo com vivência de frustração e raiva podendo também surgir a ideia de ser ineficaz com intervenções ineficientes Maslach 1982 Outro aspecto é a não possibilidade de definir intervalos ou limitar o número de horas de trabalho Quanto maior o número de horas de contato direto maior o risco do burnout Maslach 1982 Kirwan e Ar mstrong 1995 assim como estar em serviço o tempo todo algo costumeiro em determinadas especialida des Limitações importantes quanto aos aspectos eco nômicos também aumentam o risco do burnout Relacionamento com os colegas O relacionamento com os colegas muito sig nificativo e fonte de satisfação e reforço de recursos pode entretanto faltar ou mesmo ser mais estres sante que o contato com os pacientes Os problemas de relacionamento no trabalho contribuem para o burnout de duas formas Rodri gues 1982 1 Tornamse uma nova fonte de desgas te e posterior exaustão emocional e de sentimentos negativos em relação às pessoas 2 Retiram a possi Psicossomaticaindd 142 Psicossomaticaindd 142 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 143 bilidade de utilizar estes relacionamentos suporte social ao stress como recurso de enfrentamento e assim de prevenção do burnout Os médicos tendem a dedicar pequena parcela de seu tempo para a integração da equipe e troca de infor mações sobre os pacientes podendo surgir desencon tros nas comunicações com os mesmos prejudicando a relação e a confiança do paciente Rodrigues 1982 Alguns profissionais trabalham isolados e distan tes do contato com colegas Esta característica bastan te observada em médicos cuja atividade é centrada na clínica privada é um fator adicional de burnout Como demonstra Deckard e colaboradores 1994 pequeno suporte da equipe e dos colegas tem forte rela ção com baixa satisfação no trabalho e com altos índices de exaustão emocional Isso também foi confirmado por Ramirez 1996 ao estudar fontes de burnout em mé dicos de hospitais na Inglaterra DoanWiggins 1995 pesquisou a satisfação e o stress ocupacional em médi cos de unidades de emergência e detectou altos níveis de atritos na equipe dado este correlacionado com in satisfação no trabalho e com os níveis de stress PLANOS POLÍTICA E PROCEDIMENTOS Os serviços institucionais determinam o tipo de conduta a ser tomada as pessoas a serem atendidas e quais serviços são restritos ou não a elas E assim alteraram a estrutura da relação médicopaciente O paciente vinculase cada vez mais à instituição e menos ao médico surgindo daí novos fatores de stress emocional O trabalho institucional interfere ainda no tempo de atendimento em especial quando se exige um número grande de atendimentos Com tempo limitado é difícil o profissional fazer um bom trabalho e ele se defende tornando o relacionamento impessoal frio insuficiente Rodrigues 1998 Rodri gues Campos e Rodrigues 2006 O crescente avanço tecnológico da medicina com o aumento substancial da necessidade de capi tal força os profissionais a depender de instituições fortes economicamente e de empresários capitalis tas para garantir o acesso à tecnologia Tal fato tem sido determinante na perda de poder e controle pelos médicos e no crescente poder das instituições e do capital na área da saúde Em função disso os médi cos mantêm um relacionamento burocratizado e im pessoal Maslach 1982 no qual o paciente vira ob jeto e é despersonalizado coisificado Rodrigues 1998 Rodrigues Campos e Rodrigues 2006 Altos índices de exaustão emocional e de des personalização estão relacionados à insatisfação com o local de trabalho A estrutura organizacional acres centa ou diminui fontes de burnout Deckard Me terko Field 1994 Estudo realizado por Borges e co laboradores 2002 constatou o papel de mediação das organizações no relacionamento entre valores organizacionais e a síndrome de burnout de modo que os polos axiológicos efetivamente relacionados à referida síndrome eou aos seus fatores dependem da configuração geral da cultura organizacional de cada uma e dos conflitos que lhe são inerentes As exigências das corporações financeiras e dos administradores em relação ao trabalho são opostas às dos médicos Em função de necessidades das insti tuições inúmeras atividades burocráticas deverão ser executadas como relatórios atestados guias de con sultas e solicitações de exames bem documentados e justificados A burocracia sem nenhuma prioridade para o profissional cuja prioridade maior é o atendi mento o aborrece Scott et al 1995 e ele a vê como perda de tempo afastandoo das reais obrigações e ele a executa de mávontade insatisfeito e com stress O descontentamento da sociedade com os siste mas de saúde é notório Tal fato é observado nos USA e Inglaterra Thompson 1990 e no Brasil a situação não é diferente Cerca de 50 milhões de pessoas têm algum acesso ao sistema público de saúde outros aproxi madamente 40 milhões têm direito parcial ou integral à assistência vinculada à iniciativa privada Restam 70 milhões de habitantes que não têm acesso de maneira regular ao sistema de saúde Ferraz 1997 Em geral a sociedade desconhece estes dados e os médicos historicamente os símbolos dos cuidados com a saúde por estarem na linha de frente no contato com os pacientes e familiares acabam responsabilizados pelas dificuldades nos atendimentos Além disso raramente os médicos ilustram os pacientes a respeito de suas re ais possibilidades reforçando assim os desencontros e desgastes da relação Rodrigues 1998 Sobrecarga de trabalho A sobrecarga de trabalho é queixa constante dos médicos não apenas pelo desgaste mas também pela influência negativa na qualidade do atendimento e na interferência em suas vidas particulares Timothy Johnson 1990 Mason 1986 Johnson et al 1995 Lattimer et al 1996 Oates e Oates 1995 Deckard e colaboradores 1994 afirmam haver forte associação entre exaustão emocional e sobrecarga de trabalho quer de cunho administrativo ou de atividade clínica além da baixa satisfação profissional e de altos índices de exaustão emocional e despersonalização Ramirez 1985 encontrou relação entre sobrecarga de traba lho e transtornos psiquiátricos em médicos oncologis tas da unidade especializada do Guys Hospital em Londres O excesso de trabalho mais os plantões de 24 Psicossomaticaindd 143 Psicossomaticaindd 143 05012010 121207 05012010 121207 144 Mello Filho Burd e cols horas e em turnos são citados por Losek 1984 como causadores de fadiga crônica distúrbios de sono au mento da taxas de depressão e de acidentes no trajeto ao local de trabalho além de colaborar no surgimento de doenças cardiovasculares e gastrointestinais Tipo e local de trabalhoespecialidade Ao estudar manifestações de burnout em clínicos gerais pediatras e ginecologistas e obstetras GOs Deckard e colaboradores 1994 encontraram maio res índices de exaustão emocional nos clínicos gerais seguidos pelos de pediatras e dos GOs Na desperso nalização os GOs e Clínicos gerais apresentavam os escores mais altos Ramirez e colaboradores 1996 pesquisando o burnout em médicos de hospitais gas troenterologistas cirurgiões radiologistas e oncolo gistas percebeu nos radiologistas o maior nível de comprometimento na realização profissional Molas siotis e colaboradores 1995 observando uma uni dade de transplante renal detectou manifestações de ansiedade em mais de 10 da equipe e de depressão em 38 dos médicos além de altos índices de exaus tão emocional despersonalização e baixa realização profissional Estes achados foram correlacionados ao tipo de trabalho realizado como excessiva responsa bilidade ter de lidar com pacientes de má evolução e os rápidos avanços da tecnologia Trabalhar em unida des de emergência significa sem dúvida submeterse a intensas fontes de stress e burnout Revicki 1996 a pressão do tempo a intervenção precisa a pou ca margem para dúvidas e erros a ameaça constante de morte e as ocorrências imprevisíveis são aspectos da atividade médica exacerbados neste trabalho Pes quisa de DoanWiggins 1995 encontrou os seguintes dados dentre os médicos da unidade de emergência da Loyola University of Chicago 252 apresentavam manifestações de burnout e 231 planejavam aban donar esta especialidade Keller e Koening 1989 em estudo feito em Los Angeles com médicos de serviços de emergência tanto em hospitais públicos quanto privados e universitários encontraram significativos índices de burnout 60 destes médicos apresentavam altos escores de exaustão emocional 78 entre mé dio e alto de despersonalização e 84 entre médio e alto de comprometimento da realização profissional A possibilidade de receber chamadas de emergência é outro aspecto destacado pelos médicos como fonte potencial de stress Johnson et al 1995 Kirwan e Armstrong 1995 Atividade com pacientes reconhe cidamente graves como em oncologia ou infectologia em situações de pacientes com AIDS é fonte de stress e burnout Inúmeros outros trabalhos confirmam es tas influências Barni e colaboradores 1996 em es tudo realizado na Itália Ramirez 1995 Gardner e Hall 1987 e Colón 1986 Arnetz e colaboradores 1988 e no Brasil Glasberg e colaboradores 2007 Reconhecimento Há alguns anos os pacientes admiravam e res peitavam o médico e aceitavam aquilo que ele falava sem questionamentos O pagamento poderia ser feito com um saco de batatas ou uma galinha mas a hon ra e o prestígio compensavam muito mais Rodri gues 1998 Tähka 1988 Os médicos geralmente são pessoas para quem o sucesso é importante Mengel 1989 Quando a posição do médico é socialmente considerada e ele é reconhecido por sua atividade a satisfação em relação à profissão a autoestima e a motivação para manter a atividade são importantes na proteção ao burnout Ro drigues 1998 Rodrigues Campos e Rodrigues 2006 O mito de Asclépio filho de Apolo e da ninfa Coronis ilustra a fantasia inconsciente do ser humano em relação ao exercício da medicina Hoirisch 1976 Asclépio em seu progresso na arte de curar chegava a ressuscitar os mortos Zeus temendo que a ordem do mundo ficasse transtornada o matou Brandão 1966 Partindo do mito de Asclépio superpomos as aspirações inconscientes do médico à identidade do herói Médicos e sociedade esperam do profissional o papel heróico de defender o ser humano da ameaça da morte E como tal deverá ser altruísta e protetor Isso lhes confere uma posição especial na sociedade a qual vai ao encontro das necessidades dos médicos de prestígio e reconhecimento social Tal situação hoje achase comprometida A maioria dos pacientes espera dos médicos além da competência e da cortesia demonstrações de interes se por seus problemas sem pressa e fornecendo o maior número possível de informações a respeito de suas doenças Tähka 1988 citando pesquisa de opi nião pública realizada pela Associação Médica Fin landesa em 1973 assinala o paciente de hoje não mais se vê no papel tradicional de submeterse sem queixas e sem perguntas a quaisquer medidas que o médico supostamente infalível ache melhores Ele espera que sua individualidade seja respeitada achase muito melhor informado sobre assuntos mé dicos que gerações anteriores Como já assinalamos os médicos raramente re cebem um retorno realista ao exercício de sua função profissional comprometendo sua autoestima e neces sidades de reconhecimento Os médicos dão grande importância a este reconhecimento social e esta ne cessidade quando satisfeita funciona como importan te mecanismo na proteção ao burnout Ramirez et al Psicossomaticaindd 144 Psicossomaticaindd 144 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 145 1995 Inúmeros estudos sobre burnout evidenciam a forte relação entre a intensidade da síndrome e a falta do reconhecimento social ao trabalho médico entre eles podemos citar Whippen e Canellos 1991 Deckard e colaboradores 1994 Diaz Gonzáles e Rodrigo 1994 Makin e colaboradores 1988 Fieds e colaboradores 1995 Johnson e colaboradores 1995 Ramirez e co laboradores 1995 1996 Rodrigues 1998 Durante muito tempo estudantes de medicina e médicos acreditaram que o stress e o desgaste da profissão seriam compensados pelo ganho financeiro e status social Isso hoje não é uma certeza e nem uma realidade3 Rodrigues 1998 Rodrigues Cam pos e Rodrigues 2006 UMA PESQUISA SOBRE BURNOUT EM MÉDICOS NA CIDADE DE SÃO PAULO A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA COMO FONTE DE BURNOUT Os procedimentos visão geral Face aos objetivos propostos adotamos métodos qualitativos de investigação e interpretação dos dados colhidos em campo notadamente na análise dos de poimentos A população a ser estudada era composta de médicos em pleno exercício profissional ou seja indivíduos possivelmente saudáveis o objetivo do es tudo foi o stress e burnout provocados pela prática profissional através da investigação dos significados da mesma e de suas consequências sobre o médico profissional Foram eleitos os seguintes procedimentos a Questionário dados de identificação e da forma ção profissional e referentes à inserção profissio nal b Depoimento sobre a pergunta O que significa para você a medicina a sua prática profissional e que consequências ela tem sobre a sua vida A amostra Após consentimento da Associação Paulista de Medicina enviamos questionários a 351 médicos es colhidos aleatoriamente no cadastro do Departamen to de Processamento de Dados Por nossa recomen dação os médicos selecionados deveriam ter entre 10 e 15 anos de experiência profissional Recebemos uma listagem dos médicos com seus endereços já em etiquetas Cada um deles recebeu pelo correio um enve lope contendo a Carta assinada com apresentação do pesquisador e informação sucinta dos objetivos da pesquisa sem especificação do termo stress b Orientação de como proceder com os questioná rios anexados e com o depoimento além da ga rantia do sigilo c Um envelope selado e etiquetado com o endere ço do autor para envio das respostas Recebemos 64 questionários ou seja 1823 do total dos enviados Análise dos depoimentos Introdução A utilização de instrumentos qualitativos de análise na área de saúde aqui no Brasil é exempli ficada pelos trabalhos de Mary Jane Spink 1994 na análise da construção do conhecimento sobre a saúde de Schraiber 1993 no estudo de narrativas de médicos o de Pitta 1990 aliando instrumentos da epidemiologia em sua pesquisa sobre profissionais da área de saúde a tese de Nogueira Martins 1994 sobre stress em médicos residentes e cuja busca de entendimento inclui a apreensão dos significados das suas vivências e de sua ação e o de Turato 1999 na Pesquisa ClínicoQualitativa Metodologia utilizada na análise dos depoimentos Os depoimentos ao estimular reflexões nos pro fissionais forneceram informações as quais além de elaboração intelectual traziam as vivências afetivas sobre o tipo e qualidade das relações com a Medici na enquanto modalidade de conhecimento além das possibilidades de intervenção e das repercussões do exercício profissional nas suas vidas A escolha de depoimentos como técnica de co leta de dados obedeceu a várias determinações al gumas de ordem prática É de fácil aplicação permite ser sucinto e delimitar o tema bem como a coleta do material através do correio Desta forma não se reve la o objeto de estudo o stress resultante do exercício profissional não induzindo os relatos dos sujeitos Por outro lado a abordagem favorece um fluxo asso ciativo de ideias sobre a experiência vivida e as dife rentes formas de percebêla pelos sujeitos O objetivo de delimitar a amostra a médicos en tre 10 a 15 anos de trabalho profissional era o de possibilitar considerações refletindo uma experiência mais amadurecida em relação à profissão ao menos tal era nossa suposição Além disso a escolha aleató Psicossomaticaindd 145 Psicossomaticaindd 145 05012010 121207 05012010 121207 146 Mello Filho Burd e cols ria dos sujeitos forneceu a possibilidade da reflexão efetuarse sobre os depoimentos de médicos falando de suas experiências vividas no dia a dia de suas prá ticas profissionais experiências no dizer de Schrai ber 1995 de médicos comuns concretas uma ela boração de seus quotidianos um ponto de vista sobre o momento presente da prática médica cujo registro nem sempre ocorre Spink1994 O conjunto de depoimentos dos sujeitos recons titui um momento social representado pelos médi cos pelas diferentes formas de prática da Medicina e pelas diversas maneiras de vivêla e interpretála Eles explicitam tanto a diversidade quanto o que há de comum e compartilhado no exercício profissional da Medicina Para estimular os depoimentos foram formula das as seguintes perguntas 1 Que significado tem para você a Medicina 2 Que significado tem para você o exercício profis sional da Medicina 3 Que influência ela tem sobre a sua vida Nosso intuito era o de extrair dos depoimentos a existência do stress se o mesmo é vivido ou não como sofrimento se poderia resultar em burnout em decorrência dos impactos acima citados do signifi cado que atribuíam à Medicina e sua prática profis sional e como tais significados mediavam o processo de stress Antes de qualquer estudo comparativo procede mos a uma leitura de cada depoimento isoladamente com o intuito de captar a relação que o indivíduo tem com seu exercício profissional O discurso contido nos depoimentos enuncia uma reflexão sobre a experiên cia e informa através de seu conteúdo não só por meio de esclarecimentos cognitivos mas também do investimento afetivo em relação à profissão Utilizamos elementos da técnica usada na aná lise de conteúdo de entrevistas detalhada por Spink 1994 Com base nesta abordagem os depoimentos foram divididos em três grupos Grupo 1 Não há descrição de distress no depoimen to e o relato se caracteriza por uma relação satisfatória como o exercício profissional Grupo 2 No depoimento há o relato de uma rela ção predominantemente satisfatória com a profissão mas também há a presença de distress no exercício profissional Grupo 3 Há relato de distress no depoimento e o conteúdo do discurso é marcado por uma forte tendência a caracterizar uma relação insatisfatória com o exercício profissional com presença de burnout A criação das categorias Procurouse mapear cada discurso através das seguintes perguntas 1 Por que a prática profissional é sentida por este sujeito como satisfatória 2 Por que a prática profissional é sentida por este sujeito como insatisfatória 3 Que fatores de distress estão presentes no depoi mento Evidentemente a primeira pergunta foi direcio nada aos Grupos 1 e 2 a segunda pergunta ao Grupo 3 e a terceira questão aos Grupos 2 e 3 Como os depoimentos do Grupo 3 possuíam uma característi ca de desprazer quanto à relação com a profissão a segunda e a terceira perguntas foram fundidas pois a insatisfação vinculavase fortemente não só à vivên cia de esforço e ao desgaste mas principalmente à experiência emocional do desprazer e até mesmo so frimento Ao lado de cada pergunta colocávamos a resposta do sujeito Por exemplo A Por que a prática profissional é sentida como sa tisfatória Sujeito 27 A medicina significa o meu sustento financeiro e psicológico onde me sin to útil realizando um trabalho signifi cativo para mim e para os pacientes Sujeito 35 Adoro estudar e me aprofundar em assuntos que me interessam B Por que a prática profissional é sentida como insa tisfatória Sujeito 21 A medicina foi e ainda é o ideal maior Todavia muito do sonho de longe já terminou Sujeito 56 Se Hipócrates vivesse no tempo do INSS certamente não teria feito o ju ramento como o fez Com este procedimento obtivemos um número significativo de respostas explicitando as razões da re lação com a profissão ser satisfatória ou insatisfatória e quais fatores de distress eram percebidos e relatados Frente à variedade de respostas ou seja o nú mero de diferentes percepções sobre o trabalhofoi necessário ordenar as formulações de forma condi zente com os objetivos Procuramos agrupar as res postas em categorias que as representassem de uma forma lógica que apreendessem significados comuns presentes nas diversidades dos relatos categorias que explicitassem os significados para os sujeitos do exercício profissional a partir de um conhecimento prático no dizer de Sato 1993 Conhecimento prá Psicossomaticaindd 146 Psicossomaticaindd 146 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 147 tico segundo Pereira de Sá porque constituem ati vidades intelectuais da interação social quotidiana relacionadas com um saber apropriado sobre a práti ca adquirida nesta mesma prática O material coletado segundo Schraiber 1995 revestese de um duplo caráter ao mesmo tempo dado empírico para exploração de dimensões transcenden tes do singular tanto quanto já resultado do estudo Assim construímos as categorias tendo como fonte de inspiração o próprio conteúdo do discurso dos sujei tos nos depoimentos Elas surgiram das respostas dadas às questões Ou seja as categorias que serão apresen tadas e que serão utilizadas como base para a interpre tação qualitativa dos depoimentos embora possam ser consideradas partes deste processo não existiam até a obtenção das diferentes respostas às questões formula das Surgiram como um movimento próprio do proces so científico que é o de tentar ordenar um conjunto de informações que emergiram dos dados de campo para buscar uma apreensão e compreensão do real RESULTADOS E DISCUSSÃO Dados demográficos Dos médicos da amostra 52 cursaram residên cia médica em um total de 21 especialidades Fize ram curso de especialização 31 médicos em um total de 23 especialidades e possuíam título de especialis ta 49 sujeitos Dados de inserção profissional Dos médicos com título de especialista 34 tra balham na especialidade e 29 sujeitos em outras especialidades Quanto ao trabalho com maior gra tificação profissional o destaque entre as escolhas são consultório e instituição de ensino Como local de trabalho de maior possibilidade de progresso pro fissional com maior frequência foram apontados o consultório hospitais particulares e instituições de ensino Em termos de carga horária de trabalho se manal 21 sujeitos trabalham 40 horas ou menos 15 trabalham entre 41 e 50 horas 17 trabalham entre 51 e 70 horas e 10 sujeitos trabalham mais de 70 horas Possuem consultório 48 dos sujeitos da amostra 23 destes sujeitos atendiam entre 0 e 30 de pacientes particulares 8 sujeitos entre 40 e 90 de pacientes particulares e 17 sujeitos 100 de pacientes particu lares A frequência de pacientes conveniados corres ponde para 22 sujeitos entre 0 e 30 do movimento de seus consultórios para 15 médicos entre 40 a 90 e para 5 entre 92 a 100 Apresentação do grupo 3 Relato de distress e conteúdo do discurso mar cado por forte tendência de evidenciar uma relação insatisfatória com o exercício profissional com pre sença de burnout Lembramos que o material apresentado a seguir contém o duplo caráter mencionado acima Segundo os dados colhidos e tomando como comparação o Grupo 1 da amostra os sujeitos do Grupo 3 tendem a ser mais jovens um menor nú mero deles fez residência médica ou curso de espe cialização ou exercem a prática médica na respectiva especialidade em sua maioria a prática médica não é realizada nos locais de maior gratificação profissio nal e financeira possui em menor número o título de especialista e trabalham um maior número de horas Nos Grupos 1 e 2 não há relato de dificulda des quanto ao reconhecimento do trabalho falta de recursos ou de condições e nem de trabalhar com populações carentes Categorias referentes ao burnout Definimos as seguintes categorias a Pressão no trabalho pelo êxito ao lidar com a possibilidade da morte e ameaça à integridade do paciente Estes aspectos inerentes ao trabalho médico são carregados de dor e sofrimento Sujeito 07 quando algo não vai bem é es tressante cansativa urgente difícil e você fica sozinho Medicina nunca trata com assuntos felizes só com doenças dores problemas Sujeito 21 o stress é uma constante visto a gravidade dos casos que normalmen te atendo b Sobrecarga de trabalho e o fato da profissão exigir um tempo diário de dedicação inclusive o tempo consagrado ao estudo considerado excessivo Sujeito 15 Trabalho demais estudo demais participo de reuniões de especiali dade cursos congressos sem pers pectiva de melhora profissional e em termos de qualidade de vida Sujeito 54 Como consequência tenho menos tempo para a minha família e traba lho mais para poder viver um pouco melhor financeiramente c Interferência da atividade profissional na vida pessoal eou familiar em função do descrito aci ma Alguns relatos entretanto mencionam a in terferência nociva sobre sua vida pessoal não só Psicossomaticaindd 147 Psicossomaticaindd 147 05012010 121207 05012010 121207 148 Mello Filho Burd e cols decorrente da sobrecarga de trabalho mas tam bém pelo grau de frustração e malestar que a prática profissional impõe Sujeito 21 trabalhar com uma população pobre socioculturalmente o stress é uma constante visto a gravidade dos casos que normalmente atendo e a grande falta de recursos que dispo nho no final do dia a tensão é grande assim como o questionamen to pelo quão útil estou sendo tendo perdido um casamento pela dedicação tão intensa à profissão Sujeito 37 A medicina significa tudo embora não me traga retorno econômico e pessoal acredito que não tenha muito o que crescer é uma car reira desvalorizadíssima grifo é do próprio sujeito em termos de hono rários fazem o que entendem com os médicos convênios governo me dicina de grupo etc Carreira onde não há praticamente lugar para elo gios só para críticas Embora linda não encontro adjetivos para designar a lama em que lamentavelmente a medicina se encontra d Tem que suportar o sentimento de impotência os limites da intervenção do conhecimento Sujeito 21 O stress é uma constante visto a gra vidade dos casos que normalmente atendo Sujeito 49 A medicina significa a ciência e a profissão que escolhi para exercer precocemente e sem maiores escla recimentos quantos as dificuldades e limitações que encontraria Dentro da especialidade que escolhi oncologia clínica tenho alguns momentos de satisfação e muitos de insatisfação não só com os resultados obtidos com as abordagens terapêuticas atuais e Questões relativas à organização do trabalho ao relacionamento com os colegas à falta de re cursos ou de condições para realizar o trabalho E ter de lidar com populações carentes dificul dades na inserção no mercado de trabalho e as interferências institucionais no trabalho médico Sujeito 07 para os colegas um médico secun dário que faz o paciente ficar quieto quando eles operam O reconheci mento não existe nem do paciente nem dos colegas Sujeito 15 Tudo é muito difícil desde a com pra de equipamentos que geralmen te para o médico é mais caro até a própria prática profissional que se encontra monopolizada O indivíduo formase submetese a estágio ou residência presta concurso para es pecialista monta consultório e per cebe que não tem chance nenhuma no mercado Então sai a procura de convênios voltando frustrado para casa pois não é amigo ou não foi indicado por ninguém para entrar no convênio procurado As empresas seguradoras e de medicina de grupo monopolizaram o mercado Tirou o paciente particular do consultório e o direcionou para alguns profissio nais credenciados pelas mesmas Sujeito 21 Hoje por trabalhar em hospital público municipal carente em um bairro pobre com uma população pobre socioculturalmente o stress é uma constante visto a gravidade dos casos que normalmente atendo e a grande falta de recursos que dis ponho Quando não é a frustração quanto ao que se pode receitar o paciente vai à farmácia e optar com prar um ou dois medicamentos e não o total prescrito Exames subsidiários e internações são proibitivos na gran de maioria das vezes o que por cer to no final do dia a tensão é grande assim como o questionamento pelo quão útil estou sendo Sujeito 24 A prática profissional é bastante difí cil concorrida sem grandes estímu los e muitos colegas querendo que você caia f As transformações que a profissão sofreu no imaginário dos sujeitos a frustração das expecta tivas não concretizadas e as dificuldades no reco nhecimento do trabalho Sujeito 07 Medicina significava para mim quando comecei a estudar ajudar os outros ter muito conhecimento e cultura participar de uma classe so cial e financeira superior superar um desafio O reconhecimento não existe nem do paciente e nem dos co legas Sujeito 15 A medicina foi o maior investimento de tempo de vida que eu fiz Acredi tei na profissão porém a mesma não me trouxe o retorno profissional e fi nanceiro desejado Psicossomaticaindd 148 Psicossomaticaindd 148 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 149 Sujeito 54 A medicina seria para mim a realiza ção de um grande sonho de criança onde pudesse exercer uma profis são ajudando as pessoas e sentindo recompensado também financeira mente Na prática o que vemos é uma total falência do sistema de saúde e uma enorme crise moral nas pessoas que a dirigem CONSIDERAÇÕES FINAIS O material coletado revestese do duplo caráter apontado por Schraiber 1996 O fato de na análise dos depoimentos as res postas terem sido agrupadas em categorias apreen dendo significados comuns presentes na diversidade dos relatos permitiu atingirse uma realidade que é coletiva e compartilhada pelos elementos do grupo que compõem a amostra Surgiu daí a revelação de um conjunto de características transindividuais re forçando assim a apreensão do coletivo ao qual per tence o depoimento Os médicos do Grupo 3 no qual apareceram os maiores níveis de burnout vivem de maneira mais radical as dificuldades impostas à realização profis sional em função a das novas formas de organização do sistema de saúde no sistema privado caracterizado pelo qua se domínio das instituições para as quais a saúde é um mercado a ser conquistado b da precariedade das condições do exercício pro fissional notadamente nos serviços públicos de saúde e de medicina de grupo Assim a presença destes aspectos parece tornar os médicos mais expostos aos fatores de stress ineren tes à profissão com maiores interferências penosas em suas vidas pessoais e familiares Outro aspecto entretanto precisa ser destacado estes profissionais vivem situações quotidianas de insa tisfação desprazer e sofrimento em suas vidas profis sionais marcadas pela presença de um sentimento de desesperança na qual a relação com o trabalho é vivida como violência pois como diz Pereira de Sá 1993 ela é uma experiência emocional que vai além e se di ferencia tanto em intensidade como em qualidade dos sentimentos de frustração eou desprazer Para melhor compreender este aspecto recor remos à noção de violência desenvolvida por Freire Costa 1986 para quem ela é um acontecimento de rivado da ruptura de um contrato até então implícito na ordem social contrato este expressando ideias an teriormente compartilhadas e presentes de forma evi dente quando da escolha e da formação profissional as pessoas que sofreram a ação tinham tais ideias como suas e as mesmas faziam parte de suas identida des integrando portanto suas visões de mundo e de si mesmas Além disso este rompimento de contrato foi arbitrário pelo uso da força ainda que os agentes da violência não possam ser personificados em um su jeito e só possam ser nominados de Estado ou Grupos mercantis Esta ruptura do contrato social fez com que vários aspectos da relação destes médicos com o exercício profissional fossem vividos como a experiência emocional de uma violência o que pode ser observado em diversos relatos como os dos sujeitos 7152154 As oportunidades para uma grande maioria de médicos de alcançar as aspirações que a cultura legi timava são esvaziadas no decorrer de seus desenvol vimentos profissionais Mas não são e não podem ser facilmente abandonadas O investimento na profis são e na formação tanto em nível afetivo como em termos de tempo e financeiro foi muito grande tal vez por causa disso a adesão dos médicos à profissão costuma ser um dos maiores em comparação com outras profissões conforme foi destacado por Macha do 1997 Além disso a partir de um certo teto de socialização urbana de concorrência por status a aspiração é irreversível Maslach 1982 Alguns sujeitos da amostra procuram levar adiante a profissão defendendose deste ataque ao self nutrindo expectativas de futuras mudanças Em outros isso já não ocorre E como assinala mos anteriormente a relação com a profissão é mar cada pelo desprazer e sofrimento em uma situação vista como sem saída sem alternativas e tendem a responder através de mecanismos psicológicos seme lhantes a economia da dor Vamos desenvolver este raciocínio porque nos permite entender como a representação mental da violência está atuando na determinação do compor tamento destas pessoas na medida em que partes importantes do self integrantes do tipo psicológico coerente com a identidade construída na interrela ção com o padrão social do grupo estão francamente ameaçadas de destruição A experiência da satisfação é o principal fator de crescimento e desenvolvimento psicológico Assim quando a pessoa busca na realidade situações de pra zer além dos aspectos ligados à satisfação realiza um movimento que favorece o seu desenvolvimento pes soal e a auxilia a lidar com as outras situações gera doras de decepção e desprazer A polarização prazer desprazer faz o pensamento transitar na esfera das representações e afetos que concernem o prazer de pensar e a possibilidade de viver de novo o prazer Ou seja de que algo poderá vir a ser incorporado pelo Psicossomaticaindd 149 Psicossomaticaindd 149 05012010 121207 05012010 121207 150 Mello Filho Burd e cols seu self Na experiência da dor ocorre algo diferente ela está associada à morte e a destruição e o psiquis mo para defenderse aciona defesas com o objetivo de controlar fazer desaparecer a experiência doloro sa Há um refluxo narcísico em direção ao Ego com o desenvolvimento de comportamentos estereotipados mecânicos rígidos deslibinizado em suas ações que representam uma tentativa de neutralização afetiva mais ou menos duradoura da experiência São formas de lidar com a violência da qual o sujeito sentese vítima Violência que adveio da infra ção de um contrato que estava implícito na ordem so cial e que legitimava as aspirações que sustentavam a própria escolha da profissão Quebra de contrato realizada de forma arbitrária imposta geradora de sofrimento vivida como sem alternativa e que amea ça a sua identidade A partir da década de 1980 delineiamse no Bra sil as transformações do sistema de saúde com duas modalidades alternativas de organização a estatal representada hoje pelo SUS e pelos serviços de saúde dos municípios e dos estados e a outra de caracte rística privada cujo ponto central são as empresas Desta forma a prática médica autônoma e individual tida como modelo de exercício da profissão passou gradativamente a perder espaço Machado 1997 Segundo Donnangelo 1975 tais transforma ções só podem ser adequadamente interpretadas a partir de processos desenvolvidos concretamente no interior destas sociedades e que transcendem o âmbi to da prática médica e estão relacionadas às transfor mações de uma sociedade fundamentalmente urbana e industrial Estes aspectos determinaram outras transforma ções na prática médica A incorporação da tecnologia fezse de forma crescente e acelerada tornandose praticamente padrão de competência e eficiência Isso levou os médicos a práticas semiológicas e terapêuti cas fundamentadas quase exclusivamente na tecnolo gia A pesquisa Os médicos no Brasil um retrato da realidade Machado 1997 confirma esta asserção os recémformados fazem escolhas mais racionais e menos vocacionais amparados na ideia de fazer medicina mais tecnológica com menos envolvimento pessoal e que lhes dê maiores rendimentos De acordo com os participantes deste estudo a prática médica tal como está sendo mediada pela buro cracia estatal ou pelas empresas privadas a decorrente queda da remuneração aliadas às demandas de alta produtividade o excesso de trabalho o predomínio da tecnologia sobre o saber clínico provocam graves com prometimentos na relação dos médicos com o exercício da profissão Tudo isso acarreta a experiência emocional da violência e o desenvolvimento do burnout REFERÊNCIAS Arnetz BB et alli Comparasison between surgeons and general practitioners with respect to cardiovascular and psychosocial risk factors among physicians Scand J Work Environ Health 14118 124 1988 Arnetz BB PhysiciansView of their Work Environment and Orga nisation Psychother Psychosom 199766155162 Arnetz BB PhysiciansView of their Work Environment and Orga nisation Psychother Psychosom 199766155162 Arnold RM Povar GJ Howell JD The humanities humanistic behavior and the human physician a cautionary note Ann In tern Med1063133181987 Arnold RM Povar GJ Howell JD The humanities humanistic behavior and the human physician a cautionary note Ann In tern Med1063133181987 Bakan D Enfermedad Dolor Sacrificio hacia una psicologia del sufrimiento Fondo de Cultura Económica México1979 Barni S Mondin R Nazzani R Archilli C Oncostress evalua tion of burnout in Lombardy Tumori 821 8592 1996 Borges LO Argolo JCT Pereira ALS et al A síndrome de bur nout e os valores organizacionais um estudo comparativo em hospitais universitários Psicol Reflex Crit vol15 no 1 p189 200 2002 Brandão JS Mitologia Grega volI Vozes Petrópolis1966 Breslau N Novac A Wolf G Work setting and job satisfaction A study of primary care physicians and paramedical personnel Med Care16850 1978 Carnevale GJ Anselmi V Johnston MV Busichio K Walsh V A natural setting behavior management program for persons with acquired brain injury a randomized controlled trial Arch Phys Med Rehabil 8710128997 2006 Carrol JFX White WL Theory Building Integrating Individual and Environmental Factors Within on Ecological Framework IN Paine WS Job stress and burnout SAGE Publications Cali fórnia USA 1984 Cherniss C Cultural Trends Political Economicand Historical Roots of the Problem IN Paine WS Job stress and burnout ResearchTheory and Intervention Perspectives SAGE Publica tions Beverly Hills USA 1984 ChristieSeely J Fernandez R Paradis G et alli The Physicians family IN ChristieSeely Jed Working with families in 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tribution of burnout among infectious disease physicians The Journal of Infectious Disease1652242281992 Dejours C Psicodinâmica do trabalho Atlas São Paulo 1994 Deyo R Linus T Sullivan B Noncompliance with arthritis drugs Magnitudecorrelates and clinical implication J Rheuma tol 89319361981 Diaz Gonzáles Rj Rodrigo IH El Sindrome de burnout en los médicos del sistema sanitário público de salud Rev Clin Esp 1994670676 DoanWiggins L et alli Practice satisfaction occupational stress and attrition of emergency physicians Acad Emerg Med 265565631995 Donnangelo MC Medicina e Sociedade São Paulo Pioneira 1975 Ferraz MB Sistema de saúde brasileiro suas limitações e seus desafios SER MédicoÓrgão do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo no 1 1921 1997 Fields AI et alli Physician burnout in pediatric critical care medicine Crit Care Med 238 14251429 1995 Freudenberger HJ Richelson G Lépuisement professional la brûlure interne Otawa Ed Gaëtan Morin 1987 Freudenberger HJ Proceedings 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somáticos representam articulações diversas do cor po com a psique articulações essas que se expressam caracteristicamente rio corpo A histeria nos remete à neurose a hipocondria ao delírio e à psicose e os fenômenos psicossomáticos a uma malestabelecida e intrigantemente pesquisada relação corpomente na qual o corpo vêse atingindo concretamente em sua intimidade tecidual e humoral não raras vezes levando a internações cirurgias e à própria morte Também as manifestações psicossomáticas são fre quentemente consideradas como o limite analisável deixandonos analistas diante da paradoxal sensa ção de impotência e desafio na busca de expansão de nossos limites terapêuticos em confronto com os limites do investimento narcísico de nossa qualidade e capacidade analítica Tomo a histeria e a hipocon dria neste texto como referenciais para uma tentativa de aproximação psicanalítica aos fenômenos psicos somáticos esta sim a razão principal do trabalho HISTERIA E HIPOCONDRIA A histeria conta uma história Há uma escrita a ser decifrada por um leitor que privilegiado pela atenção flutuante surpreende o retomo do recalcado As manifestações corporais na histeria são consequên cias singulares do processo de recalcamento Assim uma representação que não pode ser consciente por sua característica afetiva intolerável parte de uma si tuação conflitiva tornase inconsciente porém esta belecendo um vínculo associativo com a consciência através do sintoma histérico O sintoma histérico arti cula a representação recalcada à sua própria demons tração deformada o que paradoxalmente esconde e insinua a situação conflitiva Este arranjo dáse por uma via simbólica em oposição à via anatômica O corpo narra fala e simultaneamente descarrega O fenômeno da conversão histérica é uma solução sim bólica e econômica para a questão conflitiva A repre sentação é recalcada retorna através do sintoma e o afeto correspondente à representação é convertido na qualidade física da manifestação corporal Tomo emprestado um exemplo citado por Goldin e Piedi monte em seu livro La Histeria 1976 Uma moça Ana é trazida pela mãe à consulta psicanalítica Ana chega pedindo que não se toque nela pois lhe dói muito todo o corpo Está toda contorcida torta e mal consegue an dar Ao falar adverte que vem de uma família muito direita que não se pense que está louca ou que pade ce de algo incomum Está assim há dois meses No de correr da consulta Goldin associa estar ela torta com vir de uma família muito direita e questiona se há dois meses não teria acontecido algo relacionado ao tocar perder a rectitude termo usado no original em oposição à torcido e algo doloroso Daí surge a lembrança de uma cena na qual estava voltando com o noivo de uma festa quando pararam o carro e tiveram vários jogos sexuais sem no entanto terem re lações sexuais isso há cerca de dois meses Interrom po aqui o exemplo Já nos basta O sintoma histérico corpo torcido e dor em todo o corpo expressa si multaneamente uma relação entre a família direita e a sexualidade como algo torto O corpo torto dra matiza como num jogo de mímica à procura de um decifrador simultaneamente a situação não direita e a posição torta que Ana ocupava na ocasião da cena do carro Também lhe era esta situação muito dolo rosa como talvez algo doloroso tivesse lhe acontecido no carro O recalcamento incide na representação da cena e em sua articulação com os significantes torto direito retorna através do sintoma Mais ainda re torna através do sintoma dor de transgredir algo que é direito a família o que nos leva ao especial lugar ocupado por esse namorado que o torna parcialmen te proibido E assim vamos tecendo esta trama como o fez Goldin na consulta e em seu livro E nada disso é novidade apenas um reforço da posição que ocupa o corpo na histeria Corpo simbólico corpo história corpo mímica pedindo e evitando ao mesmo tempo 12 HISTERIA HIPOCONDRIA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO Otelo Corrêa dos Santos Filho Psicossomaticaindd 153 Psicossomaticaindd 153 05012010 121208 05012010 121208 154 Mello Filho Burd e cols ser desvendado Não há lesão orgânica a não ser eventualmente secundária A via é a da escrita não a da anatomia A anatomia do corpo simbólico é uma anatomia muito singular relacionada à história da sexualidade e à vida do sujeito a quem pertence este corpo em particular Outro ponto importante diz respeito à relação com a realidade O vínculo com a realidade é mantido e há implícita neste jogo de esconder e demonstrar uma possibilidade de subjetivação do sujeito histéri co A própria característica principal do recalcamen to a via simbólica contém um outro à espera de ser subjetivado no decorrer de um processo psicanalíti co por exemplo A hipocondria nos leva a outras considerações Considerações sobre o corpo delirante o corpo inimi go do sujeito o corpo como um outro alheio estra nho pertencente a um sistema que ultrapassa a rea lidade e impõese como uma alucinação com delírio Não me refiro às ideias hipocondríacas ou às suspei tas de mau funcionamento corporal tão comum em todos principalmente em estados depressivos Falo da hipocondria como estrutura em que não há um estabelecimento de laços simbólicos com o corpo os quais tentam se estabelecer através do delírio hipo condríaco Aqui não se trata do recalcamento de represen tações relacionadas ao corpo Há uma rotura radi cal das relações com o mundo objetal incluindo o próprio corpo como realidade e uma tentativa de restauração desses vínculos através do delírio Na hipocondria o corpo não se articula simbolicamen te a uma história ou a um discurso mas justamente por ser radicalmente excluído dessa possibilidade de articulação retorna como delírio imposto pelo real O hipocondríaco chega à análise mais raramente É paciente dos clínicos e cirurgiões os quais procura na busca de curar o seu câncer ou tratar as bactérias que o estão invadindo ou operar aquele tumor cerebral que com angustiada certeza vai leválo à morte Há uma perda do juízo de realidade de tal ordem que frequentemente convence os médicos levandoos a exames complementares desnecessários na busca ou do convencimento do paciente de que ele não padece de nenhuma doença orgânica o que dá um ligeiro e breve alívio da angústia ou para convencer ao mé dico já partner do delírio de que realmente se trata de um sujeito hipocondríaco Tomo um exemplo para ilustração Marta 25 anos vem à análise em estado de absoluto desespero Analisase quase ininterrup tamente desde os 8 anos Acaba de chegar de uma consulta com o clínico Está em pânico porque teve uma evacuação com fezes um pouco moles e vai ter o seu corpo todo invadido por vermes que vão cul minar em sua morte Pela manhã mais cedo pisou numa poça de água suja e lavouse com álcool pois estava contaminada por bactérias que poderiam des truíla Ontem esteve num ortopedista porque acha que pisou de mau jeito e teme precisar ser operada no pé Frequenta uma média de um a dois médicos por dia Logo que uma lesão ou doença é descartada outro aparelho órgão ou sistema corporal se impõe como nova vítima de um inimigo implacável Há uma mínima relação com a realidade Não sabe bem por que está na análise mas algo a leva a vir talvez para obter um pouco de alívio de sua enorme angústia Na hipocondria o corpo sofre uma dupla clivagem Numa não faz parte do sujeito mas ou o domina ou é por ele dominado Noutra dividese em um cor po em estado de desamparo importante submetido às torturas de um órgão inimigo ou de inimigos ex ternos bactérias vírus câncer que vão destruílo A ameaça é de aniquilamento de esfacelamento não de um representação mas da própria capacidade de representar de construir vínculos associativos Esta mos no terreno do repúdio da recusa e não do re calcamento O médico e o analista são desesperada mente convidados a serem aliados desse corpo frágil clivado para protegêlo do inimigo implacável Não são convidados a participar de um deciframento ou de uma possível subjetivação O que se mostra é a própria incapacidade de subjetivação de construção desse outro escondido recalcado Se pudéssemos pensar diacronicamente estaría mos numa etapa présimbólica em que se demanda ria a possibilidade de construir uma capacidade de articulação discursiva que contivesse o corpo e seus vínculos de constmir um remendo nessa brecha aber ta na constituição do sujeito OS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO PSICANALÍTICA A histeria e a hipocondria se delimitam respec tivamente ao campo da neurose e da psicose e per tencem a uma área conceitual teoricamente definida pela Psicanálise desde Freud E os fenômenos psicossomáticos Em busca de resposta para tão intrigante ques tão da teoria e prática psicanalítica vejome traçando um caminho e chegando a algumas hipóteses Esse caminho começa com os clássicos trabalhos e pes quisas na chamada Medicina Psicossomática Tomo como exemplo as ideias de Franz Alexander de Chi cago Alexander estudou sete doenças mais tarde universalmente chamadas psicossomáticas em bus ca de correlacionadas a específicas constelações de personalidade as quais diante de certos momentos Psicossomaticaindd 154 Psicossomaticaindd 154 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 155 vitais e aliadas a fatores de natureza constitucional deflagrariam a crise psicossomática Essa corrente se assim posso chamar desemboca numa busca de especificidade psicológica para cada doença psicos somática e submetida a critérios estatísticos aponta mais para uma tendência do que para a configura ção clara e estrutural desta especificidade Ficamos sem uma resposta satisfatória evidenciável à obser vação entre determinadas manifestações corporais nem histéricas nem hipocondríacas e determinados eventos de natureza psicológica Outras pesquisas da década de 1950 simultâneas ao trabalho do grupo de Chicago também buscavam correlacionar alteracões do funcionamento fisiológico corporal com determi nados momentos existenciais como as crises vitais Cito para exemplificar o trabalho de Mirsky e cola boradores 1950 pesquisando o desenvolvimento de úlceras pépticas em recrutas um interessante mo delo duplocego de pesquisa psicossomática Nessa pesquisa por um lado foram realizadas entrevistas psicanalíticas e testes projetivos e por outro dosada determinada enzima sanguínea cuja elevação diz de uma predisposição a doença ulcerosa Ambos busca vam prever que adolescentes desenvolveriam a doen ça quando se tornassem soldados A pesquisa teve um percentual de acerto correlacionado de cerca de 70 Incluo estes trabalhos por fazerem parte de meu acer camento da questão psicossomática o que vejo como importante historicamente para construção de um hi potético sistema de ideias sobre esta questão Sifneos e Nehemiah 1983 na década de 1970 descrevem o conceito alextimia como uma impossibi lidade de nomeação dos próprios sentimentos como uma falha no reconhecimento dos estados afetivos do próprio sujeito e o condiciona a um achado clínico nos pacientes psicossomáticos agora já assim cha madas as pessoas que padecendo de determinados transtornos somáticos não histéricos evidenciam uma demonstrável relação entre esses transtornos e determinados acontecimentos e situações vitais que por seu caráter repetitivo conferem uma característi ca singular aos fenômenos é às pessoas Situação típica seria dada por uma imaginária pessoa que sempre se vê diante de um desafio exis tencial que ameace sua situação de equilíbrio anterior desenvolve uma crise ulcerosa Nesta pessoa como achado clínico descobrese uma enorme dificulda de para falar sobre e para identificar seus próprios sentimentos Esta a descrição de alextimia Outros estudos da mesma época como os de Engel e Medei ros correlacionam a doença somática à situação de perda separação e a estados depressivos Na França a chamada Escola Psicossomática de Paris hoje insti tuto de Psicossomática através de P Marty M de Mú zan e C David introduz o conceito de pensamento operatório encontrado nos pacientes somatizantes Marty 1988 Cito a descrição Os pacientes portadores de doenças somáticas têm uma atividade fantasmática muito reduzida Em particular eles sonham pouco e seus sonhos são realistas eles repetem o que fizeram durante o dia o que se passa na realidade Há muito pouca elaboração psíquica como se o préconsciente funcionasse de modo insuficiente Por consequência eles não têm grande coisa para contar ao analista Eles falam do seu tratamento dão as novidades e é o silêncio Se acontece um lapso ele não é seguido de associações não há afeto nem representações in vestidas fantasmaticamente nem via imaginária Se lhe sobrevém um acidente da existência uma perda qualquer luto licença reage com uma doença somá tica mais ou menos grave Sobressai à primeira vista uma coincidência Um certo número de autores na minha amostra corre lacionam a eclosão psicossomática a acontecimentos reais em geral ou diretamente uma perda como a morte de um ente querido desemprego separação migração ou indiretamente como no caso das crises vitais a adolescência ou o vestibular ou o casamen to por exemplo Também sobressai a descrição de uma peculiar relação com a vida de fantasia e com os estados afetivos Vejome aqui tentado e acho que muitos também se sentirão atraídos a buscar estabe lecer um diagnóstico estrutural do paciente psicosso mático como outra categoria junto aos neuróticos psicóticos e perversos Mas a prática como elemento teste da realidade impede minha tentação de êxito Vemos manifestações psicossomáticas desen volveremse em histéricos obsessivos e psicóticos na clínica diária como vemos sintomas psicossomáticos serem incorporados a cadeias associativas significan tes nos neuróticos ou articularemse a um delírio em psicóticos embora também observamos a existência dos pacientes classicamente somatizantes de P Marty Duas possibilidades ou estamos observando e diag nosticando equivocadamente ou a resposta à ques tão psicossomática ainda não está suficientemente formulada Tendo a crer que ainda temos um cam po aberto à pesquisa e à reflexão com inequívocas consequências para clínica psicanalítica Trabalho com hipóteses e neste trabalho deixo clara a ausência de um pesquisa extensa sistemática aos autores que atual mente têm elaborado a Psicossomática contan do com o estado de meus conhecimentos atuais Falase do afeto no sujeito psicossomático como ou não reconhecido ou praticamente inexistente De que se fala Relembremos Freud 1915 que em seu tex to sobre o Recalcamento e o Inconsciente propõe para o destino do afeto a sua transformação con Psicossomaticaindd 155 Psicossomaticaindd 155 05012010 121208 05012010 121208 156 Mello Filho Burd e cols versão deslocamento e transformação ou a supres são Unterdrückung onde já não encontramos mais nada dele do afeto suprimido Este termo Unter drückung e o que designa o desaparecimento do afeto foi apontado e pouco desenvolvido por Freud e creio ser um conceito central na questão psicosso mática Assim como na neurose o que importa é o destino dado à representação no fenômeno psicos somático o que importa é o destino dado ao afeto Não quero assemelhar a supressão ao recalcamento e supor um retorno do suprimido através do sintoma somático Tratase de algo singular que diz respeito a uma impossibilidade de acercamento a afetos de per da e creio que o conceito supressão deva referirse a esta impossibilidade Não há como recalcar a repre sentação para evitar o afeto pois não está se lidando com representações e sim com acontecimentos reais nos quais está implícita uma perda ou separação E esta a rotura que é temida Não se trata de uma possi bilidade psicótica nem neurótica de arranjo com uma realidade penosa e sim um destino dado ao afeto im possível de ser vivenciado ou transformado Deixarei propositadamente de fora considera ções etiológicas embora creia possam ser buscadas nas relações do sujeito com seu objeto primordial articulados a aspectos corporais tangenciados por Freud quando se refere à Complacência Somática no Caso Dora Temos adiante duas outras questões A primeira diz respeito ao fato de que fenômenos psi cossomáticos são também desencadeados por deter minadas representações e não só por acontecimentos vitais o que aparentemente contradiz o que foi dito até aqui A segunda que as manifestações somáticas atingem os neuróticos psicóticos e perversos portan to convivem com o recalcamento o repúdio e a recu sa Equacionamos a primeira As representações que desencadeiam os fenô menos somáticos não têm uma ligação simbólica com perda ou separação mas uma ligação imaginária ou seja são representações sem a mediação de um discurso Logo adiante vou descrever o caso de Ber nardo em que se evidencia esta relação mas tomo aqui dois pequenos exemplos para ilustrar esta re lação da representação à evocação da perda no fato psicossomático e na histeria Primeiro exemplo um homem começa a sentirse dispneico e tem uma cri se de asma ao ver um casal de namorados brigando Segundo exemplo uma moça tem crise de dispneia e sufocação histérica ao ver o trono de determina do rei em um museu No primeiro exemplo a cena da briga evoca diretamente a questão da separação é a própria imagem da separação daí o desencadea mento da asma No segundo a histérica associando posteriormente viu nas formas femininas dos braços do trono sua relação de submissão com o namorado que era seu rei e a subjugava o que desencadeou a crise de angústia e sufocação O namorado a sufo cava e era preciso fugir desta constatação Vamos à segunda questão que penso só poder ser respondida se pensarmos em termos da clivagem do ego Esta clivagem como descrita por Freud 1938 permite a coexistência no ego de determinadas articulações para a pulsão e suas representações e outros para a possibilidade de perda do objeto Sintetizando teríamos no fenômeno psicosso mático uma situação real de perda ou equivalente ou ainda uma representação imaginariamente presa a uma cena de perda um particular destino dado ao afeto que lhe corresponderia e que é impossível ser vivenciado a supressão e uma clivagem do ego que permitiria a coexistência com outras defesas e estru turas de articulação da pulsão Esta hipótese traz consequências clínicas na me dida em que o que é buscado na análise das manifes tações psicossomáticas ou do sujeito psicossomático não é uma escritura a ser lida nem uma brecha a ser remendada É mais que tudo construção de uma pos sibilidade de vivenciar afetos sem o risco de uma dor impossível a de sua própria destruição como sujeito alienado que está primariamente àquele do qual não pode ser separado BERNARDO E A REPRESENTAÇÃO FOTOGRAFIA Bernardo tem 8 anos e foime derivado por uma pediatra Esteve internado por um mês com diagnóstico endoscópico de úlcera duodenal tendo sido medicado durante sua internação Obtendo alta com remissão sintomática A pediatra notou certas características em sua história pessoal que a fizeram recomendálo ao Serviço de Psicossomática Com a própria pediatra e com os pais de Bernardo colhi a seguinte história Bernardo é o segundo filho tendo uma irmã 2 anos mais velha Seu pai é um pequeno industrial e sua mãe professora Ambos trabalham muito tendo a mãe três empregos portanto estando muito pouco com Bernardo que desde os 3 meses fica com a empregada Bernardo no dia 27 de ou tubro de 1988 amanheceu com fortes dores abdomi nais Levado ao Setor de Emergência foi internado para investigação diagnostica sendo posteriormente transferido para a Pediatria Na conversa com os pais surge uma triste e curiosa história No dia 27 de ou tubro de 1987 ou seja exatamente um ano antes do aparecimento dos sintomas havia acontecido um fato trágico em sua casa A pedido de Bernardo e de sua irmã a empregada havia levado seu filho de 1 ano para que eles o vissem Num determinado momento Psicossomaticaindd 156 Psicossomaticaindd 156 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 157 a criança dormia na cama do quarto de empregada quando uma bicicleta ergométrica despencou de cima de um armário sobre ela ocasionando sua morte Nes te dia Bernardo chorou um pouco mas pareceu ter rapidamente assimilado o ocorrido voltando à sua vida normal sem demonstrar muita emoção Repa raram os pais que apenas uma conduta de Bernardo se incrementou Uma quase compulsiva disposição a brincar e a cuidar de animais abandonados prin cipalmente cachorros Onde Bernardo vai sempre encontra um animal sujo vadio do qual cuida Tive uma entrevista com os pais ficandome a impressão da mãe com uma mulher ansiosa prestes a explodir com muitas dificuldade de administrar seus encargos familiares tendo o trabalho intenso como forma de escape e do pai como um psicossomático distante realista preocupado com os negócios embora tam bém bastante preocupado com Bernardo Em sua hora diagnóstica ofereci material de desenho lápis de cor papel e borracha que Ber nardo pegou fazendo o desenho que está anexo ao texto Tentei que imaginasse algo sobre o desenho mas nada surgiu apenas a descrição realística do que estava desenhado Isto é isto aquilo e aquilo e vai por aí Terminamos a entrevista nesse padrão que de certa forma mantémse até hoje Atualmente compartilhamos certos jogos como o do rabiscoe a forca em que descobrimos palavras um do ou tro e nada de histórias nem de imaginações por en quanto pelo menos apenas palavras O que mostra o desenho senão uma imagem semelhante à cena que ocasionou a morte do filho da empregada A cena traumática é terrível e não pode ser incluída em uma cadeia simbólica Não há sintoma ou sonho ou o trabalho do luto ou assombro pela culpa e sua elaboração Não se monta uma história A cena fica congela da inarticulável e este é o terreno da supressão e da formação da manifestação psicossomática Um ano depois exatamente um ano depois e aqui também a memória serve à repetição imaginária surge a dor abdominal numa época em que a empregada está grávida novamente o que certamente concorre para redespertar a lembrança da cena O desenho funcio na como uma fotografia daquele momento sempre pronta a evocar a emoção que não pode surgir A eco nomia deve ser mantida a todo custo E uma via pre cocemente estabelecida pela não inclusão plena do corpo biológico num sistema de representações signi ficantes surge a via do fenômeno psicossomático A consequência clínica imediata dessa hipótese é a ne cessidade do estudo aprofundado da noção de traba lho elaboração no decorrer do processo psicanalítí co aí penso estar o cerne da questão da construção da capacidade simbólica Mas é um outro trabalho REFERÊNCIAS Goldin M A Piedimonte R C Diálogos sobre psicopatologia I La Histeria Buenos Aires Ediciones Kargieman 1976 Mirsky C col Psychosomatic Classics New York sn 1950 Many P LAgenda de Psychosematique 215216 Paris sn 1988 Freud S Repressão Rio de Janeiro Imago 1915 O inconsciente Rio de Janeiro Imago 1915 A divisão do Ego no processo de defesa Rio de Janeiro Imago 1938 Sifneos P Nehemiah C Alextymia An Overview In Modern trends in psychosomatic medicine Boston Little Brown 1983 Psicossomaticaindd 157 Psicossomaticaindd 157 05012010 121208 05012010 121208 O conceito de Psicossomática termo usado pela primeira vez em 1818 por Helmholtz tem variado em função do referencial teórico de quem o usa Vá rios autores têm feito esforços para levantar um cor po teórico consistente capaz de explicar e de tornar compreensível o fenômeno psicossomático Assim são bastante conhecidas as ideias dos perfis psicos somáticos de F Dumbar os conflitos específicos de F Alexander a nomeação das doenças psicossomáticas a hipótese de se tratar de doentes psicossomáticos de fenômenos psicossomáticos entre os principais Nos últimos anos surgiram os conceitos de alexiti mia e pensamento operatório relativos ao problema desenvolvidos respectivamente pelas escolas ameri cana e francesa Neste capítulo iremos analisar estes conceitos dando ênfase às concepções formuladas por psiquiatras e psicanalistas No acompanhamento de pacientes definidos como psicossomáticos autores franceses e america nos encontraram características comuns e frequentes que apontam para uma forma peculiar de pensamen to e de lidar com as emoções Assim Marty e Mú zan 1983 partindo de estudos sobre a vida oníri ca feitos por Fain e David e os estendendo a seus pacientes encontraram uma forma de pensamento que julgaram original ou quando presente de pou ca significação funcional para o equilíbrio psíquico Ainda que tais características não fossem específicas desses pacientes estes autores postularam a hipótese de uma estrutura psíquica à semelhança das estru turas neurótica psicótica perversa etc Eles chama ram este tipo de estrutura de pensamento operatório Sifneos 1973 assinalou que tais pacientes apresen tavam uma característica que se traduzia na dificul dade de descrever suas emoções e mesmo de senti las Este autor criou o termo alexitimia do grego a sem lexis palavra thumus ânimo ou afetividade Significa pois ausência de palavras para nomear as emoções Os dois termos citados pensamento operatório e alexitimia são hoje largamente empre gados pelos estudiosos do problema Todavia referi dos autores mostram que estas características tam bém são encontradas em outros pacientes mas sua frequência é significativamente maior nos chamados psicossomáticos que demonstram maior vulnerabi lidade psicossomática Os portadores de pensamento operatório têm um mundo interno pobre e investem intensamente na realidade externa da qual passam a ser dependen tes ou hiperadaptados De orientação pragmática são tenazmente aderidas ao circunstancial Quando sofrem problemas existenciais intensificam o inves timento no trabalho para que este ocupe o lugar do objeto interno segurador mãe Kristal 1973 afir ma que a dificuldade do psicossomático de cuidar de si mesmo decorre do fato de quando criança viver como transgressão e sujeito a castigo o ato de inte riorizar o objeto materno com o propósito de adqui rir funções protetoras e tranquilizadoras O uso do trabalho é facilitado porque registram pouco cansaço ou sinais físicos do mesmo As representações ou per cepções carregadas de afetos são afastadas da mente e as tensões físicas não encontram caminho para o psíquico permanecendo no campo físico Neles ocor re também que os resíduos diurnos não se articulam com os traços de memória portanto não se traduzem em elaborações adequadas de sonhos tornando po bre a vida fantasmástica e não podendo ser usados adequadamcnte como cenário da pulsão Segundo Dejours 1988 que defende a ideia de existir um inconsciente primitivo que abriga e se constitui na pulsão da Morte clivado defensivamente do Inconsciente Secundário ou Inconsciente Freudia no onde todo o material recalcado aí está o sonho teria uma função fundamental de recolher e recalcar os impulsos destrutivos violentos originários da refe rida pulsão tornando mais efetivos os mecanismos de fensivos do ego Para esse autor o sonho seria um dos elementos estruturantes do aparelho psíquico função esta importantíssima ao lado da conhecida função que 13 ALEXITIMIA E PENSAMENTO OPERATÓRIO A QUESTÃO DO AFETO NA PSICOSSOMÁTICA Antônio Franco Ribeiro da Silva Geraldo Caldeira Psicossomaticaindd 158 Psicossomaticaindd 158 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 159 lhe atribuiu Freud da realização de desejos incons cientes A presença da pulsão de morte nos fenômenos psicossomáticos é defendida principalmente por Marty 1983 como responsável pelos movimentos de desor ganização psíquica e corporal levando a alterações so máticas fisiológicas patológicas e mesmo mortais Le Shan 1994 em seu longo estudo e acompa nhamento de pacientes com câncer diz Todos os pa cientes de câncer que observei em minha vida mais de 500 pareciam ter mais emoções do que ener gia para expressálas Todos davam a impressão de possuir maior energia emocional do que formas para manifestálas Entretanto isso não acontecia nos in divíduos do grupo controle que não tinham câncer Na verdade entre os pacientes do grupo controle era comum terem mais exigências do que a energia necessária para atendêlas A ausência de formas de expressão para a energia emocional e a incapa cidade para manifestálas afetavam os pacientes de câncer de duas maneiras Primeiro como vimos an teriormente estes indivíduos eram incapazes de dar vazão a seus sentimentos de deixar que os demais soubessem quando estavam magoados zangados ou hostis Ficava claro que os pacientes de câncer nas mais variadas situações sentiam dificuldade para de monstrar raiva ou agressividade em defesa própria Segundo sempre achavam que o outro é que está certo e não protestavam Dr David Kissen citado por Le Shan estudou mais de 300 pacientes com problemas torácicos e ob servou que metade sofria de câncer de pulmão e a outra metade ficou em grupo controle Aqueles que não possuíam canais suficientes para a descarga emo cional eram muito mais predispostos a ter câncer Um estudo posterior mostrou que a taxa de mortalidade para câncer de pulmão em 100000 pessoas por ano era de 270 para os que não possuíam canais suficien tes e apenas em 59 para aqueles que possuíam canais adequados de expressão emocionais Mais interessan te que essa diferença existia independente do núme ro de cigarros consumidos Como foi dito por Marty o pensamento operató rio está ligado ao inconsciente mas se comporta em relação ao mesmo como cego de nascimento isto é num nível tão baixo que não permite uma elaboração integrada da vida pulsional Por outro lado também apresenta características do processo secundário de pensamento mas em sua essência o pensamento operatório traz diferenças significativas como só tra tar o tempo dentro de limites precisos e curtos só se ligar às coisas Nele a palavra serve para descarregar uma tensão mas não consegue mantêla em suspen so para artículála num processo egoico defensivo ou na produção de sonhos ou fantasias Dejours propõe uma leitura do aparelho psíqui co num trabalho intitulado A Terceira Tópica na qual o considera dividido Um Inconsciente Primário sede dos impulsos primitivos pulsão de morte e um Inconsciente Secundário constituído pelo mate rial recalcado Os dois seriam separados por um me canismo de báscula Nos indivíduos em que predomi na o Inconsciente Primário o pensamento é do tipo operatório Esses indivíduos reagem às descompensa ções com um mecanismo de negação ou atuação para fora agressivos paranoicos ou psicóticos ou para o próprio corpo acarretando a formação de fenômenos psicossomáticos Eles atuam no lugar de elaboração dos conflitos em sonhos ou fantasias A dinâmica dos fenômenos da Terceira Tópica encontrase sinteti zada em meu artigo Psicossomática Hoje Às vezes o pensamento operatório lembra o pen samento obsessivo Todavia ao contrário deste o ope ratório mantém a palavra subinvestida que só duplica e reforça a ação dentro de um real muito próximo A dúvida que é clássica no obsessivo praticamente está ausente e enfim o obsessivo usa da palavra para ma nipular o pensamento ocupar o lugar das emoções e o mantém rico em magias e simbolismo Estes pacientes não estabelecem uma relação afetiva com o outro o qual é visto contendo também características operatórias de pensamento André Green citado por Marty 1983 chama a esta relação de relação branca ou de pacientes isto é tudo Es tão presentes um frente ao outro mas vazios Veem no médico uma figura que vai lhes resolver os pro blemas articulandoos com o real de forma concreta como se fosse um operador Para exemplificar citamos o caso de um homem de 45 anos casado pai de quatro filhos criado den tro de uma famfiia tradicional e muito rígida Era fi lho de um professor catedrático muito conceituado em sua área mas o paciente que posteriormente revelou ter sérias dificuldades com o pai não conse guiu estudar Por influência do pai conseguiu um em prego de vendedor de uma grande firma porém dois anos após a morte do pai foi despedido do emprego Logo em seguida passou a apresentar transtornos que foram diagnosticados como labirintite Procurou psi coterapia praticamente um ano depois do início das crises e no momento em que havia conseguido um novo emprego bem inferior ao primeiro A psicotera pia foi indicada pela ineficácia do tratamento clínico A entrevista inicial transcorria de maneira vazia e na ausência de dados sobre a história pessoal tentouse estabelecer alguma relação das crises com algum fa tor desencadeante O médico Então descreva para mim sua última crise Psicossomaticaindd 159 Psicossomaticaindd 159 05012010 121208 05012010 121208 160 Mello Filho Burd e cols O paciente A crise foi no dia tal Em seguida ele descreve pela terceira vez o seu malestar após a me dicação que recebeu no dia O médico insistindo sobre a pergunta Eu quero que você me diga tudo o que aconteceu antes da crise O paciente Eu já lhe disse Senti uma tontura tudo rodou e eu bati o carro O médico Você estava só no carro O paciente Não estava eu e a secretária da firma O medico Mas então e daí O paciente E daí que eu estou com este galo na testa até hoje Dormi não sei quantas horas depois daquela injeção Até hoje estou meio tonto O médico Mas e a secretária Vocês discutiram O paciente Não ela é legal O médico Você estava conversando com ela O paciente Estava O médico já desistindo Então não aconteceu nada de especial né O paciente Absolutamente Não aconteceu nada Nós estavamos na Av Amazonas Estávamos conver sando Então eu olhei e vi as pernas dela Coloquei a mão direita nas coxas dela Aí tudo rodou e eu bati o carro Não aconteceu mais nada Mc Dougall 1986 os chama de normopatas ou pacientes que usam de uma pseudonormalidade como forma de viver Para esta autora eles são de safetados A relação interpessoal acaba tornandose operatória pragmática Sifneos 1974 diz que não há negação das emoções mas ausência de sentimen to Marty e Múzan citam o caso de um paciente em terapia que ao perder o pai vem à sessão e pergun ta O que devo sentir nesta hora Este exemplo é muito semelhante ao de uma cliente nossa tipo ope ratória que ao receber a notícia telefônica de que seu filho menor havia sido salvo de um afogamento não acreditando que ele estivesse vivo desliga o telefone e pensa Vou ver agora o que vou ter de sentir Angélica Lie Takushi e Avelino Luiz Rodrigues apresentaram no VI Congresso SulMineiro de Psi cossomática um trabalho científico Divã de Procus to reflexões a partir de estudos de caso elabora do no Laboratório Sujeito e Corpo do Instituto de Psicologia da USP no qual estudaram casos clínicos aparentemente como pacientes alexitímicos e opera tórios e que foram submetidos ao Teste de Percep ção Temática TAT e de Rorschach Tais pacientes demonstraram ter boa capacidade de sentir falar e expressar emoções ao longo do tratamento Os refe ridos autores chamam a atenção para o risco de se rotular pacientes de operatórios e de alexitímicos como muitos fazem acomodandose nesta posição As conclusões deste trabalho foram DISCUSSÃO É possível que muitas vezes o paciente com ma nifestações somáticas apresentese nos primeiros en contros com o médico terapeuta entrevistador com uma postura que sugere características alexitímicas e pensamento operatório seja por aguardar as per guntas para poder dizer algo seja na economia das palavras procurando falar algo mais relacionado à doença julgando talvez que é isso que o outro quer ouvir Isso foi verbalizado pela paciente A que no iní cio tinha essa postura diante da terapeuta Ela disse posteriormente que falava pouco porque não queria que a terapeuta a achasse chata e que tinha vergonha de falar sobre seus sentimentos e pensamentos por medo de que a terapeuta achasse tudo aquilo uma bobagem A partir do momento em que uma relação de confiança foi estabelecida a paciente pôde trazer esses conteúdos que eram guardados até então e contar que eles sempre estiveram presentes em suas fantasias e imaginações apenas aguardando o mo mento de serem colocados para fora Nemiah Freyberger e Sifneos 1976 atentam para o cuidado que se deve ter para não fazer cor relações diretas entre características alexitímicas e psicossomáticas uma vez que pessoas com manifes tações somáticas podem ser encontradas sem as ca racterísticas alexitímicas assim como inúmeras pes soas com características alexitímicas são vistas sem indícios de manifestações somáticas Da mesma forma Marty 1993 afirma que o pensamento operatório e a própria noção de ope ratório serviram de ponto de partida a numerosas pesquisas e ultrapassaram amplamente o campo da psicossomática não sendo características exclusi vas de pacientes somatizantes Outros autores tam bém afirmam a existência dessas características em pacientes sem manifestações somáticas e viceversa Santos Filho 1992 Silva e Caldeira 1992 Assim o que gostaríamos de enfatizar através deste trabalho é que se utilizamos indiscriminada mente alguns conceitos como uma cama de Procusto corremos o risco de mutilar o que emerge da singula ridade de cada paciente e comprometer dessa forma a compreensão deste indivíduo assim como o proces so analítico Esses pacientes levam o médico a uma escuta operatória ou como afirma Chevnik 1983 a tentar interpretar os padecimentos orgânicos que são apre sentados como se fossem simbólicos transformando se numa máquina de interpretar O terapeuta passa a assegurar ao paciente que sua mente não está vazia procura dar sentido aos seus padecimentos mas isso faz com que o espaço psíquico do paciente fique no Psicossomaticaindd 160 Psicossomaticaindd 160 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 161 espaço psíquico do analista Como consequência os psicossomáticos acabam ficando com um pobre ou nenhum domínio sobre a angústia Outra caracterís tica interessante nestes atendimentos é a sensação de inércia nas consultas bem como outras manifesta ções contratransferenciais como as assinaladas por Nemiah 1975 sentimento de paralisação interior frustração aborrecimento e tédio O médico acaba se sentindo alexitímico Kristal 1973 aponta que outra característica desses pacientes é a dificuldade de viver as emoções prazerosas o que chamou de anedonia Assinala que infans do latim significa que não pode falar ain da A mãe é que tem de nomear os afetos do filho no início O adulto alexitímico funciona como se fos se esta criança não verbal no que se relaciona com seus afetos Observouse em muitas situações que os pais criticam ou deixam dúvida quanto ao afeto da criança às vezes lhe indicam o que deve ou não deve sentir ou mesmo a proíbem de sentir tipo menino homem não chora A criança acaba se confundindo e não sabe o que pode ou não pode sentir Essa dificuldade em clarear os afetos Freud já havia assinalado nos primitivos que não sabiam dis criminar entre amor e ódio e só sentiam um impacto emocional O infans também é assim necessitando do intercâmbio com a mãe para perceber o que é hos til e o que é carinhoso Lacan 1978 ao introduzir o conceito de dis curso que se situa entre a língua e a fala língua social discurso fala individual centra sua importância na interrelação das duas e conclui que a palavra não vem nomear os sentidos preexistentes mas produzilos discriminadamente Em seus estudos mostra que o sujeito não tem os significados em sua mente O sentido só surge através da palavra que vai expressálo Todavia a palavra só tem uso possível se segue leis preestabe lecidas ou seja um código Em Lacan este código só existe em função de mensagens que por sua vez não existem sem códigos Há uma relação entre o vetor língua que é o significante e o vetor sujeito o que fala O código está relacionado com os significantes coletivos os quais são passados à criança pela mãe em suas solicitações dando um sentido para as suas necessidades e a forma como resolvêlas Nos operatórios ou alexitímicos pensase que a família também seria alexitímica McDougall 1986 cita um cliente que diz na minha família estava proibido estar triste enfadado ou necessitando de qualquer coisa Sigo sentindome confuso quando você me pergunta o que é que estou sentindo como se fosse uma ninharia ter sentimentos Muitas ve zes a mãe usa o corpo do filho como prolongamento do seu e no qual investe preenchimentos narcísicos e libidinais O resultado é o individuo sentir o seu cor po como se fosse estranho ou como afirma Kristal o corpo fica controlado de forma autônoma ou segun do McDougall o corpo é sentido como pertencente ao mundo externo pertencente à mãe Ficam muito vulneráveis às situações de perda tais como morte dos pais nascimento de um filho perda do objeto amado e outras situações de feridas narcísicas Segundo Guir 1983 no entanto a segunda vivência de perda é que desencadeia o fenômeno psi cossomático Ele descreve o fenômeno como tendo três etapas a separação brutal de um ente querido morte des mame hospitalização etc b separação se repete na realidade ou um conjun to de significantes particulares relembram o su jeito c antes de um ano a lesão aparece Há uma dificuldade de vivência do luto McDou gall 1983 após acompanhar sete pacientes com tu berculose pulmonar diz por não terem sido capazes de abrir seu coração para o luto abriram o pulmão para o bacilo de Koch Sintetizando podese citar Valabrega 1973 que assim define as características alexitimicas e operatórias uma defesa arcaica operando em es truturas psíquicas marcadas por uma carência ca rência mental como um déficit em relação a alguma dimensão do psiquismo Essas carências podem se dar no plano a das relações objetais que se traduz clinicamente pela inexistência ou pobreza das relações transfe renciais relação branca b da significação da sintomatologia o sintoma tende ao vazio destituído de sentido c da fantasmatização pobre ou ineficiente d do pensamento meramente operatório sem or ganização simbólica Sifneos 1973 tenta mostrar que a expressão clínica dessas carências está presente nos pacientes psicossomáticos que pode ser percebida através de um questionário que o médico faz para si mesmo e cujas respostas a perguntaschave são bastante signi ficativas Quanto à descrição destas características os au tores estão de acordo As divergências existem quan to a ser ou não uma estrutura psíquica específica Psicossomaticaindd 161 Psicossomaticaindd 161 05012010 121208 05012010 121208 162 Mello Filho Burd e cols quanto a ser uma defesa no sentido psicanalítico do termo e quanto às causas e aos fatores que levam ao seu surgimento Achamos oportuno trazer algumas ideias a respeito destas questões Kreisler 1981 diz não creio na existência de uma clínica psicossomática que não utilize os nossos conhecimentos sobre a fisiologia dos fatores libidi nais e agressivos e a história de seus avatares gené ticos normais e patológicos Enfatiza a necessidade de conhecer os processos de formação das estrutu ras psíquicas Sabese classicamente da importância da angústia nessas formações de sua origem e dos mecanismos para lidar com ela Dejours 1988 fez um interessante estudo da angústia e a subdivide em duas categorias a angústia somática que não se acompanha de afe to correspondente e não tem representação psí quica seria próprio de psicossomáticos e se asse melha à angústia das Neuroses Atuais de Freud b angústia psiquica que se acompanha de afetos e é por sua vez subdividida em com representação psíquica e não simboliza da nas psicoses com representação psíquica e simbolizada nas neuroses A angústia somática seria fundamentalmente uma tensão física registrada no corpo e característi ca do que o autor chama de Psicossomatose O mes mo autor traz estudos de Neurobiologia e suas ideias sobre neurorreguladores assinalando a presença de sistemas reguladores tais como dopaminérgico se rotoninérgico gabaérgico etc que atuando em ex cesso ou em deficiência favoreceriam o surgimento ora de um ora de outro tipo de angústia conforme referido anteriormente inclusive nas psicossomato ses Uma afirmação frequente conforme dissemos nesses fenômenos psicossomáticos é de que não há representação psíquica Essas questões da angústia somática sem repre sentação psíquica e a ausência de sentido já haviam sido tratadas por Freud 1985 nas chamadas Neuro ses Atuais nas quais incluía manifestações somáticas não conseguindo fazer nelas uma leitura psicanalítica Para ele tratarseia de uma tensão física de origem sexual que não podia ser transformada em afeto por elaboração psíquica Não significa pura e simplesmente uma descarga dessa tensão no corpo mas a impossibilidade total ou parcial de sua elabo ração e transformação em afeto isto é da realização de um trabalho psíquico Esse conceito de uma des carga puramente física da tensão sexual produzindo angústia se generalizou a partir do seu artigo Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma síndro me intitulada Neurose de Angústia de 1895 Havia ainda o fato extremamente importante de que não se podia rastrear nenhuma origem psíquica da ansie dade que subjaz aos sintomas clínicos Para ele o fa tor atual dessas neuroses era mesmo sexual Em sua Conferência de no 24 falando das neuroses atuais e psiconeuroses diz em ambos os casos os sintomas se originam da libido e consituem portanto empre gos anormais da mesma são satisfações substituti vas Mas os sintomas das neuroses atuais pressão intracraniana sensação de dor estado de irritação em um órgão enfraquecimento ou inibição de uma função não tem nenhum sentido nenhuma signi ficação psíquica Não só se manifestam predominan temente no corpo como por exemplo os sintomas histéricos entre outros como também constituem eles próprios processos inteiramente somáticos em cuja origem estão ausentes todos os complicados me canismos mentais que já conhecemos Mas quando Freud diz que os sintomas das neuroses atuais não tem nenhum sentido nenhum significado psíquico o que ele quer dizer com isso Pensamos que ele está realmente dizendo e que o sintoma ocorre sem nenhum propósito aparente que não se sabe de início qual é sua intenção É o próprio Freud quem dá esta explicação ao abordar as parapraxias Vejamos o que ele diz vamos mais uma vez chegar a um acordo sobre o que se deve entender por sentido do processo psíquico Queremos dizer tão somente a intenção à qual serve a sua posição em uma continuidade psíquica Na maioria de nossas investigações podemos substituir sentido por in tenção ou propósito Portanto nenhum sentido ou nenhum significado psíquico não quer dizer que não tenha nenhum ato psíquico Quer dizer isto sim que o propósito a intenção não é traduzida Acreditamos que nenhum sentido hoje talvez seja melhor expresso como foradesignificado Da nossa parte pensamos que o fator atual é importante não apenas como elemento desencadean te mas também como fator específico Ele é atual por ser do momento mas também é atual por atualizar por ser capaz de atualizar ressignificando uma repre sentação que se encontrava congelada isolada ou ilhada O que é incompreensível é que esta ressignifi cação não passa pelos mecanismos psíquicos comuns às psiconeuroses o que torna o fenômeno ainda mais incompreensível Por outro lado o próprio sujeito ig nora as causas que podem produzir eou desencadear as manifestações desse fenômeno Este fator atual pode tanto ser um fato concreto como pode ser sim plesmente um olhar Tanto pode ser uma coisa banal do dia a dia do sujeito como pode ser uma vivência fora do habitual De qualquer maneira o efeito do Psicossomaticaindd 162 Psicossomaticaindd 162 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 163 fenômeno será imprevisível podendo ou não ter con sequência dramática Compreendese que esta afirmação da falta de sentido dos sintomas nas Neuroses Atuais cuja an gústia somática é retomada pelos estudiosos de Psi cossomática tem influência na ideia de uma ausên cia de simbolização ou pior como sendo o resultado de uma ausência total de trabalho psíquico nestes casos A negação até mesmo da existência de uma representação psíquica no fenômeno psicossomático se isso fosse possível excluiria toda e qualquer parti cipação psíquica Esta hipótese nem em Freud existia sendo sua opinião de que essas Neuroses Atuais só ocasionalmente se apresentam de forma pura mais frequentemente estão mescladas umas às outras e mesmo às psiconeuroses Cremos que em parte este malentendido ocorre por se considerar que a elabo ração psíquica se limita aos mecanismos de desloca mento condensação e recalque A clínica revela que o portador desses fenômenos corporais quase sempre apresenta uma notável pobreza da vida fantasmática o que parece confirmar a hipótese de ser o fenômeno psicossomático em si produzido com pouco trabalho psíquico Contudo esta reduzida capacidade fantas magórica ou o baixo nível de trabalho psíquico não representam jamais ausência de simbolização Esta mos plenamente de acordo com Laplanche 1980 quando ele afirma não se deve ser seduzido ape sar de tudo pela hipótese de que existiriam afecções sem simbolização Excluir do determinismo simbólico seus dois extremos por um lado o conflito como se ele fosse doravante real e nada pudesse ser feito por outro lado o sintoma como se estivesse inscrito no corpo e como se bastasse por exemplo operálo não é apenas formular certa teoria é entrar em certa teoria e em certo jogo do próprio paciente e de sua negação Os trabalhos mais recentes de Sifneos e Nehe miah e Sifneos 1974 levantaram a hipótese de que esses pacientes teriam uma predisposição biológica em dois níveis a centralneurológica seria um defeito neurofísico ou neuroquímico no sistema límbico gerador das emoções b periféricovisceral seriam alterações hormonais ou funcionais sem as quais estes estados psicos somáticos não apareceriam Para McDougall nas psicossomatoses há uma estrutura semelhante à estrutura psicótica só que nesta o pensamento é delirante e naquela o corpo é que delira O sintoma é desprovido de sentido quer no campo biológico quer no campo psíquico Rea firma que sem afeto não se liga psique e soma Os lacanianos dizem que no fenômeno psicossomático o sintoma não é para ser lido Dentre estes Quinet 1988 diz que o corpo é comprometido mas não o corpo fantasmático e que os fenômenos psicossomá ticos não são mesmo sintomas no sentido psicana litico do termo Valas 1988 pensa que não há um sujeito psicossomático e que qualquer pessoa pode ter fenômenos psicossomáticos enfatizando que o fenômeno psicossomático é induzido pelo signifi cante mas não estruturado como sintoma Voltan do a Kristal 1973 este autor fez estudos em toxi cômanos vítimas de holocausto e psicossomáticos concluindo que o que ocorre é um bloqueio no desen volvimento dos afetos em consequência de situações traumáticas infantis excesso de afetos não neutrali zados ou amortecidos pela ajuda materna levando a uma paralisação do desenvolvimento afetivo normal Sabese que neste desenvolvimento deve ocorrer uma diferenciação eunão eu uma verbalização e uma dessomatização Em circunstâncias traumáticas aqui consideradas fundamentalmente as distorções da re lação mãefilho haveria uma interrupção nessa evo lução ficando o individuo a meio do caminho de sua elaboração afetiva e sob posterior situação traumáti ca sobrecarga de afetos haverá regressão às fases de não diferenciação não verbalização e ressomati zação McDougall diz que o afeto suprimido não recebe compensação não deixando atrás de si na mente mais que um branco e corre o risco de seguir seu curso como um feito puramente somático abrin do caminho para a desorganização psicossomática Essa autora no mesmo estudo afirma que este meca nismo é defensivo contra o surgimento de ansiedades psicóticas ligadas ao perigo de perda de identidade perda de limites do corpo fragmentação erupção de afetos sem controle explosão afetiva Ela não contesta as ideias de Sifneos e Nehe miah mas dá ênfase às vivências emocionais primá rias surgidas na relação mãefilho nas relações ob jetais primitivas É a ideia semelhante à de Kristal como vimos diferente apenas quando ela coloca o fenômeno como defesa o que não pensa este autor que fala em paralisação afetiva Em se falando de relação objetal primitiva tornase imperioso citar os trabalhos de Spitz 1983 e seus estudos sobre o pri meiro ano de vida São trabalhos clássicos nos quais se mostra que as alterações ou melhor as distorções nessas relações trazem consequências funcionais e ou consequências psicopatológicas decorrentes destas situações inadequadas seja por excesso seja por pri vação afetiva marcando o início de muitos fenôme nos psicossomáticos posteriores Winnicott 1978 ao descrever o conceito de objeto transacional e es tudar largamente a relação mãefilho marcou um momento importante do trabalho psíquico Contudo Psicossomaticaindd 163 Psicossomaticaindd 163 05012010 121208 05012010 121208 164 Mello Filho Burd e cols não nos é possível em apenas um capítulo entrar em detalhes sobre suas ideias e de todos os autores que estudaram este assunto Assim utilizaremos o qua dro sinóptico idealizado por Bekei 1982 que nos parece muito ilustrativo Todos os autores citados por ela são unânimes em assinalar a importância da relação mãefilho e suas distorções entre estas as mães excessivamente possessivas preocupadas mais com o corpo do filho e aquelas mais distantes ou ausentes no concreto como situa ções de morte ou hospitalização ou em decorrên cia de vivências depressivas prolongadas ou psicoses A ausência de uma mãe suficientemente boa no sen tido de Winnicott não permite a internalização de um objeto interno vivo o qual é procurado no extemo ca racterística clássica do pensamento operatório confor me já assinalado no início deste capítulo Finalizando vêse tanto pelo quadro de Bekei como pela elaboração que desenvolvemos neste ca pítulo que as vivências iniciais da vida são de funda mental importância no aparecimento dos fenômenos psicossomáticos e da forma operatória de pensamen to Aliás este período da vida é fundamental não ape nas para a Psicossomática mas também para outras questões da vida psíquica especialmente as psicoses O Prof Samuel Hulak em comunicação pessoal propõe num trabalho Alexitimia e pseudoalexiti mias a ser brevemente publicado no seu novo livro em publicação próxima uma classificação das soma tizações Nesta classificação ele expõe Psicossomaticaindd 164 Psicossomaticaindd 164 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 165 1 Somatizações Reativas reações neurovegetativas normais próprias de todos seres vivos 2 Somatizações Supressivas Repressivas e Regres sivas somatizações como sintoma como meca nismos adaptativos 3 Somatizações expressivas nas quais se situam os somatizadores estruturais os mais característicos pacientes da medicina psicossomática os alexití micos Samuel aborda adequadamente as característi cas de cada uma e propõe um modelo de anamnese psicossomática que se caracteriza por um questioná rio do qual retiramos algumas perguntas mais de monstrativas da alexitimia Tem sintomas que não são compreendidos pelos médicos É capaz de expressar sentimentos com fidelida de Sonha muito Pouco Não sabe Prefere analisar problemas a descrevêlos Tem sentimentos que não consegue identificar Viver emoções é essencial As pessoas costumam lhe dizer que deveria ex pressar seus sentimentos Tem dificuldade de expressar o que sente pelas pessoas Tem dificuldade de reconhecer o que os outros sentem Fica facilmente emotivo quando presencia fatos tristes Consegue distinguir quando está triste Assusta do Entediado Com raiva Costuma descontar no corpo quando se estres sa Frequenta muito como paciente consultórios ou serviços médicos Como se sente quando fica só ou inativo por mui to tempo Confundese entre o que pensa e o que sente Descreva as doenças mais frequentes que tem so frido Sua sociabilidade é Sua vida afetiva é Caso clínico Uma senhora 44 anos casada queixavase de cefaleia crônica Já havia feito todos os procedimentos neurológicos e clínicos para detectar a causa sem nada de anormal ser en contrado fisicamente Foime encaminhada por saber que eu era um médico muito bom Ao lhe perguntar desde quando tem esta dor de cabeça Respondeu desde o dia em que meus pais que vinham me visitar a convite meu para passarmos juntos o meu aniversário morreram num acidente automobilístico Relatou o acontecimento cheio de lances dramáticos quando ela foi pela estrada afora para procurálos e até encontrar o carro todo destroçado com os pais ainda dentro sem demonstrar nenhuma emoção ou tristeza Ela morava em Brasília e eles vinham de Goiás Ao tentar ligar a cefaleia com o trauma eou culpa que ela sentiria por têlos convidado a vir de carro ela negou vee mentemente tal possibilidade Ficou decepcionada com o caminho que eu queria levála a percorrer Se o Sr é bom médico o Sr tem que encontrar a causa dentro da ciência médica e não na minha vida pessoal que está boa exceção para a dor de cabeça Mandoume um recado tempos depois e pela mesma pessoa que a havia encaminhado que tinham descoberto a causa da cefaleia era distúrbio vagosimpático Caso clínico Uma senhora adulta jovem do lar casada e com dois filhos procurandome por ser portadora de queixas várias e vagas sem causas orgânicas detectadas Sempre falante de coisas banais e negando problemas afetivos ao longo da vida Dizia não sei por que tenho tanta queixa se a minha vida está muito boa e tenho tudo para ser feliz Certo dia ela recebe um telefonema do interior do Es tado próximo à cidade de nascimento onde moravam de mais familiares que o seu filho de 3 anos estava passando de canoa num dos grandes lagos próximos acompanhando o seu futuro cunhado que casaria com sua irmã mais nova Este teria morrido no acidente e o filho não Ela diz se o meu cunhado que sabia nadar morreu é claro que o meu filho que não sabe deve ter morrido também Ela desliga o telefonema e diz vou ver agora o que eu tenho que sen tir Quando me relata em verdade por milagre que o filho escapou e o cunhado lutando para que ele não se afogasse cansou e se afundou tão logo alguém segurou o filho não expressou pezar pelo acontecimento nenhuma emoção perceptível REFERÊNCIAS Bekei M Transtorno del desarrollo temprano como condicionan te de la enfermedad psicossomática Revista de Psicanálisis Aso ciación Psicanalítica Argentina Buenos Aires v 39 1982 CaldeiraG Psicossomática Hoje Revista da Associação Brasileira de Psicossomática Vol7 nº12 Janeiro a Junho 2003 Chevinik M Aspectos narcisistas en el paciente psicosomático en la cura psicanalítica Revista de Psicanálisis Asociación Psicoana lítica Argentina Buenos Aires v 40 1983 Dejours C O Corpo entre a Biologia e a Psicanálise Porto Alegre Artmed 1988 Freud S Rascunho E Como se origina a ansiedade In Corres pondência Completa FreudFliess Rio de Janeiro Imago 1985 Psicossomaticaindd 165 Psicossomaticaindd 165 05012010 121208 05012010 121208 166 Mello Filho Burd e cols Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma sín drome particular intitulada neurose de Angústia Edição Standart Brasileira v3 Rio de Janeiro lmago 1969 Parapraxias 1a e 3a Conferência lntrodutória à Psicanálise Edição Standart Brasileira v15 Rio de Janeiro Imago 1969 O Estado Neurótico Comum Conferência No 24 Edição Standart Brasileira v16 Rio de Janeiro Imago 1969 Guir J A Psicossomática na Clínica Lacaniana São Paulo Jorge Zahar 1983 Kreisler L Cols A criança e seu corpo Psicossomática da primeira infância São Paulo Jorge Zahar 1981 Kristal H Aspects of deffect theory Bulletin of the Menninger Cli nic v41 n1 1973 Lacan J Os escritos A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud São Paulo Perspectiva 1978 Laplanche Problemáticas I a angústia São Paulo Martins Fontes 1980 Le Shan L Brigando Pela Vida Aspectos emocionais do câncer 2ª edição Ed Summus Editorial SP 1994 Marty P Los movimientos individuales de vida y de muerte Barce lona Toray 1965 Marty P Múzan M El pensamiento operatorio Revista de Psica nálisis Asociación Psicoanalítica Argentina Buenos Aires v40 1983 Mc Dougall J Em defesa de uma certa anormalidade Artmed 1983 Theatres of the mind Ilusion and truth on psychonalytic stage London FAB 1986 Nehemiah JC Denial revisited reflexion on psychosomatics theo ry Psychotherapy and Psychosomatics v 126 nî 3 1975 Sifneos PE The prevalence of alexrhymic characteristics in psychosomatics patients Psychotherapy and Psychosomatics v 22 1973 A reconsideration of psychosomatic mechanism in psychosomatic syntom formation in view of recent clinicai obser vation Psychotherapy and Psychosomatics v24 n 23 1974 Spitz RA O primeiro ano de vida São Paulo Martins Fontes 1983 Valabrega JI Problèmes de la Théorie Psychossomatique In Encyclopedie Médico Cirurgicale Psychiatrique Paris 1973 Valas P Setor de Estudo de Psicanálise Analytica no 48 Winni cott Da Pediatria à Psicanálise Rio de Janeiro Francisco Alves 1978 Psicossomaticaindd 166 Psicossomaticaindd 166 05012010 121208 05012010 121208 Ainda no segundo século depois de Cristo Ga leno um dos pais da nossa Medicina observou que mulheres melancólicas pareciam ser mais susceptí veis a desenvolver um câncer do que aquelas que ele chamava de sanguíneas Do mesmo modo através de suas experiências práticas clínicos de todos os tempos aprenderam sobre a importância do estado emocional dos seus pacientes na evolução de doenças infecciosas e neoplásicas Salk citado por Friedman Friedman 1972 fez um paralelo entre as células do Sistema Nervoso e as do Sistema Imune são dotadas de memória e têm função defensiva contribuindo para a homeostasia e o autorreconhecimento porém quando funcionam adaptativamente mal costumam provocar enfermi dades Foram os trabalhos de Korneva Korneva 1972 e Stein Stein 1969 sobretudo que demonstraram que a intermediação desses sistemas se faz através do hipotálamo possibilitando estudar a partir daí a integração dos três sistemas nervoso endócrino e imunológico constituindose naquilo que costuma mos chamar de tripé homeostático Mello Filho Mello Filho 1976 Trabalhos de Friedman Glasgow e Ader Fried man 1961 principalmente deram uma base experi mental para se compreender as complexas interações entre estresse e ambiente com base em infecções e neoplasias produzidas em animais de laboratório Em 1975 Amkraut e Solomon Amkraut So lomon1975 sintetizando uma série de trabalhos e conclusões deste último publicaram uma monografia que se tornou clássica na qual após estudar as três fases da resposta imune alça aferente central e efe rente relacionam as doenças bacterianas o câncer as doenças alérgicas e autoimunes e as disfunções do sistema imune como induzidas pelo estresse e me diadas pelo sistema endócrino Esta foi a revisão que possibilitou inclusive que se cunhasse a expressão Psicoimunologia ou mais modernamente Psiconeu roimunologia para designar este novo campo de co nhecimentos Desde então outras revisões apareceram sobre o tema Rogers Rogers 1979 Ader Ader 1975 Ader 1981 Schindler Schindler 1985 Em nosso meio o tema tem sido estudado por Mello Filho e Moreira dentre outros Para fins didáticos faremos uma apresentação do sistema imunológico estudaremos as relações entre o estresse e este sistema e finalmente estudaremos as repercussões clínicas destes fenômenos nas doenças alérgicas infecciosas neoplásicas e autoimunes O SISTEMA IMUNE COMO UM SISTEMA DA VIDA DE RELAÇÃO Dificuldades do organismo em lidar com agen tes infecciosos têm sido historicamente associadas a distúrbios no funcionamento do Sistema Imune SI A pandemia causada pelo vírus da imunodeficiência humana HIV parece ilustrar com riqueza de detalhes esse entendimento pois este retrovírus tem como alvo principal um dos componentes centrais do SI o linfóci to T auxiliar helper CD4 Como consequência obser vase na AIDS um trágico leque de infecções causadas por germes oportunistas complicações não usuais de infecções invasões infecciosas amplamente destrutivas e infecções com baixa resposta à terapêutica além de inúmeras outras alterações somente explicáveis pela falência de um sistema de defesa do organismo A concepção do SI como um sistema de defesa apenas voltado contra agentes externos foi preva lente durante muitos anos no estudo da Imunologia Essa concepção foi no entanto contestada através de vários experimentos que detectaram a presença de anticorpos em animais criados na ausência de estí mulos infecciosos germfree Por outros meios esses anticorpos também foram demonstrados no homem Deduzse como consequência da existência desses 14 PSICOIMUNOLOGIA HOJE Julio de Mello Filho Mauro Diniz Moreira Psicossomaticaindd 167 Psicossomaticaindd 167 05012010 121208 05012010 121208 168 Mello Filho Burd e cols autoanticorpos naturais AAN a presença de uma autorreatividade no organismo humano independen te de estímulo externo Coutinho 1995 Estes AAN são formados como resposta fisioló gica a constituintes do próprio self Fazem parte do repertório imune individual juntamente com os anti corpos que surgem como resposta a estímulos infec ciosos Ao contrário destes os AAN aumentam sua di versidade durante a infância independentemente de exposição infecciosa e se mantêm com poucas altera ções durante a vida adulta e o envelhecimento Não se conhece a extensão de seu papel mas acreditase que constituam um dos lastros de um sistema de re gulação orgânica Seus distúrbios quando não com pensados eficientemente pelo organismo poderiam gerar doenças autoimunes Coutinho Kazatchkine 1995 Ferreira 1997 Stahl 2000 A tarefa de se estabelecer o correto papel fisio lógico e fisiopatológico destes AAN tem se constituí do em um grande desafio para os imunologistas O grupo de Niels Jerne Jerne 1974 autor que mais tarde receberia um prêmio Nobel por tais estudos elaborou um modelo conceitual desenvolvendo o que foi chamado de teoria da rede Para esse autor uma primeira geração de anticorpos formada a partir da reação ao estímulo perturbador do equilíbrio portar seia também como um estímulo perturbador levan do à formação de uma segunda leva de anticorpos antiidiotipos o que foi demonstrado em animais de experimentação Seguirseiam por consequência novas ondas de anticorpos contra anticorpos Como esses eventos deveriam obrigatoriamente apresentar um término o autor sugeriu que tais antianticorpos se disporiam sob a forma de uma rede levando a um sistema em equilíbrio dinâmico permanente que se rearranjaria à medida que captasse perturbações Fi gura 131 O estímulo inicial ou antígeno agente dotado da propriedade de induzir a formação de anticorpos seria definido neste modelo como o elemento exter no ou interno perturbador do equilíbrio O sistema ao reagir ao estímulo pela ação de seus diversos com ponentes e produtos tenderia a recuperar o equilí brio eliminando o agente perturbador ou adaptando se a ele Vaz 1978 Atualmente compreendese o SI como um siste ma mediador das relações do indivíduo com agentes do meio externo bactérias vírus e outros por meio de resposta imunológica clonal de células e anticor pos ver adiante e com agentes do meio interno não cognitivos por meio da autorreatividade interna Coutinho 1995 O SI se envolveria desse modo na manutenção da tolerância aos componentes internos self e atuaria como um sistema autorregulável ope rando em íntima associação com os outros sistemas de cognição interna o Sistema Nervoso e o Sistema Endócrino Considerandose os estímulos perturba dores do equilíbrio orgânico como físicos químicos biológicos e psicossociais a ciência que estudaria as diversas interações entre o estimulo psicossocial per turbador e as consequentes reações seria a Psiconeu roimunologia A ORGANIZAÇÃO ANATOMOFUNCIONAL DO SISTEMA IMUNE As três linhas de defesa do organismo As defesas naturais Para que um agente patogênico possa multipli carse no organismo é necessário que vença obstá culos diversos representados inicialmente por um conjunto de meios físicos químicos e biológicos Estes meios constituem as defesas naturais como a integridade mecânica da pele e das mucosas as se creções e o muco que banha as superfícies mucosas Diversas substâncias bactericidas naturais com poten cial para inibir o crescimento dos microorganismos encontramse dissolvidas nos tecidos exercendo essa função O papel relevante desta primeira linha de defesa pode ser convenientemente apreciado pe las graves infecções surgidas nos grandes queimados em virtude do extenso dano à barreira cutânea Essa primeira linha de defesa age em vários aspectos de forma integrada a uma resposta imune dita natural ou inata envolvendo elementos celulares e substân cias solúveis FIGURA 141 Diagrama que ilustra o modelo conceitual da teoria da rede Vaz 1983 Antígeno Antígeno Psicossomaticaindd 168 Psicossomaticaindd 168 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 169 O sistema imune inato A essa resposta imune presente no indivíduo desde antes de seu nascimento concedese atualmen te um papel preponderante na função imune Esta segunda linha de defesa contra as infecções é ativada pela penetração de patógenos dotados de proprieda des proliferativas no meio orgânico A partir de pro dutos oriundos do foco infeccioso inicial liberamse as chamadas substâncias de fase aguda que o fígado produz sob a influência de citocinas ver adiante Servem de sinalização inicial para a dilatação capi lar e consequente inflamação daí os clássicos sinais de dor rubor turgor e calor além dos fenômenos sistêmicos como febre e lassidão que constituem a resposta clínica de fase aguda Essas substâncias tam bém facilitam a adesão às membranas dos capilares e a passagem rápida para os tecidos das células envol vidas na resposta inata Parslow 2001 Dentre elas umas neutrófilos e macrófagos são especializadas em fagocitar englobando e destruindo os germes em seu citoplasma outras incluem as células produtoras de inflamação linfócitos neutrófilos eosinófilos mastócitos basófilos e plaquetas enquanto outras têm papel preponderante na destruição de células ne oplásicas as células Natural Killers NK Uma característica importante da resposta natu ral é que não há aqui ao contrário do sistema imune adaptativo ver adiante envolvimento de memória imunológica ou seja à medida que contatos com os mesmos agentes patogênicos se deem posteriormen te a resposta continuará sendo da mesma magnitude e qualidade ao contrário da resposta adaptativa que aumenta e muda quando ocorrem novas exposições àqueles germes O reconhecimento inato do que é es tranho nonself é baseado no encontro de estruturas peculiares aos agentes infecciosos como determina dos açúcares e glicoproteínas que não são familiares ao organismo humano Esta é outra diferença em re lação à resposta adaptativa anticorpos e células T e B onde o reconhecimento se dá por meio de recep tores que reconhecem formas nas partículas que lhes são apresentadas podendo inclusive agir contra for mas self como nas doenças autoimunes Conhecemse doenças provocadas por funcio namento anormal da resposta inata Constituem as imunodeficiências primárias do sistema inato Ou tras por alterações em receptores de inflamação os receptores tolllike levam a doenças inflamatórias como doenças inflamatórias intestinais campo hoje de grande experimentação Medzhitov 2000 A resposta imune adquirida adaptativa Diferentemente da inata a resposta adquirida varia adaptase à medida que um conjunto de célu las linfócitos T e B reage em um primeiro contato com o antígeno resposta primária mas apresenta um comportamento diferente em um contato pos terior resposta secundária Vejase o exemplo das doen ças infecciosas comuns na infância quando após a infecção inicial adquirese imunidade A resposta adaptativa possui memória Células de memória que recentemente mostraramse eficazes em destruir o ví rus da gripe espanhola datada da 1a Guerra mun dial em sobreviventes daquela infecção comprovan do uma memória imunológica de cerca de 90 anos e passa de uma resposta inicial modesta para uma resposta altamente eficaz muito rica em anticorpos e células especializadas de defesa Existem outras diferenças entre o sistema ina to e o adaptativo mas talvez a principal delas seja a forma de reconhecimento da substância estranha Enquanto algumas centenas de receptores reconhe cem quimicamente o antígeno na resposta inata o sistema que intervém na resposta adaptativa possui em seu conjunto bilhões de estruturas capazes de re conhecer os antígenos pela forma Tais estruturas de reconhecimento apresentamse como organelas dis tribuídas na superfície das células do sistema adquiri do Como reconhecem os antígenos pela forma deve evidentemente haver no organismo uma série de res trições que impeçam que a resposta se volte contra um componente próprio que apresente forma muito similar à de um microorganismo por exemplo o que FIGURA 142 Os braços da resposta imune Oliveira Lima 1984 THR TC TS TH B P IgG IgA IgM IgD Ige Mφ Δ antígeno Mφ macrófago TH Linfócito T helper TS Linfócito T supressor THR Linfócito T da hipersensibilidade retardada TC Linfócito T citotóxico B Linfócito B P Plasmócito IgG IgA IgM IgD IgE imunoglobulinas anticorpos estimula inibe Psicossomaticaindd 169 Psicossomaticaindd 169 05012010 121208 05012010 121208 170 Mello Filho Burd e cols provocaria uma reação de autoagressão o que na re alidade acontece nas doenças por autoimunidade Órgãos e células do sistema imune adaptativo Podemos conhecer o SI Adaptativo a partir do estudo de seus órgãos e células Os primeiros podem ser classificados em centrais e periféricos Os órgãos linfoides centrais Os órgãos centrais são assim denominados por se portarem como centros de diferenciação das cé lulas primárias do sistema São representados pelo timo e pela medula óssea O timo é um órgão loca lizado na parte central alta do tórax mediastino e muito ativo no período neonatal quando atinge sua maior massa relativa diminuindo gradativamente com a idade No timo ocorre a maturação funcional de células primitivas e que serão chamadas de linfóci tos T ou timo dependentes Neste órgão os linfócitos imaturos oriundos do fígado fetal e da medula óssea são expostos a um conjunto de moléculas antigênicas que se encontram também no restante do organismo Esta exposição dáse através de células especializadas nesta função de apresentação de antígenos APC e muito abundantes no timo Neste processo apenas os linfócitos que têm receptores para essas moléculas e ao mesmo tempo demonstram reatividade não exa gerada aos componentes self que lhes são apresen tados são bem sucedidos em seu desenvolvimento amadurecem e migram para os órgãos linfoides pe riféricos onde estabelecerão as interações que carac terizam as respostas do sistema Salientese que mais de 95 de todos os linfócitos que entram no timo nesse processo de seleção central morrem na intimi dade da glândula por não obedecerem aos critérios apontados Supõese que tal processo de seleção tí mica nos ofereça uma primeira e fortíssima garantia de que não haveria reações contra estruturas próprias no decorrer da vida o que no entanto pode falhar como veremos nas doenças autoimunes Os linfócitos T dividemse em subpopulações distintas de acordo com estruturas da superfície ce lular e de moléculas que elaboram além das funções diferenciadas que exercem na resposta imune Uma divisão inicial contempla as células T auxiliares Th do inglês helper e as células T citotóxicas cujos mar cadores as fazem ser reconhecidas respectivamente como células CD cluster of differentiation 4 e 8 En quanto as primeiras ocupam lugar de destaque na co operação celular as segundas são especializadas em destruir células parasitadas por vírus e outros agentes patogênicos além de um papel na regulação da res posta imune Ambas estão envolvidas nas atividades inflamatórias geradas pelo sistema mas de forma diferente A célula T auxiliar responsabilizase pelas importantíssimas funções de auxilio às células B na produção de anticorpos participando ainda da rejei ção de transplantes e das reações contra antígenos estranhos fixos em tecidos como é o caso das derma tites alérgicas por contato e da reação à tuberculina Outro grupo de linfócitos oriundos dos órgãos primitivos medula óssea e fígado fetal não passa pelo timo em sua instrução Na medula óssea essas células evoluem de linfócitos primitivos ou imaturos até formas adultas que emergem desse órgão por tando organelas receptores de superfície que os ca racterizam como células potencialmente produtoras de anticorpos Constituem o grupo de linfócitos timo independentes ou linfócitos B de bone marrow me dula óssea Essas células exibem como receptores de superfície moléculas proteicas formadas nos 3 a 5 dias que passam no interior da medula óssea graças à ação de diversas enzimas e genes que cortam e co lam sequências do DNA elaborando uma diversidade de bilhões de sequências anticorpos Os órgãos linfoides periféricos Os dois grupos linfocitários T e B exigem am biente especializado para interagirem Aninhamse nos órgãos linfoides periféricos onde se darão as nu merosas interações entre as células do SI Os linfócitos localizamse em aglomerados nos gânglios linfáticos linfonodos e no baço Nestes órgãos a localização dos diversos elementos celulares obedece a regras que facilitam anatomicamente a exposição às substâncias captadas na circulação ou elementos fixos nos tecidos trazidos pelos fagócitos via linfa ou sangue circulan te Os linfócitos são dotados de grande capacidade de circulação e em alguns poucos minutos informações relevantes para a produção de elementos de defesa são geradas e comunicadas à distância posicionando o or ganismo em sua totalidade na reação ao agente que provocou o distúrbio Respostas aos microorganismos circulantes são geralmente iniciadas no baço enquan to as respostas a patógenos tissulares são estabelecidas nos linfonodos No caso de substâncias ingeridas ou inaladas ou que atingem o trato urogenital entra em ação o SI associado às mucosas O sistema imune das mucosas É composto por tecido linfoide associado às mu cosas do aparelho respiratório digestivo e urogenital Psicossomaticaindd 170 Psicossomaticaindd 170 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 171 Difere do SI sistêmico pela produção preferencial de um tipo de imunoglobulina anticorpo da classe IgA abundante nas secreções daqueles aparelhos e sistemas e pelo fato de que sua ação sobre o que é ingerido frequentemente leva a uma resposta de tole rância em oposição à inflamação Uma cooperação de alta complexidade ocorre entre os compartimentos T B e o sistema inato ou na tural Nos órgãos linfoides periféricos acontecem as interações entre os antígenos e os diversos elementos celulares que vão gerar respostas efetoras no sangue e nos líquidos dos diversos tecidos tais como secre ções digestivas respiratórias líquido cerebrospinal e outros Esse conjunto faz parte do chamado braço hu moral do SI Dáse aí a produção de anticorpos imu noglobulinas que são classificadas em cinco tipos ou classes designados pelas letras G A M D e E IgG IgA IgM IgD e IgE AS BASES ANATOMOFUNCIONAIS DA RESPOSTA AO ESTRESSE A INTEGRAÇÃO NEUROENDOCRINOIMUNOLÓGICA De um ponto de vista histórico vários experi mentos foram elucidativos na integração funcional entre o Sistema Nervoso Central SNC e o Sistema Imune SI Lesões no hipotálamo provocaram despo voamento celular do timo de ratos Jankovic 1973 alteraram respostas imunitárias e a composição ce lular em órgãos linfoides periféricos Macris 1970 Fessel 1963 bem como modularam reações anafilá ticas Fillip 1958 Sventivany 1958 1968 Szekely 1958 Obtevese a supressão da resposta imunitária com a extirpação da hipófise ou sua inibição funcio nal Khansari 1990 e observouse que a estimulação alfaadrenérgica potencializa e a betaadrenérgica inibe as respostas de linfócitos diante de substancias normalmente estimuladoras dessas células como a fitohemaglutinina Hadden 1970 1987 XIAO 1998 Blalok 2007 A rede de regulação neuroendócrina é ampla e complexa Vários de seus aspectos têm sido reconhe cidos O sistema hipotálamo pituitária e adrenal O sistema regulador neuroendócrino tradicio nalmente mais bem estudado é o eixo hipotálamo hipófise e suprarenal HPA A comunicação cen tral entre o Sistema Nervoso o Sistema Endócrino e o Sistema Imune acontece provavelmente a partir do sistema límbico que faz interagir as percepções córticocerebrais com o hipotálamo Esta integração dáse por contiguidade por meio de citocinas e de hormônios hipotalâmicos especialmente o hormônio liberador de corticotropina CRH que estimulando diretamente a hipófise anterior orquestra a resposta endócrina aos agentes de estresse A ativação hipofi sária por sua vez através do hormônio adrenocortico trópico ACTH faz com que se ative a córtex supra renal com consequente liberação de diversos fatores particularmente o cortisol o hormônio classicamente envolvido nas reações aos agentes estressores Este juntamente com os hormônios adrenérgicos alfa e betaadrenérgicos modula as respostas imunológicas ao estresse Ao contrário da visão inicial de que os hormônios envolvidos teriam apenas uma glândula de origem descobriuse que sua secreção se dá tam bém por outros tecidos e células Podese inferir por tanto a grande complexidade da rede neuroendócri noimunológica Malarkey 2007 As ações dessas diversas substâncias ganham um caráter de abrangência visto que as células do sistema imune linfócitos e macrófagos dentre outras pos suem receptores para os diversos hormônios e neuro transmissores podendo a eles responder ativando ou inibindo respostas imunitárias Por ação específica dos glicocorticoides liberados as respostas da imunidade inata diante das infecções alteramse Os linfócitos T também são ativados através desses mecanismos e po dem aparecer desvios do eixo Th1 para Th2 por inibi ção de citocinas pro inflamatórias IL1 IL12 O ramo simpático do sistema nervoso autônomo Os órgãos linfoides recebem predominantemen te inervação simpáticanoradrenérgica e simpática neuropeptidérgica o que já foi verificado no timo no baço nos linfonodos nas amígdalas palatinas no tecido linfoide associado às mucosas e na medu la óssea Elenkov 2000 Vários neurotransmissores como peptídeos e hormônios neuroadrenérgicos são liberados nessas junções anatomofuncionais Saben dose que as células imunitárias apresentam recepto res para essas substâncias sua interação com aquelas e seu envolvimento local e sistêmico constituem uma importante forma de ação efetora neuroimune sobre o tráfego de linfócitos sua proliferação produção de anticorpos e funções de defesa Yang 2002 Ke meny 2007 Funcionalmente há integração entre o eixo HPA e o SNA em regiões cerebrais locus ceruleus núcleo paraventricular gerando um feedback positi vo que tende à ativação de um sistema pelo estímulo do outro Quando o ramo simpático do SNA é ativado por hormônios do estresse e por alterações imunes as catecolaminas e o cortisol liberados irão estimular o eixo HPA Elenkov 2000 Psicossomaticaindd 171 Psicossomaticaindd 171 05012010 121209 05012010 121209 172 Mello Filho Burd e cols O ramo vagal do sistema nervoso autônomo Embora o papel regulador do SNA na ativida de cardiovascular seja evidente controle da pressão arterial e da frequência cardíaca só recentemente foram reconhecidas atividades pertencentes a um eixo regulador neuroendócrinoimunológico As fibras autonômicas através do ramo simpático relacionado com o sistema de produção de energia e o ramo va gal associado às funções vegetativas são distribuídas no organismo e funcionam em equilíbrio com uma variabilidade que depende das diversas situações vi vidas incluindose a resposta aos agentes estressores Thayer Sternberg 2006 Esse sistema está também sob controle de área cortical prefrontal amígdala cerebral e locus ceruleus A regulação do eixo HPA depende em parte do SNA em particular do ramo parassimpático Experiências em humanos Thayer Hall 2006 sugerem que a regulação do HPA depen de pelo menos em parte do ramo vagal do SNA As áreas que influenciam a liberação de CRF são áreas localizadas na amígdala cerebral e recebem estímulos de fibras vagais regulando assim os neurônios pro dutores deste fator Zobel 2004 A ação citotóxica de linfócitos por exemplo é aumentada por estimu lação do ramo vagal do sistema nervoso autônomo Strom 1972 O sistema dos neuropeptídeos Neuropeptídeos são substâncias elaboradas por terminais nervosos ou células residentes nos tecidos e dotadas de poder de transmissão bioquímica Neu ropeptídeos como a calcitonina a substância P o pep tídeo intestinal vaso ativo e a norepinefrina podem influenciar um número expressivo de alvos celulares como por exemplo as células de Langherans na pele que são células de múltiplas funções dentre as quais se destaca a apresentação de antígenos aos linfócitos T e B Inúmeros outros neuropeptídeos exercem atra vés de receptores na superfície dos linfócitos ações negativas inibitórias ou positivas estimulantes so bre as células imunitárias Como exemplo sabemos que linfócitos e células NK alteram suas funções pela influência de peptídeos opioides como as endorfinas Carr 1996 Os neuropeptídeos modulam funções de células T como proliferação secreção de citocinas e adesão celular necessária para que a haja intera ção celular tanto em situações fisiológicas quanto patológicas Levite 2002 Alguns peptídeos também afetam a diferenciação de células T e sua ação apre sentadora de antígenos Delgado 2004 Dada a grande quantidade de neuropeptídeos e neurotransmissores sintetizados no SNC o cérebro pode ser considerado um dos mais destacados órgãos endócrinos Fehm 2000 Perifericamente um nú mero muito grande de neurônios espalhados pelos diversos aparelhos e sistemas produz neuropeptídeos que se portam como elementos de ligação das fibras nervosas com as células do SI como se dá por exem plo no tubo digestivo O sistema das citocinas Nas últimas décadas vêm sendo descobertas di versas substâncias responsáveis isoladamente ou em conjunção com outros mecanismos por comunicação intercelular Já se conhecem várias centenas dessas substâncias genericamente chamadas de citocinas Regulam em seu conjunto não somente as respostas das células imunitárias mas também respostas infla matórias cicatrização hematopoiese angiogênese e muitos outros processos biológicos São produzidas em quantidades infinitesimais mas extremamente potentes exercem seus efeitos nas próprias células que as produzem em células contíguas ou a distân cia Oppenheim 2001 Grupos dessas citocinas interessam particu larmente ao estudo do SI Os linfócitos T auxiliares Th orquestradores da cooperação celular na res posta imune podem por exemplo de acordo com as citocinas que produzem subdividiremse em Th1 en volvidos na resposta inflamatória produzindo e sen do sensíveis às citocinas pro inflamatórias TNF α IL1 IL6 IL12 Interferons em Th2 que produzem e são influenciados por citocinas IL4 1L51L13 que os derivam para respostas de hipersensibilidade alergias e de autoimunidade e Th17 responsáveis principalmente por infiltrações neutrofílicas e cola boração nas doenças autoimunes Por outro lado determinadas citocinas como a IL10 têm efeito re gulador ou supressor sobre os processos de ativação imunitária Crescente importância vem sendo atribuída às citocinas citocinas na regulação neuroimune Trata se de substâncias proteicas solúveis liberadas espe cialmente por linfócitos interleucinas e macrófagos monocinas além de astrócitos e microglia SNC Desde a descoberta das primeiras citocinas os in terferons IFNs descobriuse um sem número de receptores celulares para estas substâncias nos diver sos tecidos orgânicos Podese falar de um conjunto de propriedades comuns às citocinas Abbas 1994 como o papel na regulação imune e inflamatória com produção das mesmas citocinas por células diferen tes A interleucina 1 IL1 o fator de necrose tumo ral TNFα e o Interferongama IFNγ secretados pelas células imunes ativadas podem modificar a fun Psicossomaticaindd 172 Psicossomaticaindd 172 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 173 ção do eixo HPA Doenças que ativam grandemente o sistema imune como traumas sepse e enfermidades autoimunes podem provocar manifestações psicopa tológicas A produção de citocinas tem sido dividida em duas grandes categorias dependendo do perfil fun cional dos dois tipos de células secretoras T helper1 Th1 que mediam a resposta celular imune através de linfócitos citotóxicos células NK e macrófagos e in cluem a produção de citocinas IFNγ TNFα e IL2 e T helper2 Th2 que aumentam as reações de anticor pos induzem a produção de IL4 IL5 IL6 e IL10 A IL4 e a IL10 possuem um efeito antiinflamatório suprimindo a atividade das células Th1 e estimulam as células Th2 e a atividade humoral anticorpos alergia autoimunidade Condições como estresse agudo ou crônico exaustivos exercícios traumatismos grandes cirurgias grandes queimaduras severas isquemias ou hipóxias gravidez e pósparto contribuem para alte rações nas concentrações locais ou sistêmicas das cito cinas via modulação da IL12 e o balanço entre TNFα e IL10 Essas alterações também desempenham pa pel na indução expressão e progressão de algumas doenças cardiovasculares e autoimunes osteoporose diabete do tipo 2 artrite reumatoide alergias e cresci mento de alguns tumores Foi observado que essas células funcionavam sob o efeito da estimulação do IFNγ de uma forma semelhante a um estímulo hormonal verificandose uma ação endócrina símile para este agente Como exemplo tecidos cardíacos murinos eram induzidos a um aumento de frequência nos batimentos pela ação dos IFNα e IFNβ de forma muito parecida como se tivessem sido estimulados por hormônios adrenérgicos Blalock 2007 1984 Também células da suprarenal aumentavam a produção de cortisol quando expostas ao IFNα Estudos recentes citados por Blalock Blalock 2007 mostraram que os recep tores celulares desses agentes podem ativar vias de transmissão de estímulos intracelulares produzindo por consequência grande quantidade de manifesta ções clínicas As células do sistema imune são estimuladas por citocinas e também as produzem Diversas célu las do organismo possuem receptores para citocinas incluindo células no hipotálamo e na hipófise Bla lock 2007 Encontramse sítios de união de IL1 em gânglios próximos de fibras nervosas vagais bem como receptores para esta citocinas foram detectados em fibras vagais aferentes Sabese que a estimula ção elétrica do vago induz o aparecimento de IL1 no hipotálamo e no hipocampo Blalock 2007 Kelley 2003 Maier 2003 A IL10 quando administrada por via intracerebral diminui as ondas lentas do sono resultando em tempo maior de vigília Smith 2006 citado por Blalock 2007 Além disso a mesma ci tocina estimula a produção de ACTH pela hipófise e inibe a produção de cortisol pela suprarenal Smith 2006 citado por Blalock 2007 Há recentes evidencias implicando o papel das citocinas pro inflamatórias particularmente a IL6 como um componente central de um grupo de doen ças em adultos idosos Elas são classificadas segundo seus efeitos no sistema imune em pro inflamatórias IL1 IL6 e FNT e antiinflamatórias IL10 e IL13 As principais ações das primeiras são atrair as células imunes ao sítio da infecção ou injuria e tornálas ati vas para responder Já as antiinflamatórias inibem a resposta imune causando a diminuição da função celular e a síntese de outras citocinas A resposta inflamatória do sistema imune pode ser acionada por múltiplos caminhos inclusive a infecção e o trauma Assim infecções recorrentes e crônicas podem provocar modificações patológicas Hamerman 1999 Por exemplo baixos níveis de persistente inflamação podem se dar quando proces sos infecciosos crônicos tais como doença periodontal infecções do trato urinário doença pulmonar crônica e doença renal crônica persistente estimularem o sis tema imune com grandes repercussões entre homens idosos que já mostravam aumentos na produção de IL6 ligado à idade Cohen 2005 Na verdade a inflamação tem sido recente mente correlacionada a uma série de condições ligadas à idade incluindo doença cardiovascular osteoporose artrite diabete tipo 2 certas doenças linfoproliferativas ou cânceres incluindo mieloma múltiplo linfoma não Hodkin e leucemia linfocítica crônica doença de Alzheimer e doença periodontal Ershler 2000 A associação entre doença cardiovascular e IL6 é relacionada em parte ao papel central que esta citoci na joga promovendo a produção da proteína C reativa PCR recentemente reconhecida como um importan te fator de risco para o infarto do miocárdio Dessa forma infecções crônicas amplificam o risco para o desenvolvimento de arteriosclerose mes mo em pacientes que não têm os demais fatores de risco De igual modo indivíduos com altos níveis de IL6 e PCR tem 26 vezes mais chances de morrerem em um período de 4 a 6 anos que aqueles que apre sentam estes níveis baixos Ao mesmo tempo a IL6 contribui para o declínio da atividade física e a atrofia muscular Por tudo isto a IL6 e a PCR desempenham papéis importantes na patogenia de doenças comuns na velhice como a osteoporose as artrites e a insufi ciência cardíaca congestiva Em animais de laboratório o estresse e a admi nistração de epinefrina elevam a IL6 evidenciando que a sua produção é estimulada através de receptores Psicossomaticaindd 173 Psicossomaticaindd 173 05012010 121209 05012010 121209 174 Mello Filho Burd e cols β adrenérgicos Através desta mesma linha de ideias comprovouse que o distresse inibe a cicatrização de feridas tendo portanto um importante papel nos pro cessos pósoperatórios Também foram feitos vários experimentos com inoculação de vacinas comprovan dose que os indivíduos mais ansiosos e estressados tinham respostas mais fracas e lentas São exatamente estes pacientes que fazem as infecções mais graves e mais resistentes aos antibióticos causa de morte tão frequente nas populações idosas acometidas de pneu monia ou de septicemia em nossos CTIs Assim a com binação de influenza e pneumonia é a quarta causa de morte na população de mais de 75 anos É também importante salientar que citocinas tais como a IL6 estimulam o funcionamento do sistema endócrino um dos muitos funcionamentos bilaterais dos dois sistemas A IL6 é um potente estimulador da CRH um mecanismo que leva a uma maior produ ção de ACTH e cortisol Então as emoções negativas que desregulam a IL6 podem também promover por esta via alterações neuroendócrinas com suas conse quências imunes Regulação bidirecional Desde 1975 foi demonstrado que a imunização de animais com diferentes antígenos era capaz de provocar alterações neuroendócrinas incluindo al terações do potencial elétrico de neurônios do hipo tálamo Besedovsky 1977 Por sua vez a atividade elétrica cerebral promove aumento da produção de CRF pelo hipotálamo o que estimula a liberação de ACTH pela hipófise e consequentemente aumento dos glicocorticoides pela suprarenal Estes chamados hormônios da resposta ao estresse podem pela dura ção do processo eou sua intensidade provocar alte rações na regulação do Sistema Imune provocando doença Ader 2000 Blalok 2007 Linfócitos são capazes de sintetizar hormônios incluindo ACTH hormônio do crescimento e prolac tina Malarkey 1989 e vários aspectos da resposta imune são afetados por hormônios corticoesteroides e ACTH Yang 2002 Foi demonstrado que leucóci tos tratados com catecolaminas in vitro são inibidos em sua função de síntese de IL12 Elenkov 1996 2002 promovendo um desvio do eixo Th1 para Th2 Yang 2002 Linfócitos macrófagos e granulócitos apresentam receptores para muitos neurotransmisso res e peptídeos Felten 1991 Estes dados dentre outros demonstram a exis tência de uma rede de múltiplas influências que se retroalimentam na produção da resposta a um agente perturbador que poderia ser desde uma substância estranha ao organismo e dotada de poder de se mul tiplicar como um agente estressor promovendo alte rações imunitárias Yang 2002 Wrona 2006 No Quadro 13l podemos observar alguns dos efeitos imunomoduladores na rede neuroendócrina Amkraut e Solomon Amkraut 1987 apresen tam interessante resumo dessas influências hormo nais sobre o sistema imune dividindoas por locais de influência como sendo 1 Sobre a captação processamento e apresentação do antígeno que eles chamam arco eferente da resposta a ativação e inativação de macrófagos b efeitos diretos sobre o fluxo linfático e sanguí neo controlando a intensidade de apresenta ção do antígeno o que pode ser especifica mente de importância em relação a agentes infecciosos c modificação de substâncias do próprio orga nismo que poderiam passar a apresentarse como antígenos autoantígenos por exem plo por ativação de plasminogênio em plas mina o que tem se demonstrado em estresse psicológico 2 Na produção montagem da resposta que os autores chamam de arco central não confundir com órgãos linfoides centrais a alterações marcantes nos números absolutos proporção e distribuição de células imuno competentes nos tecidos linfoides b efeitos sobre secreção de anticorpos por plas mócitos e alterações no estímulo de células T sobre B c efeitos sobre subpopulações supressoras o que poderia levar a doenças autoimunes d alterações na regulação de produção de anti corpos específicos o que poderia alterar pro fundamente o curso de doenças infecciosas 3 Em nível periférico poderíamos ter como exem plo a níveis levemente aumentados de corticoes teroides auxiliariam macrófagos na remoção de complexos antígenoanticorpo enquanto a inativação dessas células seria obtida com altas doses permitindo a difusão da doença b catecolaminas em níveis aumentados podem suprimir reações de hipersensibilidade c efeitos de linfocinas podem ser modificados por alterações hormonais como resposta ao estresse bem como alterações nas interações célulacélula tão importantes na efetivação da resposta imune Psicossomaticaindd 174 Psicossomaticaindd 174 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 175 FATOR AÇÃO EFEITO Glicocorticoides S Produção de anticorpo atividade NK produção de citocinas Catecolaminas S Proliferação linfocitária sob estímulo mitógeno in vitro Acetilcolina E Número de macrófagos e linfócitos na medula óssea Hormônios sexuais SE Transformação blástica de linfócitos Endorfina ES Síntese de anticorpo ativação de macrófagos células T Metionina Encefalina E Em dose baixa ativação de células T em altas doses supressão Endorfina E Transformação blástica de linfócitos por mitógenos Tiroxina E Ativação de células T e anticorpos Prolactina E Ativação de macrófagos produção de interleucina 2 Hormônio do crescimento E Síntese de anticorpos ativação de macrófagos modulação de 112 Vasopressina E Proliferação de célula T Acitocina E Proliferação de célula T Peptídeo intestinal vasoativo SE Produção de citocinas por macrófagos e linfócitos Melatonina E Síntese de anticorpos ACTH ES Produção de citocinas atividade NK síntese de anticorpos ativação de macrófagos Somatostatina SE Síntese de anticorpos respostas de linfócitos a mitógenos Adaptado de Khansari 1990 S Suprime E Estimula QUADRO 141 Neurotransmissores e hormônios com propriedades imunomodulatórias Portanto as células do sistema imune encon tramse sob extensa e complexa rede de influência dos sistemas nervoso e endócrino Seus mediadores neurotransmissores e hormônios diversos atuam sinergicamente com produtos linfocitários de macró fagos e moléculas de produtos inflamatórios na regu lação de suas ações Trabalhos bem recentes corroboram a grande interdependência dessas estruturas Farrar 1986 por exemplo demonstrou que células do sistema ner voso podem produzir moléculas do sistema imune Figura 133 Apesar do aumento do nível dos conhecimen tos sobre esta extensa e complexa rede ainda não se conhecem os mecanismos pelos quais o organismo estabelece adequada ou má resposta diante dos agentes de estresse ESTRESSE E SISTEMA IMUNE Estresse físico psicológico ou social é um ter mo que compreende um conjunto de reações e estí mulos que causam distúrbios no equilíbrio do orga nismo frequentemente com efeitos danosos O conceito de estresse foi apresentado por Selye em 1936 a partir de experimentos em que animais eram submetidos a situações agressivas diversas tais como dor frio e fome agentes de estresse e sempre respondiam de forma regular e específica Selye 1936 descreveu o que chamou de sín drome geral de adaptação com três fases sucessivas alarme resistência e esgotamento Após a fase de es gotamento surgem as doenças as chamadas doenças de adaptação como a úlcera péptica a hipertensão arterial artrites e lesões miocárdicas Embora Selye tenha estudado o estresse físico componentes de sua equipe fizeram as primeiras ob servações sobre o estresse psicológico relatando al terações hormonais encontradas em equipes náuticas de competição nas horas que antecediam as provas Thorn 1953 Pincus e Hogland 1943 também comprova ram aumento da excreção urinária dos hormônios da suprarenal em pilotos e instrutores aeronáuticos em voos simulados Além dos agentes físicos e psíquicos atualmen te dáse grande importância ao chamado estresse social motivo de contribuições de diversos autores como nos trabalhos de Levy 1964 apontando situa Psicossomaticaindd 175 Psicossomaticaindd 175 05012010 121209 05012010 121209 176 Mello Filho Burd e cols ções como exposição a ruídos aglomeração urbana isolamento trabalho monótono e repetitivo ou seja o que corresponde ao modo de viver das grandes me trópoles como poderosos fatores de doença princi palmente as doenças cardiovasculares Lazarus conceituou o que chamou de coping que Eugênio Campos traduziu como sistema de adaptação e enfrentamento isto é o conjunto de mecanismos de que o organismo lança mão em rea ção aos agentes do estresse representando a forma como cada pessoa avalia e lida com estas agressões Os mecanismos de coping explicam por que ava liamos desta ou daquela forma a situação desafiadora enfrentandoa ou não e o fazendo com particularida des muito pessoais com maior ou menor repercussão sobre o organismo Estresse e sistema imune duas revisões Foram publicadas em 2007 duas excelentes revisões sobre este tema a de Kemeny e Manfred Schedlowski 2007 e a de Laudenslager e Coe 2007 a partir de trabalhos encontrados principalmente na re vista Brain Behaviour and Immunity BBI Kemeny e Schedlowski 2007 destacam que nos últimos 20 anos com a utilização de novos mé todos experimentais estudos sobre o ato de cuidar de bebês análise de lutos e de conflitos conjugais e empregando parâmetros de resposta imunológica circulação de subpopulações de linfócitos atividade linfocitária produção de citocinas etc comprovou se a ação inibitória do estresse psicológico sobre o Sistema Imune SI Por outro lado trabalhos sobre o estresse agudo inerente a alguns eventos como falar em público e saltar de paraquedas mostraram que em tais situações poderia darse estimulação do SI Coe e Laudenslager 2007 abordam do pon to de vista histórico uma fase antes de 1987 onde citam contribuições da Psicanálise no entendimento das doen ças psicossomáticas e na identificação de atributos da personalidade que poderiam afetar o câncer ou a progressão da AIDS Citam a literatura que ressalta a importância de eventos traumáticos infantis contribuindo para o aumento da incidência de patologias na vida adulta e predispondo a uma tendência pro inflamatória Trabalhos envolvendo os enlutados em especial provocaram curiosidade nos pesquisadores Bartrop 1977 Irwin 1987 Irwin 2007 Logo nos dois primei ros meses após a perda estes indivíduos apresentavam significativa diminuição da estimulação de linfócitos uma função indispensável na geração da reação imu nitária e também na reposta das células Natural Killers NK que como sabemos respondem por importan tíssima função na eliminação de células neoplásicas Ficou claro que as células NK eram as mais responsivas ao estresse reduzindose desde os minutos iniciais até horas dias ou mesmo semanas após o mesmo Tam bém ganhou relevância segundo os autores a ligação entre depressão e imuno deficiência demonstrandose que a depressão po deria induzir estados imunodefici tários Posteriormente esta lista cresceu para abarcar o estresse dos exames escolares do desemprego e das discórdias conjugais Os autores Coe 2007 enfatizam a ação bené fica do suporte social na proteção à ação do estresse Notaramse os efeitos protetores da companhia social nos maus momentos e os efeitos estimuladores à saú de nos bons momentos Cohen 1985 Trabalhos em animais confirmavam o que esta va sendo observado em seres humanos Observouse que a superpopulação e a aglomeração de ratos impe diam repostas contra infecções e facilitavam o desen volvimento de tumores Em animais domesticados os resultados eram semelhantes confirmando uma forte ligação com o ambiente onde o animal era testado seja por rompimentos das relações sociais seja pela imprevisibilidade de novos estímulos ou pela ameaça eletrochoque ou confinamento Na revisão que fazem da década seguinte Kemeny e Schedlowski Kemeny 2007 abordam doen ças como a Artrite Reumatoide AR e o Lupus SNC Sistema Nervoso Central SE Sistema Endócrino SI Sistema Imune Estressores Hormônios endócrinos Hormônios endócrinos Hormônios pituitários Imunotransmissores Imunotransmissores Neuropeptídeos SNC SE SI FIGURA 143 Interdependência dos sistemas nervoso endócrino e imune Khansari 1990 Eugênio Campos 1988 Comunicação Pessoal Psicossomaticaindd 176 Psicossomaticaindd 176 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 177 Eritematoso Sistêmico LES que geralmente são de sencadeadas por episódios ou períodos de estresse Nessas doenças um processo inflamatório crônico parece estar associado com disfunção do eixo Hipo tálamo Hipófise Suprarenal HPA resultando numa secreção alterada do hormônio liberador de corticotropina CRH do ACTH que estimula a su prarenal e dos glicocorticoides todos participantes das funções efetoras no processo autoimune Ver As Bases Anatomofuncionais da Resposta Ao Estresse A Integração Neuroendocrinoimunológica Em rela ção ao Sistema Nervoso Autônomo SNA os autores relatam que em ratos com artrite experimentalmente induzida os antagonistas adrenérgicos rapidamente reduzem os sintomas articulares Em contraste o uso dos agonistas exacerba a manifestação Outros estu dos demonstraram anormalidades na interação SNA e SI via receptores betaadrenérgicos em pacientes com Artrite Idiopática Juvenil AIJ portandose como um fator agravante na resposta ao estresse nestes casos e em menor extensão na Artrite Reumatoide AR Nas associações entre estresse e doenças infec ciosas Kemeny e Schedlowski Kemeny 2007 citam importantes pesquisas feitas em animais particular mente através de indução de viroses Usando tais técnicas Cohen Cohen 1991 encontrou que índices mais elevados de estresse prediziam maior susceti bilidade a infecções virais por rinovirus menor for mação de anticorpos e sintomas mais intensos Em experimentos com seres humanos com modelos que avaliam as respostas imunes a vacinações contra a in fluenza e a hepatite B taxas menores nos anticorpos induzidos por aqueles agentes vacinais puderam ser previstas em pessoas em situações de estresse agudo exames médicos escolares ou crônico cuidadores de pacientes com Alzheimer Um terceiro tipo de si tuação emblemática relatada é a reativação de viroses latentes como as produzidas pelo vírus BarrEpstein EBV o herpes simples HSV e o citomegalovirus CMV Em outro importante campo de estudo nos indivíduos infectados pelo vírus da Imunodeficiência Humana HIV que frequentemente são submetidos a constantes e importantes estresses tais como estig mas conflitos familiares ligados ao seu diagnóstico e às vezes à morte de companheiros as por eles con taminados experimentos puderam prever a queda dos níveis de CD4 e o início dos sintomas da doença com base nos estresses enfrentados de maneira surda ou aguda Respostas como pessimismos sobre a evo lução da doença predisseram degradação imunitária e inclusive morte Coe e Laudenslager Coe 2007 resumem a década de 1987 a 1996 referindo alguns dos traba lhos que se voltaram para a questão dos cuidados aos recémnascidos Afirmam que se o sistema imunoló gico do adulto é altamente sensível a questões inter nas e externas é natural que a criança com toda a sua fragilidade também deva ser Cientistas criaram a técnica de handling manuseio de animais de labo ratório que consiste em tirar por algum tempo a cria de junto da sua mãe gerando uma interferência na relação mãefilho Esta técnica como outra nitida mente estressora de promover o desmame precoce mente levam a modificações na resposta antigênica na resposta celular imune e na capacidade de conter um tumor transplantado Segundo trabalhos dos pró prios autores uma ou duas semanas após macacos serem separados de suas mães há diminuição da fun ção linfocitária Em sua revisão da década de 1997 a 2006 Coe e Laudenslager Coe 2007 citam os avanços dos mé todos através da obtenção de neuroimagens cerebrais com escalas mais precisas que vem permitindo uma visão real do órgão e a possibilidade de poder estudá lo em conjugação com técnicas da psicoimunologia estabelecendose correlações com aspectos psicológi cos e comportamentais Quanto às citocinas afirmam que esta foi a sua década Foram apreciadas inicialmente como media dores intracelulares da inflamação local Simultanea mente houve uma conscientização da sua importân cia inicialmente da IL1 e logo a seguir do triunvirato IL1 IL6 e TNFα Inúmeras outras pesquisas de monstraram que as citocinas são ubíquas e que faci litam a comunicação entre sistemas fisiológicos Esta descoberta é um evento historicamente significante para o campo da Psiconeuroimunologia Além de vá rias outras funções exercem ações diretas no cére bro bem como na atenção e na memória Altos níveis de citocinas na corrente sanguínea criam um estado de mal estar falta de apetite e fadiga enquanto níveis mais baixos atuam no hipocampo afetando a cria ção e a recuperação de memórias Uma constatação surpreendente e da maior importância para a rede pública é a de que a inflamação desenvolvida por es tes agentes em determinados contextos desempenha um papel na doença coronariana Blalock 2007 e quando a IL6 aumenta com a idade principalmente em indivíduos que vivem em condições estressoras isso poderia levar à arteriosclerose Outras áreas continuaram a ser investigadas na década como as alergias e da asma demonstrando se que nesta última influências estressoras agravam os processos responsáveis pela inflamação e constri ção das vias aéreas Os autores Coe 2007 comentam as catástro fes ambientais que assolam nosso planeta provocan do epidemias infecções e infestações maciças prin cipalmente em populações carentes e com possíveis brechas imunológicas Segundo eles trabalhos de Psicossomaticaindd 177 Psicossomaticaindd 177 05012010 121209 05012010 121209 178 Mello Filho Burd e cols psicoimunologia permitiriam explicar porque estas doenças continuam a se manifestar muito depois da catástrofe inicial Um número especial do BBI abordou um tema muito original em 1999 de como os fatores psicoló gicos em homens e animais podem afetar a imuni dade e de como experiências precoces conduzem ou para o equilíbrio ou para a fragilidade emocional e a doença A ideia parte de trabalhos psicanalíticos que demonstraram que traços de personalidade ou mes mo de caráter são muito precocemente construídos geralmente em torno de falhas ambientais Segers trom e colaboradores 1999 baseandose em que traços como otimismo persistente aborrecimento e inibição social podem ser hereditários postulou que o mesmo poderia acontecer com os animais isto é que estes também teriam seus traços de personalida de O fato é que muitas espécies de ratos e também de macacos apresentam sempre um comportamento estável e predisposição de temperamento para a so ciabilidade e a docilidade o que deveria associarse a um determinado perfil imunológico Na infecção pelo vírus da imunodeficiência dos macacos SIV a variação na sociabilidade e no temperamento ajudou a explicar porque a imunodeficiência progrediu mais rapidamente em alguns macacos Essa abordagem aponta para uma questão muito em voga hoje em dia que trata dos marcadores genéticos neurohormonais e imunohistoquímicos de determinadas doenças e seus correspondentes aparentes os chamados fenóti pos neuroendócrinos Na revisão empreendida por Kemeny e Schedlo wski Kemeny 2007 sobre a década de 19972007 no item estresse e doenças inflamatórias os autores formulam a hipótese de que nas doenças inflamatórias crônicas possa existir uma interação neuroendócrinai munológica distorcida ou uma resposta inadequada do eixo HPA e do ramo simpático do SNA ao estresse Altos níveis de estresse têm sido associados à baixa de CD4 CD8 e da diminuição da atividade NK Os autores citam estudos com macacos que com provaram que experiências de troca de jaulas e de separação prolongada aumentavam a gravidade da doença nos infectados com o vírus da imunodeficiên cia dos símios SIV Finalmente os autores afirmam que os últimos 10 anos foram muito férteis em importantes contri buições para o entendimento do câncer e das doenças autoimunes bem como para o a patogenia do HIV e das viroses em geral Destacam que se todos os elos desta corrente não são ainda conhecidos isso é resul tado da presença de múltiplos fatores controlando as suas etiologias como genética estilo de vida macro e microambientes DOENÇAS ALÉRGICAS Um maior interesse acadêmico pelas doenças alérgicas remonta ao inicio do século passado quan do se conseguiu provocar reações anafiláticas em laboratório Foram assim denominadas por se ima ginálas à época opostas à profilaxia um estado de proteção também obtido experimentalmente Nos anos 1920 e 30 tipificouse um grupo de indivíduos que poderia ser diferenciado pela tendência a apre sentar determinadas doenças alérgicas tanto em ní vel pessoal quanto familiar Essa tendência foi chama da de atopia e estes indivíduos de atópicos Tinham dentre outras características a propriedade de seu plasma poder transferir ainda que por curto espaço de tempo a reatividade que apresentavam a indiví duos não atópicos As substâncias do soro que se ima ginava dispor desta propriedade foram chamadas de reaginas elementos que reagiam Na década de 1960 descobriuse que as reaginas eram na verda de imunoglobulinas anticorpos da classe E IgE Portanto estes indivíduos passaram a ser definidos além das características clínicas e epidemiológicas como aqueles que tinham predisposição a formar IgE para antígenos comuns do meio ambiente fungos epitélios de animais microparasitos etc Bem mais recentemente descobriuse que os linfócitos T auxi liares Th destas pessoas diante daqueles antígenos davam origem preferencialmente a linfócitos Th2 células que elaboram citocinas próalérgicas diferen temente dos indivíduos não atópicos que produzem nestas circunstâncias preferencialmente citocinas do tipo Th1 as quais participam ativamente do combate a agentes infecciosos Ver a Organização Anatomofun cional do Sistema Imune Portanto imaginase que os atópicos sofram de um desequilíbrio entre as cito cinas Th1 IL1 IL12 IFNγ e Th2 IL4 IL5 IL13 predispondo assim às reações alérgicas Estresse e sistema imune nas alergias Observouse experimentalmente que o estres se influencia a divisão Th1 e Th2 Wrigth 1998 Chung 2003 As doenças alérgicas como a anafi laxia a asma alérgica e outras têm seu mecanismo patogênico ligado a determinadas células dos teci dos e seus sucedâneos no sangue respectivamente os mastócitos e os basófilos Estas célulasalvo das alergias têm suas membranas celulares recobertas por anticorpos da classe IgE em grandes quantidades nos atópicos Quando os antígenos por exemplo pó caseiro ácaros metabolitos da penicilina alimentos e outros entram em contato através de ingestão Psicossomaticaindd 178 Psicossomaticaindd 178 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 179 inalação ou injeção com as moléculas destes anti corpos adsorvidos na célulaalvo esta libera para o meio externo mucosa sangue tecidos substâncias farmacologicamente ativas especialmente histamina e enzimas que se encontravam préformadas em seu citoplasma Essas substâncias pela vasodilatação e constrição brônquica que acarretam moldam o de senho clínico dos quadros de urticária asma alergias gastrintestinais cutâneas dentre outras Os mastócitos são enervados por fibras adrenér gicas Rook 1994 sendo que a norepinefrina tam bém estimula a produção de IL4 fundamental para a divisão dos linfócitos em sua transformação para Th2 e consequente produção de IgE Os mastócitos esta belecem uma relação anatômica com o SNA estan do sob a influência de inervação de fibras simpáticas pósganglionares que liberam norepinefrina além de outras substâncias Sugiura 1992 Tudo isso nos faz apreciar a importância potencial das interações entre o SN e o SI em relação às doenças alérgicas Asma brônquica Certamente uma das doenças que mais tem sido considerada como exemplo de doença psicosso mática é a asma brônquica Ela é claramente multi fatorial visto que tanto na prática clínica como em experiências de laboratório demonstrase a presença de desencadeantes de diversas origens tais como alér genos fumos pós exercício e situações estressantes A importância dos fatores emocionais na asma vem sendo amplamente documentada por trabalhos de orientação psicanalítica clínica e experimental desde Alexander e French French Alexander 1941 Abramsom 1961 Sperling 1949 A sugestionabili dade do paciente asmático é sobejamente conhecida e explica as curas milagrosas nestes pacientes Têm sido observadas na clínica das doenças atópicas in fluências de diversas situações de estresse sobre o agravamento da diátese alérgica Existem experimen tos já clássicos de sugestão envolvendo inalação de soro fisiológico induzindo asma Pastorello 1987 ou um aumento de ventilação em provas funcionais pul monares em laboratório pela evocação de lembranças de ataques de asma Clarke 1980 A necessidade da presença simultânea de fato res de ordem psicológica e física alérgica na história natural da asma é marcante Estudo de 41 pacientes alérgicos em geral com testes cutâneos e investigação psicológica entrevistas e testes de personalidade encontrou em 75 dos casos ser necessário a pre sença de ambos os fatores para que a sintomatologia asmática apareça Quando a predisposição somática era pequena e o fator psicológico intenso o paciente apresentava sintomatologia neurótica Porém quando ambos eram prevalentes os sintomas alérgicos cons tituíam a regra Jacobs 1966 Tem sido observado também que indivíduos pertencentes a famílias de atópicos e portanto aptos a desenvolverem sintomas das referidas doenças não as desenvolvem até que se exponham a algum acontecimento estressante agudo ou crônico Nesse momento o sujeito passa a exibir por dificuldades em lidar com o estresse a doença de seus familiares em todos os detalhes Referimos um caso clínico acompanhado por um dos autores de um individuo assintomático de 49 anos oriundo de uma família em que existiam vários casos de rinite alérgi ca incluindo seus três irmãos Com a perda inespera da do emprego quando já se deparava com a possi bilidade de uma aposentadoria passou a exibir com riqueza de sintomas um quadro de rinite alérgica Mesmo com a admissão em outro trabalho a doença não mais o abandonou Comunicação pessoal Um estudo prospectivo de 90 crianças 6 a 13 anos portadoras de asma persistente e acompanhadas durante 18 meses por meio de entrevistas e testes psi cológicos indicou uma associação entre estresse agudo e exacerbações da asma É interessante observar que os autores notaram um intervalo de até duas semanas en tre o episodio provocador e a exacerbação Sandberg 2000 Isso leva a suspeitar de uma influência do estres se sobre a fase tardia inflamatória da reação asmática que sabemos ser responsável por morbomortalidade au mentada nesta doença Chen 2007 A asma é considerada uma doença na qual a in flamação desempenha importante papel A descober ta que a exposição a um alérgeno induzia uma reação tardia pela ação especialmente de citocinas IL5 re volucionou o tratamento Hoje os antiinflamatórios corticosteroides inaláveis constituem a pedra de toque na condução terapêutica dos asmáticos Na epp 2007 A descoberta de que o estresse desem penha importante papel na indução e manutenção da inflamação explica a já tão conhecida influência das emoções no desencadeamento e na persistência dos sintomas asmáticos Um papel do estresse sobre a asma seria o de predispor o indivíduo a uma maior susceptibilidade de sua árvore respiratória hiperrea tividade brônquica aos diversos fatores desencade antes Chen 2007 Isso pode ser demonstrado pelo achado de hiperreatividade brônquica em estudantes durante as fases de seus exames escolares com au mento concomitante de IL5 Liu 2002 Moreira MD 1996 Psicossomaticaindd 179 Psicossomaticaindd 179 05012010 121209 05012010 121209 180 Mello Filho Burd e cols A incidência da asma e das alergias está aumen tando em todo o mundo Estabelecer uma relação firme entre esses diversos fatores pode possibilitar novos enfoques terapêuticos e possíveis estratégias profiláticas Marshall 2004 Urticária Até aproximadamente a década de 1950 a ur ticária doença caracterizada pelo aparecimento de placas pápulas avermelhadas difusas ou localiza das e muito pruriginosas era considerada uma do ença essencialmente alérgica O enfoque moderno desse problema aponta para causas alérgicas e não alérgicas no seu desencadeamento Quando a urticária permanece por seis semanas ou mais é denominada crônica e constituise em sério problema de diagnóstico etiológico visto que cerca de 80 dos casos são apontados como sendo de cau sa desconhecida Champion 1969 Além deste aspecto a urticária crônica tende a permanecer por longo tempo em termos médios cerca de 5 anos segundo Champion e colaboradores 1969 Apesar de relatos de associação entre urticária crônica e fatores psicossomáticos tal associação tem sido desprezada nos modelos investigativoetiológi cos clássicos Moreira Moreira 1983 reviu 12 pacientes consecutivos portadores de urticária crônica ado tando além de um modelo investigativoetiológico clássico uma abordagem integral do doente incluin do aí além da história da pessoa a avaliação das cir cunstâncias que cercaram o aparecimento da doença e a discussão dos diversos conflitos que auxiliavam a manutenção dos sintomas Como resultado observou que ao contrário do que se estabeleceu classicamente em cerca de 80 dos casos existiam conflitos emocionais na gênese e na manutenção dos sintomas da urticária crônica o que o levou a classificar esse distúrbio como sendo de natureza psicossomática Em consequência da abordagem terapêutica uti lizada pôde apreciar evolução muito mais favorável em confronto com os dados disponíveis na literatura médica pois em cerca de 55 dos casos os sintomas desapareceram em média com 4 meses de tratamen to Em todos os casos criaramse condições para um verdadeiro processo psicoterápico entre o paciente e o médico alergologista levando a uma eficácia clíni ca nitidamente superior à obtida com a clássica abor dagem organicista A seguir apresentamos um resumo de um dos casos atendidos Caso clínico H R feminina 34 anos branca natural de Itaboraí RJ solteira do lar QP Urticária há três meses HDA Há cerca de três meses aparecimento de lesões urticariformes fugazes difusas diárias sem horário fixo Nega circunstâncias desencadeantes apesar de suspeitar de chocolate e peixes Antecedentes alergológicos pessoais e familiares apre senta rinite alérgica caracterizada por crises de espirros prurido nasal e obstrução nasal basculante mais frequente no inverno e que piora com pó domiciliar Revisão de apare lhos e sistemas Portadora de síndrome de WolfParkinson White em uso de antiarrítmicos Exame físico Mucosa nasal edemaciada e pálida Exa mes complementares Testes epicutâneos com antígenos inalatórios pó doméstico positivo forte paina positivo moderado e epitélio de gato positivo fraco Demais exa mes Sem alterações Instituído controle de ambiente para pó domiciliar e trocado o antiarrítmico durante uma sema na pelo cardiologista a nosso pedido A paciente é a mais velha de três filhos sendo os ou tros respectivamente um irmão com 32 e uma irmã de 20 Diz ter tido uma infância muito presa Sua mãe estava frequentemente doente sofrendo de cefaleia e distúrbios digestivos que atribuía a males do fígado O pai dirigia a família autoritariamente A paciente relata ter tido grande desilusão amorosa em passado recente Sua urticária iniciouse durante episódio de separação deste namorado O namoro não havia sido aprovado pelo pai sob a alegação de que o rapaz era par do O pai proibiua de continuar encontrandose com o na morado e ameaçandoa com agressão física caso o fizesse Devemos observar que a oposição do pai em relação ao namoro não era diretamente comunicada à paciente mas sim intermediada pela esposa A paciente rompeu o namoro e passou por um período de depressão iniciandose nessa época sua urticária Nas primeiras entrevistas conosco apresentase poli queixosa e deprimida com palpitações e dispneia suspirosa Nossa atuação passa a ser feita no sentido de relacionar o que estava claro àquela altura ou seja suas diversas queixas somáticas e depressivas com os fatos ocorridos em rela ção ao namoro recémterminado e a outros fatos de seu relacionamento familiar principalmente em relação a seu progenitor Tais fatos eram trazidos pela paciente quase sempre sob o aspecto da interferência paterna no sentido de desautorizar comportamentos da paciente em relação a amizades e de influir diretamente em suas questões ínti mas como o uso de determinadas roupas etc H R chora va durante as entrevistas sentindose injustiçada pelo com portamento do pai em relação a si própria Um episódio de exacerbação de suas lesões ocorreu quando seu pai convidou um seu irmão tio da paciente e que havia abandonado a mulher para morar com a família apesar da discordância dos outros membros da família e da paciente No entanto prevaleceu a vontade paterna e o tio juntouse à família desta Psicossomaticaindd 180 Psicossomaticaindd 180 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 181 Tratavase de alcoólatra que na ausência do pai da pa ciente assume atitude autoritária passando segundo a pa ciente por chefe da casa O tratamento continuava com nossas tentativas de as sociar para a paciente os recentes episódios de hostilidade surda da parte dela contra as figuras do pai e do tio e a exacerbação dos sintomas e sua depressão Depois de algumas entrevistas em que chora copiosa mente passa a apresentarse sem urticária Passou a dedicarse a trabalho religioso em sua comuni dade onde exerce a função de coordenação de um grupo que vai de casa em casa nos bairros mais pobres procu rando determinar as condições de vida do local para levar auxílio religioso e material Nessa fase começa a namorar um rapaz do movimento religioso a que pertence Em casa passa gradativamente a cultivar atitude de maior liberdade contestando ocasional mente o pai mas guardando ainda uma linha de conduta introvertida Isso se dá após cerca de quatro meses de con sultas conosco Após mais quase dois meses de entrevistas semanais sem urticária concordamos em que venha mais espaçada mente a cada três meses Três meses após essa consulta concordamos que deva ter alta Outros casos clínicos Um paciente atendido por um de nós JMF que chamaremos de João enfrentava um momento muito difícil em decorrência da enfermidade da es posa Esta portadora de lupus eritematoso sistêmico estava em fase de atividade da doença com o aco metimento de vários órgãos e sistemas internações hospitalares e episódios depressivos Nessa situa ção funcionando como o sustentáculo de sua famí lia atual soube de súbito de outra crise vivida pela sua família de origem da qual estava distante nada podendo portanto fazer João tinha uma história de liderança familiar e foi muito difícil para ele não se encontrar em condições de ajudar seus pais e irmãos naquele momento Pensou então É pressão demais para mim não estou podendo suportar acho que vou ficar doente No dia seguinte surgiu um quadro de intensa expectoração brônquica Ao ser radiografado ele apresentava extensa lesão pulmonar compatível com síndrome de Löeffler exsudato pulmonar eosi nofílico O diagnóstico foi confirmado pelo achado de eosinofilia de 22 Como essa doença alérgica tem curso benigno em poucos dias o quadro desa pareceu Neste quadro pode ser visto o aparecimento da doença em decorrência de uma sucessão de estres ses quando surgem sentimentos de desistência e de desesperança Há uma nítida percepção do momento do adoecimento que já temos visto em outras opor tunidades porém não é o mais comum e sim o sur gimento menos nítido de percepções sintomas e ma nifestações Em João também pudemos observar um fenômeno interessante ele tolerar os vários estresses da convivência com a doença da esposa mais difíceis ainda por ser ele da área médica porém não o estres se da notícia da crise da sua família de origem Por um lado isso funcionou como aquele algo a mais que faz o copo transbordar por outro como um tipo de estresse em relação ao qual ele se sentia paralisado e não podia agir como o estava fazendo continuamen te em relação a sua esposa João sofreu muito sobretudo com o início pois o aspecto radiológico era compatível com neoplasia o que foi transmitido pelos médicos de modo não ver bal João porém captou essa possibilidade e ficou muito assustado até que a doença fosse de todo es clarecida Lídia é uma paciente desquitada de 29 anos mãe de um casal de filhos que sofre de asma brôn quica desde os primeiros anos de vida Descreve a mãe como muito controladora e possessiva e o pai machista e autoritário ambos pernambucanos Ela é uma mulher tímida porém muito independente o que levoua a se separar por ser o seu marido tão prepotente como o pai escolha edipiana Lídia fez um período de psicoterapia analítica grupal com um de nós JMF tendo alta aos 8 anos de tratamento clinicamente curada da asma Ela tinha crise de asma todas as vezes que se sentia oprimi da controlada inclusive por mim Adotava no grupo uma postura muito desafiadora comigo apesar da timidez Numa oportunidade notou que eu empurrava com os pés o pufe onde os repousava todas as vezes em que eu entrava em conflito com o grupo Lidia denunciou Dr Júlio está puto com o grupo e empur rou o banquinho Expliquei que deste modo aliviava a tensão mas que não retaliava o grupo Este episó dio se repetiu por várias vezes discutindose que si tuações do grupo poderiam estar afetando o analista Pôdese entender que diferentemente do analista que empurrava suas tensões para fora ela engolia as suas para dentro para os pulmões As crises de Lídia foram amainando aos poucos até que desapareceram e ela pode ter alta como uma pessoa muito mais feliz e descontraída disposta para viver os embates da vida emocionalmente e não mais apenas somaticamente DOENÇAS INFECCIOSAS Sem dúvida o campo de estudos mais pesqui sado em Psicoimunologia é aquele que relaciona os Psicossomaticaindd 181 Psicossomaticaindd 181 05012010 121209 05012010 121209 182 Mello Filho Burd e cols fatores psicológicos e o estresse com as doenças in fecciosas A manutenção da homeostase do organismo diante dos agentes infecciosos visa a impedir sua multiplicação bem como a resistência às infecções Apontamse como mecanismos inespecíficos as bar reiras naturais pele cílios presença de ácidos nas superfícies substâncias inativadoras da proliferação dos germes nos humores e muitos outros Já os meca nismos específicos estão representados por uma eli minação muito mais eficaz graças à interferência do sistema imune Os anticorpos por exemplo facilitam extremamente a atração a aderência e a fagocitose dos germes invasores pelas células brancas e pelos macrófagos Os anticorpos também participam da neutralização de partículas virais circulantes Graças ao braço celular da resposta imune podem ser des truídas células infectadas por vírus ou por outros pa rasitos intracelulares pelas células T linfotóxicas Mais uma vez lembramos que o estresse desem penha sobre o sistema imune um papel de inibição ou estimula parte importante de seus componentes o que em certos casos poderia levar a um aumento de morbidade e mortalidade por dificuldade nos meca nismos de coping Em um trabalho junto com Plaut 1981 repor tase à variabilidade dos efeitos mórbidos provoca dos experimentalmente em animais de laboratório dependendo da natureza do organismo patogênico da qualidade e quantidade do estresse e de fatores genéticos e ambientais Em sua monografia depois de enfatizar a natu reza multifatorial das doenças infecciosas Amkraut e Solomon Amkraut 1975 escrevem Pequenas mu danças no processo imune podem causar alterações iniciais para permitir o estabelecimento de infecções por patógenos para alterar o curso da doença des de que a infecção esteja instalada ou mesmo para permitir a invasão por organismos não patogênicos como no caso da gengivite aguda necrotizante a qual é associada com o estresse emocional Citam o caso da infecção pneumocócica lembrando que estes germes estão presentes no trato respiratório e em condições normais nem atravessam a mucosa ou entram nos pulmões em número significativo A na tureza da mucosa as secreções desta e a flora normal impedem proliferação excessiva e penetração Entre tanto as condições destes mucos a e a flora podem ser modificadas pelo estresse permitindo a multipli cação e a passagem de microorganismos Estes se em pequeno número podem ser opsonizados e ataca dos por fagócitos Entretanto a atividade das células fagocíticas pode ser afetada por hormônios ou pelo estresse acarretando seu estímulo ou pelo contrário inativação o que possibilitaria o início da doença Os macrófagos alterados também funcionam menos eficientemente na apresentação dos antígenos às cé lulas linfocitárias Também devemos levar em conta que os polissacarídeos capsulares dos pneumococos estimulam os linfócitos B diretamente e que uma leve diminuição da atividade destes pelo estresse pode le var a uma produção inadequada de anticorpos Do mesmo modo a redução dos níveis de complemento do paciente ou de um particular componente do sis tema de complemento pode aumentar a severidade da doença Não é difícil para aqueles que lidam com a tu berculose constatar as relações entre melhoras e pio ras dos pacientes e seus problemas emocionais Já em 1919 Ishigami citado por Schindler 1985 escreveu sobre isso quando estudando a opsonização do bacilo tuberculoso observou a diminuição da atividade fa gocitária durante episódios de excitação emocional atribuindoos ao estresse da vida de então Wittkower 1955 escreveu que algumas vezes pode ser mais adequado firmar o prognóstico do paciente na base de sua personalidade e nos conflitos emocionais que na base das imagens de suas radiografias Podemos lembrar que a psicoterapia de grupo nasceu com Pratt quando este na década de 1930 começou a atender pacientes tuberculosos em peque nos grupos para possibilitar um processo educativo em relação a suas enfermidades bem como a pers pectiva de melhor lidarem com elas favorecendo a alta e a reabilitação Também devemos lembrar os famosos trabalhos de Renée Spitz 1960 sobre crianças internadas em instituições onde entre várias situações mórbidas descritas depressão anaclítica marasmo hospitalis mo ele também constatou aumento de mortalida de por uma maior susceptibilidade a infecções Em suas preciosas observações Spitz descreveu como a simples presença da mãe fazia reverter os quadros relatados Em um importante trabalho de pesquisa Mar tin Jacobs 1966 autor que vem estudando proble mas psicossomáticos em pneumologia constatou que adoeciam com infecções das vias aéreas superiores sobretudo pessoas em situações de mudança de vida que estavam usando mal seus mecanismos psicológi cos de adaptação De fato sabem frequentemente os médicos e muitas vezes ainda mais os leigos que com facilidade situações de resfriado gripe ou bron quite ocorrem em pessoas fatigadas emocionalmente ou mesmo deprimidas Meyer 1962 Greenfield e colaboradores 1959 realizaram um interessante trabalho experimental sobre a relação entre a capacidade de recuperação de uma doença in fecciosa e a saúde mental de um paciente Nesse sen tido aplicaram o Minnesota Multiphasic Personality Psicossomaticaindd 182 Psicossomaticaindd 182 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 183 Inventory MMPI um importante teste de avaliação psicológica em 38 pessoas homens e mulheres que estavam em recuperação de um processo de mononu cleose infecciosa Eles dividiram os pacientes em dois grupos os de longa recuperação e os de curta recu peração O grupo que se recuperou mais rapidamente apresentava significativos escores de maior força de ego do que o grupo que se recuperou mais lentamente Na discussão desse trabalho escrevem os autores que parecenos que há agora uma substancial evidência empírica para a assertiva de que a saúde psicológica e a somática são separáveis apenas arbitrariamente Para parafrasear uma citação familiar Onde existir soma existirá ego Em importante trabalho retrospectivo de 1979 Kasl e colaboradores 1979 descrevem o estudo de 1327 cadetes de West Point nos quais entre outros aspectos foram pesquisados episódios de mononu cleose infecciosa Aqueles que desenvolveram a do ença tinham altos níveis de motivação porém pobres performances acadêmicas e ao mesmo tempo eram filhos de pais com muitas realizações na vida Alguns trabalhos vêm estudando mais moder namente os mecanismos através dos quais os fatores psicossociais podem alterar a capacidade do sistema imunológico para lidar com infecções Nesse sentido por exemplo Gruchow 1979 conseguiu detectar elevações de catecolaminas três dias antes de episó dios infecciosos Tivemos oportunidade de acompanhar pacientes com mal de Hansen em um trabalho de psicoterapia grupal que supervisionamos Oliveira et al 1988 Nesse trabalho no qual o que mais nos impressionou foi a questão do estigma psíquico destes pacientes tivemos oportunidade de constatar por várias vezes recorrência dos sintomas e das lesões cutâneas du rante ou após episódios traumáticos ou conflitivos in trafamiliares Após três anos de psicoterapia grupal praticamente todas as pacientes se mostraram benefi ciadas por este processo seja através de uma melhora de suas enfermidades mantida a medicação que já faziam anteriormente seja por uma atitude menos hipocondríaca culpada ou submissa E as exacerba ções das lesões cutâneas que se seguiam aos estresses praticamente desapareceram Entre as viroses tem sido estudado sobretudo o herpes simples Amkraut e Solomon 1975 descre vem do modo a seguir a sequência de fatos que se passariam na infecção herpética Eles recordam que os anticorpos coexistem com uma infecção aberta ou inaparente A doença que se dissemina por uma transferência célula a célula do vírus é talvez posta em cheque por uma contínua monitoração das célu las infectadas por linfócitos T Estes podem destruir os vírus diretamente ação citotóxica ou através da ativação de macrófagos da vizinhança O estresse acrescentam eles perturba esse equilíbrio possibili tando a proliferação do vírus o que também se dá por febre ou radiação ultravioleta Na prática é muito fácil colher testemunhos vários sobre a interação entre situações de estres se e crises herpéticas Os próprios pacientes com o decorrer dos seus tratamentos psicoterápicos ou analíticos aprendem a diagnosticar sobre que situa ções de estresse serão capazes de reativar os vírus Num paciente de um de nós JMF as crises de her pes genital estavam relacionadas com sua situação conjugal Se ele não estava bem com a esposa mos trandose ressentido ou insatisfeito surgia o herpes como forma de evitar o relacionamento e poder con taminar a companheira Quando eventual mente se dispunha a ter relações extraconjugais também sur gia o herpes como forma de sabotar os encontros eivados de culpa Esta é uma importante doença em seus aspectos psicossomáticos pois se calcula que de 10 a 25 da população sexualmente ativa neste momento nos Es tados Unidos padece de crises recorrentes de herpes simples Outro terreno muito fértil para a pesquisa em Psicologia Médica é representado pela AIDS Aqui te mos uma doença infecciosa uma virose que nitida mente provoca várias situações somatopsíquicas e o agravamento de suas crises Solomon 1987 em um trabalho recente so bre enfoques psiconeuroimunológicos e pesquisas em AIDS diz que só mais recentemente estas questões vêm sendo pesquisadas e cita o Projeto Biopsicosso cial de São Francisco sobre AIDS do qual ele próprio está participando e outro trabalho da Universidade de Berkeley também prospectivo Os homossexuais são sujeitos ao estresse da ho mofobia societária a qual em alguns é internalizada com dano consequente à autoestima Uma variedade de severas psicopatologias geralmente subjaz à dro gaadição a qual tende a ser caracterizada por falha em lidar com um afeto e com um uso mal adaptativo do mecanismo de defesa da negação Os hemofílicos têm uma doença ameaçadora de suas vidas que é cer tamente estressante dolorosa e autolimitante Pre existentes estados emocionais podem modificar os efeitos do estresse na imunidade Estudantes de Me dicina que estão só reagem ao estresse de um exame com uma maior imunossupressão Se um siste ma imune já está comprometido sêmen opiáceos ou infecção virótica não é compreensível que o estresse possa ser mais imunossupressor que em um sistema imune intacto e mais resistente Em relação ao desencadeamento da doença é difícil muitas vezes fazer correlações pois o tempo de Psicossomaticaindd 183 Psicossomaticaindd 183 05012010 121209 05012010 121209 184 Mello Filho Burd e cols incubação costuma ser longo e muitas vezes de difícil determinação Temos visto todavia pacientes que se expõem de modo consciente ou não à doença e que efetivamente depois de um prazo maior ou menor lo gram se contaminar Isso é relativamente frequente em homossexuais passivos com muitos traços maso quistas ou em usuários de drogas endovenosas Caso clínico Marta é uma paciente de 50 anos que poderíamos cha mar de infectofílica plagiando as personalidades trau matofílicas descritas por Dunbar em razão de uma longa história de ocorrências infecciosas como iremos descrever Ela está em psicoterapia analítica de grupo há alguns anos com um de nós JMF tendo feito inúmeros progressos em sua forma ansiosa de ser e nas dificuldades de relaciona mento com os demais logorreica e necessitando tornarse centro de atenções dos outros Foi a penúltima de cinco irmãs tendo sido caçula por vários anos Nasceu prematura e foi apelidada com o nome de um crustáceo pelos pais Era considerada muito frágil ao nascer e durante os primeiros anos de vida O pai sempre a preferiu ostensivamente às outras irmãs gerando vários problemas de ciúme e rivali dade com estas que em parte continuam até os dias atuais Quando Marta tinha 6 anos o pai passou por uma seve ra crise de depressão que durou mais de um ano Nesta fase e em decorrência da crise ele abandonou uma carreira profissional de muitas realizações tendo resolvido estudar Medicina Tornouse especialista e professor de doenças in fecciosas tendo feito uma carreira muito brilhante Aos sete anos Marta teve um episódio importante de impetigo que lhe tomou todo o corpo eu era uma chaga só Durante toda a infância apresentou furunculoses que se repetiam precisando até raspar o couro cabeludo Também por isso ela ficou estigmatizada deu várias vezes aparece até nos retratos sentindose por esta ra zão feia e doente Depois na juventude teve um quadro infeccioso também arrastado de difícil diagnóstico tratado como febre tifoide e mononucleose infecciosa concomitan tes O próprio pai como de outras vezes a diagnosticou e medicou Na década dos vinte Marta apresentou um qua dro de neurodermatite em ambas as pernas Foram alguns anos de crises e ida a vários dermatologistas até que um deles a curou sic Em meados dos 40 anos envolvida com um namoro crônico que não se definia numa fase de muito desgaste da relação começou a apresentar um quadro de febre e as tenia que foi diagnosticado como mononucleose infecciosa por um gabaritado clínico geral seu pai já havia falecido Fez repouso e tomou medicamentos inclusive cortisona porém não apresentava melhoras contra as expectativas médicas Por esse motivo e como seu médico a achasse deprimida ele resolveu lhe sugerir análise Enquanto de cidia se iria aceitar a indicação Marta resolveu terminar o namoro tendo o quadro infeccioso e o mau estado geral desaparecido Só depois em meio a dificuldades com uma nova relação com quem veio a se casar resolveu iniciar o tratamento analítico Do seu casamento Marta em sua primeira gestação deu origem a filho prematuro que veio a falecer com poucos dias de nascido em meio a complicações pulmonares sín drome de membrana hialina Sofreu bastante com esta perda significativa pois seria seu primeiro filho Marta teve uma segunda gestação da qual nasceu seu filho atual por todas as razões uma pessoa importantíssima em sua vida Durante esta gestação exatamente aos oito meses confi gurando o que chamamos uma reação de aniversário teve um episódio de pneumonia que a igual modo de várias in fecções anteriores foi de difícil cura e recuperação O tratamento de Marta prossegue com avanços e difi culdades dadas suas particularidades de vida e o acúmulo de problemas anteriores Um dos progressos foi a sua de cisão de poder se separar do esposo ao reconhecer neste uma série de dificuldades pessoais tornando o casamento difícil e espinhoso Nesta nova fase de sua vida separada e enfrentando uma série de problemas profissionais com os quais não esperava se defrontar fruto mais de situações conjunturais do que de dificuldades pessoais não resolvi das Marta apresentou dois episódios depressivos maio res que necessitaram uso de medicamentos No primeiro destes apresentou surtos gripais e tosse crônica No últi mo episódio numa fase em que estava se dando conta de que a ligação com um atual namorado era mais precária do que imaginava ao mesmo tempo em que enfrentava uma situação de ameaça de perder o emprego teve novo surto pneumônico desta vez porém de melhor evolu ção que os anteriores Há que esperar em pacientes como Marta que estes possam abandonar o recurso do apelo à via somática quando em situação de crise aprendendo a expressar o pedido de ajuda por outros meios mais ma duros e menos primitivos Isso todavia se torna difícil quando se relata toda uma história de vida de aprendizado e condição A reação de aniversário foi descrita por Engel 1955 e por outros autores A esse respeito escrevemos anteriormente Mello Filho 1976 Tratase da ocorrên cia de uma enfermidade no período que corresponde ao aniversário de um evento traumático que afetou uma pessoa importante para o paciente morte de um familiar geralmente Por vezes surge como reação ao aniversário de uma patologia importante Nessas situações a vivên cia inconsciente do tempo muito mais poderosa do que geralmente imaginamos joga um papel decisivo já que o fenômeno ocorre sem que o paciente se dê conta da inter relação dos fatos PostScriptum Nas associações entre estresse e doenças infec ciosas Kemeny e Schedlowski Kemeny 2007 citam importantes pesquisas feitas em animais particular mente através de indução de viroses Usando tais técnicas Cohen 1991 encontrou que índices mais elevados de estresse prediziam maior suscetibilidade a infecções virais por rinovirus menor formação de anticorpos e sintomas mais intensos Em experimen Psicossomaticaindd 184 Psicossomaticaindd 184 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 185 tos com seres humanos com modelos que avaliam as respostas imunes a vacinações contra a influenza e a hepatite B taxas menores nos anticorpos induzidos por aqueles agentes vacinais puderam ser previstas em pessoas em situações de estresses agudos exa mes médicos escolares ou crônicos cuidadores de pacientes com Alzheimer Um terceiro tipo de situ ação emblemática relatada é a reativação de viroses latentes como as produzidas pelo vírus EpsteinBarr EBV o herpes simples HSV e o citomegalovírus CMV Ainda em relação à AIDS os indivíduos infecta dos são submetidos a constantes e importantes estres ses tais como estigmas conflitos familiares ligados ao seu diagnóstico e às vezes à morte de companheiros as por eles contaminados Experimentos puderam prever a queda dos níveis de CD4 e o início dos sinto mas da doença com base nos estresses enfrentados de maneira surda ou aguda Respostas como pessimismo sobre a evolução da doença predisseram degradação imunitária e inclusive morte Altos níveis de estresse têm sido associados à baixa de CD4 CD8 e da diminuição da atividade NK Os autores citam estudos com macacos que compro varam que experiências de troca de jaulas e de sepa ração prolongada aumentavam a gravidade da doen ça nos infectados com o vírus da imunodeficiência dos símios SIV DOENÇAS NEOPLÁSICAS Emoções e câncer Este é o terreno da psicoimunologia clínica que mais se desenvolveu nos últimos anos provavel mente em razão da própria importância da doença do sofrimento dela decorrente e das tentativas de através da exploração do psiquismo descobrirse uma via régia para o entendimento dessas enfermi dades pois na realidade não há um câncer existem cânceres Depois de Galeno citado anteriormente talvez tenha sido Amussart 1854 o primeiro a falar dessas relações quando escreveu que a influência do luto parece ser a causa mais comum de câncer Schavelzon 1965 grande estudioso desde há muitos anos das relações psiqueneoplasia cita três importantes precursores neste campo Evans 1926 que foi aluno de Jung e estudou 100 pacientes en contrando o fato comum de que perderam uma par te de suas relações antes da neoplasia Foque 1931 considerava que determinados estados psíquicos tor nariam as células receptíveis a transformações malig nas no momento da eclosão da doença Peller 1940 foi um dos primeiros a chamar a atenção para as si tuações de perda e luto ao demonstrar uma maior predisposição de viúvos ao câncer Quatro autores podem ser considerados clássi cos a esse respeito pela seriedade extensão e número de casos estudados Leshan 1966 Greene 1966 Schmale 1966 e Kissen 1966 Greene estudando casos de linfoma e de leu cemia observou o surgimento da doença durante situações de perda ou de separação provocando sen timentos de tristeza desespero e desesperança Nas suas palavras os linfomas e as leucemias surgiriam quando os pacientes estivessem esgotados de recur sos psicológicos produzindose vergonha e desespe rança Leshan 1966 fez talvez o trabalho mais com pleto até os dias atuais sobre o tema inclusive por que se baseou em quase 500 casos entrevistados e ou acompanhados psicoterapicamente Ele encontrou em seus pacientes perda de uma relação significativa antes do início da doença incapacidade de expressar sentimentos hostis importante tensão em relação a uma figura parental sentimentos de desamparo e de desesperança Sugeriu que os pacientes com câncer têm uma vida particular de abandono solidão cul pa e autocondenação Embora essas pessoas estives sem em um total desespero de serem elas mesmas frase de Kierkegaard continuavam a executar suas atividades e rotinas mesmo sem adquirir satisfação depletandose por se dar incessantemente aos outros não se permitindo receber Kissen 1966 que trabalhou por muitos anos com câncer de pulmão publicou vários trabalhos com base nos casos que atendeu e na aplicação de testes psicológicos Maudsley Personality Inventory Esse autor postulou que estes pacientes apresentam uma típica tendência a suprimir seus problemas emocio nais e conflitos Por tudo isso eles teriam uma saída diminuída para a descarga emocional Schmale e Iker Schmale 1966 em importan tíssimo trabalho prospectivo estudando mulheres predispostas as câncer de colo de útero encontraram fatos semelhantes aos até aqui relatados Em uma pesquisa 1964 estes autores estudaram através de entrevistas psicológicas e testes de personalidade 51 mulheres assintomáticas porém predispostas ao cân cer de colo uterino pois apresentavam esfregaços va ginais classe III de Papanicolau Na base da avaliação psicológica feita os autores tentaram prever quais das pacientes desenvolveriam câncer A expectativa é de que a doença se instalaria naquelas mulheres que tivessem suas vidas marcadas por fortes sentimen tos de desesperança e que tivessem apresentado um acontecimento vital capaz de despertar esses senti mentos dentro dos últimos seis meses antes de terem Psicossomaticaindd 185 Psicossomaticaindd 185 05012010 121209 05012010 121209 186 Mello Filho Burd e cols sido examinadas As previsões estavam corretas em 36 dos 51 casos estudados apresentando portanto resultados de alta significação estatística e fidedigni dade em relação à hipótese estabelecida Estes trabalhos quase todos retrospectivos cen trados no estudo da personalidade dos pacientes e nas situações desencadeadoras têm sido criticados por poderem refletir aspectos da vida emocional se cundários ao aparecimento da neoplasia reações so matopsíquicas Ponderam estes críticos de orienta ção behaviorista que somente estudos prospectivos poderiam comprovar que certas tendências ou rea ções psicológicas seriam realmente significativas em relação ao surgimento e evolução de uma neoplasia O fato é que os estudos prospectivos nos quais se seleciona determinado segmento da população que é estudado previamente e acompanhado com entre vistas e exames vários ao longo dos anos são muito dispendiosos e difíceis de serem realizados Por esse motivo poucos trabalhos desse tipo foram relatados com referência ao câncer até o momento Em um destes trabalhos Thomas e colaboradores 1979 estudaram um grupo de estudantes de Medicina da Universidade John Hopkins Encontraram uma se melhança na história e no perfil psicológico daqueles que desenvolveram câncer ou tiveram doenças men tais Esses grupos relatavam uma história de relacio namento emocional distante com seus pais o que não aconteceu no grupo considerado normal e naqueles que desenvolveram coronariopatia O trabalho de Schmale e Iker Schmale 1966 já citado é do tipo prospectivo e parece não oferecer sombra de dúvida sobre a importância dos sentimentos de desesperan ça nas situações anteriores ao desencadeamento do câncer Do mesmo modo como se tem estudado os as pectos psicológicos dos pacientes com câncer e a si tuação do início da doença têm sido pesquisados tais aspectos em relação ao agravamento surgimento de metástases e o desenlace ou ao contrário a regres são espontânea da doença Leshan e Gassman Leshan 1958 através do acompanhamento psicoterápico dos seus casos pu deram observar que o aparecimento de problemas emocionais não resolvidos podia ser seguido por um crescimento mais rápido do tumor enquanto a reso lução de tais problemas podia ser seguida de uma regressão temporária Miller e colaboradores 1977 e 1979 referem a ocorrência de recidivas da do ença em pacientes com 10 a 20 anos de remissão após a ocorrência de um severo estresse emocional Alguns desses trabalhos tentando ser mais objeti vos basearamse em testes psicológicos Blumberg e colaboradores 1954 usando o MMPI compara ram os resultados do grupo de rápida evolução com aqueles de sobrevivência maior que a esperada Os pacientes do primeiro grupo má evolução eram sig nificativamente mais sérios cooperativos ansiosos e sensitivos Eles também tinham um maior grau de depressão e ansiedade e uma diminuição da capaci dade de reduzir essa ansiedade através de uma ação corretiva externa Os autores interpretaram estes e outros achados como indicativos de que a ação dos estresses de longa duração sem a capacidade de uma expressão externa pode ter um efeito estimulador no crescimento de um câncer Posteriormente Stavravy 1968 estudou a questão da evolução através do uso deste mesmo teste psicológico MMPI O ponto mais significativo dos seus achados é o de que os pacien tes com longa sobrevida exibem exatamente o perfil oposto ao desesperodesesperança tão assinalado nos estudos com pacientes com câncer Consideramos este achado altamente significativo pois está de acor do com a observação genericamente feita por clínicos e cirurgiões de que os pacientes de boa evolução e sobrevida são exatamente aqueles que conseguem se manter esperançosos diante de suas enfermida des muito embora esta esperança se sustente mesmo através de mecanismos de negação e racionalização Psique e cura espontânea do câncer O fenômeno da cura espontânea de uma neopla sia vem intrigando de há muito o meio médico lei gos e ambientes paramédicos já que este fenômeno surge muitas vezes com uma aura mística e sobrena tural Ele ganhou reputação e notoriedade científica quando Sir William Osler relatou em 1901 a redução espontânea de metástases em duas mulheres com cân cer de mama O assunto naquilo que nos diz respeito foi revisado por Stoll 1979 cuja exposição em li nhas gerais passaremos a seguir Ele nos diz que esta questão não é tão incomum como pode parecer e re fere que Everson e Cole Everson 1976 fizeram em 1976 um apanhado da literatura mundial coletando 176 casos Segundo Stoll 1979 este número de ca sos deve ser muito maior se levarmos em conta fatores como casos em que há regressões totais de algumas metástases e de outras não casos de regressão lenta não dramática que deixam de ser relatados casos de regressão fora de um ambiente médico e portanto não documentados Cita Stoll sete fatores apontados como imbricados neste fenômeno aumento da reação imune ação hormonal trauma cirúrgico irradiação agentes químicos eliminação das influências carcino gênicas e episódio infeccioso agudo Acrescenta que sem dúvida o aumento da resistência imunológica é Psicossomaticaindd 186 Psicossomaticaindd 186 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 187 o principal fator e que sua ação de gatilho pode ex plicar os efeitos de um possível trauma cirúrgico da suposta ação da irradiação e de um estado infeccioso agudo Recordanos Stoll que existem evidências de mecanismos imunológicos de defesa em muitos tipos de câncer humano Assim os tumores primários evo cam a formação de anticorpos específicos os quais se combinam com os antígenos do tumor inativandoos As células linfoides específicas e imunologicamente reativas também são estimuladas Para ele a demons tração da presença de antígenos associados ao tumor nos casos demonstrados do fenômeno é a prova cabal da importância da ação deste gatilho imunológico Por tudo isso os mecanismos são basicamente imunoló gicos e endocrinológicos inclusive porque há muitas evidências de que manipulações imunológicas ou en docrinológicas podem provocar rápidas regressões de cânceres em homens ou em animais Essas ações po dem ser desencadeadas pela atividade cerebral cortical através da mediação de centros hipotalâmicos como já foi visto antes A seguir Stoll 1979 cita o inte ressante trabalho de Ketcham e colaboradores 1976 sobre 108 casos em que houve completa remissão após uma cirurgia Eles consideram que o efeito psicológico da hospitalização e da cirurgia pode indubitavelmente afetar mecanismos metabólicos e neuroendócrinos e daí postulam que tais efeitos psicofisiológicos asso ciados com a crença na cura levam o tumor a regredir em alguns dos casos operados Sobre as chamadas curas da fé ele escreve É então possível que fatores mentais ou emocionais possam estar envolvidos em alguns dos assim chama dos casos inexplicáveis de regressão espontânea de um câncer Fé religiosidade e uma crença muito po derosa parecem ser os fatores comuns em muitos dos pacientes que mostram cura espontânea de um cân cer Entretanto em alguns dos casos relatados um incidente capaz de elevar emocionalmente o paciente parece ter precedido o início da remissão Para de monstrar esse tipo de ocorrência Stoll 1979 cita o seguinte caso uma freira apresentou icterícia em cuja pesquisa etiológica demonstrouse a presença de um câncer de cabeça de pâncreas através de uma ex ploração cirúrgica abdominal O diagnóstico foi feito por uma biópsia realizada durante o ato cirúrgico Irmãs da ordem desta freira começaram a interceder por ela rezando Ela recuperouse rapidamente da cirurgia e do seu estado de grande debilidade Re tomou o trabalho onde permaneceu por sete anos até falecer Na autópsia apresentava embolia pulmo nar maciça porém nenhuma evidência do tumor de cabeça do pâncreas Sobre a influência da religião e do misticismo citamse casos em que se processou a cura espontânea de uma neoplasia algumas em es tado avançado O único dado em comum nesses pa cientes era o apego à religião IKEMI O câncer como modelo de doença integral Poucas doenças demonstram ser tão dependen tes de uma etiologia multifatorial como o câncer Daí ser um reducionismo considerar que a história de um tumor que se segue a uma situação de perda ou de es tresse se esgote em uma ou outra destas situações Es tas situações no caso do câncer parecem incluir os seguintes fatos ser uma doença geneticamente deter minada e programada incluir uma falha do sistema imunológico em algum momento de sua programa ção ser susceptível a várias influências ambientais tais como a ação dos raios ultravioleta no câncer da pele ser susceptível à ação de várias substâncias tó xicas presentes artificialmente no hábitat humano como a nicotina no caso do câncer de pulmão de pender da influência de fatores alimentares tal como é o caso de dietas excessivamente ricas em gordura que podem favorecer o aparecimento ou a evolução de várias neoplasias ser decorrente da ação de múl tiplos agentes virais os oncovírus que explicam a etiologia de muitos tipos de câncer ser susceptível à influência de fenômenos de estresse e a fatores psi cológicos vários quer no seu desencadeamento e má evolução quer na direção de um curso mais benigno podendo mesmo incluir o seu desaparecimento Se o câncer é uma doença vinculada à pessoa integral do paciente ele deve ser o reflexo de suas re lações pessoais de sua vida familiar e social Leshan e Worthington Leshan 1956 fizeram um importante trabalho de ordem estatística a esse respeito Postu laram que se estes fatos são verdadeiros a incidência do câncer nos diferentes grupos sociais deveria variar em relação à frequência com que houvesse se produ zido uma alteração em sua vida de relação ou uma perda sentimental grave Por exemplo em diferentes relações conjugais Assim as viúvas figurariam em primeiro lugar depois o grupo divorciado depois o grupo de casados que só manteriam o vínculo por ra zões religiosas financeiras ou outras e finalmente o grupo dos solteiros Todos os estudos realizados pelos autores mantiveram estatisticamente esta curva de frequência Acompanhando pacientes com câncer de vários tipos podese constatar com relativa facilidade a in fluência das posturas familiares na evolução de cada Comunicação pessoal Congresso Mundial de Medicina Psicossomática Rio de Janeiro 1982 Psicossomaticaindd 187 Psicossomaticaindd 187 05012010 121209 05012010 121209 188 Mello Filho Burd e cols caso Isso ficou patente na experiência de Corbineau em nosso Serviço coordenando durante 3 anos um grupo terapêutico com pacientes portadoras de cân cer de mama Corbineau 1986 Nas três pacientes que faleceram havia más relações familiares princi palmente com os filhos As relações com os esposos eram melhores muito embora uma delas tenha sur preendido o marido em situação de intimidade com uma prima O que pareceu chocála ainda mais foi contudo a repetição de fato semelhante na vida de uma filha deixandoa verdadeiramente revoltada e desesperada Isso se deu pouco tempo antes de sua morte Nas três pacientes podiam ser constatadas ati tudes de rejeição por parte dos filhos como se estes captando a gravidade de suas doenças preferissem não se envolver com elas para não assumirem a dor e o peso da responsabilidade implícitos em aceitar o problema daí decorrente Um fato que impressionou Corbineau no acom panhamento de suas pacientes foi a facilidade com que estas desenvolviam metástases após situações de perda ou de estresse Assim nos conta que depois que uma paciente passava por uma situação desse tipo ela ficava numa condição de expectativa para o que viesse a acontecer e quase invariavelmente dois três ou mais meses após a metástase se anunciava sem que nada pudesse ser feito para evitála Ainda den tro deste tema rejeição familiar e agravamento de uma neoplasia cabem algumas palavras sobre o caso da rejeição consumada por uma equipe de saúde fato muito frequente infelizmente em nosso meio prin cipalmente em relação aos pacientes de baixa renda Friedman falando em 1982 entre nós sobre Morte Vodu e relação médicopaciente fez um para lelo entre a atitude do feiticeiro vodu em apontar o osso para alguém e uma série de atitudes médicas iatrogênicas comuns Assim o feiticeiro da Jamaica ao apontar o osso denuncia ao indivíduo que ele infringiu um importante tabu familiar comunitário ou religioso condenandoo a uma espécie de estado depressivo no qual não se alimenta retraise de tudo e de todos e termina falecendo Do mesmo modo a equipe que não visita o paciente não se dirige ao mesmo e nem o cumprimenta está apontando o osso para ele dizendo implicitamente que ele está mal que nem vale mais a pena investir nele Friedman também se referiu em uma conferência ao ato de in formar a um paciente apressadamente e maciçamen te que este tem um câncer como uma forma de lhe apontar o osso e apressar sua morte O lado oposto a ação benéfica do apoio familiar ou social também merece ser revelado No caso da paciente Fernanda descrito a seguir o apoio prestado pelo esposo e a alegria de ter adotado uma filha bem como a atenção os cuidados e a empatia sempre pre sentes na equipe médica que a atendeu foram fatores que sem dúvida melhoraram sua qualidade de vida e quem sabe retardaram a fase final de uma neoplasia que desde o início se apresentou como muito grave e metastatizante Reed e Jacobsen Reed 1988 em um artigo de revisão intitulado Emotions and cancer new pers pectives on an old question colocam uma série de importantes questionamentos sobre este tema que passaremos a discutir Eles consideram as seguintes questões como de prioridade atual de que modo os estados psicológicos afetam a transformação de célu las normais em malignas o impacto do câncer e seu tratamento psicológico visando a um ajuste emocio nal papel dos suportes sociais no câncer o impacto do câncer de longa duração e seu tratamento o luto familiar que se segue à morte de um paciente com câncer o papel do psiquiatra e do psicoterapeuta na redução dos efeitos colaterais dos quimioterápicos Alertamnos para uma questão importantíssima Normalmente leva muitos anos para aparecerem sin tomas depois que as células benignas se transformam em malignas E com que facilidade consideramos tout court que um estresse de um dos ou dois anos atrás foi o responsável pelo início da doença de um paciente Reed e Jacobsen Reed 1988 recordam nos de que as neoplasias evoluem através de múlti plas fases início promoção e progressão Com dis tintas interações bioquímicas ocorrendo em cada fase existe a possibilidade que estas possam ser afetadas diferencialmente por fatores psicossociais É provável que fatores psicossociais sejam mais importantes para a promoção e a progressão do que para o início E citando um trabalho de Fox 1981 criticando a ten dência de juntaremse achados de neoplasias várias desconhecendo suas diferenças e particularidades eles escrevem É crucial portanto que as pesquisas individuais se foquem em um câncer particular ou em um grupo de cânceres com similaridades conhecidas Um pool indiscriminado de dados psicossociais para pacientes com diferentes tipos de câncer seria como misturar laranjas e maçãs sem saber no que elas di ferem Dois importantes trabalhos de orientação psicoi munológica são referidos pelos autores Levy 1991 usou um método para determinar a relação entre fa tores de personalidade e parâmetros imunológicos associados como indicadores de um prognóstico em pacientes de câncer de mama Eles evidenciaram que Friedman S Comunicação Pessoal 1982 Shavelzon nos dá uma média de 5 anos para que uma neoplasia inicial se manifeste clinicamente Psicossomaticaindd 188 Psicossomaticaindd 188 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 189 pacientes que relatavam sentimentos de apatia in diferença e depressão tinham níveis mais baixos de atividade natural killer que pacientes que eram mais expressivos Em outro interessante trabalho citam Schleifer e colaboradores 1983 que seguiram espo sos de mulheres portadoras de carcinomas avançados de mama e analisaram os parâmetros imunes desses maridos no período antes e após a morte da paciente A função imune isto é a resposta à estimulação lin focitária estava deprimida nos primeiros meses que se seguiam à morte da esposa Uma depressão menos pronunciada era em seguida observada do quarto ao décimo quarto mês Por tudo o que foi dito podese deduzir que cada vez um maior número de clínicos e cirurgiões pesqui sadores reconhece o papel dos fenômenos psicosso ciais no câncer Apesar disso um número grande de médicos presta pouca ou quase nenhuma assistência psicológica aos seus pacientes e sequer os encaminha a um profissional de Psicologia Médica Todas as etapas do diagnóstico e tratamento do câncer são difíceis e exigem tato e conhecimento na abordagem dos problemas psicossociais e familiares Na questão do diagnóstico evoluiuse de uma posição de nada dizer ao paciente para outra a de informar o diagnóstico ao paciente esquecendose muitas vezes do cuidado de preparálo e esperar pelo momento ti ming em que esteja mais preparado para lidar com uma situação tão difícil Também requer sensibilida de e tato em relações humanas perceber qual familiar do paciente pode ser nosso interlocutor em relação à doença deste Igualmente durante os períodos de quimioterapia ou radioterapia muitos pacientes ne cessitam de suporte psicológico a ser prestado pela equipe clínica ou pelos especialistas Obviamente as coisas se complicam ainda mais quando a doen ça evolui apesar do tratamento clínico ou cirúrgico e principalmente quando o caso caminha para os estágios finais A psicoterapia de um paciente onco lógico nessas condições é sempre uma tarefa difícil e que deveria ficar a cargo de um terapeuta mais expe riente os mais jovens poderiam se beneficiar com a supervisão de pessoas muito experimentadas nestas questões A nosso ver é preciso antes de tudo que o psi coterapeuta tenha uma atitude de muita humildade e possa inicialmente captar e aprender sobre a rea lidade médica daquela especial condição do pacien te antes de fazer juízos ou intervenções psicológicas sobre o caso Os conhecimentos médicos de um psi quiatra psicanalista e mais ainda de um psicólogo são muitas vezes insuficientes pelo menos para o caso daquele paciente pelo que é preciso que o pro fissional psi tenha uma visão da situação como um todo e sempre funcione como parte de uma equipe una e coesa Vimos mais acima que o espaço de tempo médio entre o surgimento de uma neoplasia e a momento em que ela começa a produzir sintomas podendo ser então reconhecida está em torno de 5 anos E quantas vezes dizemos ou escrevemos que este ou aquele câncer se iniciou há seis meses ou há sete anos atrás na decorrência de um estado depressivo ou de determinado trauma psíquico que afetou o paciente Nesse sentido uma visão abrangente da doença se impõe com o reconhecimento do papel desempenha do pela genética dia a dia mais comprovado labo ratorialmente Um raciocínio que leve em conta as fases de promoção e progressão propostos por Reed e Jacobsen Reed 1988 também poderá nos levar a posturas mais realísticas e mais verdadeiras Ob viamente os dados a favor de uma Psicooncologia são muitos e cada vez mais pormenorizados porém é preciso conhecêlos interpretálos combinálos e comparálos para poder darlhes uma real utilização clínica em prol de um paciente Voltando à tarefa do psicoterapeuta no mais das vezes vemos que ela é difícil e espinhosa É di fícil trabalhar com um paciente que quer acima de tudo negar a realidade ferindo nossos preceitos de levantar a verdade acima de todas as causas e tor nar o inconsciente consciente É difícil trabalhar com um paciente que percebemos ter condições de saber a verdade porém esta tem que permanecer subterrâ nea pois a equipe médica pensa de modo contrário É difícil deixar o aconchego do consultório para acom panhar o paciente na residência ou no hospital pre cisando improvisar um setting e se sujeitar por vezes a ser interrompido pelos mais variados profissionais de saúde É difícil sobretudo acompanhar o pacien te sem dispor de recursos diagnósticos e terapêuticos cirurgias endoscopias exames e medicamentos vá rios que deem a sensação de termos a força o novo o mágico a cura E podemos continuar apenas com nossa conversinha mantendo a convicção de que te mos realmente algo a fazer por aquele paciente Num caso que ocorreu num dos hospitais em que já trabalhamos uma psicoterapeuta sem maior experiência começou a tratar uma paciente jovem com um tumor maligno de reto Ela não fez contatos mais profundos com a equipe médica que atendia a paciente que estava deprimida e abordoua dizendo que sua doença estava relacionada com seus desejos de autoagressão Certo tempo após ela soube atra vés da equipe que o caso havia se agravado e que A atitude de informar toutcourt o diagnóstico é geralmente um plágio da medicina americana de uma forma de pensar e proteger o médico e não o paciente Psicossomaticaindd 189 Psicossomaticaindd 189 05012010 121209 05012010 121209 190 Mello Filho Burd e cols seria tentada uma cirurgia paliativa para adiar a con dição que se esboçava de doença terminal Nesse momento ela me procurou para uma ajuda supervi são pois estava insegura em manter aquele enfoque diante de uma paciente com possibilidades reais de morrer E acima de tudo muito temerosa diante da evolução para ela inesperada do caso A supervisão foi prestada e a colega pôde ajudar melhor sua pa ciente em sua caminhada final Terapeutas geralmen te menos experientes ou com formações menos com pletas costumam com muita facilidade interpretar pacientes com câncer ou doenças autoimunes como se estes estivessem simplesmente se autoagredindo internamente Eles dizem aos pacientes hipertensos que estão assim porque têm muita raiva retida em seu interior Essas coisas podem inclusive acontecer porém não de forma tão simples Esses terapeutas precisariam pensar na frase de Hamlet que deveria ecoar mais dentro de nós Há mais verdades entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia Caso clínico Uma paciente que chamaremos de Fernanda nasceu em 1944 de parto normal tendo sido amamentada pela mãe até os dois anos Nesta época para desmamála a mãe colocou Iodex no seio e disse a ela que era cocô de galinha A mãe sempre tratou esta filha como frágil e doen te Toda a família de classe média sofria devido à situação financeira de poucos recursos Na infância Fernanda ficou muito marcada com a morte do avô materno de infar to do miocárdio a quem era muito ligada Quando tinha 16 anos os pais se separaram e ela veio residir na cidade grande Adaptouse fez novas amizades porém teve em torno dos 20 anos uma primeira crise depressiva que foi tratada naquela época 1964 com internação e eletro choques No ano seguinte uma irmã se suicidou de for ma dramática atirandose de um andar alto praticamente diante dos filhos Um ano após Fernanda casouse com um rapaz da sua idade com quem tinha muitas afinidades Em 1969 iniciou seu primeiro tratamento analítico Desde 1972 sua vida se voltou para conseguir ter filhos pois estes não vinham espontaneamente Procurou médicos especia lizados em esterilidade começou a tomar hormônios e em 1979 fez uma cirurgia de abertura em cunha no ovário sem resultado Desde 1975 começou a apresentar surtos predominantemente maníacos tendo perdido 12 quilos em um destes depressivo Entre estes surtos mostrava se depressiva em função de não conseguir engravidar e por estar vivendo novamente em casa a situação de estar com pouco dinheiro Desde então se tornou obesa e não mais recuperou seu peso habitual Em 1980 é constatada a presença de um tumor na mama direita que é excisado cirurgicamente descobrem se metástases em gânglios axilares A mastectomia é seguida de quimioterapia Seu médico lhe dá 5 anos de sobrevida Um mês após a cirurgia durante a quimioterapia descobre estar grávida tinha feito apenas um aborto antes Subme tese a um aborto terapêutico em meio a uma grande dor sua e do marido O casal resolve então ambos em análise adotar um filho o que é feito em um processo muito bonito que dá nova vida ao casal e ao próprio casamento Fernanda continua a árdua luta pela manutenção da vida e em 1981 tem um episódio delirante maníaco durante o qual se sentia espionada por vizinhos e por pessoas escon didas dentro de sua própria casa Em 1982 surge uma me tástase cutânea que regride com quimioterapia e cobalto A partir de 1983 aparecem metástases ósseas e finalmente em 1984 metástases pulmonares que levam ao seu faleci mento através de um quadro de insuficiência pulmonar Nos últimos meses de vida Fernanda foi assistida por uma psicoterapeuta especializada no atendimento a pacien tes terminais Este tratamento foi muito valioso para ajudá la a enfrentar a morte e a fase terminal Ela suportou estes momentos com muita coragem lutando até onde lhe foi possível O depoimento do grupo analítico ao qual pertenceu seu esposo é de que este se tornou uma pessoa diferente amadurecida e muito mais lutadora depois da experiência de ter acompanhado a doença de Fernanda por todos estes anos Vemos em Fernanda uma paciente com depressão bipo lar depressões alternadas com episódios maníacos uma história de sucessivas perdas tais como a morte do avô se paração dos pais suicídio da irmã e perda da capacidade de procriar Na vida com o marido voltou a reviver a situação de dificuldades financeiras da casa do seu pai Acreditamos que como decorrência de toda esta situação de frustração ela se torna obesa e vem a apresentar com 36 anos de ida de um câncer de mama Sua vida passa a ser daí por dian te uma luta contínua contra a enfermidade em que o casal opta pela vida e adota uma filha dando um novo sentido à vida dos dois O episódio delirante em que se via espionada por vizinhos e por pessoas escondidas dentro de sua casa pode ser entendido como expressão dos múltiplos exames e técnicas utilizadas para investigar o câncer a partir de ins trumentos que permanentemente pesquisavam o interior do seu próprio corpo O caso de Fernanda ilustranos a capacidade de um pa ciente de usar todos os seus recursos na luta contra uma enfermidade Assim quando não havia mais alternativa ela se entrega a um psicoterapeuta especializado em pacien tes terminais Todos os recursos do ego são empregados a serviço da adaptação e da sobrevivência E aqui podemos ver seja em Fernanda seja em seu marido a doença fun cionando como experiência existencial criativa fonte de crescimento emocional e de novas possibilidades de vida Fernanda se foi porém deixou com os seus o testamen to de sua coragem e de sua luta e o esposo em que pese a perda de sua mulher já não era mais o mesmo homem depois de todos estes acontecimentos Tinha amadurecido e se humanizado na decorrência de todos estes embates Hoje está muito bem casado com uma nova mulher com quem teve duas filhas constituindo uma nova família feliz e bem realizada Psicossomaticaindd 190 Psicossomaticaindd 190 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 191 PostScriptum Histórico Alison Fife e colaboradores publicaram impor tante revisão sobre PsicoOncologia em 1996 Citam a já famosa observação de Galeno sobre as mulhe res melancólicas que desenvolveriam neoplasias de mama com maior frequência do que as mulheres sanguíneas Em 1759 segundo os autores o cirur gião Richard Guy caracterizou as mulheres com cân cer como sedentárias com uma disposição melancó lica da mente e que se encontram com tais desastres na vida em ocasiões de muitas perturbações e luto Em 1870 James Page em outra citação dos autores relatou que são muito frequentes os casos nos quais uma profunda ansiedade desesperança e desaponta mento são rapidamente seguidos por crescimento e aumento do câncer levando à suspeita de que estas e outras influências participam no desenvolvimento de uma constituição cancerígena Luto depressão sistema imune e câncer Os autores citam relatos de casos de associa ção de luto e depressão em câncer hipertireoidismo diabete e cardiopatias Apontam vários estudos onde estados depressivos antecedem o surgimento de um câncer Isso se explicaria porque ambas as ocorrências podem estar envolvidas com uma depressão imune Para os autores o eixo Hipotálamo Hipófise Adre nal HPA costuma ser estimulado na depressão sen do tais mudanças marcadas por altos níveis de cor tisol na urina diminuição da resposta do hormônio adrenocorticotrófico ACTH e do fator de liberação da corticotrofina CRF um aumento da concentração de CRF no SNC e hipertrofia da suprarenal e da hipó fise Citam um estudo prospectivo onde a aplicação de dados obtidos pelo Minnesota Multiphasic Personality Inventory MMPI em 1020 empregados pelo Western Electric mostrou que o dobro de mortes por câncer foi encontrado 17 anos depois entre os empregados que apresentaram escores altos de depressão O es tudo citado controlou outros fatores de risco como idade fumo álcool exposição ocupacional e histó rico familiar de câncer Concluíram que havia uma pequena porém estatisticamente válida relação entre depressão e o desenvolvimento do câncer Depressão e disfunção neuroendócrina têm sido estudadas em pacientes com câncer gástrico ginecoló gico e pancreático Citam também um trabalho onde se investigou a possibilidade de que indivíduos sadios com uma história familiar de câncer tenham baixos níveis de atividade das células Natural Killer NK Quarenta e três mulheres hígidas foram recrutadas independen temente de seus históricos patológicos familiares Bo vbjerg 1991 Nenhuma diferença no estado de saúde psicofísico foi encontrada entre aquelas com ou sem his tórico familiar de câncer Independentemente da histo ria familiar as mulheres de alto nível de estresse tinham mais baixos índices de atividade NK e a atividade NK permanecia baixa nas pacientes que tinham histórico familiar de câncer Os autores especulam que defeitos hereditários e redução da atividade NK contribuiriam para aumentar o risco de neoplasia Uma interessante revisão sobre o tema também é apresentada por Reiche e colaboradores 2006 Citam um trabalho com pessoas enlutadas Quinze viúvos de mulheres que morreram de câncer de mama avançado submeteramse ao método de estimulação de células T As respostas estiveram significativamente suprimidas nos dois meses após a morte das companheiras Em relação a casais em separação estes auto res apontam que os níveis de estresse costumam ser maiores que nos casos enlutados Citam dois estudos a respeito que sugerem que mulheres separadas ou divorciadas têm uma função imune mais pobre qua litativa e quantitativamente e que mulheres com um ano de separação apresentam função imune pior que as casadas com taxas mais baixas de células NK e células T Em outra pesquisa sobre casais os homens que eram mais hostis durante uma discussão dos pro blemas com as esposas apresentavam uma maior re dução da atividade NK nas 24 horas seguintes Fatores psicossociais e câncer adoecimento e sobrevida AlisonFife e colaboradores 1996 citam um es tudo Jenkins 1983 onde os pesquisadores levanta ram os dados dos óbitos da cidade de Massachussetts nos anos de 1972 e 1973 verificando que a morte por câncer se associava a índices socioeconômicos como po breza desemprego baixos salários moradia em casas outorgadas e estado civil solteiro Os autores também citam um estudo de casos de nove pacientes de câncer e que tinham excepcionais sobrevidas Postulavase que isso se deveria ao seu modo de viver excepcionalmente otimista e positivo Além deste cita um trabalho pros pectivo onde pacientes com melanoma maligno foram estudados sobre a influência de estilos de coping em sua sobrevivência usando autoescalas de medida do ajus Este trabalho de Jenkins é famoso cientificamente Foi através dele que o autor provou que a doença coronariana não é apenas uma doença de status que ela é também uma doença da pobreza que atinge todas as classes sociais Psicossomaticaindd 191 Psicossomaticaindd 191 05012010 121209 05012010 121209 192 Mello Filho Burd e cols tamento à doença A escala média era menor nos reci divantes que nos não recidivantes Concluiuse que os pacientes com maior dificuldade de ajustamento a seus cânceres viveram menos Referem que a pesquisa nesta área é complexa pelas diversas variáveis que cercam o advento da doença e o seu tratamento Finalmente no item fatores psicossociais e so brevida do câncer citam que a intervenção psicosso cial melhora o humor o ajustamento à doença a dor a fadiga e a possibilidade de sobrevivência em um es tudo onde os efeitos do biofeedback e da terapia cog nitiva em 19 recémdiagnosticados casos de câncer de mama demonstraram melhora no nível da ansiedade e redução do cortisol urinário Relatam ainda um estudo semiprospectivo com 75 pacientes com câncer de mama relacionando os fatores psicológicos a ati vidade NK e a sobrevida das pacientes Ajustamento à doença suporte social fadiga e depressão influencia ram a variação da linha de base da atividade NK Os fatores psicossociais não foram significativos para se rem relacionados como indicadores prognósticos dos nódulos positivos porém a atividade NK mantinhase baixa e a depressão alta nas mulheres com nódulos positivos Citam Spiegel 1989 e 2002 e colabora dores que fizeram um trabalho grupal em mulheres portadoras de câncer metastático de mama Essas mulheres se reuniam semanalmente num grupo de apoio Após um ano uma avaliação mostrou que a sobrevida deste grupo era de 363 meses comparada com 189 meses num grupo controle As mulheres do grupo terapêutico mostraram menos fadiga confusão e tensão do que aquelas do grupo controle O grande número de agentes etiológicos envol vidos no câncer fumo obesidade genética idade gênero fatores hormonais dificulta o estudo da ação de apenas um deles Um interessante trabalho examinou o efeito do papilomavirus HPV associado à neoplasia intraepi telial cervical do útero NIC um precursor do câncer cervical Antoni 2007 Estresse e pessimismo pre dizem uma maior severidade de NIC Em mulheres coinfectadas com HIV e HPV eventos negativos de maior porte prognosticaram declínio das células NK maiores riscos de herpes genital e persistência da NIC por prazos de até um ano Doenças autoimunes doenças do colágeno Chamamse doenças autoimunes ou de autoa gressão aquelas em que se desenvolvem reações imu nes aos constituintes naturais do organismo self le vando a lesões localizadas ou sistêmicas As doenças autoimunes resultam da interação de múltiplos fatores predisponentes incluindo as rela ções entre os agentes gatilhos vírus autoantígenos o estado do sistema de resposta ao estresse incluin do o eixo HPA e o SNA e o sistema de hormônios gonadais com os estrogênios como estimuladores e os androgênios e a progesterona como inibidores Cutolo 2003 Fazem parte deste grupo de doenças a artri te reumatoide AR o lupus eritematoso sistêmico LES a esclerose sistêmica progressiva a polimiosi tedermatomiosite a tireoidite autoimune a mias tenia grave a doença de Sjögren a colite ulcerativa a esclerodermia a doença de Crohn e outras mais As doenças autoimunes apresentamse geralmente isoladas mas por vezes combinadas o que fala a favor de terem uma mesma natureza No momento dou su pervisão a um caso de artrite reumatoide escleroder mia e Sjögren A síndrome de Sjögren é caracterizada por artrite acompanhada secura de mucosa labial e ocular Por outro lado podem coexistir casos de mesma ou de outras doenças autoimunes nos parentes de um paciente qualquer apontando para um componente genético familiar As lesões são provocadas por mecanismos que levam à interação de anticorpos formados contra constituintes próprios do organismo passando estes a comportarse como antígenos A reação antígeno anticorpo dáse na superfície celular ou em nível sistêmico imunocomplexos circulantes A reunião antígenoanticorpo atrai proteínas plasmáticas que se tomando ativadas estimulam uma cadeia de reações que culmina na destruição celular e necrose tissular com muitas consequências sobre a função do órgão lesado eu sobre o próprio organismo Chamamse doenças autoimunes ou de autoa gressão aquelas em que parecem desenvolverse certas reações imunes aos constituintes naturais do organismo self levando a lesões localizadas ou sis têmicas Fazem parte deste grupo de doenças a artrite reumatoide o lupus eritematoso sistêmico a esclero se sistêmica progressiva a polimiositedermatomio site a tireoidite autoimune a miastenia grave a colite ulcerativa e outras mais Esta denominação usada anteriormente devese ao fato de que as manifestações destas doenças se dão geralmente no interior do tecido conjuntivo ou colágeno Os casos Crohn ileíte regional atingem basicamente o intestino delgado Esta também é uma doença francamente psicossomática A tendência atual é reunir Crohn e colite ulcerativa que acomete o cólon e o reto sob o título de Doenças Inflamatórias Intestinais Psicossomaticaindd 192 Psicossomaticaindd 192 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 193 As lesões são provocadas por mecanismos que levam à interação de anticorpos formados contra constituintes próprios do organismo passando estes a comportarse como antígenos A reação antígeno anticorpo dáse na superfície celular ou em nível sistêmico imunocomplexos circulantes A reunião antígenoanticorpo atrai proteínas plasmáticas que se tomando ativadas estimulam uma cadeia de reações que culmina na destruição celular e necrose tissular com muitas consequências sobre a função do órgão lesado eu sobre o próprio organismo Muitas indagações têm sido feitas no sentido de se determinar porque um constituinte orgânico passa a ser reconhecido como nonself Supõese que uma atividade diminuída de células supressoras permitiria esse tipo de reação Ao que parece tais constituintes são normalmente liberados porém a atividade de células T supressoras poderia impedir a ampliação das reações contra tais constituintes En tão a hipótese de falência dessa atividade supres sora explicaria em linhas gerais a eclosão de certas doenças de autoagressão Seria isso que ocorreria basicamente no LES Como já vimos anteriormente o estresse atra vés da ação neuroendócrina pode modificar as ativi dades das células T incluindo a atividade supressora Os processos autoimunes embora progressivamente mais conhecidos e estudados envolvem uma série de fenômenos com toda uma aura de mistério e de complexidade cuja natureza compreende uma gama muito grande de enfermidades ou de estados que predispõem a enfermidades Ângelo Papi falanos de um conceito sobre os processos autoimunes são antes de tudo fenômenos fisiológicos nem sempre patológicos como se pen sava antes A intensidade de produção desses fenô menos a quantidade alcançada faz o distúrbio a doença Assim familiares de pacientes com doenças do colágeno podem ter as alterações laboratoriais dessas doenças sem ter a doença propriamente dita Por outro lado sabese que os fenômenos autoimunes tendem a aumentar com o envelhecimento e tal fato tem mesmo sido aventado como de importância na etiopatogenia do câncer Outro aspecto já muito estudado diz respeito ao condicionamento genético dessas doenças Tal é o caso por exemplo da artrite reumatoide ou do pên figo vulgar doenças em que se conhece a influência que determinado aminoácido exerce provocando seu aparecimento Também em relação ao lupus eritematoso sistê mico LES conseguiuse provar que os camundongos híbricos do cruzamento NZW e NZB neozelandeses branco e negro desenvolvem uma forma de doença semelhante ao LES humano com maior incidência nas fêmeas presença de autoanticorpos anemia he molítica e nefrite por deposição de imunocomplexos Tudo isso nos demonstra que tem uma doença do colágeno poderíamos assim dizer não exatamente quem quer porém quem pode isto é quem tem con dições genéticas para tal São tipicamente doenças multifatoriais e aqui se inserem o estresse e os fatores psicossociais no seu desencadeamento evolução agravamento e desen lace como estudou Papi Papi 1964 Dentro deste ponto de vista vêm sendo estudadas principalmente as interações com vírus Nesse sentido já se sabe que o antígeno da poliarterite nodosa doença do gru po das colagenoses é o vírus da hepatite B Quan to à AR já se sabe que vírus do tipo EpsteinBarrr vírus da mononucleose infecciosa ao parasitarem os linfócitos B produzem o fator reumatoide uma gamaglobulina presente no sangue desses pacientes Também foi evidenciada a importância dos vírus HIV e tipos do vírus Picorna na poliomiosite doença na quais os Cocxakievirus parecem desempenhar papel patogênico em casos de crianças Essas interações estão presentes num grande número de enfermidades tais como hipertireoidismo anticorpos contra a glândula tireoide miastenia grave anticorpos contra os receptores de acetilcoli na nas junções neuromusculares diabetes mellitus linfócitos T contra células pancreáticas produtoras de insulina esclerose múltipla linfócitos T contra a bainha de mielina de células nervosas Juntemse a estas a síndrome de Sjöegren a síndrome de Reiter a doença de Crohn e a colite ulcerativa entre outras Apesar da riqueza de aspectos psicossomáticos que temos encontrado em pacientes com doenças au toimunes temnos impressionado com exceção da artrite reumatoide do lupus e da colite ulcerativa uma quase ausência de trabalhos ou referências a esse respeito principalmente em doenças do coláge no Tal fato tem sido motivo de estranheza e quase perplexidade de nossa parte por termos constatado a importância dos condicionamentos psicossomáticos nessas doenças desde que nos dispusemos a estudá las a partir da década de 1960 Uma das notáveis exceções é Solomon 1987 que vem estudando os aspectos psicossomáticos da artrite reumatoide há vários anos postulando para seu desencadeamento a ação de fatores estressores e concomitantemente falha de mecanismos adaptativos em indivíduos com distúrbios imunológicos e possíveis alterações prévias de personalidade Vamos nos centrar no estudo dos aspectos inte grais da colite ulcerativa e das doenças do colágeno Papi A Comunicação Pessoal 1983 Psicossomaticaindd 193 Psicossomaticaindd 193 05012010 121210 05012010 121210 194 Mello Filho Burd e cols enfermidades que estamos estudando há mais tempo e sobre as quais acreditamos ter algo a oferecer em termos de experiência pessoal Mello Filho 1964 1965 1966 Artrite reumatoide As artrites inflamatórias são doenças comuns que atingem 3 da população A mais comum é a Artrite Reumatoide AR que atinge 1 das pessoas Existem as artrites das demais doenças autoimunes a artrite anquilosante considerada por alguns como uma forma de AR a artrite psoriásica das doenças inflamatórias intestinais e as induzidas por cristais gota e artropatia pirofosfática A AR é associada a um aumento da morbidade cardiovascular caráter sistêmico Há uma predispo sição genética a influência do estresse a presença de autoanticorpos AAC e o Fator Reumatoide FR uma proteína encontrada no sangue de pacientes com AR A fase préclínica dura até 15 anos 50 dos pacientes apresentam FR no sangue e a presença de AAC O elemento característico da doença é uma sinovite persistente que acomete as articulações peri féricas simetricamente A inflamação sinovial causa destruição da cartilagem e erosão óssea e consequen te deformidade articular Supõese que esse processo se deva a liberação articular de citocinas A lesão mi crovascular e o aumento de células do revestimento sinovial parecem ser as lesões mais precoces da sino vite reumatoide junto com uma infiltração perivas cular de células mononucleares Patogênese da AR A AR é uma artrite inflamatória e destrutiva que afeta mulheres e homens na meiaidade Sinais libe rados pelo sistema neuroendócrino podem aumentar o risco de indivíduos predispostos desencadearem AR O melhor modelo estudado usa ratos Lewis e ratos Fisher JaparianTehrani 2000 Os primeiros que possuem um eixo HPA embotado desenvolvem artrite em contato com antígenos estreptocócicos Já os ratos Fisher que apresentam uma forte resposta CRH não desenvolvem artrite quando estimulados Tais fatos demonstram a importância do eixo HPA na artrite experimental Têm sido feitas análises genô micas na AR feminina A predisposição à doença tem sido atribuída à genes HLA em um terço 13 dos casos Steinsson 2005 A resposta antiinflamatória fisiológica tem sido bastante estudada por um grupo da Universida de de Genova e muitos trabalhos têm demonstrado uma resposta de ACTH cortisol relativamente baixa Straub 2001 Também têm sido encontrados níveis de androgênios antiflogísticos baixos Tudo isso in dica uma atividade reativa do organismo antiinfla matória defensiva para os níveis inflamatórios altos da AR Por outro lado níveis baixos de androgênios também têm sido encontrados no LES na doença de Crohn e na psoríase falando a favor de um problema mais geral nas doenças autoimunes Straub 2001 Essas falhas nos mecanismos adaptativos antiflogísti cos repercutem ainda mais no caso de doenças basi camente inflamatórias como a AR Cutolo 2003 Aspectos psicológicos Em 1942 Halliday Halliday 1942 descreveu esses pacientes como muito reprimidos em sua vida afetiva sendo predominantemente tímidos quietos e controlados comportandose como pássaros domés ticos Rimon 1969 que também fez em 1969 um tra balho que se tornou clássico sobre os aspectos psico lógicos da artrite reumatoide descreveu três grupos de pacientes Os do primeiro grupo grupo confliti vo que correspondiam a 55 do total tinham o iní cio da doença e as exacerbações nitidamente ligadas a situações conflitivas a evolução era rápida e havia pouca predisposição hereditária No segundo grupo 33 que chamou de não conflitivo os conflitos não eram importantes a influência da hereditarieda de era marcante e a evolução da doença era lenta e favorável Finalmente no terceiro grupo 12 de conflitos paralelos estes existiam porém não se re lacionavam com a evolução da enfermidade Cobb 1969 continuando vários estudos es tabeleceu em 1969 novos achados em relação à personalidade do paciente com artrite reumatoide Observou diferenças entre as mulheres que mais frequentemente são acometidas da doença e os ho mens Mulheres com artrite reumatoide a queixamse das mães como autoritárias e agres sivas mas comportamse como elas Não expres sam contudo agressividade diretamente à mãe b em situações difíceis há uma maior tendência a responderem com sintomas Os AAC são inicialmente contra peptídios cítricos citru linados Ainda não se sabe ao certo se o FR tem um papel etio lógico Psicossomaticaindd 194 Psicossomaticaindd 194 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 195 c no casamento há frequentes conflitos conjugais os maridos são de posição social inferior e há fre quentes casamentos com homens ulcerosos Homens com artrite reumatoide a têm menor frequência de lares conflitivos b têm menor hostilidade à mãe c no casamento há menores níveis de atritos conju gais as esposas apresentam pouca agressividade e há grandes problemas financeiros e desempre go Um curioso achado desse trabalho inclusive de significação estatística é o encontro de frequentes casamentos entre mulheres com AR e homens com úlcera péptica o que caracterizaria uma ligação neu rótica entre mulheres agressivas e controladoras e homens passivos e dependentes Uma referência comum nesses trabalhos é sobre a inibição da expressão da agressividade como um dos elementos mais importantes de suas personalidades num constante esforço de contenção de sentimentos hostis inconscientes no nível músculoósteoarticular A imobilidade funcional articular devida à dor e à inflamação é uma queixa comum nesses doen tes refletindose em sua vida de relação trabalho e atividades sexuais Tem importância no acompanha mento psicoterápico por ser fonte de sentimentos depressivos e de repercussões negativas na autoes tima Por vezes a impotência funcional ou mesmo a quase paralisia do paciente é negada por eles numa tentativa de esquecer a doença incapacitante e as de formações Tal era o caso de um paciente que assis timos no Hospital Escola São Francisco de Assis um homem na década dos 50 anos com quadro de evo lução de muitos anos e acometimento de múltiplas articulações apresentando as juntas dos membros ni tidamente edemaciadas e deformadas Sua impotên cia funcional era nítida pois se movia e andava com dificuldade O fato é que esse homem estava saindo de um segundo casamento com uma mulher muito mais jovem Tanto esta ligação como a anterior foram desfeitas porque ambas as mulheres o traíram com outros homens Seu grau de negação era tão grande que relatava estas situações como se referisse a ou tra pessoa Era esta mesma negação que o levava a envolverse com mulheres tão jovens que poderiam ser suas filhas Estas efetivamente comportavamse como filhas permitindose contudo ter namorados que deveriam ser naturalmente aceitos por um pai e não por um marido Tudo isso se fazia sob o pano de fundo de um forte componente masoquista através do qual o paciente se castigava por uma doença nun ca aceita apenas tolerada Enquanto a forma adulta da doença tem sido muito estudada em seus aspectos psicossomáticos a artrite reumatoide juvenil praticamente não foi pes quisada a esse respeito com exceção dos trabalhos de Bagger 1981 e da comunicação feita por um de nós Mello Filho 1977 Tratase da pesquisa realiza da em 18 pacientes estudados através de entrevistas com estes e seus pais e de testes psicológicos de per sonalidade Em 61 desses casos havia uma relação entre o início da doença e problemas familiares sig nificativos Já nas exacerbações só encontramos tais relações em 30 dos casos Os pais desses pacientes via de regra negavam a gravidade da doença de seus filhos e estes frequentemente tentavam compensar sua condição de enfermos acentuando seus aspectos intelectuais e tornandose excelentes alunos com o que conseguiam agradar aos pais Um dado impor tante encontrado em nossos casos foi o achado de franca rejeição por parte das mães em 40 dos casos por vezes bem anterior ao início da doença outras vezes constituindo o principal fator desencadeante Assim MCS uma menina de 7 anos filha de uma relação extraconjugal da mãe foi como seus irmãos abandonada por ela quando tinha apenas um ano de idade fase em que se iniciou sua doença Em outros casos a rejeição não era tão manifesta mas tam bém parecia relacionada com a enfermidade como no caso de EFP masculino 17 anos cuja doença se iniciou na época em que sua mãe começou a traba lhar fora do lar Uma hipótese que fizemos ao final deste traba lho foi a de que o surgimento de uma artrite reuma toide juvenil doença muito menos frequente que a forma adulta pode ter seu aparecimento precoce ligado à gravidade de situações conflitivas e traumá ticas experimentadas como é o caso de outras enfer midades como o diabetes mellitus Lupus eritematoso sistêmico Quanto às demais colagenoses temos estudado particularmente o lupus eritematoso LES a esclero se sistêmica progressiva e a dermatomiosite São do enças disseminadas que podem atingir vários órgãos e múltiplas localizações e portanto gerar os mais va riados quadros clínicos numa real ameaça à integri dade corporal do paciente podendo inclusive levar à morte No lupus há uma forma benigna cutânea o lupus discoide e uma forma disseminada maligna o LES Nessa doença há a produção de complexos imu nes autoantígenos e autoanticorpos vários que vão encalhar nos pequenos vasos de múltiplos tecidos nobres do organismo sinóvia pele membrana basal renal produzindo lesões várias eritema cutâneo Psicossomaticaindd 195 Psicossomaticaindd 195 05012010 121210 05012010 121210 196 Mello Filho Burd e cols artrite pleuropneumonite nefrite lesão cerebral e outras Isso confere ao lupus o caráter de ser uma das doenças mais pleomórficas que se conhece ori ginando quadros de muita complexidade e de difí cil diagnóstico e reconhecimento Assim o paciente pode numa das crises pode apresentar uma pleu ropericardite noutra oportunidade um quadro neu rológico ou um surto caracterizado por febre artral gias e lesão cutânea A gravidade da doença é dada sempre sobretudo pela lesão renal que leva com sua evolução à insuficiência renal e à uremia Tudo isso pode levar o paciente com LES a um estado paranoi co tornandose temeroso de a qualquer momento ter uma exacerbação que pode se apresentar com formas imprevisíveis O LES por ser uma das doenças mais genera lizadas e de quadros mais agudos já foi chamada de epilepsia do sistema imune É uma enfermidade predominantemente de mulheres 95 no período fértil Hoje sabese que este fato está ligado à ativi dade estrogênica É uma doença com características próprias em sua localização geográfica Assim ela é mais frequente no Extremo Oriente China Singapu ra com 1 caso por 250 habitantes do que no resto do mundo 11000 Observouse também que essa incidência diminui quando os pacientes passam a ter hábitos ocidentais e se mantém se os hábitos orien tais permanecem Também se sabe que enquanto o lupus na África é raro sua incidência entre negros americanos é muito alta Tudo isso mostra que há ní tidas influências culturais na incidência e evolução da doença Há substancias químicas medicamentos como a hidralazina e a procainamida que podem provocar um quadro lupus símile quando administradas a cer tos pacientes Também há casos de lupus que se se guem à aplicação de uma vacina ou a uma transfusão de sangue demonstrando a força dos mecanismos imunológicos no desencadeamento da doença Como se pode ver há vários progressos feitos nos últimos anos na etiopatogenia do lupus o que torna ainda mais clamorosa a pobreza de trabalhos sobre os con dicionantes psicológicos da doença Em nossa expe riência clínica de atendimento a mais de 50 pacientes de LES poucas enfermidades vimos com um caráter mais psicossomático do que esta Geralmente é fá cil conversando com esses pacientes mesmo como clínicos determinar o condicionante psicossocial da doença problemas conjugais situações de perda estados depressivos etc Em pesquisa realizada por um de nós JMF e pela psicóloga Maria da Gloria Wanderley Costa com cerca de 30 pacientes de LES submetidos a entrevistas e testes de personalidade Rorschach e Teste de Relações Objetais encontra mos o que poderíamos chamar de uma etiopatoge nia psicológica em dois terços dos pacientes Esta se apresentava como uma situação de estresse ou de crise claramente definida antecedendo o início da enfermidade Por vezes essa crise era crônica e vinha evoluindo como uma situação geral de infelicidade marcando nitidamente os pacientes e assim de modo surdo se insinuava aos poucos no universo da doen ça caso de Nair a ser apresentado Uma honrosa exceção à falta de trabalhos so bre o universo psicológico dos pacientes com LES em nosso meio é a recente tese de mestrado de Gloria Regina Bandeira de Araújo Araújo 1989 da UFRJ Interessaranos particularmente uma doença onde há história de estreita correlação temporal entre os aspectos emocionais e seu início eou exacerbações e com características de ser multisistêmica crônica de curso imprevisível repercutindo psicologicamente nos pacientes alterando de modo direto sua vida de relaçãoaspectos somatopsíquicos Sobre a patogenia do LES escreve O LES é uma doença caracterizada por diversas anormali dades imunológicas sugestivas de hiperatividade policlonal de células B hipergamaglobulinemia e aparecimento de numerosos autoanticorpos princi palmente contraantígenos nucleares As células T também participam da patogênese da doença tan to pelas alterações funcionais depleção de células T redução de células T supressoras quanto pela infiltração celular tecidual por células mononuclea res A maioria das alterações do sistema nervoso central convulsões psicoses alterações cardíacas pericardite miocardite alterações dermatológicas alopecia sensibilidade solar e outras anormalida des clínicas e laboratoriais decorrem de mecanismos patogênicos causado pelos complexos imunes ou por anticorpos citotóxicos dirigidos contra hemácias leu cócitos plaquetas e neurônios Sobre o que chamou de estresse psicossocial do LES a autora faz considerações que têm muito em co mum com as observações que temos feito nestes pa cientes Embora haja pacientes típicos há certos as pectos psicológicos presentes na população com LES Quando encaminha o paciente para psicotera pia o especialista deve avaliar qual das três caracte rísticas da doença pode estar causando a sintomato logia apresentada a Cronicidade Os pacientes apesar de não apre sentarem anormalidades entre episódios agudos de exacerbação da doença não se sentem nor mais Consequentemente assumem o papel de pacientes regridem renegam responsabilidades e se tornam dependentes criando tensões entre eles que se consideram doentes e os familiares e clínicos que os consideram bem Psicossomaticaindd 196 Psicossomaticaindd 196 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 197 b Caráter imprevisível do curso do LES As frequen tes e imprevisíveis exacerbações da doença fazem com que os pacientes com LES tenham dificulda de em planejar um futuro Como proteção vivem o seu dia a dia não se desenvolvendo pessoal ou profissionalmente afastandose socialmente às vezes em graus desproporcionais à severidade da doença Criam mecanismos de defesa para li dar com essa imprevisibilidade como pensamen tos mágicos e obsessivos que os afastam de pes soas ou lugares que julgam causar os episódios agudos Alguns pacientes assumem essa definição de forma concreta e creem que o corpo se au toataca como reflexo de conflitos internos mal resolvidos que necessitem de punição c Doença multisistêmica Não são só imprevisíveis as exacerbações agudas do LES como qual o órgão ou sistema que será afetado Agrava esta situação o fato da superespecialização a que a Medicina está sujeita hoje em dia sendo o pa ciente visto por um médico diferente a cada crise dependendo do órgão atingido Há um intenso sentimento de fragmentação e desamparo não sabendo o paciente a quem recorrer quando do início de algum sinal ou sintoma da doença Outros comentários sobre esse mesmo tipo de problema são feitos pela autora ao escrever sobre O lupus e a mulher Adquirem hábitos de vestuário específicos adaptando sua indumentária à necessidade de escon der as lesões existentes lançando mão de artifícios como perucas lenços e chapéus no caso de alope cia e roupas fechadas e mangas sempre compridas se houver lesões em braços por exemplo O trabalho de Gloria Regina De lupus et homine é baseado no estudo de 13 casos que foram acompa nhados ambulatorialmente em nível de psicoterapia breve de 6 meses de duração Quase todos os pacien tes referiam situações várias de estresse anteceden do o início de suas enfermidades ou as exacerbações destas A psicoterapia foi considerada um importante elemento de auxílio para as pacientes poderem lidar com as questões psicossomáticas e somatopsíquicas tão presentes nessa enfermidade O LES costuma ser marcante ou estigmatizan te para quem o apresenta Frequentemente há lesões cutâneas que podem acometer a face ou ser genera lizadas presentes em cada crise As recomendações feitas sobre evitar a exposição à luz solar ou não fa zer uso de certos medicamentos podem atemorizar o paciente sobre a gravidade da sua doença Aliás nessa doença o risco de iatrogenia começa pelo fato de o paciente captar as preocupações do seu médico com sua enfermidade E muitos médicos ainda trans mitem preocupações exageradas pois mantém uma visão da doença e de sua gravidade mais relacionada com o passado do que com o presente com os inú meros recursos terapêuticos de que se dispõe hoje em dia para o controle do LES Sentimos esse problema de perto quando um de nós JMF à frente de um grupo instalou um Am bulatório de Doenças do Colágeno na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro ainda em 1960 Per cebíamos como os pacientes moviamse para lá iden tificados com as esperanças dos membros de nossa equipe fator que por si só explicava a boa evolução de muitos doentes e a tolerância com uma enfermi dade de curso crônico e prolongado A boa relação formada com um médico que estudava a sua doença em profundidade e que acreditava que algo podia ser feito em seu favor explicava por que esses pacientes passavam a tolerar até os efeitos adversos dos corti costeroides face de lua obesidade abdominal hirsu tismo dentre outros apesar do seu incômodo e das grandes repercussões sobre sua imagem corporal Ao mesmo tempo as pacientes estabeleciam intensas re lações com suas colegas de ambulatório passando a conversar sobre aspectos em comum de suas enfer midades e sobre o tratamento Estabeleciamse vín culos de suporte mútuo que mais tarde voltamos a encontrar e a estudar nos grupos de autoajuda Tais vínculos faziam com que as pacientes chegassem ao ambulatório antes da hora da consulta para conver sar trocar ideias desabafar umas com as outras Era um embrião do que depois passou a se chamar de grupos de sala de espera Nós aprendíamos com aqueles exemplos e se tí nhamos determinada paciente internada avisávamos aquelas que sabíamos serem suas amigas para que pudessem visitála Com o passar do tempo aquele ambulatório funcionava como se fosse a casa de uma imensa família Foi todo um período de muitas con quistas em Medicina Com interesse empatia e por vezes com o uso de uma medicação mais adequada começávamos a obter resultados satisfatórios em ca sos crônicos e considerados até então irremissíveis Apenas com psicoterapia revertíamos depressões que hoje seriam certamente alvo de altas doses de an tidepressivos Principalmente aprendemos que muito podia ser feito em doenças que eram vistas pelos mé dicos em geral àquela época como se fossem equi valentes a um câncer em que muito pouco restasse a fazer por aquelas pobres criaturas A possibilidade de psicoiatrogenia nesses casos é muito grande desde a transmissão de más expec tativas às recomendações excessivas levando os pa cientes e se sentirem assustados e temerosos Outros exemplos de iatrogenias que são cometidos com todo tipo de paciente também podem atingir esses casos Psicossomaticaindd 197 Psicossomaticaindd 197 05012010 121210 05012010 121210 198 Mello Filho Burd e cols Assim por exemplo uma das pacientes descritas nes te trabalho Nair ficou deprimida e chorosa depois que foi apresentada numa aula prática aos alunos É que o professor havia dito a estes que ela tinha cara suja referiase às lesões hipercrômicas que conferem este aspecto ao doente com lupus sistêmico e esta tinha tomado o dito ao pé da letra sentindose feia e asquerosa É um exemplo de iatrogenia muito fre quente ligada ao ensino médico decorrente de des respeito cometido em aula pública com pacientes Hoje os clínicos começam a reconhecer os as pectos psicológicos e psiquiátricos da doença e certos pacientes com LES são encaminhados para tratamen to psiquiátrico ou psicológico Porém os profissio nais psi cometem com estes pacientes outro tipo de iatrogenia Por exemplo numa das iatrogenias mais comuns frequentemente confundem autoagressão imunológica com autoagressão psicológica e dizem ao paciente tout court que está se autoagredindo com sua enfermidade o que vai produzir um efeito muito negativo em alguém que já se sente profundamente agredido pela enfermidade de que padece São exa geros de um enfoque por demais simbólico num pro fissional muitas vezes com pouca vivência de clínica e sobre a enfermidade que está tratando Pensamos ser a abordagem psicoterápica funda mental nessa enfermidade para adaptar o paciente à convivência com uma doença crônica para ajudá lo em estados depressivos ou em repercussões que a doença possa ter para sua fertilidade Por exemplo temos visto casos em que a evolução modificouse in teiramente depois que entrou em jogo a pessoa do psicoterapeuta A incidência de sintomas psiquiátricos no LES é alta e devese principalmente ao acometimento do sistema nervoso central através de arterites que po dem atingir várias regiões do encéfalo podendo gerar quadros os mais diversos desde convulsões e quadros do tipo acidente cerebrovascular passando por esta dos confusionais podendo chegar ao coma Alguns pacientes fazem reações psicóticas especialmente do tipo esquizofrênico O diagnóstico diferencial deve ser feito com a perspectiva de quadros psíquicos rea tivos à presença de uma enfermidade ameaçadora e estigmatizante e principalmente à presença de uma psicose induzida por esteroides fato relativamente frequente quando se emprega altas doses deste medi camento o que pode ser o caso do LES Nosso trabalho JMF nos últimos anos com doenças autoimunes tem sido de Supervisor da Psi cologia Médica na Unidade Docente Assistencial de Reumatologia do Hospital Pedro Ernesto da UERJ Também realizamos durante três anos um trabalho de psicoterapia grupal com a psicóloga Valéria Cris tina de Azevedo Nascimento Nascimento 2000 em coterapia com ótimos resultados com pacientes de LES relatado no livro Grupo e Corpo Neste trabalho que contou com uma boa adesão por parte das pacientes o caso novo sempre contava com a primeira sessão para apresentação Tratavase de um grupo aberto homogêneo semanal de supor te e com um enfoque analítico grupal composto de pacientes nas várias fases evolutivas da doença Logo se instalava uma forte solidariedade entre as pacien tes que faziam contatos de apoio extra grupal Como eram quase todas do sexo feminino faziam via de regra uma forte transferência idealizadora com Va léria Apresentavam com frequência uma problemá tica sexual em comum Por apresentar na fase agu da febre astenia dores articulares e lesões cutâne as tornavamse frígidas e deixavam de ter relações sexuais com seus maridos ou companheiros Na fase crônica as dificuldades sexuais tinham continuidade pois apresentavam as marcas antiestéticas do uso crônico de cortisona e por isso depressão e baixa autoestima Enquanto alguns maridos toleravam esta situação e esperavam a melhora das esposas outros não toleravam a frustração sexual e atuavam tornan dose agressivos apelavam para o álcool ou partiam para casos extraconjugais por vezes com vizinhas ou outras mulheres conhecidas das esposas A ventilação desses problemas no grupo a dis cussão em torno de uma sexualidade mais aberta e livre por parte das mulheres e de estratégias de rea proximar os casais fraturados funcionou para a maio ria das pacientes que enfrentavam esses problemas Outras foram encaminhadas para terapias de casais Nair era uma mulher negra de 36 anos quando a acompanhei em serviço de clínica médica JMF Era uma paciente tipicamente carente algo pegajosa que se ligou a mim durante a fase em que a acom panhei em uma internação hospitalar como clínico que lhe dava também apoio psicoterápico Ela conta va que praticamente não conheceu sua família e que morou num orfanato até os 9 anos Saiu de lá para a casa de uma senhora que achava muito má Eu só queria comer açúcar e ela só queria que eu estudasse Tornouse deprimida foi mandada de volta ao orfa nato rebelouse e não aceitou Foi então para o Servi ço de Assistência aos Menores SAM posteriormente FEBEM No SAM conheceu uma enfermeira que a le vou para trabalhar em sua casa como doméstica Nas circunvizinhanças Nair conheceu José que viria a ser o homem de sua vida Ela se perdeu engravidou foi expulsa de casa e foi viver encostada na casa da sogra Nasceu uma filha que ficou com a sogra José que tinha todas as características de um malandro e que não trabalhava abandonou Nair já numa segun da gravidez Ela provocou um aborto e depois disso Psicossomaticaindd 198 Psicossomaticaindd 198 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 199 ficou perambulando pelas ruas Conseguiu um novo emprego como doméstica porém reencontrou José novamente engravidou e surgiram então artralgias edemas de membros inferiores e lesão cutânea típi ca de lupus eritematoso sistêmico Nasceu um filho que foi doado No puerpério há um agravamento do lupus com febre e poliartralgias Começa a se tratar comigo É iniciada medicação com corticosteroides porém se inicia uma complicação tuberculose miliar que todavia regride com medicação específica Du rante sua internação Nair se mostra rebelde infan til e ciumenta das demais pacientes Com manobras várias tenta obter um lugar de destaque e um tra tamento especial dentro da enfermaria e na relação comigo Também se constata uma série de pequenos furtos cometidos pela paciente que tenta incriminar vizinhas de enfermaria A essa altura dos acontecimentos sou acome tido de hepatite a vírus e severamente ictérico fui internado no mesmo hospital em que trabalhava num quarto ao lado da enfermaria onde está Nair Durante os quase dois meses que estive no hospital ela foi uma espécie de enfermeira incansável a me assistir esmerandose numa série de pequenos cuida dos como receber recados telefônicos Nesse perío do não houve furtos na enfermaria nem brigas com colegas Sentiase uma filha que privilegiadamente cuidava do pai Corrigiuse e só nesse período seu comportamento As coisas todavia se complicam ainda mais em sua vida José morre inesperadamente e ela embora diga que nem liguei tem uma severa agudização da doença até então sob controle Pouco tempo depois morre seu filho com quem estava tendo bons con tactos Nair se torna depressiva depois se recupera Como sua doença estava sob controle e ela pratica mente vivesse numa condição de hospitalismo foi tentada uma alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial Esse esquema todavia não funcionou pois nesse período ela não voltou ao hospital pas sou a mendigar e esteve temporariamente num asilo Só voltou para se reinternar em franca desagregação psíquica e somática em estado confusional febril e coberta de lesões cutâneas Foi mais uma vez medi cada com corticosteroides e antimaláricos porém no vamente instalouse a mesma complicação anterior tuberculose miliar da qual veio a falecer A história de Nair é o típico relato de uma pes soa privada e carente que passou toda a sua vida em instituições de assistência num país que tem muito pouco de bom para oferecer a esse respeito como o Brasil Nela a doença se instala num quadro ge ral de falência existencial conforme temos observa do em muitos casos de lupus eritematoso sistêmico tornandose por vezes difícil determinar que evento tivesse possibilitado o aparecimento da doença por serem tantas as condições de estresse ou de infelici dade em histórias desse tipo No caso de Nair a doen ça aparentemente se instalou durante uma gravidez na qual houve edema de membros inferiores e lesão típica do lupus eritematoso sistêmico O quadro do lupus se exacerbou no puerpério como é de praxe Desde então esteve em tratamento com corticoste roides e antimaláricos respondendo bem a essa me dicação por ter uma forma relativamente benigna da enfermidade Como seu clínico assistente procurei sempre lhe oferecer apoio e compreensão em suas difíceis problemáticas existenciais Seus problemas se agravaram na decorrência da ligação do tipo sa domasoquista que estabeleceu com seu parceiro um personagem do tipo sociopata que parecia feito sob medida para uma mulher carente e quase oligofrêni ca como ela Aliás Nair se não atingiu o estágio de uma sociopata teve toda uma história de vida que a levava a isso pelo menos na condição que Winnicott chamou de antissocial que a levava a cometer furtos funcionando estes mais como uma forma de clepto mania José ficou sendo o marginal que ela não foi e daí toda a sua fascinação por ele que funcionava como uma parte sua não realizada e não assumida Nair não mais saiu desta relação e das suas conse quências como as gravidezes impossíveis de assumir que geravam abortos ou filhos impossíveis que iam agravar sua enfermidade conforme lhe aconteceu no LES a ponto de por falta de condições reais de subsistência morrer A história de Nair é realmente trágica como o é a de muitos habitantes pobres do nosso país e os acontecimentos dramáticos as perdas se sucedem uns aos outros José morre ao que se sucede uma exacerbação do lupus Pouco tempo depois falece o filho com o qual embora não morasse com ela vinha conseguindo estabelecer bons contactos Ela se depri miu e aparentemente se recuperou depois A direção do serviço de clínica médica no qual ela estava inter nada constatando uma condição de hospitalismo que se prolongava cada vez mais tentou uma situação de alta com a colaboração de Nair que dizia que iria co laborar com a alta tentar se adaptar a uma vida fora do hospital trabalhar etc Nada disso entretanto aconteceu Nair começou a mendigar nesse período estágio final da decadência social numa paciente com uma história de vida como a sua e esteve num asilo Quando voltou ao Hospital foi num estado já bem avançado da doença com acometimento ence fálico estado confusional e em franca fase aguda da doença Foi medicada com os fármacos habituais em doses elevadas o que deve ter contribuído para que novamente apresentasse a complicação infeccio sa da corticoterapia que finalmente a vitimou uma Psicossomaticaindd 199 Psicossomaticaindd 199 05012010 121210 05012010 121210 200 Mello Filho Burd e cols tuberculose disseminada condição comum em pes soas desnutridas e carentes policarentes de corpo e alma como foi ao longo da sua vida PostScriptum de Glória Regina Bandeira de Mello em 2008 O Lupus Eritematoso Sistêmico é uma doença autoimune crônica de etiologia discutida caracte rizada por inflamação nos diferentes órgãos e siste mas Sua alteração principal caracterizase por uma reatividade imunológica anormal com a produção de autoanticorpos reagentes a componentes nucleares citoplasmáticos e de membrana celular principal mente superfície das hemácias leucócitos plaquetas e neurônios estruturas estas que funcionam assim como antígenos O curso é frequentemente imprevisí vel alternando períodos de exacerbação e remissão Embora possa ocorrer em qualquer idade e sexo as mulheres são mais acometidas que os homens 121 o que não implica que os homens tenham formas mais brandas da doença A faixa etária de maior in cidência é entre os 13 e 40 anos e a prevalência é maior em determinados grupos étnicos como o orien tal japoneses e chineses e em especial os negros Esses dados em conjunto sugerem que mesmo sen do de etiologia ainda discutida tanto fatores gené ticos quanto psicossociais ao lado dos hormonais e bioquímicos contribuem para a patogênese do LES Quanto aos aspectos genéticos alguns trabalhos indi cam que em média 10 dos pacientes com LES pos suem parentes em primeiro ou segundo graus com a mesma enfermidade ou com outras patologias autoi munes sendo também significativa a presença de al terações laboratoriais em parentes assintomáticos Já são conhecidos alguns fatores genéticos envolvidos como genes que levam a um aumento das respostas de anticorpos consequentemente a uma variedade de estímulos assim como genes do sistema HLA lócus D DR2 e DR3 que predispõem a uma resposta par ticular do autoan ticorpo Fatores hormonais e am bientais atuam no substrato imunológico facilitado geneticamente predispondo ou protegendo a expres são da doença Nesse caso pelo menos três exemplos podem estar interligados androgênio que parece ter função protetora estrogênio possível função pre disponente e a prolactina também predisponente A interrelação entre eles estaria no fato de a prolac tina ter efeito inibitório na produção dos hormônios sexuais sendo sugerido por Mcmurray 1994 que a indução de deficiência de androgênio em indivíduos com hiperprolactinemia poderia induzir ao apareci mento do LES Uma grande variedade de infecções virais e bacterianas pode estimular o sistema imuno lógico ocasionando o início do quadro Por uma série de diferentes mecanismos ainda não devidamente esclarecidos a exposição à luz solar UV pode pro vocar exacerbações no curso do LES Diversas drogas podem induzir sintomas de uma síndrome designada lupuslike dentre as quais podemos citar a Hidralazi na Procainamida Acido Valproico Fenitoina Primi dona Carbamazepina e Etosuximida Outro fator relevante nos quadros lúpicos são os aspectos emocionais que hoje se sabe desempenham papel importante no desencadeamento e nas exacer bações da doença Desde as observações pioneiras de Hans Seyle que conceituou e cunhou o termo stress para uso na área médica muito se pesquisou a respei to da relação entre os estados psicológicos e a função imunológica onde a resposta mediada pelos linfóci tos T estava diminuída em pacientes deprimidos A alteração funcional nos linfócitos T levaria a uma alteração também na resposta imunológica humoral já que as primeiras contribuem na proliferação de cé lulas B através de secreção do fator de diferenciação das mesmas As alterações psíquicas apresentamse com uma ampla diversidade de quadros gerando in clusive a alcunha de grande imitador para o LES No que diz respeito à patogênese destes distúrbios há quatro causas interrelacionadas efeitos relacionados ao envolvimento direto do Sistema Nervoso central por depósitos de imu nocomplexos efeitos relacionados a complicações clínicas alte rações metabólicas azotemia efeitos iatrogênicos arsenal medicamentoso hospitalização stress psicossocial do LES Este último merece especial atenção pois as principais características desta doença crônica cur so imprevisível e multisistêmica causam uma vasta gama de transtornos psicológicos que precisam ser cuidadosamente observados para que os pacientes possam levar uma vida relativamente normal dentro das limitações a que estão sujeitos REFERÊNCIAS Araujo GRB De Lupus et Homini Contribuições a uma defi nição do espaço de atuação do psiquiatra em Hospital Geral Rio de Janeiro UFRJ Instituto de Psiquiatria 1989 139p Dissertação de Mestrado Correlatos psiquiátricos e neuropsicológicos no Lupus Eritematoso Sistêmico comparação com Artrite Reumatoide e a Miastenia Gravis Rio de Janeiro UFRJ Instituto de Psiquiatria 1998 Tese de Doutorado Cecil Textbook of medicine 23th Ed 2007 Psicossomaticaindd 200 Psicossomaticaindd 200 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 201 Harrison TR Adams RD Bennet Jr IL Resnik W H Thorn GW Wintrobe MM Medicina Interna 17th Ed 20080921 Tavares FMS Eventos estressores e estratégias de enfrenta mento psicológico de portadores de LES Universidade Católica de Goiás 2004 Trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia Navarrete NN Efectos de La terapia de afrontamiento del es trés cotidiano em pacientes com Lupus Universidad de Granada Faculdad de Medicina 2007 Esclerose sistêmica progressiva e dermatomiosite A esclerose sistêmica progressiva escleroder mia é outra doença difusa do tecido conjuntivo que também atinge mais a mulheres e se localiza prin cipalmente na pele da face membros superiores inferiores e tórax conferindo peculiar aspecto de espessamento e esclerose cutâneos diminuindo a mobilidade dos dedos e a abertura da boca Também pode atingir o esôfago pulmões coração rins e ou tros órgãos nobres Diferentemente do LES há pouca resposta aos corticosteroides e quimioterápicos o que pode tornar a tarefa terapêutica frustrante para am bos os participantes da relação Principalmente se le varmos em conta que o paciente pode se tornar muito ameaçado com o acometimento cutâneo que atinge a face e mãos e pode vir acompanhado de fenômeno de Raynaud alterações cianóticas de extremidades decorrentes de fenômenos vasoespásticos Tudo isso leva a distúrbios isquêmicos que provocam o apare cimento de pequenas ulceras dolorosas na ponta dos dedos das mãos O acometimento do esôfago leva a acalasia e a dificuldade de deglutição sintomas muito desagradá veis que podem provocar depressão As lesões pulmo nares levam a insuficiência respiratória geralmente a causa mortis desses pacientes As lesões do miocárdio levam à insuficiência cardíaca e ao acometimento renal mais raro Por conta de todas essas lesões e um pobre arsenal terapêutico os pacientes com escle rodermia apresentamse via de regra deprimidos e pouco esperançosos quanto à possibilidade de cura Em um trabalho mais atual e extenso Hyphan tis 1990 estudaram os aspectos psicológicos de 50 pacientes com esclerodermia usando testes e ques tionários com grupo controle Entre os sintomas psiquiátricos predominava a ansiedade mais ligada a dor articular e a depressão correlacionada com o grau de espessamento da pele as artralgias o com prometimento pulmonar e principalmente as lesões esofagianas muito incômodas levando à disfagia e ao emagrecimento Não encontraram casos de psicose mas apenas traços esquizoides e paranoides princi palmente em jovens atribuindoos basicamente aos distúrbios da adolescência Fatores adaptativos como o uso de defesas egoicas senso de coerência resiliên cia estilos de coping e diversos graus de hostilidade também atuavam para atenuar ou agravar os sinto mas e sua tolerância a estes Os sujeitos com escle rodermia tinham quatro vezes mais quadros psiqui átricos que os controles Com efeito é incomum um paciente com um quadro moderado a avançado de esclerodermia que não se apresente deprimido Por outro lado é sabido que a esclerodermia não apre senta acometimento cerebral Quadros psicóticos sur giam mais em pacientes jovens envolvidos com os problemas da adolescência Dentre as doenças psicossomáticas que tivemos oportunidade de acompanhar mais de perto a escle rodermia e a colite ulcerativa são as que apresentam maior riqueza de aspectos psicológicos em relação às demais Assim na experiência que tivemos com essa enfermidade na década de 1960 em cerca de 20 casos assistidos não nos recordamos de um paciente que não tivesse uma etiologia nitidamente psicosso mática e uma evolução francamente marcada por es tes fenômenos Isso se vê com muita clareza no fenô meno de Raynaud que por vezes o próprio paciente associa conscientemente com as vicissitudes do seu estado emocional As pacientes de esclerodermia que examinamos ou acompanhamos eram geralmente pessoas esquizoides ou depressivas com vidas fran camente infelizes independentemente da influência da doença em suas evoluções Uma dessas pacientes pedianos sem qualquer emoção que déssemos um jeito de operála para lhe tirar o sexo já que isso de nada lhe adiantava Outra paciente era pianista e praticamente na vida só tirava prazer dessa profissão até que surgiu a doença exatamente em suas mãos Temos visto dois grandes riscos de iatrogenia no acompanhamento dessas pacientes um enfoque ex cessivamente cutâneo que esqueça os aspectos sistê micos da enfermidade e um enfoque eminentemente orgânico que desconheça os aspectos psicológicos tão prevalentes nesta doença Sabemos de casos de esclerodermia em acompa nhamento psicoterápico em proporção menor do que no lupus Aqui o desafio maior para o psicoterapeu ta nos parece ser o acompanhamento basicamente silencioso aparentemente morto da maioria destes pacientes ao contrário do lupus em que é geralmen te tumultuado e cheio de imprevistos A dermatomiosite é uma doença de etiologia múltipla corantes de cabelo agrotóxicos vírus HIV picornavirus etc que acomete basicamente pele e músculos podendo provocar lesões sistêmicas pul mões coração rim etc As lesões da dermatomio site são eritematosas e podem ser generalizadas As lesões musculares conferem um caráter mais grave à doença pois podem levar à atrofia muscular com Psicossomaticaindd 201 Psicossomaticaindd 201 05012010 121210 05012010 121210 202 Mello Filho Burd e cols grande prejuízo para a movimentação dos membros superiores e inferiores Acreditase que são conse quência da presença de anticorpos antimúsculo Um caráter ainda mais grave é decorrente da presença de lesões viscerais geralmente pulmonares ou car díacas A doença pode ainda vir acompanhada de neoplasias malignas Nesse caso a dermatomiosite funciona como uma reação imunológica à presença da neoplasia denunciandoa É o que se convencio nou chamar de síndrome paraneoplásica Por vezes a dermatomiosite que tem coisas em comum com a esclerodermia como a síndrome de Raynaud podendo ser acompanhada de lesões cutâneas indistinguíveis desta outra enfermidade constituise numa forma combinada das duas doen ças a esclerodermatomiosite Existe uma forma ape nas muscular da doença a poliomiosite com menor comprometimento sistêmico Por ser uma doença de incidência bem menor que o lupus e também menos frequente do que a esclerodermia a dermatomiosite é uma entidade ainda pouco conhecida fazendo com que haja casos por muito tempo não identificados le vando estes doentes a serem submetidos a vários exa mes desnecessários Por essas razões estes pacientes chegam muitas vezes à primeira consulta cansados e desanimados por terem sido submetidos a várias peregrinações inúteis O tratamento médico pode ser frustrante pois a dermatomiosite não responde tão bem à terapêutica com cortisona quanto o lupus As sim a melhora das lesões cutâneas pode ser lenta e mais ainda a do quadro muscular principalmente se há atrofia Em nossa fase de clínico atendemos a cerca de 10 pacientes com dermatomiosite Queremos ilustrar as vicissitudes do acompanhamento desse tipo de pacientes com a descrição de dois casos ambos em mulheres jovens A primeira paciente que chamaremos de A era ainda adolescente quando surgiu a doença Era a mais velha de quatro irmãos de uma família que vivia bem até que o pai foi acometido de um qua dro de demência présenil que desorganizou de todo a vida familiar Em pouco tempo este não mais se comunicava porém estava sempre profundamente agitado e incontinente Ela e a mãe adoeceram jun tas a mãe começou com um quadro enxaquecoso e posteriormente uma artrite reumatoide que rapida mente evoluiu para a deformidade articular Quan do atendemos A pela primeira vez era como se ela não tivesse pais quem a trazia para a consulta era um namoradinho Estava francamente deprimida em virtude da doença dos pais e do seu próprio esta do lesões cutâneas muito chamativas reumatismo e dores musculares Com o tratamento com corti costeroides o quadro cutâneo e músculo articular começaram a declinar mas a paciente mantevese severamente deprimida pois sua face começou a inchar moon face bem como o abdome e a par te superior das extremidades Seu acompanhante e namoradinho foi muito importante nesta difícil fase inicial de sua enfermidade A vem sendo acompanhada no mesmo ambu latório desde então nos três primeiros anos por nós e teve uma evolução de curso benigno porém sem pre necessitando de uso de corticosteroides e anti maláricos Casouse com o namoradinho tem filhos são felizes e de vez em quando vem visitarme para demonstrar sua gratidão matar saudades e dar no tícias B é uma paciente que tinha 26 anos quando iniciou um quadro de febre alta reumatismo e do res nos músculos proximais das extremidades Esta va dispneica e seu quadro inspirava cuidados pelo que foi internada Praticamente não podia se alimen tar por acometimento de faringe e esôfago devido à enfermidade O diagnóstico veio com uma biópsia muscular e o estado de B se agravava cada vez mais mesmo com o uso de altas doses de corticosteroides Era preocupante o quadro pulmonar resultante de extensas lesões bilaterais de pneumonite Apesar de todos os recursos terapêuticos corticosteroides anti bióticos oxigênio etc seu estado foi se agravando e ela veio a falecer com um grave quadro toxêmico na decorrência principalmente de falência pulmonar Na autópsia apresentava lesões generalizadas de derma tomiosite que atingiam também o coração e os rins o que é raro O que levou B a esta evolução não pôde ser identificado no estado de conhecimentos daquela época Ela levava uma vida sadia com o esposo e fi lhos e sempre se mostrou cooperativa com os médi cos enfermeiras e todo o pessoal da equipe supor tando com estoicismo toda sua via crucis Minha relação com B era muito intensa embo ra girasse toda ela em torno do seu acompanhamento clínico Falávamos pouco pois ela era uma pessoa in trovertida e no final perdeu sua fonação por acometi mento de laringe Sua relação comigo era feita princi palmente através do olhar Ela me transmitia aflição inquietude mas também esperança luta interesse cooperação No final passava sobretudo gratidão e nos últimos dias resignação Eu tentava me comu nicar com ela através de palavras enquanto isso foi possível falando se necessário daquilo que captava do seu olhar No final deixeime entrar em comunica ção silenciosa com ela B foi uma das pacientes que mais me ensinou sobre a importância desse tipo de comunicação Depois que ela morreu uma vizinha de leito me disse Psicossomaticaindd 202 Psicossomaticaindd 202 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 203 B comentou que sabia que ia morrer mas que valeu a pena esta internação pois conheceu um médico como senhor Vale sempre a pena ajudarmos nossos enfermos B em seu leito de morte ainda teve forças para ex pressar sua gratidão Deixoume um presente que iria repercutir em toda a minha vida profissional Colite ulcerativa A colite ulcerativa é uma doença caracteriza da por um processo inflamatório no intestino grosso que em virtude da intensidade deste pode se apre sentar com múltiplas ulcerações Em decorrência dis so surge diarreia geralmente acompanhada de muco e sangue podendo ocorrer verdadeiras hemorragias intestinais Assim na fase aguda da doença esses pacientes podem apresentar 10 20 exonerações in testinais sendo por vezes indicada a internação hos pitalar Há uma grande literatura a este respeito a maioria dos trabalhos enfatizando a gravidade da estrutura psíquica destes pacientes Assim Karush 1969 em 30 casos encontrou apenas um paciente com estrutura neurótica e Sperling 1959 que ficou famosa por seus estudos sobre colite ulcerativa em crianças acha que esta doença é o equivalente somá tico de uma depressão psicótica Engel 1955 que estudou 70 casos em um trabalho que consideramos de grande importância diz que estes pacientes pela fraqueza dos seus egos tendem a fazer relações simbióticas cuja ameaça de rotura é o principal fator desencadeante das crises há melhora espontânea quando o doente consegue desfazer tal tipo de relação Ele chama atenção para a importância de tal fato na relação médicopaciente o paciente por exemplo piora quando o médico se ausenta de seu convívio viagens outros compro missos ameaçando este tipo de vínculo simbiótico Temos visto na clínica com frequência esse tipo de vínculo e as ameaças decorrentes do perigo de sua dissolução Tudo isso se passa no terreno do incons ciente sendo difícil para o paciente a percepção da cadeia de eventos Em publicação anterior Mello Filho 1976 apresentamos nossa experiência com essa doença àquela altura representada por sete casos acompa nhados psicoterapicamente e estudados através de testes de personalidade Era uma casuística toda ela composta de pacientes que necessitaram de hos pitalização pelo que acreditamos predominavam francamente as estruturas limítrofes havia casos de alcoólatras de prostitutas pacientes paranoicos ou esquizoides A psicoterapia estava sempre indicada porém não apresentava bons resultados quando os pacientes não se mostravam motivados para este tipo de abordagem Constatamos o paralelo apontado en tre a gravidade das estruturas psíquicas e a gravidade das formas clínicas apresentadas Atualmente com uma maior experiência com esses pacientes e tendo visto uma série de casos não hospitalizados modificamos algo da nossa impressão sobre essa enfermidade Já não mais a vemos como a doença psicossomática psicótica ao contrário da úlcera péptica modelo de doença psicossomática neurótica Temos visto casos de pacientes neuróticos obviamente com um prognóstico melhor Alguns pa cientes são alexitímicos o que torna a condução do caso mais complicada o contacto é mais difícil como também o ganho emocional e a aquisição de insight Não temos dúvida de que a imensa maioria des tes pacientes precisa de ajuda psicoterápica A rela ção com o clínico quando este não tem uma maior profundidade de abordagem tende a se tornar um verdadeiro diálogo através de fezes como já deno minamos anteriormente Assim a preocupação do paciente com sua diarreia é usada inconscientemente pela dupla para impedir um verdadeiro diálogo exis tencial com preocupações sobre a vida e suas vicis situdes O resultado da psicoterapia irá depender da es trutura psicológica do paciente sendo mais reservado nos borderlines ou naqueles abertamente psicóticos bem como nos esquizoides ou naqueles com distúr bios de caráter O ideal é que esses pacientes mais graves possam se submeter a um tratamento analítico que possa atingir as camadas mais profundas de suas personalidades É fundamental que exista uma boa aliança te rapêutica com o clínico assistente e com a família do paciente Por vezes fazse necessário um trabalho com a família para tentar imobilizar certos núcleos conflitivos que estejam interferindo com a recupera ção do paciente Pode ocorrer que o clínico de modo inconsciente solape o trabalho do psicanalista por não acreditar neste ou mesmo por pensar que não será de utilidade para o paciente Geralmente nessas situações triangulares entra em jogo o dedo do pa ciente que mobilizado pelo tratamento psicoterápico atua às escondidas através do clínico fazendo uso das resistências deste à psicanálise Nas fases agudas o tratamento com estes pa cientes se torna ainda mais uma questão de empatia tato e sensibilidade Nessas fases são contraindicadas interpretações de conteúdo ou transferenciais Ali ás estes mesmos nos dizem quais as interpretações adequadas ou não respondem com diarreia aos enfo Psicossomaticaindd 203 Psicossomaticaindd 203 05012010 121210 05012010 121210 204 Mello Filho Burd e cols ques não empáticos que não podem suportar O psi coterapeuta deve se manter disposto a acompanhar o paciente em sua residência ou no hospital se o seu estado assim o indicar Tanto na residência ou num quarto particular não é difícil reconstituir um setting psicoterápico E mesmo numa enfermaria isso é pos sível os vizinhos de leito costumam se retirar na hora das visitas para possibilitar um clima de intimidade Também para acompanhar uma internação por uma intercorrência cirúrgica fístula intestinal megacolo tóxico adenocarcinoma adenoma de cólon como complicação o psicoterapeuta deve estar presente inclusive por serem momentos difíceis e de desânimo para o paciente Pacientes com história de doença crônica mui to sofrimento e muitas recidivas são particularmente resistentes a uma abordagem psicoterápica é preciso saber lidar com o seu desalento e ajudálos a poder novamente dar uma oportunidade a si mesmo e aos outros O doente por vezes numa recaída atribui tudo a uma falha da relação psicoterápica É o resul tado de uma visão simplista reducionista que tudo atribui a um superterapeuta e que não corresponde às suas expectativas de grandiosidade Nesses casos é fundamental que se enfoque a idealização para que o paciente aos poucos possa tolerar as falhas do tera peuta faltas pequenos atrasos não se mostrar sem pre disponível etc Escrevendo sobre o atendimento psicoterápico a pacientes com colite ulcerativa tivemos oportunidade de expressar que De um modo geral os pacientes só melhoravam do quadro diarreico quando um único médico clínico assumia o caso passava a ser a mãe do paciente como costumávamos dizer evitando a prática nociva do rodízio da relação médicopaciente descrita por Balint Não somente o psicoterapeuta obtém resultados nestes casos Também o médico comum dotado de empatia intuição e sensibilidade atuando como uma mãe suficientemente boa na concepção de Winni cott pode ajudar o paciente a sair dessas crises de respostas somáticas regressivas Por tudo isso não devemos afirmar que todos os pacientes com coli te ulcerativa necessitam de uma psicoterapia reali zada por especialista Porém é fundamental que o gastrenterologista ou o proctologista que lidam com pessoas com essa enfermidade reconheçam aqueles casos que de fato necessitam de tal abordagem pois só assim conseguiremos evitar que muitos pacientes cheguem a uma colostomia ou tenham de enfrentar certas complicações da doença decorrentes do seu agravamento Casos clínicos Carla tem 48 anos e sua doença colite ulcerativa se iniciou aos 44 É doméstica casada e tem duas filhas com pequena diferença de idade Foi educada no interior do Es pírito Santo em um lar judeu Seu pai teve dois matrimô nios com três filhos do primeiro e dois do segundo Carla e um irmão Seus pais conviveram apenas por uma semana quando resolveram se casar ele escondeu da mãe que já era pai de 3 filhos O pai era um homem muito patriarcal autoritário e agressivo um dia quase enforcou a filha com as suas próprias tranças quando estava com raiva costumava trancar toda a família no porão A mãe também era agressiva pirracenta costumava bater em Carla com uma corda de borracha fina Todos os irmãos saíram de casa cedo para escapar des te clima no qual pai e mãe viviam se desafiando diante dos filhos Quando Carla tinha apenas 5 anos foi internada num colégio de freiras católicas apesar da educação judia para aprender a comer corretamente sic Apesar dos rigores do internato ela preferia estar lá a estar em casa Tornouse uma menina sapeca que levava as colegas à noite para observar as freiras que estavam dormindo para ver se ti nham a cabeça raspada Só gostava de brincadeiras de me ninos jogava bola de gude descia o morro em cima de um pedaço de papelão Aos 13 anos como não estivesse ainda na puberdade foramlhe receitadas injeções de hormônio Por esta razão sempre desconfiou de sua feminilidade a partir daí sic A mãe sempre quis que Carla estudasse piano e pratica mente a induziu a isso Também a proibiu de jogar vôlei Por tudo isso ela estudou piano à força e por pirraça obteve péssimas colocações só para tentar fazer raiva à mãe Aos 16 anos Carla veio morar com uma tia materna no Rio ficando em sua casa até 19 anos saindo para casar Durante quase todo esse período foi assediada pelo marido desta tia tio por afinidade que propunha lhe dar um dote para frequentar seu futuro apartamento de casada até ten tar de vários modos penetrar no quarto onde dormia Um primo intercedeu por ela e construiu um cinto de castidade que passou a usar para dormir e que era conectado à tranca que protegia a porta do quarto Nesse ínterim Carla começou a namorar Paulo que seria seu futuro esposo e começou a se sentir menos des protegida Desde o início Paulo se mostrava um homem ansioso rígido e autoritário como seu pai Todavia Carla se adaptou ao seu modo de ser pelo que tinham de início poucos atritos Carla casouse virgem e assim permaneceu durante um mês com um receio muito grande de ter rela ções de ser desvirginada Engravidou de sua primeira filha Maria logo aos 3 meses de casada Embora esta nascesse prematura e a fórceps seu nascimento foi uma enorme ale gria para Carla Somente a amamentou por um mês porém ficou muito ligada a esta filha por toda a vida Mariana nas ceu nove meses depois Maria e Mariana nasceram muito parecidas dando a Carla a sensação de que eram filhas gê Psicossomaticaindd 204 Psicossomaticaindd 204 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 205 meas Também se ligou muito a ela porém a sensação de completitude não era a mesma que com Maria Nos anos que antecederam o surgimento de sua colite ulcerativa Carla vinha enfrentando dois tipos de proble mas O primeiro de ordem financeira era decorrente de toda uma instabilidade que começava a se apresentar nos negócios do marido Assim este mudava de ramo constan temente farmácia móveis eletrodomésticos ouro finan ças etc e em pouco tempo deixava o dinheiro acabar para grande insegurança da família Carla sentiase sem ter o que fazer diante dessa situação que se agravava Nesse período Carla teve um episódio de psoríase no couro cabeludo que todavia remitiu com o tratamento dermatológico habitual Um segundo tipo de problema era decorrente do ca samento que Mariana recém havia feito Seu marido parecia um adolescente contestador que não trabalhava e resolveu enveredar pelo mundo do teatro com Mariana porém numa companhia dele mesmo que nunca conseguia montar um espetáculo Os dois passavam dias inteiros na casa de Carla sem nada fazer Ela ficava com muita raiva porém nada dizia com medo de piorar mais as coisas Foi nessa fase muito insatisfeita com os destinos da filha que por dificuldades financeiras passou a morar numa região que se confundia com o meretrício que Carla iniciou seu processo de co lite ulcerativa com diarreia que se alternava com emissão de muco com estrias sanguinolentas Ela se mostrava muito fechada ao contacto conosco parecendo uma personalida de esquizoide ou uma paciente alexitímica O medo que demonstrava do contacto e os aspectos persecutórios que percebíamos no seu comportamento foram nesse ínterim empurrando o seu diagnóstico para o polo das personalida des esquizoides Carla mostrava muito pouca capacidade de insight inclusive por estar hipocondriacamente preocupada com sua doença que temia ser um câncer A falta de insi ght era também decorrência de sua relutância em entender de todo o que estava acontecendo na relação com a filha Carla num background de dificuldades financeiras por falhas sucessivas do marido não tolerou as decepções do casa mento da filha que fugia totalmente às suas aspirações e expectativas Inconscientemente se culpava por tudo aquilo estar ocorrendo com a filha menos amada Ajudoume muito neste início de tratamento o ambien te de holding e de acolhimento de um grupo terapêutico antigo que recebeu Carla com empatia sem rivalidades ou qualquer outra conduta negativa que tornasse o seu trata mento difícil num setting grupal Nosso trabalho foi mostrar que a filha estava vivendo através do casamento a rebelião adolescente que não tinha expressado antes e mostrando sua necessidade de se se parar de Carla do quanto ela ainda se mantinha simbioti camente ligada às filhas Admitiuse no grupo a culpa por ela ter se vinculado menos a Mariana porém sempre na direção de poder fazer agora por ela aquilo que não pode ser feito antes reparação e nunca ficar apenas masoquisti camente se amargurando por isso Como resultado desses insights Carla pode adotar uma atitude menos passiva na vida começando a trabalhar com o marido numa confecção de roupas e a preparar sanduíches naturais que eram vendi dos por Mariana numa atitude de contribuir para a solução das crises que acometiam a família Com cerca de seis meses de tratamento a colite ulce rativa entrou em remissão e Carla continuou a ser tratada agora mais como uma paciente neurótica comum Come çouse a abordar a relação com o marido seu medo e sub missão a este como era com seu pai Também começamos a falar das suas inibições sexuais tema muito difícil de ser abordado por ela no grupo Com cerca de um ano de tratamento seu cunhado irmão de Paulo que é como se fosse um gêmeo deste separouse da mulher para ir viver com uma amante aba lando a família e principalmente Carla que tinha dúvidas da fidelidade do esposo Esta teve então uma nova crise da doença que durou quatro meses exato período que levou para o cunhado sair desta situação Porém Carla começou a melhorar quando percebeu que seu medo era em relação ao marido não ao cunhado Diz ela própria Quando eu me conscientizei deste fato melhorei Desde então Carla não mais teve episódios de diarreia e vem fazendo sucessi vos progressos em seu tratamento não mais voltando a ser a pessoa esquizoide de antes mostrandose comunicativa tendo mesmo recuperado um lado brincalhão que parecia perdido Há um ano atrás um episódio traumático funcionou como teste para suas condições psicológicas e psicosso máticas Através de um telefonema anônimo teve conhe cimento de que o marido tinha uma amante fato que pôde investigar e confirmar Não perdeu a fleuma em todo o epi sódio nem teve diarreia apesar de ter se sentido perplexa traída e diminuída Admitindo suas dificuldades sexuais op tou por melhorar seu desempenho sexual com o marido reconquistandoo Hoje a situação parece diferente Car la não mais se refere às atitudes de Paulo em tratála com agressividade Os dois se entendem com respeito Ele está muito mais carinhoso comigo Às vezes eu procuro vestígios de uma outra relação e não mais encontro Postscriptum INTRODUÇÃO Os autores Hart e Kamm Hart 2002 fazem uma revisão das contribuições à fisiopatologia das doenças inflamatórias intestinais levando em conta a influência do estresse porém dando apenas quase nenhuma importância em nossa opinião ao papel das emoções e dos conflitos Referemse a uma visão inicial que consideram obsoleta onde a retocolite ulcerativa seria uma doen ça exclusivamente ligada às emoções Reconhecem porém que há ligação entre a doença de Crohn a retocolite ulcerativa e o estresse Citam inclusive al guns estudos que relataram uma associação positiva a certos traços de personalidade como neuroticis Psicossomaticaindd 205 Psicossomaticaindd 205 05012010 121210 05012010 121210 206 Mello Filho Burd e cols mo introversão traços obsessivocompulsivos de pendência perfeccionismo e outros Alguns desses estudos referem uma relação temporal com pequeno ou nenhum espaço de tempo decorrendo entre estres se e as exacerbações clínicas Essa associação estres se e exacerbação foi comprovada por meios clínicos e por endoscopia Recentemente tem sido sugerido que o estresse breve não provoca exacerbações na co lite ulcerativa diferentemente do de longa duração que aumenta o risco de exacerbações exacerbações essas que podem persistir por meses ou anos Muitas evidências sobre o papel do estresse na patologia humana provêm de estudos com animais Evidenciouse segundo Hart e Kamm Hart 2002 que o estresse não somente provoca reincidências mas causa a enfermidade experimental em novos ani mais Citam estudos onde a inflamação desenvolve se espontaneamente em animais sujeitos a situações estressoras Assim macacos Saguinus oedipus sub metidos a uma situação de prisão desenvolvem uma colite que guarda proximidade clínica com a colite ulcerativa humana Wood 2000 Foi demonstrado além disso que agentes estressores agindo por mais tempo como a privação maternal precoce podem predispor a barreira da mucosa a uma permeabilida de anormal Soderholm 2001 O EIXO SISTEMA IMUNECÉREBROINTESTINO Assim os autores intitulam o capítulo onde dis criminam influências entre os três níveis O cérebro segundo eles claramente influencia o intestino por via motora sensitiva e secretora através do SNA Ver Estresse e Sistema Imune Tem se demonstrado a influência do estresse na evolução clínica na in tensidade dos sintomas na motilidade intestinal na sensibilidade visceral e na reatividade autonômica HART 2002 O marcante efeito placebo observado nas do enças inflamatórias intestinais traznos evidências de uma ligação entre os fatores psicológicos e os processos inflamatórios O efeito placebo na colite ulcerativa não é limitado à melhora dos sintomas do paciente ou à percepção de sua doença mas com preende também uma melhora do próprio processo inflamatório É difícil explicar este mecanismo sem se referir ao clássico reflexo condicionado O condi cionamento pavloviano traz evidências de conexões neuroimunes que exercem seu efeito direto na fun ção da mucosa intestinal Esta mucosa é inervada e contem peptídeos regulatórios citocinas fatores do crescimento e hormônios locais que coexistem em íntimo contato MECANISMOS DE AÇÃO DO ESTRESSE NAS FUNÇÕES DE BARREIRA Neste subcapítulo os autores HART 2002 lembram que a integridade do epitélio intestinal funciona como barreira para a penetração de corpos estranhos Esta barreira compreende a secreção de muco fluidos e os agentes da microbiota local além dos componentes do sistema imune inato e adquiri do Ver As Três Linhas de Defesa do Sistema Imune Em particular o estresse pode aumentar a permea bilidade do epitélio ou a secreção de água e libera ção de mucina afetar as células imunes a micro flo ra entérica e a produção de citocinas Modificações resultantes podem ter como consequência a invasão de antígenos da cavidade intestinal iniciando e per petuando a inflamação Demonstrouse que parentes em primeiro grau de pacientes com doença de Crohn um subgrupo com uma possibilidade aumentada de adquirir a doença tinham permeabilidade intestinal aumentada Wyatt 1993 As mudanças na atividade secretora podem ser constatadas in vitro e in vivo No homem o estresse resulta em excessiva secreção jejunal Por outro lado tem sido evidenciado que o estresse pode causar um significativo aumento na aderência das bactérias à mucosa particularmente no ceco o que aumenta a permeabilidade desta Os autores recordam que os processos inflama tórios do intestino podem ser modulados ao nível do SNC do sistema nervoso periférico do SNA e dos ner vos intrínsecos do intestino Muitas evidências exis tem que o Fator Liberador de Corticotrofina CRF é o principal mediador do estresse relacionando o hipotálamo e a hipófise à córtex adrenal Como tal intermedia os efeitos do estresse sobre as funções in testinais principalmente sobre a motilidade intestinal onde células imunes macrófagos linfócitos liberam corticotrofina integrando essa rede de neuroimuno modulação Quanto ao SNA este já é classicamente envolvido na fisiopatologia do funcionamento intes tinal Assim na colite ulcerativa foi descrito um au mento da inervação adrenérgica do cólon e um au mento do tônus simpático Foi também sugerido que os nervos simpáticos podem ser próinflamatórios Já os nervos colinérgicos desempenham um impor tante papel na úlcera péptica e regulam o transporte intestinal de íons e a secreção de mucina Somente Melita Schimidberg relatou em trinta casos que estudou de colite ulcerativa em crianças que a maioria delas tinha uma estrutura obsessivo compulsiva Em dois casos que um de nós acompanhou havia uma forte dependência ao cônjuge Psicossomaticaindd 206 Psicossomaticaindd 206 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 207 A ação de neurotransmissores como a substân cia P que é amplamente distribuída no sistema nervo so central periférico e entérico tem papel modulador nas doenças intestinais inflamatórias e na resposta ao estresse A ativação da substância P tem sido as sociada com a dilatação arteriolar o extravasamento plasmático a adesão de neutrófilos e eosinófilos e a estimulação de linfócitos macrófagos e mastócitos EMOÇÕES MORBIDADE E MORTALIDADE Em mais um trabalho de revisão KiecoltGla ser e colaboradores 1984 da Universidade de Ohio estudaram as influencias das nossas emoções nega tivas nos processos de morbidade e mortalidade à luz das novas descobertas da psicoimunologia Entre as emoções negativas citam a depressão ansiedade hostilidade e raiva No final também consideram o papel das emoções positivas neste contexto pouco estudadas Em relação à depressão citam o trabalho de Pratt 1996 prospectivo de 13 anos que evidencia que os indivíduos com depressão maior tinham quatro vezes e meia mais chances de desenvolver um ataque cardí aco que os normais Por outro lado a mortalidade en tre pacientes que já tinham desenvolvido um ataque cardíaco era quatro vezes maior entre os deprimidos desse grupo FrasureSmith et al 1993 A depressão também favorece o curso de mui tas enfermidades para pior Nas mulheres agrava os processos e osteoporose nos homens diminui a for ça muscular após três anos Também interfere com a reabilitação em várias enfermidades AVC fraturas e doenças pulmonares A dor muito ligada à depressão através da se creção aumentada de catecolaminas e cortisol acele ra a frequência cardíaca e aumenta a pressão arterial Dados de 11242 pacientes externos de um médico mostraram que aqueles com uma desordem depressi va tinham pior saúde física social e mais frequente queixas de dor Wells 1989 A ansiedade também tem um papel adverso que tem sido muito estudado na doença coronariana personalidade tipo A Por outro lado os ataques de pânico predizem uma mortalidade três vezes maior por esta enfermidade em 7 anos do que em controles normais Haynes 1980 Por outro lado a ansieda de tem um importante papel na hipertensão arterial na insuficiência cardíaca e em certas arritmias A an siedade também tem um papel negativo no processo de cicatrização como também a hostilidade e a raiva crônica Um importante estudo de 9 anos de homens com um alto nível de hostilidade provou que estes tinham um risco duas vezes maior de mortes por cau sas cardiovasculares em geral do que homens com um grau menor de hostilidade Goldstein 1992 DOENÇA DEPRESSIVA E IMUNIDADE 20 ANOS DE PROGRESSOS E DESCOBERTAS Introdução Em mais um trabalho de revisão da revista Brain Behavior and Immunity BBI Michel Irwin e Andrew Miller Irwin 2007 fazem resumo abrangente des te tema Com alta prevalência a depressão tem um grande impacto no indivíduo e na sociedade e será a segunda causa de doença no mundo em 2020 segun do a OMS Além das consequências emocionais essa desordem tem sido implicada em um sem número de condições médicas Por outro lado inúmeros traba lhos vêm demonstrando que a depressão mesmo a depressão menor acarreta diversas consequências imunológicas Irwin 2007 Durante os 10 primeiros anos de publicações na BBI 19871996 foram relatados avanços como alterações imunológicas na depressão maior Nos se gundos 10 anos da revista BBI 19972006 surgiram evidências de que a depressão também está associada à resposta imune inflamatória inata ver A Organiza ção Anatomofuncional do Sistema Imune incluindo alterações na habilidade da célula imune em liberar citocinas inflamatórias A primeira década 1987 a 1996 A depressão tornouse um bom modelo para se estudar a interação comportamentocérebrosistema imune pois os pacientes afetados exibiam distúrbios do comportamento humor depressivo distúrbio do sono juntamente com alterações dos sistemas neu roendócrino e simpático vistos como vias eferentes na regulação da imunidade pelo cérebro Entre as primeiras descobertas de alterações imunológicas na depressão estavam o aumento geral de leucócitos bem como dos neutrófilos e linfócitos As células Na tural Killer NK encontravamse diminuídas e por isso logo se supôs que estes pacientes fossem mais susceptíveis às infecções Estudo sobre os fatores clínicos moderadores Muitas variáveis clínicas podem influenciar o estado imune e modular a associação entre depressão e imunidade incluindo idade sexo massa corporal grau de estresse fumo e comorbidades psiquiátricas Psicossomaticaindd 207 Psicossomaticaindd 207 05012010 121210 05012010 121210 208 Mello Filho Burd e cols Como exemplo os autores Irwin 2007 citam a in fluência do sexo O declínio na imunidade celular co mumente observado em homens idosos e que parece ser devido à imunosenescência é exacerbado pela de pressão pois quando são comparados a mulheres de primidas os declínios das células T e a atividade NK são mais proeminentes no sexo masculino Influên cias relacionadas ao tabagismo também podem ser observadas Um interessante trabalho citado pelos autores em 245 pacientes deprimidos constatou que a depressão e o fumo interagiam para produzir um maior declínio na atividade NK do que em grupos de deprimidos e de fumantes tomados isoladamente Por último diagnósticos específicos de comorbidades tais como ansiedade e dependência de álcool em combi nação com depressão provocam maiores quedas na atividade NK do que modificações em pacientes de pressivos sem tais comorbidades Irwin 2007 Efeitos de tratamentos clínicos Um conjunto de estudos investigou o curso clíni co da depressão e as mudanças da imunidade celular em relação à medicação antidepressiva Em um es tudo longitudinal citado pelos autores Irwin 2007 com pacientes deprimidos em curso de um tratamen to com antidepressivos tricíclicos observouse que um aumento da atividade NK trouxe melhoras paralelas ao alívio dos sintomas Em outra citação um estudo longitudinal em adultos jovens com depressão uni polar envolvendo um tratamento com nortriptilina e alprazolam as melhoras clínicas estiveram associa das à diminuição do número de linfócitos circulantes e à recuperação de respostas funcionais de linfócitos quando estimulados Em outro trabalho citado pelos autores o tratamento com fluoxetina resultou num aumento da atividade NK juntamente com melhoras nos sintomas depressivos Tomados em conjunto esse dados sugerem que a resolução de sintomas depres sivos resulta em melhora das respostas linfocitárias e da atividade NK Mediadores biológicos Pacientes deprimidos mostram elevadas taxas do hormônio liberador da corticotrofina CRH no SNC Esse peptídeo participa nas respostas neurais neuroendócrinas e imunes ao estresse ver As Ba ses Anatomofuncionais da Resposta Ao Estresse A Integração Neuroendocrinoimunológica Modelos animais citados Irwin 2007 foram usados para mostrar que o CRH provoca declínios marcantes na atividade NK Estudos posteriores mostraram que o CRH provocava também a diminuição da resposta imune celular e humoral através da mediação de mecanismos efetores simpáticos do Sistema Nervoso Autônomo SNA Esses dados caracterizaram o CRH como um peptídeo central que pode modular a imu nossupressão nos pacientes deprimidos Em relação aos mecanismos efetores começou a ser levada em conta o papel dos neurotransmissores simpáticos na contribuição às alterações imunes na depressão Os autores discorrendo sobre o papel do eixo neuroendócrino afirmam que uma das marcas da depressão maior é a desregulação do eixo hipo tálamopituitárioadrenal HPA e a hiper secreção de cortisol Insônia e desordens do sono Segundo os autores inúmeros estudos vêm de monstrando que o sono tem importante papel na re gulação da função imune Diminuições da atividade NK correlacionavamse com insônia mas não com outros sintomas depressivos como somatizações per da de peso e distúrbios cognitivos Ao mesmo tempo em estudos que usaram a polissonografia a diminui ção do sono total correlacionavase com o declínio da função celular imune Citam também estudos com pacientes com insônia primaria que demonstraram que o sono latente e sua fragmentação associavamse com a elevação noturna de catecolaminas e o declínio dos níveis diuturnos das respostas das células NK A Segunda Década 1997 a 2006 Em uma provocativa revisão dos achados imu nes na depressão o significado vigente das alterações imunes inespecíficas foi desafiado com uma série de observações Segundo os autores Irwin 2007 vários pesquisadores trabalharam com respostas imunes mais específicas e que poderiam estar mais intima mente associadas ao risco de doença Alguns estudos de destaque apareceram como a demonstração que a função celular T em resposta a agentes virais es pecíficos era mais baixa em pacientes deprimidos do que em controles e que o estresse psicológico possi velmente produzia declínio na resposta à imunização contra infecções virais Para complementar tais acha dos os estudos começaram a focar importantes en fermidades com estreita relação com o sistema imu ne principalmente as doenças infecciosas e virais Por exemplo a infecção pelo HIV mostra um curso altamente variável com depressão luto e má adapta ção psicológica aos estresses incluindo o próprio es tresse causado pela doença HIV AIDS todos esses Psicossomaticaindd 208 Psicossomaticaindd 208 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 209 fatores predizendo a degradação do sistema imuno lógico Na verdade a depressão maior em mulheres com HIV tem sido associada à baixa da atividade NK e também ao aumento do número de linfócitos CD8 ativados e com carga viral o que sugere que o declí nio de linfócitos NK em associação com a depressão pode aumentar o risco da exacerbação do HIV nessas mulheres O declínio do sistema imune e a replicação do HIV são particularmente rápidos em pacientes vi vendo sob estresse crônico por exemplo gays que escondem sua condição e vivem inteiramente sós já em pacientes com melanoma maligno metastático a grupoterapia levou a melhoras no humor depressivo e na função NK bem como ao aumento do tempo de sobrevida Depressão e níveis circulantes de marcadores inflamatórios Em pacientes com desordens inflamatórias como a Artrite Reumatoide AR e doença cardiovascular a depressão tem sido encontrada predizendo um au mento da morbidade e da mortalidade Zautra 2004 e Lesperance 2004 A depressão tem sido associada a aumento dos níveis circulantes de citocinas próin flamatórias IL6 em adultos com depressão maior em populações de idosos deprimidos e naquelas pes soas deprimidas com doenças crônicas como AR câncer e doenças cardiovasculares O autor cita que doentes deprimidos exibem uma exagerada ativação da resposta inflamatória que se segue a um estresse psicológico agudo com elevação de IL6 e ativação do Fator de Transcrição Nuclear B NFκB um fator que assinala o início de uma variedade de processos próinflamatórios Da mesma forma pacientes depri midos com severo distúrbio do sono podem ter um maior risco de aumento de marcadores inflamatórios em função de níveis elevados de IL6 e outros agentes próinflamatórios Aumentos nos níveis circulantes de outras citocinas próinflamatórias tais como o fator de necrose tumoral TNFα e interleucina 1 IL1 também têm sido relatados em pacientes deprimidos incluindo as depressões senis Aumentos da IL12 em uma larga amostra de pacientes deprimidos também têm sido descritos A IL12 é uma citocinas que é pri mariamente produzida por monócitos e macrófagos e desempenha um papel central nas fases precoces da inflamação Elevações na proteína C reativa têm sido encontradas em associação com a depressão inclu sive em adultos sadios bem como em pacientes de primidos com síndrome coronariana aguda Miller 2002 Lesperance 2004 A depressão parece produ zir aumento nos marcadores inflamatórios em alguns pacientes e diminuir as respostas NK em outros Por outro lado especulase que anormalidades nas citocinas possam contribuir para a depressão Como exemplo pacientes que exibem evidências de infecção autoimunidade ou doença neoplásica exibem altos índices de depressão Além do mais a terapia por citocinas para doenças infecciosas e cân cer notoriamente causa alterações comportamentais Finalmente há outros caminhos conhecidos envol vendo a fisiopatologia da depressão que são influen ciados pelas citocinas incluindo o funcionamento neuroendócrino e a função neurotransmissora Terapias com citocinas A depressão maior é frequente nos pacientes se riamente enfermos com cerca de 50 deles apresen tando sintomas depressivos que dependem do tipo e da intensidade da doença básica Novos conhecimen tos sobre a biologia dos distúrbios do humor têm le vantado a possibilidade que citocinas próinflamató rias liberadas em função dos processos inflamatórios atuando na doença grave participem da fisiopatolo gia da depressão Graças aos efeitos antivirais imunomoduladores e antiproliferativos as citocinas têm sido utilizadas no tratamento de diversas doenças como a hepati te C a AIDS e doenças imunomediadas como a AR A terapêutica com citocinas induz frequentemente depressão maior e sintomas comportamentais Esse comportamento doentio pode ser notavelmente re produzido pela administração de cada uma das cito cinas pro inflamatórias isoladamente ou por agentes que induzem a ativação de outras citocinas Há duas distintas síndromes comportamentais com diferentes fenomenologias e graus de resposta a antidepressivos em pacientes que tiveram depressão no curso de tra tamentos com citocinas Numa delas a síndrome cog nitiva ocorrem típicos sintomas de depressão e humor depressivo ansiedade irritabilidade distúrbios da memória e atenção usualmente entre o primeiro e o terceiro mês em pacientes vulneráveis Outra síndro me a neurovegetativa caracterizada por sintomas de fadiga lentificação psicomotora anorexia e distúrbio do sono desenvolvendose precocemente dentro de duas semanas no caso do Nα em um grande número de pacientes A síndrome humoral cognitiva responde muito bem ao uso de paroxetina enquanto a síndrome neurovegetativa não responde aos antidepressivos O futuro 2007 e além Baseados nesses conhecimentos da fisiopatolo gia da depressão existem oportunidades para pesqui Psicossomaticaindd 209 Psicossomaticaindd 209 05012010 121210 05012010 121210 210 Mello Filho Burd e cols sas que focam o manuseio dos sintomas depressivos usando novas terapias Provavelmente os próprios alvos são as citocinas incluindo o uso do anti IL1 o anticorpo desenvolvido contra o receptor solúvel do TNFα Etanercept ou anticorpos contra o TNFα Infliximab bem como a IL10 uma citocina anti inflamatória contra múltiplas moléculas inflamató rias A assinalar Etanercept Infliximab e Arakin ra são todos empregados atualmente no tratamento da AR Por outro lado o uso por 12 semanas do Eta nercept foi útil no tratamento da depressão severa em 618 pacientes com psoríase Tyring 2006 Outras indicações promissoras incluem o CRH o qual é induzido pelas citocinas proinflamatórias como alvo Tem sido observada a diminuição de mui tos dos sintomas do comportamento doentio quando antagonistas do CRH são administrados a animais de laboratório Muitas indústrias farmacêuticas estão comercializando antidepressivos tendo como alvo o CRH e novos de seus antagonistas Outros alvos in cluem mediadores inflamatórios como as prostaglan dinas e as monoaminas do SNC serotonina noradre nalina e dopamina Dada a capacidade das citocinas de influencia rem as mono aminas cerebrais terapias baseadas na estimulação destas podem ser muito úteis Na conclusão os autores Irwin 2007 afirmam que há uma forte evidência de que a depressão en volve alterações em múltiplos aspectos da imunidade e que podem não somente contribuir para o desen volvimento ou exacerbação de um sem número de condições médicas como também colaborar para a fisiopatologia das próprias doenças Portanto o ma nuseio agressivo das desordens depressivas em popu lações medicamente enfermas ou indivíduos em risco pode melhorar o seu prognóstico ou impedir o seu desenvolvimento REFERÊNCIAS Abramson HA et al Group psychoterapy of the parents of intrac table asthmatic children J Asthma Res 1961 177 Ader R et al Behaviourally conditioned immunosuppression 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GRUPOS BALINT Michael Balint médico psicanalista húngaro nascido em 1886 desde cedo interessase por com preender os pacientes além das queixas somáticas que levavam ao consultório Entendia que o indivíduo portador de uma doença apresentavase a si mesmo como alguém com uma história que lhe era própria e a qual deveria estar o médico atento para ouvir Michael Balint teve em sua formação a influên cia de Ferenczi discípulo de Freud que fundou na Hungria a Associação Psicanalítica de Budapeste Aí nessa Associação Balint e sua esposa Alice também psicanalista começam a apresentar suas primeiras publicações sobre temas psicanalíticos Por volta dos anos 20 os Balint assim como outros analistas por não conseguirem ficar na Hungria em função do regime próalemão e antissemita que se ampliava emigraram para a GrãBretanha Balint e Alice insta laramse em Manchester Balint nesta época foi para Berlim onde fez sua análise com Hanns Sachs Nesse mesmo período em contato com a Sociedade Psica nalítica de Berlim observou que esta buscava implan tar um programa para atendimentos psicanalíticos à população de uma maneira geral e que esses atendi mentos faziam parte do curriculum de formação da Sociedade o qual continha aspectos da teoria geral da Psicanálise e de sua técnica Consideramos importante apontar aqui que neste contato de Balint com Berlim são reforçadas suas intenções e convicções no que diz respeito aos cuidados de atendimento ao doente Pois era por Balint ainda muito bem lembrada a conferência de Freud em Budapeste no ano de 1918 Naquela oca sião Freud disse que chegaria ainda o dia em que a Psicanálise alcançaria todo indivíduo que necessitas se de cuidados pois seria direito dos homens o acesso a este tipo de tratamento nervoso assim como o de qualquer outra afecção e que os médicos deveriam estar preparados para isso Berlim por sua vez pare cia então querer cumprir com esta tarefa e atender a todo aquele que adoecia oferecendolhe tratamento Balint retomando à GrãBretanha encontrase em inúmeras dificuldades inclusive enconômicas O país encontravase em guerra e a seguir Balint perde sua esposa Alice Foram tempos cruéis para Michael Balint Por volta de 1945 com 60 anos aproximada mente Balint vai para Londres onde recomeça sua vida tornandose um respeitado psicanalista Começa a atender na Clínica Tavistock e aí co nhece Enid a quem desposa Esta desenvolve como psicanalista uma pesquisa com grupos de assistentes sociais que atendem famílias Balint juntamente com Enid inicia nesses grupos a supervisão e discussão do que chamavam caseworks Essa atividade acaba sendo ampliada com a participação de médicos clíni cos os quais começavam a buscar o entendimento e a superação de dificuldades que encontravam no seu trabalho clínico O fenômeno de procura de alguém para atender e supervisionar casos com a finalidade de complementar a compreensão da clínica se dava porque já naquela época era observada a falta nos currículos das escolas médicas de formação psicoló gica do médico necessária para a prática clínica Balint acreditava que a formação psicológica do médico oportunizaria o desenvolvimento de uma ati tude mais sensível às demandas inconscientes que os pacientes trazem às consultas e que as respostas do médico a esses pacientes desde que entendidas as demandas poderiam produzir um efeito terapêutico complementar ao tratamento médico tradicional Podese observar a atenção de Balint toda volta da à ação do médico sobre o paciente Fazemos notar 15 REFLEXÕES SOBRE MICHAEL BALINT COMUNICANDO UMA EXPERIÊNCIA DE GRUPOS Maria Aparecida de Luna Pedrosa Psicossomaticaindd 214 Psicossomaticaindd 214 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 215 que essa atenção mostra ter sido influenciada pela sua formação como psicanalista o que deixa trans parecer no trabalho que vai propor nos Grupos que caracterizaria as supervisoes Esta atenção está voltada à relação médico paciente e ao que se produz nessa relação ou seja o fenômeno transferencial A temática da relação trans ferencial é apresentada de formas diversas na litera tura psicanalítica sendo o elemento nodal na clínica nas relações interhumanas nos trabalhos de Balint Balint dá enorme valor à intervenção do mé dico insistindo sobre a natureza da aliança tera pêutica sobre a influência do terapeuta na relação médicopaciente para a manutenção de tal aliança pois entende que o conhecimento dos efeitos dessa aliança é que pode produzir respostas terapêuticas e mudanças no comportamento do paciente Mudanças essas que poderão ocorrer no curso de uma doença O paciente nessa concepção é que acaba sendo o gran de beneficiado Isso poderá ser melhor compreendido quando tratarmos do lugar que ocupa o médico para seu paciente na relação que se estabelece Podese perceber que a tarefa proposta por Ba lint de certa maneira reflete o desenvolvimento que a Psicanálise enfrentava na época e ideologia do cam po psicanalítico que se ocupava da utilização da téc nica psicanalítíca para produzir observações de com portamento Isso parecia necessário principalmente para a época em que era buscado no campo da aten ção ao doente o atendimento a um número cada vez maior de pacientes em especial aos que sobreviviam às tragédias experimentadas pela guerra e suas con sequências na reorganização da estrutura social Achamos que é oportuno insistir no que enten demos uma marca na teoria e prática balintiana para que seja possível compreender e avaliar sua utilização Em razão disso não é possível esquecer a figura do psicanalista Sándor Ferenczi já citado no início desta exposição Esse personagem teve presença marcante na Psicanálise mesmo junto a Freud que segundo al guns biógrafos e historiadores o teria adotado Tanto é verdade que Ferenczi é descrito por alguns como o filho rebelde visto que causou preocupações a Freud com o que produzia Com relação à Psicanálise Ferenczi produz mo dificações na técnica de intervenção e isso acaba por deixar uma nova definição sobre o lugar que o psicanalista ocuparia na relação com o paciente ou analisando A posição adotada por Ferenczi vai inovar e causar apreensões no círculo psicanalítico especialmente em Freud pois Ferenczi se desviava da regra de negar ao paciente qualquer atenção maior Assim se fundava com Ferenczi o que se vai conhecer por terapia ativa intervenção ativa Ferenczi en tendia que uma intervenção direta e dirigida era na maioria das vezes necessária nas análises pois dessa forma se precipitaria um aceleramento e o final dos tratamentos Essas ideias de Ferenczi trouxeram influên cias que podemos identificar em Balint Observase a importância da compreensão sobre o material do paciente o uso dessa compreensão para sustentar a interação com o paciente e para definir a direção do tratamento Podese compreender até aqui que Balint não se afasta da ideia sobre a intervenção que o médi co poderia desenvolver na sua tarefa clínica E com preender que ele acaba por dar de alguma forma cumprimento às ideias de Freud expressas naquela conferência em Budapeste no ano de 1918 O que não significava porém que o analista devesse dar cumprimento à realização de análise a todo paciente mesmo porque não é isso que Freud proclama na ci tada conferência Importa notar que a Psicanálise só é desenvolvi da em sua plenitude frente a uma demanda de aná lise que se delimita em torno de algum elemento quando se produzem questionamentos por parte do paciente Notamos que Balint mostra em seus trabalhos a preocupação de oferecer ao paciente que desenvolve um quadro orgânico um cuidado psicológico comple mentar que não seja necessariamente o tratamento psicanalífico Todos sabemos que a análise não é possível para todos Balint porém naquele período da Inglaterra sofrida e desolada contribuía com o nascimento pela necessidade e pela premência de uma sistematização sobre a intervenção psicoterapêutica Assim começa ram as primeiras empreitadas em direção ao que veio a se configurar como as Psicoterapias Dinâmicas e Psicoterapias Breves Ao passar os olhos pela história da clínica psica nalítica e psicológica podemos observar que a Psica nálise tem uma enorme contribuição tanto na teoria como na técnica das psicoterapias pois oferece uma estrutura que tornou possível a pesquisa no campo das psicoterapias É importante notar o lugar de terapeutas que as psicoterapias oferecem na relação médicopaciente terapeutapaciente pois o lugar é diferente daquele que ocupa o analista onde a escuta está presente mas a atenção tem outro princípio não sendo ativa Nas psicoterapias o lugar do psicoterapeuta é de suporte apoio e de alguma interpretação No entanto interpretação tem por pressuposto a busca do paciente de algo que além do que tradicional mente o médico tem para oferecer um diagnóstico O paciente busca na relação com o médico algo que na maioria das vezes não é possível ser nomeado de Psicossomaticaindd 215 Psicossomaticaindd 215 05012010 121210 05012010 121210 216 Mello Filho Burd e cols verá ser descoberto Balint entende que o que falta a alguém é o que se representa por uma necessidade e frente a uma necessidade algo precisa satisfazer O que pode satisfazer é o que se representa por sua vez como um objeto em um afeto sorriso ou ato Adentramos aqui um outro elemento teórico presente no trabalho e obra de Balint que nos leva a compreender os fundamentos teóricos de seu traba lho Recorremos aos primeiros trabalhos dos Balint Michael e Alice Tomamos brevemente os trabalhos sobre a relação de objetos tema aliás que permeava as produções psicanalíticas dos anos de 1920 e 1925 na Inglaterra A relação de objetos em Balint vai se traduzir por aquilo que conjuga uma necessidade com um objeto o qual por sua vez satisfaz essa ne cessidade Na concepção balintiana objeto é antes de tudo objeto de satisfação A relação de objeto satisfaz de fomia plena uma relação mesmo com palavras Mesmo com palavras é uma conclusão nossa pois entendemos que a palavra será sempre o represen tante que identificará o que pode satisfazer A cons trução de Balint se deduz e sustenta na observação das relações mãebebê a saber no resultado da rela ção no primary love Essas ideias apresentam sua fecundidade e mos tramse no contexto em que nas relações ocorre sem pre que satisfeitas a complementariedade A ideia é a de que onde falta um objeto outro é buscado para que nada falte para que se mantenha um estado de completude Por outro lado essas ideias também da rão consistência para o que se define na relação con tratransferencial pois vemos que assim como objeto que pode complementar ou completar o terapeuta ocupa um lugar que na maioria das vezes o paciente espera ou seja ocupa o lugar desse objeto que pode ouvir falar corresponder até Balint em seu trabalho O médico seu paciente e a doença diz que o médico deve fazer uso de uma compreensão de forma a que esta tenha efeito tera pêutico Desse modo Balint procura mostrar que o médico ocupa a si próprio como uma droga a mais frequentemente utilizada na clínica Balint aponta e pontua insistentemente a importância do médico em ocupar esse lugar mesmo como objeto Esse objeto deve assegurar um bom tratamento devese asse gurar que possa ser este bom objeto Ocupar um lugar de terapeuta implica buscar qualificação para tal e essa qualificação seria possível talvez através das discussões de estudos de casos e supervisões Nesse sentido o recurso oferecido através dos Grupos Balint pode servir como importante fer ramenta para a ação psicoterapêutica além da ferra menta medicamentosa ou farmacológica Nos Grupos Balint a discussão dos atendimentos é realizada bus cando o entendimento da forma oomo a intervenção se dá ou ocorreu Frente a isso a atitude do médico segundo Balint poderá sofrer uma modificação trans formação porque também a atitude é discutida Daí surgir a possibilidade para o médico de desenvolver uma compreensão de si mesmo como objeto de rela ção que pode suportar ou não as demandas do pacien te demandas que segundo a perspectiva balintiana se riam de completude Balint considera que o trabalho do médico sempre comporta uma psicoterapia em que os objetivos são naturalmente limitados Procuraremos na sequência apresentar ao lei tor uma breve descrição do que foi nossa experiên cia com Grupos Balint esperando possa ser tomada como uma modesta contribuição por aqueles que se ocupam com as mesmas questões com respeito ao en sino e que se encontram efetivamente comprometi dos também com a prevenção em relação aos futuros profissionais na área de saúde GRUPOS BALINT COM ESTUDANTES DE MEDICINA Este espaço foi reservado para que pudéssemos dividir com demais interessados os resultados e as re flexões advindos de alguns anos de trabalho docente e clínico Naturalmente aqueles que experimentam a atividade em especial a docente poderão compre ender como se encontram comprometidos nos dias de hoje os sistemas de ensino e avaliação das escolas e instituições de grau superior no que diz respeito à formação dos profissionais que se dirigem às áreas de Saúde Foram questionamentos acerca da formação que desenvolvem e recebem os profissionais e alunos da área de saúde bem como a experiência decorrente do fato de termos sido procurados há alguns anos por residentes médicos desejosos de serem auxiliados na tarefa médica com ensinamentos do campo psico lógico que nos levaram ao estudo dos trabalhos de Michael Balint acerca da educação e formação médi ca Dessa forma iniciamos uma primeira experiência de Grupos Balint nas dependências do Centro de Psi cologia Aplicada no Curso de Psicologia da Universi dade Federal do Paraná local próximo ao Hospital de Clínicas da mesma Universidade com médicos resi dentes na época 1982 A partir dessa primeira experiência e munidos das observações do funcionamento desse primeiro Grupo Balint propusemonos a realizar Grupos Ba lint com estudantes sextanistas e residentes do curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná no Departamento de Clínica Médica o qual mostrouse sensível ao trabalho que propúnhamos Desse nosso interesse resultou uma dissertação de mestrado e outra série de trabalhos Isso foi possí Psicossomaticaindd 216 Psicossomaticaindd 216 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 217 vel também em função do incentivo que recebíamos de figuras como Julio de Mello Filho Abram Ekster man Avelino e Davida Rodrigues e da amiga e colega de docência Jussara Miranda que na época já se ocu pava de uma disciplina de Anatomia na Universidade Federal do Paraná Entendemos que é nosso dever referir essas pes soas como tantas outras que labutam no sentido de buscar no campo da educação a formação médico psicológica e psicanalítica nas universidades rea lizando cursos de especialização em hospitais nos congressos e em entidades como a Associação Brasi leira de Medicina Psicossomática pois todos dão sua contribuição no sentido de aprimoramento do ensi no Desse investimento todos dependemos e muito mais as gerações futuras Procuraremos passar ao leitor partes do traba lho que desenvolvemos Lembramos que a literatura pesquisada nos convencia e motivava mais e mais pois mostrava o esforço que inúmeros pesquisadores e educadores realizavam no sentido de buscar uma maior qualificação para os estudantes da área de saú de e apontava a importância da recuperação da visão integral do paciente do homem inserido na comuni dade geopolítica da qual participa Iniciamos nosso trabalho de pesquisa propria mente dito refletindo em parte uma metodologia utilizada anteriormente por Lee Sheingold médico e professor na Universidade de Seattle Washing ton Nosso método comportou como no trabalho de Sheingold elementos de encorajamento do partici pante quanto à cooperação e oonfiança entre os par ticipantes de exame das relações interprofissionais multiprofissionais e institucionais assinalando valo res que pudessem interferir na atenção ao paciente Ainda buscamos verificar na comunidade de estu dantes e profissionais residentes o tipo de aborda gem ensinada para a ação terapêutica e identificar possíveis conflitos que impedissem o atendimento e entendimento médico Atendemos doutorandos alunos do sexto ano do curso médico em grupos distribuídos em um cronograma que ocupou o período de um ano Cada grupo destes se apresentava para a atividade experi mental de Grupo Balint a cada seis semanas Assim formouse o que denominamos os GBI 1 GBI 2 GBI 3 GBI 4 GBI 5 GBI 6 Tal distribuição obedecia a sequência de seis semanas para cada gru po Logo tivemos seis grupos com doutorandos ou sextanistas do curso médico Isso ainda se deu dessa forma obedecendo o percurso que faziam tais douto randos no Departamento de Clínica Médica no de correr do último ano acadêmico Com os residentes realizamos um grupo apenas devido ao número de indivíduos que se encontravam naquela fase de formação ou seja no segundo ano de residência Esse grupo foi denominado GB Il e a duração foi igualmente de seis semanas Tanto os grupos GBI como os GBII foram rea lizados quando os doutorandos e residentes encon travamse em atividades no Departamento de Clínica Médica porque esse departamento era o responsável na época pela corbertura dos atendimentos dos servi ços de Emergência Ambulatório ProntoAtendimen to e enfermarias com pacientes internados As reuniões realizadas com os Grupos Balint tive ram duração de aproximadamente duas horas semanais e o trabalho desenvolveuse com as seguintes fases Fase 1 Iniciando o trabalho fizeramse contatos com a preceptoria para acerto de horários e local de reuniões Fase 2 Início das reuniões Nestas se fixaram as observações e foram feitos seus registros Nessa fase deramse os passos seguintes 21 Apresentação do que se pretendia com a ex periência 22 Esclarecimentos gerais sobre Michael Balint e seus grupos 23 Discussões do grupo de suas práticas 24 Atendimento às discussões das tarefas que interessavam e ocupavam o grupo na sua prática médica e institucional e acerca de sua formação Fase 3 Utilizamos um questionário que conti nha dados acerca das observações realizadas nos grupos que diferentemente de Sheingold per mitiram uma aferição objetiva das observações e depoimentos obtidos nos grupos bem como a verificação da validade deste tipo de intervenção no trabalho de ensino e formação Os resultados que obtivemos nos mostraram ini cialmente médicos residentes e doutorandos aten tos receptivos e mesmo surpresos frente à disponibi lidade do Departamento de Clínica Médica da escola e também do hospital de oferecer e permitir tal expe riência Todos os participantes mostravam entender que pela primeira vez se estava oportunizando ao aluno e residente naquela escolahospital colocar as dificuldades e ansiedades que enfrentavam na prática que iniciavam No decorrer das reuniões alguns par ticipantes não compareciam mais e os colegas sem jeito procuravam justificar suas faltas Havia uma preocupação com a instituição for madora e de atendimento Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná pois acabavam sen do apontadas as dificuldades que diziam respeito a toda a fomiação que vinham recebendo muito embo Psicossomaticaindd 217 Psicossomaticaindd 217 05012010 121211 05012010 121211 218 Mello Filho Burd e cols ra fosse possível analisar também as particularidades de cada indivíduo que por sua vez se somavam às dificuldades institucionais Finalmente se revelaram as dificuldades que se estabeleciam nas relações pro fissionais com os pacientes e outros indivíduos cole gas amigos e professores Os participantes percebiam a continuidade e preservação de um modelo de atendimento em que prevalece o diagnóstico orgânico com base nos sinais e sintomas apenas de ordem somática e palpáveis con cretamente Apareciam preocupações com a falta de orientação e de informação às famílias que poderiam servir como o alívio e entendimento em relação ao familiar doente e à doença Percebiam o desestimulo no ensino e aprendizado frente a disciplinas como a Psicopatologia por exemplo e a Psicologia Médica estas disciplinas são uma brincadeira sic Os participantes ridicularizavam o ensino dessas disci plinas bem como o despreparo para os atendimentos de cuidados primários e secundários atendimento terciário é só o que se aprende e se faz sic Os participantes sentiamse como futuros pro fissionais despreparados sabiam de técnicas de inter venção mas faltavam as bases para o entendimento e atendimento àquela população maior de pacientes que chegam aos consultórios e que ficam sem um diag nóstico preciso porque o médico não sabe o que fazer quando não encontra nada concretamente orgânico na queixa do paciente E isso diziam os participan tes se dava por não compreenderem a ansiedade do paciente e à própria ansiedade despertada em si mes mos Assim acabavam por realizar encaminhamentos desnecessários exigindo a perambulação dos pacien tes por vários ambulatórios à procura de alguém que desse solução ao caso Os participantes acabaram por sugerir que tal experiência de grupo fosse desenvolvi da e oferecida aos seus professores pois concluíram que estes eram na verdade os primeiros responsáveis pela formação e com certeza desconheciam a clínica do entendimento de Balint sic Os temas relativos aos casos mais graves traziam enormes angústias que eram colocadas nos grupos Buscamos aqui trazer um exemplo de sessão realizada para ilustrar Um paciente comunica ao residente que morre ria até o final do dia e isso aconteceu O médico ficou ocupado em compreender o que se passara com o paciente e como ele poderia ter previsto sua morte O grupo ouvindo o colega bus cou refletir sobre o acontecido e o estado do colega Acabou por concluir que ficar intrigado decorria da preocupação natural que todos tinham em acertar dosar e calcular efeitos mas que frente à morte o saber técnico e acadêmico é insuficiente A seguir o médico que trouxera o caso fala da sua preocupação como clínico geral e como especialista pois não con seguia nessa circunstância se definir embora per cebesse uma inclinação pela clínica geral Frente a tal exposição na sequência dos comentários sobre a morte do paciente um dos colegas aponta que a preocupação que ocorria naquele momento parecia motivada pela ocorrência da morte de um paciente Daí surgiu a questão sobre as fantasias que poderia provocar a ideia de que o paciente talvez tivesse sido salvo se o médico fosse especialista Houve concor dância quanto à interpretação das associações signi ficando que tudo que fora pensado e discutido tinha fundamento Essa sessão continua muito viva até hoje em nós Mostra quão importante pode ser o Grupo Ba lint propiciando a análise e reflexão que podem au xiliar na avaliação crítica da tarefa médica Com relação aos questionários realizados po demos apresentar aqui algumas das respostas que exemplificam de forma significativa o pensamento dos sujeitos acerca da formação e sobre os grupos Sobre a formação obtivemos respostas como A instituição médica é vista como uma estrutura políti ca burocrática que aparece oprimindo restringindo e dificultando o trabalho do médico O médico é sentido e concebido como um sujeito que incorporou os desvios que a instituição apresenta Tivemos respostas que nos surpreenderam mas que de qualquer forma mostraram o perfil de alguns profis sionais Isso nos serve de exemplo pois podemos nos servir dessas respostas para repensar também critérios de avaliação em nossas escolas A resposta O médico é o indivíduo formado para curar e de potencial valor para a evolução científica Outras respostas nos mostram a intenção de mudanças O médico deve sofrer uma formação que o habilite ser também um agente de mudanças Sobre a experiência com os grupos obtivemos respostas como Somos técnicos não sabemos lidar com o paciente como pessoa Ao receitar diazepam resolvemos o nos so caso e não o do paciente É possível estabelecer relação de confiança relação interpessoal isso existe Grupo lugar para a troca de ideias aflições difi culdades imprescindível na formação médica importante pelo aprimoramento que oferece O que leva a procurar um grupo é a relação con flituosa a ansiedade e a certeza de não sentirse só e despreparado Procurase um grupo para não se aceitar simples mente a onipotência como alguns O que pode impedir a participação e a reflexão é a imaturidade o medo da crítica a crença na onipotên cia como acontece com alguns O grupo mostra uma abordagem biopsicossocial parece uma ilusão todo ensino deve ser reavalia Psicossomaticaindd 218 Psicossomaticaindd 218 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 219 do ter professores com disposição para ensinar e aprender Até aqui o leitor pode ter uma ideia do quão sério e o tema da educação e quão comprometidos encontramse nossos futuros profissionais na área de saúde principalmente do ponto de vista da falta de incentivos à ampliação de conhecimentos humanís ticos pois compreendemos a necessidade de promo ver a transmissão do conhecimento em um sentido mais universalizado Esse seria o papel natural de nossas universidades que estariam retomando o seu compromisso histórico Aproveitamos para lembrar o pronunciamento nesse sentido da professora Jussa ra Miranda hoje não mais lecionando na Universida de Federal do Paraná mas na Universidade Federal do Estado de Goiás A escola deve exercer um papel catalizador capaz de preparar o futuro profissional para a atuação direta no combate aos problemas de saúde do Homem porém deve sobretudo capacitálo para a prevenção desses problemas indicandolhe os caminhos para o aprimoramento dos programas de planejamento em saúde e sobretudo capacitálo para a pesquisa que é o primeiro móvel da ciência Estes três aspectos a atuação a prevenção e a pesquisa necessitam para o seu pleno desempenho ser implementados com aspectos sociológicos e an tropológicos e complementados com os conhecimen tos sobre a psique do Homem pois as ciências na área de saúde implicam uma relação humana que se esta belece sempre entre os dois indivíduos O profissional que cura previne e planeja está relacionado com o cidadão que se encontra inserido em sua comunida de geopolítica Ao refletir sobre estas questões todas vemos sem qualquer dúvida que um dos possíveis instrumentos para a abordagem desses elementos capaz de injetar ânimo nessa mudança foi a experi ência com Grupos Balint Todos os argumentos e observações que foram levantados mostram incontestavelmente o valor e a dimensão que podem assumir os Grupos Balint No entanto para que deles se obtenham resultados satis fatórios bem como o seu desenvolvimento é neces sário sério investimento teórico e prático Voltando ainda à experiência com os doutoran dos e residentes pareceunos importante avaliar as atividades do ponto de vista da frequência dos par ticipantes nos grupos Para isso realizamos um bre ve estudo e notamos que nos GBII a permanência foi maior Achamos inicialmente que isso se devia ao grau de exigências e amadurecimento maior entre os residentes mesmo porque socialmente tinham sta tus de médicos No entanto realizandose a análise de significãncia verificamos que os grupos não se distinguiam quanto à frequência donde concluímos que o fato de serem os participantes doutorandos ou residentes não exerceu qualquer influência sobre a frequência Achamos que esse tipo de informação teria al gum valor porque temse a impressão muitas vezes que o fato de uma pessoa encontrarse em um estágio mais adiantado de formação a faz mais comprome tida Tivemos a demonstração neste estudo que tal impressão não é sempre verdadeira Discutindo a experiência bem como refletindo sobre ela notamos que há muitos anos cientistas têm procurado se ocupar com o fato de alertar e demons trar que o conhecimento das ciências em geral têm muito a oferecer orientando a tarefa dos profissio nais do médico O exame do campo de interação médicopacien te tema dos trabalhos de Michael Balint teve grande influência sobre as pesquisas principalmente da Psi cossomática nos anos 1950 na Europa Hoje vêse difundido nos grandes centros médicos do mundo em razão do processo de retorno ao projeto humano que na ciência médica acabou por se perder Por ter se preocupado demasiadamente como cita Gilberto Freyre com o especialismo e diminuído seu com preensivismo Gorling afirma ser irônico nestes tempos domi nados pelos rápidos avanços técnicos que médicos e doentes sintam crescentemente uma rejeição um pelo outro Jean Clavreul médico e estudioso da Psicanáli se nos diz em seu livro A Ordem Médica Poder e Im potência do Discurso Médico que a Ordem Médica é um problema em si Que a eficácia da Medicina é sua cientificidade que constitui lei Ninguém ousa con testar o saber médico A crença na Medicina ultrapas sa de longe a crença em qualquer religião A bibliote ca do médico não precisa ser abundante pois a bíblia é suficiente Nada convence mais que o enunciado preciso sobre uma doença uma indicação terapêuti ca um novo remédio Não há tempo a perder e o mé dico sempre sofre por lhe faltar um saber utilizável O resto é filosofia e literatura O corpo médico não tem interesse em ser dividido por considerações vãs e o médico não pode suportar ser subjetivamente di vidido na realização de sua tarefa A Medicina acaba por levar o médico a calar seus sentimentos porque o discurso médico assim exige Consequentemente a relação médicopaciente é substituída pela relação instituiçãomédicodoença Clavreul lembra Claude Bernard retoma Bacon nunca ter o olhar umedeci do pelas paixões humanas A análise que faz Clavreul reflete o pensamento médico criticado na literatura Traz a Clínica mos trando que esta se inicia na função da transferência e contratransferência Podemos compreender isso pois Psicossomaticaindd 219 Psicossomaticaindd 219 05012010 121211 05012010 121211 220 Mello Filho Burd e cols estamos no centro de todas as relações tendo que re solver o que é o outro para nós o tempo todo qual seu significado seu valor para nós Estamos de qual quer forma tratando da transferência e respondendo dela e em relação a ela O médico não está isento em sua relação com seu paciente ele traz em si uma história que é anterior aos conhecimentos médicos que detém E é essa história e seus efeitos que estão o tempo todo a passar uma rasteira digamos assim sob seus atos e atitudes o que o faz desentenderse muitas vezes a ter dúvidas muitas vezes e se isso não ocorre seria interessante pensar em outros afazeres A investigação que realizamos nos mostrou que os futuros médicos aqueles que estavam concluindo o curso médico apresentavam em suas verbalizações uma preocupação sobre a maneira como praticavam a Medicina Posicionavamse em um sentido de ata que à instituição aquela responsável pela chamada ordem de Clavreul Os médicos consideraram que esta ordem é responsável pela forma como os aten dimentos ocorriam pois interessava segundo os sujeitos muito mais à causa da instituição que à do doente Podese observar que existia sempre uma an siedade intensa nos participantes que aparecia nas reuniões de forma catártica Isso mostrava a existên cia de um conflito estabelecido que se acercava do médico As reuniões permitiam o aparecimento desse conflito de forma abrupta na fala dos participantes Esses mostravam preocupação com a morte o que pode ser trazido com o exemplo de sessão realiza da em que um residente chegava a se perguntar se a clínica geral seria mesmo uma boa escolha pois ser especialista poderia ser alguma garantia para fazer frente à morte Isso é trágico não para esse residente mas para a Medicina pois é a Clínica Geral que deve se desenvolver A Medicina para os sujeitos observados é um elemento com características poderosas assim é a ordem E assim sendo um novo elemento os Gru pos que os levava a uma crítica sobre seu lugar e sua função na relação médicopaciente era recebido com sofrimento Entendeuse que esse sofrimento transparecia expressado assim como sintoma A instituição ao ser refletida era sentida como má retaliadora e persecu tória Os que não conseguiram frequentar as reuniões poderiam estar se defendendo defendendo seu papel e a si mesmos seu equilíbrio Frequentar um grupo da natureza do Grupo Ba lint colocava os sujeitos sob uma ameaça ou seja ter que definir sua real função e como deveriam executá la A defesa com recusa aparece analisada por Freud em 1938 no trabalho Resumo da Psicanálise Antes aparece nos estudos sobre a histeria a recusa do indi víduo em reconhecer a realidade de uma percepção que pode ter um caráter traumatizante Frente à per cepção da ausência de elementos que propiciariam um maior entendimento de sua clínica entendase como ação médica recusamse ou negam a falta que existe Aparece então a crença talvez onipotente de que são suficientes Tal análise inferiuse a partir da observação da ausência de doutorandos ou residen tes em algumas sessões e de verbalizações A questão acerca da identidade do médico pare ceunos dado relevante na experiência E em relação a isso lembramos Julio de Mello Filho ao comentar que o médico passa no momento presente por duas crises que se entrelaçam uma de identidade e outra de ideologia Entendendo que o progresso industrial e tecnológico trouxe a fragmentação da atividade mé dica e a criação de superespecialidades estas cada vez mais setorializadas em relação ao paciente perdendo o médico com isso o impacto como pessoa sobre o mesmo A necessidade da socialização tomou o mé dico empregado e assim afastouo da antiga situação profissional com toda aura de poder e importância A isso juntouse uma crise de ideologia visto que a formação empírica não proporciona o necessário em basamento ideológico ao profissional Como resulta do cada médico tem até certo ponto uma ideologia particular sobre a sua profissão seus ideais seu pa ciente Já é insuficiente a solidez ideológica e prática do médico de antigamente de amar seu paciente Hoje segundo Julio de Mello Filho juntamse outros aspectos sociocomunitários preventivos e progressos terapêuticos desconhecidos pelos médicos de antiga mente Enquanto uns defendem uma postura prag mática outros advogam informação mais abrangen te As ideologias médicas tradicionais chocamse com concepções inovadoras Frente a isso entendeuse que não poderia ser suportável admitir qualquer empreendimento novo porque conflitos se estabeleciam Idealizar a Medici na era sempre uma forma de manter intacto o nar cisismo que se acercava do médico e que é mantido pelo superego ordem Médica A identificação com o modelo médico tradicio nal empírico é intensa e por outro lado garante um equilíbrio ao profissional Clavreul ao pensar na identificação do médico comenta que tudo que não é identificação aos mais altos valores na ordem médica é percebido como fracasso e que não há como justificar a posição do clínico através de uma pretensa competência nas re lações humanas porque definitivamente e o grande médico o titular que encarna o personagem ideal do médico Ele é o mestre que deve fazer pesquisa constituir novos significantes através dos quais asse gura o domínio sobre o real Psicossomaticaindd 220 Psicossomaticaindd 220 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 221 Lembramos Marcelo Blaya que ao interpretar o médico diz que ser médico sempre foi e continuará sendo uma escolha profissional estranha pois o sofri mento e a morte estarão sempre perto Que o motivo da escolha talvez estivesse no desejo do médico de tratar de si ao tratar do paciente Verificando os casos trazidos aos grupos pode se de fato constatar que o que importava era sempre muito mais entender a dificuldade do médico ele precisava ser ouvido compreendido e esperava por sua vez compreenderse A vontade de lutar contra a morte e o sofrimen to estava sempre presente e a necessidade de superá los era imensa Ryad Simon analisa e discorre sobre o que cha ma o complexo tanatolítico que seria formado por fantasias acerca do triunfo sobre a morte e pelos quais o sujeito idealiza um ser onipotente capaz de retardar impedir e até mesmo anular a ameaça de morte É o desejo de imortalidade O médico nessa visão assume funções tanatolíticas para impedir a morte O perigo a que se expõe o indivíduo na profis são é o de fazer uma identificação total entre seu eu e o ser tanatolítico assumindo compromissos onipo tentes A não consecução de tais compromissos leva o indivíduo a voltarse contra si mesmo como punição por culpa persecutória Tal culpa se deve pelo envol vimento da pessoa do médico por apelos narcisica mente sedutores de seu complexo tanatolítico Ryad Simon considera importante neste trabalho que para se opor ou atenuar o risco de sujeição às armadilhas do inconsciente seria desejável que os profissionais de saúde se submetessem a um processo de esclareci mento quanto à aquisição de conhecimentos sobre as vicissitudes de seu complexo tanatolítico Os pontos de vista apresentados pareceram im portantes para compreender os sentimentos trazidos pelos membros dos grupos e a necessidade de com preender os casos mais graves e terminais como o caso exemplificado em que o médico não podia en tender como o paciente poderia falar de sua morte Entendeuse que o ser tanatolítico se apresentava pois a culpa transparecia nas verbalizações dos mem bros do grupo uma vez que não podiam atuar so mente com sua pessoa Foi possível evidenciar o despreparo para a rela ção médicopaciente Prepararse implica uma apren dizagem do entender o paciente e as fantasias subja centes do médico Médicos chegaram a dizer que suas dificuldades ficavam mesmo era num bom papo com cerveja Mas não conseguiam compreender que no barzinho com amigos os problemas discutidos acabavam ape nas num desabafo Na realidade tratar dessas ques tões mais intimamente era mais sério Finalmente podese verificar que os médicos ao refletir sobre a sua prática sentiamse frágeis e a an siedade suscitava o desejo de recuperação da prática medica baseada no entendimento da pessoa Aqueles que se autorizaram uma autocrítica passaram por um momento de depressão com sentimentos de perda Mas sentiramse impelidos a desejar projetos acerca de seu trabalho que consideravam possível ser recu perado Entenderam a importância de uma formação que os capacitasse para os atendimentos preventivos e primários Tal entendimento por sua vez contri buiu para uma reparação das deformações às quais se sentiam presos Tivemos respostas que comprovaram o estado de crise em que se encontram os médicos face às con dições de trabalho e de aprendizagem e que existe a percepção por parte deles de se sentirem comprome tidos com essas condições as grandes responsáveis pelas práticas existentes e que estão a impedir o esta belecimento da clínica do entendimento Podese por outro lado deduzir dada a seve ridade das críticas e de seu irrealismo que grande parte desses ataques a formação e às instituições é resultado de elas terem se tornado continentes de projeções do médico quando não eram suportadas a frustração e angústia relacionadas à sua tarefa Dessa forma podemos considerar que é mais fá cil criticar as instituições formadoras tomandoas res ponsáveis pela deformação profissional do que partir para uma análise e autocrítica do ser humano que a partir deste século em face dos grandes avanços tec nológicos afastouse de valores simples como o amor ao próximo Isso porque a tecnologia os aparelhos de raio X os diagnósticos computadorizados tornaram o ensino tão onipotente que o aluno o estudante univer sitário acabou por ficar distante de qualquer possibili dade de avaliação de aspectos psicológicos sociológi cos ou humanísticos Essa situação sem dúvida afasta o terapeuta de seu paciente de seu doente O contexto da ciência nos dias de hoje é muito complexo Não se podem ignorar as máquinas e computadores a robó tica Tudo está também a serviço do homem porém não podemos esquecer que o ser humano continua precisando de cuidados mais simples oomparados à robótica por exemplo E tais cuidados muitas vezes não precisam de um botão ou de um sinal técnico precisam de um sinal mais primitivo de um sinal no olhar um claro sorriso um aperto de mão Isso tão simples poderia depois receber o computador Tão simples mas entender a subjetividade pas sou a tomar ares de tamanha complexidade que pas sou a constituirse em uma ilusão utopia idealismo Contar aqui neste espaço a nossa experiência foi em parte difícil pois precisávamos deixar de lado o tom acadêmico que adquirimos em nossa tarefa de Psicossomaticaindd 221 Psicossomaticaindd 221 05012010 121211 05012010 121211 222 Mello Filho Burd e cols pesquisadores Por outro lado foi imensamente in teressante pois nos colocou novamente em contato próximo com todas as questões que nos afligiram e que na verdade não nos abandonaram Gostaríamos que experiências como estas se re produzissem oportunizando como Luchina defende em seu trabalho com Grupos Balint a introdução e a aprendizagem dos aspectos contratransferenciais como elementos importantes em cada caso a busca e o enriquecimento da práxis médica ampliando a capa cidade de diagnosticar e a ação terapêutica bem como a ampliação do campo dinâmico da relação médicopa ciente semelhante ao campo do analistaanalisando É pois esta ampliação do entendimento na clí nica o que entendemos que levaria os profissionais a reaver e compreender a complexa interação do tera peuta com a instituição a família e o paciente Não se deseja que o médico tenha que aprender psicoterapia ou fazer psicanálise mas se deseja que ele se transforme em um observador qualificado que possa administrar sua pessoa Cremos ser este um dos caminhos para alguma contribuição na clínica inse rindose a prevenção bem como a Psicossomática às ciências psicossociais e antropológicas oferecendo seu campo teórico e prático para a compreensão do doente do Homem Psicossomaticaindd 222 Psicossomaticaindd 222 05012010 121211 05012010 121211 ASPECTOS HISTÓRICOS O desenvolvimento da prática psiquiátrica em hospitais gerais foi fruto de um amplo movimento históricoinstitucional que se consolidou no início do século XX Ferrari et al 1971 NogueiraMartins e Frenk 1980 Shavitt et al 1989 Mello Filho 1978 1992 2006 NogueiraMartins 1992 NogueiraMar tins e Botega1998 De Marco 2003 Botega 2006 Esse movimento teve como base de sustenta ção as concepções psicossomáticas em Medicina Sua institucionalização se deu por meio da criação das primeiras unidades psiquiátricas nos hospitais gerais UPHG Embora a primeira UPHG tenha sido criada em 1728 no Hospital St Thomas em Londres tanto essa como outras unidades semelhantes implantadas em diversos hospitais ingleses tiveram vida curta não ultrapassando a metade do século XIX A implantação das UPHG em seu sentido mo derno com planejamento terapêutico integração à medicina geral internações breves com rápido retor no à comunidade de origem ocorreu em 1902 com a inauguração da UPHG do Albany Medical Center em Nova Iorque Botega e Dalgalarrondo 1993 Nas duas décadas subsequentes a importância de se considerar o homem como uma unidade biopsi cossocial ganhou força Apoiados principalmente no corpo doutrinário da nascente Psicanálise foram pu blicados os primeiros trabalhos sobre Medicina Psi cossomática e Psiquiatria de Consultoria e Ligação Lipowski 1996 Em 1929 George Henry publicou o primeiro ar tigo sobre as diretrizes gerais que deveriam nortear o trabalho de consultoria psiquiátrica no hospital geral ConsultationLiaison Psychiatry Em 1934 Helen Dunbar uma das pioneiras do movimento psicosso mático e criadora da teoria dos perfis psicossomáti cos previa que num futuro próximo psiquiatras se riam requisitados para todas as enfermarias clínicas e cirúrgicas nos hospitais gerais Lipowski 1986 Após a II Guerra Mundial observouse um im portante crescimento das UPHG em especial nos Estados Unidos De 1952 a 1976 o número de lei tos em UPHG nos Estados Unidos cresceu de 7000 para 29000 O número de unidades cresceu de 40 em 1940 para 1358 em 1984 Esse crescimento das UPHG foi acompanhado por um decréscimo de leitos e internações nos hospitais psiquiátricos tradicionais Em 1980 nos Estados Unidos 20 das internações foram em hospitais psiquiátricos públicos 21 em hospitais psiquiátricos privados e 59 em serviços psiquiátricos em hospitais gerais Botega e Dalgalar rondo 1993 As principais vantagens das UPHG têm sido facilidade de acesso à população mais recursos diagnósticos maior transparência da prática psiqui átrica melhor atenção à saúde física diminuição do estigma da doença mental e ampliação da assistência ensino e pesquisa Botega 2006 No Brasil as primeiras enfermarias de psiquia tria em hospital geral surgiram na década de 1950 sendo nesse período publicado o primeiro trabalho sobre um serviço de psiquiatria em hospital geral de ensino Sampaio 1956 Somente na década de 1970 é que foram criadas as primeiras UPHG em sua con cepção mais abrangente para as quais postulamos a denominação de Unidade de Saúde Mental em Hospi tal Geral USMHG constituídas por enfermaria de psiquiatria em hospital geral hospitaldia ou Centro de Atenção Psicossocial CAPS ambulatório de psi quiatria em ambulatório geral serviço de emergência em pronto socorro geral e serviço de Interconsulta Em 1977 no Departamento de Psiquiatria e Psi cologia Médica da Escola Paulista de Medicina teve início o primeiro Serviço de Interconsulta IC estru turado e organizado sob a forma de um estágio de treinamento em um programa de Residência Médica em Psiquiatria constituindose em um dos serviços de uma Unidade de Saúde Mental em Hospital Geral USMHG Em 1980 NogueiraMartins e Frenk pu blicaram o primeiro artigo relatando a experiência de um Serviço de Interconsulta pertencente a uma USMHG no Brasil Os primeiros serviços de IC no Brasil se cons tituíram sob a influência do trabalho pioneiro dos psicanalistas argentinos Héctor Ferrari Isaac L Lu china e Noemí Luchina Em suas obras Interconsulta 16 INTERCONSULTA HOJE Luiz Antonio Nogueira Martins Psicossomaticaindd 223 Psicossomaticaindd 223 05012010 121211 05012010 121211 224 Mello Filho Burd e cols médicopsicológica en el marco hospitalario Ferrari et al 1971 e Asistencia Institucionalnuevos desarrollos de la interconsulta médicopsicológica Ferrari et al 1979 esses autores apresentaram as bases do desen volvimento de um instrumento metodológico aplicá vel ao trabalho de profissionais de saúde mental em hospitais gerais a interconsulta médicopsicológica Mello Filho 2003 em seu trabalho intitulado Isaac Luchina e a interconsulta médicopsicológica elaborou reflexões aprofundadas sobre as bases con ceituais deste instrumento de trabalho e de análise institucional salientando a importância desse méto do na valorização das vivências do paciente o adoe cer e dos profissionais o cuidar e das interações que se desenvolvem entre os usuários das instituições hospitalares e os provedores de cuidados em saúde Refletindo sobre algumas das bases conceituais da Interconsulta MédicoPsicológica pontua Para esse autor Luchina a medicina clássica promove sempre uma dissociação do fenômeno doente x doença desenvolvendo cientificamente o conhecimento da últi ma enquanto o conhecimento do doente não é objeto de um estudo dessa índole isto é seu conhecimento é esquecido e sempre postergado Paralelamente fun ciona outra dissociação mais geral mente x corpo através da qual os fenômenos do corpo recebem toda a abordagem científica com um aval históricogenético das descobertas médicas com técnicas de observação próximas das ciências naturais e em troca os fenôme nos mentais são submetidos a enfoques apenas pessoais ou empíricos p 41 Mello Filho 2003 destaca também a impor tância que Luchina e seus colegas deram à valoriza ção do campo dinâmico da relação médicopaciente como o palco principal onde se desenrolam os dra mas vividos por pacientes familiares e profissionais cada um com suas características idiossincráticas e suas peculiares circunstâncias de vida Ferrari Luchi na e Luchina no texto clássico de 1971 chamam a atenção para o fato de que o campo dinâmico é em realidade triádico pois além da díade médicopa ciente envolve também a instituição que os alberga A questão referente às crises e mazelas do sistema de saúde e suas repercussões na prática assistencial hos pitalar tema abordado de forma detalhada no capí tulo Interconsulta hoje publicado na primeira edição deste livro em 1992 é especificamente salientado por Ferrari Luchina e Luchina nas instituições hospitalares o contexto interna ção é a estrutura básica na qual todos os fatores que a integram médicospacientesenfermeirosfamílias etc se expressam por meio de qualquer um deles se pode transmitir e evidenciar as doenças ou patologias institucionais É comum que o paciente mais do que qualquer outro dos fatores interatuantes devido à es pecifica situação psicológica da internação dependên cia e ansiedade acompanhados de recursos defensivos que dependerão da personalidade prémórbida seja o emergente patológico mais frequente Através dele e de sua crise muitas vezes se evidenciam verdadeiras fra turas institucionais p 161 NogueiraMartins 2004 em seu livro Huma nização das relações assistenciais a formação do profissional de saúde ao discorrer sobre o caráter multifatorial da atividade assistencial salienta em basada nas concepções formuladas por Ferrari Lu china e Luchina 1979 que para uma avaliação da complexidade da tarefa assistencial em especial a as sistência realizada em instituições devese levar em conta que o paciente está inserido em um contexto pessoal familiar e social complexo que deve ser conside rado a assistência deve efetuar uma leitura das neces sidades pessoais e sociais do cliente na instituição interatuam as necessidades de quem assiste e de quem é assistido que devem ser consideradas O DESENVOLVIMENTO DA INTERCONSULTA NO BRASIL A partir da década de 1980 houve um cresci mento significativo no campo da Interconsulta no Brasil Alguns marcos desse período merecem desta que XIV Simpósio de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina realizado em maio de 1984 sobre o tema Tarefa médica o resgate através da Psico logia Este simpósio contou com a participação de eminentes pesquisadores e autores de obras clássicas no campo da Psicanálise Medicina Psi cossomática Interconsulta e Psicologia Médica tais como Isaac L Luchina Julio de Mello Filho e Roosevelt Cassorla I Congresso Brasileiro de Psiquiatria e Medicina Interna realizado em 1987 organizado pelo De partamento de Psiquiatria da Faculdade de Me dicina da Universidade de São Paulo cujos anais foram publicados em um livro intitulado Psiquia tria e Medicina Interna Fortes et al 1988 I Encontro Brasileiro de Interconsulta Psiquiátri ca realizado em 1989 organizado pelo Departa mento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo do qual resultou Psicossomaticaindd 224 Psicossomaticaindd 224 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 225 um livro intitulado Interconsulta Psiquiátrica no Brasil editado por Miguel Filho e colaboradores 1990 onde foram publicadas as experiências de vários Serviços de Interconsulta no Brasil II Encontro Brasileiro de Interconsulta Psiquiátri ca realizado em 1991 em Porto Alegre no qual foi criado o Departamento de Interconsulta e Psi quiatria de Hospital Geral da Associação Brasilei ra de Psiquiatria VII Encontro Brasileiro e I Encontro Lusobrasi leiro de Interconsulta e Psiquiatria de Hospital Geral realizados em 2002 em Florianópolis II Encontro Lusobrasileiro de Interconsulta e Psi quiatria de Hospital Geral realizado em 2005 em Coimbra Esses eventos expressam a vitalidade da Inter consulta no Brasil Um censo nacional realizado em 1997 revelou que serviços de Interconsulta encon travamse disponíveis em 86 de 63 hospitais gerais que contavam com uma enfermaria de psiquiatria Botega e Schechtman 1997 A publicação de trabalhos nacionais tem se multiplicado dentre as várias e importantes obras da produção científica brasileira no campo da Inter consulta merecem destaque as teses de mestrado de Letícia Maria Furlanetto 1995 Paola Bruno Araú jo Andreoli 1998 e Vanessa de Albuquerque Cíte ro 1999 dentre as teses de doutorado devem ser ressaltadas as de Neury José Botega 1989 Renério Fraguas Jr 1995 e Vanessa de Albuquerque Cítero 2005 Alguns trabalhos de pesquisadores brasileiros da área de Interconsulta foram publicados nos últi mos anos em revistas especializadas de alto impac to como Psychosomatics e General Hospital Psychiatry Furlanetto et al 2000 e 2003 Andreoli et al 2003 Fraguas Jr et al 2007 Cítero et al 2008 Diversos livros que tratam da atividade profis sional em Interconsulta contribuíram para enriquecer o nosso acervo de trabalhos na área Psicossomática Hoje Mello Filho 1992 Saúde Mental no Hospital Geral Botega e Dalgalarrondo 1993 e Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral Botega 1995 A Face Humana da Medicina De Marco 2003 e em especial o livroreferência na área intitulado Prática Psiquiátrica no Hospital Geral Interconsulta e Emer gência Botega 2002 e 2006 ASPECTOS CONCEITUAIS A Interconsulta é em essência uma atividade interprofissional e interdisciplinar NogueiraMar tins 1993 O termo interconsulta é utilizado em nosso meio em um sentido amplo envolvendo tan to o trabalho de consultoria como o de ligação A consultoria se refere à atividade do profissional de saúde mental que é chamado para atender pacientes que estão internados sob os cuidados de equipes de saúde de unidades ou serviços hospitalares Assim a presença do interconsultor é episódica e responde a uma solicitação específica feita por algum membro da equipe de saúde Ligação se refere a um trabalho constante que é desenvolvido por profissionais de saúde mental em conjunto com outros profissionais que compõem as equipes de saúde ou seja o pro fissional de ligação é membro efetivo da equipe de saúde NogueiraMartins 1989 De Marco 2003 Botega 2007 Além de ser considerada uma subespecialidade que se ocupa da assistência do ensino e da pesquisa na interface entre a psiquiatria e a medicina a inter consulta é também um recurso utilizado por profis sionais de saúde mental no trabalho em instituições de saúde visando compreender e aprimorar a tarefa assistencial por meio de auxílio especializado no diagnóstico e no trata mento de pacientes com problemas psicológicos psiquiátricos e psicossociais auxílio especializado no diagnóstico e tratamento de disfunções e distúrbios interpessoais e institu cionais envolvendo o paciente a família e a equi pe de saúde NogueiraMartins Botega 1998 O objetivo último do trabalho em Interconsul ta é melhorar a qualidade da atenção ao pacien te auxiliando na provisão de cuidados a todos os aspectos envolvidos na situação de estar doente e hospitalizado Outros objetivos podem ser desta cados tais como modificar a estrutura assistencial centrada na doença para uma forma de trabalho centrada no paciente valorizar o papel da relação médicopaciente aprofundar o estudo da situação do doente e dos profissionais nas instituições as sistenciais bem como aproximar a psiquiatria e a saúde mental das outras especialidades médicas NogueiraMartins 1992 No que se refere à formação de recursos huma nos para a área de saúde a Interconsulta é uma im portante estratégia pedagógica destinada a melhorar a qualificação profissional das equipes de saúde au mentando sua capacidade para identificar e resolver problemas de natureza psicológica psiquiátrica e psi cossocial em uma população onde a prevalência de tais problemas é alta Um outro objetivo é o de aprimorar a qualifica ção do profissional de saúde mental mediante sua participação em unidades ou enfermarias clínicoci rúrgicas nas quais o interconsultor pode ter contato Psicossomaticaindd 225 Psicossomaticaindd 225 05012010 121211 05012010 121211 226 Mello Filho Burd e cols com situações que habitualmente não ocorrem em serviços especializados de Psiquiatria e Psicologia A experiência com a prática de Interconsulta tem suscitado o debate sobre alguns temas relevan tes dentre os quais se destacam os seguintes No gueiraMartins 1989 1993 1995a Botega 1991 1992 1995 2006 2007 Cítero et al 2002 2008 De Marco et al 2003 2007 natureza dos pedidos de Interconsulta prevalência de distúrbios psiquiátricos em pacien tes internados em hospitais gerais benefícios e vantagens que o atendimento em in terconsulta proporciona aos pacientes familiares profissionais da equipe de saúde hospitais e à so ciedade estruturação e organização de serviços de Inter consulta A NATUREZA DOS PEDIDOS DE INTERCONSULTA Os pedidos de Interconsulta abrangem uma ex tensa gama de situações hospitalares Os casos rela tados a seguir ilustram os tipos de pedidos mais fre quentes a O interconsultor é chamado para atender o caso de um paciente de 70 anos hipertenso e diabéti co que foi encontrado no corredor da enfermaria desorientado e falando coisas sem sentido Este é um exemplo típico de pedido de Interconsulta que ocorre em diversas enfermarias com pacien tes de ambos os sexos de várias faixas etárias e que estão internados em um hospital geral pelos mais diferentes tipos de doenças São os estados confusionais agudos b A Interconsulta é solicitada para atender uma jo vem de 22 anos que está internada devido a sin tomas de fraqueza e de dor no braço direito As investigações excluíram qualquer doença neuro vascular e o médico neurologista pede uma avalia ção quanto a possibilidade de ser um quadro con versivo Este é um outro padrão de Interconsulta onde o interconsultor é chamado para fazer um diagnóstico diferencial entre quadro de etiologia predominantemente orgânica ou psicológica c O interconsultor é solicitado para avaliar o caso de um paciente internado devido a uma fratura na perna com osteomielite e que tem apresenta do diversas alterações de conduta na enfermaria como por exemplo uma ameaça de se jogar pela janela caso não fosse atendido em uma série de rei vindicações Este tipo de Interconsulta com graus variáveis de comprometimento na relação equipe paciente ocorre em diversas unidades médicas estando habitualmente associado ao atendimento de pacientes com transtornos de personalidade borderline e abuso de substâncias psicoativas d O interconsultor é chamado para atender um caso de uma paciente testemunha de Jeová que se recusa a receber sangue por convicção religio sa Este é um outro exemplo de solicitação de In terconsulta que tende a crescer em número e que abrange um conjunto de situações os chamados dilemas éticos NogueiraMartins et al 1991 Os dilemas éticos mais frequentes no hospital geral incluem decidir sobre a manutenção ou interrupção de tratamentos em pacientes graves lidar com situações nas quais o paciente não aceita continuar um tratamento eou se sub meter a um procedimento manejar situações associadas à comunicação aos pacientes e aos familiares de diagnóstico de câncer AIDS e outras doenças graves óbi to complicações inesperadas com sequelas graves as comunicações dolorosas Na maioria das vezes o interconsultor é chama do para avaliar o estado mental do paciente colabo rar no diagnóstico diferencial entre etiologia orgâni ca ou psíquica atender casos de tentativa de suicídio e para acompanhar pacientes submetidos a procedi mentos traumatizantes como amputações e cirurgias de grande porte Há no entanto em cerca de 25 dos pedidos de Interconsulta um conjunto de outras situações que não se enquadram em diagnósticos psiquiátricos São desajustes e conflitos na relação entre equipe mé dica e paciente ou familiares Nessas situações cum pre ao Interconsultor tentar desobstruir os canais de comunicação propiciando à equipe condições para restaurar a relação terapêutica O trabalho em Interconsulta envolve a elabo ração de diagnósticos situacionais a devolução das informações trabalhadas é um de seus aspectos mais importantes O interconsultor deve transmitir im pressões ideias e conceitos de forma clara evitando o uso de jargões da especialidade eou uma lingua gem hermética que possa bloquear a interação con sultanteinterconsultor FREQUÊNCIA E NATUREZA DOS DISTÚRBIOS PSIQUIÁTRICOS NO HOSPITAL GERAL Cerca de 50 dos pacientes internados em hos pital geral apresentam algum tipo de distúrbio psi Psicossomaticaindd 226 Psicossomaticaindd 226 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 227 quiátrico A variação nessa cifra depende da popu lação estudada características sociodemográficas tipo de enfermidade gravidade cronicidade e de definições metodológicas critérios de inclusão ins trumentos de pesquisa ponto de corte definição de caso etc Os transtornos observados podem ser a expressão de um problema mental crônico de mani festação psiquiátrica decorrente do quadro clínico de base ou ainda de reações à doença aguda de seu tratamento e da hospitalização Botega et al 1995 2002 2006 Os principais diagnósticos psiquiátricos em pa cientes internados em hospital geral são a reações de ajustamento ao adoecer e à interna ção com sintomatologia predominantemente de pressiva b estados confusionais agudos associados a quadros cérebroorgânicos decorrentes de quadros infecciosos encefalites meningites toxoplasmose cerebral abscessos cerebrais AIDS septicemia etc distúrbios metabólicos diabete insuficiência renal insuficiência hepática etc intoxicações exógenas acidentes uso de dro gas tentativas de suicídio alcoolismo síndrome de abstinência Wernicke KorsaKoff vasculopatias cerebrais hipertensão diabete arterioesclerose vasculite por lupus etc O mais extenso estudo multicêntrico sobre morbidade psiquiátrica em Interconsulta conduzido pelo European CL Work Group Huyse et al 2001 abrangendo 11 países 56 serviços de IC 226 psiquia tras e 14717 pacientes mostrou as seguintes preva lências de transtornos mentais Transtorno do Humor 187 Transtorno Mental Orgânico 177 Abu so de Substâncias Psicoativas 133 Transtorno de Ajustamento 124 Transtornos Somatoformes 75 Transtorno de Ansiedade 53 Transtor nos Psicóticos 44 A morbidade psiquiátrica é maior em enferma rias de serviços de emergência e em unidades que lidam com pacientes em estado crítico Transtornos mentais orgânicos são mais frequentes em idosos quando comparados a pacientes mais jovens estes úl timos tendem a apresentar transtornos afetivos Den tre os transtornos afetivos as reações de ajustamento constituem o grupo mais frequente A exemplo do ob servado na atenção primária o padrão mais comum de sintomas é de natureza indiferenciada compreen dendo uma combinação de preocupações excessivas ansiedade depressão e insônia No caso de doenças agudas os sintomas desenvolvemse dentro de dois ou três dias A ansiedade surge primeiro principal mente quando não se tem certeza do diagnóstico e da evolução do quadro clínico Sintomas depressivos aparecem posteriormente e podem durar semanas Quadros clínicos como o acima descrito melho ram com asseguramento apoio e boa comunicação esta última compatível com a necessidade e o nível intelectual do paciente Estas funções idealmente deveriam ser desempenhadas pelo médicoassistente ou em caso de impossibilidade por um membro da equipe assistencial Psicofármacos e psicoterapia con duzida por especialista são raramente necessários Em alguns casos os sintomas persistem por mais tempo Geralmente são de natureza depressi va atingindo níveis de gravidade compatíveis com critérios diagnósticos para episódio depressivo maior Na avaliação do paciente sintomas como anedonia e perda de interesse e de prazer devem ser ativamente pesquisados A persistência e a natureza dos sintomas indicam a necessidade de tratamento específico A decisão de iniciar um tratamento com medicamento antidepressivo deve ser pautada pelas mesmas dire trizes utilizadas em casos de depressão não associada a doenças físicas Entretanto efeitos adversos con traindicações e interação medicamentosa devem ser cuidadosamente considerados quando da escolha do antidepressivo a ser utilizado Apesar de causarem considerável sofrimento e implicações clínicas pelo menos 30 dos pacientes acometidos por transtornos mentais não são reconhe cidos como tais pelos seus médicos Tal fato pode ser decorrente da combinação de vários fatores entre os quais Botega e Smaira 2006 os pacientes queixamse do corpo não relatando problemas psicológicos acusamlhes a presen ça entretanto se questionados diretamente as pistas fornecidas pelo paciente a respeito de seu estado emocional não são percebidas pelo médico falta de privacidade em alguns ambientes para se conversar ao encontrarem uma causa física os médicos de têm aí a investigação certos sintomas vegetativos fadiga insônia taquicardia falta de ar anorexia diminuição da libido etc podem ser decorrentes de patologia tanto orgânica quanto mental confundindo o diagnóstico considerados como compreensíveis ou fazendo parte do quadro clínico certos transtornos afeti vos deixam de receber tratamento específico mesmo quando suspeitam da presença de um problema psicológico os profissionais podem se Psicossomaticaindd 227 Psicossomaticaindd 227 05012010 121211 05012010 121211 228 Mello Filho Burd e cols sentir inseguros para o aprofundamento e o ma nejo outra dificuldade conhecida nessa área é que no hospital geral tornase difícil diferenciar casos psiquiátricos notadamente quando se combinam além do sofrimento psíquico doenças físicas e problemas sociais concomitantes OS BENEFICIÁRIOS DA INTERCONSULTA É antiga a crença entre os psiquiatras que tra balham em hospitais gerais de que o atendimento psiquiátrico a pacientes hospitalizados melhora a qualidade da assistência ao paciente reduz o tempo de hospitalização e diminui as reinternações Hales 1985 NogueiraMartins 1995 Edward Billings o criador do termo consulta tionliaison psychiatry há quase 70 anos já externava essa convicção A integração dos princípios da Psiquiatria com os de outras áreas da Medicina diminui os erros diagnósticos e terapêuticos reduz o tempo de hospitalização e isso representa uma economia para o hospital para o pa ciente e para a comunidade Hales 1985 Vários estudos contemporâneos têm confirmado as afirmações desse autor Em um estudo sobre altas hospitalares e tempo de internação em uma enferma ria de clínica médica Ferrari e colaboradores 1979 observaram que as internações se prolongavam por um tempo excessivo segundo os autores a conju gação de fatores psicossociais dos pacientes com as dificuldades da equipe médica em identificar e lidar com esses fatores colaboravam para um aumento ex cessivo do tempo de internação dos pacientes Levitan e Kornfeld 1981 comparando um grupo de pacientes idosos submetidos a cirurgia cor retiva de fratura de fêmur que recebeu acompanha mento psiquiátrico no pósoperatório com um grupo controle que não recebeu este atendimento observa ram que a internação hospitalar para o primeiro grupo foi 12 dias mais curta que para o grupo controle um número duas vezes maior de pacientes no pri meiro grupo foi diretamente para suas casas após a alta ao invés de serem encaminhados para ou tra instituição de saúde Diversos pesquisadores têm procurado mensu rar os benefícios de intervenções psicossociais em pa cientes hospitalizados e ambulatoriais Essa questão revestese de significativa importância econômica dado o alto custo dos serviços médicos em geral e das hospitalizações em particular Mumford e cola boradores 1984 publicaram um importante estudo metanalítico sobre as evidências na redução do custo do uso de serviços médicos após tratamentos e in tervenções psicossociais este trabalho é a principal fonte dos dados relatados a seguir Em 1965 na Alemanha foi realizado o primei ro estudo relatado na literatura demonstrando que o custo de um tratamento psicoterápico era compensado pela economia que se obtém através de uma diminuição do uso de serviços médicos A pesquisa mostrou que pacientes que se subme tiam à psicanálise ou à psicoterapia psicanalítica tiveram um menor índice de hospitalização que um grupo controle Uma revisão de trabalhos sobre os efeitos da psi coterapia mostrou que havia uma redução de 20 no uso de serviços médicos pelos pacientes que estavam em psicoterapia Um outro estudo revelou uma queda no uso de exames radiológi cos e de laboratório 157 e de serviços médi cos não psiquiátricos 136 em pacientes sob tratamento psicoterápico A análise de 13 estudos sobre os efeitos de uma intervenção psicossocial orientação e apoio psi cológico a pacientes infartados revelou uma re dução média de dois dias no tempo de internação hospitalar Resultados semelhantes foram obtidos na análise de 49 estudos sobre os efeitos de uma intervenção psicopedagógica no período préope ratório uma redução de 131 dias no tempo de hospitalização Outro estudo envolvendo 22 tra balhos que correlacionam intervenções psicológi cas com tempo de internação revelou uma redu ção média de 15 dias Alguns estudos sobre a relação custobenefício que visam medir a redução dos custos hospitala res após intervenções psicossociais em pacientes hospitalizados são relatados na literatura To dos os estudos foram realizados em enfermarias de Ortopedia com pacientes idosos submetidos a cirurgias corretivas de fraturas de ossos do quadril Em um estudo conduzido por Boone e colaboradores citado em Strain e colaborado res 1991 houve uma redução de 125 dias no tempo de hospitalização após uma intervenção realizada por assistentes sociais durante 6 meses com 187 pacientes A redução do custo hospita lar foi de 54000 dólares Strain e colaboradores 1991 trabalhando com 452 pacientes durante 2 anos em dois hospitais americanos referem uma redução de 2 dias no tempo de hospitali zação A redução de custos hospitalares foi de 160000 e 100000 dólares respectivamente Psicossomaticaindd 228 Psicossomaticaindd 228 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 229 Esses dados corroboram a crença de que o tra balho em consultoria psiquiátrica e psicológica no hospital geral reverte em benefícios para os pacien tes para o hospital e para a comunidade conforme já afirmava Billings em 1941 apud Hales 1985 Em resumo há evidências na literatura que justificam a noção de que intervenções psiquiátricas psicológicas e psicossociais resultam em benefícios para os pacien tes e para os hospitais Os benefícios se expressam através de uma diminuição do uso de serviços médi cos em geral e uma redução do tempo de hospitaliza ção com consequente queda dos custos hospitalares Kornfeld em excelente revisão publicada em 2002 com base em estudos desenvolvidos por inter consultores em várias áreas da prática profissional em hospitais gerais destacou algumas das conquis tas avanços e benefícios que a Interconsulta trouxe para a prática médica mudanças nos procedimentos das cirurgias de catarata para evitar os quadros de delirium que os interconsultores verificaram estar associados a privação sensorial induzida pelos procedimentos pósoperatórios mudanças na estrutura física e nos procedimentos das UTIs para prevenir a ocorrência de delirium pois também foi verificado que certas condições ambientais e determinados procedimentos esti mulavam sua ocorrência na área de transplantes de órgãos importantes contribuições foram desenvolvidas com relação à avaliação préoperatória e a previsão da capaci dade de adesão do paciente aos procedimentos e aos cuidados necessários para a vida após o trans plante em relação ao estresse ocupacional durante o treinamento na residência médica estudos de senvolvidos por interconsultores sobre a privação do sono em residentes de primeiro ano contri buíram para a implementação de mudanças na forma pela qual os residentes são formados e na prevenção de riscos para a segurança dos pacien tes Ainda que seja difícil avaliar sua efetividade Cítero et al 2002 2008 Andreoli et al 2003 há uma tendência entre profissionais que trabalham em serviços de IC de hospitais gerais a considerar que a Interconsulta melhora a qualidade da assistência dis pensada ao paciente embora em alguns casos possa eventualmente aumentar o tempo de internação Es tudo realizado com médicos que solicitaram pedidos de IC mostrou que os solicitantes estavam satisfeitos com o atendimento dado pelos interconsultores An dreoli et al 2002 ESTRUTURAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTERCONSULTA Com o objetivo de manter e aprimorar os be nefícios que o atendimento em interconsulta propor ciona aos pacientes e familiares aos médicos e aos hospitais alguns pontos importantes devem ser con siderados como por exemplo aspectos relativos ao registro de dados Andreoli et al 1996 ao se es truturar um serviço de Interconsulta NogueiraMar tins 1993 NogueiraMartins e Botega 1998 Botega e NogueiraMartins 2002 2006 Uma característica básica e fundamental do tra balho em Interconsulta é a natureza aguda dos pro blemas no Hospital Geral Os estados confusionais agudos são exemplos eloquentes Outro aspecto a ser aqui considerado é que a decisão de pedir ajuda ao psiquiatra pode ter sido postergada ao máximo Ocorre então que essa decisão pode ser tomada num momento em que o médico já atingiu seu limite de suportar a angústia desencadeada por uma situa ção Quando solicita a Interconsulta quer a presença urgente do psiquiatra pois urgente é sua aflição A Interconsulta portanto deve ser considerada uma si tuação emergencial o serviço deve dispor de uma es trutura que possa atender à demanda com rapidez Dada a velocidade com que os fatos se sucedem no hospital geral impõese um acompanhamento diá rio das situações Não é raro que ao atender um pa ciente em determinada unidade o interconsultor en contre no dia subsequente mudanças significativas na situação A morte do paciente a piora do quadro clínico com transferência para a UTI a realização de uma cirurgia em caráter emergencial a alta hospita lar por decisão médica ou por solicitação do paciente são alguns exemplos relativamente frequentes É importante ressaltar que uma Interconsulta não termina quando o paciente vem a falecer As cir cunstâncias em que o óbito ocorreu devem ser pes quisadas assim como as repercussões e os desdobra mentos desse evento na equipe assistencial Vivências de fracasso ou incompetência profissional acompa nhadas de sentimentos de culpa tendem às vezes a desencadear verdadeiros tribunais em busca dos culpados pelo doloroso evento Em casos de suicídio as repercussões tendem a abranger a instituição como um todo podendose observar um aumento transitó rio do número de pedidos de IC Outra característica vinculada à natureza agu da dos problemas que ocorrem no hospital geral diz respeito à necessidade de decisões rápidas em curtos períodos de tempo Essa questão revestese de signi ficativa importância econômica dado o alto custo de uma hospitalização Muitos esforços têm sido feitos no sentido de diminuir este custo Assim o pronto Psicossomaticaindd 229 Psicossomaticaindd 229 05012010 121211 05012010 121211 230 Mello Filho Burd e cols atendimento aos pedidos de Interconsulta e o acom panhamento diário contribuem para uma diminuição do tempo de internação com consequente redução de custo A estruturação de um serviço de Interconsulta segundo as premissas anteriores demanda tempo e recursos Recomendase dar prioridade à qualidade do atendimento aos pedidos para progressivamente planejar a extensão e abrangência do serviço Assim sugerese iniciar com uma abrangência limitada a alguns serviços médicos atendendo rapidamente os pedidos iniciais e oferecendo um suporte diário para as eventuais intercorrências As sucessivas experiên cias permitirão elaborar uma reflexão crítica sobre o serviço e planejar a extensão para outras unidades ou serviços médicos A Interconsulta pode contribuir para um me lhor relacionamento entre os profissionais de saúde mental e os outros profissionais da saúde auxilian do na construção de um saber interdisciplinar ou ao contrário pode favorecer a cristalização de estereó tipos Sabendose que há resistências preconceitos e dificuldades em relação à saúde mental uma das premissas que deve nortear a organização e estrutu ração de um serviço de Interconsulta é procurar não aumentálos A FORMAÇÃO EM INTERCONSULTA O interconsultor deve ser um profissional de saúde mental em nosso serviço no Hospital São Paulo trabalhamos com uma equipe multiprofissio nal constituída de psiquiatras psicólogos e terapeu tas ocupacionais com experiência em psicologia médica e ter familiaridade com o trabalho médico em hospitais gerais onde o atendimento se faz em condições especiais via de regra à beira do leito na presença de outros pacientes e com frequentes inter rupções em virtude de sintomas do paciente ou de procedimentos de enfermagem O interconsultor deve em todo atendimento de Interconsulta conhecer as condições clínicas do pa ciente bem como estar informado sobre o uso atual e recente de medicamentos visando nortear a eventual administração de terapêutica psicofarmacológica Um aspecto importante a ser considerado pelo interconsultor diz respeito às reações que o contato com o ambiente hospitalar provoca O receio de con trair doenças o convívio com pacientes que causam repugnância o contato com a perspectiva de morte as reações de desespero de pacientes familiares e profissionais são situações difíceis que atualizam nos interconsultores conflitos ligados à escolha da profis são e da especialidade O interconsultor deve também estar atento às eventuais identificações que possa fazer com as pessoas envolvidas em cada situação A importância desta questão está ligada à possibilidade de se iden tificar tanto com os pacientes quanto com os médi cos consultantes As ansiedades geradas no trabalho de Interconsulta podem interferir na percepção dos fenômenos que se pretende examinar Podem por outro lado ser estímulos enriquecedores para o au toconhecimento auxiliando o crescimento pessoal e profissional do interconsultor O interconsultor é um profissional que se intro duz como observador participante de uma situação podendo eventualmente se tornar o depositário de poderosas ansiedades e reagir de forma inapropria da A possibilidade de se identificar maciçamente com pessoas envolvidas na situação é um dos riscos a que está frequentemente exposto Em função dessas características inerentes à ati vidade em Interconsulta recomendase que os profis sionais encarregados do atendimento aos pedidos de Interconsulta no Hospital Geral tenham com quem dividir e encaminhar a solução das suas ansiedades supervisão dos atendimentos e que sejam também estimulados a buscar sua própria terapia Para a formação teórica em Interconsulta há hoje um grande número de publicações nacionais e internacionais Os temas básicos que devem ser de senvolvidos são Botega e NogueiraMartins 2006 O processo de Interconsulta Modelos de ação e estratégias em interconsulta Reações psicológicas ao adoecimento e à hospita lização Temas de relação médicopaciente Síndromes orgânicocerebrais Depressão e ansiedade Paciente terminal Tentativa de suicídio Condições clínicas especiais transplante de ór gãos alterações da imagem corporal UTI vítimas de violência interconsulta com crianças etc Elementos de psicologia e psicopatologia institu cional Abordagens psicoterapêuticas Noções de técnicas grupais grupos Balint grupos de reflexão etc Uso de psicofármacos no hospital geral Saúde mental dos profissionais da saúde Como temas complementares devem ser desta cados os estudos a respeito da natureza das ansieda des no trabalho em hospitais gerais e temas correlatos como as características da dinâmica da relação equipe médica paciente internado família as vicissitudes Psicossomaticaindd 230 Psicossomaticaindd 230 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 231 do exercício profissional em saúde e os mecanismos psicológicos adaptativos e desadaptativos dos profis sionais da área da saúde NogueiraMartins 1995 2005 2006 INTERCONSULTA AMANHÃ A despeito das diversas dificuldades que o traba lho de interconsultoria propõe as perspectivas conti nuam promissoras O campo oferece ao interconsultor a possibilidade de ampliar sua formação profissional seja no âmbito da observação dos fenômenos ligados ao adoecer seja no campo da psicologia e da psico patologia individual grupal e institucional assim como no aprendizado das complexas interações entre os fatores biológicos e psicossociais que coexistem no ser humano Esse trabalho representa também uma rara oportunidade para profissionais da área de saúde mental psiquiatras psicólogos terapeutas ocupa cionais assistentes sociais conhecerem a intimida de das instituições assistenciais e a possibilidade de desenvolvimento de pesquisas na área da otimização dos recursos humanos no trabalho assistencial e na organização dos serviços de saúde Ao atender a um pedido de consulta no hospi tal geral um interconsultor além de conhecer me lhor do ponto de vista clínico um grande número de doenças tem acesso a situações inusitadas com características que às vezes nunca supusera existir Ao conhecer a intimidade organizacional dos serviços médicos e as peculiaridades microinstitucionais es tará aparelhado a poder estabelecer com maior pro priedade as relações entre as políticas de educação saúde e assistência Em seu amanhã os interconsultores têm pela frente algumas tarefas e desafios aprimoramento dos estudos científicos ênfase especial deverá ser dada ao desenvolvimento de instrumentos de avaliação do impacto do trabalho em interconsulta melhoria das estratégias de intervenção e extensão de seu campo de ação à atenção primária além dos muros do hos pital geral Botega 2006 2007 Cítero et al 2002 2008 De Marco et al 2007 Casos clínicos UMA INTERCONSULTA O CONTEXTO INSTITUCIONAL E AS VICISSITUDES DA TAREFA MÉDICA Uma interconsulta IC é solicitada para o atendimento de um paciente internado em uma unidade da Clínica Médi ca A médica residente R1 que solicitou a IC informa que o paciente havia sido internado em função de um quadro caracterizado por febre emagrecimento e queixas respira tórias que tivera início há cerca de três meses o paciente havia passado por outros serviços médicos sem que fosse estabelecido um diagnóstico Segundo ela as imagens do raioX de tórax eram suges tivas de uma pneumopatia por micoplasma Em resumo do ponto de vista clínico tratavase de um caso de pneumopa tia a esclarecer e as investigações prosseguiam No terceiro dia de internação o paciente subitamen te ficou agitado falando coisas desconexas havia saído da enfermaria caminhando pelo corredor desorientado não reconhecendo o próprio pai Em função desse quadro a re sidente havia solicitado a consulta à Psiquiatria Seguindo a sistemática do nosso serviço após o contato com a médica consultante o interconsultor um residente de Psiquiatria que estava em final de estágio no serviço de IC dirigiuse ao leito do paciente À beira do leito havia um senhor e no leito um jovem negro emagrecido sono lento vestes desalinhadas que balbuciava algumas palavras inaudíveis e ininteligíveis com fala algo pastosa O exame psíquico sinteticamente revelou um estado de obnubilação da consciência lentificação e incoerência do pensamento desorientação temporoespacial e comprometimento im portante da atenção espontânea e voluntária Reunindo os dados clínicos fornecidos pela médica e os dados psicopatológicos encontrados no exame psíquico o interconsultor construiu um diagnóstico sindrômico estado confusional agudo decorrente de provável quadro cérebro orgânico Após fazer uma sucinta anamnese com o pai do pacien te aquele senhor que estava no quarto o interconsultor volta a procurar a médica que havia solicitado a IC Transmi telhe sua impressão diagnóstica e levanta a hipótese de um eventual quadro de abscesso cerebral Assinala também que tinha a impressão de que o paciente era usuário de drogas apesar de esse uso ter sido negado de forma categórica pelo pai Em função dessa impressão discutiu com ela a possibi lidade de pedir um exame HIV relatandolhe o caso de um paciente com quadro semelhante que atendera recente mente na enfermaria de Moléstias Infecciosas que estava com toxoplamose cerebral A médica disse que já havia solicitado pedido de con sulta à Neurologia e que achava adequado solicitar o exa me HIV Quanto ao uso de psicofármacos o interconsultor recomendou o uso de neuroléptico Haloperidol em dose baixa e forneceu orientações sobre o manejo de pacientes com delirium fornecer dados que facilitem a orientação têmporoespacial identificarse sempre e explicar detalha damente todos os procedimentos a serem realizados ao final comunicou que retornaria na manhã seguinte Na supervisão realizada logo após o atendimento do pedido o interconsultor relatou a situação Mostravase relativamente tranquilo acreditando ter elaborado raciocí nio clínico correto e satisfeito em poder ajudar sua colega e colaborar com o atendimento do paciente Supunha que a Neurologia iria indicar uma tomografia e que a partir daí seria estabelecida uma conduta clínica ou cirúrgica À noite o psiquiatra de plantão no PS foi chamado para atender o paciente e na manhã seguinte foram feitos no Psicossomaticaindd 231 Psicossomaticaindd 231 05012010 121211 05012010 121211 232 Mello Filho Burd e cols vos pedidos de consulta tanto por escrito como por tele fone Um desses telefonemas havia sido da diretoria clínica do hospital que solicitava com urgência a presença de um psiquiatra na unidade Dadas as circunstâncias e na ausên cia do interconsultor que estava atendendo outro pedido o supervisor professor do Departamento de Psiquiatria que havia supervisionado o caso dirigiuse à enfermaria Em contato com a médica residente que estava cui dando do paciente o supervisor soube que no dia anterior após a consulta da Psiquiatria a Neurologia havia feito uma avaliação e indicara uma tomografia de crânio que no en tanto não fora ainda possível realizar Referiu também que a família estava se queixando da demora da realização do exame e da não melhora do estado do paciente O exame psíquico do paciente permanecia compatível com a hipótese de um quadro confusional agudo Foram reafirmadas verbalmente e por escrito as orientações e a conduta Ao deixar a unidade o supervisor se percebia preocu pado Uma significativa ansiedade circulava no ambiente Ela se expressava nos gestos da residente nos seguidos pedidos de consulta no telefonema da direção clínica do hospital no olhar desconfiado do pai do paciente A seguir supervisor e interconsultor se reuniram e trocaram impressões O interconsultor não compreendia o porquê daquele alvoroço e sentiase injustiçado Havia atendido prontamente o pedido fizera um diagnóstico cor reto e dera orientação verbal e por escrito Afinal o que querem de mim desabafou Nesse encontro supervisor e interconsultor compartilharam algumas impressões e am bos destacaram um fato que lhes chamara a atenção o pai do paciente tinha se apresentado como sendo funcionário de uma pessoa muito conhecida ligada aos meios de comu nicação e durante as entrevistas fizera questão de enfatizar esta condição mais de uma vez Uma indagação básica se impunha o que haveria de es pecífico e particular nesta situação que mobilizara tanto a equipe médica e a família do paciente Para a construção do diagnóstico situacional referen te a essa IC serão considerados dois níveis o macroscópico e microscópico Do ponto de vista macroscópico os diferentes atores desta cena institucional estão inseridos em um ambiente social A articulação dos fatos desta novela institucional foi reconstruída e os papéis dos diferentes atores foram se tor nando mais transparentes 1 A internação deste paciente havia sido intermediada por uma conhecida personalidade da mídia televisiva junto à direção do hospital o que transformava esse paciente em alguém especial alguém que tinha um padrinho importante 2 Esse tipo de internação costuma despertar sentimentos de insatisfação nos residentes que reagem com ironia apelidandoos de pacientes VIPs ou particuloides 3 O pai do paciente por sua vez não perdia uma oportuni dade para alardear sua condição de funcionário de fulano de tal e desde início do quadro confusional do filho ma nifestava desconfiança quanto ao tratamento levantando dúvidas sobre o que os médicos teriam feito com o seu filho que segundo suas palavras sempre fora normal 4 Em um contexto social caracterizado pelo crescente au mento de processos éticodisciplinares e judiciais o medo de errar amplificava a ansiedade da equipe médica 5 A demora na realização da tomografia aumentou a inse gurança e o medo A pressão familiar aumentava O pai do paciente passava das ameaças veladas para a culpabi lização direta a equipe médica obrigada a engolir uma internação tinha ainda que suportar acusações e tratar de um paciente de difícil manejo No nível microscópico da dinâmica interna da inter consulta merecem destaque os seguintes aspectos 1 Um paciente com alteração de comportamento confu so e agitado em uma unidade clínica desperta angústia e provoca muitos problemas no funcionamento rotineiro do serviço É natural portanto que ao solicitar consulta à Psiquiatria o médico clínico espere a adoção de uma conduta que atenue os distúrbios comportamentais do paciente preferentemente por meio do uso de medica mentos sedativos contenção química 2 Neste caso que ressaltese é classificado na categoria de casos de difícil manejo o psiquiatra ao contrário do esperado além de não sedar o paciente formulou uma hipótese de um quadro cérebroorgânico abscesso ce rebral 3 A elaboração de um diagnóstico de doença orgânica por um psiquiatra talvez tenha sido sentido pela médica clíni ca como uma ameaça à sua competência profissional ou como ação inapropriada invadir seara alheia 4 Além de elaborar uma hipótese de abscesso cerebral a ação profissional do interconsultor contribuiu para des vendar uma realidade que a família do paciente tentava negar O exame HIV revelouse positivo e a tomografia mostrou uma massa compatível com toxoplasmose ce rebral Segundo a família o paciente era um bom menino que havia sido internado por causa de uma pneumonia adquirida em um outro hospital e que ficara doente da cabeça devido a algum erro médico durante a atual in ternação Era muito difícil aceitar a ideia de um filho com AIDS e provavelmente usuário de drogas Este diagnóstico situacional é uma hipótese que per mite tentar compreender porque uma atuação profissional do interconsultor tecnicamente correta em relação à for mulação diagnóstica e orientação do caso provocou tantas reações adversas O caso acompanhado com a Neurologia apresentou uma boa evolução com a instituição de tratamento medi camentoso específico para toxoplasmose o que contribuiu sobremaneira para atenuar os medos ansiedades e descon fortos de todos os envolvidos incluídos os membros do serviço de IC Vale ressaltar as angústias que experimenta o intercon sultor ao atender um paciente com quadro de delirium Se por um lado a elaboração do diagnóstico é relativamente fácil já o manejo terapêutico apresenta às vezes graus variáveis de dificuldade em especial quanto ao uso de psi cofármacos pois há o potencial risco de produzir sedação excessiva com eventual comprometimento de parâmetros do estado de consciência Psicossomaticaindd 232 Psicossomaticaindd 232 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 233 REFERÊNCIAS Andreoli PBA Peluso ET Andreoli SB NogueiraMartins LA Padronização e informatização de dados em serviço de intercon sulta médicopsicológica de um hospital geral Revista ABPAPAL 19961838994 Andreoli PBA Avaliação dos programas assistenciais em intercon sulta psiquiátrica Dissertação Mestrado Escola Paulista de Medicina Universidade Federal de São Paulo 1998 Andreoli PBA NogueiraMartins LA Mari JJ Satisfação do usu ário médico com um serviço de interconsulta psiquiátrica e psicoló gica Psiquiatria na Prática Médica 2002 344100105 Andreoli PBA Cítero VA Mari JJ A systematic review of the cost effectiveness studies in mental health consultationliaison interven tions at general hospital Psychosomatics 2003 44499507 Botega NJ No Hospital Geral lidando com o psíquico encami nhando ao psiquiatra Tese de Doutorado Universidade Estadual de Campinas Campinas São Paulo 1989 Botega NJ Encaminhamento ao psiquiatra e funcionamento insti tucional Revista ABPAPAL 1991 131 2731 Botega NJ Cassorla RMS Encaminhamentos ao psiquiatra e rela ção médicopaciente uma análise qualitativa dentro de um referen cial psicodinâmico Revista ABPAPAL 1991132 5358 Botega NJ Consultationliaison psychiatry in Brazil psychiatric resi dency training General Hospital Psychiatry 1992 143186191 Botega NJ Dalgalarrondo P Saúde mental no hospital geral es paço para o psíquico São Paulo Hucitec 1993 Botega NJ Pereira WAB Bio MR Garcia Jr C Zomignani MA Psychiatric morbidity among medical inpatients a standardized assessment GHQ12 and CISR using lay interviewers in a Bra zilian hospital Social Psychiatry and Psychiatry Epidemiology 1995 30127131 Botega NJ Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral Campi nas Papirus 1995 Botega NJ Schechtman A Censo Nacional de Unidades de Psi quiatria em Hospitais Gerais I Situação Atual e Tendências Revis ta ABPAPAL 1997 1937986 Botega NJ Psiquiatria no hospital geral histórico e tendências In Botega NJ org Prática psiquiátrica no hospital geral intercon sulta e emergência Porto Alegre Artmed 2006 Botega NJ Interconsulta Psiquiátrica fatores presentes na relação entre especialistas In Guimarães KBS Saúde mental do médico e do estudante de medicina São Paulo Casa do Psicólogo 2007 Cítero VA Descrição e avaliação da implantação do Serviço de In terconsulta Psiquiátrica no Centro de Tratamento e Pesquisa Hospi tal do Câncer AC Camargo Dissertação Mestrado Escola Pau lista de Medicina UNIFESP São Paulo 1999 Cítero VA Andreoli SB NogueiraMartins LA Lourenço MT In terconsulta psiquiátrica e oncologia interface em revisão Psiquia tria na Prática Médica 2000 331013 Cítero VA De Marco MA NogueiraMartins LA Por que é tão difícil avaliar a efetividade da interconsulta psiquiátrica Revista Brasileira de Psiquiatria 2002 242100 Citero VA NogueiraMartins LA Lourenço MT Andreoli SB Clinical and demographic profile of cancer patients in a CL psychia try service São Paulo Medical Journal 2003 121111116 Cítero VA Identificação de medidas subjetivas como possíveis in dicadores clínicos de efetividade de serviços de interconsulta psiqui átrica em hospital geral Tese Doutorado Escola Paulista de Medicina UNIFESP São Paulo 2005 Cítero VA Andreoli PBA NogueiraMartins LA Andreoli SB New potential clinical indicators of consultationliaison psychiatry effectiveness at Brazilian general hospitals Psychosomatics 2008 4912938 De Marco MA Interconsulta In A face humana da Medicina do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial São Paulo Casa do Psicólogo 2003 De Marco MA Cítero VA NogueiraMartins LA Revisando con ceitos o papel da psiquiatria moderna no hospital geral e na aten ção primária Revista Brasileira de Psiquiatria 2007 29188 Ferrari H Luchina N Luchina IL La interconsulta médico psicológica en el marco hospitalario Buenos Aires Nueva Vision 1971 Ferrari H Luchina N Luchina IL Asistencia Institucional Nue vos desarrollos de la interconsulta médicopsicológica Buenos Ai res Nueva Vision 1979 Fortes JRA Miguel Filho EC Ramadam ZBA Arruda PV Psi quiatria e Medicina Interna São Paulo Astúrias 1988 Fraguas Jr R et al Major depressive disorder and comorbid car diac disease is there a depressive subtype with greater cardiovas cular morbidity Results from the STARD study Psychosomatics 2007 48541825 Furlanetto LM Depressão em pacientes em hospital geral Disser tação Mestrado Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1995 Furlanetto LM von Ammon Cavanaugh S Bueno JR Creech SD Powell LH Association between depressive symptons and mor tality in medical inpatients Psychosomatics 2000 415426 432 Furlanetto LM Da Silva RV Bueno JR The impact of psychiatry morbidity on lengh of stay of medical inpatients General Hospital Psychiatry 2003 251149 Hales RE The benefits of a Psychiatric ConsultationLiaison Service in a General Hospital General Hospital Psychiatry 1985 7214218 Huyse FJ et al ConsultationLiaison psychiatric service delivery results from a European study General Hospital Psychiatry 2001 233124132 Kornfeld DS Consultation LiaisonPsychiatry contributions to medical practice American Journal of Psychiatry 2002 15912196472 Levitan SJ Kornfeld DS Clinical and cost benefits of liaison psychia tric American Journal of Psychiatry 1981 1386790793 Lipowski ZJ ConsultationLiaison Psychiatry the first half cen tury General Hospital Psychiatry 1986 8305315 Lipowski ZJ History of consultationliaison psychiatry In Wise MG Rundell JR Textbook of consultationliaison psychiatry Wa shington American Psychiatric Press 1996 Mello Filho J Concepção Psicossomática Visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1978 Mello Filho J Identidade Médica São PauloCasa do Psicólogo 2006 Mello Filho J Psicossomática Hoje Porto Alegre Artes Médicas 1992 Mello Filho J Isaac Luchina e a interconsulta médicopsicológica In Branco RFGR org A relação com o paciente teoria ensino e prática Rio de janeiro Guanabara Koogan 2003 Miguel Filho EC Ramadam ZBA Malbergier A Souza DG In terconsulta psiquiátrica no Brasil São Paulo Astúrias 1990 Mumford E et al A new look at evidence about reduced cost of medical utilization following mental health treatment American Journal of Psychiatry 1984 1411011451158 NogueiraMartins LA Frenk B Atuação do profissional de saúde mental no hospital geral a interconsulta médicopsicológica Bole tim de Psiquiatria 1980 13143037 Psicossomaticaindd 233 Psicossomaticaindd 233 05012010 121211 05012010 121211 234 Mello Filho Burd e cols NogueiraMartins LA Tarefa médica e interconsulta médicopsico lógica em um hospital universitário Boletim de Psiquiatria 1984 173108111 NogueiraMartins LA Consultoria psiquiátrica e psicológica no hospital geral a experiência do Hospital São Paulo Revista ABP APAL 1989 114160164 NogueiraMartins LA De Marco MA Manente MLF Noto JRS Bianco SM Dilemas éticos no hospital geral Boletim de Psiquia tria 1991 24122834 NogueiraMartins LA Interconsulta Hoje In Mello Filho J org Psicossomática Porto Alegre Artes Médicas 1992 NogueiraMartins LA Ensino e formação em interconsulta Revis ta ABPAPAL 1993 1526874 NogueiraMartins LA Residência Médica um estudo prospectivo sobre dificuldades na tarefa assistencial e fontes de estresse Tese Doutorado Escola Paulista de Medicina São Paulo 1994 NogueiraMartins LA Os beneficiários da interconsulta psiquiátri ca Boletim de Psiquiatria 1995 2812223 NogueiraMartins LA Vicissitudes do exercício da medicina e saúde psicológica do médico Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabolismo 1995 3934188193 NogueiraMartins LA Residência Médica estresse e crescimento São Paulo Casa do Psicólogo 2005 NogueiraMartins MCF Humanização das relações assistenciais a for mação do profissional de Saúde São Paulo Casa do Psicólogo 2004 Sampaio AP Serviço psiquiátrico do hospital geral de ensino Neu robiologia 1956 19127282 Shavitt RG Busato Filho G Miguel Filho EC Interconsulta psi quiátrica conceito e evolução Revista Paulista de Medicina 1989 1072108112 Strain JJ et al Cost offset from psychiatric consultationliaison in tervention with elderly hip fracture patients American Journal of Psychiatry 1991 148810449 Psicossomaticaindd 234 Psicossomaticaindd 234 05012010 121211 05012010 121211 A dor e o medo são provavelmente os mais pri mitivos sofrimentos do homem diante dos quais ao contrário do que ocorria com o frio e a fome ele fica va totalmente impotente Os sinais de dor ultrapassam os limites da histó ria e segundo Bonica 1990 a descoberta de esque letos humanos préhistóricos revelou em muitos deles sinais de enfermidades geradoras de dor Apesar de coeva com a raça humana os mistérios que envolviam a verdadeira natureza da dor só começa ram a ser desvelados no último século Digase contu do e como exaltação ao espírito altruístico do homem que os recursos para aliviar a dor precederam de milê nios o entendimento do seu mecanismo Assim o papi ro Ebers 1500 aC incluía muitos remédios entre eles o ópio prescrito por ISIS para as cefaleias de RA Placas de argila encontradas na Babilônia e datadas de 2250 aC descreviam o emprego de uma amálgama formada de sementes de meimendro e argamassa que colocada na cavidade de um dente cariado fazia passar a dor Aristóteles discípulo de Platão e considerado um gênio ainda não ultrapassado considerava a dor e o prazer como paixões da alma excluindoa dos sentidos Para ele o cérebro não tinha função direta no processo sensitivo a localização da percepção sen sorial centralizavase no coração ou por ele chamado sensorium comune sede também de todas as funções fundamentais da vida e ainda lócus da alma Bonica 1990 Mas nem todos aceitavam as ideias do sábio macedônio quanto à função subalterna do cérebro como Theophrastus 372287 aC mas Galeno que viveu entre 131 e 200 dC que começando o estu do experimental de visão anatômica direta mostrou que o centro da sensibilidade era o cérebro ligado ele a diferentes nervos periféricos que conduziriam sensações específicas ibidem Apesar disso a concepção de Aristóteles a dor como uma paixão da alma foi aceita por mais de 2000 anos e constituiu um fator de monta no atraso das pesquisas fisiológicas e psicológicas sobre a natu reza do fenômeno doloroso A partir da metade do século XIX a dor come çou a ser investigada por fisiologistas e discutida em laboratórios e os resultados obtidos nesse campo levantaram uma celeuma entre fisiologistas de um lado e psicólogos e filósofos de outro cada grupo querendo dar uma explicação única cabal e definiti va para o fenômeno A massa dos trabalhadores de pesquisa favore ceu aos fisiologistas e a teoria da dor como sensação foi aceita de maneira geral inclusive pelos psicólo gos no começo do século passado e dessa forma a opinião tradicional defendida pelos filósofos foi pos ta de lado Bonica 1953 Cabe registrar todavia que René Decartes 15961650 autor de L Homme que pode ser con siderado o primeiro manual de fisiologia descreveu a relação entre o cérebro os nervos periféricos e a captação das sensações inclusive a dor afastandose assim do sensorium comune aristotélico Foi como Galeno um precursor Com o desenvolvimento da neurofisiologia o componente emocional da dor foi deixado de lado Mas o pêndulo tinha ido longe demais e vários es tudos no século XX voltaram a considerar o quanto existia de psicológico na sensação dolorosa manten dose porém a dualidade entre sensação e reação emocional Merskey e Spear num lúcido artigo 1967 ana lisaram essa dicotomia e propuseram uma definição mais abrangente da dor que fundamenta o conceito estabelecido em 1979 pela Associação Internacional para Estudos da Dor IASP Para a IASP a dor é uma experiência desagra dável sensitiva e emocional associada com lesão real ou potencial dos tecidos ou discreta em termos dessa lesão Merskey 1982 Como diz Kanner 1998 essa definição pode conter certa circularidade mas ela coloca explicita mente a importância do componente subjetivo da dor e talvez seja esta sua maior valia Em outros ter mos sempre existe dor quando alguém se queixa de 17 O PROBLEMA DA DOR Oly Lobato Psicossomaticaindd 235 Psicossomaticaindd 235 05012010 121211 05012010 121211 236 Mello Filho Burd e cols dor com exceção dos simuladores haja ou não um estímulo nociceptivo reconhecido Dentro desse contexto o que significa dor O que expressa ela Como diz Andrew Sims 2001 certamente o significado da dor é mais que a dor por si só e amiúde é razão para a sensação ser interpre tada como sofrimento Szasz Strain 1975 de forma algo pragmá tica fala que a simbolização da dor ocorre em três níveis no primeiro ela constitui um sinal registrado pelo ego de que se acha ou parece se achar em curso uma ameaça à integridade estrutural e funcional do organismo num segundo nível ao verificarse que a experiência pode ser repartida isto é comunicada a alguém transformamna num meio básico de pedir ajuda num terceiro e último plano a dor não mais denota uma referência ao corpo mas pode isto sim expressar queixa ataque aviso de perda iminente do objeto Neste último nível de simbolização a dor pode ser utilizada como forma de manipular os ou tros ganhar o controle sobre eles Ainda num outro plano seria uma forma de aliviar a culpa por algu ma falta real ou imaginária que teria sido cometida Bond 1984 A dor pode às vezes constituir uma solução neurótica para um conflito e como tal ser assim mantida Sims 2001 e cita Trethoven tal paciente não está sofrendo de dor ele está sofrendo do sofri mento Desde o Velho Testamento a dor foi considera da como castigo para os pecadores e uma provação para os justos A ideia de punição fica bem expressa no Gênesis 316 quando Eva recebeu o veredicto multiplicarei grandemente a tua dor e tua concep ção com dor parirás os filhos No livro de Job a fé do justo é provada com dor pela grandeza da força das dores se demudou meu vestido e ele como o cabeção da minha túnica me cinge 3117 Com o advento do Cristianismo a dor foi vista de maneira definitiva como forma de iluminação ou de obtenção de graças e até como sacramento Bo nica 1953 A palavra latina poena e grega poiné am bas significando castigo ou punição deram origem ao termo inglês pain mostrando a conotação entre dor e castigo Bond 1984 Bonica diz com razão que como a dor foi sa cralizada e considerada como boa para a alma seja queimase o corpo para salvar a alma se a retirou das pesquisas científicas e qualquer atitude destinada a abolir tal sofrimento era desencorajada Com isso o entendimento do problema foi retardado Não foi em vão que Dante no inferno colocou em cada cír culo uma variedade de pecado e uma corresponden te forma de castigo que implicava uma dor Loteiko 1909 Mas a dor não apresenta somente aspectos nega tivos Como acima visto ela é uma forma de aviso de alarme para o organismo uma espécie de algo está errado comigo Segundo Ripley 1953 as crianças têm boa tolerância à dor e tal fato é importante pois os frequentes traumatismos que lhes ocorrem são ne cessários no processo normal de desenvolvimento Não fosse a dor bem tolerada as crianças ficariam inibidas para a prática de qualquer experiência que resultasse em conhecimento novo e dessa forma sua maturidade seria retardada Nos raros casos de analgesia congênita por não sentirem dor ficam as crianças expostas à múltiplos traumatismos às vezes bastante graves Figueiró 2000 Por outra parte e em termos práticos a dor é o sintoma mais comum em medicina clínica surgindo em torno de 75 a 80 das pessoas que procuram o Sistema de Saúde Figueiró 2000 Estimase que a dor crônica ocorra em 30 a 40 da população brasi leira e que seja a principal causa de falta ao trabalho licença médica aposentadoria por doença indeniza ção trabalhista e baixa produtividade ibidem NEUROFISIOLOGIA DA DOR A neurofisiologia tem progredido tanto nas úl timas décadas desde que Melzack e Wall desenvol veram em 1965 a sua célebre teoria do portão e Hunghes revelou a importância dos opioides endóge nos em 1975 que se torna difícil ao não especialis ta dominar seus múltiplos aspectos Eximiremonos portanto de abordar o assunto e sugerimos ao leitor interessado algumas revisões Harvey 1987 Brose e Spiegel 1994 e em nosso meio os excelentes ar tigos de Ferreira e Torres 2003 e no mesmo texto a revisão sobre neuroplasticidade de Arteni e Alexan dre Netto Há todavia algumas noções ligadas à neuro fisiologia que são pertinentes à dor experimental mas que servem para explicar alguns aspectos da experiên cia dolorosa em nível clínico São elas o limiar fisiológico o limiar de tolerância e a resistên cia à dor O limiar fisiológico estável de um indivíduo para outro pode ser definido como o ponto ou o momento em que um dado estímulo é sentido como doloroso Quando se usa o calor como fator de esti mulação o limiar doloroso situase em torno dos 44º Strain 1975 não só para o homem como também para diferentes mamíferos símios ratos Limiar de tolerância é o ponto em que o estí mulo atinge tal intensidade que não pode mais ser Psicossomaticaindd 236 Psicossomaticaindd 236 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 237 Origem periférica Superficial cutânea Profunda somática e visceral Referida Origem central Dor central desaferentação Psicogênica QUADRO 171 Classificação das dores Bonica 1953 aceitavelmente tolerado Janowsky 1976 e na ex periência acima alcançada os 48º A importância prática do conhecimento do limiar da dor está no fato de que ele pode ser ele vado diminuindo a dor pelo sono pelo repouso pela simpatia pela compreensão pelo carinho pela distração pela redução da ansiedade e pelo estres se pela música etc Ao contrário o limiar pode ficar mais baixo aumento da dor por múltiplos fatores estresse desconforto fadiga ansiedade medo rai va tristeza solidão etc Pavani 2000 Resistência à dor seria a diferença entre os limites É também modificada por traços culturais emocionais e ao sis tema límbico cabe a modulação da resposta compor tamental Harvey 1987 Outra noção importante é a da expressão da dor isto é a forma pela qual a dor experiência que pode ser dividida é comunicada pelo paciente A comuni cação pode ser verbal ou não verbal e incluir gestos gemidos atitudes posições analgésicas etc Um clássico trabalho de Mark Zborowski 1952 mostra o quanto a expressão da dor está li gada a fatores culturais Para esse autor nas socie dades humanas a dor como tantos outros fenôme nos fisiológicos adquire um significado cultural e social bem específico e certas reações a ela podem ser entendidas à luz desse significado Assim ele comparou a forma como judeus italianos e ameri canos old americans expressavam a dor causada por doen ças neurológicas principalmente hérnias discais e outras lesões vertebrais Os judeus e ita lianos mais livres na expressão de suas emoções menos contidos demonstravam seu sofrimento de forma mais veemente que os americanos Naqueles diferentemente destes últimos a ex pressão pública das emoções não era tão mal vista como nos americanos educados dentro de um auto controle que os levava a minimizar a dor evitar quei xas ou despertar piedade Sternbach 1977 pensa que além dos aspectos culturais traços pessoais também influem os extro vertidos manifestam suas dores de modo mais livre e imediato que os introvertidos Os fatos acima expostos mostram que mesmo sendo a dor um fenômeno universal cada um de nós sente e expressa suas dores de forma muito pessoal cremos que sem exagero se poderia dizer que nós somos as nossas dores CLASSIFICAÇÃO DAS DORES Toda classificação é um tanto formal e esque mática mas como existem certas características fi siopatológicas e clínicas que distinguem alguns tipos de dor parecenos útil expor as classificações exis tentes Uma primeira é usada por Bonica no seu monu mental tratado sobre o manejo da dor 1953 e que ao considerar a origem do estímulo nociceptivo divi de as dores em periféricas centrais e psicogênicas As dores superficiais originadas na pele carac terizamse por serem em picada ou em ardência e sua localização é bem definida A única dor profun da em ardência é a que ocorre no refluxo gastre sofágico Porto 1981 As dores profundas do tipo somático incluem as originadas em músculos ossos articulações vasos etc Elas como as dores viscerais têm um caráter dolente e são bem menos localizadas que as superficiais A dor referida expressa classica mente uma dor profunda sentida longe do seu local de origem Nas dores centrais a disfunção que inicia a expe riência dolorosa localizase em zonas do sistema ner voso central ou periférico Segundo Tasker 1984 o termo dor por desaferentação designa um descon forto surgido ou em qualquer parte do corpo de onde os impulsos nervosos aferentes tenham sido parcial ou totalmente interrompidos Tal fato pode resultar de lesões dos nervos periféricos como na nevralgia pósherpética ou a dor do membro fantasma ou ser consequente a alterações situadas em níveis mais al tos do sistema nervoso incluindo lesões de medula espinhal ou doenças vasculares do tronco cerebral A dor psicogênica para Bonica é aquela em que nenhuma lesão orgânica pode ser encontrada A segunda classificação divide as dores em agu das e crônicas agudas são as dores que todos conhe cem de curta duração minutos horas dias nas crônicas ultrapassaria de quatro a seis meses Ster nbach 1977 Bonica 1990 não aceita a duração como critério único para caracterizar a dor crônica Seus argumentos são bastante razoáveis mas não modificaram a tradição Esta como se viu é um tanto convencional mas como a etiologia fisiologia diag Psicossomaticaindd 237 Psicossomaticaindd 237 05012010 121211 05012010 121211 238 Mello Filho Burd e cols Duração Aguda Crônica Transitória Persistente Significado para o paciente Positivo indica Negativo Positivo lesão ou doença sem propósito útil Obtenção de ganho secundário Traços concomitantes Luta ou fuga Vegetativos Dilatação pupilar Distúrbio de sono Sudorese Anorexia Taquipneia Libido diminuída Taquicardia Constipação Shunting de sangue das vísceras para os músculos Preocupação somática Mudança de personalidade Inibição para o trabalho QUADRO 172 Dor aguda e crônica nóstico e terapêutica dos dois tipos são bastante dife rentes podese justificar a divisão No quadro abaixo tirado de Sylvia Lack 1984 aparecem algumas dessas diferenças Quadro 17 2 Dor aguda As causas de dor aguda são geralmente identifi cáveis e como regra agem através de um dos seguin tes mecanismos 1 lesão mecânica 2 irritação química de tecidos 3 queimadura 4 estresse tecidual como isquemia 5 distensão aguda de vísceras ou de vasos sanguí neos 6 espasmo de músculos lisos Exemplos comuns de dores agudas são as que ocorrem no pósoperatório nos traumatismos exten sos no infarto agudo do miocárdio no trabalho de parto algumas cefaleias obstruções de vísceras ocas e em tantas outras situações clínicas Importantes dentro desse contexto são as dores que poderíamos chamar de catastróficas que se iniciam intensas e assim se mantêm sem alívio como a cefaleia da he morragia subaracnoidea ou a dor do aneurisma dis secante Ainda que conhecida e sentida em algum mo mento da vida por todos nós a experiência de dor aguda é um processo complexo que não se limita à alterações de tecidos mas que põe em jogo toda uma série de mecanismos neurofisiológicos hormonais e emocionais que vão em última análise caracterizar a reação de alarme de Cannon Quadro 173 e preparam o organismo para a ação lutafuga A resposta emocional básica do individuo à dor aguda na medida em que ela representa um evento ameaçador ou como tal interpretado é a ansiedade e todas as reações físicas que a acompanham Como dizem Janowsky e Sternbach 1976 Existem tantas evidências clínicas mostrando a interre lação entre dor e ansiedade que se poderia estabelecer como axioma que a dor aguda produz ansiedade e esta emoção por sua vez potencializa de forma marcada a dor e reduz a tolerância e a resistência ao estímulo nocicéptico Como uma bola de neve na pitoresca expres são de Brose e Spiegel 1994 No dizer de Mindus 1987 as conexões entre o sistema límbico e os lobos frontais explicam o proces so a dor causaria um nível aumentado de ansiedade e esta leva à estimulação autonômica à maior tensão muscular e ao aumento da dor estabelecendose des sa forma um círculo vicioso É assim que na dor aguda os fenômenos somá ticos da ansiedade estão presentes quase de forma completa em particular os que dependem da hipera tividade autonômica tremor palpitações sudorese malestar précordial boca seca polaciúria e urgên cia miccional taquicardia taquipneia elevação da pressão arterial etc Estaria além do propósito desta revisão uma análise dos diferentes meios terapêuticos usados no tratamento da dor aguda No Quadro 173 procura mos esquematizar as várias modalidades terapêuticas usadas no tratamento das dores em geral O que acima foi mostrado serve apenas como referência Uma revisão é encontrada entre ou Psicossomaticaindd 238 Psicossomaticaindd 238 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 239 por nós é mais frequentemente usado o clonazepan sublingual Uma técnica não farmacológica de aliviar a an siedade é chamada de tranquilização divulgada por Sapira 1972 e ainda que pareça ser demorada pode ser executada em poucos minutos e não exclui outras medicações Quadro 174 DOR CRÔNICA Em termos simples crônica é a dor que dura de quatro a seis meses Mas de fato essa denominação dor crônica abrange muito mais que um sintoma prolongado Expressa uma situação comum em me dicina bastante complexa em termos fisiopatológi cos diagnósticos e especialmente terapêuticos que amiúde põe em cheque o conhecimento e a paciência do médico Não poucas vezes os enfermos com dor crônica são despachados de forma mais ou menos sumária por seus clínicos cansados com as queixas constantes de pessoas que nunca melhoram sejam quais forem os recursos utilizados Não poucos desses enfermos foram submetidos à cirurgias desnecessárias e sua peregrinação de con sultório em consultório constitui uma característica universal Com o passar do tempo a dor tornase o centro da vida do indivíduo e de sua família e passa ela mesma a constituirse como doença É incalculável o montante de tempo e de recur sos gastos com os pacientes de dor crônica DC Nos Estados Unidos a principal causa da incapacidade é Medidas Específicas Tratamento etiológico médico ou cirúrgico hérnia discal ulcera péptica litíase angina Medidas Inespecíficas a Farmacológicas Dores somáticas antiinflamatórios não esteroides paracetamol e associação paracetamolcodeína relaxantes musculares antidepressivos Dores viscerais opioides ou similares anti colinérgicos Dores neuropáticas antidepressivos anti convulsivantes gababentina carbamazepina b Não Farmacológicas Cirúrgicas cirurgia da dor Não cirúrgicas acupuntura estimulação elétrica transcutânea fisioterapia em geral psicoterapia estratégias cognitivocomporta mentais medicamentos QUADRO 173 Tratamento da dor Primeiro Estágio Obter uma detalhada descrição do sintoma Segundo Estágio Evidenciar o significado afetivo do sintoma Terceiro Estágio Examinar o paciente Quarto Estágio Fazer um diagnóstico Quinto Estágio Explicar ao paciente a fisiopatologia do sinto ma Sexto Estágio Tranquilização como resultado dos passos ante riores QUADRO 174 Técnica da tranquilização tras no Current Medical Diagnosis Treatment 20067179 É importante ressaltar a necessidade de se planejar a terapêutica em função da causa da dor e quando isso não for possível o medicamento deve ser escolhido conforme a origem provável do estímulo doloroso Assim seria inadequado usar o AAS para dores viscerais ou codeína para uma dor neuropática etc O uso indiscriminado de produtos comerciais compostos de vários fármacos deve ser condenado Por outra parte para o manejo de alguns tipos de dor aguda o uso de bloqueios nervosos temporá rios ou mais modernamente o de morfina epidural veio substituir em muitos casos e com grandes van tagens o útil mas muitas vezes limitado emprego de analgésicos injetáveis Mais pertinente ao nosso assunto é o manejo da ansiedade que acompanha a dor aguda e que pode por si ser causa de morbidade secundária Uma pri meira modalidade de manejo é se assim se pode chamálo a técnica de informação antecipada Há um relato clássico mostrando que quando se aplica va aos pacientes em préoperatório para cirurgia de vias biliares o que poderiam esperar em termos de dor e malestar durante e após a cirurgia havia uma ponderável redução de números em dias de hospita lização e se conseguia diminuir em 50 as doses de analgésicos utilizados Mindus 1987 O manejo da ansiedade pode também ser feito pelo uso de diazepínicos seja pelo diazepan ou como Psicossomaticaindd 239 Psicossomaticaindd 239 05012010 121211 05012010 121211 240 Mello Filho Burd e cols dor lombar prolongada e a mais comum razão para o absenteísmo ao trabalho Thompson 1998 Confor me Singh 2005 35 dos americanos têm alguma manifestação de dor crônica e calculase que os custos do tratamento médico e dos dias de trabalho perdidos montam cerca de 70 bilhões de dólares por ano No Brasil alguns levantamentos mostram que 48 das consultas num ambulatório ocorrem devi dos à dor Artrose foi o principal diagnóstico e dor lombar foi a mais prevalente Leite e Gomes 2006 Nosso objetivo neste trabalho é o de abordar os principais aspectos da síndrome de dor crônica ressaltando na medida do possível seu manejo diag nóstico e terapêutico Não custa enfatizar que a dor crônica como qualquer situação médica é uma abs tração não há doenças mas doentes Tudo o que se disser sobre DC referese implici tamente ao paciente com dor crônica Parece neces sário de início classificar as dores crônicas levando em conta presença ou ausência de lesão tecidual ou pregressa Sabemos que tal atitude é um tanto arbi trária mas como diz Magni 1987 a dicotomia é permitida quando tratamos de fatores causais Den tro dessa linha de pensamento dividimos as dores em orgânicas e emocionais Quadro 175 Nas dores crônicas nociceptivas há claramente um estímulo doloroso periférico originado em vísce ras em tecidos somáticos As dores neuropáticas re sultam de lesão em algum nível do sistema nervoso central ou periférico Nas dores emocionais não se reconhece a existência de estímulos neuropáticos e ou nociceptivos atuais e pregressos ainda que essa afirmação possa não ser válida para o chamado com portamento de dor ver adiante A classificação é um tanto formal pois existem algumas síndromes dolorosas que podem depender seja de fatores orgânicos seja de causas emocionais é o caso da síndrome de dor pélvica em mulheres Walker 1988 Outras há em que a dor começa como orgâni ca a lesão ou a doença curam mas a dor continua Podemos dizer que nesse caso à medida que passa o tempo mais intervêm os fatores emocionais esta belecendose uma mistura e consequências somáti cas e emocionais permitindo que se diga com toda a propriedade que a dor crônica é a verdadeira dor psicossomática Dores crônicas orgânicas Como já se viu podem ser de dois tipos noci ceptivos e neuropáticos Nas dores nociceptivas há lesão tecidual e estímulos nocivos periféricos somá ticos ou viscerais São dores constantes como regra de caráter dolente bem localizadas no tipo somático mas com localização menos definida e amiúde refe ridas a zonas cutâneas na dor originada em vísceras Payne 1987 Exemplos de dores somáticas são as das metástases ósseas das espondilopatias das artri tes Dores viscerais mais comuns são as que ocorrem em diferentes tipos de neoplasias pâncreas fígado ou em situações benignas como o cólon irritável Num le vantamento feito por correspondência realizado na região oeste do estado de Washington detectouse num período de seis meses a seguinte prevalência na localização das dores lombar cabeça abdominal to rácica e da articulação têmporomandibular Leite e Gomes 2006 As dores neuropáticas por desaferentação são atípicas e muito desagradáveis em queimadura dormência em carne viva Geralmente espontâ neas podem em alguns doentes ser desencadeadas por estímulos não nocivos alodínia ou manifestase como uma resposta anormalmente intensa a estímu los menores hiperpatia Por vezes à dor de fundo associamse sensações paroxísticas de choque ou disparo que não caem dentro de uma região anatô mica definida Harvey 1987 Payne 1987 Podem estar associadas com anestesia e ocasio nalmente com as agora chamadas síndromes com plexas de dor regional tipo I e II que substituem os antigos termos distrofia simpático reflexa CRPS I e causalgia CRPS II a diferença entre os tipos está em que o CRPS I não há lesão nervosa demons trável o contrário do tipo II Cecil 2004 Dores neuropáticas são as observadas nas plexo patias braquiais do câncer de mama e induzidas por lesão cirúrgica metastática ou por radioterapia do plexo braquial Também nas lesões desmielinizantes da medula espinhal associadas amiúde com escle rose múltipla dor do membro fantasma etc É de ressaltar pela frequência a nevralgia pós herpética cuja prevalência nos Estados Unidos é de 200000 casosano Acomete como regra pacientes idosos É definida como a dor que persiste no míni mo três meses após a cicatrização das lesões agudas É dito Rowbotham 2004 que ainda que a reativa ção viral afete patologicamente o gânglio de uma raiz Orgânicas Nociceptivas e Neoplásicas ou neuropáticas Não Neoplásicas Psicofisiológicas Emocionais QUADRO 175 Classificação das dores crônicas Psicossomaticaindd 240 Psicossomaticaindd 240 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 241 dorsal única a área de dor e alodínia ao toque suave pode cobrir mais de 1000 cm2 de pele É provável que nessa como em outras dores por desaferentação haja participação do chamado meca nismo de sensibilização central Tratamento do paciente com dor orgânica crônica O médico que trata pacientes com dor crônica DC deveria responder preliminarmente às seguin tes perguntas antes de prescrever drogas qual o tipo de dor somática como nas artroses Visceral como cólon espasmódico Neuropática como na nevralgia pósherpética Passaria logo a verificar se há indícios de enfer midade dolorosa definida como artrite reumatoide ombro doloroso ou artrose cervical ou de quadril Buscaria depois verificar se existem fatores emocionais sociais especialmente ocupacionais que estejam influindo sobre a dor Assim não caberia prescrever analgésicos para alguém que passe horas digitando mas sim o aconselhamento ao repouso pe riódico e alongamentos adequados Não se pense que isso demandaria tempo exces sivo pois uma história clínica orientada e um exame físico adequado seriam suficientes para obter as res postas pretendidas e o planejamento inicial Sob o ponto de vista emocional é importante obter dados que permitam avaliar se há depressão transtorno de ansiedade abuso ou dependência de drogas eou problemas familiares conjugais ou sexuais Singh 2005 Se há necessidade de se prescrever medicamen tos desde o início parece estabelecido que os antiin flamatórios não esteroides são a primeira medicação ao menos para as dores músculoesqueléticas Entretanto no comum dos casos sendo dor crô nica não parece necessário o uso imediato de drogas até que se analise o problema no seu todo e se possa então tomar uma atitude mais completa Isso tam bém para as dores viscerais em que o medicamento apropriado seria um opioide morfina oxicodona co deína fentanyl etc Logo veremos que todo este último grupo de fármacos tem sua indicação maior no paciente com dor crônica neoplásica Nas dores crônicas neuropáticas as drogas de escolha têm uma conexão direta com seu mecanis mo fisiopatológico Os fármacos comumente usados pertencem a dois grupos antidepressivos e anticon vulsivante Os anticonvulsivantes como a carbamazepina oxcarbazepina gabapentina clonazepan etc são usados para as dores do tipo paroxístico enquanto os antidepressivos têm sua maior indicação nas dores urentes em meia ou luva O tramadol se tem mos trado útil nas dores neuropáticas Digase de passagem que os antidepressivos tricíclicos mas também a fluoxetina e similares in cluindo a venlafaxina mercê de sua ação sobre o sistema descendente modulador da nocicepção têm um papel assegurado em diferentes tipos de dor seja ela somática como na artrite reumatoide ou visceral como em alguns tipos de neoplasias entrando neste último caso como coadjuvante dos opioides Há um relato de uso isolado de diferentes an tidepressivos no tratamento da dor lombar crônica Salerno 2002 Foi feita uma metanálise abrangen do 504 pacientes Houve um efeito pequeno mas sig nificativo na dor e um efeito menos nítido no referen te à melhora funcional Antidepressivos em geral são eficazes no con trole de cefaleias crônicas enxaquecosas ou não Além disso a trazodona é usada como droga profilática na cefaleia da infância Sadock e Sadock 2002 Mas nem só com medicamentos tratamse os enfermos com dor crônica Cada paciente deve ser analisado como um todo e a terapêutica manejada em função deste todo Medidas não farmacológicas são muito úteis No quadro abaixo achamse algumas delas Quadro 177 Incluase o tratamento dos fatores emocionais Aguiar e Caleffi 2003 O efeito analgésico dos antidepressivos diferen temente de sua ação nos transtornos afetivos inicia se dentro de 24 a 48 horas A ideia que fica de diferentes trabalhos é que a dor crônica deveria ser manejada por uma equipe multidisciplinar Isso não parece possível dado o nú mero grande de sofredores de DC e as poucas equipes à disposição dos mesmos Cabe bem aqui o dito evangélico muitos são os chamados poucos os escolhidos O que realmente nos parece é que todo clíni co deveria saber conduzir o tratamento do paciente crônico ao menos em seu início Para isso o ensino da dor em geral deveria receber especial ênfase nos currículos dos cursos de medicina DOR NO PACIENTE COM CÂNCER A dor ocorre em um 13 dos pacientes com cân cer por ocasião do diagnóstico e até 75 dos pacien tes que morrem de câncer experimentam dor Robow e Pontilat 2006 e na maioria deles as dores são múl tiplas Twycross 1984 Num levantamento feito em pacientes com neo plasia avançada constatouse que as três situações Psicossomaticaindd 241 Psicossomaticaindd 241 05012010 121212 05012010 121212 242 Mello Filho Burd e cols que eles mais temiam na evolução e no final de sua doença eram o abandono a dispneia e a dor Cassen 1977 Esses achados justificam que se desenvolva um pouco mais o tratamento da dor no câncer Existem dois princípios fundamentais que de vem ser contemplados na terapêutica desses enfer mos 1 Considerar a dor total 2 Definir tão exatamente o quanto possível o meca nismo determinante da dor O conceito de dor total tem sido desenvolvido por Sylvia Lack 1984 e corresponde ao conjunto de fatores emocionais ambientais e sociais que acres centados ao componente nociceptivo tendem a in crementar e manter a dor a depressão com seus dife rentes componentes a ansiedade originada de várias fontes e a raiva por diferentes motivos De que adian taria elevar o limiar da dor com drogas se o paciente está ansioso pelo seu futuro pelas perdas todas que lhe ocorreram em virtude da doença pelo abandono dos familiares ou amigos pela aparente ineficiência dos médicos e assim por diante Só a consideração global desses diferentes as pectos e sua modificação é que poderiam trazer o controle da dor Dentro desse mesmo contexto está a síndrome da noite vazia Lobato 1982 em que os pacien tes referem uma exacerbação noturna das dores isso quando as visitas se retiram escasseiam as enfermei ras dormem os outros pacientes o movimento cessa as luzes se apagam e o paciente fica sozinho com seu medo e sua dor Não adianta neste momento aumen tar a dose de analgésicos O que o enfermo precisa é de alguém a seu lado tranquilizandoo Quanto à causa da dor no câncer pode haver dor nociceptiva metástase ósseas ou hepáticas ou dor neuropática plexopatia braquial ou lombar e cada uma delas pode depender da própria doença de enfermidades concomitantes ou associadas ou da própria terapêutica neuropatia póscirurgia ou pós quimioterapia etc É necessário então que ao se planejar a analgesia do paciente se considerem esses pontos Na abordagem da dor crônica cancerosa é im prescindível que o esquema analgésico proposto seja administrado após o ajuste inicial da dose em horários regulares ou seja em horários fixos pelo relógio conforme a duração de ação de cada droga ao invés do regime de demanda se necessário com o propó sito de manutenção de um nível plasmático constante que impeça a recorrência da dor e a sensibilização central com a consequente ampliação dos estímulos dolorosos Pavani 2000 Tal orientação preencheria as sete metas sugeridas por Cassileth 1982 ao tem po que suprimindo o esquema QN quando necessá rio e SN se necessário retiraria o caráter operante da dor ou seja o reforço positivo do remédio Em 1990 a OMS desenvolveu e divulgou um es quema analgésico conhecido como escada analgési ca da OMS em que a abordagem gradual da terapia analgésica é baseada em uma avaliação da intensida de da dor do enfermo Ratkin e Swarm 2004 Esse esquema já vinha sendo usado em forma incipiente antes de 1990 Twycross 1984 Um dado importante é que a intensidade da dor bem como a resposta terapêutica pode ser avaliada entre outras maneiras por uma escala numérica graduada de zero a dez onde zero significa sem dor e o dez indica a pior dor imaginável O doente indica a intensidade de sua dor ao longo desta linha Pava ni Essa avaliação permitiria considerar a dor como o quinto sinal vital ao lado do pulso PA frequên cia respiratória e temperatura e os prováveis ajustes no regime terapêutico Ratkin e Swarm 2004 No esquema da OMS a dor menos grave é trata da com antiinflamatórios não esteroides Aines A dor moderadamente intensa poderia ser con trolada com a adição de opioides fracos codeína en quanto a dor mais grave ou não controlada é tratada com a adição de opioides fortes morfina metadona oxicodona Em todos os níveis se podem usar drogas adjuvantes geralmente antidepressivos tricíclicos ou do grupo ISRSs inclusive a venlafaxina A meperidi na substituto mais pobre da morfina foi um dia usa da via oral mas as irregularidades de sua absorção e o potencial tóxico de seus metabólitos a excluíram de todo da terapia antineoplásica O fentanil medicação opioide apresenta a especial característica de ser ab sorvido via transdérmica com um adesivo e sua ação pode durar até 72 horas ibidem sua maior indica ção é a impossibilidade de se usar via oral Ambiente terapêutico Comunicação Hipnose Técnica de relaxamento Meditação Biofeedback Calor e frio Massoterapia Pressão Estimulação elétrica transcutânea Acupuntura Manejo psicológico QUADRO 176 Procedimentos não farmacológicos para alívio da dor Psicossomaticaindd 242 Psicossomaticaindd 242 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 243 A morfina é usada via oral na dose inicial de 5 a 10mg a cada 4 horas dependendo do estado físico do enfermo e de sua idade O aumento das doses para os níveis de analgesia é feito progressivamente em função da resposta terapêutica Não há limite para a dose de morfina aumentarseá até o nível da neces sidade Uma ampla e completa exposição sobre o uso de morfina oral na analgesia do paciente com câncer pode ser encontrada nos trabalhos de Sylvia Lack e Twycross 1984 e em nosso meio no trabalho de Newton Barros 1994 e mais recentemente no de Neusa Pavani 2000 já citado Todos os autores ressaltam a importância de prevenir ou controlar os efeitos colaterais dos opioi des especialmente náuseas vômitos e constipação prescrevendose concomitantemente antieméticos e laxantes Na dor neuropática que como já foi visto pode ocorrer no câncer por motivos vários as drogas de escolha são antidepressivos e anticonvulsivantes O tramadol também tem algum efeito nas dores neu ropáticas Quando a dor não responde as medidas usuais apelamse para outras modalidades de tratamento apontados também nos trabalhos de Pavani ibidem e Ratkin e Swarm ibidem DORES PSICOGÊNICAS Quando alguém se apresenta ao médico quei xandose de dor há em princípio 50 de probabi lidade de que essa dor seja psicogênica Janowsky 1976 isto é um tipo de dor que não depende de uma lesão tecidual atual ou pregressa O conceito de dor psicogênica não é universal mente aceito e Wayne Hall 1982 o analisa num lúcido trabalho concluindo que os critérios e a meto dologia até então usados não eram tão convincentes como parecem à primeira vista e que não se pode afir mar com segurança que exista tal dor psicogênica Na realidade o assunto da dor emocional vem modificandose na medida em que pesquisas nas áreas da neurofisiologia e neurofarmacologia vão es maecendo as diferenças entre o lesional o funcional e o emocional puro Segundo cremos não é outro o pensamento de Sadock e Sadock quando tratam dos transtornos so matoformes 2006 e dizem alterações mínimas ou até então não detectáveis na neuroquímica neurofi siologia e neuroimunologia podem ser o resultado de mecanismos mentais ou cerebrais que resultem em doença Em que pesem os argumentos de Hall e a teori zação de Sadock e Sadock até o presente momento ainda que com restrições o conceito e a caracteri zação clínica das dores psicogênicas tal como acima formulado continua sendo usado Ainda mais se aceitarmos que alguns tipos de dor crônica estão ligados a situações de estresse como o são as dores psicofisiológicas estudadas por Sternbach 1990 ou são mantidas por fatores emo cionais como o comportamento de dor Fordyce 1990 mais se amplia o campo das dores psicogêni cas Tal fato justifica o plural entre aspas no subtítulo deste capítulo Antes de tentarmos classificar as dores psicogê nicas parecenos útil introduzir dois conceitos o de paciente propenso à dor e o de alexitimia Engel 1959 baseado numa longa experiência clínica com dor descreveu o que ele chamava de pain prone patients Nesses enfermos os fatores psíquicos desempenham um papel primário na gênese da dor quer haja ou não lesões periféricas Nos pain prone patients dizia Engel a dor evoluiu de um primitivo sistema de proteção para o de um mecanismo defen sivo que teria a finalidade de evitar ou afastar sen timentos ou experiências mais desagradáveis e que até poderia chegar a ponto de se transformar numa forma de obter gratificações não obstante o alto pre ço pago Nos indivíduos propensos à dor era possível in dividualizar alguns traços importantes 1 proeminência de culpa 2 história de sofrimentos frequentes seguidos de reveses e de intolerância ao sucesso 3 intensos impulsos agressivos não satisfeitos 4 aparecimento de dor diante de uma perda real ou ameaçada Com a expressão pain prone patients não pre tendia Engel designar um quadro psiquiátrico mas tão somente certas características da personalidade que dentro de um espectro de etiologias diferentes teria na dor seu traço mais marcante O segundo conceito é o de alexitimia introdu zido por Sifneos Sriran 1987 para caracterizar um distúrbio afetivo e cognitivo em que há uma pobreza da vida de fantasia ao lado da incapacidade de iden tificar e descrever sentimentos Sriran e colaborado res num estudo bem conduzido verificaram como já haviam feito em outros a maior prevalência de alexi timia em pacientes com dor crônica comparados com um grupo testemunha Aguiar e Caleffi a partir de 1992 trabalhando no hospital de Clínicas de Porto Alegre encontraram uma alta prevalência de alexitimia em mais de 200 portadores de cefaleia tensional migrânea ou mista 2004 Psicossomaticaindd 243 Psicossomaticaindd 243 05012010 121212 05012010 121212 244 Mello Filho Burd e cols Atualmente pouco se fala em pacientes propen sos à dor e menos ainda no pain prone disorder de Blummer Heilbron 1982 O outro conceito de significado indefinido re lacionado às dores psicogênicas é o de somatização Como dizem Sandra Fortes e colaboradores 2002 o termo somatização é usado por clínicos e pesquisa dores para uma variedade de processos e fenômenos diferindo seu significado conforme o autor e a escola de pensamento Ainda mais como o termo somatização po pularizouse e alguns pacientes sentemse rejeitados quando a expressão é usada para explicarlhes um quadro clínico ou sintoma Salmon 1999 achamos que poderia ser proscrito em seu significado primiti vo Butler e colaboradores 2004 escreveram uma lúcida análise do assunto Isso nos traz de volta para a classificação das dores psicogênicas Não há consenso entre os au tores quanto a forma de classificálas De fato não sabemos se isso é tão importante Na primeira edição deste texto 1992 foi se guida a orientação de Hackett e tínhamos depres são transtornos somatoformes psicoses neurose de compensação e simulação Arbitrariamente acres centamos as dores psicofisiológicas e o comporta mento de dor DOR CRÔNICA E DEPRESSÃO A relação entre depressão e dor crônica é aceita de maneira geral mas há considerável controvérsia a respeito da natureza e extensão dessa relação Em termos de especulação poderiam ocorrer as seguintes possibilidades 1 os pacientes com DC de qualquer etiologia vão apresentando com o tempo traços psíquicos que permitem o diagnóstico de depressão 2 uma das manifestações de transtorno depressivo seria a dor crônica 3 depressão e ansiedade aparecem como transtor nos comórbidos da dor crônica quiçá com uma base fisiopatológica comum e qualquer fosse a causa da última O termo comorbidade foi introduzido por Feins tein em 1970 e indica a existência de qualquer anor malidade doença aflição incômodo num paciente que apresente uma doença índice Merikangas e Ste vens 1997 Em relação ao primeiro tópico dor crônica depressão houve uma ampla revisão de Zanonato 1987 entre nós e Magni 1987 fora do Brasil Este último autor analisando seus casos junto com os da literatura por ele revisada chegou às seguintes conclusões 1 Uma alta percentagem de pacientes com DC vis tos em clínicas de dor ou em hospitais apresenta depressão clinicamente evidente 2 A análise dos familiares de portadores de DC e depressão permitiu verificar uma alta prevalên cia de antecedentes familiares com transtorno de humor ou transtornos do espectro depressivo de pressão alcoolismo sociopatia A fração dos pacientes com transtorno do hu mor e dor crônica é variável conforme o autor Dennis Thorton 1998 assim se expressa sintomas depres sivos significantes estão presentes em 30 a 87 dos pacientes com DC e em 8 a 50 desses pacientes acharamse indicadores de um episódio depressivo maior Uma boa análise feita por Marcante e colabo radores 2005 num grupo de setenta enfermos com migrânea crônica estudados através do Inventário de Depressão de Beck BDI mostrou depressão mode rada ou grave em 587 dos pacientes mas algum grau de transtorno afetivo foi achado em até 858 tornandose mais grave quando coexistia com fibro mialgia e fadiga crônica Como já foi citado Aguiar e Caleffi 2004 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre estudaram in divíduos com migrânea cefaleia tensional ou mista sob o ponto de vista emocional A impressão clínica dos autores é que nesse grupo predominavam sinto mas de ansiedade e depressão Já anteriormente Hackett 1985 tinha encon trado uma alta prevalência de transtornos de humor em enfermos com doença crônica Dizia ele que nega ção de afeto particularmente raiva vem a ser um pro blema significativo em 44 dos portadores de DC As localizações da dor são variáveis mas tal como nos estados de ansiedade cefaleia dor facial dor lombar e abdominal são os tipos mais comuns ibidem A segunda possibilidade acima apontada de pressão dor tem como maior dificuldade a de es tabelecer o diagnóstico do transtorno depressivo nos pacientes com DC que por certo deve ser do tipo psicogênica isto é sem lesão tecidual Surge então em função dessa dificuldade a ex pressão depressão mascarada para designar aque les estados em que as alterações do humor são nega das e a manifestação do problema emocional é a dor Tal depressão mascarada equivalente depressivo ou pitorescamente smiling depression ocorreria Psicossomaticaindd 244 Psicossomaticaindd 244 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 245 mais comumente nos velhos Kanner 1998 Geraldo Caldeira 2001 fala nos equivalentes depressivos e cita LopezIbor Alinõ 1972 para o qual muitos pacientes não apresentam sintomatologia depressiva atípica mas usam o seu corpo para expressála sob várias queixas ou sintomas sendo a dor a mais co mum Fala Caldeira que os equivalentes depressivos não são mais aceitos pela nosologia psiquiátrica mo derna Segundo Harkins a dor crônica no velho é amiú de acompanhada de perda da autoestima e uma reduzida expectativa de recuperála resultando em depressão Esta é então segundo o referido autor uma reação a dor crônica e às condições de vida que ela cria e o reverso pode também acontecer Continua pois indefinida a resposta à segunda possibilidade levantada O terceiro ponto síndrome dolorosa crônica ansiedade e depressão como condições comórbidas foi bem estudado por Merikangas e Stevens ibidem As autoras numa metanálise da literatura pertinente encontraram uma alta associação entre migrânea de pressão e ansiedade quer em estudos clínicos quer em comunitários Prosseguiram na pesquisa fazendo então estu dos prospectivos longitudinais e familiares buscando a prevalência familiar de entidades comórbidas Seus achados altamente sugestivos apontam para uma sequência um tanto inesperada Os pacien tes estudados apresentavam ansiedade na infância ou adolescência logo seguiase a migrânea a qual mais tarde juntavase à depressão formando o que se poderia chamar uma tríade comórbida final Cre mos que seu original trabalho poderia ser um modelo para pesquisas afins Finalmente na associação entre depressão e dor crônica poderseia comentar sobre o efeito comum dos antidepressivos em ambos os transtornos quer ou não coexistissem dor e depressão Tais achados levantaram a hipótese da similari dade entre os sistemas neurotransmissores envolvi dos na depressão e na dor crônica Nesta última os antidepressivos são úteis mesmo sem o transtorno do humor de forma que outras síndromes dolorosas crônicas além da migrânea como cólon irritável e a fibromialgia poderiam ser uma indicação para o uso dos mesmos fármacos Os trabalhos citados não dão uma resposta das relações entre DC e depressão a não ser talvez que a depressão é dolorosa nos velhos E para quem não o é Deixa também uma sugestão drogas antide pressivas são úteis no tratamento de diferentes tipos de dor crônica haja ou não depressão concomitante TRANSTORNOS SOMATOFORMES As características essenciais deste grupo residem na existência de sintomas físicos que sugerem um dis túrbio somático donde o nome somatoforme para o qual inexistem qualquer anomalia demonstrável ou qualquer mecanismo fisiopatológico conhecido Há por outra parte argumentos demonstrativos ou forte presunção de que os sintomas estão ligados à confli tos emocionais O termo somatização tão ligado aos trans tornos acima não tem um significado específico Se gundo ele sofrimento e conflito são convertidos em queixas somáticas numa tentativa inconsciente de reduzir a tensão intrapsíquica Thorton 1998 ou como dizem Fortes e colaboradores 2002 somati zação referese à apresentação de queixas somáticas decorrentes de causas psicológicas mas atribuídas pelo paciente à uma causa orgânica O fato é que este termo que implicaria num salto do psíquico para o somático é usado frouxamente inclusive entrando para a linguagem popular perdendo o significado na medida em que maiores conhecimentos neurofisioló gicos vão explicando a gênese de vários transtornos ditos somatoformes No DSMIVR se registram cinco 05 transtor nos somatoformes 1 De somatização 2 De conversão 3 Dismórfico 4 Doloroso 5 Hiponcondria E mais dois outros transtorno somatoforme in diferenciado e transtorno somatoforme não especifi cado Neste trabalho sobre O problema da dor dare mos maior ênfase ao transtorno somatoforme doloro so permanente Fortes et al 2002 e consideraremos de forma sumária os demais transtornos TRANSTORNOS DE SOMATIZAÇÃO Caracterização os sintomas iniciam antes dos 30 anos é mais comum em mulheres e durante o cur so do transtorno os enfermos devem ter apresenta do ao menos quatro sintomas de dor dois sintomas gastrointestinais um sintoma sexual e um sintoma pseudoneurológico nenhum dos quais é explicado por exames físicos ou subsidiários Esses enfermos que caem no grupo dos pacien tesproblema ou multiqueixosos Lobato 1981 pelas Psicossomaticaindd 245 Psicossomaticaindd 245 05012010 121212 05012010 121212 246 Mello Filho Burd e cols inúmeras e variáveis queixas físicas apresentam por vezes dificuldades no diagnóstico diferencial com doenças orgânicas multissistêmicas como lupus eri tematoso hipertireoidismo esclerose múltipla por firia etc Nesse caso o acompanhante do enfermo constitui a forma mais adequada de diagnóstico Caso clínico TGB 65 anos viúva tratase desde 1974 e nesse pe ríodo em 66 visitas ambulatoriais apresentou 49 sintomas dolorosos a maioria musculoesqueléticos sintomas abdo minais dor proctalgia fugax meteorismo disúria peso no hipogástrio tremor fugaz na mão esquerda ptose ou retra ção palpebral ambas de rápida duração Nunca houve uma enfermidade definitiva Foi submeti da à múltiplos exames subsidiários e pequenas cirurgias or topédicas Nesse período ocorreram a aposentadoria e três episódios de luto mãe marido e filho único adolescente Submeteuse à psicoterapia de forma irregular mas nunca recebeu antidepressivos A melhor possibilidade diagnóstica seria a de transtorno de somatização e comorbidade com depressão e ansiedade HIPOCONDRIA Consiste na crença real pelo paciente de uma doença séria em seu organismo a despeito da nor malidade do exame físico e da tranquilização que lhe dá o médico Sensações físicas normais tais como o suor e os movimentos intestinais são erradamente interpretados e pequenos incômodos como tosse ou dores nas costas podem ser exagerados a ponto do problema tornarse incapacitante Sculy 1985 A prevalência de hipocondria num período de seis me ses numa população de clínica geral é de 4 a 6 mas pode ser tão alta como 15 Sadock e Sadock É mais comum em pessoas com mais de 60 anos São comuns a ansiedade o humor depressivo e traços de personalidade compulsiva Limitase assim à vida social e ao desempenho profissional do enfermo Na hipocondria como no transtorno de dor psicogênica o indivíduo habitualmente recusase a admitir uma causa emocional para seus sintomas Queixas de dor são comuns aparecendo em 75 dos hipocondríacos cefaleia dor facial dor to rácica e dores vagas nos membros nessa ordem são as mais encontradas Sadock e Sadock dão uma lista de enfermidades que caberiam no diagnóstico dife rencial da hipocondria AIDS endocrinopatias mias tenia gravis esclerose múltipla doenças degenerati vas do sistema nervoso lupus eritematoso sistêmico e neoplasias ocultas Transtorno de conversão O termo conversão foi introduzido por Freud que baseado no trabalho com Anna O levantou a possibilidade de que os sintomas do transtorno de conversão refletiriam conflitos inconscientes Sadock e Sadock 2005 Pelo DSMIVTR caracterizase o transtorno de conversão pela presença de um ou mais de um sinto ma de natureza neurológica por exemplo cegueira paralisia parestesia que não podem ser explicados por doença médica ou neurológica reconhecível Adi cionalmente requerse a associação de fatores psico lógicos surgidos com o início ou com a exacerbação dos sintomas O diagnóstico de conversão não é feito quando dor é a queixa exclusiva ou preponderante Hackett 1985 É provavelmente o mais comum transtorno somatoforme e predomina em mulheres Transtorno depressivo transtorno de ansiedade e o transtorno de somatização são amiúde associados ao transtorno de conversão Transtorno de dor psicogênica Neste transtorno predomina a dor em um ou mais pontos do organismo e não é plenamente expli cado por uma condição médica não psiquiátrica ou neurológica No caso de haver problema orgânico a intensidade do sintoma ultrapassa de longe o que se pode inferir dos resultados do exame físico Há óbvia relação com fatores psicológicos e essa associação pode ser evidenciada pela relação temporal entre um estímulo ambiental que está apa rentemente ligado a um conflito uma necessidade psíquica e o início ou exacerbação da dor Não constitui um grupo uniforme mas uma co leção heterogênea de indivíduos que podem ter dor lombar cefaleia dor facial atípica dor pélvica crôni ca e quaisquer outras dores É duas vezes mais frequentes em mulheres que em homens e o pico de incidência é na 4a ou 5a déca da Sua prevalência não está determinada acredita se que seja alta Sob o ponto de vista etiológico aqui como nos outros transtornos somatoformes e nas enfermida des em geral a causa sempre é multifatorial Nela intervêm fatores psicodinâmicos compor tamentais interpessoais como manipulação e ganho de vantagens nas relações interpessoais e importan tes fatores biológicos em nível de sistema nervoso central O fato de familiares de 1o grau dos pacientes com transtorno de dor apresentarem um risco au mentado de problemas de dor semelhantes sugere Psicossomaticaindd 246 Psicossomaticaindd 246 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 247 herança genética e mecanismos comportamentais estão possivelmente envolvidos nos transtornos Sa dock e Sadock Caso clínico AT 26 anos sexo masculino solteiro Veio de uma cidade do interior do RGS queixandose de dor no testí culo direito há cerca de um ano Mais ou menos na mesma época começou um relacionamento amoroso totalmente frustrante por surgirlhe ejaculação precoce O exame clínico nada revelou senão discreta dor à palpação do testículo direito Solicitamos alguns exames e prescrevemos fluoxetina 20 mgdia mais pelo efeito retar datário sobre a ejaculação Um mês depois telefonounos de sua cidade pedindo nova receita feliz da vida Passaram a dor e o distúrbio da ejaculação Considerouse este caso até o momento como um transtorno de dor psicogênica Dentro dos fatores psicodinâmicos apontados no livro de Sadock e Sadock sobre o transtorno da dor está escrito o seguinte o significado simbólico de distúrbio somático pode também estar relacionado com expiação por pecado percebido reparação de culpa ou agressão suprimida mui tos enfermos tem dor intratável porque estão convencidos de que merecem sofrer Caso clínico AH 47 anos sexo masculino agricultor seis filhos Há dois anos tem dor ocasional nos testículos que surge com a mais leve batida Fala de diminuição de libido e dificuldades de ereção A esposa doente do ovário e portadora de in continência urinária não lhe desperta desejo Tentativas de relações sexuais fora de casa têm tido pouco sucesso A avaliação feita pelo urologista nada revelou próstata sem particularidades testículos normais Uma conversa após uma avaliação urológica revelou que ele fica nervoso quando tem relações sexuais fora do lar e talvez com mais dor Na realidade sentese culpado com a atividade desleal mas se passa uma semana sem sexo fica mal da cabeça Foramlhe prescritos dieta hipocalórica e exercícios e sugerida uma avaliação dos problemas da esposa e uma conversa formal com ela Não tivemos mais notícias desse pacidente Ambos os enfermos com idades diferentes e circuns tâncias existenciais dessemelhantes tinham nos testículos a expressão de seu transtorno doloroso DOR E PSICOSES Raramente a dor aparece como sintoma único ou de apresentação nas esquizofrenias Integra geralmen te um mosaico de sintomas e se caracteriza ainda que nem sempre por aspectos delirantes frequentemente bizarros na sua qualidade e localização Assim de 100 pacientes examinados por Mesr key ibiden com dor de duração maior que três meses 76 não tinham lesões físicas e só dois eram esquizofrênicos e nove tiveram o diagnóstico de de pressão endógena Chapman encontrou dor com sintoma de apre sentação da doença em dois de 40 enfermos esqui zofrênicos Há diferença na apresentação do sintoma entre os portadores usuais de dor crônica e os esqui zofrênicos ressaltandose nestes o desinteresse pelos analgésicos A esse respeito é importante saber que a esqui zofrenia está ligada a uma sensibilidade diminuída para a dor ainda que em dadas ocasiões uma pecu liar sequência ideativa possa gerar alguma alucinação somática dolorosa Marchand e colaboradores cita dos por Merskey notaram que doenças normalmente dolorosas como infarto de miocárdio úlcera péptica perfurada fratura do fêmur ficavam obscurecidas em enfermos com psicoses orgânicas ou esquizofrênicas pela ausência dos sintomas dolorosos ou retardo no aparecimento dos mesmos Digase de passagem que Hipócrates já havia registrado num de seus aforismos essa hiposensibilidade dos doentes mentais quem tendo uma afecção dolorosa em qualquer parte do corpo sente pouco ou não sente essa dor está com o espírito doente Por isso o médico que lida com psicóticos deve estar vigilante para a presença de sinais indiretos de dor como manqueira trejeitos posições antálgicas etc Comportamento de dor suas consequências Quando alguém sente dor nós tomamos conhe cimento do fato porque o indivíduo demonstra seu sofrimento por um comportamento queixase geme lamuriase executa determinados gestos ou assume determinadas posições que visam a melhora da dor Tal conduta que é normal serve para comunicar o que está passando e pedir auxílio A exibição desse comportamento na ausência de dor é anormal e cons titui o comportamento de dor crônica No dizer de Brena e Chapman 1981 tal ati tude expressa uma resposta condicionada ou apren dida em que o indivíduo não mais necessitando de um estímulo nociceptivo responde às circunstâncias sociais ou ambientais com as quais o respectivo estí mulo esteve associado com frequência Tudo se pas sa de forma semelhante às clássicas experiências de Pavlov em que uma salivação abundante constituía Psicossomaticaindd 247 Psicossomaticaindd 247 05012010 121212 05012010 121212 248 Mello Filho Burd e cols uma resposta condicionada pelo som de um sino Os autores citados usam a expressão de síndrome de dor aprendida learned pain syndrome para desig nar o referido quadro Como aconteceria isso A nós a explicação de Fordyce 1990 parece adequada Segundo esse autor há dois tipos de comportamento em face da dor respondente e operante O comportamento res pondente é automático e instantâneo como a crian ça que põe a mão na chapa quente e logo a tira O comportamento operante é aprendido e se mantém ou extinguese conforme as reações do meio enco rajamento ou punição O exemplo é de uma criança que cai nas pedras esfola o joelho sente dor e cho ra comportamento respondente Por chorar recebe o consolo e o carinho dos pais Alguns dias depois cai na grama não se machuca e mesmo sem sentir dor chora e de novo recebe a atenção dos pais Essa criança tem no choro um comportamento operante isto é que é acompanhado de consequências positi vas reforçado positivamente e passa a ocorrer sem estímulo doloroso inicial Os reforçadores podem ser diretos ou indiretos As respostas favoráveis do meio caracterizam os re forçadores como direitos o caso de dor os cuidados do cônjuge e repouso a medicação a atenção médi ca etc Os reforçadores indiretos levam a resultados idênticos mas expressamse como evitação de situa ções ou obrigações penosas Mulheres com cistite aprendem muitas vezes a usar seus sintomas como forma de evitar relações sexuais insatisfatórias ou in desejadas O comportamento operante ocorre porque a pessoa percebe uma pista que vai indicar que con sequências reforçadoras estão por chegar ou que um resultado aversivo antecipado pode ser evitado Um terceiro tipo de reforçador é constituído pelo chamado punição de comportamento sadio Nessas circunstâncias pode acontecer que o paciente com dor tome alguma atitude que melhore o sinto ma no exercício físico por exemplo exagera cansa se a dor piora e ele passa a evitar o exercício Outras vezes os familiares por excesso de zelo reprovam a atitude sadia e ele dela abstémse O comportamento de dor não ocorre como de cisão consciente por parte da pessoa que nele se en gaja Assim esses eventos não indicam simulação dor imaginada ou alguma manifestação de doença mental Um exemplo a prescrição de medicamentos como analgésicos relaxantes musculares ou tran quilizantes por períodos maiores usando como refe rência a vinda da dor tipo se necessário ou quando necessário Lobato 1977 o que pode estabelecer um padrão de condicionamento o que faz com que o comportamento persista além do necessário Segundo Chapman e Bonica 1983 o compor tamento de dor crônica pode ser um reflexo e um símbolo de sofrimento experimentado pelo doente em outras áreas da vida tal como a perda de entes amados situações existenciais difíceis desajuste pro fissional responsabilidades sociais pesadas discórdia conjugal etc Esses problemas e outros semelhantes se acrescidos de lesão no trabalho ou doença desen cadeariam o comportamento da dor Sandra Fortes 2002 refere algumas caracterís ticas do comportamento anormal da dor queixarse repetidamente e intensamente de dor provocando pena nos que o cercam assumir posturas e expressões faciais de dor aos mínimos esforços isentarse de toda e qualquer responsabilidade incluindo atividades domésticas alegando a dor como principal razão abusar de analgésicos dependência crescente de terceiros para ativida des que seriam possíveis apesar da doença isolamento social justificandose pela dor dramatização e ampliação da resposta dolorosa valorização e busca de ser cuidado por terceiros principalmente voltado à família regressiva excessiva Hackett 1985 aponta outros traços típicos que aparecem na primeira edição desse artigo e que po dem ser encontrados na tabela 453 do excelente ar tigo de Aguiar e Caleffi NEUROSE DE COMPENSAÇÃO O que acima foi dito sobre o comportamento de dor crônica aplicase à chamada neurose de compen sação cujo reforçador direto seria um ganho econô mico e o indireto que seria a evitação do trabalho e seu efeito sobre a dor No DSM III a neurose de compensação aparece no item fatores psicológicos afetando condições físi cas APA 1986 e designa indivíduos com dor crô nica relacionada ao trabalho mas o sofrimento apre sentado parece exagerado face à lesão discernível ou tem uma duração maior que a esperada O CID 10 apresenta conceito semelhante Thorton 1998 co menta a conotação negativa da NC por dois aspectos dor ausente ou menos incapacitante do que é alegado e o ganho secundário O perfil psicossocial dos pacientes atingidos é razoavelmente típico operários que trabalham dura mente a fim de prover a família do melhor cidadãos sólidos membros dos sindicatos patriotas religiosos Psicossomaticaindd 248 Psicossomaticaindd 248 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 249 homens de família enfim Acontece então o acidente do qual resulta uma lesão trivial ou grave mas que gera uma dor incapacitante que impede o indivíduo de sustentar a família de forma como vinha fazendo Ele passa a juntarse ao grupo de pessoas inválidas e como tal permanece apesar dos esforços médicos e cuidados de reabilitação Num dado momento esgotamse a tolerância da família e do seguro social Nesse ponto entra em cena um advogado ou procurador e conforme o vulto da compensação mais um segundo profissional Se gundo Hackett a neurose de compensação pode ser suspeitada em qualquer caso em que o paciente seja representado por mais de um advogado A dor nesses pacientes tem um significado sim bólico e expressa toda a soma de frustrações que o enfermo sofreu as horas de trabalho árduo as férias não gozadas os sacrifícios feitos Receber uma com pensação é o único prêmio para tanto sofrimento O tratamento desses casos é por isso notoria mente difícil e tornase impossível se o problema le gal não for resolvido A solução favorável desperta no paciente um estado de euforia invariavelmente seguido de depressão A investigação aprofundada desse afeto traz a uma longa história de insatisfação em vários aspectos da vida casamento profissão ou qualquer outra situação de maior importância Anti depressivos podem ajudar Uma abordagem cognitivocomportamental que auxilie o enfermo a identificar os pensamentos dis torcidos os sentimentos inadequados deles depen dentes e por fim os comportamentos resultantes que influem negativamente sobre a dor e a incapacidade seria extremamente útil na recuperação Pimenta 2001 SIMULAÇÃO É a única dor que quem dela se queixa de fato não a sente é dor fingida Talvez não para os poetas que fingem de forma diferente como fala Fernando Pessoa na primeira es trofe de sua autopsicografia O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente Se tem dito que nada se assemelha tanto à si mulação como a histeria e nada é tão parecido com a histeria quanto à simulação Bond 1984 A simulação pode incluir a produção de doença ou o exagero elaboração ou falso relato de sintomas A questão diagnóstica fundamental para a simulação é a de que a pessoa está intencionalmente simulan do doença para um propósito definitivo obter algum ganho monetário privilégios ou evitação de um de ver desagradável Como o médico não é um leitor de mentes a intenção consciente do simulador deve ser deduzida a partir de outros comportamentos e testa gem psicológicas Ford 2002 A simulação é pouco diagnosticada amiúde devido ao temor do médico de fazer acusações fal sas Entretanto a vigilância velada tem indicado que aproximadamente 20 dos pacientes das clínicas de dor descrevem enganosamente a extensão de suas in capacidades ibidem Como regra os simuladores são encontrados em hospitais públicos e raramente se submetem a procedimentos diagnósticos dolorosos ou invasivos diferindo neste ponto dos portadores de transtornos factícios Como acima foi dito o diagnóstico nem sempre é fácil Há porém alguns dados que ajudam a revelar a situação 1 A ausência de doença orgânica pelos exames e testes usuais 2 Um comportamento normal quando o indivíduo pensa que está sozinho mas é cuidadosamente observado pelos familiares médicos ou amigos Ou sendo filmado por uma seguradora esquiando nos fins de semana 3 A análise cuidadosa do passado prémórbido pode revelar eventos semelhantes de desonestidade ou de problemas familiares difíceis especialmente financeiros 4 Ainda que fora do trabalho o enfermo não aban dona os prazeres da vida e as ofertas de serviços são usualmente recusadas O MMPI pode auxiliar no diagnóstico Segun do Sadock e Sadock 2006 a simulação pode estar associada a um transtorno de personalidade antisso cial TRATAMENTO DA DOR PSICOGÊNICA O tratamento das dores psicogênicas esbarra num primeiro obstáculo que é a incapacidade do pa ciente aceitar que em sua queixa há participação de fatores emocionais Tal situação torna difícil o encaminhamento para o psiquiatra quando essa parece ser a atitude adequada e deteriora a relação médicopaciente pois o enfermo sentese rejeitado e desprezado pela sugestão do clínico Psicossomaticaindd 249 Psicossomaticaindd 249 05012010 121212 05012010 121212 250 Mello Filho Burd e cols A solicitação de novos exames subsidiários para postergar a solução do problema ou a prescrição de algum analgésico novo ou um tranquilizante seria má medicina Parece que o correto é aceitar que o paciente tem dor que esta existe para ele mesmo que não haja uma base orgânica para explicála Uma anamnese em que de forma imperceptível o clínico vá orientan do ao lado das queixas somáticas uma busca para os aspectos pessoais do enfermo seguidos de um exame físico completo seriam os passos iniciais adequados Como diz Engel 1969 o mínimo que se pode querer é uma entrevista que permita ao enfermo fa lar de si próprio de sua família e de seus relaciona mentos tanto quanto de seus sintomas não forçando uma separação entre o que é considerado orgânico e o que é visto como psicológico ou social o que resulta em algo imensamente produtivo no esclarecimento da dor Podese nessa altura dos acontecimentos tran quilizar o paciente quanto a inexistência de uma enfermidade incurável ou muito grave Tentarseia explicar ao paciente que nenhum sintoma ou doença depende de uma causa única é sempre multifatorial e tudo o que acontece na vida da pessoa refletirseá com certeza em seu organismo e em seus sintomas Neste ponto podese informar ao enfermo que existem equipes dedicadas ao tratamento global da dor e que se poderia indicálas A regra é que o pa ciente queira continuar com o médico que o ouviu examinouo e tranquilizouo Neste caso se o clínico sentese seguro para en carregarse do tratamento ao menos iniciálo combi na com o enfermo uma nova entrevista Mas antes de encerrar a consulta e dentro do que sabe da vida e hábitos do enfermo pode dar lhe algumas sugestões Entre essas um programa de exercícios caminhada especialmente que deve ser prescrita num receituário com frequência semanal duração e extensão Outra atitude a sugerir é a de técnicas de relaxamento com ou sem períodos de meditação substituindoas por prática de ioga ou hidroginástica quando isso for mais acessível É es sencial que se enfatize a importância dessas atitudes dentro do contexto do tratamento Numa segunda entrevista mais curta farseia uma avaliação do resultado das primeiras prescri ções e dentro do possível transmitirseiam algumas ideias superficiais do âmbito da terapia cognitiva comportamental mostrandolhe como nossas cren ças e julgamentos influem naquilo que sentimos em nossa fisiologia e até em nossa conduta exterior Po deríamos sugerir que ele paciente pensasse no que foi dito e na maneira de como poderia praticar para modificar esses julgamentos modificar os hábitos errôneos e buscar um novo estilo de viver sem dor Zimerman 2006 Esse processo educativo seria útil especialmen te no chamado comportamento de dor Pimenta 2001 Logicamente o que foi exposto é uma formula ção teórica do tratamento da dor psicogênica nem sempre factível na sua totalidade mas merece ser tentada conforme as condições do médico e de seu paciente O uso de drogas especialmente antidepressi vos deveria ter uma indicação definida e por profis sionais que tivessem experiência e conhecimento de suas indicações interações medicamentosas e efeitos colaterais o mesmo pode ser dito quanto ao uso de diazepínicos TRANSTORNOS DE DOR PSICOFISIOLÓGICOS Também os conhecem como transtornos do lorosos induzidos pelo estresse Alguns tipos foram incluídos no texto de Sadock e Sadock no capítulo Fatores psicológicos afetando uma condição médica e Medicina Psicossomática Conforme Sternbach 1990 os transtornos psi cofisiológicos são mediados pelo sistema nervoso au tônomo e fibras musculares aferentes e é da resposta aos influxos nocivos ou estressantes que se iniciam as alterações associadas com dor Este autor lista as principais dores psicofisioló gicas migrânea cefaleia de tensão dores miofasciais em qualquer lugar do corpo dores no tórax de qual quer tipo úlcera péptica transtornos funcionais do intestino proctalgia colite e dores pélvicas Como se percebe a lista é grande e cobre a maioria das do res de que se queixam os enfermos em serviços de medicina geral A dor PF psicofisiológica seria para Sternbach umas das maneiras através das quais alguns indivídu os responderiam aos estresses induzidos pelas dificul dades da vida O referido autor considera que há um processo de somatização que expressaria numa via fisiológica afetos como ansiedade ressentimentos dependência raiva Haveria uma resposta ao nível de três sistemas muscular vascular e gastrointestinal Neles situa Sternbach as respostas fisiológicas do es tresse e os eventos delas resultantes Cabe registrar aqui a ideia ainda vigente de órgão de choque Sa dock 2006 em que cada um de nós tem um órgão geneticamente vulnerável e que efetivamente respon deria aos estressores ideia que possivelmente refor çaria a visão de Sternbach Psicossomaticaindd 250 Psicossomaticaindd 250 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 251 Alongamonos algo ao expormos as ideias desse autor por sua sistematização de um tipo de sofrimen to que aparece de forma isolada no capítulo das dores crônicas Alguns tipos de dores psicofisiológicas mere cem cremos algumas considerações especiais Dor lombar Pacientes com dor lombar relatam com frequên cia que a dor iniciou num momento de trauma ou estresse psicológico mas outros talvez 50 desen volveram a dor num período de meses A reação emo cional do enfermo é desproporcional com excessiva ansiedade e depressão Sadock Nem todos os doentes apresentam alterações vertebrais aos diferentes meios de investigação ou quando existem estão em desproporção com a queixa de dor John Sarno citado por Sadock pos sui algumas ideias próprias a respeito da fisiopatolo gia do problema Para ele a dor surge por espasmo dos vasos que suprem músculos nervos e tendões O vasoespasmo seria mediado pelo Sistema Nervoso Autônomo extraordinariamente sensível às mudan ças do tônus emocional estresse crônico e afetos in conscientes A isquemia e a restrição de O2 causariam dor nas áreas envolvidas O tratamento sugerido por Sarno seria a mobilização precoce e especialmente a tranquilização e exposição para o enfermo de como afetos inconscientes a raiva em particular poderiam ser substituídos pela dor Fisioterapia e manipulação teriam um papel menor Cefaleias Estudos epidemiológicos recentes apontam para a prevalência de cefaleia ao longo da vida entre 69 a 93 dos homens e 94 a 99 das mulheres Carvalho 2001 Das cefaleias primárias interessam dentro da visão psicofisiológica as cefaleias de tensão esporádi cas ou continuadas e a migrânea A prevalência indi vidual seria 80 para a cefaleia de tensão eventual de 11 para a migrânea e de 2 a 4 para uma forma crônica de cefaleia tensional As patogenias desses diferentes tipos não es tão de todo esclarecidas e fatores vasculares mus culares e localizados no sistema nervoso central es tariam participando O estresse emocional parece participar na geraçãomanutenção dos diferentes tipos justificando sua inclusão entre as dores psi cofisiológicas Fibromialgia É caracterizada por dor e rigidez dos tecidos moles tais como músculos ligamentos e tendões Há áreas localizadas mais sensíveis os chamados trigger points A maioria dos estudos tem confirmado os altos índices de depressão no correr da vida de 34 a 71 e comorbidade com cólon espasmódico migrânea fadiga crônica e transtorno do pânico Cecil Supunhase que a fibromialgia frequentemente precipitada por estresse teria como patogenia básica vasoespasmo e interferência com a perfusão de O2 nas áreas afetadas Sadock As pesquisas atuais têm fornecido um paradig ma patobiológico para entender a fibromialgia em termos de anormalidade do processamento sensorial dentro do SNC que interfere com geradores periféri cos de dor e rotas neuroendrócrinas capazes de gerar o largo espectro de sintomas do paciente O termo que é usado para a magnificação dos impulsos sensi tivos dentro do SNC toque leve desperta dor é o de sensibilização central Além disso vários estudos têm demonstrado um fluxo sanguíneo diminuído no tála mo Esse achado está de acordo com outros estados de doenças crônicas e é postulado como uma desini bição tônica da atividade do tálamo Ainda mais na fibromialgia dois neurotransmissores envolvidos na transmissão da dor substância P e fator de cresci mento dos nervos estão em níveis aumentados no liquor dos pacientes Disfunção neuroendrocrina está presente nos enfermos de fibromialgia Toda essa discussão sobre essa doença não tão comum é importante à medida que ajuda a esclare cer aspectos pouco conhecidos de vários tipos de dor crônica inclusive das ditas psicogênicas O PROBLEMA DO PLACEBO Com alguma frequência no passado o uso de uma droga dita farmacologiamentre inerte era usada com a finalidade de distinguir especialmente no caso da dor se o sintoma era real ou fingido Tal atitude era tomada como regra com aqueles pacientes in cômodos que solicitavam remédios para dores que na visão dos cuidadores não existia ou não era tão intensa Administravase então um comprimido ou uma solução que não tendo efeito terapêutico fazia passar a dor era o Placebo O significado da palavra lati na é o de eu agrado e há as expressões derivadas respostaplacebo efeito placebo bem como o opos to o Nocebo significando este último os efeitos pre Psicossomaticaindd 251 Psicossomaticaindd 251 05012010 121212 05012010 121212 252 Mello Filho Burd e cols judiciais determinados por uma droga mesmo que ela tenha sido administrada como placebo O termo efeito placebo é usado amiúde como sinônimo da expressão efeitos inespecíficos Turner 1994 Beecher Reuler 1980 começou a estudar o as sunto placebo em 1955 Num artigo clássico relatou a revisão que fizera de 15 relatos publicados sobre pacientes que apresentando diferentes problemas clí nicos desde dor pósoperatória até angor pectoris e recebendo placebo tinham alívio satisfatório de seus sintomas Mas o bom efeito não ocorria em to dos os enfermos senão numa porcentagem variável que oscilava de 25 a 58 ficando numa média de 35 Trabalhos posteriores incluindo alguns tipos de cirurgia vieram mostrar que no tratamento oferecido pelos médicos havia algo mais que o efeito específi co da droga ou da operação Havia um componente subjetivo quer do médico quer do paciente que se acrescia aos eventuais efeitos específicos e que pode ria surgir mesmo quando o remédio era inerte Dessas observações emergiu a suposição de que o placebo apresentava uma ação farmacológica até então insuspeitada e logo a ideia de que seu efeito era similar ao dos narcóticos Assim com o uso repetido e por períodos muito longos a analgesia pelo place bo tornase menos efetiva tolerância pode apare cer uma síndrome de abstinência se o remédio for subitamente interrompido Ainda mais o placebo poderia reverter par cialmente os sintomas de abstinência dos narcóticos conhecidos Poderia também estar associado com efeitos colaterais especialmente sonolência cefaleia nervosismo insônia náuseas e constipação Turner 1994 Esta autora num excelente artigo publicado num dos números da JAMA faz uma exemplar revi são do assunto e analisa as possíveis explicações so bre o efeito placebo até aquela data 1 diminuição da ansiedade 2 expectativas favoráveis do paciente e do médico 3 aprendizado o efeito benéfico teria ligação com os resultados positivos obtidos com os tratamen tos anteriores uma espécie de condicionamento 4 liberação de endorfinas no sistema nervoso cen tral mas os estudos feitos até então foram contra ditórios 5 variações espontâneas no curso da dor de forma que o tratamento e a melhora de uma agudização traria o sintoma do enfermo para a média em que a dor fosse menor Em relação a liberação de endorfinas assunto ainda não decidido o fato de uma pessoa melhorar de sua dor após o uso de placebo e a reversão do efeito com retorno da dor quando se usava naloxone antagonista dos opioides sugere que o efeito pla cebo poderia ser parcialmente devido a uma reação psicológica que causasse a liberação de opioides na turais Sauro 2005 Mas o assunto placebo não termina aí e numa revisão retirada da Wikipedia extensa e completa há outras abordagens para explicar o efeito placebo Transcreveremos sumariamente o que ali está dito sobre substrato biológico da resposta placebo Pes quisas recentes sugerem fortemente que a resposta placebo é um fenômeno psicobiológico complexo contingente com o contexto psicossocial do indivíduo e que pode caber dentro do âmbito de mecanismos neurobiológicos com formas de resposta específica diferentes de circunstância à circunstância A real existência dessas respostasplacebo for temente sugere que nós devemos ampliar nossas concepções dos limites do controle endógeno huma no Benedetti et al 2005 e nos últimos tempos pesquisadores em diferentes áreas demonstraram a presença de substratos biológicos processos neuro lógicos peculiares e correlatos neurológicos para ex plicar a respostaplacebo Pesquisadores das funções cerebrais usando tecnologia altamente diferenciada como tomografia por emissão de pósitrons PET e ressonância eletromagnética funcional fREM têm estudado o que ocorre com o efeito placebo em diver sas situações clínicas Não cremos que se esperasse este futuro bri lhante para algo que parecia tão banal em medicina clínica sabendo ainda mais que o aspecto das dro gasplacebo influi na sua resposta o que banalizaria ainda mais o mistério Assim o efeito favorável va ria diretamente com o tamanho da cápsula seu nú mero e cor Cápsulas amarelas são consideradas esti mulantes ou antidepressivas as brancas seriam vistas como analgésicas ou narcóticas injeções produzem efeito mais intenso que pílulas Turner 1994 Para finalizar os dados colhidos na literatura per mitem dizer que qualquer um de nós provavelmente responderá a um placebo e que os elementos decisivos que dão impacto à resposta são as atitudes e expecta tivas do enfermo a atitude do médico a relação médi copaciente além do aspecto físico da substância REFERÊNCIAS Aguiar RW Caleffi L Dor Crônica In Kapczinki Bases bioló gicas dos transtornos psiquiátricos Porto Alegre Artmed 2004 407418 Arteni NS Netto CA Neuroplasticidade In Kapczinki Bases biológicas dos transtornos psiquiátricos Porto Alegre Artmed 2004 7181 Psicossomaticaindd 252 Psicossomaticaindd 252 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 253 Barros N Tratamento da dor no paciente adulto com câncer Porto Alegre IMPA Artes Gráficas LTDA 1994 Benedetti F Pollo A et al Conscious expectations and uncons cious conditioning in analgesic motor and hormonal placebono cebo responses J Neurosci 23 2003 43154323 Bennett RM Fibromyalgia In Cecil Textbook of medicine Phila delphia Saunders 2004 17101712 Blumer D Heinlbronn M Chronic pain as a variant of depres sive diseases The pain prone disorder J Nerv Ment Dis 1982 381406 Bond MR Pain Edinburgh Churchill Livingstone 1984 Bonica JJ The management of pain Philadelphia Lea Febiger 1953 The management of pain Philadelphia Lea Febiger 1990 Brena SF Chapman S L The learned pain syndrome Postgradu ate Medice 69 1981 5361 Brose WG Spiegel D Neuropsychiatric aspect of pain manage ment In Synopsis of neuropsychiatry Washington Am Psychia tric Press Inc 1994 205223 Buter CJ et al Medically unexplained symptoms the biopsycho social model found wanting JR Soc Med 97219222 2004 Caldeira G Os aspectos psicológicos da dor Rio de Janeiro Ed Médica e Científica 2001 193209 Carvalho DS O mito da cefaleia psicogênica Psiquiatria na práti ca médica 341 20113 Cassen SF Stewart RS Management and care of of the dying patient In Lippwski ZJ Psychosomatic medicine New York Oxford University 1997 Cassileth PR 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filosofia São Paulo ed Loyola 1999 Magni G On the relationship between chronic pain and depres sion when there is on organic lesion Pain n31 1987121 Mercante JPP et al Depression in chronic migraine Arq Neu ropsiquiatria 632a 2005217220 Merikangas K R Stevens D E Comorbidity of migraine and psychiatric disorders Neurologic clinics 151 1997115123 Merskey H The concept of pain J Psychos Resarch nº 11 19675967 Merskey H Chronic pain and psychiatric illness In Bonica JJ The managemment of pain 1999320327 Mindus P Anxiety pain and sedation Psychiatric aspects Acta Anaesth Scand Nº 88 suppl p 712 Pavani NJP Dor no câncer parte 2 Rev Soc Bras de Cancerolo gia 13 agosto 2000 Payne R Anatomy physiology and neuropharmacology of cancer pain Med CHnics of North America n 711987153167 Pimenta CA de Mattos Dor crônica Terapia cognitivocompor tamental e o enfermeiro Rev Psiq Clin 286 2001288294 Porto N Dor torácica In Compêndio de pneumologia São Paulo BykProcienx 1981 Provenza JR et al Fibromialgia Projeto Diretrizes Rev AMRI GS 493 julhosetembro 2005202211 Rabow MW Pontilat SZ Management ofpain and other com mon symptoms In Tiemey LMJr et al Current Medical Diagno sis and Treatment 20067180 Ratking G Swarm R Tratamento da dor e cuidado paliativo In Ramaswamy G Washington anual de oncologia Rio de Janeiro Ed GuanabaraKoogan 2004492507 Reuler JB et al The chronic pain sundrome Misconceptions and management Annals of Internal medicine n 93 1980588596 Sadock BJ Sadock V Manual de farmacologia psiquiátrica Por to Alegre Artmed 2002 p 276 Comprehensive Textbook of Psychiatry Philadelphia Lip pincott Williams and Wilkins 2005 Salemo SM et al The effects of antidepressant treatment of chronic back pain A metaanalysis Arch Intem Med L62 Jan14 20021924 Saimon T et al Patients perceptions of medical explanations for somatisation disorders qualitative analysis BMJ 3181999372 376 Sapira JD Reassurance Therapy What to say to symptomatic patients with benign diseases Annals of Internal Medicine n 77 972603604 Psicossomaticaindd 253 Psicossomaticaindd 253 05012010 121212 05012010 121212 254 Mello Filho Burd e cols Sauro MD Endogenous opiates and the placebo effect a meta analytic review J Psychosomatic research 53 2005115120 Scully JH Somatoform disorders In Scully Psychiatry New York Harval 1985 Sims A Sintomas da mente Porto Alegre Artmed 2001 Singh MK Patel J Galagh RM Chronic pain syndomes Me dicine from Webb MO October 26 2005 Sriram TG et aI Controlled Study of alexythimic charaters in patients com psychogenic pain disorder Psychoter Psychosom no 47 1117 Stembach RA Psychophysiologic Pain syndromes In Bonica JJ Management of pain 1990287298 StrainJJ The Problem of Pain In Psychological care ofmedically ill New York Appleton Century Croft 1975 Tasker RR Deafferentation In Wall PD Melzak R Pain Edin burgh Churchill Livingstone 1984 Tumer JA et al The importance of placebo Effects in pain treat ment and research JAMA 271201994 16091614 Twycross RG Lack S Therapeutics in terminal cancer London Pitman 1984 Walker E et al Relationship of chronic pelvic pain to psychia tric diagnoses and childhood sexual abuse Am J Psychiatry 145119887580 Wikipedia The free encyclopedia Placebo 31p Zanonato JJ Dor crônica e depressão Trabalho de conclusão do curso de Psiquiatria Faculdade de Medicina de Porto Alegre URGS Zborowski M Cultural components in response to pain J Soc Issues n 8 19521630 Zimerman DE Psicanálise em perguntas e respostas verdades e mitos Porto Alegre Artmed 2005 Psicossomaticaindd 254 Psicossomaticaindd 254 05012010 121212 05012010 121212 Entendese por imagem a representação de um objeto pelo desenho pintura escultura ou por quais quer outros recursos Compreendese por esquema a síntese sinopse ou resumo de algo que é objeto de estudos Por modelo o objeto a ser reproduzido por imitação e postura a posição do corpo com referên cia ao aspecto físico e à sua atitude Neste relatório embora tais dados semânticos sejam fundamentais e discriminatórios utilizaremos os termos esquema corporal modelo postural figura ção do corpo etc como sinônimos e na mesma linha da origem e das variações da palavra imagem Cer tos autores como Head 1920 e Shilder 1950 em alguns trabalhos mostram precisão e descriminação nos termos utilizados em outros revelam sinonímias de confusão Head 1920 propõe a palavra esquema para todas as mudanças de posturas antes de entra rem na consciência mas não tarda em utilizar apa rentes antônimos com o mesmo significado quando refere que as sensações térmicas dos músculos e seus invólucros vísceras etc conferem pela percepção a unidade do corpo que é chamada de esquema do corpo modelo postural do corpo ou imagem corpo ral Shilder 1950 relata que quando uma perna é amputada aparece fantasma o indivíduo ainda sente a perna e tem nítida impressão que ela continua ali Também pode esquecer sua perda e cair Esse fantas ma essa imagem animada da perna é a expressão do esquema do corpo O autor à semelhança desse fragmento repete várias palavras com o mesmo sig nificado de imagem corporal Não há o propósito neste relatório de indagar da anatomia da fisiologia e dos mecanismos cere brais que configuram a base da imagem do corpo mas as noções de como a vida psíquica estruturaliza o corpo Este trabalho procura investigar não apenas o exterior mas o interior do corpo sem assegurar se existem imagens no plano inconsciente ou se lida mos apenas com as disposições conscientes É claro que nos processos mentais ocorrem permeabilidades dessas estruturas com mudanças propiciando cresci mento e desenvolvimento do mesmo modo que emo ções e ações se interligam com a imagem do corpo CONCEITO A imagem do corpo estruturalizase em nossa mente no contato do indivíduo consigo mesmo e com o mundo que o rodeia Sob o primado do incons ciente entram em sua formação contribuições anatô micas fisiológicas neurológicas sociológicas etc A imagem corporal não é mera sensação ou ima ginação É a figuração do corpo em nossa mente Os órgãos dos sentidos entram na imagem do corpo como contribuições anatômicas e fisológicas Os organa sensuum são produtos diferenciados do ectoder ma que se dispõem na periferia do corpo tendo por função colocar o homem em sua relação com o mundo externo Por meio deles conhecemos a propriedade fí sica dos corpos e percebemos em cada momento da vida as múltiplas qualidades fixas ou mutáveis úteis ou nocivas do ambiente em que vivemos Pelas numerosas noções fomecidas os sentidos constituem fonte importante de nossas ideias com considerável influência sobre os atos psíquicos São agentes de proteção sentinela avançada aos diversos perigos que nos ameaçam permitindo reações quer voluntárias quer reflexas As impressões produzidas nas superfícies sen soriais dos estímulos externos são transportadas ao cérebro que as recebe e elabora transformandoas em sensações especiais visuais auditivas olfativas gustativas e táteis Do ponto de vista morfofisiológico cada órgão dos sentidos se compõe de três partes a parte periférica destinada a receber impressões dos agentes estimulantes constituindo o apare lho de recepção b parte central situada no eixo cerebrospinal com função de perceber impressões produzidas sobre 18 IMAGEM CORPORAL Helládio Francisco Capisano Psicossomaticaindd 255 Psicossomaticaindd 255 05012010 121212 05012010 121212 256 Mello Filho Burd e cols a parte periférica elaborandoas constituindo o aparelho de percepção c parte intermediária que serve de união das duas partes anteriores destinandose a transmitir im pressões do aparelho de recepção ao aparelho de percepção Em seu resultado final a imagem do corpo é unidade passível de transformação onde todos os sentidos entram em colaboração A influência da esfera visual na imagem do corpo é mostrada por Shilder 1950 ao relatar observação de quando se está de pé numa escada rolante parti cularmente cheia de gente temse impressão de subir no plano inclinado Quando a escada se movimenta os pés não se encontram em ângulo reto em relação às pernas mas dobramse em ângulo correspondente à inclinação da escada A impressão pode provocar sensações desagradáveis junto às articulações Dissi pase essa ilusão com o olhar orientado para os pés agora observados em posição normal Nossa relação com o solo e com a gravidade constitui fator importante nos mecanismos de movi mento e na percepção da imagem É nossa visão global que delineia o nosso corpo em relação à situação do mundo externo Quando se move o pé a ilusão desaparece A experiência mostra que a percepção de nosso corpo não supera a percep ção do mundo externo Pouco sabemos sobre nosso corpo quando parado Aprendemos sobre ele através de movimentos e de contatos com o mundo externo Quando se provoca dor por meio de alfinetadas as picadas se tornam mais nítidas quando a atenção está voltada para o objeto e não para a sensação As sim o esquema do corpo é ora determinado pela fi gura visual ora pela sensação tátil Do ponto de vista sociológico Muraro 1984 estudando mulheres de diferentes classes sob a ima gem do corpo esclarece que a mulher de recursos aceita o seu corpo quando bonito rejeitandoo quan do feio A mulher do campo interessase pelo seu cor po quando está gorda forte e apta para o trabalho e produção A mulher da colheita de cana gosta do corpo porque foi Deus quem o deu não possuindo qualquer modelo para se identificar enquanto que a mulher operária voltada as telenovelas supõe o seu corpo muito sexy Sobre sua imagem do corpo depois de terem filhos as mulheres assim se expressam a mulher de recursos controla o seu corpo com dieta massagens e cirurgia plástica a mulher do campo la menta que seu corpo afinase como vela e a operária julgao bonito como as atrizes de TV O corpo sentido como prazer no que respeita ao orgasmo Muraro ibidem apurou a mulher de recursos afirma ter orgasmo ser favorável em 90 a relações sexuais antes do casamento e a favor do adultério com busca de prazeres fora do casamen to mas não o rompendo porque se apoia no sistema financeiro A mulher camponesa exterioriza comple ta ausência de prazer com sexo ligado a procriação e medo de engravidar sendo vedado totalmente o adultério face às pesadas sanções sociais e a mulher operária finge orgasmo para segurar o marido não se interessando pelo adultério por não poder prescindir do salário do esposo a fim de preservar sua precária estabilidade econômica A mulher de recursos cuida de seu corpo dei xando os filhos com uma babá ou governanta a mu lher operária embora interessada pouco se entretem com o corpo vai para o trabalho ficando a guarda de seus filhos com mãe tia e filhos mais velhos a mu lher camponesa nem se lembra de seu corpo deixa os filhos sozinhos e vai trabalhar no campo Muraro ibidem continuando suas pesquisas na mulher do Rio de Janeiro com maiores recursos na mulher operária de São Paulo e na mulher camponesa de Pernambuco registra que mulheres entre 12 e 16 anos utilizam o corpo como fonte de prazer de modo inconsequente Os abortos praticados por adolescentes de recursos se efetuam sem sanções e sem sentimen tos de culpa conscientes os praticados por operárias o são por pressão econômica e entre as camponesas a prática é proibida por ser pecado mortal Nos anos 1960 diz a socióloga Muraro ibi dem a mulher interessouse pela sua independência financeira e sexual nos anos 1970 hipervalorizou o orgasmo e nos anos 1980 interessouse pelo equilí brio A autora insiste em mostrar que a mulher tem interesse em sua imagem corporal na dependência de sua situação econômica Esses dados mostram como a mulher modificou nesses últimos 20 anos o investimento de sua energia libídica Nos anos 1960 aplicouse para sua indepen dência nos anos 1970 imitando aquele homem que desvincula afeto do corpo valorizou exageradamente o orgasmo e nos anos 1980 investe de forma mais equilibrada sua energia libídica tanto em si como em seu parceiro A estrutura final do modelo do corpo depende da situação global Ela decorre de síntese cuja ope ração reúne representações de várias procedências umas com as outras resumindo todas as diferenças em um só conhecimento o corpo Não há dúvida que o conhecimento que sintetiza diferenças produz confusão Mas a síntese que junta os elementos reúneos de certa maneira para confe rirlhes conteúdo Não se trata de soma de elementos irregulares mas processo total que possui forma Síntese geral é simples obra de imaginação as sinala Kant 1965 ou seja função cega ainda que Psicossomaticaindd 256 Psicossomaticaindd 256 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 257 indispensável sem a qual não teríamos conhecimen to de coisa alguma função de que raras vezes temos consciência É a primeira coisa a que devemos dedicar a nossa atenção quando queremos julgar a origem de nossos conhecimentos A sintese pura é conceito intelectual fundada com principio da unidade sintética a priori A imagem do nosso corpo não se estabelece a priori mas à custa de nossa percepção que vai regis trando modelos de postura que se modificam cons tantemente a partir de manifestações emocionais que por seu turno dependem da mobilização das zonas erógenas Em cada momento cada atitude emocional confere determinado modelo postural O esquema do corpo é dinâmico obedecendo ora a correntes cons trutivas da vida ora a correntes destrutivas em contí nuo movimento de autoconstrução e autodestruição Justificase esse conceito a partir dos instintos de vida e morte base das percepções influindo na consecu ção da estrutura do modelo do corpo Graças a nossas emoções e a nossa sensibili dade podemos conhecer os objetos e consequen temente o corpo As impressões de nossos sentidos oferecem motivos para desenvolver toda nossa facul dade de conhecer e de constituir experiências Toda experiência contém dois elementos distintos o obje to para o conhecimento procedente da fonte interna da intuição e o pensamento o qual motivado pelo primeiro produz o conceito A percepção total só é possível quando conseguimos manusear o objeto O conhecimento e a percepção decorrem de processo ativo É difícil diferenciar os distúrbios de percepção O indivíduo pode não perceber seu próprio corpo mas preserva a capacidade de perceber os objetos Os movimentos dirigidos a nosso corpo são psicológica e fisiologicamente diferentes dos movimentos referidos aos objetos PLANO DE EXPOSIÇÃO A exposição do tema obedecerá ao plano se guinte 1 Desenvolvimento da imagem corporal 2 Construção da imagem corporal 3 Alguns desvios da imagem corporal 4 lmagem corporal do neurótico 5 Imagem corporal do psicótico 6 Conclusões 7 Resumo Os dados propostos para o tema guiamse pelo empirismo e o material clínico em parte é do autor e em parte extraído da literatura Desenvolvimento da imagem corporal Para entender o desenvolvimento da imagem corporal de um criança devemos acompanhar as sensações percepções e reações motoras reveladas por seus desenhos Há neles dados justapostos sem relações sintéticas em que uma perna está próxima de um braço um olho na parte alta da cabeça um ouvido no meio da face etc por ações sensoriais mo toras incompletas As crianças desenham figuras humanas refletin do a imagem mental que possuem de nosso corpocom projeções de formas isoladas e desconexas Usam o controle motor dos membros a experiência visual e tátil na construção do eu corporal segundo necessida des de suas personalidades O exame desses desenhos nos dá ideia de que os modelos do corpo resultam da capacidade criati va gestáltica do psiquismo da criança que traduz desenvolvimento desde o estado embrionário até certo amadurecimento E possível que cada traço tra duza impulso algo específico para cada movimento Associamse outros riscos até a configuração final da imagem do corpo alcançada a partir de motivações internas Kanner e Shilder 1930 discordam que a ima gem corporal possa ser alcançada de modo passivo partindo do mundo interno e na dependência dos di ferentes estágios de desenvolvimento Julgam inade quada qualquer tentativa de basear a psicologia da ação em representações de movimento Presumese que o modelo postural presente em nossa mente guarde traçados originais da infância Dirseia que o desenho do fantasma feito por ampu tado é pequenino como retorno à imagem infantil A nossa vida psíquica confere mudanças con tínuas de imagens ora deformandoas ora agigan tandoas ora diminuindoas como pequeninos seres levando a número infinito de imagens corporais Se mudamos de modo contínuo o nosso psiquismo tam bém alteramos os nossos modelos do corpo Como estamos acostumados a ter um corpo in teiro é possível supor que uma pessoa amputada rea tive as percepções emocionais infantis Bettelheim citado por Shilder 1950 relata sobre um paciente que sentia o braço direito guardado em algum lugar e que oportunamente lhe seria devolvido A não per cepção decorre de diferentes atitudes emocionais em diferentes situações penosas de vida que exigem adaptações sucessivas extremamente difíceis O pro gressivo e lento contato com o mundo externo após frustrações muito dolorosas oferece sensações regu ladoras razoáveis Podese supor que o indivíduo ao obter a im pressão de seu próprio corpo o faça como se fora Psicossomaticaindd 257 Psicossomaticaindd 257 05012010 121212 05012010 121212 258 Mello Filho Burd e cols observador externo que olha a pessoa de frente Será que representamos o nosso corpo do mesmo modo que vemos um objeto externo A nossa imagem feita de olhos abertos ou fechados é sempre vaga defei tuosa e incompleta Com os olhos fechados conse guimos ver nosso corpo com o olho psíquico que se encontra em qualquer lugar de nossa economia Esse olho psíquico veria nosso corpo por fora ou por dentro e funcionaria somente quando a pessoa se encontra com os olhos fechados Nosso corpo parece ser mais percebido quando estamos em movimento porque as sensações são co lhidas na realidade nas relações com os objetos Com a experiência visual a criança ao estabe lecer relações com o mundo contribui sem dúvida para a formação da imagem corporal É evidente que outros recursos inclusive todos os outros sentidos cooperam para a figuração corporal A energia de vida as ações e as determinações sensomotoras sob influência de impulsos internos levam a criança em processo ativo e contínuo de desenvolvimento a con figurar em desenhos seu esquema corporal Este não revela à luz de nossa observação grande capacidade de síntese Os pormenores se justapõem uns aos ou tros A incapacidade sintética possivelmente ocorre por conta em parte dos recursos motores e senso riais ainda não integrados À medida que a criança evolui na idade a li nha reta vai surgindo e se reafirmando Assimetrias e deformações são predominantemente observáveis em desenhos de crianças abaixo de 5 anos Imagens incompletas falta de mãos e pés aparecem às ve zes até aos 10 anos Preocupações com pormenores e cores surgem depois dessa idade Aos 12 a assimetria começa a desaparecer coincidindo com a preocupa ção de impressionar favoravelmente os adultos com interesse objetivo do que desenha de si mesma O movimento das imagens é contínuo observá vel tanto em crianças de 5 como em homens de 50 anos A criança traça suas linhas despreocupadamen te parecendo que o movimento é consequentemente a ação e que elas se conduzem de modo a unificar partes do corpo passíveis de transformações Se antes desenha cabeça tronco e membros separados entre si evidenciando debilidade nas conexões logo depois arguta e penetrante indaga se deve desenhar seu cor po por dentro ou por fora Põese a transpor no papel a confecção de sua figura por dentro que toma tanto vigor que faz desaparecer em criança de 5 anos os contornos externos Tudo como se nos indicasse sua capacidade de também verse por dentro As ditorções vão diminuindo com o avanço da idade Pernas braços mãos e pés de início muito grandes vão não só se modelando como ganhando proporções mais adequadas Nossas observações se referem a crianças sem distúrbios de sensibilidade sem alterações da função vestibular sem encefalites epilepsias psicoses into xicações etc Nos desenhos ocorreriam mutações de ideias in conscientes permitindo inserção de códigos interpre tativos O material em desenhos permitiria o conheci mento da representatividade psíquica em sua forma distúrbios funções e em seu próprio desenvolvimen to Tanto o desenho como o relato verbal expressam produtos de percepção com viabilidade interpretati va na dependência dos créditos a eles conferidos O que importa é a procura da significação do caráter do processo que emana do paciente que exercita ativi dade simbolizante Construção da imagem corporal O corpo pode ser considerado em sua constru ção como unidade destacandose massa pesada com orifícios cavidades e protuberâncias desenvolvidas em superfície e contorno Dentro dessa unidade desenvolvemse sensações que podem ser compreen FIGURA 181 Psicossomaticaindd 258 Psicossomaticaindd 258 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 259 didas em quatro níveis diferentes interligados O pri meiro seria fisiológico medular simpático e periféri co O segundo ligado às atividades focais do cérebro O terceiro diz respeito às atividades orgânicas gerais relacionadas à região cortical O quarto nível seriam os processos que ocorrem na esfera psíquica com in fluências contínuas no soma Estes diferentes níveis em interação psicofisiológica contínua interferem no modelo postural do corpo caracterizando nossa vida Embora considerese que existam mais níveis como três níveis somente na função cortical devese ressaltar que as atividades do nosso organismo são primariamente psíquicas A vida emocional goza de importância básica na construção do modelo postu ral do corpo Basta dizer que o contorno da imagem corporal é conferido pelo bom desenvolvimento dos níveis afetivo e libidinal A massa pesada pode se tornar espumosa ou es buracada surgir frouxa e depois tensa A cavidade dos órgãos sexuais femininos como buracos e o ór gão sexual masculino de frouxo a tenso duro como madeira Uma parte do corpo pode simbolizar outra O falo representado pelo nariz ou por qualquer par te protuberante Fossas nasais boca ouvidos vagina e ânus integram o grupo dos orifícios É sabido que nas manifestações hipocondríacas a troca simbóli ca entre os órgãos provocam sensações que atraem atenções constantes dos pacientes porque os órgãos intensamente erotizados simbolizam genitais O hi pocondríaco assume atitudes despertando interesse das pessoas pelos seus órgãos quando então elabora imagens de seu corpo Do ponto de vista psicanalítico a imagem cor poral é construída através da interação entre o ego e o id em interjogo contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais Há no indivíduo da infância até a idade adul ta interesse pelo próprio corpo No início da vida a criança revela atenção em si própria concentrando a libido em partes do corpo com significação erógena particular É para a boca que a libido narcisicamente se volta Poderseia dizer que a imagem corporal co meça a se desenhar na boca porque há um núcleo da imagem corporal na zona oral A cabeça os braços as mãos o tronco as pernas e os pés cresceriam a partir desse núcleo Existiria desenvolvimento primário que começa na zona oral e um refinamento secundário segundo Bernfeld 1929 que diferencia o ego corpo ral do mundo externo Na criança em que a fantasia do ego corporal é tão grande a mão tem que ser eli minada e na criança onde é excessivamente pequena os dedos dos pés devem ser acrescentados A criança ao tentar satisfações próprias põese em contato com o mundo externo tentando incorpo rála através da boca A libido ao se concentrar na boca também o faz para o objeto do mundo externo A imagem corporal inicial menos a boca é percebida simultaneamente da mesma forma como o é o objeto externo Nosso corpo existe desde o início de nossa vida como parte do mundo externo em experiên cias de íntima conexão É provável que as frontei ras entre o mundo externo e o mundo interno em nível primitivo não sejam claramente definidas O corpo imaginado como estrutura mais compac ta poderia ser projetado no mundo externo e este como estrutura mais frouxa introjetado pelo corpo Seriam expe riências ativas com partes aceitas e par tes rejeitadas Esse intercâmbio contínuo e perma nente com zona intermediária de indiferenciação conduziria experiências cujas origens não poderiam ser atribuídas inteiramente nem ao corpo nem ao mundo externo A imagem do corpo seria construída progressivamente na procura de partes que se en caixam no todo em níveis e camadas distintas em experiências contínuas O indivíduo estaria sempre voltado para o mundo externo na expectativa de aquisição de novos dados para construção de sua imagem corporal através de erros e acertos guiados pela experiência O fluxo da encrgia libidinal por ser dinâmico da boca atinge o ânus podendo também mudar a imagem do corpo porque agora a concentração libi dinal se faz no extremo oposto do aparelho digestivo Em seguida os genitais fonte de prazer especial e as sensações uretrais completam a imagem configuran doa É vidente que o erotismo muscular é cutâneo com sensações provenientes da pele e tem significa do para o delineamento da superfície do corpo Os orifícios do corpo auditivos nasais aber tura dos olhos boca ânus meato urinário e orifício vulvar através dos quais nos colocamos em contato com o mundo ao permitirem trocas essenciais ar sons alimentos fezes urina e produtos sexuais constituem zonas sensoriais e eróticas de grande im portância nas diferentes funções de nossa vida bem como pontos referenciais do modelo postural Exis tem linhas de energia que conectam esses diferentes orifícios zonas de predomínio erógeno com acúmulo maior de libido neste ou naquele orifício de acordo com as tendências psicossexuais do indivíduo Ao se fazer referências anatômicas a esses orifícios e ao se dar ênfase às tendências psicossexuais aproximase o corpo da mente pois essas aberturas do soma são sede de fantasias psíquicas Os olhos registram as alterações do mundo ex terno para conservação da vida e ao mesmo tempo vislumbram os objetos de amor denominados encan tos Seriam órgãos com dupla função a serviço de dois tipos de instintos Os olhos constituem parte enfati Psicossomaticaindd 259 Psicossomaticaindd 259 05012010 121212 05012010 121212 260 Mello Filho Burd e cols zada de imagem corporal pois através deles ocorre a penetração no mundo externo Os orifícios constituem as zonas mais sensíveis do corpo com sua psicologia específica Os órgãos portadores dessas aberturas levam o indivíduo a ter contato com o mundo externo e com isso se procede a descoberta do corpo O ser humano chega ao conhecimento de seu próprio corpo através de impressões colhidas pelos órgãos dos sentidos particularmente impressões tá teis e visuais vinculadas à dinâmica psíquica Os genitais fontes de contínuas sensações e es timulações levam o indivíduo a se colocar com fre quência em contato com eles A pele pelo registro de inúmeras sensações provoca a necessidade do contato das mãos sobre ela Não há dúvida de que as mãos deslizando sobre o corpo permitem estabelecer os seus contornos Quando o indivíduo é vítima de dores a mão procura a região dolorida que ganha maior erogenei dade transformandose em novo centro libidinal A estrutura da distribuição da energia libídica se mo difica pois o centro de atenção do indivíduo se volta para aparte do corpo atingida Os movimentos contí nuos das mãos registram as diferenças entre as partes do corpo que podem ou não serem vistas É evidente que nossa própria atividade manual não é suficiente para construir a imagem do corpo Percebemos nosso corpo muito mais em movimento e no contato com os objetos do que em repouso A imagem corporal provavelmente não existe per se é parte do mundo externo e por essa razão é estrutura mais ou menos vaga Nunca é estática Tem sempre tendências à ruptura Com as alterações fisio lógicas habituais e com as mudanças do fluxo libidi nal face aos desvios das situações de vida podese inferir da contínua modificação da imagem corporal Não há imagem corporal sem personalidade pois ambas mantêm relação intima e específica A imagem corporal não se modifica apenas pela matu ração dor doença e mutilação mas também por toda insatisfação que está ligada ao distúrbio libidinal A personalidade humana atravessa situações das mais diversas na vida tornandose imperiosas as mudan ças e adaptações Tudo isso se reflete na construção da imagem do corpo É utópico manterse o esquema FIGURA 182 FIGURA 183 Psicossomaticaindd 260 Psicossomaticaindd 260 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 261 corporal dentro de certos limites ou expandilo pois a movimentação é continua na dependência de cor rentes anabólicas e catabólicas de vida Nem todas as pessoas possuem certa unidade emocional da imagem do corpo Particularizese por um individuo procurando incorporar imagem de ou tra pessoa que admira Talvez obtenha certa unidade quando se desenvolvem relações objetais totais e par ticularmente quando o complexo de Édipo é alcan çado Mudanças bruscas da imagem corporal podem ser observadas no tratamento analítico de pacientes hipocondríacos Em fantasma adquirem os órgãos genitais do analista em evidente ruptura da estrutu ra libidinal como acontece nas psicoses como vere mos mais adiante Os sadomasoquistas e os melancólicos quase dissolvem a estrutura libidinal e com isso mudam profundamente a imagem corporal A situação libidi nal da forma final ao modelo postural porque as di ferentes condições de vida levamna a alterarse com muita frequência Em clínica médica ou cirúrgica consciente ou inconscientemente o corpo é tratado como objeto externo O paciente além de se imaginar como tal deseja também que seu corpo seja cuidado como algo de fora Há enfermos com imagens corporais fora dos contornos clássicos Um obsessivo ao transformar o seu conteúdo mental em alucinações descreve que seus intestinos transpondo as janelas da casa se pro tejam na rua na ameaça de serem estraçalhados por uma locomotiva Tais condições patológicas serão abordadas mais adiante O interesse observado pelo corpo de outra pes soa sobretudo quando existe anomalia contribui para a configuração postural Vida social rica em ima gens corporais proporciona soma de posturas cujo resultado constitui a imagem final do corpo Embora o indivíduo admita sua independência sua postura corporal é resultante das imagens das pessoas com as quais se relaciona Há relação nítida entre imagem corporal e zo nas erogenas A nudez a vergonha a timidez e o en rubescimento nos encontros sociais onde se cruzam corpos testemunham a ligação erógena Os olhares das pessoas entre si permitem troca de imagens e como resultado terseia a existência da imagem so cial do corpo A moda feminina quando lançada ten ta conferir singularidade a uma mulher tornandoa diferente das outras Não tarda muito a moda entra em evidência e as mulheres somando se igualam A vida social proporciona imitação e consequente identificação de imagens corporais Nossa própria imagem corporal não é possível sem as imagens cor porais dos outros Não sabemos com pormenores como se desen volve a imagem corporal Admitimos um desenvolvi mento interno uma maturação em todas as áreas da vida psíquica em conexão com experiências de vida Podese supor que traços específicos da configuração postural dependem de atitudes emocionais repetidas Não se podem afastar funções determinadas pela ana tomia e fisiologia Mas seria oportuno adiantar que o mundo psíquico é tão preponderante que determina quais as partes anatômicas ou funções psicológicas que devem ser utilizadas Corpo é expressão do ego de uma personalidade A imagem corporal não é sempre a mesma E lábil mutável e incompleta Depende do uso que fa zemos dela de nosso pensamento de nossas percep ções e das relações objetais Não devemos esquecer que é necessária a ativi dade cortical para que ocorra a imagem postural O cortex e necessário para integração final dos diferen tes processos que conduzem a construção da imagem do corpo Ele condensa um sem número de impres sões impulsos sensações memoria pensamento etc Alguns desvios da imagem corporal Entendese como desvio da imagem corporal a não coincidência com o corpo Na criação da realida de poderseia perceber certa tensão com significa do de algo de dentro Tal tensão exigiria objeto para aplacála quando então terseia algo de fora O corpo poderia constituirse das duas coisas simultaneamen te mas no fundo é algo diferente face às sensações táteis e dados sensoriais Com isso transformase em algo diferente do mundo A soma das representações psíquicas do corpo e dos seus órgãos constitui a ima gem do corpo e esta pode não coincidir com o corpo objetivamente considerado Podemos diferenciar dois grupos de fenômenos a grupo ligado à aparência externa do corpo b grupo relativo à parte interna Aparência externa do corpo Um jovem de 27 anos sentiase muito bem quando suas calças estavam passadas e com os vin cos bem visíveis e em linha Tinha preocupação ob sessiva em conservar em perfeita ordem essa parte de sua vestimenta que lhe conferia bemestar físico Quando não se sentia bem com seu corpo atribuíao a alguma parte da calça que estava amassada sobre tudo junto aos vincos As calças inconscientemente Psicossomaticaindd 261 Psicossomaticaindd 261 05012010 121213 05012010 121213 262 Mello Filho Burd e cols como partes do corpo entravam na constituição da imagem corporal Não se trata do corpo real Tal ima gem pode desenvolver grande importância no proces so da formação do ego O indivíduo pode excluir do seu corpo certos órgãos como incluir em sua imagem corporal anéis penduricalhos e até um automóvel Os objetos referidos encontram suas representações intrapsíquicas porque recebem um montante especí fico de energia libídica Os órgãos excluídos também têm representações intrapsíquicas pois sem estas não seriam aleijados do corpo Um homem de 38 anos passou inopinadamente a usar chapéus Não podia sair à rua sem eles A cabeça deveria ser protegida e amparada O chapéu mantinha sob pressão a calota craniana impedindo a saída da massa encefálica Quando na rua era surpreendindo por ventos desesperavase mantendo o chapéu fir memente com as mãos Sua imagem corporal havia se modificado O chapéu fazia parte dela quando saía à rua A cabeça ficara carregada de intensa libido Uma senhora de 45 anos muito gorda rebelde a tratamentos dizia que seu marido deveria aceitá la como era Não seguia tratamento algum para a obesidade porque seu corpo de certo modo não lhe pertencia não era inteiramente seu Se era gorda a responsabilidade não lhe cabia O sentimento cor poral normal desaparece da consciência permanece oculto sob intensa contracatexia Não significa que toda energia libídica tenha sido retirada do corpo Uma jovem de 23 anos somente saía à rua quan do calçava sapatos de cor cinza Quando por razões múltiplas utilizava calçados de outra cor estranhava o seu andar escorregando e tropeçando seguidamen te Perdera o pai grande admirador da cor cinza mas rígido na disciplina e castrador Na rua a paciente sentiase livre quando pisava sobre o cinzento duro inflexível e castigador do pai A paciente acusava diminuição das sensações dos membros inferiores e certa estranheza em seus pés modificando sua imagem corporal Um parecer neurológico mostra prejuízo nas sensações tácteis e não sensações internas de sensibilidade profunda As experiências de algo estranho ao andar podem su gerir tipo específico de defesa dirigida contra os pró prios sentimentos Um homem de 42 anos tornavase silencioso evitando falar à noite Sua voz era estranha tonitro ante e cavernosa Tremia ao ouvila parecendo de outra pessoa que não conseguia ver Seus ouvidos ti veram grande significação erótica Em criança sua babá se encarregava da higiene de seu pavilhão audi tivo proporcionandolhe muito prazer o que em certa oportunidade foi proibido por sua mãe que julgou in decorosa a atitude da moça O órgão auditivo expres sa conjunto especifico da vida emocional desse ho mem modificando sua percepção do mundo externo e consequentemente alterando a postura corporal Uma moça de 25 anos teme olhar no espelho Quando o faz não consegue reconhecer sua pessoa Observa no espelho como expectadora outra pes soa Tal modificação ocorre tanto no mundo externo como no seu ego que é primariamente algo corporal A imagem é o núcleo do ego assegura Trench 1935 Talvez uma experiência infantil acarretasse debilida de do ego e fraqueza em sua imagem corporal Peque nina brincava com a avó com espelho Este coloca do em sua frente permitia observar sua imagem e depois quando retirado sua avó punhase de frente exibindo cara de monstros Um moço de 28 anos muito tímido e míope decide em certa época caminhar sem óculos assegu rando ser seu vício de refração decorrente de falta de exercícios da visão Nega para si o direito de ver e o prazer da observação visual Sua decisão de não usar óculos coincide com o desejo de sua noiva usar rou pas decotadas e provocantes Através de sadomaso quismo substitui sua própria visão por autopunição de seu próprio eu Sua imagem corporal modificase pelo impedimento da observação visual que poderia ser o desejo de véla despida Temia a explosão incon trolável de sua sexualidade Da luta entre ego e ideal do ego resultaria perversão sexual expressão de im pulsos infantis severamente reprimidos e escondidos pela timidez Um homem de 30 anos fora aos 8 examinado por médico Tivera conhecimento do saco escrotal O achado clínico despertou interesse de sua mãe que pe riodicamente examinava os seus genitais apalpando os A observação do médico e o interesse da mãe leva ramno a fantasia de sofrer dos genitais com prejuízo de suas funções Detesta seu corpo particularmente os órgãos sexuais sobrecarregados de libido Procura fugir do soma interessandose pelas atividades inte lectuais e leva vida de solteirão Sua relação com a mãe na elaboração do complexo de Edipo foi carre gado de muitos conflitos Tendências profundamente sádicas em relação à genitora se desenvolveram Sua identificação com o pai muito pudica centrouse no ego ideal de características intelectuais Convidado para desenhar a imagem de seu corpo só o fazia da cintura para cima com relevo da cabeça muito gran de e desproporcional ao resto O conhecimento do corpo desse paciente se desenvolveu na base de rela cionamento com o mundo externo particularmente com sua mãe Toda ênfase genital se deslocou com intenso colorido libídico para a cabeça Desvio que deve ser registrado é aquele em que o indivíduo não ousa colocar sua libido nem no mun do externo nem no corpo despersonalizandose Tal desvio é frequentemente acompanhado de vertigens Psicossomaticaindd 262 Psicossomaticaindd 262 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 263 Registramos até o presente fragmentos de ob servações clínicas focalizando contornos externos da postura do corpo Seguemse outras observa ções mostrando como os pacientes veem o corpo por dentro Aparência interna do corpo No modelo postural do corpo não há apenas contornos e superfície Há o interior do corpo do qual se pode ter percepção de algo estar acontecendo dentro dele pelo menos em fantasia Talvez o cor po por dentro possa ser sentido como massa pesada com uma substância que o preenche Alguns autores como Shilder 1950 asseguram que somente a sen sação de massa pesada é que pode ser registrada O corpo que parece tão próximo de nós apa rentemente tão conhecido e no fundo posse muito incerta ameaçando nossa onipotência Evidentemen te o corpo não é apenas salsicha cheia de carne na expressão do marxista Bukharin citado por Kornilow 1930 Minha experiência Capisano 1978 em clínica médica e em gastrenterologia conferiramme conhe cimentos sobre o aparelho digestivo Mas a análise a que procedi ibidem de um anatomista me ensinou que importa tratar o paciente cujo aparelho digestivo se encontra representado em sua mente e não aquele que tenho em minha cabeça Um médico docente em Anatomia procurou tratamento analítico para aliviarse de intensos so frimentos derivados de enterocolopatia crônica Em análise há 2 anos fala muito de seus intestinos cujas alterações residem em nível funcional caracterizados por período de diarreia e constipação com predomi nância de prisão de ventre Faz referências a cólicas abdominais tanto na diarreia como na constipação Refere que a mãe usava supositórios quando transita va por período constipante Casado com mulher viúva de cujo consórcio an terior tem enteada de 18 anos Teve com a mulher uma filha Viveu como filho único com os pais donos de pensão em cidade do norte do país Mãe domina dora e gerente dos negócios da pensão Pai passivo e tolerante jamais censurando ou premiando o filho Na pensão onde residia habitualmente espio nava pela fechadura os casais na cama repetindo o que sempre fizera com seus pais Seu relacionamento com a mulher sempre foi considerado razoável mas com a enteada mostrou durante longo tempo desejos de ordem sexual O mais frequente em sua análise é sua apreensão pela homossexualidade Quase sempre em suas associações dá impressão de ter medo da homossexualidade dizendose homossexual sem ter experiências nesse sentido salvo quando criança com relatos pouco expressivos Tem ensaiado experiên cias práticas com homens para indagar o que é ser homossexual Tem observado conversado passeado e tudo não passa de uma nebulosa Procura mobilizar o analista para colher através de divagações teóricas informações sobre homossexualismo Vive imaginan do Imagina seu pênis entrando pelo seu ânus porque teme pênis estranho entrando dentro dele Parecia defenderse do medo de ser homossexual comigo Sempre se mostrou grande controlador de tudo e de todos bem como de todas as suas manifestações Faz referencias técnicas sobre diferentes aspectos da psicanálise que vão surgindo nas sessões pois lê Freud Melaníe Klein Winnicott Lacan e outros au tores Deseja saber qual o meu esquema referencial teórico pois não consegue descobrilo É minucioso pormenorizador e calculador com números a todo instante em sua cabeça Receia na análise saber mais do que o analista pois de repente ao vêlo desvalorizado o tratamen to poderia acabar Com sua superioridade ameaça desprezo Certa vez desejou aplicar conhecimentos psicanalíticos em seus alunos Quando o analista lhe observou que o invejava e desejava ser como ele pa ralisouse e nunca mais falou no assunto Espia a vida mas não vive Espia os livros espia a mim procurando algo que o excite Presume que eu olhe para ele sem que eu mesmo possa perceber O paciente olha e se relaciona com o seu próprio olhar Fiscaliza tudo o que sente em seu aparelho di gestivo sobretudo seu ânus pois seu descontrole pode refletirse na cabeça Não confia em sua cabeça e por essa razão confia mais em seu aparelho di gestivo talvez mais sincero que sua cabeça pois fa cilmente revela descontroles Não dorme bem pois necessita controlar os sonhos Em uma das sessões começa dizendo que na quele momento vê o seu corpo como um ovo com dois orifícios nos polos Logo depois o corpo se trans forma em geladeira com abertura na parte posterior tendo junto a esta ventilador cujo movimento forma camada de ar para conservar o que existe dentro Reproduz o tubo digestivo com boca e ânus Foge do contato com o analista entrando por uma porta e fugindo por outra É frio como geladeira e necessita do calor do analista para descongelar o que tem dentro de si Volta a descrever o tubo digestivo temendo fa lhas de controle dos esfíncteres Parece transformar a análise em exame retossigmoidoscópico Deseja que o analista entre pelo seu ânus olhe lá dentro e des cubra porque suas coisas não podem ficar dentro de si mesmo sem que tenha conhecimento delas O seu olho funciona como esfíncter que enxerga Olha tudo Psicossomaticaindd 263 Psicossomaticaindd 263 05012010 121213 05012010 121213 264 Mello Filho Burd e cols mas nada vê O esquema de seu corpo pode ser repro duzido assim Teme que os conteúdos bons fabricados pelo ego possam ser evacuados desaparecendo através do ânus Sua cabeça tem elementos estranhos e familia res sobre estrado de madeira que pode ceder e arre bentar Preciso de madeira mais sólida para aguentar pessoas em cima Onde comprar essa madeira Aqui mas o senhor é analista isso me desesperal Apanha de seu bolso papel e lápis e desenha Creio que deveriam existir pressões simultâ neas ou seja evacuação e excitação sexual ao mesmo tempo Um cheio para não esvaziar o outro Haveria evacuação completa e depois relação sexual comple ta tornando o indivíduio vazio podendo até morrer Não penso assim mas esvaziamento é morte Nas relações sexuais sempre tive atitude conti da Seriam relações sexuais frequentes Estoque não se renova pode terminar Devemse manter reservas O mesmo ocorre com os intestinos isso tudo gera an siedade Se solto fezes se falo se solto sexo há va zio e morte Isso tudo não pode acontecer ao mesmo tempo Hoje na análise reconheço soltei a fala As fezes são coisas sujas a fala é vento O sexo é bom e branco Não podem se misturar Prossegue em suas alucinações dizendo Sin tome como um globo cheio de água que vai esva ziando Mas devo ser firme compacto com esfíncteres no lugar do esvaziamento para contrapor a moleza do globo e assegurar a vida Em outra sessão o paciente volta muito angus tiado temendo a morte ou a loucura Sentese caindo em precipício e às vezes perdendose pelo ânus atra vés do qual desapareceria A sua imagem corporal pa rece ser esta mente conteúdos mentais tubo digestivo esfíncteres O analista poderia dar algo para tornar o seu ego mais forte ter estrutura mais coesa para impe dir que da mente em conexão direta com o aparelho digestivo os conteúdos mentais poderiam sair pelo ânus quando então o paciente se esvaziaria poden do morrer Certa noite acordei muito assustado depois de um sonho O meu corpo era uma bola Era só bar riga Põe em seguida a mão no abdome e com os dedos assinala sua imagem estrutura Sentimentos Indivíduos Aqui dentro sentimentos e indivíduos julgados pela estrutura podem ser aprovados e louvados ou reprovados e punidos Passa a seguir a falar sobre relações do abdo me com o aparelho genital Prisão de ventre seca diz é aquela que sobe para o abdome e agita Como não há evacuação não há relação sexual isso gera desvios sexuais A prisão de ventre intoxica quando se difunde Se há contensão do sexo este se deriva Há canal que comunica o pênis com o reto O pênis teria continuação passando através da bexiga para O reto O canal do pênis que passa em continuação pela bexiga e que vai ao reto é interrompido pelo no do umbigo Nó do umbigo Bexiga canal do pênis escroto reto Globo cheio de água Esfíncteres de controle Seu sistema de controle está enfraquecido Nes sa altura teme a análise como exame retossigmoidos cópico O analista poderia usar seus olhos entrar pelo ânus seguir pelo reto até atingir a mente retirando Psicossomaticaindd 264 Psicossomaticaindd 264 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 265 todos os seus conteúdos Teme se perder enlouquecer ou mesmo morrer Conta com grande ansiedade que preferiria um analista que fosse cirurgião porque não suportaria taquicardia respiração difícil dores no tórax e cheiro horrível e inaguentável de morte O paciente trata os sonhos como fezes evacuan doos Habitualmente não fala com o analista porque não está com ele Relata os sonhos para um analista mas não para aquele que alí está Quando tem pro blemas com a mãe imagina a solução no seu corpo através de seu pai O pênis do pai entra pelo ánus como tampão atinge a mãe que está na barriga e resolve o conflito A análise era sentida dentro de seu ritual obs sessivo em função de defesas contra fantasias de de sintegração psicótica Os sonhos a análise e as evacuações lhe pare cem similares pois começam e acabam Conta peda cinhos de sonhos em fragmentos de análise onde relata fezes em pedacinhos Lembra brincadeira de papéis dobrados onde se escrevem números e se co locam em um pote Todavia nada se sabe sobre o que está escrito Nesta altura lembrase da palavra miop sia Não sabe o seu significado mas supõe relação com a urina Depois imagina um tubo em arco no seu meio parte outro tubo em arco no abdome ligando ânus com urina Desse tubo que vai a um pote onde desembocam boca e cabeça O pote seria a cabeça Se o ânus está fechado a sujeira sai pela urina Sempre uma saída deve ser escolhida ânus ou meato urinário As palavras iriam gotejando no pote Cairiam no abdome atingindo os intestinos para filtragem Se as palavras saem pela boca há perigo de coisas fedidas e maldizentes que o analista não poderá suportar mas antes disso afastase de si mesmo pois correria o risco de usar a boca como esgoto e não como sala de visitas Na infância quando estava aprendendo a falar foi com sua mãe visitar alguns parentes Sua mãe saiu e deixouo na sala Obsessivamente não parava de falar pintobunda de acordo com a conexão mostra da no último desenho Seriam seus canais de limpeza interna Quando o analista fala não sabe se as palavras são boas ou más Elas permanecem no abdome com pletamente mortas Vai para casa No dia seguinte volta para a análise As palavras do reservatório ab dominal vão para os intestinos Onde são reanima das Em tubos especiais chegam à cabeça onde fica sabendo se são boas ou más O que não presta é de volvido pelo ânus ou pela urina mas o que é bom não sabe onde caminha O modelo esquemático de filtragem pressupõe a maneira de explicar pelo corpo os problemas da mente Mãe Barriga Ânus Pênis Em outra Oportunidade conta sonho em que estava evacuando sem sentir perdia o controle da evacuação O fígado parecia ligado por um tubo ao cérebro Surgiam esfíncteres por todo o corpo Era uma bolsa cheia de esfíncteres Dentro dela o fígado ligado à mente Que coisa horrível que pesadelos Que sonhos terríveis Preocupase com sua identidade controlada pelo ânus Se o esfíncter anal fraqueja procura criar outros senão o cérebro poderá sair da caixa crania na seguir ao fígado e deste caminhar pelos intesti nos quando então poderia morrer Sua mãe sempre preocupouse com o funciona mento dos esfíncteres Limpava o ânus do filho e de relógio em punho dizia Ontem nesta hora você fez um pouco de cocô para a mamãe e agora dê um jeito faça um pouco de cocô para o papai Tinha de arran jar outros buracos para contentála pois foi sempre menino obediente Certa noite entrou em confusão O intestino estava colocado dentro da cabeça Agitavase imen samente e não dormia O desgaste era intenso Pela manhã antes da sessão aliviouse com duas evacua ções mas chegou à análise temendo o inverso que a cabeça poderia sair pelos intestinos Mente Reto Ânus Sistema de controle Psicossomaticaindd 265 Psicossomaticaindd 265 05012010 121213 05012010 121213 266 Mello Filho Burd e cols Receia dizer a palavra fezes pois pode sentir o cheiro uma vez que não consegue abstrair seu sig nificado Não sabe simbolizar Por essa razão repete seguidamente pintobunda para desafetizar urina e fezes Assim as palavras urina e fezes perdem o chei ro e pode desse modo falar sem receio Com o seu sistema de filtragem as palavras amor ódio ciúmes inveja etc podem ser pronun ciadas sem qualquer receio pois na filtragem foram desafetizadas Com o mecanismo filtrado todas as palavras adquirem o sentido de pintobunda Mostra remanes cente infantil em que a palavra tem sentido onipo tente Assim a palavra fezes tem fezes e a palavra urina contém urina Contamina a palavra com a re presentação As sessões de análise são o toalete e a cabeça do analista é o pote É prazer para o paciente ver o analista entrar no jogo de suas fantasias Deseja manter a função mental equiparada à função digestiva Não se descuida pois as fezes po deriam ser emoções más e perigosas alcançando a cabeça e causando danos irreparáveis Procura con gelar afetos e desafetizar palavras Com esse sistema pode sair da análise e na faculdade dar aulas de ana tomia O paciente apresenta corpo fantasmático com fantasias inconscientes que se vinculam ao seu soma e que vão se estruturando umas após outras com res significações secundarias equivalentes a várias muta ções Imagem corporal do neurótico O homem considerado normal mantém a uni dade do corpo em virtude do predomínio de tendên cias construtivas A modelagem é vaga e nunca defi nitiva Segue necessidades da vida Se há ódio suas forças a destroem Se há amor suas energias recupe ram reconstroem e reorganizam o modelo do corpo Não há imagem definitiva mesmo com o concurso de todas as nossas sensações Impressões visuais audi tivas táteis etc nunca nos fornecem o conhecimen to integrado de nosso corpo mesmo com funções normais do cérebro ao qual se atribui o encargo de manter o corpo unido No homem considerado normal é possível que a angústia prejudique o modelo postural Os proble mas emocionais acarretando angústia estariam no centro da personalidade centro imaginário do ego e no sentido centrífugo atingem a periferia alterando a imagem corporal No paciente histérico o distúrbio em si simbo liza o órgão sexual conectado às relações sexuais com outras pessoas A sensação de sufocamento na garganta por prego enfiado na cabeça expressa o desejo do órgão sexual masculino As vezes a sen sação anestésica de parte do corpo traduz repressão de impulsos sexuais Em outras a hipersensibilida de dolorosa exagerada da zona do mamilo indica tendências sexuais vinculadas a grandes desejos eró ticos Em muitos pacientes há deslocamento dos ór gãos genitais para outros órgãos mudando a imagem do corpo por ocorrências na esfera psíquica Na luta contra a genitalidade o histérico simboliza às vezes a eliminação dos órgãos sexuais No paciente hipocondríaco há aumento da libi do narcísica em determinadas partes do corpo cuja estmtura funcional pode se alterar porque é genitali zada simbolizando órgãos sexuais O indivíduo se de fende contra a excessiva carga libídica do órgão doen te tentando isolálo para a seguir eliminálo como corpo estranho dentro de sua imagem corporal Essa luta é acolhida pelo seu sistema egóico que é capaz de seduzir clínicos e cirurgiões para sua extração Procura livrarse de partes do corpo eliminandoas e projetan doas no mundo externo Tais partes evacuadas como fezes tornamse perseguidoras continuando conec tadas com o corpo Tratase de projeção incompleta Talvez o órgão superlibidizado seja muito valioso para livrarse dele permanecendo como corpo estranho Para fugir do mundo externo o hipocondría co temeroso das relações objetais concentrase no funcionamento do órgão conferindolhe importância fundamental A imagem corporal do neurótico modificase na passagem da prégenitalidade para a genitalidade Quando o nível genital amadurecido é alcançado po dese supor que experimentamos nosso corpo como unidade A imagem corporal seria estruturalizada com mudanças contínuas anatômicas fisiológicas etc de que todos os sentidos participam sob primado do aparelho psíquico Ânus Meato urinário Abdome Pote Boca Cabeça Psicossomaticaindd 266 Psicossomaticaindd 266 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 267 Roserifeld 1974 descreve imagem corporal neurótica como representação mental inconsciente da pele que recobre com calor o corpo Bick 1970 e Anzieu 1974 referemse à noção integrada da pele que sustenta e contém psicologicamente o calor do pai e da mãe Rosenfeld ibidem usa particularmen te o termo estrutura e não imagem em nível neu rótico enquanto existir a noção psicológica da pele no sentido de conter a massa do corpo Não significa que quadros clínicos neuróticos não possam funcio nar como esquema corporal psicótico como acontece na leucemia na hemofilia na hipocondria etc ao nível de destrutividade Imagem corporal do psicótico A noção mais primitiva da imagem corporal seria encontrada no psicótico com a ideia de que o corpo contém líquidos ou sangue com revestimento formado por paredes arteriais ou venosas As paredes vasculares teriam como a pele funções psicológicas de contenção e revestimento do corpo Se tais pare des se rompem como na psicose há sangramento esvaziamento e perigo de morte Rosenfeld afirma que o esquema corporal do psicótico não é exclusivo dos quadros clínicos feno menológicamente psicóticos podendo ser encontra do nas enfermidades psicossomáticas e em personali dades às vezes muito bem adaptadas à realidade No psicótico desapareceria a pele e as paredes vasculares artérias ou veias se contrairiam como a palma da mão para conter o corpo Artérias e veias seriam os últimos limites de contenção conferindo a configuração final da imagem do corpo Na relação objetal infantil no ato de separação da mãe esta tira pedaços do corpo Nesta altura para evitar o esvaziamento os vazos são mobiliza dos para funcionar como órgãos de contenção As vezes a hiperatividade muscular funciona como se gunda pele A noção de esvaziamento segundo Rosenfeld deve ser concebida de relações objetais corporais como por exemplo a criança buscando com a língua o mamilo da mãe Não o encontrando o bebê teria a sensação de que sua língua cai no vazio perdendo a noção não só de seus lábios como a pele do mamilo culminando com a perda do envoltório corporal A mesma perda de superfície corporal ocorre quando o objeto real externo ao ser atacado é destruído per dendo seu próprio envoltório Dessa vivência surge a noção de artérias ou veias contendo sangue consti tuindo a noção de limite extremo da imagem corpo ral do psicótico Os vasos suprem e funcionam como pele normal devido ao estancamento da libido A origem da contenção ao nível de artérias e veias residiria nos mecanismos de defesa face à ira decorrente do fato de necessitar de objeto que não é encontrado acarretando sofrimento de grande soli dão Os pacientes esquizofrênicos parecem mostrar esvaziamento do corpo por perda de sangue Quando experimentam alguma melhoria o sangue e substituí do por elementos de outra fluidez ou ainda substân cias oleosas culminando com matéria fecal dura O paciente Juan em crise psicótica descrito por Rosenfeld 1974 refere que ao enamorarse de uma garota se entrega de tal modo a sangrarse nela Se o seu amor não é correspondido o destino é matarse sangrandose nela Tem sensação de baixa pressão fantasia de esvaziamento debilidade como se esti vesse oco por dentro o que caracterizaria o esquema corporal psicótico O paciente Juan tenta reconstruir seu esquema corporal com busca homossexual junto ao analista através de sonho em que gosta da cor dos olhos de seu médico Certo dia entrou em pânico ao tentarem extrairlhe um calo do pé Todos saberiam que se en contrava oco por dentro A vivência intolerável do oco total seria a loucura Em sua primeira relação sexual teve a sensação de sangramento durante o coito acreditando ter en louquecido a mulher durante a ejaculação Procura preencher seu corpo fugindo do vazio ao comunicar que o analista é Deus não podendo perdelo e que o diabo está posto em outras pessoas Com cinco ses sões semanais ao aproximarse das férias Juan sen tese igual ao analista através de uma anastomose com fusão dos dois corpos como defesa frente à frag mentação derrame de sangue esvaziamento e mor te Ao retornar das férias conta alucinação possuin do o corpo de uma menina A identificação feminina total inclusive os seios serviria como compensação do peito ausente do analista Rosenfeld ibidem relata doença psicossomáti ca em uma jovem de 26 anos que percebeu sua doen ça após ruptura com seu namorado Deprimida com vontade de morrer profundamente angustiada mos trando inflamação muscular e necrose das paredes mucosas dos lábios da boca e da laringe sem poder falar e se alimentar salvo com sondas e soros chega a passar até três dias em coma A perda da relação objetal causoulhe ferida afe tiva que se transformou em lesões necróticas das mu cosas com danos graves restandolhe apenas débil parede arterial que como membrana rodeia e con tém sangue no interior do corpo Em crises agudas de angústia os vasos contraídos não conseguem conter o sangue que escapa perdendose no exterior Seria este o modelo de funcionamento do esquema corpo ral psicótico Psicossomaticaindd 267 Psicossomaticaindd 267 05012010 121213 05012010 121213 268 Mello Filho Burd e cols As lesões das mucosas traduziriam segundo o autor falta de atenção ou ausência do analista No período do mênstruo não ocorria simples fluxo san guíneo mas seria hemorragia como se fora sangra mento de seu self corporal A relação analistaanalisando ou mamiloboca mostrou a toda separação induzia à fantasia de que o mami lo arranca e leva pedaços da pele de seu corpo b ataque assassino ao objeto que a abandona c sangramento através dos orifícios perfurados e da pele arrancada d confusão analistaanalisando mamiloboca pro picia ataque em espaço não diferenciado ou seja em decorrência da fusão não há limites de tal modo que atacar o mamilo equivale a atacar a própria boca Destruído o revestimento do corpo restam ape nas paredes arteriais ou venosas que contêm sangue no seu interior fazendo o perfil do esquema corporal psicótico O mundo inconsciente registra como imagem do corpo grande artéria ou veia a ponto de perfurar se Esse registro é totalmente diferente daquele ob servado tanto na Anatomia como na Histologia A fantasia em certos pacientes de ter leucemia pode segundo Rosenfeld ibidem indicar aviso de esvaziamento sanguíneo até delírio persecutório se vero com monstros e bichos que devoram o sangue Tais delírios levam pacientes a intentos suicidas cor tando veias para expulsar os objetos persecutórios que invadiram o esquema corporal psicótico Um medo genérico em relação à integridade do corpo que se pode desmembrar existe nas psicoses segundo descrição de Shilder 1950 A unidade dos instintos segundo o autor é muito ameaçada nas psi coses razão pela qual os desmembramentos ocorrem sob influência de tendências agressivas contra o mun do externo e contra si mesmo Há enorme labilidade do modelo do corpo por que a extrema necessidade emocional projeta no mundo externo partes do corpo O medo da muti lação teria por base o amor narcísico que o indiví duo tem pelo seu próprio corpo O motivo do des membramento diz Shilder ibidem é a expressão do complexo de castração ao nível do amorpróprio narcisista e especialmente na melancolia na qual as tendências sádicas são fortes e cruéis sendo comum fratura do modelo do corpo O melancólico nega a existência de quase to das as partes de seu corpo Os intestinos se foram não pode mais defecar a bexiga não existe não pode mais urinar as pernas desaparecem não pode mais andar Shilder cita paciente que se sentia perfurada distorcida destruida viva como barril vazio sendo apenas ar e pó A cabeça se transformara em ma deira e o cérebro cozido em uma sopa Ela cortara e comera não só seu próprio cérebro como outros provenientes de outras cabeças Haveria grande pre valência de impulsos sádicos e grande dissociação entre vida emocional e primitivismo dos instintos É difícil obter desses pacientes descrição que permita diferenciar entre alteração real dos sentidos e das percepções e representações relativas ao modelo do corpo Imagens e percepções baseiamse em idênticos processos e estariam ligadas ao intelecto e ao pensa mento Percepção imaginação e pensamento assegu ra Shilder são ligados entre si Os processos mentais a respeito do corpo baseiamse na atitude como um todo impulsos energia libidinal percepções intelec to pensamento etc e somente dessa maneira se po derá obter compreensão mais profunda da estrutura da imagem corporal Há nas psicoses as mais variadas percepções imaginações e bizarrias a respeito do corpo O co ração retirado não bate mais o nariz mutilado não respira mais os ouvidos atingidos não ouvem mais etc queixas que se repetem indicando transforma ções e limitações graves Claro que influências psí quicas sob domínio de fantasias as mais diversas modificam a estrutura libidinal tornando lábeis as imagens do corpo comprometidas pelos desvios da percepção da imaginação e dos processos intelec tuais O paciente melancólico muito autodestrutivo face à predominância do instinto de morte inflinge e perpetua sofrimento para si e para os outros Mas não tarda em resgatar seu ego desmembrandoo res sucitandoo como processo de construção no meio de tanta destruição Será que aceitamos o primado do inconscien te porque é extraordinariamente difícil lidar com as interações psicofisiológicas em diferentes níveis que se influenciam e se interpretam com extraordinário dinamismo Restanos a noção de que imagem corporal não é entidade rígida estabelecida mas incompleta in constante e indefinida que estamos sempre procu rando CONSIDERAÇÕES FINAIS 1 A imagem do corpo não é mera sensação ou ima ginação 2 A imagem do corpo estruturalizase na mente no contato do indivíduo consigo mesmo e com o mundo que o rodeia Psicossomaticaindd 268 Psicossomaticaindd 268 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 269 3 Sob o primado do inconsciente entram em sua formação contribuições anatômicas fisiológicas neurológicas sociológicas etc 4 A imagem do corpo é unidade passível de trans formações em que todos os sentidos entram em colaboração 5 A estrutura final do modelo do corpo depende da situação global Ela decorre de síntese cuja operação reúne representações de várias proce dencias umas com as outras resumindo todas as diferenças em um só conhecimento o corpo 6 A imagem do corpo se estabelece à custa da per cepção que vai registrando modelos de postura que se modificam constantemente a partir de manifestações emocionais que por seu turno de pendem da mobilização das zonas erógenas 7 Em cada momento cada atitude emocional con fere determinado modelo postural pois obedece ora ao instinto de vida ora ao instinto de morte 8 Podemos acompanhar as sensações percepções e reações motoras de uma criança para entender o desenvolvimento da imagem corporal que surge nos desenhos infantis 9 As crianças desenham figuras humanas refletindo a imagem mental que possuem de seu corpo com projeções de formas isoladas e desconexas Usam o controle motor dos membros a experiência vi sual e tátil na construção do eu corporal segundo necessidades de suas personalidades 10 O exame dos desenhos infantis nos da ideia de que os modelos do corpo resultam da capacidade criativa gestáltica do psiquismo da criança que traduz desenvolvimento que vai desde o estado embrionário até certo amadurecimento É possí vel que cada traço traduza impulso algo específi co para cada movimento 11 Se mudarmos de modo contínuo nosso psiquis mo também alteramos nossas imagens do corpo 12 A energia de vida as ações e as determinações sensomotoras sob influência de impulsos internos levam a criança em processo ativo e contínuo de desenvolvimento a configurar em desenhos seu esquema corporal A incapacidade sintética possi velmente corre por conta em parte dos recursos motores e sensoriais ainda não integrados 13 O corpo pode ser considerado em sua constru ção como unidade destacandose massa pesada com orifícios cavidades e protuberâncias desen volvidas em superfície e contornos 14 Do ponto de vista psicanalítico a imagem corpo ral é construída a partir da integração entre ego e id em interjogo contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais 15 A imagem do corpo começa a se desenhar na boca porque há um núcleo dessa imagem na zona oral A cabeça os braços as mãos o tronco as pernas e os pés cresceriam a partir desse núcleo 16 O corpo imaginado como estrutura mais compac ta poderia ser projetado no mundo externo este como estrutura mais frouxa introjetado pelo cor po 17 O fluxo de energia libidinal por ser dinâmico da boca atinge o ânus podendo também mudar a imagem do corpo porque agora a concentração libidinal se faz no extremo oposto do aparelho digestivo Em seguida os genitais fonte de pra zer especial e as sensações uretrais completam a imagem configuradoa É evidente que o erotis mo muscular é cutâneo e com as sensações pro venientes da pele tem significado para o delinea mento da superfície do corpo 18 Ao se dar ênfase às tendências psicossexuais dos orifícios anatômicos do corpo olhos boca ânus meato urinário e orifício vulvar aproximase o corpo da mente pois essas aberturas do soma são sede de fantasias psíquicas 19 Os orifícios anatômicos constituem as zonas mais sensíveis do corpo com sua psicologia específica Os órgãos portadores dessas aberturas levam o indivíduo a ter contato com o mundo externo e com isso procedese à descoberta do corpo 20 A pele registrando inúmeras sensações provoca a necessidade do contato das mãos sobre ela As mãos deslizando sobre o corpo permitem esta belecer seus contornos 21 A imagem corporal provavelmente não existe per se parte do mundo interno e externo e por essa razão é estrutura mais ou menos vaga Nunca é estática Tem sempre tendências à ruptura Com as alterações fisiológicas habituais e com as mu danças do fluxo libidinal face aos desvios das si tuações de vida podese inferir de sua contínua modificação 22 Não há imagem corporal sem personalidade pois ambas mantêm relação íntima e específica 23 A imagem corporal não se modifica apenas pela maturação dor doença e mutilação mas também por toda insatisfação que está ligada ao distúrbio libidinal 24 Em clínica médica ou cirúrgica consciente ou in conscientemente o corpo é tratado como objeto externo O paciente além de se imaginar como tal deseja também que seu corpo seja cuidado como algo de fora 25 Há relação nítida entre imagem corporal e zonas erógenas A nudez a vergonha a timidez e o en rubescimento nos encontros sociais onde se cru zam corpos testemunham a ligação erógena 26 Não sabemos como se desenvolve a imagem cor poral Admitimos desenvolvimento interno ma Psicossomaticaindd 269 Psicossomaticaindd 269 05012010 121213 05012010 121213 270 Mello Filho Burd e cols turação em todas as áreas da vida psíquica em conexão com experiências de vida Podese supor que traços da configuração postural dependem de atitudes emocionais repetidas 27 Desvios da imagem corporal podem surgir quan do não há coincidência com o corpo objetivamen te considerado 28 Na imagem corporal de paciente com enterocolo patia crônica não há contornos de superfície ex terna mas também fantasias a respeito de como o corpo é percebido por dentro 29 O homem considerado normal mantém a uni dade do corpo em virtude do predomínio de tendências construtivas A modelagem embora vaga e nunca definitiva acompanha as necessi dades da vida Às vezes o ódio parece destruir a imagem do corpo mas logo depois o amor pode reconstitruíla e reorganizála 30 A imagem corporal do neurótico reside na repre sentação mental inconsciente da pele Rosenfeld que sustenta e contém o calor da mãe e do pai 31 A imagem corporal do psicótico baseiase na ideia de que o corpo sem pele tem revestimento for mado por paredes arteriais e venosas que contêm líquidos ou sangue 32 O esquema corporal psicótico não é exclusivo dos quadros clínicos fenomenologicamente psicóti cos podendo ser encontrado nas enfermidades psicossomáticas e nas personalidades às vezes bem adaptadas à vida Rosenfeld 33 É extraordinariamente difícil lidar com as integra ções psicofisiológicas em diferentes níveis que se influenciam e se interpenetram com extraordiná rio dinamismo 34 Imagem corporal não é entidade rígida estabele cida mas incompleta inconsciente e indefinida que estamos sempre procurando REFERÊNCIAS Anzieu D Le moipeau Nouvelle Revue de Psychanalyse Paris Gallimard Sept 1974 Bemfeld S The psychology of infant New York Grune Stratton 1929 Bick E La experiencia de la piel en las relaciones de objeto tem pranas Rev de Psicanál de la Argentina Buenos Aires 1970 Capisano H Afetos na enfermidade psicossomática v 1 Associa ção Brasileira de Medicina Psicossomática II Encontro Argentino Brasileiro de Med Psicoss S Paulo 1978 Head H On dislurbances of Sensaliun wilh Special refererice to lhe pain of visceral diseases London Churchill Livingstone 1983 Studies in neurology London Churchill Livingstone 1920 Kanner L Shilder P Movements in optic images and Optic ima gination of movements J Nerv and Menlal Diseases n 72 p 489 1930 Kant E Crítica da razão pura 4 ed v 1 Biblioteca de Autores Célebres 1965 Komilow H Psychology in the light of dialectic materialism Wor cester MaSS Murchison 1930 Muraro R4 Na vivência da sexualidade o exercício do poder Rev Clín Méd Rio de Janeiro vol 2 n 10 novdez 1984 Rosenfeld D El Cuerpo en psicoanaílisis XIII Congresso Latino Americano de Psicanálise Rio de Janeiro 1974 Shilder P The image and appearance of lhe human body New York I V Press 1950 Trench P The image and appearance of lhe human body London Trubner 1950 Psicossomaticaindd 270 Psicossomaticaindd 270 05012010 121213 05012010 121213 PARTE 4 Temas específi cos Trabalhos em especialidades médicas Psicossomaticaindd 271 Psicossomaticaindd 271 05012010 121213 05012010 121213 Conceituase Pediatria como o ramo da Medici na que assiste a criança em seu crescimento e desen volvimento Esta assistência envolve continuamente aspectos curativos e preventivos O setor preventivo propriamente dito integra o capítulo da puericultura que abrange os programas de higiene mental higiene antiinfecciosa higiene alimentar e higiene do ambiente físico Notase que os programas de higiene abrangem a criança de maneira global e a consideram do ponto de vista sociopsicossomático Marcondes 1985 Observamos que quando se trata do setor de higiene mental é comum o pediatra menosprezálo quer não lhe dando importância quer encaminhando seu paciente para o psiquiatra ou psicológico Esta atitude médica desestimula as famílias a trazerem queixas de seus filhos não relacionadas com doenças manifestas na área somática como são as infecções os traumatismos as neoplasias etc Muitas vezes os pais ante a resistência médica em discutir assuntos ligados à higiene mental e à hi giene do ambiente sensu latu tornamse retraídos e evitam falar destes assuntos por considerálos inopor tunos e não pertencentes à área médica Tivemos oportunidade de ver pais que quando as mães se queixavam que os filhos choravam muito brigavam demais xingavam ou faziam birras dizer lhes coisas assim Isto nada tem a ver com a consulta Educação é outra coisa Não faça o Doutor perder tempo com coisas sem interesse Nós estamos aqui por causa da gargan ta e da febre do bebê Em outra oportunidade observamos uma famí lia que levou o filho de oito meses ao pediatra ini cialmente porque acusava febre e posteriormente broncopneumonta Após desaparecer o quadro clínico que justificou a primeira consulta o paciente teve que ser levado de volta ao consultório por mais 5 ou 6 vezes porque chorava Depois de tantas consultas exames de laborató rios e medicamentos para dormir sem qualquer res posta por parte da criança o medico disse à mãe que seu filho estava cheio de manha e que só voltasse ao consultório quando realmente ele apresentasse algu ma doença Isso foi dito após o pai que estava presente à consulta dizer que sua mulher precisava ter mais pa ciência com o filho e que ela era apavorada Sem perceber o pediatria para livrarse de uma situação incômoda com a qual não sabia lidar o cho ro da criança e a angústia da mãe fez um conluio com o pai que por sua vez precisava culpar alguém pelo comportamento do bebê em razão dos remorsos que tinha de estar sempre ausente de casa por causa da profissão de viajante A broncopneumonia foi curada porém a parte emocional da criança ficou sem qualquer assistência e o que é pior o próprio profissional de saúde semeou contradições no ambiente familiar reforçando diver gências litigiosas entre os pais responsáveis pelo am biente emocional que envolve a criança ibidem Com o decorrer do tempo tais divergências criam tensões que cronicamente persistentes atin gem o setor emocional da criança predispondoa ao comprometimento dos demais setores de sua vida Winnicott 1978 Deluqui 1985 Do quadro exposto decorre anorexia insônias mau aproveitamento escolar obstipações intestinais diarreias até baixas de resistência com infecções de repetição Ao lidar com nossos pacientes não devemos es quecer de que curar não é tratar sintomas Ao exercer a clínica pedíátrica com o fim de devolver a criança a seus padrões de saúde não devemos iatrogenizar Caso algum de nossos pacientes apresente qua dro de amigdalite devemos responder a uma série de inquirições antes de tomar qualquer medida tera pêutica Primeiramente devese confirmar o diagnóstico de maneira adequada A seguir formulamse algumas questões básicas tais como se a amigdalite é virótica ou bacteriana 19 PSICOSSOMÁTICA E PEDIATRIA Adolpho Menezes de Mello Psicossomaticaindd 273 Psicossomaticaindd 273 05012010 121213 05012010 121213 274 Mello Filho Burd e cols No primeiro caso não se usa antibiótico e se gundo nossa opinião nem mesmo antiinflamatórios por serem destituídos de valor além de inúmeras ve zes determinarem efeitos colaterais sérios Se for bacteriana que antibiótico usar Aqui devese levar em consideração não só o preço como também sua aplicação Certa vez ao diagnosticar amigdalite em um paciente e ao comunicar o fato à mãe ouvi dela o seguinte dirigindose ao filho Olha aí filho eu não te disse para não tomar sorve te Agora o Doutor vai te dar injeção É claro que a discussão a respeito do sorvete foi vencida pela criança mas a mãe não se confor mando com a derrota aproveitou a oportunidade da doença para descarregar sua raiva usandome para consolidar sua vingança Se o médico não está atento a estas questões e se a criança o desgostou durante a consulta por algum motivo inconscientemente aliarseá à mãe Com a aparência de quererem o bem dela médico e mãe vingamse dandolhe medicação injetável quan do a via oral poderia ser utilizada com igual resultado e menos agressão Precisase internar ou não As vezes internamos pacientes que passam a correr sérios riscos de infecções hospitalares graves expondose a perigos maiores do que se ficassem sem tratamento Registrase ainda o fato de que ao internar a criança muitas vezes a separamos da mãe da família e do ambiente doméstico com graves prejuízos para sua saúde lncluemse nestes prejuízos as depressões ana clíticas hospilalismos deprivação maternal Spitz 1974 até o desmame forçado que levará a criança à desnutrição após a alta porque a família privada de boas condições econômicas não lhe pode dar ali mentação adequada Mesmo que a mãe acompanhe o filho durante a internação O paciente continuará exposto às infecções hospitalares e privado de seu lar e família que em contrapartida recebem os prejuízos da ausência da mãe Do exposto concluise que verdadeira terapêu tica é aquela que zela pela criança de maneira global e está sempre dando seus passos banhada pelo espíri to preventivo característico da puericultura Fica óbvio que a criança é um ser sociopsicos somático e que este é o único modelo capaz de aten dêla adequadamente Alcântara 1945 Marcondes 1985 Tal concepção difícil de integrar o comporta mento pediátrico comum foi reconhecido no Brasil já em 1945 Alcântara 1945 quando se aceitou ser de ordem social o grande problema da criança Alcântara o grande mestre da pediatria brasi leira insiste em assinalar que ou se atende a criança de modo global ou o atendimento será destituído de valor efetivo Nossa experiência é rica de casos aparentemen te simples cuja solução só é possível se o pediatra apoiarse em bases sociopsicossomáticas Não existem duas medicinas uma sociopsicos somática outra somática Quem não exerce pediatria psicossomática sim plesmente não faz pediatria Para enriquecer com bases experimentais este conceito lembraremos inúmeros casos por nós traba lhados ao longo de 22 anos de exercício da pediatria Ana Paula era uma menina de mais ou menos 1 ano quando numa noite a visitei Havia dias que não mamava chorava quando via a mamadeira e a mãe tentava ajeitala no colo para alimentála Estava nervosa com sono agitado mas já não acusava sintomas como febre e diarreia que existiam no início do quadro Segundo a mãe a menina tivera otite média aguda tratada pelo otor rinologista que lhe lancetara o tímpano por 3 vezes em aproximadamente 12 dias Após o tratamento com paracentese antibióticos e calor no ouvido a in fecção aparentemente cedera mas sobrou o quadro que me levou à casa da paciente Pedi à mãe que colocasse a paciente no colo mas sem deitála e que embrulhasse a mamadeira com um pano além de umedecer o bico com mel Nestas condições a garota aceitou mamar sem qual quer dificuldade Ocorreu que devido às dores repetidas ao su gar Ana Paula tinha pavor de sofrer recusavase a mamar e chorava só ao ver a mamadeira Aliás choro é frequente queixa em nosso consultório Inúmeras mães que se queixavam da dor de barriga dos bebês vinham ao consultório à noite e ao chegar diziam Doutor foi entrar no carro sumiu a dor É claro que as dores de barriga do lactente são manifestações ligadas à tensão emocional dos pais e da família representando além do mais o rompi mento da adaptação existente entre mãe e bebê du rante a gestação Este quadro clínico só poderá ser corrigido se mãe e bebê se readaptarem às novas condições após o nascimento Para tanto o pai representa fator im portante na medida em que dá à mãe segurança capaz de permitir o exercício da maternagem Win nicott 1977 Em casa o choro gerava a angústia da família o que por sua vez aumentava o choro Psicossomaticaindd 274 Psicossomaticaindd 274 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 275 do bebê Quando saía do ambiente tenso a criança dormia e no consultório sequer precisava ser exa minada Flávia era uma linda garota de 8 meses quando sua mãe me pediu para vêla porque havia dias não acei tava a mamadeira chorava tornandose profunda mente irritada Fazia 30 dias que já vinha brigando para mamar mas antes passada apenas uma semana na hora da mamadeira gritava e acabava não se ali mentando Aceitava todavia comida de sal geleia de frutas na colher Houve suspeita de que a menina tivesse enjoado do leite Pedi à mãe que a trouxesse ao consultório e não esquecesse a mamadeira Ao tentar darlhe o leite diante de mim ficou claro o porque da não aceitação Muitas mães desde que o bebê nasce amamentamno segurando uma de suas mãos Com o tempo isso não é suportado pela criança A partir de 8 meses aproximadamente o bebê não gosta de muita restrição Neste caso quando a mãe a segurava para oferecer a mamadeira faziao prendendo seu corpo com uma das mãos o que irri tava profundamente a paciente Colocada sobre a mesa a criança secou a ma madeira Com a orientação de deixála sem restrição física para mamar desapareceu o problema Carolina era uma garota de 1 ano e 4 meses chorando na hora da comidinha de sal Ao observar a maneira como a mãe lhe oferecia as refeições ficou fácil entender o problema A mãe sentavase colocavaa no colo e para que não mexes se no prato abraçavaa com um dos braços obstan dolhe os movimentos Tal conduta irritava a menina que chorava e acabava por não aceitar o alimento A orientação de darlhe a comida num lugar adequado com luz sem barulho com temperatura ideal e com a menina livre para pôr a mão e fazer sujeira resolveu totalmente o problema Nossa preocupação em relação a estes casos é que as desarmonias iniciais levam a brigas intensas entre mãe e filho e destas surge falta de apetite de origem emocional que acaba por constituir enorme transtorno familiar de difícil solução Quando estas crianças são levadas ao pediatra este termina por rotulálas de anoréxicas oferecen dolhes os malditos orexígenos tão receitados Estes quadros só têm solução com base em orientações adequadas sem necessidade de qualquer remédio Há anos embora tenhamme ensinado na facul dade a usálos não me utilizo nem de remédios para cólica nem tampouco para abrir apetite Observei com o evolver do tempo uma série enorme de crianças que apresentavam o seguinte quadro Eram pacientes dentro dos dois primeiros anos de vida particularmente entre 6 e 12 meses As crian ças após internação para tratamento de patologias graves ao terem alta com suspensão da medicação injetável costumavam acordar de madrugada e ter imensa dificuldade para conciliar o sono Choravam muito O estudo destes casos mostrou algo interes sante relacionado às injeções As crianças acordavam à noite no momento das injeções Como a medicação injetável havia terminado esperavam as picadas que nunca vinham Daí o medo a angústia e o choro Ora inúmeras destas crianças tomaram remédio para dor para cólicas para se acalmarem etc sem qualquer sentido porque o problema real estava nos seus so frimentos e na dinâmica de suas emoções A este respeito tivemos oportunidade de lidar com duas crianças de 1 ano e 3 meses de idade as quais ligaram suas emoções ao meio O primeiro caso era o de uma menina que após quadro infeccioso acusou hábito de acordar por vol ta das 23 horas chorar intensamente e não dormir o resto da noite acusando sono interrompido e de pouca duração A mãe da paciente com dó da filha aplicava a injeção das 23 horas com a criança dormindo e a acalentava após a aplicação Ao suspenderse a medicação a paciente acor dava e não dormia como foi descrito O interessante é que a paciente associava o am biente do quarto com o sofrimento e só adquiriu rit mo normal de sono quando foi colocada em outro aposento No segundo caso uma menina acusava choro ao levantarse de manhã e ir à sala Apresentou este comportamento dois dias consecutivos Observando a casa na sala havia uma cortina grande separandoa de outro cômodo a qual fora retirada deixando o am biente modificado A retirada da cortina fez desapa recer o comportamento Nesta sequência de exemplos enumeraremos alguns igualmente importantes na ilustração do aten dimento global sociopsicossomático à criança Edson garoto de 1 ano foi internado para tra tamento de broncopneumonia Após curarse do qua dro infeccioso tornouse apagado diminuiu contato com o pessoal de enfermagem e começou a sugar o polegar Concomitantemente perdeu o apetite e apre sentou vômitos duas a quatro vezes ao dia A noite enquanto dormia colocava o dedo na boca A sucção desaparecia se era acariciado durante o sono Com duas semanas de evolução surgiu diarreia emagre Psicossomaticaindd 275 Psicossomaticaindd 275 05012010 121213 05012010 121213 276 Mello Filho Burd e cols cimento e desidratação Como todos os exames la boratoriais se mostrassem normais procurei a mãe e coloqueia com o menino em um quarto isolado Pedi à genitora que lhe oferecesse o seio mesmo quase sem leite e que ambos nus com roupões ficassem em intenso contato corporal Após 8 a 12 horas de contato íntimo mãefilho ofereci a Edson 30mL de leite de vaca e ele não vo mitou Como passasse bem dei alta à mãefilho para seguirem o mesmo esquema e orientação alimentar Os sintomas desapareceram e o paciente recuperou se totalmente Pela última vez vi a mesma criança aos 8 anos No Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Marília observamos vários bebês que após estarem curados de suas infecções acusaram quadros de tristeza apatia anorexia e até mesmo de choro ao contato com o pessoal da saúde Todo o quadro desaparecia em prazo variável de três a sete dias com a prescrição de contato corporal com a criança realizado particularmente pelos médi cos internos e residentes Este contato pode ser reali zado enconstandose a criança ao corpo passando a mão nela após deixála nua A receita seria assim Passar a mão três vezes ao dia 10 minutos cada vez É claro que ao aproximarse do bebê em sofri mento o médico precisa ser hábil e realizar lenta mente a aproximação Costumo chegar junto ao leito e falar baixinho acariciarlhe o rosto e depois termi nar com o tratamento de contato corporal A melhor pessoa para fazer isto é a mãe mas em nossos hospitais grande parte dos bebês ficam internados sozinhos Para ampliar nossos conhecimentos práticos a respeito do tratamento com contato corporal cito os seguintes casos por nós seguidos em clínica particular Mariana e Marcos são bebês de 6 e 8 meses res pectivamente e me são levados com queixas de choro intenso e dores em horários que se correspondem en tre 17h20 e 19h Em ambos os casos suas mães chegavam à casa após o trabalho às 17h Várias consultas com pediatras foram insuficien tes embora se tenham utilizado até tranquilizantes Minha receita foi suspender qualquer medica ção e pedir às mães que ao chegarem à casa isolas semse totalmente do resto da família e do mundo tomassem banho arrumassemse vestindo somente um roupão A seguir acordariam os bebês antes que eles despertassem espontaneamente e fossem retirando lhes as roupas até que ficassem nus Em seguida as mães deveriam embrulhar os bebês com o seu rou pão deitados na cama de tal sorte que as crianças pu dessem sentir os batimentos cardíacos e até mesmo os movimentos gastrintestinais de suas mães Este ritual deveria durar aproximadamente de uma a duas horas Após uma semana os problemas que motivaram tanta queixa desapareceram Aqui há algo interessante não se pode ser mais real do que o rei Isto quer dizer até o retirar a rou pa e embrulhar o nenê no roupão o médico receita Daí para a frente precisamos entender que a mãe e o bebê se acertam melhor sem palpites de terceiros A natureza mãebebê sabe bem o que faz Muitas vezes querendo ser muito importantes tentamos ensinar em demasia e atrapalhamos porque o que devem fa zer mãe e bebê na cama não posso saber pois não sou mãe Winnicott 1977 Em 1987 cuidei de um paciente do sexo mascu lino que contava na época com 10 meses Ismael após broncopneumonia fora medicado por dez dias com várias injeções de antibiótico Já no final do tratamento antimicrobiano o me nino mostravase irritado sem apetite e não conse guia dormir Quando o tratamento terminou ao contrário do que se poderia esperar os sintomas ligados ao com portamento intensificaramse Após analisar o quadro do garoto fiz a seguinte receita Mãe três vezes ao dia uma hora cada vez A mãe apesar de esclarecida assustouse com a receita e me deu certo trabalho para fazêla entender a prescrição O esquema é o mesmo citado anteriormente a mãe é colocada com seu bebê isoladamente três ve zes ao dia uma hora por vez e com grande contato corporal dentro dos moldes já descritos Uma semana após a consulta fui informado pela família de que a vida de Ismael haviase norma lizado A IMPORTÂNCIA DE CONHECER O NORMAL Grande parte dos médicos tem imensas dificul dades em lidar com o normal porque nas faculdades não tiveram contatos com pacientes normais O que é pior não foram trabalhados para atender crianças normais Não conhecendo o normal o pediatra sai da es cola com o furor de receitar Como o normal é o campo da prevenção e tam bém da iatrogenia a puericultura jamais terá sucesso Psicossomaticaindd 276 Psicossomaticaindd 276 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 277 e as doenças iatrogênicas terão mesmo que crescer de maneira assustadora Certa vez pedi a um residente que se sentasse ao lado de um recémnascido para ouvilo chorar O rapaz olhoume assustado pensando que fosse brin cadeira da minha parte No primeiro ano de Medicina estudamos Ana tomia Histologia Estatística etc No segundo e ter ceiro aprendemos Fisiologia Anatomia Patológica Bioquímica e assim por diante e claro que com sapos coelhos e cachorros O aluno tomará contato com seres humanos no quarto ano e desde então já com doentes Daí até o fim do curso só vai ver doentes Penso ser de muita importância durante o cur so traçar planos para que o estudante tenha contato com pessoas adultas e crianças normais Assim po deríamos descobrir bem cedo como vivem as famí lias suas dificuldades econômicas porque crianças nomiais fazem birra porque irmãos brigam que é normal chorar e o choro não precisa ser sedado como se fosse equivalente à doença etc Logicamente tendo boas noções de nossas nor malidades e da normalidade das pessoas De modo geral o pediatra receitaria menos orexígenos tran quilizantes anticonvulsivantes etc e iatrogenizaria menos Sustento que observando as famílias podería mos percebelos também como seres humanos e en tender melhor as dificuldades de nossos pacientes O pediatra muitas vezes colocase diante da fa mília como superior não permitindo que a mãe fale expondo suas ideias e temores Ao sair do consultó rio a família desnorteada fica mesmo sem aprender sua função no relacionamento com o profissional A ÓTICA DO PEDIATRA A noção que prevalece entre as pessoas é de que a criança é um ser passivo que precisa crescer para tornarse adulto e pessoa de bem O pior é que nin guém desconfia de que a infância é uma fase impor tante para que o futuro adulto seja pessoa normal De uma lado a família imagina que seus filhos preciam ser bonzinhos disciplinados com apetite de terminado pelos pais com sono que satisfaça as ne cessidades dos adultos quanto ao tempo intervalos e horários de dormir Para brincar há regras normas e o mundo que o adulto constrói para que as crianças se adaptem Construímos nossas cidades prédios etc e a criança terá que adaptarse a tudo mesmo que para isso tenha que ver televisão não fazer exercícios jogar videogame o dia todo e ir precocemente à escola Por sua vez as escolas necessitam de alunos e apresentam seus programas de educação bem condi zentes com esquemas que visam a ocupar a criança para que não nos perturbe Neste sentido lembramos que nossas escolas só têm atividade dirigida e todas que conheço não per mitem aos alunos brincarem como desejam ou seja exercer atividade de acordo com sua vontade Não nos esqueçamos de que as crianças pode riam ficar sem as escolas caso construíssemos nossas cidades pensando nelas A grande maioria de nossos filhos com ativida des livres e lugares adequados para desempenhálas seria preparada para a alfabetização sem as préesco las hoje tão difundidas É claro que as crianças que apresentam dificul dades no crescimento e desenvolvimento seriam de tectadas pelos profissionais de saúde e trabalhadas especificamente Paralelamente estamos nós pediatras ativos pensando que não nos compete discutir tais assuntos com as famílias Entendemos por formação acadêmica equivo cada que higiene mental é coisa de psiquiatria ou de psicólogo e que as dificuldades escolares de nossos pacientes não nos interessam Alguns pediatras até assumem para si o proble ma escolar de seus pacientes mas de novo sob gran de equívoco receitando piracetan ácido glutânico para melhorar a inteligência deles Por outro lado há crianças recebendo anticon vulsivantes porque trocam letras na escrita são mais agitadas apresentam disritmias assintomáticas ou porque mordem os amiguinhos durante as atividades na escola É claro que a agressividade nos primeiros anos de vida quando a criança baseia suas atitudes no processo primário Freud 1968 tem mesmo que ser maior particularmente quando trancadas em salas e permanentemente irritadas com atividades dirigidas por qualquer tipo de professora No momento há um conluio incrível que de acordo com minha observação está infelicitando a criança que provavelmente não será nenhum adulto feliz ou de bem Se de um lado os pais precisam de que elas fiquem quietas e obedientes os pediatras por outro desejam que isto ocorra porque não conhecem outra maneira de ajudar as famílias que lhes confiam os filhos Finalmente a escola faz de tudo para ter alunos também comportados e obedientes sem discutir se isso e bom ou não Para arrematar nossos governos não se preocu pam com a situação porque desejam adultos obedien tes e enquadrados em seus esquemas de mando Psicossomaticaindd 277 Psicossomaticaindd 277 05012010 121214 05012010 121214 278 Mello Filho Burd e cols Talvez seja o pediatra a única pessoa que possa mudar tal situação intercambiando conhecimentos com as escolas com as famílias e tendo a coragem de discutir os problemas das crianças como indivíduos pertencentes à família e à sociedade RELAÇÃO MÉDICOFAMÍLIACRIANÇA Poderseia discutir este item separandoo em relação pediatrafamília e pediatracriança mas não o faremos por considerar que no relacionamento pe diatracriança se inclui fatalmente a família e vice versa É interessante levar em conta a postura do pe diatra ao lidar com a criança porque influencia a fa mília reforçando condutas inadequadas préexisten tes ou desvalorizando condutas corretas abordadas no momento da orientação Precisamos de segurança em nossa atuação não apenas para que o choro e a rebeldia da criança não nos perturbem mas também pelo fato de a família tomar este modelo para futuras relações com o pa ciente Se durante o exame ou nos momentos que o antecedem sentirmos necessidade de enganar chan tagear prometer pirulitos ou inculcar medos na criança teremos oferecido à mãe modelo inadequado de se relacionar com o filho nada adiantando dizer a ela posteriormente durante as prescrições que o trate sem medos remorsos mentiras e chantagens Este quadro se agrava sobremaneira se a mãe já aplicava tais condutas erradas agora reforçadas pelo comportamento do profissional Em qualquer circunstância passase aos pais mensagem ambivalente que leva o conteúdo do que se falou e do que se fez durante a consulta Sumarizase dizendo que no caso o médico se portou como mau ou bom exemplo Objetivando a criação de ambiente favorável na rotina do consultório já no primeiro contato escla reço à família que durante a consulta me compete dizer ao paciente o que pode e o que não é permitido fazer A seguir dirijome ao paciente informandoo do seguinte Aqui não pode é perigoso mexer nas coisas que estão sobre a mesa e levar os brinquedos Fique tranquilo por que se você quiser fazer o que não pode não deixo Se o bebê por ser pequeno não puder entender tais explicações informo os adultos de que o choro e os resmungos por ventura existentes não ocasionam o mínimo incômodo Sempre adotei a seguinte conduta ao lidar com meus pacientes Preciso examinalo Você quer subir na mesa ou co loco você lá Caso a criança proteste ou chore digo Se quiser chorar espernear ou gritar não há proble mas consigo examinalo assim mesmo Caso a criança me pergunte se preciso ver a gar ganta digolhe que sim e que se sentir necessidade de chorar chore Ao mesmo tempo havendo necessidade peço à mãe que apenas me ajude a segurála sem falar nada ou tentar que o filho se cale E inadequado dizer coisas como Que feio Chorou tanto e não doeu nada Nossa Des te tamanho chorando Agora tome esse pirulito é para você Por outro lado a conduta correta mostra à famí lia que o choro é normal e não significa que precise ser medicado Ao mesmo tempo minha paciência é o espelho onde a família vai mirarse para lidar com o paciente Às vezes o pediatra mostrase muito bonzinho e aceita a rebeldia da criança que não permite anam nese e exame físico adequado Nestas situações ou se quer agradar a família ou não se tem equilíbrio inte rior suficiente para conduzir a consulta o que acaba prejudicando o paciente de alguma forma Não devemos ser grosseiros e agressivos O pe diatra precisa ter seriedade para extrair da consulta resultado satisfatório a seu paciente Aline minha paciente de 5 anos veio com sua família para consulta A mãe muito aflita pediume para entrar pri meiro Dizia ela Doutor minha filha perde o fôlego quando contraria da Se ela mexer em alguma coisa o senhor por favor não diga nada porque morro de medo Mostrando segurança pedilhe que não se pre ocupasse Ao entrarem os avós o pai e Aline dirigime à menina dizendo Aline nesta sala quem manda sou eu Aqui papai mamãe vovô e vovó não dão palpite Aqui não pode mexer nos livros nas coisas sobre a mesa não há peri go nem pode levar brinquedos o resto pode tudo Numa atitude desafiadora a menina quis mexer no relógio em cima da mesa Psicossomaticaindd 278 Psicossomaticaindd 278 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 279 De imediato segureilhe a mão dizendo Isto não é permitido combinei assim com você Se quiser chorar e perder o fôlego pode deitarse ali na almofada enquanto converso com seus pais Para surpresa de todos da família Aline não mais perturbou durante a consulta Aprendi que as crianças no decurso das consul tas não teimam nem me desobedecem porque sou claro e sincero com elas Por outro lado não tenho medo delas nem de que chorem fiquem nervosas gritem ou percam o fôlego Esta segurança precisa ser transmitida às famí lias pelo exemplo que damos ao lidar com os pacien tes durante a consulta Percebo há tempo que as crianças mais deso bedientes e agitadas no início da consulta vãose tor nando calmas e fáceis de se lidar enquanto oriento os pais até que no final se sentam e procuram fazer contato comigo pedindome algo ou querendo brin car comigo Muitas vezes o pediatra diante de certa queixa dá risadas faz deboches e críticas severas à mãe Tal conduta a deixa enveronhada humilhada e sentindo se em condições de inferioridade Além disso se outras pessoas da família estive rem presentes e forem discordantes das atitudes ma ternas poderão tomar o comportamento do pediatra como base para criticar as atitudes ou pensamentos maternos Durante uma consulta ouvi isto de uma senho ra Doutor meu marido minha sogra vão rir de mim já falei isto ao Dr X e ele riu de mim Fiquei com cara de boba mas se o senhor achar besteira não faz mal Esta senhora havia sido ridicularizada pelo pe diatra porque achava que sua filha tinha uma vagina muito grande e as fezes da menina eram esquisitas e feias Tomei a decisão de ouvila com paciência e esclarecêla em suas dificuldades Esta atitude a fez sentirse encorajada a trazer suas dúvidas dali para frente além de o restante da família ter percebido que suas queixas precisavam ser respeitadas Penso que mães como estas se sentem mais va lorizadas após as consultas e tornamse mais seguras ao lidarem com problemas de seus filhos Outro item importante no relacionamento com famílias em nosso consultório é a questão da paciên cia Tenho visto ensinar aos alunos na Faculdade uma via rápida de se fazer anamnese sem deixar o paciente realizar na sua exposição o que se conven cionou chamar de perder tempo Ensinamentos como estes devem ser discutidos minuciosamente pois o que se vê na prática é a mãe acuada pelo pediatra que por sua vez está aflito pelo excesso de trabalho Com tanta pressa é claro que o paciente não pode ser bem atendido Tenho interessante vivência de uma senhora que veio ao consultório com seu filho de 6 anos Du rante a consulta falou bastante e então combinei que voltasse outro dia para esclarecermos alguns pontos Na segunda consulta chegamos a várias conclu sões importantes em relação ao paciente mas notei que ela falou bastante de si mesma Na terceira con sulta voltou mas sem o filho e só falou de si Ficou claro e concluído entre nós que realmente ela precisava acertar alguns pontos na sua vida e que o filho foi o veículo para chegarmos a seus problemas Nestas consultas a criança foi beneficiada Por ser normal não recebeu qualquer terapêutica e ainda obteve benefícios porque quem tinha problemas era sua mãe que dali para frente poderia cuidar dos fi lhos em condições psicológicas muito melhores Durante a consulta o momento é propício para que o pediatra descubra e entenda uma série de coi sas importantes Assim observando a relação mãefilho colhem se dados úteis que depois se utilizam na orientação a ser dada à família Há pais que durante uma hora de consulta emi tem mil ordens proibitivas e nenhuma delas é obe decida Há aqueles que nada dizem aos filhos porque têm nítido medo deles ou porque são realmente dis plicentes Tais atitudes familiares são geradoras de dificuldades adaptativas das crianças em relação à escola família e sociedade sensu latu Outras vezes observamos contradições entre os diferentes membros da família incluindo a babá e até vizinhos que ao lidarem com a criança criam dificuldades para se criar uma disciplina necessária à sua vida Tenho visto adultos que durante a consulta de monstram excessivo dó em relação às frustrações dos filhos procurando evitar ínfimos sofrimentos que de modo geral são bem suportados por eles Isso tudo podemos observar no consultório Mas para tanto o pediatra necessita estar atento ser argu to sutil e ter capacidade de entender a dinâmica da família para darlhe orientação adequada Dentro desta linha de pensamento condenamos a conduta proposta várias vezes pelos pais e aceita pelo profissional de saúde de se retirar a criança da sala durante a anamnese ou depois do exame físico para que ela não os perturbe Psicossomaticaindd 279 Psicossomaticaindd 279 05012010 121214 05012010 121214 280 Mello Filho Burd e cols Em primeiro lugar como já foi exposto perdemos a oportunidade de estudar a relação pacientefamília e ainda damos aos adultos exemplo de intolerância em relação ao comportamento de seus filhos Nesta situação a conduta médica endossa a ideia familiar de que a criança não deve participar das decisões em relação a sua saúde o que nem sem pre é verdade Há oportunidades em que a criança ouve a con sulta quase não fala e sai dali com outro tipo de comportamento Em 1987 examinei uma paciente de 8 anos de idade com imensas dificuldades escolares e compor tamento depressivo A família impressionoume bastante pelos pro blemas e angústias Ficamos discutindo suas dificul dades durante duas horas A paciente nada falou durante a consulta mas se manteve muito atenta às discussões explicações e orientações em relação a seu caso Além de orientação dada indiquei psicoterapia como terapêutica para o caso Meses depois apesar de não se ter realizado o trabalho psicoterápico recebi notícias de que a pa ciente havia mudado totalmente a maneira de com portarse incluindo intensa melhora no rendimento escolar Nas condições da consulta mencionada estes fatos costumam ocorrer com relativa frequência quando tratamos de préescolar e escolares sem que sejam medicados ou submetidos a técnicas psicoterá picas mais complicadas De nenhum modo estou propondo consultas mi lagrosas mas mostrando que há consultas realmente terapêuticas e que devem ser usadas Balint admite implicitamente tais fatos quando afirma que o médico é bom medicamento e Winnicott 1984 quando descreve seus jogos de rabiscos acei ta essa afirmativa Queria que ficasse bem claro que me refiro às consultas de que participam a família e a criança Podemos afirmar que a primeira consulta em que orientamos os adultos que lidam com a criança é terapêutica não só pelo esclarecimento e aumento da segurança dos adultos mas também porque a criança apreende o que o médico fala e mostra nas suas atitu des e por isso amadurece Para que tais resultados ocorram o profissional deve ser tranquilo seguro ter bom domínio de suas emoções ser sincero ter disposição para explicar os pormenores das orientações ser paciente e admitir que a criança participando da consulta tem direito de ouvir falar discutir e de sempre ser respeitada Tenho visto famílias com ótima conduta em relação aos filhos como porem o número de infor mações que recebem sobre educação é grande ficam inseguras em relação ao que fazer com a criança quando acusa comportamento diverso Após a consulta e tendo nossa orientação como paradigma restabelecese a segurança na casa a har monia necessária instalase permitindo e auxiliando as melhoras Fica também claro que qualquer assunto que lhe diz respeito precisa ser tratado perto da criança Por menor que seja o paciente sabe o que moti vou a consulta Não adianta esconder Dois exemplos esclarecem A família de Marcelo veio ao consultório de sesperada porque seu tio muito querido estava com câncer e iria morrer Como o menino tinha grandes problemas emo cionais e físicos e também quando da morte da avó havia dado muito trabalho não sabiam o que fazer Resolvemos a dificuldade de maneira simples Chamei o garoto na presença da família e estabeleci com ele o diálogo abaixo Olha Marcelo preciso contarlhe algo que sua família não sabe resolver Seu tio X está com câncer e vai morrer O médico dele já disse É eu já desconfiava Você já sabia como Pelo jeito do pessoal lá em casa Após alguns minutos de silêncio Marcelo me perguntou se um milagre poderia salvar o tio Expliquei que não há milagres e que ele os esta va fantasiando para negar a morte da pessoa de quem gostava muito O garoto insistiu em saber se iria ou não ao se pultamento porque no de sua avó ficara nervoso e quebrara coisas durante o velório Posteriormente soube que foi ao enterro e se comportou muito bem Ao encarar a morte com naturalidade beneficia se o paciente DAssumpção 1988 Nosso segundo exemplo diz respeito a um pa ciente que foi trazido pela família e quando esta quis que ele saísse para conversar comigo resistiu Disselhe então que sua mãe se sentiria mais à vontade para falar de seus problemas longe dele mas que depois lhe contaria tudo que fosse falado O garoto respondeu que já sabia por que viera ao consultório e afirmou Minha mãe me trouxe porque eu falo como mulher Ligada a participação da criança à sua consulta precisase deixar claro que ela deve falar ao médico sobre sua doença e suas dificuldades Psicossomaticaindd 280 Psicossomaticaindd 280 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 281 A ideia de que a criança sempre deve ter o adul to como seu único intérprete está baseada no fato de comumente ser considerada numa fase da vida em que a passividade é sua característica fundamental O pediatra necessita ter em mente que seu pacien te tem sentimentos desejos próprios e conceitos sobre a vida que não podem ser proibidos de aparecer Assim como a criança não é um adulto em mi niatura longe está de ser um indivíduo que está cum prindo passivameme um estágio para depois como adulto ser igual aos que a educaram Não nos esqueçamos de que quando o bebê vê sua mão pela primeira vez chupa o dedo etc já faz um conceito do mundo Os educadores reconhecem modernamente este fato quando ao alfabetizarem percebem que o adulto tem um conceito sobre alfabetização e que a criança o tem da mesma forma Daí Emília Ferreiro proclamou que a criança não é um saco onde se vai colocando coisas Ferreiro 1986 Para realmente sermos capazes de ajudar a criança precisamos libertarnos dos preconceitos do autoritarismo precisamos aprender a lidar com nos sas próprias dificuldades internas Estas ideias são básicas Como é a família que leva o paciente e paga a consulta há tendências de o profissional agradála deixando de lado as reais ne cessidades da criança O caso abaixo elucida a questão Criança sadia foi levada à consulta como doente MAP com 11 anos foi levado ao nosso consultó rio pela senhora M sua mãe em 14686 MAP vive com seus pais e dois irmãos uma me nina de 12 para 13 anos e um menino de 7 MAP veio à consulta porque se tornou insupor tável De um ano para cá ficou irritado malcriado e bastante agressivo principalmente em relação à mãe Sua agressividade caracterizase principalmen te em responder com aspereza quando é chamado à atenção ou solicitado a colaborar nos trabalhos do mésticos Tornouse fanático por televisão come bastante e briga moderadamente com os irmãos Não os agride fisicamente a não ser dando tapas em raras oportu nidades MAP nunca apresentou problemas na escola onde é disciplinado alegre e cumpridor de suas obri gações até o momento da consulta Coincidindo com os problemas apresentados em casa também tem brigado com a mãe para fazer tare fas ou estudar em casa MAP e seus irmãos foram meus pacientes prati camente desde que nasceram e nunca apresentaram doenças graves ou internações A família tem bom poder aquisitivo pertencen do à classe médiaalta Há um mês foi levado ao neurologista Feito EEG revelouse foco irritativo em região temporal esquerda No início da consulta havia insistente pressão da mãe que representava o restante da família para que se medicasse o paciente Procuramos mostrar durante a consulta que além de medicamentos havia outras condutas tera pêuticas e que para se chegar a uma conclusão defi nitiva precisamos falar sobre a vida de MAP dentro da família O pai de MAP exatamente há um ano começara a viajar e permanecer semanas fora de casa em ou tro Estado cuidando de seus negócios Homem muito exigente cobrava da mãe responsabilidades em re lação ao que pudesse ocorrer com os filhos em sua ausência Com o afastamento do pai a senhora M que como toda a família não consegue entender o novo comportamento do menino como autoproteção pro moveu uma série de modificações na casa MAP que já trabalhava com seu tio fazendo até entregas de bicicleta na rua foi retirado do trabalho e sua bicicleta confiscada sob pretexto de perigo A senhora M não o deixou mais brincar na rua com os amigos e quando permitia que jogasse bola era sob rigoroso controle O paciente que já ia à es cola sozinho e tomava ônibus teve que passar a ir e voltar de carro com a mãe O comportamento da senhora M tornouse ab solutamente restritivo em relação aos filhos Ela ficou tão apavorada que quando estava em casa e o tele fone tocava demonstrava intenso pavor em atender pressupondo ser notícia de acidentes e mortes de fi lhos pai avós etc A menina mais velha voltou a usar chupeta ma madeira e a dormir com a mãe O caçula apresentou comportamento idêntico e ambos aceitavam o novo esquema criado na casa Segundo a senhora M os irmãos de MAP es tão muito afetivos cuidadosos deitam no colo dela e aceitam seu amor MAP entretanto está arredio não quer ser tratado como os irmãos Se alguém quer mimálo ou aconselhalo grita atira as coisas e sai de perto O próprio pai quando vem para casa relaciona se bem com o filho e já o aconselhou muito mas de nada adiantou Com o decorrer da consulta e após levantar os dados ficou claro para mim que MAP era um garoto Psicossomaticaindd 281 Psicossomaticaindd 281 05012010 121214 05012010 121214 282 Mello Filho Burd e cols normal vítima de uma família doente O comporta mento dele representa seu desejo de crescer ser ele e ao mesmo tempo libertarse Na realidade a relação paimãe é patológica e determinante do comportamento restritivo da mãe apoiada pelo pai quando aconselha o filho a com portarse bem Os dois irmãos de MAP assumiram intensa re gressão com comportamentos anormais para a idade mas aceitos como ótimos pela família atendendo a suas conveniências No contato com MAP o mesmo se mostrou ab solutamente normal o que já estava confirmado pelo seu modo de viver com os amigos e na escola Podese concluir que MAP é uma criança nor mal préadolescente que perdeu sua liberdade mas que briga por ela na tentativa de continuar a crescer No momento tenta quebrar as amarras que lhe são impostas pela autoridade exagerada e doentia do pai com a dependência e insegurança patológica da mãe Quando comparado com os pais e irmãos MAP pode ser considerado o membro sadio da família levado a uma consulta para que se comportasse como os ir mãos também doentes A família queria que MAP fosse aconselhado por mim e que também o medicasse para sedarlhe a re beldia que era bom indício de saúde Queríamos com este caso mostrar o perigo que existe de o médico tratar a criança saudável apoiando a família totalmente patológica Como este caso te mos dezenas de outros em nossa experiência Em algumas situações o pediatra assume a criança com seus problemas e trata a mãe ou a famí lia como inimigos É comum perguntarse à mãe coisas a que ela não sabe responder Esta então se informa com a em pregada ou com outra pessoa qualquer presente à consulta para dar a resposta Isso irrita o profissional que ignora dali para frente a presença materna e se dirige à outra infor mante tentando hostilizar a mãe Estas atitudes têm origem na época em que os pediatras implicavam com as madames que levavam as babás aos consultórios e estas se tornavam as in formantes Ao encontrar mães deste tipo sempre procuro incluílas na consulta valorizandoas em relação aos cuidados com os filhos Penso que com habilidade o médico consegue sensibilizar a pessoa em relação a suas funções e ela aceita as mudanças necessárias Por outro lado precisamos não nos esquecer de que modernamente nossas crianças estão em sua maio ria em creches e escolas préprimárias Temos que entender que já não estamos orien tando aquela família estruturada como antigamente em que a mãe permanecia em casa 24 horas por dia cuidando dos filhos As babás assumiram importante papel na for mação das crianças assim como as professoras e as funcionárias de creches Pareceme útil a atitude que temos tomado de aumentar nossos contatos com entidades orientan doas devidamente através de reuniões conferências grupos de mães programas de rádio colunas em jor nais etc Na sequência de condutas importantes como as que estamos discutindo é necessário que se aceite a seguinte Pouco ou quase não se dá oportunidade de a criança falar Os pais expõem seus pensamentos que muitas vezes representam desejos inconscientes de induzir o médico a trilhar certo caminho ou procuram forçar determinado diagnóstico Quando o pediatra é atento sincero com a famí lia e realmente quer beneficiar seu paciente forçoso é ouvilo A criança muitas vezes traz informações im portantes para a conduta do profissional fornecen donos dados de grande valia Além do mais quando valorizamos a criança permitindolhe participar da consulta ouvindoa também a valorizamos como ser humano o que pode servir de modelo para que os pais venham a conside rála com respeito Marcos era uma garoto de 5 anos quando veio consultarme pela primeira vez por causa de amigda lite Sua mãe muito ansiosa passou por cima de uma série de coisas importantes desprezandoas embora eu as houvesse abordado durante a consulta No meio da orientação Marcos disse Também Dr minha mãe vai me dar banho e puxa meu pipi dai eu não gosto Eu estou doente não tenho fome ela briga comi go pra comer e fala que eu preciso tomar injeção Eu não gosto de carne e ela fala que preciso comer se não eu fico fraco Meu amigo nunca come carne e eu nunca vi ele doente Este exemplo nos deixa claro que o pediatra precisa ouvir a criança porque ela tem coisas impor tantes a informar Estas queixas de Marcos negadas pela mãe permitiramnos discutir detalhadamente a questão da relação famíliacriança e enfocar dificuldades im portantes para a felicidade de ambas Sumariamente entendemos que o próprio pe diatra ao iniciar a consulta deve dizer bem claro que a criança terá liberdade para falar de suas dificulda des ligadas ou não à doença atual Psicossomaticaindd 282 Psicossomaticaindd 282 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 283 FRASES INFELIZES Alguns exemplos ligados a nossa experiência es clarecem devidamente O que pretendemos mostrar com este título Certo dia recebi para consulta uma senhora que em prantos repetia a frase Meu filho não poderia se resfriar e se resfriou Quando pedi para que se explicasse ouvia dizer que o Dr X tratou do seu filho com broncop neumonia e ao sair do hospital ouviu a frase que ela tanto repetia Olha mãe muito cuidado o nenê não pode pegar res friado Ao falar assim o médico realmente passou para a mãe a responsabilidade de evitar os resfriados como se ela tivesse em suas mãos tais meios A onipotência do profissional incitouo a orde nar e a mãe em nível ainda onipotente assumiu a responsabilidade Quando o resfriado apareceu ela se sentiu culpada daí o desespero Se ao invés desta ordem a orientação fosse me nos onipotente nada disso teria ocorrido Por exemplo Olha mamãe o bebê está curado A senhora vai para a casa com ele e qualquer coisa que houver me informe para que eu possa ajudála de perto Neste exemplo juntaramse onipotência e su perstição porque ter broncopneumonia e resfriarse não aumenta o risco de outra pneumonia Onipotência mais superstição no caso deixa ram a mãe emocionalmente mal e insegura para cui dar do filho Estamos cansados de saber que as angústias ma ternas podem ser captadas pelo bebê prejudicandoo intensamente Ana Maria era uma garota de 10 para 11 anos absolutamente normal quanto ao peso altura e de mais dados antropométricos e vitais Em sua casa havia desde que Ana nascera enorme obsessão matema para que ela se alimentas se isso sempre leva como aconteceu com a garota a intensa anorexia de ordem emocional A garota numa consulta com seu médico ouviu deste a seguinte frase Você precisa engordar pelo menos mais cinco quilos A consideração do médico em relação ao peso da paciente não só a perturbou profundamente como deu à mãe o apoio de que ela estava precisando para alimentar sua neurose por comida É interessante que na hora de passar a orienta ção final o pediatra disse à mãe que não a agradasse ou a forçasse comer É claro que a primeira e infeliz consideração de que ela necessitava engordar pelo menos mais cinco quilos foi o fósforo riscado na pólvora Osvaldinho era um nenê de 3 meses de idade Desenvolviase dentro dos limites da normalidade mas abaixo da média Ao ser levado ao pediatra a mãe ouviu deste a seguinte expressão Precisamos fazer tudo para que esta criança se desen volva mais É claro que tal consideração deixou a família em pânico Quando cuidei deste garoto aos 2 anos de idade ele estava dentro do normal para a faixa etária no que tange a peso e altura todavia mais uma vez com anorexia de origem emocional A situação criada pela infeliz conduta do medi co criou na família grande tensão emocional portan to ambiente desfavorável para o desenvolvimento do paciente Com o escopo de enriquecer nossa discussão gostaria de mostrar duas situações terríveis que pre judicam o paciente A primeira delas já mencionada anteriormente referese à frase do pediatra que diz a mãe Olha mãe a senhora agora só traga o bebê aqui quando ele estiver doente Ora isso simplesmente autoriza tratarse as doen ças e esquecerse a puericultura Fazer pediatria assim equivale a não fazer A segunda situação eu a vivi num Congresso de Pediatria na cidade de São Paulo imaginem só Numa mesaredonda sobre anorexia colocaram um psicanalista que não conseguindo respeitar a fal ta de apetite de seus filhos na sua exposição disse que é quase impossível aos pais respeitar as crianças quando não querem comer Falar isso a pediatras que vão a um congresso em busca de experiência de algo para aprender é absurdo Minhas atividades com crianças há 24 anos incluindo meu quarto ano médico mostraram exata mente o oposto Não só consegui respeitar meus pró prios filhos como através do meu trabalho obtive excelentes resultados com pacientes quer de consul tório particular quer do hospitalescola Uma coisa é conhecer psicanálise em profundi dade outra é aplicar conhecimentos na lida diária com pacientes Psicossomaticaindd 283 Psicossomaticaindd 283 05012010 121214 05012010 121214 284 Mello Filho Burd e cols ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE SINTOMAS E QUEIXAS Somos seres históricos As doenças não nos atin gem ocasionalmente O paciente organiza sua doença bem como seus sintomas Balint 1984 Embora pareçam claras as assertivas acima não são bem compreendidas ao se fazer a consulta pediá trica de rotina As queixas chegam espelhando aspectos somáti cos ou compondo o vetor psíquico Em qualquer circunstância jamais poderemos deixar de entender que com a queixa é trazido aqui lo que se tornou insuportável Isso significa que a queixa representa o limite da capacidade da família em lidar com as situações nela sintetizadas Érica uma garota de 7 anos tem medo de ir à escola Seus pais me procuraram para que resolva o problema Diz a mãe Ou o senhor medica ou dá conselhos para que ela vá à escola porque não aguentamos mais Logo à frente o equívoco materno e familiar fica mais claro É este o único problema dela Doutor No resto está tudo ótimo Aqui não há outra conduta a não ser aquela que elucida toda a relação da paciente com a família com a escola etc Neste caso foi preciso abordar setor por setor função por função da vida de Erica para descobrirmos que a queixa materna simbolizava a infantilização da filha Esta mãe não pemitia a Erica crescer Agradava insistia e forçava para que a garota se alimentasse Para evitar que Erica se resfriasse colocava à força roupas em demasia e a fazia cobrirse com excesso de cobertores Não permitia que a filha brincasse fora de casa com amigas Nunca lhe permitiu que escolhesse roupas nem a deixava tomar banho sozinha Qual quer dificuldades que a garota apresentasse interce dia sob pretexto de não vêla nervosa A queixa é o ápice o que emerge mas o restante do iceberg muito maior está totalmente escondido Daí decorre que há dois componentes naquilo que é trazido o latente que não aparece e o emer gente que compõe o que se pode denominar de ma nifesto Numa linguagem semiológica dirseia que a queixa tem caráter sindrômico Dentro desta abordagem competenos mostrar à família o equívoco em querer analisar a queixa sem conectála a todos os setores da vida do paciente Enquadrada num esquema superprotetor a me nina persistiu infantilizada sem iniciativa insegura e consequentemente não conseguia ir à escola em bora até mantivesse desejo de fazêlo Outro caso se refere a Cristóvão cujos pais me procuraram com a queixa de que o garoto vomitava de duas a quatro vezes ao dia já havia vários meses Ao ver o paciente no consultório acheio até obeso Após intensa exploração da vida do menino descobri que por insistência da mãe o garoto apesar dos 5 anos de idade tinha horário de alimentação cujos intervalos não ultrapassavam três horas A avó materna telefonava para a casa de nosso paciente de duas a três vezes por dia para saber como ele haviase alimentado recomendando à mãe que não se descui dasse do neto Cristóvão não podia brincar porque precisava comer impreterivelmente nos horários estabelecidos Seu pai no final da entrevista confessou que não pode sair com o filho pelo mesmo motivo Notamos bem que a queixa era vômito duas a quatro vezes ao dia Isso quer dizer que o que a mãe não aguentou foram os vômitos Ao estudar esta queixa deparase com toda a gama de problemas existentes porém não notados ou valorizados pela família É óbvio que modificando toda a relação de vida da família não só desapareceu a queixa como a obe sidade a acompanhou A obesidade poderia ser um motivo de queixa não o foi porque a família não só a suportou como a incentivou Se a queixa representa aquilo com que a família não pode mais lidar o sintoma é a via final comum de todas as dificuldades da criança Deduzse pois que o sintoma é o resultado de todos os problemas da criança elaborados como tal De nada adianta sedar sintomas sem entender a di nâmica que os determina Tratar sintomas significa usar os anti sejam eles quais forem antiinflamató rio antiespasmódico antibióticos antianorexígenos orexígenos anticonvulsivantes etc Entender a dinâmica determinante de sintomas de síndromes significa ir mais profundo ao assunto adquirir compreensão dele e lidar com sua provável etiologia etiopatogenia Fica claro que para exercer a terapêutica ba seiase na dinâmica na fisiopatologia ao passo que tratar sintomas é negar estes mecanismos Em pediatria se tomamos o que foi falado em termos de funções podemos resumir o exposto no es quema seguir proposto por Alcântara De acordo com a orientação sociopsicossomáti ca estas funções pertencem a uma roda dentada que posta em movimento não mais para Psicossomaticaindd 284 Psicossomaticaindd 284 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 285 As setas com duplo sentido indicam as mútuas influências de uma função sobre a outra Vêse logo que qualquer função se conecta a todas as demais Entender e exercitar este esquema é o que Marcondes e colaboradores 1985 cognominam atendimento global à criança Há uma expressão que precisa estar sempre em nossas mentes Quem trata o órgão o sistema ou o diagnóstico não trata o paciente Há que se compreender ainda que se o sinto ma resume as dificuldades da criança pode encer rar também o ponto atual do desenvolvimento que a criança atingiu Decorre daí portanto que o sintoma pode expressar quadro patológico ou normal Fica explicitado que qualquer sintoma é a lin guagem que a criança consegue organizar e trazer para ser analisada Como exemplo de sintomas com pondo quadro de normalidade podemos citar crian ças de 18 meses a 4 anos com suas birras e teimosias os comportamentos ligados à adolescência e a falta de apetite que a criança apresenta entre 12 e 36 me ses aproximadamente No primeiro caso a criança próxima aos 18 meses inicia o que se convencionou chamar fase de resistência ou de negativismo Neste período o nenê que ao longo do primeiro ano de vida viveu intensa fase de autoconhecimento ad quire boa noção de individualidade começando a não obedecer não gostar de ser contrariado apresentando se do contra em tudo com birras muito intensas Este quadro normal na evolução do bebê as susta a família que precisa aprender como se lida com a situação sem necessidade de qualquer medicamen to Deve ficar claro que toda criança normal passa por esta fase e que a ausência deste comportamento com maior ou menor intensidade é que pode signifi car presença de patologia Obviamente nestes casos os tranquilizantes sob quaisquer pretexto estão ab solutamente contraindicados Ao aproximarse de 1 ano de idade a crian ça que comia ou mamava bastante tinha aparência mais gorducha também porque quase não fazia exer cícios Já no segundo ano de vida o interesse infantil concentrado até então na autoexploração desviase para o meio ambiente de maneira intensa Aqui o apetite diminui bastante e a criança busca explorar o meio com o fito de enriquecer seu mundo visando a conhecer o mundo exterior Ocorre temporariamen te desinteresse pela alimentação há emagrecimento por excesso de exercícios e ela se torna um pouco irriquieta e mexelona É claro que a conformação física de criança ema grecida e comendo pouco dá a impressão de algo er rado É preciso salientar que alimentandose menos e explorando mais o meio a criança gasta as reser vas de gordura acumuladas e por isto se toma mais magra Basta ter paciência que a atividade diminui naturalmente após haver equilíbrio entre desejo de conhecer e conhecimento adquirido Como já foi afirmado neste período não há ne cessidade nem de orexígenos nem de tranquilizan tes bastando tãosomente espaço e locais adequados para que os acidentes não ocorram Estas fases orientadas são autolimitadas O mesmo ocorre com o adolescente que preci sa muito mais de compreensão e paciência para que possa definir sua vida Como foi afirmado os sintomas analisados com põem uma fase do desenvolvimento da criança e são normais se correspondem a referida fase Entretanto se o sintoma birra é normal na fase de negativismo será totalmente patológico aos 8 anos de idade E óbvio que ao analisar um sintoma é preciso considerálo evolutivamente sabendo inclusive que sua normalidade varia conforme o período etário em que aparece Em nossa vivência de consultório encontramos por vezes casos em que a família é adequada o pa ciente é normal mas surgem sintomas que os levam a consultar o pediatra É o caso de um rapaz de 16 anos que se tornou desanimado e com baixo rendimento escolar A análise da vida do nosso paciente revelou que estava cansado por excesso de atividade o que passa ra totalmente despercebido por ele e pelos familiares O jovem estudava trabalhava num período no posto de gasolina com o pai frequentava ainda escola de violão e natação três vezes por semana O caso supracitado pertence ao grupo de clien tes que sendo normais e apesar de viverem com fa mília adequada acusam sintomas decorrentes do excesso de atividade A correta orientação resolve as dificuldades existentes Em outras oportunidades temos encontrado fa mílias escolas e até mesmo grupos sociais tão dese FN MA Aqui FN Função nutritiva FP Função psíquica MA Meio ambiente FI Função imunitária FP FI Psicossomaticaindd 285 Psicossomaticaindd 285 05012010 121214 05012010 121214 286 Mello Filho Burd e cols quilibrados e confusos que acabam determinando o aparecimento de problemas cujos sintomas são trazi dos aos consultórios para serem solucionados A propósito lembramos de um garoto de 8 anos de idade cuja família nos procurou porque seu rendimento escolar era ruim Roia unhas e chorava toda vez que deveria ir à missa A questão religiosa preocupava particularmente os pais que eram católi cos praticantes Após demorada consulta descobri mos que a família e o grupo religioso a que pertencia castravam em excesso as atividades das crianças A orientação dada globalmente à família incluía a não obrigatoriedade da missa Pedi que fossem à igreja e que o pai por algum tempo convidasse o garoto para jogar bola Após todas as mudanças de conduta o garoto certo dia ao voltar do futebol com o pai disselhe Pai precisamos arranjar um dia pra gente ir à missa eu e você É claro que essa criança deixando de ser coa gida apresentou melhoras importantes na escola diminuiu o nervosismo e até pôde aceitar a missa propondo ao pai arranjar um dia para que ambos fos sem à igreja Fica evidente que se há famílias que exigem muito dos filhos também existem aquelas em que a criança não recebe o mínimo de limites retardando por isso seu amadurecimento Esses pacientes são crianças grandes medrosas inseguras exploradoras dos pais e que muitas vezes expõemse a riscos de acidentes A impressão que se tem é de que tais pacientes se sentem não amados e vivem expondose a perigos com a esperança de encontrar alguém que os ame mostre este amor sob forma de limites Finalmente poderíamos citar sintomas ligados a períodos de adaptação da criança a condições es pecíficas Neste grupo há duas situações especiais A primeira já comentada referese ao bebê que deixando a vida intrauterina necessita refazer sua relação com a mãe e quando isto não é possí vel surgem choros insônias anorexias dores de barriga etc A segunda situação tem como modelo a criança que vai à escola pela primeira vez particularmen te hoje com préescolas em franca atividade Tais crianças necessitam ser preparadas e rece bidas pela escola de maneira mais adequada do que vem ocorrendo Os sintomas que surgem nestas situações não devem ser considerados como doenças da criança porém mais apropriadamente como falta de capaci dade das escolas que dirigem todo o brinquedo de seus alunos e da sociedade que constrói tudo sem pensar nos filhos e posteriormente quer adaptálos às condições estabelecidas Há pouco tempo consultei uma criança de três anos que disse à sua mãe Mãe eu não gosto da escola porque lá a gente fica cantando balançando as mãos dançando e fazendo trabalhinhos É chato mãe eu queria brincar com terra com água correr brincar com meus amiguinhos Ah mãe eu gosto da tia mas é chato As pessoas que lidam com crianças precisam co nhecer coisas básicas sobre o significado do brinque do para poder entender esta queixa pura e simples de um menino de 3 anos Não nos esqueçamos de que a reclamação do garotinho Philipe encerra muita teoria que pediatras e professores deveriam conhecer pelo menos nos seus rendimentos Klein 1969 Win nicott 1975 REFERÊNCIAS Alcântara P Causas e remédios sociais da mortalidade infatil São Paulo Revista dos Tribunais 1945 Balint M O médico seu paciente e a doença Rio de Janeiro Athe neu 1984 DAsSunpção EA Tanatologia e o doente terminal Psicograma v 9 n 2 p 26 1988 Deluqui CG Disciplina In Bresolin AMB et al coord Pe diatria em consultório São Paulo Sarvier 1985 Ferreiro E A representação da linguagem e o processo de alfa berização In Reflexões sobre alfabetização 4 ed São Paulo Cortez 1986 Freud S Proyecto de una psicologia para neurólogos In Obras completas Madrid Biblioteca Nueva 1968 Kanner L La edad In Psiquiatria infatil 4 ed Buenos Aires Siglo Veinte Klein M Fundamentos psicológicos da análise infantil In Psicanálise da criança São Paulo Mestre Jou 1969 Marcondes E coord Pediatria básica 7 ed São Paulo Sar vier 1985 Mello A M A criança tal como é Série de Palestras 1 T As crianças reagem assim São Paulo Casa do Pequeno Trabalhador 1976 A fase do negativismo ou de resistência In Comporta mento infantil Série de Palestras 3 Pontes J F integração dos sintomas nos planos somático e psico emocional In Pontes J F et al Curso de medicina Sóciopsicosso mática IBEPEGE 1987 Psicossomaticaindd 286 Psicossomaticaindd 286 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 287 Rodrigues A L Rodrigues D M introdução à história da me dicina psicossomática In Temas de medicina psicossomática São Paulo Roche 1979 Spitz R A Transtomos de carencia afectiva In El prime alio de vida del niño génesis de las primeras relaciones objetales 3ed Madrid Aguillar 1974 Winnicott D W O brincar a realidade Rio de Janeiro lmago 1975 Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil Rio de Ja neiro Imago 1984 A criança e seu mundo 4ed Rio de Janeiro Zahar 1977 Textos selecionados da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro Francisco Alves 1978 Psicossomaticaindd 287 Psicossomaticaindd 287 05012010 121214 05012010 121214 A perspectiva psicossomática em Ginecologia e em Obstetrícia nos permite observar o desdobra mento da sexualidade e da identidade feminina nos principais pontos de transição do ciclo vital da mu lher menarca início das relações sexuais gestação e parto menopausa essa perspectiva também nos per mite alcançar uma compreensão mais abrangente das disfunções doenças e perturbações do curso normal dessas etapas Essa compreensão se aprofunda ao procurarmos ampliar o campo de visão e de escuta na pesquisa do contexto existencial da mulher a busca de dados básicos de sua história pessoal vincular familiar o ambiente sócioeconômicocultural onde vive seu cotidiano a qualidade da assistência que recebe Ao nos conectarmos com as redes nas quais se insere a pessoa recolhemos subsídios para formar um diag nóstico situacional que ultrapassa as fronteiras do diagnóstico clínico e psicopatológico Dessa forma podemos avaliar melhor as possibilidades e as limi tações os recursos e as carências da assistência na busca do caminho possível de ajuda Essa leitura diagnóstica nos é possibilitada por várias vertentes do saber Destacamse a teoria psica nalítica a teoria geral de sistemas a teoria do víncu lo A modificação de algumas intervenções de cunho psicanalítico a dinâmica de grupos e algumas técni cas de terapia familiar fornecem subsídios básicos de atuação A sensibilidade a criatividade a observação cuidadosa do contexto e o respeito pelas caracterís ticas e pelas reais necessidades das pessoas que de mandam atendimento são requisitos fundamentais para que o profissional possa de fato prestar uma assistência eficaz O LUGAR DO FILHO A história de cada filho se insere de modo único e singular na existência do pai e da mãe A gestação e o nascimento mexem fundo nas matrizes vinculares da mulher e do homem e alteram significativamente os padrões interacionais com a família de origem A gestação o nascimento e o crescimento do fi lho repassam pontos importantes de nossos pais do nosso contexto de vida e de nossas história como fi lhos do relacionamento com nossas peculiaridades Quando uma mulher e um homem tornamse mãe e pai passam por uma dupla identificação em nível consciente e inconsciente fazem uma revisão do mo delo parental e do processo educacional ao qual fo ram submetidos além disso identificamse também com o bebê gestando expectativas e anseios com re lação ao próprio papel de pais e às características da criança Este aspecto da identificação com o bebê traz matizes regressivos tanto no homem quanto na mu lher refletidos na relação conjugal e com a família de origem algumas queixas de dores inespecíficas mal estar e indisposição têm origem nas necessidades regressivas de receber proteção e cuidados o lugar do filho nesses momentos é o lugar da competição quem vai receber mais atenções Para acolher bem o filho a mulher necessita sen tirse segura dentro de si mesma e contar com o apoio do contexto familiar e do contexto assistencial Se na construção da autoimagem a mulher desqualifica seu próprio corpo e passa a ter uma baixa autoestima tenderá a sentirse predominantemente ruim por dentro julgandose incapaz de fazer bons bebês esses sentimentos são dolorosamente confirmados por perdas gestacionais ou pelo nascimento de crian ças malformadas Nestes casos uma gestação subse quente virá carregada de insegurança e de ansiedade solo fértil para a manifestação de problemas psicosso máticos Esse clima de angústia frequentemente pro longase após o nascimento não raro contaminando as trocas interacionais entre mãe e recémnascido que poderá também sofrer distúrbios psicossomáticos intensificação de cólicas perturbações do sono di ficuldades de sucção choro excessivo O lugar do filho passa a ser o lugar da angústia do sentimento de não dar conta da tarefa de criálo A falta de apoio familiar e as lacunas graves do contexto assistencial também contribuem de modo significativo para o aumento da ansiedade e do sen 20 PSICOSSOMÁTICA E OBSTETRÍCIA Maria Tereza Maldonado Psicossomaticaindd 288 Psicossomaticaindd 288 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 289 timento de desamparo da mulher no ciclo grávido puerperal Inúmeros casos de distocia do trabalho de parto e de inibição da lactação são desencadea dos por um contexto assistencial inadequado ou dis torcido O abandono ou o descaso do companheiro a rejeição dos familiares nos casos de gravidez da adolescente ou da mulher solteira transmitem uma falta de chão O sentimento de desamparo da mãe deixaa num estado de confusão e de perplexidade o lugar do filho passa a ser o lugar da solidão e da sobrecarga Eventualmente mesmo em circunstâncias bas tante adversas a gestação o parto e o puerpério transcorrem sem complicações A autora já presen ciou casos de gestações no decorrer das quais ocor reram eventos traumáticos tais como a morte do ma rido ou o diagnóstico de câncer no filho mais velho No entanto apesar da óbvia tristeza pela perda estes eventos nem sempre acarretam perturbações psicos somáticas ao contrário em alguns desses casos o que se vê é que o lugar do filho é o lugar da vida e da renovação da esperança ancorada na crenca de que é possível atravessar trechos extremamente difíceis do caminho sem se dilacerar A vontade de lutar pela vida e de superar obs táculos é o que impele algumas mulheres a continuar tentando a busca do filho mesmo em circunstâncias que envolvem perigo para a própria saúde como acontece em muitos casos de gestações de risco devi do a complicações cardiológicas renais vasculares e outras Nos milhares de casos de mulheres com saúde precária devido à miséria e à carência de recursos bá sicos para uma vida digna a produção de filhos gira em tomo de muitos fatores a expectativa de que as crianças trabalhem para aumentar a renda familiar a falta de acesso a práticas anticoncepcionais eficazes a obediência a preceitos religiosos que incentivam a procriação a mentalidade machista que equaciona fertilidade com virilidade a valorização da grande família O corpo da mulher é o lugar da expressão do sofrimento mas também da produção o lugar do filho é o lugar do desalento mas também da busca de melhores condições através do próprio ato de difun dir a vida FECUNDACÃO E GESTAÇÃO Mesmo nas gestações planejadas e desejadas um certo grau de ambivalência se faz presente sob a forma de dúvidas temores insegurança mesmo nas gestações indesejadas há uma busca inconsciente do filho ou da afirmação da fertilidade como fonte de valorização pessoal Em boa parte das gestações não planejadas o desejo de ser fecundada manifesta se não somente pelas sabotagens da anticoncepção esquecer de tomar a pílula de colocar o diafragma errar nas contas da tabela etc como também por mecanismos psicossomáticos que resultam em altera ções da data da ovulação O equilíbrio hormonal e a regularidade da ovu lação são facilmente rompidos em função da ansieda de e de conflitos importantes com relação à matemi dade gerando inibições da ovulação ou até mesmo o espasmo das trompas O medo de gerar filhos forma os alicerces de inúmeros casos de infertilidade e de transtomos da fecundação tanto na mulher quanto no homem incompetência istmocervical hostilida de do muco cervical oligospermia baixa motilidade dos espermatozoides aborto de repetição O desejo frequentemente aliado ao medo pode provocar alte rações psicossomáticas de intensidade variada desde o simples atraso menstrual com as correspondentes fantasias de fecundação até as impressionantes ma nifestações da pseudociese verdadeira psicose cor poral que fabrica um bebê imaginário construindo um corpo falsamente grávido numa dramática de monstração do poder do desejo Em algumas mulheres a dificuldade de engravi dar ou de levar a gestação a termo ligase no incons ciente profundo a uma falta de holding na relação com a mãe ao não se sentir sustentada a mulher sente dificuldades de sustentar e de carregar dentro de si uma nova pessoa a sensação precoce de vazio de insatisfação e de não preenchimento de necessi dades básicas na relação primordial costuma estar presente nas fantasias de um bebê voraz sempre disposto a esvaziar as reservas da mãe Esta fanta sia costuma expressarse por meio de um aumento exagerado do apetite no decorrer da gravidez ou no período da amamentação resultando em ganho pon deral excessivo que por sua vez provoca uma série de outros problemas durante a gestação Um vínculo básico de ódio e de rejeição por sua vez pode estimular o surgimento da imagem de um bebê mau e aterrorizador que vai acabar com a saúde e com a própria vida da mãe A sensação de carregar dentro de si um ser maléfico pode se expressar não só por meio de sonhos e de fantasias mas também por sintomas tais como falta de ar do res no baixo ventre malestar generalizado falta de ânimo e extremo cansaço até mesmo nas tarefas do cotidiano O crescimento do ventre ao invés de proporcionar alegria e tranquilidade gera o terror de ver o inimigo se avolumando e muitas vezes o desejo de arrancálo lá de dentro se possível prema turamente Em graus mais intensos a imagem do bebê aterrorizador cuja existência vai trazer mais perdas e riscos do que ganhos está na raiz de alguns ca Psicossomaticaindd 289 Psicossomaticaindd 289 05012010 121214 05012010 121214 290 Mello Filho Burd e cols sos de esterilidade conjugal especialmente quando o diagnóstico não e conclusivo feitos os exames ou concluídos os tratamentos indicados a fecundação não acontece embora clinicamente não haja im pedimento algum Anos se passam o casal perde a esperança de conseguir a gravidez e decide adotar uma criança Surpreendentemente tempos depois a mulher descobre que está grávida relaxando os con troles inconscientes reduzindo o medo por meio de uma experiência predominantemente boa com a ma ternidade adotiva a constelação inicial se modifica e o filho biológico aparece Casos semelhantes podem acontecer com o homem quando a baixa fertilidade está associada ao medo da paternidade e à impressão de que não conseguiria dar conta da responsabilidade de criar um filho quando ele próprio se sente imaturo e dependente Reações de luto pela perda gestacional também podem provocar transtornos tais como amenorreia prolongada e até mesmo a retenção do corpo grávi do Num dos casos atendidos pela autora a pacien te com história de abortos de repetição e com pro blemas renais sérios sofreu uma perda gestacional aos seis meses Permaneceu exatos nove meses com amenorreia e com o abdome volumoso querendo ne gar a realidade da perda e a impossibilidade de novas tentativas Na gravidez normal graus mais intensos dessa mistura de sentimentos geram conflitos que comu mente se expressam pela via psicossomática náuseas e vômitos hipersonia intensificação da irritabilidade dores por espasmos musculares alterações do ape tite Algumas dessas manifestações também surgem no homem grávido pela questão da identificação e da inveja da capacidade feminina de abrigar a vida dentro de si As flutuações do desejo sexual são manifesta ções psicossomáticas vinculadas à imagem da mater nidade que está internalizada na mulher e no homem Para algumas mulheres a fecundidade é sentida como gloriosa e o neném dentro do ventre simboli za predominantemente o fruto do amor e da criação conjunta Essa imagem propicia a predominância do bemestar que se traduz em sensações de muita vi talidade disposição e energia para empreender tare fas e para dedicarse a interesses variados incluindo uma atividade sexual intensa com maior capacidade de gozo em contraposição a imagem internalizada de um bebê frágil dentro de um corpo pouco protetor e a predominância do matiz agressivo na relação se xual comumente geram a necessidade de resguardar o neném gerando acentuada redução do desejo se xual até o ponto da inibição orgásmica As disfunções sexuais na gestação ligamse também à predominância da visão santificada da maternidade ou à repressão das fantasias incestuo sas além da diminuição do desejo muitos homens passam a ter ejaculação precoce ou até mesmo ficam impotentes diante do corpo grávido O recolhimento narcísico que faz a gestante voltarse para dentro de si própria e identificarse com o bebê também é um fator importante na diminuição do desejo Evidentemente podem surgir problemas no convívio conjugal em decorrência de imagens dis crepantes do bebê e da maternidade por exemplo a mulher pode estar com sua capacidade de desejo e de gozo aumentada e o homem pode estar retraído e assustado com medo de machucar o bebê evitan do o contato sexual a mulher se ressente aumenta sua insegurança e consequentemente sua tensão o que pode expressarse por sintomas de irritabilidade malestar agitação e desconforto A ameaça de abor to no início da gestação com a consequente interrup ção temporária da atividade sexual pode reforçar a imagem do bebê frágil num corpo não confiável pro vocando a inibição do desejo da excitação e do or gasmo no decorrer de todo o ciclo grávidopuerperal mesmo quando medicamente já não há motivo para a suspensão da relação sexual A inibição do desejo e da capacidade de sentir prazer ocorre comumente no contexto das perdas ges tacionais por interrupção espontânea ou voluntária da gravidez A interrupção voluntária em especial mobiliza intensos sentimentos de culpa cujo casti go pode ir muito além da inibição da sexualidade até transformarse num verdadeiro calvário de dores e de sintomas tais como inflamações ovarianas enxaquecas vertigens e assim por diante Num caso atendido pela autora houve uma interrupção voluntária da gestação no segundo trimestre em função de um diagnóstico de malformação em decorrência do sentimento de culpa por se ver como assassina do filho a paciente passou a apresentar vários episódios de dores e de inflamações sendo submetida a inúmeros exames e tratamentos por diversos especialistas foco do trabalho terapêuti co inicial girou em torno desse sentimento de culpa da busca da punição e da necessidade de elaborar o luto pelo filho perdido bem como da ferida narcisica derivada do fato de gerar uma criança malformada O mês em que o bebê deveria nascer foi especialmente complicado pela ocorrência de enxaquecas e de fortes dores musculares e nevrálgicas A dialética nascimentomorte e os processos pro fundos de identificação na relação entre mãe e filha gestante podem formar a raiz de quadros psicosso máticos importantes Num dos casos atendidos pela autora uma mulher grávida de sete meses foi enca minhada pelo obstetra por não ter encontrado causas clínicas que justificassem as intensas dores articulares que lhe dificultavam até mesmo a locomoção Além Psicossomaticaindd 290 Psicossomaticaindd 290 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 291 das dores a paciente queixavase da dificuldade de se ligar ao neném da impossibilidade de alegrarse com a gestação embora tivesse sido planejada Na primei ra sessão pouco falou da gravidez passou quase o tempo todo mencionando sua angústia com relação à mãe com câncer em fase terminal cheia de dores já em cadeira de rodas sem sair de casa Falou da culpa por não ter tempo de visitar a mãe todos os dias e dedicarse a ela devido ao seu próprio malestar Queixouse também da cobrança do marido que a criticava por ser muito dependente da mãe e por não ter comprado nada para o enxoval do bebê O que se evidenciou no curso das sessões foi uma intensa ambivalência na relação com a mãe e a sensação de sempre ter sido preterida a culpa pela raiva e pela doença da mãe ficou aguçada pela pró pria situação de estar esperando um filho Na área competitiva ela ao se transformar em mãe mata a mãe ao dar a vida tira a vida Para diminuir esse sentimento de culpa e o ódio destrutivo identificase com a mãe doente cheia de dores e não consegue se ligar ao neném Ao trabalhar essa hipótese central conseguiu sair da confusão e perceber que quem esta va morrendo com dores era a mãe e não ela Ao cabo de uma semana as dores articulares desapareceram por completo dando lugar ao surgimento de sinais concretos de ligação com o neném passou a chegar às consultas mais alegre com sacolas de roupas para o bebê Este caso é uma clara demonstração da im portância da psicoterapia breve centrada na interpre tação dos focos mais relevantes como complementa ção ao atendimento médico É fundamental entender a linguagem metafóri ca do sintoma psicossomático e tentar descobrir onde predomina a falta de holding se na relação com o companheiro com a família de origem ou no contex to assistencial Na maioria dos hospitais públicos o atendimento precário massificado e impessoal não permite a construção de um relacionamento consis tente entre o médico e a paciente o sistema de rodí zio nos ambulatórios faz com que a gestante seja vista por um médico diferente a cada consulta prénatal a insegurança com relação à assistência ao parto é enorme pois a gestante não sabe de antemão em que hospital vai encontrar vaga Quando além disso ela vive um clima de instabilidade e de precariedade dos vínculos afetivos familiares temos um campo fér til para a intensificação da angústia e consequente mente das manifestações psicossomáticas O PARTO Niveis intensos de ansiedade e de medo inter ferem nitidamente na contratilidade uterina alte rando o ritmo e a força das contrações do trabalho de parto tornandoo excessivamente prolongado ou prejudicando o progresso da dilatação do colo do úte ro A falta de confiança na elasticidade do corpo a vivência da vagina como um lugar apertado e rígido frequentemente associada a quadros de dispareunia e de inibição orgásmica são fatores que intensificam as fantasias de dilaceração em decorrência do parto vaginal estas fantasias por sua vez podem provocar espasmo da musculatura perineal ou até mesmo con tribuir para o prolongamento do final da gestação inibindo o desencadeamento do trabalho de parto e gerando a necessidade de fazer cesariana A internalização das historias terríveis com re lação ao parto o medo da morte simbolizado pela passagem da vida intrauterina para a extrauterina a identificação com a imagem da mãe sofredora que padece para dar à luz são fatores que intensificam o medo e contribuem para a tendência a lutar contra as contrações ao invés de acolhêlas como um novo ritmo do corpo que se prepara para dar ao bebê a passagem para uma nova vida O clássico circuito do medotensãodor se realimenta continuamente ge rando intenso desconforto e muita angústia Os métodos tradicionais do erroneamete cha mado parto sem dor procuram descondicionar em nível cortical o medo do parto por meio de infor mações sobre o processo da dilatação e da expulsão além do treinamento em técnicas de relaxamento e de respiração para reduzir a tensão corporal permi tindo seguir o ritmo natural das contrações com isso esperase alcançar a redução ou mesmo a elimina ção da dor do parto Em contraposição ao método psicoprofilático tradicional que procura incentivar o controle do intelecto sobre as emoções há méto dos de assistência ao parto que tentam estimular um estado regressivo que ativa estruturas cerebrais mais arcaicas o cérebro emocional para que a mulher consiga aceitar mais facilmente a abertura dos esfínc teres a emissão de urina e de fezes e o relaxamento do períneo há inclusive quem recomende banhos de imersão em água quente associados a massagens suaves pouca luz e música ambiente para facilitar o curso do trabalho de parto a presença de uma par teira de confiança que atua como uma figura materna boa também contribui para tranquilizar a parturien te facilitando a travessia das contrações A atmosfera do contexto hospitalar e a quali dade do atendimento da equipe de saúde são fato res relevantes para a diminuição ou para o aumento dos distúrbios da contratilidade uterina no período da dilatação ou no período expulsivo Nos hospitais públicos o isolamento das parturientes em salas de préparto a indiferença e a falta de carinho e de as sistência eficiente o impedimento da presença do Psicossomaticaindd 291 Psicossomaticaindd 291 05012010 121214 05012010 121214 292 Mello Filho Burd e cols companheiro ou de familiares são fatores que contri buem para o sentimento de solidão de desamparo e de pânico as contrações são sentidas como dores ter ríveis trazendo um sofrimento sem fim e sem pers pectiva A mulher sentese entregue à própria sorte em meio a gritos de dor e de desespero Algumas técnicas de assistência obstétrica em especial a posição horizontal da parturiente na mesa de parto também contribuem para o aumento da in cidência das distocias do trabalho de parto dificul tando a abertura do períneo no período expulsivo o que gera a necessidade de fazer episiotomia de rotina para evitar roturas perineais Por outro lado a posição vertical como no parto de cócoras ou no uso da cadeira obstêtrica tende a facilitar o processo fisiológico da dilatação e da abertura vaginal tornan do a episiotomia desnecessária na maioria dos casos encurtando a duração do período expulsivo e da re cuperação pósparto inclusive porque elimina o uso de anestésicos O parto feito em casa assistido por parteiras ou curiosas é a realidade predominante em regiões do Brasil em que os recursos de assistência médico hospitalar são escassos ou até mesmo inexistentes A precariedade de assepsia e de meios essenciais para o atendimento de emergências e de complicações au menta assustadoramente o índice de morbidade e de mortalidade maternoinfantil no entanto em países como a Holanda e a Inglaterra o parto em casa ao preservar a intimidade doméstica e a presença da fa mília junto com a garantia de pronta remoção para o hospital em caso de necessidade diminui a incidên cia de complicações obstétricas A criação de um ambiente caseiro e acolhe dor no ambiente hospitalar tem a finalidade de dar acesso à família ao ato do nascimento de seu novo membro e de criar uma atmosfera propícia ao rela xamento e à tranquilidade emocional ao se sentir realmente amparada e bem assistida a mulher tem melhores condições de atravessar a turbulência das contrações do período de dilatação com menos an siedade menos medo e consequentemente menos dor Alguns obstetras recomendam inclusive o uso de massagens suaves de relaxamento e deixam a par turiente livre para procurar a posição mais confortá vel durante as contrações Infelizmente o que mais encontramos nos dias de hoje é uma assistência obs tétrica excessivamente rígida e medicalizada em que a postura predominante da equipe consiste em ado tar os procedimentos de rotina tricotomia lavagem intestinal analgesia e anestesia episiotomia excesso de cesá reas submetendo a mulher a uma posição de extrema passividade pouca autonomia e escassa participação Isso por sua vez aumenta ainda mais a necessidade de intervenção médica O PUERPÉRIO E A AMAMENTAÇÃO O nascimento e os primeiros contatos entre os pais e o recémnascido inauguram a percepção das diferenças entre o bebê imaginário não visto no decorrer da gestação e o bebê real tal como con cretamente percebido com suas características e pe culiaridades entregue aos cuidados da família O puerpério imediato traz enormes e rápidas transformações de ajuste a uma nova realidade em todos os níveis expelida a placenta continua a ati vidade contrátil do útero no sentido do retorno às proporções anteriores à gravidez esse retorno é fa cilitado pela ação da ocitocina também responsável pelo reflexo de liberação do colostro e do leite por sua vez o contato imediato entre mãe e bebê e o iní cio das mamadas logo após o parto estimulam o sur gimento de interações precoces cheias de matizes e de sutilezas que colocam em marcha um complexo funcionamento bioquímico através do olhar do con tato de pele do olfato e dos sons da comunicação entre mãe e filho Estudos de observação da dupla mãebebê feitos através de técnicas refinadas de mi crofilmagem e de análise computadorizada mostram a existência de uma verdadeira dança sincronizada composta de movimentos sutis e complementares do corpo da mãe e do corpo do bebê no decorrer da ma mada quando estão harmonizados um com o outro Quando há harmonia e entendimento entre a mãe e o recémnascido no ato de amamentar o lei te flui em quantidade suficiente para a demanda do bebê no decorrer dos primeiros dias o colostro vai naturalmente cedendo lugar ao leite propriamente dito e ao longo das primeiras semanas vai aconte cendo uma regulação entre a sucção da criança e a liberação do leite produzido Por outro lado quando há desarmonia e desentendimento nesse contato da mamada surgem inúmeros obstáculos de ordem psi cossomática que dificultam ou até mesmo bloqueiam a lactação inibindo a produção eou a liberação do leite Para começar pode haver uma falta de encaixe entre a boca e o mamilo por dificuldades da mãe da criança ou pela falta de incentivo do contexto as sistencial A mãe pode ter dentro de si a imagem do bebê terrível e devorador que vai atacála machucá la exaurila com essa imagem ela coloca o bebê ao seio tensa e amedrontada dificultando a preensão do mamilo o bebê por sua vez pode ficar ansioso e ten so por não se sentir pego com aconchego e isso atra palha o ritmo de sua sucção frustrado com a dificul dade de preensão chora e fica irritado a mãe sente essa dificuldade como um obstáculo incontornável e afasta o bebê do seio Está formado o quadro proble mático frequentemente agravado por atitudes desen Psicossomaticaindd 292 Psicossomaticaindd 292 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 293 corajadoras de familiares ou da equipe assistencial que não esclarece a natureza das dificuldades e não procura ajudar a dupla a encontrar um bom encaixe além disso rotinas hospitalares tais como a perma nência em berçário e o horário rígido entre as ma madas contribuem para a falha de regulação desses primórdios da lactação A consequência é que muitas mulheres já saem da maternidade com a produção de leite prejudicada e não conseguem mais amamentar ao cabo de uma ou duas semanas A construção da autoestima como mãe suficien temente boa capaz de produzir leite de boa quali dade para alimentar o filho juntamente com a au toconfiança e o desejo de conseguir amamentar são fatores importantes para o funcionamento adequado dos mecanismos psicossomáticos responsáveis pela lactação atitudes de autodesvalorização e descrença na própria capacidade como nutrir aliadas à ansieda de tensão ou aversão à amamentação criam obstácu los Considerandose que a autoconfiança da mãe de um recémnascido especialmente se for o primeiro filho ainda está em formação a atitude de crença ou de descrença das pessoas que cercam a puérpera pode influir bastante na regulação desses sutis mecanismos psicossomáticos Por esse motivo práticas assistenciais que estimulam o contato precoce entre a família e o bebê como no sistema de alojamento conjunto por parte de uma equipe afetuosa e disposta a ajudar a contornar as dificuldades iniciais conseguem resulta dos muito mais favoráveis no que se refere ao sucesso da lactação em comparação com a rotina tradicional de berçário O ritmo espontâneo das mamadas é a melhor prevenção contra o surgimento de problemas tais como ingurgitamento dos seios dor e fissuras nos mamilos mastites e assim por diante Além disso o contato mais permanente com o bebê tende a acelerar a recuperação pósparto e a atenuar o desconforto da episiotomia ou da incisão da cesariana Igualmente importantes são os grupos de au togestão por meio de informações sobre o proces so de lactação e sobre as maneiras mais eficazes de superar as dificuldades que comumente surgem no decorrer das primeiras semanas o grupo composto por mulheres que estão amamentando é coordenado por pessoas que passaram pela experiência de ama mentar os filhos oferece incentivo e suporte emocio nal que contribuem positivamente para tomar a ama mentação uma ocasião de contato gratificante entre mãe e bebê O suporte emocional o incentivo e o desejo de amamentar podem até mesmo superar dificuldades provocadas por situações de extrema tensão e pela impossibilidade do bebê sugar diretamente o seio este é o caso da amamentação à distância que acon tece quando nasce um bebê muito prematuro que permanece semanas ou até meses internado numa UTI neonatal Observamos que a entrada da mãe na UTI para olhar e tocar o bebê antes de extrair o leite com a bomba ajuda o processo de liberação em casa entrar em relaxamento pensar no bebê aplicar com pressas quentes nos seios antes da extração também favorece a saída do leite A atitude de suporte dos familiares e da equipe de saúde é obviamente fun damental para o sucesso dessa tentativa de manter a produção de leite até que o bebê consiga atingir peso e maturidade suficiente para iniciar a sucção direta do seio materno Estes mesmos fatores de suporte e de desejo de conseguir produzir leite atuam nos processos de relactação nos casos em que o bebê apresenta rea ções alérgicas aos outros tipos de leite artificial após a interrupção da amamentação é possível tentar es timular novamente os mecanismos psicossomáticos responsáveis pela produção de leite Mais ainda é possível inclusive estimular a lactação de mães ado tivas Uma das técnicas utilizadas nestes casos con siste em fazer o bebê sugar o seio da mãe adotiva enquanto recebe o leite por uma sonda nasogástrica colocada sobre o mamilo com isso estimulase a pro dução da prolactina A mãe precisa ingerir líquidos em grande quantidade e estar realmente disposta a tentar lactar com a persistência das mamadas podese alcançar a produção de leite ao cabo de uma ou duas semanas No campo das interações precoces entre mãe e recémnascido também podemos observar o surgi mento dos fenômenos psicossomáticos do lactente Em linhas gerais o funcionamento harmônico das funções vitais do bebê depende muito da sintonia e do atendimento satisfatório de suas necessidades básicas falhas importantes neste processo instalam a angústia primordial que transborda em manifesta ções várias tais como insônia do recémnascido có licas intensas dificuldades de ingerir e de digerir os alimentos alterações do ritmo respiratório perturba ção do funcionamento intestinal e assim por diante PREVENÇÃO E TRATAMENTO UM LEQUE DE POSSIBILIDADES Por meio da visão sistêmica e da abordagem multidiscilinar no âmbito institucional podemos ampliar o campo de observação aprofundar a área de entendimento e buscar a criação de modalidades mais eficazes de atendimento de acordo com o con texto em que trabalhamos e com as características da população que recebe nossa assistência Num país como o nosso com tantas diferenças regionais fazse necessária a cuidadosa observação Psicossomaticaindd 293 Psicossomaticaindd 293 05012010 121214 05012010 121214 294 Mello Filho Burd e cols das tradições costumes e crendices populares o res peito pela sabedoria do povo e o conhecimento dos modos pelos quais a comunidade costumeiramente presta assistência à grávida e à puérpera são prére quisitos básicos para a implantação de novas moda lidades assistenciais formalmente profissionais Do contrário as pessoas que atendemos não conseguirão absorver o que queremos transmitir e nem se sentirão efetivamente ajudadas Muitos programas de saúde falham em seus propósitos por não adequarem sua metodologia ou sua linguagem à realidade da popu lação que pretendem atender Além disso num país em que predominam a carência e a precariedade de recursos materiais e de pessoal de assistência o apro veitamento dos métodos já existentes dos líderes comunitários e dos profissionais leigos que atuam verdadeiramente como agentes de saúde é o meio mais eficaz de multiplicar conhecimentos e de fazer funcionar programas de natureza preventiva Por exemplo há regiões do interior do Brasil em que a parturiente dá à luz sentada num banquinho de vértebra de baleia com o companheiro apoiando a pelas costas enquanto a parteira apara o recém nascido e espera o cordão umbilical parar de pulsar para cortálo o contato entre pais e bebê se faz de imediato e a primeira mamada acontece logo em seguida Esta assistência tradicional da comunidade está perfeitamente enquadrada no que atualmente se valoriza em termos de parto vertical e de contato pre coce com o bebê introduzir formas científicas de parto horizontal com episiotomia de rotina e ampla utilização de anestésicos afastando a parteira e alie nando a família no momento do nascimento não seria exatamente um progresso de assistência aproveitar os recursos naturais da comunidade dar às parteiras maiores subsídios de assepsia e de atuação em com plicações obstétricas oferecer maiores possibilidades de remoção para o hospital nos casos de necessidade isso constituiria uma postura de maior respeito cer tamente de mais fácil aceitação pela comunidade Por melhores que possam ser nossas intenções muitas vezes verificamos com frustração e desapon tamento que nossos esforços estão sendo infrutíferos Por exemplo na maioria dos centros de atendimento para adolescentes as equipes reconhecem que a pro cura de orientação para a anticoncepção é decepcio nantemente pequena muitas chegam grávidas para acompanhamento prénatal com gestações não dese jadas e com todas as complicações sociais e familiares daí decorrentes Os serviços existem os profissionais estão disponíveis mas a populaçãoalvo não compa rece Fazse necessário refletir melhor descobrir vias de acesso criar estratégias diferentes de abordagem Nem sempre o que é bom na nossa ideia é o que as pessoas buscam ou precisam Gestação parto e amamentação são períodos de transição extremamente importantes para a mulher o casal a família a comunidade uma vez que mar cam a chegada de uma nova pessoa Os programas de prevenção primária tratam de oferecer algum tipo de assistência às pessoas que estão passando por es sas transições para que se possa trabalhar eventuais focos patogênicos e desta forma melhorar o nível de saúde da comunidade Num país como o nosso com uma enorme população precisando de atendimento por parte de um número relativamente pequeno e ir regularmente distribuído de profissionais de saúde o trabalho grupal é uma alternativa da maior impor tância a começar pela adolescência já que é alto o índice de gestações não planejadas nessa população A inclusão de pessoas que já passaram pela si tuação em questão gestação amamentação nas cimento de filho prematuro etc pode ajudar bas tante o processo de identificação e o surgimento da esperança de formular alternativas criativas para li dar com a situação nova a ser vivida O treinamen to de líderes comunitários para coordenar os grupos e a transmissão de informações no nível de enten dimento da populaçãoalvo são caminhos eficazes para multiplicar as ações de saúde e tornálas capa zes de serem efetivamente absorvidas No âmbito da prevenção primária o trabalho grupal em postos de saúde centros comunitários e ambulatórios contribui para a redução de perturbações psicossomáticas na medida em que propicia acolhimento para as ansie dades e temores naturais do ciclo grávidopuerperal e procura transmitir informações relevantes para que as pessoas possam utilizar seus próprios recursos na resolução de dificuldades que comumente surgem Tanto melhor se a isso for acoplado um trabalho inter disciplinar nos moldes de interconsultas e de grupos de reflexão para profissionais com o objetivo de repensar e de modificar as rotinas assistenciais Por exemplo instituir o sistema de alojamento conjunto ao invés da rotina rígida de berçário permitir a entrada do compa nheiro na sala de parto e assim por diante A ajuda psicoterápica a nível individual de casal ou de família é uma indicação necessária em muitos casos em que a maternidade e a paternidade ativam e trazem à tona conflitos e dificuldades importantes que não raro se manifestam por meio de problemas psicossomáticos A organização de centros de atendi mento psicoterápico destinados à população de baixa renda continua sendo de capital importância embora muito pouco tenha sido feito nesse sentido Como se pode ver o leque de possibilidades de atendimento é bastante amplo embora as condições de viabilizar projetos nesse sentido sejam ainda bas tante precárias Mas vale a pena prosseguir nas tenta tivas de realizar trabalhos pioneiros e dar continuida Psicossomaticaindd 294 Psicossomaticaindd 294 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 295 de ao que já está implantado persistindo no esforço de contribuir para a melhoria da saúde da população e na busca de melhores condições de vida para essas crianças que estão nascendo REFERÊNCIAS Bouchart A Rapoport D Origines Les Cahiers du NouveauNé 7 Paris Stock 1988 Friedman R Gradstein B Surving pregnancy loss Boston Little Bmwn 1982 Kreisler L La psychossomatique de lenfant Paris PUF 1989 Maldonado MT Psicologia da gravidez Ed Saraiva São Paulo 1997 edição atualizada Odent M Entering the World New York Plume 1984 Pinot ti JA e Sabatino JH Medicina perinatal São Paulo Unicamp 1987 Videla M Psicoprofilaxis institucional y Comunitaria Buenos Ai res Trieb 1984 Psicossomaticaindd 295 Psicossomaticaindd 295 05012010 121214 05012010 121214 Ocupome aqui do enfoque psicossomático em cancerologia Como pode ser interpretada minha passagem da cirurgia oncológica como Professor de Cirurgia da Universidade de Buenos Aires para a Psi concologia e para o cuidado psicoterápico de pacien tes com câncer A única resposta possível é a necessi dade interior de compreender A medicina organicista ensina a ler a enfermi dade do ponto de vista do médico e do laboratório A Medicina Psicossomática no caso a Psiconcologia pretende ler escutar e compreender a enfermida de a partir do paciente Um exame físico e centenas de determinações bioquímicas e radiológicas podem demonstrar que um homem está normal Uma única entrevista psi cossomática adequada pode nos mostrar que esse mesmo homem está gravemente enfermo DOS DOGMAS E MODELOS POR QUE O PSICOSSOMÁTICO PODE SER SENTIDO COMO UMA AGRESSÃO NARCÍSICA O conceito de unidade na estrutura do homem é um tema secular Séculos e séculos de concepções filosóficas psicológicas orgânicas teológicas etc têm ocupado milhares de páginas Parece que a aceitação da unidade do homem é um conceito que desperta resistências que faz nascer condutas e pensamentos racionalizados Criamos até mesmo uma definição ou modelo de ciência médica que aprioristicamente aceita apenas o orgânico Como sabem modelo é um modo de ver ou de explicar uma realidade Quando não se adapta à realidade resistindo a ser modificado não é mais um modelo mas um dogma Um dogma é uma proposição pretensamente divina que nós mesmos tornamos indiscutível Tentaremos mostrar a diferença entre um mo delo científico e um dogma Quando um modelo não corresponde a uma rea lidade desaparece sem protestos sendo substituí do por um novo modelo O dogma não se modifica com a realidade an tes pretende adaptar a realidade a si mesmo Tudo que se refere a um dogma é julgado como sendo uma verdade superior e os dogmáticos desde Platão acreditam ocupar e com frequência ocupam lugares destacados na sociedade Quando um paciente melhora ou fica cura do com um procedimento como a psicoterapia por exemplo e tivermos um modelo de doença que não aceita o psicológico embora a evolução real demons tre que ele existe temos de mudar esse modelo Por outro lado se a não aceitação do psicológico for dog ma decidese que a melhora não existe não é verda deira ou é casual Não obstante e felizmente o conceito de modelo médico científico está mudando em todo o mundo Penso em toda a linha da epistemologia atual ou ciência do conhecimento Penso em Jean Paul Sartre e Gastón Bachelard continuadores do grande Poin caré na França Benedetto Croce e Antonio Gramsci na Itália Max Scheler e Karl Jaspers na Alemanha e em especial em Karl Popper na Inglaterra um gran de filósofo das ciências da atualidade mas também um inquieto e inteligente estudioso da teoria da Me dicina Graças a eles e a muitos mais procurei estabe lecer um modelo de enfermidde O que é enfermi dade e o que é saúde O que hoje é científico Há 21 PSICOSSOMÁTICA E CÂNCER José Schávelzon É um sistema abstrato que substitui um sistema real para estudálo Fundamento de toda a ciência moderna Um dogma é um tema de doutrina Os homens resolve ram que todo dogma é incontroverso e superior à razão humana É o símbolo de uma verdade perfeita Na escola platonical já existia a corrente céptica Ou seja a dos que continuam investigando a verdade e no século II aC Sexto o Empírico classificou os conceitos em dogmáticos e cépticos No século VI o conceito de dogma foi adotado pelo cristianismo Psicossomaticaindd 296 Psicossomaticaindd 296 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 297 mudança para um modelo integrador mas por que ainda encontramos tantas resistências Por que são tão necessários reuniões e congressos de Medicina Psicossomática Por que parte dos médicos não julga necessário e útil atualizar suas concepções de saúde e de enfermidade Por que o modelo médico estrutura do com base nos estudos e na concepção mecanicis ta que teve tão grande desenvolvimento na segunda metade do século passado é ainda um dogma Por que se persiste em tal dogma Encontrei uma resposta em Freud Lembrem o valioso trabalho Uma dificuldade na psicanálise em que conta as três agressões narcísicas da huma nidade A primeira é a agressão cosmológica narcísica ou ao amorpróprio da humanidade que ocorreu quando tivemos de aceitar que não somos o centro do universo Passamos a constituir uma fração infini tesimal e sem importância de um universo difícil de conceber Isso já tinha sido mencionado várias vezes na história mas acho que o importante é que consti tuiu uma afronta narcísica a partir do momento em que Copérnico não pôde mais discutilo Algo semelhante ocorreu quando não se pôde mais discutir a partir de Darwin que nada mais so mos do que uma forma evoluída na escala animal quando dizemos animal estamos apenas nos refe rindo a um pai distante Esta foi a afronta antropoló gica Deixamos de ser a imagem dileta de Deus como nos tínhamos autodefinido Mas a terceira afronta foi e é a mais agressiva Ocorreu quando tivemos de aprender e aceitar cons cientemente a noção de que não somos os donos e senhores da consciência De que não somos mais os amos em nossa própria casa Que nossa conduta é guiada por razões frequentemente ocultas a nós mes mos Foí a afronta psicológica Desta vez o responsável foi o próprio Freud e desejo repetir o ponto de vista o que agride não foi ter descoberto o inconsciente pois ele próprio diz que foi mencionado por Spinoza Nietzsche e Schope nhauer mas o que agride para o narcisismo humano é havêlo tornado indiscutível Acredito que para quem resiste por suas pró prias razões a aceitar uma realidade tornála evi dente sempre constitui uma agressão Voltando ao que denominei de resistências quanto à aceitação psicossomática quanto à única es trutura possível do ser humano podemos encontrar aqui as causas da resistência Procurar alguma razão para sentir o psicossomático como uma agressão nar císica como uma agressão a nosso amorpróprio Se não vejamos Desde que temos registros escritos ou desenha dos da história do homem há uns 50000 anos até hoje sempre existiu o que chamo de a necessidade de crenças tranquilizadoras para o homem diante dos fatos da natureza ou diante dos acontecimentos que provocam temor e sofrimento Essa crença con siste em criar deuses e lhes atribuir o dom de dispor sobre tudo o que se passa conosco tanto mais quanto mais primitivo for o indivíduo Não só damos essa atribuição aos deuses mas lhe acrescentamos para nossa maior tranquilidade a característica de que essas decisões são incompreensíveis e inalcançáveis para nós mesmos Crer que os deuses quiseram assim ou que é uma decisão inescrutável do destino põe fora de nós longe de nosso alcance toda possibilidade de in tervenção de decisão e especialmente liberanos de toda responsabilidade individual e social Não é difícil compreender e aceitar que se a Medicina Psicossomática pretende situar o lugar onde nascem as decisões sobre os fatos transcenden tais de nossa vida em nossa própria mente e em nossa própria biografia consciente e inconsciente estamos pondo dentro de nós tudo aquilo que estava cômoda e tranquilamente do lado de fora Na saúde na enfemidade ou na morte em Psi cossomática não se frequenta o templo para rogar ou interrogar os deuses sobre seus desígnios que nós mesmos tomamos inescrutáveis Temos agora de in terrogar a nós mesmos e procurar no paciente e em seu ambiente Quando há alguma resposta na con cepção psicossomática ela está dentro de nós mes mos ou na estrutura social que nós próprios também construímos Até agora alguns fatos Porém em nossa in terpretação não é a concepção psicossomática o pôr dentro de nós a responsabilidade pelos fatos da vida da enfermidade e da morte o que constitui uma agressão narcísica uma agressão ao amorpróprio do homem E agressão quando procuramos mostrar que aquilo é evidente e verdadeiro Nem todos estão dis postos a escutar verdades iconoclastas Finalmente e como uma aventura do pensa mento talvez pudéssemos contribuir para a difusão ainda maior de uma Medicina Psicossomática ado tando atitudes não agressivas para o amorpróprio ou para os sentimentos narcísicos de nossos colegas E por fim escutem Não lhes parece ouvir como do Olimpo Hipócrates está rindo de nós O CÂNCER A PARTIR DO INDIVÍDUO COMO TOTALIDADE Chamaremos de ego ao conjunto de elementos orgânicos e psicológicos que um individuo reconhece como integrantes de sua estrutura Fenômeno físico Psicossomaticaindd 297 Psicossomaticaindd 297 05012010 121214 05012010 121214 298 Mello Filho Burd e cols e psíquico que se completa em torno dos dois anos de idade O conceito de ego é motivo de estudo por filósofos e psicólogos em toda a história do homem desde Descartes Leibnitz e Kant até Freud e os auto res mais atuais como Risieri Frondizi Para reconhecer devese passar um período de tempo e de experiências em que a criança começa por conhecer o que lhe permitirá reconhecer Isso significa que reconhecer sempre implica um conheci mento ou informação prévio No campo biológico tudo aquilo que não se in tegrou na evolução filogenética é fomecido pela mãe durante a ontogenia e através da placenta Estes produtos de reconhecimento da mãe atuam na criança como conhecimento até que esta se tome capaz de seus próprios reconhecimentos De fato as defesas imunológicas fornecidas à criança vão sendo suplantadas pelas suas próprias no final dos dois anos de idade Um reconhecimento do extemo implica necessa riamente o conhecimento anterior de si próprio Sem o sipróprio ou ego o outro é inexistente Sem essa primeira vivência a segunda não existe Dizemos então que o sistema imune reconhece o não ego Este é um excelente ponto de partida mas reconhecer significa uma releitura ou revivência da realidade de acordo com ou referente a a própria estrutura Também na área psíquica toda informação tem uma certa comparação com alguma experiência in formação ou pensamento anterior da qual pode re sultar ou não o reconhecimento e aceitação Não depende apenas do elemento ideia ou pensamento exterior mas como ele é lido pelo indivíduo Leitura significa estabelecer algum tipo de con tato ou relação específico com um não ego através de um processo Esse processo provoca a formação de um complexo único entre o leitor o sujeito o que é lido o objeto ou a circunstância e como é lido Da formação deste complexo podem resultar di versos efeitos em diferentes casos Por exemplo em imunologja a identificação do outro com o não ego é seguida por um processo que tende a sua eliminação A leitura imunológica exige portanto a referên cia a uma estrutura preestabelecida com especifici dade determinada geneticamente ou por experiência voltada ao mesmo tempo para reconhecer o não ego O não ego por definição é diferente do ego e por isso escapa da referência estrutural do ego Procuremos esclarecer a aparente contradição de que o ego não precisa utilizar uma estrutura inter na e preestabelecida para reconhecer algo que está fora do ego e por conseguinte não predeterminado Nossa hipótese é que o reconhecimento do não ego só pode ocorrer depois da estmturação do ego pois o não ego só pode ser lido em função do ego Todo elemento alheio ao ego não pode ser con siderado como não ego enquanto a estrutura mental a evolução biológica e a imunológica não tiverem reconhecido o ego Por exemplo usamos a palavra antígeno como uma marca identificatória do não ego que determina uma leitura especifica do ego necessária para o reco nhecimento do não ego O organismo por si só é competente para reco nhecer os elementos do mundo exterior com os quais pode estabelecer interações vantajosas Seu resultado é a evolução filogenética A imunocompetência é um dos produtos deste desenvolvimento que foi vantajoso para o organismo in totum Assim a evolução filogenética é um indica dor da capacidade de incorporar determinados não ego Algo semelhante pode ser aplicado ao desenvol vimento intelectual A formação de anticorpos defesas ou a ativida de das células killer ou assassinas exige uma expe riência de conhecimento do ego para depois poder reconhecer o não ego A função biológica mais favorável do sistema imune estabelecido pode ser considerada como a proteção conferida a um organismo contra elementos patogênicos ou toxinas Então parece que o sistema imune evoluiu para sua função atual através do reconhecimento do dife rente ao próprio organismo Durante seu desenvolvimento um organismo demonstra reconhecer seus componentes como ego para permitir que as diferentes populações celulares de um organismo multicelular vivam juntas e em har monia Uma forma de leitura muito específica Não obstante em qualquer momento podese desconhecer uma parte do ego considerandoo não ego e criando anticorpos contra seu próprio fígado pâncreas tireoide pele articulações ou outros Co nhecemos essa circunstância como enfermidades de autoagressão e sua relação evidente com circunstân cias estressantes vitais A sobrevivência e cooperação das diferentes populações celulares em um mesmo organismo é possível devido à complementaridade das estruturas de suas membranas celulares Essa complementa Podemos ver este fato biológico em qualquer ser unice lular por exemplo em uma ameba Sua vida depende de sua capacidade de englobar ou captar o útil alimentício ou necessário e rechaçar ou afastarse do agressivo perigoso irritante ou prejudicial Graças a isso sobrevive Psicossomaticaindd 298 Psicossomaticaindd 298 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 299 ridade permite uma relação contínua entre células diferentes O sistema imune aprendeu a identificar o não ego através deste processo de autorreconhecimento O conceito de igualdade biológica deve ser as sim compreendido pois não precisa ser igual O que é necessário é ser reconhecido e lido como ego Dois objetos são considerados iguais quando são lidos como iguais Por exemplo a molécula N é igual à molécu la N2 quando for capaz de produzir ou provocar a mesma reação da N2 com a mesma enzima Por isso devese descrever uma igualdade operatória e não necessariamente uma igualdade matemática protei ca ou conceptual Esta igualdade ou similaridade operatória é a única observada na natureza Por exemplo quando dizemos que uma substância H é semelhante à hista mina estamos expressando uma similaridade bioló gica em função das reações que e capaz de provocar e que chamamos de propriedades Durante toda a vida do indivíduo desde sua concepção toda estrutura proteica ou célula diferen te displásica ou neoplásica é lida sempre como não ego e destruída Em determinado momento a leitura se modifica e esta noção leva a procurar os motivos ou o gatilho que modificam esse reconhecimento ou leitura Esta maneira de pensar situa o problema do aparecimento do câncer em uma modificação do organismo in totum e não apenas em uma invasão agressão ou irritação extema Esta mudança de atitude para com a célula dife rente é um fato biológico Como veremos esta mudança de atitude ou de leitura se expressa em múltiplos aspectos Podemos encontrar um número infinito de ra zões possíveis e sua seleção provavelmente não es capará da ideologia de quem a selecione Por exem plo elementos carcinogenéticos no meio extemo oncogênes eou protoncogênes ação virótica falha imunológica área emocional traumas psicológicos papel das endorfinas Selye ou finalmente como pretende Lazarus 1986 dependente da atividade cognitiva cerebral e consciente Outro fato importante é que o organismo atende às necessidades ou exigências metabólicas do tumor às custas de si mesmo e até sua própria morte dife rentemente de outras enfermidades em que esque maticamente chegase à morte por razões mecânicas aparelho circulatório por transtomos metabólicos derivados do funcionamento anômalo de um órgão como o diabete o fígado o rim ou o pulmão ou o esgotamento do ego em oposição ou luta com um não ego perfeitamente reconhecido como nas infec ções ou ainda mais por um elemento que bloqueia a capacidade de reconhecimento do não ego como o vírus da AIDS permitindo assim que o indivíduo seja vítima de qualquer elemento séptico ou ainda o de senvolvimento de tumores especialmente os relacio nados com o aparelho imunológico e as áreas emo cionais do indivíduo como os linfomas não Hodgkin leucemias tumores de rim cérebro etc Em outras palavras quando se produz um blo queio ou inibição da capacidade do ego de reconhecer o não ego teremos doenças derivadas de uma inibi ção imunológica como a AIDS que por esse motivo é acompanhada de uma elevada incidência de câncer Esta capacidade do ego é evidentemente uma dependência das memórias do individuo que se in tegra com a área dos afetos pois estas não são mais do que uma memória É esta a grande via de ingresso dos fenômenos do estresse na biologia Assim concordamos com a concepção de Ma son referente à ineludível dependência do estresse humano das emoções Esta modificação da leitura do não ego pode ser interpretada como uma verdadeira resposta adapta tiva no sentido que a maioria dos autores atribui ao estresse Resposta adaptativa que assim unese à verdadeira história ou biografia do indivíduo Desse modo são determinados os padrões de conduta do organismo in totum em relação ao tu mor Ser reconhecido ou lido como ego implica sua incorporação ao ego Assim podemos compreender como são ade quadas as reações e condutas como os mecanismos de resistência às drogas citostáticas que recém esta mos começando a reconhecer O câncer assim lido deixa de ser um processo patológico para ser um fato biológico Podemos sin tetizar os conceitos anteriores aplicados particular mente ao câncer da seguinte maneira Consideramos três grupos de enfermidades 1 Processos sépticos ou infecciosos O indivíduo reconhece claramente um não ego invasor exter no alheio uma proteína heteróloga e diferente Com isso põe em marcha um complexo sistema defensivo que procura eliminar esse elemento Em Medicina ajudamos este mecanismo defensi vo estimulandoo provocando anticorpos utili zando vacinas ou antibióticos eliminando o foco séptico 2 Processos ou enfermidades de órgãos ou de fun ções A Medicina atua modificando corrigindo ou superando processos metabólicos ou mecânicos Por exemplo administramos insulina ou cardio tônicos diuréticos vasodilatadores ou psicofár macos corrigimos ou modificamos funções do Psicossomaticaindd 299 Psicossomaticaindd 299 05012010 121214 05012010 121214 300 Mello Filho Burd e cols fígado rins coração ou cérebro ou imobilizamos uma fratura Estas são doenças do ego do próprio indivíduo de estrutura homóloga e por isso não provocam fenômenos imunológicos não poden do existir vacinas e não sendo indicados os anti bióticos 3 Enfermidades dependentes de uma modificação na leitura do ego e do não ego como o câncer e as afecções de autoagressão ou autoimunes duran te a gestação ou pelo bloqueio da capacidade de leitura do não ego como a AIDS Devemos situar o câncer humano diferente mente de toda a escala zoológica como sendo um processo desenvolvido no próprio organismo a par tir de suas próprias células mas com uma estrutura funcional e proteica diferente não homóloga um não ego Desde a concepção até a morte estas célu las anormais surgem milhões de vezes durante toda a vida sendo regulamente destruídas e eliminadas Não possuem porvir genético Todo fator carcinogênico extemo provocará ou ajudará o nascimento formação ou deformação de células anormais que enquanto forem reconhecidas como não ego serão destruídas e eliminadas Enquan to forem claramente identificadas como não ego se rão rechaçadas e destruídas Para estas células não há amor alimento nem porvir genético morrendo ra pidamente Em um dado momento este processo de reconhecimento como não ego se altera modificase e o indivíduo aceita ou reconhece como integrante do ego esta célula tumoral ou diferente Essa célula não é alguma coisa nova como já vimos O novo ou dife rente é seu reconhecimento ou leitura como ego O crescimento e desenvolvimento do câncer não seria mais um processo dependente do próprio cân cer mas de como é lido ou interpretado pelo indiví duo como totalidade psicorgânica Agora pode crescer reproduzirse e cumprir sua função Integrouse ao ego Por isso não provocará reações imunológicas que o teriam destruído e eli minado há muito tempo como ocorria antes deste reconhecimento Tampouco provocará sintomatolo gia orgânica por si mesmo pelo menos durante 45 partes de sua vida Além disso este novo integrante do ego su bordinará o organismo ou este lhe cederá todo um conjunto de privilégios ou características biológicas como o amor a fome e a imortalidade Agora este tecido poderá se reproduzir sem inconvenientes amor será imortal enquanto obtiver alimento no sentido mais amplo e disporá das reservas alimen tares do organismo e das ingestas com um sentido de privilégio MITOS E A PERTURBADORA CESSÃO DE PRIVILEGIOS BIOLÓGICOS O mito é um relato ambivalente Em certa medi da referese a fatos que poderiam ter ocorrido e ao mesmo tempo possuem um aspecto fictício na forma lugar e momento em que ocorrem É outorgado a este aspecto o caráter mais importante aureolandose de fantasia a totalidade Outra característica do mito é certa permanên cia certa inamovibilidade como em resposta a uma consciência cultural Esses pressupostos culturais que chegam a ser pressupstos epistemológicos têm uma força ou constância tal que às vezes a investigação científica poderá necessitar séculos para rebatêlos O mito é tratado de forma extensa na filosofia desde Platão e Aristóteles até a atualidade Por exem plo Freud estudioso dos mitos e de sua influência em nossa cultura escreve a Einstein que toda ciência natural desemboca em um mito Os mitos não precisam ser antigos e diversas forças culturais contribuem para sua evolução Nas cem e se difundem como verdades indiscutíveis e morrem não sem antes terem sido suplantados por outros mitos ou por realidades científicas que quando não adotam o caráter de mitos são de vida cada vez mais curta Desse modo reconhecemos um verdadeiro trânsito ou passagem contínua de verdade a mito e de mito a falso que é a morte daquela ver dade inicial Sua função seria a formação de uma suposta mas firme tradição cultural Embora pareça buscar a explicação ou a justificativa de fatos perturbadores na verdade o mito e especialmente o mito cientítîco é uma resposta racionalizada de sentimentos psicos sociais e culturais profundos poderosos e inconscien tes Por isso tem capacidade para controlar a con duta o pensamento consciente e de certo modo a orientação científica A Medicina e uma ciência responsável por gran de número de mitos que agem de forma consciente ou inconsciente determinando em grande parte o tratamento e a evolução de algumas enfermidades Em especial as afecções de maior impacto emocio nal reconhecidas ao longo da história como enfermi dades sagradas cujo modelo atual é o câncer Entre outras razões porque o homem possui o sistema límbico e a área associativa frontal mais desenvolvidos Ambos são trânsito ou passagem iniludível de toda afe rência externa ou interna mesmo da cérebrocerebral O homem pode se emocionar com seus próprios pensamentos sentimentos ou imagens intemas Psicossomaticaindd 300 Psicossomaticaindd 300 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 301 Chamamos assim a toda uma série histórica e sequencial de afecções que ao longo dos séculos apresentam como característica serem depositárias a enfermidade e o enfermo de profundos e poderosos sentimentos individuais e sociais projeções culposas sentimento de pecado o diabo o maligno o fogo os raios e culpas culpas São assim determinados comportamentos so ciais para com o paciente e um critério de tratamento quase exclusivamente por agressão física emocional e social Os progressos da tecnologia e assistência or gânica costumam ser orientados apenas para a sobre vivência mesmo diante de agressões extremas Por tudo isso é que os êxitos de tratamento são avaliados apenas em semanas ou meses de sobrevi vência Usando uma figura literária extremada e exage rada posso dizer que a tecnologia medicocirúrgica atual e grande parte daquilo que chamamos de pro gressos no tratamento do câncer quando não comple mentados por uma assistência emocional e psicológica adequada com frequência permitem apenas que o pa ciente possa sobreviver por mais tempo no inferno Por tudo isso nada é mais oportuno do que tra tar dos mitos em uma afecção cuja característica real e simbólica é a mitose A mitose significa não somente a forma de re produção celular mas também a criação de mitos O primeiro dos mitos de que desejo tratar refe rese ao câncer como elemento externo invasor Algo alheio que o organismo não pode controlar Pelo exposto anteriormente vimos que o câncer para sêlo e para se comportar como um tumor malig no precisa ser aceito pelo organismo como um ego É integrante do individuo como estrutura psicorgâni ca élhe próprio é característico da pessoa e nestas circunstáncias de sua vida e por isso não poderá ser transplantado para outro ser humano Esta é a resposta a duas das perguntas funda mentais da cancerologia a ausência de sintoma tologia própria do tumor até etapas avançadas de sua evolução quando ocorrem sintomas por razões secundárias como infecção hemorragia obstrução compressão infiltração etc Por outro lado sua pe quena capacidade como antígeno isto é geralmente provocando muito poucos anticorpos e mecanismos defensivos A resposta a ambas é mencionada mais acima porque é lido pelo organismo como próprio como ego O segundo dos mitos a que irei me referir é o de considerar o câncer como um crescimento anárquico desordenado e tumultuado O fato de ainda não se conhecerem todas as diferenças entre a célula normal e a patológica não nos autoriza a supor anarquia ou desordem Longe de ser um crescimento anárquico de sordenado e tumultuado o tumor obedece a leis fi xas ordenadas e repetidas Comportase regular e caracteristicamente do ponto de vista histológico biológico e bioquímico sempre do mesmo modo Sua estrutura histopatológica reprodução metabo lismo capacidade migratória colonização interde pendência com o resto do organismo é semelhante em cada tipo de tumor Sua resposta às diferentes drogas e tratamentos é uniforme Por isso existe a cancerologia uma ciência onde são estudadas as características comportamentos e tratamentos de cada localização do câncer Pode ser tratado por ser sempre semelhante Quando o patologista observa o tecido tumoral pode fazer seu diagnóstico porque ele é semelhante a todos os tumores observados anteriormente Não há dúvida de que as características do tu mor são diferentes das dos tecidos normais onde se assentam mas diferente não significa anárquico nem desordenado Volto a repetir que o problema se ba seia em como é lido este tecido pelo organismo como totalidade psicorgânica Em terceiro lugar quero mencionar o tema do diagnóstico precoce Não há dúvida quanto à impor tânica geral que possui o diagnóstico precoce do cân cer para o melhor resultado do tratamento mas isso está longe de ser sempre assim pois existem muitas circunstâncias como no câncer de pulmão com deter minada histologia o câncer de esôfago fígado e vias biliares pâncreas e outros cujo diagnóstico por mais precocemente que seja feito não modifica substan cialmente o prognóstico O ponto ao qual quero chegar é o seguinte uma lesão tumoral foi inicialmente uma ou poucas célu las Se conhecemos o tempo que gastam em sua du plicação entre 12 e 70 dias e que é praticamente impossível para nossa clínica e aparelhagem atual diagnosticar um tumor antes que tenha um volume de 1cm3 e quando também sabemos qual o número de células necessário para atingir este centímetro cú bico podemos calcular que para chegar a este volume devem transcorrer entre 2 e 15 anos E esse o tempo ou idade verdadeira da história de um tumor E esse o período no qual poderemos encontrar antecedentes psicorgânicos significativos A história clínica convencional ao dizer que a enfermidade começou por exemplo quando a paciente observou um nódulo em sua mama ou quando houve uma proctorragia há uma semana ou mês apenas determina um conjunto de elementos circunstanciais por parte do paciente do médico e da tecnologia acessível em cada momento em cada lu gar e para cada profissional mas não o começo real de sua enfermidade Psicossomaticaindd 301 Psicossomaticaindd 301 05012010 121215 05012010 121215 302 Mello Filho Burd e cols Também se julga que o câncer além de ser anárquico é uma estrutura que escapou ao plano geral do organismo A realidade nos indica que é possível o cresci mento e desenvolvimento do câncer a partir de cé lulas tumorais que sempre existiram no organismo porque modificouse a atitude ou leitura do organis mo em relação a elas O que sempre foi um não ego ou estranho passou a ser considerado como ego ad quirindo além disso privilégios biológicos transcen dentais Pretender explicar este elemento chamado cân cer como sendo algo que escapou ao plano geral do organismo implica supor em primeiro lugar que conhecemos o plano geral Que nesse plano o úni co objetivo que podemos aceitar é viver e ser sadio como se a morte e a doença não pudessem também ser objetivos Em segundo lugar que nesse plano não está previsto ter um câncer e em terceiro que o ser humano é uma máquina com um funcionamento pre determinado Dentro de uma ideologia psicossomática esses três pontos são claramente míticos e dependentes daquilo que poderíamos chamar de mito principal que é a pretensão secular de uma divisão ou excisão mentecorpo AGORA TUDO É DIFERENTE O paciente com câncer apresenta todo um con junto de elementos psicossomáticos que possui gran de transcendência para ele e para sua vida de relação Além disso esses elementos devem ser conhecidos e compreendidos pelo terapeuta sem o que dificilmen te são obtidos resultados de algum valor O primeiro elemento que surge é a real diferen ciação de sua realidade para com a realidade de seu ambiente naturalmente incluído seu médico Os con ceitos de enfermidade crônica cura e morte podem diferir entre o pensado pelo paciente e sua família e o pensado pela equipe assistencial Frequentemente o que o médico apresenta em uma associação médica como êxito é olhado com total ceticismo pela família que considera que vai morrer do mesmo modo Além disso voltar à normalidade é uma con cepção e um fato completamente diferente para o médico e para o paciente A normalidade do pacien te é aquilo que o deixou doente Estas realidades encontradas deveriam ser resolvidas a favor do pa ciente no caso de uma psicoterapia adequada de vendo ser meditada previamente qualquer intenção de convencêlo ou trazêlo para nossa realidade Outro elemento a ser levado em conta é a reva lorização do elemento tempo Isso está relacionado com o sentimento de imortalidade perdido ou trans ferido para o tumor como veremos o que deve ser levado em consideração em seu tratamento No paciente neurótico poucas vezes se leva em conta o tempo Ambos paciente e terapeuta parecem dispor do tempo a seu arbítrio Qualquer tema pode rá ser visto na próxima entrevista No paciente com câncer cada entrevista pode ser a última devendose ponderar previamente a conveniência de fomentar a regressão Os tratamentos atuais do tumor são profunda mente agressivos para a parte orgânica funcional e especialmente para a fantasiada pelos meios de significação socioafetiva diante de si mesmo e dos demais o aspecto a face a voz os cabelos os órgãos sexuais etc Além de viver o luto por esta perda o paciente deve aceitar as modificações ou mudanças da ima gem e do esquema corporal Pelos deslocamentos sofridos pela libido é no tável a revalorização de afetos e como são reclassifi cadas as pessoas de seu círculo imediato de acordo com uma nova escala de valores afetivos Um elemento a ser considerado evidente em nossa cultura é a atenuação e até mesmo o desapa recimento do superego do paciente Tudo o que faz pensa e diz um integrante de nossa cultura não é pu nível nem criticável porque ele está doente Quan do se está doente julgase ter o direito de ignorar a ética Todo doente com câncer deve viver com aquilo que se denomina de a síndrome da espada de Dâmo cles ou a certeza da incerteza Há a permanente amea ça da recidiva ou da metástase ameaça que é projetada claramente a partir da realidade que o cerca Este malestar que é permanente e que exige muitos anos para ser controlado é completado pelo medo da dor do sofrimento e do isolamento Em nos so meio cabe acrescentar que todo paciente hospita lar deve encarar e suportar a estrutura assistencial O fator mais agressivo recebido por um paciente com câncer é a modificação das atitudes e comporta mentos dos próximos em relação a ele Podem chegar a um nível terrível de agressividade e representar a partir do próprio universo emocional a concretização de sentimentos históricos agressivos e sádicos muito difíceis de lidar ou de serem evitados por parte do doente Como pode se depreender desta descrição um tanto sinistra pretender que um paciente com câncer se comporte como se nada tivesse ocorrido é um critério simplista inadequado e inoperante Psicossomaticaindd 302 Psicossomaticaindd 302 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 303 Pelo que foi exposto proponho que todo psico terapeuta comece por reconhecer que agora tudo é diferente Somente assim poderá readequar o pa ciente e seus familiares CIRURGIA DO CÂNCER E PSICOSSOMÁTICA O trauma psicológico decorrente de cirurgia foi uma das vias de acesso para o reconhecimento da situação emocional dos pacientes com câncer É evidente que a cirurgia nos pacientes com câncer tem um componente emocional muito maior do que em outras afecções Esteja ou não informado o paciente é o ambiente que organiza a situação emocional e que é inescapável para o paciente Médico paciente e família podem ter visão ou expectativas diferentes e os termos utilizados são interpretados por cada um a seu modo O que o ci rurgião refere como um êxito pode ser visto com ceticismo Por exemplo para que tudo isso se vai morrer de qualquer jeito No começo insistiuse nos aspectos emocionais em diferentes ressecções e amputações Assim surgi ram os estudos referentes a mastectomia colostomia amputações esvaziamentos pélvicos etc Schável zon 1970 Já não pensamos assim Cada paciente tem uma história pessoal uma biografia e um ambiente psicos social A doença e seu tratamento representam uma marca um acréscimo a essa história Por isso não se pode separar a operação realizada e a situação atual do paciente do resto de sua biografia As respostas psicológicas são individuais pessoais O cirurgião e a cirurgia na ultralógica ou meta lógica do paciente podem ser somente um meio Quero me referir apenas a três pontos Primeiro a agressão à imagem e esquema corporal Segundo os aspectos simbólicos da cirurgia do ponto de vista do paciente Terceiro sugestões terapêuticas Primeiro ponto As diferentes estruturas orgâni cas do homem suas funções reais e seus significados socioculturais cumprem um papel básico e decisivo na integração física e psicológica São chamados de imagem e esquema corporal Ambos são represen tações psíquicas relacionadas com a organização do ego Cada órgão ou segmento do ser humano tem as sim uma conformação anatômica e uma função real e fisiológica interrelacionada com a totalidade O ser humano precisa de cada órgão ou segmento e de sua função real e além disso da atribuída pela cultura para ser considerado por si mesmo e pelos demais como ser humano A anatomia e as funções são determinadas pela evolução filogenética sendo além disso modificáveis apenas de forma muito parcial e lenta no pessoal e cultural A isso se chama de esquemas corporais Além destas estruturas e funções reais e objeti vas existe uma atribuição de funções de valores e de significados sociais dados pela cultura e portanto subordinados à ela A consciência ou reconhecimento desses valores ou funções atribuídos pela cultura a cada parte e ao todo de nossa estrutura física é denominada de imagem corporal Ambas são estruturas psíquicas que completam sua integração entre os 2 e os 4 anos de idade Por isso a agressão ressecção ou disfunção de uma parte do corpo implica um desprezo ou modificação não só real e funcional mas também sociocultural e psicoló gica para o individuo e seu ambiente A integridade da imagem e do esquema corpo ral garantem que se possa enfrentar as contingências individuais e sociais as relações com o exterior e a manutenção de um equilíbrio homeostático interno e externo Assim por exemplo a mama o estômago uma perna o esfíncter retal ou vesicular o pulmão etc integram o esquema e a imagem corporal que repito são imagens mentais Se pelo câncer ou seu tratamento for afetado ou perdido um órgão uma função ou o aspecto exterior produzse uma fratura da capacidade de adaptação físicoemocional que é temida especialmente diante das exigências socioculturais reais eou supostas Esta ruptura ou modificação traz graves trans tornos psicológicos e de desadaptação que são viven ciados como verdadeiros lutos São compreensíveis o quadro de angústia tão frequente ante a cirurgia para o câncer e a reação depressiva pósoperatória O concreto para o cance rologista é sua influência decisiva sobre a qualidade de vida e os mecanismos imunológicos e de dissemi nação tumoral Progrediuse na compreensão destes problemas Leválos em conta quando da decisão terapêutica às vezes apresenta difíceis questões no que se relacio na à qualidade de vida A Organização Europeia de Investigação e Tratamento do Câncer EORT criou em 1979 um Grupo de Estudo sobre a Qualidade de Existem duas estruturas o esquema corporal representan do a espécie e pelo qual um indivíduo reconhece o outro e a imagem corporal própria de cada um e sujeita a sua história e integração em sua cultura Ver Dolto 1984 1986 Psicossomaticaindd 303 Psicossomaticaindd 303 05012010 121215 05012010 121215 304 Mello Filho Burd e cols Vida com repercussão mundial devido a suas ativida des São realizadas muitas reuniões internacionais e suas publicações são realmente transcendentais Te mos a honra de integrar esse grupo Diante do indivíduo operado de câncer ele e os que o cercam devem se recondicinar ou readaptar ou reabilitar em sua totalidade função real esque ma ou imagem corporal à nova situação Schável zon 1969 Do ponto de vista do paciente toda alteração anatômica ou funcional contribui para diferentes sen timentos de culpa depressões reativas pensamentos ominosos ou ainda de agressão em busca de culpa dos Em síntese desadaptação Esta modificação ou desadaptação transcorre como luto no campo dos afetos Tanto no cônjuge do paciente como em seus filhos adultos podese observar uma verdadeira atuação que consiste em mostrar que não estão atuando As crianças costumam enfrentar a realidade o que as torna muitas vezes temidas provocando seu afastamento Segundo ponto Através da experiência obtida pela investigação psicodinâmica em pacientes com câncer podemos dizer que nossa cultura sente a ci rurgia do câncer como um ato simbólico um tanto místico e deísta Um verdadeiro profundo e pouco consciente sacrifício aos deuses E um sentimento an cestral e primitivo Está relacionado com a imagem do câncer Schávelzon 1978 doença sentida como diabólica que entra no corpo e o invade Oferecer e aceitar o sacrifício do órgão invadido representa uma oferenda aos deuses para obter a saúde O paciente que não é operado de seu câncer costuma sentir que não há mais nada afazer recebendo outras terapias apenas como paliativos Talvez por isso sente se a cirurgia como a principal terapia do câncer Quando depois de operado mais adiante rea parece sua doença isso é sentido como se os deuses o tivessem abandonado Sentese rechaçado encaran do os raios e as drogas destruidoras como coisas do diabo Sentese possuído pela enfermidade com portandose nesse sentido O médico e os familiares participam muito cla ramente deste simbolismo da cirurgia do câncer A cultura toma o cirurgião e a cirurgia para o câncer algo muito valorizado Terceiro ponto No tratamento deve vigir o prin cípio de realidade de que agora tudo é diferente e que tomar a iniciativa da reabilitação é muito difícil para o paciente Apesar disso é frequente ver como uma revalorização afetiva faz com que o doente tome a condução do grupo familiar para uma rea daptação Isso é observado com mais frequência na mulher do que no homem talvez como resultado dos respectivos papéis sociais em nossa cultura No luto pela alteração do esquema e imagem corporais devese obedecer àquilo que Freud aconse lha Isto é respeitar o luto desde que não seja acom panhado de uma depressão reativa e até cerca de 100 dias mantida a contenção emocional Depois uma psicoterapia adequada e eventualmente antidepres sivos A melhora é evidenciada por um reatamento e reavaliação dos afetos Para a frustração de seu sacrifício somente será eficaz uma psicoterapia muito inteligente e adequa da Contraindicamos em ambos os casos o uso ex clusivo de psicofármacos A forma intensidade e duração da resposta do paciente à cirurgia de câncer está relacionada com sua personalidade como foi preparado psicoprofilaxia e como foi conduzido e o comportamento de seus fami liares e dos profissionais de saúde Isto determina sua desadaptação afetiva e luto corporal Dar uma atenção adequada é responsabilidade do médico UM MODELO PSICOSSOMÁTICO E PSICOSSOCIAL Freud é um dos homens mais biografados da história e a psicanálise provocou direta e indireta mente a maior bibliografia do mundo A isso é preciso acrescentar uma correspondência pessoal calculada em 50000 cartas enviadas e recebidas Graças a isso podemos estabelecer comportamentos que seguiram trajetórias paralelas e coerentes entre seus trabalhos e suas doenças Ao realizar este estudo também surgiu a evidên cia de que seu entorno sua circunstância sua família e seu médico pessoal interagiam com o próprio paciente de uma forma muito evidente e significativa Por isso e porque o próprio Freud deixouse le var por essas decisões de seu entorno e com plena consciência esta história é um modelo psicossomáti co e psicossocial A evolução dessa doença durou 17 anos Foi operado 35 vezes e foi irradiado em 10 oportuni dades De acordo com a documentação que possuo inicialmente não se tratava de um câncer e seus pa tologistas os melhores do mundo naquele momento nunca disseram que era câncer durante os primeiros Revalorização significa modificar a escala de valores em que no entorno do paciente uns sobem e outros descem ou desaparecem em seus afetos Uma síntese do livro de Schávelzon Freud um paciente com câncer Editorial Paidós 1998 Psicossomaticaindd 304 Psicossomaticaindd 304 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 305 14 anos de evolução mas todos à sua volta já haviam resolvido que sim que era câncer ou que podia che gar a sêlo e que algo precisava ser feito Podemos dar outro título a este comentário Quando começa e quando termina uma his tória clínica Com o risco do sinistro SS Freud 67 anos casado 5 filhos domicilia do em Viena emigrado quando criança da Checoslo váquia Estamos em 1924 Este paciente apresentava há vários anos uma mo léstia no palato e certa manhã mostrou sua lesão para um médico amigo clínico geral que no primeiro olhar diagnosticou tratase de um câncer avançado Quem era esse médico Sua esposa estava em análise com nosso paciente e passando por um mo mento muito crítico de transferência Estava apaixo nada por Freud e convencida de que ele iria divor ciarse e de que casaria com ela Lembremos o conselho de Freud quando é preciso tratar a esposa de um amigo a amizade será perdida e é preciso estar disposto a enfrentar sua hos tilidade Mas nosso paciente não seguiu seu próprio conselho Poucos dias depois acompanhado pelo mesmo médico foi à consulta ambulatória de um hospital muito pobre e que não tinha internação com a ideia de operar esse tumor do palato direito Haviamlhe dito que seria uma pequena intervenção Procedeuse a operálo sentado em uma cadeira de cozinha Com anestesia local e utilizando cinzel e martelo foi dessecada uma parte de seu palato di reito a borda do maxilar superior e outros pedaços Dado que o sangramento não cessava o médico con cluiu a operação com um tamponamento tampou lhe a boca Quem era esse cirurgião desprestigiado em Viena Era o Dr Marcos Hayek expsicanalizando de Freud que nessa época também atendeu Kafka da mesma maneira selvagem acelerando sua triste morte O paciente ficou internado em uma maca Seu companheiro de quarto era um anão idiota com hi potireoidismo que durante a tarde salvaria sua vida ao sair aos gritos horrorizado por uma nova grande hemorragia Não havia enfermeira A campainha não funcionava O médico interno não quis levantar O próprio paciente aplicouse mais tamponamento na boca Sua família não estava ciente de nada O médi co cuja esposa estava apaixonada por Freud e que o havia acompanhado desapareceu A peça cirúrgica não foi enviada para análise As feridas não foram suturadas Estamos em 1923 e Freud acabara de escrever o EGO e o ID Modifi ca seu próprio conceito anterior sobre a estrutura da personalidade e aceita a existência de um instinto de morte Nos 17 anos seguintes seria operado e reope rado outras 35 vezes Além disso em cada uma das vezes seriam extirpadas umas crostas fatídicas e a se guir seria aplicado um creme que produzia crostas nas mucosas Seriamlhe aplicados raios e mais raios em numerosas oportunidades até que sua bochecha direita apresentou necrose 17 anos de evolução Desse momento em diante nunca mais foi ob tida uma fotografia de Freud mostrando seu perfil direito Hoje sabemos que as células displásicas apare cem no ser humano 35 ou mais anos antes do mo mento de seu reconhecimento clínico Este tipo de tumor apresentado por Freud te ria então começado entre 3 e 4 anos antes Por isso conto a vocês que nesse período anterior a partir de 1920 nosso doente sofreu a terrível agressão narcísi ca como ele mesmo denominou das trágicas mortes de sua filha preferida Sophie e de seu mais adorado netinho Heinele Ele reconheceo como a depressão mais grave da minha vida Somouse a isso a pneu monia gripal de sua esposa e a morte por câncer de seu melhor amigo von Freund Um grupo de estudo assessoria e colaboração que Freud havia mantido unido durante os últimos 15 anos estava passando por um grave período crí tico e ameaçava dissolverse Freud sentiase muito mal por tudo isso e em 1920 escreve Além do prin cípio do prazer AE181 onde comenta o poder da pulsão de repetição E antes disso A guerra de 1914 a 1918 e o pe ríodo imediato do pósguerra com frio e fome Sim o frio e a fome que passava nosso personagem recla mando por um pedaço de carne e escrevendo com os dedos gelados O presidente dos Estados Unidos Wilson solici ta uma hora para tratamento e troca com seu repre sentante seus livros por duas cestas com alimentos E antes ainda Em 1885 sonha o que posterior mente seria uma das contribuições fundamentais de sua teoria A interpretação dos sonhos Sonha com Irma uma amiga da família que havia consultado com ele dias antes e conta levoa até a janela e olho sua garganta encontro à direita uma grande mancha branca e em outro local notáveis formações em bucle semelhantes aos cornetos do nariz e que têm escaras de um branco acinzentado Freud S A EXVII2171919 O estudo do psicossocial da biografia de um paciente tem sempre o risco do sinistro tema que Freud estuda dentro da angústia Surge quando se cumpre algum pensamento sinistro por exemplo Oxalá ele morra Psicossomaticaindd 305 Psicossomaticaindd 305 05012010 121215 05012010 121215 306 Mello Filho Burd e cols Olhando a garganta vê os cornetos do nariz Sim essa é a operação que lhe fez Hajek 28 anos depois quando dessecou seu palato Que profecia perfeita em 1895 do que seria sua própria situação a partir de 1923 Muitos deta lhes deste sonho não são outra coisa que uma exata descrição do seu próprio futuro clínico a bengala o reumatismo fazerlhe a barba a enorme prótese a infecção etc Ao referir esse sonho Freud acrescenta alguns destes detalhes estão personalizados dando a entender que se referem a ele próprio Onipotência dos pensamentos Profecia au tocumprida Como ele escreveria um dia pensamen tos e sonhos capazes de modelar o futuro segundo a imagem do passado Quando G Groddeck em 1915 oito anos an tes faz traduzir para o sueco Psicopatologia da vida cotidiana obra escrita em 1901 interpreta que nes se ano Freud inconscientemente já tinha decidido morrer aos 67 anos que foi quando se submeteu à primeira operação Convidao a vir até sua clínica O Satanarium em BadenBaden para psicoanalizálo mas Freud recusa e agradece A partir de então fi caram amigos Da obra de Groddeck Freud adota o conceito de superego em seu segundo tópico sobre a estrutura da personalidade Podemos continuar voltando no tempo Este paciente nasce no dia 6 de maio de 1856 e na Igre ja de Santa Maria desse povoado de Freiberg atu al Checoslováquia seria inscrito como Sigismund Schlomo Schlomo é Salomão filho de Daniel na Bíblia onde diz E Deus disse a Daniel Nascerteá um filho Varão de paz por sua palavra Crônicas I XXII9 Prossigamos na mitologia germânica Sigis mund parece significar bochecha perfurada Assim morreria Freud 83 anos depois em 1939 devido a uma pneumonia provocada por essa perfuração re sultado tardio das repetidas e monstruosas irradia ções Sua mãe que morreu aos 94 anos chamouo durante toda sua vida de Sigi Após sua adolescência troca seu nome para Sig mund que parece significar êxito pela boca mas em 1911 publica um breve opúsculo Sobre o sentido antitético das vozes primitivas ignorando que está falando de si mesmo Quando começa e quando termina uma his tória O protocolo cirúrgico chegou às minhas mãos e minha experiência em oncologia pareceu gritarme desde dentro isto não é a evolução habitual de um câncer Aqui ocorre algo E assim começou uma busca por documentação biográfica e histopatológica que também serviu para percorrer a Europa Viena Berlim Paris Londres e Nova York constatando que se estendia um véu de segredos sobre a vida privada do nosso personagem Tentei também associar sua obra seus pensa mentos e a evolução da sua doença A anedota Você quer encontrar as biópsias originais feitas a Freud A partir de 1923 O silêncio e o olhar que seguiam a esta frase eram muito significativos Pareciame ver nas pupilas de meus interlocutores franceses ingleses alemães americanos e austríacos a figura de dois robustos en fermeiros esfregando as mãos mais um caso Já vimos o quanto podemos voltar no tempo e em uma história Vamos agora um pouco adiante Por que eu que naquela época era um cirurgião oncologista Por que ele Em 1887 a partir da sua falta de modéstia Freud escreve para sua noiva foram mil cartas em 4 anos de noivado Aos meus biógrafos essas pobres pessoas que ainda não nasceram problema deles não temos por que darlhes todo o trabalho feito já fazme rir pensar em seus erros Em 1910 publica uma das primeiras interpre tações psicanalíticas de uma biografia Leonardo da Vinci e ali diz Os biógrafos estão presos aos seus heróis de muito curiosa maneira razões pessoais de suas vidas levaramnos a isso talvez vendo em seus heróis a representação infantil do pai Então eu meu pai Será que Freud ocupouse de mim muito antes que eu dele Essa é outra histó ria a minha As Moiras eram as deusas do destino individual Como Freud amava a mitologia Minha Moira pessoal levoume até essas biópsias Estamos em 1983 e ao começar a remexer nes te tema já estavam interessados e participavam Ana Freud em Londres ainda era viva e mantivemos cor respondência a este respeito Kurt Eissler encarrega do do Museu Freud em Nova York o pessoal do Mu seu Freud em Viena e o Instituto Curie em Paris onde apareceu tendo sido arquivada mais de meio século antes a documentação histológica que nunca tinha sido revisada apesar das milhares de publicações e interpretações sobre o câncer de Freud Consegui encontrar as biópsias originais e os relatórios de seus patologistas Tudo quanto era ne cessário para poder dizer que inicialmente Freud não teve câncer Foram os 17 anos de traumatis mos e irradiações insensatas para os conheci mentos da época que lhe provocaram o câncer Que tudo foi uma projeção sinistra de seu entorno e que ele a aceitou Seus patologistas de Viena Berlim e Paris dis seram não há câncer e contudo seus médicos sua família e seus discípulos insistiam por via das dú Psicossomaticaindd 306 Psicossomaticaindd 306 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 307 vidas devemos continuar operando e irradiando Irradiaram em doses tão exageradas para os conheci mentos da época que finalmente após 12 anos essa lesão benigna transformouse agora sim em câncer Após 17 anos houve necrose e perfuração Suas bi ópsias nunca foram controladas antes de chegarem a mim E quem irradiou Freud dessa maneira O Dr Holznecht radioterapêuta que já tinha apresentado um epitelioma na mão provocado pelos raios e com metástases pulmonares e havia sido operado e am putado repetidas vezes Além disso e mais uma vez era um expaciente de Freud Pouco antes da morte deste Holznecht Schur o médico que Freud escolheu como seu médico pessoal levao para uma entrevista no hospital e diz sic ambos eram doentes de câncer que estavam por morrer Mas Freud não tinha câncer naquele mo mento ele morreu 8 anos depois e de outra doença O aspecto chamativo é que seus patologistas Viena era um dos mais avançados centros de pa tologia no mundo não fizeram o diagnóstico de câncer nem nunca justificaram os erros terapêuticos que seus amigos seus familiares e seu médico pesso al propuseram a Freud e que ele conscientemente aceitou Ana Freud escreveu em uma de suas cartas Revisar a histopatologia da doença de meu pai Fa zer uma análise da sua história clínica desses terríveis 17 anos O que vai poder o senhor aportar àquilo que já tínhamos perfeitamente resolvido e arquivado Es pero aprender isso do senhor Afortunadamente ninguém me disse Dr Schá velzon não incomode mais por favor E isso foi o que me animou a seguir em frente Há dúzias e dúzias de incidentes anedóticos in sólitos e incompreensíveis Trago para vocês apenas como exemplo uma carta Freud escreveu para Eitingon em 1931 e o consulente francês o mundialmente famoso Dr Re gaud de Paris depois de revisar as biópsias diz que se não há câncer não há razão para fazer tratamento para câncer Por isso continua Freud nada pode evi tar que eu me submeta a outra operação Jones Volume III p 173 e Schur seu médico acrescenta Prevaleceu a prova da realidade E ele operouse novamente intervenção no 30 doloroso e longo pós operatório e uma broncopneumonia O tecido extir pado foi levado para analise e o relatório diz Não se observa tumor algum Prossegue Schur seu médico pessoal Freud era um homem muito afortunado E em sua obra Em 1920 época provável do aparecimento das primeiras células dessa lesão benigna Freud modifi ca totalmente sua teoria da libido Aparece em sua obra a pulsão de morte à qual ele próprio resistia se até esse momento Expressao esse ano em Além do princípio do prazer obra tão relacionada com os fatos de sua vida Modifica sua teoria da personali dade Incorpora o EGO o ID de Grodeck e o SU PEREGO Durante seus anos de enormes sofrimentos por operações noites em vela e uma enorme prótese den tro de sua boca que tornava incompreensível o que falava com a imagem do câncer projetada por todo o seu entorno escreve Psicologia das massas 1921 e O EGO E O ID Em 1923 quando foi operado pela primeira vez apresenta tudo isto em sua autobiografia de 1924 onde diz reuni a con servação de si mesmo e a da espécie sob o conceito de Eros e contrapus a ele a pulsão de destruição ou de morte que trabalha em silêncio Sua ação con jugada e contraposta dá o quadro da vida Nesse momento ele aceita pela primeira vez a existência da pulsão de morte Em 1926 escrito a partir de sua doença e dos seus sofrimentos sem poder mais falar em público nem dar conferências precisando comer sozinho e sofrendo horrores escreve Inibição sintoma e an gústia Em 1930 já tendo sido operado 20 vezes escreve O malestar na cultura talvez uma raciona lização de uma religiosidade que sente em si mesmo mas julga perigosa Por volta de 1939 sua situação clínica já era muito crítica mas demorou sua morte até ter nas mãos um exemplar de sua obra Moisés e a reli gião monoteísta Assim escreve para Ernest Sweig e depois minha obra seguinte será em minha próxima reen carnação Temos observado isso com frequência alguns pacientes demoram ou atrasam sua morte à espera de algum acontecimento importante ou significativo para si Fritz Zorn No discurso fúnebre que Jones pronunciou per guntase e agora como será um mundo sem Freud Isto não pode ser respondido É impossível conceber o mundo atual sem Freud O último livro que esteve em suas mãos foi A pele de Onagro de Balzac no qual um dos perso nagens diz 65 anos antes da criação da psicanálise o que os homens chamam contrariedades amores ambições ou tristezas são para mim ideias que se transformam em sonhos Em vez de sofrêlas inter pretoas A palavra Tânatos não é de Freud foi introduzida por Feder em 1906 e depois por Steckel em 1912 Psicossomaticaindd 307 Psicossomaticaindd 307 05012010 121215 05012010 121215 308 Mello Filho Burd e cols Este livro trata do encolhimento da inanição e da morte Foi assim que Freud se referiu 60 anos antes à morte de seu pai A mesma coisa estava ocor rendo com ele próprio Termina aqui esta história clínica Obviamente que não O que este estudo sobre a doença de Freud nos ensinou é que uma história clínica psicossomática é inevitavelmente social que não começa com o nasci mento nem conclui com a morte quando o historiado é o paciente como pessoa OS PRIVILÉGIOS BIOLÓGICOS NO CÂNCER Quando a célula diferente ou neoplásica é re conhecida como ego adquirindo assim a possibilida de de evoluir dizemos que adquire ou o organismo lhe dá certos privilégios biológicos que transcorrem em diferentes áreas mas com um claro significado de complementação psicorgânica O primeiro a ser citado é a capacidade de se reproduzir incessantemente a que simbolicamente chamo de amor Como é uma das características do câncer do ponto de vista psicanalístico implica ele mentos a serem levados em conta no tratamento Por outro lado costumam ser claramente expressas pelo paciente uma relação um controle ou uma revisão de ódio e rechaço Além disso se manifesta uma rela ção objetal claramente narcísica ligada ao horror do incesto Também aparecem suas influências no ego sua carga e deslocamento libidinoso a partir de seu reservatório principal e de sua descarga como enfer midade neste caso como reprodução tumoral A esta que é mais uma enumeração do que uma descrição se acrescentam a relação e a frequente referência à ges tação reprodução como fantasia Chiozza 1978 Freud refere que as forças da consciência moral que levam a contrair a enfermidade pelo triunfo e não como é comum pela frustração enlaçamse in timamente com o complexo de Édipo Uma relação com o pai e a mãe Creio que assim é fácil considerar a enfermidade como um significado horripilante de um incesto que se sente realizado Como se expressa no paciente Na clínica en contramos claras manifestações na área dos afetos com revalorização de sua escala de valores e em sua expressão libidinosa bem como em uma situação de angústia Assim se integra o conjunto de elementos que descrevemos sob o título Agora tudo é dife rente Esta aquisição de um porvir biológico para o tecido tumoral é outorgada pelo organismo como to talidade ao reconhecer o câncer como um ego con ceito fundamental que tantas vezes repito porque é a base de nossa ideologia Dos dois elementos câncer e indivíduo o único que pode atribuir propriedades determinar condutas ceder privilégios ou destruir total e precocemente o outro é o indivíduo pois possui um sistema nervoso central que interpreta e coordena Tem também todos os meios subsidiários e eficazes sistema nervoso pe riférico sistema vascular hormonal neurotransmis sores e a interrelação com seu interior e seu exterior por sua vez também interpretado e metabolizado por seu sistema nervoso central Em síntese tratase de uma das perturbadoras aquisições de privilégios biológicos por parte do tu mor ao ser lido como ego pelo indivíduo Exprimese na clínica por uma revalorização de afetos com des locamentos libidinosos característicos grande parte dos quais se transfere ao tumor Isto explica as curio sas referências de cada indivíduo à maneira de sentir seu câncer Quanto a esse reconhecimento e aceitação como ego de um elemento claramente heterólogo e preva lente sobre o próprio indivíduo só conheço um outro exemplo em biologia humana que é a gestação a ni dação do ovo no endométrio A semelhança entre am bos os processos do ponto de vista psicossomático e imunológico mesmo que pareça sinistra para nossos mitos culturais é evidente na clínica psicoterápica Outro dos denominados privilégios referese às modificações metabólicas que ocorrem com o pacien te de câncer Este é um tema de transcendência na atenção médica A astenia e anorexia do paciente passam a ter destaque em todo ambiente familiar Seja qual for o valor de suas ingestas o tumor continua recebendo um fornecimento alimentar regu lar Isto é feito às expensas das ingestas e das proteí nas do organismo O ser humano normal obtém suas calorias em primeiro lugar de suas gorduras e hidra tos de carbono De forma simples posso dizer que o câncer continua recebendo seu fomecimento calórico em detrimento do paciente Se o fomecimento exte mo diminuir ele utiliza as proteínas somáticas de seu hospedeiro Quando administramos vitaminas o teci do tumoral aproveitase delas antes do paciente Sur gem importantes mudanças no paladar que nos seres humanos é um somatório de vários sentidos como o Estudase extensamente a relação entre depressão perdas e câncer Explicao Laborit Schávelzon 1980 com refe rência ao como se realiza e em Freud com referência ao porquê Acredito que atribuir caracteres ou propriedades ou ainda vontades a uma enfermidade não deu bons frutos até o momento Atribuo qualidades e características à leitura que o indivíduo faz da afecção Psicossomaticaindd 308 Psicossomaticaindd 308 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 309 do olfato o da visão o do paladar propriamente dito e da textura do alimento macio duro líquido etc de situações psíquicas circunstanciais angústia de pressão excitação etc e uma importante relação com a área associativa Este complexo sofre importantes modificações mudam os apetites e os ritmos habituais sendo fre quente a referência a sabores desconhecidos mas que são associados sabor de capim de madeira de palha etc Mas sem dúvida o mais perturbador na cessão de privilégios biológicos é a concessão da imortalida de O homem possui como que incorporada à men sagem genética e à evolução filogenética um sentido de imortaIidade apesar de que quase todos os teci dos e células do organismo vão se renovando inces santemente Assim cada célula se reproduz duas três e até seis vezes depois morrendo sendo suplantada pelas novas gerações Esta renovação contínua per mite manter a estrutura total do organismo De outro modo se a reprodução fosse mantida chegarseia a tamanhos descomunais Platão em Fédon diz que a morte só adquire significado na mente humana como cessar no ou tro Um século depois Epicuro século III aC diz nos que quando existimos a morte não existe São Tomás de Aquino séc XIII afirma que todo aquele que tiver inteligência desejará existir para sempre e Sartre acredita que a morte vem para nós do exterior transformandonos em exterio ridade Para Freud não se pode conceber a própria morte Ao tentamos fazêlo notamos que na verda de sobreviveremos como observadores No incons ciente cada um de nós está convencido de sua imor talidade Nada de pulsional instintivo em nós solicita a crença na morte e que 4 o ponto mais difícil do narcisismo é a imortalidade do ego Como vimos as células humanas normais de pois de certo número de duplicações morrem e são suplantadas por suas duplicações Este morrer e re novarse é perfeitamente equilibrado o organismo assim mantém sua estrutura As células tumorais não participam deste prin cípio biológico sendo sua reprodução praticamente infinita enquanto participarem os elementos neces sários para seu metabolismo Deste modo compor tamse como imortais Nas culturas in vivo de células humanas o com portamento é semelhante As células normais mor rem logo após um certo número de duplicações As células neoplásicas continuam indefinidamente sua reprodução Por outro lado surge no léxico do paciente o sentido da morte Assim assistimos a uma transferência do senti do da imortalidade a partir do paciente nessa parte de seu ego incorporada ou aceita como privilegiada NOTA A biografia as certidões e as fotocópias dos preparados histológicos assim como os relatórios de seus patologistas podem ser consultados em Freud um paciente com câncer do Dr José Schávelzon premiado pela Sociedade Argentina de História da Medicina Editora Paidós 1986 Bs As REFERÊNCIAS Chiozza LA El Contenido latente del horror al incesto y su rela ción con el cáncer In Ideas para la concepción psicoanalítica del câncer Barcelona Paidós 1978 Dolto F La imagen inconciente del cuerpo Barcelona Paidós 1986 Limage inconsciente du corps Paris Seuil 1984 Freud S Duelo y melancolia AE tomo XIV 1919 Schávelzon J La rehabilitación del canceroso Semana Médica n 134 p 11511969 El uso de la cirugía para el tratamiento del cáncer In Ber tola J et al Cancerologia básica Buenos Aires Eudeba 1970 La imagen del câncer In Cáncer enfoque psicológico Buenos Aires Galema 1978 Paciente con Cáncer Buenos Aires Panamericana 1986 Psicossomaticaindd 309 Psicossomaticaindd 309 05012010 121215 05012010 121215 A participação de um componente emocional ou psicodinâmico no quadro da asma brônquica é um fe nômeno marcante e bem conhecido Esse fator deve ser bem estudado por todos os profissionais da saúde que interagem com pessoas com asma pois a assistên cia psicológica a elas é tarefa de todos embora predo minantemente do médico assistente Não é necessário solicitar o auxílio de psiquiatras no tratamento dos problemas emocionais das pessoas com asma a não ser que assumam características de doença emocio nal Nesse caso cabe a atuação do especialista com as mesmas indicações que para os demais doentes O atendimento insuficiente do componente psi codinâmico dos asmáticos é o principal responsável pelas falências no tratamento durante o período in tercrítico Costa 1977 Considerando falência a não melhora da qualidade de vida esta ocorreu em cerca de 40 dos casos de duas séries diferentes de asmá ticos ambulatoriais de hospitais diferentes e em dife rentes épocas Costa 1977 SantAnna 1988 Do total de falências 48 poderiam ser incluí das no não atendimento do componente emocional incluindo neste a não percepção de melhora ansieda de persistente e até o abandono do tratamento como expressão de insuficiente relação médicopaciente Costa 1977 O componente emocional pode influir em três níveis do quadro asmático no desencadea mento das crises na persistência ou agravamento do sofrimento durante as crises ou períodos intercríticos e na resistência ao tratamento O DESENCADEAMENTO DAS CRISES Um dos mais interessantes estudos dos fatores desencadeantes das crises asmáticas é o de Williams 1958 anterior à identificação das crises desencadea das por aspirina exercício e pelos poluentes atmosfé ricos Como a real prevalência destes novos fatores permanece discutível aquele trabalho não perdeu in teiramente sua atualidade Em 487 asmáticos um fator psíquico esteve presente no desencadeamento das crises em 641 dos casos embora em apenas 33 fosse o único Jacobs e colaboradores 1966 encontraram fato res imunológicos e psicológicos associados em crises de exteriorização alérgica em 75 de seus 41 pacientes As crises asmáticas frequentemente se iniciam em situações de forte tensão emocional com diferen tes conteúdos ansiedade ódio medo As bases neu rológicas e psicodinâmicas da participação de fatores emocionais no desencadeamento das crises asmáticas estão firmemente estabelecidas A via eferente tem sua sede no hipotálamo cuja porção anterior inicia a ativação do parassimpático e a porção posterior a do simpático Ligações com centros límbicos relacionam essa via com respostas do prazer ativação do parassimpático e de dor ati vação do simpático O estimulo elétrico e a destrui ção de áreas hipotalâmicas e tuberais em animais do laboratório modificam respostas do sistema nervoso autônomo e também as imunológicas A teoria vagal do espasmo brônquico tem con firmação segura não bastassem o efeito broncodila tador da atropina e o efeito broncoconstritor que as nebulizações de metacolina têm nos asmáticos Gold e colaboradores 1972 eliminaram a res posta broncoconstritora a alergenos em cães mediante bloqueio vagal Vachon e colaboradores 1971 provo caram broncoconstrição em pessoas normais mediante a imersão em água efeito bloqueado pela atropina O simpático também poderia atuar como via eferente O estímulo da hipófise posterior aumenta a secreção de adrenalina pela medula da suprarrenal Por outro lado após infusão de adrenalina e nora drenalina marcadas com H3 a excreção de catecola minas urinárias foi menor em asmáticos do que em normais sugerindo menor disponibilidade dessas substâncias nos asmáticos Mathé e Kriapp 1976 e também Morris e colaboradores 1972 observaram a ausência de elevação de catecolaminas circulantes 22 ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS EM PACIENTES COM ASMA BRÔNQUICA Alfred Lemle Psicossomaticaindd 310 Psicossomaticaindd 310 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 311 e urinárias em asmáticos em crises provocadas por estresse Uma possível explicação seria o aumento da captação de catecolaminas pelo pulmão nos asmáti cos como ocorreu em cobaias em anafilaxia Os estudos em psicofisiologia envolvendo técni cas de sugestão também reforçam a importância do fator psíquico no desencadear das crises asmáticas Diversos autores têm demonstrado a possibilidade de desencadear crises com estímulos estressogênicos Apesar de um possível bloqueio simpático observa se aumento da frequência cardíaca e da temperatura cutânea sugerindo o desencadear de uma crise fight fight segundo Cannon Experiências de condicionamento clássico fo ram realizadas por Noelp e colaboradores 1954 ao provocarem crises de dispneia asmasímile em porquinhosdaíndia introduzidos em câmaras onde as crises haviam sido provocadas previamente com injeções de alergenos Em humanos a demonstração clássica do efeito da sugestão é de Luparello e co laboradores 1968 que obtiveram broncoespasmo definido por aumento da resistência das vias aéreas por meio de nebulizações de soro fisiológico descrito para os pacientes como contendo alergeno Em segui da reverteram o fenômeno com nebulizações de soro fisiológico descrito como possuindo substancias bron codilatadoras São experiências de reprodução difí cil mas Spector e colaboradores 1976 e Horton e colaboradores 1978 obtiveram efeitos semelhantes baseando sua sugestão em dar sabor de anis ou horte lã aos diferentes diluentes obtendo com isso reações paradoxais No estudo de Spector e colaboradores a atropina eliminou a resposta broncoespástica ATUAÇÃO NAS CRISES A atuação psieoterápica durante as crises não deve objetivar a sua reversão embora isso possa ser ocasionalmente conseguido principalmente por efei tos de sugestão Essa técnica porém é complexa e exige treinamento específico não sendo utilizada na quase totalidade das situações de atendimento emer gencial das crises asmáticas O principal objetivo da atuação psicoterápica durante as crises deve ser o combate à ansiedade e ao sofrimento Palavras de apoio e incentivo enfatizando os aspectos relativamente mais favoráveis do desen rolar da crise podem ser muito eficientes Muito im portantes porém são as comunicações e mensagens indiretas e extraverbais É importante que médicos e paramédicos se policiem para propiciar boa acolhida ao paciente em crise Devem ser eliminadas atitudes de enfado ou rejeição causadas pela repetição das crises em um mesmo paciente ou em situações de regime de plantão em hospitais pelo acúmulo de pa cientes com esse problema É indispensável propor cionar ao paciente em crise uma acomodação confor tável não o sujeitando a ambientes frios expostos pouco asseados ou repletos de outros doentes O PERÍODO INTERCRÍTICO PERSISTÊNCIA OU AGRAVAMENTO DO SOFRIMENTO A persistência das manifestações asmáticas nos períodos intercríticos é um dos grandes desafios da prática médica conduzindo a elevadas proporções de fracassos terapêuticos bem como a pesada carga vi tal e socioeconômica para o asmático e ainda grande sobrecarga econômica para a comunidade Em muitos casos há efetiva persistência dos mecanismos fisiopatológicos da asma brônquica com continuação de labilidade brônquica edema de mu cosa e secreção viscosa A asma brônquica não é uma situação simplesmente de espasticidade brônquica ocorrendo também fenômenos inflamatórios brôn quicos peribrônquicos e intersticiais pulmonares Es tes tendem a aumentar a hiperreatividade brônqui ca baixando o limiar do desencadeamento das crises que se tornam subentrantes configurando o que se chama de asma brônquica perene Em muitos outros casos porém o sofrimento do asmático continua no período intercrítico mesmo quando se consegue reduzir os fenômenos bronco pulmonares patológicos a um mínimo criando uma desproporção entre a qualidade de vida do asmático e a realidade de seu exame clínico e até com os resul tados dos exames espirográficos O entendimento dos mecanismos psicossomáti cos subjacentes a esta segunda situação e consequen temente o desenvolvimento de estratégias de aborda gem psicoterápica constituem na verdade o cerne da atuação psicossomática na asma brônquica TEORIAS PSICODINÂMICAS EM ASMA BRÔNQUICA Na década de 1960 procuravase identificar perfis ou pelo menos traços psicológicos dominan tes próprios da pessoa com asma brônquica Knapp e colaboradores 1976 produziram admirável sumário dos resultados desses estudos que segundo esses au tores se caracterizam por falta de consenso Por ou tro lado é difícil separar traços psicológicos inerentes à pessoa com asma daqueles adquiridos em respos ta ao próprio problema asmático Assim a bateria Psicossomaticaindd 311 Psicossomaticaindd 311 05012010 121215 05012010 121215 312 Mello Filho Burd e cols MPI Maudsley Personality lnventory aplicada por Franks e Leigh revelou leves traços neuróticos em asmáticos comparados com normais e psicóticos A bateria DPI Dynamic Personality lnventory aplica da por Glasburg e colaboradores revelou mais traços de oralidade dependência e ansiedade de separação em asmáticos que em controles O amplo questioná rio de Cattell aplicado por Rosenthal e colaboradores a asmáticos ambulatoriais revelou em comparação com a população em geral diversas características nos asmáticos submissividade teimosia radicalida de e tensão Os próprios autores da revisão Knapp et al 1976 aplicaram extensa bateria de testes a uma amostra numerosa de asmáticos totalizando 61 com resultados semelhantes aos de Rosenthal Dois aspec tos interessantes de seus achados merecem destaque por terem reflexos no manejo dessas pessoas havia elevado escore para dominância no questionário do Cattell e dificuldades de adaptação interpessoal na bateria CPI California Personality Involvement PERFIS PSICODINÂMICOS O estudo da personalidade da pessoa com asma e a aplicação desses dados ao relacionamento com ela têm um potencial terapêutico muito grande São fundamentais o conhecimento do relacionamento da pessoa asmática com seu problema das conexões que cria entre a asma e as outras facetas de sua vida o modo de trazer esse conjunto ao convívio com os familiares o médico amigos colegas de trabalho e a sociedade em geral A adequação desses funciona mentos tem um potencial quase comparável ao do combate ao componente orgânico em termos de mi norar o sofrimento do paciente A hipótese clássica sobre o perfil psicodinâmico do asmático é a de French e Alexander 1941 Exis tiria um padrão emocional peculiar cujo núcleo seria um conflito em torno do choro O choro seria inibido por temor ao repúdio por uma mãe percebida de modo ambivalente A mãe seria percebida simultaneamente como sedutora e rejeitadora a um tempo desejosa de aconchegar a criança e também de se afastar de suas demandas Ao mesmo tempo o pai frequentemente seria percebido como uma pessoa fraca embora em certos casos possa ser absorvido pela figura domina dora da mãe formando um conjunto Nesse contexto a crise asmática poderia ser uma crise de choro reprimido bloqueado Ao mesmo tempo a pessoa com asma introjetaria um relacio namento ambivalente amorrejeição com a figura materna ou maternapaterna Essa relação poderia ser transferida ou revivida com diferentes perso nagens inclusive e principalmente com a figura do médico Esse mecanismo estaria por trás de uma cer ta dependência comum entre as pessoas com asma Mello 1976 Uma segunda hipótese psicanalítica desenvolvida por Deutsch e advogada por outros se gundo Knapp e colaboradores 1976 se baseia na ideia de que ocorreriam padrões de expressão espe cíficos adquiridos inconscientemente Segundo essa concepção a crise asmática poderia representar uma conversão exprimindo conflitos inconscientes não resolvidos em linguagem corporal Parece que esses mecanismos devem ser consi derados mais como prevalentes do que como espe cíficos da pessoa do asmático tanto mais que entre nós a estrutura patriarcal da sociedade interfere com essas configurações Mello 1976 Contudo um dos traços mais comuns da personalidade da pessoa com asma é a dependência consequente a uma espécie de debilidade da personalidade somada à fraqueza que pode resultar da própria enfermidade ibidem RESISTÊNCIA AO TRATAMENTO Considerações terapêuticas atuação psicoterápica no período intercrítico Os fatores psicodinâmicos atuam na intercrise com consequências por vezes muito fortes mantendo ou agravando o sofrimento e podendo conduzir à re sistência ao tratamento Assim os principais objetivos da ação psicoterápica são dois redirecionar a relação da pessoa com asma com o seu problema reduzin do o sofrimento e construir uma relação médico paciente livre e madura o que combate a resistência ao tratamento Não há hierarquização ou priorização entre os dois objetivos pois as ações para atingilos se confundem Em consequência dessas ações quan do bem conduzidas pode ocorrer o redirecionamento das relações familiares e sociais da pessoa com asma com novos reflexos positivos sobre o relacionamento com a asma Não há indicação para o encaminhamento de uma pessoa com asma a um psicoterapeuta a me nos que coexistam problemas da esfera psiquiátrica neuroses psicoses distúrbios de caráter ou outros As indicações da psicoterapia especializada na asma são as mesmas que as da população em geral Redirecionamento da relação do asmático com seu problema Um motorista de táxi de 45 anos queixavase de asma moderada asma perene necessitando trata mento continuado mas sem impedir as atividades Psicossomaticaindd 312 Psicossomaticaindd 312 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 313 Iniciando um tratamento mais intenso e abrangente do que o que vinha sendo utilizado houve duplicação dos valores espirométricos mas o motorista se acha va pior No entanto cuidava pessoalmente de seus exames da busca de resultados licenças para trata mento de saúde Ao exame não exibia dispneia obje tiva nem ruídos adventícios Que significava a asma na vida do motorista Uma senhora de 72 anos tinha asma desde a infância Sua sibilância perene era audível para os interlocutores a alguns metros de distância Porém sua asma teria de ser classificada como leve pois a senhora jogava tênis durante horas por dia Qual o papel do médico na vida dessa tenista Um menino de 12 anos tinha asma desde a primeira infância Passava alguns dias com amigos numa cidade serrana e seus pais estavam em outra algo afastada Apos poucos dias o menino entrou em crise a qual não foi debelada com os medicamentos habituais Os pais foram buscálo e o trouxeram para a casa onde se encontravam na outra cidade O me nino chegou à noite com dispneia e sibilância difusa Medicado com novos remédios não melhorou e pas sou mal a noite Pela manhã havia ainda dispneia e sibilância e o menino estava cansado permanecendo em repouso Organizouse um jogo de futebol com outros rapazes e para que o menino não se sentis se excluído foi convidado O menino jogou futebol a manhã toda Talvez o menino desejasse passar os dias junto aos pais Esses casos exemplificam com clareza uma rea lidade básica na asma brônquica é frequente a falta de correlação entre a qualidade de vida e portanto a intensidade do sofrimento e a realidade do fenô meno orgânico da asma No acompanhamento de 51 asmáticos consecutivos de um ambulatório em que se realizavam os exames clínicos espirográficos e a gasometria arterial na mesma consulta verificouse que havia ausência de correlação clínicofuncional em 40 das consultas Em 4 de cada 10 consultas a avaliação do asmático sobre sua evolução em relação às consultas anteriores diferira da evolução funcio nal num sentido ou no outro Costa 1977 A ação psicoterápica consiste além do apoio su perficial em ajudar o paciente a identificar possíveis mecanismos que estejam contribuindo para tornar mais pessimista a percepção do problema De certa manei ra seria uma tarefa de diminuir a importância da asma ou talvez o melhor termo seria desmitificar a asma Ao empreender essa ação psicoterápica o médi co estará assumindo um certo risco Em certos casos o médico está bancando a asma para o seu paciente Ao fazer essa opção o médico terá de possuir firmes dados clínicos radiológicos espirográficos e hemo gasométricos arteriais que definam precisamente a situação orgânica do paciente Nesse momento al guns fatos de ordem clínica deverão ser lembrados 1 A asma brônquica evolui de três formas leve cri ses ocasionais aliviadas por medicação apenas quando necessário moderada sintomas pere nes medicação contínua crises frequentes mas com possibilidade de exercer atividades regula res e severa acentuados sintomas perenes ou crises fortes frequentes inviabilizando atividades regulares O objetivo geral do tratamento consis tiria em localizar o asmático na forma mais bran da possível fundamentalmente para permitir a realização das potencialidades da pessoa 2 A asma brônquica não complicada é condição de grande repercussão clínica mas de baixa mor bidade e mortalidade Há grande desproporção entre o acentuado distúrbio mecânico registra do pela espirografia e a ausência de insuficiência respiratória significativa no período intercrítico Mesmo em presença de sintomas e sinais nítidos pode não haver hipoxemia significativa Ao con trário do que ocorre na bronquite crônica e no enfisema pulmonar as formas não complicadas de asma que constituem a grande maioria não evoluem para a insuficiência respiratória crônica nem para o cor pulmonale crônico 3 Por outro lado é praticamente impossível pro duzir remissões permanentes ou seja erradicar completamente a tosse o chiado e os sibilos Nos so objetivo é procurar manter o paciente na for ma leve ou no máximo moderada Bases de redirecionamento da relação do asmático com sua asma A partir do que foi dito acima podemos estabe lecer os fundamentos do redirecionamento do asmá tico com o seu problema 1 A pessoa com asma se conscientiza de que seu objetivo não é o de curar a asma 2 O uso correto da medicação poderá todavia pro porcionar uma vida completa embora eventual mente com sintomas 3 A medicação correta com supervisão contínua do médico representa uma garantia quase absoluta de ausência de risco de vida Uma vez delimitados os contornos existenciais de sua asma o asmático poderá tentar identificar se sua asma desempenha papéis em sua vida Um açougueiro de 33 anos começou o trata mento de uma asma antiga com um novo médico Psicossomaticaindd 313 Psicossomaticaindd 313 05012010 121215 05012010 121215 314 Mello Filho Burd e cols Apresentavase como uma forma muito severa sem sintomas perenes intensos forçandoo a trabalhar descontinuamente para parentes As consultas eram constituídas por extenso e rico relato de sintomas e exaustiva discussão dos medicamentos Várias con sultas foram necessárias apenas para aos poucos completar a anamnese Esta revelou um rosário ri quíssimo de desajustes a nenhum dos quais o doen te aludira espontaneamente detestava a profissão principalmente o horário que o obrigava a trabalhar à noite próximo às geladeiras o que evidentemente lhe era poupado quando a asma piorava A relação com a mulher era totalmente deteriorada princi palmente porque não lograva proporcionar sustento condigno à família que era todavia obrigada a levar em conta sua grave doença A medida que o diálogo com o médico passou a girar em torno dos problemas existenciais reduziuse o rosário de queixas sobre os sintomas e a discussão sobre os medicamentos Quando o médico teve de deixar o ambulatório o paciente chegara ao ponto de esquecer de perguntar sobre sua receita limitandose o médico a dar instruções às vezes já junto à porta na saída O paciente passara também a trabalhar re gularmente embora contrafeito e não feliz Este caso ilustra bem os principais aspectos do redirecionamento da relação entre o asmático e sua asma Em nenhum momento o médico sugeriu que o asmático resumisse suas queixas e discussões so bre medicamentos redundantes e repetitivas para permitir uma consulta mais rica Mesmo quando se tornou patente que a apresentação das queixas não sua realidade era uma cortina para impedir o trato de coisas que causavam sofrimento ainda maior do que a própria asma essa interpretação não foi colo cada pelo médico O asmático contudo captou intei ramente a existência desse jogo pois sua asma nas consultas e na vida refluiu para o seu próprio leito real deixando de misturarse por exemplo com a continuidade da atividade profissional Nesse caso a atuação psicoterápica se restringiu a botar a asma no seu devido lugar reduzindo acen tuadamente a quantidade de sofrimento expressa nas consultas e provavelmente vivenciada lá fora De semiinvalido profissional o asmático passou a pro fissional normal embora persistissem manifestações asmáticas importantes e desajustes psicossociais Tra tavase de uma personalidade altamente complexa não permitindo incursões mais profundas no campo familiar e no nível subconsciente Nesse caso haveria indicações para atuação psiquiátrica especializada embora a assistência prestada no nível da interven ção clínica houvesse surtido algum efeito Em alguns casos todavia podemos avançar mais um pouco sem recorrer a auxílio especializado Veja mos o caso de uma doméstica de 55 anos tratada por pneumologistas sob supervisão psicanalítica Mello 1988 Desde a infância sentiase a preferida do pai e tinha ciúmes de uma das irmãs muito cuidada por ser doentinha O pai faleceu prematuramente e a paciente se apegou aos patrões refazendo com eles sua dependência familial Após seria crise financeira dos pais surgiu asma severa com atendimento se guido em serviços de emergência e uso permanente de corticoides Iniciado o tratamento clínico e psicoterápico supervisionado procurouse mostrar em torno de questões simples e sem interpretar o mecanismo de dependência como a paciente poderia atuar como uma pessoa mais amadurecida mais adulta Admite o autor que o terapeuta possa nesse caso ter atuado como um pai salvador pois houve melhora sensível da asma inclusive documentada pelos resultados das provas de função pulmonar Provavelmente nesse caso podese aprofundar a intervenção psicoterápica porque o clínico trabalhava com supervisão psicanalítica Essa supervisão ocorria no âmbito de uma experiência realizada pelos Servi ços de Medicina Psicossomática e de Pneumologia da 4a Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Me dicina da UFRJ então localizada no Hospital Escola São Francisco de Assis Mello 1988 Face à elevada proporção de asmáticos que apresentavam falhas no tratamento em termos de melhora de qualidade de vida e à demonstração de que importante proporção dessas falhas era atribuível a problemas de nature za psicológica Costa 1977 foi criado um progra ma especial objetivando suplementar o tratamento clínico habitual com um atendimento com ênfase na assistência psicodinâmica Participaram do programa clínico pneumologis tas e estudantes em estágio avançado de formação sob supervisão da Medicina Psicossomática As con sultas eram feitas regularmente nos ambulatórios de Pneumologia A psicoterapia se desenvolvia em pla nos superficiais ou profundos dispensando de forma geral enfoques interpretativos As entrevistas eram registradas e estudadas em discussões de grupo sob a forma de reuniões Balint frouxas Mello 1988 ou em supervisões individuais Foram obtidos alguns resultados excepcionais como o do último caso relatado Não só o formato do programa era correto mas também existia inten sa motivação dos terapeutas e os casos incluídos na experiência eram selecionados O exemplo seguinte complementa a ilustração Um senhor aposentado de 59 anos Mello 1976 apresentava asma perene com períodos de exacerbação e provas funcionais respiratórias mos trando acentuadas repercussões fisiopatológicas Psicossomaticaindd 314 Psicossomaticaindd 314 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 315 Intemado patentearamse vários problemas emo cionais Sua mulher o traiu com um primo ao qual agrediu violentamente e depois fugiu Considerado um empregado exemplar apesar da asma tinha no entanto crises de fúria quando criticado Dono de alguns barracos tinha as crises quando contestado pelos inquilinos Durante o tratamento pôdese mos trar a relação entre as crises de asma e de perfec cionismo O paciente conseguiu delegar a um filho a gestão de alguns negócios Pôdese reduzir a pred nisona de 15mg por dia para 5 a 75mg por dia e as visitas a serviços de prontosocorro se reduziram em 60 Posteriormente houve troca de médicos no am bulatório e o paciente reagiu ao recebimento de um novo médico com piora do quadro clínico tentativas de manipulação da medicação e tentativa de reaver o médico anterior Identificada a rejeição do novo mé dico nas reuniões de supervisão coletiva do Setor de Psicossomática o episódio foi contornado e o pacien te voltou a melhorar Redirecionando a relação asmáticomédico Essa atuação tem como objetivo reduzir a resis tência ao tratamento a qual se expressa de duas ma neiras principais não aderência à prescrição médica e abandono do tratamento A não aderência ao tratamento ocorreu em cerca de 15 de uma amostra de asmáticos ambulatoriais de um grande hospital SantAnna 1988 Tratavase no entanto de um estudo restrospectivo cabendo conferir esse dado em estudos prospectivos A litera tura é pobre em análises do fenômeno da não aderên cia à prescrição médica em asma brônquica embora seja de observação universal Alguns dos mecanismos mais frequentemente invocados são a insuficiência de recursos materiais ou condições sociais para cumprir regimes terapêuticos constando de diversas tomadas de medicamentos ao longo do dia No caso específico dos nebulímetros pode não haver condições psico motoras suficientes para o uso adequado do instru mento Contudo além dessas causas objetivas pode haver modificações voluntárias da prescrição por julgála supérflua face a melhoras observadas ou por outro lado modificações por descréditos face à ausência de melhoras O abandono do tratamento ocorreu em 98 dos casos de uma amostra ambulatorial de um gran de hospital Costa 1977 O abandono configura o grau externo de resistência à terapêutica represen tando ruptura da relação médicopaciente Sob certos aspectos a não aderência à prescrição e o abandono são expressões de um mesmo fenômeno a má rela ção médicopaciente Para melhor examinar esse fenômeno podemos desdobrálo em alguns confrontos ou momentos de relacionamento 1 Bajulações do médico pelo asmático Ocorrem com frequência no início da relação Geralmen te o asmático vem usando prescrições anteriores atacadas isto é incompletas Com a adoção de uma nova prescrição completa ocorrem melho ras imediatas e o paciente frequentemente se ex cede em elogios ao médico Além do alívio e da esperança no novo médico pode haver um com ponente de sedução do mesmo Não é impossível que essa atitude esteja impregnada do compo nente sedutor da ambivalência da relação com a figura maternopaterna amadaodiada Seja como for o comportamento do asmático pode atingir níveis inadequados que transcendem sua satisfação pela melhora obtida Cabe ao médico neutralizar esses componentes estranhos à situação o que não poderá ser feito explicitamente Isso pode ria representar uma interpretação de fundo psicana lítico potencialmente destrutiva no início da relação Cabe antes desenfatizar os elogios de maneira indire ta não participando do júbilo e não aceitando os elo gios tais como proferidos Uma boa opção é transferir os méritos para o próprio paciente mostrandolhe a importância de colaborar na medicação 2 Regateio sobre a prescrição Com o passar do tempo podemse instalar efeitos colaterais dos medicamentos além de que a rotina da prescri ção começa a pesar principalmente se ja não há sofrimento O paciente poderá mais uma vez tentar contaminar essa situação objetiva com elementos alheios a ela Poderá exagerar a inten sidade e a importância dos efeitos colaterais ou os transtornos que a medicação repetida lhe traz Essa atitude poderá ter raízes em muitos aspectos da personalidade do asmático mas poderá conter elementos de desafio ao novo médico maravilho so vamos ver como ele se sai dessa ou mes mo dentro da concepção de French e Alexander um desafio à mamãemédico Este é um primeiro momento difícil na relação médicopaciente A regra de ouro é não participar de um eventual jogo O mais importante é não mostrar decepção nem irritação e sim promover as modifi cações cabíveis no regime terapêutico explicando os motivos e sem reagir a tentativas de manipulação 3 Culpando o médico por reativação dos sinto mas Com o tempo haverá evidentemente reati Psicossomaticaindd 315 Psicossomaticaindd 315 05012010 121215 05012010 121215 316 Mello Filho Burd e cols vação das manifestações motivadas por intercor rências reduções de medicação ou pelo próprio curso da asma Embora esperadas essas pioras poderão ser utilizadas pelo paciente para assumir uma atitude de culpar o médico Este assim como não deve se associar ao júbilo do sucesso inicial não pode se deixar levar na decepção por uma regressão fugaz até porque esperada A melhor conduta é demonstrar o maior inte resse e criatividade no tratamento Cada epsódio de reativação deve ser tratado como se fosse o primeiro a anamnese e se possível o exame físico devem ser refeitos de preferência com um exame espirográfico Só ao final da reavaliação deve o médico expor sua hipótese sobre as origens do novo episódio evitando as explicações rápidas O regime terapêutico também deve ser total mente reavaliado evitandose modificações rápidas numa ou noutra medicação O importante é mostrar que o interesse do médico pelo caso não mudou man tendose o mesmo que na primeira consulta Além da reavaliação do tratamento o médico poderá quando possível introduzir novas drogas medidas fisioterá picas ou higiênicas mostrando que tem mais recursos para o tratamento É importante que o asmático per ceba que jamais se tornará um caso de rotina 4 Encaminhamento a especialistas Este é um mo mento potencialmente perigoso Talvez a atitude mais destrutiva que o médico possa adotar na re lação médicopaciente é a mais leve indicação de enfado Além da decepção natural que acomete qualquer paciente nessa situação o asmático po derá experimentar um reforço poderoso de uma vivência de rejeição remetida da conflituada rela ção com a figura maternopaterna Caso o meca nismo proposto por French e Alexander seja real mente operativo a simbologia poderá ser muito poderosa Categoricamente poderá haver muita semelhança entre uma criança que se percebe re jeitada porque chora e um asmático sentindose afastado porque sibila No entanto o manejo do asmático exige muitas vezes o concurso de imunologistas pneumologistas fisiatras A solicitação da participação desses profis sionais deverá ser feita com muita prudência para evitar a fantasia de que o médico enfadado está pas sando o caso para outro A regra de ouro é que a necessidade de ouvir um especialista seja percebida com objetividade e preci são pelo asmático Este deverá estar completamente ciente do problema específico que o especialista deve resolver Além disso deverá ficar claro à exaustão que a participação do especialista é apenas um sub sídio para complementar a avaliação e o tratamento Mesmo que a atuação do especialista seja demorada como nas dessensibilizações imunológicas a supervi são deverá ser exigida pelo médico do asmático O eventual encaminhamento a um psiquiatra ou terapeuta não foge à regra As indicações dessa especialidade são as mesmas que para a população em geral a presença de distúrbios psiquiátricos bem caracterizados O componente emocional que fre quentemente acompanha grande número de asmá ticos não deve exigir a participação do especialista cabendo ao médico atendêlo 5 Ruptura O afastamento do asmático do seu mé dico cortando a relação é ainda um evento mui to frequente tendo ocorrido em 98 dos casos de uma série ambulatorial Costa 1977 Cabe lembrar que nos ambulatórios as consultas sub sequentes são marcadas com antecedência Não é improvável que em consultórios quando a re consulta é voluntária o índice de abandono seja ainda maior Não temos muitos dados sobre os mecanismos desse abandono que na maioria das vezes ocorre sem traumas formais O paciente simplesmente dei xa de contactar o médico que só se dará conta do fato após algum tempo a não ser quando há con sultas marcadas com antecedência e que não são cumpridas como nos ambulatórios Temos consi derado que o abandono representa uma falha na relação médicopaciente tendo o percentual caído para 67 quando se instituiu um protocolo especial para o estudo das falhas no tratamento em geral e quando portanto a equipe estava especialmente motivada ibidem É possível que fatores de ordem prática como mudança de domicílio consideraões financeiras ou outras influam Embora não tenhamos elementos objetivos para avaliar quando ocorrerá o abandono cabe estar aten to para sinais de desânimo por parte do asmático principalmente quando ele está atravessando lon go período de sintomas perenes ou crises repetidas Nesses casos a reavaliação deverá ser mais formal e modificações importantes na terapêutica deverão ser estudadas REFERÊNCIAS Costa C A F Kropf G L Laks J et al Estudos das falhas no tratamento da asma brônquica a curto prazo J Pneumologia n 3 p 26 1977 Costa C A F Kropf G L Pontes E L et al Provas funcionais no tratamento da asma J Pneumologia n 3 p 24 1977 Psicossomaticaindd 316 Psicossomaticaindd 316 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 317 French T M Alexander F Psychogenic factors in brochial asth ma Psychosom Med Monogr n 4 p 2 1941 Gold W M Kessler G R Yu D Y C Role of the vagus nerves in experimental asthma in allergic dogs J Appl Physiol n 33 p 719 1972 Horton D J Suda W L Kinsman R A et al Bronchooonstric tive suggestion in asthma a role for airways hyperreactivity and emotions Am Rev Resp Dis n 177 p 1029 1978 Jacobs M A Fridman S Franklin M J et al Incidence of psychosomatic predisposing factors in allergic disorders Psychom Med n 28 p 679 1966 Luparello T I Lyons H A Bleecker FR et al Influence of Sugestiun on airways reactivity in asthma Subjects Psychosom Med n 30 p 819 1968 Mathé A A Stjarne L Birke G Altered patterns of excretion Of catecholamines during acute asthma afthcr infusion of l4 ep1nephrine and 1lnorepinephrine to asthmatic patlens and healthy Subjects In Weiss E B Scgal M S Bronchial Asthma Bostonz Little Brown 1976 Mello F J Concepção psicossomática visão atual Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1988 Mello J F Farha J Moreira M D Assistência integral ao as mático J Bras Med 11 31 p 102 1976 Morris H Dereche G Earle M R Urinary excretíon Of epine phrine and 11orepinephrine in asthma children 1 Allergy Clin Immunol n 50 p 138 1972 NoelppEschenhagen I Noelpp B New contribution to experi mental asthma Prog Allergy n 4 p 361 1954 SantAn11a N M M Lemle A Souza G R M et al Falhas no tratamento de asmático no período intercrítico J Pneumologia n 14 Supl 1 p 7 1988 Knapp P H Mathé A A Vachon L Psychosomatic uspects of bronchial asthma In Weiss E B Segal M S editores Bron chial asthma Boston Little Brown 1976 Spector 5 Luparello T J Kopetzky M T et al Response of asthmatícs to methacholine and SuggcStion Am Rev Resp Dis n 113p43 1976 Vachon L Brotman C J Knapp P H Bronchial tree response to the diving reflex Psychosom Med n 24 p 471 1971 Williams D A LewisFanníg E Rees L et al Assessment of the relatíve importance of the allergic infectíve and psychologícal fac tores 111 asthma Acra Allcrg KBK n 12 p 376395 1958 Psicossomaticaindd 317 Psicossomaticaindd 317 05012010 121215 05012010 121215 Discorrer sobre aspectos psicossomáticos hoje é tratar de um assunto talvez tão antigo quanto a pró pria humanidade As ligações entre corpo e espíri to foram e continuam sendo tema fecundo e con trovertido É como se todos concordássemos que as emoções de algum modo repercutem no corpo mas ao mesmo tempo não soubéssemos explicar o fato ou quem sabe não o aceitássemos Em se tratando de coração a questão nos pa rece mais clara ainda Não há quem deixe de perce ber seu coração acelerar ante determinadas situações emocionais Não há quem deixe de atribuir alguma representação simbólica ao coração investindoo pois de um significado ou função subjetivo Não obstante os caminhos e os modos através dos quais a emoção repercute no coração continuam discutidos e discutíveis Agora mesmo para escrevermos sobre o assun to vemonos diante desse impasse Qual o caminho a seguir Descrever os mecanismos fisiológicos ou fisiopatológicos da conexão emoçãocoração Abor dar os diversos fatores psicossociais relacionados na pesquisa com a doença cardíaca Vasculhar os mean dros intrapsíquicos à busca de processos que redun dem em alterações somáticas Ou deternos na aná lise das diversas formas de intervenção psicológica voltadas para as manifestações psicossomáticas do coração Optamos por começar perguntando por que nos parece tão evidente que as emoções repercutam no coração e ao mesmo tempo exista tanta diver gência a respeito Acreditamos que a resposta resida nas próprias características da nossa subjetividade Em primeiro lugar o fato de que sobre ela só pos samos inferir jamais observála ou manipulála dire tamente traz dificuldades para sua abordagem Por outro lado a vida psíquica constituise de um soma tório de experiências atuais e passadas percebidas e registradas de maneira peculiar pessoal que impede generalizações e obriga a singularizar cada pessoa em cada situação Por fim o campo de nossas motiva ções e interesses de nossas contradições e censuras nem sempre se limita à esfera consciente mas antes e sobretudo se estende ao inconsciente e portanto a resultante ação do psíquico sobre o corpo expressará sempre algo de muito pessoal ligado à história de vida do indivíduo e certamente marcado pelas injun ções da dinâmica inconsciente Tais fatos são os que nos parecem justificar os diferentes resultados obtidos pela pesquisa psicosso mática Mas longe de se constituir num impedimento representa um desafio para a ciência na medida em que pouco a pouco vamos conhecendo melhor os agentes e os processos que atingem e que atuam no aparelho psíquico O PAPEL DAS EMOÇÕES Talvez um ponto de contato que possamos esta belecer com a subjetividade com o mundo psíquico seja o das emoções Embora de difícil conceituação as emoções constituem uma classe de fenômenos que sentidos como internos trazem ao mesmo tempo manifestações ou sinais externos somáticos e com portamentais Assim ocorre com o amor o medo e a raiva Os estados emocionais parecem exercer função adaptativa de sobrevivência do indivíduo e da espé cie se considerarmos as teorias de Darwin 2000 e de Selye 1965 O sistema límbico é o mediador desse processo Num excelente estudo sobre as emoções Ma rino Jr 1975 descreve alguns aspectos da teoria de McLean que gostaríamos de ressaltar O sistema límbico conjunto de estruturas corticais e subcorti cais do cérebro é o responsável pela mediação do processo emocional Tal sistema constitui o segundo cérebro no dizer de McLean para quem a evolução do cérebro humano se fez a partir da superposição de um primeiro cérebro semelhante ao dos répteis e 23 ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS EM CARDIOLOGIA MECANISMOS DE SOMATIZAÇÃO E MEIOS DE REAGIR AO ESTRESSE Eugênio Paes Campos Psicossomaticaindd 318 Psicossomaticaindd 318 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 319 que representa a estrutura mais primitiva correspon dente ao tronco encefálico Sobre este primeiro de senvolveuse então um segundo cérebro semelhan te ao dos mamíferos inferiores e que desempenha papel preponderante no comportamento emocional do indivíduo o sistema límbico Acerca dele tex tualmente afirma Marino Jr Este cérebro agiria sobre as sensações emotivas de modo a dar ao animal maior liberdade de decisões em relação ao que ele faz Tem muito maior capacidade que o cérebro do réptil para aprender novos meios e so luções de problemas com base na experiência imediata Mas como o cérebro dos répteis não tem a capacidade de colocar os sentimentos em palavras Estas estruturas irão mediar todas as perturbações psicossomáticas e o comportamento emocional do animal p 17 Por fim nos mamíferos superiores surge o ter ceiro cérebro a neocórtex que adiciona o intelecto às faculdades psíquicas Ainda textualmente nos diz Marino Jr A teoria de McLean considera as emoções como infor mativas de ameaças à autopreservação e à preservação da espécie sendo o processo de erradicação dessas ameaças considerado desagradável As emoções agra dáveis ou que causam prazer são informativas da re moção dessas ameaças ou desejos satisfeitos p 17 Deduzimos até aqui que o processo emocional exerce fundamentalmente uma função expressiva ou sinalizadora das experiências que vive o animal Tal sinalização visa revelar possíveis ameaças à auto preservação e à preservação da espécie Aponta para uma dada situação que está ameaçando aquele in divíduo e implica necessariamente num processo de avaliação da situação a partir das diversas estrutu ras sensitivas percepção do indivíduo que captam as informações provindas de si mesmo e do ambiente Portanto à função expressiva ou sinalizadora da ex periência corresponde uma função interna avalia tiva dessa experiência Caberia ao sistema límbico a elaboração desse processo avaliativo Ainda pesquisando o sistema límbico McLean identifica experimentalmente áreas ou estruturas cuja estimulação provoca efeitos autônomos ou neu rovegetativos somáticos e comportamentais como respostas alimentares lamber mastigar salivar vo mitar comportamentos de procura de alimento e luta pela sobrevivência farejamento curiosidade vi sual reações de ataque ou fuga acompanhadas de vocalização adequada respostas sexuais coçagem dos genitais ereção peniana ejaculação Tal fato põe em evidência a outra função do processo emo cional a comportamental ou adaptativa que leva o indivíduo a agir de uma dada forma O objetivo da ação emocional é em última instância preservar o indivíduo e sua espécie Assim comer lutar fugir copular constituem comportamentos emocionais que permitem ao indivíduo enfrentar o meio em que vive à busca da sobrevivência Deduzimos pois que o processo emocional é ao mesmo tempo um meio de expressão ou sinali zação e de enfrentamento ou adaptação Meios esses que podem e são detectados externamente através de sinais emocionais sorrir gritar chorar gesticular empalidecer ruborizar eriçar etc e de ações emo cionais comer lutar fugir copular Subjetivamente a função primordial do proces so emocional é a avaliação das informações captadas do ambiente e do próprio indivíduo e levada pelos ór gãos sensoriais à apreciação das estruturas límbicas Avaliação que como vimos tem como objetivo final a autopreservação e preservação da espécie Tudo aqui lo que ameace tais objetivos gerará sensações emo ções desagradáveis Ao contrário tudo aquilo que contribua para a consecução desses objetivos gerará emoções prazerosas ou agradáveis Consideramos essencial descrever o trecho se guinte de Marino Jr Segundo Kubie 1953 o sistema límbico constituiria um mecanismo integrador das informações internas e externas do passado e do presente Além disso o siste ma límbico está intimamente relacionado à elaboração de atividades somáticas preciosas altamente diferencia das As estruturas límbicas atuam como um transdu cer transformando impulsos neurais de aferentes em eferentes assim impulsos aferentes são canalizados através de várias vias do sistema límbico que decidi rão se esse estímulo deverá emergir como uma resposta inespecífica ou componente de uma resposta um grito uma expressão facial um movimento súbito do corpo uma sensação de medo uma alteração circulatória ou qualquer combinação de atividades somáticas e fisioló gicas A descoberta de que estas atividades podem ser postas em funcionamento a partir dos níveis mais ele vados do sistema nervoso alocórtex e neocórtex foi uma das maiores contribuições da neurofisiologia mo derna ao pensamento psiquiátrico O sistema límbico representa um centro de convergência a uma via final comum para os impulsos mais importantes e represen tativos dos meios externos e internos A maior parte das informações que circulam através do sistema nervoso central é filtrado através destas estruturas de origem primitiva que devem arcar com pesada carga pois tem a função de proporcionar uma permanente adaptação do organismo às contínuas mudanças desafios e stress do meio ambiente p 7778 Ficaríamos certamente por aqui se estivéssemos analisando ou descrevendo o comportamento emo cional de um animal No caso do homem a aquisição do terceiro cérebro permitelhe colocar os senti Psicossomaticaindd 319 Psicossomaticaindd 319 05012010 121215 05012010 121215 320 Mello Filho Burd e cols mentos em palavras e torna o processo emocional passível de ser percebido pelo próprio indivíduo Constitui então o que alguns autores chamam de ex periência emocional Ou seja a capacidade de reco nhecer a própria experiência de se autoperceber E evidentemente a capacidade de pensar e de falar de representar psiquicamente simbolicamente a expe riência gera um mundo novo o mundo do pensa mento da fantasia da imaginação dos desejos do raciocínio e da reflexão Um mundo que passa a re presentar por si só uma outra fonte de ameaça ou de satisfação Esse mundo interno passa a ser fonte de estímulos de informações e de solicitações que o sis tema límbico deverá processar ao mesmo tempo em que passa a ser fonte de recursos de enfrentamento ou de adaptação às situações Passa a ser uma ma neira de agir Esta é a face oculta do processo emocional Aquilo que só é observável pelo próprio indivíduo e muitas vezes nem por ele mesmo Grande parte do processo avaliativo é inconsciente Os estímulos que chegam do mundo interno das fantasias e dos desejos são também em grande parte inconscien tes Como inconscientes são muitos dos mecanismos mentais de enfrentamento de adaptação ou de defe sa de que lança mão o indivíduo como parte do com portamento emocional Em síntese as emoções são de fácil visualiza ção mas de difícil conceituação Os estudos des crevem várias teorias que tentam explicálas Lent 2001 Brandão 1995 Mello Filho 1979 Trouxemos uma delas a adaptativa que se sustenta nos postula dos de Darwin enquanto função de sobrevivência na teoria do estresse de Selye e na teoria de McLean acerca do sistema límbico O complexo sistema sensorial do indivíduo leva constantemente informações ao sistema nervoso central SNC sobre o ambiente interno e externo A parte destinada ao processamento avaliação des sas informações é o sistema límbico A resultante é o estado emocional com seus componentes subje tivo sentimento corporal reações fisiológicas e comportamental ações motoras Tal estado exerce uma função comunicativa ou expressiva na me dida em que sinaliza qual emoção sente o indivíduo naquele momento ao mesmo tempo que exerce uma função adaptativa ou de enfrentamento face à si tuação que a desencadeou A área cognitiva ou da neocórtex onde são re presentados pensamentos fantasias desejos confli tos preocupações interesses atua como fonte gera dora de emoções mas também através do raciocínio da reflexão da memória de experiências já vividas atuando como elaboradora ou geradora de meios de enfrentamento As emoções constituem pois um protótipo de manifestações psicossomáticas ou biopsicossociais por envolverem tão intimamente as dimensões bioló gica psicológica e socioambiental Apesar da comple xidade dos estados emocionais cabenos ficar atentos à sua função sinalizadora o que elas querem dizer Até que ponto estão sendo usadas como meio de enfrentamento de alguma situação Qual situação Cumprenos a partir desse sinal intentar com preender melhor o que se passa no íntimo do indiví duo e ajudálo nessa busca já que muitas vezes tal dinâmica lhe é inconsciente A manifestação cardíaca funcional ou orgânica constitui muitas vezes a par te visível desse complexo processo subjetivo COMO AS EMOÇÕES REPERCUTEM NO CORAÇÃO Identificando o sistema límbico como sede das emoções e nele se incluindo o hipotálamo que coor dena as diversas funções neurovegetativas inclusive cardiovasculares encontramos o elo desse processo eminentemente psicossomático que é o emocional Regulando o sistema simpático e parassimpático compete ao hipotálamo agir sobre as diversas estru turas orgânicas estimulandoas ou inibindoas Lent 2001 Brandão 1995 Mello Filho 1979 Situações de ansiedade ou estado de tensão interna ante algo que ameaça o indivíduo estimulam através do hi potálamo a liberação de catecolaminas e corticoste roides seja por ação direta do sistema simpático seja por ação indireta sobre as suprarrenais Exaustivos estudos clínicos e experimentais têm evidenciado a correlação de situações ansiogênicas ou estressantes com a liberação de catecolaminas e corticosteroides e sua repercussão cardiovascular Eliot 1987 Loures et al 2002 Mello Filho 1979 Investigando os efeitos dessas substâncias citaremos alguns deles que de algum modo podem repercutir sobre o aparelho cardiovascular elevação da frequência cardíaca elevação da pressão arterial aumento do débito cardíaco aumento do consumo de O2 aumento da excitabilidade cardíaca lesão celular por entrada de sódio e saída de po tássio e magnésio injúria endotelial aumento da adesividade plaquetária vasoconstrição periférica retenção de sódio e água hemoconcentração aumento da coagulação sanguínea Psicossomaticaindd 320 Psicossomaticaindd 320 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 321 aumento de glicose e ácido lático aumento dos ácidos graxos e colesterol A liberação excessiva ou prolongada de cateco laminas e corticosteroides provoca arritmias hipertensão arterial aterosclerose coronária isquemia ou necrose miocárdica insuficiência cardíaca Stewart Wolf 1971 faz referência a arritmias atriais e ventriculares induzidas em gatos e macacos por estimulação límbica ou hipotalâmica Faz tam bém referência ao aparecimento de manifestações cardiovasculares detectadas em pacientes internados em unidade coronária arritmias elevação da pres são arterial dispneia e angina desencadeadas por fatores emocionais Wilhelm Raab 1971 cita uma série de experi mentos em que situações estressantes desencadeiam a liberação de catecolaminas e corticosteroides pro vocando hipoxemia miocárdica por aumento do con sumo de oxigênio e lesão celular por entrada de Na e saída de K e Mg Raab mostra que a hipoxemia mio cárdica por aumento do consumo de oxigênio devido ao aumento do inotropismo determinado pelas ca tecolaminas e os distúrbios bioquímicos da célula entrada de Na e saída de K e Mg determinados pelos corticosteroides favorecem as arritmias inicialmen te e posteriormente a lesão celular sendo a seu ver o principal mecanismo responsável pelo processo de miocardiosclerose Raab fala ainda da descarga adre nalínica antecedendo a morte súbita e cita alguns tra balhos a respeito Selye 1971 também mostra a possibilidade de necrose miocárdica metabólica sem alterações vascu lares por ação estressógena Clinicamente sabemos que muitos pacientes portadores de infarto agudo do miocárdio têm artérias coronárias normais A vasocostrição e o aumento da tensão sobre as paredes por aumento do débito cardíaco devido à li beração de catecolaminas produzem microlesão na íntima e média das arteríolas favorecendo a trombo se conforme declara Groen Julio de Mello Filho 1979 em excelente revi são sobre o assunto mostra que as pesquisas sobre estresse baseadas na detecção dos índices plasmáti cos e urinários de 17 hidroxicorticosteroides são cada vez mais numerosos e compreendem o estudo do homem e animais em situações comuns de estresse ou em condições criadas laboratorialmente estados de guerra competições esportivas exames escolares projeção de filmes confinamento choques elétricos etc Revisões mais recentes como as de Eliot e Sil tanen 1987 também enfatizam a correlação entre estresse e cardiopatia Investigações em animais têm evidenciado o aparecimento de lesões cardiovasculares quando submetidos a situações estressantes inclusive de na tureza psicossocial como confinamento ou ambiente social competitivo Henry et al 1967 Raab 1971 A esse respeito Oliveira 1982 cita a baleia assassi na tipo de baleia agressiva e maliciosa que provavel mente por aumentada liberação de catecolaminas costuma desenvolver aterosclerose de maneira mais acentuada que outros cetáceos Cita também a maior evidência de aterosclerose no gado doméstico inglês em comparação ao búfalo selvagem de Uganda cor relacionando o fato com o processo de domesticação e socialização dos primeiros Morris 1959 demonstra em pesquisa com motoristas e cobradores de ônibus em Londres como o fator responsabilidade é predisponente de corona riosclerose Friedmam 1960 constatou aumento das cate colaminas em coronarianos do chamado tipo A A participação do sistema nervoso na gênese da hipertensão arterial é tema de inúmeros traba lhos como os de Abbud 1982 Davidmann e Op sahl 1984 Harrel 1980 Julius 1981 Fitzgerald 1979 Ligth 1983 e muitos outros Desde os es tudos de Selye sabemos que o estresse eleva a PA Através da ação direta dos nervos simpáticos ou indi retamente da estimulação das suprarrenais corticos teroides e catecolaminas são liberados promovendo aumento do débito cardíaco vasoconstrição e reten ção de sódio e água Tais modificações são transitó rias havendo o retorno às condições iniciais cessada a ação do agente estressante Em determinados in divíduos os hipertensos a reação é mais intensa e prolongada levando à doença hipertensiva Mesquita e Nóbrega 2005 descrevem um novo tipo de cardiopatia que vem sendo chamada no Bra sil de síndrome do coração partido Caracterizada por uma disfunção ventricular esquerda transitória a síndrome é desencadeada por estresse emocional e físico Em suma e nos valendo do dizer de Mesquita e Nóbrega A percepção de que o estresse pode estar associado a problemas cardíacos é muito antiga e não por coin cidência o coração é considerado pelo público geral como a sede das emoções Se por um lado a grande aceleração da ciência ao longo do século XX marcou uma separação das especialidades no diagnóstico e terapêutica dos pacientes por outro tem gerado uma plêiade de evidências apontando para uma associação causal independente entre fatores como depressão iso Psicossomaticaindd 321 Psicossomaticaindd 321 05012010 121215 05012010 121215 322 Mello Filho Burd e cols lamento social e má qualidade do suporte social com o desenvolvimento e o prognóstico de doença arterial coronária O aumento do risco ocasionado por estes fa tores psicossociais é de magnitude similar ao observado com os fatores de risco convencionais como tabagismo dislipidemia e hipertensão demonstrando a importân cia da melhor compreensão desta associação Outro aspecto bem estudado é o impacto das emoções nega tivas desencadeando eventos coronarianos agudos em pessoas com doença ateroclerótica estabelecida ou com alta probabilidade de doença p 283 Mais adiante afirmam os autores Portanto é chegada a hora do cardiologista voltar a considerar na sua prática cotidiana que processos emo cionais podem participar concretamente dos complexos mecanismos envolvidos na fisiopatologia das doenças cardiovasculares p 284 Enfim se é fato inconteste a repercussão car diovascular face a situações ansiogênicas ou estres santes permanecem as dificuldades para explicar por que algumas pessoas reagem dessa forma porquanto outras não MEIOS DE REAGIR AO ESTRESSE Para Hans Selye 1965 o organismo está em constante adaptação Em outros termos em constan te tensão de adaptação Estresse é o estado de ten são de um organismo que de alguma forma se sente ameaçado em sua integridade A resposta adaptativa se faz por um conjunto de reações físicas psíquicas e comportamentais a que Selye chamou de síndro me geral de adaptação Respostas inadequadas ou excessivas constituem as chamadas doenças de adap tação Há muitos trabalhos que relacionam estresse à doen ça sendo razoável supor que todos nós quando submetidos a uma carga excessiva de agentes estres santes apresentemos sintomas ou doenças físicas A relação de causaefeito é imediata à semelhança do que descrevia Freud em relação à neurose atual Se inúmeros trabalhos ligam estresse à doen ça Holmes e Rahe 1967 Selye 1965 1971 Wolff 1971 Arthur 1981 Jalowiec e Powers 1981 a natureza dessa ligação permanece obscura As pes soas reagem diferentemente ao estresse inclusive em termos de doença Parece haver uma espécie de filtro através do qual os eventos ambientais são per cebidos pelo indivíduo Isto faria distinguir situações estressantes e situações percebidas como estressan tes Seriam estas últimas as que teriam valor psico lógico Sem dúvida parece haver correlação entre quantidade de situações estressantes e a resultante percepção desse estresse Mas parece haver um efeito moderador ou hipertrofiador que depende do próprio indivíduo em função de sua constituição história e circunstâncias O mesmo se aplica ao modo de reagir de enfrentar de se adaptar ao estresse que aparece também influenciado por circunstâncias particulares próprias do indivíduo Em estudos sobre hipertensos alguns autores enfatizam a importância desse filtro pessoal Brod 1971 comenta que a elevação da PA parece depen der da avaliação pessoal que o indivíduo faz da si tuação Myers 1981 encontrou alguma correlação entre exposição a situações estressantes sobretudo negativas avaliação subjetiva de estar em estresse e tendência a somatizar estresse com HA Aqui nos reportamos aos estudos de McLean a respeito do sistema límbico e à função avaliadora do processo emocional Para Herrmann 1976 tal função seria exercida através de programas intrapsíquicos de avaliação resultantes das primeiras experiências de vida formando mesmo o seu núcleo de personalida de a que se somariam outros fatores de natureza in terna ou externa como idade estado de saúde edu cação crenças suportes sociais intensidade e tipo das experiências atuais etc Averill Opton e Lazarus 1971 alargam a com preensão do sistema intrapsíquico de avaliação intro duzindo a ideia de coping ou enfrentamento da situação percebida como ameaçadora Na verdade o sistema de avaliação seria primário e secundário O primário avaliaria o estímulo em si e o secundário avaliaria os modos possíveis de enfrentamento do estímulo amea çante Esses dois fenômenos seriam interdependentes e sua relação deve ser conceituada em termos de cir cuitos internos de feedback influenciandose mutua mente Sobre tal sistema de avaliação atuariam como fatores básicos a estrutura psicológica do indivíduo e as normas culturais que o cercam Utilizando pois os modelos de Herrmann e de Lazarus poderseia sumariamente dizer que uma dada situação vivida pelo indivíduo sofre um proces samento que envolve sua avaliação quanto à possí vel ameaça à integridade coesão e sobrevivência do organismo e a escolha ou decisão do método para enfrentála resultando então numa dada resposta Fatores constitucionais e as primeiras experiências de vida constituindo a estrutura da personalidade do indivíduo representariam o núcleo desse sistema de avaliação a que se acrescentariam as normas e os valo res introjetados e as circunstâncias atuais e passadas Tais modelos se coadunam com o de Selye para quem o estresse se constitui numa tensão entre um agente que ameaça o organismo e a resistência a ele oferecida por esse organismo Diz que o objetivo des se estado é em última análise adaptarse à situação buscando fazêlo através da delimitação das reações à Psicossomaticaindd 322 Psicossomaticaindd 322 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 323 menor área suscetível de corresponder às necessidades da situação e da redução do quantum de energia des pendida Diz ainda que a preferência de um agente estressante por um determinado órgão ou tecido e a intensidade de sua resposta parece ser determinada por fatores condicionantes internos e externos As sim Selye 1965 se expressa textualmente Os fatores condicionantes internos são aqueles que se tornaram parte do corpo A hereditariedade e as expe riências pregressas deixam certos traços certas lembranças tissulares que influenciam nosso tipo de reação aos fatos E mais adiante por outro lado tudo quando age sobre nós a partir de fora pode também influenciar nossa resposta a um agente simultaneamente ativo mesmo que ele não cau se lesão permanente ao corpo A dieta que fazemos e o clima em que vivemos são fatores condicionantes ex ternos p 110 Em outro trecho Selye aduz a participação do sistema nervoso central no processo de avaliação dos agentes estressantes ao mesmo tempo em que faz re ferência a interligações do SNC com os diversos órgãos e tecidos Diz ele que tais interligações podem influen ciar a seletividade da resposta em vários pontos E afir ma É essa possibilidade de condicionamento seletivo que explica a razão por que todas as pessoas reagem diversamente ao estresse dependendo de característi cas herdadas e adquiridas p 131132 Simplificadamente assim poderíamos esque matizar o processo de avaliação Desse modo podemos então compreender que face às mesmas situações os indivíduos reagirão de forma diferente conforme seu modo peculiar de avaliar as situações o que por sua vez estará na dependência direta da história e circunstâncias de suas vidas o que é estressante para um pode não ser para outro Da mesma forma ocorre em relação ao tipo de resposta ou meio de enfrentamento adotado por cada indivíduo mesmo quando avaliam de forma idêntica uma dada situação O modo de enfrentar a situação é peculiar particular a esse indivíduo con forme sua história e circunstâncias Segundo Averill Opton e Lazarus 1971 as es tratégias de enfrentamento se resumiriam em mecanis mos de respostas do ego quando nenhuma ação direta fosse possível tendência à ação direta ou impulsos para luta ou fuga e enfrentamento sem afeto quando a avaliação da situação fosse não ameaçante Outros autores têmse preocupado com as estra tégias básicas de enfrentamento classificandoas ou abordandoas de diversas formas Felton 1984 Jalo wiec e Powers 1981 Light 1981 Melville 1981 Jalowiec e Powers elaboraram uma lista de es tratégias de enfrentamento dentre as quais destaca mos algumas 1 Olhar o problema objetivamente 2 Buscar diferentes alternativas para enfrentar a si tuação 3 Falar sobre o problema 4 Ter esperança que a coisa melhore 5 Procurar apoio com familiares e amigos 6 Agitarse fisicamente 7 Fumar beber usar drogas 8 Comer dormir 9 Adoecer fisicamente 10 Gritar agredir 11 Meditar relaxar 12 Isolarse ficar só 13 Esquecer o problema 14 Resignarse 15 Sonhar fantasiar sobre o problema 16 Rezar 17 Ficar nervoso 18 Prepararse para o pior 19 Deprimirse 20 Dedicarse ao trabalho A opção por esta ou aquela forma de enfren tamento depende como dissemos de predisposições constitucionais das primeiras experiências de vida de normas e valores introjetados e de circunstâncias atuais e passadas Situação Input Resposta Output Avaliação Percepção Enfrentamento Decisão Processamento FIGURA 231 Situação Resposta Predisposição constitucional Primeiras experiências de vida Normas e valores introjetados Circunstâncias atuais e passadas Estímulo ou situação Resposta Sistema de avaliação e enfrentamento Sistema nervoso central FIGURA 232 Sistema nervoso central no processo de avaliação dos agentes estressantes Psicossomaticaindd 323 Psicossomaticaindd 323 05012010 121215 05012010 121215 324 Mello Filho Burd e cols Se adotarmos pois os estudos de Selye como básicos para a compreensão biológica da somatiza ção acrescendolhes os estudos de Lazarus podería mos sinteticamente dizer que tal processo depende 1 Da natureza e intensidade do agente estressante 2 De uma avaliação interna do indivíduo que quan tifique e qualifique esse agente 3 De uma decisão interna quanto ao tipo de res posta a ser oferecida ou modo de enfrentar o agente estressante É nesse sentido que a vida intrapsíquica ganha importância na compreensão do fenômeno da soma tização Não é suficiente a equação agente estres santeestresseresposta inclusive somática Isso é até certo ponto verdadeiro quando vivenciamos uma quantidade grande de estímulos estressantes e a eles reagimos fisicamente bem de acordo com o que de monstra Selye Mas na grande maioria das vezes o problema é mais complexo pois trazemos dentro de nós o registro de experiências passadas que nos leva a avaliar as situações de modo peculiar e de um modo também peculiar a enfrentálas As estratégias corporais ou somáticas são as mais primitivas pois são as que se apresentam dis poníveis ao indivíduo nos seus primeiros momentos de vida Com o surgimento da vida mental através da possibilidade que adquire a criança de representar psiquicamente os objetos podendo sobre eles pensar imaginar fantasiar ou desejar instaurase um segun do nível de estratégia de enfrentamento as cogni tivas ou mentais que vão evoluindo para o pleno desenvolvimento da capacidade de abstrair e racioci nar logicamente propiciando ao indivíduo alcançar o terceiro e mais maduro nível de estratégias que chamaríamos de reflexivo Diríamos então que a forma mais elaborada de enfrentamento é a de podermos encarar a situação conscientemente e objetivamente poder sobre ela falar discutir refletir aceitandoa ou superandoa conforme suas características e os recursos à nossa disposição Quando isso não é possível seja porque o problema não é consciente seja porque não está po dendo ser pensando ou falado seja porque faltem re cursos disponíveis a tendência será a de lançar mão de outras formas de enfrentamento Mentais fantasiar racionalizar negar rezar Emocionais deprimirse agredir culpar ou cul parse chorar gritar Atitudinais isolarse exibirse brincar arriscarse Aditivas comer beber transar fumar traba lhar excessivamente Somáticas adoecer Na verdade aprendemos a lidar com as primei ras situações estressantes usando o próprio corpo pois não dispúnhamos de outros recursos e assim continuamos a fazer posteriormente sempre que por qualquer razão os outros meios de comunicação e defesa falhem A criança muito pequena detém uma capacida de muito limitada de comunicação e enfrentamento Por não falar não andar e não raciocinar ela depende quase que totalmente de alguém que cuide dela É através da mãe ou de quem exerça essa função que a criança sobrevive Por isso ela necessita de um ín timo e intenso contato com a mãe Tal como se fosse parte dela mesma E o meio biológico que a criança dispõe para se comunicar com sua mãe é o próprio corpo As respostas que a criança obtém se fazem sen tir no seu corpo através dos cuidados que a mãe lhe oferece Certamente tais experiências vão sendo re gistradas no aparelho psíquico da criança de acordo com o modo como suas necessidades foram captadas e atendidas Quando a mãe consegue captar e atender às necessidades da criança de modo pronto e adequa do o registro dessa experiência se fará cercado de to nalidade afetiva agradável e tranquilizadora Quando tal não ocorre quando um desencontro se instaura na captação comunicação ou no atendimento en frentamento de uma necessidade a criança se senti rá ameaçada seu sentimento de continuidade e até de existência fica em risco Sobrevém uma angústia a angústia de aniquilamento difícil de ser absor vida pela via psíquica constituindose portanto em ameaça biológica como diz Joyce McDougall 1983 e a criança recorrerá ao próprio corpo para expressá la e de algum modo enfrentála A angústia primitiva vivida de maneira onipo tente e alucinatória só pode ser expressada corpo ralmente As primeiras percepções da criança não têm ainda um registro psíquico superior simboli zação que lhe permita ter uma certa distância dos fatos Quem lida com psicóticos pode ter uma noção do que de um certo modo ocorre com a criança pe quena face às angústias tão primitivas O estado de desintegração desses pacientes gera enorme ansieda de e sensação de estranheza Os pensamentos ficam desconectados e ampliados e são sentidos como reais o que gera pavor ante a possibilidade vivência de se concretizarem Além disso o indivíduo fica extrema mente inquieto perde o sono e o apetite anda para um lado e para o outro fuma desesperadamente Tais reações físicas ou mentais são todavia os meios que a criança encontra para enfrentar a situa ção angustiante Através delas manterá a percepção de continuar viva de continuar existindo Por isso passará a sofisticálas organizálas estruturá las para lidar com as novas situações que surjam Psicossomaticaindd 324 Psicossomaticaindd 324 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 325 O que destacamos como essencial destas obser vações é o fato de que a mãe deixa de ser a supridora das necessidades da criança que passa a utilizar seu corpo concreto e alucinado para se bastar E aqui lo que vem do ambiente inclusive a própria mãe o seio o embalo para dormir a chupeta e o travesseiro são apenas formas de preencher tais necessidades e parecem fazer parte da própria criança Em outros termos a falta de um registro afetivo tranquilizador impede que a criança se individualize sintase íntegra coesa e autônoma tornandoa de pendente de pessoas ou coisas que a façam ter a sen sação de continuar viva mesmo que para isso tenha que alucinar ou somatizar A relação simbiótica que mantém com outras pessoas a utilização compulsiva de sintomas físicos o uso excessivo de cigarros bebidas tóxicos ativida des sexuais trabalho e diversão parecem todos ter o mesmo significado um meio de se comunicar e de se defender ante angústias inimagináveis de desinte gração ou aniquilamento É a incessante busca de si mesmo nunca completada mas sempre ansiada face ao perigo de se perder completamente Retomando a ideia inicial a expressão corpo ral constitui o primeiro o mais primitivo meio de comunicação e de defesa de que o ser humano dis põe É natural portanto que continue a utilizálo no decorrer da vida sobretudo nos momentos em que outras formas de comunicação e de defesa estejam bloqueadas ou não tenham sido aprendidas O uso constante da expressão corporal somatização pare ce depender de alguma predisposição constitucional a reagir somaticamente por certo associada ao grau de investimento afetivo oferecido pela mãe ante as reações físicas da criança só reagindo fisicamente a criança obtinha a atenção da mãe ou a própria mãe se comportava somaticamente como meio de contro lar a criança estimulandoa por identificação a agir da mesma maneira O que nos compete tanto quanto à mãe que cui da da criança é estarmos atentos à mensagem que essa expressão corporal veicula a fim de atendêla ou traduzila da maneira mais pronta e adequa da possível Obviamente nossa tarefa será mais ou menos dificultada pelo nível de estruturação que tal forma de expressão e de defesa alcançou no indi víduo Em algumas ocasiões a somatização parece de pender do excesso de estímulos ambientais estressan tes superando a capacidade de o indivíduo absorvê los psiquicamente pensando falando ou tomando atitudes O agente causal nesses casos está fora do indivíduo De qualquer modo naqueles com es trutura psicossomática a forma corporal de reagir se fará sempre de maneira mais intensa e frequente MECANISMOS DE SOMATIZAÇÃO A questão que se coloca é por que uma mani festação psíquica tornase corporal Talvez esteja aqui o cerne da medicina psicossomática O tema é desafiante porque ao mesmo tempo em que nos parecem claras as influências psíquicas sobre o cor po por outro são extremamente complexos os seus mecanismos A começar pela terminologia mais apro priada devemos usar o mesmo termo para sintomas corporais sem substrato orgânico e para alterações corporais provocadas por mecanismos psíquicos por vezes chamados distúrbios psicofisiológicos Optaremos por utilizar o mesmo termo somati zação para descrever toda e qualquer manifestação corporal provocada diretamente por fatores psíqui cos tenham ou não substrato orgânico São exemplos a dor epigástrica decorrente de uma gastrite desen cadeada por situação geradora de muita tensão e a mesma dor epigástrica para a qual não se encontre qualquer anormalidade fisiológica Ou seja as ma nifestações somáticas nem sempre configuram um quadro clínico ou diagnóstico propriamente dito fi cando no rol dos sinais ou sintomas dor dormência náusea tontura falta de ar palpitação etc Outras vezes enquadramse em diagnósticos mais definidos como asma brônquica hipertensão arterial neuro dermatite retocolite ulcerativa úlcera péptica etc Tentaremos na medida do possível descrever alguns dos principais mecanismos da somatização embora eles possam estar interligados Abordaremos os seguintes Estados emocionais incluída a depressão e rea ção ao estresse Fenômeno psicossomático ou meio primitivo de comunicação e enfrentamento Histeria Hipocondria e Identificação Comentaremos por fim algumas alterações comportamentais que trazem indiretamente con sequências físicas tal como ocorre na síndrome da desistência nos comportamentos chamados aditivos aqui incluída a personalidade tipo A e no apego a determinadas crenças ou influências culturais aqui incluída a morte vodu Estados emocionais e reação ao estresse As considerações que fizemos até aqui sobre a resposta emocional como resultante de um proces so de avaliação e enfrentamento que visa a adaptar o indivíduo ao ambiente em que vive permitemnos Psicossomaticaindd 325 Psicossomaticaindd 325 05012010 121216 05012010 121216 326 Mello Filho Burd e cols tentar uma síntese que torne mais clara a forma como entendemos essa somatização Em primeiro lugar e partindo da observação de animais constatamos neles a existência de um comportamento emocio nal que serve não só para sinalizar o tipo de reação através do rosnar eriçar os pelos balançar o rabo mas para efetivamente agir com um determinado objetivo comer lutar fugir copular Evidenciamos então a presença de dois componentes básicos do processo emocional o expressivo ou sinalizador e o comportamental ou de enfrentamento O conjun to de reações que caracteriza tal processo é essen cialmente psicossomático por envolver sensações e ações fisiológicas ou somáticas e atitudinais ou comportamentais As manifestações fisiológicas ou somáticas somatizações desse processo são portan to uma forma de falar componente expressivo e de agir componente de enfrentamento Quanto menos os mecanismos mentais ou cognitivos de falar e agir estiverem funcionando tanto mais o somático será utilizado Destaquese dentre as reações emocionais aquela descrita por Selye como estado de estresse ou síndrome geral de adaptação que se constitui num conjunto de reações psíquicas fisiológicas e compor tamentais ante qualquer agente que ameace a integri dade do indivíduo Podemos chamála de síndrome ansiosa na medida em que ela se desencadeia cada vez que o organismo se vê sob tensão Ocorre des carga adrenérgica com liberação de catecolaminas e corticosteroides que predispõe o organismo ao en frentamento A reação é inicialmente difusa na fase de alarme tornandose em seguida limitada à me nor área e ao menor dispêndio de energia possível na fase da resistência para finalmente tornarse outra vez difusa na fase de exaustão Podemos então afirmar que se a ansiedade é um estado de tensão interna ante algo que ameaça o indivíduo o estado de estresse é um estado de ansie dade ou uma síndrome ansiosa na medida em que além da sensação subjetiva de ansiedade ocorre uma série de reações de natureza fisiológica e comporta mental Neste caso de reação ao estresse o montante de situações estressantes será fator relevante Quanto maior a quantidade e intensidade dos agentes estres santes maior será a possibilidade de o indivíduo res ponder somaticamente Outro estado emocional habitualmente rico em manifestações somáticas é a depressão Seja ela uma reação depressiva face a situações de perda ou fracasso seja a depressão propriamente dita en quanto doença psiquiátrica frequentemente vem acompanhada de manifestações físicas como anore xia insônia emagrecimento cansaço dores etc Fenômeno psicossomático Estudos têm demonstrado Mahler 1977 Win nicott 1978 1982 1997 1999 Balint 1993 Bowlby 1984 que os primeiros relacionamentos do bebê com o ambiente à sua volta e primordialmente com a pes soa que diretamente cuida dela a função mãe são fundamentais para o desenvolvimento da sua perso nalidade e dos modos como avaliará e enfrentará as situações no decorrer da vida Winnicott chama de holding ao conjunto de cui dados que o ambiente sobretudo representado pela mãe oferece ao bebê nos primórdios do seu desen volvimento e que será o responsável pela estrutura ção do self ou núcleo da personalidade Esse cuidar para ser adequado deve ser amoroso e empático Segundo Winnicott um bom holding propiciará à criança um sentimento básico de confiança inicial mente depositado de maneira absoluta na mãe que posteriormente se transformará em autoconfiança permitindolhe aceitar os limites do mundo e acredi tar na possibilidade de enfrentálos Havendo falhas significativas nesse relacionamento a criança não se sente apoiada cuidada protegida e passa a lançar mão do próprio corpo para lidar com o ambiente De certo modo é como se a criança voltasse a reagir primitivamente somaticamente a qualquer situação ameaçante Ela aprende a usar o corpo como meio de comunicação e de defesa Esse parece ser o mecanismo básico do chamado fenômeno psicossomático que difere da conversão por não ter sentido simbólico ou metafórico Dizse que é um meio de comunicação mas como se fosse um grito um apelo um gesto que busca um interlo cutor Por ser um modo primitivo emocional de se comportar a reação somática é vivida pelo indiví duo como forma de lidar com o ambiente naquele momento percebido como hostil ou ameaçante Acreditamos com base na experiência clínica que grande parte das manifestações somáticas te nham como um dos seus componentes básicos essa forma primitiva de expressão e de defesa O indiví duo fala com o corpo e com ele se defende Com o corpo ele obtém atenção e cuidados com o corpo ele exprime seus desejos e fantasias com o corpo ele enfrenta as situações estressantes e provavelmente com o corpo também ele se recrimina ele também se culpa A utilização do corpo como meio de punição merece um destaque especial por sua característica dinâmica O caráter punitivo ou sofredor da mani festação somática na verdade obedeceria à lógica de lidar com as situações ambientais ou os próprios conflitos do indivíduo Seria um meio de comunica ção e enfrentamento Tal mecanismo parece frequen Psicossomaticaindd 326 Psicossomaticaindd 326 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 327 te na prática clínica sobretudo em pacientes polio perados ou politraumatizados Também em pacientes crônicos portadores de diabetes mellitus doença pulmonar obstrutiva crônica hipertensão arterial úlceras varicosas muitas vezes fica evidente a con duta mórbida autodestruidora desses pacientes Não estamos generalizando e afirmando que todos os por tadores dessas afecções exibam tal comportamento Mas as frequentes iatrogenias praticadas sobre esses pacientes e os seus frequentes deslizes em relação aos cuidados terapêuticos que deveriam tomar apon tam para uma forma inconsciente de perpetuar a do ença como forma de manter o autoflagelo Hipocondria e Identificação A hipocondria é caracterizada pela cronicidade e fixidez das queixas somáticas do paciente e pela sua inabalável convicção de que existe uma doença de natureza orgânica Usdin 1981 Embora seu meca nismo permaneça controverso destacamse todavia três aspectos pregnantes nesses pacientes a atenção excessiva dada ao corpo a sensação de ter algo ruim dentro de si e a quase absoluta intransponibilidade quanto à crença na doença orgânica Referimonos aos quadros clássicos de hipocondria já que graus discretos são frequentes na prática médica Todos nós de algum modo tivemos ou temos momentos de hipocondria Um dos possíveis mecanismos da hipocondria é o da identificação Identificarse é sentirse como o outro É tornar seu algo que é do outro Assim sentir se doente pode ser uma forma de identificarse com alguém que está ou esteve doente A esse respeito diz Julio de Mello Filho 1979 Os modelos oferecidos à criança têm grande importân cia pois se são inadequados propiciam identificações incompatíveis com o desenvolvimento emocional har mônico ditas patológicas Estas identificações patoló gicas explicam muitos traços neuróticos do caráter e podem gerar sintomas somáticos no processo de mime tizar sofrimentos e enfermidades dos modelospadrão que foram significativos Assim por exemplo uma dismenorreia pode ser consequência da identificação de uma adolescente com a mãe que apresentou este quadro por muitos anos e influenciou intimamente a filha a este respeito Ao mesmo tempo as identificações são processos importantíssimos na dinâmica das pato logias familiares como também em estados histéricos e hipocondríacos A identificação pode se fazer com um órgão doente ou com todo um ser doente mental ou fisicamente p 36 O mecanismo da identificação parecenos pois estar presente na hipocondria e ser semelhante ao da crença Definese crença como o ato pelo qual o cére bro aceita uma ideia como verdadeira Ao identificar se com alguém o indivíduo acredita ser como esse alguém É um processo primitivo de aprendizagem através do qual o indivíduo incorpora informações sem relutância Só depois ele consegue processar as informações apreendendoas de modo mais madu ro e assim podendo refletir abstrair questionar tais informações Ora o que observamos num indivíduo com manifestação hipocondríaca seja ela leve tran sitória intensa ou prolongada é a aceitação sem re lutância do fato de estar doente Ele crê efetivamente que está doente Isto acontece quando visitamos uma pessoa doente e saímos de lá com a mesma doença e acontece com o hipocondríaco propriamente dito que apesar de todas as provas em contrário conti nua se sentindo doente Num ou noutro caso pare cem estar ocorrendo identificações com alguém que está à nossa frente ou com alguém que está dentro de nós Acompanhamos um paciente hipocondríaco que nos foi encaminhado para terapia por um pneumo logista Este paciente sentiase frequentemente com falta de ar e já fizera uma série de exames inclusive radiografias broncoscopias e provas funcionais respi ratórias nada sendo encontrado de anormal Disse nos na entrevista inicial que sua falta de ar surgira dois dias após o resultado de uma coronariografia a que se submetera devido a uma dor precordial que não o abandonava Fizera uma série de eletrocardio gramas em repouso e com esforço ecocardiogramas e por fim como a dor não cessava apesar de nada anormal estar sendo encontrado digase que o pa ciente tem 32 anos de idade seus médicos optaram pela coronariografia Com o resultado normal deste exame sua dor precordial cessou como por encanto mas dois dias depois surgiu a falta de ar O pacien te era de boa formação intelectual dizianos saber racionalmente que sua dor não era orgânica mas ao mesmo tempo não conseguia acreditar nisso Por mais de uma vez perguntounos se não haveria possi bilidade de ter alguma microlesão que justificasse sua falta de ar e escapasse aos exames habituais Pesqui sando sua história prévia deparamonos com seu pai que vivia se queixando de estar doente e frequente mente passava mal Histeria Por fim duas palavras sobre a conversão Se o hipocondríaco sente estar doente o histérico expressa a doença Ele desmaia paralisa cega Arma sem pre uma cena à sua volta Exibe seu sintoma Pare ce ter uma ação mais expressiva E na verdade seus Psicossomaticaindd 327 Psicossomaticaindd 327 05012010 121216 05012010 121216 328 Mello Filho Burd e cols sintomas expressam algo falam de seus conflitos re primidos É uma forma simbólica de falar que utiliza o corpo como meio de comunicação Distinguese da forma primitiva inespecífica de expressão que alu dimos anteriormente Tratase de uma comunicação específica com uma representação simbólica defini da de um impulso que foi reprimido ao contrário da forma primitiva que fala mais de uma ameaça à pró pria existência de uma agressão narcísica ao self Comportamento e manifestações somáticas Finalmente teceremos algumas considerações sobre determinadas alterações comportamentais que trazem indiretamente consequências físicas Síndrome da desistência Um tipo de situação que destacamos capaz de gerar ou agravar doenças físicas é a chamada síndro me da desistência descrita por vários autores como Schmale e Engel 1972 e que parece representar um estado de espírito em que o indivíduo parece desistir de viver permitindo então que a doença o acometa Situações de perda familiar perda de status ou outras que deem ao indivíduo a sensação de não ter saída parecem estar na base desse estado Poderíamos aqui incluir outro tipo de situação frequentemente encontrada mas poucas vezes valo rizada na prática clínica que é o sentimento de des valia ou de baixa autoestima Na nossa experiência tal sentimento constitui um dos principais motivos da não adesão aos tratamentos prescritos o que contri bui indiretamente para a manutenção da doença Comportamentos aditivos Certos procedimentos como comer beber fu mar usar drogas manter atividade sexual ou ati vidade física de uma forma aditiva podem ser usa dos como recursos intermediários entre o corpo enquanto reações fisiológicas e o pensar e exer ceriam segundo Winnicott o papel de objetos transicionais substituindo a funçãomãe seriam os equivalentes da chupeta mamadeira atividades autoestimuladoras da criança etc Tais comporta mentos favorecem a emergência de doenças físicas ou mentais e constituem verdadeiros obstáculos ao seu tratamento Incluímos como comportamento aditivo aque le dos indivíduos descritos como portadores de perso nalidade tipo A indivíduos apressados competitivos sequiosos de sucesso e com dificuldade de revelar fraquezas e que seriam mais propensos a desen volver coronariopatia Tais indivíduos geralmente se dedicam de forma excessiva ou aditiva ao trabalho Helman 1994 Apego a determinadas crenças ou influências culturais Um exemplo marcante de influência cultural na gênese de manifestações somáticas é a chamada morte vodu descrita por Benson 1980 O vodu é um conjunto de costumes religiosos que devem ter se originado na África como uma forma de culto dos antepassados Tem sido muitas vezes cha mado de magia negra ou feitiçaria e é caracterizado por rituais que apaziguam os deuses As pessoas que praticam o vodu frequentemente acreditam nos tran ses como uma forma de se comunicar com os deuses Geralmente estas divindades são consideradas espí ritos desencarnados de indivíduos espíritos estes que exercem influências benéficas ou maléficas O vodu é praticado principalmente entre as populações nativas da África Haiti América do Sul e Índias Ocidentais enquanto que um conjunto de crenças semelhantes é encontrado na Austrália Nova Zelândia e várias ilhas do Pacífico Entre as tribos aborígenes australianas os médicos feiticeiros praticavam o ritual de apontar o osso por meio do qual um encanto mágico era jogado no espírito da vítima Tais encantos tinham como objetivo pertur bar o espírito da vítima a ponto de provocar doença e morte Já foram comprovados inúmeros relatos de mor te atribuídas ao vodu p 2728 Segundo Benson o êxito de tais rituais depende tanto do fato de a vítima estar cônscia do encanto mágico como do fato de a vítima ser de uma lealda de fortíssima em relação aos sistemas de crenças da sociedade a que pertence O mesmo autor inclui a síndrome da desistência como um dos equivalentes modernos da morte vodu e descreve vários casos Certamente podemos lembrar aqui inúmeras situações ligadas a crenças e superstições capazes de ocasionar sintomas físicos como por exemplo a crença de que a mulher menstruada não deve lavar a cabeça Minayo 1994 A escolha somática parece pois depender de uma série de fatores ou mecanismos desde os mais somáticos aos mais psíquicos Na prática mui tas vezes eles estão superpostos O importante será sempre questionar de que fala este sintoma Estará sendo usado como meio de defesa ou enfrentamen to De qual situação E caberia perguntar por que o coração Psicossomaticaindd 328 Psicossomaticaindd 328 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 329 A PREFERÊNCIA PELO CORAÇÃO Se levarmos em conta os vários mecanismos que geram somatizações ou que indiretamente pro vocam manifestações somáticas podemos procurar compreender a opção pelo coração Em primeiro lugar há que se considerar a participação do sistema cardiovascular nas situações de estresse Tal sistema é fundamental à manutenção do equilíbrio homeos tático do organismo A ele compete manter uma per fusão tecidual adequada às necessidades orgânicas estando por isso a todo momento sujeito às influên cias internas e externas aumentando diminuindo ou redistribuindo o fluxo conforme as circunstâncias Por tudo isto deduzse a profunda sensibilidade do siste ma cardiovascular a qualquer agente que possa pôr em risco a integridade do organismo ou seu equilí brio homeostático Quanto mais duradoura e intensa for a ação dos agentes estressantes mais significati va será a repercussão sobre o sistema cardiovascular Salientese que a existência de defeitos constitucio nais na estrutura desse sistema certamente o tornará mais vulnerável à ação do estresse Este fato parece ficar claro em relação à predisposição constitucional constatada em alguns hipertensos e coronarianos Se considerarmos que desde os primórdios do desenvol vimento a criança vivenciou situações de estresse e que em determinadas circunstâncias aprendeu a reagir somaticamente face às discrepâncias na rela ção mãecriança será razoável supor que em sua vida atual e na falta de outros meios mais eficazes de enfrentamento volte a lançar mão desse recurso Como meio primitivo de comunicação e enfren tamento o coração como aliás qualquer outro ór gão poderá ser usado para obter atenção ou como forma de se autoaplicar punição Neste caso quei xas funcionais ou mesmo distúrbios orgânicos oca sionados por outros fatores poderão estar a servi ço dessas causas Queremos dizer que a existência de hipertensão arterial coronariopatia ou arritmias mesmo causadas por agentes orgânicos podem es tar sendo aproveitadas para a sinalização eou en frentamento de angústias ou conflitos emocionais Ressaltese que as queixas não são intencionais ou deliberadas fingidas ou inventadas pois os me canismos descritos ocorrem de modo inconsciente Tal fato no caso de autopunição seria denuncia do pelo comportamento do indivíduo ante a doença frequentemente marcado por descuidos ou transgres sões no cumprimento das prescrições terapêuticas e por provocações a iatrogenias sobre ele praticadas pela equipe de saúde ou por seus familiares No caso de obter atenção a intensificação das queixas e uma certa dramatização acerca da doença são os indícios dessa intenção Ainda com relação à somatização como oriunda das fases mais primitivas do desenvolvimento pode mos aventar a possibilidade de um reforçamento ou investimento afetivo da mãe face a manifestações cardíacas ocorridas àquela época Tal fato ocorreria por exemplo com a existência de sopros cardíacos funcionais na infância que teriam gerado na mãe um comportamento de preocupação e expectativa e pos teriormente a atenção excessiva do indivíduo volta da para seu coração A identificação é outro dos mecanismos gerado res de somatização que podem repercutir no coração principalmente em se tratando de reações hipocon dríacas leves ou graves e que assumem maiores proporções face à importância do coração na manu tenção da vida do indivíduo Basta saber que alguém morreu e logo o hipocondríaco sente dor precordial Se ocorre doença cardíaca em algum parente signi ficativo a probabilidade de queixas hipocondríacas voltadas para o coração é grande A possibilidade de manifestações de caráter simbólico através do coração é grande face ao valor a ele atribuído como fonte de vida e sede das emoções Quer se trate de impulsos agressivos ou sexuais o co ração poderá ser a forma de o indivíduo fazer chegar à superfície tais impulsos se eles foram num dado momento reprimidos Mais dramática é a situação quando se trata da síndrome da desistência Neste caso o paciente pare ce não responder ao tratamento Os procedimentos adotados não encontram eco Não há resposta aos esforços terapêuticos Acompanhamos no decorrer da nossa experiência clínica alguns hipertensos e co ronarianos com esse quadro que evoluíram para o óbito Ainda com relação a comprometimentos secun dários poderíamos argumentar sobre os chamados comportamentos aditivos como beber fumar traba lhar excessivamente Tais comportamentos estariam a serviço de necessidades psicológicas ocorridas pela primeira vez quando do desenvolvimento do indi víduo e atualizadas ou revividas face a situações atuais da vida desse indivíduo Secundariamente eles acabariam comprometendo o coração seja pela ingestão excessiva de sal e de gordura seja pela ina lação da nicotina e do monóxido de carbono do cigar ro seja pelo abuso de álcool seja ainda pelo estresse gerado a partir do trabalho excessivo Tudo isso nos leva a afirmar quão difícil se torna às vezes ou muitas vezes afiançar qual desses me canismos estará presente num dado paciente Acre ditamos inclusive que provavelmente vários deles estarão presentes Mas é difícil deixar de considerar como fatores geradores do sintoma ou da doença ou mesmo como fatores de obstaculização ao seu trata Psicossomaticaindd 329 Psicossomaticaindd 329 05012010 121216 05012010 121216 330 Mello Filho Burd e cols mento os mecanismos psíquicos Claro está que da mesma forma é difícil afastar a hipótese de alguma hipersensibilidade ou fragilidade constitucional quan do estamos diante de alterações como a hipertensão arterial e a aterosclerose Como também havemos de considerar os fatores ambientais ou sociais ligados à alimentação ao fumo e ao álcool Não obstante a energização ou potencialização de todos esses fatores constitucionais e ambientais parece passar pelo componente psíquico seja como fonte de ava liações estressantes processadas pelo sistema nervoso central seja através da participação do sistema car diovascular na resposta ao estresse seja pelo esti mulo àqueles procedimentos aditivos que levam o indivíduo a comer demais beber e fumar demais trabalhar demais E se considerarmos os distúrbios funcionais extremamente frequentes na prática car diológica aí então os mecanismos psíquicos crescem de importância como fatores primários geradores da queixa somática que o paciente nos apresenta O PACIENTE FUNCIONAL Chamamos aqui de paciente funcional àquele que procura o cardiologista com alguma queixa re ferida ou atribuída ao coração Queixas como palpi tação falta de ar dor no peito tonteiras desmaios dentre outras Queixas essas que podem ser intensas ou leves súbitas ou constantes passageiras ou de moradas mas que não encontram qualquer substrato orgânico que as justifique Certamente tais pacientes representam cerca de 13 a 23 daqueles que demandam aos ambula tórios e serviços de emergência Lazzaro 2004 É um número muito grande para ficarem enquadrados tão somente na categoria dos que não têm nada Como não têm nada Têm algo que não estão con seguindo expressar a não ser somaticamente Algo que não chega a causar danos orgânicos mas que nem por isso deixa de ter sentido ou importância É claro que não está correndo risco de vida e daí talvez a tentativa do médico em tranquilizálos com a afirmação você não tem nada Se o distúrbio for de pouca intensidade súbito e passageiro a afirmação de que nada de maior está ocorrendo provavelmente será suficiente O que sucede na prática no entanto não é bem assim Essas queixas tendem a se repetir a se perpetuarem Muitas vezes são de grande inten sidade o que mobiliza muito os pacientes e os mé dicos A resposta habitual do médico será a de pedir exames exames e exames Será também a de receitar remédios tranquilizantes ou de ação específica sobre o aparelho cardiovascular O diagnóstico permanece o de você não tem nada ou passa a ser o de pro blema cardíaco ou isso é emocional Se houver alguma manifestação mais objetiva como taquicar dia ou extrasitolia alguma alteração inespecífica do eletrocardiograma ou do raio X a tendência será a de problema cardíaco Caso nenhuma manifestação objetiva apareça a tendência será a da causa emo cional Em ambos os casos a medicação costuma ser a mesma tranquilizantes medicamento de ação es pecífica sobre o aparelho cardiovascular Procedemos muitas vezes assim em nossa prá tica cardiológica até que inquietados pela afirmação você não tem nada começamos a nos perguntar não tem nada E passamos a colocar para os pacien tes você não tem nada de orgânico nada de cardía co propriamente dito mas você está sentindo e deve haver alguma razão para isso Habitualmente o pa ciente começava a falar de sua vida e particularmen te de alguma situação embaraçosa Percebíamos en tão que alguma coisa havia e que a queixa física era a maneira que o indivíduo estava encontrando para fa lar dela Em muitas ocasiões pudemos então reduzir a demanda de exames e de remédios com a simples abordagem do problema que angustiava o paciente Sobretudo aprendemos que era importante não ali mentar aquela queixa ao mesmo tempo em que se fazia fundamental acolhêla traduzila clarificála ou demarcála Ou seja perceber qual mecanismo de somatização estaria presente na queixa do paciente e qual o seu significado Se a queixa era hipocondríaca frequentemente vinha a afirmação meu pai morreu do coração ou fui antes visitar um parente que está doente do coração Se a queixa era uma reação ao estresse vinha o relato do fato estressante Se era um modo de punir ou de obter atenção enfim se havia algo gerando aquele sintoma essa causa muitas ve zes se tornava clara e o paciente conseguia estabele cer um nexo entre eles É importante frisar que em nenhum momento descurávamos da necessidade de uma anamnese e um exame físico bem feito e até mesmo de exames complementares se eram oportunos O procedimento atento minucioso e competente por parte do médico é de fundamental importância para estabelecer um sentimento de segurança de confiança no paciente E é o que permite resistir à repetição enfadonha de exames ou à prescrição continuada de remédios que são para esses pacientes meramente paliativos Ouvir o paciente não só sobre sua queixa físi ca mas sobre sua pessoa sua vida suas angústias é um instrumento diagnóstico e terapêutico poderoso É um terceiro ouvido como diz Grinberg 1985 É como usar um outro estetoscópio E funciona melhor que as drogas ou que os exames repetidos Funcio na melhor porque não agride o organismo Funciona melhor porque atinge trata a causa dos sintomas Psicossomaticaindd 330 Psicossomaticaindd 330 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 331 Basta para isso que o médico esteja sensível e dispos to a entrar nessa seara É claro que estamos generalizando e nos refe rindo às situações mais frequentes Eventualmente ocorrem casos de pacientes cuja problemática emo cional é mais complexa e que não melhoram Ou ca sos em que o acesso ao emocional é mais difícil por parte dos próprios pacientes que geralmente o ne gam No primeiro caso se a relação médicopaciente foi vincada em termos de segurança e confiança o médico consegue êxito parcial reduzindo a demanda de exames e remédios e consegue encaminhar o pa ciente para um tratamento psicoterápico sem se des vencilhar dele No segundo caso e aqui se incluem os hipocondríacos graves que acreditam piamente ter um problema orgânico a solicitação do pacien te por procedimentos físicos é mais intensa o que obriga o médico a não desacreditando o sintoma não estruturar a doença Queremos dizer que o mé dico deve com paciência mas com firmeza esclare cer ao paciente sobre o mecanismo dos seus sintomas e limitar a solicitação de exames e a prescrição de remédios Não deverá contudo encaminhar tais pa cientes a qualquer tratamento psicoterápico sem que antes eles reconheçam o nexo emocional dos seus sintomas O perigo que corremos sempre que um pacien te nos traz uma queixa funcional é o de estrutu rarmos uma doença Este foi o termo utilizado por Balint 1975 nas suas brilhantes observações sobre a relação médicopaciente ao se referir à demanda física que nos oferece o paciente com sua queixa e à possibilidade de confirmarmos tal queixa com nosso procedimento Se pedirmos exames prescre vermos remédios muitas vezes específicos para dis túrbios cardiovasculares e atribuirmos algum rótulo diagnóstico estamos configurando para o paciente um problema qualquer de natureza orgânica que ele assume como responsável por seus sintomas es truturando desse modo sua doença Entendemos hoje que esse proceder tem sua ra zão no fato de que se o paciente usa a via somática como meio de expressão e de defesa é porque não está podendo utilizar outros meios Retirarlhe essa forma é em princípio algo que inconscientemente o assusta Por sua vez o médico ao deixar um pouco de lado a linguagem e o procedimento físico aban dona de um certo modo um caminho conhecido e envereda por um campo que não lhe é familiar Me lhor seria evitar o desconhecido Inconscientemente médico e paciente concordam Estabelecem pois um conluio como diz Balint no sentido de manter o encontro de ambos no terreno físico Os resultados imediatos obtidos com a conduta acima geralmente são satisfatórios O paciente me lhora e o médico se sente satisfeito O seguimento desse paciente não obstante revela o contrário As queixas retornam a necessidade de novos exames e novos remédios se acentua Receitas e pedidos são re petidos ou trocados e o ciclo vicioso se estabelece É neste momento que ocorrem os encaminhamentos a outros especialistas e eventualmente até a psicólo gos ou psiquiatras Mas sem que se tenha estabeleci da uma relação de confiança e de acolhimento entre médico e paciente este se sente incompreendido e rejeitado num certo sentido está sendo mesmo com o encaminhamento e frequentemente não consegue fazer vínculo com o especialista Por isso dissemos anteriormente que é fundamental que o médico ao encaminhar seu paciente a um psicoterapeuta não se desvencilhe dele e não o encaminhe sem antes esta belecer um vínculo de confiança e um nexo entre os sintomas físicos e sua vida emocional Aliás é curioso quando pensamos na maneira como nós médicos habitualmente lidamos com o emocional Parecemos reconhecer sua existência ao mesmo tempo que a negamos Dizemos ao pacien te que ele não tem nada negando o emocional mas prescrevemos tranquilizantes reconhecendo o emocional Dizemos que seu problema é emocional reconhecendoo mas prescrevemos medicamentos com ação orgânica negandoo Tal fato pareceria uma crítica e é num certo sentido mas é sobretu do uma observação uma constatação de uma atitude ambivalente que não é só do médico Também o pa ciente utiliza uma forma ambígua ou camuflada de se expressar Ele revela algo de maneira velada Ele fala por exemplo de uma dor interna ou subjetiva através de uma dor externa ou física Ele se queixa de falta de ar quando talvez lhe falte carinho Ora se o médico tem também dificuldade de contatar com o subjetivo afinal ele é uma pessoa humana cabelhe por outro lado procurar no exercício de sua profissão o aprimoramento técnico profissional que o habilite ao exercício de um diag nóstico mais etiológico e de uma terapêutica mais abrangente e mais específica Questionamos neste sentido o diagnóstico impreciso o uso inadequado de medicamentos de ação específica e sobretudo o uso indiscriminado de tranquilizantes que longe de resolver o problema do paciente apenas o poster ga dandolhe uma aparente sensação de bemestar Como dissemos no início deste trabalho a emoção exerce uma função sinalizadora Ela aponta para uma experiência vivida pelo indivíduo Chama sua aten ção para algo que está ocorrendo ou para ocorrer Mesmo a ansiedade que é uma sensação específica de perigo iminente e muitas vezes fantasiosa é um sinal de que algo não vai bem com aquele indivíduo Pode não se tratar de um perigo real mas tratase de Psicossomaticaindd 331 Psicossomaticaindd 331 05012010 121216 05012010 121216 332 Mello Filho Burd e cols um perigo vivido como real O uso de tranquilizante não vai desfazer a estrutura que gerou tal vivência Ela vai conti nuar agindo dinamicamente mantendo a necessidade de usar o tranquilizante como forma de atenuála E o tranquilizante acabará por se tornar um problema real face à necessidade de consumilo Mais sensato e apropriado será tentar identificar a causa da ansiedade usandoa como sinal e não como vilão Aliás é semelhante a desligarse o alarme de incêndio porque faz barulho ao invés de procurar o fogo do incêndio e aí combatêlo Poderseia argumentar que a ansiedade promo ve danos ao organismo Diríamos que na verdade o que provoca danos é a avaliação que o indivíduo faz da situação e que provoca um conjunto de reações da qual a ansiedade é apenas um sinal Se não atuarmos sobre o agente ameaçador eou sobre o sistema de avaliação do indivíduo não conseguiremos deter os efeitos desse agente ou dessa avaliação É evidente que em situações de intensa ansiedade ou em mo mentos que a mesma possa colocar em risco sua vida como num infarto agudo por exemplo a utilização do tranquilizante é útil e oportuna Referimonos ao uso abusivo generalizado a toda e qualquer situação de ansiedade O paciente que não tem nada merece ter um procedimento médico mais cuidadoso e mais compe tente Suas queixas têm uma razão de ser A iden tificação dessa razão é da competência do médico considerando que a queixa é física Resultados ime diatos de melhora não autorizam afirmar que o pro blema esteja resolvido O seguimento desses pacien tes habitualmente mostra que não está A utilização dos recursos diagnósticos e terapêuticos de maneira imprecisa e indiscriminada é muitas vezes procedi mento iatrogênico e como tal deve ser evitado A simples rotulação de problema emocional ou pro blema cardíaco não atinge o âmago do problema e contribui para a estruturação da doença A corre lação dos sintomas com suas causas habitualmente trazem melhoria consistente dos sintomas ao mesmo tempo em que propicia a redução do uso de exames e remédios potencialmente iatrogênicos Fazemos tal afirmação assentados no peso da experiência clínica cardiológica corroborada agora pela experiência psicoterapêutica com pacientes funcionais O CORONARIANO A doença coronariana é uma das mais comuns afecções do mundo moderno atingindo o primeiro lugar como causa de morte em vários paises inclusi ve no nosso As pesquisas têm demonstrado a multi fatoriedade da doença sendo grande a lista dos pos síveis fatores etiológicos ou fatores de risco Gus Fishmann e Medina 2002 Ciorlia e Godoy 2005 Alguns desses fatores são mais frequentemente refe ridos predisposição genética tabagismo hipertensão arterial elevação do colesterol sérico estresse vida sedentária obesidade diabetes mellitus A ordem de importância dos diversos agentes etiológicos da doença coronariana permanece im precisa Embora se admita com razoável evidência a participação de fatores constitucionais na gênese da doença nem sempre estão presentes Por outro lado é clara a necessidade de fatores ambientais para de sencadeála Mas se fica clara a influência de fatores ambientais mais difícil se torna determinar qual ou quais deles teria maior importância Estudos como o de Marins e Campos 1988 por exemplo enfati zam como principais fatores de risco a hipercoleste mia o tabagismo e a hipertensão arterial Segundo esses autores os três fatores associados elevam em oito vezes o risco da mesma Se considerarmos que alguns países como Es tados Unidos Japão Canadá Austrália e outros têm obtido redução dos índices de coronariopatia a partir de campanhas educacionais e programas de controle visando aos fatores referidos somos levados a con cluir que de fato colesterol pressão alta e cigarros aumentam sensivelmente o risco de doença corona riana Não obstante tais dados cerca de 50 segun do Eliot 1992 dos coronarianos não apresentam os clássicos fatores de risco Quais seriam os mecanis mos causadores da doença nesses pacientes Inúmeros estudos clínicos e experimentais têm correlacionado estresse à doença coronariana Loures et al 2002 Mesquita e Nóbrega 2005 Os possíveis mecanismos fisiopatológicos já foram discutidos no início deste capítulo A incidência de agentes estres santes envolvendo a sociedade moderna tem crescido em ritmo avassalador Vivemos a época da velocida de através de um fluxo cada vez maior de bens e de informações a serem consumidos em intervalos de tempo cada vez mais curtos A quantidade de es tresse é muito grande e uma das consequências seria o aumento da incidência de certas doenças dentre elas a coronariana Poderseia afirmar que a doença vem decaindo em alguns países apesar de o estresse continuar aumentando Poderíamos argumentar que a coronariopatia certamente é uma doença multifato rial engendrada pela soma de vários fatores e que o estresse seria um deles O combate intensivo a qual quer desses fatores trará resultados positivos e mais positivos serão os resultados quanto mais fatores pu derem ser atingidos Infelizmente a ação dos agentes estressantes e em consequência de todas as medidas destinadas ao seu combate é difícil de ser avaliada quantitati Psicossomaticaindd 332 Psicossomaticaindd 332 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 333 vamente o que não impede de sobre ela buscarmos alguma forma de compreensão e ação Assim é que os estudos sobre fatores psicossociais presentes na gêne se e evolução da doença coronária já atingem grande proporção e razoável confiabilidade A começar pela chamada personalidade tipo A descrita por Friedman e Rosenman 1959 e abordada em estudos como os de Freeman e Nixon 1987 BoothKewley e Friedman 1987 Reunanem e colaboradores 1987 e muitos outros Embora persistam algumas divergências quan to a determinadas características do tipo A um nú cleo dessa personalidade parece claro são indivíduos que procuram fazer mais e mais em menos tempo Am biciosos competitivos impacientes e que necessitam aparentar ser fortes Nos estudos que mostram corre lação da personalidade tipo A com a coronariopatia a competitividade a premência de tempo a necessidade de realizar mais e mais parecem agir de algum modo favorecendo a emergência da doença Poderíamos discutir se a personalidade tipo A é uma forma estrutural ou constitucional ou antes é um modo de ser aprendido ditado por circunstân cias e hábitos sociais De fato a época em que vi vemos é a era da velocidade e das mudanças Fazer mais e mais em menos tempo parece ser uma con tingência natural dessa aceleração social como bem descreve Toffler 1972 A sobrecarga de situações estressantes é a tônica nos ambientes urbanos onde haja grandes aglomerações confinamento excesso de ruídos insegurança social esta provocada por falta de informações adequadas ou proliferação de informações ameaçadoras excesso de competição e falta de oportunidade para todos falta de partici pação nos processos decisórios falta de divisão de tarefas e responsabilidades falta de solidariedade e de relacionamentos afetivos excesso de mudanças e falta de adaptação às novas situações Estudos de Groen 1971 1975 Stewart Wolf 1971 Cobb 1976 dentre outros têm enfatizado a importância do meio social da mudança social e dos suportes psicossociais como agentes capazes de influenciar a doença coronariana O meio social competitivo aglomerado poluído apressado e de baixa coesão grupal seria o caldo de cultura ideal para o desen volvimento da doença coronariana gerando além das tensões psicossociais inerentes estresse es tímulo ao sedentarismo ao tabagismo e aos erros alimentares que acabariam contribuindo para a ex tensão e gravidade da doença Ao nosso ver a perso nalidade tipo A é resultante de um somatório onde o nível de atividade constitucional exigências de realização provindas das primeiras experiências de vida e aceleração social ditada pela velocidade das mudanças sociais da comunicação e dos transportes e da produção de bens se complementam Ambiente competitivo responsabilidade pre mência de tempo instabilidade social e migração são alguns dos fatores agentes psicossociais mais frequentemente relacionados com doença coronaria na e sua ação básica parece se fazer no sentido de instigar o indivíduo a realizar cada vez mais e mais em cada vez menos tempo Esse fazer pode dizer respeito a trabalho propriamente dito mas também a realizações sociais adaptação a novas pessoas ou novos ambientes aquisição e manutenção de bens ou de status X possibilidade de gerar os recursos neces sários necessidade de trabalhar X grau de realização no referido trabalho A incongruência entre o querer e o fazer a defasagem entre aspiração e realização é que iria consumindo internamente o indivíduo e de terminando a doença Comportamentos sociais como fumar beber ingerir certos alimentos não praticar exercícios físicos facilmente são estimulados por um tipo de viver como o que acabamos de descrever O estado interno desse indivíduo é o de expectativa de ansiedade de tensão de frustração de irritabilidade e de depressão Claro que nem sempre de forma ex plícita ou revelada Fica fácil entender que determinadas situações ou estados de espírito sejam afinal os desencadea dores da crise com que habitualmente se instala a doença coronariana angina ou infarto Se o indi víduo vive à busca de realização ou de ganhos e o faz de maneira vital não estará psicologicamente preparado para as frustrações e perdas inevitáveis que a vida oferece Se organicamente for predisposto ou se em consequência desse estilo de vida estiver muito exposto aos fatores de risco provavelmente a resultante será a doença Por isso doença ou morte de familiares conflitos conjugais perda de emprego ou de prestigio insatisfação pessoal ou profissional são habitualmente fatores desencadeantes de crises coronarianas seja pelo acúmulo de estresse seja por instalarse dentro do indivíduo aquele sentimento de desilusão de desistência ou desesperança já des crito por vários autores como Schmale e Engels por exemplo Ele se sente derrotado e não consegue absorver a perda Acreditamos que o ritmo alucinante da vida de hoje a transitoriedade das coisas das pessoas e dos valores a valorização do material e do tecnológico o individualismo crescente contribuem para o sur gimento e manutenção de algumas doenças como a hipertensão arterial e a coronariopatia ao mesmo tempo que fazem emergir transtornos afetivos como ansiedade irritabilidade depressão ou transtornos sociais como a violência e a toxicomania Em síntese os coronarianos parecem depender de fatores constitucionais ou orgânicos a que se so mam os ambientais Os agentes psicossociais embora Psicossomaticaindd 333 Psicossomaticaindd 333 05012010 121216 05012010 121216 334 Mello Filho Burd e cols de difícil delimitação objetiva exercem sua ação po tencializando ou energizando os demais Finalmente assim como é difícil quantificar os agentes estressantes é difícil quantificar as medidas destinadas a combatêlos E é indubitável o cresci mento dessas medidas ou métodos Na área especí fica da psicologia multiplicamse as terapias compor tamentais e as psicoterapias das mais variadas linhas teóricas oferecendo ao indivíduo maiores e melhores recursos para lidar com o estresse Nesse sentido a medicina psicossomática vem prestando inestimável colaboração na medida em que ampliou a compreen são dos fenômenos que ligam o corpo ao psiquismo e desenvolveu técnicas que permitem ao indivíduo traduzir sua fala somática e substituir por outras formas de enfrentamento ou adaptação a velha primitiva maneira corporal No âmbito coletivo os suportes sociais tal como descritos por Sidney Cobb constituem outra forma de ação psicossocial capaz de minimizar os efeitos do estresse Segundo Cobb 1976 suporte social é toda estrutura grupal que propicia ao in divíduo sentirse amado e valorizado cuidado e protegido e membro de uma rede de interações e comunicações que funciona de maneira franca clara e solidária Os ambientes de trabalho bairro igreja clube família e serviços de saúde podem funcionar como suportes sociais Inúmeros trabalhos enfati zam os efeitos positivos dos suportes sociais como atenuadores de doença Cobb 1976 Groen 1975 Wolf 1971 Dressler 1983 Jalowiec e Powers 1982 Sleight 1982 Streayhorn 1980 McQueen e Celentano 1982 etc Ainda no que tange à influência da coesão gru pal e social como fator protetor de infarto Stewart Wolf 1971 narra um interessante trabalho desen volvido junto a uma comunidade ítaloamericana vin da de Roseto Val Fortore província de Foggia no sul da Itália e instalada em 1882 em Roseto Pensilvânia Fezse um levantamento retrospectivo e um acompa nhamento prospectivo durante 12 anos ao mesmo tempo em que foram estudadas duas comunidades próximas Nazareth e Bangor além de um grupo de pessoas oriundas de Roseto mas morando em cen tros urbanos e suburbanos próximos a Nova York e Filadélfia Observouse que a incidência de infarto em Roseto era significativamente menor que nessas outras comunidades inclusive nas procedentes de Roseto Os demais fatores de risco tiveram mais ou menos a mesma incidência havia até um pouco mais de obesidade em Roseto e sua dieta era relativamente alta em calorias incluindo gorduras animais Pou cos homens acima de 25 anos eram solteiros e não havia homossexualidade Havia a prática de tratar os doentes mentais em casa porém o número desses doentes era pequeno Sua estrutura social estudada por sociólogos que lá conviveram durante três anos era coesa e mutuamente solidária com forte estru tura familiar e laços comunitários O interesse pelos vizinhos era grande não havendo por isso pobreza e crime A família era o centro da vida Crianças e adolescentes ligavamse primariamente aos parentes mais do que a grupos de esporte ou outros tipos de grupos Os homens eram indiscutivelmente os cabe ças de suas casas os mais velhos eram reverenciados e mantinham sua influência nas decisões familiares os problemas eram resolvidos por encontros reuniões familiares e cada pessoa assumia responsabilidades e se dispunha a fazer algum sacrifício Menos íntimos mas surpreendentemente intensos eram os laços en tre vizinhos da comunidade havia um brio cívico e muita disposição para ajuda global nos casos de ne cessidade inclusive a outras comunidades especial mente da Itália Parece a partir destes dados que o apoio emo cional oferecido pelos grupos de suporte social é fator de proteção contra o infarto agudo do miocárdio As intervenções psicoterápicas sobretudo grupais reu nindo coronarianos podem se constituir em excelen tes suportes sociais para esses pacientes Outro aspecto importante a se considerar no es tudo dos fatores psicossociais relacionados à doença coronariana é o modo pelo qual o coronariano vive a doença E esse modo que é variável de pessoa para pessoa emerge invariavelmente de um sentimento básico ameaça de perder Perder a vida os familia res o poder social ou econômico gera no indivíduo ansiedade medo culpa ou raiva conforme sua pró pria história de vida Diante de tais sentimentos o coronariano assumirá posturas características como negar a doença tornarse irritadiço e agressivo de primirse desenvolver queixas hipocondríacas ou aceitar e enfrentar sua doença É possível até que a mesma pessoa apresente em momentos diferentes posturas diferentes Ressaltese que tais sentimentos ocorrem não só com o paciente mas com seus fami liares também Por tudo isso é desafiante a tarefa de se sugerir medidas gerais de cunho psicossocial que objetivem prevenir tratar ou reabilitar um coronariano Uma forma abrangente de prevenir a doença coronariana seria 1 Ampliar o nível de conscientização do indivíduo acerca de seu modus vivendi sobretudo no que diz respeito ao estabelecimento de metas realis ticamente alcançáveis à necessidade de estabele cer prioridades de tal modo que possa fazer uma coisa de cada vez e à percepção de que certos há bitos de vida deterioram sua saúde Psicossomaticaindd 334 Psicossomaticaindd 334 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 335 2 Propiciar ao indivíduo no ambiente de casa do trabalho da escola e dos serviços de saúde su portes sociais que o façam sentirse amado e va lorizado cuidado e protegido e membro de uma rede de interações e comunicações que funcione de maneira franca e precisa Isto pode ser obtido por exemplo através de grupos de orientação e reflexão conduzidos dentro deste clima 3 Conscientizar o indivíduo acerca dos efeitos dele térios do estresse e propor métodos para reduzi lo 4 Estimulálo a ampliar seu autoconhecimento atra vés de técnicas psicoterápicas 5 Informálo sobre os fatores de risco da doença orientandoo e estimulandoo no sentido de com bater os referidos fatores bem como procurando identificar as situações que impeçam ou dificul tem a prática de hábitos comportamentais mais saudáveis No tocante ao tratamento do coronariano em suas diversas fases cabe além das medidas clínicas um adequado posicionamento do médico e da família do paciente e nesse sentido consideramos primor dial 1 A presença efetiva e afetiva do médico e da fa mília junto ao paciente Interessantes trabalhos citados por Cobb 1976 fazem menção aos re sultados obtidos no tratamento dos pacientes em unidades coronarianas e em residência mostran do que aqueles tratados em suas casas não dife riam em termos de complicações ou evolução daqueles tratados em unidades coronarianas 2 A necessidade de o médico e a família tomarem consciência dos anseios que envolvem o paciente com sua doença e desse modo compreender os mecanismos que o mesmo vem utilizando para li dar com ela 3 A necessidade de se manter o paciente adequa damente informado a respeito de sua enfermi dade dentro de uma atmosfera de expectativa otimista Vencidas as fases agudas da doença e penetran do na fase de reabilitação cabe conscientizar o pa ciente da oportunidade e da necessidade de assumir medidas preventivas bem como promover seu retor no às atividades habituais sejam pessoais profissio nais ou sociais Os recursos psicopedagógicos utilizados na pre venção no tratamento e na reabilitação do coronaria no variarão desde campanhas educativas através dos meios de divulgação ou através das escolas e locais de trabalho a grupos de orientação reflexão ou terapia desenvolvidos nas comunidades ou nas instituições de assistência médica eou psicológica A doença coronariana era tida como doença de rico Hoje as estatísticas apontam para maior inci dência da doença nas populações de mais baixo nível socioeconômico Será ela na verdade doença dos que aspiram mudar de nível Ou seria melhor cha mada de doença da velocidade e das mudanças De qualquer modo seu declínio em alguns países apon ta para a efetiva possibilidade de reverter seu rumo O ritmo alucinante de hoje não precisa necessaria mente nos dominar Basta que nos aprofundemos no conhecimento de suas consequências Segundo Arne Engstron 1971 os tantos esforços feitos no campo da pesquisa técnica podem ser feitos no campo da ciência social com o objetivo de propiciar nossa so brevivência num mundo melhor Engstron pergunta se não podemos dar à nossa ciência o rumo que pre tendemos A essa questão acrescentaríamos afinal que rumo pretendemos dar à nossa sociedade em geral e à nossa ciência em particular O HIPERTENSO O estágio atual do nosso conhecimento tem apontado a hipertensão arterial como uma doença multifatorial Ou ainda temna revelado como resul tante de um desequilíbrio no complexo conjunto de estruturas orgânicas responsáveis pela manutenção de um fluxo sanguíneo adequado às necessidades tissulares Das hipertensões arteriais 90 situamse nesse grupo Somente 10 constituemse de causas específicas de elevação arterial É interessante registrar que apesar de exausti vas pesquisas clínicas e experimentais não se encon trou ainda um denominador comum para a etiologia da hipertensão Nesse sentido Page 1982 desen volveu a teoria do mosaico que atribui à conjunção de vários fatores a regulação da pressão arterial São fatores fisiológicos que de maneira integrada se ar ticulam para o cumprimento de tão delicada tarefa Coração vasos e rins sob o comando e controle do sistema nervoso central interferem nessa regulação É importante salientar que tudo isso se deve à neces sidade que tem o organismo de manter sempre o flu xo sanguíneo adequado às suas demandas Demanda que varia de minuto a minuto e de região a região do corpo conforme influências ou solicitações internas e externas Portanto a regulação da pressão arterial é uma tarefa adaptativa Parati 2003 Este fato faz supor a importância do sistema nervoso central no processo de regulação da PA pois a ele compete não só coordenar o conjunto de órgãos Psicossomaticaindd 335 Psicossomaticaindd 335 05012010 121216 05012010 121216 336 Mello Filho Burd e cols e aparelhos que constituem o circuito fisiológico dessa regulação como processar as informações vin das do próprio organismo ou do ambiente que o cer ca com o objetivo de promover os ajustes ou adap tações necessárias A este circuito maior Hermann 1976 chamou de circuito situacional Mas afinal onde estaria localizado o defeito primário gerador da hipertensão Pesquisas Abboud 1982 Davidman e Opshal 1984 Myers 1982 têm apontado para um defeito genético da permeabilida de da membrana de algumas células como glóbulos brancos e vermelhos células tubulares renais células da musculatura lisa dos vasos e dos neurônios adre nérgicos que promoveriam maior retenção de sódio intracelular Outras pesquisas têm localizado esse defeito ge nético ora nos centros bulbares e hipotalâmicos ora nos pressoceptores no sistema nervoso simpático e suas terminações ou ainda no sistema vascular re nal Abboud 1982 Harrel 1980 Khosla et al 1979 Nakamoto et al 1984 Pesquisas mais recentes têm se voltado para o en dotélio como um dos fatores mais importantes no con trole do tônus vasomotor e em consequência como um dos fatores produtores de HA Amodeo 2003 Embora não se tenha ainda definido com exati dão o sítio primário de desregulação da pressão arte rial parece haver um distúrbio genético promovendo a hipertensão August 2004 Luft 2004 Gamba 2002 Tal fato é sugerido antes de mais nada pela incidência maior de HA em famílias de hipertensos Shapiro e Goldstein 1982 Segundo revisão feita por Herrmann e colaboradores 1976 a tendência here ditária parece estar presente em cerca de 45 a 75 de todos os pacientes Além do mais a disposição inata não parece ser suficiente para causar hipertensão já que sua incidência em gêmeos univitelinos é de 50 e em gêmeos bivitelinos da ordem de 23 Por outro lado a HA só se revela clinicamen te na maioria das vezes entre os 20 e os 40 anos de idade parecendo haver necessidade de um fator acumulativo que no decorrer dos anos torne a hi pertensão sustentada Haveria pois uma hipersen sibilidade constitucional do sistema mantenedor da pressão arterial que bombardeado constantemente por determinados fatores ambientais acabaria por sofrer alterações estruturais que sustentaria a PA ele vada essas alterações ocorreriam a nível dos presso ceptores e das anteríolas Na verdade dois fatores ambientais têm se des tacado nas pesquisas sobre HA a ingestão de sal e o estresse Determinadas comunidades que não inge rem sal não desenvolvem HA nem registram eleva ção da PA com a idade como ocorria com os índios Ianomani segundo pesquisa desenvolvida por Jairo Carvalho 1983 Muitas outras pesquisas enfatizam o papel do sal na gênese da HA Davidman e Opshal 1984 Nakamoto et al 1984 Shapiro e Goldstein 1982 Com relação ao estresse são muitas as pesqui sas em homens e animais que têm demonstrado a ele vação da PA diante de variados estímulos ambientais estressantes como podemos constatar nas excelentes revisões a respeito efetuadas por Shapiro e Goldstein 1982 e por Mann 1984 A influência do estresse na HA está de acordo com os estudos de Selye que a apontam como doença de adaptação Se a função da PA é manter um fluxo sanguíneo adequado às necessidades teciduais e se estas variam conforme as solicitações internas e ex ternas quer dizer que o organismo vive nesses mo mentos uma situação de estresse ou ameaça à sua integridade o que exige uma resposta adaptativa A elevação da pressão arterial faria parte dessa res posta Em condições fisiológicas cessada a ação do agente estressante cessaria a resposta hipertensiva Com o hipertenso observase não só uma intensidade maior da resposta hipertensiva mas também na sua duração acabando por se manterem permanente mente elevados os níveis tensionais do indivíduo Caberia então perguntar o que aumentaria a in tensidade e a duração das respostas hipertensivas A primeira condição seria a hipersensibilidade genética do sistema regulador da PA que face à presença de quantidades médias ou altas de sal eou de estresse responderia hipertensivamente A continuidade da ação desses fatores acabaria por perpetuar a HA Para alguns autores como Abboud 1982 e Harrel 1980 não haveria necessidade de qualquer predisposição orgânica bastando que houvesse uma ação intensa e continuada dos fatores ambientais sal e estresse determinando inicialmente redução da sensibilidade dos pressoceptores e posteriormente alterações na distensibilidade arterial e processo degenerativo dos próprios pressoceptores Enfocando agora os possíveis mecanismos ge radores de estresse constatamos que embora os estudos demonstrem correlação entre agentes estres santes de natureza psicossocial e HA tal correlação é variável de indivíduo para indivíduo o que corrobora a ideia de que haja por parte de cada indivíduo uma espécie de filtro seu sistema de avaliação através do qual as situações são vistas avaliadas e enfrentadas Isto implica em considerar como geradores de estres se não só as situações ou fatores ambientais mas a estrutura e os conflitos intrapsíquicos do indivíduo frutos da sua personalidade e história de vida As si tuações atuais são energizadas ou ampliadas pelo filtro ou lente que constitui o sistema de ava liação do indivíduo e através do qual ele enxerga Psicossomaticaindd 336 Psicossomaticaindd 336 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 337 sua existência De acordo com essa avaliação as cir cunstâncias atuais são julgadas como mais ou menos amea çadoras exigindo maior ou menor esforço de adaptação e ocasionando maior ou menor intensida de e duração das respostas adaptativas O mundo intrapsíquico pode portanto constituirse numa fon te de ameaças ou de tranquilização para o indivíduo face ao mundo que o rodeia Os primeiros estudos psicanalíticos sobre a HA ganharam destaque com Alexander 1948 ao des crever a personalidade hipertensiva Tais indivíduos manteriam um núcleo de hostilidade reprimida e dependência que os faria reagir hipertensivamente Subsequentes pesquisas aventaram outras hipóteses acerca de determinadas características psicológicas correlacionadas com a HA como alexitimia depres são passividade dependência e expectativas negati vas face às situações Para outros autores a HA seria decorrente da atualização de conflitos básicos da personalidade Reiser 1951 por exemplo obser vando pacientes em fase maligna ou acelerada de HA verificou que a época em que ocorrera a malig nização da HA coincidia com a acentuação do confli to básico ou nuclear desses indivíduos Pelo exposto concluímos que apesar da tentati va de se descrever uma personalidade hipertensiva ou mesmo de identificar determinadas características psicológicas que se correlacionem com a HA os re sultados não são confluentes Na verdade existiriam subgrupos de hipertensos com diferentes padrões comportamentais Tais padrões apontariam para núcleos conflitivos básicos e particulares para cada paciente A detecção de alexitimia hostilidade repri mida ansiedade etc não justificaria diretamente a HA mas revelaria a presença de um núcleo de ten são este sim desencadeante eou mantenedor dos elevados níveis de PA Tal núcleo seria estruturado a partir das primeiras experiências de vida e contendo os conflitos e as estratégias de enfrentamento básicas do indivíduo a que se somariam os conflitos atuais e os recursos de enfrentamento disponíveis Exem plificando se uma criança tem um relacionamento difícil com o pai autoritário e encontrou como meio de enfrentálo reagir somaticamente certamente em sua vida adulta e face a um chefe autoritário sua tendência será a de reagir somaticamente sobretudo se não dispor de outros recursos ao seu alcance Do ponto de vista clínico parecenos impor tante identificar o núcleo de tensão do hipertenso Tivemos ocasião de vivenciar em nossa experiência vários casos de hipertensos que obtiveram redução de suas cifras tensionais na medida em que puderam evidenciar o seu núcleo de tensão A probabilidade de falar e refletir sobre o mesmo buscando outras alternativas de enfrentamento que não a resposta hipertensiva foi suficiente para o controle tensional nesses casos Como toda doença multifatorial há de se considerar a influência relativa de cada um dos fatores que a compõem Sem dúvida em alguns pa cientes o núcleo de tensão é fator primordial Numa linha mais epidemiológica ou comporta mental a ênfase recai sobre os fatores psicossociais externos capazes de gerar estresse e HA Neste sentido Henry e colaboradores 1967 fizeram inte ressantes observações com ratos desde o nascimento em caixas com superpopulação Com o tempo surgia uma sociedade estável com ratos dominantes e seus rivais e ratos inferiores Os primeiros apresentavam os níveis tensionais mais elevados e a média dos ní veis tensionais dessa caixa era ligeiramente maior que a de outros grupos criados em caixa sem super população Ratos criados isoladamente desde o nas cimento exibiam os níveis tensionais mais baixos To davia quando colocados após algum tempo de vida dentro dessas caixas superpopulosas apresentavam elevação da PA que não desaparecia mesmo depois de serem retirados da caixa Henry e Cassel 1969 compararam investigações epidemiológicas de várias culturas e concluíram que a distribuição dos níveis tensionais dependia sobretudo de a sociedade ou grupo estudado ter uma firme tradi ção baseada numa estrutura social estável David DAtri e colaboradores 1981 estudaram prisioneiros tirados de celas individuais e colocados em dormitórios múltiplos Havia elevação da PA Se esses prisioneiros eram transferidos após curto es paço de tempo sua PA baixava Também se perma neciam mais tempo nos dormitórios a PA tendia a baixar por possível adaptação ao ambiente Carvalho e colaboradores 1984 encontraram níveis de PA maiores em grupos com maior repressão prisioneiros e soldados além da correlação positiva da HA com situações que exigem adaptação e estres se emocional subjetivo A urbanização sensulatu é tida como fator de elevação da PA na medida em que gera aglomeração pobreza crime desemprego e ruptura dos laços de coe são grupal A exposição continuada a esse ambien te urbano seria fator precipitante da HA com o decor rer da idade Groen 1971 1975 Lovely 1982 Groen faz uma excelente análise das socieda des modernas ocidentais mostrando em função das rápidas mudanças sociais ocorridas e da quebra dos valores tradicionais a ruptura dos laços grupais o aumento da competição e do individualismo e em consequência a elevação das taxas de doenças psi cossomáticas inclusive a HA Groen analisa também a influência da migração que ocasiona rompimento dos laços de origem e choques com os valores da nova sociedade onde se insere o migrante Psicossomaticaindd 337 Psicossomaticaindd 337 05012010 121216 05012010 121216 338 Mello Filho Burd e cols Outros fatores têm sido relacionados como ge radores de HA 1 nível baixo de renda e educação Sear 1982 2 desemprego Kasl e Cobb 1980 3 elevado número de horas de trabalho Ribeiro et al 1981 4 maior nível de responsabilidade Mann 1984 5 constante exposição a ruídos elevados Shapiro e Goldstein 1982 6 competitividade e interação social Baer et al 1979 Light 1981 Linden e Feuerstein 1981 Steptoe et al 1984 7 desajustes familiares Hafner 1983 8 situações de perda e separação Mello Filho 1979 Os hipertensos parecem mostrar uma quantida de maior de eventos estressantes no decorrer de suas vidas Svensson e Theorell 1983 É claro também que qualquer tipo de estresse experimental ou am biental eleva a PA mas nos hipertensos essa eleva ção é mais intensa e prolongada O contexto da urbanização favorece o aumento da quantidade de situações estressantes além de pro mover ruptura dos laços sociais que oferecem apoio e suporte ao indivíduo funcionando como moderadores ou atenuadores dos efeitos estressantes A urbanização atua também provocando mudanças de hábitos físicos e sociais que contribuem para a elevação da PA Tudo isto por sua vez dependerá ainda da pre disposição genética do indivíduo a reagir hipertensi vamente e do seu sistema pessoal de avaliar e enfren tar as situações estressantes que é pessoal e inerente à sua história de vida ocasionando na interação com o ambiente núcleos de tensão que redundam em hi pertensão Em síntese a HA parece se dever a 1 hipersensibilidade orgânica 2 núcleo de tensão intrapsíquica 3 fatores estressantes ambientais O primeiro seria predisponente o segundo energizador e o terceiro desencadeante As características da sociedade de hoje indivi dualista e competitiva aglomerada nos centros urba nos sedentária e habituada à ingestão excessiva de sal calorias e álcool fariam da hipertensão arterial uma doença da civilização Qualquer abordagem do hipertenso que deixe de lado tais considerações tende a ser limitada e de resultados duvidosos Como limi tada será aquela que não levar em conta as influên cias intrapsíquicas a partir dos conflitos ou núcleos de tensão do indivíduo ou do seu modo peculiar de avaliar e enfrentar as situações Ênfase ainda deve ser dada à ruptura dos laços grupais reduzindo a in fluência moderadora dos suportes sociais Estudos sobre a adesão dos hipertensos ao tra tamento desenvolvidos a partir da década de 1960 revelaram um elevado índice desses pacientes sem qualquer tratamento em tratamento irregular ou sem obter controle dos níveis tensionais Kass 1982 Cummings 1982 Lenfant 1984 Cerca de 50 dos hipertensos não sabiam ter pressão alta cerca de 50 dos que conheciam o diagnóstico não se tratavam e 50 dos que se tratavam não conseguiam controlar sua PA Isto resulta em apenas 8 dos hipertensos efetivamente controlados Dados mais recentes mos tram sobretudo graças aos programas de detecção e controle da hipertensão implantados em vários paí ses inclusive no Brasil uma crescente elevação des ses números seja no percentual dos que sabem ser hi pertensos até àqueles que estão com a PA controlada Todavia permanecem ainda elevados os percentuais daqueles efetivamente controlados Segundo Andra de e colaboradores 2002 dados epidemiológicos da população dos Estados Unidos mostram que apenas 27 dos hipertensos têm a pressão controlada Para Chobanian e colaboradores 2003 esse número che ga a 34 Uma série de fatores têm sido aventados como responsáveis por sua pequena adesão e abaixo rela cionamos alguns deles evolução assintomática da doença necessidade de tratamento continuado custo e efeitos colaterais dos remédios necessidade de fazer dieta desinformação em relação à doença dificuldade de obter cuidados médicos relação médicopaciente insatisfatória situações psicossociais estressantes falta de suportes sociais desmotivação baixa autoestima núcleos conflitivos não resolvidos utilização da doença com benefício ou forma de adaptação Considerando a alta incidência da doença em cerca de 10 a 20 da população adulta sua morta lidade e morbidade as doenças cardiovasculares re presentam em muitos países a maior causamortis e a pequena adesão ao tratamento registrada os Esta dos Unidos a partir de 1972 instituíram um progra ma nacional de controle e detecção da HA que após alguns anos de funcionamento revelou resultados promissores Assim o índice de acidentes vasculares cerebrais por exemplo reduziuse ao encontrado na população geral Hypertension Detection1982 O Psicossomaticaindd 338 Psicossomaticaindd 338 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 339 grau de adesão ao tratamento e de controle efetivo da PA modificouse conforme constatamos no qua dro abaixo Cummings 1982 1968 1978 Não sabiam ser hipertensos 51 20 Detectados mas não em tratamento 16 11 Em tratamento mas não controlados 24 51 Controlados 9 18 Num outro estudo Lenfant 1984 compara ramse os números obtidos em 197172 com os obti dos no período 197680 197172 197680 Sabem ser hipertensos 509 734 Tratamse 365 562 Tem a PA controlada 165 341 Desde então vêmse desenvolvendo programas de atendimento a hipertensos como estratégia para aumentar a adesão dos pacientes ao tratamento e desse modo obter efetivo controle dos níveis tensio nais e das complicações da doença A abordagem de pacientes hipertensos em grupo será objeto de outro capítulo deste livro Casos clínicos Primeiro caso clínico Uma mulher de 40 anos procuroume com queixa de dor precordial atípica Já fizera uma série de exames Uma radiografia de estômago e duodeno mostrara hérnia diafrag mática e o médico recomendoulhe procurar um cirurgião para operar Este se recusou a operála e disselhe a se nhora é uma presa fácil de médico da roça Ela ficou indig nada não aceitou o comentário e resolveu procurar um car diologista A dor era atípica Exame físico normal Disselhe que não estava encontrando qualquer evidência de proble ma orgânico mas que evidentemente havia alguma razão para sua dor Tentei averiguar a possibilidade de problemas sociais ou psicológicos que a estivessem deixando estressa da mas ela negou Disselhe então que não fizesse uso de qualquer medicação somente observasse as características da dor e após uma semana voltasse para nova consulta Ao retornar informou que a dor continuava sem grande inten sidade mas praticamente contínua de manhã à noite Após reexaminála reiterei a inexistência de problema orgânico e expliquei que situações conflitivas geradoras de tensão ha bitualmente se expressam corporalmente quase como uma forma de falar Insistiu que não havia qualquer problema com ela Disse que vivia muito bem financeiramente Seu marido era um empresário de sucesso e um ótimo marido Sem pre que saía perguntavalhe se precisava de alguma coisa e deixava dinheiro mais que suficiente para suas despesas Tratavaa muito bem presenteandoa com frequência Dis se que o marido saía muito cedo e voltava tarde geralmente muito cansado com as tantas atribuições que sua empresa proporcionava Comentei que talvez tivessem pouco tem po para conversar Ela concordou e revelou que apesar do marido tratála bem na verdade sentia falta de maior aten ção pessoal sentiase até certo ponto desvalorizada por ele que só dava atenção ao trabalho Perguntei se esse fato poderia de algum modo justificar sua dor Ela concordou alegando que não tinha como reclamar dele que trabalhava muito e não deixava faltar nada em casa Além disso eram poucas as oportunidades de efetivamente conversarem e talvez por isso o problema já se arrastava há algum tem po Percebi que naquele momento ela conseguira fazer um nexo entre seu sintoma e o fator que o gerava Sem que eu dissesse mais nada ela me perguntou se poderia trazer o marido para conversarmos juntos Embora surpreendido com aquela solicitação disselhe que sim O marido com pareceu à próxima consulta e eu lhe expus minha opinião Ele comentou que era bem provável sim porque também ele vinha se sentindo tenso e percebia que lhe faltava algo Justificouse com as responsabilidades que o trabalho lhe trazia mas afirmou que iria rever essa situação Cerca de 30 dias depois recebi um cartão postal do ca sal dizendo Estamos passeando A dor sumiu Três meses depois a paciente voltou ao consultório para contar que tiveram uma excelente conversa e que o marido reformulara seus afazeres A viagem servira para por os pingos nos iis A dor não voltara Comentários O caso ilustra o paciente funcional O uso do corpo como forma de expressão Cabenos en quanto médicos saber traduzir essa fala Ressalto a im portância de valorizar a queixa o paciente sente de fato alguma coisa e de se certificar através de atenta anamnese e exame físico da falta de elementos que justifiquem a ne cessidade de investigar um problema orgânico Segundo caso clínico Eu trabalhava como cardiologista de um hospital da rede pública Ela era enfermeira do mesmo hospital Pro curoume um dia para uma consulta pois era hipertensa e sua pressão estava sempre muito elevada Fazia uso de medicamentos em doses altas Alegava falta de tempo para se exercitar e reconhecia não seguir corretamente a dieta Embora não apresentasse ainda sinais de complicações de correntes da hipertensão frequentemente era atendida de urgência em função de crises hipertensivas Após algumas consultas esporádicas e como a pressão arterial PA não cedia propuslhe que fizéssemos uma con sulta semanal dada a facilidade que tínhamos por trabalhar no mesmo hospital embora em setores diferentes Meu objetivo disselhe era acompanhar as variações da PA mas também poder investigar com ela sobre os possíveis fatores que poderiam estar mantendo aquela pressão tão elevada Aos poucos ela foi contando sua vida Disse que fora casada mas que se separara por iniciativa dela Como não tinha recursos financeiros deixou os dois filhos com o marido Este após algum tempo mudou de residência foi morar em outro estado levou os filhos e não comunicou a ela para onde iriam A paciente perdeu completamente o Psicossomaticaindd 339 Psicossomaticaindd 339 05012010 121216 05012010 121216 340 Mello Filho Burd e cols contato com os filhos Ficou extremamente angustiada com a situação sobretudo porque se culpava de têlos abando nado Foi nessa ocasião que sua PA começou a se elevar Cada vez que falava do assunto se emocionava e fomos per cebendo como esse fato a mobilizava Apesar de se sentir bem com as conversas fico mais aliviada a PA mantinha se elevada mesmo com altas doses de medicamentos No decorrer das nossas conversas a paciente começou a dizer que precisava descobrir o paradeiro dos filhos embora não tivesse qualquer pista a respeito Iniciou verdadeira pes quisa até que afinal localizouos e por telefone falou com eles Os filhos combinaram de vir ao Rio para vêla e as sim fizeram O encontro segundo ela fora emocionante A partir desse momento a PA foi cedendo Pudemos reduzir progressivamente a medicação até que ficasse apenas com um diurético A dieta e os exercícios físicos passaram a fazer parte do esquema terapêutico Durante o tempo que permaneci acompanhando a pa ciente cerca de cinco anos a PA não voltou a se elevar de modo significativo Comentários O caso mostra como mesmo em doen ças com componente orgânico precisamos estar atentos para os diversos fatores que contribuem para sua evolução e para seu tratamento A sustentação dos níveis elevados da pressão arterial daquela paciente estava num conflito inter no não resolvido Certamente era o mesmo conflito que a impedia de seguir rigorosamente o tratamento sobretu do a prática de exercícios físicos e de uma dieta adequada Procurar investigar com o paciente os possíveis fatores que estejam obstaculizando o tratamento é tão importante ou mais em determinada circunstâncias do que realizar uma bateria de exames E é função precípua do médico a quem cabe diagnosticar e prescrever REFERÊNCIAS Abboud FM 1982 The sympathetic system in hipertension Hypertension 4 3 208225 Alexander F French TM 1948 Studies in psychosomatic medi cine Ronald Press 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par tido como a indicar que este órgão é o centro das emoções Doenças cardiovasculares são a causa principal de mortalidade em todo o mundo tanto em países desenvolvidos quanto em países pobres ou em desen volvimento São responsáveis por aproximadamente 30 das mortes No estudo InterHeart fatores psi cossociais estão entre os seis grandes fatores de risco para infarto do miocárdio junto a alterações lipídi cas hipertensão arterial tabagismo diabete e exces so de peso Alterações emocionais foram descritas em as sociação com doença arterial coronária como pre cipitantes de infarto do miocárdio crises de angina e morte súbita e como precipitantes ou agravantes de hipertensão arterial Demonstrouse que isque mia aguda do mesmo grau pode ser precipitada tanto por teste de esforço convencional quanto por estresse psicológico de duração não superior a 5 mi nutos este estresse psicológico pode ser constituí do simplesmente de um pequeno discurso no qual o paciente é solicitado a discorrer sobre um assunto pessoal que lhe cause viva emoção ou mesmo cons trangimento Estudos recentes demonstram que estas intera ções emoçõescoração têm correspondentes bioquími cos bem definidos e que são medidas principalmente pelos sistemas simpático e parassimpático além de hormônios que integram funções cerebrais cardíacas e suprarrenais O coração é inervado por ramificações do sistema simpático e parassimpático Estimulações do simpático de modo geral excitam o coração au mentando a frequência cardíaca a força da contração e a pressão arterial Estimulações do parassimpático modulam estas respostas e têm direcionalmente um sentido oposto A cirurgia cardíaca é um grande evento na vida das pessoas E por bons motivos Primeiro porque sendo de fato um procedimento complexo e não fi siológico tanto pode preservar a vida e melhorála quanto extinguila do ponto de vista individual pou co importa que a grande maioria dos pacientes se saia bem para quem opera o coração é sempre tudo ou nada Em segundo lugar essa cirurgia simbolicamen te vai mexer com o centro da vida o templo dos sentimentos Ele voltará a ser o mesmo depois Por fim a partir da operação o paciente conviverá com sinais físicos da cirurgia sendo a cicatriz no peito o mais evidente Isto o distinguirá entre os outros seres humanos muitos a têm como um estigma de vulnera bilidade enquanto para outros representa um ato de coragem De qualquer modo representa uma marca indelével de um momento decisivo que se torna pú blico Nestes últimos anos tivemos oportunidade de acompanhar um grande número de pacientes entre adultos e crianças que se submeteram a cirurgia car díaca Observamos que a maioria apresenta alto nível de ansiedade e expectativa com relação à cirurgia dando origem a fantasias e medos ligados à morte à violação interior a superstições e a inseguranças que são elementos geradores de alterações emo cionais Às vezes não levar em conta esses fatores pode prejudicar ou mesmo comprometer a evolução pósoperatória Observamos também que as manifes tações psicológicas diferem conforme a faixa etária e a cardiopatia atingindo o paciente e sua família Neste capítulo analisaremos várias facetas do impac to emocional da cirurgia cardíaca sobre os pacientes visando especificamente a caracterizar tipos de com portamento humano procurando oferecer sugestões de atitudes médicas eou psicológicas que possam orientar o tratamento 24 O IMPACTO EMOCIONAL DA CIRURGIA CARDÍACA Maria de Fátima Praça de Oliveira Protásio Lemos da Luz Psicossomaticaindd 343 Psicossomaticaindd 343 05012010 121216 05012010 121216 344 Mello Filho Burd e cols ASPECTOS PSICOLÓGICOS NA CIRURGIA DAS CARDIOPATIAS CONGÊNITAS Os problemas emocionais nas cardiopatias con gênitas remontam à fase da gestação e envolvem a conduta dos pais e demais familiares com relação à criança A expectativa da família durante o período de gravidez é muito alta A imagem que se cria da criança que vai nascer é sempre otimista Imagina se que terá olhos azuis ou pretos cabelos cacheados ou lisos que será fisicamente perfeita além de tão inteligente ou mais que as outras Quando a criança nasce os pais têm que adaptar a imagem idealizada à realidade e se ocorrer alguma malformação essa adaptação tornase mais difícil A frustração é inten sa associada à dificuldade compreensível de se lidar com o insólito problema Quando a malformação é no coração assusta muito mais devido à forte sim bologia do órgão considerado centro de vida ou de morte Nessa fase agressões mútuas entre os pais são comuns e representam a tentativa consciente ou não de diminuir o sentimento de culpa de cada um A busca de um culpado parece aliviar a dificuldade de entender o acontecido Na realidade esse sentimento de culpa é na grande maioria das vezes desprovido de fundamento A exceção corre por conta das raras ocasiões nas quais mesmo tendo ciência da proba bilidade genética de o casal ter um filho defeituoso os pais tenham decidido correr o risco e para seu infortúnio a genética tenha trabalhado contra eles Em outras situações a probabilidade de malformação é tão pequena que a culpa realmente não existe para nenhum dos pais é uma questão de absoluto acaso da natureza pelo qual ninguém pode ser culpado A rejeição é outro fato que pode ocorrer devido à atitude intrínseca dos pais baseada em uma frus tração pessoal de suas expectativas por injunções do ambiente familiar ou por pressões sociais O mais frequente é a rejeição do pai A mãe tende a aceitar melhor a criança doente como se a estreita depen dência materna durante a gestação e nas fases iniciais do crescimento se prolongasse naturalmente pela ocorrência do defeito cardíaco É frequente também que essas crianças sofram retardo no desenvolvimen to físico elas sentam e andam mais tarde Tal retardo pode ser de fato secundário ao prejuízo da função cardíaca causado pela doença básica mas também pode ser parcialmente causado pelo excesso de cuida dos por parte dos pais que proíbem a criança de exe cutar exercícios necessários ao seu desenvolvimento natural O desenvolvimento intelectual também pode ser prejudicado pois dependendo da cardiopatia ela necessita de diversas internações impedindo a frequ ência normal à escola Além disso é comum as car diopatias estarem associadas à síndrome de Down O reconhecimento desses fatos pelo médico eou psi cólogo é fundamental para o bom encaminhamento do caso O objetivo é dimensionar realisticamente o problema da criança compreender as inquietudes dos pais e orientálos para que ajam com equilíbrio sem descaso mas também sem superproteção Na hospitalização a criança fica geralmente separada dos pais o que a faz sentirse insegura e ansiosa Colaboram para isso o ambiente desconhecido a que terá de se adaptar a presença de pessoas estranhas como também os procedimentos terapêuticos ne cessários que muitas vezes são agressivos Por falta de informação adequada muitos pais escondem do filho que ele precisa ser operado Sem entender o que está se passando a criança pode imaginar que está sendo castigada por alguma coisa errada que fez A atuação do psicólogo é de grande valia nes sa fase na tentativa de diminuir a ansiedade dos pais e da criança Material lúdico como brinquedos kit médico play mobil médico pode auxiliar na amenização da fase hospitalar A informação médica dada aos pais deve ser completa e transmitida com clareza A linguagem simples simbólica às vezes é preferível a termos técnicos que não têm sentido para leigos Os pais precisam estar preparados para entender o quanto será importante a conduta deles para que o filho aceite o tratamento proposto cujos objetivos são a recuperação e felicidade da criança mas isso nem sempre é possível Outro aspecto que deve ser observado é o pósoperatório imediato na unidade de terapia intensiva UTI A UTI com seu aparato de instrumentos sons e luzes constantes presença de outros pacientes cateteres venosos ar teriais e vesicais intubação endotraqueal e procedi mentos necessariamente incômodos representa sem dúvida um ambiente gerador de grande ansiedade e medo Procurar tornar esse ambiente mais agradá vel permitindo que a criança tenha objetos de seu convívio pessoal além de brinquedos pode facilitar essa fase Admitir a entrada dos pais sempre que for necessário é conduta adotada em nosso serviço com bons resultados O reduzido tempo disponível entre a interna ção e a operação dificulta o trabalho de atuação do psicólogo diretamente com a criança O ideal seria que se fizesse o preparo da criança anteriormente à internação hospitalar e na presença dos pais A eles devem ser explicadas as principais etapas da interna ção e da operação assim como sobre a UTI para que possam transmitir essas informações ao filho Afinal a criança tem como maior referencial de proteção e segurança a presença dos pais É neles que ela acredi ta e na medida em que eles transmitirem confiança Psicossomaticaindd 344 Psicossomaticaindd 344 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 345 e tranquilidade ela não terá motivos para se sentir enganada ou abandonada no pósoperatório Quando a equipe médica não tiver a presença constante do psicólogo é recomendável que um de seus componentes converse com os pais procurando orientálos durante o período de internação Assim como a criança precisa sentirse segura com relação aos pais o mesmo ocorre com os pais em relação aos médicos que atendem seu filho ASPECTOS PSICOLÓGICOS DO PACIENTE ADULTO Indivíduos adultos são sujeitos a estresse emo cional de diversas ordens com consequências que po dem alterar profundamente sua qualidade de vida A cirurgia cardíaca é um poderoso fator estressante por diversas razões Na primeira fase de contato com o paciente procuramos saber quais as expectativas que ele tem com relação à cirurgia a que vai se submeter As entrevistas feitas demonstraram que independen temente do sexo idade condição socioeconômica ou mesmo da cardiopatia algumas preocupações ime diatas fantasias e medos estavam presentes na gran de maioria dos entrevistados Estas incluem Medo da morte Embora todos saibam que um dia vão morrer vi vese como se a morte fosse sempre um acontecimento distante Enfrentar uma situação real de possibilidade de morte pode representar um momento de angústia e insegurança Por motivos religiosos às vezes a mor te pode representar um julgamento da vida pregressa Há frequente questionamento sobre se haverá tempo para modificar erros cometidos no passado A asso ciação do dia da operação como data preestabelecida para morrer pode ocorrer por simples suposição indi vidual ou por estar ligada à morte de parente próxi mo nas mesmas circunstâncias Sentimentos de culpa arrependimento por coisas não feitas mesclados com a ansiedade de viver ocorrem nas diversas faixas etá rias A preocupação com a família passa a ter conota ções maiores e fantasias são criadas principalmente nos pacientes em torno dos 40 anos ao imaginar o desamparo em que vão deixála no caso de sua morte Embora muitos pacientes não admitam abertamente o medo de morrer este sentimento é muito comum A possibilidade da morte deve ser mencionada entre as possíveis consequências da cirurgia não para assustar o doente mas para tranquilizálo Felizmente a cirur gia cardíaca contemporânea é realizada com morta lidade muito baixa o que deve ser dito ao paciente Quando o risco é maior devese ainda mencionar que mesmo nessas circunstâncias as chances de sucesso justificam a operação Operar o coração Na maioria das vezes o paciente vê o coração na simbologia emocional que o envolve tornando mais difícil aceitálo como órgão doente e que precisa ser tratado É interessante salientar que esse medo não tem fundamento real na maioria dos casos visto que a cirurgia cardíaca pode ser feita hoje com grande se gurança e baixa mortalidade O progresso técnico re cente diminuiu a mortalidade a morbidade o tempo de internação e todo o desconforto associado ao pro cedimento como o tempo de intubação endotraqueal permanência na UTI etc Hoje operamse pessoas bem mais idosas do que há anos com grande sucesso A cirurgia cardíaca pode ser mais benigna que uma ope ração de pâncreas fígado pulmão ou certos cânceres No entanto predomina o simbolismo do coração É preciso então desmistificar esse procedimento Anestesia A anestesia geral é naturalmente mais que bem vinda ao mundo cirúrgico mas carrega um pequeno risco próprio Este risco é amplificado pela concep ção que a anestesia não oferece cura e não é doença e portanto não deveria também oferecer riscos Por outro lado acidentes cirúrgicos devidos a anestesia são amplamente divulgados na imprensa com cono tação depreciativa sobre a atuação médica Por fim o receio de não acordar mais além de saber que será manipulado sem que possa participar ou opinar con tribui para o temor do paciente Aqui também é preci so lembrar dos progressos recentes da anestesia com novos medicamentos e instrumentos que permitem mais segurança ao paciente ao mesmo tempo que di minuem o desconforto Por exemplo o uso de anesté sicos de ação mais curta que permitem a recuperação rápida da consciência e do controle respiratório e a monitorização cuidadosa de parâmetros respirató rios bem como a fisioterapia respiratória precoce que permitem reduzir substancialmente o tempo de intubação endotraqueal isso evidentemente alivia muito o desconforto decorrente da anestesia Unidade de Terapia Intensiva Nela predomina a imagem do isolamento e do desamparo como anteriormente mencionado A Psicossomaticaindd 345 Psicossomaticaindd 345 05012010 121216 05012010 121216 346 Mello Filho Burd e cols aceitação da UTI pelo paciente é facilitada quan do se explica que a UTI é o único meio de oferecer segurança suficiente no pósoperatório imediato e que a permanência lá será a mais rápida possível O período de UTI é talvez o mais difícil do processo Nele o paciente estará mais debilitado e dependen te Ele sai do sono anestésico tomando consciência gradativa de seu estado e sobretudo de si próprio Além de estar alterado em seu estado de consciência percebese amarrado ao leito ligado a sondas moni tores e drenos Este é um momento marcante vivido pelo paciente pois sente um alívio da tensão gerada pela ansiedade de enfrentar a cirurgia A vivência do processo de recuperação por vezes dolorido somado à queda de suas defesas desenvolvidas para suportar a ansiedade préoperatória pode acarretar no pós operatório quadros psicorreativos como depressão agitação e às vezes estados confusionais de origem psicossomática sobretudo em pacientes coronaria nos A depressão pode se manifestar por volta do 4º ou 5º dia de pósoperatório sendo ocasionada na maioria das vezes pelo estresse imposto pela hospita lização e rotinas de procedimentos O paciente tam bém pode ter alterações mais graves como quadros psicóticos exógenos ou mesmo psicoses relacionados à inadequada oxigenação cerebral Nesses casos há necessidade de intervenção tanto do médico quanto do psicólogo procurando trabalhar com o paciente na reorganização de suas vivências O trabalho do psicólogo junto à família enquanto o paciente está na UTI serve como ponto de referência para manter o vínculo familiar que foi quebrado quando o paciente deu entrada nessa unidade Dor A dor pósoperatória é um fato mas não deve ser superdimensionado Por exemplo hoje consegue se manter infusão venosa constante de analgésicos que são controlados pelo próprio paciente Isso dá ao doente a oportunidade de automedicação que mi tiga o sofrimento objetivamente além de oferecer ao paciente a sensação de estar com o domínio da situação Devese esclarecer que há grande variação in dividual quanto à tolerância à dor e que todos os esforços serão realizados para amenizála Devese também assegurar que a dor será passageira e que a equipe médica ficará atenta para combatêla O respeito à dor do paciente é de grande importância psicológica e deve ser cuidadosamente observado evitandose manipulações intempestivas medicações intramusculares ou venosas quando poderão ser da das por via oral etc Aumento da sensibilidade Crises de choro e períodos de profunda tristeza são comuns A operação representa uma fase de re flexão para a pessoa O período préoperatório forço samente oferece alguns dias ao paciente para pensar excetuadas naturalmente as cirurgias de emergência Muitos analisam a vida pregressa e se dão conta de situações que poderiam ter sido diferentes Alguns se entristecem porque não fizeram o que queriam outros porque gostariam de continuar fazendo o que sempre fizeram e apreciam É curioso que nes sa fase os pacientes estão abertos a todas as suges tões aceitam mudar dietas fazer exercícios tomar medicamentos deixar de fumar etc Esta disposição nem sempre se confirma quando o perigo da opera ção passou A emotividade continua muitas vezes no pósoperatório durante meses Casos de depressão exógena são comuns e o uso de antidepressivos de ação rápida é frequentemente indicado A melhor maneira de lidar com esta sensibili dade é admitila deixandoa manifestarse natural mente O doente coronariano A coronariopatia apresenta algumas caracterís ticas que contribuem para o aparecimento de alte rações psicológicas peculiares do paciente Seu iní cio é muitas vezes súbito e sendo em essência um processo metabólico crônico fará com que o paciente conviva com a doença por toda a vida embora com períodos variáveis de remissão dos sintomas O aco metimento de grupos etários progressivamente mais jovens é também outro aspecto preocupante nos úl timos anos Friedman e Rosenman 1959 classificaram os indivíduos em geral em dois grupos de compor tamento A e B Posteriormente observouse que há uma predisposição maior da doença coronária nos pacientes do grupo A e suas características dominan tes incluem competitividade exagerada necessidade constante de realizar coisas sempre no menor prazo de tempo possível e temperamento explosivo com tendência a agressividade Poderíamos citar outras características do paciente coronariano como inca pacidade de delegar aos outros autoridade e respon sabilidade controle rígido dos que o rodeiam e de si próprio incapacidade de aceitar angústia e con sequentemente racionalizar as emoções colocarse sempre em situações competitivas buscando êxito profissional eou social ficar parado descansar ou tirar férias angustia necessidade primordial de ser amado e elogiado pelos outros Os indivíduos do gru Psicossomaticaindd 346 Psicossomaticaindd 346 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 347 po A são geralmente perfeccionistas e as caracterís ticas aqui citadas demonstram a conduta obsessivas dessas pessoas Admitese que essas características de personalidade geram suficiente estresse emocional a ponto de contribuir para o surgimento da doença co ronária Por outro lado temse documentado que a depressão piora significativamente a evolução clínica de pacientes infartados e que essa influência é pro porcional ao grau de depressão segundo a escala de Beck No que diz respeito à cirurgia compete diferen ciar a eletiva da de urgência Na eletiva o paciente pode ser melhor preparado tanto do ponto de vis ta somático como psicológico e portanto o impacto emocional pode ser melhor absorvido Observase que a aceitação da cirurgia pelo paciente principalmente para o assintomático é muito dificil uma vez que ele não se sente doente A atuação do psicólogo é impor tante em ambos os casos procurando conscientizálo da importância da cirurgia e de seus benefícios pos teriores enfatizando que a decisão final com relação ao tratamento cirúrgico é do paciente A partir do momento em que se informa ao paciente a situação pela qual ele irá passar aumenta seu controle sobre ela e isso ajuda a diminuir a ansiedade Ressaltar os aspectos positivos da situação pode ajudar o paciente a avaliar os ganhos que terá depois de operado Isso resulta em um pósoperatório imediato menos estres sante tanto para o paciente e sua família quanto para a equipe que o assiste Quando se inicia o processo de recuperação o psicólogo deverá trabalhar o estado emocional do pa ciente para que ele possa reestruturarse e gradati vamente retomar a suas atividades Quando houver limitações apesar das cirurgias devese dar orienta ções adequadas ao paciente e sua família para evitar que ele se comporte ou seja tratado como um invá lido Dependendo das condições psicológicas dos pa cientes acompanhados no período de internação às vezes justificase a continuidade do tratamento psico lógico após alta hospitalar Preocupações a longo prazo Preocupações consideradas de longo prazo di zem respeito à qualidade de vida que os pacientes terão uma vez passada a cirurgia Estas incluem a ca pacidade para desempenhar trabalho Evidentemente isso é da maior relevância para indivíduos adultos chefes de família e líderes da comunidade Para mui tos esta última condição é tão ou mais importante que sua função familiar A volta ao trabalho natural mente é condicionada pelo estado do paciente no pré operatório e pelo resultado objetivo da cirurgia Por exemplo na cirurgia de revascularização miocárdica se o paciente for operado sem sofrer infarto e a ope ração for bemsucedida esperase recuperação física integral da função circulatória Por outro lado se o paciente for operado após infarto ou em insuficiência cardíaca a recuperação não será total No entanto ainda assim a cirurgia oferecerá vantagens Uma constatação frequente a este respeito é que muitos pacientes não comparam seu estado pósope ratório ao da doença no préoperatório e sim ao nor mal É preciso esclarecer o paciente a este respeito Determinadas limitações de qualidade de vida como por exempIo carregar peso ou praticar esportes com petitivos poderão ser necessárias no pósoperatório Prática de esportes As mesmas considerações mencionadas acima aplicamse aqui A prática de esportes deve ser indivi dualizada O importante é deixar claro que a cirurgia não é por si mesma empecilho à prática de esportes Em muitos casos como seja a correção de estenose aórtica ou de CIA a prática de esportes possível an tes da operação fica inteiramente liberada após a mesma Neste sentido o tempo em si se encarrega de demonstrar que a operação foi benéfica Isso terá grande importância também para crianças e adoles centes para os quais a prática de esportes é fonte de grande alegria Restrições alimentares e proibição do tabagismo Nos casos de cirurgias de coronárias as restri ções de gorduras e colesterol são mandatórias para o controle do processo arteriosclerótico que causa insuficiência coronária eou para controlar a obesi dade Casos especiais são representados pelos dia béticos nos quais o controle glicêmico correto é in dispensável implicando em dieta medicamentos e exercícios Para muitos pacientes estas restrições represen tam cargas emocionais consideráveis Na verdade a maior parte deles sentese tolhida em sua liberdade individual Temos notado que a informação hoje real que a progressão da doença coronária e mesmo sua regressão podem ser conseguidas no homem por me didas que reduzem os níveis de colesterol plasmático o que constitui grande incentivo para adesão dos pa cientes ao tratamento A restrição bebidas alcoólicas também é motivo constante de consultas Na grande maioria das vezes bebidas alcoólicas em quantidade moderada não são proibidas e sua liberação parcimo niosa é festejada pelos pacientes No caso específi Psicossomaticaindd 347 Psicossomaticaindd 347 05012010 121217 05012010 121217 348 Mello Filho Burd e cols co de vinho tinto existem fortes evidências de que o consumo do mesmo em quantidades moderadas é benéfico e portanto pode ser consentido A suspensão do tabagismo é classicamente uma empreitada difícil Porém a cirurgia cardíaca fun ciona como um estímulo muito forte talvez o mais forte de que se tem notícia Assim embora seja uma restrição a mais é relativamente bem aceita Uso crônico de medicamentos Em muitos casos é necessário o uso por tempo indeterminado após a cirurgia de medicamentos tais como digital diuréticos antianginosos A maioria dos pacientes não aceita isso facilmente Frequentemente contam o número de comprimidos ingeridos por dia Talvez isso os incomode tanto porque representa uma lembrança permanente de sua doença Uma maneira de lidar com o problema é observar que assim como o organismo sadio precisa de alimentos o tempo todo senão não se mantém vivo o doente operado pode precisar de remédios constantemente Outra maneira é dar uma visão positiva como ainda bem que eles existem tentando fazer com que seu uso seja incorporado à rotina de vida do pa ciente Aqui também a cirurgia quando permite a re dução de medicamentos funciona como estímulo Atividade sexual e reprodução Como é de se esperar as preocupações sobre atividades sexuais são comuns e importantes entre pacientes operados Nos homens a atividade sexual por si mesma pode ser o foco principal de preocupa ções Do ponto de vista médico quase nunca se deve proibir atividade sexual a não ser nas fases imediatas à cirurgia Quando tal atividade pode precipitar des compensação cardíaca como em insuficiência car díaca severa a própria depressão circulatória inibe a libido Em casos de angina precipitada por atividade sexual a cirurgia em geral alivia a dor e libera a ati vidade sexual Por outro lado o uso disseminado dos inibidores de fosfodiesterase como viagra e outros aumentou substancialmente a atividade sexual de pa cientes mais idosos melhorando a qualidade de vida Seu uso deve ser prescrito ressalvas contraindicações específicas Assim de modo geral a cirurgia cardíaca não é empecilho à vida sexual ativa muito ao contrário Isso é o que deve ser informado ao paciente No caso da mulher a capacidade reprodutiva deve ser aborda da A não ser em casos muito graves nada impede a gravidez e o parto normal após cirurgia cardíaca Reperações Sendo a cirurgia cardíaca uma operação compli cada dolorosa com riscos o ideal é que fosse defi nitiva Uma só e estaria tudo resolvido Infelizmente nem sempre é assim Cirurgias valvares congênitas ou coronárias eventualmente precisam ser repetidas É evidente que essa notícia tem grande impacto ne gativo nos pacientes Felizmente o número de reope rações não é tão grande em percentual Mas isso não interessa para quem vai ser reoperado para este é 100 A perspectiva que se deve oferecer é a de que sendo necessário o procedimento este pode ser re petido Mesmo que custoso ainda pode ser repetido com sucesso Não se devem ocultar do paciente possí veis reoperações Devese tentar fazêlo compreender que na luta pela recuperação da saúde mais de uma tentativa pode ser necessária Neste contexto deve se considerar que para muitos pacientes a repetição do estudo hemodinâmico é mais apavorante que a própria cirurgia Para outros a UTI amedronta mais Mas os problemas de reoperações devem ser tratados como eventos mais distantes que deverão ser enfren tados se e quando surgirem Nos doentes coronários é importante salientar que o controle da evolução da doença quando existem fatores de risco coronário como tabagismo e hipercolesterolemia depende em grande parte do próprio paciente Isso o estimula a cooperar no tratamento Integração psicólogomédico uma formulação baseada na prática A conduta dos profissionais de saúde diante de pacientes que se submetem à cirurgia cardíaca deve hoje considerar a grande disseminação dos conhe cimentos médicos na imprensa leiga e portanto o grau de informação dos pacientes Hoje praticamente tudo o que é descoberto aparece na mídia Os pró prios pacientes buscam na internet informações sobre suas doenças tratamento e mesmo o perfil dos seus médicos Isto em princípio é sadio Porém é preciso lembrar que a capacidade de filtrar separar o bom do ruim ou o verdadeiro do especulativo Além do mais o conhecimento muda rapidamente Nem sem pre promessas aparentemente bem fundamentadas se consolidam na prática Por exemplo recentemente stents coronários recobertos com medicamentos pa reciam ser uma grande solução porque diminuíam os Psicossomaticaindd 348 Psicossomaticaindd 348 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 349 índices de restenoses de lesões coronárias Bastaram poucos anos de observação e seu uso disseminado em populações do chamado mundo real para surgirem complicações até então insuspeitas e que resultaram em rápidas mudanças de conceitos Salientase isso para enfatizar a necessidade de os profissionais de saúde psicólogos e médicos estarem cientes dessas novas exigências de seus pacientes e tratálas com transparência e total honestidade Na fase hospitalar nosso trabalho MFPO tem executado sob a forma de dinâmica de grupo atendimento personalizado e no caso de crianças com orientação aos pais e a elas A eficiência do tra balho depende de algumas condições básicas noto riamente 1 Conhecimento dos problemas específicos do pa ciente e da operação a que irá se submeter O psicólogo precisa ter conhecimento adequado da cirurgia dos métodos diagnósticos e dos proce dimentos a serem empregados Tais informações técnicas o psicólogo poderá obter facilmente jun to à equipe médica 2 Devido ao curto espaço de tempo disponível de mais ou menos 10 dias de internação hospitalar procurar manter o paciente no aqui e agora da operação Isso contrasta nitidamente com a ati vidade habitual do psicólogo que tem tempo ili mitado para trabalhar os problemas crônicos dos pacientes 3 Nada disso é suficiente se não houver bom en trosamento do psicólogo com a equipe médica e de enfermagem À medida que a experiência for sendo acumulada parecenos conveniente ado tar algumas condutas até então pouco usáveis Isso incluiu a adoção de visitas regulares na UTI e orientação ao corpo de enfermagem no sentido de dar aos pacientes um tratamento mais huma no e carinhoso Em casos de pacientes crônicos na UTI permitese o uso de rádio e TV e refeições com uma pessoa da família sempre de comum acordo com a orientação médica e da enferma gem A orientação psicológica a longo prazo poderá ser necessária mas dependerá de avaliação conjunta do clínico e do psicólogo Por fim a apreciação obje tiva dos resultados desse tipo de conduta que valo riza os aspectos emocionais do cardiopata operado depende de estudos controlados Porém as respostas positivas que temos obtido apresentam tal consistên cia que sugerem ser esse procedimento justificado e que provavelmente deve ser mantido REFERÊNCIAS Aberastury A Teoria y técnica dei psicoanálisis de ninos Buenos Aires Paidós 1962 Bersier AL Bloch A Le rôle du psychiatre dans une Unité de Soins Intensifs Méd et Hyg Genebra n 34 p 160916101976 Becker RD Children in the hospital Israel Ann Psych Rei Discip v 14 n 3 p240265 Sept 1976 Cassem NH Hackett TP Psychological aspects in myocardial in farction Med Clin N AmeI n 61 p 711721 1977 Friedman M Rosenman RH Association of specific over beha vior pattern with blood and cardiovascular findings 1 Amer Med Ass n 169 p 12861296 1959 Rozanski A Blumenthal JA Davidson KW Saab PG Kubzansky L The epimiology pathophysiology and management of psycho social risk factors in cardiac practice The emerging field of beha vioral cardiology J Am Coll Cardiol n 45 p 63751 2005 Mathews KA Gump BB Harris KF Haneuy TL Bareffot JC Hostile behaviors predict cardiovascular mortality among men enrolled in the Multiple risk Factor Intervention Trial Circulation n 109 p 6670 2004 The ENRICHD Investigators Effects of treating depression and low perceived social support on clinical events after a myocardial infarction the Enhancing Recoveru in coronary Heart Disease Pa tients ENRICHD randomized trial JAMA n 289 p 28 2003 Lesperance F FrasureSmith N Theroux P Irwin M the asso ciation between major depression and levels of soluble intercellu lar adhesion molecule 1 interleukin6 and Creactive protein in patients with recent acute coronary syndromes Am J Psychiatry n 161 p 2717 2004 Kivimaki M LeinoArjas P Luukkonen R Riihimaki H Vahte ra J Kirjonen J Work stress and risk of cardiovascular morta lity prospective 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364 p 93752 2004 Psicossomaticaindd 349 Psicossomaticaindd 349 05012010 121217 05012010 121217 O PACIENTE E SUAS EXPECTATIVAS Em um determinado momento da vida o indiví duo pode precisar de um cirurgião As circunstâncias em que o evento se dá são extremamente complexas e variáveis A partir de então todo um caleidoscópio de situações se desenvolve numa relação que é na maior parte das vezes forte próxima e temporária Pacientes com níveis elevados de comprometi mento da consciência só posteriormente se dão con ta da existência e extensão de atos cirúrgicos Essa tomada de conhecimento quando ocorre se desen volve em um processo complexo de entendimento reconstrução e adaptações às novas realidades im postas pela afecção causal e pela operação No primeiro contato o que o indivíduo vê e sen te muito depende das expectativas formadas pelas experiencias prévias das informações que recebeu e das fantasias que criou Já nos primeiros diálogos de aproximação e reconhecimento é importante que o cirurgião fique atento para o significado da doen ça e do tratamento para seu cliente e pessoas que o cercam Enquanto são recolhidas informações sobre a enfermidade e o paciente vai sendo examinado a atenção deve estar voltada paralelamente para o uni verso emocional que o envolve A arte de observar sabendo que está sendo agudamente observado sem que isso perturbe seu desempenho é uma aptidão de que os médicos dispõem em quantidades variáveis e que deve ser desenvolvida O que significa para o paciente a proposta cirúr gica e o que ele espera do seu cirurgião é geralmente tarefa simples e facilmente colocada a descoberto No entanto em algumas situações isso se torna ao mes mo tempo difícil e fascinante Muita vez a doen ça ou a proposta cirúrgica sofre todo um processo paralelo de utilização consciente ou inconsciente A identifica ção destes fatos permite ao cirurgião prever contornar e entender atitudes tomadas no decurso do processo cirúrgico Embutidas na decisão de operarse pode mos encontrar formas de mobilização afetiva tipos de auto ou heteroagressão ou posturas francamente suicidas A necessidade do estado de doença pode chegar a níveis capazes de inviabilizar qualquer esforço terapêutico Esta utilização pode chegar a ser tão forte que a sua ausência obriga a valerse da operação como sucedâneo de apoio justificató rio ou reivindicatório A presença de múltiplas in cisões abdominais sendo algumas brancas isto é sem achados completamente convincentes deve fazer lembrar a possibilidade de estar ocorrendo a chamada síndrome de Münchhausen ou doença F fraudulenta Nessa entidade um comportamento psiconeurótico faz com que o paciente simule qua dros abdominais alarmantes induzindo indicações operatórias repetidas Apesar de tudo isso o cirur gião atento à atitude psicológica de seu doente deve lembrarse de uma elementar regra prática no tra to com o paciente pela qual toda queixa funcional deve ser considerada como orgânica até prova em contrário A experiência dos cirurgiões está ponti lhada de observações em que do excesso de certeza na atribuição de causa psicológica a uma queixa clí nica resultaram desastrosas consequências O padrão das relações entre o cirurgião e seu paciente é também decisivamente influenciado por fatores como experiências semelhantes vividas pelo cliente forma de encaminhamento e o impacto dos primeiros contatos com o cirurgião Na dependência de experiências prévias ele pode apresentarse inse guro da competência dedicação e seriedade do cirur gião o que torna por vezes difícil a reversão desta expectativa e a sua condução através do desafio da proposta cirúrgica Essa desconfiança pode manifes 25 O PACIENTE E SEU CIRURGIÃO Fernando Luiz Barroso Psicossomaticaindd 350 Psicossomaticaindd 350 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 351 tarse mais ou menos ostensivamente mais ou menos agressivamente e é causa frequente de um curso aci dentado no relacionamento durante a internação A firmeza e correção das atitudes iniciais são indispen sáveis na minimização dos problemas futuros Deve mos lembrar que em alguns casos a atitude agressiva e suspeitosa faz parte mais de um contexto de barga nha e possessividade do que de uma simples rejeição ou regressão A maioria entretanto parece neces sitar sobretudo uma postura solidária e atenta por parte da equipe médica e de identificar no cirurgião a competência esperada Uma das deformações mais comuns é a que procura ver o cirurgião como um ser onipotente e fantástico capaz de evitar o sofrimento e a morte Ceder à tentação de permitir o crescimento exagerado de sua própria imagem constitui um erro grave comum em profissionais despreparados técni ca afetiva e moralmente para o exercício da medi cina Por outro lado a transparência de indecisão e dúvida só é tolerada em doses muito pequenas sob pena de afetar grandemente a segurança do pacien te Em pacientes idosos é mais frequente observarse um exagero da dependência do médico gerada pela própria consciência de sua fragilidade orgânica A fi xação excessiva no cirurgião não é muito diferente da que ocorre com o médico em geral Talvez a cirurgia pela sua imagem agressiva e mágica se preste mais a este desvio da relação ideal Sua ocorrência com pacientes do sexo oposto gera situações complexas e constrangedoras que exigem equilíbrio firmeza e delicadeza por parte do profissional A existência e o grau de ansiedade e inseguran ça causadas pela expectativa de sofrimento morte mutilação e castração devem ser atentamente ob servados e investigados A criação de um clima que permita ao paciente dentro do seu próprio ritmo e força ir expondo ou deixando perceber seus temores abre espaço para que sejam esclarecidos seus proble mas e as propostas médicas na justa medida da sua capacidade e disposição de conhecêlos Ao observa dor atento fica claro em alguns pacientes quais os limites estabelecidos para o exercício da verdade A ultrapassagem desses limites só deve ocorrer por ra zões bastante consistentes Entretanto na ocorrência de eventos desfavoráveis deve ser sempre lembrado que o cirurgião não se encontra ao abrigo de críticas e cobranças A presença física do cirurgião com o tamanho das suas decisões e as fantasias construídas a seu re dor inibe parcial ou totalmente a comunicação ade quada sendo necessários toda uma atenção e traba lho voltados para que sejam criadas condições em que o paciente se permita mostrarse No desenvolvimento do processo de avaliação e condução psicológica do paciente a presença atual ou passada de anormalidades psiquiátricas ou desvios dos padrões aceitáveis da conduta ou da afetividade deve motivar uma atitude vigilante ou terapêutica sempre que possível com o concurso de profissionais especializados e experientes no trato com o doente cirúrgico Essa necessidade é maior quando a propos ta cirúrgica envolve mutilações desfiguramento ou seria impotência funcional As intervenções eletivas devem ser adiadas enquanto uma estabilidade emo cional compatível com a programação traçada não for alcançada Algumas vezes a anestesia desperta angústia maior do que a operação Em proporções va riáveis essa sensação parece ligarse à ideia de per da do controle ausência desligamento separação e morte Neste momento a visita do anestesista dando corpo a uma figura abstrata explicando entendendo e acalmando o paciente tem um enorme significado na redução da ansiedade e todas as suas consequên cias A utilização da presença e das informações pro porcionadas por outros profissionais há mais tempo envolvidos com o cliente é sempre de grande valor Esta transferência de conhecimentos e credibilidade deve sempre ser utilizada a favor da melhor condu ção do caso Assim como o primeiro contato com o seu me dico é um fator decisivo para todo o processo de rela cionamento posterior também o impacto inicial cau sado pelos demais componentes da equipe de saúde e pelo ambiente hospitalar é fundamental É usual ocorrer uma observação crítica inicial capaz de notar registrar e eventualmente ampliar toda e qualquer falha humana e material a ponto de comprometer uma proposta de tratamento já consentida Da mes ma forma o encontro de ambiente receptivo e soli dário eficiente nas providências iniciais e longe do contato com doentes graves e terminais condiciona uma atitude de cooperação nas diversas etapas do tratamento programado Até mesmo resultados abai xo da expectativa e iatrogenias são melhor entendi dos e assimilados Sob esse aspecto a medicina das instituições públicas no seu pouco entusiasmo pela conquista do paciente mais frequentemente resva la em um atendimento abaixo do desejável à pessoa doente O CIRURGIÃO SUAS PRECAUÇÕES E PROPOSTAS O exercício continuado de tomada da grandes decisões sobre a vida o sofrimento e a morte esti mula no médico o crescimento da sua onipotência Essa distorção depende muito do indivíduo que existe atrás do profissional do tipo de informação de que ele dispõe nesta área da permissividade do sistema e Psicossomaticaindd 351 Psicossomaticaindd 351 05012010 121217 05012010 121217 352 Mello Filho Burd e cols é provavelmente maior em certas especialidades O medo e a fragilidade do paciente são estímulos passi vos e ativos a essa anomalia Ela é a um tempo causa e consequência de graves erros do atendimento mé dico pessoal e institucional respondendo frequen temente por condições iatrogênicas e intervenções desnecessárias Sua atenuação e controle por certo depende de investimentos maiores na educação mé dica na elevação dos níveis de exigência sobre qua lificações humanas para o exercício da profissão em todas as frentes de trabalho Se a hipertrofia da imagem deve ser evitada sua deformação descaracterização ou apagamento constituem falhas igualmente graves A todo momen to no ato de conduzir ou esclarecer seu cliente o cirurgião usa consciente ou inconscientemente sua imagem e muitas vezes se descuida de nela fazer al guns investimentos A composição desta imagem não passa apenas pela ostentação da competência técnica e solidariedade pessoal inegavelmente as exigên cias maiores mas também pela atenção disponível apresentação pessoal linguagem etc Uma norma preliminar importante é a de que de uma maneira geral o paciente deve merecer a atenção dos primeiros momentos e não a doença Salvo nas situações de grande risco imediato as prio ridades do paciente também devem ser consideradas e não apenas as médicas Nas emergências de modo geral e principalmente no trauma a necessidade de informação a terceiros e outras providências de or dem pessoal não devem sob nenhum pretexto ser menos valorizadas Como já foi dito no primeiro contato a pessoa e sua doença são examinadas simultaneamente en quanto o médico também é agudamente observado Verdades muito traumatizantes devem ser adiadas até um melhor conhecimento da capacidade e disposição do paciente em absorvêlas e administrálas Geral mente o paciente sinaliza apontando o momento e a intensidade das verdades que deseja conhecer O cirurgião deve evitar anteciparse a estes sinais salvo quando providências maiores precisam ser tomadas e a cooperação informada tornase necessária Deve mos também sempre lembrar que o paciente lúcido é o único senhor das decisões finais tomadas sobre seu corpo e sua vida A Medicina moderna a todo momento conspi ra contra a relação médicopaciente ideal Cada vez mais o individuo é conduzido manipulado e invadi do por inúmeros representantes da equipe médica nem sempre homogênea nas atenções a sua sensibili dade e a suas emoções É importante que as pessoas lhe sejam apresentadas e seja explicada a programa ção da atenção medica que lhe vai ser dispensada A definição do responsável pela condução final do caso e dos responsáveis setoriais é uma providência mais ou menos exigida porém sempre desejável Também deve ser prestada informação sobre a sequência de eventos que vão ocorrer no pré e no pósoperatório num grau maior ou menor de detalhamento confor me o caso e a pessoa Isso é verdadeiro mesmo para pacientes mais simples e aparentemente conforma dos Muitas das reações indesejáveis do pósoperató rio são evitadas pelas informações e esclarecimentos prévios Ainda sobre as informações dadas ao pacien te cabe referir uma área delicada a das expectativas do tratamento e da operação a médio e longo prazos Deve ser cuidadosamente buscado o equilíbrio entre as razões e benefícios da intervenção proposta e os riscos e inconveniências nela embutidos A criação de uma expectativa fantasiosa buscando a mobilização ou conquista do paciente para sua proposta é muito frequentemente punida com a decepção a censura e a desconfiança permanente do paciente Atenção especial deve ser tomada com as altera ções do comportamento induzidas por drogas Qua dros de ansiedade euforia depressão ou outros fran camente psicóticos podem ser causados pelo uso ou pela supressão de inúmeros medicamentos ou tóxicos usados pelo paciente O álcool é em nosso meio in dubitavelmente a droga mais vezes responsável por quadros de supressão Ao crescer o número de indi víduos dependentes de drogas pesadas mais vezes o cirurgião vai se defrontando com o problema Entre os medicamentos tem relevo especial o corticoide capaz de causar diversos graus de euforia ansiedade depressão por supressão e psicoses maníacodepres sivas ou esquizofrenoides Drogas como diazepínicos barbitúricos anti concepcionais mais comumente e uma enorme lista eventualmente podem responder por atitudes ines peradas no indivíduo em vias de ser operado ou após sua operação DEPOIS DA OPERAÇÃO A prática correta da Medicina exige a utilização de técnicas modernas capazes de minimizar os sofri mentos que acompanham o despertar da anestesia o aguardar a cicatrização das feridas bem como supe rar as complicações A busca do conforto do paciente no pósoperatório imediato não deve ser encarada apenas como um exercício de relações humanas mas também senão sobretudo de técnica O paciente com a ansiedade e a dor sob controle apresenta evidências claras de melhor desempenho cardiovascular e respi ratório com todas as suas demais implicações A prá tica de esperar pela dor para tratála é descabida em situações em que ela está sabidamente presente e os Psicossomaticaindd 352 Psicossomaticaindd 352 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 353 inconvenientes da analgesia são pequenos A subva lorização da ansiedade e a utilização insuficiente de analgésicos são erros comuns nestas circunstâncias Sem isso fica prejudicada a cooperação do paciente na tosse voluntária nos exercícios respiratórios na redução da deglutição de ar no restabelecimento da micção espontânea e demais cuidados necessários à sua recuperação Poucas vezes ressaltada adequadamente a iden tificação de pessoas amigas e do médico assistente no despertar da anestesia tem um efeito positivo Nem sempre entretanto isso é possível Ora pela lentidão do processo de recuperação da consciência que difi culta a permanência do cirurgião ora pelas rotinas das instituições que em nome de um suposto melhor desempenho operacional valorizam menos estes as pectos Após o ato cirúrgico a palavra de tranquilida de e a informação bem dosada dadas pelo cirurgião são esperadas por todos os pacientes A atenção e a atitude solidária não são substituíveis por nenhum medicamento Um aspecto importante que deve ser sempre lembrado é a exteriorização inicial de complicações orgânicas por alterações do comportamento Isso é sobretudo frequente em pacientes idosos quando graus variáveis de disfunção cerebral se constituem na primeira manifestação de intercorrências como infecção insuficiência circulatória respiratória he pática ou renal No curso da recuperação de uma intervenção a presença do cirurgião é importante na medida em que o paciente o vê como o principal responsável e fiador pelos acontecimentos em curso Sobretudo diante de situações em que equipes multidisciplinares estão atuando é muito difícil para o enfermo entender a organização das múltiplas equipes suas atribuições e responsabilidades Sempre que possível o pacien te deve ser apresentado às novas pessoas e explica das as novas manipulações e invasões a que vai ser submetido Essa preocupação estimula a preservação da autoestima e da autodeterminação sempre muito agredidas nestas circunstâncias No momento de de cisões mais sérias ou da necessidade de providências diagnósticas ou terapêuticas maiores a presença do cirurgião é sempre esperada A aceitação maior ou menor da sua ausência muitas vezes inevitável de pende fundamentalmente da imagem de harmonia e entrosamento funcional de sua equipe Embora a alta hospitalar após uma operação cirúrgica seja essencialmente uma decisão do cirur gião responsável ela deve sempre que possível ser transformada numa decisão compartilhada pelo pa ciente O seu deslocamento do ambiente hospitalar para o ambiente doméstico por vezes traz uma sen sação de insegurança que deve ser minimizada pela transmissão da certeza de que haverá continuidade na assistência médica que vinha sendo prestada Faz se necessário um momento de discussão calma e programada em que todas as alternativas mereçam orientação adequada e sobre espaço para que o enfer mo seus acompanhantes e responsáveis apresentem suas dúvidas e temores O PACIENTE CIRÚRGICO COM DOENÇA MENTAL Se em indivíduos mentalmente normais a ro tura do bemestar somático causa ansiedade e inse gurança em diversos graus no paciente com doença mental a doença orgânica e o tratamento cirúrgico se apresentam como sobrecargas ameaçadoras à or ganização mental disponível Outras vezes a eclosão de quadros psiquiátricos representa manifestações sintomáticas de condições orgânicas subjacentes ou iatrogênicas conforme já mencionado Situações diferentes se apresentam ao cirur gião Alguns pacientes são portadores conhecidos de psicopatias e já dispõem de acompanhamento médico especializado É necessária neste momento a organização de um sistema de trabalho envolven do o médico o psicoterapeuta demais profissionais participantes do caso e os responsáveis pelo doente A orientação traçada deve ser construída em con junto e as reações observadas devem igualmente ser compartilhadas por todos O psicoterapeuta precisa de constantes esclarecimentos sobre a doença orgâ nica em curso para melhor planejar sua abordagem assim como é indispensável ao cirurgião o conheci mento do tipo de distúrbio sua evolução provável nível de cooperação esperado assim como sempre que possível quais os riscos de uma atitude auto mutiladora ou autodestrutiva Nunca é demais su blinhar a importância do acompanhamento diário dos pacientes cirúrgicos pela rapidez variedade e complexidade com que podem evoluir quadros or gânicos ou mentais Outras vezes anormalidades do comportamen to ou da afetividade são identificadas pelo cirurgião e são toleradas ou assimiladas pelo ambiente que cer ca o paciente Sabemos que essas anormalidades são prenúncios de dificuldades para a condução segura do processo terapêutico A existência no passado de tratamento psiquiátrico tem o mesmo significado Nesses casos na ausência de fatos novos que sejam grosseiramente anormais ou chocantes para os pa rentes ou responsáveis fica dificultada muitas vezes a mobilização de um psicoterapeuta O cirurgião deve estar preparado para estabelecer limites bem defini dos à sua transigência nessas circunstâncias Psicossomaticaindd 353 Psicossomaticaindd 353 05012010 121217 05012010 121217 354 Mello Filho Burd e cols O padrão usual de comportamento psíquico dian te das altemativas da doença e da terapêutica pode ser comprometido em qualquer fase do processo Muitas vezes o acompanhante ou a equipe de enfermagem ob servam alterações como pensamento confuso obser vações ilógicas alterações no humor e na afetividade alucinações auditivas ou visuais ilusões ou delírios com diversos graus de perda de contato com a reali dade e de modificações no comportamento Esses fa tos no paciente cirúrgico devem ser entendidos como uma complicação importante e até segunda avaliação como graves Atenção especial deve ser dada às altera ções que sugerem risco de danos ao próprio doente ou aos pacientes dos leitos vizinhos Já ouvimos histórias de terror causadas por um paciente que num surto psi cótico perambula pelas enfermarias à noite causando vários problemas aos demais enfermos Usualmente estes indivíduos já davam mostras de desorganização mental sem adequada atenção terapêutica e vigilância É fato notório a imprevisão crônica das nossas insti tuições para com a emergência psiquiátrica na grande maioria dos nossos hospitais gerais A possibilidade de tratarse de psicose orgânica induzida pela doença em curso ou por um dos re cursos terapêuticos em uso deve ser preliminarmente considerada investigada e se possível tratada Nem sempre é possível separála de um quadro mental pri mário que eclode precipitado pelas agressões a que a situação expõe o paciente Algumas síndromes são mais bem estudadas como aquelas que ocorrem no puerpério CTI cirurgia cardíaca mutilações e esto mas abdominais para citar apenas as mais comuns A maneira como estas entidades se apresentam segue padrões de que o cirurgião deve ter algum conheci mento No entanto não está ele preparado para fazer frente a situações mais complexas necessitando do apoio de equipes de saúde mental dentro dos hospi tais gerais integradas às demais especialidades ca pazes de desenvolver trabalhos de prevenção aten dimento interconsulta manipulação do ambiente avaliação e orientação das relações entre a equipe de saúde e os pacientes E inegável que o trabalho integrado do cirurgião com o psicoterapeuta resulta na melhor qualificação profissional de ambos Inúmeras situações não perce bidas por médicos e enfermeiras que por diversas ve zes e motivos encontramse pouco atentos à pessoa do paciente podem ser identificadas adequadamen te dimensionadas e orientadas por um grupo especia lizado atento Na medida em que essas experiências por contatos diretos ou discussões de grupo vão sen do passadas para os demais envolvidos no caso vão se criando uma linguagem e uma postura comuns A maioria dos cirurgiões não dispõe de instru ções básicas de como se comportar diante do surgi mento de uma emergência psiquiátrica na ausência de profissionais especializados Cabe a esses a atri buição de transferir conhecimentos e estabelecer cri térios para solicitação do parecer especializado Lin denmeyer e Kline 1979 definem situações em que a consulta especializada deve ser solicitada 1 Condição mental que significativamente interfere com o tratamento médico ou com procedimentos cirúrgicos 2 Pacientes com tendências suicidas ou homicidas 3 Quadros agudos psicóticos que oferecem proble mas sérios e variados aos demais pacientes e pes soal hospitalar em serviço Cabe também ao cirurgião preparar o pacien te sob sua responsabilidade para a consulta com o psicoterapeuta esclarecendo motivos reduzindo pre conceitos permitindo uma eficiente aproximação e atuação Antes da chegada do psicoterapeuta o cirurgião frequentemente tem que tomar providências terapêu ticas Cuidados iniciais de proteção ao paciente às pessoas e ao ambiente são mandatórios diante de des vios importantes do comportamento como agitação ansiedade e agressividade Deve ser empregado um mínimo de violência física no processo e ao fazêlo convém que se preparem previamente recursos hu manos capazes de desestimular a reação do paciente ou de contêlo sem machucálo Todo esforço deve ser realizado no sentido de estabelecer uma comuni cação razoavelmente lógica e firme O paciente deve ser tranquilizado de que nada o ameaça enquanto se pesquisam eventos orgânicos ou funcionais capazes de terem precipitado a crise atual Condições capazes de precipitar psicoses orgâ nicas devem ser imediatamente tratadas Devem ser avaliadas reações a drogas alterações gasometricas distúrbios hidreletrolíticos desnutrição acentuada anemia e condições que reduzem a perfusão cerebral Embora a insuficiência hepática renal e tireoidiana devam ser lembradas a causa mais frequente de psi cose orgânica no paciente hospitalizando ainda é a infecção O distúrbio mental é por vezes a primeira ou a única manifestação clínica relevante Outras condições como o uso de alucinógenos opiáceos álcool e anfetamínicos devem ser investigadas pelas consequências de seu uso e de sua supressão Pacien tes idosos são sobremaneira sensíveis a estes agentes apresentando precocemente diversos graus de disfun ção cerebral Diante de quadros ansiosos com agita ção importante e eventualmente quadros de auto ou heteroagressão podem ser empregadas drogas como diazepam iniciando com 25 mg IM ou IV e a seguir doses crescentes ou haloperidol 25 mg IM Psicossomaticaindd 354 Psicossomaticaindd 354 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 355 Quadros psicóticos funcionais podem ser inicial mente manejados com o mesmo esquema terapêuti co Em todas essas situações é mandatária a perma nente vigilância do paciente controlandose portas e janelas assim como objetos e drogas que possam ser usados como instrumentos de autoagressão A pre sença de assistência psiquiátrica deve ser imediata mente providenciada O cirurgião jovem acha fácil entender o paciente e difícil aprender a cirurgia Na medida que os anos passam a maturidade ensina que a cirurgia é certa mente muito mais fácil do que aprender a ajudar as pessoas que operamos REFERÊNCIAS Ferreira J R Barbosa H Amâncio A Problemas psicologicos em cirurgia In Controle clínico do paciente cirúrgico 3 ed Rio de Janeiro Atheneu 1969 Lindenmeyer JP Kline N S Emergencies in medical surgical Or obstetric patients who are severely ill In Schwartz G R Safar P Stone J H et al Principles and practice of emergency medicine Philadelphia Saunders 1979 p 1201 1979 Mello Filho J Concepção psicossomática da teoria à prática mé dica Tese de Coneurso à LivreDocência de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ Rio de Janeiro 1976 Musl H L Acute psychoses In Condon R E Nihus L M Manual of surgical therapeutics 6 ed Boston Little Brown 1985 Psicossomaticaindd 355 Psicossomaticaindd 355 05012010 121217 05012010 121217 A Cirurgia Plástica encerra uma finalidade trans cendente que é a tentativa da harmonização do cor po com o espírito da emoção com o racional visando a estabelecer um equilíbrio interno que permita ao paciente reencontrarse reestruturarse para que se sinta em harmonia com sua própria imagem e com o universo que o cerca A avaliação da arquitetura corporal além de envolver a análise minuciosa de cada estrutura e o equilíbrio global de seus elementos se complementa através de uma percepção lúdica do indivíduo e de seus anseios Cada raça possui seu próprio conceito de bele za que sofre mutações com as idiossincrasias e filo sofias de cada época E ainda dentro de uma mes ma raça cada ser humano tem seu próprio sentido de imagem conforme seu temperamento cultura e sensibilidade a determinar sua forma particular de perceber conceber de sentir o mundo de raciocinar e de julgar Mas que sentido de imagem seria este A ima gem por nós percebida ou a que a nossa empatia percebeu como o outro nos vê Porém qualquer que seja o tipo étnico o fator que universalisa a imagem corporal é a procura do bemestar íntimo é estar feliz com sua imagem O cirurgião sendo um escravo da forma e da anatomia muitas vezes se sente frustrado pois li dando com o ser humano o acrescentar e o tirar es tão mais sujeitos às leis do próprio corpo do que sua força criativa Além de enfrentar essas limitações de ordem anatômica o cirurgião encontrase diante de um ser que pensa que se interpreta e que escolhe seu Deus Como na análise do corpo políticosocial tam bém os estudiosos do indivíduo em seu complexo psicossomático buscam arrancar da natureza huma na alguns de seus segredos Como o pintor prepara sua tela suas tintas o escultor sua pedra devemos preparar o ser antes de nele intervirmos O corpo lú cido toma iniciativa incluise na decisão BELEZA A beleza é mais profunda que a superfície da forma Embora seja fácil reconhecêla na verdade conceituála é extremamente difícil Platão em Fedro já afirmava que só à beleza coube o privilégio de ser mais evidente e mais sen sível Considerase a beleza como a afirmação do en contro entre a alma e a natureza a afirmação da su premacia do bem aproximandose do ideal de que o belo é quase superior ao bom porque contém o bem em si mesmo A beleza como perfeição sensível nasce com a estética significando de um lado a representação sensível perfeita e de outro o prazer que acompa nha a atividade sensível O belo é o que agrada uni versalmente e sem conceitos formando como queria Kant uma trindade junto com o verdadeiro e o bem O que há de mais extraordinário e belo no com portamento humano é a sua diversidade e plurali dade estética A necessidade do belo foi sem dúvida percebida pelo primeiro homem Ao separar o dedo polegar o antropoide partiu da apreensão pura à de licadeza do gesto e a partir daí para a busca da be leza O ser humano nunca desejou ser diferente na medida em que essa diferença implicasse no distan ciamento do seu grupo Sua conceituação de beleza portanto esteve sempre mais ligada à semelhança com os seus pares Nas características pertinentes ao seu núcleo ele encontrava maior ou menor harmonia Esse sen tido de identidade dentro das diferentes etnias era mais fácil de ser conservado pois vivendo afastados uns dos outros tinham seus próprios padrões de bele za e os preservavam por falta de comparação Hoje quando os meios de comunicação promo vem a difusão da informação de maneira intensa e extensa mesmo populações assentadas nos mais er mos locais são atingidas em seus núcleos onde an 26 ASPECTOS FILOSÓFICOS E PSICOSSOCIAIS DA CIRURGIA PLÁSTICA Ivo Pitanguy Francisco Salgado Psicossomaticaindd 356 Psicossomaticaindd 356 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 357 tes eram guardados intactos seus conceitos próprios de vida E a informação porque excessiva infiltrase como um elemento de ruptura das estruturas concei tuais do grupo gerando sonhos impossíveis Tal fe nômeno cria no individuo o desejo de ser semelhante não mais ao seu próximo mais sim a este ou àquele grupo RAÇA Observandose que as chamadas diferenças ra ciais desempenham papel importante na determina ção das relações interpessoais e internacionais deve mos analisar o conceito de raça A palavra raça segundo Gobineau designa um grupo de pessoas que apresentam certo parentesco por seus caracteres físicos anatômicos ou fisiológicos ou por seus caracteres somáticos Tratase de um grupo es sencialmente natural não tendo nada em comum com as noções de povo nacionalidade língua e costumes mantendo suas origens em sua evolução histórica Evidentemente o conceito de raça não deveria ser aplicado a indivíduos em particular mas apenas a grupos populacionais Ademais ao se definir uma raça subentendese que os traços físicos considerados significativos devem ser tais que possam ser transmi tidos aos descendentes Aparentemente os caracteres considerados como índices raciais não são transmiti dos por um só gene mas pela combinação de consi derável número de genes o que dificulta ainda mais uma abordagem classificatória Os caucasianos representam juntamente com os bascos e os antigos etruscos o que resta da grande família étnica que ocupou a Europa antes do desen volvimento da grande família indoeuropeia indo iranianos armênios grecolatinos celtas germanos eslavos e bálticos Os caucasianos de modo geral têm pele clara lábios finos e nariz afilado Porém existem negros que apresentam as mesmas características labiais e nasais que os caucasianos Este fato levanos a questionar a existência de raças humanas puras Supõese que atualmente toda a população esteja muito miscigena da o que não particulariza as comunidades moder nas pois a mesma situação já era observada há mais de 2 mil anos Assim toda a pretensão à existência de grupos raciais puros é em suma incoerente Podese até mesmo considerar que no início da história da humanidade existiram linhagens puras que com o passar do tempo se fundiram produzin do as populações mistas hoje existentes Atualmente porém ao abordarmos as diferen ças étnicas referimonos a divisões gerais convencio nais Pouco se sabe a respeito da origem das raças humanas e menos ainda sobre o possível resultado de fusões raciais futuras Em nosso país Gilberto Freire acentua a na tureza interregional e transacional da formação do homem brasileiro contrastando com o caráter mono lítico de outros povos A coexistência de grupos raciais diferentes e a sua miscigenação não deveriam produzir nenhum conflito Entretanto os antagonismos existem e ge ralmente são devidos a diferenças socioeducacionais As diversidades culturais étnicas constituem um fe nômeno natural resultante das relações diretas ou indiretas entre as sociedades A atitude mais antiga e que se baseia em fundamentos psicológicos sólidos consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais morais religiosas sociais e estéticas opos tas às nossas Essa atitude pode abalar a autoconfian ça e a autoestima do indivíduo inabilitandoo a uma vida social equilibrada IMAGEM CORPORAL A imagem corporal é um componente importan te em todo o complexo do mecanismo de identidade pessoal De forma simplificada a imagem que uma pessoa tem de sim mesma é formada pela interrela ção entre três informações distintas a imagem idealizada ou aquela que se deseja ter a imagem representada pela impressão de tercei ros informações externas a imagem objetiva ou o que a pessoa vê olhando e sentindo seu próprio corpo Assim a luta pelo aprimoramento da própria imagem ou a manutenção de sua integridade é uma poderosa força de motivação Existem condições em que os pacientes apresen tam o que Aguirre em 1975 classifica como dismor fofobia ou seja uma síndrome psicopatológica que frequentemente conduz o portador a procurar um cirurgião plástico solicitando solução cirúrgica para um defeito que segundo ele próprio é o responsável por toda a sua desgraça Coube a Morselli em 1886 a primeira descrição desta situação Em 1903 Janet definiu o quadro como a obsessão da vergonha do corpo que seria uma forma patológica da consciên cia do corpo É importante o conhecimento destas condições para que se possam analisar os casos que enquadra vam na faixa da normalidade ou seja os pacientes que têm uma visão real e equilibrada de si e do mun do e que desejam apenas submeterse a uma cirurgia plástica com o objetivo de elaborar ou aprimorar sua Psicossomaticaindd 357 Psicossomaticaindd 357 05012010 121217 05012010 121217 358 Mello Filho Burd e cols imagem Dessa forma estariam procurando reforçar e melhorar o conceito íntimo de sua identidade pessoal É o caso das rinoplastias mamaplastias ou abdomino plastias além de cirurgias eminentemente reparadoras que proporcionam ao indivíduo uma nova força vital levandoo a uma melhor aceitação de si próprio Tagliacozzi em 1597 Roe em 1887 e Kolles em 1911 já haviam relatado grandes alterações psi cológicas em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos reparadores ou restauradores Observaram uma evidente reintegração destes pacientes com o seu mundo interior e com a sociedade Segundo Schacter em 1962 quando e se devi do a um acidente ou doença algo ocorre que destrói ou modifica qualquer parte do nosso corpo nós ne cessitamos reorganizar completamente a nossa pró pria imagem e enfim a concepção que fazemos de nós mesmos A Psicanálise exerce um papel fundamental no preparo e acompanhamento de pacientes portadores de deformidades congênitas ou adquiridas que neces sitam reestruturar ou resgatar sua imagem corporal Pick em 1948 publicou os resultados de um tra balho pioneiro que consistiu em corrigir deformidades em presidiários Sugeriu que tais cirurgias foram de grande auxílio na reabilitação de criminosos relatan do que as deformidades podem contribuir para a mar ginalização do indivíduo Masters em 1962 revelando fotografias de pessoas envolvidas em vários tipos de atos criminosos reportou a incidência significativa mente alta de alguns tipos de deformidades faciais Tornase clara a crescente importância da Ci rurgia Plástica mas é imprescindível que o cirurgião saiba distinguir os motivos que levam um paciente ao seu consultório antes de operálo Não se pode cor rer o risco de interpretações errôneas Muitas vezes o paciente transporta para uma parte do corpo co mumente a face o cerne de seus problemas emocio nais Operálo sem uma visão real do motivo de suas queixas poderá levar o paciente a eleger outra parte do corpo agravando seu quadro psíquico É aí que o cirurgião necessita da colaboração do psicólogo do psicanalista eou do psiquiatra objeti vando elaborar um parâmetro entre o que o paciente refere o que ele vê e o que sua experiência lhe en sinou A deformidade e o grupo social Segundo Eugene Meyer em 1957 para com preender a representação real da deformidade deve ser analisado atitude social e cultural atitude e reação familiares atitudes individuais e intrapsíquicas A deformidade afeta o comportamento do indi víduo e do grupo que por sua vez com o seu com portamento interfere profundamente no senso sub jetivo que o indivíduo tem da deformidade Tornase claro que é importante então avaliar de onde procede o paciente Além disso muitas vezes são produzi dos conceitos de beleza segundo a moda vigente Por outro lado enquanto pessoas de determinada cultura podem considerar as cicatrizes como uma mutilação grosseira para outras como por exemplo certas tri bos africanas elas representam sinal de status e mo tivo de grande orgulho Na história da humanidade há vários exemplos de repúdio à deformidade Em Esparta os recémnas cidos imperfeitos eram atirados num precipício Na Idade Média crianças portadoras de deformidades congênitas eram assassinadas por serem considera das filhas do demônio Meyer em 1943 estudando os povos árabes nômades observou um verdadeiro hor ror à deformidade resultando em isolamento social do indivíduo e até mesmo sua eliminação Na cultura ocidental há certos modelos de bele za dos quais de um modo ou de outro a maioria das pessoas procura se aproximar ou se enquadrar Neu mann em 1960 publicou um trabalho a respeito do elevado número de rinoplastias em Israel Os pacien tes não queriam sob hipótese alguma esconder sua origem renegar sua filiação racial e religiosa e se afas tar de seu meio social Apenas desejavam obter formas enquadráveis aos padrões de beleza da época Ser aceito pelo seu grupo e nele obter uma po sição de destaque é o objetivo da maioria das pessoas que tenta alcançar a chamada realização Para os portadores de deformidades físicas desde a infância uma adaptação social satisfatória depende muitas vezes mais do apoio e do afeto da família do que do próprio defeito MacGregor e Schaffner em 1950 relatam que a motivação dos pais e parentes frente a uma defor midade na infância pode moldar as próprias reações desta criança Se o cirurgião constatar que a motivação de uma cirurgia é primariamente conduzida por tercei ros terá uma base legítima para refutar a cirurgia ou em último caso adiála A CORRELAÇÃO ENTRE A CIRURGIA ESTÉTICA E A REPARADORA A luta constante do cirurgião no sentido de con ferir à Cirurgia Plástica merecida dignidade está re Psicossomaticaindd 358 Psicossomaticaindd 358 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 359 fletida na crescente correlação entre os aspectos esté ticos e reparadores da especialidade Basicamente a cirurgia estética objetiva melhorar a forma enquanto que a reparadora restaura a função e restaura a for ma O tratamento de uma lesão envolve implicita mente a procura de uma harmonia estética A dualidade estéticoreparadora está presente nas orelhas em abano no lábio leporino e em diver sas outras patologias Nesses casos o objetivo da ci rurgia é reparar a malformação congênita ou adquiri da proporcionando uma unidade estética Assim sendo a cirurgia estética e a cirurgia re paradora se complementam sendo difícil definir o limite entre elas Ambas almejam alcançar um equi líbrio entre a estrutura orgânica e o aspecto anímico do ser humano A FACE A face é a identificação do ser com o mundo Através dela expressamos nossas emoções Por outro lado muitos interpretam as características estruturais da face como indício da personalidade ou do caráter Os gregos antigos associavam certas feições a características da personalidade Um nariz largo in dicaria preguiça pontudo seria irrascibilidade arre dondado representaria orgulho e as narinas abertas um temperamento raivoso Olhos pequenos represen tariam uma alma pequena e a grande letargia Testa pequena seria sinal de burrice e queixo pequeno fal ta de determinação No século XVIII Johann Kasper Lavater preconi zou que certas características faciais correspondiam a traços de caráter Embora suas teorias tenham se de monstrado falsas percebemos que ainda hoje temos a tendência de julgar os outros pela fisionomia Uma universidade norteamericana fez há al guns anos um estudo com uma série de fotografias que foram mostradas a um grupo de estudantes para que avaliassem a personalidade dos retratados Duas delas eram de um mesmo homem A primei ra tirada antes de um acidente automobilístico e a outra no pósoperatório imediato Na segunda foto sua face apresentava cicatrizes Baseados na primei ra os estudantes o julgaram honesto trabalhador e provavelmente de nível universitário Já na segunda acharamno pouco confiáveis de baixo nível social e possivelmente envolvido em atividades criminosas Nos dias de hoje sendo as relações interpessoais muito efêmeras a primeira impressão física é muito importante Por hábito social arraigado os indivíduos costumam tratar os outros de maneira estereotipada de acordo com aquilo que consideram mais ou menos belo Julgar alguém pelo comportamento expressão gestos maneiras posturas e conversação terá muito mais valor do que julgar pela aparência Mas é inteiramente razoável predizer por exem plo que um garoto com orelhas proeminentes terá uma vida difícil devido ao seu desvio do normal e que este isolamento afetará sua personalidade e re tardará seu desenvolvimento principalmente numa sociedade em que há uma grande cobrança quanto à beleza e à juventude Para o cirurgião plástico a beleza tem um sen tido amplo ligado ao bemestar do indivíduo objeti vando tornar normal àquilo que não é e normal é o que não se nota O homem através dos tempos busca a juven tude e recordando Fausta a juventude se confunde com a arte e a beleza Porém a meta da cirurgia do envelhecimento facial não é a juventude eterna e o cirurgião não pode ser um Mefistófeles dando a Faus to uma poção mágica como no grande poema de Goe the O propósito da cirurgia do envelhecimento facial é permitir ao indivíduo nesta difícil transição entre a maturidade e a senilidade viver esta experiên cia de maneira ativa e em harmonia Os pacientes que aceitam com tranquilidade sua idade terão uma satis fação maior com o resultado da cirurgia A face inestética devido a defeitos congênitos ou adquiridos mesmo que superficiais impõe um sério handicap à pessoa atingida que frequentemente destrói sua felicidade e coloca em perigo sua chance de sobrevivência social e econômica O trauma de face na infância além de desfigu rar o paciente deixa graves sequelas com repercus sões estéticas funcionais e psicológicas A alteração do desenvolvimento facial leva a atrofias hipoplasias e desarmonia da face na idade adulta O aumento da violência nas grandes cidades e o maior número de acidentes de trânsito tem produ zido traumas cada vez mais graves especialmente na região facial O nariz por sua posição proeminente é uma das estruturas mais expostas a traumatismos Após o impacto podemos verificar nos indivídu os as seguintes alterações efeito imediato mudança abrupta da realidade visão irreal da deformidade fragmentação do ego necessidade de suporte psicológico eou psicote rápico Surge no indivíduo questões existenciais como por exemplo Quem serei agora Psicossomaticaindd 359 Psicossomaticaindd 359 05012010 121217 05012010 121217 360 Mello Filho Burd e cols Terei as mesmas oportunidades O paciente deve estar preparado para uma lenta consciência da possibilidade de recuperarse E nes te aspecto é fundamental a presença de uma equipe multidisciplinar composta por intensivista cirurgião plástico ortopedia psicologia psicoterapeuta e ou tras Muitas vezes é difícil a compreensão da recupe ração e do resultado final uma vez que as cicatrizes resultantes podem perpetuar os sentimentos de dor e de culpa Os admiráveis avanços da cirurgia crânioma xilofacial revolucionaram e ampliaram a Cirurgia Plástica através de metodologias inovadoras que possibilitaram a correção de várias anomalias faciais congênitas e adquiridas Por outro lado uma série de procedimentos cirúrgicos pode ser empregada de forma isolada ou combinada na modificação do contorno da face visando à harmonização dos vários segmentos faciais Mas não se altera simplesmente a face de um indivíduo pois as incisões vão além da superfície cutânea atingindo também a psique e acarretando às vezes mudanças súbitas e profundas no caráter e na personalidade Mas a questão fundamental desta mudança não se encontra apenas na reconstrução da imagem física Na realidade o retrato que cada pessoa faz de si ou seja sua autoimagem é o que constitui o verdadeiro cerne da individualidade e do seu comportamento Através da reconquista do respeito próprio e da au toconfiança o paciente promoverá o redimensiona mento do seu eu O nariz O nariz pela situação anatômica que ocupa e pelo conteúdo simbólico que recebe constitui o pon to central o verdadeiro fulcro da face Os romanos consideravam o comprimento do nariz como indicação de masculinidade e virilidade Quando observamos a anatomia nasal verificamos características similares entre o nariz e os órgãos ge nitais ambos inclusive apresentam tecido erétil A importância simbólica do nariz tem sido atri buída a diversos fatores inclusive alguns de natureza sexual Na Índia e no Egito há 3500 anos e na Ale manha durante a idade média uma pessoa acusada e condenada por adultério era punida com a amputa ção do nariz uma castração simbólica Uma aparente insatisfação quanto ao aspecto do nariz pode representar um refúgio de dificuldades ligadas ao relacionamento afetivo A excessiva impor tância atribuída a uma pequena deformidade muitas vezes sublima problemas de ordem de natureza aní mica No indivíduo bem equilibrado independente da faixa etária a correção de pequenas deformidades nasais além de melhorar a harmonia facial propor ciona ao paciente uma grande satisfação pessoal Nos mais idosos as modificações estruturais devem ser sutis sem romper a longa convivência do indivíduo com sua fisionomia A MAMA Ao longo dos séculos a mama tem sido a caracte rística principal da feminilidade O conceito de beleza em relação ao tamanho e à forma ideal mamária vem sofrendo mudanças ao longo dos tempos No final do século XX as mamas volumosas e figuras robustas foram substituídas por figuras esbeltas com mamas menores refletindo um conceito de harmonia corpo ral representado pela mulher saudável e esportista Hoje em dia entretanto verificase um aumento sig nificativo na procura por mamas volumosas através de próteses mamarias nem sempre condizentes com o contorno corporal A mulher tem uma consciência aguçada do seu corpo e consequentemente das imperfeições da mama As deformidades mamárias levam a um de sequilíbrio estético corporal e a possíveis alterações funcionais e psicológicas Portanto quando pacientes portadoras de alterações mamárias procuram o cirur gião plástico com o desejo de se submeter a uma ci rurgia não podemos interpretar o fato apenas como uma preocupação estética mas sobretudo como uma necessidade de suavizar o desconforto físico e recuperar a harmonia corporal As principais deformidades mamárias mais fre quentes são Hipomastia A correção da mama pouco desenvolvida pode representar um fator fundamental no restabeleci mento da satisfação íntima da mulher o que enfatiza o papel da mama como um órgão sensual Os avanços da cirurgia mamária levaram esses benefícios a inúmeras pacientes portadoras de hi pomastia com a inclusão de próteses cada vez mais similares com o tecido mamário e com poucas com plicações Psicossomaticaindd 360 Psicossomaticaindd 360 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 361 Hipertrofia mamária Em nosso meio a deformidade mamária mais comum é a hipertrofia mamária Normalmente a pa ciente que irá se submeter à mamaplastia redutora está preparada para este tipo de cirurgia No entanto existem casos que precisam de alguma psicoterapia coadjuvante e o cirurgião plástico deve estar apto a reconhecêlos Na indicação de uma mamaplastia redutora o cirurgião deve estar atento para o significado das mamas e da cirurgia de redução no conceito da paciente baseado nas vivências da infância e na maturidade de sua personalidade fenômeno intrapessoal o significado das mamas e da cirurgia de redução na visão dos pais marido amigos e pessoas pró ximas ou seja sob o aspecto social fenômeno interpessoal Para a criança a mama significa fonte de su primento busca do leite e posteriormente pelo processo de erotização transformase num objeto de desejo busca do seio A mama acumula portanto atenções cuidados e investimentos libidinosos Quando a paciente deseja uma mamaplastia re dutora está trazendo sua visão particular e a do mun do externo Para algumas mudar o aspecto mamário significa transformar os sentimentos negativos do mundo em que vive A sensação de ausência de um corpo normal desenvolve muitas vezes um complexo de inferioridade Hipertrofia mamária não é mais uma questão de vaidade feminina mas um sério problema de imagem corporal constituindose em uma lacuna na vida des sas mulheres Desta forma segundo Goin em 1977 o estado eufórico no pósoperatório pode às vezes ser extremo como se essas pacientes tivessem recu perado o seu eu Em nossa casuística de mamaplastia reduto ra observamos que cerca de um terço das pacientes apresentava no préoperatório conflitos psicológicos relativos à sua deformidade mamária Em 1985 realizamos uma pesquisa em 50 pa cientes que se submeteram a mamaplastia redutora no nosso Serviço de Cirurgia Plástica da 38ª Enferma ria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro Foram selecionadas para essa pesquisa aquelas que possuíam documentação fotográfica completa e com um período de pósoperatório não inferior a um ano Não se levou em consideração a faixa etária ou a épo ca de realização da cirurgia As pacientes foram en trevistadas individualmente por um cirurgião plástico e uma psicóloga A pesquisa teve caráter explorató rio sem nenhuma hipótese préestabelecida O obje tivo foi levantar algumas suposições que ao longo das 50 entrevistas pudemos observar De uma forma geral as pacientes mostraram se satisfeitas com o resultado cirúrgico Obviamente existiram casos de desagrado tanto pelo resultado ci rúrgico cicatrizes assimetrias quanto psicológico Em muitas mulheres o efeito psicológico da ci rurgia foi decisivo Algumas relataram que não conse guiam se olhar no espelho antes de serem operadas Outras se sentiram impulsionadas para uma nova vida sexual afetiva e profissional É como se através da mudança que obtiveram com a cirurgia tivessem resgatado a autoestima para muitas perdida Até onde pudemos analisar não houve neces sariamente uma correlação entre a satisfação ou in satisfação das pacientes com o sucesso da cirurgia Desta forma podemos considerar que o resultado es taria intimamente relacionado com as expectativas fantasias e desejos de cada pessoa O que se pode dizer é que o fator psicológico é de suma importância na aceitação ou não do resultado da cirurgia Deformidade mamária pósmastectomia Na mastectomia há uma grande agressão emo cional e física causando sofrimento à mulher que se sente mutilada e incompleta Não considerando o as pecto físico mas apenas o componente psicológico a ausência de uma ou de ambas as mamas é razão suficiente para a reconstrução A reconstrução da mama pósmastectomia susci tou dúvidas e ainda continua gerando incertezas não só em função de quais pacientes devam ser subme tidas à cirurgia mas também no que diz respeito ao momento ideal para intervir Há quem sustente que a reconstrução pode mascarar a evolução da neoplasia até mesmo nos casos de prognóstico mais favorável Hoje se constata que o fato de que a paciente possa estar condenada pela neoplasia o que não implicaria necessariamente que ela deva privarse de uma gra tificação proporcionada pela reconstrução Há ainda escolas que preconizam a reconstrução mamária si multaneamente à mastectomia nos casos de lesões de menor gravidade Acreditamos que não devemos seguir regras rí gidas para indicar a cirurgia da reconstrução mamá ria Cada caso deve ser avaliado cuidadosamente se gundo suas características locais oncológicas e pelos aspectos psicológicos da paciente Psicossomaticaindd 361 Psicossomaticaindd 361 05012010 121217 05012010 121217 362 Mello Filho Burd e cols Apesar disso nem todas as mulheres se subme tem à cirurgia Algumas ficam satisfeitas com o uso de próteses externas outras já necessitam recuperar o seu contorno corporal no sentido de estar mais adap tada ao seu relacionamento interpessoal e social Para o cirurgião especialmente o plástico a neomama estaria completa quando realmente pos suidora de todos os seus detalhes desde forma até aréola e mamilo Isto ocorre de forma natural nos casos de mastectomia simples quando o complexo areolomamilar permanece no local e uma inclusão de prótese restitui o volume mamário Em casos de mastectomia mais radical há pa cientes que ficam satisfeitas com a simples inclusão de uma prótese ainda que não tenham reconstruído a aréola e o mamilo ou realizado outros procedimen tos na mama contra lateral objetivando conseguir uma simetria adequada A simples presença do volume interno preenche seus anseios e as satisfaz plenamente mesmo que o cirurgião não concorde Outras mulheres já almejam a devolução da mama perdida e jamais estariam sa tisfeitas independentemente de qualquer resultado De modo geral são pessoas que não se satisfazem com qualquer cirurgia ainda que não relacionada com a sua deformidade Dificilmente seriam capazes de aceitar a realidade e com ela conviver ou apenas adaptarse à nova situação no sentido de melhorar sua autoestima É inegável o benefício psicológico e o bemestar proporcionado pela reconstrução mamária Acredita mos que a paciente tem o direito de escolher se deseja ou não usufruir desses benefícios uma vez informada sobre a evolução de sua patologia limitações e riscos dos procedimentos cirúrgicos reconstrutores ABDOME Quando existe uma discrepância entre o esque ma corporal e a imagem corporal estabelecese um desequilíbrio que não tem como causa única a mudança de aparência mas toda a estrutura desse indivíduo O abdome como sede de sistemas orgâni cos vitais como arcabouço de sustentação à atividade reprodutora é um fragmento de nossa história corpo ral e psíquica Na mulher sua segurança e identidade estão apoiadas na capacidade de procriar e atrair Senso seu corpo sua expressão é através dele que ela se afirma como um todo Mas é durante a maternidade que a mulher se perpetua e se modifica Mas a modificação do seu esquema corporal altera todas as suas funções e relações sendo o ca ráter materno muitas vezes deturpado frente a sua decadência estéticofísica E o que foi glória tornase razão de desespero e foco de culpa Na gravidez as alterações corporais ocasionam muitas vezes um desequilíbrio no relacionamento conjugal A atração sexual masculina pode diminuir ou mesmo desaparecer pela transformação do corpo de mulher em corpo de mãe As pacientes que procuram a abdominoplastia ou outras cirurgias para melhorar o seu contorno cor poral não estão apenas preocupadas com o aspecto estético mas sobretudo com o retorno de sua ima gem de mulher feminina e atraente O ENVELHECIMENTO O envelhecimento é um mecanismo do homem que compreende vários fenômenos físicos bioquími cos psicológicos culturais e antropológicos O equilí brio entre esses vários aspectos permite ao indivíduo viver esta experiência mantendo um bom relaciona mento com o seu ego e com a sua própria imagem Mas na realidade o envelhecimento é frequentemen te vivenciado com ansiedade A pele é um dos principais componentes da personalidade Juvenal Esteves A pele é todo um órgão sexual Sézary Essas duas frases sintetizam o efeito sobre o psiquismo humano que o envelheci mento cutâneo acarreta e explicam o comportamento das pessoas diante das suas consequências A maturidade do ego é um elemento indispensá vel para que esta fase da vida seja aceita com sereni dade Shakespeare afirmou que a maturidade é tudo Na realidade maturidade significa reforçar o próprio ego tornandoo mais resistente às frustrações e às di ficuldades que o ser humano deve inevitavelmente enfrentar A felicidade do homem está portanto no equilíbrio do próprio eu e a imagem ideal que faz do mundo e o mundo real a capacidade de transportar o mundo real para o seu próprio mundo interior sem que disso derive a amputação traumática da própria imagem Este equilíbrio muitas vezes é difícil de ser al cançado pois o Homem despreparado para o árduo trabalho de fortalecimento do ego é frequentemen te obrigado a conviver com um ego frustrado pela imagem ideal que lhe é imposta pelo ambiente cultu ral e debilitado pelas experiências sociais A Cirurgia Plástica é o instrumento que pode muitas vezes ajudar o indivíduo a se harmonizar consigo próprio reencontrando um melhor equilíbrio com o seu contexto ambiental É uma especialidade que frequentemente embasa o seu êxito na relação profunda entre o cirurgião e o paciente sendo indis pensável que o médico avalie se as necessidades da Psicossomaticaindd 362 Psicossomaticaindd 362 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 363 pessoa são compatíveis com o que a cirurgia possa vir a oferecer A RELAÇÃO MÉDICOPACIENTE Na Cirurgia Plástica mais do que em qualquer ramo da Medicina estamos expostos a pacientes com os mais variados distúrbios emocionais e frequen temente com uma ideia totalmente irreal de nossas possibilidades É fundamental portanto uma análise criteriosa dos casos avaliandose cuidadosamente se a cirurgia poderá trazer benefícios reais ao paciente A maioria das pessoas hoje aceita com tranqui lidade a necessidade de correção de deformidades congênitas ou adquiridas Entretanto ainda persiste certa dúvida quanto à importância da cirurgia esté tica sendo muitas vezes conceituada como cirurgia da beleza Focalizando este tópico Aufricht com muita propriedade disse O cirurgião plástico que lida com estas pessoas sabe que elas não se submetem à cirur gia por pura vaidade A vaidade seria um desejo de exceder outras pessoas No entanto os pacientes em sua grande maioria desejam justamente o contrário Querem passar despercebidos livrandose de carac terísticas pouco atraentes Aqueles que consideram seu nariz feio nem sempre necessitam melhorálo Porém por o acharem fora de proporções acabam desenvolvendo distúrbios psicológicos que irão influenciar não só sua expressão facial como também a maneira de falar e agir O desejo frisamos não é de ultrapassar é de igualar como tão bem salientou William Mayo na sua famosa frase mans divine right to look human Os avanços nas áreas da Psicologia e Psicanálise auxiliaram os portadores de deformidades que acaba vam se isolando e por conseguinte não procuravam tratamento cirúrgico Esses mesmos profissionais os encaminhavam aos Serviços de Cirurgia Plástica Nos casos de crianças portadoras de deformi dade a psiquiatria moderna aconselha à família não chamar atenção sobre o defeito o que levaria ao agravamento do componente psicológico dificultan do o tratamento O relacionamento médicopaciente se baseia em confiança e comunicação O médico deve procurar co nhecer em profundidade a personalidade do paciente e seu desenvolvimento sociocultural É fundamental que o paciente seja informado sobre as reais possibi lidades do tratamento indicado pois muitas vezes as expectativas do paciente excedem o que a Cirurgia Plástica pode oferecer Desejar um corpo harmonioso e sadio é normal Mas frequentemente se observa indivíduos portado res de deformidades mínimas que julgam ser respon sáveis por seus insucessos afetivos ou profissionais É necessário que com humanidade e paciência o ci rurgião procure averiguar os motivos reais que trans formaram uma pequena deformidade em um grande problema Evidentemente para uma melhor avaliação de cada caso é necessário contar com o auxílio de outros profissionais psicólogo psicanalista ou psiquiatra Nos casos em que verificamos que o indivíduo exacer ba uma pequena deformidade a cirurgia traria pouco benefício Por outro lado outros pacientes também portadores de pequenas deformidades percebem que estas deformidades apesar de mínimas interferem na sua autoconfiança e no seu desenvolvimento social Nestes casos quando bem selecionados a cirurgia pode trazer grande benefício Quando o cirurgião percebe que o paciente ne cessita de orientação psiquiátrica deve ter sensibili dade ao encaminhar o tratamento pois muitas vezes o paciente e a família não só não aceitam como ficam revoltados sobretudo contra o cirurgião A importância da avaliação de pacientes com comprometimento psiquiátrico é determinar se a pro cura da cirurgia ou a percepção de sua deformidade envolve pensamentos de resultados mágicos ou ilusó rios O paciente paranóico é particularmente propen so a estas características não devendo ser operado O diagnóstico psiquiátrico no entanto não pode ser usado isoladamente como indicação ou con traindicação para a cirurgia Pacientes psicóticos ou neuróticos dependendo de todos os componentes situacionais podem se beneficiar com o tratamento cirúrgico O préoperatório É evidente que a primeira pergunta que um ci rurgião plástico deve fazer a uma pessoa que o pro cura é por quê Geralmente nos casos de deformi dades congênitas ou adquiridas a motivação estará implícita e a anamnese deverá enfocar além dos as pectos gerais do paciente seu componente funcional e psicológico Nos casos em que se evidencia um com ponente fundamentalmente estético devemos obter o máximo de dados sobre o perfil comportamental do paciente Existem certas atitudes que devem ser registra das como reveladoras de possíveis problemas pós operatórios maneira vaga e pouco precisa com que o paciente se refere ao defeito mencionado ou excessiva ini bição Psicossomaticaindd 363 Psicossomaticaindd 363 05012010 121217 05012010 121217 364 Mello Filho Burd e cols pressa excessiva em operarse com irritação quanto à rotina préoperatória negando infor mações ao cirurgião hábitos motivo da cirurgia passado clínico ou cirúrgico etc obsessão e desconfiança questionando repetidas e minuciosas vezes quanto à técnica e ao resultado segredo excessivo exigindo confidência com re cusa de documentação fotográfica e rejeição dos cuidados pósoperatórios pelos assistentes resi dentes e pessoal de enfermagem indecisão excessiva supervalorização de pequenos defeitos tocando ou exibindo constantemente a área considerada feia tentando forçar o cirurgião a concordar com a sua opinião exigência de reprodução de um modelo previa mente escolhido geralmente artistas ou pessoas famosas determinação da técnica e procedimento que de verá ser adotado ou seja exigindo fiel cumpri mento das suas ordens aspirações irreais quanto a mudanças em sua vida profissional social afetiva etc dos quais se pode esperar mesmo com resultados excelentes volta para cirurgias subsequentes Para que seja delineado o problema do paciente devese considerar de início o tipo de cirurgia desejada a idade e o sexo a história médicocirúrgica o comportamento durante a entrevista o acesso do cirurgião ao estado psicológico do pa ciente Além dos itens que normalmente existem numa boa anamnese seria de fundamental importância incluir algumas perguntas que dariam condições de avaliar o componente psicológico do paciente que procura a Cirurgia Plástica Por que deseja operarse Desde quando teve a ideia Alguém influenciou Quando decidiu operarse Existem prejuízos funcionais profissionais ou so ciais Sabe o que a cirurgia pode oferecer Conhece algum resultado de Cirurgia Plástica Fez ou está fazendo psicoterapia Antecedentes hereditários existência de doenças mentais na família Antecedentes psiquiátricos Infância convulsões sonambulismo enurese no turna terror noturno traumas desenvolvimento escolar adaptação ao meio Adolescência vida sexual nervosismo fobias e medos hábitos adaptação ao meio Internações prévias clínicas cirúrgicas Fez algum procedimento prévio toxina botulí nica preenchimento facial enxerto de gordura etc Como reagiu às internações eou cirurgias O que espera objetivamente da cirurgia Uma vez constatada a existência de distúrbio psicológico ou psiquiátrico a situação que se apresen ta fica incluída em uma das seguintes alternativas Às vezes a cirurgia plástica desencadeia proble mas psicológicos Nem toda alteração psicológica contraindica a ci rurgia Às vezes a psicoterapia prévia prepara o paciente para o melhor resultado pósoperatório O psiquiatra Gifford 1984 analisando os aspe tos emocionais do paciente de Cirurgia Plástica cha ma a atenção para a dificuldade de reconhecer não o paciente psicótico mas sim aquele caso bordeline escondido predisposto ao resultado negativo O paciente de Cirurgia Plástica contrasta com o de Psicoterapia que recorre a métodos introspec tivos É o mental versus a ação é a ênfase sobre um aspecto físico como exteriorização de problemas internos O ato operatório Nenhuma cirurgia é infalível estando a Cirurgia Plástica como qualquer outra sujeita a uma série de complicações e acidentes que independem do cirur gião e estão ligadas a anestesia infecções cicatrizes hipertróficas etc O ideal da forma ambicionada e a capacidade circulatória de um retalho por vezes se antagonizam É necessária essa compreensão entre o cirurgião plástico e o paciente para que um resultado tecnicamente bom seja apreciado pelo seu justo valor Na realidade é ao cirurgião plástico que com pete a decisão sobre o que é melhor para o pacien te pois tem uma correta formação técnica e visão aprimorada da anatomia funcional e estética Mas os conceitos de ideal de belo e de oportuno variam de pessoa para pessoa Assim o cirurgião deve saber es colher e atuar de modo a preencher aquilo que seu conhecimento lhe ensinou ser o melhor mas respei Psicossomaticaindd 364 Psicossomaticaindd 364 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 365 tando e procurando avaliar corretamente as expecta tivas as motivações e os desejos do paciente Muitas vezes percebese que a simples corre ção do defeito referido pelo paciente não trará por si só grandes benefícios Sentese a necessidade de uma complementação com outra cirurgia por exem plo rinoplastia e mentoplastia Entretanto esta in dicação paralela que não foi referida pelo paciente deve ser feita com cautela e somente após saberse exatamente o que se pretende obter com a cirurgia O especialista não deve se abster de indicar um pro cedimento associado pois a meta é a procura dos melhores e mais completos resultados possíveis No entanto estas indicações podem ser a causa de pro blemas despertando o paciente para um defeito que não sabia existir Devemse levar em conta os possíveis erros de julgamento do cirurgião principalmente na aprecia ção crítica pósoperatória Muitas vezes ele é levado a estados de supervalorização de si próprio e excessiva autoconfiança que nem sempre correspondem à sua real capacitação Isso pode bloquear o relacionamen to ideal entre o médico e o paciente refletindose em tomadas de decisão sem a devida consideração do caso É o complexo de Pigmalião no qual o cirurgião artista repete o drama do estatuário e se apaixona cegamente por sua obra É levado a uma ideia de in falibilidade deixando de tomar consciência de que a sua escultura está sendo executada num ser huma no sob seus cuidados Assim o cirurgião plástico deve ter perfeita no ção crítica do seu paciente de seu plano cirúrgico e de sua própria pessoa cabendolhe a responsabilida de bem maior do que a programação e execução do ato operatório O pósoperatório Foi John Davis o primeiro a relacionar altera ções psicológicas após cirurgias plásticas São comuns e naturais as reações transitórias de ansiedade apreensão ou depressão no pósopera tório ocorrendo na grande maioria dos pacientes É fácil entender que pessoas com deformidade de longa data ou mesmo com deformidades congênitas ou ad quiridas quando se conscientizam da cirurgia estão arriscando uma mudança em sua identidade Geralmente estas reações ocorrem por volta do terceiro dia do pósoperatório e podem ser previstas cabendo ao cirurgião plástico detectar as reações consideradas normais stress e as que requerem cuidados especiais Aí estariam situações mais raras como grave ansiedade levando à despersonalização crises de arrependimento ideias de autodestruição crises de agressividade contra o cirurgião com gran de agitação e excitabilidade Da mesma forma reações de grande euforia manifestações de gratidão exagerada sugestões eró ticas devem ser percebidas com cautela pois o que se pretende é o pósoperatório tardio ou seja a pro cura de um resultado físico e psíquico duradouro Mayer em 1964 relatou que é entre os pacientes do sexo masculino que procuram a Cirurgia Plástica que se encontra a maior incidência de pacientes es quizoides e esquizofrênicos Eles esperam resultados irreais do ato cirúrgico Muitos tiveram dificuldade de relacionamento familiar ou desejam se libertar de quaisquer fatores que os identifiquem com o pai Conflitos ou desajustes sexuais e imaturidade no relacionamento com o meio social ou profissional podem levar o paciente a almejar uma cirurgia mira culosa Nestes casos mesmo o mais brilhante resul tado cirúrgico não trará mudanças efetivas na vida do paciente Logo violentas reações de desapontamento e decepção podem ser esperadas com manifestações obsessivas de procura de perfeição fixandose em mínimas cicatrizes ou imperfeições da cirurgia Outro fator a ser considerado no pósoperatório é que alguns pacientes podem ser influenciados pelo jul gamento de outras pessoas Por exemplo um paciente com um resultado considerado ótimo poderá perder sua atitude positiva ao ouvir um comentário ou uma observação de pouco elogio quanto ao resultado Goin e colaboradores em 1976 realizaram um estudo prospectivo de 20 pacientes do sexo femini no submetidas à ritidoplastia facial revelando haver motivos secretos às vezes inconscientes que as leva ram a procurar este tipo de procedimento Nenhuma delas apresentou qualquer distúrbio tanto no pré ou pósoperatório Dessas pacientes 60 confessaram que os motivos declarados na ava liação préoperatória eram na verdade insinceros mesmo quando tinham prometido honestidade A maioria não mentiu deliberadamente mas somente se deram conta do real motivo após a cirurgia Alguns destes motivos secretos foram medo de envelhecer problemas no casamento desejo de conquistar uma melhor posição profissional Nas pacientes cuja motivação não mudou constatouse desde o início a intenção de alterar o relacionamento com outras pessoas familiares ami gos etc Um achado curioso é que o alto número de motivações secretas não interferiu na satisfação de monstrada com o resultado da cirurgia mesmo quan do se tratava de motivação não realista Por exemplo uma paciente que no fundo visava a reconquistar o marido mesmo tendo sua ambição frustrada não Psicossomaticaindd 365 Psicossomaticaindd 365 05012010 121217 05012010 121217 366 Mello Filho Burd e cols apresentou diminuição do grau de satisfação com a cirurgia No entanto os autores ressaltam que todas essas pacientes não apresentavam desvios psicológi cos sérios caso contrário poderiam ocorrer descom pensações no pósoperatório CONSIDERAÇÕES FINAIS No momento em que o Homem descobriu o mundo e a si mesmo criou o seu próprio Deus e par tiu para a busca do conhecimento Nas últimas décadas ocorreram descobertas sur preendentes principalmente no campo da biologia celular e molecular que culminaram com o mapea mento genético humano através do Projeto Genoma A compreensão de cada gene em sua complexidade confirmaria a ideia de que todo o conhecimento mé dico está nas ciências experimentais Paralelamente a este progresso surgiram ques tões bioéticas como por exemplo Como controlar o acesso às informações contidas no código genético de cada indivíduo Quem será beneficiado pelas moda lidades de diagnóstico e terapia genética Uma estimulante nova fronteira para a Cirur gia Plástica já é uma realidade em outras especiali dades cirúrgicas a criação pelo Homem de tecidos e órgãos conhecidos como neoórgãos A pesquisa genética e a manipulação de fatores do crescimento permitirão a reorganização das células formando no vos tecidos Assim órgãos complexos serão totalmen te construídos O ser humano prossegue na incessante busca da eterna juventude e da imortalidade Compreender os processos biológicos do envelhecimento é um dos grandes desafios da Ciência A Engenharia Genética poderá retardar esse processo impedindo a degrada ção celular A descoberta e a manipulação dos genes do envelhecimento representarão finalmente a reali zação do sonho de Fausto de juventude eterna O Homem ao ingressar no terceiro milênio tem a sensação que o mundo gira cada vez mais rapida mente com os incríveis avanços da tecnologia e dos meios de comunicação Mesmo assim ele está redes cobrindo a importância de resgatar a autoestima o que reflete uma profunda certeza na importância de estar em harmonia consigo mesmo e com o admirá vel mundo novo AGRADECIMENTOS À Assessora Geral Sra Luzia Ghosn que cola borou na versão inicial e novamente na conclusão do livro Psicossomática Hoje Ao Dr Francisco Salgado Professorassistente da PUC e do Instituto Carlos Chagas que realizou efi caz revisão e atualização desta nova edição Professor Ivo Pitanguy Professor Titular de Cirurgia Plástica Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Instituto de PósGraduação Carlos Chagas Rio de Janeiro Visi ting Professor ISAPS Membro Titular da Academia Nacional de Medicina Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Patrono da Sociedade Brasi leira de Cirurgia Plástica FICS FACS Membro da Academia Brasileira de Letras REFERÊNCIAS Abt V et al The impact of mastectomy on sexual selfimage and behavior J Sex Educ Marital The v 4 n 2 p 45 1978 Aguirre J O Dismorfofobia y cirugia estetica Comunicação pes soal 1975 Byhan A La civilisatin caucasiene Paris Payot1936 Burgoyne R et al Intraoperative psychological reactions in face lift patients under local anesthesia Plastic Reconstr Surg n60 p 582 1977 Carlsen L Slatt B The naked face Ontario General 1979 Cash T et al Aesthetic surgery effects of rhinoplasty on the so cial perception of patients by others Plastic Reconstr Surg n 72 p 543 1983 Cline C J Psychological aspects of breast reduction surgery In Goldwyn R M Reduction mammaplasty Boston Little Brown 1984 Freyre G Homem cultura e trópico Inst Antrop Fac Méd Univ Recife Publ 1 1962 Gallian D M C A rehumanização da medicina Psiquiatria na Prática Médica Departamento de Psiquiatria UNIFESPEPM 04 de julho de 2001 Gifford S Cosmetic surgery and personality change a review and some clinical observations In Goldwyn R M The unfavora ble result in plastic surgery Boston Little Brown 1984 Gillies H Millard D R The principles and the art of plastic sur gery Boston Little Brown 1957 Gobineau J A Ensayo sobre la desigualdad de las razas humanas Barcelona Apolo 1937 Goin M K et al Facelift operation the patients secret motiva tions and reactions in informed consents Plastic Reconstr Surg n 58 p 273 1976 The psychic consequences of a reduction mammaplasty Plastic Reconstr Surg n 59 p 273 1977 Jacobson W E et al Psychiatric evaluation of male patients seeking cosmetic surgery Plastic Reconstr Surg n 26 p 356 1960 Mac Gregor F C Shaffner B Screening patients for nasal plas tic operations Some sociologic and psychiatric considerations Pychosomat Med n 12 p 277 1950 Maltz M New faces new futures New York Richard Smith 1936 Mead M La antropologia y el mundo conteporaneo Buenos Aires Siglo Viente 1973 Meyer E Edgerton M T Pychology of certain patients seeking plastic surgery Bull Johns Hopkins Hosp v 11 n 5 1957 Psicossomaticaindd 366 Psicossomaticaindd 366 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 367 Psychiatric aspects of plastic surgery In Converse J M Reconstrutive plastic surgery v 1 1964 Millot J Biologie des races humaines Paris Armand Colin 1952 Pennisi V R Timing of breast reconstrution after mastectomy Clin Plast Surg v 6 n 1 p 31 1979 Pitanguy I Cirurgia Plástica conceito da especialidade Rev Bras Cir n 40 p 47 1960 Jaimovich C A Shvartz S Avaliação de aspectos psi cológicos e psiquiátricos em cirurgia plástica Rev Bras Cir n 66 p 115 1976 Aesthetic plastic surgery of head and body Heildelberg Springer 1981 et al Abdominoplastia algumas considerações históri cas filosóficas e psicossociais Rev Bras Cir n 72 p 380 1982 Caldeira A Aspectos filosóficos e psicológicos da cirur gia do contorno facial Anais do Simpósio Brasileiro do Contorno Facial São Paulo 1983 Quo Vadis Doctor Rev bras Cirurgia 86 257262 1983 Direito à beleza Rio de Janeiro Record 1984 et al Perspectivas filosóficas e psicossociais do contorno corporal Rev Bras Cir n 75 p 109 1985 Aprendendo com a vida São Paulo Editora Best Seller 1993 et al Iatrogenia em Cirurgia Plástica Rev bras Cirurgia v 87 no 1 3347 1997 Bioética em Cirurgia Plástica In Urban Cícero de A Bioética Clínica p378383 Revinter Rio de Janeiro 2003 Oliveira A B A Evolução da Medicina até o início do século XX São Paulo Pioneira Secretaria de Estado da Cultura 1981 Oliveira S C Psicólogo in Formação Revista Científica da Facul dade de Psicologia Universidade Metodista de São Paulo ano 4 nº 4 jandez 2000 Schacter S Singer J E Cognitive social and physiological de terminants of emotional state Psychol Rev n 69 p 379 1962 Vilain R Some considerations in surgical alteration of the femi nine silhouette Clinics Plast Surg v 2 n 3 1975 Psicossomaticaindd 367 Psicossomaticaindd 367 05012010 121217 05012010 121217 Bárbara gostava somente de pedir coisas Pedia e en gordava Por mais absurdo que pareça encontravame sem pre disposto a lhe satisfazer os caprichos Em troca de tão constante dedicação dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente Não os guardei todos de memória Preocupavame exclusiva mente em acompanhar o crescimento de seu corpo que se avolumava à medida que lhe se ampliava a ambição Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho que dispensava aos objetos que eu lhe dava ou não engordasse tanto pouco me teriam importado os sacri fícios que fiz para lhe contentar a mórbida mania Bárbara Os dragões e outros contos Murilo Ru bião Editora Movimento Perspectiva 1965 A obesidade e suas múltiplas facetas constituem um desafio em várias áreas do conhecimento humano na Clínica na Epidemiologia na Nutrologia na Sociolo gia na Psicologia assim como na área da terapêutica Muito se tem escrito sobre o tema e inúmeros tra balhos apareceram nas últimas décadas fazendo frente a este desafio avançando o conhecimento sobre sua complexidade Há várias categorizações sobre a obe sidade e junto com a bulimia e a anorexia constituem transtornos alimentares que têm aparecido mais fre quentemente na clínica e nos noticiários da mídia Pelo fato de a obesidade constituirse em modelo de investigação multidisciplinar daremos ao assunto um tratamento mais voltado à área profissional que lida diretamente com ele Esta escolha entretanto não pretende esgotar o assunto mas na medida do possível daremos destaque à experiência vivida fo calizando os aspectos emocionais envolvidos por esta problemática complexa no campo da clínica Circunscrever este campo implica evidentemen te dar a medida dele o que não significa desmerecer outros como o da constituição por exemplo que tem peso relevante na obesidade e portanto não pode ser esquecido Assim não iremos abordar e listar to dos os elementos envolvidos no estabelecimento da obesidade e matéria de preocupação da classe mé dica e de outros segmentos profissionais por existir vasta literatura a respeito balanços energéticos atividade física genética da obesidade alterações endócrinometabólicas neuropsiquiatria a não ser quando elementos de natureza psicológica estiverem interligados Devemos salientar que grande parte da preocu pação com a obesidade é decorrente das consequên cias que acarreta no campo médicopsicológico pela invalidação relacional e social principalmente como agravante de várias entidades clínicas nas quais cons tituise em sobrecarga aparelho circulatório apare lho respiratório locomotor Burland 1974 Wilson 1969 A prevalência da obesidade vem crescendo no mundo todo e já é assunto de saúde pública em al guns países do mundo ocidental Já existe inclusive esta preocupação com o incremento da obesidade in fantil em colégios e instituições com a chamada junk food que é excessivamente calórica A OMC utiliza o IMC índice de massa corpórea para caracterizar os graus de obesidade dividindose o peso corporal em kg pelo quadrado da altura em m² A obesidade grau I é quando se tem um IMC entre 30 a 349 kgm² Grau II é quando o IMC se situa entre 35 a 399 kg m² e grau III é quando o IMC é maior que 40 kgm² grandes obesos Tal critério é apenas classificatório para fins de discriminar procedimentos terapêuticos pois não leva em consideração compleição física na avaliação do tecido adiposo excedente Por outro lado a experiência universal da cura do obeso é ainda muito precária e a experiência bra sileira não foge a regra Êxito duradouro é a palavra chave e a ciência até hoje não deu mais consistência na obtenção de resultados terapêuticos de sucesso O fracasso e a frustração quanto aos diversos tipos de tratamentos são partilhados por todos quer no cam po clínico quer o no psicológicocomportamental É verdade que se pode obter bons resultados com al gumas técnicas e métodos porém quando se compa ram experiências e se tabulam resultados a resposta é decepcionante quanto às pretensões científicas no processo de cura Congressos e mais congressos relatam experiên cias utilizando métodos e critérios duvidosos parti 27 OBESIDADE UM DESAFIO Alexandre Kahtalian Psicossomaticaindd 368 Psicossomaticaindd 368 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 369 cularmente presentes em grupos hospitalares concei tuados muitas vezes particulares O empirismo que expressam salienta geralmente a ideologia de grupos profissionais sobre a concepção da obesidade e para doxalmente à semelhança do comportamento leigo mostrando as lacunas cognitivas de tal complexida de Assim é que neste campo onde a ciência dá pou cas respostas pululam aspectos mágicos e místicos a respeito do tratamento Vasta literatura de livros e revistas tipo coma e emagreça dieta da Lua etc aparelhos massageadores próteses poções injeções e agulhas milagrosas infestam o imaginário do obeso e da população em geral É o espaço da crença da fé da religiosidade Afinal qual é a diferença entre a agulha na orelha e a dieta ortodoxa que não emagre ce Yudkin 1974 Neste vasto campo movediço interdisciplinar o presente trabalho tentará iluminar os aspectos emo cionais do tema relacionados a singularidade do ato terapêutico dentro do campo da Psicologia Médica na conjuntura atual CONCEITUAÇÕES A obesidade implica abordar a fome no seu re corte psicossocial embora a fome e a sede sejam duas da mais poderosas forças motivacionais conhecidas As expressões populares como sede de vingança insaciável desejo de riqueza fulano é um pão fome de poder coma feijão e apareça mostranos como é tardia a percepção pela classe profissional dos aspectos emocionais envolvidos hoje bem mais acei ta com a abordagem interdisciplinar Na década de 1930 era usual atribuir a obe sidade aos distúrbios das glândulas endócrinas somente a partir das décadas de 1940 e 1950 que uma aproximação de natureza psicológica passou a receber maior ênfase graças aos trabalhos de Bruch 1943 Rascovsky 1950 Fenichel 1966 e outros É necessário salientar entretanto não ignoran do o lado constitucional em que proponho conceituar a obesidade como expressão sintomática de conflitos internos e externos que se realimentam como um me canismo de feedback levando ao acúmulo adiposo Perceber o distúrbio visto pela observação in tegral do paciente como conceituado pela medicina antropológica que procura evidenciar o quanto as doenças e as disfunções se inserem na biografia do indivíduo conferindo singularidade é a meu ver a que mais se aproxima da questão da obesidade Vale dizer que a quantidade de tecido adiposo conta uma história que por vezes é dramática gra ve duradoura removível ou eterna Mas sem dúvida alguma plena de frustrações Podemos dizer que a quantidade de tecido adiposo e o tempo de sua exis tência já denotam o grau de dificuldade e em nossa experiência revelam desde logo as possibilidades de êxito da tarefa assistencial Assim obesidades de lon ga duração e os chamados grandes obesos impõe limites bem estreitos de redução ponderal ao contrá rio das obesidades do tipo reacionais àquelas que se instalam a partir de crises existenciais recentes ou traumas gravidez processo de separação lutos etc Abordar a obesidade necessariamente nos leva a aprofundar a questão da ingestão calórica excessiva e dos aspectos formais do corpo A QUESTÃO DA FOME E DO APETITE Por que se tem fome Evidentemente não pode mos ignorar a necessidade do ser humano de regular o balanço energético que visa a satisfazer as necessidades fisiológicas de crescer de desenvolver de locomoverse e de realizar o trabalho biológico da máquina humana Mas nem só para isso pois a ingestão alimentar inte ressa além da Fisiologia à Psicologia à Antropologia à História à Patologia à Estética e à Culinária Por conseguinte se comer um bife com fritas ou tomar um sorvete é tão complicado para os obesos mais complicado ainda é entender a diferença do bife com fritas e do sorvete para cada um Ou seja quando é que comemos por fome ou por desejo Aqui temos que introduzir e enfatizar a diferença da noção de instintopulsão Trieb com a de instinto animal Instinkt assinalados pela obra freudiana Essa dife rença faz toda a diferença fundamental A fome dita biológica é desagradável dolorosa enfraquecedora admitindo somente comida como objeto de remoção Nesta contingência podemos dizer que o centro da fome e o centro da saciedade Mayer 1972 Anand 1974 situados no Hipotálamo são os mecanismos biológicos reguladores e preponderantes da neces sidade de produzir fome e da procura de alimentos para a saciedade Existe farta literatura a respeito desses centros e de seus mecanismos Jolliffe 1952 que não cabe detalhar aqui e que servem de base para experimentações neurofisiológicas e para a farmaco logia da fome Já o apetite procura o prazer a satis fação libidinosa implica qualidades sabores não obedece a reservas calóricas e nem a toma como re ferencial É o que no dizer de BrillatSavarin 1960 para a espécie humana é um privilégio comer sem ter fome e beber sem ter sede Já do ponto de vista do instinto animal fora do cativeiro a procura alimentar só se efetua quando Psicossomaticaindd 369 Psicossomaticaindd 369 05012010 121217 05012010 121217 370 Mello Filho Burd e cols as reservas calóricas exauridas a originam Portanto para o apetite a comida é procurada como um tran quilizante prazeroso O apetite como sugere Miller 1966 é submetido a um múltiplo controle que en volve várias partes do cérebro que operam sob estí mulos sensoriais como gosto olfato distensão abdo minal processos metabólicos e fatores psicológicos Freud no princípio do século passado já vira esta diferença entre o instinto pulsão humano e o animal mostrando que para o ser humano o objeto de gratificação do instinto é variável e que o homem nem sempre ingere comida como alimento A pulsão no final da cadeia do desejo oral é aberta em outras palavras quando a criança busca o seio da mãe não está envolvida apenas uma satisfação alimentar po rém sim existe uma significativa troca de experiên cias amorosas e frustradoras que vão ser vividas como prazerosas ou desprazerosas Formam a base psicológica da aceitação e da rejeição que em níveis psicanalíticos podem ser identificados com uma série de processos mentais complexos que não serão espe cificados aqui Hilde Bruch 1940 1961 ao lidar com crianças obesas verificou que nesta troca de experiências da interação mãefilho haveria um aprendizado que em muitos casos por ser defeituoso pode gerar uma uni formidade de resposta apaziguadora das ansiedades da criança pela alimentação repetitiva no primeiro ano de vida Exemplificando existiriam diferentes tipos de choro comunicação que é uma manifes tação extraverbal da criança dirigidos à mãe e que receberiam somente como resposta o alimento como o desconforto criado pelo frio da fralda molhada có licas etc Esta interação dos primeiros meses de vida é vivida pela região oral da criança e é através dela que vai perceber o mundo e o ambiente relacional que a cerca Tais vivências primitivas vão servir ao psiquismo infantil como modeladora de respostas fu turas que mais tarde ficam ampliadas pelas diversas interações do desenvolvimento infantil com as rela ções do seu ambiente familiar É conhecido de todos nós a experiência da criança que após ter aprendido a andar e mesmo a falar coloca na boca cada novo ou antigo objeto às vezes mastigandoo e deglutindoo Assim podemos ter distorsões desse tipo em pessoas adultas que colocam comida onde poderia se ter uma pessoa desejada por exemplo Às vezes comer tem a conotação de ato sexual frequentemen te expresso em conversas sociais como comi fulana o ou em cenas cinematográficas onde sexo e comi da se mesclam Tom Jones 9 ½ Semanas de Amor Império dos Sentidos e muitos outros Nem sempre só isso é o que se passa podese comer com raiva vorazmente mastigando torto para destruir o alimento O sentimento é o de hostilidade e principalmente para quem se ama ou teme Estamos diante da forma canibalística Freud Abraham que procura adquirir as qualidades daquilo que é devora do como força exuberância física etc As tribos que praticavam canibalismo o faziam para incorporar sua força poder bravura e resquício dessa atitude pode ser observado em rituais religiosos como por exem plo na ingestão ritualística católica da hóstia como recebimento do corpo sagrado e divino como prote ção purificadora Frequentemente se pode observar este fervor místico nos consumidores de alimentos ditos naturais e que criam teorias alimentares mui tas vezes em desacordo com a ciência e a Nutrologia invocando obtenção de curas benesses salvaguardas mágicas e grandiosas Porém não se pode negar que há crianças com maior voracidade e é notório que a satisfação dessa voracidade pode se estender por toda a vida do indi víduo Tais pessoas não sofreram a contenção dessa voracidade por ausência de boa frustração materna proporcionadas por mães ditas benevolentes prote toras Muitas vezes os profissionais ficam perplexos com pacientes que dizem não poder suportar ou re sistir a um prato saboroso uma sobremesa açucara da É no dizer do psicanalista Fenichel loc cit uma adição sem droga comparando o comer contínuo muitas vezes compulsivo a uma toxicofilia do tipo alcoolismo drogas etc Podemos simplificadamente dizer que o mun do familiar e o ambiente externo são os modeladores da experiência fantasiosa no período da incorpora ção oral da infância e que vão se reproduzir mais tarde em vida adulta Paiva 1982 O vinho de hoje a torta de nozes foram o leite da mamãe ou a sua fal ta o que entrou junto ou deixou de entrar o paraíso e o inferno É principalmente na vivência familiar que podem ser detectados múltiplos comportamentos e fantasias quanto ao significantes comer e aumentar o peso Como esquecer aquele misto quente quando se acompanhava mamãe às compras o pastel de nata da cozinheira Ou então as recusas a comer às refei ções para provocar raivas materna ou paterna IDENTIFICAÇÃO E IMAGEM CORPORAL O processo ao qual a Psicanálise deu grande sig nificação e pelo qual a criança de modo inconsciente e automático elege ideais valores exerce comporta mentos à semelhança de sua constelação familiar que admira ama teme tem no seu aspecto corporal ele mentos importantes para a compreensão do obeso O corpo e a vivência do corpo fazem na men te do obeso uma imagem corporal que pode adqui Psicossomaticaindd 370 Psicossomaticaindd 370 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 371 rir múltiplos significados Às vezes se observa a ideia de força muscular associada ao maior aumento cor poral outras vezes a de gravidez de pessoa adulta etc Existem trabalhos que demonstram nos grandes obesos que perderam grande quantidade de tecido adiposo o aparecimento de crises psicóticas e os achados de imagem corporal traduziam a ideia de te rem se esvaziados perdido força parte de si mesmos Glucksman 1969 Uma espécie de fantasmatização do que se perdeu O fato é que a imagem corporal em pacientes com dificuldades ponderais é em geral distorcida da realidade externa porque tais imagens se associam a aspectos idealizados ou patológicos que refletem dificuldades internas profundas de aceitar o próprio corpo As imagens corporais são introjetadas porque no processo de identificação com figuras representativas da constelação familiar por vezes se travam conflitos entre o que se é o que se deseja ser e o que pode ser Podemos observar de modo geral quando o paciente se identifica nos aspectos mais doentios com as figu ras de pais e parentes obesos a tarefa profissional de redução ponderal é bastante infrutífera requerendo muita vigilância Em terapia de grupo realizada por mim e pela Dra Ana Maria Saraiva pudemos verifi car que o papel da gordura corpórea indicava ser uma espécie de isolamento e de proteção quanto às ansie dades vividas Kahtalian 1977 A ideia de retirála trazia ansiedade caos pânico A perda de peso vivida como ser roubado espoliado Retirar o peso trazia implícito o aparecer de algo mais profundo temido e indesejado Constituía também uma forma de contro lar os pais Quem já lidou com pacientes obesos sabe que muitas vezes o paciente exige requer e cobra controle do médico ou profissional sobre si mesmo Quando o profissional exerce este controle passa a reclamar se autocensura e mais adiante abando nao Verificamos também que os pacientes temem a cura e é frequente que ao se aproximar a alta em pa cientes que possuem algum grau de resiliência a alta vai sendo sabotada porque o peso de alguma forma os mantinham ligados ao terapeuta Já estabelecida a obesidade o paciente passa a viver em função das dificuldades que a sobrecarga de peso lhe traz É nesta situação que vários aspec tos ligados a gordura excessiva passam a incomodar o obeso adinamia dificuldade de executar o ato se xual limitações quanto a locomoção e acomodação em lugares públicos praias atividades sociais e es portivas Sentimentos de vergonha de inferioridade e grande dificuldade na comunicação pessoal O excesso de peso constituise num aleijão em muleta que tem que se carregar para o resto da vida Serve o excesso de peso no corpo à função de localizar toda a angústia e toda sorte de dificuldades emocionais A localização somatização entretanto para muitos traz tranquilidade ou paz O indivíduo ao viver e ao aceitar internamente a obesidade e de têla como fonte de todas as desgraças de sua vida já possui as condições de exercer um controle Ele já não precisa mais pensar em dificuldades emocionais ou conflitivas e sim em controlar o peso A balança passa a ser o termômetro do contato consigo mesmo É importante frisar que a imagem corporal Schilder 1950 Lacan 1966 só se constitui no inconsciente em presença do outro é relevante conhecer este padrão para a questão terapêutica porque como disse implica em significados de ego corporal que quando olvidados trazem dissabores e incompreensão para a dupla profissionalpaciente Assim muitos tratamentos são sabotados porque a força inconsciente que faz restaurar a imagem cor poral prévia introjetada na infância é maior que a força da nova imagem recém adquirida pela perda ponderal que precisa ser incorporada na realidade psíquica destes pacientes após tratamento exitoso OBESIDADE E DOENÇA MENTAL A obesidade tem sido associada a vários tipos de psicoses e de neuroses porém é bom salientar que voracidade ganhar ou perder peso é meramente uma parte do problema a ser enfrentado No grupo das psi coses a doença maníacodepressiva DMD é a mais frequente Berblinger 1969 e é mister assinalar a exuberância de situações depressivas nos quadros de neuroses Incontestavelmente a maioria dos obesos apresentam mais traços psiconeuróticos do que a po pulação não obesa sobejamente demonstrado pelos trabalhos de Stunkard 1969 que chegou a determi nar padrões de comportamento alimentar aos quais denominou de night eaters e de binge eaters Os night eaters seriam caracterizados por anorexia matutina hiperfagia noturna insônia ha vendo ainda alguma ritmicidade na ingestão calóri ca Os binge eaters seriam pessoas que teriam atos compulsivos de comer às vezes súbitos ingerindo grande quantidade de comida seguidos de agitação e autocon denações Podem estar associados hoje ao que se denomina Bulimia transtorno alimentar mais severo e que não será especificado neste trabalho Existem outros tipos de comportamento alimentar que levam à obesidade os denominados couch pota toes que são pessoas que ficam sentadas vendo tele visão e comendo pipocas bolachas salgadinhos etc Mas o que podemos supor é que classificações como essas têm seu valor descritivo porém não nos dão uma ideia da dinâmica mental dos processos en volvidos Comer pode significar o desejo hostil de er Psicossomaticaindd 371 Psicossomaticaindd 371 05012010 121218 05012010 121218 372 Mello Filho Burd e cols radicar um inimigo a necessidade de receber amor de segurança de medo de sofrer privações de reação a perdas de separações etc Quem quer se aprofundar na relação médicopa ciente descobre que o ato de comer se liga à sexualida de no sentido dado por Freud e que o paciente ao procurar o profissional se encontra na contradição de que conscientemente deseja emagrecer Porém forças antagônicas inconscientes levamno a rejeitar qualquer tipo de proibição ou restrição que possa sig nificar um corte no seu desejo oral de incorporação da pessoa objeto amoroso amada Lidase com an siedades que pela dificuldade de discriminar tanto para o médico como para o paciente limitandose ou proibindose a comida e não o objeto amoroso sendo que ambos acabam frustrados Por vezes a necessidade de posse da pessoa amada ausente só é sentida quando o indivíduo está consigo mesmo sozinho criando ansiedades do tipo depressivo que é o que ocorre com muitos pacien tes que assaltam a geladeira que comem tarde da noite vendo televisão ou lendo Evidentemente esta procura alimentar se faz na tentativa de apaziguar e restaurar um equilíbrio precário dos aspectos narcísi cos do self fragilizado dependente e esvaziado Consequentemente não há justificativa para negar que o prazer estético entra na experiência do gourmet ou então para negar o título de artista ao que obtém sa tisfação em produzir seus souflées por delicadas e efêmeras que estas obras de arte possam ser WRD Fairbairn psicanalista inglês NARCISISMO E SELF OBJETO ALIMENTAR É interessante destacar que o tipo de alimento procurado exerce importância na questão do nível de saciedade que a experiência de saciedade do ape tite impõe Indiscutivelmente a sabedoria notória de que comida apazigua é bem antiga e é utilizada por babás companhias de aviação rituais festivos de passagem etc Todavia o que quero comunicar é que o tipo de alimento e o grau de fixação a ele é relevante para indicar as dificuldades que a tarefa terapêutica coloca como por exemplo a fixação a adocicados que denota maior dificuldade está mais primitivamente fixado à etapas do desenvolvimento emocional do que a fixação pelos salgados Na expe riência clínica é mais difícil manejar com açucara dos diferentemente dos salgados que entram mais tarde na alimentação infantil Além do que o pala dar está bastante impregnado no desenvolvimento emocional infantil Em minha experiência esta sen sibilidade dos primeiros anos de vida está associada ao gosto ao olfato ao brincar com o alimento e com a ingestão calórica excessiva na experiência da ma ternagem Tais aspectos aqui assinalados são muito pouco aprofundados pelos profissionais que em geral não investigam nas entrevistas anamnésicas os aconteci mentos precoces da instalação da obesidade Assim podemos dizer à guisa de ilustração que a ingestão de refrigerantes gaseificados e calóricos ou de cerve ja ou chope não se faz pela qualidade do doce ou do malte ou de outro cereal envolvido na fabricação Ela se faz em realidade para restaurar a ingestão gaso sa ocorrida durante a maternagem pois tais bebidas sem o gás CO² não se venderiam É portanto a pro cura de um contato em nível gasoso da experiência gratificadora da relação mãebebê Consequentemente é aqui que a gastronomia encontra seu terreno e sem dúvida alguma deixa suas marcas culturais que são transferidas de uma geração para outra naquilo que distingue o que se convencionou chamar de comida italiana libanesa japonesa francesa etc Isto é bom frisar visto que pode ser um empecilho para tratamentos dietoterá picos pois frequentemente os pacientes acabam por sabotar a rigidez e a fixidez das dietas hipocalóricas que são prescritas habitualmente PAPEL DA RELAÇÃO PROFISSIONALPACIENTE A relação profissionalpaciente é fundamental Se o médico ou outro cuidador não conseguir manter um bom contato com o paciente sem dúvida alguma pouco ou nenhum êxito terá Exemplo disto é a ronda de profissionais que cuidam da área recorrendo aos mais variados tratamentos Sabese também que o obeso tem enorme difi culdade em associar a hiperfagia ou a polifagia com situações emocionais que atravessa ou que atraves sou Tem enorme dificuldade em conectar a excessiva ingestão com situações de ansiedade depressão ou medo Kahtalian 1977 Quileli 1982 Outro fato frequente é a negação para si próprio dos atos de comer diante dos seus médicos como as pecto maníaco de defesa Outras vezes é a mentira que é de difícil abordagem Se o paciente mantém o hábito de mentir sobre idas à geladeira confeita rias fica realmente muito difícil a abordagem e ela a mentira passa a ser uma forma de controlar o pro fissional imobilizandoo o que de resto despertará raiva e descontentamento nele A agressividade nestes pacientes é muito repri mida muitas vezes manifestada como forma de en ganar o profissional fazer artes desfazer compromis sos É comum ver um profissional insatisfeito com o Psicossomaticaindd 372 Psicossomaticaindd 372 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 373 andamento do tratamento pois percebe que existem nítidas transgressões alimentares e usualmente uti lizase da bronca conseguindo bons resultados nas próximas consultas Temse a impressão que o pito funcionou porém essa intervenção tem um poten cial muito pequeno para conter tais transgressões e geralmente o paciente volta a transgredir Daí para frente o tratamento desanda e o paciente retorna a uma situação já vivida em sua vida quando a trans gressão foi necessária devido a uma necessidade si tuacional de transgredir Entendo que tais momen tos devam ser explorados deixando a agressividade oculta aparecer para que o tratamento se tornasse mais efetivo O gordo sorridente e bonachão pode es tar mascarando maniacamente uma situação interna desconfortável que desconhece psiquicamente e que nega quando apontada pelo terapeuta Queremos enfatizar que nos últimos anos Fan dino J et al 2004 Vasques F et al 2004 surgiu a possibilidade de cirurgia bariátrica com suas técni cas restritivas ou disabsortivas para os pacientes dito desafios ou seja os chamados grandes obesos A cirurgia seguindo padrões já estabelecidos pela in terdisciplinaridade implica em acompanhamento psiquiátrico e psicológico antes durante e após o ato cirúrgico O que se pretende é estabelecer pelo pro cesso cirúrgico o controle da ingestão calórica por um processo externo superegoico A seleção tem que ser rigorosa por causa de complicações póscirúrgicas São candidatos os pacientes com peso acima de 40 kgm² ou maior de 35 kgm² com quadros de dislipe demia diabete hipertensão arterial apneia do sono etc Pacientes com distúrbios psiquiátricos graves de vem ser recusados São pacientes narcísicos bastan te regredidos e a tarefa médica talvez seja deixálos com o excesso de peso pois foi o que conseguiram obter para si para ter alguma harmonia interna Numa outra vertente todos temos notícias do sucesso relatado em jornais e revistas das chamadas clínicas de emagrecimento algumas com credibilida de científica Como passo inicial são benéficas mas sem reforço sucessivo tais tratamentos tendem a fracassar Algumas utilizam recursos duvidosos ban dagem fornos injeções etc mas conseguem êxitos transitórios que ao meu ver se deve mais à relação enfermeirapaciente às consultas diárias uma vez que dietas hipocalóricas todo mundo sabe receitar desde revistas até da amiga da amiga da cozinheira O fato é que muitos pacientes procuram profissionais apesar de saberem fazer dieta porque gostariam de fazer uma verdadeira relação profissionalpaciente Neste sentido a biografia do indivíduo passa a ter um papel relevante no eclodir da obesidade É comum a obesidade iniciarse no primeiro ano de vida início da escolaridade da puberdade após casa mento gravidez menopausa cirurgia de amígdalas de útero e outros acontecimentos Quero dizer que é fundamental para uma boa relação profissionalpa ciente a compreensão global da história que permita ao profissional exercer melhor o seu papel terapêu tico Frequentemente se observa que organizações leigas homeopatas curiosos têm a força terapêutica que os profissionais de saúde abdicaram pois prefe rem se dedicar a estabelecer balanços energéticos e incrementar a lipólise tão somente PROFILAXIA E TRATAMENTO PSICOTERÁPICO DA OBESIDADE No panorama das possibilidades terapêuticas o melhor caminho para não se tornar obeso é a preven ção em todas as faixas etárias da vida Na lista dos países com mais gente gorda no mundo oito estão no Pacífico Sul graças a chamada junk food e ao sedentarismo Estados Unidos e Brasil não escapam disso já existindo campanhas de saúde a respeito É tarefa que pediatras educadores psicólogos fisiote rapeutas médicos nutricionistas que já vêm se ocu pando mas não em um nível satisfatório no terreno clínico e institucional Tarefa hercúlea que mereceria maior atenção dos setores governamentais e também programas dedicados ao esclarecimento das classes profissionais que vão lidar mais tarde com as compli cações da obesidade Entretanto estabelecida a obesidade várias for mas de psicoterapia podem ser indicadas podendo fazer parte de acompanhamento clínico ou coexistir como forma autônoma Pode ser realizada pelo mé dico ou profissional cuidador porém deverá se ha bilitar para isso procurando treinamento adequado Há grande dificuldade em se achar profissionais que queiram tratar a obesidade pela Medicina da Pessoa embora seja crescente o interesse face à introdução nos currículos das faculdades de Medicina da disci plina de Psicologia Médica Assistentes sociais psicólogos psicanalistas ar teterapeutas são profissionais indicados para outra forma de terapia a grupal além da individual Mais recentemente a abordagem pelo tratamento de fa mília tem ajudado muito na faixa etária de crianças e adolescentes Nas instituições hospitalares a forma grupoterápica é a mais indicada Alguns trabalhos promissores têm sido apresentados em congressos e publicados Paiva1982 Werneck 1979 Do ponto de vista leigo as atividades grupoterápicas realizadas pelos chamados Vigilantes do Peso ou de Comedores Compulsivos Anônimos têm sido um importante au xiliar à classe médica e da de nutrólogos no combate persistente ao desafio da obesidade Psicossomaticaindd 373 Psicossomaticaindd 373 05012010 121218 05012010 121218 374 Mello Filho Burd e cols Caso clínico UM CASO CLÍNICO M casada mãe de 3 filhos veio à consulta por indicação de seu médico clínico particular porque queria emagrecer por um processo mais rápido que consistia em submeter se a uma cirurgia bariátrica pois ouvira falar muito bem de seus resultados Tal se devia pois ganhara muitos quilos sendo considerada uma grande obesa com o acréscimo de 50 kg e com estatura de 165m que persistiam há mais de 5 anos Era bem apessoada culta trabalhava em marketing tinha 38 anos teve muito sucesso na área profissional desde que deixou a faculdade por conta de seu talento e por ser muito atraente nos seus atributos físicos Filha de família numerosa era com seu irmão mais velho considerados os mais brilhantes irmão este que se suicidou em idade adulta qual fora muito ligada Este fato criou um luto familiar que coauxiliou no seu processo depressivo instalado mais tarde quando vários fatores traumáticos aportaram na sua vida O processo depressivo junto ao aumento de peso veio progressivamente a medida que várias perdas foram se instalando em sua vida A firma que trabalhava se dissol veu perdendo um poder de bens e influencia que reper cutiram no seu status econômico pois resolvera se casar para constituir família Nas gestações ganhava mais peso que o necessário Veio depois a perda de uma casa muito querida seu único bem material que dispunha no campo por desmoronamento face ao terreno e as chuvas Nesta mesma época foi acometida por síndrome mucocutâneo uma vasculite chamada Doença de Kawasaki com conjunti vite rash cutâneo linfonodos edema gengivite e febre Tais acontecimentos levaramna ao aumento do apetite imobili dade e ganho de peso Ficou muito além do seu peso ideal perdeu a graciosidade não mais cultivou seus aspectos es téticos passou a se esconder sob roupas escuras não indo mais a praia refugiandose no novo trabalho que arranjara de função executiva e com remuneração menor Passou a não se observar ao espelho e a se expor menos no trabalho em reuniões convocadas Procurou equipe especializada composta de cirurgião clínico nutricionista e psicóloga e passou a seguir o protoco lo da equipe Ao mesmo tempo medicação antidepressiva recente e psicoterapia de base analítica A cirurgia foi bem sucedida bom pósoperatório Passou a ingerir pequenas quantidades de alimentos em geral líquidos e pastosos À medida que o tratamento prosseguia passou a ingerir ali mentos sólidos em pequenas proporções orientados pela nutricionista A perda de peso foi acontecendo e episódios de hipoglicemia e de dumping não foram frequentes A psi coterapia foi importante particularmente no sentido de ajudála a fazer o luto da barriga de gordura gravidez que foi suporte do estado de esvaziamento sentido e também para a restituição da imagem corporal anterior ao ganho de peso pois não conseguia se enxergar ao espelho com o peso adquirido A paciente conseguiu se reequilibrar foi adquirindo mais confiança narcísica e passou a lutar para atingir a restaura ção do seu posicionamento empresarial Socialmente se co locou na perspectiva de se reabastecer das perdas sofridas comprando nova residência e matriculando os filhos em bons colégios Adelgaçou retornou ao seu manequim de outrora e perdeu cerca de 45 kg Foi exitosa deixou de to mar antidepressivos mas não conseguiu eliminar certo grau de ansiedade em função de ameaça de sabotamento na in gestão calórica e pelo retorno do quadro de obesidade COMENTÁRIOS O caso de M com o sucesso obtido foi possível pois o excesso de peso foi adquirido em fase adulta pós traumas pela grande adesão ao tratamento As situações traumáti cas que a fizeram ganhar peso foram elaboradas resultado progressivo de perda de peso melhora do seu estado físico e retorno a um narcisismo sadio Tem que se levar em con sideração sempre a individualidade do atendimento a his tória da pessoa Quando tais elementos estão disponíveis podese pensar em permanência de um equilíbrio saudável na questão corporal principalmente auxiliado por medidas pedagógicas quanto a ingestão bem como o gasto calórico e para o resto da vida Isto vai implicar em controle pro fissional que deverá ser feito a cada 6 meses o que em princípio pode ser bem saudável e mais bem tolerado pelos pacientes REFERÊNCIAS Anand BK 1974 Neurological mechanism regulation appetite In Obesity Edimburgh Churchil Livingstone Berblinger KW 1960 Obesity and psychologic stress In BrillatSavarin The Phisiology of the Taste New York Bruch H 1943 Psychiatric aspects of obesity in children Am J Psychiat 99 p 732 1961 Conceptual confusion in eating disorders J Nerv Mental Dis 113 p 46 1940 Obesity in childhood Psychosomat Med n 11 Burland S Yudkin J1974 Obesity Edimburgh Churchill Li vingstone Fenichel O 1966 Teoria Psicoanalitica de las Neurosis Barcelo na Paidós Fandino J et al 2004 Cirurgia bariátrica aspectos clínicos cirurgicos e psiquiátricos Glucksman ML Hirch J 1969 The response of obesity pa tients to weight reduction Perception of body size Psychosomat Med 31 117 Jolliffe N 1952 Reduce and Stay Reduced New York Simon Schuster Kahtalian A Saraiva AM 1977 Algumas observações sobre a Obesidade em terapia de grupo I jornada de psicologia médica Rio de Janeiro Lacan J 1966 Écrits et Seminaires Paris Seuil Mayer J 1972 The ventromedial glucostatic mechanism as a component of society In Human Nutrition Springfield Charles C Thomas Miller N E 1966 The nature of appetite Food and Civilization Springfield Charles C Thomas Paiva LM 1982 Psicopatologia do excesso do apetite voracidade e período de molde III Congresso Brasileiro de Méd Psicossomá tica Rio de Janeiro Quileli CA et al 1982 Considerações sobre alguns mecanis mos psíquicos da Obesidade Bol SBPRJ Psicossomaticaindd 374 Psicossomaticaindd 374 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 375 Rascovsky A et al 1950 Basic psychic structure of the obese Int JPsychoanal 13 p 44 Schilder P 1950 The image and appearance of the human body New York International Universities Stunkard A J 1959 Eating patterns and obesity Psychiat Quart 33 p 284 Ugolev AM Kassil V G 1961 Physiology of the appetite Usp Sovr Biol 51 352368 Vasques F et al 2004 Aspectos psiquiátricos do tratamento da Obesidade Rev Psiquiatr Clin v 31 nº 4 Werneck D Gomes MB 1979 Contribuição da psicologia ao atendimento ambulatorial de obesos infantojuvenis Arq Brás End Met V 23 nº 3 Wilson NL 1959 Obesity Philadephia F A Davis Psicossomaticaindd 375 Psicossomaticaindd 375 05012010 121218 05012010 121218 DOENÇAS CRÔNICAS NOVOS RECURSOS Com o avanço da Ciência notamos uma modifi cação marcante no que tange às enfermidades chama das crônicas e terminais como a insuficiência renal e o câncer por exemplo O aparecimento de antibióticos eficazes a quimioterapia e o tratamento dialítico vêm proporcionando uma sobrevida maior aos pacientes Nos casos de insuficiência renal crônica encon tramos atualmente algumas formas terapêuticas que visam a facilitar a integração com a doença podendo assim proporcionar um sentimento de alívio além de uma melhor atuação no âmbito psicossocial O transplante se apresenta como uma alterna tiva para uma melhor qualidade de vida livrando o paciente dos tratamentos habituais como a hemodiá lise a diálise peritoneal e o CAPD Continuous Am bulatory Peritonial Dialysis que geram complexas reações por terem um prognóstico obscuro e signifi carem uma dependência contínua A Psiconefrologia tem se dedicado ao estudo e ao trabalho com pacientes que se encontram neste tipo de problema crônico com suas reações seus envolvimentos suas características peculiares seus conflitos seus medos e sua solidão O setor de Psicologia da Unidade de Transplan te Renal UTR do Hospital dos Servidores do Estado HSE do Rio de Janeiro avalia e acompanha todos os pacientes doadores e receptores familiares e colate rais que se submetem ao processo de transplante TX por meio de entrevistas individuais e encontros de gru pos realizados no ambulatório e nas enfermarias A partir de atendimentos psicoterápicos focais programados de acordo com a demanda do paciente encaminhamentos e assistência à beira de leito têm se obtido bons resultados em termos de restabeleci mento emocional dos pacientes em questão INÍCIO DO PROCESSO Quando um paciente renal crônico que fre quenta a clínica de diálise recebe a informação de que pode submeterse a um transplante passa a ter esperança idealizada de cura Encara a cirurgia como uma chance que lhe foi dada já que com o avançar da doença comprometese e debilitase física e emo cionalmente dia após dia Surge neste momento o sentimento onipotente de que poderá renascer É então encaminhado acompanhado de seu doador à Unidade de Transplante Renal para submeterse a um processo de avaliação feita por uma equipe multidis ciplinar da qual fazem parte médicos psicólogos e assistentes sociais além do corpo de enfermagem e nutricionistas que compõem o quadro DOADOR Transmitir gratuitamente a outrem É esta a definição que aparece nos dicionários para a palavra doar O doador chega à Unidade de Transplante Renal UTR desejando em princípio a melhora do recep tor com a extirpação de um órgão seu consciente de que em termos nada mudará em sua vida por saber que se vive normalmente com um só rim Os doadores são chamados de relacionados pa rentes onde se incluem familiares consanguíneos e não relacionados sem vínculo de parentesco Na prática diária detectamos que o termo gra tuitamente encontrado nos dicionários é um tanto teórico já que o doador tem sempre motivos latentes e manifestos para expressar o desejo de doar que são os objetos propulsores da realização deste ato Os candidatos falam em afetividade comisera ção altruísmo e generosidade Esta última segundo Melanie Klein ocorre quando o indivíduo se torna capaz de partilhar seus dons com os outros Isso tor na possível introjetar um mundo externo mais amis toso decorrendo daí a sensação de enriquecimento Mesmo o fato de a generosidade ser amiúde insufi cientemente apreciada não solapa necessariamente a capacidade de dar O sofrimento do doente renal crônico é inten so e o doador propõese a ajudálo A generosidade 28 TRANSPLANTES RENAIS Miriam Baron Psicossomaticaindd 376 Psicossomaticaindd 376 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 377 unida aos demais fatores encobre motivações reais e decisórias que quando frustradas podem trazer grandes insatisfações Melanie Klein afirma ainda em relação à gene rosidade Se esta sensação não está suficientemente estabelecida há necessidade de apreciação e grati dão e há ansiedades persecutórias de haverem sido empobrecidos e roubados No trabalho com doadores encontramos impor tantes fatores de motivação da oferta Alguns deles são A reparação quando o doador busca expiar al guma culpa sentindose compensado ao ajudar al guém Quando procuramos explicações sobre o dese jo de doar por sentimento de culpa encontramos a resposta nos mecanismos de defesa o mecanismo de projeção Anna Freud diz que podemos usar o mecanis mo de projeção como rendição altruísta dos nos sos impulsos instintivos em favor de outras pessoas habilitandonos a formar valiosos vínculos positivos e a consolidar nossas relações mútuas Podese também encontrar situações de fuga em que o doador ao sentirse impotente perante alguma situação que lhe ocorre incapaz de resolver seus pro blemas desviase do alvo da sua questão mirando outro objeto e satisfazendose momentaneamente Quando há conflito entre cônjuges sendo um deles acometido de insuficiência renal crônica IRC a doação feita pelo sadio pode funcionar como um processo de reconquista do doente na tentativa de tornálo potente e participante novamente receben do uma recompensa pelo seu ato Não ocorrendo po rém o esperado o doador se frustra e pode ter uma reação negativa depois da cirurgia Um exemplo de motivação frustrada é o de uma esposa de 60 anos histérica e arrependida que pen sou poder reconquistar seu marido com a doação já que a relação do casal estava deteriorada Apareceu na Unidade de Transplante mobilizando a equipe e queixandose de fortes dores e inchação no local onde se encontrava o rim que havia sido retirado Recla mou que seu marido não a gratificou rejeitandoa se xualmente Sentiuse menosprezada e desvalorizada como mulher sem recompensa pelo seu sacrifício Existem casos em que há pressão familiar isto é elegese um membro entre vários familiares a quem se impõe o papel de doador O resultado frequente mente é de complicações posteriores para o escolhi do que aceitou o papel porém não pôde suportar o fato de lhe ter sido de certo modo roubado um rim Apesar de saber o destino deste órgão e o motivo pelo qual foi levado a doar reage com agressividade de pressão impotência raiva etc Há indivíduos que desejam doar em troca de ganhos financeiros saldar dívidas máfé etc fato que é caracterizado como comércio de órgãos Como a legislação brasileira veda essa prática procuramos detectar se há este tipo de favorecimento contraindi cando o transplante Para discutir os casos de doadores não relacio nados quando aparece este ou outro tipo de motiva ção proibida grupo de risco por exemplo realizase uma reunião específica na qual uma comissão repre sentada por membros da equipe o chefe da Divisão Médica do Hospital o assistente social e o psicólogo que entrevistou o par decide aprovando ou desapro vando o transplante em questão Casos existem em que a motivação do doador é suicida Para exemplificar há o caso de um homem de aproximadamente 35 anos expresidiário que nos procurou pedindo para ser internado naquele momento a fim de doar todos os seus órgãos Aos poucos contou que saíra há 7 dias da prisão e não conseguindo empregarse sentia fome e ímpetos de roubar para sobreviver Explicamos com cautela que só podemos aceitar doadores que acompanham os re ceptores formando um par e que o que ele queria realizar era impossível Relutou a princípio e depois se foi Em um telefonema uma jovem senhora dizen dose de nível sócioeconômico alto e bemsucedida profissionalmente desejava saber a que horas po deria ser recebida na UTR para doar todos os seus órgãos Contou que estava em estado depressivo e que havia ingerido grande quantidade de tranquili zantes porém sem obter resultado Passava por uma crise emocional de difícil controle e queria morrer Tentamos acalmála esclarecendo que seu desejo era impossível de realizar Pedimos seu nome e endereço ao que desligou o aparelho Após a avaliação dos doadores pelos médicos psicólogos e assistentes sociais iniciamse os inúme ros exames preparatórios para a cirurgia O recebi mento da aprovação final significa que o doador foi considerado saudável e que é chegado o momento esperado De modo geral todos temem a cirurgia a anestesia a cicatriz a mutilação corporal a invali dez o sofrimento e a morte Há aqueles que não superam o medo entram em pânico e não se sentem capazes de ir adiante desistindo no meio da jornada Algumas vezes con seguimos minimizar a tensão dos doadores outras os ajudamos a desistir e então sentemse aliviados e agradecidos Atendemos no ambulatório uma família da qual um filho de 25 anos recémcasado era candidato a doador de sua mãe Durante o processo de ava liação mostrouse inseguro trouxe sua esposa para Psicossomaticaindd 377 Psicossomaticaindd 377 05012010 121218 05012010 121218 378 Mello Filho Burd e cols incentiválo porém não se sentia capaz de prosseguir principalmente quando soube que iria ser pai Tive mos uma participação ativa nesta delicada situação O rapaz pediu uma sessão para um encontro fami liar pois não tinha coragem de revelar a sua mãe que havia desistido e poderia ter nossa ajuda nesta questão Fomos apenas veículo de auxílio pois se for mou um setting em que ele se sentiu incentivado e pôde sozinho dar a notícia à mãe ao pai e à irmã Houve decepção revolta e choro porém aos poucos os familiares se conscientizaram de que o transplante não poderia se realizar a não ser que ambos estives sem de acordo GRUPOS TERAPÊUTICOS COM DOADORES Para dar apoio a estas pessoas que decidiram doar um pedaço de si a alguém necessitado abrindo mão de um órgão vital organizamos os Grupos Tera pêuticos com Doadores São chamados 10 doadores de cada vez e a proposta é de três encontros de lh 15min de duração em que podem trocar experiên cias refletir viver os medos as ansiedades e as fan tasias para poder enfrentar a cirurgia e o que advém dela a partir de nossos esclarecimentos Fantasias de castração são vividas ali Também relatam seus medos de morte de não acordarem da anestesia de ficarem com cicatrizes horríveis de não suportarem a dor e de ficarem com o corpo deforma do Contam seus sonhos predominando os pesadelos Amedrontados alguns não voltam para o se gundo encontro Os que comparecem têm a oportu nidade de desabafar já que dizem não ter coragem de falar sobre estes assuntos com ninguém Em um dos grupos havia um homem que se pre parava para doar para sua esposa e sentiuse tão an sioso com revelações vivenciais dos demais que rea giu com intensos tremores pelo corpo e sudorese Os participantes se assustaram O coordenador ofereceu lhe um café forte ouvindoo dizer que apesar desta reação havia sido interessante poder manifestar seu medo e ser ouvido sentindose então mais tranquilo e protegido Em outro grupo constituído em sua maioria de esposas uma jovem e atraente senhora veio aconse lharse por sentir culpa por manter uma relação ex traconjugal quando seu marido ficou impotente Pen sou em separação porém comovida com a situação buscou satisfazerse sexualmente fora do casamento Pudemos então discutir sobre o tema da impotência e suas consequências que aparece tão comumente entre os doentes renais crônicos Os membros do gru po encontravamse insatisfeitos sexualmente e espe ravam que a situação revertesse após o transplante Em um terceiro grupo quando falávamos em internação uma doadora referiuse ao medo de ficar presa incomunicável em seu quarto sem ver seu ir mão o receptor A partir deste comentário passamos a incluir no último encontro uma visita à enfermaria fazendo contato com doadores ali presentes dimi nuindo as fantasias de prisão e claustro Muitos são os doadores que nunca frequentaram ou estiveram internados em um hospital Tal fato fa vorece o aparecimento de fantasias claustrofóbicas assim como podem desenvolver angústias por estarem isolados sentindose aprisionados e solitários Durante os encontros dos grupos notamos como as pessoas se ajudam mutuamente já que têm um objetivo comum Criase um clima de confiança e solidariedade Mesmo com toda a preocupação no preparo dos doadores há desistências As razões mais comuns são incapacidade de superar temores imaturidade e insegurança Há alguns doadores que voltam à Unidade de Transplante tempos depois com queixas diversas Elaboramos um protocolo para verificar as causas mais comuns e tratálas Procuramos fazer o follow up a cada seis meses Uma das conclusões a que che gamos foi a de que quando o relacionamento com o receptor era e continua sendo comprometido o doa dor reage e cria situações conflituosas Um rapaz que doou o rim para seu primo veio nos procurar com queixa de impotência sexual pós doação Diziase infeliz deprimido sem vontade de trabalhar e sua mulher o havia abandonado Ao con versarmos descobrimos que o início da impotência se deu quando o receptor faleceu A doação havia sido por imposição familiar A morte do primo significou a perda real do rim e o doador sentiuse frágil e im potente Além do doador vivo conhecido do receptor há um doador especial sui generis que apesar dos esforços ainda é visto em pequena escala os doado res cadáveres São os pacientes que se encontram em morte encefálica nos CTIS dos hospitais No caso de não haver um doador vivo o recep tor inscrevese numa lista de candidatos a receber um rim de um doador em potencial Fazemos parte de um programa RlTX RJTransplante por meio do qual nos dirigimos às famílias desses pacientes após comprovação clínica e gráfica EEG arteriografia ce rebral e potencial evocado desse estado e pergunta mos sobre o consentimento de doação de órgãos No trabalho com estas famílias percebemos rea ções interessantes em relação à morte destes entes queridos como sentimento de culpa não aceitação da perda com fantasias de imortalidade insegurança e choque emocional Psicossomaticaindd 378 Psicossomaticaindd 378 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 379 Já outras famílias são receptivas cerca de 55 e ao doarem têm um sentimento compensatório e altruísta Há também as que são inabordáveis quando observamos uma conduta histérica e ausência de con dições para qualquer aproximação RECEPTOR Concluída a etapa de identificação e avaliação iniciamse os exames preparatórios do par doador e receptor cujos resultados definem a internação e a cirurgia Os pares devem passar pela prova cruzada Crossmatch que consiste em um exame de sangue específico para verificar a que nível se da a compati bilidade entre eles Há uma grande expectativa neste momento pois o resultado é decisivo para a realiza ção ou veto do transplante A questão da compatibilidade sanguínea costu ma suscitar dúvidas e angústias nos pacientes Bus cam respostas coerentes sobre o porquê de não te rem células idênticas correndo em seus corpos e o risco iminente de rejeição mesmo no caso de estreito grau de parentesco como entre pais e filhos e entre irmãos Há desejo de poder viver com uma parte de um ente querido dizem os pacientes Os receptores quando notificados de que não há compatibilidade se frustram pois terão de reini ciar o processo de busca de um doador A decepção é grande e desfazse a idealização em torno do trans plante e do candidato Referemse a esta fase como a da traição de seus parceiros É ainda neste período que lhes são dadas orien tações e informações sobre possíveis intercorrências no decorrer do processo O psicólogo faz um acompa nhamento de seus estados emocionais assim como o de suas famílias dandolhes subsídios para enfrentar este momento e o que virá após a cirurgia São discutidos assuntos como o medo da dor e da morte que quando compreendidos e aceitos não desaparecem porém perdem parte de sua for ça Confessam que a despeito da restrição imposta de líquidos chegam a beber água do chuveiro ao se banharem e da pia quando lavam as mãos ou estão na cozinha Fazem declarações importantes sobre o desejo de se ausentar das sessões de diálise Os que ousam se arrependem pois voltam sentindose mal e até pioram Na tentativa de reverter o quadro Alguns pacientes recorrem a cultos religiosos cirurgias espi rituais medicina alternativa dietas especiais e sim patias Em sua grande maioria queixamse da perda ou troca de papel familiar que ocupavam antes de adoecer sentindose relegados a uma posição menos importante no meio em que vivem Por outro lado há aqueles que temem mudar seu estado patológico pois obtiveram ganhos secundários com a doença Se melhorarem terão que voltar a trabalhar normal mente terão mais obrigações em casa terão ainda uma atuação mais intensa de maneira geral Quando o nefrologista informa que o transplan te é uma alternativa e não uma solução definitiva al guns pacientes reagem através de audição seletiva escutando o que lhes convém e negandose a acredi tar O médico encontrase numa posição incômoda Tenta fazer revelações de uma maneira apropriada porém muitos são os que nada querem saber sobre sua doença nem tomam parte nas decisões a respeito do tratamento Pensam que após a cirurgia poderão esquecer o hospital e toda a historia crônica de sua doença A negação onipotente corresponde a defesa psi cológica a busca de redução do sofrimento Outros entendem que há vantagens e riscos e que realmente podem ter uma melhor qualidade de vida se o enxerto rim funcionar bem Para que isso ocorra devem fazer uma boa manutenção seguindo à risca todas as prescrições da equipe multidiscipli nar Logo após a alta na enfermaria o paciente deve frequentar o ambulatório algumas vezes por semana e realizar exames para verificação da função renal Essa rotina é amenizada à medida que o período de perigo maior da rejeição que ronda seu corpo todo o tempo é afastado O psicólogo atua sistematicamente no ambula tório junto aos médicos Estes encaminham os pacien tes que continuam ansiosos e deprimidos que não se medicam corretamente e reagem com euforia exces siva após a cirurgia exagerando na alimentação com aumento de peso Neste caso por exemplo procura mos o Setor de Nutrição para realizar um trabalho em conjunto investigando as causas e combatendo as consequências para evitar que fiquem obesos REJEIÇÃO Apesar de todos os cuidados alguns não acei tam bem o novo rim e são submetidos a tratamentos na tentativa de evitar a rejeição do órgão Esses tra tamentos incluem o uso de medicamentos com múl tiplos efeitos colaterais Mesmo assim não ocorrendo resposta adequada e sendo a rejeição inevitável o pa ciente retorna à diálise deprimindose despedaçan dose e por vezes arrependendose de haver feito o transplante A volta para a hemodiálise é encarada como um processo traumático regressivo Inicialmente há rea Psicossomaticaindd 379 Psicossomaticaindd 379 05012010 121218 05012010 121218 380 Mello Filho Burd e cols ções de recusa e revolta que quando bem trabalha das dão lugar à aceitação Este fato pode ser observado no caso de M 36 anos com transplante realizado há dois anos Aguar dava os resultados de alguns exames na esperança de estar melhor após mais uma internação que visava a prolongar a sobrevida do órgão recebido Ao ser avi sada do retorno à diálise quis fugir voltar para casa e abraçar sua filha temporã com quem se refugia brin cando e esquecendo os problemas Praguejou cho rou fez acusações sentindo a doença como objeto persecutório Após o desabafo enfrentou a situação pois queria viver e temia a morte A rejeição temida por todos é encarada como um tabu e acompanha a trajetória do processo do transplante englobando os períodos pré trans e pós cirúrgico A ênfase maior é dada aos primeiros dias e meses que se seguem quando o rim começa a dar sinais de atividade Segundo palavras de um pacien te É como uma grande máquina de uma grande fábrica que está quebrada e inutilizada durante um tempo e foi reparada voltando a funcionar produzir dar lucro porém ameaçada de emperrar outra vez O desânimo ocorre quando não há sinais de fun ção renal tendo o paciente de fazer algumas sessões de diálise Tranquilizamolo explicando É como um relógio parado Tem que se dar corda para que vol te a funcionar Existem várias razões para este fato como por exemplo necrose tubular aguda NTA ou trombose arterial e podem ser solucionadas com o tempo A rejeição do rim é vista como se o individuo carregasse um fardo perpétuo fosse destinado a ser doente e não pudesse nunca melhorar sentindose culpado por isso embora não haja sustentação real para tal reação Ao lidar com pacientes transplantados somos levados a fazer uma reflexão de como os fatos con cretos do processo de transplante como a rejeição do órgão implantado têm um paralelo na esfera psi codinâmica como o sentimento de rejeição que ex perimenta o doente no contato com as pessoas mais próximas Lidar com a rejeição significa não só de frontarse com a realidade da incompatibilidade de um órgão Mais do que isso é defrontarse com uma problemática muito mais abrangente qual seja a de suportar o sentimento de ser diferente agravado às vezes por situações de abandono real Há pacientes que são realmente abandonados por seus familiares Seus maridos ou suas esposas cansamse de cuidar de dar remédios de preparar die tas alimentares das restrições de líquidos de leválos para fazer transfusões de sangue Também se cansam das suas queixas de dores musculares e ósseas do hálito desagradável hálito urêmico proveniente da elevação das taxas de ureia da astenia de não poder viajar de não conseguir relacionarse sexual mente impotência física por medicação e psíquica por insegurança de sua decadência física e psíquica como parceiro Há também queixas de que por serem hiper tensos estão constantemente com cefaleia enjôos e tonteiras Até mesmo a alta taxa de uréia causa por vezes alterações de consciência e crises de agressi vidade O paciente por sua vez sentese invadido pela solidão Retornamos a Melanie Klein Este estado de solidão interna eu acredito resulta do anseio oni presente de um estado interno perfeito inatingível Tal solidão experimentada até certo ponto por to dos brota de ansiedades Porém são excessivamente intensas na doença A solidão também faz parte da doença Ela explica que o doente tem seu ego frag mentado tornandose mais vulnerável Podemos relatar uma experiência de atendimen to a uma paciente de 35 anos de transplante recente ainda internada Fomos informados pela equipe de que estava muito deprimida apresentando suspei ta de rejeição do órgão com estado febril cólicas náuseas e astenia Desanimada conta que se sente exageradamente só Sua história familiar á rodeada de episódios de separações casouse com um homem autoritário e controlador como seu pai Tiveram dois filhos Mudara de cidade em função do trabalho do marido Não suportou ficar em um lugar estranho sentindose só e com uma péssima relação conjugal Voltou para sua cidade e adoeceu de lupo eritemato so sistêmico doença que agride imunologicamente o rim Sempre procurou trabalhar e estudar esforçan dose para melhorar seu estado geral e poder cuidar dos filhos Porém alguns anos depois iniciouse o problema renal Relata que sempre mostrouse forte como supermulher afastando a tentativa de ajuda dos familiares No momento o que mais a incomoda é o sentimento de solidão intensificado pela doença além da falta de solidariedade de seus familiares que não mais oferecem ajuda Com o acompanhamento pôde perceber que sempre quis esconder suas fragili dades físicas e emocionais afastando seus entes que ridos e agora necessitava ceder Assim foi feito Teve uma boa recuperação e logo veio a alta hospitalar Passou a alimentarse melhor voltou a ler a ter mais ânimo para cuidar da casa ajudada pelos seus fami liares a brincar com seus filhos e aos poucos a voltar à rotina de sua vida Esse tipo de paciente se sente mais aliviado quando pode ser útil de alguma maneira quando pode exercer alguma atividade que lhe dê prazer fazer planos mesmo projetar algo para os próximos dias Psicossomaticaindd 380 Psicossomaticaindd 380 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 381 REAÇÕES EMOCIONAIS DECORRENTES DO TRANSPLANTE A perspectiva de mudanças após o transplante gera insegurança e traz à tona sentimentos contra ditórios de dúvida medo da morte da dor da anes tesia das complicações clínicas dos primeiros dias e meses da presença de um órgão estranho começando a funcionar dentro de si representando um possível renascimento de não ser mais dependente de alterar seu esquema corporal e da incompatibilidade sanguí nea com o doador Em contraposição há fé e espe rança desejo de livrarse da diálise sentimentos que bem conduzidos superam os temores O receptor traz um doador vivo para ser avalia do e ao ser aprovado passa a ser também um pacien te em nossa Unidade Este doador tem características próprias um corpo e sentimentos O recebimento do rim envolve uma série de fantasias muitas vezes per secutórias variando de acordo com o tipo de relação que o receptor mantém com o doador surgindo crises de identidade no primeiro principalmente entre pa res que não mantém boa relação Tenho medo de ficar com os defeitos horríveis de minha irmã Será que vou virar mulher Terei trejeitos femini nos Vou engordar até ficar do tamanho do meu ir mão Vou perder meu senso de humor Frases desse tipo são muito frequentes Estas crises como quaisquer outras ameaçam a estabilidade emocional do receptor temeroso de so frer uma alteração de sua identidade já que tem um órgão de outro dentro de si Joyce McDougall tece comentários a respeito das reações do ser humano dizendo que todos visam aos mesmos objetivos o desejo de se manter vivo de rea lizarse nos planos pulsional e narcísico de conservar intacta a identidade assim constituída e de defenderse contra tudo o que ameaça esses propósitos A força do sujeito reside nessa continuidade e nessa monotonia Contudo é aí também que encontramos a fonte do seu sofrimento e até mesmo a causa de sua morte Podemos também encontrar crises de identi dade nos pacientes que recebem rins de doadores cadáveres Neste caso aflora o medo do desconheci do ansiedade e sentem por vezes dificuldades de aceitação do órgão podendo chegar até a um estágio regressivo profundo atuando como um bebê como no caso seguinte Recebemos para fazer este tipo de transplante uma receptora de 50 anos há três anos em progra ma de diálise Quando soube casualmente que o rim recebido era de uma criança falecida em con sequência de atropelamento entrou em processo regressivo pedindo boneca mamadeira com uma linguagem comprometida de difícil entendimento Aos poucos com a ajuda do psicólogo e de todos da equipe foi elaborando a situação Explicounos que este novo rim que a fez renascer representa a criança que levará para casa e que cuidará para que fique bem Encontramos ainda reações interessantes quando o receptor está afetivamente envolvido com o doador Os papéis que representam tendem a se mis turar e o rim implantado passa a significar continui dade podendo gerar uma relação simbiótica no par Caso clínico A seguir descreveremos um caso clínico para ilustrar o que ocorre numa relação entre mãe e filha quando a pri meira é a doadora F 36 anos solteira transplantada há dois anos foi inter nada pois não se sentiu bem ao ir ao hospital para subme terse a exame para investigação do sangue que apareceu na urina hematúria F andava com dores no peito também Foilhe dito que seu rim não funcionava bem e que deveria manter sua fístula via de acesso para a hemodiálise situada no antebraço em atividade para o caso de voltar para a diálise Porém negavase a ouvir O psicólogo foi chamado pois estava tensa irrequie ta com dores Deramlhe um tranquilizante e ela ador meceu Um tempo depois ainda sonolenta me olhou pôs suas mãos sobre as minhas Contoume que tinha medo de perder o rim Já sentia gosto de urina na boca e não tinha apetite Disse que precisava desabafar Está com 36 anos não se casou não teve filhos só casos de que sua mãe nem sabe Chegou a engravidar mas teve de abortar pois o parceiro era casado Um homem importante Era uma menina disse Desejava ser mãe F recebeu o rim de sua mãe com quem tem uma re lação de grande dependência O pai faleceu há alguns anos Era separado de sua mãe bebia muito Um sobrinho que mora com ela é tratado como filho A mãe de F tem 65 anos é aposentada e dedicase inteiramente à filha Essa mãe descreveume um episódio de internação em clínica psiquiátrica após ser abandonada pelo marido que a maltra tava No momento está assustada com a possibilidade de a filha perder o enxerto rim Sentese intensamente angus tiada presa e só e não pode ter o homem que ama pois sua filha não permite Em consequência da doação refere fortes dores nas costas e no local da cirurgia F foi liberada mais tarde Após alguns dias voltaram ao hospital e procuraram por mim F tinha tentado ingerir grande quantidade de tranqui lizantes que sua mãe lhe arrancou da boca Não satisfei ta mordeu sua fístula e desnudouse perante os vizinhos amea çando jogarse pela janela Psicossomaticaindd 381 Psicossomaticaindd 381 05012010 121218 05012010 121218 382 Mello Filho Burd e cols A mãe contou que F andava com um comportamento estranho inapetente impaciente agressiva isolada arru mando a casa obsessivamente até a madrugada incansável Comecei a acompanhála no ambulatório ao que pediu me para sua mãe participar pois não conseguia ir às con sultas sozinha F explicou como adoeceu Houve explosão de um boti jão de gás na casa do vizinho seguida de incêndio F salvou uma criança entrando e aspirando o material tóxico Desde então teve inchações e infecções urinárias de repetição Recordase da época em que desfilava em escolas de samba nos carnavais Era uma negra vistosa os seios à mos tra fotos nas revistas Era namoradeira vaidosa e alegre Trabalhou como caixa e fez muitos amigos Sua mãe a interrompe constantemente para contar fa tos de quando era diarista de como era querida pela patroa e família de quando era jovem de como dançava bem e atraía os rapazes da vizinhança Fiz alguns atendimentos com a dupla tive auxílio do psi quiatra e interconsultas com o nefrologista F queixavase de não entender suas próprias reações emocionais Sabia que não estava bem fisicamente urina va pouco mesmo com diuréticos e sofria de complicações cardíacas e urológicas Comentou num encontro a sós comigo que seu rim mexe dentro de si parece querer sair e quanto mais tensa está mais ele se mexe Tem também o local da fístula quen te e roxo nessas ocasiões As vezes pensa em devolver o órgão à mãe tirálo livrarse dele para que sua mãe não reclame mais de dor Observamos neste caso a relação mãefilha doadora receptora gerando uma rede de fatores que desencadeiam conflitos de difícil trato A mãe de F amamentoua até os 5 anos Os anos se passaram e novamente alimentoua dandolhe um rim tirandoa da diálise e oferecendolhe vida F sentese agradecida e ao mesmo tempo oprimida carregando um órgão da mãe acentuando a relação que deveria ser simbiótica e que se tornou parasitaria O conflito se dá na medida em que F quer mais autono mia porém tem sua mãe presente dentro e fora mexen do incomodando doendo perseguindo e controlando Formouse portanto uma relação em que a mãe ocu pou dois lugares o feminino e o masculino procriando pro tegendo mantendo e reprimindo O rim aparece simbolizando uma criança que é gerada pelo amor da mãe e da filha talvez como o bebê abortado O medo da rejeição do órgão é agravado pelo signifi cado de perda de abandono e até de abortamento com o sentido de conter algo proibido F tem inveja da mãe enquanto mulher enquanto pro dutora de bebês de verdade receptora do pênis paterno dando à luz e amamentando tudo isto sob a égide de uma certidão de casamento A partir do atendimento ambulatorial F começou a ver e a trabalhar todas as questões acima descritas Referiuse ao psicólogo como a um anjo bom Aos poucos passou a alimentarse a investigar as dores que sentia e a fazer exames clínicos Queria melhorar apesar de saber ter um prognóstico duvidoso Seguimos com algumas considerações a respeito dos pares que têm boa relação entre si Concluímos que são mais receptivos e elaboram melhor os efeitos da cirurgia e da internação As fantasias se transformam dando lugar a respostas positivas de reconhecimento gratidão e carinho A gratidão segundo Melanie Klein achase es treitamente vinculada à confiança em figuras boas É um dos principais derivados da capacidade de amar A satisfação forma a base da gratidão O bebê sendo alimentado fica satisfeito O receptor tem o doador como alguém que o alimenta e se saciado reco nhece e aprecia a bondade no outro e em si próprio Isso pode ser visto também no caso de recepto res de rim de doadores cadáveres Daremos o exem plo de uma senhora que se encontrava deprimida com a perda recente de seu filho e internouse muito a contragosto para receber um transplante Sua re cuperação e aceitação do órgão foi rápida e passado o período de tensão agradeceu à equipe que a fez sentirse renovada superando o estado depressivo O luto foi substituído pela esperança de vida AIDS NO TRANSPLANTADO Os receptores de TX renal são intencionalmen te imunossuprimidos em consequência da ingestão de drogas antirrejeição do enxerto Isso significa que podem desenvolver as mesmas infecções opor tunistas e doenças neoplásicas que têm sido vistas em outros pacientes como os acometidos de AIDS Por isso o efeito da infecção do HIV em receptores de TX renal é incerto Os leucócitos T que são os responsáveis pela resposta imunológica aos vírus fungos e talvez antígenos relacionados a tumor são o alvo da terapia imunossupressora e do HIV po rém a detecção do anticorpo antiHIV é diagnóstica Tem sido bem documentado o desenvolvimento de anticorpos contra HIV que receptores de enxerto re nal podem adquirir no contato sexual transfusão de sangue maioria ou via enxerto Convém esclarecer que a maior parte dos casos de contaminação ocor reu num período em que não era rotina nos hospi tais do país a pesquisa de HIV Há um cuidadoso acompanhamento na Unida de de Transplante Renal dos pacientes transplanta dos com HIV que se intensifica quando se iniciam as infecções oportunistas A observação dos pacientes vai ajudar a esclarecer os efeitos da imunossupressão no desenvolvimento da AIDS Os pacientes chegam ao Setor de Psicologia ne gando o diagnóstico de HIV Este mecanismo de defesa ocorre para que possam aceitar outro trauma em suas vidas já que se sentem pertencendo a uma Psicossomaticaindd 382 Psicossomaticaindd 382 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 383 categoria especial a de transplantados Com muita cautela e perseverança conseguimos fazélos ultra passar a fase de revolta e possibilitar a chegada a uma situação da acomodação isto é aceitação relativa da condição tão estigmatizante O TRANSPLANTE EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Não podemos deixar de fazer referência ao so frimento da criança que chega à Unidade com insufi ciência renal crônica e de sua família especialmente seus pais Decepcionamse ao notar a defasagem no crescimento desde a infância entrando em pânico com a aproximação da puberdade e a chegada da adolescência quando deveriam modificar todo o seu esquema corporal e apresentar sinais visíveis como o aparecimento de pêlos aumento do tama nho dos órgãos sexuais alteração na voz do menino a menarca nas meninas etc Há esperança de bons resultados depois do transplante com o equilíbrio hormonal A mãe de N descontrolouse quando soube que seu filho não seria nunca aquele homem de 185 me tro com quem tanto sonhara Chorou revoltada mes mo sabendo que ele cresceria porém devagar e só mais alguns centímetros É difícil para os pais aceitar que seu filho não terá um desenvolvimento satisfatório que sua filha não conceberá tão facilmente Esse fato trágico gera conflitos familiares intensos e dificulta a relação en tre seus membros O irmão saudável por exemplo quer mais aten ção quer ser menos requisitado para ajudar nos afa zeres domésticos e no trato para com o doente Sen tese esquecido e pode tornarse rebelde por ser mal compreendido quando clama por atenção e carinho Pode de certa maneira querer ganhar maior notorie dade e não desejar crescer também O pai por sua vez não tem também a atenção que desejo de sua esposa às voltas com o filho de ficiente Mas nem só de desentendimentos vivem as fa mílias com elementos doentes Existem pais que sa bem como distribuir atenção e afeto que discutem os problemas com todos e conseguem a partir daí maior harmonia apesar da situação traumática exis tente Muitos são os que pedem ajuda para ultrapassar os momentos de crise Muitos são também os adoles centes transplantados que têm um desenvolvimento e uma vida sexual satisfatória namorando casando e tendo filhos Vale salientar que há muitos casos com evolução feliz a despeito das limitações CONSIDERAÇÕES FINAIS Procurouse no desenvolvimento deste traba lho enfocar os efeitos emocionais dos doadores de rim dos receptores e da equipe multidisciplinar todos envolvidos no processo pré trans e pósoperatório No que se refere ao receptor percebeuse que seu restabelecimento costuma ser mais rápido quan do tem um bom relacionamento com o doador Por outro lado quanto recebe um rim doado por um mor to desnecessário lembrar o conceito contemporâneo de morte encefálica tende a princípio a encarálo como um objeto estranho e de doador desconhecido dentro de seu corpo o que pode leválo a apresentar reações psíquicas diversas e até mesmo chegar a um estágio regressivo profundo Notamos ainda que de forma geral os recepto res que antes de adoecer tiveram uma participação social e profissional ativa com gratificações e reco nhecimentos restabelecemse com menor dificulda de Voltam a seus afazeres e retomam o seu papel an terior reintegrandose após o período de adaptação póstransplante Os que não tinham projeto de vida bem arquitetado eram desinteressados improduti vos tinham o ego fragilizado e baixa autoestima com ganhos secundários na doença tendem a dificultar sua volta aproveitandose do estado patológico e das regalias adquiridas enquanto doentes A partir da análise dos dados obtidos na obser vação do doador podese notar que atitudes de pres são no sentido de fornecimento do órgão frequen temente ocasionam desistências durante o período de entrevistas e exames ocasião em que a pressão é mais intensamente pesquisada e esclarecida O doador que leva adiante o processo de trans plante via de regra apresenta após a cirurgia ele vada autoestima e um sentimento de estreita união com o receptor Este quadro pode entretanto ser in vertido quando se observam reações de frustração e depressão além do recrudescimento da sensação de castração Com o objetivo de acompanhar avaliar e ajudar a vivenciar e elaborar da melhor forma possível os processos a que esses pacientes estão submetidos é que temos desenvolvido todo um trabalho em Psico nefrologia no HSE Este tipo de trabalho exige da equipe um alto nível de tolerância à frustração O próprio fato de nos termos detido na análise das principais dificuldades com que nos deparamos evidencia que os percalços são muitos A avaliação do bom resultado do acom panhamento psicológico é relativa e talvez nem mesmo possa estar atrelada à do sucesso do trans plante Mesmo em casos de mau êxito da cirurgia devese procurar levar a bom termo a tarefa de fazer Psicossomaticaindd 383 Psicossomaticaindd 383 05012010 121218 05012010 121218 384 Mello Filho Burd e cols com que o paciente suporte e se adapte a esta reali dade e leve adiante sua vida apesar do incômodo de sua doença O transplante como processo envolve constan temente certa complexidade Várias dimensões cha mam a atenção a começar pela doença até há pouco letal e passando pela decisão da terapêutica heróica que substituirá a dependência da máquina pela espe ra angustiante de um órgão pela eleição e preparo de um doador pelas esperanças e frustrações do pacien te renal receptor e chegando até um resultado vito rioso ou fracassado Mesmo assim parece compen sadora tal atividade pois o que se busca é prolongar vidas a serem usufruídas sem sofrimento o que se faz enfrentando morte e triunfando sobre ela REFERÊNCIAS Ardid R R Psicología médica 2 ed Barcelona Espaxs 1974 Basch S H Emotional dehiscence after sucessful renal transplan tation Kidney Intemat v 17 p 388396 1980 Chiattoni H B C Camon V A A Meleti M R et al Psicotera pias alternativas v VII São Paulo Traço 1977 Cramond W A Some observations on recipients and donors in kidney homotransplantation Brit J Psychiat v 136 p 1223 1230 1967 Fellner C I Marsahall J R Kidney donors The myth of infor med consent Amer J Psychiar v 9 p 7985 1970 Freud A O Ego e os mecanismos de defesa 8 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1986 Kemph J P Renal failure artificial kidney and kidney transplant Amer J Psychiat v 122 p 12701274 1966 Psychotherapy with patients receiving kidney transplant Amer J Psychiat v 127 p 623629 1967 Klein M Inveja e gratidão Estudo das fontes do incons ciente 2 ed Rio de Janeiro Imago 1984 O sentimento de solidão Nosso mundo adulto e outros ensaios 2 ed Rio de Janeiro Imago 1975 Laplanche J Pontalis J B Vocabulário da psicanálise 10 ed São Paulo Fontes 1988 Levy N B Psychonephrology 1 New York Plenum 1983 Psychonephrology 2 Lima M G Lima A C L Pacientes renais crônicos e transplanta dos J B M v 45 p 2427 1983 Lopez M Quatro gigantes da alma Rio de Janeiro Olympio 1983 MCDougall J Em defesa de uma certa anormalidade Teoria e clíni ca psicanalítica 10 ed Pono Alegre Artes Médicas 1989 Teatros do eu Rio de Janeiro Francisco Alves 1982 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual 3 ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 Nordberg M When patients die handling grief in the dialysis unit Dialysis and transplantation Amer J Psychiat v 19p 164 169 1990 Osório L C et al Grupoterapia hoje Porto Alegre Artes Médicas 1986 Perestrello D A medicina da pessoa 3 ed São Paulo Ateneu 1982 Sadler A M Sadler B M Sterson E B The uniform anatomical gift act JAMA v 206 p 25012506 1968 Sierra M R Fundamentos doctrinales para una psicologia médica Barcelona Toray 1978 Siemmons R G Hennen L K The living related kidney donor Psychological reaction when the kidney fails Dialysis and Trans plantation Amer J Psychiat v 8 p 572574 1979 Sontag S Aids e suas metáforas São Paulo Companhia de Letras 1989 Spital A Spital M Kidney donation Reflextions Amer J Ne phrol v 7 p 4954 1987 Stedeford A Encarando a Morte Porto Alegre Artmed 1986 Sulaiman M A Khader A A Impact of HIV infection on dilysis and renal transplantation Transplantation ProCeedings v 21 p 197019711989 Zaidhaft S Mone e formação médica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 384 Psicossomaticaindd 384 05012010 121218 05012010 121218 Trabalhar em hospital geral implica em pensa mentos e questionamentos sobre como fazer psica nálise quando a dor física se envolve com a psíquica e como se pode organizar manter e ter resultados assertivos no cuidado com a população que se encon tra dentro da estrutura hospitalar a mercê de uma equipe responsável por sua melhora alterando sua rotina penetrando interna e externamente invadin do muitas vezes sem pedir licença As respostas vão aparecendo ao longo do tempo tomando forma com a real melhora dos pacientes tratados em contraposi ção aos que não são acompanhados Uma entre infinitas questões referese à doença como um movimento corporal a partir de que Re sultado de várias figuras que introjetou vários fatores ambientais genéticos comportamentais acúmulo de experiências e de emoções O que é possível respon der certamente corresponde a há uma história para cada um O corpo terá de se adaptar criando meca nismos que passam a ser a sua realidade Para os que adoecem de enfermidades denomi nadas crônicas e terminais há várias formas de te rapêuticas clínicas que visam a facilitar a integração com a doença podendo assim proporcionar um sen timento de alívio Podemos incluir os transplantes de órgãos e tecidos que se apresentam como tratamen tos alternativos abrindo espaço para a regeneração de células e de tecidos para uma possibilidade de reaberturas de transformação de renascimento Pro porciona aos candidatos maior sobrevida com melhor qualidade de vida e até a cura O transplante não é um procedimento simples Envolve coragem sacrifício na preparação no ato propriamente dito e depois Tratase de uma ope ração casada onde doador e receptor formam um par em uníssono em prol de um objetivo comum a melhora do paciente Nos dicionários transplantar significa arran car planta árvore de um lugar e plantar em outro substituir um órgão do corpo humano por outro fazer passar costumes instituições etc de um país para outro Um dos significados para a palavra órgão é uma parte do corpo de um ser vivo determinada a cumprir uma função vital Sabemos que quando nos sos órgãos funcionam a contento parecem até nem existir Tornase difícil aceitar que algo não cumpre sua função dentro de nós e que se nada for feito não há conserto O transplante de medula óssea é a esperança de cura para portadores de leucemias e doenças do san gue O objetivo é restabelecer a hematopoese após aplasia medular A medula óssea é um tecido localizado dentro dos ossos principalmente os da bacia É onde se ori ginam os componentes do sangue É também onde estão os glóbulos vermelhos brancos e plaquetas São os elementos fundamentais para transportar oxi gênio controlar os processos de hemorragia com as plaquetas e as defesas do organismo O paciente que necessita de um transplante de medula óssea sabe que a existência de um doa dor geneticamente compatível é imprescindível para tentar reativar o funcionamento do que está lesado dominando um mal que parece invencível Este sofre muitas transformações físicas e emocionais e muitas vezes sentese incapaz com sintomas causados por múltiplos fatores que vão desde efeitos colaterais das medicações dores físicas a sensações psicológicas de dependência e privação e de despersonalização A expectativa da compatibilidade com um doa dor gera angústia e suscita dúvidas sobre quem será seu provável salvador no seio da família O paciente vai viver com uma parte de alguém que lhe é fami liar Há no entanto uma rede estruturada pelo Mi nistério da Saúde com respaldo da Legislação para que o transplante de medula óssea entre não apa rentados transcorra a contento quando não há um parente geneticamente compatível com o portador de doenças do sangue Mais de 60 encontramse 29 TRANSPLANTES DE MEDULA ÓSSEA ENTRE DOADORES E RECEPTORES NÃO APARENTADOS AVANÇOS BIOPSICOLÓGICOS Miriam Baron Psicossomaticaindd 385 Psicossomaticaindd 385 05012010 121218 05012010 121218 386 Mello Filho Burd e cols nesta situação A população brasileira é heterogênea complexa e variada fruto de grande miscigenação Estimase que a chance de se encontrar um doador voluntário compatível é de 1 para 100000 O REDO ME Registro Nacional de Doadores de Medula Ós sea é responsável por cadastrálo através dos hemo centros de todo o país Utiliza um sistema que avalia a compatibilidade genética HLA identificando os potenciais candidatos para os pacientes inscritos no REREME Registro Nacional de Receptores de Medu la Óssea Estes dois órgãos estão em funcionamento no Instituto Nacional de Câncer INCA sob a super visão técnica do Centro de Transplantes de Medula Óssea CEMO Os pacientes preparamse para receber dentro de seu corpo um tecido de um doador voluntário o que gera diversas reações O doador por sua vez que altera sua rotina e se propõe a tentar salvar uma vida merece toda a atenção pois vai ser retirada uma parte do que é seu em favor de um desconhecido já que ao se cadastrar preen che um Termo de Consentimento comprometendose a manter o anonimato durante todo o processo O ser humano costuma fazer permutas quando se trata de ofertas Podese então doar algo sem re ceber nada em troca nem mesmo saber com quem se troca Qual o simbolismo contido em um ato no qual há um impedimento real Neste momento afloram questões éticas bem como fenômenos psicológicos que podem ocorrer antes fantasias durante expectativas e depois encontros e desencontros na vigência do anonima to do par A dificuldade de lidarmos com o invisível nos faz desistir de certos atos de evitarmos outros ou mesmo de nem experimentarmos Ao invés de ima ginar ou intuir negamos dando lugar ao medo de vivenciar algo novo desconhecido e incerto O es sencial é invisível aos olhos é a ideia de Antoine de SaintExupéry no livro O Pequeno Príncipe Como é complexo não podermos tocar apalpar Parece que o que é concreto dá menos medo porque estamos olhando supostamente controlando Por mais que não haja identificação física entre o par paira no ar uma sensação de que se estabelece um contrato não verbal um contato não no plano físico porém incons ciente entre os dois Há um sentimento de igualdade de relativa simbiose de aliança onde não é possí vel separar as partes Por isso o doador precisa estar bastante informado de corpo e coração aberto para poder ajudar no momento da transferência de sua medula óssea saudável e compatível ser introduzida no interior do seu par O que se trabalha efetivamente com o paciente na preparação para o transplante são os sentimentos mais comuns de abandono os medos da dor da mor te das mudanças extra e intracorpóreas da rejeição amparados pela esperança do sucesso do procedi mento Nos doadores voluntários encontramos senti mentos contraditórios medo de tirarem algo que é seu sem volta das perdas da castração lidando en tão com a falta relativa Por outro lado há curiosida de autoestima elevada sentindose fortalecido e re compensado pelo seu gesto de generosidade Ao ser avaliado psicoclinicamente no prétransplante tem a oportunidade de fazer uma autoavaliação observan do a importância de sua saúde física e mental entrar em contato consigo próprio num check up duplo o seu e o realizado pela equipe especializada do centro de transplante O doador não aparentado tem aparentemente mais motivos para desistir Não tem muito a perder nem mesmo conhece pessoalmente o sujeito respon sável objeto alvo a ser salvo por ele não tem víncu los afetivos diretos não é pressionado pela família ou pelos amigos É livre para decidir sobre os prós e os contras se quer estar disponível para se ausentar no trabalho por alguns dias interromper a rotina sentir incômodos pequenas dores enfrentar possíveis me dos de ser anestesiado puncionado hospitalizado remexer sua identidade da morte Estudos sobre doação de órgãos e tecidos indi cam que o TX é visto como um presente de abertura de um novo ciclo de trocas A doação de um órgão recria uma relação de parentesco simbólico entre o par doador e receptor cuja categoria mediadora é o corpo As representações sobre transplante de órgãos e tecidos dão conta de que o que se dá é vida ou seja doar significa estabelecer uma relação de reci procidade Aceitar algo de alguém é aceitar algo de sua essência Por isso não é tarefa fácil retribuir Tra tase de uma questão que ultrapassa procedimentos clínicos e cirúrgicos Os psicanalistas Leon e Rebeca Grinberg escre veram sobre a dificuldade de enfrentar mudanças e como elas são geradoras de desintegrações A capaci dade de seguir sendo o mesmo após sucessivas ocor rências de mudanças aceitando a perda dos vínculos antigos forma a base da experiência emocional da identidade enfrentando o medo da perda A dinâmi ca do transplante impõe ruptura de hábitos anterio res É necessária adaptação à nova rotina de vida A experiência no preparo planejamento e acom panhamento dos transplantes entre não aparentados revela que um percentual razoável de doadores e a maior parte dos receptores e familiares em especial de crianças desejam se conhecer A Legislação Bra sileira determina porém manter o anonimato entre ambos Psicossomaticaindd 386 Psicossomaticaindd 386 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 387 Psicólogo e assistente social são os intermediá rios no recebimento de telefonemas emails e pedi dos vindos de todo o país para que seja permitida a revelação Querem pelo menos enviar correspondên cias desenhos crianças fotos algo que pertença a ele e que chegue às mãos do outro fazendo trocas conectandose identificandoo de alguma maneira Segue partes de algumas cartas enviadas por pacien tes a seus doadores anônimos quando o transplante foi bemsucedido Eu receptor de medula óssea agradeço a Ds to dos os dias por você existir Gostaria de te conhe cer e ter a oportunidade de dizer o quanto você foi importante em minha vida A medula pegou 100 vai completar um ano Você é parte da mi nha história Oi tudo bem Eu sou o garoto que recebeu a sua medula Agora eu já faço tudo Já vou para escola já faço de tudo e não preciso mais ir para o hospital por causa dessa medula Com essa me dula eu já sou um menino normal e melhor Meu grande amigo Não tenho palavras para te dizer o quanto estou feliz por você ter aparecido na minha vida De uma mãe A sua generosidade de se colocar em nossas vidas teve um efeito de transforma ção Hoje é o seu sangue que corre nas veias do nosso filho A nossa ligação é fraterna Venho por meio desta agradecer seu coração bondoso por ter me proporcionado a oportuni dade de continuar a viver podendo compartilhar sua vida com a minha Somos irmãos por parte de Ds e agora somos irmãos de sangue Os doadores se interessam em saber se os recep tores estão vivos se houve pega do enxerto se estão bem de saúde sem rejeição ou intercorrências gra ves Percebese o quanto se sentem diferenciados por terem realizado um grande ato de bondade Alguns se aquietam e se dizem abastecidos não necessi tando da presença física do outro para completar o sentimento de paz interior por ter tido um gesto ím par e compensador seguindo sua vida normalmente Parecem ter feito um investimento que deu lucro ter realizado um desejo especial ou ter vivido a fantasia do herói anônimo Uma frase conhecida é lema de muitos Fazer o bem sem saber a quem Os pacientes com o passar do tempo e o trans plante bemsucedido sentem sua identidade reforça da e melhoram nos aspectos sóciopsicofísico Parece natural ver a cara do responsável pela sua recupe ração Após relato da dinâmica deste trabalho espera se que esteja bastante evidente a importância de cui dar em igual medida e proporção das duas partes em questão doadorreceptor respeitando sempre suas peculiaridades Podese supor no entanto que devido à ten dência de apoiarmos quem aparentemente nos pa rece mais frágil a prioridade seria nos dedicarmos ao paciente que se encontra em posição delicada de dependência total Após estudos teóricos análise de casos e prin cipalmente através da prática institucional e da com preensão dos fenômenos existentes no processo de transplante de medula óssea entre não aparentados aliado a integração entre os envolvidos neste proce dimento reunimos uma série de casos e vivenciamos variadas situações entre doadores que permitem ra tificar o descrito até o momento A seguir vale comentar o desfecho de um trans plante bemsucedido quase não realizado em função da candidata à doação tratarse de uma jovem universitária cadastrouse em campanha na universidade de 19 anos receptiva partici pante interessada cuja mãe colocouse contra não permitindo que preparássemos sua filha questionando o programa e duvidando da serie dade da equipe e do destino da medula de sua filha Foram necessárias algumas sessões para es clarecimentos e trabalho terapêutico com ambas Entendermos em meio a choro e desabafo que houve um problema sério de doença na família cujo paciente com diagnóstico de câncer veio a falecer sem a chance de tentar um transplante de medula óssea indicado para o mesmo Ao ser contatado para marcação de data para a co leta de medula o candidato reagiu ao confirmar que não conheceria seu par apesar de já lhe ter sido informado sobre a questão da confidenciali dade Tal fato tende a ocorrer próximo ao ápice do processo quando o doador efetivamente cons trói para si próprio uma figura que deseja conferir fisicamente Algumas sessões de psicoterapia são necessárias neste contexto para elaboração da situação de conflito e separação da possibilidade de uma simbiose virtual unilateral Um doador resistiu durante um tempo até com preender que realmente não lhe seria retirado um órgão sólido mas sim apenas uma quantidade de sua medula óssea o suficiente minimizando as sim ansiedade e sentimento de castração Referia muito medo de se tornar deficiente M sexo feminino casada sem filhos desejosa de ser mãe Considerase uma pessoa rígida res ponsável tranquila decidida religiosa Traba lha numa igreja com crianças carentes Durante anamnese relatou alguns sonhos ocorridos des Psicossomaticaindd 387 Psicossomaticaindd 387 05012010 121218 05012010 121218 388 Mello Filho Burd e cols de nosso primeiro contato telefônico Neles está sempre doando uma parte de si para uma criança doente salvandoa Vale ressaltar que certos doadores durante a espera para a hora da doação propriamente dita sentemse especialmente ansiosos temendo pela vida do seu receptor Este tempo varia de caso para caso No exemplo a seguir mostraremos a reação de um doador nesta fase É nítido o desejo inconsciente de não haver mais o transplante já que o paciente pode ter superado a doença Estou enviando esta mensagem pois fui procu rado por vocês aí do REDOME para fazer novo tes te de compatibilidade que foi confirmado A partir disto recebi uma carta Queria saber de vocês como anda o processo de tratamento deste paciente que sou compatível já que sei da necessidade deste trans plante para ele e das dificuldades de se encontrar um doador Há também a preocupação da minha parte em relação a este paciente claro que gostaria de ter notícias que não precisará do transplante devido a melhora clínica do mesmo inclusive estou na torcida por isso O transplante como processo envolve constan temente certa complexidade Percebemos que há um aumento substancial de doadores voluntários e que o cuidado no preparo dos mesmos quando selecio nados evita suspensão adiamentos e desistências multiplicando o número de compatibilidade entre os pares cadastrados no programa REDOMERERE ME gerando mais possibilidades mais transplantes bemsucedidos com resultados vitoriosos ajudando o paciente a reorganizar sua vida no presente e no possível futuro REFERÊNCIAS Atié KS A clínica do sujeito transplantado uma reflexão sobre os artifícios utilizados pelo paciente oncológico no enfrentamento do transplante de células tronco hematopoiéticas Baron M 1992 Transplantes Renais In Mello Filho J Psicos somática Hoje Porto Alegre Artmed Blood A Special Report Bone Marrow Transplants Using Volun teer Donors Recommendations and Requirements for a Standar dized Practice Throughout the World 1994 Update The Journal of American Society of Hematology November 1 1994 vol 84 number 9 Borges ZN 1995 A Construção Social da Doença Um Estudo das Representações Sobre o Transplante Renal In Leal O org Corpo e Significado Ensaios de Antropologia Social Porto Alegre Ed Da UFRGS Epelman Claudia L Quimioterapia em Altas Doses e Transplante de Medula Óssea Aspectos Psicológicos Acta oncológico Brás Vol 17 número 2 6769 AbrilMaio 1997 Grinberg L e Rebeca 1971 Identidade Y Cambio Buenos Ai res Ediciones Kargieman Klein M 1975 O Sentimento de Solidão Nosso Mundo Adulto e Outros Ensaios 2ª ed Rio de Janeiro Imago Lamb D Transplantes de Órgãos e Ética Ed Soc Bras De Vigi lância de Medicamentos São Paulo 2000 Mello Filho J 1983 Concepção Psicossomática Visão Atual 3ª ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro Perestrello D Trabalhos Escolhidos Psicologia Médica Psicosso mática Psicanálise Psicossomaticaindd 388 Psicossomaticaindd 388 05012010 121218 05012010 121218 O vínculo da vida com o tempo cria pares de opostos temporais como início e fim nascimento e morte começo e término A dinâmica da vida e da consciência dela nos traz um aprendizado pessoal de morte e de renascimento ao longo do seu curso e desenvolvimento Um certo ensinamento do poder da vida de superar a morte e o vínculo desta com o tempo Ao mesmo tempo a nossa tradição judaico cristã nos faz conviver com uma divindade que nos fala da graça e virtude sobrenaturais como se ela a nossa tradição fosse contra a vida A vida se torna algo desprezado em vez de celebrado e o corpo algo horrível em vez de fantástico Fraser 2004 Evoluímos nesta série temporal do nascimen to à morte atravessando estações epigeneticamente determinadas em que o nosso corpo físico começa e tem uma história na qual em seu início a identidade do individuo é mais aquela do corpo e se encaminha para um outro polo ao longo do qual o indivíduo se identifica mais com a consciência que anima o corpo A consciência de ser e de ter sido bem como a cons ciência de não ser Conhecemos o sagrado e vivemos uma participação também alegre com as tristezas do mundo Erik Erikson 1976 pontua com enorme preci são quando descreve a velhice a fase do crescimento em que a polaridade é de integridade ou desespero e o objetivo a conquista da fase é a sabedoria que você só pode encarar o não ser o término a morte o fim pelo ter sido A aquisição de uma consciência sobre o sentido e o significado da própria existência As ciências jurídicas e a justiça não consideram legal que se morra porque a vida chegou a um fim por maior que seja a noção de que a vida acaba que nascemos crescemos amadurecemos envelhecemos e morremos Morrer de velhice em todas as culturas contemporâneas é uma coisa ilegal Tem que haver uma causa mortis definida no atestado de óbito ou de outra forma haverá a necessidade de uma necrop sia para que esta causa mortis seja definida Morrer simplesmente porque a vida chegou ao fim não é pos sível do ponto de vista legal Os avanços tecnológicos não apenas trouxeram um razoável controle sobre as doenças degenera tivas prolongando a nossa longevidade bem como disponibilizaram avanços na manutenção de vida cuja utilização de forma inapropriada provocaram e conti nuam provocando movimentos sociais pró eutanásicos sobre a dignidade e o direito de morrer O custo destas futilidades uso inapropriado destas tecnologias trouxe pesquisas sobre o comportamen to de médicos e pacientes em condições de terminali dade afim de que pudessem ser criados protocolos de manutenção de vida de não iniciação de determina dos tratamentos de suspensão de tratamentos já ini ciados bem como a regulamentação legal destas con dutas Em consequência destes estudos na Holanda foi regulamentada a eutanásia em 1995 e nos Estados 30 A MORTE E O MORRER A ASSISTÊNCIA AO DOENTE TERMINAL Francisco José Trindade de Barreto O vínculo da vida com o tempo Diz o começo e o fim da nossa sorte Da vida diz do nascimento a morte Da duração de cada vão momento Mas o poeta ao refazer instantes Cria eternos cria infinitos Traz vida à sombra e da cor ao grito Transcende ao que jaz ao fio cortante Do tempo criador de finitudes Desfaz as ilusões sonhos recria Num bailado real de fantasia No compromisso sutil das atitudes Psicossomaticaindd 389 Psicossomaticaindd 389 05012010 121218 05012010 121218 390 Mello Filho Burd e cols Unidos não foram possíveis de passar os projetos de lei sobre o suicídio assistido mas se legislou advanced directive act em 1992 e o living bill que permitem ao doente escolher suas preferências de tratamento e aos médicos serem consoantes com isso em relação à prescrição de ordens médicas contra os procedimen tos de ressuscitação DNR do not ressucitate CMO comfort measures only iniciação ou suspensão de ventilação mecânica e alimentação por sonda A medicina em si vive uma época de grandes mudanças Tornouse um grande mercado no qual a eternidade é quase possível de ser comprada e a morte é quase também uma opção O aspecto de pre venção tem sido superenfatisado A doença e a saúde passaram a ser mercadorias de consumo e a seguir leis de mercado Mudou o paciente que passou a ser um consumidor um usuário e eventualmente uma pessoa que sofre A relação médicopaciente também se modificou Os reflexos disso sobre os cuidados com os pacientes terminais trouxeram duas novas espe cializações A primeira é a do especialista em cui dados paliativos Uma outra em caminho é a dos Hospitalistas uma especialização em cuidados dos doentes que necessitam de hospitalização Os hospi tais aos poucos vão se tornando facilidades somente para doentes agudos e os médicos de hospital vão se aperfeiçoando no cuidado das condições agudas Os doentes crônicos vão assumindo uma posição de mais autonomia e assistidos na web por sites governamen tais dos sistemas de saúde e assistência telemédica Houve uma grande explosão em todo o mundo nos últimos 15 anos de um novo tipo de hospital que abri ga e rege os cuidados dos doentes terminais que são os Hospices Entre outras coisas oferece a possibilida de de mortes com dignidade sem muita medicaliza ção mas com um programa sobretudo de assistência aos doentes terminais em casa Eles passaram a ser o quartel general da medicina paliativa e a liderança do movimento da boa morte Que tipo de informações estes profissionais deveriam ter quando seus doentes tornamse terminais Que tipo de formação capacita riam estes profissionais para cuidar dos seus pacien tes terminais Que tipo de cuidados Como toca ao médico a equipe de saúde a morte do outro Como ele sente a morte do seu doente Como vive isso A intensidade com que se vive depende da experiência com o que se vive Esta intimidade é diferente entre as diversas especialida des médicas De um modo geral o médico tem mais intimidade com a morte tantas mortes vê ao longo da sua carreira profissional tantos óbitos atestan do que a intensidade com que vive a morte do ou tro é mais atenuada Ao longo da carreira quando olha para trás e a cada nova vivência ele vai des cobrindo neste seu cemitério pessoal que nenhuma das mortes foi igual à outra Os cenários podiam ser os mesmos a UTI do Hospital a enfermaria a casa do doente a emergência o ambiente do trauma a catástrofe como o terremoto e uma certa coletivida de de mortes mas cada uma é única Cada uma tem uma assinatura diferente uma singularidade que se torna difícil falar de um modo geral da morte do outro mas também do sentimento de si próprio a vivencia daquela morte em si Os seus mecanismos de defesa com frequência os levam a uma extrema e quase histriônica frieza uma bela indiferença diante da morte do outro que ao espectador alheio chega a ser vista quase como um certo modelo pertinente a certas culturas médicas donde há necessidade de um melhor preparo da equipe de saúde para otimizar os cuidados de assistência ao doente terminal Os cenários também oferecem uma plasticida de ao processo bem como traçam os enredos dos protagonistas da equipe e dos doentes Nada mais desolador que o término de uma ressuscitação cár diopulmonar do doente que chega à emergência em parada cardíaca O esforço e o trabalho coordenado da equipe de ressuscitação capazes de dar a sua últi ma gota de sangue por aquela vida A guerra perdida Aquele desconhecido é deixado no campo da batalha extinta devolvido aos seus familiares também des conhecidos e já sem vida É um cenário de desolação dos mais profundos A possibilidade de retornar à vida contornar a crise biológica nos pacientes de UTI traz o sentimen to de perda confortado pela certeza da utilização do que se dispõe de tecnologia para a preservação da vida A utilização destas tecnologias de ponta nos faz conhecer situações que são piores que a morte A so brevivência em vida vegetativa de pessoas que leva vam a vida em sua inteireza A coisificação do outro A observação deste enorme repertório nos per mite classificar os pacientes terminais de conformida de com algumas característica que não simplesmente definem os grupos mas que também nos ajudam a definir o tipo de atenção e cuidado de que eles são merecedores A grande importância disto é o reco nhecimento de que algumas terminalidades são re versíveis visto que os condicionantes dela podem ser modificadas QUEM É TERMINAL 1 Pacientes verdadeiramente terminais Eles são portadores de alguma condição letal que os leva rá definitivamente à morte Sua tratabilidade com intenção de cura foi esgotada Não existem trata mentos disponíveis que permitam mudar reverter ou parar o curso da terminalidade Este largo gru Psicossomaticaindd 390 Psicossomaticaindd 390 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 391 po de pacientes até relativamente recente eram deixados ao léu Eram casos de grande atenção e interesse belíssimos casos quando em fase de elaboração diagnóstica apresentados nas rondas médicas mas que se tornavam desinteressantes não despertando mais a atenção da equipe médi ca quando não tinham mais expectativa de cura Este vazio e o desumano desse comportamento vêm sendo sanados nos últimos anos criandose inclusive uma nova especialidade médica para preenchimento deste espaço Pertencem a este grupo todos os cancerosos destinados aos cuida dos paliativos 2 Potencialmente terminais Todos nós somos mas por aspectos peculiares a este grupo per tencem sobretudo os doentes de UTI Eles têm este espaço especial onde se concentra uma aparelhagem sofisticada e um pessoal treinado nos segredos da manutenção da vida em situa ções complexas difíceis multisistêmicas em sua maioria pelo fato da coexistência real da possi bilidade de vencerem a tormenta São ao mesmo tempo pacientes potencialmente recuperáveis e potencialmente terminais O investimento para a sobrevivência deles é todo Tudo disponível e pos sível de ser feito será feito Às vezes até mesmo o impossível se constrói ali Contudo potencial mente terminais somos todos nós Nascemos mas já nascemos com um programa ligado à longevi dade possível de existirmos e ainda que nada de mal nos aconteça durante toda a nossa vida um dia ela vai chegar ao fim É verdade também que do ponto de vista legal isso não é possível em ne nhum rincão da terra Quem morre tem de mor rer de alguma coisa Não existe morte sem causa na forma da lei Temos ao atestar uma morte dizer da causa mortis do tempo da sua existência e a duração desta desde o seu aparecimento até o êxito letal Impossível perante a lei entender que o nascer e o morrer pertencem à vida Olhando a existência desde o seu nascimento até a sua mor te aos poucos a gente vai descobrindo que leva mos tanto tempo para morrer quanto para crescer e ser adultos Este declínio após um certo plate aux na vida adulta vai mostrando e deixando as suas marcas nas pequenas visitas que a morte nos faz As crises hipertensivas a isquemia transitó ria a lesão isquêmica com alguma sequela moto ra ou cognitiva a prostatectomia pelo câncer de próstata a mastectomia pelo câncer de mama a incontinência urinária as falhas de memória etc Enfim começamos a acumular perdas ao mes mo tempo que duramente começamos também a aprender que a vida vai perdendo o seu sentido mercantilista utilitário seu valor de troca Come çamos a aprender que somos apreciados rejeita dos detestados ou queridos pelo que somos e não pelo bem ou pelo mal que possamos fazer aos ou tros Já não podemos mais mudar os filhos que te mos os amigos o companheiro ou companheira e temos que estar quites com eles para podermos partir Eles os outros que nos são significativos também têm de ter essa oportunidade para que não fique neles uma dívida existencial difícil de ser resgatada após a nossa morte Isso nos coloca diante de um tremendo e delicado universo de trabalho com o doente terminal e nos faz con frontar a necessidade profunda Compreendêlo É de interesse lembrar a esta altura dois pontos merecedores de destaque a Que todo o processo de cura é também um processo de mudança da história da vida pes soal Muitos dos nossos clientes não querem não podem ou se sentem incapazes de mudar o rumo da sua história pessoal A morte é uma escolha Morrese por covardia b Você só pode encarar o não ser pelo fato de ter sido Erik Erikson Em outras palavras você só pode encarar morrer se você viveu A an gústia de morrer é um equivalente à angústia existencial de não ter vivido A vida de lado As escolhas convenientes A não distinção en tre um chamado e um apelo A não separação entre o essencial e o supérfluo A morte não vem como a companheira desejada a coroa é conferir a legitimidade da vida 3 Pseudoterminais e mentalmente terminais São grupos de pacientes em que o processo de terminalidade começa na mente Pseudoterminais são aqueles que interpretam de modo errôneo a sua realidade Julgamse incuráveis e se tornam incuráveis porque se pensam assim No fundo há uma antecipada impossibilidade de suportar o so frimento vindouro ou um déficit de aprendizado para lidar com o sofrimento Suas fantasias sobre sua realidade estão no mesmo patamar das coisas sagradas têm o mesmo valor de uma crença ou uma fé e não necessitam de provas Guardam nas para si Muitas vezes pelo preconceito que tem sobre os profissionais de saúde sobretudo os médicos que piedosamente assim suspei tam ocultam verdades maiores Às vezes há um profundo estoicismo pelas coisas às quais se dá à vida porque também não se oferta a morte A natureza criou mecanismos de misericórdia para aqueles que estão condenados a um sofrimento que são incapazes de suportar Certa fisiologia da morte Em um trabalho clássico da psiconeuroi munologia dos mais clássicos e contundentes o Psicossomaticaindd 391 Psicossomaticaindd 391 05012010 121218 05012010 121218 392 Mello Filho Burd e cols dos dois ratos em jaulas diferentes submetidos a choques elétricos com certa periodicidade So mente em uma das grades havia uma pedaleira que desligava a corrente e eles paravam de so frer A avaliação da resposta imune dos linfócitos transformação blástica produção de imunoglo bulinas a sobrevivência a implantação de cân cer em peritônio permaneceu normal no animal que tinha a pedaleira em sua grade Quando começa a terminalidade O quê o como e o quanto comunicar Como viver a terminalidade Questões simples e importantes e que requerem res postas honestas e bem fundamentadas ao fim da vida Kastenbaun 1981 traz uma excelente revisão sobre as definições pragmáticas de onde começa a morte em sua perspectiva psicossocial Há um mo mento em que a pessoa não está morrendo e um ou tro momento em que se instala o processo biológico que o levará à morte É contudo ao nível do pensar e sentir da comunicação interpessoal que o início do processo se define a si mesmo O momento ou os vá rios momentos em que o processo se instala podem então ser melhor discriminados 1 A morte começa no reconhecimento dos fatos 2 A morte começa quando os fatos são comuni cados O prognóstico do médico e a tomada de consciência pelo paciente ocorrem em tempos di ferentes Com frequência ocorre um intervalo de tempo razoável antes que o médico revele com clareza e precisão ao paciente sobre os achados que obteve e o real significado 3 A morte começa quando o paciente toma consciên cia ou aceita os fatos 4 A morte começa quando nada mais poderá ser feito para a preservação da vida Há quem julgue que a vivência da terminalidade começa a par tir da comunicação colocando uma carga extre mamente pesada no ato de dizer que soa como uma sentença ou uma condenação instituída por aquele que proferiu o julgamento da nossa condição de saúde Há uma competência a ser adquirida Habilidades em comunicar notícias ruins prognósticos e redefinição de esperança ao longo do tratamento A comunicação tem que ser profissional mas mantendo o equilíbrio com a compaixão e a empatia Vezes há em que não existe unanimidade em relação ao diagnóstico ao prognóstico e até mesmo ao tratamento dentre os profissionais de uma mesma equipe Como con sequência os familiares ouvem diferentes pontos de vistas dos cuidadores e com frequência isso adiciona confusão hostilidade raiva e frustração por parte deles Os preconceitos pessoais sobre a morte e o morrer interferem na nossa habili dade de uma comunicação efetiva com familia res e pacientes Estes preconceitos muitas vezes culturais levantam barreiras entre o individuo e a sua doença sua condição de terminalidade Estas barreiras constroem uma das mais frequen tes formas de indignidade ao fim da vida que é o isolamento do paciente ao morrer Não se res tringe ao isolamento dos pacientes em UTI para uso de uma tecnologia sofisticada mas ao mundo íntimo O compartilhamento dos conflitos exis tenciais das despedidas das últimas palavras do aconselhamento aos que ficam O não dito é o grande mentor deste isolamento Isso nos levou a uma exploração não verbal desta situação em que os jogos predominam e ao mesmo tempo nos livrou da condição de ser o mensageiro do fim da vida e anunciador da morte A SÍNTESE DE OPOSTOS A síntese de opostos é um trabalho não verbal realizado com desenhos É de uma extrema simpli cidade e de fácil aplicação de riqueza indescritível Com os desenhos da síntese de opostos pedimos ao paciente para fazer uma sequência de desenhos Ins truções simples Pedimos inicialmente que faça um desenho do que seja para ele o seu problema con forme ele o percebe e sente Ao acabar o primeiro desenho pedimos a ele que faça um novo desenho que represente o que seja para ele o oposto ao pro blema Por vezes alguns pacientes têm dificuldade de criar uma imagem gráfica do problema mas são capazes de desenhar o oposto ao problema quando então retornam para fazer o primeiro desenho Após a execução do segundo desenho pedimos a ele mais um desenho Um desenho que tenha o problema e o oposto Um desenho síntese A grande maioria dos pacientes oncológicos foi incapaz de fazer um dese nho síntese Ao cabo do terceiro desenho voltamos aos desenhos com o paciente Apontamos os dese nhos e indagamos o que representam um a um No primeiro desenho lembramos que havíamos solicita do que ele fizesse um desenho que representasse o que para ele era o seu problema Pedimos para ele falar sobre o desenho o que ele quis dizer e o que ele representa Sucessivamente voltamos ao segundo e ao terceiro desenho Na grande maioria das vezes com os doentes oncológicos o terceiro desenho ine xiste Comentamos sobre a falta de imagem o branco e inquirimos sobre o que representa aquele branco Do que se constitui o que o compõe Do que ele é feito A falta de imagem invariavelmente representa o mundo dos aspectos controversos que temos sobre Psicossomaticaindd 392 Psicossomaticaindd 392 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 393 o tratamento a ser estabelecido ao mesmo tempo que nos põe em contato com o mundo de valores dos pacientes permitindonos a este ponto estabelecer um contrato ético conhecendo os limites dele e os limites que impõe ao nosso desejo de ajudálo es tabelecendo o mapa da nossa caminhada juntos Os desenhos podem ser classificados em três modelos exemplificados nas Figuras 301 302 e 303 Duas outras grandes revelações vieram do trabalho com os desenhos A primeira e surpreendente REVELAÇÃO dos trabalhos com desenho é que todos os pacientes on cológicos que viviam o jogo a mentira piedosa sem exceção sabiam que tinham câncer Jogavam o jogo da proteção dos seus familiares por sabêlos incapa zes de suportar a realidade o mesmo jogo que os familiares jogavam para protegêlo o que impedia que eles vivessem o âmago dos sentimentos mais ín timos mais significativos para a qualidade do tempo que viviam A segunda e igualmente surpreendente revelação é que os pacientes tinham também os mesmos confli tos os mesmos dramas e dilemas da equipe médica sob os aspectos controversos do tratamento deles Os desenhos poderiam ser classificados em três grupos 1 Falta de síntese 2 Síntese lógica 3 Síntese mística Falta de síntese rior a doença olhando a vida de frente de cabeça erguida O terceiro desenho um não desenho uma au sência de imagem um branco constituíase das dú vidas ao seu tratamento Se a doença estivesse tão espalhada como ela poderia operar tudo Ou sofrer irradiação que possivelmente iria apenas piorar a qualidade de vida dela Se a doença não estivesse tão espalhada talvez não valesse a pena Será que ela iria suportar tanto tratamento Era diabética doente do coração com insuficiência cardíaca anginosa já ten do enfartado alguns anos antes Para que viver tan to com tanto sofrimento Estava feliz com o quanto tinha realizado na vida Talvez um filho precisasse ainda de uns conselhos pois estava se afastando dos valores espirituais e medindo a vida pelos seus valo res materiais Estava ambicioso Ela era católica e não iria se negar a um tratamento para não faltar nas suas obrigações com Deus Só não queria sofrer muito Síntese lógica Os desenhos da figura acima são de uma senho ra de 67 anos de idade diabética e hipertensa que já na primeira entrevista apresentava metástases ósseas e hepáticas de um tumor primitivo de rim O primeiro desenho é de uma representação dos pontos dolorosos no corpo com expressão no tórax e no quadrante superior esquerdo do abdome Repre senta o espalhamento da doença acima e abaixo do diafragma O oposto o segundo desenho é o de um ros to o rosto dela Sadio na condição de vida ante O problema O oposto A síntese O segundo conjunto de desenhos representa uma síntese lógica O primeiro desenho o problema é o câncer de pulmão O oposto o segundo desenho é representa tivo da saúde e o terceiro o tratamento O primeiro desenho representa o problema em que ele estava O traço é a linha da vida e aquela queda representa o abismo em que ele se encontrava A verticalidade da linha é representativa do abismo é o seu câncer de pulmão É de interesse que se diga que até aquele momento ninguém absolutamente ninguém lhe havia falado do seu diagnóstico O segundo o desenho do oposto é a linha da vida no cotidiano com seus altos e baixos O terceiro desenho representa a ameaça que o câncer traz à sua vida e o tratamento A vida cai em qualidade mas ela tem tratamento e prossegue Con tinua em um de menor qualidade suportável Gros seiramente este modelo diz da energia interior do paciente para encarar o problema Diz da tolerância à diminuição da qualidade da vida e talvez diga de um prognóstico melhor pela qualidade da energia vital O problema O oposto A síntese FIGURA 301 Falta de síntese FIGURA 302 Síntese lógica Psicossomaticaindd 393 Psicossomaticaindd 393 05012010 121219 05012010 121219 394 Mello Filho Burd e cols Síntese mística tem mais sentido Evidentemente estes limites são diferentes em diferentes pessoas e à medida que as perdas vão se acumulando tomando assento cres ce também certo tipo de esperança que eles possam deixar o mundo quando a oportunidade chegar sem bips de aparelhos eletrônicos flashes multicoloridos colchões especiais barulhos de ventiladores monito res sofisticados de mil funções que nos tiram a tran quilidade e nos separam daqueles poucos que não nos deixariam morrer sozinhos isolados O credo de resgate da medicina de alta tecnologia prevalece e na maioria das vezes vence Na década de 1990 dois extraordinários estu dos marcaram os cuidados ao fim da vida e começa ram a redefinir uma prática pelos seus resultados O primeiro deles encomendado pelo Estado na Holan da entre 1990 e 1995 consistiu numa avaliação dos procedimentos e condutas de médicos e clientes em fase terminal e trouxe como resultado a legislação sobre a eutanásia e sua implementação legal naquele país em 1995 O segundo estudo realizado nos Estados Uni dos em duas fases e que visava em última análise a dar suporte ao suicídio assistido que teria a sua le gislação elaborada começou em 1989 e foi até 1997 Era um estudo multicêntrico envolvendo mais de 9000 pacientes em estado grave Na primeira fase dita observacional foi feita uma avaliação da disponi bilização de procedimentos desejos e recusas de tra tamentos pelos pacientes solicitação aos médicos de procedimentos eutanásicos e sua distribuição por pa tologias manutenção ou iniciação de procedimentos terapêuticos injustificados pelos prognósticos ofereci dos pelos médicos e que resultavam na indignidade do morrer e na elevação dos custos Em uma segunda fase ia se verificar a influência dos conhecimentos adquiridos na primeira fase na mudança do compor tamento médico A essa altura já se havia legislado sobre o advanced directive act A comparação entre as duas fases do estudo resultou na não mudança do comportamento médico mas na consolidação do ato do governo criando a emenda do advanced directi ve act em que as pessoas que tivessem definido os seus valores e direitos previamente e tivessem seus desejos respeitados Desse modo respaldavase juri dicamente os desejos dos doentes de não serem colo cados em ventilação mecânica artificial de não serem ressuscitadas em caso de parada cárdiorespiratória de terem sonda nasoenteral para nutrição colocada O estudo em si tinha o nome de SUPPORT Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risk of Treatments 1955 Assim a partir destes estudos foi criado o con ceito vigente da boa morte do ponto de vista huma nitário e médico legal bem como foi aberto o espaço O problema O oposto A síntese É bem menos frequente Este terceiro conjunto de desenhos foi realizado por uma senhora de 53 anos de idade com um colangiocarcinoma intrahepático recém diagnosticado disseminado por todo o fígado Até aquele momento ela não tinha sido informada que tinha um câncer No primeiro desenho de uma cruz ela se diz em uma situação de vida e morte que é a forma como ela sente a sua doença Sabe que tem uma doença grave e que as pessoas não dão notícias são reticentes nas informações e ela não tem nenhu ma informação sobre a sua tratabilidade apesar de tantos exames sofisticados realizados No segundo desenho o do oposto a flor representa a vida sadia dela bela e viçosa O terceiro desenho é uma repre sentação no quanto a vida pode ressurgir da morte Um outro plano Uma nova vida Uma nova dimensão quaisquer que sejam os planos de Deus para a vida dela Até mesmo renascer permanecendo viva ven cendo esta batalha ou voltando à casa dele A MORTE NA VELHICE Muitos dos aspectos da morte na velhice são colocados em diferentes partes deste texto Mas defi nir um tópico para isto vem da necessidade de subli nhar alguns aspectos marcantes distintivos se bem que seja ilegal morrer de velhice A morte decorrente do envelhecimento em sua grande maioria e vai se dando aos bocados Os idosos são lentamente sobre pujados pelos defeitos cumulativos do seu processo de desmame da vida o que levou a William Osler 1990 a escrever que as pessoas levam tanto tempo para morrer quanto levaram para crescer A citação de uma paciente idosa do Doutor Alvarez de Chicago é quase legendária quando ela reportava a ele dizendo que a morte continua me dando pequenas mordidi nhas A cada ataque de tonturas quedas desmaios confusão mental ela se tornava mais velha mais he sitante menos confiante em sua memória com uma escrita bem menos legível e seu interesse na vida bem menor Há um somatório de perdas de diminui ção da qualidade de vida além da qual a vida não FIGURA 303 Síntese mística Psicossomaticaindd 394 Psicossomaticaindd 394 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 395 para a conceituação dos Cuidados Paliativos Rapida mente tudo ganhou forma na definição disso como especialidade ou subespecialidade sobretudo dentro da oncologia Sete domínios foram estabelecidos como pertinen tes aos cuidados paliativos de doentes ao fim da vida 1 Decisão centrada na família e no paciente 2 Comunicação dentro da equipe com o paciente e com os familiares 3 Continuidade dos cuidados 4 Suporte emocional e prático dos familiares e dos pacientes 5 Tratamento dos sintomas e medidas de conforto 6 Suporte espiritual dos pacientes e da família 7 Suporte organizacional e emocional para a equi pe Na formação e preparo da equipe que vai lidar com doentes terminais nossa atitude atual tem uma ênfase ou um interesse maior em grupos de sensi bilização como por exemplo a citação abaixo de um dos nossos protocolos de vivência sobre a termi nalidade Trabalhamos com grupos de menos de 20 pessoas e a dinâmica segue em conformidade com o tema No exemplo abaixo de uma das vivências soli citamos que cada um dos participantes ao se apresen tar apresente também a sua lista de prioridades no momento atual da vida 1 Discutir no grupo as prioridades de cada um no aqui e agora 2 Estabelecer para cada um dos participantes uma condição terminal 3 Redesenhar as prioridades neste novo agora 4 Rediscutir no grupo O tema da morte ideal de cada um no grupo 1 Como cada um gostaria de morrer 2 O que seria uma boa morte 3 Expor no grupo as ideias particulares que cada um tem sobre o que seria o seu ideal de morte Estes grupos são profundamente ricos e trazem consciência da necessidade de conhecimento sobre a própria terminalidade abre horizontes sobre a im possibilidade de decidir pelo outro como deveria ser a morte dele qual o melhor lugar para morrer quais os requisitos deste lugar como a possibilidade de tro cas entre o paciente e as pessoas queridas conforto respeito suporte emocional informação cuidado ordenado Podemos divagar sobre o como se morre hoje e onde se morre hoje e identificar alguns sub grupos de doentes terminais que tem especial possi bilidade de morrer em instituições e que necessitam de uma especial atenção posto que algumas destas formas poderiam ser evitadas ou prevenidas Refiro me aos doentes cirúrgicos Com frequência morrem em instituições nas UTIs ou de forma inesperada Os cirurgiões não apenas guardam uma pesada car ga de expectativas Eles devem chegar e resolver São extremadamente receptivos a estas expectativas e ainda se vestem dela como se eles próprios fossem a expectativa desejada Habitualmente são pragmáti cos Além da comunicação perturbada que com mui ta frequência parece uma estrada de mão única em que um fala e o outro escuta e ipsofacto o diálogo fica perturbado a metalinguagem fica também com prometida pois ele nunca sabe se o que ele disse foi o que o paciente escutou e nunca sabe se o que ele ouviu foi o que o paciente quis dizer Por mais claro que possamos ser com o outro nas nossas comunica ções é fundamental ter acesso a como isso chegou a ele Perguntar o que foi contado para ele qual a compreensão do que foi dito o que eles fazem do que foi comunicado Como eles se colocam diante do enunciado Como bate na emoção deles É fundamen tal do mesmo modo ter esclarecimentos sobre os de sejos do paciente e suas emoções Respeitar o dese jo dos pacientes de não quererem ter informações e transferirem as decisões aos seus familiares mas não fazêlo sem que isto seja um desejo expresso deles e estas razões e emoções subjacentes também tenham se tornado claras Usar questões abertas para se as senhorear da dimensão do mundo de valores deles sobretudo no que diz respeito à qualidade de vida e colocar suas fantasias sobre o que eles falam O senhora esta me dizendo que Prover informa ções simples e honestas Algumas mortes que poderiam ser evitadas são decorrentes dessas falhas Abaixo listo algumas dicas sobre a prevenção destas mortes em pacientes cirúr gicos 1 Trabalhar a barganha do tempo 2 Criar uma reserva mental de energia 3 Reconstruir a fé e a esperança 4 Acessibilidade às fantasias do paciente A barganha do tempo é a primeira manifesta ção das qualidades especiais daquele tempo em que se inseriu a necessidade cirúrgica Que qualidades compõem aquele tempo Porque a cirurgia tem de ser feita naquele tempo ou porque se está pedindo o adiamento dela Com alguma frequência há um projeto inconsciente na relação uma proposta não explicitada e o acordo na relação consciente a que foi explicitada é o aval solicitado para a proposta in consciente e que não foi explicitada Psicossomaticaindd 395 Psicossomaticaindd 395 05012010 121219 05012010 121219 396 Mello Filho Burd e cols Boa parte das vezes na realidade na sua grande maioria a cirurgia é proposta como um ato singular e único Resolutivo Quando elas complicam a reserva emocional que o cliente havia feito para tal evento vai se esgotando Os riscos de crise de confiança vão naturalmente tomando assento Eles crescem com o surgimento de novas complicações necessidades de reintervenções e o passo seguinte é o estabelecimento de um quadro depressivo de uma crise de confiança mascarada em boa parte das vezes alimentada pelos comportamentos inadequados Diante de toda uma perspectiva de processos complexos e complicados a melhor imagem para a criação de um saldo emo cional é a de uma corrida de obstáculos e não uma corrida de fundo Que uma cirurgia para uma peri tonite pode necessitar reintervenções para drenagem de abcessos às vezes punções dirigidas por imagens para o desfazimento de aderências e quadros semio clusivos sepsis insuficiência renal por drogas ou as sociada a infecção etc e essas coisas têm que caber na emoção dele que se hospitalizou apenas para tirar uma vesícula e isso seria uma cirurgia simples em dois dias no máximo ele estaria em casa de volta A reconstrução da fé faz parte do atendimento às necessidades emocionais e espirituais do paciente sejam elas de qualquer ordem afetivas medo temor sofrimento abandono cognitivas compreensão dos programas terapêuticos ou espirituais fé esperan ça amparo desamparo desesperança Este tipo de apoio tanto ajuda a evitar a morte nestes doentes ci rúrgicos evitando o burnout psicológico deles bem como possibilita a eliminação do desespero a intro dução da paz nos pacientes verdadeiramente termi nais como nos casos ilustrativos abaixo Caso clínico FJ 57 anos sexo masculino casado úlcera perfurada gastroenteroanastomose sepsis fístula enterocutânea reoperação 15 dias de hospitalização e uma semana na UTI cirúrgica Eu acho que eu não escapo dessa não é doutor Foi a questão introdutória ao tema da perda da fé A fé discutida neste contexto não é simplesmente a dimensão religiosa do indivíduo mas as suas convicções tudo o que representa a verdade sem prova Mas eu respondi para a minha própria surpresa Eu também acho Ele surpreendeuse e comentou perguntando O senhor quer dizer que eu vou morrer ao que respondi também de imediato Não senhor O que eu quero lhe dizer é que nestas duas semanas em que estamos convivendo juntos eu nunca percebi no senhor o desejo de voltar ao palco a vontade de voltar a vida Sintome como se estivesse trabalhando sozi nho neste caminho contra a sua vontade e eu não acredito nisso se não é isto o que o senhor quer Esta era a mais legítima expressão da minha percepção dele Ele começou a chorar e a falar pausadamente da tris teza da vida naquele instante do sentimento de destruição do mundo dele A realidade dele em seus diferentes ângulos que definiam o contexto em que vivia e pudemos começar a conversar sobre a doença da sua alma Ele pode ter alta poucos dias depois desta conversa e com projetos de vida retraçados É importante salientar o que foi dito em outra parte deste texto que todo processo de cura implica uma mudança na história pessoal Caso clínico RM 26 anos masculino solteiro Químico industrial Tumor de parótida direita aparentemente secundário Pri mário desconhecido Bastante anaplásico com o qual já vi nha batalhando há uns quatro anos Dois anos antes tinha tido metástases cerebrais que foram bem resolvidas com radioterapia Há cerca de seis meses antes da data em que o vimos pela primeira vez ele vinha cuidando sem muito sucesso das novas metástases que vinham surgindo sobre tudo no mediastino e abdome Contemporaneamente como comorbidade apresenta va uma tuberculose que vinha sendo bem controlada Ele estabelecia parâmetros para mim clínico geral para o seu oncologista e para os seus familiares as suas preferências em relação aos tratamentos que poderíamos oferecer Não via sentido em se tratar se não pudéssemos mudar o esque ma corporal dele sua magreza seu definhamento Segun do não acreditava no atual esquema terapêutico que aos seus olhos não vinha surtindo efeito Conseguimos definir um plano de tratamento e estamos três meses adiante con frontando o nosso fracasso quando ele aborda a futilidade de continuar se tratando Doutor nós sabemos que isto não está levando a lugar nenhum Tudo fracassou Como eu posso viver sem esperança Ajudeme Este é um ponto crucial no cuidado dos pacientes terminais Momento em que os sentimentos de amparo e desamparo esperança e desesperança se se gregam por caminhos diferentes Habitualmente a segrega ção do sentimento de amparo e esperança quando o obje tivo é a sobrevivência é conjunta As duas coisas vêm juntas Neste ponto em que se definem os cuidados paliativos é a desesperança que se segrega sozinha e não conhecemos de ordinário qual o sentimento de amparo que a acompa nha Esperança é um sentimento que dá ponto futuro cria imagens A desesperança não Voltamos ao nosso diálogo onde eu me sentia extremamente pequeno mas igualmente empático e desejoso de ajudálo Não sabia como Feche os olhos Respire lentamente Tome consciên cia de sua respiração e deixe este sentimento de desespe rança tomar conta de você Deixeo entrar com o ar que você respira E ele vai ser distribuído pelo seu corpo Não tenha medo Nada vai lhe acontecer agora Deixeo chegar à sua cabeça Veja se ele lhe traz alguma imagem Meu Psicossomaticaindd 396 Psicossomaticaindd 396 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 397 pai Ele não consegue me ver Ele não vem ao meu quarto Nisto a sua mãe que também estava no quarto interrompe Meu filho seu pai é um homem doente Já enfartou Ele pode passar mal Não podemos perdêlo também Mãe estou apenas dizendo das minhas necessidades Eu não vou ter mais saúde ser um homem forte e sadio para poder desfrutálo E eu preciso dele agora Também temo por ele Mas é o que eu preciso O destaque deste diálogo é para a desesperança que de fato não cria imagens no futuro mas aponta as imagens do presente Não cria um ponto futuro mas dá a pontuação do tempo real Por este fato quando esta necessidade ocorre negar ao doente o conhecimento da sua realidade é abandonálo A outra escuridão que este diálogo ilumina é o atendi mento da família nas suas necessidades múltiplas emocio nais e espirituais Atender ao doente terminal é atender a família Todo o participante que emita algum juízo de valor tem um assento na mesa sob os riscos de pagarmos as pe nas por esta falta O passo seguinte na condição do caso foi a entrevista com o pai no qual ele argumentava da sua necessidade de não ver a miséria física e o sofrimento do fi lho o único dentro da numerosa família que tinha que havia escolhido a mesma profissão dele que era o naturalmente eleito para sucedêlo para dar continuidade aos seus passos nas empresas da família Refletimos juntos sobre o que ele dizia O amor ao filho lhe impossibilitava cuidar da dor e do sofrimento dele Quem poderia então fazer isto cuidar da dor do filho com amor Estas reflexões o levaram de volta ao lado do filho e eles puderam se desfrutar novamente conversar ficar calados juntos sorrirem trocarem o adeus Trocaram um adeus que acredito ainda que deva perdurar hoje porque naquela altura o tempo já havia parado para o filho Poucos dias depois ao visitálo pela manhã ele me questiona sobre as modificações do tempo O que estava se passando com o tempo O tempo parecia estar paran do Ele acordava sem pressa como as 06h30min da manhã fazia tudo bem devagar Tomava o seu banho matinal fazia a higiene oral e corporal que demorava uma eternidade olhava para o relógio e eram dez para sete Ouvia música tomava uma massagem demorava outra eternidade Olha va para o relógio eram sete e trinta Fazia o seu desjejum conversava com as pessoas olhava o relógio eram oito ho ras Lia o jornal voltava a ouvir música e o tempo parecia continuar parando Filosofamos sobre o tempo Como o experimentamos com o lado direito ou esquerdo do nos so cérebro Isto diz como viveremos os nossos momentos seja de uma forma mecânica racional e lógica segundo por segundo seja de uma forma vetorial atemporal conhecen do o eterno Ele morreu naquela mesma noite dormindo um sono tranquilo sereno e calmo Simplesmente não acordou Ele passou e todos nós nos sentimos confortados Uma certa consciência de que a ve lha senhora às vezes sabe a hora que não é só na vida que ninguém chega antes na morte também Uma das mudanças mais importantes do envelhecimen to que dizem da chegada da terminalidade é a mudança pro gressiva da experiência do tempo Temos com a chegada da maturidade a possibilidade de viver melhor os nossos momentos Degustálos Tomar intimidades Os momentos são mais apreciados A terminalidade é anunciada no indiví duo que envelhece pela sensação de que o tempo parou O sentimento de que o amanhã já não traz nenhuma novida de Isso esteve bem claro e presente na maioria dos meus pacientes que explicitaram uma solicitação de eutanásia ou que anteciparam suas preferências sobre a não utilização de certos tratamentos ou procedimentos ao fim da vida Incluídos nisso a ventilação mecânica a traqueotomia e a hemodiálise Um dos momentos mais cruciais dos cuidados são os pontos de mudança quando as intenções e os objetivos dos tratamentos mudam O momento em que a recuperação não é mais possível e um novo plano deve ser criado um novo objetivo do tratamento deve ser elaborado O trata mento será paliativo os tratamentos de manutenção da vida deverão ser suspensos ou retirados Aparelhos desligados Nenhum procedimento para manter ou prolongar a vida O desgaste da doença e a morte caminham juntas de bra ços dados Discutese o fim da vida e se implementam as diretivas avançadas definidas previamente ou atualmente acordadas Desde o ano de 1990 a decisão da Surprema Corte dos Estados Unidos que atendia a atenção para os tratamentos de manutenção de vida aos que estão incapa zes de tomar as suas decisões afirma o direito do estado de ter uma evidência clara e convincente dos desejos relacio nados aos cuidados médicos dirigidos à sustentação de vida Foi criado o PSDA Patient self determination act O PSDA requer que os hospitais nursing hormes hospícios progra mas de saúde perguntem aos doentes sobre as diretivas avançadas advanced directives e incorporem estes dados nos prontuários médicos Neste tipo de documento Ame rican Family Physician 2005 uma diretiva antecipada por uma pessoa competente indica as preferências de cuidados enquanto cognitiva e fisicamente intacta Uma vontade de viver especifica as instruções relacionadas aos cuidados ali mentação por sonda ventilação mecânica cirurgias e situ ações de prolongamento da vida Ordens e circunstâncias como DNR do not ressuscitate não ressucitar CMO apenas medidas de conforto confort measures only Caso clínico FB 36 anos masculino casado sem filhos engenheiro de pesca Linfoma não Hodgkin desde os 16 anos Linfoma agressivo novamente muito agressivo nos últimos dois anos Terminal sem resposta a qualquer forma de tratamento Falência medular Duas entradas na UTI no mesmo internamento A primeira em choque séptico secundário à aplasia medular Severa mente plaquetopênico com menos de 5000 plaquetas A segunda decorrente de uma grande hemorragia cerebral intraparenquimatosa hemisférica Prefiro sair carregado do hospital no paletó de madei ra do que andando nos meus pés se perder a consciência foi a forma como ele introduziu o tema das suas preferên cias em relação aos cuidados do fim da vida entre uma ad missão na UTI e a outra A tomada de consciência quando Psicossomaticaindd 397 Psicossomaticaindd 397 05012010 121219 05012010 121219 398 Mello Filho Burd e cols da entrada no hospital o esforço para a manutenção da vigí lia e a impossibilidade de qualquer controle cognitivo sob o que estava se passando consigo quando estava entrando em estado de choque O dirigir a vida e o se perder no vazio Difícil imaginar se poderia chamar de vida a este tipo de condição Havia coisas piores que a morte e este tipo de sobrevivência era uma delas Quando do AVC hemorrágico ele estava em um quarto do hospital rapidamente entrou em coma em parada respiratória e em ventilação mecânica e foi rapidamente removido à UTI Após vêlo na UTI em morte cerebral conversamos com a família de um modo aberto sobre a condição e os cuidados a suspensão da ven tilação mecânica a não ressuscitação medidas apenas de conforto solicitando deles ao mesmo tempo um feedback sobre como tocava a cada um cada medida que poderia ser ou não tomada Conversa que não foi nem muito longa nem muito tensa apesar do grande sofrimento Naquela altura da vida dele disse a mãe quem melhor conhecia a alma dele e melhor poderia decidir por ele naquele momen to de incapacidade era eu seu médico de quase 20 anos de acompanhamento clínico Nenhum deles que o amavam tanto e o queriam tanto não o conheciam tanto para uma decisão tão isenta Que eu o fizesse e eles respeitariam To dos concordaram e concordaram novamente com a decisão de tirálo da UTI trazêlo de volta ao quarto sem nenhuma intenção de prolongar a vida Se eles suportassem Assim foi implementado Todas estas mudanças dos últimos anos amplia ram o repertório das tensões e conflitos nos cuidado res dos doentes graves sobretudo os de trauma ou cirurgia levando a um desgaste emocional e afetivo Listamos abaixo algumas Áreas motivos gerado res de tensões sobre as quais há necessidade de me lhor educar os cuidadores e a equipe de saúde numa tentativa de evitar um desgaste emocional e afetivo 1 Quando não iniciar tratamento 2 Quando suspender tratamentos iniciados 3 Reconhecimento da futilidade médica Limites da tecnologia Quando parar e como fazêlo 4 Integração do tratamento do trauma e do trata mento paliativo Mudança de um para o outro Protocolos Treinamento 5 Envolvimento da equipe e da família 6 Assegurar conforto e o não abandono Algumas dificuldades adicionais 1 Vem da inconsistência sobre como funciona esta prática idealizada e os sistemas de suporte SUS seguros de saúde Hospital Residência Eviden temente de tudo que falamos acima estamos as sumindo opções de tratamento e quem detém os direitos de escolhas E ainda que o nosso sistema de saúde ofereça excelentes opções de cuidados essas opções são viabilizadas apenas para aqueles que têm dinheiro ou são assegurados de algum seguro de saúde Os indivíduos sem dinheiro ou não assegurados têm uma assistência pobre insu ficiente ou inadequada 2 Manter um balanço entre a empatia com que en focamos o nosso paciente e o compromisso com a ética 3 O respeito e a compaixão para a diversidade cul tural do gênero e da incapacidade 4 Manter os padrões clínicos da não introdução ou da retirada das medidas de suporte 5 Os familiares ouvem diferentes pontos de vista dos cuidadores e isto leva à confusão à hostilida de à raiva e à frustração A BOA MORTE O conceito da boa morte sofreu uma profunda evolução da época de 1990 e continua apresentando modificações É interessante a edificação do que seria uma boa morte quando trabalhamos nos grupos de sensibilização A morte ideal de cada um dos partici pantes Os antagonismos surgem espontaneamente e eles se confrontam As unanimidades também O não sofrimento o controle da dor o recolhimento e o iso lamento para alguns por proteção do desfiguramen to a festa para outros uma despedida de arromba com os amigos A viagem como uma realização de algum desejo de satisfação guardado antes de sentir se invalidado e se entregar vencido à falta de ener gia dos momentos finais O lado psicopático Burlar um seguro de saúde para proteger quem fica Transar com todo mundo por vingança por ter pego AIDS Discutemse os fatores impeditivos de se tomar decisões claras as verdades as incertezas os sen timentos e as emoções a esperança a relação com a equipe de saúde os provedores os múltiplos pro vedores o respeito às diretivas dadas antecipada mente sobre os gostos e as preferências em relação ao uso de máquinas a sedação terminal as sondas para nutrição enteral os tubos de gastrostomia etc Na hora H por maior que seja a possibilidade de controle que se quer ter sobre a hora final é a res posta às nossas emoções e às da família que se cui da que são mais importantes quando se define bem os objetivos do tratamento Estes são mais impor tantes que os tratamentos específicos E que nos diz a literatura Até o início da década de 1990 a boa morte confundiase com a evitação do morrer liga da às máquinas o tinha uma conotação eutanásica Na publicação End of life care do IOM Institute of Medicine 1997 uma morte decente é livre de desconforto e sofrimento evitáveis para o paciente os familiares e os cuidadores Morte decente ou boa morte são termos semelhantes Durante a década de Psicossomaticaindd 398 Psicossomaticaindd 398 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 399 1990 o termo boa morte foi se ampliando mas já na época de 1980 ela tinha adquirido uma conota ção importante feita por O Neil quando observa o tempo de morrer A morte é boa quando ocorre num tempo apropriado o processo permite controlabili dade por quem morre os que participam da situa ção observam princípios morais básicos e o estilo da pessoa é lógico Ele vem tomando forma como um conceito separado embora relacionado à eutanásia e hoje toma abrigo no campo dos cuidados paliati vos e no domínio dos modernos hospices OS CUIDADOS PALIATIVOS Karen Kehl 2005 destaca em um excelente arti go a evolução do conceito pela revisão da literatura O conceito de boa morte é altamente individual e dinâmico da mesma forma que a morte em si não é a mesma em todas as pessoas É tão diferente como diferentes são as formas de pensála O que seja uma boa morte para um não é a mesma coisa para outra pessoa É importante contudo que o nosso cliente saiba que a forma como nós cuidadores percebemos a morte não nos fará tendenciosos de modificar os de sejos dele não nos impedirá de atender os seus últi mos desejos e as suas preferências serão perseguidas morrer dormindo ou alerta em casa no hospital no hospice não importa se a consideremos um processo ou um evento É possível contudo reconhecer ape sar desta grande variabilidade do que sejam a morte e o repertório do morrer os atributos pertinentes a uma boa morte 1 Controle Sentir que estão honrados os desejos e as escolhas que as decisões são claras com o lo cal o tempo a presença ou a ausência dos outros Aquele que faltava para que eu pudesse morrer A presença dele A espera por um evento que dirá o tempo da minha morte seja o casamento a for matura da neta algo que em minha vida e a do outro se ungissem de um significado e uma ben ção firmadas e afirmadas no ato de morrer 2 Conforto Estar confortável É também multidi mensional e inclui 1 a falta de dor ou sofrimen to 2 o tratamento dos sintomas físicos como dor falta de ar tratamento dos sintomas emocio nais e psicossociais medo ou ansiedade sintomas cognitivos como permanecer alerta O abraço o carinho o alisado o buscar uma posição e senti mentos como os de amparo ou esperança Reco nhecer que até o minuto final em que estivermos juntos podemos também sorrir confraternizar achar graça viver o que a vida permitir viver e não excluir as outras dimensões do que somos por sermos terminais podemos também falar da nossa terminalidade 3 Senso de fechamento de acabamento conclusão das coisas não findas dizer adeus O adeus é ex tremamente pertinente As pessoas ficam quites nas suas relações ajustam as contas saldam os débitos porque o débito com o morto nos acom panhará até a nossa morte É nossa tarefa identi ficar cada uma destas pessoas na intervenção que cada um deles faz Familiares os que estão em débitos que não são capazes de chegar tocar ali sar compartir às vezes com medo de desregular uma máquina um daqueles aparelhos mudar o som tecnológico e reclamam de tudo o que acon tece o que é feito ou deixado de fazer com o seu ente querido O travesseiro que faltou a hora de trocar a fralda o riso que pareceu desrespeitoso e vai por aí 4 Afirmaçãovalor da pessoa reconhecido Também multifacetada inclui dignidade a totalidade de ser uma pessoa inteira em seus aspectos físicos emocionais sociais e espirituais qualidade de vida que inclui uma vida plena Individualidade Como se morre por covardia para se manter uma imagem uma representação 5 Confiança nos provedores Isso implica em um atributo importante da boa morte Inclui boa co municação entre os provedores de cuidados com a família 6 Reconhecimento da eminência da morte Isto inclui tanto o reconhecimento da sua chegada como a sua aceitação Evidente que este atributo somente pode ser nas mortes que podem ser ante cipadas aquelas decorrentes de doenças crônicas terminais Não nas mortes súbitas Questionase se os demenciados os pacientes com Alzheimer que não podem ter consciência ipso fato não po dem aceitar se poderiam ter uma boa morte 7 Crenças e valores são honrados sobretudo impor tantes nas pessoas que podem ter desejos dife rentes da cultura dominante 8 Minimizar os desgastes O custo do morrer Ser fi nanceiramente e fisicamente independente é im portante para uma boa morte Uma das cenas mais chocantes que assisti foi a intervenção da esposa de um doente recém admitido no hospital que tentou impedir o processo de tratamento de uma parada cardíaca na enfermaria O paciente era um adulto relativamente jovem de 44 anos que havia sido admitido no hospital cerca de dois dias antes por uma dor de coluna uma fratura osteoporóti ca por afundamento de vértebra O diagnóstico havia sido feito naquele momento Ele tinha um mieloma múltiplo e a parada era por conta de uma hipercalcemia Ela levou de volta um safanão da Psicossomaticaindd 399 Psicossomaticaindd 399 05012010 121219 05012010 121219 400 Mello Filho Burd e cols residente e foi contida o marido foi ressuscitado com sucesso Difícil entender o que o gesto daque la mulher significava era um gesto de amor Ele e a mulher eram a única força de trabalho na famí lia com mais seis pessoas Sobreviviam no limite da miséria Com a doença dele não simplesmente se reduzia a força produtiva da família mas ele passava a ser um peso e a queda da sua qualidade de vida sua condição física passava a exigir mais cuidados que ele não poderia ter e iria viver uma forma de abandono involuntária que não merecia Esta era uma decisão dos dois Algo que eles já vi nham conversando mesmo sem ter um diagnósti co firmado A minha residente uma das maiores promessas que tinha passado na minha condição de educador um talento clínico a partir deste vento desistiu de fazer medicina interna e derivou para uma outra especialização fez nova residên cia em imagens fora do país e hoje é uma grande radiologista no campo da ressonância magnética e tomografia computadorizada O estudo Support mencionado em várias partes deste texto trouxe luz a esta dimensão O lado econômico como dado isolado era tão importante como a dor no grupo de doentes que solicitavam eutanásia Mesmo nos Estados Unidos 13 dos que morrem gastam o que levaram a vida para acumular em bens Isto apon ta um grande buraco no nosso sistema de saúde e ao mesmo tempo o grande espaço de crescimento que teve não apenas no surgimento dos hospices mas no seu crescimento nos últimos 15 anos no mundo todo 9 Otimização das relações O crivo da morte repas sa a vida o significante e o não significante o tempo de convivência com as pessoas significa tivas aumenta de um modo geral as comunica ções são melhoradas as ideias de reconciliação e perdão são florescentes Aprendese que o perdão é também uma moeda de duas faces e beneficia tanto ou mais a quem dá como a quem recebe 10 Apropriabilidade da morte A conveniência dela A idade e o sofrimento das pessoas que morrem o uso adequado ou inadequado da tecnologia como ventiladores mecânicos diálise os aspec tos da doença com sua natureza terminal tudo isto implica na apropriabilidade da morte Não é incomum verificar a impaciência do que está sobrevivendo com uma doença terminal após ter se dado conta disso Suas preces a Deus para que não se esqueça dele ou os reclamos que está sendo esquecido Os comentários de familiares come ele é resistente doutor não podia fazer alguma coisa para abreviar este sofrimento As solicitações de eutanásia dos pacientes com escle rose lateral amiotrófica AIDS câncer etc Publicações mais recentes sumarizam em seis os temas que constituem uma boa morte 1 Tratamento da dor e dos sintomas Os cuidados pa liativos refletem uma ampliada atualizada e mo dificada versão do CMO Comfort Measures Only Somente Medidas de Conforto Tirouse o ape nas As medidas de conforto abrangem cuidados físicos psicológicos sociais e espirituais Envolve um time multidisciplinar Os cuidados físicos que em seu início dirigiamse ao tratamento da dor tomaram corpo no tratamento dos sintomas que podem ser os mais variados A dispneia a incon tinência a constipação etc A fadiga o cansaço do doente terminal que deixa um sentimento de que a alma está saindo do corpo passaram a ter um reconhecimento e um destaque de peso vis to ser um dos sintomas que mais frequentemente estão associados às solicitações de eutanásia ou suicídio assistido à manutenção do nível de cons ciência ou à sedação terminal à confusão mental aos estados alterados de consciência a insuficiên cia cardíaca enfim tudo o que possa representar desconforto e que possa ser medicalizado Em um extremo interpretativo nossa rejeição ao morrer é trocada pelo controle do processo 2 Processo decisório claro Os pacientes e familiares desejam uma boa comunicação com os seus clíni cos e existem clínicos que são temerosos de falar sobre a morte implícita A grande maioria deseja também deixar sua marca no processo decisório e saber que a sua participação é importante e va lorizada Raros preferem o oposto e se colocam como recipientes passivos das nossas decisões confiantes de que fazemos a melhor escolha para eles sem ter que passar por este lado ingrato e até mórbido de discutir as suas preferências sobre o morrer A boa maioria dos médicos gostaria de que os pacientes tivessem preferências de trata mento claras e que estas decisões fossem tomadas antecipadamente antes da ocorrência das crises Por outro lado desafortunadamente usualmente não facilitamos esse tipo de conversa Conside rando uma cultura que denega a morte isso nos traz a ideia de que a morte é algo sobre o qual nós podemos ter algum controle e que a fantasia úl tima que este sistema de cuidados paliativos nos indulge a pensar de um modo cínico é que morrer seria algo opcional A denegação da morte tem um custo os conflitos entre os living will dos pa cientes e o dos doutores sobre os prognósticos e qualidade de vida esperada para os seus doentes Os cuidados paliativos que compõem a boa morte dizem respeito aos quantos tipos de intervenções que podemos receber Algo como um até quando Psicossomaticaindd 400 Psicossomaticaindd 400 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 401 Quanto alívio de dor nós desejamos Qual o ce nário Em casa ou no hospital Quem desejamos que esteja ao nosso lado 3 Preparação para a morte Será possível Os pa ciente e os membros da família desejam conhecer o que eles esperam e o que se espera deles Quais seriam suas reações emocionais Eles também de sejam ajuda para um planejamento prévio Como seria o morrer com insuficiência cardíaca com doença pulmonar crônica com insuficiência re nal Qual o melhor local para viver isso Alguns pensam e de fato deixam pronto até o funeral em todos os seus detalhes Os aspectos legais após a sua morte como o testamento Muitas vezes es tes pensares estão na barganha do tempo em re lação à cirurgia perigosa o temor do diagnóstico que virá já discutido em outra parte deste texto nos doentes mentalmente ou pseudoterminais etc Existe uma necessidade de maior treinamen to dos médicos para discussão desses aspectos e na verdade eles não podem ajudar seus pacien tes a menos que tenham explorado seus próprios sentimentos sobre a morte e o morrer Uma difi culdade grande e necessária de se aprender é o temor da destruição do sentimento de esperan ça Um dos grandes paradigmas a ser mantido e que dificulta o timing da discussão O delicado balanço de ter esperanças pelo melhor cura e recuperação algumas pessoas morrem em cam po de batalha lutando pelo melhor e preparar o paciente e os familiares para o que eles pensam ser o pior a morte Essa mudança também está dentro de nós e no doente como um trauma no pósoperatório complicado quando a intenção do tratamento já não vai mais ser de cura mas de medidas de conforto Como passar isso neste tipo de doente sem passar também um sentimento de abandono 4 Finitude Morreu em paz É como gostaríamos de sentir e podese dizer aos ossos entes queridos De ver em nossos pacientes por maior que tenha sido a nossa luta e por maior que tenha sido o nosso investimento na sua recuperação e na sua cura A consciência tranquila o dever cumprido O exem plo dado O último E que já tece as amarras ao nos so modo de lembrálo de cuidar da sua memória Cumprir os ritos atender as crenças religiosas 5 Contribuição para os outros Difícil enxergar por que não fica na vitrine do doente terminal Tudo passa com certa discrição com simplicidade e de uma forma espontânea O repassar da vida com os olhos da terminalidade o prisma da finitude permite uma reordenação dos valores da vida e não é mais o sucesso profissional tão pouco os ganhos monetários que se destacam na nova or dem Os erros e os acertos da vida repassam o balanço feito permite saber o que valeu a pena e o resultado disto foi a vida que ainda se tem saldo positivo É portanto muito além natural que uma via de expressão um encantado canal de comunicação se estabeleça com os que estão por perto Alguns pacientes tornamse luminosos sobre determinados temas de suas vidas as ver dades legítimas e são os que melhor podem con fortar aos que ficam As despedidas são memorá veis e simplesmente inesquecíveis Muitas vezes dirigidas a nós médicos que aprendemos a vida pelo seu avesso pelo sofrimento pelo sacrifício do tempo pessoal da nossa vida íntima Alguns conselhos opiniões não solicitadas são extrema mente oportunas num timing único em nossas vi das Tudo isso torna bastante rico este aspecto da boa morte Lições que só aprendemos diante dela É interessante lembrar que um dos significados de curar é de salvar e eventualmente reencon trarmos este script em que a morte vem como sal vação do pesadelo do que foi a vida 6 A afirmação da totalidade da pessoa O senti mento que fica cai por gravidade O de que todos nós paciente médico enfermeira assistente social fomos não unicamente o papel que de sempenhamos pelo que representamos profis sionalmente mas que representamos o que so mos como pessoa e que assim fomos todos nós quando vivemos e compartilhamos da morte do nosso outro REFERÊNCIAS End of Life care do IOM Institute of Medicine 1997 Erickson E Identidade Juventude e Crise RJ Zahar Editores 2ª ed 1976 Euthanasia in Netherlands good and bad news Euthanasia Physician Assisted Suicide and Other Medical Practices Invol ving the End of Life in the Netherlands 19901995 Vol 335 16991705 Fraser B Conversas com Joseph Campbell São Paulo Editora Ve rus 2004 JAMA 1955 SUPPORT Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risk of Treatments controlled trial to improve care for seriously ill hospitalized patients The study to understand prognoses and preferences for outcome and risks of treatment 274 15918 Kastenbaun RJ Death society and human experience 2 ed St Louis Mosby 1981 Kehl KA Moving towards peace An analysis of the concept of a good death American Journal of Hospice Palliative Medicine In review submitted June 2005 Marsh MC Respecting end of life treatment preferences Ameri can Family Physician vol 73 nº 7 2005 Monica Crane Marsh with within American Family Physician vol 72 nº 7 2005 respecting end of life treatment preferences Psicossomaticaindd 401 Psicossomaticaindd 401 05012010 121219 05012010 121219 PARTE 5 AIDS Psicossomaticaindd 403 Psicossomaticaindd 403 05012010 121219 05012010 121219 Como integrante de uma equipe estamos tra balhando com pacientes de AIDS desde inícios de 1985 É um trabalho feito pelo Setor de Psicologia Médica do Serviço de Psicologia Médica e Psiquiatria do Hospital Universitãrio Pedro Ernesto HUPE da UERJ Temos uma equipe que atende especificamente pacientes de AIDS chefiada por Lizete Macario Cos ta e composta por mais quatro pessoas psicólogos e psiquiatras Lizete foi a pessoa que enfrentou ini cialmente este enorme desafio que é fazer psicotera pia com esse tipo de pacientes ajudálos nesta difícil caminhada até a morte acompanhálos se eles as sim necessitarem no ambulatório na enfermaria ou mesmo eventualmente em suas casas É um trabalho conjunto com o Serviço de Doenças Infecciosas e Pa rasitarias do hospital que já atendeu até o momen to 160 pacientes com 53 óbitos Deste total nosso Setor acompanhou 48 pacientes e tivemos 15 óbitos dentro desse grupo Não atendemos diretamente es ses pacientes fazemos a supervisão e participamos da coordenação do trabalho OS ATENDIMENTOS AOS PACIENTES E À EQUIPE Lidar com pacientes de AIDS é uma tarefa que exige um grande desprendimento capaz de suportar frustrações e dor a dor no entrechoque constante en tre a vida e morte que se passa no corpo e na mente desses pacientes Esse e um dos trabalhos mais di fíceis que já acompanhamos pois nunca nos depa ramos antes com tal conjunto de situações dramáti cas do ponto de vista médico psicológico familiar e social Qualquer médico com alguma experiência em acompanhar o resultado de autópsias fica perplexo diante dos pacientes frente ao número extensão e fórmulas anômalas de infecções intercorrentes que costumam apresentar Nosso trabalho tomouse possível graças ao interesse demonstrado por Dyrce Bonfim que é o membro do staff do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias DIP do hospital que enfrentou mais di retamente o problema da AIDS Inclusive numa fase em que o temor ao contágio e os preconceitos em re lação à enfermidade entre a equipe médicoauxiliar eram tantos que praticamente não se contava com recursos laboratoriais mais sofisticados e os médicos se negavam a fazer biópsias autópsias e todo tipo de exames em pacientes suspeitos de AIDS Além disso os doentes eram por vezes francamente hostilizados por membros da equipe médicohospitalar ou ainda rejeitados por serem homossexuais pois este é ainda um problema presente em nosso meio a estigmati zação e o preconceito em relação ao homossexual Um exemplo disso tivemos recentemente quando um enfermeiro homossexual do staff do próprio hospital foi internado e numa manifestação de curiosidade mórbida houve uma verdadeira romaria de visitas de outros enfermeiros e funcionários em geral ocasio nando um tipo de iatropatogenia que acredito tenha contribuído para antecipar a morte do paciente Esse fato exemplifica o tipo de situações mór bidas várias que costumam ocorrer na evolução de um caso de AIDS e ao mesmo tempo nos reporta ao problema dos temores hipocondríacos que assolam os médicos e os paramédicos em relação à AIDS nes te momento A hipocondria em nossa experiência é um elemento presente em todo aquele que trabalha com a saúde de um modo geral e particularmente importante na pessoa do médico por vezes mes mo como um dos elementos básicos estruturantes de sua vida mental Assim sendo os profissionais de saúde que lidam com pacientes de AIDS podem passar por uma fase em que temem ser contagiados já que estão dominados por poderosas fantasias in conscientes decorrentes das condições particulares dessa enfermidade Esse temor era agravado pelas inúmeras dúvidas sobre as formas de contágio que acometeram a comunidade científica até recente mente quando veio a se saber mais sobre a doença Por outro lado antigas fantasias de nosso incons ciente arcaico sofreram um reforço com o advento da AIDS a intimidade entre as pessoas a sexua 31 AIDS O DOENTE O MÉDICO E O PSICOTERAPEUTA Julio de Mello Filho Psicossomaticaindd 405 Psicossomaticaindd 405 05012010 121219 05012010 121219 406 Mello Filho Burd e cols lidade sobretudo é muito perigosa e pode mesmo ser fonte de um mal que mata Em nossa rotina o paciente é inicialmente aten dido pela DIP em ambulatório ou enfermaria Feito o diagnóstico élhe sempre oferecida a possibilida de de ter um tipo especial de assistência psicológica Especial porque de um modo ou de outro ele re ceberá alguma forma de assistência psicológica pelo modo com que a equipe da DIP o atende através da orientação prestada pela Psicologia Médica Esse tipo de atenção explica porque parte dos pacientes com AIDS atendidos pela DIP permanecem vinculados ao hospital até seu desenlace E também porque cerca de 30 deles aceitam a ajuda psicoterápica ofereci da pela equipe médica no início de seus tratamentos Na literatura mundial há registro de que apenas 6 dos pacientes por ocasião do diagnóstico aceitam tal tipo de auxílio Tal é o desespero que um diagnóstico de AIDS costuma trazer que é necessário oferecer um vínculo muito especial a esses pacientes Isso inclui a possi bilidade de telefonar para o clínico ou o psiquiatra que os atenda a qualquer hora em que sentirem ne cessidade É preciso portanto que o psicoterapeuta que se propõe a ajudar tais pacientes se disponha a acompanhálos em qualquer situação clínica que se apresenta como é o caso das frequentes internações hospitalares É necessária assim muita flexibilidade de setting e de adaptação às demandas do self do pa ciente como de resto é o caso no que costumamos chamar de psicoterapia do paciente somático A grande maioria dos pacientes atendidos por nossa equipe é de homossexuais Via de regra esse tipo de pacientes por toda sua condição especial que será discutida a seguir e o que apresenta as situações psicológicas e familiares mais dramáticas o que faz com que nos sejam encaminhados em maior número que os demais pacientes Particularmente quadros histéricos ou reações depressivas desnorteiam ou irri tam os médicos levandoos ao encaminhamento Os hemofílicos são atendidos num serviço especializado que cobre toda a cidade enquanto os toxicômanos são assistidos pelo NEPAD Núcleo para o Ensino Pre venção e Assistência a Drogas vinculado à UERJ Há alguns anos um colega de nossa equipe Kenneth Camargo Júnior trabalhou diretamente com hemofílicos no Hospital Santa Catarina Naquela épo ca o grande problema psicológico desses pacientes era o estigma de uma doença hereditária que atingia apenas homens fragilizandoos na época da adoles cência através de uma artropatia condicionada por frequentes hemorragias traumáticas intraarticulares Na fase inicial deste trabalho vimos surgir os primei ros casos de AIDS naquela população passando a ser o grande fantasma desses pacientes Como a doença só ocorre em homens as mu lheres são apenas transmissoras do traço genético e vem acompanhada do estigma do receio de hemor ragias que podem ser até mesmo fatais a imagem do homem é habitualmente sentida como fraca en quanto as mulheres são vividas como fortes quase imortais Por esse motivo situações de homossexua lidade latente são comuns nestes pacientes No fun do porém as mulheres são geralmente odiadas por transmitirem um mal que nunca as atinge Por solicitação do Centro Hematológico Santa Catarina atendemos alguns hemofilicos contamina dos por AIDS Para ilustrar o drama desses pacientes e da comunidade de hemofílicos diante dessa doença relataremos um destes casos Tratase de Pedro com 9 anos que já tinha perdido dois tios maternos re centemente por AIDS Sua mãe tinha uma posição de liderança no seio de sua família e havia se empenha do muito na luta pela preservação dos irmãos Além da perda deles estava vivendo uma difícil situação conjugal pois soubera recentemente que o marido tinha uma amante Durante uma violenta discussão com o esposo apanhou seu revólver e diante dele se matou com um tiro na cabeça O sogro vizinho veio e levou Pedro e a irmã de 7 anos que estavam dor mindo para sua casa Ele contou ao neto durante o funeral que Papai do céu veio buscar sua mãe As crianças ficaram na casa deste avô pois o pai de Pedro a partir daí praticamente desapareceu de casa quase abandonando de todo os filhos Durante uma fase em que as duas famílias dis putavam a posse das crianças a família da mãe dizia que o pai a tinha matado Pedro começou a apre sentar enterorragias na decorrência de um quadro de colite ulcerativa por citomegalovírus como primeira manifestação da AIDS O agravamento das hemorra gias e a persistência deste conflito familiar levaram a equipe a internálo e a solicitar ajuda do nosso Serviço Quando Lizete foi vêlo pela primeira vez encontrouo internado junto a um primo da mesma idade também acometido por AIDS com um quadro mais clássico de pneumonia e grande acometimento do estado geral Pedro estava deprimido e mostrou de início pouco interesse no contato com ela Só falava de coisas gerais demonstrando muito receio de que viessem à baila os intensos traumas que tinha vivi do A expectativa da equipe hematológica era muito grande e o caso foi levado à reunião geral da Psico logia Médica como de resto foi feito nos primeiros pacientes de AIDS que atendemos numa necessidade de dividir nossas dúvidas e ansiedades com todo o grupo Através de jogos e desenhos estabeleceuse uma maior comunicação entre a dupla Numa sessão Pedro montou um poste de luz e depois um pequeno Psicossomaticaindd 406 Psicossomaticaindd 406 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 407 revólver e o apontou para a cabeça de Lizete Ficou a seguir muito emocionado e ela lhe disse que en tendia que ele estava revivendo o que havia aconte cido com a mãe Nesse momento Pedro começou a se queixar de fortes cólicas e precisou ser medicado Lizete permaneceu com ele porém o tema não foi re tomado As hemorragias entrementes continuavam e Pedro era mantido vivo por sucessivas transfusões de sangue A equipe permanecia intensamente mobi lizada principalmente um médico também portador de hemofilia Optouse por uma cirurgia em que foi retirada parte do intestino grosso Nessa fase foi mui to difícil fazer o acompanhamento pois os cirurgiões interrompiam as sessões a qualquer momento fazen do Lizete se sentir desanimada e posta de lado Um cirurgião disse a Pedro que ele ficaria inteiramente bom com a operação e que no dia seguinte já estaria comendo hamburger Pedro mostrava interesse em estar com Lizete porém se mantinha silencioso e retraído durante as entrevistas Numa oportunidade desenhou uma casa com cores pretas e amarelas de aparência lúgubre e com uma criança dentro Lizete lhe disse que ele estava se sentindo assim sozinho no hospital De fato apenas o avô vinha visitálo o pai prometia por telefone porém nunca apareceu Nas sessões em que se conseguia algum tipo de elaboração Pedro come çava a se queixar de cólicas e o contato era interrom pido O seu estado nitidamente se agravou quando ele tomou conhecimento da morte do primo Neste período teve um sonho em que dizia eu não quero ficar no lugar dele Depois contou a uma enfermeira que tinha sonhado com um trem que vinha buscálo Lizete permaneceu junto a ele em silêncio todos os dias enquanto seu estado geral se deteriorava en trando em coma e vindo a falecer Num dos últimos jogos que fez com Lizete ele descobriu que ela iria casar ter três filhos que moraria em Curitiba e que seria feliz porém não muito rica Este foi o presen te que Pedro deixou para Lizete Aliás os pacientes terminais costumam dar significativos presentes para esse tipo de terapeutas O mais comum preserválos de assistirem a hora de sua morte Voltaremos a este ponto adiante Atualmente estamos começando a atender ca sos de pacientes politransfundidos outros que não hemofílicos São doentes que fizeram transfusões por motivos vários e que não apresentam nenhum tipo de psicopatologia em especial sendo portanto bem diferentes do grupo dos homossexuais Também es tamos começando a atender mulheres que tiveram relações com bissexuais São mulheres que em virtu de de suas dificuldades sexuais procuram de forma inconsciente um vínculo com bissexuais geralmente sem perceber sequer que têm tal tipo de parceiro OS PACIENTES HOMOSSEXUAIS A casuística que temos estudado é portanto ba sicamente de homossexuais incluímos aqui os bisse xuais que a nosso ver constituem um tipo particular de homossexuais Como já temos quase 40 pacien tes acompanhados pretendemos fazer um trabalho sobre a questão da homossexualidade do ponto de vista psicanalítico e como um problema mais am plo psicossocial e médico É importante comentar que a questão da constituição na homossexualidade continua sendo estudada Trabalhos muito recentes de Ellis e Ames têm demonstrado várias anomalias imunológicas em homossexuais representados por fenômenos de histoincompatibilidade Essas anoma lias poderiam tornar certas partes sexuais do corpo e o cérebro insensíveis à ação de hormônios masculi nizantes durante fases do desenvolvimento Outros autores têm descrito alterações do perfil imunoló gico no homossexual predispondoos a fenômenos de imunodefi ciência antes da instalação da AIDS O próprio Roberto Gallo com toda sua autoridade mundial em relação à AIDS cita a relativamente alta incidência de sarcoma de Kaposi em homossexuais independentemente de contraírem AIDS Um primeiro aspecto que nos chama a atenção diz respeito à gravidade da estrutura psicológica des ses pacientes São pessoas quase sem exceção pro fundamente enfermas e oriundas de famílias com uma estruturação francamente patológica é impor tante frizar estes dados pois vivemos numa época em que principalmente depois que a homossexualidade foi excluída da DSMIV é quase um pecado e uma blasfêmia ousar dizer numa comunidade psiquiátrica que a homossexualidade é via de regra uma condi ção patológica Obviamente sabemos de todo o mal que o rótulo de patologia causou à psiquiatria To davia parece que necessitamos continuar a utilizálo como um conceito de utilidade abrangente pluridi mensional e nunca reducionista A dificuldade prin cipalmente para pessoas de nossa geração é conviver com a condição do homossexual sem preconceitos ou apriorismos Sabemos que como analistas temos essa possibilidade porém é sempre difícil uma equidistân cia entre a condenação inconsciente e a tolerância ex cessiva que no fundo é uma formação reativa con tra tal repúdio Em resumo é fundamental podermos nos identificar com as angústias e vissicitudes de um homossexual diante da realidade da AIDS Todavia a habitual negação do paciente deste diagnóstico pode perturbar nossa contratransferência assim como as habituais reações de associações de gay que fazem uma negação quase frontal dessa realidade e desse risco Bem recentemente a comunidade homossexual como um todo vem tentando abordar de forma realis Psicossomaticaindd 407 Psicossomaticaindd 407 05012010 121219 05012010 121219 408 Mello Filho Burd e cols ta este problema A constituição de grupos de reflexão entre homossexuais buscando pensar os múltiplos problemas vinculados à vida do homossexual parece ser um passo importante de algumas associações de homossexuais nesse sentido Quase como rotina as mães desses pacientes são simbióticas invasivas e superprotetoras São geralmente narcísicas e amam os filhos como pro longamentos assexuados de si mesmas Essas mães costumam ter uma relação francamente hostil com os pais dos pacientes e inconscientemente sempre repudiam a masculinidade o falo e seu próprio casa mento Os pais costumam ser distantes ausentes ou temidos por serem autoritários Há geralmente uma ligação incestuosa franca com as mães que faz com que os filhos passem a temer enormemente a possibi lidade de serem viris Os homossexuais que inicialmente apresenta ram AIDS em nosso meio eram de vida sexual mais promíscua frequentadores de saunas e outros redu tos gays onde mantinham relações do tipo parcial e indiferenciado Podemos compreender tal conduta como uma forma de tentar uma experiência de exci tação que alivie o tédio e a apatia que habita o cerne de um self de alguém tentar compensar deste modo através da sensação da conquista e da multiplicidade de práticas as feridas fundas que habitam sua autoes tima Vemos assim o narcisismo do homossexual que o impele na busca do igual como uma consequên cia de lesões básicas em sua autoestima na busca de uma nova identidade que nunca resolve de todo a questão das faltas básicas e os conflitos sobre os quais se estruturam suas personalidades Da mesma forma podemos entender o modo maníaco de viver e a su posta felicidade implícita na busca de uma forma gay de enfrentar a vida Assim em relação à homossexualidade pode mos dizer que a AIDS irrompeu em personalidades frágeis com traços masoquistas e tendências depres sivas Geralmente há um duplo impacto do diagnós tico sobre o paciente e sobre sua família Esta quase sempre nega a realidade da presença de um homos sexual Valese de vários subterfúgios como as rela ções frequentes do homossexual com mulheres para deixar essa dolorosa realidade como uma dúvida que vem se desmanchar diante da dura prova da presen ça da AIDS São portanto múltiplas crises vividas ao mesmo tempo intrapessoais intrafamiliares e no seio das relações do homossexual com a sua comuni dade Os membros da equipe médica então se deba tem com questões dúvidas e tensões que emergem do paciente dos parceiros amigos e familiares Tais situações de pânico e desespero são foco de múltiplas identificações projetivas sobre os elementos da equi pe exigindo permanentes reuniões de discussão para que o espaço e a função de cada um possa ser manti do ao mesmo tempo em que certas tarefas devam ser intercambiadas numa necessidade de se adaptar às demandas do paciente e de seu universo relacional O momento do diagnóstico é sempre difícil para o clínico e para o paciente A possibilidade de este fato poder provocar um profundo estado depressi vo no paciente com todas as repercussões que isso pode ter na evolução da enfermidade deve ser le vada em conta Em certos casos somente durante a psicoterapia o paciente consegue conscientizarse de todo dessa dura realidade O fato é que a presença da AIDS representa para o homossexual começar a to mar real conhecimento de todo um modo inadequa do de viver das múltiplas frustrações existenciais e da falência dos modelos com os quais vivia a se iludir como a aparente superioridade do homossexual em virtude de uma multiplicidade de práticas e de par ceiros Essa condição é mesmo apregoada como uma das vantagens do modo de viver do homossexual em relação aos heterossexuais em trabalhos escritos por sociólogos de renome que todavia por serem homos sexuais perdem a necessária isenção científica e se põem a legislar em causa própria Pessoas que passaram suas vidas usando como mecanismo básico de defesa a negação assim se comportam como seria de esperar diante do diag nóstico João é um travesti com seios de silicone in ternado atualmente no Hospital com um quadro de astenia dores generalizadas e emagrecimento com teste positivo que permanece jogado no leito e isola do de todos negandose a ser visitado embora nin guém o procure para tal Diz todavia que não tem nada que não está doente e que não vê o porquê da intemação Obviamente a questão da culpa inserida no pró prio âmago da condição do homossexual é um fardo muito pesado para esses doentes e um aspecto a ser permanentemente trabalhado no acompanhamento psicológico deles Assim a AIDS como irremediável castigo bíblico é uma vivência muito arraigada entre eles como foi o caso de Wagner bissexual que dizia que entrou na homossexualidade por ter caído nas tentações do demônio Em franco misticismo quando foi atendido por Lizete ora dizia que a enfermidade atual era a punição ora afirmava que era a salvação enviada por Jesus A forma do atendimento as temáticas abor dadas e o estabelecimento do setting variam muito conforme o estágio da enfemiidade Nos pacientes ambulatoriais as consultas psicoterápicas são se manais e de 40 minutos de duração versando sobre preocupações várias com a evolução da enfermidade sobre a vida sexual as relações com a família com o trabalho as possibilidades de uma cura futura etc Psicossomaticaindd 408 Psicossomaticaindd 408 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 409 Durante as internações as consultas são geralmente diárias É sempre fundamental um máximo de flexi bilidade por parte do psicoterapeuta e um exercício constante e paciente de empatia tentando compreen der e se colocar na posição do doente para poder ter um entendimento profundo de suas motivações vi cissitudes e reações A ansiedade que vivem muitos destes pacientes é avassaladora e torna a tarefa psicoterápica sem pre difícil pelas múltiplas queixas dúvidas e fantasias que trazem e que precisam depositar como um fardo sobre seus terapeutas Aluns doentes vivem perma nentemente numa situação histérica e hipocondríaca apresentando sintomas como dor de garganta dores no corpo astenia e diarreia que ameaçam ser um agravamento da enfermidade ou uma infecção inter corrente E de fato uma diarreia em um paciente com AIDS é sempre um risco de estar em presença de uma complicação de uma infestação por isospora por exemplo Deste modo o psicoterapeuta também partilha as dúvidas e angústias vividas pelo clínico que os acompanha e não poderia ser de outra forma pois o paciente é um só em seu todo psicossomático Há pacientes que só revelam importantes detalhes de sua evolução ao psiquiatra com receio de levála ao clínico que certamente diante desses fatos pediria determinados exames Aliás os exames complemen tares feitos regularmente tais como um hemograma ou as investigações sobre a resposta imunológica são motivo de enorme ansiedade e expectativa Aqui se misturam as realidades trazidas pela presença da doença e os eternos problemas que povoam a mente de pacientes em geral borderlines como a permanen te flutuação entre realidade e fantasia dor e prazer vida e morte As notícias veiculadas pela imprensa e televisão frequentemente de forma sensacionalista têm uma repercussão muito intensa sobre o estado de espírito dos pacientes Tivemos muitas provas disso no pe ríodo em que por exemplo Darcy Penteado dizia a uma emissora de televisão que a AIDS mata Cons tatamos atualmente quando este sensacionalismo e dramaticidade diminuíram que esses pacientes de modo geral estão tolerando melhor a realidade de suas doenças Um maior conhecimento sobre a enfer midade e sobre as formas de contágio também vem contribuindo para um menor grau de desespero fren te à AIDS seja por parte dos profissionais de saúde seja dos pacientes A questão de como lidar com a vida sexual é um tema fundamental neste acompanhamento E por vezes é muito difícil para o profissional de saúde lidar com situações práticas tais como a informação do parceiro por parte do paciente Um paciente contami nado por transfusão negavase a informar seu diag nóstico à companheira com medo de apavorála e continuava a ter relações sexuais sem preservativo com ela Nos homossexuais há sempre o temor de que ao dizer a verdade a um parceiro este o abando ne ou que a própria comunidade gay na qual convi ve o rejeite ao saber da realidade Francisco profes sor desquitado de meia idade predominantemente ativo negavase a usar preservativo com qualquer novo parceiro que encontrava Numa oportunidade envolveuse amorosamente com um jovem parceiro muito frágil e inexperiente diante da homossexuali dade trazendo um incômodo problema contratrans ferencial para Lizete ao partilhar dessa experiência Quando Francisco resolveu revelar o fato o parceiro em pânico o abandonou deixandoo intensamen te deprimido O trabalho psicoterápico entretanto possibilitou a este lidar melhor com o problema da verdade e numa nova relação mais estável que fez esta pôde ser comunicada de uma forma diferente ao atual parceiro mantendose a relação Outro problema quase sempre presente duran te a internação destes pacientes é a questão do rela cionamento difícil conflituoso entre o parceiro e os familiares Parceiros e família buscam não se encon trar durante as visitas ou sentemse constrangidos ou desafiados quando se defrontam Os pacientes obvia mente vivem tal situação com muita ansiedade medo e culpa agravando os conflitos intemos existentes Os membros da equipe de saúde colocamse emocional mente a favor de uma ou outra das partes de forma silenciosa ou por vezes aberta agravando as tensões Um trabalho de atendimento especial à família e aos parceiros portanto impõese Certas famílias enfrentam o agravamento da doen ça e a morte com muito mais dificuldade do que os próprios pacientes Raimundo adulto jovem teve seu diagnóstico positivo quando estava fazendo um concurso para seleção em sua carreira de profissional de Saúde Três meses depois surgiram as primeiras lesões de um sarcoma de Kaposi na face Com resig nação e coragem atendido por Cesar Queiroz Lima exintegrante de nossa equipe maquiavase para sair de casa e enfrentar o contato com os outros Acome tido por uma pneumonia foi internado e durante uma entrevista com Cesar se conscientizou da ne cessidade de uma respiração assistida pedindo que lhe colocassem um Bird ao qual ficou ligado até fa lecer Apesar da luta de Raimundo para se adaptar ao sofrimento que enfrentava que incluía até sorrir para tentar estimular os que o assistiam seus familiares se mostravam desesperados sem condição de auxiliálo precisando até serem mantidos afastados para não in fluenciálo negativamente Este foi o caso de um irmão que chorava copiosamente durante o momento da in ternação enquanto Raimundo o consolava Sua mãe Psicossomaticaindd 409 Psicossomaticaindd 409 05012010 121220 05012010 121220 410 Mello Filho Burd e cols em função do nível de ansiedade que apresentava também precisou com o agravamento do quadro ser afastada Só o pai mostrava alguma serenidade dian te da doença Um adolescente de 19 anos é internado no Hos pital Ao visitálo sua mãe o trata como um bebê dizendo Coitado do meu filho aqui sozinho neste lugar Com quem eu vou dormir na minha cama ago ra Esta cena provoca enfurecimento e revolta por parte dos residentes que atendem o paciente neces sitando uma intermediação de Lizete para que não hostilizassem essa mãe fazendoa de bode expiatório de toda a dolorosa situação vivida pelo filho Carlos de meia idade internado com uma sín drome do lobo frontal é um militante político que vi veu por muitos anos fora do país quase sem contato com a família Conhecido como líder vem perdendo progressivamente seu juízo crítico fazendo pergun tas absurdas comendo como se fosse um animal Os irmãos desgarrados vêm de súbito de várias par tes do país para assistirem perplexos o desenrolar desses fatos Lizete e Cesar passam a se reunir com eles para ajudálos a lidar com a ansiedade e deso rientação decorrentes da situação e permitirlhes dar algum tipo de apoio ao irmão diminuindo a culpa de se sentirem omissos diante da vida pregressa de Carlos e do seu adoecer O diagnóstico diferencial destes quadros é por vezes muito difícil e requer conhecimentos psiquiá tricos por parte do profissional de Psicologia Médica que atende o paciente Por outro lado a presença do psiquiatra pode se fazer necessária para interpretar dados de exames complementares ou para diagnos ticar precocemente o acometimento cerebral próprio da enfermidade Sabendose que cerca de 40 dos pacientes apresentam lesões cerebrais próprias do vírus da AIDS em suas autópsias fazse mister que estas sejam diagnosticadas em seu início e diferen ciadas de condições psíquicas outras que podem sugerir o começo de um quadro demencial apatia desinteresse distúrbios da memória estados depres sivos Desse modo a diferenciação entre um estado demencial depressivo ou regressivo pode ser difícil inclusive porque estas condições podem se apresen tar associadas Se levarmos em conta que o paciente de AIDS pode apresentar combinadamente ou não quadros próprios da doença encefalopatia lesões neurológi cas várias infecções associadas meningoencefali te por criptococos encefalopatia por toxoplasmose etc e reações psicológicas as mais diversas histé ricas psicóticas depressivas poderemos entender melhor a complexa tarefa de diagnosticarmos ade quadamente essas situações e de bem encaminhálas terapeuticamente Assim a criptococose e a toxoplas mose por exemplo são passíveis de tratamento por antibióticos ou por quimioterápicos Não só os quadros de apatia ou de depressão podem ser de difícil diagnóstico e conclusão Também as reações psicóticas agudas os quadros de agitação psicomotora ou estados confusionais colocam com plexas questões de diagnóstico diferencial e requerem um manejo especial por parte do psicoterapeuta e de toda a equipe que assiste o paciente Assim a medi cação psiquiátrica requererá um cuidado especial por estar sendo ministrada a um paciente que além de todas as tensões psicológicas a que está submetido poderá ser portador de dano cerebral orgânico O quadro demencial costuma evoluir de forma sorrateira de difícil detecção O psicoterapeuta pode percebêlo em seus primórdios se detectar precoce mente distúrbios de memória atenção ou concentra ção Dirce Bonfim clínica costuma dizer que há uma modificação da relação médicopaciente que se torna mais pobre e retraída frustrando o médico naquilo que está acostumado a obter daquele paciente Sem dúvida ela está falando da apatia e desinteresse que vão progressivamente acometendo o paciente até le válo a um estado demencial propriamente dito Em nossa experiência a presença desse estado irá interferir de modo significativo na fase final da enfermidade e na morte do paciente como veremos a seguir e está expresso no caso de Luiz que igual mente será descrito As reações psicológicas e psiquiátricas tendem a provocar intensa mobilização na equipe assistencial e podem motivar respostas iatrogênicas Temos tes temunhado por exemplo dificuldades de tolerância em médicos a comportamentos histéricos de pacien tes homossexuais Nesses casos somamse duas cau sas de rejeição e preconceito num mesmo paciente a homossexualidade e a histeria E visão médica muito comum de que histeria é algo premeditado que só cessa diante de uma reação autoritária e agressiva Por vezes se a mobilização por parte da equipe é muito intensa pode até redundar na alta do pacien te Obviamente todas estas angústias e expectativas se acentuam por parte de médicos e enfermeiros principalmente nos mais jovens menos experientes e que mais se identificam com o sofrimento do paciente aidético se o caso tomar o rumo inexorável para o agravamento e para a morte Cenas como as descritas na família de Carlos são vividas diariamente pela equipe e seria extenuan te descrevêlas ainda mais O importante é frizar a necessidade de um atendimento à família desses pa cientes e ao mesmo tempo salientar as dificuldades decorrentes do fato de o psicoterapeuta atender si multaneamente o paciente e sua família em sessões separadas pois nem sempre há tempo oportuni Psicossomaticaindd 410 Psicossomaticaindd 410 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 411 dade ou condições de fazer um encaminhando a ou tro profissional e nem o Serviço Social tem sempre possibilidades de lidar com situações tão complexas Ademais é inevitável que a família tenha contato com vários dos profissionais de saúde que atendem o paciente incluindo assistente social e o psicotera peuta Tratase sobretudo de situações de desespe ro provocando respostas que poderíamos chamar de atuação por parte da família ou da própria equipe Uma estratégia usada nas situações mais difíceis é o atendimento da família por um casal de terapeutas que desse modo auxiliamse mutuamente e ofere cem um modelo de pais harmônicos coesos e inte grados Atualmente estamos encaminhando para um atendimento em grupo de várias famílias numa estratégia de economia assistencial que se impõe à medida que a doença vem se alastrando Um papel muito importante cabe nestes casos ao enfermeiro que é o profissional que fica junto ao paciente de modo mais intimo partilhando de suas dores sofrimentos e cuidados Um fator de compli cação diz respeito ao grande número de enfermeiros masculinos que são homossexuais tal como é a realidade do nosso Hospital revelada agora através da AIDS Ao mesmo tempo por questões de status e poder dentro da equipe de saúde cabe ao enfermeiro principalmente aos menos classificados profissio nalmente os atendentes de enfermagem o papel de bode expiatório de acompanhar o paciente na hora de sua morte Marcos internado com pneumonia gritava com dores pelo corpo enquanto enfermeiras conversavam e brincavam próximas ao leito Cesar presente ficou tão angustiado com esse estado de coisas que chegou a ter uma lipotimia Depois recuperado aproximouse do paciente que pôde lhe dizereu sinto a morte correndo pelo meu corpo sinto meus membros fi cando dormentes eu vou morrer E pedia a Cesar para pegálo para aquecêlo E ele pegava aquecia cobria o paciente até ele morrer Na supervisão eu disse a Cesar Coube a você exercer o papel de mãe fonte de vida até na hora da morte e você o assu miu Em reunião com a equipe de enfermagem pôde ser abordado de forma não acusatória a atitude de negação e descaso como defesa contra o horror do contato com o processo da morte em sua evolução inexorável Infelizmente a maioria dos pacientes em nossos hospitais morrem solitários e desassistidos pela falta de preparo dos profissionais de saúde para lidar com a questão da morte Nesse sentido cabe ressaltar a consciência que a enfermagem vem adquirindo dian te dessa realidade Assim neste momento vemos os enfermeiros aceitando muito mais que os médicos a realização de grupos de reflexão sobre sua prática profissional Em relação ao presente trabalho foi de fundamental importância o funcionamento durante mais de um ano de um grupo desse tipo coordena do por Lizete prática que foi retomada mais recente mente Já em relação aos médicos só bem mais re centemente conseguimos participar de suas reuniões de discussão de casos Como podemos ver há uma integração de re cursos médicos de enfermagem e de serviço social no atendimento a esses pacientes Normalmente essas pessoas deveriam se relacionar de forma coesa e har mônica reunindose e trocando experiência de modo sistemático Em nossa prática porém isso é uma utopia De regra cada uma dessas equipes se reúne de modo isolado e três tipos de integrantes trocam informações com os demais quando se encontram no atendimento de determinado paciente Nós da Psicologia Médica como grupo fomos convidados a participar dessa experiência através da equipe médica Porém em certos momentos temos encontrado mais receptividade para o nosso trabalho por parte da enfermagem ou do serviço social Assim já nos reunimos em duas fases com a enfermagem em um trabalho de grupo de reflexão e estamos em permanente contato com o serviço social Quanto aos médicos atendemos conjuntamente casos ambulato riais ou de internação trocando ideias e experiência A equipe é heterogênea composta desde staffs de grande experiência a internos e residentes natural mente angustiados diante da tarefa de assistir a um paciente com AIDS Os últimos diante da magnitude dos problemas psicossociais presentes em certos ca sos podem defenderse com atitudes que se tomam iatrogênicas para os pacientes autoritarismo rejei ção frieza preconceito agressividade As dificuldades de entendimento e entrosamen to entre uma equipe médica e a da Psicologia Médica são múltiplas e de dupla direção Nesse sentido ape sar de preconizar há tempos em nossa supervisão que a equipe frequentasse as reuniões de discussão de casos clínicos dos médicos da DIP só muito recen temente conseguimos que isso fosse feito Por outro lado nós da Psicologia Médica nunca conseguimos que a equipe médica concordasse em fazer grupos de reflexão prática que estamos certos em muito con tribuiria para a melhoria do atendimento como um todo aos pacientes e para o próprio funcionamento da equipe em si Todavia o trabalho em comum desenvolvese e cresce se o staff da Psicologia Médica está presente Ver a este respeito o trabalho de Alicia Navarro Grupo de reflexão multiprofissional em AIDS uma estratégia em Psicologia Médica Capitulo 31 deste livro Psicossomaticaindd 411 Psicossomaticaindd 411 05012010 121220 05012010 121220 412 Mello Filho Burd e cols quando um elemento da equipe médica tem necessi dade de discutir determinada peculiaridade psicoló gica de um paciente Se é realizada uma prática do tipo interconsulta uma maior integração se desen volve entre os dois participantes Temos tido muita dificuldade em manter uma equipe fixa por parte da Psicologia Médica Por um lado o trabalho é difícil mobilizador e desgastante exigindo muita experiência por parte dos que dele participam Assim a seleção é árdua e um grande número de candidatos não têm reais condições de participar do programa de atendimento Ao mesmo tempo parte dos que se iniciam neste trabalho perce bem com o tempo que não têm condições de prosse guir seja por dificuldades de atender homossexuais seja principalmente em razão da problemática tão presente da morte Por tudo isso nossa equipe tem sido flutuante ao longo destes anos o que traz reais dificuldades a seu funcionamento como grupo uniforme e coeso A prática de supervisões regulares e contínuas entre tanto tem permitido que essas dificuldades venham sendo discutidas e que o funcionamento da equipe como um todo tenha se mantido com um razoável nível técnico e possibilidade de um bom desempenho nas crises psicológicas dos pacientes incluindose o problema da morte Todavia em nenhum trabalho de Psicologia Médica de que temos participado depara monos com tal número de desistências e abandono por parte de uma equipe como é o caso do presente trabalho com pacientes portadores de AIDS Um problema em especial reconhecido por to dos diz respeito a como lidar com os chamados por tadores sãos com os pacientes soropositivos ou do grupo 1 o clínico ao comunicar o diagnóstico de forma adequada ou inadequada abre a perspectiva de um atendimento psicoterápico Cabe ao paciente aceitar ou não essa opção com suas vantagens po rém sempre acompanhada de inevitáveis ansiedades Cresce dia a dia o número de pacientes aidéticos em análise e a proporção desses casos em nossa prá tica psicanalítica tende a aumentar cada vez mais Há múltiplas situações a considerar a esse respeito Uma delas diz respeito a pacientes em análise que ficam sobressaltados com a perspectiva de serem portado res de AIDS De um lado estão os fenômenos hipo condríacos de outro os casos dos pacientes com ris co real de terem a enfermidade Uma questão básica pela qual passam todos os pacientes deste segundo grupo é a dúvida Faço ou não faço um exame diag nóstico A pergunta que fazem os pacientes e por vezes mesmo os próprios terapeutas é Que adianta saber que estou com uma enfermidade que não tem cura Isso não pode mesmo piorar as coisas Deve ser fundamental neste sentido nossa segurança como terapeutas sobre a certeza de que a enfermi dade pode não ter cura porém sempre há um trata mento e é melhor passar por ele apesar dos incon venientes e das iatropatogenias que possa propiciar Tal é o caso do AZT e de outras drogas antivirais que estão sendo utilizadas neste momento Além da ação medicamentosa da substância que pode ser mesmo questionada em certos casos joga um importante papel o fato de o paciente sentir que ha algo a ser fei to bem como o clima de apoio e holding proporciona do pela equipe durante as internações para aplicação do medicamento Parece oportuno lembrar que a questão do diagnóstico está inserida numa questão maior que interessa sobretudo a nós profissionais de saúde mental ou seja a questão da verdade de como se conscientizar e lidar com as verdades próprias de nossa condição de humanos E recordar que cada uma dessas questões é de particular elaboração de desdobramento de um microprocesso dentro do pro cesso geral de um desenvolvimento analítico Nesse processo há uma permanente dialética entre por um lado nosso respeito à pessoa do paciente suas buscas e suas verdades seu Self suas opções e por outro nossa posição como profissionais de saúde sabedo res dos riscos de uma enfermidade para o paciente e também para os outros como forma de contágio Feito o diagnóstico deparase com o proble ma de como ajudar o paciente em uma caminhada existencial na qual ele poderá se defrontrar com a evolução inexorável da doença Esta é outra encru zilhada dialética na qual precisamos nos posicionar frente a esses pacientes Por um lado mostrarlhes que a doen ça não irá fatalmente atingilos por outro poder ajudálos a reconhecer a presença da enfermi dade quando ela surgir Portanto um exercício per manente de lidar com paradoxos como o é em última instância toda prática psicoterapica e a própria vida conforme nos mostra tão bem Donald Winnicott Nos casos mais avançados da doença frente à imposição de modificações técnicas e de setting cabe perguntar se continuamos dentro de um processo psi canalítico ou se nos situamos numa psicoterapia de condição especial O ATENDIMENTO GRUPAL Diante da demanda cada vez maior de casos do grupo 1 optamos por iniciar um atendimento grupal Esta experiência vem nos trazendo grandes ensina mentos Seria muito extenso discutir se este é um grupo analítico ou não Todo o nosso trabalho é obviamente um trabalho de referencial analítico de psicanálise Psicossomaticaindd 412 Psicossomaticaindd 412 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 413 aplicada Porém chamaríamos esse grupo em prin cípio de grupo de reflexão Reflexão feita conjuga damente pelos coordenadores e pelo grupo sobre os fatos que se passam na dinâmica grupal e no jogo das relações e transferências múltiplas Portanto basea do numa compreensão analítica do contexto grupal Esse grupo vem se reunindo semanalmente há três anos tendo de início Cesar e Lizete como coterapeu tas Esta estratégia do casal tem sido muito vanta josa terapeuticamente e ao mesmo tempo fonte de muito dados a serem pensados O grupo se iniciou com quatro pacientes três homossexuais e um bissexual Os homossexuais pre dominantemente passivos traziam histórias de vida impressionantes Um deles foi iniciado na homosse xualidade por um tio que o levou a frequentar pros tíbulos de homossexuais Outro teve a sua primeira relação sexual com um caseiro de uma das múltiplas casas em que viveu com sua mãe O bissexual é um bailarino muito narcísico e com defesas predominan temente maníacas O primeiro grande conflito do grupo foi homos sexualidade x bissexualidade O bissexual de inicio tentou tripudiar sobre os outros apresentandose como capaz de fazer amor a qualquer preço e por tanto superior a eles vistos como pobres bichas O conflito ativo x passivo nunca de todo resolvido pelos homossexuais embora tentem habitualmente negálo ou dissimulálo apresentavase com toda sua nitidez Os homossexuais por sua vez reagiram mostrando que o bissexual no fundo era um ser em cima do muro indefinido enquanto eles pelo me nos se afirmavam como verdadeiros homossexuais Tal colocação atingiu em cheio a questão da indife renciação do bissexual de tal forma que em meio a uma enorme angústia e a vários actingins e acting outs ele abandonou o grupo Este cresceu para oito participantes todos homossexuais e logo surgiu outra antinomia a questão homos sexualidade x morte Ou seja o grupo passou a falar tão somente da homossexualidade para evitar enfrentar o temor real da fragilidade corporal e da morte Da mesma forma o comportamento hipersexual frequente des ses pacientes é uma maneira de se defender entre outras razões desta angústia básica fundamental De vários modos o grupo tem reagido diante dos paisterapeutas De início Lizete entrou em férias e de imediato o grupo também se cindiu dos qua tro passaram a vir habitualmente apenas dois Cons tituido o casal pôdese testemunhar uma série de in teressantes reações diante dele Durante o Natal por exemplo o grupo deu um creme de barbear de pre sente ao Cesar e uma pequena boneca a Lizete Esse gesto foi visto junto com outros emergentes como expressão do desejo de ter um pai realmente máscu lo porém uma mãe criança frágil e assexuada em face dos ciúmes incestuosos e do peso representado pela força de suas mães diante dos seus pais e deles mesmos Por outro lado os pacientes praticamente só falavam de temas sexuais dirigindose diretamente a Cesar tentando corrigir a omissão dos país reais a este respeito e evidenciando mais uma vez a neces sidade da exclusão sexual da figura materna A certa altura o grupo pôde mesmo expressar que se tives sem tido pais como Cesar e Lizete não seriam homos sexuais e não teriam adquirido AIDS Essa afirmação com todo conteúdo de idealização e racionalização que apresenta encerra entretanto à luz da experiên cia que estamos tendo com tais pacientes um fundo de realidade Ao mesmo tempo os pacientes o que é mais importante estão podendo questionar suas vidas e suas aparentes opções Estão conseguindo perceber ao lado da instabilidade dos parceiros toda uma ins tabilidade de vida de empregos de relações outras de sentimentos Como no caso dos pacientes atendi dos individualmente estão começando a abandonar vidas e relações promíscuas a buscar ter os mesmos parceiros a colocar a questão do afeto do amor aci ma dos prazeres tão somente da sexualidade Esta é aliás uma questão muito importante para nós he terossexuais ao tratarmos de homossexuais Poder admitir dentro desta complexidade de afetos e sen timentos que estão presentes no que se pode chamar de amor neste continuum que vai de um amor ba sicamente narcísico a um amor mais genuinamente objetal que o homossexual possa como os demais se res humanos também amar O que vemos habitual mente é que as relações afetivas e sexuais entre os homossexuais estão eivadas de aspectos simbióticos de relações de poder e submissão de rivalidade ciú me e agressividade de aspectos afinal consequentes de uma sexualidade que Freud chamou de perversa em oposição a uma sexualidade sadia genital Este termo com todas as conotações que possui vem a ser todavia um estigma a mais para o homossexual E a partir de Freud sabemos cada vez mais da parti cipação da pregenitalidade na sexualidade genital e das dificuldades de muitos heterossexuais em ter uma vida que se possa chamar de normal ou pelo menos saudável Do mesmo modo penso que devemos ter nossas mentes e espíritos abertos para admitir o que poderia ser a normalidade dentro da homossexuali dade ou seja a melhor possibilidade adaptativa em termos de realização sexual e de vida afetiva num in divíduo homossexual Esse é um tema que pode tra zer dificuldades para a questão da rigidez de nossos superegos Nos pacientes que estão sendo acompanhados individualmente ou em grupo podemos constatar Psicossomaticaindd 413 Psicossomaticaindd 413 05012010 121220 05012010 121220 414 Mello Filho Burd e cols mudanças de comportamento tornandose homosse xuais menos compulsivos e mantendo relações não somente parciais e indiscriminadas Mudanças que se devem a uma personalidade em crescimento e a uma elaboração psíquica e não apenas a soluções adapta tivas em relação à convivência com a AIDS risco de transmissão ou de exacerbação da infecção Mesmo nos bissexuais a questão de uma pos sível modificação da orientação da sexualidade não tem sido questionada pelos pacientes nem por nós Foise o tempo em que os homossexuais procuravam analistas ou psicoterapeutas para tentar a busca de uma solução heterossexual Estes pacientes são de finitivamente homossexuais não tiveram inclusive a real possibilidade de outra forma de realização se xual como diz muito bem Joyce MacDougall A pró pria bissexualidade quando existe parece ser apenas uma questão a mais dentro da problemática geral da homossexualidade Do grupo atual apenas um paciente pertence ao estágio III por apresentar uma mononucleose crôni ca recidivante A presença desse paciente tem sido di fícil para os outros como difícil será a instalação mais cedo ou mais tarde de infecções oportunísticas nos demais Como também costuma ser difícil para um paciente ambulatorial comparecer a uma consulta e encontrar na sala de espera outro doente numa fase mais avançada da enfermidade É ainda mais difícil para outros durante uma internação assistir um vi zinho de leito morrer de AIDS Esta é aliás uma for ma de iatrogenia inevitavelmente presente em qual quer instituição de saúde Pretendemos todavia dar consciência a esses pacientes de suas possibilidades de viver de adoecer e de morrer para que possam talvez adiar suas mortes ou pelos menos se preparar melhor para elas A MULHER COM AIDS Em praticamente todas as estatísticas sobre a doença as mulheres vêm aparecendo em números progressivamente maiores configurando um proble ma de saúde pública junto com a questão dos bebês aidéticos filhos de mães contaminadas Há aquelas que já constituem um grupo de risco as prostitutas outras que também foram contaminadas por homens homossexuais ou drogadictos Tambêm estão den tro desse grupo as que contraíram a doença por trans fusão de sangue O comportamento desses grupos constuma ser muito diferente pois enquanto as mulheres de ho mossexuais e drogadictos costumam ter ligações tu multuadas e uma situação de conflito frente a um companheiro que as infectou as mulheres que con traíram a doença por transfusão não costumam ter tais tipos de conflitos Podem sentirse vítimas do destino de más condições de saúde pública porém o lado mau não está dentro de suas casas As mulheres com AIDS depois dos toxicôma nos são o grupo que mais oferece problemas num atendimento psicoterápico Têm dificuldades de se conscientizar da doença e temem muito ver a fragi lidade ou a deterioração dos seus casamentos São muito feridas por terem sido contaminadas pelos maridos traídas Outras já tinham sido contaminadas e estavam separadas quando souberam da realidade de serem portadoras da doença criandose também uma situação difícil pessoal e familiarmente Via de regra essas pacientes negam as evidên cias de que são casadas com um bissexual e como no caso da família dos homossexuais só admitem esta realidade quando estes adquirem a AIDS ou quando são finalmente infectadas por eles Então precisam defrontarse com várias duras realidades ao mesmo tempo meu marido e homossexual tem AIDS eu também tenho AIDS etc Beatriz é uma mulher de 40 anos obesa que se apresentava vestida de forma grotesca parecia uma Wilza Carla de óculos gigantes no dizer de sua psi coterapeuta tentando se mostrar bem e exuberante porém conseguindo ser apenas chocante e brutal Teve um primeiro casamento do qual tem uma filha de 22 anos porém se separou do esposo porque ele não me dava afeto Teve então um companheiro com quem vive até hoje e com quem tem um filho de 20 anos Conheceu esse companheiro quando estava fazendo um festival de terapias alternativas ioga terapias corporais etc Diz que gostava muito do corpo dele e que ele era muito bom para ela foi o grande amor de sua vida Hoje estão separados geograficamente porem ainda se encontram Mas ele está acabado pela AlDS Enquanto ele tem uma forma mais avançada da doença ela está ainda nos primórdios Beatriz deve ter um enorme conflito com esse companheiro e consigo mesma embora não o deixasse aparecer durante as três sessões de psico Obviamente sabemos que os bissexuais podem ter uma forma de viver familiar e socialmente bem distante do ho mossexual Todavia baseados sempre na experiência clíni ca entendemos que a problemática básica desses pacientes é a homossexualidade Por terem encontrado soluções diferentes do homossexual comum podem os bissexuais ter uma história de vida aparentemente muito diversa dos assumidos e ter mesmo sua condição de homossexuais relegada a um plano secundário e supostamente ocasional A frequente contaminação por AIDS dessas pessoas mostra entretanto que a realidade é outra Psicossomaticaindd 414 Psicossomaticaindd 414 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 415 terapia a que compareceu Como se pode perceber ela abusa de negações e de defesas maníacas o que é frequente neste tipo de estrutura principalmente diante de um problema como a AIDS Diz que ele se contaminou porque era doador de sangue de agu lha em agulha Porem na realidade ela parece estar inconscientemente falando de como um toxicômano se contamina com AIDS isto é literalmente de agu lha em agulha A paciente chorou muito quando falou sobre isto sobre todos os planos que fizeram Agora ela está contaminada e ele quase morrendo Após a ter ceira consulta na qual mais se expôs disse que vol taria porém não mais apareceu A psicoterapeuta sentiu desde o primeiro momento que a relação era frouxa Uma situação não tão difícil psicopatologica mente é a de Joana uma mulher de 35 anos que es teve em psicoterapia com Lizete durante quase dois anos Natural da Baixada Fluminense era filha mais velha com um irmão epilético e uma trágica história de vida Foi criada por uma tia e sempre se sentiu feia e pequenininha Fez um casamento apático e como não conse guisse engravidar o marido arranjou outra Tornou se manicura veio para Zona Sul do Rio de Janeiro e começou a trabalhar num salão de beleza Saía de vez em quando com um dos cabeleireiros com quem mantinha um namoro eventual e ficou gostando dele Tiveram relações sexuais umas seis vezes durante quatro anos Quando soube que um amigo dele tinha morrido de AIDS pediu para fazer exame Constatou se que Joana é soro positivo não tendo apresentado sintomas da doença no tempo em que se tratou neste hospital Durante a psicoterapia revelaramse sobremo do mecanismos de formação reativa para encobrir a intensa raiva e decepção que sentia do namorado Ao invés desses sentimentos surgia piedade e preocupa ção para que ele se tratasse Joana vivia situações de intensa humilhação Estava sempre atrás dele que fingia que não a re conhecia Mandavalhe então cartas recados Ele chegou a deixar o emprego no salão fugindo dela A paciente contava tudo isso na psicoterapia e chorava Eu só quero o bem dele que ele se trate Mas pode acontecer tudo a ele Deixava assim antever a raiva e a ambivalência escondidas na relação Joana falou no salão que era soropositivo per deu o emprego Podemos ver esta como mais uma das manifestações do seu masoquismo exuberante nas duas relações afetivas principalmente na forma como perdeu o casamento ou no modo como buscava desesperadamente o amante Na psicoterapia foram trabalhados de modo focal o masoquismo e a baixa autoestima correlatos principalmente na relação atual e aflitiva com o exnamorado Numa oportuni dade trouxe fotos de mulheres quase nuas tomando banhos de sol que sugeriram ligações homossexuais à terapeuta Isso não foi trabalhado porém era dito a ela que o cabeleireiro representava todo seu lado feminino exuberante que ela não se permitia exibir por em prática Parecia haver em Joana um temor muito grande da sexualidade masculina e de ter filhos consubstan ciados na forma como terminou seu casamento Já os homossexuais são menos perigosos e mais permi tidos e ela faz a trajetória típica das mulheres que escolhem este tipo de homens híbridos Assim no ambulatório da Psicologia Médica conheceu homos sexuais do grupo terapêutico citado neste trabalho e logo se ligou a eles tomandose mesmo amiga de alguns USUÁRIOS DE DROGAS UM PROBLEMA MUITO ESPECIAL Este é o grupo que mais vem crescendo propor cionalmente nas estatísticas sobre AIDS É um dos grupos menos representado em nossa estatística já que estes pacientes são normalmente drenados pelo Hospital para o Núcleo para o Ensino Prevenção e Assistência a Drogas do Estado do Rio de Janeiro NE PAD Porém atendemos os casos internados antes de serem encaminhados ao Núcleo e estamos elaboran do um trabalho em comum entre os dois centros pois há necessidade de que também prestemos assistência em virtude do grande aumento destes casos em nosso meio São normalmente os pacientes que mais pro blemas trazem em uma internação Via de regra são muito onipotentes por trás do medo e da fragilidade e rebeldes podendo mesmo se tornar sociopatas A perícia em mentir como meio ao mesmo tempo de ob ter a droga e de esconder que a usam é parte de uma escalada que os leva à convivência com a marginali dade ou mesmo ao ingresso nesta condição Os trafi cantes estão sempre atrás dos dependentes e os obri gam a traficar principalmente se não têm dinheiro É o que poderíamos chamar de o circuito da droga Como é fácil de deduzir esses pacientes usam abusivamente de mecanismos de negação e são os mais difíceis de se envolver numa psicoterapia Habi tualmente iniciam e interrompem um sem número de vezes Lutam muito para não se acercar da realidade da presença da AIDS e se mantêm continuamente vol tados para sua condição de drogadictos isto é para a possibilidade dia após dia do consumo da droga Obviamente casos iniciais menos graves têm ainda Psicossomaticaindd 415 Psicossomaticaindd 415 05012010 121220 05012010 121220 416 Mello Filho Burd e cols outra psicopatologia e outro comportamento Porém o usuário de drogas que adquiriu AIDS é aquele que já está no estágio endovenoso da aplicação da droga que não mais se cuida e usa seringas não esterilizadas ou as que são utilizadas para diluir a droga num pool de sangue de viciados Como podemos deduzir são pacientes muito carentes ansiosos e propensos à atuação lembran do algo os homossexuais compulsivos referidos neste capítulo como os primeiros pacientes que adquiriram AlDS Enquanto os homossexuais têm sua doença vinculada à sua identidade à sexualidade e muitas vezes a uma figura amorosa parceiro identificável no toxicômano a doença tem um caráter impessoal é apenas um acidente ocorrido no uso da droga não recordável ou sequer identificável Tudo isso talvez explique porque o homossexual aceita mais a psico terapia falar de sentimentos refletir pensar que o drogadicto Este via de regra não consegue incorpo rar a AIDS ao seu universo referencial a não ser que a doença seja muito avançada e então já não há mais nada a fazer Estes pacientes que por vezes são também ho mossexuais criam vários problemas que frequente mente irritam médicos e enfermeiros Um paciente por exemplo pede licença para sair e receber seu pa gamento Seu médico assistente constata que foi uma manobra utilizada para que pudesse ir ao encontro da droga enganandoo Por outro lado pacientes drogadictos graves ou que já estão no nível da sociopatia começam a ad quirir AIDS e criar uma serie de complicações a mais em suas vidas já turbulentas Ou para a sociedade na qual convivem Deste modo por exemplo pacientes homens com facilidade e sem culpa irão contaminar mulheres ou outros homens se homossexuais prin cipalmente através das relações promíscuas que fre quentemente ocorrem com pessoas tão regredidas C é uma paciente adulta jovem drogadicta e delinquente que já se envolveu em conflitos armados em várias ocasiões Esteve alguns anos em psicote rapia no Serviço de Psiquiatria do Hospital sendo seu caso supervisionado pela Psicologia Médica Teve dois episódios de endocardite bacteriana Costumava vir armada para as consultas Há um ano tornouse soropositivo para AIDS Tem sido então por várias ve zes encaminhada para nosso atendimento especiali zado Numa das vezes compareceu um tia de C para dizer que ela havia fugido de casa Contou que C tinha entrado numa seita e que passou muito tempo sem usar drogas Acha que sua sobrinha aqui no Hos pital não vai deixar de usar drogas traduzindo sua confiança na seita e sua descrença em nosso tipo de atendimento Este caso ao mesmo tempo que nos dá esperan ças quanto ao atendimento de uma paciente deste tipo pois se não fosse a boa ligação com sua psicotera peuta C já não estaria nem viva tal o seu envolvimen to com a marginalidade mostra nossas limitações principalmente diante da presença agora da AIDS De início há uma droga que pode ser abandonada agora não há uma doença a ser descartada E isso ocorre no background já tão comprometido do toxicômano in vadindo sua vida pessoal familiar seu trabalho suas relações pessoais sua sexualidade etc A princípio não havia saúde mental mas a saú de física estava apenas relativamente comprometida Agora esta está irremediavelmente comprometida e a saúde mental ainda mais baqueada para poder for talecêla E os profissionais de saúde por uma série de razões não são percebidos como confiáveis para desempenhar um ou outro papel O PACIENTE TERMINAL E A MORTE As fantasias que fazemos sobre nossa própria morte estão inevitavelmente presentes no acompa nhamento destes pacientes Incluise aqui a ideia da morte e de todo o sofrimento ligado a ela Jorge um enfermeiro do grupo II assistiu um paciente ser in tubado antes de morrer e hipocondriacamente ficou apavorado de ter de passar pelo mesmo sofrimento Este e um temordefesa invarialvelmente apresentado diante da perspectiva da morte Fantasiamos por vá rias razões uma forma de sofrer e de morrer entre outras razões para termos a sensação onipotente de controlar ou pelo menos conhecer o terrível inimigo e a hora mais temida A emenda é sempre pior que o soneto sempre sofremos antecipadamente com tais fantasias que nunca se realizarão pelo menos na for ma e nos detalhes que costumamos elaborar Poder renunciar a confecção psíquica destas fantasias ou pelo menos atenuar sua força conseguir admitir que a morte é um momento sobre o qual jamais teremos controle é uma das metas mais importantes na te rapia de um paciente somático e ao mesmo tempo uma das conquistas mais difíceis como postura de um ser humano diante da morte Como se pode deduzir de tudo que foi dito até aqui muitas condições diferentes e múltiplas enfer midades podem coexistir por trás do rótulo diagnósti co da AIDS O caso de Luiz que foi um dos primeiros pacientes acompanhados por Lizete ilustranos sobre alguns desses problemas Ela o atendeu durante dez meses o contato se iniciou quando ele foi internado no Hospital Pedro Hernesto devido a uma pneumo nia Luiz se comparava à personagem do livro e do filme Looking for Mr Goodbar que durante o dia era Psicossomaticaindd 416 Psicossomaticaindd 416 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 417 professora e levava uma vida aparentemente normal porém à noite tinha uma vida inteiramente desre grada com álcool tóxicos e ligações com parceiros sádicos e violentos terminando assassinada por um deles Durante alguns anos Luiz frequentou saunas e relacionouse de múltiplas formas com parceiros vá rios até que na época em que surgiram os sintomas já como numa espécie de premonição do que viria a se passar depois tentou se adaptar a um único par ceiro e a ter uma vida menos desestruturada Era os tensivamente o filho preferido da mãe que mantinha um vínculo simbiótico com ele diante de uma única irmã um ano mais velha casada O pai alcoolista violento sempre foi distante e temido por Luiz Nada foi dito a este sobre a doença de Luiz pela mãe e pela irmã para não abatêlo pois estava velho e enfra quecido A mãe ao saber da enfermidade do filho ficou profundamente deprimida e fez três tentativas de suicídio Não visitou o filho durante as interna ções não ia à casa dele em seus períodos de licença e saiu de sua própria casa quando Luiz foi residir lá no período final de sua enfermidade Durante a interna ção de Luiz o pai não apareceu o que o deixou muito ressentido Meses depois o próprio pai é internado num quadro de cirrose hepática descompensada e Luiz num revide resolve não visitálo Quando se dispôs a vêlo em virtude do trabalho realizado com sua psicoterapeuta já o encontrou em coma e incons ciente no dia seguinte veio a falecer Uma semana após a morte do pai Luiz começou a apresentar um quadro de sarcoma de Kaposi que em poucos meses se generalizou de forma nunca vista pelo staff da DIP impedindoo de se locomover e quase até de ver Mor reu em caquexia com um agravamento progressivo de seu estado geral Luiz já havia se submetido a uma psicoterapia de base analítica durante alguns anos Ao iniciar seu relacionamento com Lizete dizia de forma intelec tualizada que precisava solucionar um complexo de Édipo mal resolvido Tentava assim evitar se defrontar com a realidade cruel de sua enfermida de que foi todavia apresentandose de forma cada vez mais nítida por último através do sarcoma de Kaposi herdeiro do luto patológico que se seguiu à morte do pai Aos poucos Luiz foi se ligando mais a Lizete passando a falar sobre a revolta causada pela doença sobre o sofrimento decorrente do uso dos medicamentos das biópsias e de outros exames inva sivos e finalmente sobre a morte que se aproximava Numa ocasião Lizete o encontrou cambaleante no corredor de uma enfermaria e o amparou Ambos se emocionaram e ela sentiu que este foi um momento importante na relação Depois durante uma sessão de muitos silêncios ele disse que ela estava fazendo aquilo que sua mãe deveria fazer por ele A seguir chorou muito e ela ficou emocionada num silêncio a dois Por vezes ele dormia durante o atendimen to e numa dessas oportunidades teve um sonho em que via seus sapatos pendurados na parede Passou a solicitar mais contatos físicos com ela a propósito de mudar sua posição no leito A princípio falava da morte de modo indireto depois dizendo que sei que está cada vez mais próximo para finalmente conse guir dizer Lizete eu vou morrer Ela comentou na supervisão que ora ficava em silêncio procurando abraçálo com meu conforto ora lhe dizia que en tendia o que estava sentindo A morte de Luiz foi cal ma e ele nos dias finais não mais requereu a presença de sua psicoterapeuta Desde o início do atendimento Luiz tinha um mesmo parceiro que veio a ser uma das pessoas mais importantes nesta fase de sua vida Com muita dedi cação ele o acompanhou em todas as suas crises as sumindo seus cuidados mesmo como uma mãe Tro cava até fraldas descartáveis que Luiz precisou usar tal foi a intensidade da diarreia que o acometeu no final de sua doença Neste processo foi de importân cia que o companheiro após saber ser soropositivo também tivesse um acompanhamento realizado por outro psicoterapeuta Há muitos anos vimos nos interessando pelo trabalho com pacientes terminais de início atenden doos pessoalmente depois através de supervisões Esta forma de atendimento se desenvolveu mui to nos últimos anos com a divulgação e difusão das ideias de Elizabeth KüblerRoss pioneira neste tipo de trabalho Entre varias contribuições ela sintetizou o estudo das fases por que passaria um doente final uma fase inicial de revolta um período de tentativa de encontrar uma saída com o médico durante a qual poderia tentar todo tipo de barganha uma fase de depressão e desistência por não ter encontrado uma solução uma fase final na qual finalmente haveria uma aceitação da morte Tal sistematização nos parece muito útil no atendimento a qualquer paciente terminal Descreve fases e fenômenos que ocorrem com esses doentes excluídos os casos agudos em que não há tempo de estruturar defesas estratégias ou de expressar certos sentimentos Essas fases todavia em nossa experiên cia se sucedem as mais das vezes fora da sequência mencionada Assim a barganha pode ser tentada em outro momento ou a fase de revolta pode manifes tarse no período final Do mesmo modo quadros depressivos podem surgir em qualquer das fases Por outro lado só alguns poucos casos conseguem atingir a etapa de aceitação segundo pudemos observar Pa cientes religiosos costumam com maior frequência atingir esse estado O que está em concordância com trabalhos de Ikemi notável pesquisador de Psicosso Psicossomaticaindd 417 Psicossomaticaindd 417 05012010 121220 05012010 121220 418 Mello Filho Burd e cols mática no Japão que descreveu recentemente cinco casos de cura espontânea de câncer em que o fator mais chamativo eram situações de grande apego à religião ou mesmo episódios recentes de conversão religiosa No paciente com AIDS estas fases se diluem imbricamse e se modificam ainda mais São pacien tes que vêm geralmente de crises múltiplas diarreias pneumonias meningites durante as quais já viveram as etapas de um paciente terminal pois houve perigo real de morte ou o forte pressentimento dela as mais das vezes A história natural da doença também predispõe a sentimentos de revolta ao uso de técni cas de barganha ou ao surgimento de crises depres sivas várias principalmente se tivermos em conta que entre os casos mais numerosos estão pacientes ho mossexuais drogadictos prostitutas ou hemofílicos Ao acompanhar os primeiros casos de AIDS sempre nos surpreendia a qualidade das mortes Ape sar da evolução tumultuada de suas doenças os pa cientes morriam sem a dramaticidade que se costuma ver em outros casos Isso provocou muitas dúvidas e reflexões Seria o tipo de atendimento prestado pela psicoterapeuta Lizete em sua forma de enfrentar o problema da morte Atingiriam estes pacientes a fase de aceitação descrita por KüblerRoss que já havía mos presenciado em outros casos Seria decorrente do esgotamento produzido por uma longa enfermi dade e portanto um misto de resignação e depres são Por que estes pacientes não davam os presentes finais que eu me habituara a ver em outros pacientes terminais Estas dúvidas foram sendo respondidas quando tomamos conhecimento dos primeiros relatos de en cefalopatia nestes pacientes De fato só através da li teratura médica foi possível para nossa equipe poder interpretar melhor o que a princípio parecia ser uma apatia e um desinteresse depressivo ou mesmo um quadro mental decorrente do estado geral do pacien te Só a autópsia ou as tomografias permitiram con firmar esse tipo de acometimento que é frequente mente difícil de diferenciar das condições citadas De fato a maioria desses pacientes morre sem apresentar alterações da consciência ou do juízo crítico que fa çam suspeitar clinicamente de um quadro demencial Porém na decorrência dessa apatia que se instala aos poucos há uma diminuição progressiva dos vínculos emocionais como acreditamos que aconteceu no fi nal com Luiz Como já comentamos isso levou Dirce Bonfim a dizer que o clínico sente com uma certa tristeza que a força da relação médicopaciente a partir de um certo momento já não é a mesma E ca pricho do destino em consequência disso o paciente aidético tão injustiçado pela vida tão marcado pela severidade e atrocidade de sua doença graças a essa lesão neurológica num significativo número de ca sos morre em paz Para ilustrar com mais um caso as inúmeras di ficuldades e vicissitudes do atendimento psicoterápi co a esses pacientes quando nas etapas finais vamos falar de Sérgio que foi atendido durante mais de um ano no Hospital Pedro Ernesto por Rejane Aze vedo psicóloga de nossa equipe Homossexual com inúmeros conflitos familiares na decorrência princi palmente de ter sido um filho francamente preferido pela mãe mostrouse durante quase todo o período do atendimento muito ansioso por vezes deprimi do principalmente diante do quadro progressivo da doença Suas reações tinham frequentemente um co lorido histérico o que trazia muitas dificuldades para o relacionamento dos profissionais da equipe de saú de com ele Tudo isso se transformou em sua segunda inter nação quando apresentou um quadro de meningite por criptococos Desde então seu comportamento modificouse muito em decorrência dessa infecção apresentando ainda uma profunda magreza levan doo a caquexia e quadro demencial Surgiu incon tinência de esfíncteres paraplegia dos membros inferiores e fases de desorientação alternadas com momentos de lucidez Configuravase assim o quadro de um paciente entrando na fase final a cujo respeito escreveu Rejane Afastado da família e numa total dependência do hos pital o paciente restringese ao leito da enfermaria onde não tem mais forças e coordenação motora sufi cientes para pequenos movimentos como por exemplo mudar de posição na cama e alimentarse sem o auxílio de outrem Sua forma de se fazer vivo e presente nos momen tos em que está acordado dáse através do olhar que acompanha todos os movimentos e acontecimentos da enfermaria ou através dos seus constantes e inúmeros pedidos à enfermagem para que o troque da posição ao leito lhe dê algum alimento ou lhe faça a higiene Tal Percebemos este fato pela primeira vez quando um pa ciente renal disse à sua terapeuta uma residente Dr não deixe de não vir me visitar amanhã Ela percebeu o ato falho ou a comunicação ambígua e foi dormir intrigada com o fato No dia seguinte acordou assustada e observou que o relógio marcava oito e meia às oito em ponto ela sempre o atendia Quando chegou ao hospital soube que ele havia falecido exatamente às oito Desde então tenho observado que os pacientes terminais muitas vezes como forma derradeira de preservar alguém por quem se sentem tão ajudados escolhem horas de morrer em que este alguém não esteja presente Ou expressam essa gratidão através de presentes derradeiros como no caso do pequeno hemofílico Psicossomaticaindd 418 Psicossomaticaindd 418 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 419 estado incomoda profundamente as enfermeiras que se sentem irritadas e sobrecarregadas por considera rem que este tipo de trabalho deveria ficar mais a cargo da família ou de uma casa de repouso especializada Minha intervenção neste período vem se tornando cada vez mais peculiar pois à medida que o paciente e suas capacidades de entendimento diminuem meu trabalho tem se moldado às suas necessidades e pos sibilidades Inicialmeme quando seu estado de saúde ainda permitia uma conversa de 20 a 30 minutos conversá vamos da sua profunda tristeza pelo gradativo afasta mento familiar em momento tão difícil como este Com o passar dos dias o paciente passou a falar cada vez menos correspondendo a uma grande neces sidade de não falar mais da dor da solidão ou do seu próprio estado Assim ele apenas me requisitava para cuidados como trocálo de posição ajudálo na alimen tação etc Sérgio passou a sempre me pedir ajuda para comer alguma coisa ou a fazer algo mais por si Num desses dias chegou a me perguntar Isso aqui é uma sessão ou uma enfermagem Respondi como uma pergunta O que é para você E ele disse você é minha psicóloga Esta resposta para mim soou como uma confirma ção de que neste período terminal ninguém melhor do que o próprio paciente para servir de bússola para indi car a melhor forma de ajudálo devendo ser respeitado em suas defesas e possibilidades Muito teríamos a discutir em relação a este com plexo problema da psicoterapia do paciente terminal Desde questionar o termo em si vêlo como possível fonte de iatropatogenia ou estudar a posição de cada elemento da equipe de saúde ou dos vizinhos do leito ou dos familiares como outros terapeutas do paciente terminal Gostaríamos apenas de transmitir a sensação que fica após uma experiência deste tipo para aqueles que dela partilharam É sempre uma sensação de que valeu a pena de que a morte apesar de ter che gado foi mais uma experiência de vida que encerrou algo de belo e digno mesmo dentro de sua aparente injustiça É que talvez pudéssemos alcançar a máxima de Sócrates O importante não é evitar a morte é evi tar que ela seja um acontecimento injusto Vida e morte coexistem e se continuam numa permanente dialética como está na dualidade pulsio nal de Freud Há várias formas de morrer como há vários modos de viver Muitas vezes para suportar o morrer o homem precisa voltar ao nascer Esta é tal vez a missão maior do psicoterapeuta que ousa parti cipar destes momentos tão dificeis em que coexistem o viver e o desaparecer proporcionar um permanen te vínculo simbiótico que reproduza a unidade dual a fusão euoutro os primórdios da vida a sensação do sem fim da quietude uterina Isso é feito através de um olhar de um silêncio compartilhado da palavra adequada que acolhe e abraça do gotaagota dos lí quidos e soros que representam quase concretamente a ligação fluida umbelical Certos pacientes só atin gem esse estágio através do contato corporal numa comunhãofusão de corpos também concreta Isso é realizado através de uma comunhão de mentes que nos permita penetrar nos abismos psíquicos onde se aloja o fantasma da morte dentro de cada um de nós E destas profundezas do existir que iremos retirar a sapiência a lucidez e o senso de realidade que irão nos ajudar neste trabalho Apresentamse assim a nós na medida em que aprendemos mais sobre esta doença fatos sempre novos por vezes alentadores por vezes paradoxais Sem negar a gravidade intrínseca da AIDS mesmo antes da perspectiva de uma cura da infecção talvez se possa portanto pensar que ela não é lobo final da espécie humana a besta do Apocalipse como tam bém não o foram a tuberculose a lepra e o câncer E reflexão final não teria sido talvez necessária uma doença como a AIDS para que as pessoas pos sam de fato tomar consciência de múltiplas verdades sobre a sexualidade humana sobre a questão das prá ticas de saúde como o problema das transfusões sobre a realidade dos tóxicos e sobre o problema das viroses que de várias formas vem extirpando parte da nossa existência POSTSCRIPTUM Este comentário se impõe pois a doença AIDS descrita em detalhes no presente capítulo modificou se de uma enfermidade praticamente mortal a pes te gay para a evolução de uma doença crônica com patível com a vida desde a introdução da influente terapia com antirretrovirais a partir de meados de 1996 Obviamente esta não é a solução definitiva de cura para a AIDS mas colocou estes casos numa si tuação semelhante ao diabete e a hipertensão arterial isto é doenças que se submetidas a uma terapêutica adequada podem ter uma razoável sobrevida Então a realidade agora é diferentemente outra nada de sarcoma de Karposi de graves infecções in tercorrentes de acometimentos orgânicos neuropsi quiátricos de quadros demenciais como forma inicial de apresentação do mal Mas nem tudo são flores O diagnóstico surge geralmente durante uma pesquisa de diagnóstico la boratorial um checkup um exame prénupcial um exame prégravídico quando aparece a bomba um HIV positivo e tudo que se segue à trágica revelação exame do cônjuge dos filhos etc Ou o paciente já sabia que era portador de AIDS e estava mentindo ou foi pego desprevenido com o Psicossomaticaindd 419 Psicossomaticaindd 419 05012010 121220 05012010 121220 420 Mello Filho Burd e cols teste positivo De qualquer forma está desencadeada uma situação de crise Uma doença incurável trans mitida geralmente por via sexual Assim uma boa parte da consulta é gasta nas fa ses iniciais para desarmar o paciente de que apesar de todas as suas defesas psicológicas ele tem AIDS mas essa é uma enfermidade tratável principalmente se fo rem seguidas as manobras terapêuticas indicadas Apesar destas palavras tranquilizadoras há pa cientes que não entram em tratamento alegando que se a AIDS é coisa do demônio o tratamento deve ser espiritual As iatrogenias ocasionadas pela medicação ou pelo autoritarismo do médico também dificultam o bom seguimento do tratamento principalmente se há lipodistrofia que confirma a presença da doença para o seu meio As consultas clínicas quase se singem quan do o acompanhamento é tranquilo a averiguar se há sintomas e se a medicação está sendo tomada corre tamente Contudo muitos pacientes rebeldes ativos ou passivos costumam tomar apenas parte da me dicação na crença de que isso diminui paraefeitos ou intoxicações principalmente na fase inicial ou nas formas graves de terem de tomar 30 comprimidos ao dia Isso mobiliza muitos pacientes hipocondríacos ou narcísicos que não admitem que doenças os acome tam e confundem número de comprimidos ingeridos com a gravidade da doença O fato é que hoje em dia com o progresso far macológico as drogas se tornaram mais potentes o que diminui em muito o número delas a ser ingerido ou se combinando mais de uma substância numa só pílula Então esse problema já foi superado porém surgiu outro mais desagradável É o que se chama de lipodistrofia o grande temor dos pacientes atualmen te A gordura por ação dos medicamentos migra para a região da nuca e do abdome Os braços e pernas ficam finos assim como a face diminuindo as boche chas O paciente fica com um aspecto característico denunciando que está se tratando de AIDS Têm sido feitas cirurgias plásticas principal mente de face com poucos resultados Assim a adesão ao tratamento tratandose de uma doença crônica sujeita a recidivas e recaídas é um fator importantíssimo daí a indicação cabal das terapias de grupo onde os pacientes juntos podem abordar estes problemas e fazer identificações positi vas e terapêuticas Porém vários problemas continuam embora mais atenuados conforme os grupos de risco Os ho mossexuais que já foram mesmo identificados como os grandes disseminadores da doença modificaram muito esta condição nas últimas décadas Usaram mesmo a crise e os debates sobre AIDS para serem vistos como pessoas comuns apenas com uma opção sexual diferente Negaram o caráter narcísico já apontado por Freud a instabilidade de suas liga ções afetivas o masoquismo e até a extrema cruelda de de certos crimes homossexuais Beneficiaramse muito dos amplos debates ge rados na sociedade sobre a tema envolvendo a já fa mosa exclusão no DSMIV do mundo das patologias mentais e conseguiram com que quase todas as críti cas feitas ao universo gay fossem apenas consideradas meros preconceitos Também aderiram maciçamente aos preservativos conseguindo deste modo atenuar a epidemia gay Já entre as mulheres o número de casos po sitivos vem aumentando dia a dia São geralmente ligações com bissexuais que escondem sua condição de base infectandoas Daí podemos considerar os bissexuais mais patológicos que os homos porque nem conseguem fazer uma escolha de gênero Porém hoje com um maior conhecimento da doença já se sabe que nem todas as mulheres são contaminadas por homo ou bissexuais Uma parte delas foi contami nada por heterossexuais que por circunstâncias várias adquiriram AIDS Um drama maior ainda é a contaminação do feto pela mãe gerando intensa culpa na genitora mesmo quando não sabia ser portadora do mal As famílias dos pacientes se constituem um pro blema a parte pois se os apoiam e consolam duran te as crises podem rejeitálos e mesmo hostilizálos principalmente se são homossexuais ou drogaditos O grupo dos transfundidos praticamente desa pareceu com um controle eficiente do Ministério da Saúde sobre os bancos de sangue Felizmente pois era uma fonte importante de contaminação em nosso meio A trágica e comovente experiência vivida por Virginia Fontenelle e equipe relatada neste livro é um testemunho eloquente dessa situação As prostitutas assustadas com a morte de algu mas delas há tempos atrás e influenciadas pelas cam panhas maciças Antiaids deixaram de ser há muito um grupo de risco demonstrando um notável espí rito de classe O mais grave grupo de risco continua a ser o dos drogaditos que além dessa grave psicopatolo gia passam a conviver com a AIDS São geralmente estruturas mentais gravíssimas borderlines esquizo afetivos antissociais que respondem mal às técnicas psicoterápicas e psiquiátricas comuns casos indica dos para uma psicanálise winnicottiana moderna conjugada com medicação mas são tratamentos ca ríssimos pois envolvem além da psicanálise grupos e fármacos recursos dispendiosos internações hospi talares e terapia familiar As técnicas grupais coadju vantes têm aí também uma indicação Psicossomaticaindd 420 Psicossomaticaindd 420 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 421 Com os novos movimentos e tendências da so ciedade os perfis da AIDS também vão se modifican do Assim com o início da vida sexual cada vez mais precoce vão aparecendo casos de AIDS em adoles centes No outro extremo entre os idosos com uma vida sexual cada vez mais livre com um número cada vez maior de divorciados e descasados uma pequena epidemia de AIDS vai se instalando aos poucos O uso de Viagra Levitra e Cialis estimula muito a sexualida de do homem idoso A abordagem atual da AIDS deve ser feita por profissionais de clínica médica tarimbados em lida rem com problemas familiares e psicossociais o ideal seria um médico do Programa de Saúde da Fa mília Lá ele poderá atender uma paciente em crise frente ao diagnóstico da AIDS Por vezes este está em franca depressão e terá que ser medicado Um profis sional de saúde mental poderá ser convocado depen dendo da gravidade do caso Se for um casal de vida monogâmica estará instalada uma crise quem con taminou quem Quem mentiu Geralmente a chance de o homem contaminar a mulher é muito maior já foi de 16 x 1 mas hoje a chance das mulheres casa das se envolverem em aventuras extraconjugais com a experiência acumulada pelas equipes de saúde se considera 1 x 1 Se o casal já estava em crise anterior mente é conveniente convocar um terapeuta de ca sal Ou de família se a crise envolver os cônjuges e demais componentes da família nuclear O ideal é que o tratamento as AIDS seja conduzido por uma equipe de saúde onde estejam representados no mí nimo um médico clínico um psiquiatra um psicólo go e um assistente social Vencidas as crises inicialis o paciente en tra no tratamento da doença crônica propriamente dita ficando a parte clínica a cargo deste mesmo médico e a parte psicoterápica a ser feita individualmente ou em grupo preferencialmente segundo o modelo proposto pela psicóloga Lia da Silveira no Capítulo 35 Caso clínico João um homem de 45 anos professor universitário foime trazido ao consultório por sua esposa devido a atri tos conjugais Ele queria ter relações com ela sem o pre servativo porém ela se negava pois ele já havia tido um casamento anterior cuja mulher havia morrido de AIDS Ele alegava que ela havia adquirido AIDS numa transfusão de sangue e que não passara a doença para ele Alegava que tinha feito um HIV que foi negativo porém não estava com o exame no momento Ela tinha outras queixas dele trabalhava muito e prati camente não dava atenção a ela nem as duas filhas do casal Propus uma psicoterapia de casal porém exigi antes que ambos fizessem testes HIV Western Blot Os testes foram positivos e o tratamento iniciado vi sando uma adequação psicossexual do casal Também foi realizada terapia antirretroviral Ele tinha um CD4 baixo o que indicava doença ativa embora sem sintomas Logo percebi em João traços hipomaníacos tendência à negação um certo superficialismo de conduta frequente uso de racionalização A esposa funcionava mais como mãe o lado consciente do casal Resolvidos os conflitos mais imediatos João permane ceu comigo em psicoterapia individual Contoume então entre idas e vindas que sempre se sentiu atraído por traves tis e que a noite em Copacabana costumava lhes dar carona para que lhe fizessem felácio ou coito anal Indagado sobre se fora passivo alguma vez admitiu com muita relutância que por duas ou três vezes O caso João se esclarecia au grand complet Ele era bissexual e com seus traços maníacos negava para todos sua real condição Contaminou sua exmulher e inventou a farsa da trans fusão de sangue João teve contudo um fim trágico Um de seus maiores sonhos era passar um inverno em Paris O período em que ele escolheu para viajar era contudo particularmente frio E assim o fez apesar das contraindicações minhas e de seu clínico assistente Lá contraiu uma pneumonia dupla e vol tou às pressas para o Brasil para morrer entre os seus Suponho que nem a medicação ele deve ter tomado du rante a viagem No seu sentir maníaco aquela viagem era a vida a cura Paris e no entanto mantinha escondida trai çoeiramente a própria morte REFERÊNCIAS Balint M La falta básica Buenos Aires Paidós 1982 Costa L M Mello Filho J Assistência psicológica ao paciente com AIDS Informação Psiquiátrica v 6 n 2 p 41 1987 Costa L M Lima C O Mello Filho J Grupoterapia com pacien tes HIV positivos Gradiva v 42 n 5 Set 1988 Costa L M Mello Filho J Atendimento psicoterápico em um caso de AIDS Informação Psiquiátrica v 7 n 1 p 20 1988 Cooney T G Wand T T AIDS e outros problemas médicos no ho mossexualismo masculino Rio de Janeiro Interlivros 1987 Faerchtein L Homossexualidade masculina J Bras Psiquiatria v 31 n 3 p 1511982 Figueiroa L O diagnóstico de homossexualidadez modifica ções ocorridas no novo código J Bras Psiquiatria v 31 n 1 p 191982 Fiuza H AIDS a doença do medo Radis p 51 out 1987 Freud S Três ensaios sobre a sexualidade Rio de Janeiro Imago 1986 Gleiser J K K Gleiser R Psychologicalinfluencesinimmumty implications for AIDS Am Psychol n 43 p 892 1988 Holand 1 C Tross S The psychosocial and neuropsychiatric sequelae of the acquired immune deficience syndrome related di sorders Ann Int Medicine n 103 p 710 1985 Isay R A A homossexualidade em homens homossexuais e hete rossexuais algumas distinções e implicações para o tratamento Psicossomaticaindd 421 Psicossomaticaindd 421 05012010 121220 05012010 121220 422 Mello Filho Burd e cols In Fogel G I Lane F M Liebert R S Psicologia Masculina Porto Alegre Artes Médicas 1989 Kohut H A restauração do self Rio de Janeiro Imago 1990 J A análise do self Rio de Janeiro Imago 1989 KüblerROSS E Sobre a morte e o morrer São Paulo Martins Fontes 1981 Leite o S Homossexualidade masculina lateralidade cere bral imunologia e AIDS Instituto de Psicologia da UFRJ dati lografado Liebert R S A história da homossexualidade masculina da Gré cia Antiga até a Renascença implicações para a teoria psicanalíti ca In Fogel G L Lane F M Liebert R S Psicologia Masculina Porto Alegre Artmed 1989 Mamior J A inversão sexual Rio de Janeiro Imago 1983 Mello Filho J Gomers C P Assistência psicológica ao paciente teminal IV Congresso Brasileiro de Medicina Psicossomática UERJ Rio de Janeiro 1984 Mello Filho J Costa L M O fantasma da AIDS no hospital geral Semana de Aniversário do HUPE agosto 1986 A experiência com pacientes de AIDS num hospital de ensi no Boletim do Departamento de Pesquisas da Sociedade Brasilei ra de Psicanálise Rio de Janeiro setembro 1989 O ser e o viver uma visão da obra de Winnicott Porto Alegre Artmed 1989 McDougall J Em defesa de uma certa anormalidade Porto Ale gre Artmed 1987 Nicholls S F Psychosocial reaetions of persons with the acquired immunodeficiency syndrome Annals of Internal Medicine n 103 p7651985 Oliveira Neto M X O paciente homossexual HIV positivo AIDS e a morte J Bras Psiquiatria v 39 n 5 p 244 1990 Oversey L Homosexualidad en el hombre y en la mujer Buenos Aires Paidós 1967 Queiroz A O Mello Filho J O médico diante do doente crônico e da morte J Bras Medicina v 31 n 15 1976 Silva Jr G M N Mello Filho J O estudante de medicina e o paciente terminal Informação Psiquiatrica v 4 n 85 1984 Solomon G F Psychoneuroimmunologic approaches research on AIDS Ann Acad Science n 496 p 628 1987 Stedford A Encarando a morte Porto Alegre Artmed 1986 Stoller R J The transexual experiment London Hogart 1975 Temochock L Psychoimmunology and AIDS In Bridge P P Psychologieal neuropsychiatric and substance abuse aspects of AIDS New York Haven 1988 Psicossomaticaindd 422 Psicossomaticaindd 422 05012010 121220 05012010 121220 Este trabalho é fruto de nossa experiência de dois anos como coordenador da equipe de Saúde Mental do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ que presta assistência a pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida Os primeiros casos de AIDS internados no Hos pital ocorreram no início de 1985 Naquela ocasião o Serviço de Psicologia Medica e Saúde Mental co meçou a ser solicitado a prestar atendimento a es ses pacientes Quando iniciamos nossa participação ainda pouco familiarizados com os problemas refe rentes à AIDS às vezes ficávamos perplexos não só pela grande variabilidade dos sintomas psicológicos e psiquiátricos que observávamos como também pelas amplas consequências médicas sociais familiares epidemiológicas e éticas além das tensões que fre quentemente estavam presentes quando cuidávamos de pacientes em estágio terminal Pela complexidade do atendimento sentimos uma particular dificulda de no exercício da nossa tarefa assistencial ficando flagrante uma tendência a evitála sobretudo pelo medo do contágio Verificamos também que vários outros profissionais de reconhecida competência re agiam como se não tivessem qualquer informação científica a respeito da AIDS O fato de a grande maioria desses pacientes pertencerem aos chamados grupos de risco como homossexuais travestis e usu ários de drogas endovenosas certamente dificultava mais ainda a relação entre equipe de saúdepaciente Embora tais atitudes tenham diminuído acentuada mente o problema permanece na ordem do dia em extensão social e somente será solucionado grada tivamente através de um amplo trabalho que consi ga vencer preconceitos em relação a esses pacientes Ainda com referência a essa situa ção verificamos que ela também se traduz em outra dificuldade na clínica particular o problema da subnotificação Alguns mé dicos atendendo a apelos da família e dos próprios pacientes sensibilizamse pela dramaticidade da si tuação não notificando casos que acompanham às autoridades sanitárias O paciente alvo de discrimi nação social tende a isolarse e às vezes demovêlo desta posição tornase um desafio ao médico que o trata sendo necessário estimulálo para que volte a participar socialmente seja no trabalho na família nas relações afetivas que mantinha antes Citaremos como exemplo o caso de um jovem que foi infectado através de transfusão de sangue durante uma cirurgia de urgência devido a um aci dente de motocicleta Queixavase muito de ter sido abandonado pelos amigos e ao mesmo tempo man tinhase isolado Repetia quase compulsivamente a forma como havia adquirido a infecção Não suporta va a ideia de por equívoco ser incluído no grupo de pacientes homossexuais era casado e tinha um filho Neste caso podemos perceber tanto o sofrimento do paciente por sentirse discriminado por amigos pa rentes etc como também pelo preconceito que ele próprio demonstrava em relação aos homossexuais Esse paciente foi muito beneficiado pela psicoterapia conseguindo retornar a suas atividades anteriores mais ajustado com sua realidade Quanto a nós profissionais de sáude devemos estar suficientemente preparados para lidar com os pacientes e seus familiares da forma mais acolhedora possível independentemente do grupo de risco a que pertencem Devemos tentar superar possíveis dificul dades para nos aproximarmos dos pacientes de difícil 32 AIDS ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS Amaury Queiroz Agradeço pela inestimável participação dos membros da equipe não só através do trabalho assistencial como também pelo diálogo enriquecedor expresso meus agradecimentos a Alécia Navarro de Souza psicanalista Professora da Disciplina de Psicologia Médica e atual Coordenadora da equipe a Maurício de Assis Tostes psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da UFRJ lotado em nosso Serviço e às psicólogas Gisela Cardoso Câmara e Marlene Zornitta ambas lotadas no Centro de Referência em AIDS do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ Psicossomaticaindd 423 Psicossomaticaindd 423 05012010 121220 05012010 121220 424 Mello Filho Burd e cols manejo e tentar elaborar possíveis resíduos precon ceituosos em nós mesmos O fato é que estamos diante de uma grave epi demia não tanto pelo número de pessoas que até agora morreram de AIDS mas porque temese pelo futuro quando se examinam os dados de expansão da doença Através de informações da Divisão de Doen ças Sexualmente Transmissíveis DSTAIDS do Mi nistério da Saúde podemos verificar na Tabela 321 o número de casos de AIDS segundo categoria de transmissão e sexo entre 1980 e 1990 ALGUMAS REPERCUSSÕES SOCIOPOLÍTICAS A epidemia de AIDS no Brasil e no mundo tem suscitado uma grande mobilização não só dos go vernantes e profissionais de saúde mas também da população em geral e principalmente de lideranças que emergiram sobretudo dos chamados grupos de risco e tenderam a se instituir em organizações não governamentais de solidariedade e defesa dos direi tos de pacientes HIV positivos ou com AIDS Essas organizações não governamentais constituem sem dúvida um fato sociopolítico novo da mais alta im portância Algumas delas além de apoiar ou criticar as campanhas de esclarecimento público também exercem fiscalização no trabalho hospitalar acres centando um fato inusitado ao exercício da medicina contemporânea No caso do Brasil devido à grande discrimina ção que se seguiu à divulgação do problema AIDS muitos hospitais tanto da rede pública como parti cular começaram a recusar intemação a estes pacien tes O Governo Federal viuse obrigado a intervir e começou a incentivar e promover convênios interins titucionais através do Ministério da Saúde INAMPS Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde Hospi tais Universitários e Centros de Pesquisa principal mente no eixo RioSão Paulo Foram criados Centros de Referência Nacional em AIDS com os objetivos de assistência pesquisa e treinamento de profissionais de saúde Em julho de 1987 o Hospital Universitário Cle mentino Fraga Filho HUCFF passou a constituir um desses Centros de Referência no Rio de Janeiro A par tir de então aumentou significativamente o número de internações e também a procura de atendimento ambulatorial pois o hospital passou a contar com 15 leitos para internações e com uma equipe especializa da ligada ao Serviço de Doenças Infecciosas e Parasi tárias para viabilizar o programa SIDAAIDS Inicialmente houve uma tendência a psiquiatri zar o atendimento a esses pacientes Por acreditarse serem muito complicados emocionalmente deveriam ser inevitavelmente assistidos por psicólogos psi quiatras ou psicanalistas A correlação sexualidademorte também condu zia à ideia de que a abordagem de problemas sexuais os primeiros casos referiamse a homossexuais pertencia à esfera dos profissionais de saúde mental Entretanto o que ficava evidente era a dificuldade dos médicos de lidar na relação médicopaciente com o tema sexualidade tão natural e de interesse geral mas repleto de tabus Sem dúvida as reper cussões poderiam abalar seriamente as conquistas de liberdade sexual adquirida nas últimas décadas e poderiam dar margem a que grupos reacionários viessem a utilizar aspectos relacionados com as for mas de contágio em discursos moralizadores e nor matizadores do comportamento sexual Felizmente os médicos em geral e as autorida des sanitárias não se deixaram envolver por essa po sição impregnada de preconceitos embora possamos observar ainda hoje a existência de uma certa timidez no lidar com o desafiante problema da produção de material publicitário para campanhas públicas volta das à prevenção da doença O fato é que nem mesmo as organizações religiosas sectárias puderam perma necer omissas diante dessa grave epidemia PARTIÇIPAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE MENTAL Os trabalhos de psicanálise aplicada à medici na entre nós são desenvolvidos por profissionais de TABELA 321 Número acumulado e percentual de casos de AIDS Segundo categoria de exposição e sexo Brasil 19801990 Categoria de exposição condição do Masculino Feminino Razão Total paciente Nº Nº MF Nº Sexual 7752 69 353 30 221 8105 65 Homossexual 4583 41 4583 4583 37 Bissexual 2167 19 2167 2167 17 Heterossexual 1002 9 353 30 31 1355 11 Sangdinea 2272 20 654 55 31 2926 24 Usuário de 1580 14 395 33 41 1975 16 drogas EV Hemofílico 313 3 313 313 3 Receptor de 379 3 259 22 11 638 5 Sangue comp Perinatal 109 9 102 9 11 211 2 Detinidaoutra 1089 10 74 6 151 1163 9 Total 11222 90 1183 10 91 12405 100 Psicossomaticaindd 424 Psicossomaticaindd 424 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 425 saúde mental principalmente psicanalistas que dedi cam parte de sua jornada exercendo atividades em hospitais universitários ou hospitais da rede assisten cial oficial Ao participar da equipe de saúde ou do ensino médico introduzem noções advindas tanto da teoria como da prática psicanalítica e psiquiátri ca enriquecendo conceitos diagnósticos ao valorizar aspectos emocionais envolvidos no processo clínico bem como ajudando na compreensão de problemas relativos à dinâmica da relação médicopaciente A contribuição dos profissionais de saúde men tal referese à tarefa assistencial mas relacionase também com o treinamento de pessoal partindose do princípio de que são profissionais suficientemente preparados para lidar com os mais dolorosos dramas íntimos do ser humano A opção feita em nosso Serviço foi a de partici par ativamente da equipe de saúde Por isso sentimos a necessidade de nos organizar para fazer face àquela demanda A equipe foi gradativamente aumentando e na medida em que se ampliava nossa experiência ficava evidente também a necessidade de sistematizar nosso trabalho para que ele se tomasse mais eficaz SISTEMATIZAÇÃO ASSISTENCIAL Atendimento individual Fazemos o atendimento individual obedecendo aos seguintes princípios gerais 1 quando solicitado por um médico da equipe clíni ca que conclui por esta necessidade 2 quando o paciente expressa o desejo de ser aten dido por um profissional da equipe de saúde mental 3 nas entrevistas sempre asseguramos privacidade e sigilo para possibilitar que o paciente se per mita falar particularidades de sua vida e de seus problemas 4 o terapeuta terá que lidar com os valores e o esti lo de vida que o paciente escolheu para si próprio devendo manterse numa posição de neutralida de sem introduzir qualquer julgamento de valor O objetivo básico é a realização de terapia de apoio visando restabelecer o estado de ânimo do pa ciente seu vínculo com a equipe de saúde e a espe rança quanto às suas possibilidades terapêuticas A terapia focal é uma consequência natural e se impõe principalmente quando os pacientes estão vivendo situações conflituais agudas relacionadas com dife rentes momentos evolutivos da doença Por exemplo por ocasião da revelação da soropositividade do sur gimento dos primeiros sintomas de AIDS ou em mo mentos em que se torna necessária internação hospi talar devido ao agravamento da doença Atendimento à família A terapia individual pode mostrarse insuficien te e exigir ajuda à família sendo em alguns casos de fundamental importância Recentemente tivemos um paciente que obteve alta e a família ficou omissa Era filho de um casal separado há muitos anos Nenhuma das partes queria assumir a responsabilidade do paciente até que o as sunto foi levado à reunião da equipe por iniciativa da assistente social que estava orientando o caso Dias após a obtenção da alta ele simulou uma paralisia na perna direita e dizia têla adquirido após uma in jeção intramuscular administrada durante a interna ção hospitalar Tentava com essa atitude permanecer internado evidentemente devido a grandes conflitos familiares Dessa reunião saíram sugestões que sem dúvida ajudaram em muito a solução do caso Cabe na entrevista com a família dar apoio psicológico como também tirar dúvidas a respeito da doença dar esclarecimentos quanto ao contágio e reforçar a importância de sua participação ativa na aceitação da continuidade do tratamento Frequen temente as famílias sentemse inseguras quando os pacientes recebem alta não só porque exigirão mui to em cuidados especiais e grande dedicação como também terem dúvidas sobre se conseguirão vaga para uma nova internação hospitalar em períodos de agravamento O Serviço Social desenvolve um importante tra balho junto às famílias possibilitando que muitas de las antes refratárias terminem se comprometendo a cuidar de seus pacientes Este atendimento estendese também aos parceiros ou amigos dos pacientes não só através de entrevistas individuais como também de reuniões grupais que são realizadas no hospital sob coordenação das assistentes sociais O TRABALHO COM A EQUIPE DE SAÚDE Interconsulta Acontece em geral como uma sequência natural às respostas aos pedidos de parecer Sempre procu ramos discutir com os membros da equipe as possí veis dificuldades que estão em jogo determinando alguma crise no atendimento É uma abordagem de safiadora para os profissionais envolvidos neste tra balho de vez que geralmente rompemse os limites Psicossomaticaindd 425 Psicossomaticaindd 425 05012010 121220 05012010 121220 426 Mello Filho Burd e cols assistenciais formais ampliandose para discussões de problemas que tanto podem pertencer à área ins titucional como também decorrentes de dificuldades da relação equipepaciente Com relativa frequência ocorrem discussões psicodinâmicas com um ou mais membros da equipe com a finalidade de se compreender as causas das tensões geradas na assistência sobretudo a pacientes considerados difíceis Uma reflexão mais profunda pode favorecer mudanças de atitudes que sem uma razoável elaboração tendem a permanecer estereoti padas na relação equipe de saúdepaciente Grupo de reflexão Quando da implantação do Centro de Referên cia propusemos à equipe de saúde reuniões sema nais abertas a médicos enfermeiros auxiliares de enfermagem assistentes sociais nutricionistas e den tistas visando ampliar a comunicação entre os vários profissionais Este grupo inicialmente programado para durar seis meses permaneceu funcionando por um ano e mostrouse como uma experiência muito enriquecedora para todos os que dela participaram Este grupo que foi denominado GREM Grupo de Reflexão da Equipe Multiprofissional reuniase se manalmente numa sala anexa à enfermaria com dura ção de uma hora e meia Os problemas trazidos pelos componentes do grupo eram discutidos com a máxima franqueza proporcionando um bom nível de troca de opiniões entre os vários membros da própria equipe em relação a pacientes cujo código de valores e com portamento eram novidade para grande parte da equi pe que assim familiarizavase e aprendia a respeito de drogas pacientes homossexuais bissexuais travestis e usuários de drogas muitos dos quais organizamse em verdadeiras subculturas no meio em que vivem Os profissionais que trabalham com estes pacientes não podem desconhecer a realidade do underground Em nossa opinião essas reuniões possibilitaram que o profissional principalmente aqueles menos ex perientes conseguisse adequar sua conduta frente a situações tão difíceis e atingir mais rapidamente o ponto de equilíbrio necessário a uma boa relação de saúde paciente Como resultado dessas reuniões observamos uma melhor compreensão dos casos em estudo dan do oportunidade à equipe de ter uma visão mais glo bal do paciente também do ponto de vista psicológi co e social As frustrações frequentes no lidar com uma alta incidência de morte fazemse acompanhar muitas vezes de desânimo e sentimentos de impotência Tra tar de pacientes com uma doença considerada até o presente momento incurável conflita com a postura de alguns profissionais que são movidos pelo desejo de sempre obter a cura completa A elaboração para ultrapassar esse principio e poder sentirse útil e va lorizar seu trabalho ainda que somente diminuindo o sofrimento dos pacientes é algo que demanda uma boa dose de renúncia da onipotência que a miúde nu trimos como parte de nossa idealização profissional Parece que as reflexões surgidas no grupo a respeito dos limites a que estavam submetidos ajudavam bas tante o encaminhamento dessa difícil tarefa É possível que ao darmos conta de nossos limi tes e de tantas mortes a nosso redor tivéssemos que lidar inevitavelmente com ideias relacionadas com o limite máximo que é representado pela nossa pró pria morte Entretanto esta e outras elucubrações pa recem estar limitadas por defesas intelectuais Freud 1974 em seu trabalho Reflexões para os tempos de guerra e morte afirma Qual perguntamos é a atitude de nosso inconscien te para com os problemas da morte A resposta deve ser quase exatamente a mesma do homem primevo Nesse ponto como em muitos outros o homem das épocas préhistóricas sobrevive inalterado em nosso in consciente Nosso inconsciente portanto não crê em sua própria morte comportase como se fosse imortal O que chamamos de nosso inconsciente as camadas mais profundas de nossas mentes compostas de impul sos instintuais desconhece o que é negação nele as contradições coincidem Por esse motivo não conhece sua própria morte pois a isso só podemos dar um con teúdo negativo Assim não existe nada de instintual em nós que reaja a uma crença na morte Talvez inclusive isso seja o segredo do heroísmo Conviver tão proximamente e cotidianamen te com a realidade da morte obriga os membros da equipe de saúde a mobilizar as defesas protetoras do ego mas com certa frequência sentemse ansiosos e tristes denunciando momentos críticos em relação ao próprio trabalho Para termos ideia da extensão do problema enfrentado pela equipe clínica basta citar alguns dados nos 15 leitos do Centro de Referência do HUCFF UFRJ de 15 de julho de 1987 até 30 de setembro de 1988 foram internados 226 pacientes e morreram durante este mesmo período 146 Se in cluirmos os pacientes desde 1985 teremos o total de 329 internações com 206 óbitos Embora o grupo de reflexão não pretendesse ser terapêutico ao estimular a coesão e a solidarieda de grupal na verdade diminuía o nível de ansiedade e promovia a saúde mental da própria equipe Por outro lado possibilitava a seus membros o desenvol vimento das potencialidades de cada um e o aper feiçoamento da capacidade de comunicação com os pacientes e seus familiares Psicossomaticaindd 426 Psicossomaticaindd 426 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 427 DEMANDA JUNTO AOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE MENTAL Através de um estudo estatístico realizado en tre julho de 1987 data do início do Programa SIDA AIDS e janeiro de 1989 por Gisela Cardoso Câmara Maurício Tostes e Marlene Zomitta componentes de nossa equipe foram levantados os dados que mencio naremos a seguir dos 439 pacientes registrados no período 124 deles correspondendo a 28 do total foram atendidos pelos profissionais de saúde mental As solicitações mais frequentes foram relacionadas como ansiedade do paciente ajuda do médico na comunicação do diagnóstico ao paciente realização de diagnóstico diferencial entre quadros clínicos psi quiátricos reacionais e psicoorgânicos Atualmente observamos que a solicitação de ajuda do clínico para a comunicação do diagnóstico ao paciente bastante frequente no início do Progra ma SIDAAIDS hoje praticamente inexiste Parece que essa mudança está diretamente relacionada com uma maior experiência e amadurecimento da equipe no lidar com situações emocionalmente delicadas e angustiantes A consulta inicial é de fundamental importân cia para o estabelecimento do clima de confiança necessário para que o paciente possa receber o diag nóstico e a orientação médica O diálogo sincero e acolhedor deverá ser a base para um bom relacio namento médicopaciente Estabelecido um diálogo adequado o clínico poderá trabalhar os temores do paciente e darlhe alguma esperança Cada vez fica mais claro para a nossa equipe que o médico deve colocar o paciente a par dos resultados dos examas e falar sinceramente dos recursos de que dispõe para ajudálo Essa conduta contrasta com a tendência cultural predominante entre nós e defendida por muitos médicos que tendem a esconder o diagnósti co de doenças consideradas incuráveis apoiandose na suposição de que agindo assim poderiam dimi nuir o sofrimento do paciente o qual a priori não estaria preparado para receber tal notícia Entretan to no caso da AIDS essa conduta pode trazer gra ves prejuízos ao paciente à comunidade e à relação médicopaciente por impedir o cuidadoso trabalho para obter do paciente o compromisso de contribuir para a não disseminação da doença Porém o mo mento adequado para a comunicação do diagnósti co deve ser cuidadosamente avaliado pelo médico assistente O diagnóstico de sorologia HIV positiva ou de AIDS coloca uma incerteza quanto ao futuro do pa ciente e mobiliza com frequência bastante ansiedade No caso da AIDS a ansiedade ou angústia provém de um perigo real O paciente ao ter conhecimento de seu diagnóstico com frequencia utiliza intensamente mecanismos de defesa protetores do ego em espe cial o de negação Entretanto sempre há um regis tro ainda que inconsciente da situação que enfrenta Quando falamos em ansiedade ou angústia estamos considerando desde sintomas de opressão torácica precordial até manifestações de inquietação moto ra e frequentemente insônia Pode manifestarse tam bém através de sentimento definidos como medo revolta agressividade impaciência etc Os acréscimos da ansiedade podem deverse não só a conflitos e ameaças sediadas no mundo interno como também a dificuldades com o mundo externo tendo como base por exemplo perda de parceiros e amigos perda de trabalho abandono da família ameaça de transfiguração física e temor à morte Leon Grinberg 1978 em seu livro Culpa y Depresión faz referência ao luto pelas partes perdi das do self no qual o indivíduo deve enfrentar como verdades dolorosas e angustiantes o problema do en velhecimento e da morte Toma como paradigma o que ocorre na denominada crise da meia idade O luto pelas partes perdidas do self que se estende ao corpo dá lugar a diferentes atitudes que configuram o processo de elaboração A base das fantasias estão conectadas com crises da identidade e com o profun do temor a mudanças No caso da AIDS isso ocorre de forma catastrófica principalmente em pacientes com sérios transtornos narcísicos da personalidade A tentativa de elaboração é um processo doloroso e frequentemente carregado de culpas persecutórias O agravamento da doença e as repercussões físicas como o emagrecimento palidez da pele queda dos cabelos lesões dermatológicas etc que são bastante transfigurantes podem vir acompanhadas de trans tornos da identidade e sentimentos de despersona lização NOSOGRAFIA PSICOLÓGICA PSIQUIÁTRICA Além do quadro clínico de ansiedade aguda os acréscimos de ansiedade ou angústia podem de terminar a eclosão de reações psicológicas eou psi quiátricas que na Classificação Internacional de Doen ças CID9 estão catalogadas no tópico 308 como Reação Aguda ao Estresse e no 309 como Rea ção de Ajustamento As mais comuns em relação à AIDS são as seguintes reação depressiva breve ou prolongada reação com distúrbios predominantes de conduta e reação com distúrbios mistos das emo ções e da conduta As que relacionamos a seguir fo ram assim denominadas para dar ênfase aos sintomas predominantes observados quando do atendimento aos pacientes em crise Psicossomaticaindd 427 Psicossomaticaindd 427 05012010 121220 05012010 121220 428 Mello Filho Burd e cols Reações depressivas As mais frequentes são as reações depressivas O paciente apresenta intensa tristeza autoestima baixa pessimismo vivência de perda e abandono frequen temente sentindose sem qualquer esperança É neste momento que a relação clínicopaciente será da maior importância pois é o clínico que está em condições de desenvolverlhe algumas esperan ças e procurar aliar o paciente ao tratamento Esses pacientes muitas vezes apresentam intensos senti mentos de culpa autorecriminação desânimo e in sônia Nessas situações são mais frequentes as ideias suicidas passando a ser necessária a intervenção de um profissional de saúde mental para atendimento especializado As ideias suicidas tendem a desapare cer quando é assegurado aos pacientes apoio social e atendimento médico adequado Frequentemente ao sentiremse aceitos e compreendidos aliamse ao plano de tratamento proposto e passam a colaborar com a equipe médica Entretanto em alguns casos mais graves tal situação tende a permanecer exigin do dos membros da equipe grande dedicação Mesmo assim alguns suicídios são inevitáveis As reações de pressivas devem ser cuidadosamente acompanhadas em suas manifestações Quando além da apatia que comumente faz parte da evolução da AIDS constata mos distúrbios de memórias de fixação diminuição da concentração da atenção e de outras funções cognitivas estamos diante do quadro clínico denomi nado complexo demencial da AIDS que representa o acometimento direto do sistema nervoso central pelo HIV Existe na literatura registro de casos de AIDS cujo quadro clínico iniciouse com sintomas demenciais Reações paranoides Alguns pacientes de AIDS exteriorizam intensos sentimentos persecutórios sentindose alvo de mal dições azares castigos etc e justificando a pergun ta que comumente fazem a si próprios Por que eu Por que isso aconteceu comigo Um paciente após receber telefonema de um exparceiro sexual que lhe revelou estar com AIDS fi cou muito temeroso e ameaçado com aquela notícia Alguns dias mais tarde resolveu fazer o teste para pesquisa de anticorpos HIV pois estava muito ator mentado pela dúvida Quando soube que o resultado fora positivo e após sua confirmação apresentou cri se de ansiedade aguda seguida de insônia deambu lação pelas ruas e procura de vários amigos diante dos quais sentiase confuso e não conseguia falar de seus temores Posteriormente foi tomado por inten sos sentimentos persccutórios achando que queriam matálo Foi internado num hospital de emergência psiquiátrica da rede pública mas ao saberem que era HIV positivo o colocaram em isolamento pos sivelmente dificultanto ainda mais sua atuação Ao ser transferido para nosso hospital estava medica do com neurolépticos e outros psicofármacos Neste novo ambiente mantidas as mesmas doses dos me dicamentos pelo acolhimento que recebeu sentiuse encorajado a revelar seus problemas Sua reação psi cológica paranoide cedeu em poucos dias passando a tratarse ambulatoriamente após a alta Reações maniformes Estes pacientes tendem a negar a realidade e podem adotar uma atitude arrogante ou de desprezo e indiferença com relação à sua enfermidade e aos cuidados médicos Estas reações podem ser trabalha das dentro da própria relação clínicopaciente Entre tanto com certa frequência somente a intervenção psiquiátrica consegue reverter esse quadro Reações histeriformes Observamos não só manifestações dissociativas e conversivas como também raras vezes estados cre pusculares sendo também necessária a intervenção do psiquiatra Devemos estar atentos para a possibilidade dos sintomas mentais virem acompanhados de síndromes neurológicas apontando para quadros clínicos psico orgânicos ou organocerebrais que ocorrem em cerca de 30 dos pacientes e são relacionados com encefa lopatias lesões focais ou infecções oportunistas tais como meningite criptocócica toxoplasmose cerebral Com o desenvolvimento de exames complementares cada vez mais sofisticados e resultados de necrop sias admitese que a incidência de quadros organo cerebrais tendem a aumentar nas estatísticas Esses quadros expressamse por sintomas confusooníricos delirium havendo comprometimento do nível de consciência Outras vezes parecem quadros psicóti cos atípicos em geral de breve duração Embora exi jam a intervenção psiquiátrica a melhora sintomato lógica advém com a resolução das lesões situadas no sistema nervoso central Pelo que foi exposto podemos verificar a impor tância do diagnóstico diferencial entre manifestações emocionais psiquiátricas e organocerebrais para a es colha adequada da conduta a ser seguida Por outro lado não podemos minimizar a importância da histó ria pregressa pois cada paciente possui sua particula ridade em termos de personalidade e endogenicidade Psicossomaticaindd 428 Psicossomaticaindd 428 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 429 psiquiátrica antes de ser atingido pela AIDS Devemos assinalar que em qualquer grupamento humano po demos encontrar pessoas psicopatas tanto entre os toxicômanos e homossexuaisbissexuais como na po pulação em geral e em qualquer classe social O termo psicopata não se refere ao psicótico ao louco e sim ao indivíduo com distúrbio de caráter personalidade psi copática Essas pessoas por não desenvolverem uma consciência ética adequada nem um superego sufi ciente tendem a atitudes delinquentes e antissociais Ao não respeitar o outro nem desenvolver sentimentos de culpa frequentemente não se comprometem com as orientações médicopreventivas podendo provocar problemas muito sérios do ponto de vista epidemioló gico Às vezes surgem situações que exigem delicados debates em torno dos limites dos direitos e deveres da pessoa infectada pelo HIV Em qualquer fase da evolução e do encami nhamento do tratamento poderá ser necessário o uso de ansiolíticos neurolépticos hipnóticos anti depressivos etc Cabe ao clínico liderar a assistência aos pacientes e mobilizar os recursos disponíveis na instituição conforme as necessidades forem surgin do Os clínicos frequentemente estão em melhores condições para dar esperança aos pacientes A cada momento descobrese um novo medicamento e a esperança deve ser mantida até mesmo por ser uma possibilidade real embora não a curto prazo Não podemos deixar de assinalar que do ponto de vista da história da Medicina nunca uma doença nova e ameaçadora como é a AIDS foi tão rapidamen te identificada e descrita em detalhes em seus aspec tos etiológicos fisiopatológicos e formas de contágio As esperanças continuam voltadas para os pesquisa dores que lutam por conseguir recursos imunológi cos quimioterápicos antibióticos ou progressos no campo da engenharia genética que possam deter o avanço da doença O TRABALHO COM O PACIENTE TERMINAL Na maioria das vezes o acompanhamento se gue sem que o paciente sinta necessidade de falar ex plicitamente da morte Sentese confortado quando um profissional da equipe de saúde tenta restabele cer seu estado de ânimo dandolhe apoio principal mente quando observa melhora de algum sintoma incômodo ou ameaçador Outros falam abertamente da morte dos seus temores quando estão sofrendo muito pedem que a morte aconteça rapidamente O importante é que o dialogo seja estabelecido e man tido Frente à experiência da proximidade da morte muitas vezes os pacientes contam com os profissio nais de saúde Por vezes a comunicação não se dá de forma verbal mas sim extraverbal de maneira que gestos e olhares são trocados quando inclusive o paciente busca saber se o profissional é ou não capaz de lidar com os sentimentos de desespero horror da morte revolta etc que eventualmente inundam seu mundo interno São muito ávidos mas também des confiados e percebem quando alguém está com medo de se aproximar Os profissionais que trabalham mais próximos desses pacientes sabem a importância de ser rompida a barreira do medo Às vezes um simples contato físico como por exemplo um aperto de mão pode ser muito significativo principalmente quando há sinceridade naquele gesto Alguns deles sentemse muito humilhados por estarem numa situação de extrema dependência e Comumente regridem para poder suportar a realida de na qual se encontram Quando as esperanças diminuem é comum sur gir a fé com muita intensidade buscando conforto em religiões e seitas Isso é expressado não só pelo paciente como também pela família que frequente mente recorre a curandeiros quando observa que a Medicina tem limites Com relação à religião não há qualquer interfe rência da equipe desde que não prejudique o trata mento instituído ou coloque o paciente em risco Em nosso hospital numa reunião com representantes de várias religiões e seitas com a colaboração do ARA Apoio Religioso Frente à AIDS organização não governamental ecumênica que presta assistência re ligiosa e apoio aos doentes ficou estabelecido que o paciente só seria visitado por um sacerdote ou agente religioso de sua escolha quando ele solicitasse não sendo permitida a entrada para atos de proselitismo Antes desse acordo alguns religiosos na pressupo sição de que levariam alívio e conforto na verdade invadiam a privacidade e a liberdade de escolha de les às vezes ocasionando verdadeiras crises de exas peração É comum que no estágio terminal os pacientes entrem em estado de coma para alívio deles pró prios Os doentes e seus familiares enfrentam grandes dificuldades na fase terminal da doença Uma das principais tarefas da equipe de saúde é compartilhar esses momentos auxiliandoos a lidar com situações de grande sofrimento da melhor forma possível Esses pacientes devem preferentemente estar ligados a uma instituição mas o fato é que alguns procuram ajuda psicoterápica particular sobretudo devido a estarem HIV positivos sem terem desenvol vido ainda sintomas de AIDS O psicoterapeuta deve posicionar com clareza de que forma poderá contri buir com o seu trabalho e só deve comprometerse Psicossomaticaindd 429 Psicossomaticaindd 429 05012010 121220 05012010 121220 430 Mello Filho Burd e cols se estiver disposto a acompanhálos em possíveis cir cunstâncias especiais Alguns colegas que estiveram ou estão acompa nhando doentes com AIDS foram obrigados a aban donar os habituais preceitos técnicos e de setting para atendêlos em situações de crise em sucessivas internações hospitalares ou em suas residências quando não podiam mais se locomover Assim o compromisso do psicoterapeuta deve incluir a ideia de acompanhálos até a morte não só pelo dever éti co como também humanitário Finalmente cumpre dizer que a AIDS não é apenas um problema médico e sim desafio à socie dade em geral Todos devem estar informados e com prometidos não só com a prevenção como também com a aceitação da pessoa atingida pela doença Isso passa por um trabalho de alargamento social junto às famílias às empresas às escolas às organizações religiosas etc devendo abranger todas as camadas sociais Os pacientes rejeitados podem representar potencialmente uma ameaça à própria sociedade pois são os que menos se comprometem com o dever de evitar a propagação da infecção REFERÊNCIAS Cardoso G et al Request for intervention of mental health workers in AIDS Fith Internacional Conference on AIDS Montreal 1989 Costa L P M et al AIDS grupoterapia com pacientes HIV posi tivos Gracliva p 59 agoset 1988 Costa L M Mello Filho J Assistência psicológica ao paciente com AIDS Inf Psiquiát v 6 n 27 p 41 1987 Dickens B M Legal rights and duties in the AIDS epidemic Science v 239 n 5 p 580585 Feb 1988 Fenton T W AIDSrelated psychiatric disordes Br J Psychiatry n 151 p 579588 1987 Fineberg H V Education to preverit AIDS prospects and obsta cles Science v 239 n 5 p 592596 Feb 1988 Freud S Sobre o narcisismo uma introdução 1914 Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud v XlV Rio de Janeiro Imago 1974 Reflexões para os tempos de guerra e de morte 1915 Luto e melancolia 1917 v XIX Grinberg L Culpa y depresión Buenos Aires Paidós 1978 Gerbert B Maquire B Badner V et al Why fear persistsz heal th care professionals and AIDS JAMA v 260 n 23 Dec 1988 Galvão J A Lima D B Mello Filho J et al Aspectos psicosso ciais do paciente com AIDS JBM v 59 n 3 1990 Lomax G L Sandlerl Psychotherapy and eonsultation with persons with AIDS Psych Annals v 18 n 4 p 253259 Apr 1988 Maj M Psychiatric aspects of HIV1 infection and AIDS Psychol Medicine v 20 p 547563 1990 Mello Filho J Comentário ao trabalho The social psychology of AIDS Boletim Científico da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro n 9 1989 Experiências com pacientes de AIDS num hospital de en sino Boletim do Departamento de Pesquisas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Set 1989 Navia B A Jordari B D Price R W The AIDS dementia com plex l clinical feactures Annals of Neurology v 19 n 6 June 1986 Price R W The required immune deficiency Syndrome dementia complex as the presentirig or sole manifestation of hum an immunodeficiency virus infection Archives of Neurology n 44 p 6569 1987 Parker R Adquired immunodefiency syndrome in urban Brazil Med Antrop Ouart v 1 n 2 June 1987 Perry S Jacobseri P Neuropsychiatric manifestation of AIDS Spectmm disorders Hosp Comm Psychiatry v 37 n 2 Feb 1986 Piot P Plummer F A Mhalu F S et al AIDS an international perspective Science v 239 n 5 p 573579 Feb 1988 Price R W et al The hrain in AIDS central nervous system HIV 1 infection and AIDS demeritia complex Science v 239 n 5 p 586592 Feb 1988 Queiroz A O Mello Filho J O médico diante do doente crônico e da morte JBM p 1521 ago 1976 Souza A R N A reflexão do saber sobre a impotência SIDA AIDS uma experiência em psicologia médica Dissertação de Mes traclo lnstituto de Psiquiatria UFRJ 1988 Tostes M A Psychiatric emergeucies in HIV disease and AIDS Sixth International Conference ou AIDS San Francisco 1990 Aspectos psiquiátricos da infecção pelo vírus da imunode ficiência humana do tipo I Dissertaçao de Mestrado lristituto de Psiquiatria UFRJ 1990 World Health Organization Report of the consultation on the neu ropsychiatric aspects of HIV infection Geneva March 1988 Wolcott D L Psychosocial aspects of adquired immune defi ciency Syndrome and the primary care physician Annals of Aller gy v 57 Aug 1986 Zaidhaft S Morte e formação médica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 430 Psicossomaticaindd 430 05012010 121220 05012010 121220 Nossa proposta neste capítulo é descrever a ex periência da equipe de saúde mental que presta assis tência aos pacientes com HIVAIDS em acompanha mento clínico no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho HUCFF da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ que teve início em 1985 O capí tulo foi revisado em vários aspectos da obra dando destaque às modificações que ocorreram com a intro dução da terapia antirretroviral altamente potente Desde o início da epidemia da AIDS as manifes tações psicológicas e psiquiátricas relacionadas à in fecção pelo HIV têm sido objeto de enorme interesse para os profissionais de saúde mental Esse interesse surgiu em função de duas razões predominantes por um lado o impacto psicológico do diagnóstico e da evolução da doença e por outro o tropismo do vírus pelo sistema nervoso central Malbergier 1999 Des te modo psicólogos e psiquiatras se viram envolvidos na assistência aos pacientes com HIVAIDS desde que os primeiros casos começaram a ser atendidos nos serviços de saúde no Brasil A assistência em saú de mental aos pacientes infectados pelo HIV sofreu uma enorme transformação ao longo destes mais de 20 anos de epidemia Paralelamente à introdução da terapia antirretroviral altamente potente HAART Highly Active Antiretroviral Therapy a epidemia de AIDS foi sofrendo a partir da década de 1990 uma forte mudança em seu perfil epidemiológico no Bra sil Passamos a observar uma heterossexualização da doença com uma consequente feminilização da mes ma uma interiorização da AIDS para regiões do país antes não atingidas e um avanço da epidemia entre indivíduos de baixa renda Brasil Ministério da Saú de 2001 A introdução da terapia antirretroviral al tamente potente disponibilizada no Brasil a partir de 1997 na rede pública de saúde Lei Federal no 9313 de 1996 tornou possível a interrupção da progres são da infecção pelo HIV a recuperação da imunidade e a reversão da imunossupressão Palella 1998 com importantes repercussões na área de saúde mental que serão analisadas neste artigo O COMEÇO DA ASSISTÊNCIA Antes mesmo da implantação do Programa de AIDS do HUCFFUFRJ o Serviço de Psicologia Mé dica e Saúde Mental começou a ser solicitado para prestar assistência psicológicapsiquiátrica aos pa cientes com AIDS quando estes eram internados Na quela época 1985 ainda pouco familiarizados com todas as questões envolvidas no atendimento relacio nado ao paciente com essa doença ficávamos bastan te perplexos com a grande variabilidade de sintomas que observávamos na esfera mental assim como as diferentes repercussões que a AIDS trazia no nível so cial familiar ético e epidemiológico Queiroz et al 1991 Dentro da equipe de saúde eram inúmeras as situações novas e de alguma maneira desconcertan tes como lidar com grupos marginalizados e temas relacionados diretamente à morte à sexualidade e ao abuso de drogas Quando o Programa de AIDS do HUCFFUFRJ estava sendo implantado em 1987 foi solicitado por parte do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitá rias que profissionais da área de saúde mental fizes sem parte da equipe que prestaria assistência direta a esses pacientes A inclusão destes profissionais se fez necessária pela complexidade de situações que a doen ça suscitava A doença rompia com o modelo tra dicional de cura até então predominante na área de doenças infecciosas mobilizando intensamente não só as pessoas diretamente afetadas como os próprios profissionais de saúde em termos dos limites de sua 33 ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS E SOCIAIS DA AIDS 20 ANOS DE EXPERIÊNCIA Amaury Queiroz Gisela Cardoso Marlene Zornitta Maurício Tostes Psicossomaticaindd 431 Psicossomaticaindd 431 05012010 121220 05012010 121220 432 Mello Filho Burd e cols atuação clínica Na medida em que não havia uma cura para AIDS nem a perspectiva de um tratamen to eficaz os profissionais das áreas psicossociais se viam muito mais solicitados para participar da rotina assistencial Os profissionais de saúde mental começaram a atuar em função das seguintes situações Alta morbidade e mortalidade da AIDS não havia um tratamento específico para a doença somente a possibilidade de tratamento das infecções opor tunistas eou outras enfermidades Grande frequência de quadros mentais reações de ajustamento quadros depressivos manifestações psicológicas diversas negação do diagnóstico actingout e quadros psicoorgânicos desencade ados por diferentes infecções do sistema nervoso central neurotoxoplasmose cerebral e meningite criptocócica por exemplo ou pela própria ação do vírus no cérebro quadros de demência pelo HIV Importante impacto social doença nova de evo lução relativamente rápida atingindo pessoas de uma faixa etária jovem principalmente dos grupos homossexuais ou de usuários de drogas endovenosas o que aumentava o grau de discri minação e estigmatização desses grupos mais for temente atingidos pela doença Forte impacto nos profissionais de saúde medo de contaminação intenso sofrimento físico e psíquico dos pacientes com HIV contato próxi mo e frequente com a morte e o morrer falta de formação e de experiência profissional em lidar com temas relacionados à vida sexual do pacien te Mello Filho 1992 Estas questões geravam fortes sentimentos ambivalentes relacionados com os pacientes com HIV já que faziam parte dos desafios impostos pela prática clínica mobi lizando intensamente vivências de impotência e onipotência eram os profissionais que haviam tido a coragem de enfrentar uma doença nova contagiosa e com alto estigma social Devido a estas peculiaridades dois psicólogos e um psiquiatra foram inseridos na equipe do Progra ma de AIDS desde sua criação Além disso durante os dois primeiros anos de atuação 19871989 dois psiquiatras com formação psicanalítica vinculados à disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Me dicina da UFRJ coordenaram um grupo de reflexão semanal com a equipe multidisciplinar O objetivo do grupo era o de promover a integração do trabalho entre os diferentes profissionais de saúde e ajudar no manejo das reações emocionais suscitadas na assis tência aos pacientes com HIVAIDS através da pos sibilidade de compartilhar as experiências as frus trações e as angústias Embora o grupo de reflexão não pretendesse ser terapêutico diminuía o nível de ansiedade e estimulava a coesão grupal Queiroz et al 1991 DEMANDAS MAIS FREQUENTES NA ERA PRÉHAART As mais frequentes demandas aos profissio nais de saúde mental por parte da equipe assisten cial durante os primeiros anos foram Cardoso et al 1989 1 Quadros ansiosos agudos diante da ameaça real de adoecer e de morrer principalmente na hora de receber o resultado do diagnóstico ou na 1ª in ternação devido a conflitos sediados no mundo interno do paciente sentimentos de culpa estig ma da doença e dificuldades e temores ligados ao mundo externo como por exemplo a rejeição da família ou a discriminação no trabalho 2 Dificuldades dos médicos em comunicar o diag nóstico ao paciente devido ao estigma associado à doença e a repercussão no paciente e em sua família 3 Auxílio no diagnóstico diferencial dos quadros mentais reações emocionais à doença eou ao tratamento quadros psicóticos orgânicos distúr bios cognitivos associados ao HIV e quadros de pressivos de variável intensidade entre outros É importante destacar que nos primeiros anos da epidemia de HIVAIDS havia uma diferença ex pressiva entre o paciente HIV positivo assintomático e o paciente já doente A fase assintomática se caracte rizava por um período de grande expectativa princi palmente em relação ao aparecimento dos primeiros sintomas Qualquer gripe febre ou emagrecimento frequentemente era interpretado pelo paciente como manifestação da doença Era extremamente difícil manter o mesmo nível de interesse pelas atividades ligadas ao trabalho às pessoas ao meio circundante de um modo geral porque grande parte da atenção estava logicamente voltada para si mesmo e para sua sobrevivência Na fase sintomática novas dificuldades surgiam pois a doença se tornava evidente para o pa ciente mudanças corporais restrições físicas como para os outros A vida social e profissional restringia se consideravelmente As manifestações depressivas se tornavam mais presentes sendo comum a apre sentação de intensa tristeza sentimentos de perda e de desvalorização desânimo e pessimismo Muitas vezes essas manifestações vinham acompanhadas de Psicossomaticaindd 432 Psicossomaticaindd 432 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 433 fortes sentimentos de culpa e de autorrecriminação Atendemos nessa época vários pacientes que haviam optado por morar no Rio de Janeiro pois sendo um grande centro urbano poderiam assumir sua opção sexual sem desconfiança da família Ao adoecerem as mesmas tomavam conhecimento da AIDS e da op ção homossexual sendo essa situação extremamente constrangedora para a maioria Era importante mos trar para o paciente que a manifestação da doença AIDS não representava um declínio inexorável e que podia haver uma estabilização da doença Contudo as perspectivas terapêuticas naquele momento eram bastante limitadas Os objetivos do trabalho psicoterápico se cen travam em 1 Tentar auxiliar os pacientes e suas famílias em lidar com a angústia diante de perspectivas tão limitadas de vida principalmente àquelas relacio nadas a um futuro incerto e a uma morte inexorá vel 2 Procurar apoiar o paciente e sua família a se reor ganizarem buscando alternativas viáveis dentro da nova condição de vida 3 Ajudar a manter a esperança e a capacidade de luta 4 Acompanhar o paciente e sua família nas fases mais avançadas da doença Era a intensidade das reações emocionais ou dos mecanismos psicológicos utilizados o que iria deter minar uma melhor avaliação e posterior acompanha mento psicológicopsiquiátrico do paciente Dentro de determinados parâmetros considerávamos abso lutamente previsível que o paciente pudesse apresen tar reações ansiosas eou depressivas viesse a negar a doença ou projetar a culpa ou a responsabilidade sobre outros Quando isso ocorria as situações nor malmente exigiam uma intervenção imediata As in tervenções psicológicas eou psiquiátricas variavam desde uma breve abordagem em um momento mais agudo como suporte ao trabalho do médico assisten te esclarecendo orientando reforçando o que era por ele falado até abordagens de natureza psico dinâmicas psicoterapias focais e de apoio sempre avaliando a pertinência ou não do uso de medicações psiquiátricas conforme o tipo e a gravidade dos sin tomas Observávamos nos pacientes com HIV uma in tensa vulnerabilidade emocional talvez pela ameaça constante do sofrimento físico e psíquico A intervenção do profissional de saúde mental obedecia aos seguintes princípios 1 quando solicitado por um membro da equipe as sistencial 2 quando o próprio paciente expressava o desejo de ser atendido O trabalho de interconsulta com a equipe assis tencial acontecia como um desdobramento natural às respostas aos pedidos de parecer A equipe de saúde mental procurava sempre discutir em conjunto os ca sos com os diferentes membros da equipe médicos residentes staff equipe de enfermagem e serviço so cial de forma a tentar identificar não só questões relacionadas ao paciente propriamente dito como também dificuldades da relação médicopaciente ou equipepaciente Queiroz et al 1991 Queiroz et al 1992 Ao longo dos primeiros anos de trabalho a equi pe passou por diferentes fases de maior e menor en tusiasmo Vários profissionais se queixavam do des gaste em lidar com situações tão frustrantes do ponto de vista terapêutico e da proximidade com os doentes terminais Relatos de que não estariam preparados para lidar com este tipo de situações eram bastan te frequentes Apesar do investimento do Programa Nacional de DSTAIDS do Ministério da Saúde em cursos de treinamento para médicos enfermeiros psicólogos assistentes sociais em campanhas de prevenção da doença em estímulo às parcerias com entidades da sociedade civil os profissionais de saú de do hospital se sentiam muitas vezes desestimula dos e impotentes Podemos dizer que muitos de nós vivemos um período de desgaste burnout devido principalmente à falta de perspectivas curativas e à precária qualidade de vida que observávamos nos pa cientes com HIVAIDS Como consequência alguns colegas mudaram de especialidade ou saíram do se tor e outros verbalizavam o desejo de mudar Em 1996 com o surgimento da terapia antirre troviral altamente potente HAART novas perspec tivas começaram a surgir no horizonte A partir de 1997 esse tratamento foi disponibilizado pela rede pública de saúde brasileira A INTRODUÇÃO DA TERAPIA ANTIRRETROVIRAL ALTAMENTE POTENTE NO BRASIL Com a introdução da terapia antirretroviral altamente potente uma importante diminuição na morbimortalidade da doença foi rapidamente ob servada e uma melhor qualidade de vida tornouse possível entre os pacientes com HIVAIDS no Brasil A infecção pelo HIV passou a ser vista como uma doen ça de caráter evolutivo crônico sendo potencial mente controlável Vitória 2000 Embora isso este ja relacionado com outros fatores como a melhoria Psicossomaticaindd 433 Psicossomaticaindd 433 05012010 121221 05012010 121221 434 Mello Filho Burd e cols dos cuidados clínicos e a evolução epidemiológica da doen ça o papel da terapia antirretroviral combinada foi fundamental nesse novo cenário terapêutico Vi tória 2000 Este novo tratamento trouxe uma gran de esperança mas junto com ela novos desafios para todos a adesão ao tratamento A adesão ao tratamento é um tema complexo tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde devido aos múltiplos fatores envolvidos relacionados ao paciente e seu entorno à doença e ao tratamento assim como a qualidade do serviço de saúde No Brasil todas as pessoas infectadas pelo HIV têm por lei acesso livre e gratuito ao uso da terapia antirretroviral Brasil PNDSTAIDSMS 2004 Em junho de 2005 estimavase que 166000 pacientes com HIV estivessem tomando antirretrovirais Che quer 2005 Podemos afirmar que com a introdução da tera pia antirretroviral altamente potente começamos a observar uma atitude de maior aceitação da doença o que consequentemente auxiliava na adesão terapêu tica e a uma melhora na qualidade de vida Tostes et al 2004 Essa melhora na qualidade de vida parece estar relacionada também ao fato de o governo brasi leiro defender o direito ao tratamento dos pacientes com HIVAIDS possibilitando um reconhecimento do seu valor para a sociedade Galvão 2002 Alguns estudos sobre a adesão passaram a ser conduzidos em nosso país Nemes e colaboradores 2004 e May e colaboradores 2003 demonstraram que a adesão ao tratamento em nosso meio pode ser comparável com a dos países mais desenvolvidos principalmente pela distribuição gratuita e univer sal dos medicamentos assim como pela qualidade da assistência Contudo podemos identificar alguns desafios relacionados à não adesão ao tratamento no Brasil o baixo nível educacional Nemes et al 2004 May et al 2003 e falta de renda pessoal Nemes et al 2004 Poderíamos acrescentar a partir de dois estudos conduzidos em nossa instituição outras particulari dades 1 Diferenças na forma de adesão entre homens e mulheres em estudo qualitativo por nós reali zado observamos diferenças expressivas entre homens e mulheres Cardoso e Arruda 2003 Entre as mulheres pudemos observar falta de percepção de risco para aquisição do HIV uma maior preocupação voltada para o bemestar de maridofilhos do que em relação a elas mesmas percepção de um suporte social frágil por parte do meio onde estavam inseridas 2 Comorbidade de sintomas psiquiátricos associa dos à qualidade de vida de mulheres com HIV AIDS Vários estudos sinalizam que os distúrbios psiquiátricos não tratados depressão abuso de substâncias psicoativas interferem não só na adesão ao tratamento como na não utilização das medidas preventivas Hader et al 2001 Treis man et al 2001 Cournos et al 2005 Tostes 2006 O impacto dos sintomas mentais na piora da qualidade de vida dos pacientes com HIV é ex pressivo podendo levar a dificuldades de adesão ao tratamento ARV Tostes et al 2004 Dubé et al 2005 Moraes et al 2006 Quais seriam então as características do traba lho dos profissionais de saúde mental a partir destas mudanças introduzidas a partir do uso dos antirretro virais altamente potentes Consideramos que o impacto da utilização da terapia HAART é extremamente positivo do ponto de vista da saúde mental dos pacientes principalmen te para aqueles que conseguem aderir ao esquema terapêutico Os pacientes que aderem ao tratamen to conseguem adaptarse a sua nova condição a de ser soropositivo Ter HIV passa a ser parte integran te da constituição de uma nova identidade Cardoso e Arruda 2005 Observamos nesses pacientes uma nova perspectiva de viver uma vida mais saudável mais longa e com mais qualidade podendo manter se ativos trabalhando estudando e relacionandose afetivamente Para os pacientes que não aderem ou oscilam em sua adesão o diagnóstico de HIV ainda tende a ser algo que mobiliza intensamente Aparece como uma situação a qual não conseguem tolerar e adap tarse Os profissionais de saúde mental precisam levar em consideração os seguintes aspectos no manejo do paciente com HIVAIDS a partir da era HAART 1 A AIDS como uma doença crônica principalmen te no que se refere ao impacto do diagnóstico e às possibilidades de reorganização da vida quotidia na 2 A adesão ao tratamento a complexidade e a adaptação aos esquemas terapêuticos e os efei tos adversos das drogas a curto médio e longo prazo 3 O manejo das relações afetivas comunicação do diagnóstico aos novos parceirosas revitalização da vida sexual a possibilidade de gravidez 4 Os grupos mais vulneráveis à doença população pobre com menor grau de suporteapoio familiar e social baixo nível educacional pacientes com Psicossomaticaindd 434 Psicossomaticaindd 434 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 435 transtornos mentais ou com história de abuso de álcool eou drogas Nos últimos anos temos observado uma mu dança no perfil dos pacientes hospitalizados Ao mesmo tempo em que se internam pacientes que desconhecem sua condição tomando contato com a mesma durante a própria internação em função de terem adoecido como nos primeiros tempos da AIDS fase préHAART também observamos pacien tes que se internam porque não conseguiram aderir ao tratamento antirretroviral sendo esse o motivo mais comum Entre os indivíduos que se internam com AIDS podemos identificar uma maior precarie dade dos vínculos sociofamiliares e uma maior vul nerabilidade mental que parecem estar associadas a uma menor adesão ao tratamento Observamos que o deslocamento da epidemia de AIDS para populações mais vulneráveis da sociedade também acontece em outros países como nos Estados Unidos por exemplo Treisman et al 2001 Outro dado que merece destaque é o aumen to da transmissão do HIV entre a população de faixa etária mais avançada Boletim Epidemiológico AIDS 2006 Este é um fenômeno que vem ocorrendo em todo o mundo devido à melhoria na expectativa e na qualidade de vida um maior controle na prevenção de doenças comuns à terceira idade juntamente com a reposição hormonal em ambos os sexos o advento das pílulas efetivas para o tratamento da disfunção erétil e próteses penianas entre outros O comporta mento de risco predominante neste grupo são as re lações sexuais heterossexuais BrasilPNDSTAIDS MS 2004 Os profissionais de saúde de um modo geral não investigam a vida sexual dos idosos sendo que a in fecção pelo HIV muitas vezes só é detectada nas fases mais avançadas da doença Além disso os transtornos cognitivos e a demência associada a AIDS podem ser confundidos com a Demência tipo Alzheimer e mesmo sintomas precoces do HIV como fadiga perda de me mória falta de ar insônia e perda de peso podem ser confundidas com queixas próprias do envelhecimento As coinfecções com outras doenças podem também acarretar um diagnóstico tardio e apressar a progres são da AIDS assim como as interações medicamento sas e os antirretrovirais podem dificultar a adesão ao tratamento Os profissionais de saúde mental podem colaborar seja na detecção mais precoce desses qua dros seja na abordagem terapêutica Dentro desse novo contexto da AIDS ganharam relevância a utilização de grupos de suporte psicos social tanto no ambulatório quanto no hospitaldia voltados para grupos específicos ou homogêneos pacientes adolescentes soropositivos casais soropo sitivos ou sorodiscordantes os grupos de educação em saúde com o objetivo de promover a adesão ao tratamento o trabalho em conjunto com professores de educação física para os pacientes com lipodistrofia corporal a utilização de material educativo impresso criado pela própria equipe ou por ONGs como a re vista Saber Viver por exemplo Além das mudanças relatadas no perfil dos pacientes e nas estratégias de intervenção junto ao paciente podemos identificar algumas diferenças no modo de relação dos psicólogos e psiquiatras com a equipe assistencial Nossa relação com a equipe clíni ca foi passando de um modelo de interconsulta e de resposta a pedidos de parecer para um modelo mais integrado ou de ligação Observamos que a equipe de saúde mental que presta assistência aos pacientes portadores de HIVAIDS é parte integrante da equipe clínica através de sua presença direta no dia a dia das enfermarias no encaminhamento ágil para o ambu latório e na discussão rotineira dos casos clínicos CONSIDERAÇÕES FINAIS No início da assistência aos pacientes infecta dos pelo HIVAIDS nosso grande desafio enquanto profissionais da área de saúde mental foi lidar com a temática da morte e o processo de morrer jun to ao paciente à sua família e à equipe de saúde mesmo quando não restava qualquer esperança O medo do contágio as vivências de discriminação e o estigma da doença por estar diretamente vinculada à sexualidade estavam também permanentemente presentes Mais de duas décadas se passaram sendo que atualmente estamos lidando com uma doença que apesar de grave tem um tratamento eficaz e permite uma qualidade de vida bastante adequada para aqueles que conseguem adaptarse ao mesmo Outras questões começaram a surgir como a feminili zação da doença o impacto nas camadas com menor escolaridade e suporte social assim como a expan são para grupos como idosos e adolescentes Brasil 2006 São inúmeras as situações com as quais nos defrontamos no momento atual e múltiplas as estra tégias às quais precisamos recorrer Nossos maiores desafios no momento se relacionam à abordagem dos pacientes com dificuldades de adesão ao tratamento e com um suporte social mais frágil O trabalho integrado com a equipe assistencial foi sendo construído ao longo dos anos tendo hoje a equipe de saúde mental um papel ativo na condução do tratamento do paciente e sendo parte integrante da equipe assistencial como um todo Psicossomaticaindd 435 Psicossomaticaindd 435 05012010 121221 05012010 121221 436 Mello Filho Burd e cols Dentro do processo que vivenciamos gostaría mos de destacar o pioneirismo de alguns centros uni versitários que abraçaram a causa da AIDS desde o início da epidemia Foi a partir do comprometimento dessas Instituições que o Governo Federal começou a tomar suas primeiras providências nos diversos níveis de assistência Num segundo momento através dos chamados naquela ocasião Centros de Referência em AIDS iniciouse um investimento importante no treinamento de profissionais da área de saúde envol vendo Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde com o objetivo de através de cursos estruturados por equipes interdisciplinares formar agentes multiplica dores que levavam o que aprendiam para suas Insti tuições de origem Por outro lado algumas ONGs pioneiras per sonalidades dos meios intelectuais e artísticos e da imprensa em geral uniramse em uma eficiente cam panha contra a discriminação e pelos direitos dos doentes de AIDS que sem dúvida não só pressiona ram e criticaram mas também apoiaram bastante o Ministério da Saúde em suas campanhas públicas de prevenção Queremos destacar ainda a importância das várias equipes de saúde que atuaram e continuam atuando na assistência aos portadores de HIVAIDS de forma integrada sempre abertos a aprender jun tamente com os pacientes a enfrentar suas dificulda des seus medos e os preconceitos que ainda existem ligados à doença embora em menor escala Neste momento podemos evocar uma frase de Betinho um dos grandes líderes das campanhas de esclarecimento público quando disse a medicina ja mais será a mesma depois da AIDS CASOS CLÍNICOS Achamos muito importante como finalização deste artigo apresentarmos alguns resumos extrai dos de casos clínicos por nós atendidos na assistência a pacientes portadores de HIVAIDS Caso clínico MAS 35 anos solteira comerciária licenciada 2º grau completo tem dois irmãos mais novos mora com os pais M foi encaminhada para avaliação por estar muito depri mida e sem estímulo para prosseguir seu tratamento Não compareceu às últimas consultas e interrompeu o uso dos medicamentos nos últimos três meses M apresentase muito tensa e irritável Dizia sentirse muito revoltada com tudo e com todos Queixavase que sua vida se modificara totalmente com a doença e que seu corpo não era mais o mesmo Sentia que suas pernas estavam mais finas e seu abdome muito proeminente Desde que soube estar HIV isolouse das pessoas conhecidas e sua vida social se limitava ao contato com os familiares Relutou muito antes de acei tar o encaminhamento para uma consulta com a psicóloga da equipe M denota grande dificuldade para enfrentar a doença Um dos focos de seu tratamento será lhe auxiliar a conviver melhor com as vicissitudes que a doença e seu tratamento trazem Caso clínico JVS 64 anos engenheiro viúvo autônomo heteros sexual mora com uma irmã Sabe ser HIV há cinco anos Apesar de ter informações sobre HIVAIDS não praticava sexo seguro na maioria das ocasiões Sentiase sem motiva ção para a vida mas segundo disse sempre tinha sido assim Não conseguia dar sequência em nada do que planejava fa zer Queixase de cansaço e interrogou se tal fato pode ria estar relacionado aos ARV Já procurou diversos tipos de tratamentos na área de saúde mental aparentemente sem sucesso Tinha alguns amigos e parecia ser querido por eles Sua médica receava que viesse a se suicidar Um dos maiores desafios no atendimento de um paciente como J é persuadilo a adotar medidas para evitar a disseminação da doença Deve ser avaliado se existe um quadro depressivo subjacente e se ele pode beneficiarse com tratamento es pecífico Os motivos dos insucessos em seus tratamentos anteriores devem ser cuidadosamente avaliados Devemos também destacar a faixa etária do paciente que cada vez mais vem crescendo em importância na epidemia Caso clínico VL 18 anos estudante tem uma irmã mais nova mora com os pais V foi trazida para atendimento devi do aos conflitos com seus pais e tratamento irregular Sua mãe informou que ela própria é HIV e soube que estava contaminada quando grávida de V durante o tratamento prénatal Relatou ainda que o relacionamento conjugal era muito conflituoso devido ao fato do marido ser alcoolista e muito agressivo com ela e as filhas As filhas por sua vez tiveram grande dificuldade de aceitar limites V apesar de ser uma jovem bastante inteligente e gostar muito de ler com frequência deixava de ir a escola Relatou também que V tem grande dificuldade de usar os medicamentos antirre trovirais principalmente nos fins de semana quando ten de a beber muito A mãe de V parecia muito desanimada e impotente para lidar com os problemas em sua família V por sua vez parecia muito contrariada de comparecer a uma consulta com um psiquiatra alegando não ser louca Muitas vezes nos deparamos com demandas de vários tipos num determinado atendimento como esse de contaminação vertical Talvez num primeiro momento tenhamos que nos Psicossomaticaindd 436 Psicossomaticaindd 436 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 437 aproximar dessa família e avaliar cuidadosamente a melhor estratégia para abordála Caso clínico RLA 34 anos casada há 10 anos ensino fundamen tal um filho com 8 anos marido comerciário autônoma R cerca de três semanas antes da consulta vinha se mos trando mais irritável e com dificuldade de dormir Relatara 15 dias antes estar ouvindo vozes que lhe davam ordens Iniciou na ocasião tratamento com psiquiatra tendo obtido uma melhora parcial dos sintomas Já conseguia dormir um pouco melhor e as vozes diminuíram Parecia ainda muito assustada Em uma das ocasiões a voz lhe disse para matar seu filho e a si mesma Mostrouse apática durante a entre vista Só falava quando solicitada Seus familiares disseram que ela nunca se comportara daquela forma A colega que a acompanhava informou que ela se submeteu a exames para investigação de sífilis e HIV e sua sorologia para o HIV re velouse positiva Sua irmã informou que um exnamorado dela faleceu com AIDS em 2002 mas na ocasião ela prefe riu não fazer o teste Desde ontem vem se queixando de dormências e dificuldade de movimentar o braço e a perna esquerda além de apresentar um quadro de mudança do comportamento somadas a outras queixas clínicas Em um caso como este os sintomas neurológicos devem ser in vestigados com urgência já que podem estar associados a complicações relacionadas ao HIV Caso clínico MBS 25 anos ensino fundamental incompleto de sempregado fazia alguns biscates quando se sentia bem vi via com a mãe que trabalhava como diarista e mais quatro irmãos mais novos não conheceu o pai Já estivera diversas vezes internado devido à esquizofrenia paranoide Não se guia tratamento ambulatorial Queixavase que os remédios psiquiátricos lhe tiravam a potência Sabia ser HIV há pelo menos dois anos referindo que a médica do posto de saúde disselhe que ainda não estava na hora de tomar os remédios contra o vírus Disse que não gostava de usar camisinha Foi encaminhado para atendimento porque foi visto tendo relações com outro paciente durante à noite na enfermaria de psiquiatria pela segunda vez nessa semana Esse caso nos mostra o desafio que representa a aborda gem da AIDS e de outras doenças sexualmente transmissí veis entre os pacientes com transtornos mentais graves que demandam estratégias adaptadas para sua realidade Caso clínico MD 33 anos solteira secretária ensino fundamental católica vive com os pais Encaminhada para atendimento por se recusar a submeterse ao teste sorológico para o HIV Um exnamorado comunicoulhe que está infectado pelo HIV Diz que prefere morrer a ter AIDS Teme que nin guém lhe aceite se estiver contaminada Relata que nunca poderá revelar a nenhum pretendente sua condição de soropositiva afirmando que será rejeitada caso venha a se confirmar que foi contaminada Receia que não conseguirá mais se entregar a ninguém só pela dúvida de estar ou não contaminada Diz que sua vida só tem problemas Acha que não suportará a ideia de ter AIDS Comenta Prefiro não saber de nada pelo menos vivo melhor Muitos pacientes chegam para atendimento com concepções muito errôneas sobre a doença e seu tratamento Muitas vezes associam AIDS a morte apesar de todos os avanços nessa área Uma boa estratégia em um caso como esse é começar abordan do as concepções que a paciente tem da doença Outro as pecto que parece estar presente nesse caso é que a AIDS vem se somar a condições muitas vezes já desfavoráveis de vida e que já requeririam algum tipo de abordagem psiquiá trica ou psicológica REFERÊNCIAS Brasil Boletim Epidemiológico AIDSDST Janeiro a Junho de 2006 Data de Publicação 211106 Descrição ano III nº 01 01ª à 26ª semanas epidemiológicas janeiro a julho de 2006 wwwaidsgovbr Brasil Ministério da Saúde AIDS II relatório de implementação e avaliaçãodezembro de 1998 a maio de 2001 Brasília Coorde nação Nacional de DSTAIDS 2001 Brasil Ministério da Saúde Recomendações para tratamento An tirretroviral em adultos e adolescentes com infecção pelo HIV www aidsgovbr 2004 Brasil PNDSTAIDSMS Pesquisa de Conhecimentos Atitudes e Práticas na População Brasileira Comportamento da População de 60 anos e mais sexualmente ativa nos últimos 6 meses maio 2004 Cardoso GCP Tostes MA Zornitta M Souza ARN Queiroz AO Requests for Intervention of Mental Health Workers in AIDS 5th International Conference on AIDS Montreal Junho 1989 Cardoso G Arruda A As representações sociais da soropositi vidade entre as mulheres e a adesão ao tratamento Cadernos de Saúde Coletiva NESCUFRJ Vol XI n2 juldez 2003 Chequer P Apresentação Access to Treatment and Preven tion 3rd IAS Conference on HIV Pathogenesis and Treatment 25072005 Rio de Janeiro Brazil acessado online aidsgov br Cournos F McKinnon K Wainberg M What can mental health interventions contribute to the global struggle against HIVAIDS World Psychiatry 43 October 2005 Dubé e cols Neuropsychiatric manifestations of HIV infection and AIDS J Psychiatry Neuroscience 30423746 2005 Hader SL Smith DK Moore JS Holmberg SD HIV Infection in Women in the United States JAMA 2059 March 2001 Galvão J Access to antiretroviral drugs in Brazil Published onli ne http imagethelancetcom November 5 2002 Malbergier A Transtornos psiquiátricos em indivíduos infectados pelo HIV revisão da literatura Jornal Brasileiro de Psiquiatria 648253262 Junho 1999 May SB Cardoso GCP Costa ER Barroso PF High Adherence Rates to Antiretrovirals in a ResourcePoor Setting The 2nd IAS Psicossomaticaindd 437 Psicossomaticaindd 437 05012010 121221 05012010 121221 438 Mello Filho Burd e cols Conference on HIV Pathogenesis and Treatment Abstract Book p 5394 Paris France 1316 July 2003 Mello Filho J AIDS o doente o médico e o psicoterapeuta Psi cossomática Hoje 299309 Porto Alegre Artes Médicas 1992 Moraes MJ Oliveira AC Tostes MA AIDS e Psiquiatria 373 394 In Prática Psiquiátrica no Hospital Geral Ed Neury Botega 2ª Edição ArtMed Editora Porto Alegre 2006 Nemes MIB Carvalho HB Souza MFM Antiretroviral therapy adherence in Brasil AIDS London London v 18 p S 15S 20 2004 Palella FJ Delaney KM Moorman MO et al Declining morbidity and mortality with advanced human immunodeficiency virus in fection New England Journal of Medicine3381385360 1998 Queiroz AO Souza ARN Tostes MA Cardoso G Zornitta M Contribuições do Serviço de Psicologia Médica e Saúde Mental ao Programa SIDAAIDS Revista Acadêmica 31 janmar 1991 Queiroz AO AIDS aspectos psicossomáticos Psicossomática Hoje 313319 Porto Alegre Artes Médicas março 1992 Tostes MA Chalub M Botega NJ The quality of life of HIV infected women is associated with psychiatric morbidity AIDS CARE vol16 n2 177186 February 2004 Tostes MA Aspectos Psiquiátricos da Infecção pelo HIVAIDS Programa de Educação Continuada da Associação Brasileira de Psiquiatria wwwabpbrasilorgbr 2006 Treisman GJ Angelino AF Hutton HE Psychiatric Issues in the Management of Patients With HIV Infection JAMA 28622 De cember 2001 Vitória MAA Adesão ao Tratamento Antirretroviral Manual de Assistência Psiquiátrica em HIVAIDS Ministério da Saúde Bra sília 2000 Psicossomaticaindd 438 Psicossomaticaindd 438 05012010 121221 05012010 121221 Este trabalho analisa a questão da contribuição que a Psicanálise pode dar no campo dinâmico da re lação profissionais de saúdepaciente num contexto institucional qual seja um hospital geral A pesquisa foi realizada no Hospital Universitá rio Clementino Fraga Filho UFRJ que em 1987 foi uma das quatro primeiras instituições a serem cre denciadas como Centro de Referência Nacional para SIDAAIDS O Serviço de Doenças Infecciosas e Para sitárias DIP desse hospital coordena um programa direcionado para assistência treinamento e pesquisa em AIDS e antes mesmo de sua implantação solicitou a participação do Serviço de Psicologia Médica para um trabalho multidisciplinar O Serviço de Psicologia Médica estabeleceu sua participação principalmente através de interconsultas de assistência psiquiátrica e psicoterápica a pacientes quando necessária e da formação de um grupo multiprofissional Esse grupo multiprofissional foi constituído por médicos enfer meiros assistentes sociais nutricionistas psicólogos membros da equipe de saúde responsável pelo tra tamento de pacientes com AIDS e coordenado por dois psicanalistas Os dados obtidos baseiamse na experiência desse grupo cujos elementos estão todos vinculados à mesma instituição e que durante um ano reuniuse semanalmente visando à reflexão da prática clínica Restringemse portanto estritamente ao campo da Psicologia Médica que em sua prática não tem lei tos não tem doentes mas sim demandas referidas a vicissitudes limitações e ansiedades da relação assis tencial profissionais de saúdepaciente Há cerca de 10 anos trabalhando no Serviço de Psicologia Médica de um hospital geral Hospital Universitário Clementino Fraga Filho identifica mos logo de início como excepcional a demanda do Serviço de DIP A AIDS com seus significados exi gindo uma demanda excepcional de serviços da DIP rompe com o rotineiro funcionamento assistencial e cria uma oportunidade privilegiada para a prática de Psicologia Médica A própria formação de um grupo prática bem menos habitual do que os recursos de interconsulta e assistência direta psiquiátrica ou psicoterápica quan do necessária já de per si é uma resposta expressiva à excepcionalidade da demanda O grupo proposto e coordenado pelo Prof Amaury Queiroz e pela autora está referenciado prin cipalmente nas propostas de Michael Balint e Isaac Luchina e também nas contribuições de Danilo Peres trello e Julio de Mello Filho Consoante esses autores o plano de trabalho proposto se volta para a função psicoterápica diferenciada na relação profissionais de saúdepaciente o que se apoia na compreensão dinâ mica da dimensão transferênciacontratransferência Em relação à experiência de Balint com grupos de médicos generalistas a proposta se diferencia por constituir um grupo multiprofissional e sem a exigên cia de formação psicoterápica para os seus membros Há também uma diferença entre essa experiên cia que se refere a uma equipe de saúde préformada e a de Luchina cujos grupos multidisciplinares são constituídos por profissionais de diferentes catego rias necessariamente pertencentes a equipes diver sas não podendo portanto ter um objetivo de inte gração através da prática do grupo Outra diferença é que todos os participantes inclusive os coordenado res pertencem a uma mesma instituição E ainda o grupo está referido a profissionais que prestam assis tência a pacientes de uma única patologia AIDS Essas diferenças marcam uma originalidade nes ta experiência que valoriza uma estratégia na inves tigação das funções psicoterápicas diferenciadas dos diversos profissionais na integração de profissionais de saúde mental em uma equipe de saúde num hos pital geral nos momentos de integração conseguida nesta equipe de saúde e nas repercussões possíveis na rede de relações dos profissionais de um hospital geral Esta prática de grupo se apoia em conceitos psicanalíticos que permeiam todas as experiências de grupos no campo da Psicologia Médica partindo 34 GRUPO DE REFLEXÃO MULTIPROFISSIONAL EM AIDS UMA ESTRATÉGIA EM PSICOLOGIA MÉDICA Alícia Navarro Dias de Souza Psicossomaticaindd 439 Psicossomaticaindd 439 05012010 121221 05012010 121221 440 Mello Filho Burd e cols desse parâmetro geral para se constituir em função de uma demanda específica numa experiência par ticular Este grupo é portanto um grupo experimental e nesse sentido resolveuse chamálo de Grupo de Reflexão Multiprofissional A pesquisa partiu basicamente de uma dupla pergunta que ansiedades estariam sendo antecipadas ou já experimentadas pelos profissionais de saúde que prestam assistência a pacientes com AIDS Uma vez que essas ansiedades chegaram a originar uma demanda excepcional aos profissionais de Psicologia Médica que resposta a Psicologia Médica poderia dar a essa demanda Criouse assim mais uma oportuni dade privilegiada pela intensidade da demanda de reflexão sobre a prática da Psicologia Médica Em termos metodológicos escolheuse realizar a observação participante neste grupo de reflexão multiprofissional por considerar que essa experiência compartilhada a reflexão que pôde se dar no aqui a agora do grupo a fala deste grupo constitui uma expressão de um processo vivo onde observador e observados são diferenciados pelas categorias con ceituais que informam a sua participação neste con texto multidisciplinar O encontro entre observador e observados leva ambos à produção de significações numa estrutura de relações o grupo cuja exis tência é uma tentativa de resposta às demandas de seus participantes A produção de significações que se dá no grupo é portanto o que está se constituindo e constitui o objeto da pesquisa Num segundo mo mento ao realizar a leitura interpretativa das falas do grupo registradas expandese a reflexão possível sobre as associações produzidas na livre discussão do grupo Valemonos neste momento sobretudo da contribuição de Bion em dinâmica de grupo Esta leitura interpretativa não é única e o registro do ma terial produzido pelo grupo é oferecido de forma a possibilitar com maior rigor a produção de conheci mentos a todos que venham a interpretálo Voltemos agora à nossa primeira pergunta so bre as ansiedades vivenciadas pelos profissionais de saúde na sua relação com pacientes com AIDS A experiência central desse grupo é a vivência de impotência terapêutica de limite de conhecimen to que aproxima os vários profissionais de saúde e estes dos pacientes com AIDS Na leitura interpretativa da discussão livre dos grupos pôdese evidenciar como a AIDS por suas re percussões na dimensão psicossocial determina uma maior intensidade conflitiva na relação profissionais de saúdepaciente Já na anamnese um primeiro momento especial na relação médicopaciente colocase a investigação da sexualidade em associação à morte A investigação da sexualidade antes do surgimento da AIDS com ex ceção dos casos em que se supunha uma patologia venérea em geral não era realizada sendo conside rada não raro invasão da intimidade do paciente dita até desnecessária A comunicação do diagnóstico de AIDS ao pa ciente compulsória pelo aspecto preventivo não possibilita que o profissional de saúde em especial o médico preservese deste momento difícil da relação em que estão colocados a ameaça de morte para o paciente e a impotência terapêutica do profissional o que não pode evitar a problemática de culpa na relação médicopaciente A necessidade de participação do paciente no controle preventivo da AIDS cria mais uma exigência na relação assistencial confrontando toda a equipe de saúde com a sua responsabilidade social Na segunda reunião do grupo de reflexão uma médica nos diz Há uma tendência a esquecer a história prévia da pes soa Entra internase e o médico faz o que quer com o paciente Não é sem conflito que os profissionais de saúde podem se aproximar do paciente enquanto sujeito dono de uma biografia alguém que participa ativa mente dos processos diagnóstico terapêutico e pre ventivo na relação assistencial o que implica a fun ção psicoterápica dessa relação Em certos momentos os profissionais de saúde ao se recusarem a sofrer o impacto da demanda trans ferencial bem mais exigente nos pacientes com AIDS dirigem essa demanda ao psiquiatra ou ao psicólogo racionalizando que a estes cabe por formação toda a compreensão da dimensão psicossocial Por vezes defensivamente o grupo sugere me didas administrativas para evitar a consideração da singularidade da situação clínica da dimensão trans ferencial contratransferencial na relação profissionais de saúdepaciente da intersubjetividade não regula mentável Neste sentido o seguinte fragmento retira do da quinta reunião do grupo é exemplar Psicóloga o pai do paciente trouxe parece coisas de macumba para pôr no soro que ele dizia que podiam salvar o filho Enfermeiro Ele quis pôr uma garrafada no soro Psicóloga Mas ao mesmo tempo estava o terno dentro do armário Enfermeiro Estavam querendo que ele morresse e não morresse ao mesmo tempo Médico Eu sou até a favor de ter isso escrito para a prevenção dessas situações E proibi do trazer substâncias alimentos etc Psicossomaticaindd 440 Psicossomaticaindd 440 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 441 Enfermeiro Podese aproveitar e colocar brigas conflitos familiares Coordenador Calma nome do enfermeiro Isso não se resolve com normas o grupo ri No entanto em uma dinâmica conflitiva perma nente o grupo mostra como é capaz por exemplo de compartilhar a ambivalência em relação à morte pró xima de um determinado paciente cuja história de relação com a equipe é relembrada está viva como estão vivos estes últimos momentos difíceis quando ainda é possível no dizer do grupo dar alguma coisa na relação clínica entre paciente e profissionais e na relação entre profissionais no grupo Outro aspecto que se pode retirar na dinâmica deste grupo referese à agressividade e à culpa quan do os profissionais se sentem confrontados com a im potência terapêutica Na terceira reunião do grupo isso aparece claramente quando um médico diz A doença é multissistêmica e as drogas que a gente usa não são muito tóxicas Nós mesmos é que estamos fa zendo biópsia pósóbito de pulmão fígado para tentar fazer diagnóstico A culpa ao se fazer diagnóstico não só de in fecção pelo HIV como de doenças indicativas de AIDS transparece frequentemente no grupo também em associação à impotência terapêutica expressando o conflito entre a capacidade terapêutica possível e a desejada onipotentemente Isso pode ser evidenciado no seguinte fragmento do grupo quando falam dois médicos Médico 1 Eu acho que para alguns doentes fica di fícil só ser portador A maioria acha que o teste é positivo não adianta é AIDS Médico 2 Porque nós jogamos a própria dúvida porque na própria pessoa que deveria dar a segurança a ele que seria o médi co ele encontra justamente a interroga ção Eu acho que a única coisa que da para nós acentuarmos no ambulatório como existe a dúvida é de se apegar na dúvida no seu lado positivo e não no seu lado negativo Se é que isso é algu ma coisa Centrado no tema do encontro fatal inicial mente colocado em termos de enunciar o diagnóstico como equivalente a condenar à morte passa o grupo a descrever o encontro dos pacientes com seus parcei ros deslocando no manifesto o conflito da relação médicopaciente para a relação pacienteparceiro Ao examinar como estão mantendo a relação apesar de um saber que é positivo e o outro é negativo um determinado paciente é o primeiro a ser apresentado e o que mais mobiliza o grupo As defesas maníacas de negação da ameaça de morte são relatadas no pa ciente e vividas pelo grupo Médico 3 ele nos falou que ia colocar um anún cio no jornal Paciente aidético procura moça aidética para relacionamento se xual Médico 2 isso é que é saber viver E na fala dos médicos que se pode notar que na assimetria da relação médicopaciente a AIDS intensifica conflitos O médico não detém um saber onipotente a certeza e o seu desejo de têlo é fre quentemente visto como desejo do paciente sendo esta superposição de desejos uma questão central na relação médicopaciente O médico ao se conhecer vivendo o desconhecimento a dúvida perguntase se o seu conhecimento é alguma coisa Destacaremos um outro momento igualmente conflitivo no processo clínico quando se dá a pas sagem do estágio de infecção pelo HIV para AIDS propriamente O médico se apega na possibilidade de tratamento das infecções oportunísticas e processos neoplásicos mas esse tratamento não salvará a vida do paciente nem livrará o médico de sua angústia A culpa vivida pelos médicos é claramente expressa Médico 4 Falei com ele não sei se é criticável ou não nos seguintes termos nome do paciente agora a gente descobriu algu ma coisa em você e que agora eu falei abertamente ele estava rotulado teori camente como AIDS mas que o objetivo seria tratar O diagnosticar segue o sopro da morte e da im potência terapêutica O grupo desta vez defendese buscando localizar a falha em alguém O médico da internação que não estava presente neste grupo te ria falhado Falhou no diagnóstico HIV assintomá tico Com aquela esplenomegalia Falhou na tera pêutica a endocardite mal tratada ou tratada por um tempo insuficiente ou um germe resistente não sei Falhou na relação médicopaciente Médico 4 Não foi colocada a possibilidade dele estar agora fazendo qualquer coisa oportunística Isso foi falha uma visão muito otimista Médico 5 nome do paciente desconfiava de alguma coisa ele indagava Psicossomaticaindd 441 Psicossomaticaindd 441 05012010 121221 05012010 121221 442 Mello Filho Burd e cols Médico 4 Ele explorou a equipe inteira Ele estava mentalizando a ideia de que ele já estava numa fase mais avançada e isso não foi trabalhado e de repente o carrasco do ambulatório não sei Eu tinha uma boa relação médicopaciente com ele Outro aspecto que se ressalta no grupo está re ferido à associação da impotência ao prazer do desa fio e do controle da própria ameaça de morte que os profissionais de saúde vivem no risco da contamina ção A declaração de um dos membros do grupo Eu sou do grupo de arrisco nos dá a medida dessa vivência maníaca de desafio A discriminação e o isolamento de que são alvo não só os pacientes com AIDS mas também os pro fissionais que os assistem ficam aparentes no grupo quando ocorre uma crise institucional no caso uma greve Tornase evidente então a tendência a negar a gravidade e o potencial destrutivo da doença que só são lembrados na medida em que se reconhece que a doença ameaça os próprios profissionais de saúde experimentando o grupo uma ansiedade intensa que associa morte à loucura Identificase o profissional no discurso livre do grupo com o paciente discrimi nado possuidor da morte contagiosa e podendo ser alvo de outros estigmas associados à AIDS como por exemplo a homossexualidade É o que encontramos na fala de um dos médicos São colegas diferentes e todos fazem a mesma brin cadeira Telefonam lá para casa Alô Dr tudo bem Aqui quem está falando é um paciente seu aidético Quando você saca você começa a brincar Meu par ceiro A relação do grupo com respeito à instituição hospitalar como um todo é claramente ambivalente O grupo deseja um reconhecimento e essa demanda de um reconhecimento institucional é particularmen te intensificada pela AIDS num conflito entre prestí gio institucional e impotência terapêutica O grupo aponta a pesquisa o prestígio acadêmico a coesão grupal como necessários para alcançar o reconheci mento desejado num hospital que é universitário O lidar com os escolhidos da peste do século o confrontarse frequentemente com o limite de seu conhecimento propicia ao grupo um momento parti cularmente rico Um paciente em tratamento ambu latorial se encontra na enfermaria auxiliando outros pacientes como representante de um grupo de ajuda a pacientes com AIDS organizado pela sociedade Um médico pede que ele se retire da enfermaria di zendo que há algum equívoco Uma nutricionista tenta retirar esse paciente com AIDS do refeitório do hospital enquanto uma assistente social lhe dá o direito a uma refeição no hospital pelo seu intenso trabalho como representante do grupo referido Num primeiro momento portanto ele sai da enfer maria sai do refeitório e se despede da assisten te social dizendo eu não quero trazer problemas Num segundo momento ele entra pela porta do gru po através da fala das assistentes sociais Os precon ceitos são problematizados as atitudes refletidas e o conflito tem lugar para alguma elaboração Mais de uma reunião do grupo foi necessária Chamase o médico que o retirou da enfermaria chamase o médico assistente que o trata a nutricionista está presente e a assistente social enfim quase toda a equipe de saúde está representada O grupo de reflexão como está proposto para uma prática institucional cria um espaço multiprofis sional e multidisciplinar que mantendo a liderança do médico clínico na equipe de saúde possibilita a maior integração dessa equipe É para essa integra ção que o profissional de Psicologia Médica pode contribuir focalizando a relação profissionais da saúdepaciente mantendo a livre discussão do grupo de modo a limitar efetivamente a ilusão narcísica do poder médico que pretenderia dirigir toda a ação de saúde em termos de prescrições e proscrições A fo calização que a Psicologia Médica pode dar à relação profissionais de saúdepaciente valoriza a função psi coterápica que se pode realizar em qualquer relação interpessoal mas que adquire uma especificidade na discussão do grupo quando os diferentes profissio nais podem definir os limites dos seus respectivos sa beres A psicoterapia desde o uso da palavra de con solo quando é uma simples psicoterapia de apoio até o valor da interpretação passando pelo uso crite rioso dos efeitos da sugestão podese distribuir pelos diferentes profissionais da equipe de saúde dando um máximo de valor terapêutico à relação equipe de saúdepaciente É assim que a AIDS em um espaço social mostranos o impacto de um doença que além dos problemas epidemiológicos de sua disseminação nos traz a dimensão conflitiva com implicações no trata mento individual Neste conflito em termos psicos sociais podemos facilmente mostrar a oposição en tre individual e coletivo quando a coletividade que discrimina é a mesma que tem de criar as condições para o atendimento terapêutico A AIDS referida à morte transmissível cria especificamente uma solici tação para se considerar essa dimensão psicossocial que coloca um desafio para o conhecimento médico tocando numa dimensão existencial como nos diz o sociólogo e cientista político vítima da AIDS Herbert de Souza 1988 Psicossomaticaindd 442 Psicossomaticaindd 442 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 443 Para mim a medicina hoje tem que tratar da vida e da morte Um bom médico é o sujeito que sabe cuidar da minha saúde e da minha morte Que seja capaz de me dar as duas coisas uma boa saúde e uma boa morte Isso está fora do pensamento médico É esta palavra de Herbert de Souza que nos mostra mais claramente como a AIDS é um desafio que se coloca além do modelo médico restrito im pondo às instituições a consideração da dimensão social maior onde a doença incide A resposta insti tucional que cria equipes multidisciplinares atende à complexidade maior da problemática psicossocial onde se inserem os pacientes A resposta da institui ção em que foi realizada a pesquisa de criar um gru po de reflexão multiprofissional talvez tenha alguma originalidade ao preservar o conhecimento médico dandolhe maior extensão ao instigar uma equipe de saúde a considerar as limitações de sua prática ha bitual e convencional ao mesmo tempo possibilitan do o levantamento de questões que chegam a tocar numa dimensão existencial implicando a ética do atendimento médico A experiência com este grupo de reflexão que foi denominado muito propriamente por um de seus integrantes como o grupo de arrisco representou uma contribuição para o estudo e a elaboração não só da intensidade conflitiva na tarefa assistencial a pacientes com AIDS como das relações conflitivas entre os diferentes profissionais que integram a equi pe de saúde Ampliando o espaço institucional em que a Psicologia Médica pode se inserir ela deu sua contribuição à melhora no atendimento hospitalar ao considerar a produção de significações em uma estra tégia interpretativa grupo de reflexão que possi bilita maior integração nas trocas simbólicas de um grupo multiprofissional REFERÊNCIAS Balint M O médico seu paciente e a doença Rio de Janeiro Athe neu 1975 Bion W R Experiências com grupos os fundamentos da psicote rapia de grupo 2 ed Rio de Janeiro ImagoSão Paulo Ed da Universidade de São Paulo 1975 Bleger J Temas de Psicologia entrevista e grupos 2ed São Paulo Martins Fontes 1985 Carrara S Moraes C Um vírus só não faz doença Cad IMS v 1 n 1 p 96123 marabr 1987 Conates T J et al Psychosocial research is essential to unders tanding and treating AIDS Am Psychol v 39 n 11p 1309 1314 Nov 1984 Dellarossa A Grupos de retlexión entrenamiento institucional de coordinadores y terapeutas de grupos Buenos Aires Paidós 1979 Freud S Psicologia de grupo e a análise do Ego In Além do princípio de prazer Psicologia de grupo e outros trabalhos Rio de Janeiro Imago 1976 Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas v 18 Holland J C Tross S The psychosocial and neuropsychiatric se quelae of the acquired immunodeficiency syndrome and related disorders Ann Intern Med v 103 n 5 p 760766 Nov 1985 Lapassade G Grupos organizações e instituições Rio de Janeiro Francisco Alves 1977 Luchina L et al El grupo Balint hacía un modelo clinico situacio nal Buenos Aires Paidós 1982 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual 2ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1979 Osorio L C et al Grupoterapia hoje Porto Alegre Artmed 1986 Paine L ed AIDS Psychiatric and Psychosocial Perspectives London Croom Helm 1988 Perestrello D A medicina da pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1974 Souza A A reflexão do saber sobre a impotência SIDAI AIDS uma experiência em psicologia médica Rio de Janeiro 1988 Tese de mestrado Insiitutd de Psiquiatria UFRJ Souza H de A AIDS porque é mortal criminalizou o sangue Tema v 6 n 10 p 14 jun 1988 Reunião Análise e Difusão sobre Saúde de RADIS Projeto desenvolvido pela Escola Nacio nal de Saúde Pública e pelo Centro de Informações para Saúde Fundação Oswaldo Cruz Psicossomaticaindd 443 Psicossomaticaindd 443 05012010 121221 05012010 121221 A AMEAÇA Na década de 1980 a AIDS chegou trazendo perplexidade e sentimento de impotência frente à evolução da doença às perdas quase que imediatas das pessoas que a contraíam e o desconhecimento do manejo por parte dos profissionais que se expres sava no medo da contaminação ao tratar Isto fica muito flagrante no capítulo AIDS o doente o mé dico e psicoterapeuta de autoria do professor Julio de Mello na primeira edição do livro Psicossomática Hoje onde narra que nos idos de 1985 que lidar com pacientes de AIDS é uma tarefa que exige um grande desprendimento capaz de suportar frustrações e dor a dor no entrechoque constante entre a vida e a morte que se passa no corpo e nas mentes destes pacientes Aquele era um momento da epidemia de extremo preconceito temor de contágio poucos recursos te rapêuticos e grupos de risco O tempo passou a AIDS já não é circunscri ta a grupos de risco as pessoas soropositivas não morrem tão precocemente os profissionais domi nam grande conhecimento sobre como lidar com a doença há um grande arsenal terapêutico de exa mes e medicamentos para serem usados mas ain da vivemos assombrados com a AIDS Por tratarse de uma doença sexualmente transmissível de forte estigma com consequências emocionais e corporais importantes Por não existir um medicamento que erradique o vírus pela necessidade de um trata mento com monitoramento contínuo que tem fortes efeitos colaterais e uma necessidade de alta adesão terapêutica Diante do múltiplo desafio tanto do controle da epidemia quanto do tratamento das pessoas que vivem com HIVAIDS entendemos ser verdadeira mente necessário que os pacientes sejam incluídos nos planos terapêuticos para que assumam o cuidado consigo e também com os outros pois se tratando de uma doença cujo contágio se dá na interação é ne cessário que sejam ativos no autocuidado e tornemse agentes das ações que barram o curso da epidemia Nessa linha de pensamento é oportuna a construção de espaços nas unidades de saúde que a eles possibi lite trazer o contexto e o impacto do diagnóstico eou adoecimento em suas vidas Espaços terapêuticos e formas de cuidar que não trabalhem somente com a lógica da doença adesão medicamentosa ou medidas imediatistas que criam expectativas no paciente soropositivo para além do que é possível em termos de assistência e perspecti va de cura neste momento da epidemia Espaços de encontro onde se possa falar e escutar para produ zir sentido sobre a experiência de conviver com uma doen ça transmissível crônica e estigmatizante que requer cuidado contínuo e permanente Para lidar com a magnitude desse problema em 3 de julho de 1996 o Departamento de Medicina Integral Familiar e Comunitária do Hospital Univer sitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro HUPEUERJ em parceria com a Dis ciplina de Psicologia Médica e o Serviço Social frente ao cuidado dos pacientes atendidos por seus profis sionais avaliou ser necessário ampliar seus conceitos e práticas de saúde Para tal planejou e implementou uma estratégia complementar ao atendimento indi vidual dos pacientes soropositivos criando o grupo terapêutico COM VIDA O COM VIDA é um grupo de informação refle xão e suporte E desde a sua criação compartilhar experiências e trocar informações são objetivos que visam reforçar a solidariedade e estimular o senti mento de responsabilidade individual e coletiva dos envolvidos na questão do HIVAIDS Este grupo que inicialmente começou funcionando com periodicida de quinzenal e hoje acontece por duas vezes na se mana é coordenado por uma equipe multidisciplinar que inclui médicos psicólogos assistentes sociais nutricionista e enfermeira Ao longo de seus 12 anos o COM VIDA funcio na como um grupo aberto aos pacientes atendidos no Hospital Universitário Pedro Ernesto HUPEUERJ 35 GRUPO COM VIDA A ADESÃO À VIDA FRENTE À AMEAÇA DE MORTE Lia Silveira Psicossomaticaindd 444 Psicossomaticaindd 444 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 445 e há 4 anos a cada primeira semana do mês abriu se para os pacientes e profissionais de outras unida des de saúde Desde 2003 recebe também de for ma ordenada e sistemática alunos da graduação de Medicina e de pósgraduação de diferentes áreas da saúde A necessidade da participação e entrada dos alunos foi uma proposta discutida pelos diferentes integrantes do grupo como uma ação para a melhoria da formação o que resulta em atenção de qualidade a esses próprios pacientes uma vez que estamos em um hospital de ensino Neste espaço grupal discutese a adaptação ao diagnóstico difundemse informações necessárias para o entendimento de situações de adoecimento e risco disponibilizase suporte emocional promove se reflexão sobre condições de saúde adesão aos medicamentos e prevenção aos agravos refletese so bre a importância da participação do paciente no cui dado à saúde reforçase a relação médicopaciente estimulase a participação institucional problemati zase sobre políticas e modelos de atenção à saúde preconceitos deveres e direitos entre outros Tudo isso acontece por meio de diálogos e dinâmicas que possibilitam falar escutar sentir indagar Esse movimento contínuo e solidário faz do Grupo COM VIDA um ambiente de holding que fun ciona como rede de suporte e de motivação para o tratamento pelo compartilhar de dificuldades e busca de alternativas para superálas Ambiente de construção de vínculos acolhida respeito à diferen ça e de reforço da autoestima onde se busca esti mular a pessoa a encontrar recursos para lidar com as questões do adoecer da doença e dos seus efeitos sobre a vida Caso clínico Meu nome é Jaime tenho 45 anos e estou no Gru po COM VIDA desde 2001 Para mim o grupo significa aprendizado ajudar as pessoas significa tudo para mim Não tenho outras palavras para expressar quando tive o diagnóstico eu achava que ia morrer logo Quando cheguei aqui vi pessoas convivendo com o vírus há anos e vi que não era bem como eu pensava A contagem de sobrevida das pessoas já me deu uma força Hoje eu já me imagino com 60 anos Comecei meu tratamento em outro hospital mas não fiquei satisfeito e consegui uma transferência para cá Cos tumo participar do grupo as segundas e quartas mas de vez em quando fico algumas semanas sem vir Mas sempre volto porque isso aqui me ocupa é melhor do que ficar em casa pensando besteira Acabo aprendendo com outras pessoas tenho informação sobre outras doenças aprendi a lidar com as atitudes das pessoas sendo elas soropositivas ou não Hoje em dia quando não concordo com alguma coisa me coloco no lugar da pessoa para ver se agiria igual Porque antes de saber que era soropositivo eu também ti nha preconceito e me afastava Todos acham que o HIV está bem distante mas ele está muito próximo Tão próximo que a gente não o enxerga Eu era informado trabalhava em unidade de saúde mas achava que só quem pegava era garota de programa e homossexual achava que olhando para a pessoa poderia saber se ela tinha AIDS ou não Hoje em dia vejo que não é nada disso O PERCURSO Ao longo desses 12 anos percorremos diversas etapas Inicialmente trabalhamos nossa capacitação profissional para compor a equipe de coordenação que denominamos facilitadores Discutimos e apren demos sobre teorias de grupo trabalho em equipe modelos de atenção princípios da integralidade concepções pedagógicas que respaldam ações de educação em saúde Apoiamonos em autores como PichonRiviere Bleger Julio de Mello Filho Zimer man Madel Luz Ricardo Donato Leonardo Boff Paulo Freire entre outros Nosso processo de trabalho desde então conta com um espaço de supervisão onde inicialmente pac tuamos os objetivos da atividade discutimos a busca pelo espaço físico a institucionalização da prática grupal formas de divulgação entre os outros profis sionais e os usuários Discutimos sobre a insegurança desencadeada pelos imprevistos deste tipo de prática dúvidas de condução falta de reconhecimento insti tucional perdas de pacientes No início a incerteza sobre a efetividade dessa proposta o medo do preconceito a necessidade de estabelecimento de confiança mútua entre profissio nais e usuários eram temas recorrentes nas super visões e nas conversas dos profissionais da equipe Concomitante a isso nas reuniões do grupo o inte resse dos pacientes era por informação de como so breviver à doença continuar no anonimato conhecer e garantir direitos a disponibilidade dos ainda novos e desconhecidos medicamentos e seus efeitos cola terais como lidar com o preconceito falas sempre perpassadas pelo medo do preconceito e pela ameaça da morte Com o tempo a apropriação da técnica a insti tucionalização do projeto a vinculação dos pacientes ao grupo o reconhecimento do trabalho no HUPE e para além dele da equipe de facilitadores até então muito unida e solidária passou a ter divergências que Os depoimentos apresentados neste artigo foram colhidos em entrevista individual com pacientes que participam do Grupo COM VIDA em maio de 2006 Psicossomaticaindd 445 Psicossomaticaindd 445 05012010 121221 05012010 121221 446 Mello Filho Burd e cols resultavam em conflitos e se expressava na condução do grupo e nos créditos sobre a autoria do trabalho Neste momento foi de extrema importância a inter venção do coordenador da então Disciplina de Me dicina Integral mediando as discussões com os pro fissionais de modo a redirecionar o foco para o mais primordial da proposta o cuidado aos pacientes Este foi um momento de vulnerabilidade e de sestruturação da equipe de profissionais que em muito se assemelhava à forma como os pacientes che gavam e ainda chegam ao Grupo COM VIDA após receberem o diagnóstico de soropositividade para o HIV Vivemos situações de conflitos de rupturas de perdas de profissionais de sofrimento e tensões que colocaram o grupo em risco Foram importantes também nesse momento as supervisões onde as intervenções do supervisor clarificaram movimentos inconscientes provocaram reflexões que sustentaram o objetivo maior que era permanecer cuidando dos pacientes em detrimento do nosso narcisismo dos facilitadores Perdemos importantes integrantes de nossa equipe inicial outros chegaram e enquanto nos re organizávamos os pacientes estavam em movimento de busca para melhor conhecer o tratamento as no vas medicações os exames de CD4 e carga viral po líticas públicas que legitimavam direitos e benefícios Tinhamse apropriado de algo que era primordial em nossa proposta desde o início interagir serem ativos não paralisar frente à ameaça de morte A ADESÃO À VIDA Com o passar do tempo as pessoas e os temas trabalhados no e pelo Grupo COM VIDA sofreram transformações do foco individual e de ameaça da morte para a preocupação com o coletivo e com a vida da negação da doença para a difícil negociação dos cuidados com a transmissão o desconhecimento para esclarecimentos sobre medidas de prevenção o re conhecimento de preconceitos próprios a cons cientização sobre necessidade de parceria na relação médicopaciente a necessidade da busca pela adesão terapêutica difícil porém necessária Ao longo desses 12 anos temos sempre durante as reuniões do grupo uma população contínua e outra flutuante que torna o trabalho dinâmico e sempre re novado Temos por semana em média 15 pacientes por encontro A frequência se divide em pacientes que são assíduos e participam desde as reuniões iniciais há 12 anos e pacientes recém diagnosticados que chegam a cada dia e que após se estabilizar vêm de forma ir regular Há também aqueles pacientes que participam de forma pontual A característica dessa frequência se por um lado sinaliza o quanto o cuidado ao paciente portador do HIV evoluiu ao mesmo tempo sinaliza o quanto a epidemia permanece ativa Desde o seu início o supervisor deste trabalho é o profissional da Psicologia Médica Professor Luiz Fernando Chazan Caso clínico Estou no grupo desde 2000 quando tive o diagnóstico a médica comentou do grupo No começo eu não queria vir porque achava que ia ver gente morrendo Não tinha noção de que eles estavam bem e fiquei com medo de vir Mas a médica falou que não era assim aí eu vim Na segunda vez eu vi uma pessoa que estava internada aí fiquei um pouco chocado Até hoje a gente fica meio assustado mas eu con segui separar as coisas Eu não tenho uma palavra que possa definir o que o grupo significa pra mim A gente faz um esforço para manter isso aqui porque às vezes dá vontade de largar tudo Mas a cada dia aparecem pessoas novas que nós podemos ajudar dar o nosso exemplo o que nos dá força Porque se nós que já estamos no grupo há mais tempo pararmos de vir o grupo acaba E assim como foi importante para mim chegar aqui também vai ser para outras pessoas O diagnóstico é uma pancada Então nós temos que estar aqui para poder mos receber as pessoas dar uma força É fundamental a gente multiplicar a informação Na consulta não dá tempo de falar tudo que a gente quer e às vezes a gente esque ce de perguntar alguma coisa na consulta e pergunta aqui Também me incomoda demorar na consulta enquanto tem um monte de gente esperando Mariano empresário solteiro 43 anos Os que participam de forma regular desenvolve ram uma compreensão mais clara do que é ser soro positivo e do compromisso com o seu tratamento têm uma atitude crítica perante a sociedade o sistema de saúde e a Instituição na qual se tratam Costumam ter um número baixo de interocorrências com relação a agravos à saúde e de forma recorrente suas falas trazem o valor do Grupo COM VIDA como espaço de segurança da informação como fator de ampliação da consciência e da solidariedade como dispositivo de fortalecimento da resiliência Alguns desses pa Naquela ocasião o coordenador da Disciplina de Medicina Integral atualmente Departamento de Medicina Integral Familiar e Comunitária era o Professor Michael Deveza Médico que desde 2003 atua como um dos facilitadores do Grupo COM VIDA Psicossomaticaindd 446 Psicossomaticaindd 446 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 447 cientes hoje atuam como multiplicadores de informa ção em nossa própria instituição em consultas con juntas para acolher quem chega recém diagnosticado nos ambulatórios visitando pacientes internados nas enfermarias do hospital participando de atividades educativas ou inseridos em outros grupos e em outras instituições de saúde Hoje com o advento da terapia antirretroviral cada vez mais consolidada a expectativa de vida au mentada a AIDS com status de doença crônica além das questões apresentadas acima há uma que é re corrente e aparece sob diferentes formas no grupo a adesão à vida Estar aderido à vida significa ser participante ativo do processo de cuidado tendo como perspecti va de vida um projeto de felicidade Faz parte do pro cesso de adesão à vida questionar a necessidade da fidelidade e continuidade do tratamento que traz a pessoa portadora do vírus HIV à unidade de cuidado e à saúde com frequência discutir a tomada rigorosa de medicamentos que têm efeitos colaterais que vão desde a náusea que fragiliza até a lipodistrofia que denuncia no corpo a soropositividade sobre a qual se quer confidencialidade entrar em contato com a ameaça de adoecimento a cada baixa no CD4 ou su bida da carga viral O paciente aderido à vida compara a vida atual com a de antes do diagnóstico e a valoriza vive a experiência da convivência com o HIV como opor tunidade de crescimento e de mudança de valores e atitudes Ser aderido à vida é estar em movimento e buscar resposta para o questionamento será que vale a pena continuar que nos momentos difíceis de falência terapêutica frustração afetiva perda de trabalho ou de companheiros insiste em ocupar o espaço mental É não paralisar ao viver situações de preconceito em ambientes que deveriam ser amisto sos e fraternos como a família e o trabalho é ampliar a consciência para a necessidade do uso do preserva tivo mesmo com parceiro de igual sorologia em uma sociedade que tem como lema toda forma de amor vale à pena e é também viver o desafio continuado de incluir o preservativo na relação sexual sem in terromper o prazer e sem perder a confiança no e do parceiro O Grupo COM VIDA é um espaço de cuidado que acolhe a pessoa soropositiva e fomenta a adesão à vida Como profissional de psicologia integrante da equipe de facilitadores do Grupo COM VIDA nes ses 12 anos pude perceber questões que eram tra zidas com sofrimento pelo risco e ameaça de morte iminente e que foram se transformando e tornaram se ameaças que podem vulnerabilizar a pessoa que vive com HIVAIDS tornandose ameaça à sua vida Ameaça a não sentir alegria não ter esperança e vi ver com serenidade a consciência da invulnerabili dade porque nos dizeres da coordenadora uma das idealizadoras e pessoa de referência que personifica o cuidado para pacientes e profissionais do Grupo COM VIDA a médica Denise Herdy o importante é ser feliz Este é hoje o desafio com que nos deparamos Nós coordenadores e pacientes do Grupo COM VIDA viver e ser feliz REFERÊNCIAS Bleger J Temas de Psicologia entrevista e grupos São Paulo Mar tins Fontes 1998 Boff L Opinião Saber Cuidar ética do humano compaixão pela terra Petrópolis RJ Vozes 1999 Camargo Jr KR As muitas vozes da integralidade In Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde Org Pinheiro R e Mattos RA Rio de Janeiro IMS UERJ ABRASCO 2001 Chazan LF Grupos homogêneos interdisciplinares In Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pacientes somáticos Org Mello Filho J Porto Alegre Artes Médicas 2000 Deveza M Saúde para todos médicos para o ano 2000 Disser tação de Mestrado Rio de Janeiro IMSUERJ 1978 Folkes SH et al Psicoterapia de grupo São Paulo IBRASA 1972 Freire P Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro São Paulo Paz e Terra 1979 Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa São Paulo Paz e Terra 1996 Grinberg L Langer M Rodrigué E Psicoterapia de grupo Rio de Janeiro Forense 1971 Júnior JFO Grupoterapia Teoria e Prática São Paulo SPAG CAMP 1997 Kaplan H E Sadock BJ Compêndio de Psiquiatria Porto Ale gre Artes Médicas 1993 Luz MT Políticas de Descentralização e Cidadania novas práti cas de saúde no Brasil atual In Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde Org Pinheiro R E Mattos RA Rio de Janeiro IMS UERJ ABRASCO 2001 Mello Filho J Psicossomática HojePorto Alegre Artes Médicas 1992 Prefácio In Grupoterapia Teoria e Prática Org Júnior JFO São Paulo SPAGCAMP 1997 Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pacientes so máticos Porto Alegre Artes Médicas 2000 Peguin RC Concepção operativa de grupos In Grupoterapia Te oria e Prática Org Júnior JFO São Paulo SPAGCAMP 1997 PichonRivière E O processo grupal São Paulo Martins Fontes 1982 Rezende ALM Saúde dialética do pensar e do fazer São Paulo Cortez 1989 Rodrigues RD A crise da medicina prática e saber alguns aspec tos Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro IMSUERJ 1979 Rovere MR Planificacion Estrategica de Recursos Humanos en Salud terceira version Programa de Desarrollo de Recursos Hu manos de Salud OPAS 1992 Psicossomaticaindd 447 Psicossomaticaindd 447 05012010 121221 05012010 121221 448 Mello Filho Burd e cols Santos DF Vivendo com HIVAIDS cuidado tratamento e ade são na experiência do grupo Com Vida Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro IMSUERJ 2001 Smek ELM Oliveira NLS Educação em Saúde e Concepções de Sujeito In A Saúde nas Palavras e nos Gestos Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde Org Vasconcelos EM São Pau lo Hucitec 2001 Schön DA Educando o Profissional Reflexivo um novo design para o ensino e a aprendizagemPorto Alegre Artes Médicas Sul 2000 Vasconcelos EM Educação popular e a atenção à saúde da famí lia São Paulo Hucitec 2001 Zimerman DE Fundamentos básicos das grupoterapias Porto Alegre Artes Médicas 1993 Zimerman DE Ozório LC Como Trabalhamos com Grupos Porto Alegre Artes Médicas Sul 1997 Psicossomaticaindd 448 Psicossomaticaindd 448 05012010 121221 05012010 121221 Este trabalho é resultado da experiência de uma equipe de psicólogas durante o período de três anos numa instituição que atende exclusivamente a pacientes hemofílicos Após a avaliação das necessi dades da instituição e de seus pacientes foi possível organizar alguns tipos de atendimento baseados nos modelos psicossomáticos ASPECTOS CLÍNICOS DA HEMOFILIA A hemofilia é uma doença crônica e se caracte riza por uma deficiência genética no cromossomo X que tem como efeito a carência de proteínas funda mentais para o processo de coagulação do sangue O hemofílico transmite a suas filhas o gene com tal característica hereditária e estas portadoras o transmitirão ou não a seus descendentes diretos con forme a combinação cromossômica No caso de filhos homens que recebam essa carga genética a doença será manifesta o mesmo não acontecendo com as fi lhas que continuarão sendo portadoras pois um dos cromossomos X compensa a deficiência do outro Um casal em que ambos possuam a deficiência genética tem a probabilidade de vir a ter filhas nas quais a doença será manifesta Existe um grande número de casos em que não se tem conhecimento de antecedentes familiares o que pode ser explicado porque a doença tenha per manecido latente durante várias gerações de porta doras do gene ou por mutação genética Manifestações clínicas são frequentes e se carac terizam principalmente por hemorragias cerebrais e intraarticulares deformantes que dificultam a mar cha e podem levar à invalidez total Pequenos trau matismos ou cortes podem provocar sangramentos prolongados tornandose até mesmo fatais se não tratados a tempo Um número determinado de fatores é necessá rio para a coagulação sanguínea e sua carência vai causar os diversos tipos de hemofilia classificada de acordo com a proteína ausente no sangue e com a porcentagem que este possui de fatores de coagula ção Pode ser grave leve e moderada Os sintomas variam frequentemente de acordo com a classifica ção A descoberta do concentrado do fator ausente no sangue dos hemoffiicos através da crioprecipita ção centrifugação do sangue humano sob o frio foi a redenção desses pacientes possibilitando retirar o fator coagulante denominado CRIO para salvar vi das e possibilitar um tratamento Infelizmente a evolução no tratamento coinci de com o aparecimento do vírus da AIDS e por serem os preparados do sangue produto de muitas doações até 1984 sem controle o vírus foi transmitido em grande escala UMA GRANDE FAMÍLIA É importante que discutamos alguns aspectos institucionais devido às transformações ocorridas com a introdução de aidéticos em um local que trata va apenas de pacientes hemofílicos e que como ou tras instituições semelhantes teve que se adaptar à nova condição Consideremos então dois momentos antes e depois da AIDS Antes da AIDS o atendimento ao paciente he mofílico voltavase apenas para os problemas hemor rágicos e suas consequências além do tratamento profilático Esse trabalho envolvia profissionais das áreas de hematologia odontologia ortopedia fisio terapia e enfermagem A instituição em que trabalhamos possui um al bergue criado com o intuito de receber pacientes que 36 HEMOFILIA E AIDS Virgínia Fontenelle Eksterman Ana Cristina M Procaci Lisandre F Oliveira Marcia Pinto Fontenelle Mello Patrícia Corina Rocha Psicossomaticaindd 449 Psicossomaticaindd 449 05012010 121221 05012010 121221 450 Mello Filho Burd e cols residam em locais afastados principalmente outros municípios ou Estados como também aqueles que se encontrem em dificuldades físicas ou financeiras de se deslocar para um acampamento regular Esses muitas vezes requer sessões diárias de fisioterapia além de sucessivas aplicações do CRIO Essas entidades de assistência a pacientes he mofílicos tinham um funcionamento harmônico até que começaram a surgir repetidos quadros de infec ção tornandose muitos deles fatais A princípio não se tinha confirmação de um diagnóstico até que se chegasse à síndrome da imunodeficiência adquirida A partir de então todas as instituições tiveram que se adaptar às novas circunstâncias Os pacientes que eram atendidos como hemofí licos passíveis de tratamento e melhora de qualidade de vida ao serem contaminados pelo vírus passaram a necessitar de outros cuidados clínicos Ocorreu en tão nesses locais a necessidade de reformulações no atendimento O trabalho com o paciente hemofílico antes do surgimento da AIDS deixava os funcionários gratifi cados As equipes principalmente a enfermagem se achavam orgulhosas e responsáveis pelo alívio que proporcionavam através da terapêutica Predomina va um sentimento em que todos se viam como uma família dada a frequência com que se encontravam e a confiança que os pacientes e seus familiares neles depositavam Alguns funcionários chegavam mesmo a frequentar residências e festas acompanhando o crescimento dos meninos que era como se referiam a eles Para se compreender o momento atual é ne cessário que se fale desse anterior dos sentimentos de satisfação orgulho e confiança que predomina vam A RUPTURA O ANTES E O DEPOIS A partir do instante em que se começa a tomar consciência da vulnerabilidade dos pacientes inicia se um processo de desorganização da equipe que também se torna vulnerável frente à nova ameaça e às perdas O sentimento de responsabilidade é agora deslocado para a nova doença É no relato de algumas pessoas da enfermagem que percebemos a angústia do hoje frente aos pa cientes e à experiência do passado que era de satisfa ção pela pronta recuperação Todos os portadores de hemofilia tiveram as mesmas possibilidades de contaminação o CRIO ou as transfusões de sangue em algum momento fize ramse necessários para aliviar uma dor ou mesmo salvar suas vidas O CRIO a partir do momento de sua descober ta passa a ser a solução para a prevenção e tratamen to dos episódios hemorrágicos e também um veículo para uma possível contaminação por necessitar de um grande número de doadores pool de 2000 doa dores para 50 frascos de CRIO o que torna difícil seu controle A instituição reproduz o modelo que foi viven ciado na relação maternoinfantil a mãe o contami nou com hemofilia e a instituição com AIDS Os pacientes vivem uma dualidade o CRIO cura e os faz adoecer ao aparecerem os primeiros sintomas têm que recorrer ao mesmo local que res ponsabilizam por sua contaminação Um novo jogo acusatório surge necessitando de novas elaborações A relação com a instituição como a relação com a mãe tornase ambivalente a mãe faz adoecer e cuida de sua pessoa a instituição cura e faz adoecer o hemofílico Pela extrema dependência que essas pessoas têm dos outros mãe insituição doadores acabam aceitando passivamente a situação Os funcionários vivenciavam também os senti mentos em forma de culpa acusação e luto por terem participado da prescrição e aplicação do CRIO nos pacientes contaminados Tornouse difícil para mui tos suportar a situação havendo pedidos de demissão e de transferência Os pacientes que já carregavam a bagagem de uma doença crônica grave como a hemofilia pas saram a carregar uma bomba de efeito retardado vista dessa maneira pelas enfermeiras médicos e pacientes a AIDS com sua característica de doença desintegradora da pessoa física e mental Nosso trabalho se inicia com o contato direto com os membros da equipe e seus pacientes sem nos atermos a técnicas ou teorias visando a compreen der os aspectos biopsicossociais para assim definir as necessidades surgidas com as intensas mudanças verificadas em função da contaminação de pacientes pelo vírus De início reunimos os funcionários dos vários setores para discutir o que representavam essas mu danças Os grupos tiveram duração de alguns meses e nos revelaram o medo de contaminação e o luto pelas perdas As pessoas diretamente ligadas aos cuidados com o paciente viviam momentos de grande ansiedade vis to que aqueles que consideravam como irmãos e filhos adoeciam e morriam por sintomas vários independen te de sua dedicação e cuidados O relato de um grupo de enfermeiras mostra que a angústia era grande ao se depararem com a desintegração dos pacientes infec tados e as possibilidades de serem também contami nadas provocando um afastamento físico agora a enfermagem tem que usar luvas e capotes Psicossomaticaindd 450 Psicossomaticaindd 450 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 451 Enfermeira 1 antes era resolver a dor da hemorra gia tomavam o CRIO e saíam bem Agora internamse ficam mal e mor rem Enfermeira 2 antes eram rapidamente resolvidos os problemas agora é um tal de in ternar ter alta e internar até que eles ficam sem condições de sobreviver Enfermeira 3 eu não quero mais me ligar a ne nhum sofro como se fossem meus filhos Enfermeira 4 eu não me ligo mais brinco trato mas procuro não me envolver fico fria Outra situação semelhante foi trazi da num grupo que se realizou após uma semana em que faleceram qua tro pacientes Enfermeira 1 quando fiz faculdade pensava em cuidar dos pacientes e vêlos melho rar agora só faço tamponar e em pacotar Às vezes penso que trabalho num necrotério Enfermeira 2 chorei quando soube da morte de Z deixeio melhor no fim do plantão e quando voltei estava morto Enfermeira 1 aqui existe o antes e o depois Antes éramos unidos uma grande família Enfermeira 2 durante 15 anos acompanhamos estas pessoas agora estão morren do chora Compreendemos as mudanças e a angústia fren te a uma nova realidade Quando iniciamos não pudemos deixar de con siderar só os problemas de uma doença como hemo filia porque a grande maioria dos pacientes estava contaminada e muitos já apresentavam sintomas ou morriam de infecções diversas A AIDS é uma realidade como a hemofilia e há que conviver com a ideia de morte Morte difícil de situar dentro da pessoa fica fora no medo do CRIO ela morte está nos outros O PACIENTE MINHA MÃE QUERIA TER FILHOS HOMENS E EU SOU HEMOFÍLICO Nossos primeiros contatos com os pacientes fo ram através de grupos experimentais que se realiza vam semanalmente e cujos componentes eram enca minhados pelas equipes Os grupos conduzidos por duas psicólogas eram formados no seu início por pacientes que esta vam acessíveis sem relação de idade ou de situação clínica Esses em sua grande maioria eram provenien tes de famílias de baixo poder aquisitivo com pou co acesso a informações e muitos residindo distante principalmente em outros municípios carentes de infraestrutura A maior parte dessas famílias ignora va a razão de repetidas mortes de figuras masculinas durante várias gerações Faltava o conhecimento so bre hemofilia Um paciente proveniente do interior relatou num dos grupos iniciais que eram em sua cidade ninguém sabia nada sobre hemofilia inclusi ve sua mãe que teve 15 filhos homens perdendo 14 desses O paciente diz que sofreu muito durante sua infância e adolescência só sendo diagnosticada a en fermidade quando esta já havia provocado sequelas irreversíveis O indivíduo hemofílico está a todo momento de frontandose com os desafios inerentes a sua doença Esses pacientes por serem portadores dessa deficiên cia que pelas sucessivas hemorragias intraarticulares os leva muitas vezes a deformidades dos membros têm a relação com o corpo prejudicada Desde muito pequenos é mostrada sua fragilidade física e na re lação com seus pais aprendem que seus movimentos têm que ser controlados para não se ferirem Alguns dos pacientes que atendemos apresenta vam deformidades articulares que prejudicavam seus movimentos Nesses observamos uma gravidade maior na relação com sua autoimagem Sentiamse lesados por sua condição de serem hemofílicos e pe las restrições físicas e sociais que lhes eram impostas Acreditamos que esses fatos influenciavam todo o curso natural de desenvolvimento físico e emocional Percebiamse diferentes à medida que eram impedi dos de uma série de atividades comuns à sua faixa etária as quais podiam causar dor física e danos cor porais M 14 anos tenho raiva quando me chamam de Zico Como hemofílico sou discrimina do pelos colegas preferia não ter as duas pernas a ser hemofílico Não gosto que minha mãe diga no colégio que sou hemofílico J 12 anos fico com raiva de minha irmã quando brigamos e ela diz que não vai me ba ter porque eu não aguento Os limites necessários à sua preservação pas sam a ser vivenciados como privação O sentimento de liberdade física inerente ao ser humano transfor mase em impotência e dependência reforçadas pe los cuidados das pessoas que os rodeiam que acabam cerceando sua conduta Ocorrem dificuldades esco Psicossomaticaindd 451 Psicossomaticaindd 451 05012010 121221 05012010 121221 452 Mello Filho Burd e cols lares por conta das repetidas faltas ao colégio de correntes dos episódios hemorrágicos extremamente dolorosos Essas crianças vão até a vida adulta com difi culdade na área afetiva Sua sexualidade também é comprometida Nascem com o estigma é na relação sexual dos pais que se contaminam com hemofilia As deformações e sua fragilidade física por con ta de sua doença causam uma baixa autoestima O sentimento de ser diferente não ser homem e sim hemofílico já é sinalizado desde a meninice e vai se agravando na adolescência e na vida adulta Aspectos homossexuais são evidenciados em al guns casos Em suas histórias aparece o sentimento de abandono onde a falta da figura paterna é co mum associada a uma relação intensa com a mãe que tenta compensar a doença A transmissão da hemofilia também limita seus relacionamentos sexuais e afetivos Poucos elementos da sexualidade foram inves tigados pois nosso trabalho não tinha esse objetivo como principal e sim a pessoa do hemofílico como um todo Concluímos que devido aos aspectos menciona dos de não se aceitarem e se sentirem indivíduos à parte passam a ter atitude de negação e ocultação da hemofilia por pensarem que assim serão aceitos nos grupos empregos e relacionamentos amorosos Ocorrem grandes dificuldades de integração social sentemse pessoas hemofílicas diferenciadas vivendo à margem Nos primeiros contatos quando nossos grupos eram mais de coleta de dados e um espaço de fala e escuta registramos o que segue Z 20 anos hoje em dia não me preocupo com pro blemas com o joelho sei que vai e vol ta já acostumei No início ficava com medo de não poder mais andar Acho que às vezes a pessoa está tão desliga da do problema que se machuca e nem percebeu sente a dor e não sabe como foi F 18 anos acho que quanto mais a pessoa fica pensando no problema é pior Procuro esquecer que tenho problema se ficar pensando nisso acabo não podendo fa zer nada Z faço coisas que as pessoas dizem que não posso fazer O hemofílico sabe que não pode fazer muitas coisas porque os outros estão sempre avisando mesmo assim faz Terapeuta Vocês estão preocupados em saber se nós vamos entendêlos Tantas limita ções Tantas dores F As pessoas não sabem direito o que é hemofilia Ficam perguntando se vamos morrer não dão emprego mesmo que o hemofílico seja bom profissional vão escolher o que não é hemofílico Z estão sempre proibindo nossos movi mentos até os que podemos fazer Terapeuta Vocês precisam provar que são pessoas iguais a todos B 14 anos vi uma propaganda na televisão onde o hemofílico mostrava que poderia san grar até fazendo a barba O hemofíli co pode ferirse até com o espinho da rosa Z uma mulher nunca vai gostar de alguém hemofílico vai escolher alguém que tenha saúde seja fisicamente perfeito e tenha emprego Terapeuta Vocês falam do cuidado que temos que ter com vocês para que não sejam feri dos ainda mais Compreendemos que a comunicação girava em torno da fragilidade sentida em relação ao corpo desde a infância e as queixas com os limites que lhes são impostos O comportamento geral do paciente hemofílico é de se adaptar ao tratamento às repetidas transfu sões ou crioterapia Seu corpo é entregue à institui ção é a submissão por questão de sobrevivência Em grupos com crianças e adolescentes obser vamos que sua passividade era representada em de senhos e também verbalizada como a identificação com Cristo em seu calvário eles são como Cristo têm que entregar os braços para a CruzCRIO Alguns se rebelam e se colocam em situações de risco negando a doença e as frustrações pelas li mitações H 12 anos me sinto mais calmo porque tenho al guém para conversar e que me explica as coisas às vezes tenho raiva de meus pais eles não me compreendem mas cuidam de mim esta semana apertei o pescoço do cachorro B 14 anos sinto raiva de meus pais Liguei para meu pai e reclamei que ele não vem me visitar H tenho raiva de minha irmã que me im pede de brincar B as pessoas não sabem o que é hemofi lia sinto que meus colegas me discrimi Psicossomaticaindd 452 Psicossomaticaindd 452 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 453 nam Outro dia ficaram me perturban do com a história de que eu sangraria até a morte me cortei de propósito e mostrei que não era bem assim hemo filia pra mim é nos joelhos gostaria de esconder que sou hemofílico mas o jo elho não deixa H eu jogo bola quando tenho vontade B Gostaria que descobrissem a cura da he mofilia Nosso objetivo era compreender a psicodinâmi ca do funcionamento mental do paciente hemofílico suas relações familiares institucionais e com a pró pria doença Tentávamos não rotular essas pessoas pois percebíamos que sua identidade já era compro metida Elas se colocavam sempre como hemofílicas não se sentindo homens pessoas Dependiam do san gue dos outros para serem inteiros Junto a outros pa cientes hemofílicos a fusão da pessoa com a doença era reforçada não havia eu havia um eu hemofílico Ser hemofílico é viver apartado dos normais isso era expresso nos relatos das crianças adolescentes e até adultos com hemofilia Em nossos encontros ouvíamos suas histórias que nos revelavam sentimentos vividos desde a mais tenra infância Vivenciamos juntos suas limitações ressentimentos e reivindicações por serem doentes diferenciados pela carência de fator Tentaremos a seguir caracterizar a situação aci ma com um grupo de 8 adolescentes na faixa etária entre 12 e 15 anos Ao iniciarmos o grupo era rotina anotar os no mes dos elementos novos que estavam presentes Nesse grupo havia um jovem de 15 anos não he mofílico que acompanhava um irmão menor Ao per guntamos seu nome um dos componentes G diz imediatamente ele não é hemofílico antes de o rapaz se identificar No início do grupo os garotos se organizaram em torno da mesa voltados para um painel com figu ras desenhadas do Pato Donald Minnie e outros H hoje está mais cheio de gente após algum tempo Tem algo de errado Terapeuta Algo de errado H Não estou conseguindo fazer o dese nho N Eu vou copiar o desenho pode co piar Terapeuta Pode N Está tudo torto Olha só Enquanto isso o acompanhante copiava um dese nho que todos admiravam G pedelhe que faça um desenho H Ele desenha bem trabalha em madei ra faz muitas coisas Terapeuta Ele não é hemofílico H Minha mãe queria ter filhos homens Terapeuta Você não se sente homem H Eu sou hemofílico RELAÇÃO FAMILIAR Com referência às mães atendidas observamos que com o nascimento e a confirmação da doença é como se houvesse uma concretização da fantasia de levar dentro de si algo estragado e destruído Muitas mães mesmo não havendo casos na fa mília sentemse responsáveis pela doença do filho Passam a vivenciar inconscientemente uma culpa experimentando também ambivalências aceitação e rejeição com relação à criança A família se estrutura em torno de conflitos que dificultam a relação entre seus membros Nas que ob servamos muitas vezes a reação do pai era de omis são ou até de abandono do lar reforçando na mãe o sentimento de culpa B 29 anos mãe de dois filhos hemofílicos de 4 e 5 anos diagnóstico de hemofilia quando o filho mais velho tinha pouco mais de 1 ano e o segundo filho já havia nascido Fez o teste confirmando a doença Quando o marido soube que os filhos eram hemofílicos começou a acusála dizendo que ela não se tratara quando devia Começou a se impa cientar com as crianças acusandoas de estarem podres por dentro como a mãe vindo a abandonar a família quando foi diagnosticada AIDS em am bos os filhos Quando o diagnóstico é precoce a relação mãe bebê fica mais vulnerável porque até os cuidados maternos poderiam machucálo provocando hema tomas P mãe de um paciente de 5 anos conta que vá rias vezes ao levantálo do berço quando bebê no tava a formação de manchas roxas no local onde o segurara Em outros relatos aparecem fatos semelhantes como também o surgimento de hematomas nos joe lhos cotovelos e pés ao engatinhar e sangramentos nasais ou de gengivas na época do rompimento dos dentes Observamos vários tipos de conduta reacional A mãe que tendo um filho lesado tenta ter outros sãos com o objetivo de provar a si mesma que é ca paz de gerar filhos bons já que vê seu filho doente como algo mau Nessas mães há uma atitude ambi valente de superproteção ao filho doente em detri mento dos outros vivendo para esse filho Muitas Psicossomaticaindd 453 Psicossomaticaindd 453 05012010 121221 05012010 121221 454 Mello Filho Burd e cols vezes o sentimento de impotência levava as famílias a entregar seus filhos à instituição por se sentirem incapazes de cuidar deles já que outros poderiam fazêlo melhor A 32 anos teve dois filhos homens não tendo conhecimento de casos de hemofilia na família até ser diagnosticada a doença no primeiro filho Mesmo assim resolveu de comum acordo com o marido ter uma segunda criança pois achava que poderia ser uma menina e que devido ao problema do primei ro filho algo poderia lhe acontecer Quando nasceu o segundo menino a reação imediata do marido foi de abandonálo no hospital pela possibilidade de ser portador da deficiência que foi confirmada posterior mente Alguns pais tentavam dar a seus filhos todas as compensações por se sentirem responsáveis por sua doença No discurso dos pacientes era comum a exalta ção da figura materna e um grande medo de perdêla era verbalizado compulsivamente deixando implícitas suas fantasias destrutivas SINAL VERDE PARA O INFERNO Durante algum tempo tentamos ver os pacien tes apenas como portadores de hemofilia porém de paramonos com a impossibilidade de separar hemo filia de AIDS Os pacientes nos revelavam que apesar desses sentimentos era muito difícil tomar conhecimento das probabilidades reais de estarem ou não contami nados Isso não era vivido só por eles os médicos também tinham dificuldade de comunicarlhes o re sultado de seus exames Os pacientes tentavam resolver em nossos en contros as questões referentes à contaminação Mui tas dúvidas eram trazidas sobre a qualidade atual do tratamento e o medo do diagnóstico aparecia com frequência Diriam que a vida do hemofílico era uma constante luta e agora um desafio maior T 20 anos a senhora viu o programa que falava so bre hemofilia e AIDS J 23 anos esse tema me incomoda Agora ser he mofílico é dizer que somos de um grupo de risco W 18 anos todos os lugares só falam sobre isso R 25 anos já sabia de tudo que iam dizer e resolvi dormir cedo para não me atormentar AIDS para o hemofílico é o sinal verde para o inferno T acabou a esperança que havia no CRIO agora ele significa AIDS A todo instante o medo de serem discriminados e abandonados era tema em nossos encontros S 25 anos as pessoas quando descobrem que so mos hemofílicos se afastam F 14 anos gostaria que houvesse mais informa ções sobre as doenças como a AIDS acho que se as pessoas souberem que sou portador do vírus irão se afastar de mim H 15 anos já escutei comentário de colegas na es cola dizendo para se afastarem de mim porque sou hemofílico logo tenho AIDS C 23 anos além do preconceito social agora até os médicos e hospitais estão discriminan do ESTAR ALI Percebemos a necessidade de se sentirem com preendidos e aceitos enquanto hemofílicos e prová veis portadores do vírus e que esse seria um dos as pectos mais importantes a serem trabalhados Víamos aí uma permissão para vivenciarmos com eles os sen timentos de medo discriminação e luto experimen tados com a ameaça do vírus da AIDS já que podería mos ser também contaminadas pelas representações de seus afetos Compreendemos após algum tempo que para o paciente e sua família a AIDS representava a reedi ção da hemofilia tal a intensidade da fusão O adoe cer e conviver com a hemofilia era revivido quando se sentiam contaminados pela AIDS Todas as expe riências primitivas de abandono rejeição limitações físicas e afetivas são reacendidas Após alguns meses modificamos a organiza ção do atendimento numa tentativa de sistematizar melhor o trabalho Os atendimentos passaram a ser em vários locais na enfermaria num consultório na própria instituição ambulatório e na casaalbergue Nossa preocupação principal era estar ali disponí veis para ouvir e acompanhar No ambulatório tínhamos como objetivo apro veitar o atendimento médico ao paciente para incluir nossa consulta pois achávamos importante que hou vesse um contato com cada um Sentíamosnos apreensivas quanto a qualidade e validade desses atendimentos pois alguns compa reciam apenas uma vez A maioria dos casos que nos eram encaminhados expressava a angústia do paciente e a do médico de lidarem com a nova situação Após a descoberta de que o vírus estava vinculado ao CRIO muitos abandonaram a rotina de tratamento só apa Psicossomaticaindd 454 Psicossomaticaindd 454 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 455 recendo quando a situação era muito grave Algumas vezes o médico encaminhava o paciente para nosso setor quando ele relutava em aceitar o tratamento ambos tinham dificuldade de entrar em contato com o diagnóstico Em outras ocasiões éramos solicitadas quando havia ameaça de suicídio Recebíamos na maioria das vezes o paciente deprimido e desesperado não aceitando mais os cui dados médicos O diagnóstico era vivido como uma sentença de morte para esses pacientes que acompa nhavam o adoecer e a desintegração dos amigos Ao contemplálos sentiam seu destino determinado Os familiares também relutavam em frequentar a instituição Nosso trabalho de apoio aos membros da família visava a diminuir a ansiedade frente à si tuação de perda iminente e tentávamos ajudálos a ficar junto ao paciente Acreditamos que a situação já vivenciada por essas pessoas com a doença de base era um fator agravante impedindo uma aproxima ção por envolver sentimentos de culpa e ansiedade persecutória desde os primórdios da relação Atendíamos principalmente mães cujos filhos se encontravam internados na enfermaria pela dispo nibilidade e grau de angústia em que elas se encon travam Os cuidados que essas mães tinham com os fi lhos que antes eram só hemofílicos agora com o ad vento da AIDS são reforçados As mães sentiamse responsáveis pela doença primeira e agora também pela contaminação e morte O sentimento de culpa é agravado e vivido muito mais intensamente Algu mas mães voltavamse exclusivamente para esse filho doen te abandonando todas as suas outras atividades e também a família R 35 anos tinha três filhos sendo o mais novo J 10 anos portador de hemofilia e com vários casos da deficiência registrados na família J estava inte mado na enfermaria com um quadro avançado de in fecção no SNC apresentando hemiplegia e afasia R encontravase internada juntamente com o filho há mais de 30 dias durante os quais permanecia quase ininterruptamente a sua cabeceira Sentiase muito culpada pelo abandono de seus dois outros filhos de 15 e 12 anos Relatava que eles cobravam sua pre sença principalmente o mais novo que estaria co meçando a apresentar dificuldades escolares Falava também do quanto era intenso o sofrimento na en fermaria R não conseguia afastarse do filho mesmo tendo uma pessoa da família com quem segundo a mãe ele ficava tranquilo Dizia em seu relato sou eu quem tenho que ficar com ele eu é que sou a mãe dele eu é que tenho que sofrer com ele Esse comportamento era comum Muitas mães pediam para serem atendidas na própria enfermaria pela dificuldade de se separarem do filho Em outros casos mães sentiam dificuldade de acompanhar o filho doente e até mesmo de visitálo com frequência deixandoo abandonado na enfer maria Ver o filho emagrecido e consumido era dolo roso para essa mãe Ela revive a culpa por têlo feito doente e não suporta ver sua morte F 38 anos teve 8 filhos sendo 6 homens dos quais 4 faleceram bebês Sobreviveram o mais velho e C 11 anos portador de hemofilia F não conseguiu assistir o filho quando nos pe ríodos de intemação fazendo visitas rápidas e esporá dicas e reafirmando que não suportava vêlo sofrendo tanto Dizia eu não suporto vêlo morrendo as pessoas não entendem e ficam me cobrando Em sua primeira entrevista F demonstrava vi sivelmente seu sentimento de culpa por tantos filhos falecidos Num momento de grande ansiedade rela tou eu não tive culpa por meus filhos serem he mofílicos e terem morrido eu não sabia dessa doen ça Se soubesse não teria tido tantos filhos perdia um tentava outro Também era comum encontrar o leito da criança repleto de presentes não condizentes com a realidade econômica da família Compreendíamos que representavam não só uma compensação mas também uma forma de a mãe apaziguar sua própria culpa Em alguns momentos esposas de pacientes pro curavam nosso setor em busca de apoio por terem conhecímento do diagnóstico do marido e de possi bilidades de contaminação sobretudo as que haviam sido informadas do resultado soropositivo de seus próprios exames Atendimento a casal era raro em função do clima acusatório existente A ANGÚSTIA DO VIR A MORRER Nossa equipe vivenciou um dos momentos mais difíceis em nossa trajetória na instituição ao transpor a porta da enfermaria Sabíamos que esse local havia sido criado com a finalidade de atender à demanda que emergia fren te à nova realidade passando a ter a representação da morte A necessidade de internação era vivencia da pelo paciente como a confirmação da AIDS Certa vez um paciente comparou a enfermidade a Alcatraz quando disse é difícil entrar Ficou claro seu ato fa lho e sua alusão inconsciente à fantasia que faziam de que aquele que é internado não tem mais retorno Perguntávamos a nós mesmos que fazer naquele espaço de 20 leitos muito próximos que revelava a cada paciente a situação ao lado e que fazia com que juntos vivessem todas as situações de emergência que ocorriam a sua volta Psicossomaticaindd 455 Psicossomaticaindd 455 05012010 121222 05012010 121222 456 Mello Filho Burd e cols Em determinado momento quando duas psicó logas estavam atendendo dois pacientes individual mente na enfermaria ocorreu uma emergência V 40 anos havia feito uma cirurgia de amputação do membro inferior esquerdo até a altura da coxa Quando estava sendo atendido a enfermeira pede licença para fazer o curativo diário O paciente ao ser manipulado tem uma hemorragia grave e às pressas ocorre o atendimento de emergência A te rapeuta permanece no local e pelo olhar do paciente é percebido como é importante que a psicóloga possa estar presente naquele momento Nada é possível di zer mas tudo é dito através do olhar Não foi fácil vivermos aqueles momentos O so frimento que nos causavam era muito intenso mas a necessidade dos pacientes era maior e nos fazia do minar o pânico e o medo de sermos contaminados pela AIDS para dar a eles mais afeto A cada instante nos questionávamos sobre o que dizer para o paciente internado na enfermaria que vivenciava sentimentos de luto e perda dos com panheiros e sofria a mesma desintegração do corpo que caracteriza o estigma da AIDS A angústia do vir a morrer ou estar morrendo sobrepõese a do como morrer Era a permanente convivência com a morte que estava no paciente nos exames na internação e na medicação Há que se evadir do frasco negro Fujizon medicação que vinha envolvida em plástico preto e que era um dos últimos recursos tentados À medida que o tempo passava envolvíamosnos cada vez mais com o trabalho e percebíamos que para aquela pessoa deitada no leito o mais importante era saber que estávamos ali partilhando até do silêncio silêncio que se nos infiltrava e provocava sentimentos de impotência e inutilidade Percebemos que estáva mos juntos no silêncio ou no discurso para aplacar os sentimentos de solidão e abandono que nesse momen to eram vivenciados mais intensamente L 16 anos que fora acompanhado por uma psi cóloga da equipe desde suas primeiras internações já em seus últimos dias de vida que expirava visivel mente às vezes parecia não perceber a psicóloga que chegava próximo a seu leito e trocava algumas pala vras com sua mãe ou simplesmente ali permanecia por algum tempo durante o qual L praticamente não se manifestava No momento em que a terapeuta co municava que iria se retirar L lamentava e solicitava que permanecesse mais um pouco A necessidade de um isolamento por parte de alguns pacientes se mostrava através de seu silêncio Em várias situações repetiuse o fato de eles silen ciarem poucos momentos antes de morrer como se nos dissessem que nada mais tinham a falar só o silêncio fala Z 28 anos internado na enfermaria em seu último encontro com a psicóloga tentava sintonizar sem conseguir seu rádio e após algum tempo diz Não adianta ele não quer mais falar B 11 anos deitado em seu leito pede à psicólo ga que o cubra A terapeuta atende a seu pedido e se despede Ao chegar à porta ele solicita que retome e quando ela se aproxima ele diz Tia cobre até a minha boca por favor Em ambos os casos os pacientes permaneceram calados até seu momento final que ocorreu num cur to espaço de tempo A PSICOLA A CASA DO HEMOFICO Ao iniciamos o trabalho com os pacientes que vi viam na casaalbergue sentíamosnos como observado ras e recreadoras Resolvemos utilizar material como lápis papel cola etc com as seguintes finalidades 1 permitir nossa aproximação dos pacientes de for ma menos ameaçadora pois era assim que nos sentíamos 2 aplacar nossa ansiedade ante a possibilidade de encontrar em alguns dias a mesa vazia 3 facilitar a relação pacienteterapeuta Os dias em que não compareciam eram vazios a acreditáva mos que eles estavam nos testando O material que nos traziam nesses primeiros momentos eram desenhos representados por minús culos corações flores casinhas sobre finas palafitas bonecos com os membros superiores ou inferiores atrofiados As figuras eram vazias apresentando só o contorno Os bonecos feitos com argila eram peque nos e frágeis e quebravamse ao serem manuseados O silêncio predominava no grupo e a comunicação se dava praticamente através dos trabalhos Compre endíamos O quanto essa fragilidade e o vazio repre sentavam seus próprios sentimentos e a percepção de si mesmos Esse período foi longo e com o tempo as faltas foram se espaçando e os testes pelos quais pas sávamos iam mudando Durante alguns meses os pacientes foram aten didos no refeitório Porém ocorreu por acaso uma mudança para uma sala mais reservada onde se sen tiram mais à vontade Solicitaram então que os en contros passassem a se realizar ali A mudança facilitou o relacionamento com os pacientes que passaram a se revelar mais permitin do maior intimidade Alguns tinham hemorragias outros traziam se ringas usadas brincando com elas à mesa Traziam Psicossomaticaindd 456 Psicossomaticaindd 456 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 457 concretamente suas representações do que era hemo filia e AIDS Sentíamos a ameaça que pairava sobre nós e os pacientes quando as seringas e as hemorragias tra ziam o sangue contaminado Não desconhecíamos os riscos reais tendo muitas vezes que estipular limites para eles dar explicações sobre os cuidados que de veriam ter e lidar com os nossos próprios medos e fantasias Percebíamos que o paciente nos mostrava como era perigoso se ligar a ele como esse afetoAIDS era arriscado Vivíamos o drama juntos e muitas vezes o paciente era medicado diante de nós Trabalhávamos dentro de nossos limites ou não suportaríamos dar continuidade à nossa relação e ao mesmo tempo éramos cautelosas com os sentimentos dos pacientes ao falarmos dos riscos de contaminação A proporção que o vínculo terapêutico ia se consolidando os pacientes crianças e adolescentes começaram a se colocar verbalmente contando e de senhando histórias assustadoras de monstros que os aterrorizavam de morcegos que muitas vezes vinham representados por figuras de vampiros de superhe róis e finalmente de caveiras As caveiras e os morcegos são os vilões de uma história de terror e representam a ameaça de morte ou de final trágico É com os superheróis que eles nos solicitam a força para combater o inimigo hemo filia AIDS e morte Em determinados momentos os desenhos re presentavam árvores chorando e pedindo SOS para que não deixassem a natureza morrer vitimada pela poluição Outras vezes caricaturas nos transmitiam uma ideia de desintegrações coincidindo com a mor te de algum colega Nos desenhos os pacientes falam de suas vivên cias internas do medo e das perdas Mais do que isso do sofrimento que é morrer de AIDS de como são di fíceis o emagrecimento a queda dos cabelos e como são dolorosas as transformações em seus corpos que já vêm se modificando ao longo de suas vidas por conta da hemofilia Através dos desenhos do discurso e dramati zações com forma e cores diferentes juntos vimos muitas vezes a morte se anunciar B 5 anos paciente de repetidas entradas na enfermaria com toxoplasmose albergado na casa certa vez estava com as duas psicólogas na sala de atendimento Pediunos permissão para fechar a por ta a chave fechar as janelas e apagar a luz Executou essas ações rapidamente e assim ficamos no escuro B diz então está vendo alguma coisa Quando traziam situações muito ameaçadoras como que para suavizar o grupo seguinte falava do belo do luminoso de alegrias e esperança de vida em desenhos de estrela sol e figuras da Disney Falavam de algo que cintilava no céu Compreendíamos também que nos mostravam a outra face da morte o que se tornou possível por es tarmos juntos Eram crianças eram jovens também tinham direito ao sonho e à vida A interrupção do trabalho se deu após três anos em consequência de questões institucionais Era difí cil para esses pacientes lidarem com os sentimentos de abandono e perda Devido a isso a separação foi trabalhada durante três meses Foi um momento difícil tanto para os pacientes quanto para a equipe composta de quatro psicólogas e uma supervisora Tivemos a oportunidade de atender entre am bulatório casaalbergue e enfermaria cerca de 200 pacientes e familiares CONSIDERAÇÕES FINAIS Como relatamos de início o trabalho se deu numa instituição que atende exclusivamente a pa cientes hemofílicos em sua grande maioria de bai xo poder aquisitivo É uma amostragem específica e nossas conclusões são baseadas nesta experiência Descrevêla foi muito difícil por termos de reviver momentos dramáticos e dolorosos Observamos durante a evolução do nosso tra balho que o processo de adoecer de AIDS revivia todo o processo da hemofilia O hemofílico antes da contaminação do vírus da AIDS já convivia com uma deficiência crônica Já precocemente lhe são impostos limites que ao longo de seu crescimento o fazem sentirse inca pacitado e não dono de si próprio Sentese à parte até dentro da própria família Seu corpo é compro metido com as repetidas intervenções que sofre por conta da carência de fator A fantasia é de um corpo vazio preenchido pelo sangue de outros seu eu é hemofílico não se sente pessoa A partir do momento em que toma consciência de pertencer a um grupo de risco passa a viver um estar contaminado pelo vírus É a comunidade em identificação onde todos são iguais e têm inscrito o mesmo passado presente e futuro A AIDS reedita a dor as limitações as ameaças as perdas o isolamen to e a morte Com a evolução de nosso trabalho fomos perce bendo as semelhanças e as diferenças existentes en tre ser hemofílico apenas e sêlo com AIDS Descobri mos muito mais semelhanças que diferenças A nova Psicossomaticaindd 457 Psicossomaticaindd 457 05012010 121222 05012010 121222 458 Mello Filho Burd e cols doença vem selar todas as deficiências e dificuldades existentes na vida do paciente A ameaça de morte que sempre esteve presente na vida do hemofílico toma uma forma mais concreta Mergulhamos juntas buscando os significados de ser hemofílico de ter AIDS Muita angústia em cada contato com estes seres com sua humanidade comprometida desde a infância dependentes do san gue de outros não podendo ter existência própria A mesma dependência que os tomou portadores do vírus da AIDS Sofremos juntos buscando integrálos dentro de uma realidade impossível Lidamos o tempo inteiro com nossa onipotência descobrimos a dor as perdas e nossas limitações de pacientespsicólogas dentro de um universo de absurdos Como conviver com a morte sem ver a própria No ambulatório enfermaria e casa do hemofico como era designada pelos adolescentes partilha mos e acreditamos que nossa presença psicola como por vezes nos chamaram era conforto porto ouvido e colo Fomos juntas ao fundo do poço partilhando do silêncio frente ao irremediável e buscando juntas a esperança de mais um dia e de menos sofrimento dandonos como companhia nessa jornada Somos muito gratas à instituição aos pacientes e a seus familiares por nos terem permitido essa vi vência POSTSCRIPTUM Virgínia Fontenelle O ano foi 1988 O Centro de Medicina Psicos somática me designou junto com quatro psicólogas para dar suporte a uma Instituição que tratava de he mofílicos a pedido de seu Diretor No capítulo temos o relato do que foi desenvol vido em aproximadamente três anos Ao me reportar a este período pareceume que não estava muito claro o fato de termos trabalhado a Instituição como um todo trabalho que envolveu médicos enfermeiros técnicos e até pessoas que de tinham ofícios mais simples O sentimento presente era de desolação e luto ao se colocarem como responsáveis pela contamina ção e desenvolvimento da doença E mesmo que já houvesse certo controle sobre as doações e preparo do CRIO muitos foram contaminados desenvolve ram a doença e estavam morrendo O Diretor da Instituição disse certa vez É o Titanic e o iceberg a AIDS Neste período a morte era constante Com o advento de novas tecnologias o hemofí lico voltou a poder ver o tratamento como uma pos sibilidade de uma melhor qualidade de vida e não o pesadelo que aconteceu há 20 anos REFERÊNCIAS Aberastury A et al Adolescencia Buenos Aires Kargieman 1971 Kreisler L Fain M Soulé M A criança e seu corpo Psicosso mática da primeira infância Rio de Janeiro Zahar 1981 Mannoni M A criança sua doença e outros Rio de Janeiro Zahar 1971 KühlerRoss E AIDS o desaûo tînal São Paulo Best Seller 1988 Sobre a morte e o morrer São Paulo Martins Fontes 1987 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1979 Osório L C et al Grupoterapia hoje Porto Alegre Artes Médi cas 1986 Perestrello D A Medicina da pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1982 Rivière P O Processo grupal São Paulo Martins Fontes 1986 Psicossomaticaindd 458 Psicossomaticaindd 458 05012010 121222 05012010 121222 PARTE 6 Trabalhos originais Psicossomaticaindd 459 Psicossomaticaindd 459 05012010 121222 05012010 121222 O MITO DA FÊNIX O medo da morte e a impotente rendição do homem ante a inexorabilidade da sua condição es tabelecem no individuo o reforço das fantasias de suporte à negação promordial sua finitude Tornase necessário que o indivíduo não morra busque a juventude eterna se isso falha parte para a ressurreição de uma nova vida ainda que sob novas formas ou em outras épocas Até que vencido pela realidade descubra que sua angústia só se aplaca quando encontra o resgate de sua história pessoal da consciência de sua identidade e que a ideia de sua continuidade passado presente e a ideia sobre si mesmo pode atrevêlo ao projeto de um futuro e à aceitação da morte como uma completação A história do pensamento do Homem ao longo dos séculos está povoada de fantasias de ressurrei ção Desde as deusas da fertilização adoradas pelo mistério da gravidez e da fertilidade dos solos pelas marés aos adoradores do Sol sempre ressurgente aos ritos de sacrifícios canibalísticos e de fecundação do solo com o sangue e os genitais das vítimas para o alcance da ressurreição aos mitos criogênicos atuais o Homem persegue o renascer e tenta transformar a morte num novo começo de si mesmo Das descobertas arqueológicas ainda protohis tóricas de tumbas contendo utensílios da vida diária dos registros da Antiguidade préclássica sobre a vida após a morte mostrase o Homem preocupado com a ressurreição a transmigração e a transmutação da alma Assim nos ensinam os Vedas em que a luta de Vishnu contra Siva busca a paz interior e a conquista de uma vida melhor após a morte assim registram os egípcios desde o período prédinástico no seu culto da morte Foi entre os egípcios de seitas de adorado res do Sol que surgiu o mito da Fênix ave fantástica que após a morte renascia das cinzas e posteriormen te como símbolo representava o deus Osíris além de ser o emblema dos que regressavam de viagens longas decorava monumentos erigidos por monar cas do Egito que voltaram vitoriosos ao pais Exis tem também registros sobre a Fênix na China cujo mito parece ter surgido ali cerca de 4000 anos aC no ciclo dos imperadores celestes Na Creta antiga a miscigenação cultural das influências persas chi nesas e egípcias fez migrar a ave fantástica através dos gregos à nossa civilização Existem também des crições detalhadas da Fênix no livro II da História de Heródoto na História Natural de Plínio e nos escritos do romano Manillo O pássaro é retratado como se melhante à águia com pescoço e asas douradas com penacho rubro e que de 570 em 570 anos morre e de seus ossos nasce o embrião da nova Fênix que en volve os restos mortais em incenso e canela e voa até Pancail a cidade do Sol onde deposita seus despojos e retorna para mais meio milênio de vida Morrer dormir talvez sonhar despindo a mor talha perecivel do corpo como recita Shakespeare Na impossibilidade de derrotar a morte o Ho mem a ela se alia como meio de alcançar o sonho da ressurreição O encontro dos mitos e a cosmovisão da regênesis Sob a ótica da nossa compreensão Narciso e Fê nix se completam Quando Liríope ninfa das águas engravida de Narciso indesejado filho esta o amaldiçoa antes do agouro de Tirésias aquele que só viveria enquanto não se conhecesse Depois ele é amaldiçoado com esta mesma profecia pela ninfa Eco cujo amor desprezou Quando se vê refletido no lago entra em pro funda depressão e desistindo de comer e de beber tenta anoreticamente destruir não sua vida mas a imagem que vislumbrou Porém e este ponto é fun damental não busca a morte pois voltando à água líquido amniótico ou as forças primitivas do incons ciente tenta uma nova chance renascendo das pró prias águas e se encantando em flor 37 REGÊNESIS O MITO DA FÊNIX EM PSICOSSOMÁTICA Samuel Hulak George Lederman Psicossomaticaindd 461 Psicossomaticaindd 461 05012010 121222 05012010 121222 462 Mello Filho Burd e cols O encontro dos mitos e a observação clínica dos autores lhes permitem a introdução do conceito da Regênesis como a fantasia da busca da regeneração cuja intensidade é tão fortemente desejada que pode mobilizar as ordens destrutivas do organismo permi tindo a produção de doenças psicossomáticas severas com intenção letal mas visando à construção de um novo ser A procura da regeneração parece ser um tactis mo universal Desde as Supernovas que se formam a partir da energia resultante da morte de estrelas até em nível microcósmico no âmbito da vida celular podemos observar esse fenômeno Os mais recentes estudos sobre Genética e Imunologia têm sido feitos a partir das teorias sobre recombinação somática No cromossomo a informação genética não viria pronta acabada resultaria de múltiplas tentativas de acerto com eliminação de erros até que a combinação correta se estabelecesse O alfabeto da vida único e o mesmo na sua mistura de letras se vê combinado e recom binado sucessivamente até serem escritas as palavras certas Assim as células se diferenciam e se especia lizam assim são maturados os linfócitos B e escritos os anticorpos assim são compreendidos os papéis dos protooncogenes e dos oncogenes e assim se processa a vida num contínuo destruir de ordens perversas com volta ao caos da indiferenciação e reaproveitamento do material genético para uma nova chance à vida presidida portanto pela égide de Eros CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS A partir da discussão de casos clínicos acompa nhados nos últimos cinco anos observam os autores que certos pacientes apresentam por sua patologia peculiar suas histórias clínicas e pelo decurso tera pêutico características comuns que genericamente configuram o seguinte perfil inaceitação do próprio esquema corporal com a fantasia de não habitarem o próprio corpo fantasia de serem outra pessoa que nunca conhe ceram e de estarem carregando uma falsa exis tência que lhes foi imposta falta de criatividade e presença de discurso repro dutivo por exemplo citação de provérbios etc existência de somatizações severas com risco le tal apesar de paradoxalmente desejarem o tra tamento e a vida sentimentos de distanciamento físico do corpo da mãe por exemplo não me lembro de minha mãe terme posto no colo história de mães superprotetoras mas pouco afe tuosas história de terem sido gerados indesejadamente ou por acidente Nestes pacientes a existência de uma patologia muito destrutiva compreensível em patologia narcí sica se contrapunha ao intenso desejo de viver de se cuidarem terapeuticamente e de virem a ser final mente uma nova pessoa O presente trabalho refletindo as conclusões a que até o momento chegaram os autores visa a ofe recer uma tentativa de compreensão psicodinâmica e de abordagem terapêutica desses pacientes Os casos estudados e discutidos fizeram e fazem parte da clientela privada de cada um dos autores Es ses pacientes apresentam uma peculiaridade que lhes é comum mesmo com patologias graves em que desde o suicídio psíquico da negação de si mesmo que pode conduzir à despersonalização psicótica aos quadros de somatizações severas doenças autoimu nes tais como doença de Wegener lupo artrite reuma toide infertilidade por anticorpos tumores malignos da mama e da tireoide e dois casos de anorexia ner vosa que poderiam levar ao óbito esses pacientes no decorrer do tratamento transmitiam claramente seu desejo de viver Diziam frequentemente Eu não quero morrer desejo ser outra pessoa ou Eu quero é matar esta pessoa que odeio dentro de mim Entre tanto a anamnese desses pacientes também apresen tava outra similitude foram filhos de mães secas de afeto pouco amorosas insuficientes na compreensão de suas necessidades e que mesmo quando se desve lavam em cuidados o faziam como governantas ou babás e não como mães substituíam a maternagem pela governança Foram ademais crianças tímidas retraídas certinhas e bem comportadas uma das pacientes relembra com muito ódio os vestidinhos brancos de babados e os cachinhos bem cuidados nos cabelos e de como tinha de se comportar para não se desarrumar Poucos apresentaram somatizações importantes na infância Um dos pacientes teve asma brônquica dos 2 aos 15 anos e posteriormente rini te e cistite recorrentes que o acompanham até os 34 anos de idade outro provoca mutilações na pele des de os 5 anos e outro reabre uma lesão eczematosa surgida aos 8 anos toda vez que tenta se libertar da mãe Fora essas exceções as somatizações e os distúr bios de conduta eclodiram na adolescência Em todos os casos a relação ambivalente com a mãe é intensa Mesmo numa das pacientes que foi abandonada pela mãe quando tinha menos de 2 anos de idade ao lado de um ódio profundo persiste a melancólica cobran ça pelo débito irreparável Costuma essa paciente hoje com 32 anos ainda passar disfarçadamente de carro pelo prédio onde mora a mãe ou telefonar para ela desligando após o primeiro alô recentemente Psicossomaticaindd 462 Psicossomaticaindd 462 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 463 no meio de uma sessão essa paciente sob intenso choro convulso com um misto de ódio dor e pro funda tristeza esmurrando seu próprio peito grita va Estou sentindo uma dor muito grande a maior dor que existe a dor de saber que perdi o que nunca tive A compreensão diagnóstica dos autores sobre esses pacientes foi e continua sendo a de que eles apresentam uma patologia narcísica e têm um falso self Cabe agora uma breve digressão para facilitar a exposição posterior Referimonos à sumarização de dois conceitos de Winnicott de importância para a conpreensão deste trabalho os conceitos de espaço potencial e de falso self Existe uma área entre a mãe e seu bebê que representa um espaço que Winnicott denominou de potencial Segundo esse autor nesse parêntese da existência humana ocorrem fenômenos e experiên cias transicionais indispensáveis à sadia individuação da pessoa A mãe suficientemente boa que é capaz de compreender o filho lactente e de tolerar sua indi viduação também é capaz de distinguir entre sozi nhez solidão e abandono permitindo que a criança fique sozinha sem se sentir nem abandonada nem solitária e possa preencher essa sozinhez com con solos substitutivos da ausênciapresença da mãe que por ela vela mas não abafa A comunicação verbal e subverbal os afagos a demonstração de amor o atendimento e o entendimento na hora e na dose cer ta a chupeta os primeiros brinquedos vão substituir a mãe diminuir a angústia da separação e permitir que nesse espaço subjetivo transformado em labo ratório do ser a criança construa seus primeiros sím bolos as primeiras distinções entre o eu e o não eu as vivências de objetos internos e externos e o que nos parece muito importante a vivência da existência de um outro espaço determinando a fronteira mãe bebê que é o espaço potencial Esse espaço à me dida que se preenche e se alarga num crescimento sem fronteiras possibilita o exercício do universo que abrigará a criatividade a liberdade a capacidade de fantasiar e de amar Essa mãe suficientemente boa também reforça o ego ainda débil do filho alimentando sua onipo tência permitindo que a criança desenvolva um self próprio e verdadeiro A mãe que falha em satisfazer essas necessidades psicológicas básicas do bebê subs titui as necessidades da criança pela manifestação de seus próprios desejos dando início à construção de um falso self que se submete a aceitar um nãoeu e não consegue diferenciar aquilo que lhe seja próprio Entretanto depreendem os autores através de suas observações que merecem distinção duas condições clínicas de falso self que para efeito de melhor expo sição passam doravante a ser denominadas de falso self suposto e falso self imposto ambas como subdi visões do conceito genérico de falso self A noção de pertinência e territorialidade é fundamental para a compreensão dessas duas condições A identidade humana passa pela capacidade global e integrada de reconhecimento do espaço do indivíduo seu conteúdo e seu continente pessoal e da relação dele com o mundo passa pela aptidão de reconhecer o que lhe é e o que não lhe é pertinente e nessa consciência a distinção do que mesmo não lhe sendo próprio poderá vir a sêlo por adoção de acordo com a sua necessidade por exemplo na in corporação de proteínas dos alimentos ou na incorpo ração psíquica de objetos externos os quais aceita e passam a ser seus A mãe que não deseja ou não tolera a individua ção do seu filho colaba o espaço potencial nestes casos não ocorre um estado fusional mas um colaba mento e é neste estreito limite que e sem adoção por parte da criança as necessidades e desejos da mãe são impostos Forçada a uma identificação sem iden tidade a criança ou assume a personagem que lhe é oferecida ou pelo medo de ser desamada e destruí da sucumbe e se submete Ocorre portanto não a aceitação e sim a submissão a um papel que passará a desempenhar Alguns indivíduos conseguem ir se equilibrando na vida com a assunção desse desempe nho que supostamente demonstram aceitar outros não vivem essa condição com ódio e revolta contra pondose a uma falsa pessoa que lhes foi imposta e contra a qual reagem com o mesmo rancor que têm pela mãe Enquanto o falso self suposto corresponde ao indivíduo que sacrificou sua pessoa em favor de uma personagem alguém que buscou a identidade mas permaneceu na identificação mimeticamente imitando e investindo numa personagem através da qual se comunica com o mundo referencial o falso self imposto vive a tragédia de não ser ele mesmo por não lhe terem permitido a construção do seu self e a dor dessa inaceitação com o aturdimento de não sa ber como elaborar essa reparação Não só os conflitos não resolvidos da mãe mas também outras variáveis já existentes na préhistória da criança determinam um papel uma expectativa e a inexorável imposição de ter que ser aquele que sua família nuclear precisou que fosse instrumentando uma mãe suficientemente boa para tal mister Existem famílias ou indivíduos que por atendimento de suas necessidades psicóti cas carecem forrar por antecipação o berço de um self imposto Há os que precisam de um salvador há os que necessitam de um unificador que venha para juntar separações ou negociar contendas outros desejam se agarrar a reparadores que venham para substituir mortos importantes cujos lutos nunca fo Psicossomaticaindd 463 Psicossomaticaindd 463 05012010 121222 05012010 121222 464 Mello Filho Burd e cols ram elaborados e existem os continuadores que nascem para tentar realizar egos idealizados cujas frustrações nunca foram suportadas Estes selves impostos verdadeiros Dibuks incor porados são instrumentados Já entram em cena com script e personagens compostos O colabamento do seu espaço potencial não permite a realização da in dividuação enquanto pouco a pouco eficazmente lhes são transmitidas as instruções de como se espe ra que eles sejam São mães que cuidam vigiam e atendem como mordomos competentes e sem afeto cuidam mas não abastecem de amor a pessoa de seus filhos aos quais exibem a imago da sua personagem substituem a função especular pela projeção do ob jeto imposto Resta a criança a psicótica relação com um objeto fora de seu universo Ao indivíduo com fragilidade egóica genética sobrará o caminho do autismo ou da psicose e aos de melhor condição de defesa a estratégia de tolerar o jogo até o desenca deamento posterior das dramáticas batalhas para a rejeição do implante e as tentativas de conquistar sua própria identidade Chamamos também a atenção para as diferenças clínicas marcantes entre as duas situações descritas O falso self suposto necessita manter esta situação pe los ganhos secundários dela advindos sente sua pessoa tão fragilizada que o escudo da personagem mesmo frustrando na obtenção do afeto real de autoestima e respeito próprio promove a proteção requerida e o brilho ilusório do sucesso em suas relações circun dantes Já o imposto por sua vez luta com desespero para rejeitar o implante impertinente da criatura que não escolheu ser mesmo que tenha que ordenar a suas forças biológicas de destruição para ferir o corpo que sente como não sendo seu No primeiro caso do self suposto o indivíduo não se permite abrir mão da defe sa e no segundo caso o indivíduo luta para ser outra pessoa a pessoa dele que talvez nunca tenha conhe cido No falso self suposto as somatizações são de me nor monta e a busca de ajuda especializada não se faz ou quando ocorre o tratamento será abandonado ou sabotado sedutoramente o falso self imposto por sua vez deseja ser ajudado e é mais frequentemente alvo de somatizações graves através das quais tenta expul sar o objeto mau imposto ainda que nesta destruição tente voltar ao caos com a fantasia de regeneração de outra pessoa Como Freud já ensinou que nas situações de in diferenciamento Eros e Tânatos se confundem pare cenos que tal fusão deve ser vista como a expressão mais forte de energia geradora e numa situação que permite seja entendida a dialética da vida e do pró prio gênesis que surgiu do caos Destacamos entretanto que os autores não consideram esta busca de uma nova pessoa nem como uma idealização do ego nem como a procura de soluções através da morte numa tentativa de re gressão fusional Na Regênesis o caminho nos parece ser outro o indivíduo busca realocar a libido de volta para o id a fim de obter chance de outra tentativa para renascer Existe o sacrifício do ego para a recom binação que resulte num novo self CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS Entendem os autores que há necessidade de modificações na abordagem técnica no tratamento de pacientes com patologias narcísicas Considerando que o objetivo do tratamento desses pacientes é conseguir ajudálos a encontrar um verdadeiro self pensam constituir o setting como espaço potencial onde se daria o resgate de uma re lação didática suficientemente boa para tal fim Jul gam ser de grande importância o cuidado para que esse setting não se constitua numa reprodução do frustrante espaço colabado que não permite o direito à indivi duação Propõem para tal mister que tati camente seria ruinosa a utilização de interpretações precoces Sugerem sejam utilizadas nestas situações inicialmente as técnicas de clarificação e de eco para posteriormente com o paciente egoicamente mais reforçado suportar confrontações que ajudariam seu processo de reconhecimento do eu e do não eu para só conseguirem absorver então o material interpre tado Os autores centram as modificações técnicas no terapeutae na relação Cabe ao terapeuta com esses pacientes aceitar durante algum tempo a admira ção e a idealização de seu paciente interpretações precoces dessa transferência poderiam ocasionar en traves ao processo terapêutico O terapeuta constitui para o paciente um objeto transacional do qual ele paciente precisará utilizarse à medida que construir seu próprio self para poder um dia separarse no seu processo de individuação Observam os autores que frequentemente esses pacientes tendem a discor dar com veemência das interpretações dadas pelo terapeuta e não aceitálas Essas atitudes nem sempre traduzem resistência ao tratamento mas sim fazem parte das necessidades desses pacientes de se dife renciarem dos seus terapeutas objetivando suas indi vidualidades Na experiência dos autores tornase de extrema importância que o terapeuta se dê conta de sua contratransferência pois no início do tratamento esses pacientes se sentem colabados com o terapeuta numa relação selfobjeto Isso pode despertar por ve zes sentimentos de angústia inquietação e irritação nos terapeutas este estado de fusão pode promover vivências primitivas de sua própria infância ocasio Psicossomaticaindd 464 Psicossomaticaindd 464 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 465 nando interpretações que obstaculizariam o desen volvimento do tratamento Pelo exposto seria recomendada para estas pa tologias a abordagem terapêutica através de psicote rapia de base analítica ou de análise que possibilite na sua fase inicial aceitar transferência especulares e idealizadoras CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentam os autores como resultado de suas observações clínicas e estudos entre si mantidos nos últimos anos as seguintes conclusões parece que certos pacientes portadores de patologias narcísicas agem com um tipo peculiar de falso self que deno minam de falso self imposto e que se diferencia do conceito genérico de falso self descrito por Winnicott Para efeito de distinção propõem que os falsos selves se classifiquem como supostos e impostos e estabele çam diferenças clínicas e psicodinâmicas entre eles Sustentam também que uma das característi cas mais marcantes do falso self imposto é a sua ten dência para somatizações severas buscando êxito letal como forma de em suas fantasias renascerem com o direito a um verdadeiro self propõem ainda que nestes casos os mecanismos de autodestruição mobilizariam as ordens tanáticas do organismo via imune apoiados na compreensão da recombinação somática e das atuais teorias sobre doenças autoimu nes Neste caso Tânatos seria um mero instrumento de Eros e certas condições mórbidas seriam compre endidas como um apelo à vida e ao direito de viver Chamam esse mecanismo de Regênesis Sugerem a releitura do mito de Narciso como complementação do mito da Fênix e uma modifica ção técnica na abordagem destes casos que consisti ria em terapias que possibilitem a aceitação de trans ferências especulares e idealizadoras Finalmente deixam o tema em aberto para fu turos estudos REFERÊNCIAS Bacal H A British objetcs relations theorics and self psychology Some criticai reflection In J Psychoanal Toronto v 68 n 81 1987 Bona C A Edit Molecular basis of the immune response Annals of the New York Academy of Sciences New York v 546 1968 Davis M Wallbridge D Limite e espaço Rio de Janeiro lmago 1982 Doin C Reflexões sobre o espelho Bol Cient Soc Psicanal do Rio de Janeiro n 16p 137 1985 Will D História da civilização 2 ed tomos 12 Rio de Janeiro Record 1973 Enciclopedia universal ilustrada v 23 Madrid Europeo americana 1924 Etchegoyen H R Fundamentos da técnica psicanalitica Porto Ale gre Artmed 1982 Freud S Sobre o narcisismo uma introdução Edição Standard Brasileira v 14 Rio de Janeiro Imago 1976 A dinâmica da transferência Construções em análise Além do princípio do prazer Green A Sobre a loucura pessoal Rio de Janeiro Imago 1988 Honigsztejn H identificação e identidade na moderna psicologia do self Rev Bras Psicanal São Paulo v 19 p 377 1985 Kohut H Análise do self Rio de Janeiro Imago 1988 A restauração do self Rio de Janeiro Imago 1988 Selfe narcisismo Rio de Janeiro Zahar 1984 Como cura el anälysis Buenos Aires Paidós 1986 Leão L C Identificação e suas vicissitudes conforme observada na adolescência Rev Bras Psicanal São Paulo n 21 p 1571987 Mahler M O processo de separaçãoindividuação Porto Alegre Artmed 1982 MacDougall J Teatros do eu Rio de Janeiro Francisco Alves 1984 Mello Filho J O ser e o viver Porto Alegre Artmed 1989 Miros Barcelona Labor 1976 Paiva L M Archaizdisease of the ego Concepts and psychoana litical treatme of narcisistic and psychotic States Divergence of technique In Psychosomatic psychiatry v 2 São Paulo Garatuja 1990 Prado M P A Narcisismo e estados de entranhamento Rio de Janeiro lmago 1988 Sauberman P R Minha experiência com pacientes ditos narcísi cos Rev Bras Psicanal São Paulo v 18 p 319 1984 Segre C D Problemas encontrados na análise de EstruturaS narci sicas Relat Oficial da Mesa do 10 Congresso Bras de Psicanálise Spitz R O primeiro ano de vida 4 ed São Paulo Martins Fontes 1987 Stolorow R D Lachmann F Psicanálise da parada do desenvolvi mento Rio de Janeiro lmago 1983 Vilete E P O mal da lua um estudo sobre as fronteiras do Self Bol Cient da Soc Psicanal do Rio de Janeiro n 314 p5567 1989 O corpo relicário do Self perdido 11 Congresso Brasilei ro de Psicanálise 1987 Winnioott D O ambiente e os processos de maturação Porto Ale gre Artmed 1983 T El ninó y El mundo externo Buenos Aires Hormé 1965 Psicossomaticaindd 465 Psicossomaticaindd 465 05012010 121222 05012010 121222 466 Mello Filho Burd e cols ANEXO Samuel Hulak Dedico este adendo ao saudoso amigo George Lederman coautor de Regênesis que deste meca nismo não precisará pois que eterno na memória de todos que o amam O prematuro falecimento do Dr Lederman apesar da interrupção temporária das nos sas observações não tem impedido o prosseguimento dos trabalhos que venho dedicando ao estudo de ca sos sob a ótica do Regênesis Como acréscimo atualizante a este capítulo apresento um resumo ilustrativo de caso clínico co mentado A escolha de Renata devese a universali dade de sua história e sua característica condição de falso self imposto com somatização grave Quando atendi Renata como a chamarei a par tir de agora pela primeira vez ela contava com 35 anos de idade esguia alta e loura trazia nas feições aquilinas um penetrante olhar suplicante de socorro Deume a impressão que procurava com desespero algo perdido em um onde desconhecido Somente mais tarde entendi que ela buscava o que nunca acha ra Renata esforçavase a encontrar a pessoa dela e para isso teria que ser renata Até então não havia consultado psiquiatras ou outros da área psi Veio encaminhada por um onco logista que a diagnosticara um câncer ductal na sua mama esquerda Renata fora os cuidados com pediatras não era de ir a médicos salvo quando frequentava irregular mente desde os 14 anos uma ginecologista que a en caminhou ao oncologista Este último indicara uma mastectomia radical apesar de não existir aparente mente nas varreduras realizadas evidências de me tástases Na nossa entrevista inicial estava com três meses de pósoperada Trazia ao lado de um enorme envelope com exames a desculpa de não ter marcado antes nossa consulta conforme sugerido tanto pela ginecologista quanto pelo oncologista devido à so brecarga de afazeres acumulados pelas providências decorrentes da doença e da cirurgia Dr Não sei mais que dizer Nunca me consultei com psiquiatras nem psicólogos A senhora me falou que veio por indicação de dois médicos trouxe os exames e relatou alguns dados so bre sua doença que acha de falar sobre sua pessoa Resumirei a história de Renata obtida em várias sessões que foram interrompidas pela série de seis quimioterapias as quais se submeteu O pai de Renata é um imigrante sem família no Brasil veio pobre e aqui se tornou um bemsucedido comerciante Austero rígido e seco afetivamente ca sou com uma jovem 15 anos mais moça que ele e herdeira de um abastado conterrâneo estabelecido no Recife A mãe de Renata tem atualmente 53 anos casou aos 17 anos poucos meses antes da morte do pai e entrou em depressão da qual não mais saiu até agora Aconselhados por amigos estimularam uma gravidez que resultou em aborto espontâneo O agra vamento da depressão da mãe de Renata serviu para o ansioso intento de nova gestação para curar a de pressão e gerar um herdeiro Foi assim neste contex to que nasceu Renata filha única de um pai severo que sempre foi por ela percebido como inquestioná vel chefe e uma mãe imobilizada pela depressão Desde criança Renata cuidou a exemplo do que ainda faz da mãe o pai sem esconder a decep ção pelo casamento e ausência de herdeiro homem atribuiu para nossa paciente o papel de cuidadora da mãe enquanto se dedicava a sua vida empresarial e de relacionamentos extraconjugais A mãe de Renata abandonara os estudos quando casou nunca exerceu atividade profissional e as domésticas eram realiza das por um entourage de empregadas imatura in fantilizada nunca conseguiu desempenhar papel de mãe e sim de filha de Renata Renata foi uma criança sadia suas idas ao pe diatra foram mais consultas ditadas pela praxe e pelos calendários de vacinações Não tinha talvez autori zação de ficar doente exceto quando teve a menarca tormentosa aos 10 anos desde então é vitimada por dolorosa TPM com enxaqueca e fortes cólicas ovaria nas Sua insípida adolescência foi coroa da por exce lente desempenho escolar e pobre vida de relaciona mentos interpessoais Renata é solteira e ainda virgem Formouse em administração nunca exerceu atividade profissional e sua vida social limitase a eventuais saí das com a mãe algumas de caráter social com os pais e com duas amigas de colégio com as quais ainda mantém contato Um ano antes do diagnóstico do tumor o pai de Renata teve um infarto do miocárdio e foi revas cularizado com três pontes de safena A doença e as limitações do pai mudaram o panorama doméstico da família e da paciente O tumor quando descoberto tinha seis centí metros dependendo do tipo de células e portanto da velocidade mitótica poderia se calcular que o tu mor já estava com cerca de três a quatro anos de de senvolvimento Segundo nossa experiência clínica a indiferença à percepção da nodulação mamária faz parte de todo um conluio de indiferenças O descaso à presença do nódulo se soma ao relaxamento de pro cura de tratamento e a indiferença de identidade pes soal O câncer pode ser visto como sintoma de uma doença caracterizada pelo distúrbio de identidade pelo não reconhecimento do que é próprio do indi Psicossomaticaindd 466 Psicossomaticaindd 466 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 467 víduo Mimnãomim Assim operam os oncoge nes que abremfecham a ordem de destruir células nãomim A grande maioria dos tumores não ocorre com ou por imunodeficiência e sim por imunoindife rença por um descuido de reconhecimento do que é próprio da pessoa Renata quando com 32 anos descobriu através da ginecologista que suas queixas e exames eram su gestivos de uma perimenopausa durante a terapia pôde examinar os ódios acumulados pela vida nega da que teve pela revolta contra o self imposto e pelo aturdimento de um ego angustiado em busca de um self perdido tão bem espelhado pelo primeiro olhar de Renata quando nos conhecemos A ambivalência dela entre morrer e tentar ser renata atinge o auge quando vê o pai em decadência e fantasia a morte dele e o fim de sua escravidão Renata continua em psicoterapia apesar de ain da se submeter a varreduras atualmente anuais o câncer não produziu metástases seus pais continuam vivos e a vida da paciente não mudou muito Tenho procurado ajudála a se desfazer dos papéis que lhe foram impostos e sempre que possível recheando os buracos esvaziados com as pertinências descober tas ela e eu temos sofrido juntos as batalhas de uma guerra cuja conclusão desconhecemos Uma coisa entretanto sabemos ela e eu estamos em busca de Renata ela mesma e quando sofre ela me diz Dói mas não faz mal pois sinto que esta dor é mi nha só minha Psicossomaticaindd 467 Psicossomaticaindd 467 05012010 121222 05012010 121222 DESORDENS FICTÍCIAS Os pacientes com desordens fictícias Existe uma interessante categoria de pacientes que procura os ambulatórios médicos e os hospitais trazendo um distúrbio mental de difícil diagnóstico e ainda mais difícil tratamento Tratase de pessoas que fabricam conscientemente sintomas físicos ou que fingem têlos com a intenção única de iludir os médicos levandoos a pensar que estão realmente doentes e assim obter atenção médica Ao contrário de pacientes somatizadores nos quais a produção de sintomas não é voluntária e de pessoas simula doras cuja produção de doenças visa a compensa ções financeiras obtenção de licenças médicas etc os pacientes com desordem fictícia se caracterizam pela necessidade psicológica de assumir o papel de doente OS RECURSOS UTILIZADOS Os recursos que utilizam para alcançar sua meta são variados e extremados podendo ser agrupados em autoindução de infecções produção de feridas crônicas automedicação e simulação de doenças Autoindução de infecções O objetivo é se infectar voluntariamente inje tando no corpo substâncias ou objetos contaminados de modo a produzir abscessos e quadros infecciosos variados Reich 1983 relata o caso de um rapaz de 15 anos que contaminava a urina introduzindo fezes na bexiga através de uma sonda isso levou os médicos a vários procedimentos diagnósticos que culminaram em cirurgia exploratória na tentativa de encontrar a explicação para sua infecção urinária persistente Produção de feridas crônicas Pacientes deste tipo aparecem com certa frequên cia em consultórios de dermatologistas apresentando lesões cutâneas de misteriosa etiologia que levantam a suspeita de serem artificialmente provocadas esse tipo de paciente também pode impedir a cicatriza ção de feridas e ulcerações colocando substâncias irritativas sobre a pele retirando crostas cicatriciais ou escarificando as lesões Através da cronificação de lesões dermatológicas esses pacientes ganham acesso a clínicas e ambulatórios especializados Automedicação É um tipo de recurso no qual as pessoas fazem uso proposital de determinadas substâncias capazes de gerar alterações no organismo como hemorragias de sequilíbrios metabólicos e hormonais hipotensões e até mesmo comas Um paciente atendido por nós frequen tador assíduo de CTIs em diversas cidades do Estado do Rio de Janeiro garantia suas admissões criando estados de coma de natureza obscura mesmo internado en trava em coma sem que os médicos chegassem a uma conclusão diagnóstica de seu caso finalmente foi des coberto que ele trazia escondidos entre seus pertences barbitúricos que ingeria com a finalidade de provocar alterações de seu estado de consciência Neste grupo de pacientes é comum encontrar profissionais da área biomédica que conhecem os efeitos de drogas medicamentosas e têm fácil acesso às mesmas Simulação de doenças Tratase de pessoas que mentem sobre seus da dos pessoais e seus sintomas construindo quadros clínicos fictícios e induzindo os médicos a suspeitar de doenças para as quais uma hospitalização se torna 38 DESORDENS FICTÍCIAS Therezinha Lucy Monteiro Penna Psicossomaticaindd 468 Psicossomaticaindd 468 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 469 necessária No começo é comum essas pessoas apre sentarem uma alteração orgânica ou laboratorial não necessariamente patológica que serve como sal voconduto para a entrada no sistema de saúde Daí em diante argutos observadores do meio hospitalar aprendem novos sintomas que vão progressivamente se sofisticando abrindo as portas para novas inter nações Não raro ostentam cicatrizes de cirurgias e dissecções venosas que sinalizam perigogravidade para os médicos J M S de 32 anos deu entrada na Emergên cia do Hospital dos Servidores do Estado com queixas compatíveis com infarto agudo do miocárdio apre sentava uma cicatriz de cineangiocoronariografia no braço O ECG mostrava alterações do segmento ST e da onda T em parede anterior Como as dores se intensificaram foi removido para o CTI e após dois dias transferido para a enfermaria de cardiologia Lá devido à informação de que aguardava vaga em São Paulo para cirurgia de revascularização os médicos continuaram os exames e o mantiveram em observa ção Nisto foi reconhecido por um plantonista que o havia tratado em outro hospital com as mesmas quei xas e que rastreou sua passagem por mais 11 hos pitais nos quais assim que ficava comprovado que não havia nenhuma patologia orgânica verdadeira o paciente solicitava a alta Eventualmente alguns pacientes são desmas carados e confrontados com sua simulação podendo admitila ou não Quando a admitem e se engajam num tratamento psicoterápico transparecem por de trás do desejo de obter atenção e gratificações ligadas aos cuidados médicos alterações graves de personali dade borderline estados depressivos preocupações hipocondríacas e comportamento passivoagressivo Os casos mais graves dentro das desordens fictí cias recebem uma denominação especial síndrome de Münchausen Esses pacientes merecem um estudo mais detalhado primeiro por serem passíveis de adoe cer verdadeiramente e até mesmo morrer em conse quência de complicações advindas de suas infindáveis permanências em hospitais por exemplo infecções hospitalares e segundo devido a frequência com que passam despercebidos e sem diagnóstico onerando os serviços médicos com suas internações fúteis O nome de Münchausen foi dado a esses pa cientes por Asher 1951 em referência ao Barão Karl Friedrich von Münchhausen cujas peregrinações incessantes e historias fantásticas de difícil credibi lidade foram narradas em um livro escrito em 1785 por Rudolf Raspe Assim como o barão esses pacien tes também são peregrinos viajando de hospital em hospital contando suas histórias fantásticas sobre doenças e inventando sintomas com que captam a atenção dos médicos exibindo a arte de verdadeiros mágicos ilusionistas Objetivando sempre a internação hospitalar não hesitam em recorrer a recursos extremos e bizarros como enfiar agulha nos seios reabrir feridas cirúr gicas recentes e provocar abscessos injetando fezes sob a pele Sua busca de atenção médica é compulsi va e infatigável Maur descreve um paciente que aos 52 anos de idade já havia obtido 423 hospitalizações médicas documentadas A insistência com que produzem sintomas mais e mais elaborados ou variados leva os médicos a apro fundar a pesquisa de seu quadro clínico requisitando paralelamente mais e mais exames progressivamen te mais e mais sofisticados Após a primeira hospita lização as seguintes são mais fáceis de obter pois o fato de já haver sido hospitalizado funciona como um indicador de gravidade Quando os Münchausen são desmascarados quando perdem credibilidade ou sentem que seus sintomas não mais são valorizados ficam aborreci dos e hostis Mudam então para outro médico ou tro serviço outro hospital e até mesmo outra cidade reiniciando sua jornada de enganos e mentiras A C P padeiro de 54 anos durante os quatro anos em que frequentou nosso hospital obteve internações clínicas e cirúrgicas em seis serviços diferentes fre quentando concomitantemente vários ambulatórios de outros hospitais Suas queixas oscilavam tanto eram cardiológicas como neurológicas vasculares proctológicas ou otorrinolaringológicas dependendo da credibilidade que mantinha ou perdia diante de diferentes médicos Estes exímios impostores apresentam algumas outras características que podem auxiliar na elucida ção de seu diagnóstico 1 Pseudologia fantástica A necessidade incontrolá vel e patológica de mentir os leva a inventar his tórias de vida mirabolantes onde aparecem enal tecidos como figura de destaque 2 Sofisticação médica A frequência contínua e pro longada nos hospitais acrescida de sua psicopa tologia peculiar facultalhes o aprendizado de termos médicos e um conhecimento relativamen te sofisticado sobre doenças o que lhes permite referir sintomas coerentes com determinadas pa tologias médicas S M atraente mulher de 34 anos buscou internação pela terceira vez apre sentando uma nova queixa paralisia da perna Suas queixas e os achados neurológicos de anes tesia e paralisia eram coerentes até que um dia Psicossomaticaindd 469 Psicossomaticaindd 469 05012010 121222 05012010 121222 470 Mello Filho Burd e cols após ser examinada como de hábito em decúbi to dorsal o médico lhe solicitou que deitasse de bruços repetindo o exame neurológico obteve a mesma resposta de anestesia e paralisia só que desta vez na perna E É que ao trocar de decúbito a paciente enganouse de perna 3 Estilo patológico de vida Frequentar hospitais é o sentido de suas vidas Se necessário for viajam para outras cidades em busca de novos estabele cimentos médicos Isso inviabiliza uma atividade profissional estável 4 Pedidos de medicação analgésica Existem relatos desses pacientes solicitando com frequência me dicação para dor contendo opiáceos 5 Hospitalizações tumultuadas Mudanças abrup tas de comportamento podem surgir quando não recebem a atenção desejada passando então de dóceis e passivos a hostis e indisciplinados PSICODINÂMICA Uma vez descrito o quadro de Münchausen apresentase a questão intrigante que mecanismos inconscientes levariam uma pessoa a adotar tal dis torção de procedimento Qual a expressão simbólica desta estranha patologia O acesso ao mundo psíquico destes pacientes tem sido precário devido à própria essência da de sordem fictícia mentir e iludir o médico No en tanto algumas postulações básicas logo ressaltam privação afetiva eou rejeição por parte dos pais nos primeiros anos de vida sentimentos de desvalori zação e inferioridade defesas mal estruturadas e primitivas contra sentimentos de agressividade in capacidade de desenvolver relações objetais satisfa tórias Na literatura científica desde que este quadro foi descrito pela primeira vez em 1893 por Meige várias formulações psicopatológicas surgiram Para Kaplan 1980 existe nas desordens fictícias uma compulsão de repetição na qual o paciente repete o conflito básico de desejo de amor e aceitação versus a antecipação da frustração desse desejo Usa o fac símile de uma doença verdadeira para recriar a inte ração original com suas figuras primitivas colocan do o médico como fonte potencial do amor desejado e nunca obtido Manipula o médico para que este supra transferencialmente sua necessidade latente de dependência ao mesmo tempo em que através da atuação transforma o médico em figura frustran te e rejeitadora Já Menninger analisa o aspecto autodestruti vo e mutilador do comportamento destes pacientes vendoo como ato de suicídio parcial em que são agredidos os pais rejeitadores internalizados Através de suas mentiras essas pessoas manipulam o médico para que este pratique sobre elas manobras técnicas e diagnósticas agressivas de puncionar cortar introdu zir sondas provocar dor etc às quais se submetem sem queixas Isso sugere uma dinâmica sadomaso quista inconsciente em que ficam projetados senti mentos de raiva e de culpa Esse aspecto de culpa inconsciente é retomado por Todd que vê na submissão às intervenções médi cas desencadeadas a partir do próprio paciente uma tentativa masoquista de apaziguamento de culpa Como muitos destes indivíduos têm em sua in fância uma história de doença acrescida da privação emocional podese ver em seu comportamento bi zarro uma tentativa de controlar a ansiedade latente advinda do medo e do sofrimento que sentiram em criança Ao assumir ativamente o papel de doen te e reviver repetidamente a experiência dolorosa repri mida no contexto de hospitalizações múltiplas ad quirem na fantasia um controle e domínio mágico sobre as doenças em geral Spiro 1968 Quanto às necessidades de dependência o ambiente hospitalar oferecelhes a oportunidade de satisfação parcial ao serem alimentados banhados cuidados e protegidos do mundo exterior Um último ponto a ser focalizado diz respeito à impostura sendo impostores eles se defendem da ansiedade gerada por sentimentos de inferioridade fraqueza e inadequação sentemse mais espertos do que os profisSionais a quem enganam e assim se va lorizam perversamente DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Desordens somatoformes Os somatizadores mesmo os que apresentam conversão histérica não produzem sintomas propo sitalmente nem têm compulsão a iludir os médicos como também não fazem da busca hospitalar um esti lo de vida Na hipocondria existe uma supervaloriza ção de sintomas banais e de sensações corpóreas cor riqueiras o hipocondríaco procura o médico numa tentativa de diminuir a ansiedade e o medo que tem de doenças Simulação Os simuladores produzem sintomas consciente mente visando ganhos concretos facilmente identifi cáveis como obtenção de licenças médicas para fal tar ao trabalho aposentadorias indevidas evasão do Serviço Militar benefícios fraudulentos etc Psicossomaticaindd 470 Psicossomaticaindd 470 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 471 Distúrbios graves de personalidade Nos casos de distúrbios graves de personalida de como a histriônica a antissocial e as borderline não existe um estilo de vida centrado na busca de hospitalizações repetidas nem o aspecto compulsivo da produção de sintomas Psicose Aparecem alucinações delírios e pensamentos delirantes de conteúdo somatoforme TRATAMENTO A compulsão em obter gratificação emocional através de um comportamento mentiroso e o modus operandi da mentira não admitida tornam evidente a razão pela qual esses pacientes não são usuários de consultórios e instituições de saúde mental Ao abordar esses doentes percebemos uma im possibilidade de estabelecer um vínculo interpessoal É até possível que nos narrem fatos de suas vidas mas falta uma afetividade verdadeira em seus rela tos O psicoterapeuta para eles é apenas mais um médico a ser enganado Não admitem que mentem e não demonstram interesse em dominar seus impulsos autodestrutivos e maladaptativos Os raros casos relatados de êxito terapêutico fo ram com pacientes institucionalizados para a aplica ção de técnicas de terapia comportamental Todavia podemos auxiliar estes pacientes intra táveis agindo junto à equipe hospitalar e à família À medida que o médico fica alertado sobre a etiologia psiquiátrica evitase que continuem sendo realizados procedimentos diagnósticos inúteis Ao ficar esclare cido o caráter compulsivo da doença diminuem as reações de raiva e hostilidade da equipe de saúde para com o paciente que advém da percepção de ter sido enganada e usada Quando a família pode ser localizada tornase possível alertála para a natureza psicológica dos sintomas tentando mobilizála para deter os impulsos patológicos do enfermo Assim agindo auxiliamos profissionas e fa miliares a não se tornarem cúmplices inocentes da perpetuação do drama desses infelizes peregrinos da mentira REFERÊNCIAS Aduan R P Fauci A Si Dale D C et al Factitious fever and self induced infectionz a report of 32 cases and review of literature Ann Intern Med n 90 p 230242 1979 Altman N Ilypocondriasis In Strain Jl Grosman S Psycho logical Care of lhe medically ill New York AppletOnCentury Crofts 1979 Asher Rl Munchausens syndrome Lancet n 1 p 339341 l951 Diagnosric and statistical manual of mental disurders 3 cd rev New York Amcrican Psychiatric Association 1987 Hamclsky M W Truth 1S Stranger than factiticus N Engl Med n 307 p 436437 1982 Hyler S E Sussman N Chronic factíticus disorders with physi cal Symptoms The Munchausen Syndmme Psych Clin North Amer v 41 2 p 365377 Aug 1981 Ireland P Sapira 1 D Templetøn B MunchauSenS Syndmmc revicw and report of an additional case Am J Mcd rn 43 p 579592 1967 Pallis C A Bamji A A Macllroy was here Or was he Br Med J n 1 p 973975 1979 Reich P Gottfríed L A Factitious dísorders in a teaching hospi tal Ann Intcm Med n 99 p 240247 1983 Shapim E Psychcdinamics Of bOrder1inc patients Amer J PsyCh n 135 p 13051309 1978 Sneddon 1 Sneddon J Selfinflicted injury a followup Study of 43 patients Br Mcd J n 3 p 527530 1975 Spim A Chmnic factitious illness Arch Gen Psych n 18 p 569574 1968 Sussman N Hyler S Factiticus disordcrs 1n Kaplan M Frecd man A Saddock B Cnmprehensivc lextbook of psychialry Bal timorer Williams and Wilkins 1980 Psicossomaticaindd 471 Psicossomaticaindd 471 05012010 121222 05012010 121222 Durante muitos anos compartilhando das ideias e ideais psicossomáticos onde o ser humano é visto de maneira individualizada cheguei a temer o futuro desta filosofia ao me deparar com uma prática médi ca voltada para o organicismo e distante do homem Homem que pela essência e pelo viver determina a necessidade do outro da compreensão da solidarie dade e do amor Homem que ao vislumbrarse inte riormente tenta buscar a perfeição e o acerto Como entender que estes mesmos homens po deriam agir com descaso despreocupação e até mes mo desprezo com seus semelhantes Após muitos anos de exercício profissional numa instituição pública voltada ao atendimento de emer gência pude entender que muito além da vontade da ética e do humanismo encontrase a dignidade de um profissional esquecido e negligenciado pela socie dade e pelos responsáveis pela saúde Durante anos cobrei uma atitude mais humani zada da equipe de saúde sem perceber que não se pode oferecer o bem sem dele também se beneficiar Critiquei arduamente muitos colegas não en tendendo o distanciamento e a frieza com os pacien tes Não via a distância e frieza com que os pacien tes os encaravam Aprendi a analisar a simbiose necessária a um bom relacionamento médicopaciente Aprendi a per ceber que antes dos conceitos humanistas existem verdades institucionais sociais e profissionais que de vem ser computadas sem o que estaremos no mundo do teórico e da fantasia Infelizmente a verdade é que médicos e pacien tes envoltos por uma instituição perversa distan ciamse a cada dia e ao invés de um lugarcomum agridemse e deterioram suas relações Assim nossa avaliação do setor de atendimento de emergência e do doente de emergência será basea da nesta triste realidade Idealizado para o atendimento de pacientes agudamente doentes o setor de emergência nos hos pitais públicos do Brasil temse caracterizado por um aglomerado de pessoas carentes num local inadequa do ao mínimo necessário e tendo à frente uma equipe cansada desmotivada e muitas vezes despreparada Dominado por médicos jovens entusiastas da medicina intervencionista porém ainda imaturos para os percalços da profissão para os riscos do in sucesso e a decepção das perdas tornamse presas fáceis da angústia e da ansiedade Nos livros clássicos e até nos seriados de TV orgulhosos da sensação de salvadores emocionamo nos com o quanto um bom médicosocorrista sente se valorizado ao reanimar um paciente em parada cardiorespiratória Quantas vezes sonhamos com o momento de gratidão do doente e seus familiares pelo atendimen to correto e honesto A instituição misturavase conosco éramos in separáveis vestíamos a camisa de nosso hospital orgulhávamonos dele Infelizmente o momento é outro os pronto socorros PSs de nossos hospitais tornaramse ver dadeiras arenas onde a equipe de saúde não mais se preocupa com a excelência do atendimento e sim com o alívio de suas tensões e o expirar de suas horas de plantão Bode expiatório de um sistema de saúde falido tem a imprensa leiga feito referência constante ao mau atendimento do prontosocorro no Brasil Médicos negligentes hospitais carentes e um povo desprezado parece traduzirse no assunto pre ferido de nossos informantes Esquecemse do essen cial continuam na parte visível do iceberg Em nossas universidades apenas iniciamse os cursos de Emergências Médicas especialidade em pleno desenvolvimento em todo o mundo e não nos é ensinado como lidar com a agressividade com a desconfiança e temores do paciente agudo e seus acompanhantes Ensinam a diagnosticar e a medicar mas esquecem de mostrar a realidade e ao nos depa rarmos com a mesma iniciase o processo de desa mor e de decepção com a tão sonhada Medicina 39 O MÉDICO O PACIENTE E O ATENDIMENTO DE EMERGÊNCIA NO BRASIL José Galvão Alves Psicossomaticaindd 472 Psicossomaticaindd 472 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 473 A falta de gaze a maca quebrada o equipamen to radiográfico que não funciona o péssimo salário da equipe de saúde não podem ser atribuídos ao mé dico No momento o médico no PS assemelhase a um guerreiro sem arma Como humanizar Como transmitir e ensinar aos mais jovens Por que tanto se sabe e tão pouco se muda Por que expor uma classe tão essencial à sociedade a crí ticas tão perversas Por quê É preciso que se descubra o papel real do médi co e da equipe de saúde na sociedade Não basta a constatação da existência da falta de material e de maus profissionais é fundamental o investimento na formação humanística onde a técni ca e a ética se unam para o bemestar social É o momento de idealizarmos uma realidade e buscála arduamente A prática médica no PS ne cessita acima de tudo de liderança éticocientífica e de organização institucional Médicos que respeitem o saber o humanismo e os locais condizentes com a rea lização de uma boa prática profissional O setor de emergência dentre outras qualida des deve ter um ambiente tranquilo com materiais de fácil acesso equipes preparadas técnica e emo cionalmente para o convívio com o doente grave com famílias aflitas e mesmo com a morte por vezes prematura É necessário pois um clima de solidarie dade respeito e amizade entre os plantonistas Isso ameniza o alto grau de tensão demonstra seriedade e atrai o respeito e admiração dos que sofrem A Medicina lida com o povo suas dores seus medos e angústias apenas um médico bom pode transformarse num bom médico A relação médicopaciente nos hospitais públicos e especialmente no setor de prontosocorro tem como característica principal o anonimato médico e paciente encontramse pela primeira vez e na imensa maioria das vezes não sabem sequer os seus nomes É pois a instituição o grande referencial ou quando muito a equipe de plantão Assim referese o paciente Fui atendido pela equipe de Segundafeira do Hospital Estadual Carlos Chagas RJ Esta falta de identidade tem permitido uma con duta menos comprometida do profissional de saúde e tem também diluído os eventuais ganhos e acertos do mesmo Num momento de urgência tenso e temeroso pelo que se passa o doente geralmente se depara com os desconhecidos médico e hospital e sentese profundamente impotente ou mesmo em alguns ca sos perseguido e reage muitas vezes com grande agressividade O simples ato de estender as mãos cumprimen tar o paciente recomendar que se assente e identifi cálo nominalmente já traz consigo uma melhor aco lhida quebrando muitas vezes o gelo e o anseio de ser mal atendido Embora o tempo para o atendimento seja por demais escasso nada nos impede de utilizálo com educação e cortesia Mais do que nos queixarmos da falta de condições o doente entenderá e a nós se uni rá caso o atendamos com o cuidado o respeito e a cordialidade que merecem os agudamente enfermos Outra preocupação constante é a de valorizar mos o sofrimento da pessoa que nos procura e não apenas a doença que consideramos mais ou menos grave Exemplificando um paciente politraumatiza do costuma obter apoio de toda equipe o contrário se dando com os portadores de distúrbios agudos da esfera emocional Embora consiga entender que na primeira situa ção o risco de vida possa conduzir a maior preocupa ção não me parece oportuno o descaso e a desvalia destinados ao doente psicológico Se seu conflito in terior é tão grande que o impede de exteriorizálo sob a forma consciente a somatização deve ser vista como uma expressão de imensa dor da alma e ser encarada com o respeito e o carinho tão terapêutico àqueles que sofrem É pois conhecido o papel do mé dico no alívio do sofrimento visto que a cura talvez esteja distante de suas possibilidades Recordome da indignação expressa na face de um médico quando percebeu que sua paciente não estava realmente hemiplégica e que era apenas uma histeria de conversão Revoltado sentindose enganado forçavaa a levantarse e caminhar com ameaças e gritos também de histeria Sobroulhe ciên cia mas faltoulhe equilíbrio O equilíbrio necessário para atender a gama de situações clínicas de prontosocorro se adquire com o tempo a dedicação o respeito e a arte de unir ciên cia e humanismo Infelizmente desconheço em nosso país um treinamento que coloque como também es sencial a assistência à emoção e a busca da harmonia do homem que sofre Os concursos para médicos plantonistas abordam a psiquiatria mas esquecemse da psicologia da antro pologia da sociologia e da interdisciplinaridade O exame clínico deve ser rápido porém cuida doso adequandose às queixas principais O doente geralmente percebe da seriedade profissional mes mo desconhecendo o seu grau real de domínio cien tífico Condeno radicalmente aqueles que se aprovei tam da ignorância do nosso povo para divertirse em momento tão sério Recordome de um médico que ao examinar uma senhora idosa colocou o estetoscó Psicossomaticaindd 473 Psicossomaticaindd 473 05012010 121222 05012010 121222 474 Mello Filho Burd e cols pio sobre sua cabeça e pediulhe que repetisse inúme ras vezes trinta e três provocando risos nos mais jo vens que o acompanhavam Acredito ter se realizado como humorista mas jamais como médico A maneira como ouvimos a anamnese o inte resse em conhecer o mínimo daquela pessoa bem como o exame detalhado e atento são mais convin centes das boas intenções do médico do que qualquer discurso A maneira respeitosa ao despir uma mulher para examinar seu tórax o palpar suave de um abdome doloroso a calma em recostar um ancião hemiplégi co a consulta cuidadosa de um dispneico são tão ou mais terapêuticos que drogas e bisturis Uma parcela significativa do sucesso de um médicosocorrista res pousa em sua atitude humanista São fundamentais a astúcia a rapidez de racio cínio o conhecimento científico mas estes não invali dam a preservação de uma boa relação humana É pois o setor de emergência um local estres sante para a equipe de saúde onde o insperado cons titui rotina e apenas o bem atender pode recompen sar tal angústia O clima festivo e de piadas que caracterizam muitos de nossos prontossocorros esconde a an gústia a apreensão e os sentimentos de medo que costumam envolver os estudantes e médicos menos experientes Os politraumatizados os baleados os suicidas os alcoolistas os histéricos transformam este am biente num clima de alta tensão necessitando muitas vezes de brincadeiras para descontrair Não as conde no apenas recomendo que se respeite a presença do paciente e não se perca gratuitamente sua confiança Não se justifica uma atitude de deboche com um travesti um bêbado ou uma prostituta Estes já são alvos de desrespeito de nossa sociedade precon ceituosa e o médico deve absterse de tal julgamen to não lhe cabe no exercício da profissão Buscam nos médicos o apoio e a compreensão Depreendese pois como devemos investir no preparo psicológico do médicoplantonista Urge uma nova atitude um investimento pro fundo no Setor de Emergências local de grandes per das moral ética e humana e onde a violência urba na e as tragédias já são por demais dolorosas SITUAÇÕES CLÍNICAS Piti Os distúrbios neurovegetativos de origem emo cional vulgarmente denominados piti são uma das mais comuns situações clínicas observadas no pronto socorro Tratase de um paciente que mobiliza muito a equipe de saúde Treinados e preparados para de pararemse com as mais variadas patologias orgâni cas o acadêmico e principalmente o médico reagem agressivamente quando se defrontam com problemas psicossomáticos Sentemse como que ludibriados pelos pacien tes e na imensa maioria das vezes agridem física e moralmente tais pacientes Ao comportarse agressivamente o médico mos tra sua dificuldade em lidar com as emoções e gera um sentimento de desprezo e desvalia no paciente Constitui este um dos mais sérios problemas da classe médica no momento Não se recupera o respeito com o desrespeito Não se realiza com atos destrutivos e perversos O homossexual Há alguns anos o travesti quando procurava o setor de emergência era recebido com piadas pro vocações risos e deboches mas sempre resignado reagia com um certo ar de superioridade e acabava bem atendido A partir de 1981 com o surgimento da síndrome de imunodeficiência adquirida SIDA a receptividade ao homossexual tornouse um pro blema de Saúde Pública Médicos e enfermeiros des preparados e ignorando os reais meios de contami nação do HIV vírus da imunodeficiência humana negavamse a atender esse tipo de paciente e com isto provocavam situações extremamente drásticas no prontosocorro Há poucos meses em visita a um dos maiores hospitais de emergência deste país presenciei um homossexual com seus punhos cortados gritando Ve nham me pegar eu tenho AIDS Embora estivesse se esvaindo em sangue apenas os policias procuravam convencêlo a ser atendido Tão perigoso quanto ou até pior do que a AIDS é o desconhecimento e o despreparo da equipe de saúde em lidar com tais situações Jamais poderemos ter total domínio dos riscos de contaminações físicas de um médico o que se poderia é tentar impedir de contaminarmos nossas mentes com atos de descaso e desamor O bandido Uma das situações mais dramáticas a ser vivida em um prontosocorro é o atendimento a um pacien te trazido por policiais Na maioria das vezes ele foi ferido durante uma troca de tiros com as autoridades e estas revoltadas e temerosas muitas vezes suge Psicossomaticaindd 474 Psicossomaticaindd 474 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 475 rem ou mesmo solicitam que abreviemos a vida do marginal No início de minha carreira encontreime em tal situação por várias vezes e confesso que em algumas tive vontade de ser o juízo final Neste momento cabe ressaltar o papel terapêutico do mé dico não se permitindo envolver ou ser envolvido em situações alheias à prática médica Ele deve agir portanto com profissionalismo não identificando a quem salva Lembrome perfeitamente de um maníaco se xual que foi levado ao PS do Hospital Carlos Chagas após ter sido espancado por vizinhos em razão de ter estuprado uma criança excepcional de 4 anos de idade A equipe médica se revoltou alguns queriam fazer justiça pelas próprias mãos O alcoolista Existem basicamente dois tipos de alcoolistas frequentadores do PS O primeiro é aquele que busca o socorro médico em razão de uma doença orgânica ou em função de um acidente o outro é atendido em função dos efeitos psíquicos do etilismo Na primeira situação existe uma tentativa de negação do alcoolismo buscandose inúmeras expli cações para aquela situação clínica São adequada mente tratados pela equipe de saúde e até despertam um certo sentimento de pesar Já os do segundo grupo geralmente são levados ao PS em situações de coma ou précoma alcoólico ou em agitação psicomotora ou numa crise de agres sividade Para estes pacientes gostaria de chamar a atenção pois geralmente são tratados de forma agressiva e muitas vezes interpretados como psicopa tas e encaminhados a hospitais psiquiátricos Alguns trabalhos têm demonstrado que cerca de 50 dos pa cientes psiquiátricos internados nos serviços públicos são na realidade alcoolistas Deixálos cair da maca amarrar seus punhos e mãos até ferílos não resolve a revolta social que há em cada um de nós Devemos internálo no Hospital Geral medicá lo estarmos atentos a suas carências nutricionais e então após ganharmos sua confiança encaminhálos a grupos especializados em alcoolismo e a Associação de Alcoólicos Anônimos AAA O toxicômano Estes pacientes despertam um sentimento de rejeição da equipe médica Geralmente estão em es tado de alucinação agitados verborreicos e exigindo tratamento especial A maneira mais adequada de lidar com eles é procurar angariar sua confiança pe netrando de uma maneira positiva no seu mundo de fantasia Interrogações do porquê usam drogas e conse lhos formais são por demais superficiais para encon trar respostas A capacidade de ouvir a paciência no relacio namento com estes pacientes e quando necessário a sedação constituem conduta mais adequada Não devemos permitir a intervenção de poli ciais a não ser em casos extremos de agitação psi comotora Quem busca um hospital espera encontrar um médico e não um repressor O politraumatizado Considerando que na cidade do Rio de Janeiro a principal causa de óbito entre 5 e 45 anos é a violên cia podemos entender a importância da abordagem deste paciente no PS Originários da via pública trazidos por desco nhecidos e pegos subitamente por uma situação de doença aguda são os politraumatizados o exemplo maior da importância de um bom sistema de atendi mento de emergência Desde o socorro extrahospita lar o transporte de ambulância a equipe e o hospital todos são novos e ameaçadores Há de se entender como deve ser difícil passar de repente de um estado de saúde plena a um risco de vida iminente Pelo exposto devemos dedicar um tratamento médico e psicológico todo especial ao politraumatiza do e também aos seus familiares São momentos de muitas ansiedades onde per das e ressentimentos se misturam profundamente São situações dramáticas que por vezes envolvem o uso abusivo de drogas eou álcool descortinando graves problemas pessoais e familiares São culpas pelo carro emprestado pelo papo es quecido pela orientação afrouxada São momentos de silêncio profundo e crença imensurável O traumatismo craniencefálico a perda de um braço a cirurgia de urgência são situações tão alar mantes que o médicosocorrista habituado com o PS terá que viver diariamente mas deverá entender que cada paciente e cada família geralmente as vive uma única vez Pais desesperados amargando culpas a implo rar por milagres são situações dramáticas para equi pe médica e familiares Não existe consolo mas a mão sobre os ombros o olhar solidário e as atitudes objetivas transmitem segurança e respeito Psicossomaticaindd 475 Psicossomaticaindd 475 05012010 121222 05012010 121222 476 Mello Filho Burd e cols O velho Um dos momentos mais difíceis na vida do ido so é a sensação de perda súbita da saúde e a preocu pação em não se tornar um peso para seus familia res Exemplo maior constitui a angústia em não mais poder executar suas necessidades básicas sozinho Existem dois tipos de velho o trambolho e o relíquia Este último é preservado e amado por seus familiares que ao menor sinal de doença o levam ao médico ou ao hospital e permanecem atentos a sua evolução participando efetivamente de sua melhora No entanto o que temos observado mais frequente mente no PS é o velho trambolho aquele que a fa mília quer se livrar e o interna ou abandona na sala de emergência aparecendo somente dias depois Embora já com idade avançada eles percebem a rejeição de seus familiares e frequentemente entre gamse à doença ou mesmo à morte Os médicos na imensa maioria das vezes de positam sobre os idosos a insatisfação com seus fa miliares e assim aumentam o sentimento de rejeição e desprezo com os velhos Temos presenciado cenas dramáticas no PS quando pacientes idosos são ali depositados sem ao menos serem adequadamente identificados Situação difícil e que traduz o nosso grave problema social São nestes momentos que po demos aquilatar o valor do trabalho desenvolvido por uma assistente social no PS A criança Ao contrário dos velhos as crianças frequente mente são trazidas ao PS por familiares preocupados ansiosos por um bom atendimento mas muitas ve zes culpandose por não terem tomado as devidas providências em tempo hábil Este temor os leva a ser por vezes muito duros e agressivos com a equipe de saúde O médico experiente há de entender tal situa ção e ao invés de reagir às agressões passa a dedicar se ao atendimento da criança e a dispensarlhe todas as atenções A meu ver constitui a única maneira de silenciar os familiares e adequálos à realidade Envolverse na discussão mostrando aos pais ou acompanhantes que a criança demorou a ser trazida ao hospital só tumultua e agrava a difícil relação Momento delicado é o da criança com crise con vulsiva e que na maioria das vezes se deve a estados de hipertermia Medicála tranquilizar os familiares e orientálos para uma investigação posterior consti tui uma preocupação médica e social Por outro lado devemos considerar sempre a relação com a criança doente e suas fantasias e me dos de estar num hospital com pessoas tão estranhas ao seu mundo Devemos tratálas com respeito e dignidade mas jamais darlhes o sentido de piedade e desvalia São momentos em que o médico pode contribuir po sitivamente para o crescimento psicossocial de uma criança ou adolescente É também no contato com a criança que po demos criar uma imagem mais verdadeira e boa da equipe de saúde O suicida A equipe médica costuma reagir muito mal aos pacientes suicidas e na maioria das vezes os agride perguntandolhes por que não procuraram métodos mais eficazes Alguns chegam a sugerir maneiras mais adequadas de morrer como por exemplo Pule embaixo de um trem Salte do décimo andar Não tome apenas cinco comprimidos mas umas duas caixas de sedativos Espero que a tristeza e a melancolia do paciente sejam capazes de despertar uma atitude de solidarie dade com aquele que não suporte a própria dor O paciente clínico O paciente com patologias clínicas constitui a maioria dos atendimentos de PS no Brasil Emergên cias hipertensivas crise asmática acidente vascular cerebral doenças infecciosas e tantas outras devem ser tratadas adequadamente e os pacientes sempre orientados para buscarem nos ambulatórios a conti nuidade de sua terapêutica Em função da grave crise no atendimento médicoambulatorial no nosso país muitas vezes os doentes buscam o setor de emergência como forma de serem mais rapidamente atendidos Este fato gera um acúmulo de pacientes neste setor o que é extremamente deletério à rotina assistencial prejudicando os profissionais da área de saúde e os doentes Gostaria de chamar a atenção para esta que é uma conduta dos pacientes em função do erro do sis tema e não pode ser vista pelo médico como forma de agredilos Em relação a este assunto cabe ressaltar que excepcionalmente a equipe de saúde prestativa é conscientemente agredida pelo paciente Psicossomaticaindd 476 Psicossomaticaindd 476 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 477 Transfusão sanguínea Problema bastante comum atualmente é o medo que assola nossa sociedade de ter a necessidade de submeterse a uma transfusão sanguínea Compreensível dado o risco de doenças adqui ridas em nosso meio por sangue contaminado Não bastasse o risco conhecido de adquirirmos malária hepatites sífilis surge a síndrome da imunodefi ciência adquirida AIDS que assombra ainda mais ao leigo Além das campanhas de prevenção e esclareci mento da população devemos estar atentos à origem do sangue a ser transfundido e usar grande rigor na indicação do mesmo A hemotransfusão tem indicações absolutas a serem respeitadas e o sangue hoje aparentemente isento de risco pode conter o risco de amanhã Nas décadas de 1970 e 1980 muitos adquiri ram HIV e Vírus C através de transfusões sanguíne as administradas nos melhores e maiores centros do mundo Não sabíamos da existência dessas viroses e desta forma não tínhamos marcadores sorológicos para identificálas Logo transfusão sanguínea só em caso de extrema necessidade O estudante estagiário no PS Durante muitos anos temos convivido com o estudante em treinamento no PS e infelizmente os problemas se cronificaram dado o descaso dos res ponsáveis pela saúde pública em nosso país Ainda hoje estudantes recémingressos nas faculdades de Medicina são sacrificados nos plantões tendo que as sumir saídas de ambulância horários noturnos e até mesmo auxílio a grandes cirurgias O despreparo técnico e emocional destes jovens acadêmicos são por vezes responsáveis por situações extremamente graves e tumultuantes no PS Uma saída de ambulância pode colocar o aca dêmico em contato com a morte com a violência dos pedestres com sérios acidentes automobilísticos o que certamente seria angustiante até para um médi co experiente É o PS um dos mais importantes locais de treina mento de um jovem médico ou enfermeiro onde eles terão contato com inúmeras situações clínicas e com a realidade porém o aprendizado deve vir através de uma prática correta e feita por quem já a executa O jovem médico necessita da mão experiente do cirurgião das ideias afetivas do pediatra e das histó rias reconfortantes dos clínicos Um hospital de emergência deve ter a lideran ça da experiência e o dinamismo bem conduzido do jovem unindose conhecimento e vitalidade profis sionais Gostaria de ressaltar que médicos com expe riência em atendimento de emergência são fontes de grande segurança pois aqui se encontra a maior es cola a academia da prática onde a teoria emerge do bem assistir Psicossomaticaindd 477 Psicossomaticaindd 477 05012010 121223 05012010 121223 PARTE 7 Tratamento Psicossomaticaindd 479 Psicossomaticaindd 479 05012010 121223 05012010 121223 DELIMITANDO O CAMPO A ação de mecanismos psicológicos sobre os pacientes que sofrem de transtornos somáticos ou orgânicos exige de início uma caracterização de ob jetivos Incluise ou não o fenômeno somático mani festação ou doença propriamente dita como ponto principal a ser atingido pela psicoterapia Face a esta questão vemonos diante de duas grandes possibilidades de atenção psicológica aos pacientes orgânicos Na primeira a atenção fazse necessária para minimizar os efeitos de determinada manifestação somática sobre o sujeito Teríamos todo o campo da reabilitação readaptação ao trabalho retomo à vida à família ao uso afetivo e sexual do corpo reestruturação da imagem corporal enfim a procura de um novo equilíbrio emocional principal mente narcísico na busca da cicatrização das feridas abertas no sujeito pela doença orgânica por aciden tes ou por procedimentos médicos comprometedores como os cirúrgicos Neste campo muitos são os exemplos e tam bém diversas são as metas psicoterápicas A guisa de ilustração enumeramos algumas psicoprofilaxia cirúrgica atenção às famílias de crianças em pré e pósoperatório grupos operativos de enfermaria psi coterapia breve do paciente intemado psicoterapia do paciente gravemente enfermo terminal e grupos homogêneos de pacientes de mulheres mastectomi zadas por exemplo Na segunda o próprio fenômeno somático está incluído na psicoterapia Tratase do atendimento a pessoas com determinadas manifestações corporais as chamadas doenças psicossomáticas nas quais se admite uma correlação de tal forma íntima entre a vida emocional determinados acontecimentos vitais e a manifestação somática que tornase possível per mitir um acesso por via psicológica a sua própria es sência estruturante Por via psicológica não entendemos apenas o acesso ao sujeito através da palavra mas também e muitas vezes principalmente a comunicação ínti ma sem palavras que uma relação humana intensa e próxima como a psicoterápica pode admitir Neste texto trataremos desta segunda possibi lidade Tentaremos marcar sempre amparados con ceitualmente pela psicanálise a diferença entre os fe nômenos corporais histéricos que se estruturam por uma via simbólica e podem ser decodificados pela palavra das manifestações psicossomáticas e propor alternativas técnicas para uma possível psicoterapia que as atinja VIA SIMBÓLICA E VIA BIOLÓGICA Certas manifestações corporais admitem uma leitura Expressam um discurso Tomam presente através do sintoma uma ausência necessária para a manutenção do equilíbrio psíquico do sujeito evi tando a irrupção da angústia Deixam porém um rastro deixam pegadas que sendo seguidas por um interlocutor privilegiado como o psicanalista for mam um sentido claro que evidenciado ao sujeito o liberta do sintoma Esta via de formação de sinto mas no corpo este salto do psíquico ao somático como nos diz Freud dáse primordialmente através do processo de recalcamento que em seu terceiro momento o retomo do recalcado exterioriza de ma neira deformada determinada representação que apesar de manterse inconsciente pode ser denota da por seu derivado consciente A relação entre a representação recalcada e o produto consciente o sintoma por exemplo é uma relação simbólica E a via de expressão desta determinada representação é a simbólica que tanto inquietou os neurologistas do fim do século passado por não encontrarem lesões orgânicas nervosas que a justificassem Portanto não é uma via anatômica biológica de formação de sintomas As manifestações que assim se formam são as manifestações neuróticas histéricas e fazem parte do corpo neurótico como nos conceituou Joyce McDougall 1983 Enumeramos algumas de suas características 40 PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA DO PACIENTE SOMÁTICO Otelo Corrêa dos Santos Filho Psicossomaticaindd 481 Psicossomaticaindd 481 05012010 121223 05012010 121223 482 Mello Filho Burd e cols 1 Já mencionada não se encontra uma explica ção física anatômica biológica para o sintoma Uma paralisia por exemplo não supõe uma lesão nervosa que a justifique anatomicamente 2 Expressa representações que não podem ser cons cientes devido ao afeto angústia que produzi riam Isso dáse através do recalcamento da por ção ideativa da representação 3 Expressa um discurso no sintoma neurótico his térico o corpo fala narra uma história signifi cante que pode ser lida e ouvida 4 Admite uma relação dupla com a representação Uma relação plástica concreta e outra abstrata conceitual 5 Relacionase com a vida e a história sexual do su jeito Articula um aspecto da pulsão sexual 6 Expressa uma determinada identificação com um objeto ou com parte dele Nesta identificação pode estar implícita a ideia de um destino to talmente desconhecido sob o ponto de vista da consciência do sujeito 7 Expressa uma comunicação desconhecida do su jeito O sintoma neurótico dirigese a alguém Admite além das questões por que e para que também a pergunta para quem 8 Relacionase essencial e constitutivamente com algo que a psicanálise conceitua como o incons ciente como um lugar dentro de uma tópica que o prórpio sintoma neurótico denuncia e funda 9 Incluise numa perspectiva metapsicológica di nâmica ou seja como solução para conflitos de forças que se opõem no interior do psiquismo do sujeito 10 Pode ser pensado em termos da segunda tópica idegosuperego como resultado de interações e conflitos 11 Como expressa um discurso simbólico tem como précondição a existência de um sujeito primei ramente constituído como tal e com uma capa cidade simbólica suficiente para que assim uma história possa se expressar Isso quer dizer que psicogeneticamente estamos lidando com uma criança que fala e que se inclui numa perspecti va edípica em que a diferenciação euoutro e a constituição dos limites egóicos e corporais e o sentimento de identidade está estabelecida 12 Pode ser revertido através da palavra Este fato relacionase intimamente ao conceito de inter pretação psicanalítica e aos efeitos da associação livre e da interpretação sobre o sintoma neuróti co 13 Relacionase com a transferência ou seja a his tória ou cena contida nas representações recal cadas se atualiza na relação com o terapeuta e através desta atualização se denuncia ao próprio terapeuta dandolhe um essencial instrumento de trabalho No tempo se inclui no fenômeno conceituado por Freud como neurose de transfe rência 14 Relacionase a um discurso típico o histérico que é elemento diagnóstico desde Freud 1973 no Caso Dora diferencial do discurso do doente neurológico sifilítico ou seja orgânico Tratase de um discurso povoado de equívocos contradi ções atos falhos evidenciadores da neurose E as manifestações psicossomáticas Podemos reduzilas à histeria Creio que não E é interessante notar que mesmo em autores como Alexander que buscavam uma teoria que desse um caráter específico a cada doença psicossomática não havia claramente uma proposta de decodificação interpretativa de um conflito e sim de modificação de uma relação com o ambiente e com as pessoas e acontecimentos signifi cativos Em quase todos os autores está presente na ma nifestação psicossomática um acontecimento uma cena da realidade um fato uma mudança nas rela ções com as pessoas eou com o ambiente mais que uma representação ou cena imaginária ou fantasia por assim dizer Na vida biológica o próprio funcionamento hu moral e nervoso autônomo impõese ao sujeito sem expectativa ou pedido de decodificação Diz Joyce McDougall op cit a esse respeito Essa explosão no corpo que não é uma comunicação neurótica nem uma restituição psicótica tem uma função de ato de descarga que provoca um curtocircuito no trabalho psíquico A afirmação curtocircuito no trabalho psíqui co é sutilmente esclarecedora A formação de sin tomas neuróticos implica a existência como no so nho de um trabalho psíquico trabalho esse que seguindo a primeira tópica freudiana é possível pela mediação préconsciente Essa mediação ao articular representações de palavra possibilita a existência de um sintoma possivel de ser decifrado simbolicamente e interpretado em seu sentido oculto O curtocir cuito implica dizer que justamente este trabalho é impossível Assim segundo MacDougall o fenômeno psicossomático surge onde não pode surgir o traba lho psíquico a elaboração e formação portanto de sintomas mentais Há certa unanimidade em diversos autores fran ceses com cujas propostas nos identificamos quanto à questão da oposição via biológica X via simbólica no estudo dos fenômenos psicossomáticos Também se vê um caminho de conceituação teórica que par te da observação empírica de pessoas com doenças somáticas e de pacientes que no decorrer de suas Psicossomaticaindd 482 Psicossomaticaindd 482 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomatica hoje 483 andlises evidenciam sintomas somaticos O conceito pela representacdo significante o fendmeno psicos de pacientes somatizantes descrito pelos autores somatico com seu cardter de descarga de ato nos franceses nao é mera criacdo tedrica mas muito pelo sugere uma relacdo econémica Nessa relacao impor contrario uma tentativa de solucdo para dificulda ta a quantidade como no conceito de neurose atual des especiais no manejo psicoterapico e psicanalitico descrito por Freud e citado por McDougall no traba dessas pessoas e a busca de uma articulacdo com os lho ja referido Os proprios tedricos do estresse como conceitos da psicanalise Selye 1965 propdem para doenca psicossomatica Ainda nesta direcao clinica teoria diznos um modelo de acumulo de humores no interior do or McDougall op cit Descobrimos nestes casos uma ganismo dados por uma secrecéo ininterrupta e ina caréncia na elaboracao psiquica e uma falha na sim dequada que acaba por desenvolver a doenca eou bolizacdo as quais sao compensadas por um agir de os sintomas A teoria corrente da etiologia da ulcera carater compulsério procurando desta forma reduzir péptica admite uma hipersecrecdo de acido cloridri a intensidade da dor psiquica pelo caminho mais cur co que conseguindo por seu carater continuo rom to Todo atosintoma ocupa um lugar de um sonho per a barreira mucosa duodenal termina por criar o nunca sonhado de um drama em potencial Ora 0 processo ulceroso Essa hipersecrecdo imediatamente drama sombrio do soma delirante é uma historia nos faz pensar em fome caréncia voracidade fase sem palavras A expressdo psicossomatica é o hori oral insatisfacdo e vai por ai Mas por outro lado o zonte derradeiro desses atos que tomam o lugar do que vemos é uma palavra um significante uma arti imaginario e da capacidade de sentir tratase da re culagaéo simbolica uma interpretacao nao conseguir gressdo mais profunda e primaria do ser dar conta da interrupcao da secrecao de acido clori Vaise tracando um marco diferencial importan drico embora as vezes um ato concreto como uma tissimo entre o paciente somatizante e o neurdtico internacdo hospitalar por exemplo possa como por ou psicdtico Esse marco diz respeito a utilizagaéo ou magia fazéla desaparecer a impossibilidade de utilizacao da capacidade simbo Outro achado muito importante nas manifesta lica E possivel que algumas manifestacdes somaticas 0es psicossomaticas é sua correlagéo temporal com admitam uma analogia com processos identificatd determinados acontecimentos e datas Os aconteci rios eou comunicativos mas sao exemplos isolados mentos se referem ou a uma perda real como a mor e nao a regra e mesmo assim nao se revertem com te de um ente querido ou a situacdes equivalentes a conscientizacao do processo Um exemplo deste como mudangas migracgdes desemprego divoércio caso seria dado por alguém que tem um descolamen separacdes de casa crises vitais etc As datas ou to de retina diante de um acontecimento existencial sao datas de significacao universal como Natal Ano dificil de ser aceito como se pudesse haver um dis Novo ou especificas como o dia de aniversario ou curso do tipo nao quero ver isso ou aquilo embutido ainda uma data que marca repetidamente uma situ na afeccdo ocular Outro exemplo o de um pai que acao traumatica ocorrida anteriormente alguns anos apos um acidente que cegou seu filho Esse achado reforca a ideia do fenédmeno psi desenvolveu um cancer ocular em um olho Pode cossomatico como surgido de uma impossibilidade se falar em auténtico processo identificatério Uma de acercamento emocional a situagdes de perda e a questao dificil dor que estas implicariam Tal consideragéo apoia Voltando a direcao clinica teoria recebemos McDougall em sua afirmacao de que o corpo bioldgi nos consult6rios de psicanalise e nos ambulatérios de co reage frente 4 ameaca de dor psiquica como se es psicoterapia ou de psicossomatica pacientes com tivesse diante de um perigo fisico Apoia suas convic uma demanda de tratamento mal definida que em ces na indiferenciacdo corpopsique e portanto dor geral nao buscaram ajuda psicoterapica de maneira fisicador psiquica existente no bebé Diz McDougall espontanea mas foram orientados por um clinico ou op cit Por outro lado é certo que o lactente nao pediatra ou especialista cuidadoso e nos quais em faz a menor distincao entre dor fisica e afetiva Por grande proporcaéo encontramse caracteristicas co lhe faltar capacidade de representar simbolicamente muns diferentes da caracterizacdo do paciente men suas vivéncias o bebé nao pode pensar o proprio cor tal seja neurotico ou psicotico po e as sensacgdes que dele emanam nem reconhecer A observacao desses pacientes nas entrevistas e os proprios sentimentos dolorosos como seus na psicoterapica sugere como nos diz McDougall op Dito de outra forma a impossibilidade precoce cit uma caréncia na elaboracao psiquica uma falha de inclusaéo da dor psiquica numa cadeia simbdlica na simbolizacdo e uma nogao de atosintoma Seguin nomeadora e articuladora que a tornaria possivel de do essa linha de pensamento nao poderiamos deixar ser vivenciada cria uma desintegracao potencial na de observar que enquanto o fendmeno neurético nos unidade psicossomatica Esta ao verse ameacada faz pensar em uma relacao de qualidade mediada por uma perda por exemplo propicia 0 surgimento 484 Mello Filho Burd e cols no corpo da manifestação de descargaato que são os sintomas psicossomáticos Propusemos no capitulo Histeria hipocondria e fenômeno psicossomático a relação do conceito de supressão Unterdrückung emitido por Freud em 1915 com esta impossibilida de de vivenciar afetos de perda ou equivalente e a eclosão do fato somático Vigorosa fonte de reflexão e desenvolvimento do estudo do fenômeno psicossomático o Instituto de Psicossomática de Paris dirigido por Pierre Marty tem produzido inúmeros trabalhos sobre a psicologia do paciente somático o processo de somatização e a psicoterapia do paciente somático Duas noções den tre as muitas que este grupo propõe em seus traba lhos nos são extremamente úteis na compreensão da via biológica e no possível acesso à psicoterapia das pessoas que a utilizam A primeira a noção de pensa mento operatório que se caracteriza por uma pobreza da vida da fantasia da vida imaginativa do devaneio e por uma particular ligação com a realidade onde o sujeito é realista concreto e até seus sonhos são repetições da realidade Este conceito envolve um ou tro a segunda noção de funcionamento insuficiente do préconsciente Pierre Marty relaciona o proces so de somatização à primeira tópica freudiana e as neuroses à segunda a insuficiência do préconsciente é responsabilizada pela concretude do pensamento operatório em oposição à riqueza associativa que a capacidade simbólica plena possibilita Também o relaciona a falhas de defesas organiza das em torno do caráter e do comportamento Quando a relação real com o mundo dada pelo comportamento sofre um traumatismo importante a falha ou má for mação do préconsciente anuncia sua presença através do sintoma somático Cito de Marty sua descrição das possibilidades de organização do processo de somati zação Eu considero atualmente como principais for mas dos processos de somatização a a inadaptação de respostas somáticas às excita ções do inconsciente pela intermediação de uma inibição ou de uma supressão prolongada de re presentações de diversas ordens b as más formações do préconsciente nas neuroses de comportamento c as falhas póstraumáticas do ego e do précons ciente nas neuroses de caráter d as regressões psicossomáticas Devese notar que o termo regressão implica mecanismos biológicos capazes de conter processo de desorganização O fenômeno somático surge não como a própria desorganização mas como uma ten tativa através de sistemas de fixação de dar conta dela Christophe Dejours aprofunda questões ligadas às somatizações e ao pensamento operatório e cons trói a hipótese da terceira tópica apoiado na ideia de uma dupla clivagem do sujeito na qual por um lado se desenvolveria uma relação mediada pelo re calcamento e pelo préconsciente e por outra uma relação entre o inconsciente primitivo contido pela própria consciência e pelo pensamento lógico conceitual Diz Dejours 1988 sobre os pacientes psicos somáticos Até um certo ponto nos mostram um funcionamento préconsciente Mas somente até um certo ponto pois sua vida mental parece às vezes muito acanhada entre um inconsciente e um préconsciente muito pobres quando se consegue percebêlos através dos retomos do recalcado Somos levados a admitir portanto que face ao inconsciente primitivo opõese um sistema que pode contêlo de maneira eficaz A observação clínica mostra que esses pacientes se mantêm graças a comportamentos e um modo de pensamento corretamente articulados à realidade Esse modo de pensamento é um modo eficiente realista que não tem nada a ver com o pro cesso secundário que reina no préconsciente carac terizado pelo que se chama associações Trata se portanto de um pensamento lógico resultado de uma aprendizagem Tratase de uma interpreta ção da realidade mas lógica fornecida do exterior aprendida e não uma interpretação fantasmática pelo sujeito Para uma sintetização dessa sequência argu mentativa ligada à via biológica poderíamos enume rar suas principais características que nos nortearão nos aspectos técnicos da psicoterapia 1 Admite uma diferença da manifestação histérica na medida em que no fenômeno somático não se consegue pelos mesmos meios de acesso sonhos atos falhos associação livre construir e decodifi car um discurso que não só determine mas consti tua simbolicamente o sintoma 2 A via biológica admite uma história mas esta his tória é ligada a vivências traumáticas cujo protó tipo é a perda do objeto ou algo que imaginaria mente lhe corresponda 3 É uma via anatômica ou seja se houve uma pa ralisia por exemplo encontrase também o seu substrato fisiopatológico 4 Relacionase intimamente com as noções de re tenção descarga ato fazendonos encarála sob o ponto de vista metapsicológico econômico mais que dinâmico 5 Tem como correlato no assim chamado paciente somatizante o pensamento operatório e a apren dizagem como meios de ligação e controle das Psicossomaticaindd 484 Psicossomaticaindd 484 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 485 possíveis desorganizações internas e externas no lugar da articulação associativa simbólica 6 É possível de ser pensada como curtocircuito como processos imediato de descarga semelhan te ao ato devido à insuficiência mediadora do préconsciente 7 Como consequência é melhor equacionada na primeira tópica enquanto os procesos neuróticos o são pela segunda tópica 8 Relacionase à supressão Unterdrückung e à cli vagem do ego 9 É desencadeada por um acontecimento da ordem da perda ou equivalente 10 Esta perda não é relacionada pelo sujeito ao fenô meno somático e em geral é minimizada e bem tolerada 11 É uma via estabelecida precocemente genetica mente antes do advento da palavra como orga nizador simbólico ou seja se estabelece em um período préverbal relacionandose à diferencia ção euoutro à organização do sentimento de ser e de existir Pode ser pensada como uma via que protege anacronicamente o sujeito de angústias dessa época portanto angústias de aniquilamen to ou psicóticas 12 Constituise sobre falhas nas relações primordiais notadamente com a mãe ou substituto PSICOTERAPIA DO PACIENTE SOMÁTICO A Psicoterapia psicanalítica e a Psicanálise en quanto método terapêutico organizamse tecnica mente em torno de quatro pontos básicos entrevistas preliminares diagnóstico e indicação contrato set ting e sessões propriamente ditas com a associação livre como regra fundamental para o analisando e a atenção flutuante uniforme para o analista Feita a indicação é realizado um contrato verbal no qual se determina o número de sessões semanais 3 a 5 geral mente e se estipulam os horários 45 a 50 minutos e a forma de pagálos O ambiente deve ser tranquilo relativamente isolado de estímulos externos Há um divã à disposição do analisando sugerindo quando não dito explicitamente a posição deitada O analista sentase atrás do analisando que em geral não deve vêlo Comunicase a regra fundamental associação livre ou de alguma forma através de intervenções conduzse o cliente a ela Esperase o desenvolvimn to de um processo a neurose de transferência cujo manejo e solução representam a própria solução da demanda analítica Muito simplificadamente eis uma síntese de análisetipo E com os pacientes psicossomáticos Co mecemos pelas entrevistas preliminares e o contrato Os pacientes somáticos raramente procuram a aná lise espontaneamente Quase sempre são derivados por médicos que os atendem clínica ou cirurgicamen te Exceção deve ser feita a pessoas que buscam ajuda não pela doença somática em si mas por uma eclosão de sintomas de outra ordem em geral angústias liga das à falência do sentimento de integração de iden tidade que surgem em seguida a um acontecimento traumático Descobrese na entrevista tratarse de al guém que sofre de transtomos psicossomáticos Mas ainda assim vêse nesses pacientes não uma busca de subjetivação mas uma desesperada necessidade de uma relação humana próxima de função imaginária que consiga minimizar a intensidade das angústias e das ameaças de desintegração Mas voltemos ao paciente psicossomático e a sua entrevista através de dois pequenos exemplos típicos Heloísa profissional liberal bemsucedida chega ao consultório dizendo ter sido encaminhada pelo Dr Fulano cirurgião que a operou Traz seus úl timos exames e uma série de radiografias para que as examinemos Diz Dr Fulano acha que eu preciso de análise E o Sr Outro exemplo Paulo engenheiro de uma estatal chega ao consultório dizendo ter sido encaminhado pelo clínico que o trata de úlcera duo denal há 4 anos Após dizer isso silencia Pergunto sobre sua vida sua história e dizme estar tudo bem É casado é feliz com a mulher e um filho e está bem no trabalho apesar de acharse excessivamente exi gente Perguntando muito mas muito mesmo con seguimos descobrir que quando o processo ulceroso iniciou Paulo havia recém se formado começara o seu primeiro emprego recém havia se casado e um acidente havia acontecido com o irmão O que há de singular nessas entrevistas Inicial mente a demanda que é fornecida por um outro e é aceita ou aprendida pelo paciente funciona como se fosse uma receita ou pedido de exame complemen tar Heloísa trazme suas radiografias Paulo sua indi cação clínica Há um pedido inicial de algo concreto objetivo algo que possa ser aprendido ensinado e não desvendado descoberto Não há podemos dizer o que descobrir e sim o que cobrir fazendo um jogo de palavras Também notamos uma dissociação abso luta entre o acontecimento traumático e os sintomas corporais E aí reside nossa tarefa primeira a recons tituição histórica a cronológica e a integração en tre datas acontecimentos e eclosões somáticas isso pode dar ao paciente uma primeira consciência da relação de seus sintomas com algo maior de caráter existencial e ajudar a criar um sentido inicial e uma noção da razão de ser do tratamento Mas esta é uma construção cuidadosa arrancada a sacarolhas pelo terapeuta que dá a medida do lugar por onde va mos caminhar e do ativo trabalho do psicanalista Se Psicossomaticaindd 485 Psicossomaticaindd 485 05012010 121223 05012010 121223 486 Mello Filho Burd e cols o analista fica em silêncio esperando o sentido bro tar das associações livres tem uma amarga surpresa Não brota sentido Há também o silêncio formase um clima de incompreensão de surpresa decepção e comumente interrompese o tratamento Admitida essa presença viva falante questionadora e ativa do analista como algo necessário é fácil imaginar que esta psicoterapia deve ser conduzida face a face e não com o paciente na posição deitada A visão perma nente do analista de suas expressões de uma presen ça física concreta permite uma relação pessoal que reputamos fundamental O paciente psicossomático não está em Tebas à beira de um oráculo à espera de uma decifração Ele está em busca de uma relação hu mana interpessoal que possa ajudálo a constituirse mais plenamente como sujeito e quem sabe um dia possa até desejar buscar um oráculo Pierre Marty ci tando Catherine Parat diz a esse respeito a regra fundamental não é editada como uma regra o tera peuta está na necessidade de verbalizar de propor assuntos de colocar questões e de responder às do paciente de abrir vias caminhos lá onde o paciente não as pode construir O laço positivo sustenta esta relação por elementos de identificação sublinhados e fornecidos A idealização frequente repetida por um longo tempo e manejada com delicadeza pode servir à elaboração de introjetos muito úteis A in terpretação quando é necessária é mais explicativa que lapidar Partindose da ideia da impossibilidade de vi venciar plenamente estados afetivos e da ameaça que estes representam para o sujeito o estabelecimento de uma relação coloquial e viva com o analista é não só objetivo buscado como secretamente festejado Assim as manifestações transferências são bem vindas e devem ser vividas e não interpretadas A in terpretação quando houver deve tratar de promover uma maior aproximação do paciente a estas vivências que surgem mesmo muito idealizadas Ainda sobre a interpretação psicanalítica clássi ca penso que além de equivocada técnica e teorica mente é vivida como invasão ou sugestão e como fe rida narcísica Marty diz a respeito algo interessante Uma interpretação terá toda a chance de produzir uma dupla ferida narcísica ao mostrar ao paciente a estranheza do terapeuta de uma parte e a insuficiên cia do seu próprio pensar de outra Nos pacientes neuróticos a interpretação sim bólica tem o sutil efeito de desvelar um sentido ocul to pela semelhança de uma metáfora enquanto no paciente somatizante ela terá mero efeito de analo gia Exemplificamos se a uma pessoa neurótica que passa uma sessão de braços cruzados ao interpretar se essa expressão corporal é possível que surjam as sociações do tipo é verdade ando meio parado na vida de braços cruzados como você me apontou No paciente somatizante a mesma interpretação tal vez provocasse algo como Estou cansado tive ontem uma dor no braço assim está mais confortável o que para o neurótico é um campo lúdico associati vo metafórico para o somatizante é um campo da analogia pura assim como num dicionário de sinô nimos Ou seja devem ser evitadas as interpretações simbólicas que não encontrarão eco ou serão vi vidas como invasão ou algo engraçado podendo ao cabo de algum tempo o paciente até aprender a for mulálas e nos surpreender com essa aprendizagem Mas certamente estará aprendendo psicanálise e não sendo psicanalisado Não havendo um funciona mento suficiente do préconsciente não haverá cam po para a eficácia dessas interpretações Como o fenômeno somático se estabelece numa fase préverbal é fácil imaginar com que fragilidade pessoal estaremos lidando na análise destes pacien tes Assemelhamse muito aos chamados pacientes narcísicos embora no caso destes sejamos frequente mente alertados sobre nossos equívocos e falhas atra vés das mágoas ressentimentos silêncios ou mesmo crises de fúria narcísica Nos pacientes somáticos muitas vezes os sinto mas somáticos substituem estas manifestações dei xandonos bastante atônitos e impotentes Citamos dois pequenos exemplos já publicados em trabalho anterior Santos Filho 1987 mas bastante esclare cedores O primeiro de Antônia 46 anos solteira Sofria de doença de Crohn uma doença intestinal de natureza imunológica razão pela qual já havia sido operada uma vez Certa feita em seu segundo ano de tratamento falávamos sobre os homens em sua vida e sobre um namorado com quem estava sain do Discorria sobre suas dificuldades em aproximarse sexualmente desse homem o que sugeria algo de natureza histérica Interpretamos essa situação como decorrente de uma relação com um pai analista idea lizado que a aprisionava impedindo a aproximação com outro homem e criando uma área de proibição pulsional Vinhamos há tempo falando sobre seu pai realmente idealizado e proibidor Concordou e saiu com o namorado No dia seguinte ligavame de um hospital onde estava intemada com crise intesti nal séria que quase lhe valeu outra cirurgia O que aconteceu Antônia tomou emprestada minha supos ta genitalidade acreditou que queríamos que ela ti vesse relações sexuais com o namorado e realmente quería mos vemos hoje o que seria uma vitória para nós dois e partiu para a ação Após o encontro a crise e a internação Alguém poderia lembrar reação tera pêutica negativa por intensos sentimentos de culpabi lidade Talvez mas o principal o que não reconhece Psicossomaticaindd 486 Psicossomaticaindd 486 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 487 mos na ocasião foi o caráter da aproximação de nós e do namorado O que Antônia realmente precisava era que re conhecêssemos sua enorme necessidade de aproxi marse de alguém e sua imensa dificuldade face às ameaças de fusão e separação Falamos a uma mu lher quando a demanda era que cuidássemos de um bebê Não nos demos conta de como éramos nós e o namorado vitais para ela naquele momento Como essa outras crises aconteceram Mais tarde pudemos estabelecer algumas correlações e descobrimos que não se pode adiantar esse processo O segundo exemplo Paula uma mulher de 40 anos asmática Procurounos após uma psicoterapia em que havia se apaixonado pelo médico criando uma situação de aparente impasse Noutra psicote rapia anterior também havia se apaixonado pelo te rapeuta tendo ambos resolvido terminar a terapia e ficado amigos Essas duas paixões muito intensas já dizem das necessidades de Paula Numa ocasião no início do tratamento tentava relacionar uma piora no quadro asmático à ansiedade de separação surgi da por ocasião de uma briga conjugal Nessa mesma época Paula contou várias experiências extracon jugais todas com homens casados em sua maioria médicos Preocupados contratransferencialmente com o seu casamento tentamos buscar correlações inconscientes que motivassem a busca de relações com homens casados e nos afastamos um pouco do cuidado de nossa relação No dia seguinte à sessão em questão Paula internase num Pronto Socor ro com uma crise séria de asma Na sessão seguin te dizme que tomou tantos remédios para a crise e usou tanto por conta própria um vaporizador broncodilatador que seu médico disse que mais uma bombada poderia têla matado Mesmo concre tamente matado Só então compreendemos que di zia ser a nossa relação tão importante para ela como uma questão de vida ou morte Só se estivesse muito gravemente enferma ou mesmo à morte seríamos capazes de entender suas necessidades e nos aproxi mar mais dela de seu sofrimento de suas crises do risco de vida que corria em vez de ficarmos preocu pados com seu casamento Essa compreensão trouxe grande alívio e sensação de encontro entre nós Esses exemplos mostram a delicadeza e a sutileza que es tes pacientes exigem de nós E o que é mais curioso é que aparentemente operatoriamente entendem nossas falhas aceitam nossos erros e equívocos exa tamente da mesma maneira que atravessariam uma situação de perda Tudo bem Sem sentimentos sem afetos com entendimento e compreensão maduros e racionais Momentos ou dias depois a doença so mática eclode podendo colocar em risco a relação analítica pelo perigo de reações contratransferen ciais tais como interpretações devido à impotên cia e ameaça narcísica do analista Estas psicoterapias exigem tempo paciência e muito do analista como pessoa Os pacientes rela cionamse mais com as disposições verdadeiras in teriores do analista do que com as palavras que diz embora muitas vezes as palavras possam ter efeito sugestivo temporariamente aliviador Como o que se busca é a construção se possível de uma possibili dade elaborativa esta se contituirá às custas de um vínculo intenso e duradouro e o que é muito impor tante contínuo e confiável Estes pacientes frequen temente por serem tão compreensivos e racionais são justamente aqueles que em momentos de dificul dades nossas tenderíamos a deixar de atender um dia ou trocar uma hora ou atrasar Tudo será aceito mas há o risco de quebrar a única possibilidade que eles têm de saída a relação real com o analista du radoura e confiável Será através do préconsciente do analista que se orgariizará a capacidade simbólica do analisando somatizante Isso requer um trabalho lento e cuida doso no qual a intuição e os afetos do analista serão melhor bússola do que sua inteligente capacidade in terpretativa o que requer uma mudança na atitude habitual neutra e passiva Duas palavras finais uma sobre o setting e outra sobre o tratamento de crianças Esses pacientes pare cem muitas vezes desconhecer a noção de setting o que nos desnorteia frequentemente Trazem exames são capazes de trazer um amigo para a sessão foto grafias objetos dar presentes enfim não tratam o setting com o respeito com que os neuróticos costu mam tratálo principalmente aqueles que já conhe cem psicanálise por informação O setting deve ser a pessoa do analista e só Em momentos de maior en contro são capazes de comportarse como crianças sentar no chão e brincar com algo em vez de falar dis so tentando refazer um vínculo perdido Os limites e contornos vão se constituindo aos poucos enquanto se organizam também outras funções do pensamento e o processo criativo Sobre as crianças tudo que aqui foi dito é vá lido para a psicoterapia das crianças com algumas diferenças Essas diferenças dizem respeito ao uso dos brin quedos e dos desenhos e esculturas de massa como objetos intermediários Nessas psicoterapias deve ser buscada a possibilidade de brincar desenhar e jogar como encontro do objeto intermediário Às vezes Remetemos o leitor aos trabalhos de D W Winnicott sobre psicoterapia infantil Por exemplo O ambiente e os proces sos de maturação Porto Alegre Artes Gráficas 1990 Psicossomaticaindd 487 Psicossomaticaindd 487 05012010 121223 05012010 121223 488 Mello Filho Burd e cols o próprio corpo do analista pode envolverse nesse processo No mais teremos a chance invulgar de ver ali aos nossos olhos desenvolverse o processo de criação simbólica e o que é também muito impor tante com um caráter preventivo já que reside no tratamento da criança com fenômenos psicossomáti cos a possibilidade de prevenção e profilaxia de serios acidentes corporais na idade adulta PSICOTERAPIA DO PACIENTE SOMÁTICO NO AMBULATÓRIO DAS INSTITUIÇÕES O ambulatório institucional admite algumas di ferenças do consultório privado em sua prática psico terápica com consequência sobre a atuação do psi coterapeuta Embora algumas vezes negada é importante que se situe a relação instituiçãoprofissional de saú de como elemento diferenciador muitas vezes contri buindo para o estabelecimento de uma prática bem diversa da prática privada Os baixos salários as más condições de trabalho o desprestígio da categoria mé dica são fatores que em nossa realidade institucional brasileira com diferenças regionais é claro afetam de forma negativa o trabalho ambulatorial podendo contribuir de forma consciente ou inconsciente para a constituição de identificações dos profissionais com a instituição que são sempre se não forem ardua mente discutidas e refletidas iatrogênicas Descreveremos as características principais da psicoterapia em um ambulatório de pacientes somá ticos tentando evidenciar algumas tipicidades dessa prática Em termos teóricos e clínicos são válidas to das as afirmações anteriores deste capítulo Sobre a seleção de pacientes Tentamos nos últimos sete anos estabelecer critérios de seleção para a admissão de pacientes em psicoterapia em um ambulatório que não está liga do nem a um serviço de psiquiatria nem a um setor de psicoterapia Corremos em várias direções teóri cas em nossas reuniões de discussão de casos clínicos semanais buscando encontrar um amparo que jus tificasse este ou aquele critério de seleção Ao cabo de muita busca definimos o critério sintomático como o melhor em oposição a um critério diagnóstico es trutural nosológico muito mais complexo difícil e frequentemente equivocado Em outras palavras admitimos como elemento suficiente e necessário para a seleção a existência de um sintoma corporal de uma queixa somática qual quer que seja O diagnóstico e a orientação psicoterápica sur girão no decorrer da própria psicoterapia Achamos ser o melhor critério por razões várias Inicialmen te esta é uma área do conhecimento psicanalítico psicológico e médico ainda insuficientemente estuda da sujeita a modificações e novas descobertas que a consolidem Por outro lado os psicoterapeutas não apresentam uma homogeneidade de conhecimento amparandose em diversas correntes teóricas algu mas delas opostas em relação ao fenômeno somático para a realização de seu trabalho Demanda e deman dará muita discussão clínica e teórica a construção de uma homogeneidade conceitual e de princípios técni cos claros que sejam pouco refutáveis em relação ao paciente psicossomático Outra razão deste critério é a busca do alívio sintomático tão presente nas psicoterapias institucio nais como elemento muitas vezes chave e fundamen tal Para a instituição tão articulada ao saber médico e aos poderes públicos importa mais a remissão dos sintomas o que é garantia de sucesso para o psicote rapeuta além do benefício inequívoco ao paciente A seleção é realizada através de entrevistas que podem ser feitas especificamente por um ou alguns dos profissionais do serviço criandose um setor de triagem e seleção ou pelo próprio profissional que atenderá o paciente É importante que haja um espaço para discussão destas triagens com todos os elementos envolvidos na tarefa O ideal é a reunião clínica com frequência semanal ou quinzenal em que em sistema de rodí zio sejam apresentados e discutidos os casos clínicos envolvendo a seleção a indicação e a evolução da psicoterapia Quando existirem estagiários ou uma diferença muito grande de experiência e conhecimento entre os profissionais do ambulatório as entrevistas de se leção deverão ser feitas pelos psicoterapeutas mais experientes que também deverão dar supervisão aos menos experientes e aos estagiários Características da psicoterapia Os pacientes atendidos no ambulatório de Psi cossomática raramente assim como no consultório particular procuram espontaneamente a psicote rapia São ou egressos do hospital de referência ou vêm indicados por médicos das diversas clínicas do Ambulatório do Serviço de Medicina Psicossomática do Hospital Central do IASERJ Psicossomaticaindd 488 Psicossomaticaindd 488 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 489 ambulatório geral Atualmente também vêm indica dos por outros profissionais de saúde da instituição como assistentes sociais enfermeiras e nutricionistas Essa característica reforça a necessidade da articula ção entre o ambulatório e as práticas de Psicologia Médica e Medicina Psicossomática do hospital geral como a interconsulta os grupos Balint e os trabalhos psicoterápicos de enfermaria É fácil supor que se a demanda psicoterápica do paciente psicossomático é construída pelo profissional de saúde e na maior parte das vezes pelo médico que o atende fazse fun damental que uma boa relação interprofissional seja construída precocemente e não tardiamente após em geral longos períodos de fracasso terapêutico e ou iatrogenias diversas Citamos dois exemplos para ilustrar a necessidade de uma relação permanente entre os profissionais do ambulatório e as diversas clínicas do hospital geral O primeiro de D Florinda 50 anos atendida inicialmente na enfermaria e em seguida no ambulatório O profissional do serviço foi chamado à enfermaria por uma residente que estava preocupada pois D Florinda seria reoperada pela se gunda vez em 15 dias por vômitos pósoperatórios O diagnóstico era de gastrite biliar grave após cirur gia de úlcera duodenal que persistia depois de uma segunda cirurgia realizada para minimizar as causas mecânicas da gastrite Com a residente colhemos a seguinte história D Florinda sofria há nove anos de úlcera duodenal resistente ao tratamento clínico resistência essa que levou à indicação cirúrgica Foi operada e no pósoperatório imediato surgiram vômi tos incoercíveis o que levou ao diagnóstico de obstru ção mecânica e gastrite por suco biliar Foi novamen te operada e no pósoperatório imediato de novo os vômitos e a gastrite Desesperada a residente colheu sua história pessoal e descobriu que há nove anos no início dos sintomas digestivos de úlcera duodenal Florinda havia perdido por morte súbita seu marido e seu pai com um intervalo de um mês Foi iniciada uma psicoterapia e Florinda não necessitou ser reo perada com um resultado muito bom em termos da elaboração deste luto duplo congelado digamos as sim em termos sintomáticos O segundo exemplo é o de Maria Lícia já extensamente estudado em traba lho anterior Santos Filho 1986 que com uma dor vulvar histérica iniciada após a morte de seu marido por insuficiência cardíaca agudizada pelo esforço de uma relação sexual em que sentiu dor percorreu por dois anos diversos ambulatórios e hospitais de nossa cidade sendo submetida a seis exames ginecológi cos um exame proctológico com retossigmoidosco pia um exame contrastado do trato urinário urogra fia excretora seis citoscopias uma flebografia um clister opaco radiografias da coluna vertebral uma laparotomia exploradora dois bloqueios de coluna e 24 bloqueios anestésicos suprapubianos Após sua entrada no Setor de Emergência foi chamado um profissional do serviço que a entrevistou indicou e realizou uma psicoterapia de cerca de um ano com excelentes resultados Esses exemplos dão conta da importância da correta divulgação entre os médicos das possibilidades do trabalho psicoterápico Após as entrevistas de seleção são indicados para psicoterapia os casos de neurose e os pacientes somatizantes Os pacientes psicóticos são encaminha dos ao ambulatório de psiquiatria exceto aqueles em que o diagnóstico só for feito no decorrer da psicote rapia quando então se prossegue com ela Em nos so ambulatório após diversas experiências optamos por um mínimo de uma sessão semanal com duração mínima de 30 minutos e embora tenhamos convic ção do caráter arbitrário dessa frequência ela tem se mostrado suficiente na maioria dos casos No início pensamos em limitar o tempo da psicoterapia em seis meses mas a própria prática tratou de derrubar esse limite deixando a psicoterapia seguir seu próprio cur so Não temos uma avaliação estatística mas a grosso modo a grande maioria dos pacientes pertence aos diagnósticos de neurose e de doenças universalmente aceitas como psicossomáticas como úlcera retocoli te asma coronariopatia e hipertensão Há um grau de abandono de tratamento relativamente grande maior do que na clínica privada Não temos uma ex plicação satisfatória para esse fato crendo deverse a uma causalidade multifatorial O modelo psicoterápico é a psicanálise e a psi coterapia psicanalítica tal como ela é praticada no consultório não se utilizando das noções de foco por exemplo o que diferenciaria mais a técnica Uma observação pessoal dá conta da proximidade como vimos nos exemplos anteriores entre o desencadea mento de sintomas somáticos após situações de perda e o aparecimento de sintomas neuróticos relacionados à não elaboração do luto Embora por caminhos dife rentes apresentam uma certa semelhança causal con tida na tríade perda impossibilidade do luto sinto ma corporal Logo algumas psicoterapias seguem um caminho de reencontro do trabalho do luto Como lidase com uma camada menos favoreci da da população menos intelectualizada e mais pri mitiva vemos com maior frequência manifestações histéricas bastante ruidosas nas quais as interpreta ções adequadas são relativamente eficazes por haver um mínimo de racionalizações intelectualizadas No mais respeitandose os critérios de número de sessões e tempo delas as psicoterapias ambula toriais institucionais seguem os mesmos parâmetros técnicos e teóricos da psicoterapia psicanalítica de consultório o que aliás pensamos ser fundamental como marco norteador do comportamento dos pro Psicossomaticaindd 489 Psicossomaticaindd 489 05012010 121223 05012010 121223 490 Mello Filho Burd e cols fissionais em termos do manejo do contrato e das si tuações de férias e ausências às sessões Assim penso que cada profissional deve ter plena consciência dos efeitos nocivos da mediação da instituição devendo assumir diretamente com seus pacientes a responsa bilidade por remarcações desmarcações férias or ganização dos horários etc tal como o faz no con sultório Quando há estagiários é importantíssima a reflexão conjunta sobre este modelo de atendimento e sua diferença do modelo alunofaculdade Há frequentemente a tendência a identificar a tarefa como universitária tal como aulas ou trabalhos escritos o que pode conduzir a atitudes iatrogênicas Também deve ser levado em conta o período do es tágio que condicionará naturalmente a psicoterapia a ser breve e de tempo limitado o do estágio Sistematizando as características principais da psicoterapia psicanalítica do paciente somático no ambulatório das instituições podem ser enumeradas 1 São práticas onde há a mediação em vários níveis desde o mais concreto ao imaginário da institui ção Esta mediação deve ser levada em conta em todos os aspectos da psicoterapia notadamente no contrato e no seu cumprimento 2 Modelase na psicoterapia psicanalítica de con sultório e em última instância na psicanálise enquanto prática clínica psicoterápica maior por excelência 3 Tem características formais como número de sessões e tempo de duração manejáveis segindo critérios mínimos adequados à situação institu cional para atender simultaneamente às neces sidades singulares de cada paciente e à demanda numérica de clientes evitando filas e esperas pro longadas Também depende da relação número de psicoterapeutasprocura do ambulatório 4 Modelase enquanto técnica e tática nos pres supostos teóricoclínicos referentes aos pacientes somáticos exigindo uma atitude ativa empática e pouco interpretativa do terapeuta como já des crito anteriormente neste texto 5 Exige do grupo que a pratica uma reflexão cons tante através de reuniões de discussão de casos clínicos semanais em que devem ser discutidos sistematicamente os casos desde a seleção até a evolução 6 É uma prática que deve estar articulada a outras de Psicologia Médica principalmente ligadas ao hos pital e ao ambulatório geral Nas atividades de en fermaria podemse conseguir encaminhamentos logo após a alta hospitalar o que evita iatrogenias e reinternações Nas atividades de ambulatório interconsultas por exemplo podese conseguir evitar o conluio no anonimato tão comum nos pacientes psicossomáticos bem como cronifica ções e complicações orgânicas mais graves 7 Finalmente representa uma prática do futuro em especial quando se trata de crianças residindo aí uma esperança de minimização de algumas doen ças orgânicas posteriores Isso por si só justifica um forte investimento institucional nesta área da prática assistencial e um compromisso maior dos psicanalistas e instituições psicanalíticas envolvi dos com as questões mais amplas de saúde REFERÊNCIAS Dejours C O corpo entre biologia e psicanálise Porto Alegre Artmed 1988 Freud S Fragmento de un caso de histeria In Obras completas Buenos Aires Amorrortu 1973 McDougall I Três corpos três cabeças In Em defesa de certa anormalidade Porto Alegre Artmed 1983 Santos Filho oCIatrogenia e relação médicopaciente Recife Revista de Psicossomática n 1986 Psicanálise de pessoas com estmturas psicossomáticas Algumas ideias Boletim da Soc Psican Rio de Jan1987 Selye H Le Stress de la vie Paris Gallimard 1965 Psicossomaticaindd 490 Psicossomaticaindd 490 05012010 121223 05012010 121223 As psicoterapias em instituições médicas para pacientes hospitalizados ou ambulatoriais têm como objetivo proporcionar auxílio àqueles pacientes que não estejam conseguindo lidar com o impacto da realidade de sua doença eou com o estresse pro vocado pelas vivências e reações ao âmbito médico hospitalar A resolução favorável do ponto de vista emocional ou o adoecimento psicológico resultante da experiência de estar enfermo dependerá de forças homeostáticas entre a estrutura emocional recursos adaptativos e a realidade externa Na interconsultoria a demanda para um aten dimento psicológico não parte do paciente é oriunda de um membro de outro Setor ou Serviço que não o de Psicologia Médica e o terapeuta designado para fazer o atendimento não é escolhido pelo paciente Portanto a especificidade desta forma de psicotera pia tornase óbvia assim como a necessidade de mo dificações nas técnicas desse atendimento Por ser o local de atendimento dentro de uma enfermaria ou de um ambulatório é importante que o terapeuta possua uma visão sistêmica o paciente no seu aqui e agora inserido no contexto hospita lar e sob a ação de vetores complexos tais como ser obrigado a conviver em um ambiente inusitado cer cado por pessoas desconhecidas ter que se submeter a rotinas estranhas precisar confiar o corpo para ser manuseado por pessoas não familiares não ter priva cidade nem autonomia etc O primeiro passo ao atender a um pedido de consultoria deve ser o de comunicar ao paciente o motivo pelo qual foi requisitada uma avaliação psi cológica ou um atendimento psicoterápico É impor tante transmitir que embora a avaliação seja neces sária por ter sido requisitada NÃO É MANDATÓRIO que ele aceite a proposta psicoterápica ele pode não desejar um atendimento psicológico ou pode não concordar com a razão exposta para o atendimento Como tudo o mais a que o paciente se submete no decurso de sua hospitalização são obrigatórios os procedimentos as coletas de material os exames a alimentação os horários etc mas o simples fato de lhe ser permitido fazer uma escolha já favorece a for mação de um vínculo positivo com o terapeuta evita a aceitação apenas educada da presença do terapeuta e é uma forma de respeito à privacidade e individua lidade da pessoa A permissão portanto para recusar a psicoterapia é igual à permissão para fazer uma es colha A possibilidade de poder optar introduz as sim um elemento salutar de resgate de sensações de poder e de controle que na maioria destes pacientes encontramse abaladas em decorrência da doença e de seus desdobramentos A elucidação para o paciente sobre o propósito do atendimento tem também uma importância fun damental que é transmitir a compreensão de que o atendimento psicológico vai além de um simples vim aqui conversar com você Pode ser bastante adver so um terapeuta referirse a seu trabalho como uma conversa isso dificulta ao paciente a percepção de uma ação profissional especializada e de uma meta de trabalhoatendimento e além do mais conduz a divagações pouco produtivas Vemos horas preciosas serem gastas em atendimentos onde um terapeuta menos experiente pode ficar controlado pelo pa ciente conversando sobre amenidades sem nenhum efeito terapêutico verdadeiro Empatia apenas com o sofrimento do paciente tem efeito fugaz e pode ser fornecido por profissionais de profissões diversas ao seu redor assim como por amigos e familiares É importante avaliar sucintamente a capacidade cognitiva do paciente quadros discretos e não de tectados de comprometimento cognitivo delirium e demência são mais frequentes do que se imagina em pacientes hospitalizados podendo levar a cognições e comportamentos mal adaptativos que por sua vez exigirão intervenções psicológicas específicas e ade quadas ao déficit cognitivo em questão além do uso de medicação psicotrópica apropriada Em uma entrevista inicial pode acontecer que o psicoterapeuta conclua que não há indicação para um atendimento psicológico O ideal nesta situação é além de anotar esta observação na papeleta do paciente que se fale pessoalmente com quem soli citou o parecer Se houver necessidade de mais de um contato com o paciente para esclarecer melhor a 41 PSICOTERAPIA EM INSTITUIÇÕES MÉDICAS Therezinha Lucy Monteiro Penna Psicossomaticaindd 491 Psicossomaticaindd 491 05012010 121223 05012010 121223 492 Mello Filho Burd e cols procedência ou não da solicitação de atendimento o mesmo deverá ser devidamente informado Uma grande maioria dos pacientes tem condi ções de tolerar os traumas de uma cirurgia de pro cedimentos diagnósticos de tratamentos descon fortáveis ou dolorosos etc sem precisar da ajuda profissional de um psicólogo ou de um psiquiatra Daí a necessidade de se avaliar se o pedido de aten dimento psicológico solicitado pelo médico não enco bre na realidade uma dificuldade na relação médico paciente ou dificuldades do médico na comunicação com o paciente a respeito de temas potencialmente ameaçadores e aflitivos Nem sempre o paciente reconhece a necessida de de ser ajudado psicologicamente seja devido a fatores culturais seja devido a fatores emocionais Sua atenção e preocupação estão voltadas para seu corpo para as transformações ou deteriorações que possam estar ocorrendo neste corpo para as conse quências reais ou fantasiosas da doença assim como para as ações terapêuticas praticadas sobre seu corpo Isto pode dificultar o acesso aos aspectos psicológicos da situação em curso e também à formação de uma aliança necessária para a realização de uma terapia psicológica Por outro lado a aquiescência do paciente em falar com o terapeuta não implica necessariamente numa possibilidade de engajamento em uma psicote rapia Para pacientes sem exposição anterior à psico logia é comum achar que aquilo que o terapeuta vai fazer é apenas conversar com ele e não que isso seja um tratamento psicológico Não compreendem que não basta falar sobre seus problemas e angústias sem paralelamente ter um olhar para dentro de si mesmos Despertar a curiosidade do paciente para conhecer a si mesmo para refletir sobre suas ques tões é o primeiro passo para um trabalho a dois uma parceria sem a qual nenhuma transformação emocional cognitiva ou comportamental poderá ser alcançada No tocante ao terapeuta um erro grave no aten dimento a esse tipo de pacientes é a pressuposição de que qualquer ajuda verbal é benéfica isto não tem base científica e denota uma autocracia onipotente por parte do terapeuta O conjunto desses fatores aponta para a difi culdade de se conseguir alcançar uma compreensão psicodinâmica rápida e não superficial do paciente essencial para permitir uma formulação do problema ou queixa que o mesmo apresenta em relação à ges talt do momento atual Como fazer A forma de se resolver esta dificuldade é através de uma atuação mais ativa por parte do terapeuta com um planejamento de abordagens que facilitem a obtenção de dados relevantes para o atendimen to Lemgruber 1984 Essa atividade se traduz na colocação de perguntas objetivas e pertinentes para o paciente sobre assuntos específicos ao caso além de uma escuta A sensibilidade e a experiência do profissional são fundamentais para o encadeamento dessas perguntas de modo a não ser dada uma cono tação de um interrogatório ou de um questionário Uma escuta de atenção flutuante que busca as sociações inconscientes na fala do paciente é menos eficaz do que uma escuta atenta ao que não é dito paralela à colocação de perguntas que endereçam questões ligadas ao pedido de parecer e também às alterações psicológicas mais comuns em pacientes nestas situações Ao solicitarmos que o paciente nos relate a sua história sobre a doença que o acomete coletamos in formações sobre o que ele sabe sobre o que não sabe o que omite o que teme o que imagina para o futuro como lida com a situação e até mesmo sobre como as pessoas significativas de sua vida interagem com as modificações causadas pelo seu adoecer Também indagar sobre experiências pregressas com doenças com médicos e com hospitalizações é útil pois forne ce dados importantes para esclarecer questões atuais Finalmente precisamos saber se o paciente tem ou já teve eficácia para lidar com situações de estresse de um modo geral Buscar entender o que motivou a solicitação do parecer psicológico ou do atendimento é essencial pois nem sempre o que consta no pedido do parecer é compatível com o que elucidamos ao estar com o paciente Além de dados estas perguntas também po dem nos alertar sobre certos mecanismos emocionais específicos que são os da representação simbólica que a doença tem para a pessoa punição Perda de controle Injúria narcísica Medo de dependência a terceiros e que podem estar na gênese de seu sofri mento emocional atual não sendo no entanto cons cientes para o paciente Strain 1975 Saber de antemão quais são as alterações psico lógicas mais comuns em pessoas com determinadas patologias clínicas ou cirúrgicas nos auxilia a estar atentos à ocorrência das mesmas O medo da morte por exemplo é quase sempre universal assim como o são certos temores ligados à sensação de deterioração do corpo Ao contrário do que possa parecer pergun tas não são uma forma intrusiva de interação e sim um interesse sincero em compreender os anseios e temores de quem necessita de uma ajuda para se com preender melhor portanto ajudam a formar um vínculo positivo com o paciente E também não impe dem que o paciente ao respondêlas amplie sua fala para assuntos paralelos que no momento o estejam Psicossomaticaindd 492 Psicossomaticaindd 492 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 493 preocupando ou afligindo Podese até mesmo dizer que funcionam como um facilitador para que o doen te se sinta mais à vontade com um profissional que perceba demonstrar empenho em compreender suas preocupações e desventuras Além do mais este tipo de planejamento de abordagens e busca de informações facilita e acelera o atendimento psicoterápico sem prejudicar a espon taneidade ou a livre associação do paciente proces sos do inconsciente auxiliando o terapeuta a esco lher um foco de trabalho mais premente e vital A colheita de informações serve também para nos dar uma ideia a respeito da capacidade que o doente tem para lidar com o momento em que se encontra seja a existência de uma doença crônica que o leve a man ter visitas regulares a um ambulatório seja o acome timento de uma doença grave que o tenha levado a uma hospitalização Aliviar a dor emocional não deve ser o único objetivo de um atendimento psicológico isso será de efeito efêmero se não for acompanhado de interven ções que auxiliem o doente a por em ação recursos próprios para buscar soluções melhores no enfrenta mento a uma situação indesejável como a de uma doença física Em uma terapia com pessoas portadoras de doen ças graves ou crônicas uma boa adaptação e efi cácia para lidar com as limitações perdas e sofrimen tos impostos pela doença implica na diferença entre uma vida mais ou menos feliz ou uma melhor ou pior qualidade de vida na vigência da enfermidade A resolução favorável do ponto de vista emocional ou o adoecimento psicológico resultante da experiência de estar enfermo depende de forças homeostáticas entre a estrutura emocional recursos adaptativos e a realidade externa Adaptação e eficácia são conceitos que me dem a capacidade de se obter a melhor resposta possí vel diante de um estressor levandose em consideração as limitações da pessoa e da situação Anteriormente estigmatizados pela psicanálise atualmente são con ceitos considerados valiosos devido à gama de estudos que comprovam sua importância no papel que desem penham para a capacitação de um indivíduo diante de adversidades e dificuldades Schein et al 2003 A adaptação de uma maneira geral depende de recursos interpessoais apoio familiar e social vín culos de confiança com médicos e cuidadores e de recursos intrapessoais autoconfiança flexibilidade temperamento tolerância à frustração e vulnerabi lidade ao estresse A capacidade de adaptação tem influência sobre a recuperação a tolerância à dor e ao desconforto físico sobre a aceitação de próteses e ostomias sobre o abuso de analgésicos ansiolíticos e bebidas alcoólicas e sobre a forma de lidar com a perda de determinadas funções como visão audição marcha etc Portanto influi na qualidade de sobrevi da do ser humano Outros conceitos importantes são o de resiliên cia em oposição ao conceito de vulnerabilidade que é a capacidade de uma pessoa para adaptarse a eventos negativos sem que isso lhe cause maiores danos e o conceito de coping lidar com Estas ca racterísticas psicológicas são essenciais para a avalia ção do potencial de um indivíduo no enfrentamento a eventos adversos e indesejáveis A resiliência do pa ciente acrescida de sua forma de lidar com a doen ça coping determinam a capacidade de resolução ou seja o potencial que uma pessoa possui para agir positivamente nos desdobramentos emocionais e comportamentais de seu sofrimento Toda modificação do funcionamento corporal ou da imagem corporal exige uma adaptação a esse novo não desejado nem buscado Esta aceitação forçada gera uma gama de possibilidades emocio nais tais como desespero raiva medo irritação e angústia que em grande parte não são relatados a terceiros estas emoções vêm à tona mascaradas de impaciência intolerância rabugice comportamen tos de dependência etc A estrutura emocional de um indivíduo não é passível de ser mudada em curto prazo ainda mais quando a realidade externa desfavorável está sujeita a fatores fora de seu controle No caso de pacientes hos pitalizados isto é ainda mais óbvio Portanto uma psi coterapia tem o propósito de instrumentalizálo para lidar da melhor maneira possível com sua situação atual e quando possível para utilizar a oportunida de no sentido de obter ganhos psicológicos em outras áreas de sua vida É justamente entendendo onde re sidem as fraquezas e as forças emocionais e cogniti vas do paciente e suas capacitações para resolver suas questões que um terapeuta terá a oportunidade de agir junto ao paciente estimulando aquilo que for positivo e levandoo a compreender onde residem suas vulne rabilidades e o porquê delas Watson e Greer sd Obviamente a busca de informações sobre o psi quismo dos pacientes corre paralelamente a uma es cuta não estruturada atenta e empática para além do que está sendo relatado para a forma como é dito e para o que é evitado de ser dito Tem também o ob jetivo de ajudar o terapeuta a determinar uma ques tão central prioritária a ser trabalhada com o paciente e quando possível um foco psicodinâmico de traba lho Entendese como foco a questão central esco lhida entre os demais relatos abrangentes feitos pelo paciente a respeito de seus problemas e sentimentos que possa ser compreendida como resultante do im pacto da realidade atual sobre conflitos emocionais inconscientes seria como uma ativação de conflitos Psicossomaticaindd 493 Psicossomaticaindd 493 05012010 121223 05012010 121223 494 Mello Filho Burd e cols psicológicos latentes anteriores às vivências de estar com uma enfermidade Ou seja seriam as queixas relatadas pelo paciente sobre o processo da doença moldadas pelo somatório de registros mnêmicos do passado Segundo Strain 1975 estas questões es tariam na ordem de conflitos gerados durante a in fância tais como medo de separação de abandono de punição de estar nas mãos de estranhos medo de danos ao corpo e necessidades de dependência É através do trabalho com um foco psicodinâmi co que o atendimento pode ter um efeito transforma dor e não meramente um efeito paliativo transitório Para esse tipo de abordagem psicoterápica é fundamental um outro conceito que é o de meta te rapêutica O trabalho com o paciente desde seu início deve ter um ou mais propósitos definidos através da avaliação do foco qual o fator que se sobressai dentre tudo o que ouvimos e observamos no relato e atitudes do paciente e que poderia ser trazido à tona com o objetivo de tornar o paciente consciente das conse quências negativas que isso lhe gera e que levam a uma limitação de sua capacitação para conviver com a realidade presente É possível diminuir a sua vulnerabilidade aos estressores Aumentar sua tolerância à frustração Desmistificar alguns medos ou percepções distorci das Melhorar sua capacidade de lidar com a reali dade atual Auxiliálo a maximizar sua rede de apoio familiar e social Ajudálo a alcançar uma adaptação ativa e competente Estas são metas ambiciosas porém possíveis de serem atingidas Irão depender por um lado das limi tações psicológicas de cada paciente da magnitude de perdas sofridas por ele e da adversidade de sua situação e por outro lado da habilidade e experiên cia do terapeuta Um planejamento de abordagens também faci lita a obtenção de uma eficácia terapêutica em um espaço mais curto de tempo tempo este sujeito a fa tores fora do controle do terapeuta e do próprio pa ciente como uma alta hospitalar um agravamento do estado clínico uma transferência para outra uni dade etc Na área médica o conceito de eficácia de proce dimentos é de fácil comprovação o que já não ocor re com as terapias psicológicas nas quais a aferição de eficácia é avaliada subjetivamente pelo terapeuta e pelo paciente com followups raros e precários do ponto de vista metodológico Uma melhora momen tânea do malestar emocional pode ser considerada eficaz para aquele momento mas se não promover uma mudança na estrutura psicológica do paciente uma permanência será que poderá ser considerada como realmente eficaz ou meramente paliativa Entramos aí na conceituação do que define uma psicoterapia versus intervenções de efeito psicológi co benéfico conceituação esta que também pode ser compreendida como modificar o conflito gerador do problema ou atenuar o problema contido no confli to Na psicoterapia dinâmica breve de tempo limita do almejase obter uma compreensão psicodinâmi ca do conflito psicológico reprimido e inconsciente usandose técnicas de planejamento foco e atividade do terapeuta Quando bemsucedida esta forma de trabalho leva a uma reestruturação novas conexões interneurais de processos mentais que se reflete so bre a percepção de si mesmo e de outras pessoas significativas para o paciente e consequentemente geram uma melhora da autoestima acompanhada de uma diminuição dos entraves interpessoais Portanto a meta do trabalho não se restringe apenas a uma autocompreensão e sim almeja alcan çar uma melhor adequação do paciente à sua doença e ao hospital com efeitos resultantes sobre a sua qua lidade de vida e sobre seus possíveis entraves inter pessoais Podese dizer que um efeito bônus disto é que melhorando esses fatores emocionais pode ocorrer paralelamente uma melhoria da sensação de bemestar físico em alguns pacientes As intervenções de efeito psicoterápico benéfico trabalham com o consciente havendo quem as con sidere intervenções paliativas Constam de interven ções de esclarecimento de informação de sugestões de correção de distorções cognitivas de fantasias no civas e de medos irracionais visam a dar estímulo a facilitar a expressão de emoções reprimidas a res taurar a autoestima etc São mais afeitas às terapias cognitivas e a atendimentos de aconselhamento A opção por uma ou outra forma de atendimento dependerá de fatores variados como condições pro pícias do paciente período disponível para realizar um tratamento psicológico e a formação teórica do terapeuta Muitas vezes o que é possível num atendi mento psicológico é um aconselhamento eu diria até que o mais comum são intervenções de esclarecimen to de ventilação de afetos e de sugestões Fletcher 1980 Seja uma ou outra forma que se escolha ou que se possa fazer a capacidade do terapeuta de for necer ao paciente uma sensação de holding é funda mental para o bom desfecho do atendimento Como tanto um tipo de intervenção como outro fazem parte das terapias consignadas como terapias breves isso nos traz para a questão de tempo No Brasil não temos o costume de trabalhar com o conceito de tempo limite ou número prédeter minado de consultas mantendose com frequência o atendimento por períodos prolongados que se esten dem enquanto o paciente permanecer internado ou desejoso de comparecer ao ambulatório Talvez por Psicossomaticaindd 494 Psicossomaticaindd 494 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 495 não haver um costume de se definir a forma de tera pia que está sendo empregada e nem a determinação de uma meta de trabalho deixase fluir o tempo Uma das consequências desse tempo não limitado é a expansão das questões a serem trabalhadas para áreas não relacionadas à demanda central da terapia isso pode levar a um reforço de defesas emocionais encobridoras dos conflitos mais pontuais que estão gerando as dificuldades atuais do paciente e o seu sofrimento emocional e consequentemente podem levar a um resultado terapêutico apenas cosmético transitório e pouco consistente Quando o tempo que se tem para trabalhar com o paciente é indeterminado isso afeta também a questão da resolutividade não há premência em se alcançar objetivos É até possível que nem se cogite de um objetivometa presumindo que isso engessa ria o paciente dentro de um molde prédeterminado pela pessoa do terapeuta Ou que uma meta signifi caria um desejo do terapeuta o que não deveria ser imposto ao paciente No entanto as metas supõem uma preocupação com a eficácia do atendimento respeitando as limitações da pessoa e supõem que o tempo dedicado ao trabalho com o paciente tem uma importância efetiva e transformadora Além do mais um tempo sem limites favorece a tendência a acreditar que estar junto ouvir ou desabafar é em si terapêutico e suficiente É in discutível que quando as pessoas podem falar de suas angústias e medos e podem sentir que estão sendo ouvidas com respeito e acolhimento isso é bom e faz bem porém isso não é psicoterapia e não tem efeito duradouro nem transformador podendo ser feito por outras pessoas empáticas que trabalham na enferma ria pessoas sem qualificação psicológica ou por um familiar ou um amigo e até mesmo por um paciente do leito vizinho Como sabemos a compaixão em si só não basta embora alivie momentaneamente o so frimento Outra consequência de se trabalhar sem o con ceito de tempo limite é a sobrecarga de trabalho que isso gera levando à necessidade de se manter um corpo de terapeutas grande o suficiente para aten der a todas as solicitações ou ao uso de estagiários e alunos sem a possibilidade correspondente de um número adequado de supervisores para a demanda gerada A Psicologia Hospitalar alcançou nas últimas décadas uma posição de vanguarda dentro das insti tuições e é inconteste o espaço de valorização alcan çado pela especialidade O desafio que está à frente é firmar esta posi ção em um mundo de economia de mercados onde a alocação de recursos financeiros é determinada por avaliações de produtividade relação custobenefício e aferição através de hardcore data comprovação mensurável de resultados Nesse mundo novo nossas intervenções irão precisar de protocolos ou de instrumentos de avalia ção que meçam resultados tangíveis de eficácia em uma área onde a subjetividade é o objeto e o instru mento de nossa observação Será um desafio que antes terá de derrubar cer tos conceitos e preconceitos arraigados e que preci sará introduzir metas novas ao trabalho como adap tação coping e resolutividade Caso clínico Paciente de 71 anos divorciada aposentada econo micamente independente apresentou uma recorrência de câncer de língua para a qual já havia se operado anos atrás e posteriormente a uma intervenção para a retirada de gân glios cervicais metastáticos O acesso cirúrgico para esta cirurgia atual implicava em retirada de parte da mandíbula de metade da língua de uma traqueotomia de longa permanência e de enxertos para recompor as partes excisadas Tudo isso levaria a um período de recuperação longo e sem garantias de sucesso cirúrgico total Apesar de tudo isso a paciente desejava submeterse à cirurgia uma vez que se não o fizesse era certo que o tumor continuaria a se alastrar e a morte seria inevitável A família da paciente por razões diversas era contrária à cirurgia e fazia pressão contínua sobre a paciente a esse respeito Esta no entanto adequadamente informada pela equipe médica de todo o procedimento médico cirúrgico e dos riscos decorrentes consciente do que a aguardava insistia em desejar se operar gerando um clima de desaven ças e discussões com os familiares que acabava incidindo de forma negativa no estado emocional da paciente A psiquiatra foi acionada pela equipe médica para fazer um atendimento à paciente e a seus familiares separada mente com o objetivo de ajudar a resolver o impasse No atendimento ficou claro que a razão que a pa ciente citava para desejar a cirurgia querer continuar vivendo para poder proteger seus filhos ambos com mais de 40 anos e independentes era uma racionalização de seus conflitos emocionais inconscientes em torno de separação Na história de vida da paciente esta relatou que seu pai separouse de sua mãe quando ela tinha 2 anos e foi morar em outra cidade deixando de ver a filha Posteriormente a mãe voltou a se casar e teve outros filhos A paciente en tão precocemente assumiu a tarefa de cuidar dos irmãos menores e com isso foi amadurecida para desempenhar o papel de adulta Obviamente perdeu a fase de criança e assumiu o papel de cuidadora A psicoterapeuta que tinha um prazo muito curto pou cos dias para atender à paciente antes da cirurgia optou por não interpretar a esta altura a motivação inconsciente da decisão da paciente de desejar se operar conflitos em Psicossomaticaindd 495 Psicossomaticaindd 495 05012010 121223 05012010 121223 496 Mello Filho Burd e cols torno de separação e abandono necessidade para sua au toestima de ser cuidadora e trabalhou no sentido de um reforço de ego que permitisse à mesma obter um estado emocional sem conflitos e confiante de que sua escolha seja por que motivos fossem seria respeitada e que a decisão cabia a ela inteiramente e seria respeitada pelos familiares Com isso houve uma significativa redução dos níveis de an siedade da paciente No período pósoperatório a paciente arrependeuse da decisão tomada devido às dificuldades decorrentes da intervenção cirúrgica e à descoberta de nova metástase Passou a encarar um possível desfecho de morte não mais com o temor da separação e sim como um alívio para seus sofrimentos e limitações REFERÊNCIAS Angerami VA et al E a Psicologia Entrou No Hospital Ed Pio neira São Paulo 1998 Armstrong D What do patients want Brit Med J vol 303 Au gust 3 1991 pg 62327 Botega N Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral Papirus Campinas 1995 Cordioli VC Psicoterapia de apoio Em Psicoterapias Aborda gens Atuais Porto Alegre Artes Médicas 1998 Druss RG The Psychology of Illness American Psychiatric Press Washington DC 1995 Fletcher C Listening and talking to patients Brit Med J vol 281 Oct 11 1980 Goldberg D Bridges K DuncanJones P Grayson D Detec ting anxiety and depression in general medical settings Brit Med J vol 297 Oct 8 1988 pg 897899 Lemgruber V Psicoterapia breve A técnica focal Porto Alegre Artes Médicas 1984 Maguire P Barriers to the psychological care of the dying British Med J vol 291 Dec 14 1985 pg 171113 Miguel Filho EC et al Interconsulta Psiquiátrica no Brasil Astú rias São Paulo 1990 Schatzberg AF Anxiety and Adjustment Disorder a treatment approach Journal of Clinical Psychiatry p51S 20 1990 Schein LA Bernard HS Spitz HI Muskin PR Psychosocial Tre atment for Medical Conditions BrunnerRoutlegde New York 2003 Strain JJ Psychological Care of the Medically III AppletonCen turyCroft New York 1975 Strauss DM Muskin PR Maladaptive Denial of Physical Illness The American J Of Psychiatry v31 p 426433 1990 Watson M Greer S Personality and Coping In JC Holland ed PsychoOncology p 9109 Oxford University Press New York Weissman AD Coping with Illness p2534 In Cassem NH Han dbook of General Hospital Psychiatry Mosby Saint Louis 1997 Psicossomaticaindd 496 Psicossomaticaindd 496 05012010 121223 05012010 121223 Nosso interesse pela Psicologia nasceu da prá tica médica Inúmeras vezes nos deparávamos com situações de angústia e conflito permeando as mani festações clínicas dos pacientes Intrigavanos sobre tudo a utilização do sintoma físico como forma de expressar tais angústias e conflitos Como cardiologis ta frequentemente lidávamos com pessoas portado ras de queixa somática que não apresentavam quais quer indícios de doença orgânica Invariavelmente a pessoa falava de si de sua vida e de seus conflitos Ali parecia estar o nexo Alguns não relatavam ou não aceitavam qualquer vinculação de seus sintomas com sua vida emocional Outros até exibiam altera ções orgânicas como os hipertensos e coronarianos Mas também nestes frequentemente a oscilação dos sintomas parecia estar na dependência de situações emocionais Atualmente trabalhando no campo da psicote rapia reencontramos aqueles pacientes vendoos agora de outro ângulo O presente trabalho tem como objetivo discutir a inserção do paciente somático num grupo psicoterapêutico Tomamos como base nossa experiência de grupoterapia desenvolvida num am bulatório do INAMPS em duas frentes como psico terapeuta de grupo de base analítica e como coor denador de grupo de hipertensos que fazem parte de um programa específico de atendimento a portadores dessa patologia implantado nesse ambulatório Pretendemos mais do que afirmar conclusões levantar considerações sobre tal vivência Discutir à luz dos conceitos psicanalíticos sobretudo dos con ceitos de Winnicott como uma abordagem grupal pode de algum modo auxiliar o paciente somático a lidar com suas queixas numa área que lhe é em princípio desconhecida a área psíquica Pretendemos de antemão distinguir dois tipos de pacientes os que reconhecem e os que não reco nhecem nexo entre seus sintomas físicos e sua vida emocional A partir daí distinguir duas formas de abordagem grupal aquela que tem como objetivo a vida intrapsíquica do paciente sua história de vida e seus conflitos atuais e passados e aquela que tem como objetivo a própria manifestação ou doença física embora buscando nela os aspectos subjetivos O PACIENTE SOMÁTICO Paciente somático é aquele que descreve ou apresenta uma alteração de sua estrutura anatômica ou de funções fisiológicas Queixase do corpo atra vés de dor dormência cansaço náuseas vômitos dispneia edemas etc A origem dos sintomas depen de de agentes de natureza diversa agentes orgâni cos psíquicos ou sociais Se a origem dos sintomas é psíquica dizemos que o paciente apresenta uma somatização Na prática médica frequentemente encontra mos pessoas que trazem queixas físicas sem que se evidencie qualquer anomalia orgânica Dizem as estatísticas que de um a dois terços dos pacientes que procuram ambulatórios médicos ou serviços de emergência encontramse nessa categoria Lazzaro e Ávila 2004 Afinal o que têm De que padecem Parece que as razões psicológicas ocupam lugar de destaque São manifestações hipocondríacas histéri cas ou genericamente somatizações remetemos o leitor ao capítulo sobre aspectos psicossomáticos em cardiologia Mesmo aqueles que tenham como origem dos seus sintomas agentes orgânicos podem ter razões psicológicas influenciando seu estado físico seja agravando o curso da doença seja obstaculizando o tratamento A própria relação com a doença o sentirse doente é um estado subjetivo e vivenciado por cada um de forma diversa Ao falar em sentirse doente fazemos uma distinção com estar doente Estar doente seria constatar a existência de uma lesão ou disfunção evidenciável pelos meios habituais de diagnóstico Sentirse doente seria queixarse de algo sem que qualquer lesão ou disfunção seja evidencia da Paradoxalmente algumas pessoas estão doentes sem se sentirem doentes enquanto outras se sentem doentes sem estarem doentes Há os que supervalori 42 O PACIENTE SOMÁTICO NO GRUPO TERAPÊUTICO Eugenio Paes Campos Psicossomaticaindd 497 Psicossomaticaindd 497 05012010 121223 05012010 121223 498 Mello Filho Burd e cols zam a doença e sentemse mais doentes do que estão e há os que a minimizam e deixam de tomar os cuida dos necessários Este é o caso de muitos hipertensos como veremos adiante Concluímos que todo paciente somático tem de alguma forma um comprometimento psíquico de maior ou menor relevância merecendo pois uma abordagem psicológica E aqui cabe esclarecer o tipo de abordagem psicológica a que nos referimos Se o componente psíquico é predominante e se o paciente tem consciência da influência dos fatores emocionais talvez o mais indicado ao lado do acompanhamento médico propriamente dito seja encaminhálo a uma psicoterapia Quando o componente orgânico preva lece e o emocional age como desencadeante ou agra vante o melhor será uma abordagem psicológica de apoio ou suporte focada na queixa física Poderíamos denominála psicoterapia do paciente somático Este é o caso dos hipertensos PSICOTERAPIA DO PACIENTE SOMÁTICO A abordagem de pacientes somáticos em grupos parece remontar a 1905 com Pratt tisiologista aten dendo tuberculosos Mello Filho 2000a A técnica grupal era então altamente sugestiva e reforçadora incluindo aulas ou conferências destaque aos pacien tes mais interessados e melhorados que tinham direi to a se sentar nos primeiros lugares aconselhamen tos e mensagens de esperança na cura Pratt reunia cerca de 20 a 50 pacientes O advento da psicanálise e o estudo da histeria de conversão abriram caminho para a compreensão de fenômenos somáticos cuja gênese estaria na dinâ mica inconsciente inaugurando técnicas mais persua sivas ou de compreensão como a de livre associação ou livre conversação em se tratando de grupo Trabalhos mais recentes como os de Winnicott 1982 1997 1999 enfatizam a importância da rela ção mãecriança uma relação grupal em suas fases mais precoces destacandose o holding ou conjun to de cuidados ou sustentação que a mãe oferece à criança propiciando a ampliação desses conceitos às técnicas grupais e ao entendimento dos processos de somatização O incremento da psicoterapia analítica de gru po levou algumas pessoas a tentar reunir pacientes somáticos dentro de uma perspectiva psicanalítica Num painel de discussão sobre problemas de psicote rapia realizado no decurso do 11º Congresso Europeu de Medicina Psicossomática em Heidelberg 1977 o tema central da discussão foi a possibilidade de se abordar psicoterapicamente mais especificamente com orientação psicanalítica pacientes psicossomá ticos Embora a opinião geral fosse a de que alguma forma de psicoterapia possa ajudar tais pacientes questionouse o tipo de terapia mais adequada A abordagem dos pacientes psicossomáticos es barra em princípio na motivação para o tratamen to A demanda se faz habitualmente para cuidados médicos antes que para cuidados psicológicos O sofrimento físico exige intervenção que alivie pron tamente o paciente e somente com a percepção de que drogas e outros recursos objetivos não são sufi cientes é que ele se dispõe a aceitar outras formas de tratamento como o psicológico Se considerarmos ainda que a somatização pode ser vista como uma forma distorcida de comunicação e defesa utilizada pela criança nos primeiros anos de vida não é fácil de ser abandonada pela pessoa Talvez por essas razões Sifneos que desenvolveu o conceito de ale xitimia ou dificuldade de expressar sentimentos por palavras publicou trabalho citado por AppelSavitz 1977 contraindicando a terapia psicodinâmica em pacientes psicossomáticos e sugerindo técnicas que reduzissem a ansiedade Ford e Long 1977 descrevem sua experiência com um grupo de pacientes psicossomáticos Os gru pos eram de 8 a 12 pessoas Haviam três ou quatro sessões de entrevista individual para remetêlos ao grupo Era dito que o grupo se compunha de pessoas com problemas físicos e emocionais e nenhuma pro messa de melhoria física se fazia Os cuidados pelo médico clínico eram estimulados a continuar O tera peuta evitava usar interpretações de conflitos infantis e tão somente estimulava a expressão de afetos o que já não era fácil Sentimentos de raiva habitualmente eram negados e se mobilizados o paciente tendia a faltar Os conflitos sexuais eram em geral evitados só aparecendo após longo tempo de atendimento ou em encontros com membros do mesmo sexo Os autores observaram que a maioria dos pacientes rejeitava a associação de conflitos emocionais com suas queixas Sentiamse em geral maltratados pelo médico e pela família Buscavam frequentemente soluções mágicas para seus problemas Faltavam muito às sessões O aumento de entrevistas iniciais individuais de três ou quatro para 10 melhorava a aderência Alguns pacientes pareciam usar os resultados negativos da psicoterapia como prova de que seus problemas não eram psicológicos Ford e Long concluíram que é pre ciso ser bastante condescendente com esses pacien tes facilitando gradativamente a expressão de afetos e o desmonte de defesas somáticas Isso implica mui tas vezes trabalho prolongado por períodos de três ou quatro anos Roberts 1977 relata as observações com dois grupos heterogêneos de pacientes psicossomáticos du rante quatro anos Os grupos eram abertos em tor Psicossomaticaindd 498 Psicossomaticaindd 498 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 499 no de oito pacientes Havia uma sessão de entrevista inicial e as reuniões eram semanais com uma hora e meia de duração A seleção objetivava ser o paciente psicossomático manifestar desejo e possibilidade de se tratar em grupo não ter evidência de psicose ter entre 20 e 50 anos não ser marcadamente esquizoide ou paranoide A técnica foi a psicanalítica com uso de interpretações sobretudo grupais O grupo pare ceu manter uma expectativa irrealista onipotente em relação ao terapeuta Quando este interpretava tal si tuação havia tendência a se formarem subgrupos de pendentes Os pacientes evitavam situações de perda ou desconforto não verbalizando por exemplo senti mentos com a entrada ou saída de algum membro O terapeuta frequentemente tinha sonolência e sensação de inutilidade que atribuía à negação de sentimentos e pouca coesividade por par parte do grupo Havia gran de incidência de abandono cerca de 75 após um ano de tratamento para 40 observado nos outros grupos Constatavase forte relação entre as situações de vida dos pacientes e seu estado físico Essas pessoas mostravam muita dificuldade em transformar seus pa péis de pacientes somáticos em pacientes psicológicos Roberts face a esses resultados propôs 1 O terapeuta tornarse mais ativo 2 Reduzir as interpretações 3 Utilizar métodos que envolvam ação como o psi codrama e técnicas de encontro 4 Formar grupos homogêneos observação seme lhante a esse respeito é feita por Cabral 1981 Não obstante todas essas dificuldades a psico terapia parece ocupar algum lugar no tratamento dos pacientes psicossomáticos Conte e Karasu 1981 fi zeram revisão de 18 estudos controlados sobre psico terapia a pacientes psicossomáticos considerando 13 desses estudos adequados e dentre eles 8 mostrando resultados positivos com a psicoterapia Tudo isso leva a supor que a psicoterapia tem alguma eficácia no tratamento de pacientes psicos somáticos A questão portanto é a da técnica mais efetiva para tal abordagem À semelhança do que faz Dewald 1981 descrevendo as técnicas psicoterápi cas num continuum desde as diretivas ou de apoio às de insight também os pacientes psicossomáticos se situam num continuum que vai desde aqueles que embora apresentando manifestações físicas con seguem correlacionálas à sua vida emocional até aqueles que não fazem qualquer nexo entre soma e psique Os últimos seriam os verdadeiramente alexi tímicos incapazes de expressar sentimentos por pala vras atuando corporalmente suas emoções Nossa experiência tem mostrado que grande nú mero de pacientes psicossomáticos consegue perceber o nexo dos seus sintomas com sua vida emocional constituindose pois em pacientes neuróticos que utilizam a via somática como forma de comunicação e defesa Outros todavia ou não percebem tal corre lação ou simplesmente não se dispõem a investigála de forma mais direta Estes é óbvio não aceitam ser encaminhados à psicoterapia Alguns não obstante chegam a entrevistarse com o psicoterapeuta mas não aderem ao tratamento Recentemente recebemos uma paciente encaminhada por um ginecologista Apresentava corrimento vaginal e desconforto pél vico que o médico atribuiu a distúrbios emocionais De fato sua história era de maus tratos na infância passada com muita dificuldade de ordem material e rejeição por parte dos pais dois casamentos as censão profissional acentuada e surgimento de um amante A paciente me disse que viera tão somente por insistência do seu médico mas estava convencida de que sua situação não podia ser mudada e queria apenas livrarse dos sintomas físicos Eu aventei que os sintomas talvez estivessem ligados a essa situação e questionei a impossibilidade de mudança Propus uma segunda entrevista que a paciente aceitou mas à qual não compareceu Outra paciente procuroume por insistência do seu cardiologista É hipertensa há cerca de quatro anos não conhecendo as possíveis causas Contou que há quatro anos sofreu um estupro por parte de um colega de faculdade que habitualmen te lhe dava carona Desde então vem tendo dificulda de de relacionamento sexual com seu marido a quem na época contou o episódio Comentei que talvez esse fato tivesse ligação com a hipertensão Ela no entanto parecia resistir à ideia Mesmo assim veio a mais duas ou três entrevistas e depois não voltou mais Quando ao contrário o paciente nos procura aceitando o nexo de seus sintomas físicos com suas situações de vida e dispondose a investigálo seu engajamento na psicoterapia se faz com relativa faci lidade Ou com as dificuldades habitualmente encon tradas em quaisquer outras pessoas Assim aconteceu com uma paciente encaminhada por um clínico de vido à úlcera péptica e hipertensão arterial Contou me que estava se separando do marido e admitia que seus sintomas tinham a ver com essa situação Aceitou imediatamente a sugestão de ingressar na psicoterapia O tipo de psicoterapia oferecido a um paciente somático depende em grande parte da sua possibili dade ou disposição em reconhecer e investigar o nexo de seus sintomas físicos com sua vida emocional Quanto menos motivada estiver a pessoa ao psicoló gico mais ativa deverá ser a postura do terapeuta e de mais recursos objetivos deverá ele ou a equipe de saúde lançar mão no trato com essa pessoa É o que ocorre por exemplo com os grupos homogêneos de Psicossomaticaindd 499 Psicossomaticaindd 499 05012010 121223 05012010 121223 500 Mello Filho Burd e cols pacientes somáticos formados a partir de um progra ma integrado de atendimento a determinadas patolo gias como a hipertensão arterial OS GRUPOS DE HIPERTENSOS Os grupos de hipertensos começaram a proli ferar na década de 1970 nos Estados Unidos atra vés de um programa nacional de detecção e controle da hipertensão arterial Hypertension Detection and Followup Program 1982 face aos elevados índices de morbidade e mortalidade que a doença apresen tava e ao elevado número de pessoas atingidas na proporção de 10 a 20 da população adulta Bus cavase com esse programa aumentar a aderência dos pacientes ao tratamento e o efetivo controle dos seus níveis tensionais Melhoria da relação médico paciente acesso aos medicamentos maior grau de informação sobre a doença aquisição de técnicas de relaxamento ou biofeedback para controle da pressão arterial PA faziam parte do referido programa Para muitos autores como Egan 1983 Man driota 1980 Enlund 2001 MarinReyes 2001 Sarquis e colaboradores 1998 Jardim Monego e Reis 2004 tais medidas não são suficientes para alcançar os objetivos desejados pois se faz mister modificar hábitos de vida e elaborar situações psicos sociais que contribuam para a manutenção e para o agravamento da doença A utilização da via somática como meio de expressão da vida psíquica pressupõe uma dificuldade em abordar o paciente por tal ângulo Nesse sentido tornase essencial a adoção de atitudes e técnicas que facilitem a expressão de sentimentos e a reflexão sobre circunstâncias de vida atuais ou pas sadas que possam estar de algum modo interagindo com a doença A reunião de pessoas portadoras da mesma doença parece cumprir esse papel pois propi cia a troca de experiências comuns e funciona como suporte para os membros do grupo Em outros termos fazse necessário oferecer a esses pacientes um clima de acolhimento suporte ou apoio que lhes permita pensar sobre a doença ex pressar sentimentos que em torno dela estejam ocor rendo conscientizarse da correlação ou nexo entre sua doença e sua vida Gaus Klingenburg e Kohle 1983 comentam que os hipertensos habitualmente não são motivados para abordagens psicoterapêuticas propriamente di tas mas que necessitam e se beneficiam de medidas integradas que levem em conta além do atendimento clínico habitual técnicas de relaxamento e grupos de orientação e reflexão Também Mitchell 1981 reco menda o tratamento integrado enfatizando a neces sidade que a equipe de saúde trabalhe coesamente Democker e Zimpfer 1981 após selecionar 15 estudos sobre técnicas grupais aplicadas a pacientes somáticos concluíram que a intervenção do terapeu ta nesses casos deve visar a 1 Facilitar a expressão de sentimentos 2 Promover adaptação às novas condições geradas pela doença 3 Promover reforço da autoimagem 4 Oferecer apoio e atenção 5 Veicular informações adequadas 6 Estimular a recuperação física e emocional 7 Facilitar a comunicação médicopaciente Alguns autores Mello Filho 2000b Campos 2000 observam ainda que a troca de experiências entre os membros do grupo identificados pela condi ção comum que é a doença exerce considerável efei to terapêutico sobre eles Baseados nessas observações é que implantamos o Programa de Atendimento Integrado ao Hiperten so no Posto de Assistência Médica PAM do INAMPS em Teresópolis RJ e que a seguir descrevemos O referido programa contava com uma equipe multidisciplinar composta por quatro médicos dois psicólogos um nutricionista e uma enfermeira Aos médicos competia encaminhar os pacientes ao pro grama bem como assistilos tecnicamente participar das reuniões de grupo e atender aos pacientes após as reuniões Para isso eram reunidos em cada gru po os pacientes de um mesmo médico Desse modo garantiase o acesso à consulta sempre pelo mesmo médico evitando ainda que entrassem em filas ou es perassem muito tempo pelo atendimento O controle das marcações para as reuniões de grupo a verificação da PA antes de cada reunião e o contato com aqueles que estavam faltando às consul tas eou reuniões era feito pela enfermeira que fica va também à disposição do paciente diariamente pela manhã para controle da PA sempre que os mesmos solicitassem ou para eventuais orientações O nutricionista comparecia às reuniões de gru po sobretudo quando o tema era dieta e ficava à disposição dos pacientes ou dos seus familiares que necessitassem de orientação sobre a dieta O controle e distribuição dos remédios aos pa cientes eram feitos pela enfermeira Tal distribuição era feita somente nos dias de reunião mediante re ceita do médico e em quantidade suficiente para 30 dias que é o prazo entre cada reunião Os pacientes que não estavam no programa re cebiam o atendimento médico convencional ofereci do pelo posto que era feito mediante a distribuição de fichas ao início do dia em número limitado para cada médico sendo atendidos os primeiros a receberem Psicossomaticaindd 500 Psicossomaticaindd 500 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 501 essas fichas Cada paciente possuía um prontuário do arquivo geral do posto onde eram registrados os dados de cada consulta Os médicos orientavam quanto ao tempo médio em que deviam voltar à con sulta Não havia controle sobre a regularidade das mesmas As instruções sobre a natureza da doença cuidados gerais a serem observados como dieta exercícios etc eram dados pelo médico que também se incumbia de verificar e registrar a PA Os grupos chamados de suporte eram forma dos por 10 a 12 pacientes todos do mesmo médi co Se alguém fosse excluído do programa o que só ocorria depois de várias tentativas sem êxito para que retornasse outra pessoa era admitida mantendose portanto o limite de 12 pacientes por grupo Chega mos a manter 10 grupos funcionando Não havia tempo estabelecido para a participa ção de cada paciente sendolhes proposto que fre quentassem regularmente as reuniões com o intuito de garantir a continuidade do seu tratamento Na primeira reunião de apresentação expú nhamos a estrutura e os objetivos do programa enfa tizávamos a importância da presença de todos e fazía mos um debate sobre o que vem a ser pressão alta Esclarecíamos também que cada um deveria antes do início das reuniões medir sua PA e saber em que nível estava de tal modo que pudéssemos discutir em grupo as oscilações registradas essa verificação da PA era feita pela enfermeira antes de cada reunião Nas reuniões subsequentes propúnhamos um tema a cada dia dieta uso de remédios atividade física e HA tensão emocional e HA solicitando que falas sem sobre ele e estimulando a discussão Evitávamos dar aula sobre os assuntos Nossa intervenção ia se fazendo no sentido de retificar clarificar ou esclare cer o que estivesse sendo debatido Após essas primeiras reuniões não propúnha mos mais qualquer tema e sim perguntávamos aos pacientes sobre o que íamos conversar ou ainda procurávamos saber em que nível estava sua PA e daí iniciávamos a discussão O clima da reunião era o de informar e refletir O foco era sempre a doença hipertensiva e sobre ela conversávamos re fletíamos esclarecíamos Nossa postura era ativa animando o grupo a falar das suas experiências em relação à doen ça sintomas fatores que a influen ciavam meios de tratamento Evitávamos conteú dos pessoais que não tivessem a ver com a doença evitávamos qualquer tipo de interpretação e não estimulávamos a relação transferencial Procuráva mos criar um clima de suporte ou holding dentro do grupo estimulandoos ao tratamento e facilitando a expressão de sentimentos Relatamos a seguir duas reuniões em que atua mos como coordenadores Na primeira haviam seis mulheres e três homens com idades variando de 26 a 65 anos Este grupo já funcionava há cerca de três anos C Bom dia Como é que estão passando Maria No mês passado eu quase fiquei inter nada Tive uma gripe forte Botei até sangue pela boca Senti muita falta de ar A médica queria me internar mas eu disse que não Pedi que ela recei tasse os remédios que eu tomaria em casa Então ela me deixou em observa ção fez injeção na veia e nebulização e à noite meus filhos me levaram Agora eu estou melhor mas a pressão foi a 21 C Agora a senhora está melhor Maria Estou a pressão está em 15 Só estou sentindo dor no ombro Já tive que fa zer infiltração uma vez C Parece que o fato de ter ido ao hospital fez subir sua pressão Maria É O grupo ficou em silêncio alguns ins tantes C Bem e vocês como estão Ana Minha pressão está em 16 Eu estou bem Só estou sentindo muito frio A manhã estava muito fria mesmo Lúcia Minha pressão está em 15 mas eu te nho me sentido insatisfeita Não tenho vontade de fazer nada Não acho graça nas coisas e não sei por que estou assim Tenho dormido pouco Eu não queria me sentir assim C Como está seu apetite Lúcia Está ruim Não tenho vontade de comer Acho que estou com depressão C Há alguém com depressão na sua famí lia Lúcia Várias pessoas Minha filha minha irmã Eu mesma já me senti assim outras ve zes O senhor lembra doutor daquela vez em que eu só chorava Médico É verdade C Estará havendo alguma coisa que justi fique isso Lúcia Não Está tudo bem É por isso que eu não entendo Médico Da outra vez eu prescrevi Tofranil e ela melhorou C Bem talvez tenha que usar algum re médio O doutor Fulano vai avaliar isso O importante é que essa depressão vem mas vai embora Psicossomaticaindd 501 Psicossomaticaindd 501 05012010 121224 05012010 121224 502 Mello Filho Burd e cols Ana Minha filha também está com depres são Ela foi ao médico e a pressão dela estava alta Ele pediu uns exames Médico É bom que ela se cuide logo porque quanto mais cedo controlar a pressão melhor C E parece que a depressão pode estar li gada à pressão alta Ana Minha pressão está 18 x 10 C Será que essa pressão alta tem a haver com a depressão Ana Não sei Tiago A senhora está tomando os remédios Ana Estou Eu tenho comprado os remédios Durante um certo período estivemos sem os remédios para distribuir Médico Mas é preciso também termos os ou tros cuidados com a dieta os exercícios os problemas para tentar usar menos remédio Júlia Eu tenho modificado muito a comida lá de casa Com nossas reuniões eu apren di muita coisa e como todo mundo lá tem pressão alta a gente já diminuiu muito o sal Lúcia Lá em casa é diferente porque só eu tenho pressão alta Mas eu não tenho possibilidade de fazer comida para cada um Então eu mando que eles ponham sal e faço tudo sem sal Maria Lá em casa todo mundo tem pressão alta Minha mãe morreu de derrame Nós já nos acostumamos a comer com pouco sal e a pressão está melhorando Lúcia A minha hoje está em 15 Todos ficam em silêncio C E a de vocês como anda Voltandome para os homens que esta vam juntos haviam três Tiago A minha está em 13x10 C Está boa Pedro A minha está 13 x 9 C Está melhor ainda Acho que vamos fazer um campeonato entre os grupos para ver quem fica com a pressão mais baixa Todo riem Lúcia Hoje tem bastante gente no grupo Só faltaram duas Maria Eu só faltei na reunião de aniversário Assim mesmo porque quebrei a perna Todo ano comemoramos o funciona mento do programa reunindo a equipe e todos os grupos C Aquela reunião foi ótima em todos os sentidos conseguimos sensibilizar o doutorChefe da Divisão Médica do INAMPS que inclusive nos autorizou a ampliar o programa para outros postos os remédios também já chegaram Convidamos para essa reunião de ani versário o chefe da Divisão Médica com intuito de sensibilizálo em relação ao programa que enfrentava na época al gumas dificuldades como a falta de re médios Tínhamos por hábito informar aos pacientes sobre as questões de orga nização do programa Lúcia E isso é bom porque os remédios es tão tão caros mesmo assim está todo mundo com a pressão boa Rosa Menos eu e aquela senhora Rita Engraçado que minha pressão um dia desses veio a 14 mas hoje está nova mente em 20 C O que a senhora acha que aconteceu Rita Não sei Acho que é por causa da colu na Estive com Dr que me deu uns remédios para coluna e para os nervos Uma vez ele receitou massagens para a coluna e eu melhorei Mas agora voltou a doer C E o que está havendo com seus nervos Rita É que eles repuxam Minha perna fica encolhida e eu não posso andar Isso já me aconteceu há 20 anos e precisei ficar internada C Como estava sua vida naquela ocasião Rita Péssima C Péssima em que sentido Rita Falta de dinheiro Não tinha dinheiro nem para comer C Era só falta de dinheiro Rita Minha filha tinha dado acidentalmente um tiro nela mesmo Nós éramos ca seiros e ela pegou o revólver e atirou Ficou entre a vida e a morte Foi um sufoco Logo em seguida minha sogra morreu Quando a gente estava no ve lório meus parentes que iam para lá sofreram um acidente de carro Eu fui ajudar Fiquei com a roupa toda suja de sangue eu sou assim na hora eu não senti nada Cuidei da minha filha aju dei aquelas pessoasmas depois fiquei doente A perna repuxou Eu não podia andar Fiquei internada A pressão foi lá em cima Psicossomaticaindd 502 Psicossomaticaindd 502 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 503 C A senhora acumula as tensões e depois reage com seu corpo a pressão subin do a perna repuxando Rita É Eu acumulo mesmo C E agora está havendo alguma coisa que lembre aquela época Rita Nãonãosó estou preocupada com minha filhaaquela que tem problema de cabeça a senhora viu como ela está acabada não é Rosa É Ela parece bem nervosa Rita Eu fico preocupada com ela Preocupo me com todo mundo Tem uma vizinha que também está com problema de ner vos e de cabeça e eu dou muito apoio a ela Infelizmente num lugar pequeno as pessoas comentam que está maluca Por isso eu nem falo nada Só estou fa lando aqui no grupo porque aqui a gen te pode falar à vontade C E é importante que a senhora possa falar porque já vimos como a senhora tende a acumular as coisas e aí o seu corpo é que fala pela pressão pela perna Além disso a questão que a senhora levanta acerca da doença mental ou nervosa im pede que muitas vezes a gente consiga falar dos nossos problemas com receio de sermos chamados de malucos Mas lembrese de que o simples fato de uma pessoa estar se tratando já significa que ela não está tão mal assim Pior é quem não busca se tratar João Isso que a senhora está falando tem muito a ver Em 1972 um médico me disse que eu só tinha seis meses de vida Aí resolvi fazer de tudo que eu tinha di reito Já que eu ia morrer e as pessoas corriam de mim o problema era na verdade alcoolismo saí aí pela vida Viajei bebi muita cachaça Levava três meses para ver a família Médico O colega naturalmente queria sensibili zar você a se tratar Mas pelo jeito o tiro saiu pela culatra João Ele foi dizer que eu ia morrer aí eu achei que não valia a pena fazer nada Só em 1983 é que eu resolvi voltar a ver como estava eu não tinha morrido até então e aí o senhor me disse que eu estava com a pressão muito alta 25 e resolvi me tratar Depois então que en trei para o grupo com os conselhos que vocês nos dão eu deixei de lado muitas extravagâncias e agora a pressão está em 13 Ele parou de beber e voltou a conviver com a família Ana Você se voltou para a vida João Eu não sei Eu achei que se não tinha morrido estava na hora de me cuidar Ou achou um ambiente cuidador Médico Você deve ter encontrado um sentido para a vida mas você me fez lembrar de um caso que eu atendi e que a pessoa estava com câncer de esôfago Chamei a família e comuniquei o fato Como ele tinha também tuberculose pulmonar resolvi tratar primeiro a tuberculose Seis meses depois ele estava curado do câncer Na verdade a lesão esofagiana era também tuberculose e o laudo da biópsia naturalmente viera errado Esse paciente deve estar dizendo que o médi co deu seis meses de vida para ele e no entanto ele está vivo até hoje é muito difícil a tarefa médica Você quase se matou porque o médico foi dizer que você só tinha seis meses de vida C Bem o que importa é que você deu a volta por cima e hoje está aí lutando pela vida vamos ficar por aqui A reunião que transcrevemos a seguir evidencia um dos momentos em que precisamos interpretar o que o grupo quer dizer O programa atravessava algumas dificuldades de organização como falta de remédios transferência e férias de médicos Os pa cientes ressentiamse disso mas tinham dificuldades em expor seus sentimentos Vejamos a reunião Havia cinco mulheres e um homem O grupo se reunia há quase dois anos C Bom dia Algumas pessoas respondem ao cum primento mas logo ficam em silêncio Laura Está todo mundo desanimado hoje C É Por que será Antônio É o frio Todos riem concordando ficamos em silêncio Rute Sobre o que nós vamos falar hoje dou tor Eugenio C Não sei vocês é que sabem Tereza Bem vamos resolver sobre o que vamos falar Médico Seu exame já está comigo depois a se nhora passa lá para pegar O médico dirigiase à Rute Psicossomaticaindd 503 Psicossomaticaindd 503 05012010 121224 05012010 121224 504 Mello Filho Burd e cols Rute O quilo está a 180 referiase à glice mia C Está caro hein Tereza O meu está mais caro ainda está a 220 Rute Eu acho que é do frio lá perto de casa tem uma vizinha que está com o açúcar alto e o lugar lá é muito frio Antônio Hoje quando eu saí de casa estava mui to frio Eu peguei o ônibus das 545 Laura Mas é muito cedo seu Antônio Antônio O outro passa às 715 e não dá tempo Eu moro em Venda Nova Vocês sabem onde é Dalva Eu sei Já morei por aquelas bandas Eu morei em Vargem Grande Agora eu moro aqui no Perpétuo Desde os 15 anos que eu me mudei Todos ficam em silêncio C É mas vocês continuam sem saber o porquê do desânimo Rute Hoje está faltando muita gente Tereza Eu venho sempre Só faltei das últimas vezes porque estava internada Fiquei com uma raiva daquela doutora Ela não foi sincera comigo Disseme que eu ia fazer só um curativo e quando vi já estava anestesiada e ela me cortou Ainda por cima me disse para ir para casa porque não tinha vaga Que raiva que eu fiquei Isso não se faz Além de me enganar não teve nenhuma consi deração comigo Fiquei naquela maca até de noite O Dr passou por mim e nem me olhou O senhor não acha que está errado Ele devia ter me visto Não podia ter me deixado largada daquele jeito Rute Tem um vizinho meu que sofreu um aci dente e machucou o pé Foi internado e lá ele pegou uma infecção hospitalar Ficou entre a vida e a morte Aí a famí lia tirouo do hospital e agora ele está melhorando Aquele hospital não está cuidando bem da higiene Tereza Eu estava tão chateada que resolvi pe dir alta por conta própria Acho que foi vingança A doutora não queria que eu fosse embora mas eu disse que ia de qualquer maneira Ela disse que eu teria que assinar um termo e eu disse que assinava qualquer coisa Agora estou fa zendo os curativos mas os pontos estão sendo rejeitados De vez em quando sai um ponto Médico A senhora não devia estar fazendo os curativos Deve procurar um serviço médico para fazer esses curativos Tereza Eu vou procurar o Hospital das Clínicas Novo silêncio C Bem vocês estão trazendo reclamações do serviço médico é a médica que não tratou bem que deixou vocês sozinhos o hospital sem higiene será que vocês têm alguma reclamação a fazer de nós aqui do programa Rute Eu não está tudo bem Antônio Eu também não Não vim da outra vez porque estava chovendo muito Depois eu vim aqui mas o Dr estava de fé rias C O Dr deixou vocês sozinhos O grupo fica em silêncio Rute Eu tenho sentido muita dor no ombro Não sei se ainda é da gripe porque eu fiquei muito gripada Tem uma vizinha que pegou até pneumonia Teve que to mar uma porção de remédios C Nós estávamos falando de reclama ções Os remédios também andaram faltando Rute Eu não tenho o que reclamar com tudo isso eu continuo vindo mas está faltando muita gente hoje Tereza Falta aquele casal Médico Falta aquela que tem medo de tirar a pressão Tem também aquela senhora que quebrou a perna e aquela que morreu no momento ao todo somos 10 Tereza Morreu de derrame não foi Laura Não Morreu de câncer Tereza Não estou lembrando bem dela Rute Era uma que era muito brincalhona Eu tenho uma vizinha que está querendo entrar no grupo Seria bom que ela vies se Talvez animasse mais o grupo Será que não tem vaga pra ela Médico Tem que falar com Dona Íris que é a enfermeira do programa C Aliás este grupo é o mesmo já há bas tante tempo só tem a Dalva que en trou agora Antônio Tem uma aquela magrinha de óculos que eu encontrei na rua e ela disse que não vem mais Ela queria uma receita especial para a perícia e o Drnão deu Então ela disse que não vem mais Tereza É a Joana A Dalva entrou no lugar dela Ela foi procurar o Dr Psicossomaticaindd 504 Psicossomaticaindd 504 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 505 Rute Então tem interesse político nisso Tereza Eu não quero me meter acho que é por causa da perícia C Vejam então que há duas questões aqui em primeiro lugar o fato dela ter saído sem conversar conosco sem reclamar aqui no grupo como é importante que vocês possam reclamar da gente afinal nós temos falhas e vocês precisam se sentir à vontade para apontálas Do contrário acabam saindo do programa e isso em princípio não é bom Por outro lado há a questão da perícia Eu tenho observado que fica um dilema baixar a pressão no programa e ter a pressão alta na hora da perícia Isso acaba atrapa lhando o tratamento Tereza Eu acho que nós devíamos levar daqui um comprovante que estamos nos tra tando Médico Olha você deu uma excelente ideia um comprovante que estão se tratando re gularmente e isso garantiria o benefício mesmo que a pressão estivesse normal estaria normal exatamente porque vo cês estão se tratando C Nós podemos conversar com os médicos da perícia a respeito bem ficamos por aqui Os médicos da perícia por constata rem em alguns pacientes normaliza ção da PA cortavam o benefício e mui tos não tinham outra fonte de renda O assunto já havia sido trazido mas não encontráramos ainda uma solução Em síntese nossa postura à frente do grupo de hipertensos é ativa e apoiadora No início da sessão propomos um tema ou perguntas sobre os valores de sua pressão arterial No decorrer da mesma procura mos estimulálos ao tratamento e ao efetivo controle dos níveis tensionais evitando silêncios prolongados que possam gerar ansiedade maior no grupo e pres tando esclarecimentos acerca da doença Por outro lado assumimos postura reflexiva ao questionarmos sobre as possíveis causas de elevação da pressão arte rial buscando correlacionála com as situações vivi das pelo paciente Nosso objetivo nesse momento é conscientizálos acerca dos fatos que interferem com a doença e como ela vem sendo usada como meio de comunicação e enfrentamento Procuramos facilitar a expressão de sentimentos estimulando um clima acolhedor a tais manifestações Procuramos ainda favorecer a troca de experiência entre os membros do grupo A evitação de interpretações transferenciais e do aprofundamento de questões pessoais mantendo a verbalização do grupo em torno do foco a doen ça hipertensiva tem um efeito protetor àqueles que não se sentem preparados ou dispostos a investir em seu mundo mais íntimo Em momentos especiais como na segunda reunião que descrevemos em que o grupo não conseguia produzir ou agir operativa mente face a sentimentos não expressados em rela ção ao programa e à equipe procuramos de algum modo propiciar a emergência de temas que eles sin tam como mais difíceis de serem abordados como por exemplo reclamar do nosso atendimento Eventualmente surgem situações que exigem atenção especial Assim aconteceu com Manoela que era hipertensa há cerca de 15 anos e foi encaminhada ao programa há três anos porque sua PA era perma nentemente muito alta Era frequentadora assídua do grupo Viúva duas vezes vivia com o terceiro marido e com uma filha solteira que não se relacionava bem com o padrasto Após um ano de grupo um de seus filhos de 21 anos foi assassinado A paciente se de primiu bastante e o grupo tentou ajudála Seu deses pero era grande propusemos atendêla individual mente uma vez por semana além do grupo Ela veio quatro vezes Começamos a ver que a perda do filho havia reativado outras perdas como as dos maridos anteriores que não estavam suficientemente elabo radas Sugerimos psicoterapia Mas ela que àquela altura já se sentia melhor alegando dificuldades de tempo pediu para continuar vindo somente ao gru po Este fato aliás mostra bem o nível de reconheci mento do psicológico e da disposição em investigálo Manoela vinha regularmente ao grupo de hiperten sos Chegava a aceitar uma ajuda individual numa situação de crise Mas tão logo melhorava pedia para suspender os atendimentos A correlação psi cossomática parecia até existir Ela admitia que seus problemas emocionais elevavam a PA mas não se dis punha a investigálos de maneira mais aprofundada E sem dúvida o grupo de hipertensos não aprofunda o exame dos conflitos do indivíduo Não devassa sua intimidade o que faz no grupo psicanalítico Este aspecto parecenos ser o divisor principal no que tange à psicoterapia do paciente somático Quando o objetivo do paciente é investigar seu mun do intrapsíquico dizemos que sobre ele fazemos psi coterapia Mas quando seu objetivo é tratar a doença física da qual padece a que tipo de intervenção psi cológica estamos procedendo O grupo de hipertensos nós o vemos não no sentido de grupo psicoterapêutico propriamente dito cujo foco é a vida do paciente mas como grupo de suporte cujo foco é a doença Tal distinção não é nítida na medida em que esses processos se con Psicossomaticaindd 505 Psicossomaticaindd 505 05012010 121224 05012010 121224 506 Mello Filho Burd e cols fundem mas delimita diferenças técnicas essenciais como a evitação da transferência para o terapeuta ou a abordagem de problemas pessoais que não tenham a ver diretamente com a hipertensão Ao mesmo tem po visualizamos nesse tipo de grupo um efeito tera pêutico ou psicoterapêutico claro enquanto suporte social na medida em que os pacientes estão reunidos em torno de um problema comum a HA e sustenta dos por uma equipe que os apoia Tal suporte parece se assemelhar àquele ofe recido pela mãe à criança nas fases precoces do seu desenvolvimento Na verdade os cuidados médicos tendo em vista seus procedimentos físicos como examinar prescrever remédios internar fazer cirur gia parecem identificarse melhor com os cuidados maternos amamentar dar banho botar para dor mir etc A necessidade de intervir imediatamente e concretamente revive com maior nitidez a relação mãecriança Os grupos homogêneos de preferência com a presença do médico com a postura ativa do coordenador apoiando informando esclarecendo também se aproximam desse modelo A linguagem é objetiva O foco é a doença física A transferência predominante é para um objeto que cuida objeto mãe O efeito mais nitidamente observado é sobre a autoestima O paciente se sente cuidado valorizado amado protegido E sentirse melhor consigo mesmo sentirse mais apoiado e ter consciência mais ampla do que consigo acontece empresta ao indivíduo for ça para buscar outras alternativas de enfrentamen to e adaptação à vida do que aquela propiciada pela doença Diríamos então que para os pacientes somáticos insensíveis à dimensão psíquica incapazes de corre lacionar seus sintomas físicos às vivências emocionais que as determinam ou influenciam o setting dos grupos homogêneos é melhor indicado A dinâmica desses grupos não obstante transcende a mera sen sibilização alcançando efeitos psicoterápicos sensu latu através da elevação da autoestima e da promo ção de um sentido maior de personalização que tor na o paciente mais sujeito de si mesmo Analisando nossa experiência em dois anos de funcionamento e comparando as curvas de pressão dos pacientes do programa com aqueles em atendi mento convencional verificamos controle efetivo da PA em 632 dos pacientes contra 428 daqueles atendidos no mesmo PAM mas fora do programa Campos e Leite 1981 Tais resultados correspon dem aos obtidos em outros trabalhos e apontam para a eficácia de um programa integrado e continuado de atendimento ao hipertenso O êxito desses programas parece estar no aten dimento aos vários fatores que dificultam a aderência dos pacientes desde a garantia de acesso ao médico e aos remédios passando pela orientação e conscienti zação acerca da doença até a promoção de um clima que aumente a motivação do paciente ao seu trata mento Aliás dentre as várias razões de não aderência a desmotivação do paciente parecenos ser uma das principais Desmotivação decorrente da sua configu ração psíquica interna que coloca a resposta hiper tensiva como meio de expressão ou de defesa não devendo pois ser abolida ou abandonada Des motivação porque não encontra o paciente em seu ambiente suportes sociais capazes de se constituírem em alternativa para seu habitual meio de enfrenta mento Por isso acreditamos ser fundamental que o programa funcione com uma equipe interessada e coesa disposta a se relacionar de modo mais próxi mo mais afetivo e comunicativo entre si e com os pacientes Quando isso ocorre o paciente encontra razões para aderir porque se sente protegido aco lhido e estimulado a conhecerse e a buscar outras formas de lidar com seu mundo A equipe funciona como suporte social Mas não só a equipe Também as reuniões de grupo na medida em que instituem um clima de solidariedade e franqueza entre seus mem bros Tal ambiente suportivo e informativo parece elevar a autoestima do paciente ampliar sua faixa de conscientização acerca da doença fortalecendoo no combate à mesma O atendimento agendado pelo médico a exis tência de uma sala própria do programa o contato em caso de faltas a possibilidade de controlarem a qualquer momento sua PA a realização de uma ana mnese detalhada e particularizada a garantia de continuidade no tratamento o conhecimento de seus atuais níveis de pressão e a possibilidade de discuti los em grupo todos esses são fatores que aumentam no paciente o sentimento de estar sendo cuidado va lorizado e estimado A distribuição de remédios é fator econômico importante para a aderência e para o efetivo controle dos níveis tensionais embora seja também um fator de desvirtuamento do programa se os pacientes a ele são mandados ou a ele se filiam com essa única fina lidade Por isso consideramos fundamental condicio narmos sua distribuição à presença às reuniões e à consulta médica Tais são os fatores terapêuticos presentes nos programas integrados e continuados de atendimento ao hipertenso e que parecem justificar sua implanta ção e ampliação quando comparamos seus resultados aos obtidos a partir do atendimento convencional Obviamente uma boa relação médicopaciente exercida através de consultas com tempo suficiente para se prestarem as devidas informações sobre a doen ça e para se discutirem aspectos relacionados à vida do paciente certamente é capaz de obter resul Psicossomaticaindd 506 Psicossomaticaindd 506 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 507 tados semelhantes aos dos programas de atendimen to ao hipertenso Sobretudo se o paciente não se de fronta com dificuldades financeiras que lhe reduzam o acesso aos remédios e ao próprio médico Infeliz mente em nosso meio não é esta a realidade para o contingente maior de hipertensos que buscam ou nem buscam os serviços médicos Daí a importância de se incrementarem tais programas principalmente no âmbito das Institui ções Públicas como forma eficiente e abrangente de se tratar uma afecção eminentemente psicossociosso mática como a hipertensão arterial CONSIDERAÇÕES FINAIS A morbidade e a mortalidade da doença hiper tensiva e a pequena aderência dos hipertensos ao tra tamento motivou a criação do Programa Nacional de Detecção e Controle da Hipertensão Arterial nos Estados Unidos Estudos comparativos Moser 1983 Yosefi et al 2003 de pacientes do programa com outros atendidos convencionalmente apontam favo ravelmente para o primeiro seja em termos de ade rência seja em termos de efetivo controle da pres são arterial Dentre os procedimentos do programa incluemse os grupos de hipertensos Isso quer dizer que a aceitação por esse tipo de grupo é grande Sou za 2004 Poderseia argumentar é certo que as outras medidas estimulam a aderência e dentre elas a dis tribuição de remédios Mallion e Schmitt 2001 Mas a verdade é que os pacientes participam e se bene ficiam do grupo E isso ocorre a nosso ver porque a dinâmica do grupo também favorece a aderência a frequência mensal das reuniões a presença do médi co as trocas de experiências comuns o nível de infor mação e discussão o clima favorável à expressão de sentimentos ao mesmo tempo protegido de invasões maiores à intimidade da pessoa E sobretudo a oportunidade de se discuti rem os problemas que possam estar sustentando a PA elevada ou desmotivando o paciente a se tratar Destaquese a importância das mudanças do estilo de vida exercícios dieta manejo do estresse que não acontecem tão somente porque o paciente recebe in formações a respeito As mudanças do estilo de vida demandam tempo e espaço apropriado para serem elaboradas e passam necessariamente por uma re visão crítica sobre as circunstâncias atuais de vida do paciente A técnica dos grupos de hipertensos em alguns aspectos parece semelhante à de Pratt em 1905 E se considerarmos os estudos apresentados em 1977 em Heidelberg verificamos que suas conclusões ca minharam muito nesse sentido O paciente somático não está motivado a abordagens subjetivas O mérito de Pratt foi ter intuído que não obstante estar lidan do com uma doença física algo mais influía no resul tado de sua terapêutica física e que algo podia ser feito para lidar com essa variável Sem dúvida a psicanálise avançou no conhe cimento psicossomático diríamos mesmo que ela se estruturou a partir de pacientes psicossomáticos os histéricos A teoria da sexualidade emergiu em grande parte da compreensão do que ocorria com a manifestação histérica Foi através dessa percepção que Freud chegou aos impulsos reprimidos no in consciente e à necessidade desses impulsos se reali zarem de qualquer maneira obedecendo ao princípio do prazer A porta de entrada somática permitiu vis lumbrar o interior do edifício psíquico e a psicanálise tornouse uma teoria e uma técnica da subjetividade Subjetividade que atinge o somático e que atemoriza o sujeito Permanecer no somático é de algum modo realizar o psíquico sem se dar conta dele É como sair sem abrir a porta Tudo se resumiria a essa altura em abrir aces so ao intrapsíquico e a somatização estaria resolvida Não está Primeiro porque queiramos ou não a do ença física tem outras vertentes além da psicológica Ela é o resultado de uma interação de fatores orgâ nicos sociais ambientais e psíquicos Até um certo ponto a doença física se cura ou se detém sem a intervenção psicológica Constatamos isso por exem plo em relação a alguns hipertensos Como constata mos que hipertensos submetidos a anos de psicotera pia continuam hipertensos Em segundo lugar o próprio mecanismo psíquico da somatização não parece estar restringido à histe ria de conversão Dentro da psicanálise os estudos de Winnicott 1978 1982 1997 1999 Kohut 1984 e outros evidenciaram a importância da relação primá ria mãecriança e abriram a compreensão de formas narcísicas de expressão somática Kohut chega a dizer que ao Homem Culpado do complexo de Édipo se contrapõe o Homem Trágico do self em desespero As angústias da fase primitiva situamse além do princípio do prazer como diz Kohut A somatização aqui é vista como um limiar psicobiológico do ser ante angústias inimagináveis ou não representáveis psiqui camente bem próximas do conceito de estresse tal como descrito por Selye Reagir somaticamente é vital para o indivíduo Usando a analogia anterior diríamos que o sujeito teme abrir a porta nem tanto pelo que possa encontrar lá dentro mas pelo fato de que abrir a porta pode significar ruir o edifício Talvez por isso as técnicas suportivas ou apoia doras funcionem como escoras Aqui nos parece existir uma marcada diferença na utilização dessas Psicossomaticaindd 507 Psicossomaticaindd 507 05012010 121224 05012010 121224 508 Mello Filho Burd e cols técnicas Funcionar como escora significa criar um ambiente de holding que empreste ao indivíduo a possibilidade de reintegrar seu self de sentirse mais coeso e firme consigo mesmo De elevar sua autoes tima e autoconfiança E isso é diferente de funcionar como muleta que consiste habitualmente em manter a passividade do indivíduo oferecendolhes substitu tivos ilusórios como conselhos ou placebos Do mesmo modo traduzir a fala somática é um pouco diferente de interpretar o significado simbóli co de um conteúdo reprimido expressado somatica mente A primeira é mais primitiva e indiferenciada Referese mais ao sentimento do que ao conflito Ex pressa mais o trágico do que o culpado Novamente lançando mão de Kohut diríamos que tais processos ou fases estão interligados e in terdependem podendo mesmo se confundir Assim diz Kohut que o relacionamento entre o foco do de senvolvimento de impulsos instintivos objetais o complexo de Édipo e o foco do desenvolvimento no terreno narcísico a fase de formação do self ficará mais claro se compararmos duas formaspadrão de psicopatologia a psicopatologia edípica e aquela pro veniente de perturbações narcísicas algumas vezes uma ocultada pela outra Resumindo queremos dizer que lidar psico logicamente com o paciente somático implica levar em consideração aspectos não psíquicos orgânicos ambientais sociais e aspectos psíquicos de origem diversa no mínimo representados pelo modelo edi piano e pelo modelo narcísico Isso dificulta a ava liação dos resultados decorrentes dessa intervenção psicológica mas justifica a nosso ver a utilização de técnicas suportivas e empáticas que fogem ao padrão clássico da técnica psicanalítica neutra e in terpretativa Por outro lado a postura clássica continua útil principalmente nos momentos em que lidamos com os conteúdos reprimidos Como dissemos os grupos homogêneos não conseguem por si acesso à intimi dade do paciente e em consequência à emergência das fantasias e do lado proibido Na verdade cabe ao paciente dar o tom da estratégia a ser utilizada Se ele reconhece o nexo de seus sintomas com suas situações de vida e se dispõe a investigálo tal tarefa parece ser melhor exercida através das técnicas interpretativas Em caso contrá rio devemos ser mais suportivos e apoiadores sen do que em qualquer circunstância a fala somática deve ser sempre traduzida ora como meio primiti vo de expressão e de defesa uma forma narcísica ora como meio simbólico de expressar impulsos re primidos forma edipiana REFERÊNCIAS Appel Savitz R Silverman D Bennet MI 1977 Group psychotherapy of patients with somatic illnesses and alexithymia Psychother Psychosom v28 n 14 p 323329 Cabral RJ et al 1981 The psychotherapeutic value of a more ho mogeneous group composition IntJSocPsychiatry 27 1 436 Campos EP Leite ISC 1981 Fatores terapêuticos de um progra ma continuado e integrado de atendimento ao hipertenso Folha Médica 101 1 914 Campos EP 2000 Grupos de suporte In Mello Fº J e cols Gru po e Corpo Artmed Porto Alegre 11º Congresso Europeu de Medicina Psicossomática 1977 Psychotherapeutic problems with psychosomatic patients Psycho ther Psychosom v28 n 14 p 361375 Conte H R Karasu TB 1981 Psychotherapy for medically ill patients review and critique of controlled studies Psychosoma tics v 22 n 4 p 285315 Democker JD Zimpfer DG 1981 Group approaches to psycho social intervention in medical care a synthesis Int J Group Psychotherapy 31 2 247260 Dewald P 1981 Psicoterapia uma abordagem dinâmica Artes Médicas Porto Alegre Egan KJ et al 1983 The impact of psychological distress on the control of hypertension J Human Stress v 9 n 4 p 410 Enlund H et al 2001 Patientperceived problems compliance and the outcome of hypertension treatment Pharmacy World Science 23 2 6064 Ford CV Long KD 1977 Group psychotherapy of somatizing patients Psychother Psychosom v 28 n 14 p294304 Gaus E Klingenburg M Kohle K 1983 Psychosomatic aspects un the treatment of hypertension patients possibilities for an Psychother Psychosom 33 5360 Hypertension Detection and follow up program 1982 Fiveyear findings of the hypertension detection and followup program Jama 247 5 6338 Jardim PCBV Monego ET Reis MAC 2004 A abordagem não medicamentosa do paciente com hipertensão arterial In Pierin AMG Hipertensão Arterial Manole São Paulo Kohut H 1984 Self e narcisismo Zahar Rio de Janeiro Lazzaro CDS Ávila LA 2004 Somatização na prática médica Arq Cienc Saúde 11 2 25 Mallion JM Schmitt D 2001 Patient compliance in the treat ment of arterial hypertension J Hypertens 19 12 22812283 Mandriotta R Bunkers B Wilcox ME 1980 Nutrition inter vention strategies in the multiple risk factor intervention trial MRFIT J Of the American Dietetic Association 77 13840 MarinReyes F RodriguezMorán M 2001 Apoyo familiar em el apego al tratamiento de la hipertensión arterial esencial Salud Pública de México 43 4 33639 Mello Fº J 2000 a Histórico e evolução da psicoterapia de gru po In Mello Fº J e cols Grupo e Corpo Artmed Porto Alegre Mello Fº J 2000 b Grupos no hospital geral ambulatório e servi ços especializados In Mello Fº J e cols Grupo e Corpo Artmed Porto Alegre Moser M 1983 A decade of progress in the management of hypertension Hypertension 5 6 808 13 Roberts JP 1977 The problem of group psychotherapy for psychomatic patients Psychother Psychosom 28 14 30515 Psicossomaticaindd 508 Psicossomaticaindd 508 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 509 Sarquis LMM et al 1998 A adesão ao tratamento na hipertensão arterial análise da produção científica Ver Esc Enf USP 32 4 33553 Souza ALL 2004 Educando a pessoa hipertensa In Pierin AMG Hipertensão Arterial Manole São Paulo Winnicott DW 1978 Da pediatria à psicanálise Francisco Alves Rio de Janeiro Winnicott DW 1982 O ambiente e os processos de maturação Artes Médicas Porto Alegre Winnicott DW 1997 A família e o desenvolvimento individual 2ª ed Martins Fontes São Paulo Winnicott DW 1999 Os bebês e suaS mães 2ª ed Martins Fon tes São Paulo Yosefi C et al 2003 The Ashkelon Hypertension Detection and Control Program AHDC Program a community approach to re ducing cardiovascular mortality Preventive Medicine37571576 Psicossomaticaindd 509 Psicossomaticaindd 509 05012010 121224 05012010 121224 Este capítulo tem o propósito de mostrar como os novos conhecimentos provindos da neurociência cognitiva evolutiva são capazes de clarear mais um pouco os enigmas da relação corpomente na interfa ce com a psicanálise e a medicina psicossomática no encontro das ciências naturais e humanas O conceito de psicossomática ou medicina psi cossomática conjunto de conhecimentos e práticas dirigidos à relação corpomente passou por uma longa evolução histórica Mello Filho 1979 1992 até se tornar uma disciplina de pensamento e ação estreitamente associada à psicanálise Vejamos um trecho dessa história lá pelos idos de 1950 quando ocorriam expressivas vitórias do pensamento psicológico sobre a concepção estrita mente organicista um declarado reconhecimento da participação de fatores emocionais na etiologia e manutenção de determinadas doenças como a bron quite asmática a colite ulcerativa as colagenoses No entanto ao considerar a influência das emoções sobre o corpo os ditos fatores psicogênicos a so matização de conteúdos afetivos esta abordagem quase sempre tomava ainda a psique e o soma como entidades essencialmente distintas era mais psico somática do que psicossomática Afinal como entender as relações do que cha mamos corpo com o que denominamos mente Não são mesmo coisas diferentes conforme as re gistram as nossas vivências diretas o senso comum e as entenderam notáveis pensadores em todas as épocas Tentaremos examinar de perto e da maneira mais simples possível uma série de conceitos filo sóficos e científicos que superados os temores ini ciais podem se tornar instrumentos bastante úteis ao nosso trabalho diário como terapeutas de di versas áreas Doin 2003 Para tanto convido os leitores a me acompanharem numa longa viagem panorâmica sobre várias questões interligadas que embora se entrecruzem a cada passo serão exami nadas em tópicos separados a bem da clareza da exposição Um dos marcos da minha formação profissional se firmou no convívio com Danilo Perestrello a quem dedico este trabalho Foi no seu Serviço de Medicina Psicossomática na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro que comecei a me interessar pela nature za holística biopsicossocial do ser humano Lá apren di que Freud ao longo de toda a sua obra perseguiu o ideal de compreender a interrelação corpomente e que seus sucessores têm levado adiante a procura ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS A psicanálise a partir da noção freudiana da vida mental inconsciente e suas influências sobre todas as atividades humanas cresceu e se aperfeiçoou sob a égide da interdisciplinaridade da transdisciplinari dade dos intercâmbios com as mais diferentes áreas do saber e do fazer A psicossomática é herdeira de todo esse acervo cultural Parece mesmo impossível excluir dos horizontes da psicanálise qualquer fonte de conhecimentos As noções interdisciplinares em sua totalidade tornamse indispensáveis mas ainda insuficientes quando pretendemos entender os fenô menos humanos o que é bem compreensível dadas as peculiaridades e complexidades do ser humano em suas múltiplas faces e manifestações somadas a todas as flutuações e incertezas dos conhecimentos e linguagens através da inevitável participação de vie ses individuais Em nome da democracia das teorias do plu ralismo de ideias todas as hipóteses merecem ao me nos uma primeira acolhida No entanto fazem parte do progresso epistemológico em nossa área a obser vância de determinados critérios básicos como a fun damentação empírica das teorias hipotéticodeduti vas verificáveis pelos testes de realidade e eficácia pela convergência de conhecimentos de várias pro cedências por sua inserção no conjunto das teorias e postulados vigentes Com este intuito destacaremos a interface psicanálisepsicossomáticaneurociência cognitiva evolutiva 43 PSICOSSOMÁTICA E NEUROCIÊNCIA Carlos Doin O ser humano é essencialmente indiviso apesar das contradições Psicossomaticaindd 510 Psicossomaticaindd 510 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 511 Dois conceitos filosóficos ajudarão a esclarecer nossas ideias ontologia e epistemologia Ontologia resumidamente é o estudo da realidade em termos muito gerais procura responder à pergunta O que existe na realidade mais objetiva A raiz grega da palavra ontos ser existente também pode significar indivíduo em oposição a espécie grupo na compo sição de certos termos como ontogênese origem do indivíduo e filogênese origem da espécie Epistemologia é o estudo do conhecimento em termos muito gerais O que podemos saber sobre a realidade mais objetiva e por que meios É preciso reconhecer que todos os nossos conhe cimentos são falhos falibilistas que em princípio estão sujeitos a revisão complementação ou substi tuição em favor de outros achados e de teorias mais adequadas à cobertura dos fenômenos a realidade como nos aparece Nossos conhecimentos favoritos com toda sua aparência de saber definitivo devem ser tomados como heurísticos e provisórios isto é como programas de pesquisa instrumentos de desco berta e verificação de erros e acertos como hipóteses de trabalho úteis enquanto o forem Mesmo assim é indispensável que cada pensador cada terapeuta es colha aquelas teorias que no momento lhe pareçam as melhores e nelas faça fé mas sem dogmatismo Que seu saber seja imortal enquanto dure posto que é chama e chama cedo ou tarde se apaga Status científico da psicanálise Desde seu início a psicanálise vem se consti tuindo como uma disciplina de duas faces um saber e um fazer do entre é ciência natural e é ciência hu mana Segundo o ponto de vista predominante o ser humano se compreende no encontro de vertentes a fisicoquímica a biológica somatopsíquica a antro posociológicocultural Freud começou pretendendo fundamentar sua disciplina como ciência natural baseada na inter relação cérebromente com o rigor positivista da época como se vê no seu Projeto de uma psicolo gia científica 19501895 cuja meta consistia em buscar explicações causais genéricas para os fenôme nos Este plano não foi muito adiante por causa da pobreza dos conhecimentos neurológicos de então e das mudanças que já se operavam na conceituação de epistemologia Embora Freud nunca tivesse abandonado total mente seu sonho de explicações naturalistas Esboço de psicanálise 19401938 e esperasse sua realiza ção no futuro das ciências passou a se dedicar quase inteiramente ao campo das ciências humanas herme nêuticas e históricosocioculturais onde se privilegia compreender as motivações dos fenômenos humanos particulares relativos a pessoas individuais descobrir a intencionalidade dos conteúdos mentais em contex tos singulares os significados os símbolos os níveis de linguagem os valores as intenções os afetos as sensações as emoções os sentimentos enfim tudo aquilo que é próprio da vida mental intrasubjetiva intersubjetiva e relacional dos seres humanos a se espraiar pela cultura e pela história Hoje em dia a corrente ontológicoepistemo lógica mais promissora procura obter os conceitos se aproximam e se afastam visões abrangentes in cludentes sobre sistemas de continuum abertos a ino vações em que vigoram relações de oposição com posição dialética e complementaridade a concepção funcional integradora que reconhece a teoria do caos a possibilidade de mudanças aleatórias a dinâmica interligada dos princípios de ordem desordem e inte ração autoorganização conservadorismo e criativi dade regularidade e saltos qualitativos propriedades emergentes supervenientes nos sistemas complexos como seria o surgimento do psiquismo na imensa rede conectiva dos circuitos neuronais do cérebro Estudos recentes especialmente de neurociên cia abrem novas perspectivas para questões antigas De modo bem simplificado entendese que sistemas com um potencial bastante grande de conexões entre seus componentes podem pelo fenômeno conhecido em matemática como a lei dos grandes números pro porcionar condições à emergência de propriedades surpreendentemente novas Assim aconteceria com o sistema nervoso humano pelo número astronomi camente gigantesco de conexões possíveis entre as complexas tramas das redes neuronais a urdidura de sinapses entre axônios e dendritos imersos no tecido glial também dotado de funções conectivas Cálculos mais moderados supõem que as interligações possí veis seriam em torno de 10 elevado à potência 15 ou seja um seguido de 15 zeros isto é um trilhão nú mero que se escreve mas não se imagina Outros fa lam em 10 elevado a 27 possibilidades na ordem de trilhões de trilhões Um potencial de tamanha gran deza não encontraria similar em nenhum outro setor do cosmos Dele emergiria uma dimensão nova a do psiquismo portanto o somatopsiquismo O avanço das ciências vem derrubando a pre tensão humana de sermos seres ímpares na natureza sem similares Somos únicos sim no grau de evo lução da vida As teorias evolutivas concebem uma linha filogenética contínua entre o que é humano e o não humano e aquilo que parecia exclusividade nossa precisa ser rediscutido Apanágio do Homo sa piens talvez seja apenas a sofisticação de característi cas e atributos iniciados em outras espécies animais O id freudiano inconsciente encontraria assim a sua Psicossomaticaindd 511 Psicossomaticaindd 511 05012010 121224 05012010 121224 512 Mello Filho Burd e cols animalidade comprovada também o psiquismo consciente e inconsciente ego e o superego parecem fundarse na mesma linha da filogênese Mas o nosso psiquismo além de ter prováveis origens nas espécies subhumanas talvez nem tenha garantida sua exclusividade para sempre Os pesqui sadores da inteligência artificial acreditam que num futuro não muito remoto a tecnologia conseguirá talvez empregando diretamente material de cérebros humanos criar redes neurais de igual complexidade capazes que sediar fenômenos mentais semelhan tes aos nossos quem sabe até mais ricos de poten cialidades Quem viver verá E se essa hipótese se concretizar preparemse os futuros psicanalistas e psicossomatistas para ajudar os humanos de mode lo tradicional a lidar com as novas realidades e a se entender com os possíveis biônicos ou androides que a ficção científica já vislumbra Para encerrar este tópico repitamos que é im portante compreender o confronto entre dicotomias e processos em continuum Os pensadores sempre tiveram dificuldade em verificar junções entre fenô menos e conceitos aparentemente antagônicos como corpo e mente normal e patológico congênito e ad quirido Dizse que é muito mais fácil estabelecer di cotomias do que sistemas em continuum por conta de algumas características da nossa anatomofisiologia a natureza nos dotou de dois hemisférios cerebrais que são de certo modo dois cérebros que precisam funcionar em conjunto e nem sempre conseguem também nos proveu de dois olhos dois ouvidos duas mãos duas pernas enfim duas metades corporais a mandar mensagens diferentes para o córtex cerebral encarregado de conjugálas de modo a serem capta das como um todo Isso ocorre graças a uma central integradora das informações provenientes de várias áreas do córtex cerebral a fim de produzir represen tações sensoriais unitárias precursoras de vivências somatopsíquicas São processos múltiplos cujo equi líbrio dinâmico e instável oscila entre graus variados de sucesso e fracasso eis porque a dita normalidade e a denominada patologia são vizinhas tão próximas ou melhor também pendulam entre dois extremos Esta noção está inserida num instrumento jei toso que Freud nos legou as séries complementares Utilizado inicialmente para explicar a etiologia das neuroses na junção do congênito com o adquirido esse instrumento demonstrou sua enorme valia para se entender a distribuição de inúmeros outros fenô menos num continuum expresso pela curva de Gauss aquela em forma de sino ou u invertido Para este momento do nosso raciocínio podemos dizer que os casos totalmente normais e os totalmente patológi cos situamse nas pontas da curva como casoslimite raríssimos alguns inexistentes fora do plano teórico Todos os outros se distribuem em pontos intermediá rios da sequência contínua CORPO E MENTE A questão central da psicossomática o enigma da relação corpomente vem sendo debatido através dos milenares percursos das religiões das filosofias e das ciências As hipóteses explicativas variam em ampla ex tensão desde as que supõem duas entidades dife rentes intercomunicantes ou não dualismo com ou sem interacionismo até as que consideram corpo e mente como uma entidade única monismo de nature za cujas características são também essencialmente iguais apenas observadas e descritas de duas manei ras diferentes monismo de atributos ou alternati vamente cujas propriedades são de fato diferentes as ditas corporais e as denominadas mentais dualis mo de atributos No século V aC Hipócrates considerado o Pai da Medicina já dava como certo que todos os proces sos mentais emanam do cérebro Iniciava assim a corrente monista que prevalece atualmente no pen samento de filósofos e cientistas No século IV aC Platão um dos expoentes da filosofia ocidental defen deu o dualismo conceituando uma alma imaterial e imortal distinta do corpo material e perecível Para o dualismo portanto haveria no ser humano duas es sências distintas o espírito e a matéria ou a mente e o corpo mais especificamente o cérebro Há dualistas que acreditam no interacionismo isto é que o corpo e a mente se interrelacionam de algum modo e se in fluenciam reciprocamente Outros porém supõem que a influência é unilateral de mão única ou do corpo sobre a mente ou da mente sobre o corpo E finalmen te dualistas extremados julgam que corpo e mente en tidades tão diversas não se relacionam entre si Para o monismo radical haveria apenas uma en tidade e a outra seria mera propriedade da primeira Entre os monistas dessa categoria distinguemse dois grupos os materialistas e os espiritualistas ou idealis tas Os materialistas dão inteira prioridade ao cérebro e encaram a mente como consequência da atividade cerebral Já os idealistas no outro polo consideram a matéria como inexistente e o que parece material não passaria de criação mental uma maneira de per ceber as coisas Na prática em cada um desses grupos se encon tram várias posições intermédias nuances conceituais em que as fronteiras esquemáticas se esmaecem e os opostos chegam a se superpor O dualismo corpo e mente com interacionismo en tre as partes entrou no terreno científico propriamen Psicossomaticaindd 512 Psicossomaticaindd 512 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 513 te dito pelo prestígio de Descartes no século XVII res extensa et res cogitans mas continua forte em nossos tempos através por exemplo dos brilhantes neuro cientistas Popper e Eccles No campo religioso o cria cionismo sobrenaturalista e a dicotomia radical sepa rando corpo e alma constituem dogmas há milênios atualmente revestemse de poderosas motivações políticas Para se contrapor às teorias naturalistas do evolucionismo neodarwiniano o velho dualismo se repaginou como smart design ou desenho inteligente do universo não muito diferente dos clássicos desíg nios divinos preestabelecidos para o cosmos Curiosamente os avanços da neurociência po dem ser equivocadamente tomados como confirma ções do dualismo clássico A complexidade conecti va das redes neuronais mencionada anteriormente além de outras propriedades encefálicas como plasticidade redundância alternância e suplência funções neuronais múltiplas seletivas antagôni cas eou complementares criam condições únicas sem paralelo em qualquer outro sistema conhecido O psiquismo que daí emerge adquire características especialíssimas a ponto de simularem qualidades ex tracorpóreas imateriais desvinculadas do encéfalo o qual porém continua sendo a condição inarredável de sua existência A figura que neste ponto me ocorre é a de uma bailarina dotada de extrema leveza graça e expressividade nos volteios esvoaçantes que mal parece precisar da materialidade do seu corpo nem do chão que lhe dá apoio É bem provável que uma visão composta unicis tadualista vá acabar prevalecendo a que considera corpo e mente como um continuum uma totalidade referida a níveis e características diferentes unicismo de natureza com dualismo de atributos ou proprie dades como se diz em linguagem técnica com o re conhecimento de vivências individuais referidas ora ao corpo ora à mente e em outros momentos a um todo unitário corpomente Esta visão abrangente é a que mais condiz com a concepção psicossomatista Resumindo para os terapeutas sem maiores so fisticações teóricas pode bastar a noção de que corpo e mente quer sejam uma única entidade ontológica essencial quer sejam duas interagem permanente mente como uma unidade funcional Realmente fica difícil pensar em um corpo radi calmente distinto de uma mente quando se considera o conjunto estrutural e funcional composto pelas vias neuromentais ascendentes e descendentes de mão dupla trazendo e levando mensagens informações neuroeletroquímicas e comandos a partir do corpo da musculatura lisa e estriada esqueleto vísceras pele sensório passando pelo sistema nervoso perifé rico e profundo medula tronco cerebral diencéfalo cerebelo núcleos da base cerebral córtex cerebral até o córtex préfrontal e as centrais neuromentais onde se originam as funções psíquicas consideradas superiores e o apogeu da evolução humana Devese lembrar sempre que cronologicamente na evolução das espécies animais o corpo começou a funcionar antes da mente dando condições neuro lógicas para a instalação do psiquismo que interagiu desde o início com seu substrato somático Desde aí corpo e mente se tornaram um todo funcionante no sentido da vida da sobrevivência do indivíduo bem como da perpetuação da espécie a que ele pertence adaptado ao seu meio ambiente físico biológico re lacional Voltaremos a essas noções evolutivas mais adiante A unidade funcional somatopsíquica ou psi cossomática se expressa através de manifestações e vivências mais ou menos corporais ou mais ou me nos mentais Algumas patologias começam ou são percebidas inicialmente na vertente corporal e outras na psíquica Por exemplo há muito se conhecem as manifestações psicológicas dos tumores do cérebro depois foram constatadas as alterações bioquímicas e biomoleculares das doenças diagnosticadas como psiquiátricas Hoje é sabido que o estresse crônico além dos sofrimentos psíquicos bem conhecidos an gústia depressão fadiga mental etc leva a altera ções anatomofisiológicas do sistema nervoso central das vísceras do sistema imunitário enfim de diver sos setores do corpomente embora as exterioriza ções possam ser mais emocionais ou mais orgânicas conforme o caso Talvez a prioridade que damos a uma ou outra vertente do psicossoma seja apenas resultado de nos sas maneiras de ver pensar e falar Não é universal a visão do ser humano como composto de corpo e de mente distintos em algumas culturas não aparece tal dicotomia Ela está porém arraigada na cultura oci dental no senso comum na linguagem nas corren tes de pensamento e provavelmente assim se manterá por muito tempo mesmo que venha a se reconhecer equivocada Numa situação semelhante continuamos a pensar e a falar em nascer e pôr do sol mesmo que a realidade astronômica seja do conhecimento geral há mais de 400 anos NEUROCIÊNCIA PSICOLOGIA COGNITIVA EVOLUÇÃODESENVOLVIMENTO Vejamos melhor estes conceitos Freud teria hoje bases mais sólidas para fundamentar seu projeto científico com a utilização da imensa quantidade de conhecimentos novos colhidos nos campos das neu rociências e da psicologia cognitiva com ênfase na evolução das espécies filogênese e no desenvolvi Psicossomaticaindd 513 Psicossomaticaindd 513 05012010 121224 05012010 121224 514 Mello Filho Burd e cols mento de cada indivíduo ontogênese Descobertas que nos chegam quase diariamente permitem uma compreensão sempre mais apurada acerca dos cons tituintes do ser humano conjunto de corpo e mente integrados rico de afetos sensações sentimentos e de ideias e criações Cada somatopsiquismo indivi dual está intimamente vinculado à dinâmica das suas relações interpessoais em contextos socioculturais e históricos diferenciados Damásio 1994 1999 Kan del 1999 2006 Neurociência Costumase usar a expressão neurociência ou neurociências no plural para englobar diversas dis ciplinas dedicadas a diferentes aspectos do sistema nervoso desde suas grandes estruturas e funções até a biologia molecular e a bioquímica das células Aí se alinham a neuroanatomia a neurofisiologia a neu ropsicologia a neurologia clínica entre outras Ao lado de aperfeiçoamentos dos exames complemen tares mais antigos destacamse agora as técnicas de obtenção de neuroimagens encefálicas neuroima geamento brain imaging techniques principalmen te através da tomografia com emissão de pósitrons PET e da ressonância magnética funcional FMRI Elas proporcionam uma observação bastante sensível do funcionamento ao vivo das estruturas do encéfa lo correlacionável com os fenômenos mentais con comitantes o que propicia argumentos de peso a favor das teorias de integração corpomente Ainda não é uma filmagem do pensamento mas a tecnolo gia já provê uma imagem da integração neurológica psicológica em pleno funcionamento em tempo real Lent 2001 Ciência ou psicologia cognitiva Ocupase dos dispositivos que a mente utiliza para processar informações de todo tipo fisicoquími cas somatopsíquicas ambientais provindas do corpo e da própria mente do mundo interno e do mundo externo com o fim de produzir representações e co nhecimentos afetivocognitivos memórias pensa mentos reações diversas e determinar respostas e condutas mais ou menos adequadas aos interesses vitais básicos Só me ocuparei neste trabalho com aspectos da neurociência e da ciência cognitiva que ensejam aproximações com conceitos e métodos da psicaná lise e afins confirmações complementações ou di vergências no tocante a suas teorias e técnicas As chances de diálogo que aí se abrem exigem condições rigorosas critério e prudência para se efetivarem em termos válidos sem radicalismos nem rejeições apriorísticas nem aceitação prematura e simplista das novidades que têm acontecido Devese reconhecer a diversidade de opiniões entre os psicanalistas psicoterapeutas psicossomatis tas psiquiatras sobre a importância dessas contribui ções e posicionarse individualmente diante delas Deixo de lado neste texto as correntes que se opõem radicalmente à psicanálise como a que em prega com exclusividade a vertente orgânica dos fe nômenos mentais e indica tratamentos medicamen tosos para todos os males psíquicos Embora a neurociência e a psicologia cognitiva tenham se desenvolvido como disciplinas autônomas são tantas as suas superposições que existe forte in clinação a considerálas em conjunto Kandel 1999 Damasio 1999 Podemos assim utilizar as enormes vantagens dos avanços interdisciplinares e valorizar por exemplo o curiosíssimo fenômeno que Kandel 1999 chamou de insight biológico observase em laboratório pela técnica de neuroimagens que algu mas modificações de certos circuitos neuronais são acompanhadas ao mesmo tempo por transforma ções psíquicas instantâneas e pela vivência prazerosa de entendimento súbito descoberta iluminada esta lo ou clique Ah finalmente entendi Agora caiu a ficha Nem todos os insights porém são enfeixados de modo tão explícito a maior parte resulta da soma de modificações gradativas inconscientes como é o caso de certos sintomas que de repente se descobre deixaram de existir mesmo sem terem sido muito diretamente trabalhados Evolução filogenética e desenvolvimento ontogenético A visão neurocientífica cognitiva que mais nos interessa inclui ainda a dimensão evolutiva que con tinua sendo a melhor maneira de explicar o apareci mento e perpetuação dos seres vivos segundo uma tradição de conhecimentos e teorias naturalistas em oposição aos sobrenaturalistas sistematizados por Charles Darwin na segunda metade do século XIX tendo como pontos básicos a seleção natural a neces sidade imperiosa de adaptação ao meio ambiente a luta pela vida a sobrevivência dos mais aptos na pre servação individual e da espécie a evolução em senti do amplo A teoria evolucionista atual também cha mada neodarwinismo evolucionismo moderno síntese evolutiva moderna que inclui os avanços da genética fundada por Mendel a hereditariedade baseada nos genes e suas mutações e todos os progressos científi Psicossomaticaindd 514 Psicossomaticaindd 514 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 515 cos posteriores a Darwin continua sendo o conjunto teórico mais abrangente e adequado à cobertura e ex plicação dos fenômenos apesar das críticas que tem recebido O sistema nervoso e o psiquismo que surge dele constituem um elo importante na cadeia evolutiva Pensase atualmente que toda a vida psíquica inclu sive a vivência de um eu individualizado vem evo luindo há uns 3 bilhões de anos a partir de seres vi vos extremamente primitivos unicelulares estes são dotados de uma membrana biológica seletiva capaz de individualizálos em relação ao meio externo com o qual continuaram mantendo trocas de substâncias a serviço de seu meio interno tendente a um equi líbrio homeostase dentro de uma faixa regular de flutuações Nesta formulação os primórdios da vida psíquica se iniciam nas primeiras experiências de unidade e continuidade daquilo que se passa dentro de um mesmo organismo no equilíbrio de sistemas integrados biológicos e relacionais Vai se formando um todo que possui forte tendência a se conservar regenerar reorganizar e restaurar a se modificar e evoluir somatopsiquicamente numa faixa mais ou menos regular e constante de desempenhos registra dos maiormente como úteis e bons para a perpetua ção da vida Por outro lado agem forças antagônicas no sentido da destruição As mudanças foram se fazendo gradualmente mas também através de saltos qualitativos mais ou menos esporádicos Geralmente um nível estrutural não é eliminado pelo que dele emerge mas continua a interagir com ele após sofrer transformações maio res ou menores Sobre o conjunto da evolução biológica se assen tou portanto o psiquismo que também se transfor mou ao longo da filogênese até atingir as culminân cias da neuromente humana E no desenvolvimento de cada pessoa as estruturas neuromentais passam por modificações propícias ao crescimento e sofistica ção funcional desde o início da vida intrauterina até a velhice enquanto a saúde predominar Ao que tudo indica existem programações filo e ontogenéticas para dar certo no melhor sentido evo lutivo para a vida integração somatopsíquica saú de primazia da genitalidade verdadeiro self senso de justiça e solidariedade As utopias e o senso de religiosidade talvez também façam parte de uma pro gramação filogenética a préconcepção de um ser melhor de uma vida melhor o que em metáforas místicas poderia denominarse um anjo nos cha mando adiante de nós um deus a posteriori a nos puxar para a frente Doin 2003 2005 De acordo com os determinismos vitais tendem a continuar se repetindo aqueles funcionamentos que deram bons resultados graças à agregação de uma quota de prazer cada vez que eles se realizam Assim nos diversos setores organizacionais desde o tronco cerebral até o neocórtex desde os níveis somáticos mais primitivos até os psicológicos mais refinados os dispositivos de recompensa vão acompanhando e estimulando todos os estágios evolutivos A partir dos primórdios sensoriais somestésicos e ambientais vão surgindo novas sensações emoções sentimentos afetos lato sensu No ser humano ainda mais abrese o acesso à capacidade de simbolização pensamento e linguagem em linhas ascendentes de especialização e aprimoramento afetivocognitivo enfim à plenitu de da vida psíquica com seus valores criativos éticos e estéticos a fomentar realizações em todos os âmbi tos culturais artísticos religiosos filosóficos Como vemos tende a se conservar e desenvolver aquilo que se mostrou de alguma maneira útil e prazeroso A normalidade se caracteriza pelo funciona mento integrado de todos os níveis neuromentais e relacionais individuais e interpessoais dentro de uma determinada faixa de oscilações É claro que este modelo nem sempre ou raramente se cumpre por inteiro dando margem a todo tipo de distorção e anomalia até se configurarem os quadros patológicos propriamente ditos Desde logo é preciso enfatizar que os determi nismos gerais não excluem o contingente individual genotípico e fenotípico na efetivação dos traços pes soais Não é só excetuando as funções vitais indis pensáveis como respiração circulação do sangue nutrição metabolismo termorregulação regidas principalmente pelo tronco cerebral a parte mais antiga do encéfalo herança filogenética dos répteis e ressalvando ao menos por enquanto algumas ca racterísticas vitalícias como o sexo genético a cor da pele e dos olhos bem como alguns casos extremos de patologia genética para a grande maioria das disposições pessoais não há précondicionamento ge nético absoluto incontornável na realização de uma vida Por isso é preferível falar em tendências mais ou menos fortes para tal ou qual traço corporal ou de personalidade Nosso fenótipo resulta da intera ção do genótipo com o meio ambiente físico biológi co humano com as experiências da história pessoal Nesse sentido com as devidas restrições vale o dito Genética não é destino O bichogente é o que nasce menos programado com maior e mais longa dependência dos seus mas também é o que tem mais chance de aprender e incluir experiências existenciais em seu funcionamento tanto orgânico quanto psíquico e comportamental O corpo o cérebro e a mente de uma pessoa vão se moldando desde o início por e para seu mun do físico biológico e humano para este entorno em particular para o seu habitat com aquela mãe e não Psicossomaticaindd 515 Psicossomaticaindd 515 05012010 121224 05012010 121224 516 Mello Filho Burd e cols outra com aquela família com aqueles conviventes naquela cultura naquela história com seus sistemas simbólicos de ideais e valores éticos estéticos em butidos em seu idioma Cada bebê nasce com poten cialidades genéticas biológicas únicas para a cons tituição de um eu inédito singular mas é também herdeiro de milhares de gerações préhumanas e hu manas A partir de incontáveis determinações ances trais e circunstanciais a notável capacidade humana de adaptarse sobreviver crescer e se modificar vai se realizando com alguma liberdade presa ainda a valores limites e imposições de várias ordens Have rá sempre uma luta entre obedecer e transgredir tais determinações E a própria tendência humana a con trariar programações ancestrais romper barreiras desprezar impossíveis parece que é também deter minada pela evolução Segundo Gabbard 2000 o convívio com os pais e familiares molda o próprio cérebro cria pa drões de funcionamento interpessoal que se armaze nam na memória de procedimentos inconsciente e tendem a se repetir nos relacionamentos futuros Há fases críticas de melhor chance para o desenvol vimento neuromental do cérebro janelas de oportu nidade de tempo limitado para determinadas aqui sições cognitivas Ao que parece a consciência psicológica indivi dual resulta da percepção do conjunto de percepções que ocorrem dentro de um mesmo organismo soma topsíquico singular do mesmo self ou eu individual O que vem dar força à antiga noção do eu ímpar como sujeito das experiências vivenciais pessoais consecu tivas no tempo no espaço e nas diversas situações dotado também da capacidade de autorreflexão e au torreferência da faculdade de saber que sabe o que sabe que sente o que sente A aquisição da consciência psíquica e do self constituem ganhos da evolução biológica por pro porcionarem recursos mais criativos e eficazes na so lução de problemas existenciais velhos ou novos Nos primórdios da vida a mãe é o principal fa tor externo na expressão fenotípica do genoma da criança isto é de quais disposições genéticas vão se efetivar como traços característicos do novo ser Ela funciona como cérebro acoplado especialmente como córtex cerebral anexo como o ego auxiliar da conceituação psicanalítica até que as estruturas e as funções correspondentes amadureçam na criança robustecendo sua crescente autonomia neuromental Mais ainda a mãe ou quem exerça a função relacio nal primária serve de modelo biopsíquico compor tamental e cultural para as organizações equivalen tes do bebê O pequeno ser individual se forma e se transforma em função da mãe adaptase ao mundo que principia sendo ela tende a alinharse ao que ela sente e pensa sobre tudo e sobre cada pessoa e o que é mais importante ao que ela sente pensa e espera em relação a ele As experiências vividas com a mãe e depois com os outros ficam registradas nos circuitos neuronaismentais isto é influenciam em grau maior ou menor e mais ou menos definitiva mente a constituição das estruturas neurológicas e psicológicas da criança seu modo de ser e funcionar amarse ou odiarse de encarar a vida as pessoas o mundo de maneira mais otimista ou mais pessimista amorosa ou raivosa construtiva ou destrutiva Um lembrete quando dizemos que certas áreas encefálicas estão mais envolvidas com determinadas atividades neuromentais por exemplo que a amíg dala da base do cérebro e todo o sistema límbico são extremamente relevantes para a vida emocional já na maternagem primária ou que o hipocampo é estreitamente ligado ao aprendizado e à memória não pretendemos declarar que sejam localizações únicas dessas funções como até já se pensou As áreas referidas são apenas parteschave de uma ca deia conectiva extensíssima afinal do corpomente inteiro De modo semelhante quando descrevemos uma rede ferroviária destacamos algumas estações centrais mais importantes para as quais convergem vários outros ramais e das quais partem trens infor mações e ordens para os outros setores da rede Uma estação isolada do conjunto se tornaria inoperante Outros motivos de cautela se impõem Os neu rocientistas não conseguem distinguir na totalidade dos casos patológicos quais traços neuromentais são primários ou secundários Há variações individuais muitas em função do sexo biológico e do gênero se xual adotado da língua materna e das características ambientais e socioculturais da criação e convívio Ponderando tudo isso registremos uma hipóte se recente Blakeslee e Blakeslee 2007 sobre a cor relação corpomente enfeixada no encéfalo através de três estruturas que reúnem informações soma topsíquicas e as remetem para uma central a insula frontal componente do córtex cerebral de ambos os hemisférios mas a direita é que centralizaria afinal a conexão corpomente as sensações e as emoções que são fundamentais às vivências somatopsíquicas aos desenvolvimentos de todo o psiquismo e das re lações interpessoais e socioculturais Nela se fundem as sensações físicas conscientes e as emoções psí quicas conscientes Certas técnicas de neuroimagens mostram que os neurônios desta área se ativam ele troquimicamente enquanto a pessoa padece uma dor física ou um sofrimento psíquico como a dor e a in dignação de ser rejeitado maltratado injustiçado As três estações subcentrais que alimentam diretamente de informações o córtex insular são a Psicossomaticaindd 516 Psicossomaticaindd 516 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 517 amígdala que correlaciona emoções às experiên cias pessoas e coisas o córtex orbitofrontal área importante para a autodisciplina e o estabelecimento de planos e prioridades de ação levando em conta a probabilidade de obter recompensas ou punições e o córtex cingulado anterior que monitora os compor tamentos procurando equívocos corrigindo e evitan do erros avalia o contexto planeja e executa ações que tenham significação emocional e motivacional esta área é também encarregada de mapear o corpo todo Curiosamente descobriuse que nesta mesma área em que se organiza o autoconhecimento o co nhecimento da unidade somatopsíquica que caracte riza o ser individual centralizase também a empa tia a percepção possível do que se passa na pessoa somatopsíquica do outro corroborando a afirmação corrente de que conhecer a si mesmo e ao semelhan te são capacidades complementares E ainda mais as mesmas áreas e funções são decisivas na constituição do senso éticomoral Para a questão da liberdade de escolha a neuro ciência está propondo alguns avanços talvez nossas decisões sejam tomadas inconscientemente cabendo à mente consciente obedecêlas ou não de acordo com critérios pessoais Daí a frase de um neurocien tista Gazzaniga Os cérebros são automáticos mas as pessoas são livres com as devidas restrições Conforme informam a sociobiologia e a psicolo gia evolutiva animal algumas características conside radas até bem pouco como exclusivas do ser humano e resultantes do convívio sociocultural o senso de responsabilidade justiça punição e recompensa e de solidariedade ao lado da propensão a fazer arranjos políticos e diplomáticos maliciosos como alternati va para os meios físicos violentos encontram seus primórdios nos primatas superiores principalmente nos chimpanzés e bonobos Talvez possamos falar em elementos éticos préhumanos Tendo em vista as vantagens adaptativas e evolutivas dessas aquisições com toda a probabilidade elas dependem de alguma forma de transmissão genética NEURÔNIOSESPELHO Na última década do século XX aconteceu um evento capaz de abrir possibilidades incríveis ao des vendamento da unidade somatopsíquica a desco berta dos neurôniosespelho que se considera com razão a maior conquista neurocientífica dos últimos tempos Os autores da descoberta Giacomo Rizzolatti e colaboradores 2006 neurocientistas italianos re lembram seu achado da seguinte forma João obser va Maria pegar uma flor Maria sorri para João e este adivinha que ela lhe dará de presente a flor Uns 10 anos atrás a maior parte dos neurocientistas atribuiria o entendimento das intenções dela a um processo de raciocínio dedutivo mais ou menos com plexo Operações deste tipo ainda são necessárias par ticularmente quando o comportamento de alguém é difícil de decifrar e nos obriga a parar para pensar Mas a facilidade e a rapidez com que costumamos entender ações corriqueiras como a de Maria suge rem um procedimento neuromental muito mais sim ples e direto No começo dos anos de 1990 nosso grupo de pesquisa na Universidade de Parma Itália des cobriu a resposta de forma quase acidental em um tipo de neurônio do cérebro de macacos que dispa ra no momento em que o animal desempenha ações motoras direcionadas dependentes de outras células corticais encarregadas do comando motor como pegar uma fruta por exemplo O que nos surpreen deu foi o fato de esses neurônios também dispararem quando o animal simplesmente observava alguém fazer a mesma coisa Como esse novo subconjunto de células reflete no cérebro do observador os atos realizados por outro indivíduo demos a eles o nome de neurôniosespelho Logo em seguida se descobriu nos seres huma nos a existência de neurônios semelhantes com fun ções análogas e mais aperfeiçoadas localizados em diversas partes cerebrais especialmente em áreas de associação do córtex como na área prémotora do lobo frontal inclusive na área de Broca ligada à pro dução da fala e em vários outros setores do córtex parietal e temporal A captação dos procedimentos do outro não é apenas visual mas também auditiva graças aos neu rôniosespelho audiovisuais A seguir funções impor tantes como a empatia a percepção da dor alheia e outras formas de comunicação sutil foram sendo relacionadas a certas áreas cerebrais É até mesmo possível levantar a hipótese de que o cérebro inteiro funcione como um sistemaespelho Com tais recursos ensaiamos ou imitamos men talmente toda a ação observada o que é capaz de servir para obter a partir de um nível préreflexivo protossimbólico préverbal uma compreensão signi ficativa do comportamento de outra pessoa suas sen sações emoções e sentimentos suas intenções o que pretende dizer e até muitas vezes o que pretende esconder apesar de todas as distorções introduzidas pela mente do próprio receptor Rizzolatti e colaboradores 2006 verificaram imediatamente as enormes implicações da descober ta a começar pelas vantagens vitais e sociais de uma Psicossomaticaindd 517 Psicossomaticaindd 517 05012010 121224 05012010 121224 518 Mello Filho Burd e cols captação pronta e profunda do que se passa na men te do outro o que constitui um avanço notável no entendimento de como funcionam nossos cérebros mentes individuais e em conjunto A descoberta do sistemaespelho respalda cientificamente uma afir mação da filosofia fenomenológica para compreen der profundamente uma vivência do outro a pessoa tem de passar por uma experiência semelhante den tro de si mesma O primeiro sistema de comunicação entre os pais e a criança o mais direto e imediato não é ver bal mas sensorial e sensóriomotor visualauditivo motor Dele brotam os processos identificatórios a partir do aprender por imitação imitar para conhe cer imitar para ser Ou seja os sistemasespelho e os mecanismos de imitação ligados a eles fazem parte da dinâmica dos processos de aprendizado comuni cação e identidade Bebês humanos e macaquinhos aprendem des de cedo a imitar gestos simples como mostrar a língua A capacidade de criar padrõesespelho pare ce inata com uma diferença talvez decisiva ela se aperfeiçoa rapidamente nos humanos dando a eles uma vantagem evolutiva de adaptação ao meio que os distingue a priori dos outros primatas Nesse caso contrariando uma expressão corrente na linguagem comum macaco de imitação seria mais justo dizer humano de imitação Enfatizando a relação somatopsíquica Scalzone 2005 assinala Quando estes neurônios se tornam ativos o sistema motor ressoa com a ação do agente observado e eles os neurôniosespelho respondem automaticamente uma espécie de simulação ou di gamos de imitação pois ela envolve um processo não intencional automático do qual o próprio não tem conhecimento A passagem do funcionamento do neurônioespelho para os processos imitativos isto é de um fenômeno somático para um fenômeno psíquico de uma atividade neurológica para uma atividade psicológica é um exemplo de processo de transforma ção dentro de um continuum somatopsíquico Como mostram as neuroimagens basta imagi nar um gesto para que as áreas cerebrais correspon dentes ao ato se ativem como se o ato estivesse sendo praticado Quando relembramos uma cena o córtex visual se ativa como se estivéssemos vendo a cena na realidade Há portanto uma ligação estrutural e funcional entre as áreas cerebrais do pensamento e a áreas dos movimentos corporais entre as simulações mentais e a execução motora dos atos imaginados entre o automatismo e a conscientização nova evi dência do continuum corpomente Quanto à psicanálise e às psicoterapias afins os achados neurocientíficos recentes oferecem maiores chances de se encontrar o correlato anatomofisioló gico de vários fenômenos há muito conhecidos em nossa prática clínica e na teorização dela decorren te Compartilhar emoções e sentimentos com outros de modo direto não consciente não verbal enseja vivências intersubjetivas de ligação estreitíssima até de indiferenciação pessoal mas também podem abrir caminho para formas mais elaboradas de relaciona mento interpessoal em que se reforcem reciproca mente a individualidade singular do sujeito e a alte ridade da pessoa do outro o eu e o não eu Winnicott 1965 a distinção entre o que está na mente do su jeito e o que está do lado de fora na mente do outro no mundo exterior Sentir a dor do outro ser com o outro ser o ou tro são capacidades que dependem em grande parte do sistema neuropsíquico especular e alimentam uma gama de vivências desde as de fusão simbiótica até as de união íntima empática sem perda dos limites individuais propiciando a intercomunicação normal na vida comum Uma disfunção do sistemaespelho parece ocor rer nos déficits de empatia da compreensão direta das emoções do outro como acontece com as crianças autistas psicopatas e talvez alguns casos borderline Temse conjeturado que disfunções empáticas simila res existam em graus variados em pessoas bem mais próximas da normalidade como nas mães nos fami liares e nos terapeutas não empáticos pelo menos de modo parcial e seletivo isto é um embotamento da sensibilidade com relação a determinadas crianças ou pacientes conforme sejam ou não bastante queridos causem bemestar ou desconforto Não é demais detalhar os sistemas especulares ligados aos neurôniosespelho encontram uma gran de semelhança com algumas conceituações de notá veis psicanalistas como a função especular materna e familiar apontada por Winnicott 1967 essencial à constituição da identidade da criança De início as expressões da face materna retratam ativamente a imagem do filho e nela o bebê vai se encontrando e reconhecendo desenvolvendo seu verdadeiroself sua identidade mais autêntica Em caso de defeito gra ve da função especular formase um falsoself uma adaptação forçada às imposições da mãe e do meio Utilizando o referencial de Melanie Klein po deríamos dizer os neurôniosespelho fornecem um substrato neurofisiológico às identificações introjeti vas que são componentes importantes da identida de normal quando devidamente assimiladas caso contrário elas continuarão como objetos estranhos parasitando o ego da pessoa E também das identifi cações projetivas a atribuição de conteúdos próprios a outrem Outras noções psicanalíticas também podem ser referendadas pelos aportes neurocientíficos como a Psicossomaticaindd 518 Psicossomaticaindd 518 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 519 de função alfa conceituada por Bion a de apego at tachment estudada por Bowlby a primitividade da simbiose primária que vai dando lugar ao processo de separaçãoindividualização como observou Mahler Finalmente e cautelosamente é preciso deixar bem claro que graças aos avanços espetaculares das neurociências temos conseguido no máximo aprimorar nossos conhecimentos sobre as condições biológicas que possibilitam o surgimento do mundo mental Continuamos ainda à espera de algum enfo que capaz de lançar maior claridade sobre a natureza do misterioso salto qualitativo entre o nível somático e o psíquico entre os fenômenos neurológicos e os psicológicos conscientes O que determina por exem plo que a associação simultânea em áreas especiali zadas do córtex cerebral das informações sensoriais oriundas de diversos órgãos e processadas em dife rentes setores do cérebro dê origem a uma vivência subjetiva integrada digamos a imagem mental afeti vocognitiva de uma rosa vermelha perfumada Nesta pergunta estão embutidos dois problemas até agora hermeticamente desafiadores o da interli gação binding das informações veiculadas pelos di versos circuitos neuronais e o das vivências subjetivas daí resultantes qualia Ou seja o âmago da rela ção corpomente ainda guarda seus enigmas muitos enigmas Eles se desvendarão algum dia década ou século CONCLUSÕES PROVISÓRIAS SOBRE A INTERFACE NEUROCIÊNCIA COGNITO EVOLUTIVA E PSICANÁLISEPSICOSSOMÁTICA Por tudo o que vimos até aqui parece inegável que a interface com a neurociência cognitiva evolu tiva prodigaliza recursos infindos ao enriquecimento teórico e clínico da psicanálise propriamente dita bem como de suas aplicações nas psicoterapias ditas dinâmicas e de todas as especialidades terapêuticas médicas e paramédicas que consideram como essen cial a vertente psicossomática da condição humana Assim sendo alguns pontos da interface merecem um destaque final Doin 2003 a Ganhos teóricos Os progressos da neurociência possibilitam robustecer algumas teorias e refe renciais psicanalíticospsicossomáticos e também debilitar outros A compreensão holística do ser humano como organização integrada em seus di versos níveis estruturais funcionais e relacionais interativos depõe contra as teorias reducionistas simplistas que privilegiam radicalmente um as pecto o corporal ou o psíquico o consciente ou o inconsciente o atual ou o arcaico o individual ou o social o intrapsíquico ou o interpessoal o simbólico ou o protossimbólico o verbal ou o não verbal minimizando ou excluindo os outros São inúmeras as aproximações ou equivalências encontradas entre os conhecimentos psicanalíticos consagrados e o que vem se descobrindo na vizinhan ça como por exemplo os conceitos de instintos e pulsões Eros e Tânatos motivações para a vida e para a morte vicissitudes dos instintos o princípio do prazerdesprazer articulado com o da realidade os mecanismos de defesa recompensa e punição as vivências mais ou menos estabelecidas de um eu con tínuo e persistente através do tempo do espaço e de situações diferenciadas dotado de razoável autoesti ma senso de honra e dignidade de alegria de viver os múltiplos níveis não excludentes de comunicação a importância da história pessoal do psiquismo pri mitivo e da relação mãebebê e de sua reedição nas relações terapêuticas além de outros pontos mencio nados no texto b Desenvolvimento individual psiquismo primitivo maternagem primária e meio facilitador Por seu enfoque evolutivo a neurociência demonstra a relevância fundadora da maternagem primária e do ambiente humano inicial sobre o modo de ser viver e pensar de cada pessoa o que vem corrobo rar as observações clínicas de inúmeros psicana listas como Bowlby Winnicott Bion Kohut Mah ler que compreenderam desde logo a importância dos desdobramentos do psiquismo primitivo e da relação primária nos distúrbios patológicos e na abordagem terapêutica de suas consequências Winnicott 1965 acentuou bastante o peso da maternagem primária e do meio facilitador ou adver so na formação individual em estreita consonância com a visão neurocientífica atual Grande parte do futuro da pessoa se decide nes sa fase donde se deduz a importância da assistên cia emocional social e pedagógica a ser prestada às mães durante a gestação e os primeiros tempos da criança Também os outros membros da família e to dos aqueles que convivem com o novo ser precisam ser conscientizados de suas responsabilidades em re lação a ele c Aplicações terapêuticas À semelhança das rela ções primeiras com a mãe e o meio a qualidade da relação pacienteterapeuta constitui fator deci sivo no desenvolvimento do processo terapêutico e de seus resultados ela depende muitíssimo do preparo pessoal e técnico do terapeuta de sua ca pacidade de ligarse afetivamente efetivamente Psicossomaticaindd 519 Psicossomaticaindd 519 05012010 121224 05012010 121224 520 Mello Filho Burd e cols ao seu enfermo e ficar atento a tudo o que se pas sa com ele a todas as suas comunicações através dos múltiplos canais conscientes e inconscientes verbais paraverbais extraverbais gestuais so matopsíquicos e comportamentais Penso que a neurociência cognitiva ao demons trar tão cabalmente a integralidade do funcionamen to somatopsicorrelacional não dá respaldo a visões reducionistas do ser humano vale dizer a nenhuma compreensão parcial mutiladora do todo da pessoa unitária essencialmente indivisa que procura ajuda para seus problemas de saúde mesmo que partindo desta visão abrangente a ação terapêutica focalize um setor mais que outros por escolha estratégica Damásio 1999 declara falsa a separação en tre doenças neurológicas e doenças psiquiátricas en tre patologia orgânica e patologia mental uma vez que todas elas se originam da mesma somatopsique Apenas descritiva e operacionalmente podemos dife rençar as doenças neurológicas em que predominam alterações encefálicas grosseiras e as psicológicas em que tais alterações são mais discretas ou mais funcionais mais histológicas que macroanatômicas O mesmo pode ser pensado em relação a todos os setores do organismo O reconhecimento fundamentado da integração de todos os níveis do corpomente levam a psicanáli se a revalorizar as funções conscientes neocorticais préfrontais o controle da mente a força de vontade sem nunca deixar de fora a dinâmica do inconscien te ponto de partida de Freud nem a ênfase que ele acertadamente deu à história pessoal à persistência dos conflitos dos pontos de fixação nem aos déficits do desenvolvimento e as incontáveis expansões ob servacionais e conceituais realizadas por milhares de estudiosos que vieram depois Graças a essa visão psicossomática holística in tegradora e generalizante as psicoterapias de base psicanalítica têm se mostrado mais eficazes profun das e duradouras que as rivais que não podem con tudo ser descartadas de antemão Muitas delas têm indicação por seu alcance focal imediato como é o caso da psicoterapia cognitivocomportamental que se dedica de preferência a assinalar a inadequação e a irracionalidade de determinadas condutas e a per suadir o paciente a modificálas Com sua visão integradora do ser humano a psicanálise padrão bem como as psicoterapias de base psicanalítica podem utilizar melhor os mesmos recursos técnicos ao lhe agregarem a dimensão in consciente na qual se inserem as raízes dos deter minismos vitais promotores da vida e da saúde mas também as motivações patológicas derivadas de am biguidades e conflitos destrutivos As reativações nos contextos terapêuticos de padrões interativos arcaicos as chamadas trans ferências podem ser desastrosas ou se tornar úteis quando acolhidas adequadamente precioso recurso terapêutico introduzido por Freud e praticado siste maticamente pelos psicanalistas A psicanálise e as terapias afins ao valorizarem mais que as outras a dinâmica do inconsciente e da relação terapêutica têm se mostrado insuperáveis na obtenção de mudanças estruturais profundas não apenas sintomáticas ou focais que se conservam nos circuitos neuromentais da memória implícita incons ciente Criamse desse modo novos padrões afetivo cognitivos e comportamentais que tendem a suplan tar gradativamente os funcionamentos anacrônicos Nas palavras de Gabbard 2000 O conhecimento atual das interações entre a biologia e a psicologia torna possível considerar uma abordagem verdadei ramente integrada para o tratamento E apresenta exemplos de melhoras clínicas vinculadas a modifica ções cerebrais documentadas empiricamente através de neuroimagens A abordagem psicanalítica é capaz como ne nhuma outra de fazer frente aos padrões traumato fílicos oriundos de traumas psicossomáticos sofridos em qualquer época da vida e que tendem a se reativar todos os momentos em que ocorrerem agressões iguais ou semelhantes Em muitos desses casos é evidente e desconcertante a busca inconsciente do trauma a pro cura do pior o que dificulta enormemente o convívio familiar e o trabalho terapêutico Doin 2005 É o que acontece por exemplo com pacientes que nasceram de gestações difíceis não desejadas que sobreviveram a tentativas de abortamento ou que sofreram principalmente na infância e adoles cência agressões de todo tipo inclusive sexuais ou foram gravemente lesados pela violência familiar ou social cometida em pequena ou grande escala Adap tamse a tal habitat passam a necessitar dele e pro curam reproduzilo em todas as relações inclusive terapêuticas São como as flores do pântano que não conseguem viver fora dele Acreditar que é possível mudar constitui desafio para paciente e terapeuta É quase como ensinar peixe a viver fora dágua ou mudar de religião de time de futebol Entendese portanto o desconsolo de um jovem imbuído das intenções mais altruístas ao se deparar com a sabotagem sistemática dos seus empenhos por parte do doente que tanto deseja ajudar Todos co nhecemos as propensões traumatofílicas que impe lem o paciente a conduzirse de modos irracionais absurdos mortíferos apesar da crítica consciente que ele próprio é capaz de fazer Doin 2005 Graças à psicanálise podemos assegurar que acima de todo o vasto acervo de preceitos e recomen Psicossomaticaindd 520 Psicossomaticaindd 520 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 521 dações técnicas ressaltase como indispensável o bom entrosamento terapeutapaciente Seja qual for o método empregado a qualidade favorável da rela ção humana especial que se estabelece avulta como condição primordial de sucesso Ela própria é um fator curativo considerável o potencial terapêutico inerente a todas as relações humanas em que o amor predomina com suas múltiplas faces sendo que o res peito pelo outro se sobressai o desejo de promover o melhor para ambos os participantes Uma assimetria precisa no entanto ser aceita pelo menos no início do tratamento o terapeuta deve ser capaz de dar amorrespeito sem esperar retribui ção imediata grandeza própria das mães e familiares e terapeutas suficientemente normais em relação a suas crianças e pacientes Amor é agente de vida e construção terapêutica eis uma verdade estabeleci da nem sempre bem lembrada e utilizada É claro que a disposição favorável do terapeuta sofre assédios constantes alguns extremamente di fíceis de suportar Entre eles nunca é demais men cionar a absurda repetição de funcionamentos trau matofílicos deletérios que são mantidos por ainda parecerem lucrativos mesmo insubstituíveis como mantenedores da sobrevivência como garantia de vida de relacionamentos de valor de poder e prazer Doin 2005 Um entendimento esclarecido acerca da reni tência e nociva funcionalidade homeostática e es truturante de determinadas patologias graves pode nos tornar mais compreensivos e pacientes menos críticos moralistas e ambiciosos mais eficientes pes soalmente melhores mais maduros mais capazes de investir esperança pelo tempo necessário sem o sen timento de impotência e derrota desespero e raiva e de confiar sempre mais nos recursos saneadores das relações terapêuticas bem constituídas É possível conservar um otimismo razoável quanto a mudanças profundas a longo ou longuís simo prazo quando se confia na capacidade de ambos de aproveitar os recursos biológicos psicos somáticos por ventura remanescentes de contar com a relativa plasticidade inerente às estruturas e fun ções somatopsíquicas em suma quando o terapeuta mantém acesa a fé nas forças da vida REFERÊNCIAS BLAKESLEE S BLAKESLEE M 2007 Where mind and body meet Scientific American vol 18 n 4 agostosetembro 2007 DAMASIO A 1994 Descartess Error Nova York Putnam Trad O erro de Descartes São Paulo Companhia das Letras 1996 DAMASIO A 1999 The feeling of what happens Nova York Harcourt Brace Trad O mistério da consciência São Paulo Com panhia das Letras 2000 DOIN C 2003 Psicanálise e neurociência uma questão de in teresse prático Rev Bras Psicanál 37 23 547571 19º Con gresso Brasileiro de Psicanálise Recife DOIN C 2005 O ego busca seu trauma paradoxos da trauma tofilia Texto utilizado em conferência no 44 Congresso Interna cional de Psicanálise da International Psychoanalytical Associa tion Rio de Janeiro 2005 FREUD S 1940 a 1938 An outline of psychoanalysis S E 23 FREUD S 1950 b 1895 A project for a scientific psychology S E 1 GABBARD GO 2000 A neurobiologically informed perspecti ve on psychotherapy Br J Psychiatry 17711722 KANDEL E 1999 Biology and the future of psychoanalysis a new intellectual framework for psychiatry revisited Am J Psychiatry l56 4 505524 KANDEL E 2006 In search of memory Nova York e Londres W W Norton Company LENT R 2001 Cem bilhões de neurônios Conceitos fundamen tais de neurociência São Paulo Editora Atheneu MELLO FILHO J l979 Concepção Psicossomática Visão Atual Rio de Janeiro Edições Tempo Brasileiro MELLO FILHO J l992 Psicossomática hoje Porto Alegre Art med Editora RIZZOLATTI G FOGASSI L GALLESE V 2006 Espelhos na mente Scientific American Brasil ano 5 n 55 dez 2006 44 51 SCALZONE F 2005 Notes for a dialogue between psychoa nalysis and neuroscience Int J Psychoanal 86 140523 WINNICOTT D W 1965 The maturational processes and the facilitating environment Londres The Hogarth Press 1976 WINNICOTT D W 1967 Mirrorrole of mother and family in child development Playing and reality Londres Tavistock 1971 Psicossomaticaindd 521 Psicossomaticaindd 521 05012010 121224 05012010 121224 Os indivíduos as pessoas interagem entre si e com o mundo que as contém É nessa totalidade que existe a interrelação que chamamos de relaciona mento O que são indivíduos Unidades com corpo e espírito formando uma nova unidade a dos huma nos sujeitos às leis que regem a sua singularidade e sujeitos a outras leis que emanam da pluralidade Os relacionamentos ocorrem no espaço e no tempo entre espíritos almas mentes manifestadas por cor pos obedecendo a complexas regras que muito bem conhecemos mas que resistem quando nos propomos a nomeálas Como Santo Agostinho em relação ao tempo Se me perguntam o que é o tempo eu sei quando me pedem para dizer o que é o tempo eu já não sei É esse o terreno da psicossomática essa uni dade do humano tão separada quanto unida que só podemos nomear juntando duas entidades unidade diádica que resiste a qualquer linguagem que não contenha uma síntese de duas instâncias A interação entre duas pessoas é muito mais que uma relação entre duas mentescorpos unidade in dissolúvel para a qual sequer temos linguagem única A relação entre duas pessoas é influída e influi no espaçotempo no meio cuja análise esbarra na au sência de linguagem que a expresse separadamente espaço que está sempre ligado ao presente passado futuro ou eternidade em nossa percepção Por esta razão somos obrigados a versar o rela cionamento entre limites que podem ser infinitamen te ampliados Há apenas maior probabilidade das relações obedecerem aos parâmetros aqui expostos a profundidade nas interações pessoais seguramen te apresentará facetas imprevisíveis O entendimento entre indivíduos é tarefa a ser desenvolvida continua mente aqui não mais que uma base limitada que es peramos possa ser o ponto de partida para a relação entre o médico e o cliente entre o terapeuta e o clien te O terapeuta é o médico ou o psicólogo e hoje os numerosos profissionais da saúde já os clientes são os enfermos os molestos os doentes as pessoas que estão sem firmeza suportando um peso ou sentindo dores A consulta é a base da relação médicopaciente Classicamente ela permite a realização do ato mé dico pelo qual o profissional ouve as queixas do cliente toma sua história pessoal analisa os sinto mas pesquisa os sinais faz o diagnóstico confirmao pedindo exames complementares e estabelece a con duta terapêutica Hoje a consulta pode ser dirigida à prevenção não mais que uma verificação da nor malidade ou não das doenças mas sim dos riscos de adoecer no futuro O médico deve situarse e situar também o clien te no espaçotempo O êxito do ato médico ao contrário do que pretendem aqueles que louvam a ascensão da tecno logia impessoal depende na prática da comunica ção estabelecida durante a consulta Tratamos aqui em primeiro lugar dos elemen tos envolvidos e da dinâmica do encontro que preten de cuidar da saúde das pessoas o médico o cliente a instituição e a atitude clínica Em segundo lugar das formas típicas usuais da comunicação interpessoal regulada pela mol dagem que os indivíduos recebem através dos pro cessos de formação educacional acrescido no caso dos profissionais de saúde pelo preparo profis sional Em terceiro lugar abordaremos as chamadas formas terapêuticas Para lapidarmos o ato médi co e assumirmos a necessária atitude clínica funda mental ao exercício do atendimento dos clientes no consultório no ambulatório nos hospitais e ainda no manejo dos procedimentos técnicos devemos enten der as razões lógicas e emocionais que permitem o uso dessas chamadas formas terapêuticas Para tal é necessário fundamentalmente modificarse como pessoa assumindo a tarefa profissional de cuidar de outras pessoas considerandoas tão importantes como nós mesmos Finalmente faremos algumas reflexões sobre o que é e poderá ser a psicossomática no mundo atual computadorizado de comunicação instantânea visto 44 RELAÇÃO MÉDICOCLIENTE Paulo Canella Psicossomaticaindd 522 Psicossomaticaindd 522 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 523 como uma rede e em luta com suas nuances de domi nação e submissão AS BASES Durante uma consulta médico e cliente têm em relação um ao outro expectativas desejos esperan ças exigências Esse vínculo entre os dois adequada mente construído resulta em ação terapêutica eficaz que promove saúde inadequadamente construído é fonte de dificuldades para o médico e para a pessoa atendida Esse encontro é normatizado obedece a um conjunto de regras estabelecidas pelo sistema que de vem ser tacitamente obedecidas por médicos e clien tes a instituição A norma é a relação vertical com uma domina ção implícita determinada pelas circunstâncias pais e filhos patrão e empregado onde o poder está previamente determinado como pertencente a um dos elementos A instituição domina o médico e ele tem ascendência sobre a cliente para que a saúde se produza é necessário uma democracia das razões a aceitação de que todos têm o direito de ter seus valo res e que as diferenças não significam necessariamen te uma diferença entre as pessoas Não nos relacionamos da mesma forma com pessoas diferentes não somos o mesmo médico para todas as clientes não procedemos da mesma maneira no consultório e no hospital Há normas hospitalares há responsabilidades diluídas há rotinas préestabe lecidas É profundamente inocente acreditar que o médico atende igualmente todos os seus clientes A relação estabelecida pelo profissional com a cliente particular é diferente da que ele tem com a cliente de convênio e essa é diversa daquela que a instituição permite que ele tenha com a previdenciária Só tendo consciência dessa realidade o médico pode desen volver a atitude clínica relacionandose através das formas terapêuticas de comunicação É necessário captar sentimentos reassegurar colocar limites au toexprimirse e solucionar conflitos em conjunto Como profissional liberal o médico deve aten der de acordo com a ética e a deontologia médica sendo policiado pelos Conselhos Estaduais e Fede ral de Medicina como assalariado o médico obede ce às regras da instituição que o contrata sem perder o vínculo com a profissão liberal que escolheu A cada dia médicos e clientes veem o encontro pessoal que permite a orientação adequada mais e mais regulamentado pelos intermediários que domi nam a instituição O consultório particular ainda permite que o cliente escolha livremente o profissional que o vai tratar assim como este o aceita com a mesma liberda de estabelecendo os dois um contrato de prestação de serviços pelo qual o cliente é assistido e o médi co receberá seus honorários No entanto essa forma espontânea de vínculo vem sendo inexoravelmente alterada Nos consultórios os convênios determinam os médicos a serem consultados o valor dos serviços prestados os auxiliares que devem fazer os exames complementares e as casas de saúde nas quais as clientes devem ser internadas Nos Hospitais Públicos e da Previdência a constituição de Equipes de aten dimento que diluem as responsabilidades pessoais e as normas hospitalares a serem obedecidas por clien tes e profissionais dificultam o vínculo pessoal neces sário a uma ação terapêutica adequada Não cabe provar que o modelo atual é pior que os existentes antes ele faz parte da evolução dos indi víduos no espaçotempo o modelo médico atual tem como base o consumo e o lucro máximo com as ações de saúde Esse modelo poderia ser considerado polui dor do espaçotempo É difícil julgar a maior parte das pessoas adaptase a esta forma talvez perversa mas capaz de equilibrarse pelo menos no momento com o meio que os agride Nossa intenção é examinar alguns dos fenôme nos que compõem as bases do relacionamento médi copaciente o médico como medicamento a consulta como encontro pessoal e o cliente diante do médico e a instituição que normatiza às vezes muito mal o encontro que médicos e clientes têm na consulta O MÉDICO A pessoa do médico diz Balint pode ser um medicamento poderoso e eficaz que causa impacto significativo na construção do vínculo e até mesmo na própria ação do remédio prescrito Mas por vezes é fonte de agravamento da doença O médico como pessoa com ou sem intenção entra no relaciona mento com suas características pessoais suas neces sidades seus valores suas dificuldades e impregnado pela ideologia que o toma Médicos dominadores e prepotentes têm clien tes submissos e obedientes médicos bonzinhos podem atrair clientes que os desrespeitam Dificul dades existenciais podem até mesmo fazer com que o médico passe a utilizar os clientes como medica mento para si próprio quando a profissão se torna a única razão de viver os clientes podem funcionar como antidepressivos ou ansiolíticos constituin dose na única fonte de valorização de preservação de autoestima de fuga para evitar o confronto com situações internas angustiantes ou difíceis de en frentar Psicossomaticaindd 523 Psicossomaticaindd 523 05012010 121224 05012010 121224 524 Mello Filho Burd e cols A formação especializada e os anos de prática clínica refinam a sensibilidade para perceber minú cias e sutilezas de sinais e de sintomas que levam a diagnósticos e a indicações terapêuticas Dois proble mas ocorrem com o manejo do chamado olho clíni co ele é colocado a serviço da ilusão de onipotência jamais me engano dou conta de tudo ou ele é desvalorizado é quando o médico esquece que tem olhos mãos ouvidos e uma cabeça que raciocina e se deixa levar pela tecnologia pedindo exames com plementares supérfluos receitando remédios sem especificidade fazendo encaminhamentos apressa dos porque ele se subestima como instrumento de trabalho e deixa de explorar satisfatoriamente seus próprios recursos de atendimento e de atuação Da mesma forma que um medicamento a atua ção do médico pode fazer bem ou provocar efeitos colaterais A confluência dessas possibilidades forma a encruzilhada o médico como agente de saúde ou como fonte de dificuldades O profissional que atua somente como bom técnico deixa de utilizar boa par te do seu potencial terapêutico a sua dimensão hu mana O colocarse como pessoa que trata de pessoas é que constitui o algo mais da ação do médico como agente de saúde Há situações em que o médico com seu domínio da tecnologia funciona como agente de ajuda mas emocionalmente atua como fonte de di ficuldades A possibilidade do médico proceder como agen te de saúde fica bastante limitada no âmbito da as sistência institucional o sistema de atendimento na maioria de nossos hospitais públicos é inadequado porque não oferece condições mínimas para fazerse boa medicina nos poucos minutos de consulta não se pode olhar o paciente tecnicamente bem mas é pos sível estabelecer com ele um vínculo significativo A CONSULTA MÉDICA A consulta médica como encontro pessoal caracterizase pela existência de múltiplos e diferen tes vínculos podese dizer que o vínculo do médi co com cada cliente é único singular uma vez que cada interação entre duas pessoas forma um todo com características peculiares Um relacionamento é produto das pessoas que compõem o vínculo Na relação médicocliente esta noção é o fundamento da corresponsabilidade o que implica fundamental mente saber que a função do médico é expor com honestidade e clareza os fatos os prós e os contras os riscos e as consequências ou as razões de uma in dicação terapêutica além de acompanhar o processo de decisão do cliente ajudandoo a pesar alternativas e levantando questionamentos O vínculo médicocliente é assimétrico o médi co é um profissional e tem competência para fazer o diagnóstico e indicar a terapêutica adequada É claro que ele só fará isso adequadamente quando atender o cliente como uma pessoa A noção de corresponsa bilidade implica reconhecer que médico e cliente de vem compor um vínculo humanamente simétrico É inteiramente desnecessário que o médico como pes soa coloquese hierarquicamente em plano superior diminuindo e enfraquecendo o cliente com a finalida de de preservar sua superioridade técnica Qualquer contato interpessoal significativo acarreta ativação de muitos sentimentos que for mam o campo dinâmico da relação Entre os vários fenômenos existentes neste campo a transferência e a contratransferência merecem destaque devido à influência que exercem na conduta tanto do clien te quanto do médico Podemos definir transferência como o conjunto de sentimentos e reações mobiliza dos no cliente não exatamente pela pessoa real do médico mas pelas distorções perceptuais do clien te que determinam a maneira pela qual este vê o médico Estas distorções são derivadas de antigas percepções e padrões estereotipados de reação que o cliente desenvolveu em sua vida no relacionamen to com pessoas significativas Quanto mais intensa a rea ção transferencial maior a distorção perceptual que a pessoa faz No vínculo médicocliente o médico pode ser indevidamente visto como hostil rejeitador censurador crítico ou sedutor muitas vezes sem que sua conduta real justifique a intensidade da reação É como se o cliente colocasse no médico a revivência de seus fantasmas Podemos da mesma forma definir contratrans ferência como o conjunto de sentimentos e reações mobilizados no médico não exatamente pela pessoa real da cliente mas pelas distorções perceptuais do médico que determinam a maneira pela qual este vê o cliente Estas distorções também derivam de percepções e padrões estereotipados que o médico desenvolveu em sua vida no relacionamento com pessoas significativas Um médico muito autoritário e prepotente não consegue tolerar a menor manifestação de insatisfa ção dúvida ou desacordo de suas clientes porque se sente pessoalmente atacado desprestigiado e ofendi do reage a isso sendo duro e hostil com os clientes insubordinados o que com frequência resulta em rupturas do vínculo ou ainda pior na imposição de práticas terapêuticas corretas ou às vezes des necessárias Evidentemente as reações transferenciais e contratransferenciais muito intensas repetidas ou es tereotipadas estão estreitamente vinculadas a carac terísticas problemáticas pessoais ou pontos cegos Psicossomaticaindd 524 Psicossomaticaindd 524 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 525 que todos temos em maior ou menor grau e que se refletem não só no vínculo médicocliente mas em qualquer outro relacionamento significativo Examinamos a transferência e a contratransfe rência isoladamente para demonstrar didaticamen te a importância desses fenômenos no campo clíni co No entanto o que ocorre na realidade é uma complementação sutil de reações transferenciais e contratransferenciais que se traduzem em jogos in terpessoais onde médico e cliente se engancham empacam ou colocam para o outro situações de becosemsaída Parece simples e lógica a forma com que o mé dico deve conduzirse no entanto saber que deve ser assim não significa que assim deva ocorrer Reconhe cer mente e corpo da cliente como uma unidade que age perceber as influências que a cliente recebe e in terar tudo isso consigo mesmo conhecendose como se conhece a pessoa com que se relaciona é tarefa que exige exaustivo treinamento e desenvolvimento adequado da capacidade de percepção e análise O CLIENTE Na prática clínica com frequência o motivo explícito que leva o cliente à consulta nem sempre é o motivo real ou pelo menos o mais importan te Necessário se torna aprender a estar atento para decodificar e no momento oportuno responder aos motivos implícitos Essa capacidade é um fator importante no bom atendimento O motivo explícito é muitas vezes o cartão de apresentação que justifica a consulta mas en cobre ansiedades e preocupações mais importantes Há clientes que chegam à consulta com uma queixa muito vaga e imprecisa é um malestar generaliza do são umas dores Algumas pessoas exprimem através de queixa imprecisa a sensação subjacente de estarem passando por um período existencial difí cil Entramos aqui no complexo terreno de entender o sintoma como linguagem o que expressa o sinto ma Que função exerce na existência dessa pessoa Como a pessoa organiza aspectos de seu modo de ser de atuar e de viver em torno de seus sintomas A possibilidade de entender o sintoma como lingua gem que fala não só de doenças como até da pró pria situação existencial do cliente só existe quando se faz no dizer de Perestrello a medicina da pes soa Quando se perde essa perspectiva há o risco de nos tornarmos um mero pesquisador de sintomas ou pior um caçador de doenças há ocasiões em que o médico acaba organizando uma doença para o cliente e desta forma perde a pessoa de vista Isto pode resultar em uma ação iatropatogênica tanto nos casos em que o raciocínio médico cria doenças inexistentes quanto nas situações em que por mane jo inadequado o cliente passa a estruturar aspectos fundamentais de sua própria identidade em torno de uma suposta doença No adulto maduro o nível racional a logici dade do pensar e a adequação das condutas predomi nam mas os níveis infantis sempre estão subjacentes e muitas vezes interferem ativamente na conduta E no mínimo provocam o fenômeno que agora vamos analisar o duplo registro Uma cliente pode enten der logicamente as razões pelas quais o ginecologista indicou uma cirurgia no entanto sente tanto medo que passa a negar essa realidade fazendo de conta que nada de grave está acontecendo e que não há problema algum em adiar indefinidamente a opera ção Quando esses sentimentos irracionais são mui to intensos transparecem na conduta Por exemplo o cliente trata o médico com frieza ou hostilidade ou abertamente o acusa de mau atendimento O duplo registro pode não somente interferir significativamente na conduta como também provo car inúmeros malentendidos na comunicação uma vez que nunca podemos de fato saber como aquilo que transmitimos será recebido ou registrado pelo outro Mesmo as consultas de saúde a hoje chama da prevenção primária prénatal consultas perió dicas preventivas revisões evocam algum grau de ansiedade ou de apreensão às vezes muito significa tivas A medicina preventiva atual tem bases eviden tes na hipocondria e na paranoia quero ver se está tudo bem ou será que eu estou doente Quando o motivo da consulta apresenta sintomas evidentes e referese à doença ou à suspeita de que algo não anda bem a apreensão a tensão e a ansiedade se intensificam Em quaisquer desses casos em graus variados de intensidade o cliente relacionase com o médico não só em termos de vêlo como pessoa falível e limi tada embora tecnicamente competente mas também o reveste de poderes e atributos mágicos vendoo como fonte de apoio proteção segurança capaz de solucionar seus problemas ou de curálo aqui natu ralmente nos referimos ao fenômeno da idealização Idealização é diferente de confiança de admiração e de respeito que permitem que a cliente perceba o médico como gente com limitações e falibilidade Os problemas surgem quando a idealização chega a ní veis tão altos que a cliente passa a endeusar o médico e achálo o melhor do mundo e intensificase quan do o grau de idealização se engancha com a ilusão de onipotência e o narcisismo do médico que fica tão glorificado a ponto de não conseguir enxergar a dinâmica subjacente a esse fenômeno que enco Psicossomaticaindd 525 Psicossomaticaindd 525 05012010 121225 05012010 121225 526 Mello Filho Burd e cols bre vivências importantes tais como superexigência hostilidade depressão e sobretudo a fragilização do vínculo A idealização intensa quase sempre transforma o relacionamento num balão de gás que pode furar e murchar ao toque de um simples alfinete Basicamen te isso acontece porque se o médico é visto como mágico e onipotente o cliente tem o direito de ser superexigente e de criar altas expectativas Inevita velmente mais cedo ou mais tarde haverá frustra ções decepções ressentimentos ou até mesmo franca hostilidade ATITUDE CLÍNICA E INSTITUIÇÃO Atitude clínica poderia ser definida como a capacidade de ver ouvir captar e sintonizar com o cliente a partir de perspectivas dele Para tal é fun damental que quem o atenda possa perceber que em bora pareça lógico proporcionar ao cliente aquilo que achamos o melhor para si é necessário lembrar que o cliente é outra pessoa com outra educação outros valores não deseja necessariamente a mesma coisa que desejamos para nós A atitude clínica na instituição nos obriga a considerar as condições de vida do cliente o meio em que vive as relações familiares e suas crenças e convicções É a partir desses conhecimentos que nos encontramos realmente com o cliente durante a con sulta A instituição é a síntese da ideologia prevalente que tenta normatizar a relação dos indivíduos com o espaçotempo No passado o médico exercia funções aceitas como liberais e ainda hoje obedece aos có digos de ética presta o juramento hipocrático e tem deveres milenares com os clientes mas para ganhar a vida está inevitavelmente vinculado à instituição E a instituição funciona em concordância com o sis tema socioeconômicopolítico que a determina e não com os códigos da profissão médica A organização das instituições da rede previden ciária considera prioritário dar assistência a grandes setores da população o que leva à massificação da assistência médica O que importa são os números as estatísticas é que impressionam Inegavelmente isso proporciona assistência a um número grande de pessoas mas a organização burocrática deficiente o custo operacional elevado o grande número de clien tes e proporcionalmente o pequeno número de pro fissionais empregados acabam resultando em atendi mento insatisfatório do qual reclamam com razão médico e cliente O médico reclama da instituição porque não dispõe de condições razoáveis de trabalho e porque não recebe remuneração adequada Isso faz com que muitas vezes sobrevenha a sensação de impotência do nada posso fazer não tem jeito mesmo inten sificada pela baixa motivação pelo trabalho Esse es tado de coisa obviamente resulta em paralisação e impede o médico de buscar o que pode e deve fazer mesmo em condições adversas O descontentamento do médico e do cliente com a instituição repercutem inevitavelmente no re lacionamento Se às vezes médico e cliente são alia dos é mais comum o cliente desentenderse com o médico porque o vê como legítimo representante da instituição e o médico reclama do cliente porque o vê como fruto da precária condição de trabalho que lhe é oferecida O médico fica então imprensado pe las exigências da instituição dominado por ela e pela cliente que tem o direito de ser atendida porque é descontada pela previdência A dominação a pressão o achatamento e o rigor hierárquico formam a tônica do funcionamento da instituição Esse clima transparece de modo mais ou menos evidente pode ser atenuado mas está sempre presente O médico é autoritário com o cliente assim como a instituição é autoritária com ele O médico pode dominar oprimir e achatar o cliente da mesma maneira em que é dominado oprimido e achatado pela instituição Os conflitos decorrentes dessa situa ção são resolvidos com prepotência e autoritarismo ou o cliente se submete ou deixa de ser atendido Convém também lembrar que a direção do hos pital é posto de confiança do sistema mas não do corpo clínico salvo raras exceções Tal situação faz com que a direção tenha de prestar contas ao esta blishment secundariamente e dependendo do inte resse e das características pessoais do diretor vem o esforço de entrosar a chefia com o corpo clínico Assim como o corpo clínico não tem direito nem de escolher seu diretor cargo o mais das ve zes político nem de influir significativamente nas orientações médicas e administrativas quase sem pre determinadas por interesses comerciais o clien te tampouco tem direito de escolher o médico que o atenderá e muito menos as condições desse atendi mento Portanto assim como a cliente precisa sub meterse para receber atendimento da instituição também o médico precisa submeterse para manter seu emprego mesmo em condições insatisfatórias Obviamente essa submissão forçada gera ressenti mento resistência comumente expressos pelas ten tativas de sabotar o trabalho atender de má von tade e até agir aumentando desnecessariamente os gastos hospitalares O mau atendimento se agrava com o fenômeno da diluição da responsabilidade em parte derivado de necessidades técnicas encaminhar o cliente para setores especializados e em parte derivado do pro Psicossomaticaindd 526 Psicossomaticaindd 526 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 527 blema da comunicação deficiente e de falta de inte gração entre os diversos setores O problema do mau atendimento conta ainda com outro fator agravante uma espécie de filoso fia implícita no atendimento ambulatorial que pres siona o médico no sentido de fazer apenas o mínimo indispensável nas consultas Em suma o código vi gente diz que só permite o atendimento impessoal e padronizado onde as fichas burocráticas e os núme ros têm precedência sobre as pessoas Isso faz com que o médico atenda em primeiro lugar a instituição depois a equipe de trabalho e por último o cliente A iatropatogenia do atendimento na instituição prendese a outros fatores tais como pouco tempo de consulta e sistema de rodízios e plantões onde nada garante que ao voltar o cliente será atendido pelo mesmo médico No atendimento fragmentado fica difícil ver o cliente como um todo o que impos sibilita o cuidado adequado da principal etiologia das doenças que levam os clientes aos ambulatórios os fatores emocionais componentes primários ou se cundários de toda e qualquer patologia O raciocínio diagnóstico conduzse em geral como se o fator emocional e o fator orgânico fossem duas entidades distintas e mutuamente exclusivas Digase de passagem que até mesmo o termo psicos somático por ser uma palavra composta sugere mais a superposição do que propriamente a indissociá vel interação dos dois aspectos O problema do mau atendimento na instituição é complexo O uso adequado e consistente das formas terapêuticas de comunicação que versaremos adian te nem de longe resolve as dificuldades mas é sem dúvida capaz de atenuar algumas delas Por exem plo colocar o cliente a par dos problemas de atendi mento que o médico enfrenta em consequência das normas e das características da instituição restrição de exames laboratoriais uso obrigatório de determi nados medicamentos disponíveis número de pessoas a serem atendidas e assim por diante sempre deco dificando as dificuldades Isso não significa necessa riamente lançar o cliente contra a instituição mas sobretudo formar com ele uma aliança de trabalho para que se procure oferecer o melhor atendimento possível dentro das condições precárias impostas pelo sistema Se esta é a situação habitual de nossas institui ções isso não quer dizer que elas têm necessariamen te que atuar dificultando a atitude clínica Instituições podem ser facilitadoras de atendimento adequado e para tal tornase necessário reverter o processo de dominação submissão que domina o relacionamen to entre médicocliente e instituição Nos dias atuais está estabelecida uma institui ção tão ou mais impositiva de normas que interferem drástica e perigosamente na relação entre médico e clientes O seguro saúde os seguradores impõem médicos limitam atendimentos impedem exames e paga inadequadamente aos profissionais Os seguros saúde funcionam como intermediários no pagamento de honorários médicos impondo valores para consul tas e para procedimentos algo curiosamente aceito pelos conselhos de medicina apesar do preceito ético de que não deve haver intermediários na cobrança de honorários aos clientes A maior parte dos entraves acima discutidos quanto aos serviços previdenciários se aplica perfeitamente à dominação que os segura dores exercem sobre médicos e clientes e a resultante dinâmica perversa da relação entre eles AS FORMAS TÍPICAS As formas típicas de comunicação utilizadas nos relacionamentos interpessoais são frequentemen te defensivas e capazes de produzir dúvidas e impasses emocionais Diz Bird Num único momento o diálogo cotidiano precisa informar e desorientar esclarecer e tornar obscuro revelar e esconder A conversa franca não passa de um mito Nos negócios na vida política e profissional e mesmo nas relações pessoais a sobre vivência e a convivência dependem da capacidade de expormos ambiguidade confusão e dissimulação de oferecer uma mistura de fatos e fantasias de permitir uma deturpação inconsciente mas decisiva da verda de Esse modo de falar autodefensivo no qual somos todos hábeis é aprendido antes de aprender o alfabe to Normal e necessário ele nos capacita para viver numa sociedade complexa A relação vertical entre médicos e clientes está neste contexto Didaticamente há uma enumeração do que é chamado de formas típicas de comunicação Or dens e ameaças Ignorar problemas Lições de moral Contradições Sugestões e conselhos Crítica Persua são Elogios Negar percepções Interrogar Consolar Dar falso apoio Impessoalidade no diálogo As formas típicas falham agravando impasses quando estão presentes mesmo que contidas emo ções fortes como medo dúvida desconfiança raiva desprezo insegurança É possível usar formas de relacionamento nas quais o terapeuta desenvolve a necessária empatia para a obtenção de uma real cola boração na tarefa esperada quando médico e equipe médica agem em busca da cura ou do equilíbrio emo cional em especial quando a pessoa está ameaçada pelas doenças e relacionase verticalmente com um profissional de saúde que detêm um saber ao qual o cliente tem que se submeter A empatia pode ser definida como a capacida de de se colocar emocionalmente no lugar do outro Psicossomaticaindd 527 Psicossomaticaindd 527 05012010 121225 05012010 121225 528 Mello Filho Burd e cols Sempre que utilizamos as formas típicas de comu nicação ou não há empatia ou ela surge como fa chada para disfarçar o uso da imposição na conduta terapêutica Voltaremos ao assunto adiante As descrições que se seguem são de forma re ducionista o que ocorre de positivo e negativo ainda com frequência em um universo em que a comunica ção entre pessoas evoluem vertiginosamente diante das mudanças produzidas pela tecnologia dos encon tros Celulares emails conferências on line e a inter net com a possibilidade da quase instantaniedade e universalidade do comunicarse ORDENS E AMEAÇAS Quando está estruturado em nível adultoadul to onde a tônica é a colaboração e a corresponsabi lidade o médico consegue fazer prescrições expor fatos e orientar o tratamento sem percalços O re lacionamento se faz adequado não apenas no nível da comunicação verbal como também no nível não verbal há coerência entre as palavras o tom de voz a expressão facial e a qualidade do olhar Por outro lado quando o relacionamento se estrutura com uma forte ascendência do médico como na relação adul tocriança as consequências são bastante diferentes o médico pode ser visto como um pai crítico con trolador e autoritário As coisas dão certo quando o cliente comportase como criança dócil obedien te e submissa no entanto muitas vezes o cliente se conduz como criança rebelde desafiadora que tenta trapacear e ludibriar o médico Alguns médicos argumentam que com deter minados clientes ou certas circunstâncias ordens e ameaças dão certo Ordens incisivas ameaças de danos funcionam às vezes produzem os efeitos que se deseja e podemos dizer que em determina das circunstâncias o médico precisa receitar um remédio que funciona para eliminar sintomas ou curar uma doença no entanto provoca inúmeros efeitos colaterais indesejáveis ou até mesmo noci vos É sempre possível obter comportamentos ade quados e prescrever medicação com equivalente efi cácia porém com a vantagem de provocar menores efeitos colaterais Da mesma forma em termos de comunicação ordens e ameaças podem ser com frequência evita das ou substituídas por outras formas de comunica ção não iatropatogênicas A atitude autoritária mesmo com o uso de pa lavras educadas e voz suave se revela por pistas não verbais das mensagens que enviamos e isso têm um impacto importante Veicular uma atitude autoritária controladora e rígida não verbalmente embora utili zando palavras em nível adulto tem consequências erísticas há uma reação de disputa Autoritarismo é atitude captada e registrada pelo cliente que reage e pode não dar a devida im portância ao que o médico diz ou prescreve LIÇÕES DE MORAL As lições de moral consistem em fazer julga mentos ou juízos de valor a respeito de condutas do cliente que se chocam com nossos valores ou modo de pensar Quase sempre essa mensagem traz implícita crítica desaprovação ou ironia estruturandose um vínculo do tipo papai censuradorfilho repreendido É evidente que as pessoas com maior tendên cia a utilizar esta forma de comunicação são as que acham que seu modo de pensar e de atuar é o úni co correto vem daí a necessidade de criticar ou de tentar converter os desviantes Quando podemos legitimamente olhar a vida e as pessoas a partir de uma perspectiva mais ampla o certo e o errado o bom e o mau passam a ser conceitos elásticos fica mais fácil aceitar e conviver com pessoas que são e que pensam diferente de nós Essa forma de comunicação é particularmente iatropatogênica quando utilizada com pessoas em momentos de maior vulnerabilidade emocional ou de estruturação de novos aspectos de sua definição pessoal como acontece nos períodos de transição existencial SUGESTÕES E CONSELHOS Sugestões e conselhos costumam ser inoperan tes não levam em conta o contexto mais amplo onde se insere a situação e tampouco consideram a existência de núcleos emocionais ou de condições de vida que impedem a pessoa de colocar em prática a sugestão Quase sempre a pessoa sabe sobre o que precisa fazer mas simplesmente não consegue por causa de emoções intensas tais como medo tensão ou ansiedade A atitude de oferecer e examinar junto com a cliente alternativas ideias informações é diferente da atitude implícita nas sugestões e nos conselhos Quando nos sentimos muito tentados a sugerir e a aconselhar frequentemente estamos assumindo uma carga indevida de responsabilidade já quando o mé dico está trabalhando em nível de corresponsabilida de com o cliente não só se esforça por entender o que se passa com ele como também assume a postu ra de colaborar e não assumindo uma posição de so lucionador é o cliente que decidirá se a alternativa Psicossomaticaindd 528 Psicossomaticaindd 528 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 529 ideia ou esclarecimento oferecido fazem sentido para ele e se podem ser colocados em prática Implícito em tudo isso está a atitude de respeitar a individualidade do cliente Vale também ressaltar que quando damos sugestões ou conselhos em geral respondemos ao cliente a partir de nossa ótica sem entender o ponto de vista da pessoa PERSUASÃO O uso de argumentos lógicos e racionais com o objetivo de convencer a pessoa a concordar com o que indicamos para ela é uma mensagem amplamen te utilizada em todos os tipos de relacionamento in terpessoal além de ser a mola mestra da propaganda na tentativa de ativar os mecanismos motivacionais que influem na conduta Costuma ser altamente efi caz no sentido de favorecer modificações de conduta e de influenciar no processo decisório No entanto a persuasão só é eficaz quando a pessoa pode no mo mento funcionar em nível lógicoracional Há circunstâncias em que o processo de pensa mento lógico se encontra inibido pela ação de fortes emoções bloqueadoras tais como medo preocupa ção culpa São situações de manejo particularmente difícil mesmo quando se faz a atuação combinada nos níveis racionais e emocionais Persuadir falha quando da existência de conflito em nível emocio nal entre a necessidade de modificar uma conduta e a relutância de fazêlo porque persistir na conduta traz gratificações muito relevantes O aspecto grati ficante predomina e por vezes somente consequên cias graves reais podem anular essa predominância provocando a modificação da conduta NEGAR PERCEPÇÕES Há modos diversos de negar percepções o mé dico que nega a percepção do cliente o cliente que nega a percepção do médico e o cliente ou o médico que nega sua própria percepção Negar a percepção do cliente surge especialmen te em situações emocionalmente difíceis para o médi co como por exemplo quando o cliente dá a enten der que sabe estar com uma doença grave negar a percepção do cliente destinase na verdade a aliviar a ansiedade do médico Há casos em que o cliente percebe claramente a situação de gravidade em que se encontra mas vê suas percepções enfaticamente negadas pelo médico e pelos familiares e sofre com isso porque se vê sozinho sem ninguém para ouvilo e entendêlo Elizabeth Ross em sua extensa experi ência de atendimento a pessoas próximas da morte relata que apenas 2 desses pacientes recusaramse a conversar abertamente sobre sua situação Uma das formas mais desastrosas e mais fre quentes de negar a percepção acontece nas compli cações pósoperatórias É a não percepção de um quadro clínico típico ligado a complicações que en volve claramente um erro médico Quem opera corre evidentemente riscos no entanto a ilusão de oni potência pode provocar a negação da percepção de um quadro típico de hemorragia intraperitoneal O médico fica bloqueado pois se vê na iminência de ser obrigado a admitir sua própria falha Esse despreparo do médico leva frequentemente a situações graves e até mesmo irreparáveis CONSOLAR E OFERECER FALSO APOIO Há momentos do vínculo médicocliente que mobilizam muita emoção ansiedade tristeza e so frimento Comumente recorremos ao falso apoio quando temos medo de nos emocionarmos demais Tencionamos aliviar o sofrimento do outro mas no fundo buscamos aliviar a nossa própria ansiedade uma vez que sutilmente induzimos ao fechamento e ao bloqueio da liberdade de expressão cortando a disponibilidade da pessoa desabafar ser ouvida e entendida Nas entrelinhas o que o falso apoio co munica é por favor pare de se sentir tão mal porque isso não me deixa à vontade Às vezes o consolar baseiase numa noção errônea de que se abafarmos a expressão dos sentimentos eles desaparecerão como por encanto Ao contrário quando se cria o espaço de disponibilidade que permite à pessoa mergulhar na vivência de dor e de perda estamos efetivamente ajudandoa a digerir a situação de dificuldade que facilitará num segundo momento olhar para outro lado e se voltar para novas facetas do real e da vida É interessante observar que na medida em que evitamos oferecer falso apoio a própria pessoa chega à conclusão de que a situação em que se encontra é difícil porém tem saída O verdadeiro apoio portan to consiste em estar disponível e encarar abertamen te com a pessoa sua situação sem negar percepções minimizando o problema Muitas vezes temos consciência da ineficácia do falso apoio mas o utilizamos para bloquear a expres são da pessoa a fim de nos livrarmos dela quando não estamos dispostos a ouvila Este é um motivo co mum no atendimento apressado da consulta na ins tituição principalmente porque as queixas do cliente que frequenta esses ambulatórios estão ligadas em sua base a uma situação socioeconômica diante da qual o médico nada pode fazer Psicossomaticaindd 529 Psicossomaticaindd 529 05012010 121225 05012010 121225 530 Mello Filho Burd e cols IGNORAR O PROBLEMA DO PACIENTE O fugir e o evitar o problema do cliente pode ligarse à dificuldade de delimitar nossas possibilida des de atuação e nosso medo de dizer não sei ou não me sinto capaz de ajudálo o que abala muito a ilusão de onipotência ao invés de ouvir atentamente o que o cliente tem a dizer e começar a trabalhar o processo terapêutico mesmo quando for necessário um encaminhamento Muitas vezes ignoramos problemas quando dis pomos de pouco tempo ou não estamos com vontade de atender o cliente Frequentemente isso conduz a respostas de tapeação ou de tapar o sol com a pe neira esse problema de não sentir prazer passa com o tempo não se preocupe que obviamente em nada ajudam Nessa situação o cliente sentese cortado e sem liberdade de expressar o que lhe é mais relevante surge então bloqueios e fechamento no vínculo Ignorar o problema em outro aspecto envolve o mesmo tipo de dificuldades que motivam o uso do falso apoio e do negar percepções a nossa necessida de de evitar nossa ansiedade tristeza ou sofrimento Por isso tantas vezes damos um diagnóstico de doen ça grave comunicamos um fato doloroso ou indica mos um tratamento desagradável de maneira brusca e seca para em seguida cortarmos o contato Talvez seja desnecessário frisar que esta forma de comunicação inadequada é uma das mais usadas nos hospitais e nos ambulatórios das instituições o que chega a ser cruel MENSAGENS CONTRADITÓRIAS As mensagens contraditórias provocam graus elevados de confusão dificuldade de discriminação dúvida e ansiedade Uma mensagem contraditória definese em linhas gerais pela presença simultânea de informações discrepantes A contradição pode ser entre o aspecto verbal e o não verbal da mensagem como a expressão facial discordante das palavras cara de irritado e palavras falsamente gentis Na instituição a diluição da responsabilidade a falta de entrosamento entre os médicos que prestam assistência e a falta de uma eficiente coordenação que integre o trabalho da equipe aumentam enorme mente a incidência de mensagens contraditórias o que deixa o cliente dividido confuso sem saber em que e em quem acreditar O doente crônico com doença fatal ou em esta do terminal está quase permanentemente exposto a mensagens contraditórias não só do médico que não quer lidar com emoções dolorosas como também por parte das pessoas que o cercam CRITICAR E RIDICULARIZAR A crítica estimula ressentimento e fechamento do vínculo por atingir a autoestima e a autoimagem da pessoa especialmente quando ela atravessa fases de transição e se encontra emocionalmente mais vul nerável Às vezes criticamos ou ridicularizamos na espe rança de fazer com que o cliente se encha de brios e modifique sua conduta Sem dúvida essas mensa gens por vezes funcionam tal como medidas drásti cas último recurso para tentar alterar uma conduta inadequada mas como vimos ao falar sobre ordens e ameaças o criticar apresenta vários efeitos colaterais indesejáveis mesmo quando resulta em modificação de conduta O resultado mais típico é o aumento de ressentimento e a interferência negativa na autoima gem o que não raro resulta em persistência da con duta inadequada por resistência ou por mobilização dos núcleos infantis A crítica pode conter a hostilidade ou o despre zo que sentimos pelo cliente por algum motivo Po demos perceber esse componente da mensagem de crítica quando vivenciamos a situação na pele ou seja quando o cliente nos critica ou nos ridiculariza às vezes sob o disfarce da ironia ou da brincadeira No âmbito hospitalar são comuns as críticas to talmente desarrazoadas feitas pelo médico que igno ra as condições do cliente a quem atende ELOGIOS Elogiar falsamente esconde a intenção subja cente de manipulação com a finalidade de conseguir que o cliente faça o que queremos O elogio cria uma expectativa aprisionante que nem sempre é possível cumprir Isso é especialmente verdadeiro nas situa ções de intensa mobilização emocional que resulta em bloqueio da conduta adequada Por vezes o elogio é dito com tom de crítica ou depreciação sendo portanto registrado como tal O cliente diz ao médico que está com medo de algum procedimento o médico responde mas você que é uma pessoa tão culta e inteligente com medo de uma simples biópsia Claramente o elogio neste caso veicula uma mensagem de censura e de reprovação O elogio como manipulação cobrança e exigên cia pode ser mais agudamente percebido pelo médico quando é o cliente que lhe envia este tipo de mensa gem me aconselharam a mudar de médico mas eu só confio mesmo no senhor O elogio costuma ser ineficaz também nas situa ções em que o cliente se desvaloriza ou se deprecia Isso ocorre com frequência no tocante à apreciação Psicossomaticaindd 530 Psicossomaticaindd 530 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 531 da própria estética em períodos mais vulneráveis tais como climatério e gravidez em ambos o ide al estético cultural mulher jovem esbelta silhueta delgada não está sendo alcançado Para muitas mu lheres a realidade do corpo que envelhece ou do cor po grávido traz sensações de baixa autoestima de preciação e desvalorização Quando o médico tenta consolála com um elogio este pode ser registrado como está dizendo isso para ser amável ou para me consolar ou é falsidade O elogio pertinente é fortemente reassegurador Quase sempre no correcorre do ambulatório não sobra tempo para elogios merecidos O médico nem sequer se lembra dele Se por um lado evitase os males do elogio mal colocado ou mal intencionado por outro lado perdese também a oportunidade de uma autoexpressão que sem dúvida será muito im portante para pacientes já tão maltratados e pouco gratificados por suas condições socioeconômicas FAZER PERGUNTAS Fazer perguntas é um meio bastante eficaz tan to para bloquear quanto para abrir canais de comu nicação A disparidade de efeitos está estreitamente vinculada à atitude com que se fazem as perguntas No modelo clássico de anamnese predomina a bus ca de sinais sintomas e doenças a história clínica não comporta a história da pessoa Muitas vezes o médico encara as informações que não se encaixam no seu esquema de pesquisa como dados supérfluos irrelevantes que constituem pura perda de tempo A anamnese neste contexto é totalmente dirigida pelo médico e consiste numa série de perguntas objetivas o que se obtém são respostas igualmente objetivas e lacônicas A resultante é uma anamnese puramente técnica onde não se capta uma imagem significativa da pessoa e tampouco se consegue vislumbrar a situa ção existencial que tantas vezes permite compreender o que se passa de emocional em nível diagnóstico No atendimento ambulatorial o pouco tempo de consulta obriga o médico a dirigir a anamnese É uma forma de se obter o maior número de dados no menor tempo possível Algumas vezes parece ser mais eficiente aproveitar o tempo para pesquisar uma determinada área mesmo em detrimento de outras e se necessário marcar nova consulta Quando o enfoque passa da busca de doenças ou de sintomas para a busca da pessoa haverá certamente uma mu dança na condução da anamnese Basicamente essa mudança resulta em maior habilidade de ver e de ou vir a pessoa e em maior capacidade de integrar os dados fornecidos espontaneamente na explicitação da queixa do motivo da consulta ou na descrição da sintomatologia com a necessidade de fazer pergun tas específicas relacionadas com as áreas em que é preciso pesquisar com maior minúcia Perguntar pode ajudar a detectar pontos obscu ros é guia eficaz para delinear onde é preciso atuar e para reduzir resistências emocionais mais evidentes ou para esclarecer e corrigir eventuais distorções de informação Fazer perguntas é útil também para acompa nhar a pessoa no sentido de ajudála num processo decisório basicamente o perguntar neste contexto consiste em ajudar a pessoa a pesar prós e contras a questionar uma decisão impulsiva ou impensada e a examinar outras alternativas que não vislumbrasse até então Por fim é importante mencionar que fazer perguntas com atitude clínica é uma maneira de de monstrar interesse pela situação da pessoa que esta mos atendendo ATENDER DE MODO IMPESSOAL E TÉCNICO A atitude fria impessoal e puramente técnica no atendimento é obviamente contrária à atitude clínica não nos permitimos por razões várias entrar em con tato com a pessoa do cliente mas o encaramos como um objeto e nos conduzimos tal como as máquinas os instrumentos e os aparelhos que utilizamos Nes se modo de atender evidentemente o potencial de ação psicoterapêutica do médico fica extremamente limitado Não devemos ser como as máquinas é óbvio no entanto é preciso não esquecer que as máquinas são muitas vezes necessárias ao diagnóstico Fundamen tal não nos deixarmos substituir por elas mas sim integrálas num atendimento humano Atender de modo impessoal acarreta bloqueio ou fechamento dos canais de comunicação Na medi da em que não se cria o espaço de disponibilidade a cliente sentese constrangido pouco à vontade e sem liberdade de expressar o que de mais significativo se passa com ele Isso empobrece a qualidade da assis tência vista em termos globais no máximo conse guese ser um técnico competente mas não um bom profissional Esta é a situação rotineira nos ambulató rios Não devemos esquecer que o pouco tempo pode dificultar mas não impedir o bom atendimento A formação do médico na universidade em parte contribui para a cristalização dessa atitude no atendi mento ênfase excessiva é dada ao estudo dos quadros patológicos à terapêutica às técnicas de exame e ao manejo de aparelhos sofisticados a especialização a nível de pósgraduação preocupase em aprofundar o conhecimento numa área específica do saber Psicossomaticaindd 531 Psicossomaticaindd 531 05012010 121225 05012010 121225 532 Mello Filho Burd e cols A formação deformação profissional do médi co não é o único fator responsável pela atitude im pessoal e iatropatogênica do atendimento O médico se vê com alguma frequência diante de pessoas em situações existenciais muito difíceis e dolorosas lida com clientes em estado terminal assiste pessoas que morrem Em todas essas situações o impacto emocio nal do médico é intenso Alguns de nós por medo de emoções dolorosas acabamos criando uma carapaça defensiva que embota a sensibilidade e anestesia o sentir Este é o outro motivo que resulta em atendi mento frio e impessoal Quando anestesiamos ou em botamos nossa sensibilidade e atendemos de modo frio impessoal e puramente técnico uma parte im portante do nosso ser gente está esquecida Afinal vivenciar momentos de ansiedade e de sofrimentos faz parte do preço a pagar quando se escolhe entrar na vida ao invés de simplesmente passar por ela AS FORMAS TERAPÊUTICAS As formas terapêuticas possibilitam ao médico ampliar seu potencial de ação como agente de saúde na medida em que abre os canais de comunicação aprofundando o diálogo de pessoa a pessoa Não são meramente maneiras diferentes de usar palavras ou instrumentos eficazes para manipular pacientes Sua utilização adequada depende fundamentalmente do respeito por nós mesmos e pela pessoa que atende mos da capacidade de sintonizar e da preocupação de prestar assistência à pessoa como um todo visto em sua situação existencial A base da comunicação adequada é a empatia O termo vem do grego empatheia e pathos paixão afeição sensação sofrimento afecção doença pas sivo a mesma raiz etimológica de simpatia antipa tia patologia A empatia permite nos colocarmos na posição do outro sentir o que se sentiria caso estivés semos na situação ou circunstâncias experimentadas por outra pessoa e assim sintonizar e cooperar com a pessoa doente independente da verticalidade téc nica do relacionamento É fundamental ao terapeuta diante do cliente entender seu sentir suas emoções diante da doença e da vida Tratase portanto de uma aprendizagem bastante profunda E aprender significa de algum modo transformarse aprender a olhar a partir de outras perspectivas ter coragem para renovarse e recriarse Tentando uma classificação simplista as princi pais formas terapêuticas são reflexão de sentimen tos focalizar em pistas não verbais autoexpressão colocar limites produzir o confronto resolução con junta de impasses orientação antecipatória e reasse guramento REFLEXÃO DE SENTIMENTOS A reflexão de sentimentos é a forma básica o principal vínculo de transmissão da atitude clínica depende da capacidade do terapeuta sintonizar com o cliente entendêlo e responder a ele de acordo com sua óptica e não apenas de acordo com a dele É preciso distinguir dois níveis na comunica ção do cliente o nível da mensagem manifesta a fachada o que é dito pelas palavras e o nível da mensagem latente o que está nas entrelinhas os sentimentos subjacentes às palavras frequentemen te expressos através de pistas não verbais Às vezes somos capazes de captar e entender o nível latente mas raramente respondemos diretamente a ele na imensa maioria das situações respondemos apenas ao nível manifesto da mensagem que o cliente nos envia tal como ocorre nas formas típicas A reflexão do sentimento consiste em entrar em sintonia com o cliente e responder explicitamente ao nível latente da mensagem que ele nos envia Em outras palavras consiste em dizer explicitamente ao cliente o que captamos dos seus sentimentos subja centes àquilo que nos comunica Quando há um núcleo emocional intensamente ativado medo tristeza irritação etc é inoperante referirse somente ao nível manifesto da mensagem tornase imprescindível responder ao nível latente decodificálo e explicitálo para que os sentimen tos subjacentes possam ser manejados tratase pri meiro de cuidar do terreno emocional para depois plantar a argumentação racional O mecanismo básico da reflexão de sentimentos consiste em traduzir decodificar e explicitar os níveis latentes da mensagem do outro É importante e imprescindível manter a postura de aprendizagem de si e do outro Um dos requisitos necessários ao uso da reflexão de sentimentos é a pos sibilidade de ouvir e pesquisar o que a pessoa sente sem criticála ou menosprezála por ser emocional é que os sentimentos assustam tanto os nossos como os dos nossos clientes Nossa educação tende a provocar uma verda deira fobia do sentir os sentimentos são divididos em bons alegria carinho satisfação e maus raiva desprezo irritação ciúme inveja para algumas pes soas a expressão e até mesmo a própria percepção dos maus sentimentos fica proibida para outras é mais fácil expressar irritação e raiva enquanto que ternura e carinho ficam abafados De qualquer for ma quanto maior a dificuldade de lidar com nossos sentimentos maior a dificuldade de lidar com os sentimentos dos outros No vínculo médicocliente a tendência será evitar falar e impedir que o clien te fale sobre o que sente o médico adota a postura Psicossomaticaindd 532 Psicossomaticaindd 532 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 533 fria impessoal e distante do atendimento técnico sem criar o espaço de disponibilidade ou então tentar abrir a possibilidade de diálogo para logo em seguida fechála com mensagens de crítica ameaça ou falso apoio É evidente que nessas situações o uso da reflexão de sentimentos tornase impossível É claro que há momentos em que em resposta à reflexão de sentimentos a pessoa se abre chora a ponto de soluçar ou se expressa de modo mais com pleto Isso não quer dizer que a pessoa piorou mas que simplesmente encontrou um espaço onde se sen te com liberdade e confiança para desabafar Comu mente o efeito é de alívio dos sentimentos dolorosos ou difíceis após serem livremente expressos compre endidos e respeitados Em síntese podemos dizer que o uso adequa do e sistemático da reflexão de sentimentos tem os seguintes efeitos gerais a pessoa sentese compreen dida e respeitada frequentemente aliviada de senti mentos dolorosos ou difíceis à medida que encontra maior espaço de disponibilidade e solidifica o vínculo de confiança e possibilita maior liberdade de expres são a reflexão de sentimentos também facilita a au topercepção do cliente pois ao decodificar as mensa gens latentes clareia áreas anteriormente obscuras dessa forma atinge e facilita a elaboração de núcleos emocionais responsáveis por inúmeras condutas de bloqueio ou de resistência e pode ajudar a pessoa a digerir situações difíceis porém inevitáveis FOCALIZAÇÃO EM PISTAS NÃO VERBAIS Quando estamos em contato com alguém co municamonos não só com as palavras mas também com inúmeras pistas não verbais tais como tom tim bre modulação da voz expressão facial postura cor pórea gestos maneira de colocar as mãos modo de andar sentar vestirse qualidade do olhar e do sor riso e assim por diante É importante ressaltar que exercemos maior controle sobre os elementos verbais da comunicação podemos pensar de antemão no que vamos dizer ou escolher as palavras com cuida do mas por outro lado conseguimos exercer pouco ou nenhum controle sobre os elementos não verbais Involuntariamente podemos enrubescer quando al guém aborda um assunto que nos constrange não conseguimos controlar o tremor da voz ou das mãos quando ficamos muito ansiosos dificilmente conse guimos evitar olhar o relógio ou tamborilar os dedos quando estamos com pressa Em suma o conjunto de pistas não verbais transmite uma impressão por vezes bastante nítida de como está a pessoa Prestar atenção às pistas não verbais especial mente quando estão em discrepância com o que é dito pelas palavras constitui um valioso instrumen to para entender e captar o que verdadeiramente se passa com o cliente da mesma forma utilizar essa percepção constitui importante recurso de atuação É preciso sobretudo não esquecer que o cliente é tam bém capaz de perceber pistas não verbais na comu nicação do médico é uma ilusão pensar não deixei que ele percebesse minha preocupação O treinamento da sensibilidade para melhor perceber as pistas não verbais pode ser feito no coti diano Quando observamos atentamente o comporta mento não verbal das pessoas pelas quais passamos ou com as quais interagimos em várias situações um universo de descobertas se abre diante de nós Existem várias estratégias ou maneiras de lidar com as pistas não verbais que percebemos na cliente a saber 1 Simplesmente perceber registrar e arquivar Nem sempre é desejável explicitar o que cap tamos Como vimos ao falar sobre reflexão de sentimentos é preciso escolher com cuidado o momento adequado para explicitar algo que cap tamos o momento em que o cliente está pronto para ouvir e assimilar o que dizemos Por isso muitas vezes é necessário arquivar a percepção de pistas não verbais até surgir a hora propícia de explicitar 2 Perceber não explicitar e modificar a própria con duta Há ocasiões em que o que percebemos das entrelinhas obriganos a introduzir modificações em nossa conduta para tentar alterar determina dos aspectos do vínculo 3 Perceber e apontar para o cliente Em muitas situa ções é útil apontar explicitamente para o cliente uma pista não verbal mais evidente para que se trabalhe algum aspecto relevante Perceber e apontar a pista não verbal é um pro cedimento bastante útil principalmente quando há discrepância entre a palavra e o expresso não verbalmente Nestes casos a atuação assume a forma de confronto ressaltase o contraste para que o próprio cliente ligue os fios e perceba com maior clareza o que se passa com ele 4 Perceber apontar e decodificar o significado Nes ta possibilidade de atuação o procedimento é idêntico ao da reflexão de sentimentos podese considerar a palavra como mensagem manifesta e a pista não verbal como mensagem latente a ser decodificada e explicitada Essa atuação tal como ocorre com a reflexão de sentimentos é útil quan do temos necessidade de atuar nos sentimentos e pressupõe como vimos ao falar sobre a reflexão de sentimentos a atitude de estar disponível para a pessoa sem fugir dos sentimentos Novamen Psicossomaticaindd 533 Psicossomaticaindd 533 05012010 121225 05012010 121225 534 Mello Filho Burd e cols te o medo de sentir pode impedir ou restringir o diálogo Por exemplo o choro do cliente é uma das pistas não verbais mais expressivas e mobili zastes Para muitos de nós não é nada fácil ficar diante de uma pessoa que está chorando apressa damente podemos tentar acalmála darlhe um sedativo fazer alguma coisa para que a pessoa pare de chorar o mais depressa possível porque não conseguimos suportar nossa própria angús tia Na maioria das vezes o choro do cliente pede uma atitude de disponibilidade de silêncio res peitoso e de espera para que possa emergir o que há de mais significativo Ao ficar atento para a linguagem do choro conseguimos melhor enten der decodificar e ajudar AUTOEXPRESSÃO A autoexpressão pode ser definida em termos simples como reflexão de nossos sentimentos Essa definição mostra claramente que autoexpressão e reflexão de sentimentos são na realidade as duas faces da moeda O uso combinado dessas formas de comunicação abre significativamente o campo do re lacionamento Em alguns momentos do vínculo com o cliente criamse situações de impasse discrepância entre a expectativa do cliente e a atuação do médico ou en tre a expectativa do médico e a atuação do cliente resistência e recusa do cliente em aceitar prescrições terapêuticas clima de tensão irritação ou hostilida de em que ambos sentem algo estranho pairando no ar condutas inadequadas do cliente que incomodam o médico atrasos persistentes faltas às consultas sem justificativa ou o fazem atender de má vontade Com frequência quando não se abre o jogo para discutir a dificuldade a situação de impasse tornase crônica e insustentável devido ao acúmulo de irritação e res sentimento capazes de provocar ruptura do vínculo A autoexpressão que consiste em explicitar nossos sentimentos pode ser uma via de acesso útil na re solução de impasses Em geral é empregada após a reflexão de sentimentos quando esta não é suficiente para favorecer modificações de conduta do cliente Convém deixar claro que autoexpressão não é sinônimo de dar bronca nem de fazer grosseria Podemos ser delicados e firmes colocando educada mente nosso ponto de vista ou expressando nossas necessidades Todos nós temos valores e pontos de vistas pessoais Devemos ser suficientemente flexíveis para entender que outras pessoas pensem e atuem de modo diferente mas há determinados valores tão importantes para nós que apesar de entender que o outro seja diferente não podemos modificar nosso proceder habitual para atender o pedido da pessoa caso contrário violentamonos A autoexpressão como qualquer outra forma te rapêutica de comunicação corre riscos de utilização inadequada uma delas é usála como disfarce para críticas ou julgamentos Por exemplo eu acho que a senhora está sendo inconsequente e irresponsável O eu acho não garante a autoexpressão a qualidade da mensagem depende muito do tom subjacente No exemplo o tom é claramente de crítica e julgamento Em termos de comunicação o lobo disfarçado em pele de cordeiro é facilmente descoberto A autoexpressão não deve ser utilizada para de sabafar com o cliente em tom de confidência ou de conversa de comadre Ela facilita o aprofundamen to da comunicação em nível de pessoa a pessoa mas é importante ter em mente que estamos atendendo o cliente que a consulta é para ele e não para nós Por isso o critério básico de utilização da autoexpressão é ajudar a resolver pontos de impasse do vínculo ou aju dar o cliente a esclarecer aspectos de seus jogos in terpessoais e não para fazer com que o cliente resolva ou sequer compartilhe problemas pessoais do médico Outro risco referese ao registro que o cliente faz da autoexpressão do médico Em geral quando predomina o nível adultoadulto no relacionamento a autoexpressão é bem proveitosa facilitando o tra balho em corresponsabilidade mas quando predomi na o nível infantil no cliente ela pode ser distorcida mente registrada como bronca ou ser sentida como triunfo do cliente por ter atingido o ponto fraco do médico A autoexpressão pode levar ao corte do vínculo o que não deve ser temido pois ele ocorre quando a tarefa clínica tornase impossível LIMITES Colocar limites implica essencialmente em ex plicitar as características e a estruturação de situa ções de atendimento e delimitar áreas de atuação em termos do que pode e do que não pode ser feito Clareza concisão e firmeza são facetas bási cas dos limites Evitamos a omissão de informações importantes e sobretudo a ambiguidade na estru turação do atendimento Inúmeros problemas do relacionamento devemse à ambiguidade com que são colocadas as condições de trabalho do médico Explicitar claramente o que podemos e o que não po demos fazer é fundamental para que o cliente saiba exatamente com o que pode contar Em primeiro lu gar tratase de evitar malentendidos e não alimentar expectativas falsas ou irreais que inevitavelmente acarretam frustração decepção e ressentimento Psicossomaticaindd 534 Psicossomaticaindd 534 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 535 Há muitas situações em que o cliente deseja transferir toda a responsabilidade de solucionar pro blemas para o médico o que o senhor acha o que o senhor sugere Mas não há solução mágica não temos condições de opinar sobre a melhor decisão O que podemos fazer é ajudar a pensar e a pesar os prós e os contras das diferentes alternativas Delimitar o campo de atuação tem a ver tam bém com a determinação de nossos limites pessoais ou seja respeitar nossas dificuldades Tratase de res peitar os limites pessoais para determinar o que se pode e o que não se pode fazer Evidentemente isso implica aceitar que não é possível fazer tudo nem resolver todas as situações Na maioria das modalidades de psicoterapia o contrato de trabalho é explicitado para delimitar o contexto de atuação com clareza evitandose ambi guidades Essa explicitação não é feita apenas para proteger os interesses do profissional mas sobretu do por uma questão de respeito à cliente e de prote ção ao relacionamento Isso aumenta a segurança por meio da demarcação do terreno do trabalho Obviamente o terreno da consulta médica é di ferente as consultas são marcadas esporadicamente uma consulta por ano no caso da prevenção o mé dico desmarca as consultas do dia para atender a um chamado de emergência ou fazer um parto o médi co necessita de mais tempo com uma cliente e acaba atrasando Além disso há uma tradição das pessoas que possibilitam condutas do tipo faltar à consulta sem desmarcar previamente porque não vai ter que pagar chegar com atrasos porque os médicos não se importam eles são os primeiros a se atrasarem não se preocupar com o término da consulta porque ficase quanto tempo for necessário e assim por diante É importante enfatizar que embora existam razões objetivas que dificultem a estruturação do contexto de atendimento é perfeitamente possível em outros aspectos construir uma estruturação em termos de limites O mesmo se aplica no contexto da instituição É necessário que o cliente saiba quanto tempo dispõe para as consultas ou quando deverá voltar Deve ser também alertada para as dificuldades do pouco tem po de consulta do longo tempo de espera da falta de privacidade e das exigências burocráticas do atendi mento Colocar limites adequadamente veicula so bretudo a atitude de proteção do relacionamento e de respeito por nós e pela pessoa que atendemos CONFRONTO A função essencial do confronto é colocar em evidência aspectos contrastantes ou contraditórios das mensagens do cliente para que este possa per ceberse de modo mais claro Há várias maneiras de fazer confronto a focalização em pistas não verbais é quase sempre utilizada à guisa de confronto à me dida que aponta discrepâncias entre elementos ver bais e não verbais da mensagem da mesma forma o confronto pode consistir em apontar discrepâncias entre duas mensagens verbais ou entre o que é dito e o que é feito A atitude característica do confronto é portan to apontar as contradições da mensagem do cliente para ajudálo a perceber o que está se passando com ele evidentemente não implica atitudes de crítica do tipo te peguei em flagrante A evidência da contradição faz com que o con fronto frequentemente tenha um impacto bastante significativo como forma de comunicação É claro que a sensibilidade e a intuição são importantes na determinação do momento mais propício para a to mada de consciência das sabotagens ao tratamento ou da paralisação da conduta que eventualmente acarreta mudança de comportamento Neste sentido o confronto pode atuar como solicitação de trabalho em corresponsabilidade O confronto pode ser feito também através de perguntas com o intuito de ques tionar decisões impulsivas ou desmanchar ideias fixas e predeterminadas ajudando a pessoa a considerar outras alternativas ou facetas de uma situação Há ainda a produção de confronto entre pessoas que estão em dissintonia mas tem o objeto claro de se entenderem como cônjuges pais e filhos amigos etc tratase aqui de sugerir uma conversa franca uma troca de ideias desde que haja preparo para que não se produza uma contenda mas sim uma resolu ção conjunta de impasse Tratase de simplesmente contribuir para a ampliação de perspectivas dos pro cessos decisórios porém com a atitude de respeito pela autonomia da pessoa e pelo seu direito de resol ver o que irá fazer da própria vida RESOLUÇÃO CONJUNTA DE IMPASSES Médico e cliente são obviamente pessoas dife rentes com pontos de vista ou necessidades diversas entre outras coisas isso implica inevitabilidade de momentos de impasse no vínculo onde necessidades e vontades de ambos se encontram em oposição No manejo autoritário o poder fica concentrado nas mãos do médico é ele quem dá as cartas toma decisões e as impõe ao cliente que supostamente tem de aceitálas e submeterse mesmo a contragosto Evi dentemente é essa a característica do modelo tradi cional onde o médico não tem que dar satisfações de sua conduta Esse é o manejo que predomina nas Psicossomaticaindd 535 Psicossomaticaindd 535 05012010 121225 05012010 121225 536 Mello Filho Burd e cols instituições e que vigora no estabelecimento das ro tinas hospitalares e das normas administrativas Este proceder afeta igualmente a relação clienteinstitui ção e médicoinstituição Ambos cliente e médico têm que se submeter Quando se rompe a defesa do conformismo essa submissão gera revolta ressenti mento e hostilidade É esta a dinâmica subjacente a inúmeras condutas de rebeldia insubordinação e sa botagem Muitas das imposições são apenas aparen temente baseadas em argumentações lógicas que na realidade não resistem a um exame mais cuidadoso Há situações de emergência em que o médico simplesmente tem que ditar ordens sem perguntar ao paciente o que acha pensa ou quer outras vezes o desejo do cliente é impossível de ser satisfeito por que há contraindicações de ordem técnica a atitu de com que se emprega o manejo autoritário nestas circunstâncias difere substancialmente da atitude au toritária crônica porque se trata de saber pela com petência técnica o que corresponde às reais necessi dades do cliente embora não seja possível satisfazer seu desejo No manejo permissivo as características bási cas são a carência de limites a excessiva renúncia aos próprios direitos a tendência exagerada a abrir mão do atendimento das próprias necessidades para atender as dos outros numa atitude submissa ou servil Quando essa situação predomina no vínculo médicocliente não está circunscrito apenas a este setor mas corresponde à característica da pessoa do médico que sente dificuldade de dizer que não con corda e precisa ser bonzinho desprendido e dedi cado A dinâmica subjacente a esta conduta em geral prendese ao medo de não ser aceito No campo do vínculo médicocliente isso transparece no medo de perder clientes Na relação médicoinstituição a permissividade aparece geralmente associada à necessidade de sobre vivência O profissional de saúde muitas vezes se vê forçado a abrir mão de direitos básicos e submeterse a uma carga horária injusta ganhar salário indigno que nem de longe corresponde ao investimento de tempo esforço e dinheiro que aplicou em sua forma ção A situação certamente vai influir no vínculo com os clientes O aspecto fundamental do manejo por resolu ção conjunta é o respeito pelas próprias necessidades e pelas necessidades do outro Nos momentos de im passe tentar elaborar uma solução que leve ambas as partes em consideração É claro que em muitas circunstâncias este manejo ideal é utópico mas de qualquer forma é a postura inerente à atitude clíni ca e ao uso das formas terapêuticas de comunicação O manejo por resolução conjunta pressupõe trabalho em corresponsabilidade em nível adultoadulto onde o poder fica compartilhado Dar ao cliente a oportunidade de opinar ex pressar ou escolher o que quer sempre que possível obviamente desde que não haja impedimentos de or dem técnica e desde que a escolha do cliente não se choque frontalmente com a filosofia de trabalho do médico Em outras circunstâncias é possível que médi co e cliente possam abrir mão de algumas necessida des para que um acordo seja feito Como o objetivo é tentar atender às necessidades de ambas as partes a resolução conjunta é um manejo essencialmente criativo a solução a ser encontrada é específica para aquela situação ou para aquele momento do vínculo ou para aquelas pessoas envolvidas Em síntese a postura básica da resolução con junta também implícita na utilização das demais formas terapêuticas de comunicação é ver o relacio namento médicocliente como humanamente simé trico embora tecnicamente assimétrico Com isso vem a abertura para elaborar mais adequadamente o problema de dominação e de submissão implícito no jogo do autoritarismo e da permissividade ORIENTAÇÃO ANTECIPATÓRIA A orientação antecipatória consiste em descre ver para o cliente o panorama geral de uma situação a ser enfrentada Destacamse dois pontos fundamentais na orien tação antecipatória dar informações e lidar com o impacto emocional por elas provocado Por esse mo tivo o uso da orientação antecipatória vinculase intimamente à postura característica da reflexão de sentimentos Isso tem repercussões importantes in clusive na maneira de dar informações estas devem ser veiculadas em termos simples concretos o menos técnico e intelectualizado possível A orientação antecipatória não significa dar uma aula brilhante ou uma demonstração de sabedoria e conhecimento para que o cliente fique bem impres sionado Portanto para que as informações sejam de fato úteis e possam ser absorvidas pelo cliente é necessário que o médico esteja em sintonia com ele para saber do que o cliente precisa ter conhecimento que lacunas ou distorções de informação apresenta e que impacto emocional as informações provocam se contribuíram para que o cliente ficasse mais assusta do ansioso deprimido preocupado Evidentemente a reflexão de sentimentos e suas variantes são de ex trema utilidade para lidar com a mobilização evocada pela orientação antecipatória Psicossomaticaindd 536 Psicossomaticaindd 536 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 537 As informações da orientação antecipatória precisam ser vinculadas com a postura de realismo otimista ou seja apresentar os fatos sem falsear a realidade porém apresentando possibilidades de saí das melhoras curas recursos de que a pessoa possa dispor ou maneiras que a própria pessoa possa em pregar para lidar com a situação a ser enfrentada O uso consistente da orientação antecipatória pode prevenir o surgimento de muitos problemas de relacionamento tanto no vínculo médicocliente quanto no vínculo clienteinstituição Tratase de esclarecer previamente as condições de trabalho ou de atendimento que à guisa de limites demarcam o terreno de forma que a pessoa saiba de antemão com o que poderá contar Isso evita a criação de fal sas expectativas e consequentemente de inevitáveis frustrações a elas vinculadas É interessante notar que a maioria das pessoas busca espontaneamente orientação antecipatória por meio de leituras de livros e revistas ou por conversas com pessoas conhecidas que enfrentaram situação idêntica Com isso a pessoa consegue digerir em par te o medo do desconhecido e tomar as providências possíveis para lidar com a situação de realidade Na turalmente sempre há diferença entre saber e passar concretamente pela experiência sobretudo porque a vivência real é pessoal e subjetiva Hoje a busca de informações na internet ser ve perfeitamente para obter informações mas ter a informação sem saber como manejála pode ser de sastroso quando paralelamente falte a orientação do profissional Outro efeito singular da orientação antecipatória é ativar os mecanismos adaptativos da personalidade para que a pessoa possa melhor enfrentar a situação de tensão ou de dificuldade nestes casos ela atua como vacina emocional prevenindo o surgimento de difi culdades Neste contexto a orientação antecipatória ajuda a pessoa a digerir emocionalmente a situação a ser enfrentada Para isso é necessário ativar o que se chama de ansiedade antecipatória Ressaltese aqui que nem sempre se deve tentar reduzir ou muito menos eliminar as ansiedades do cliente Em primeiro lugar isso é impossível porque há situações que inevi tavelmente geram apreensão e ansiedade em segundo lugar não seria desejável a ansiedade antecipatória tem papel importante no funcionamento emocional É portanto um mecanismo motivacional para que a pessoa concretize ações necessárias Obviamente a ansiedade antecipatória é substancialmente diferente do pânico este é paralisante enquanto aquela é gera dora de ações adaptativas Essencialmente o que a utilização combinada de orientação antecipatória e reflexão de sentimentos se propõe é reduzir o excesso de ansiedade basica mente derivado do medo do desconhecido REASSEGURAMENTO O reasseguramento é uma forma terapêutica de comunicação cujo propósito principal é aliviar ansie dades ou temores do cliente quando possível e sem recorrer ao falso apoio às promessas onipotentes à mentira ou à omissão de informações relevantes Tratase essencialmente de manejar com facetas da realidade dando oportunidade de livre expressão de sentimentos Obviamente como acontece com a orientação antecipatória a utilização do reassegu ramento está também intimamente vinculada à ca pacidade de sintonizar típica da reflexão de senti mentos Muitas vezes e até mesmo sem se dar conta o médico faz reasseguramento eficaz de várias manei ras quando genuinamente apresenta atitude de dis ponibilidade quando realiza ações concretas que de monstram real interesse pelo cliente quando oferece informações pertinentes O reasseguramento aqui se faz como um algo mais além de dizer simplesmen te tudo bem Enfatizese que nem sempre o reasseguramen to consiste em dar boas notícias quando há algum problema obviamente o nível de angústia aumenta principalmente enquanto não se sabe o que está acon tecendo De certa forma a angústia de incerteza se reduz quando se descobre o que e porque aconteceu As informações corretivas podem atuar como reasseguramento Neste contexto como na orienta ção antecipatória a informação não é para ser veicu lada como uma aula sofisticada mas de modo sim ples claro e conciso para melhor absorção em nível emocional A diferença fundamental entre o falso apoio e o reasseguramento é a atitude frente aos sentimentos mobilizados na pessoa no falso apoio evitase en carar os sentimentos a informação é dada de modo rápido e apressado na tentativa de abafar ou supri mir a ansiedade ou a depressão Evidentemente nes sas circunstâncias não há solo adequado para que as informações sejam absorvidas ou levadas a sério Já no reasseguramento dáse espaço suficiente para a expressão dos sentimentos então compreendidos e compartilhados para que depois haja lugar para a informação O efeito mais comum do reasseguramento é o alívio de ansiedades temores e dúvidas após serem livremente expressos e reconhecidos Há situações de realidade que objetivamente lançam dúvidas ou Psicossomaticaindd 537 Psicossomaticaindd 537 05012010 121225 05012010 121225 538 Mello Filho Burd e cols envolvem prognóstico duvidoso que fatalmente pro vocam ansiedade tanto no cliente quanto no médico Ansiedades mais profundas e abrangentes não po dem ser aliviadas pelo reasseguramento ou porque estão profundamente arraigadas ou porque existem inevitavelmente em todas as pessoas Por exemplo o temor frente ao parto ou a uma cirurgia maior é impossível de ser eliminado Por fim vale ressaltar que a própria vida oferece inúmeras oportunidades de reasseguramento ALGUNS EXEMPLOS DE DIÁLOGOS E SITUAÇÕES As situações apresentadas aqui sob a forma de alguns diálogos e falas pretendem dar uma ideia ao leitor das diferenças no uso das formas adequadas ou inadequadas na comunicação entre profissionais de saúde e clientes Entendemos o relacionamen to de uma maneira ampla como ocorrendo entre o terapeuta e o doente posto que hoje esse processo ocorre de forma diluída e plural no qual os sintomas são preponderantes sobre as pessoas e o profissional é apenas uma parte da equipe de saúde Os exemplos tocam nas situações mais comuns para um aprofun damento do tema leia o livro Recursos de relaciona mento para profissionais de saúde de Maldonado e Canella 2003 Transferências Uma gestante sentese tensa e assustada a cada consulta prénatal porque teme levar uma bronca do médico ou por acharse gorda por se alimentar inadequadamente ou por fazer alguma outra coisa que não deve O obstetra como pessoa real não é censurador nem ameaçador e em verdade tam pouco ela está se conduzindo mal não obstante a reação transferencial dessa cliente é marcada pela vi são do médico como uma figura paterna assustadora que a qualquer momento vai censurála e colocála de castigo O explícito e o implícito O motivo explícito encobre ansiedades e preo cupações mais importantes como no caso de J que foi ao ginecologista porque achava que estava com corrimento Este a examinou percebendoa mui to ansiosa Ainda na mesa de exame a adolescente não conteve sua angústia Doutor na verdade vim aqui porque ontem transei com meu namorado pela primeira vez foi difícil e quero saber se ainda sou virgem Ordens ameaças lições de moral O senhor vai precisar fazer exercícios físicos diá rios controlar a alimentação parar de fumar e de tomar bebidas alcoólicas para não correr tanto risco de ter outro ataque cardíaco A senhora já sabe que fumar especialmente na gravidez é contraindicado porque aumenta muito a probabilidade de nascer um bebê prematuro de bai xo peso Seu filho está com dificuldades de coordenação motora fina por isso o trabalho de psicomotricidade é indispensável caso contrário tenderá a apresentar problemas na classe de alfabetização A senhora está proibida de fumar na gravi dez Muitos clientes comportamse como crianças re beldes que tentam ludibriar as ordens Doutor juro que não sei porque engordei tanto este mês não comi nada Pois é engravidou não é E agora Vai querer fazer aborto não é Por que não tomou pílula Será que você vai poder assumir a responsabilidade Tem gente que acha um crime a mãe não que rer amamentar o filho você é pobre não pode com prar leite seu filho vai mamar o quê Não vai crescer direito e quem é que vai ser a culpada Pessoas que utilizam muito esta forma de comu nicação são as que acham que seu próprio modo de pensar e de atuar é o único correto Mensagens contraditórias Veio um doutor que me disse que eu ia tomar o remédio X para baixar a pressão dois dias depois veio outro e mandou parar de tomar o remédio Y por que era perigoso para o neném Eu já não entendo mais nada Agora a atendente vem com o remédio eu finjo que engulo e quando ela vira as costas eu cuspo tudo fora Criticar e elogiar Quando uma mulher no climatério diz que se acha feia velha fora de forma e o profissional ten ta consolála com um elogio Que nada a senhora está muito moça está ótima com um corpo excelen te de fazer inveja a muita gente jovem este pode ser registrado de várias maneiras Está dizendo isso Psicossomaticaindd 538 Psicossomaticaindd 538 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 539 para ser amável ou para me consolar ou é falsida de ou quem sabe está até com segundas intenções Quando uma mulher grávida expressase em termos de eu me sinto um lixo um monstro com o corpo deformado está precisando mais de ser entendida em sua ótica e no temor que está subjacente tenho medo que meu corpo não volte ao lugar ou me res sinto porque meu marido quase não me procura se xualmente do que de um elogio à guisa de persua são a estética da grávida é maravilhosa porque não há nada mais bonito do que a maternidade e você é uma gestante linda O elogio à pessoa como um todo como vimos tende a criar uma expectativa aprisionante e por isso frequentemente tem efeitos nocivos Reflexão de sentimentos Tratase de referirse ao nível latente a partir da mensagem que o cliente manifesta é necessário decodificála e explicitála para que os sentimentos subjacentes possam ser manejados Primeiro cuidar do terreno emocional para depois usar a argumen tação racional A reflexão de sentimentos é a forma mais importante para uma comunicação adequada no relacionamento Mensagem manifesta Eu quero cesárea não que ro nem ouvir falar em parto normal Mensagem latente Morro de medo de sentir dor fico apavorada Médico Cesárea é boa só quando necessária o parto normal quando possível é melhor para a mãe e para a criança persuasão Mensagem manifesta Eu quero cesariana Mensagem latente Ouvi falar que parto normal dói muito fico apavorada Médico A ideia de parto normal te apavora não é reflexão de sentimentos O marido de uma cliente reagiu com muita hos tilidade à indicação de cirurgia feita pelo médico após as consultas e os exames complementares dizendo que os médicos de hoje só querem saber de pedir exames e operar O médico percebeu que atrás da fachada de irritação parecia haver medo e susto e então falou É estou vendo que minha a indicação o deixou irritado mas de qualquer forma acho que lá no fundo você está com medo O homem parou de agredir o médico a face expressando um misto de tristeza e preocupação Tive uma irmã que mor reu em consequência de uma complicação quando foi operada O médico prosseguiu Então fica claro seu medo de que o mesmo aconteça com sua mulher O homem respondeu Não é fácil doutor A gente sabe que uma situação não tem nada a ver com a outra mas assim mesmo vem a lembrança e o medo O médico continuou a refletir sentimentos ao mesmo tempo que reafirmou sua indicação Entendo que você fique com medo de que a cirurgia de sua mulher complique mas na situação em que ela está no mo mento a indicação é absolutamente necessária Vêse mais uma vez que o mecanismo básico da reflexão de sentimentos consiste em traduzir decodificar e explicitar os níveis latentes da mensagem do outro Uma mulher em início de gravidez não deseja da procurou o médico no ambulatório informando que achava que abortara porque sangrava abundan temente e tinha expelido uma bola O médico perce beu que a voz da cliente demonstrava alívio No en tanto no exame clínico constatouse que a bola era um coágulo e que não tinha havido aborto A cliente retrucou Quer dizer que ainda tem coisa dentro de mim não é O obstetra em vez de perguntar como estava sentindo o fato de ainda estar grávida respon deu com uma falsa atribuição É acho que você está contente por descobrir que não foi um aborto Ime diatamente a cliente mostrouse irritada e acabou dizendo que nenhum médico prestava Vejamos os vários níveis de sentimentos desde os mais periféricos até os mais profundos e obscuros das mensagens latentes Na comunicação profissio nalcliente estes diferentes níveis podem vir a ser explicitados gradualmente no decorrer da conversa como ilustramos nos diálogos abaixo Mensagem manifesta Gostaria de amamentar mas tenho medo de que meus seios fiquem flácidos Níveis de mensagens latentes Muita gente já me dis se isso A estética dos seios é impor tante para mim Se eu amamentar talvez não consiga sentir prazer erótico nos seios Acho que meu marido vai me evitar sexualmente se eu ama mentar que nem agora na gra videz Tenho medo de ficar presa e acabar sendo escrava do bebê Será que eu teria leite suficien te para alimentar meu filho Psicossomaticaindd 539 Psicossomaticaindd 539 05012010 121225 05012010 121225 540 Mello Filho Burd e cols Acho que me sentiria explora da pelo bebê como se ele fos se tirar tudo de mim Tenho vergonha de amamen tar sinto aflição só de pensar Se imaginamos o seguinte diálogo Cliente Gostaria de amamentar mas tenho medo de que meus seios fiquem fláci dos Estou até pensando em secar o leite para começar direto com mamadeira Médico Na verdade o que você quer dizer é que tem medo de se transformar em es crava do seu filho Cliente De jeito nenhum o que o senhor está dizendo não faz sentido para mim pre tendo cuidar do bebê e me dedicar a educálo mas não quero amamentar Vemos que estamos diante de uma situação de intervenção prematura e apressada cujo efeito típico é provocar resistência ofensa irritação indignação raiva sensação de não estar sendo compreendida e fechamento do diálogo Por outro lado se os níveis latentes forem focalizados de acordo com o ritmo espontâneo da pessoa tornase possível inclusive fazer a mescla de reflexão de sentimentos com a cor reção das distorções de informação como veremos no diálogo seguinte Cliente Gostaria de amamentar mas tenho medo de que meus seios fiquem fláci dos Estou até pensando em secar o leite para começar direto com mamadeira Médico A estética dos seios é muito importante para você não é Cliente Sem dúvida E várias amigas minhas me disseram que amamentar provoca flacidez Médico Na verdade as coisas não são bem as sim A eventual flacidez dos seios não se deve exatamente à amamentação mas à estrutura constitucional do tecido Se uma mulher tem tecido firme poderá amamentar por muito tempo sem que haja flacidez se uma mulher tiver ten dência constitucional à flacidez os seios ficarão caídos mesmo que não amamen te Cliente É mesmo Eu não sabia disso Mas mesmo assim ainda fico em dúvida se vou amamentar Surgiram tantas difi culdades entre eu e meu marido agora na gravidez você sabe Médico Você se refere às dificuldades sexuais Cliente É Médico Você tem medo de que seu marido con tinue evitandoa sexualmente caso deci da amamentar Cliente É isso mesmo Depois a gente nunca sabe como vão ficar as coisas Se a gen te por exemplo quiser sair para ir a um cinema não vai poder Médico Aí aparece outro medo que é o de ficar prisioneira do bebê não é Cliente É mas eu até sei que se pode dar um jeito Já me ensinaram uma maneira de tirar leite com bomba e guardálo na ge ladeira É esquisito mas também tenho a sensação de que o bebê estaria tirando tudo de mim e quando imagino o ne ném mamando me dá até aflição Médico Desde que começamos essa conversa surgiram muitos sentimentos a respeito de amamentar o bebê É importante que você possa pensar em tudo isso para real mente decidir o que quer fazer Cliente É consegui perceber algumas coisas que ainda não tinha visto claramente Já vi que não estou preocupada só com a estética Vou pensar no que conversa mos e tornar a decidir É evidente que esse diálogo é um exemplo di dático nem sempre as coisas se encadeiam com fa cilidade É necessário tempo perspicácia e princi palmente uma mudança interior no profissional que se traduza por disponibilidade em seu trabalho Não devemos esquecer também que nos dias de hoje fe lizmente reduziramse bastante as resistências à ama mentação A persuasão assim como a sugestão é inope rante porque focaliza somente o nível racional e tan gencia o nível emocional que nesses casos é mais re levante Em termos de atuação a implicação óbvia é que em primeiro lugar é preciso preparar o terreno focalizando o nível emocional como na reflexão de sentimentos e situandose na ótica da pessoa para num segundo momento atuar no nível racional utili zando a persuasão Podemos exemplificar este esque ma geral de atuação no diálogo que se segue Médica Você está com um mioma e o único meio de evitar que as hemorragias conti nuem é operar e tirar o útero comunicar o diagnóstico indicar a terapêutica Cliente Mas doutora quer dizer que vou ficar sem útero Preciso mesmo fazer essa operação Psicossomaticaindd 540 Psicossomaticaindd 540 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 541 Médica Entendo Você não esperava que fosse necessário operar reflexão de senti mentos Cliente Por mais que a gente desconfie quando chega o momento a gente leva um cho que Além do mais duas amigas minhas que fizeram essa operação disseram que depois ficaram frias Médica A senhora tem medo de que a operação atrapalhe sua atividade sexual refle xão de sentimentos Cliente Claro doutora E isso não acontece Médica O bom funcionamento sexual da mu lher não depende do útero Os ovários vão ficar São eles que vão manter os hormônios e o bom funcionamento do organismo Na verdade o sexo não de pende diretamente dessas coisas O fato de que algumas mulheres se sintam frias depois que tiram o útero está mais ligado às emoções Elas pensam que o útero é o responsável pela feminilidade e sem ele se sentem menos mulheres Mas na realidade a cirurgia não altera a capacidade de sentir prazer e no seu caso ela é absolutamente necessária por causa do mioma persuasão Uma mulher recém operada queixase de que muitas coisas em sua vida e no relacionamento com o marido modificaramse depois que os filhos saíram de casa A enfermeira sintoniza corretamente ao di zer É de fato tenho percebido que você está triste A mulher fica com os olhos cheios dágua e responde que realmente está se sentindo assim Rapidamente em resposta à sua própria ansiedade a enfermeira retruca mas casamento é assim mesmo depois de certo tempo esfria tudo quem sabe você aproveita outras oportunidades e consegue afastar essas preo cupações Dessa maneira novamente fechou o diá logo a cliente disse é e começou a tratar de um assunto irrelevante Negar percepções consolar e oferecer falso apoio A necessidade de negar a percepção do cliente surge especialmente em situações emocionalmente difíceis para o profissional Doutor pelo seu jeito e o de todo mundo lá em casa eu sei que estou com câncer Pode falar no assunto Pare de pensar dessa maneira Que nada é um pro bleminha que precisa ser tratado não é tão grave A resposta destinase na verdade a aliviar a an siedade do médico mais do que ajudar o cliente Não fique tão arrasada vocês são jovens e saudá veis logo poderão ter outro filho É grave mas conformese a vida é assim mesmo Nas entrelinhas o que o falso apoio comunica é por favor pare de se sentir tão mal porque isso não me deixa à vontade Autoexpressão Médica Tem um problema que me preocupa Sempre achei você com uma certa difi culdade para fazer os exames que peço Isso está alongando a pesquisa Na ver dade estou me sentindo desestimulada É como se estivesse trabalhando sozi nha sem sua ajuda Cliente É você tem razão Várias vezes já foi falado aqui o meu problema de não saber exatamente por que estou me tratando É lógico que pensando bem você se sinta chateada porque eu não colaboro Médica Pois é acho importante examinar os dois lados da questão ver suas dificul dades e as minhas também porque tudo isso afeta nosso trabalho Nem sempre as coisas são tão simples como nes te diálogo Colocar limites Gostaria de conversar com você sobre algumas coisas a respeito do meu modo de trabalhar Como já sabe atendo com hora marcada e a consulta é de meia hora quando por algum motivo precisar des marcar por favor faça com antecedência para que outra pessoa possa ocupar a hora quanto aos tele fonemas só atendo na mesma hora em casos de ur gência para não interromper as consultas se não for urgente a secretária anotará seu nome e eu telefona rei no intervalo ou no final das consultas o dê uma passadinha no consultório a qualquer hora sempre acaba atrapalhando o andamento das consultas Confronto O confronto pode consistir em apontar contradi ções entre duas mensagens verbais Psicossomaticaindd 541 Psicossomaticaindd 541 05012010 121225 05012010 121225 542 Mello Filho Burd e cols Quando lhe perguntei como estava você respondeu tudo bem e em seguida começou a falar de muitas coisas que não vão bem Você diz que está com vontade de emagrecer mas estou percebendo que não está tendo o cuidado de manter a dieta prescrita Vocês têm queixas mútuas por que não discutir os impasses Aqui o confronto é provocado pelo profissional que dele não participa Induz apenas a resolução con junta de impasses Orientação antecipatória Em vez de não vai doer nada dizer vai doer só um pouquinho e logo depois vai passar Reasseguramento Abre a possibilidade de novas perspectivas da realidade como ilustra a conversa entre a enfermeira e a mãe de um prematuro Mãe Ai ele ainda está tão miudinho dá uma pena de ver esse sofrimento todo Enfermeira É não é fácil ver o neném assim Ele ainda está com pouco peso é verdade mas houve um pequeno aumento com relação à semana passada e isso é um bom sinal Mãe Mas ainda precisa aumentar muito ain da Enfermeira Sim mas o neném não ganha peso de repente Além do mais a infecção tam bém está melhorando e ele está com um pouco menos de oxigênio RELAÇÃO MÉDICOCLIENTE E PSICOSSOMÁTICA A medicina psicossomática nada mais é do que o exercício integral da arte de curar pois considera simultaneamente o corpo e o espírito a relação di reta entre soma e psique A psicossomática nasceu epistemologicamente com Hipócrates Prova disso é a mitologia que relata o mito de Asclépio o deus da medicina Asclépio foi filho de Apolo com Coronis a mais bela das mortais daqueles tempos O deus a amou e possuiua resultando daí uma gravidez No entan to Coronis temia que o deus imortal a desprezasse quando ela ficasse velha como sempre a mulher te mia a velhice a perda dos seus encantos e de seu poder de sedução e assim desprezou o deus do sol e da sabedoria entregandose mesmo grávida a Isquis um camponês de sua terra natal Apolo foi avisado da traição por uma gralha que naqueles tempos era branca como a neve Furioso o deus fez com que a gralha se tornasse preta como o seu luto pela perda da amada que o traía e após matar Isquis pediu a sua irmã Ártemis que com suas flechas eliminasse Coronis Quando a infeliz estava na pira para ser in cinerada o deus resolveu salvar seu filho a que deu o nome de Asclépio retirandoo do corpo inanimado de Coronis através do umbigo Isso é por uma ce sariana umbilical e o levou para o centauro Quirão para que o educasse Foi com Quirão um preceptor universal de conhecimentos que Asclépio aprendeu a arte da Medicina Apolo o deus do sol era tido como orientador das pulsões humanas para a consciência era a divin dade do gnothi sauton conhecete a ti mesmo do medèn ágan nada em demasia e o guardião da sa bedoria Um dos epítetos de Apolo era akesios o que cura e o deus pontificava no abaton santuário de Epidauro onde a cura total do corpo só era conse guida quando antes se curava a mente só havia cura pela metanoia pela transformação dos sentimentos Centro espiritual e cultural o santuário de Epidauro possuía um Odeon para a música um ginásio para exercícios e um Estádio para os esportes Teatro e Biblioteca tudo voltado para a harmonia cujo valor tranquilizante para o corpo e a alma estava a serviço da cura O principal método terapêutico era a noote rapia uma purificação física e psíquica do humano como um todo O doente banhavase e submetiase a enkoimesis ação de deitarse e dormir no templo e seus sonhos eram considerados a manifestação do di vino a hierofania pela qual o deus tocava o organis mo doente com dores enfermo sem firmeza ou molesto levando peso e os sonhos eram interpreta dos pelos sacerdotes que prescreviam as medidas des tinadas à cura Era a mântica por incubação Asclépio era o deus que presidia as curas em Epidauro A ideia de uma mente sã em um corpo são mens sana in cor pore sano difundida por Juvenal prevalecia ainda no século II da nossa era quando já instalada a medicina hipocrática empregavamse as hervas e os purgantes além da higiene da dietética e da cirurgia Embora a relação estreita entre mente e corpo já existisse nos préhistóricos cerimoniais religiosos e possa ser intuída no código de Hamurabi nos papi ros egípcios no Talmud e na Bíblia uma estruturação mais elaborada da psicossomática já estava presente nas origens mitológicas da medicina Na realidade Psicossomaticaindd 542 Psicossomaticaindd 542 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 543 das pessoas a separação mente e corpo instaurada como inevitável pela cartesiana filosofia do sujeito é um artefato talvez determinado pela dificuldade de uma linguagem capaz de integrar a realidade de sua mitológica e indissolúvel união Depois que Descartes aventou a hipótese de se paração entre mente e corpo para chegar ao penso logo existo cogito ergo sum e logo retornou a indis solúvel reunião do corpo com o espírito como a do piloto com o seu navio o mundo jamais abandonou o pensar em duas instâncias A palavra psicossomática no entanto surgiu quando Heinroth em 1918 procurava estudar as re lações entre mente e corpo criando também a ex pressão somatopsíquica Psicossomática portanto é uma palavra dupla é uma reunião de dois princípios diversos uma uni dade de dois elementos morte e vida masculino e feminino mente e corpo é termo que contem uma díade disjuntiva como as pilhas elétricas com sua unidade constituída por dois polos o positivo e o ne gativo inseparáveis sob pena de deixar de ser o que é Cientificamente há formas metodológicas diversas para estudar o psíquico e o físico e tentativas de estu dar em conjunto as duas tendências O materialismo onde tudo se explicaria pela fisiologia o mentalismo aceitando que é o psíquico que faz a fisiologia e o dualismo separando em instâncias obedientes a re gras e mecanismos diversos que interagem no fisioló gico e psicológico É através da crença da fé que as verificações científicas renovam ad eternum ad infinitum os mo tivos para um pio acreditar em cada uma das formas de explicar a verdade dessa inseparável díade que é corpo e mente Foi com a medicina psicossomática que a psi canálise se introduziu na medicina geral ou especia lizada Em especial nos serviços hospitalares diante da demanda de tratamento psicológico em indivíduos acometidos por doenças crônicas ou agudas A neces sidade de cuidar integralmente das pessoas teve um longo caminho para se impor Assinalese Groddeck 18661934 amigo de Freud que tratava no sanatório de BadenBaden os casos de doenças para as quais a medicina não tinha solução cuidando do orgânico tinha como aforismo natura sanat medicus curat a natureza cura o médi co trata Alexander 18911964 húngaro que ten do estudado na Alemanha e migrado para os EEUU fundando o Chicago Institute for Psicanalisis estudou a úlcera gástrica em suas vertentes orgânica e psí quica considerandoa uma moléstia psicossomática Marie Langer 19101987 nasceu em Viena e mili tou na Argentina onde fundou com Angel Garma Celes Cárcamo e PichonRivière a Sociedade Argen tina de Psicanálise Marie Langrer tinha uma concep ção unitária do corpo biológico e do corpo psíquico fundada na psicossomática Alexander Mitscherlich 19081982 alemão médico psicanalista fundou a revista Psiche foi diretor da clínica psicossomática de Heidelberg em 1950 Mitscherlich postulava a li gação entre o ser e o soma teve laços estreitos com a escola filosófica de Frankfurt Citemos ainda Karen Horney 18851950 Helenne Deutsch 18841982 Melanie Klein 18821960 E Salerno na Argentina e Helene Michelwolfrong na França ambos a partir dos anos de 1950 Entre nós assinalese como cul tores da medicina psicossomática Marcondes Peres trello Capisano Mello Filho entre outros Nos dias de hoje há inúmeras circunstancias que exigem uma constante adaptação das formas terapêuticas de comunicação para um exercício verdadeiramente psicossomático do atendimento às pessoas A globalização e a instantaneidade no âm bito da comunicação mudam temporalmente e estru turalmente as formas de relacionamento que acima versamos O latim dos intelectuais e dos cientistas dos séculos XVII e XVIII que tornava incompreensível a linguagem da medicina e dos médicos para os cha mados leigos e em especial para os pacientes foi abandonado mas a incompreensão se manteve pela adoção de uma linguagem técnica Em nossa época os médicos dificilmente têm vocabulário idêntico e menos ainda a mesma linguagem dos seus clientes Entre outros podemos citar alguns fatores que estão na gênese da distância entre médicos e clien tes Apesar das dificuldades com a linguagem hoje os pacientes suplementam através da Internet em si tes a eles dirigidos a informação obtida de seus mé dicos e buscam muitas vezes uma segunda opinião virtual que confirme ou não a opinião profissional recebida Certamente as informações obtidas dificil mente poderão ser corretamente interpretadas A multiplicação dos exames privilegiando a ideia de que o ser é uma máquina e que a medicina teria por missão restabelecer seu desempenho reduziu o papel terapêutico do encontro médicopaciente Na instituição a atividade voltouse para o exame das papeletas tirando o significado da visita ao leito A tecnologia e a especialização exige uma numerosa equipe de atendimento sem o cuidado de ter um médico que faça a integração que assuma o cliente e com ele se relacione Há uma diluição da responsabilidade e a relação desliza do médico para a instituição O médico passa a ser apenas um repre sentante dessa instituição médica surgindo um re lacionamento entre cliente e instituição Desaparece a relação médicodoente Tampouco existe relação Psicossomaticaindd 543 Psicossomaticaindd 543 05012010 121225 05012010 121225 544 Mello Filho Burd e cols médicodoença Existe apenas uma relação institui ção médicadoença Em outras palavras a relação médico representante da instituição médica com o poder de arauto da ciência médica estabelece uma desigualdade de direito O discurso do cliente é de antemão desacredita do pelo sofrimento e o angustia o que lhe enfraque ce a razão o que lhe tira a capacidade de raciocinar corretamente O doente é tido como incapaz O con sentimento para se tratar é do doente mas o doente não é senão um incapacitado pela doença A prescrição muitas vezes aparece como forma de poder tanto prescrever repouso dieta higiene mudanças de hábitos como indicar a hospitaliza ção as intervenções cirúrgicas e os medicamentos mais que prerrogativas da profissão surgem como instrumento disfarçado de dominação O poder da substância do farmacon difundido pelo científi co assume por uma forma de fé o poder mágico da droga Psicotrópicos passam a ser o refúgio para os fracassos da medicina intoxicam e aliviam os sinto mas da doen ça não têm compromissos com a cura O remédio não é dispensado mesmo quando se sabe que a cura ocorrerá pela evolução natural da enfer midade Confiança e credulidade é o que se exige do pa ciente em relação ao médico Mas é o feiticeiro que vive da credulidade enquanto o médico se baseia na confiança e confiar é fazer uma escolha e não ter um sentimento pio O médico é crédulo quando crê que o doente confia nele confiança e desconfiança fazem parte da relação médicocliente e por isso é impor tante relacionarse com igualdade A questão dos honorários é das mais graves pois é através dos honorários que se firma o compro misso do médico com o cliente O compromisso passa a ser do intermediário e é possível prescindirse da autoexpressão e da colocação de limites REFERÊNCIAS Andrea Caprara A Franco ALS A Relação PacienteMédico Balint E Norell JS Seis Minutos para o Paciente S Paulo Ma nole 1976 Balint M O Médico o Paciente e a Doença Rio de Janeiro Athe neu 1967 Becker E A Negação da Morte Rio de Janeiro Nova Fronteira 1973 Bellotti E O Descondicionamento da Mulher Petrópolis Vozes 1975 Bensaid N A Consulta Médica Rio de Janeiro Interciência 1977 Bird B Conversando com o Paciente S Paulo Manole 1975 Bleger J Temas de Psicologia B Aires Nueva Visión 1971 Brandão J S Mitologia Grega Vol III e III Ed Vozes Petró polis 1994 Canella P Alterações psicossomáticas no puerpério Femina 86891980 Canella P Esmeraldite em Halbe H Tratado de Ginecologia cap 4 pp 46 49 São Paulo ed Rocca 2000 Canella P Hospital para Pobres Assistência Médica a uma Subes pécie de Homosapiens Médico Moderno 268 1983 Canella P Vitiello N Tratado de Reprodução Humana Rio de Janeiro ed Cultura Médica 1997 Canella P Ginecologia Geriátrica Relacionamento Médicocliente Femina 7272281 1979 Canella P et al Relação Médicocliente em Casos de Quimioterapia Antineoplásica Rev Bras Ginecol Obstet 333 1981 Caprara A Franco A LS A Relação pacientemédico para uma humanização da prática médica Cad Saúde Pública Rio de Ja neiro 153647654 julset 1999 Clavreul J A Ordem Médica Poder e Impotência do Discurso Mé dico São Paulo Ed Brasiliensse 1983 Costa JF Ordem Médica e Norma Familiar Rio de Janeiro Edi ções Graal 1979 Descartes R Meditações In Os Pensadores São Paulo Nova Cultural 1993 Ferrari H Luchina I Luchina N Asistencia Institucional Bue nos Aires Nueva Visión 1979 Ferrari H Luchina I Luchina N La Interconsulta Médico Psicoló gica en el Marco Hospitalario Buenos Aires Nueva Visión 1971 Figlioulo R Queiroz A Mello Filho J Problemas da Relação Médicopaciente no Ambulatório e no Hospital J Bras Med Maio 1976 Focault M Doença Mental E Psicologia Rio De Janeiro Ed Tempo Brasileiro 1975 Fuertes M Lopez Sanchez F Aproximaciones al Estudio de la Sexualidad Salamanca Amaru Ediciones 1997 Gadamer H G Dove si Nasconde la Salute Milano Raffaelo Cor tina Editore 1994 Japiassu H A Interdisciplinaridade e a Patologia do Saber Rio de Janeiro Imago 1976 Langer M Maternidad y Sexo Buenos Aires Paidós 1964 Laplanche D Tamen P Vocabulário de Psicanálise Martins Fon tes São Paulo 2000 Maldonado MT O Médico e a Cliente Próxima da Morte Femina 6 12 1978 Maldonado MT Psicologia da Gravidez Parto e Puerpério São Paulo ed Saraiva 1996 Maldonado MT Algumas Reflexões Sobre o Relacionamento Médi cocliente em Casos de Câncer Femina 54 1977 Maldonado MT O Significado do Pagamento honorários na Re lação Médicocliente Femina 5 7 1977 Maldonado MT Canella P A Relação MédicoCliente em Gineco logia e Obstetrícia São Paulo ed Rocca 1988 esgotado Maldonado MT Canella P Recursos de Relacionamento Para Profissionais de Saúde Rio de Janeiro Reichmann Affonso Edi tores 2003 Maldonado MT Curi Hallal R El grupo de reflexión acerca de la tarea asistencial en una unidad de obstetricia Anais do III En Psicossomaticaindd 544 Psicossomaticaindd 544 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 545 cuentro ArgentinoBrasileño de Medicina Psicosomática Buenos Aires setembro de 1981 Maldonado MT Nahoum JC Dickstein J Nós Estamos Grávi dos São Paulo ed Saraiva 1997 Martins C Relação MédicoPaciente Porto Alegre Artmed 1979 Mello Filho J Concepção Psicossomática Visão Atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1979 Mello Filho J et al Psicossomática Hoje Porto Alegre Artes Me dicas 1992 Moreira AM Teoria a Prática da Relação MédicoPaciente Belo Horizonte Interlivros 1979 Perestrello D A Medicina da Pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1982 PichonRiviere E O Processo Grupal São Paulo Livraria Martins Fontes 1983 Ribeiro da Silva MG Prática Médica Dominação a Submissão Rio de Janeiro Zahar 1976 Ross E K On Children and Death Nova Iorque Collier Books 1983 Ross E K Sobre a Morte e o Morrer São Paulo Edart 1969 Ross EK Morte Estágio Final da Evolução Rio de Janeiro Re cord 1975 Roudinesco E Plon M Dicionário de Psicanálise Jorge Zahar ed Rio de Janeiro 1998 Saussure F Curso de Linguística Geral São Paulo Ed Cultrix sem data Winnicott D O Ambiente e os Processos de Maturação Porto Ale gre Artmed 1983 httppsicopatologiabrtripodcompsicossomaticahtm httpwwwmedicinacomplementarcombrestrategiapsicosso maticaasp wwwscielobrpdfpev11n1v11n1a05pdf Psicossomaticaindd 545 Psicossomaticaindd 545 05012010 121225 05012010 121225 O paciente somatizador é um dos pacientes mais difíceis da prática diária dos profissionais de saúde O diagnóstico a classificação nosológica do seu quadro clínico e seu tratamento representam um permanen te desafio Fortes et al 2005 Tófoli 2004 2006a 2006b Na verdade a extensão desse desafio é muito mais ampla Ignorando a separação entre o físico e o psíquico tão cara ao modelo biomédico tradicio nal eminentemente cartesiano esse paciente traz um profundo desconforto para a maioria dos profis sionais que não se sentindo habilitados a transitar nessa interface entre o somático e o emocional ten dem a ignorálo ou até mesmo rejeitálo Vistos como pacientesproblema recebem diversas alcunhas piti peripaque poliqueixosos e são tratados não ape nas inadequadamente mas muitas vezes de forma agressiva e desrespeitosa São considerados utiliza dores inadequados do tempo dos profissionais pois pela ótica do modelo anatomoclínico tradicional que embasa as práticas em saúde não são considerados verdadeiros doentes Fortes et al2005 Tófoli 2004 2006a 2006b Taylor 1984 embora estejam entre os pacientes que mais consomem serviços de saúde podendo evoluir de forma crônica com prognóstico reservado grande comprometimento funcional e alto custo assistencial Taylor 1984 Smith et al 1986 1995 Mas quem é esse paciente o somatizador O que significa somatizacão Será que estamos diante de um processo patológico específico Como entende mos hoje esse processo denominado somatizacão A definição de somatizacão tem se modificado profundamente nos últimos 30 anos e ainda não há um consenso sobre sua caracterização o que dificulta em muito as pesquisas sobre esse fenômeno e seus mecanismos Na verdade é importante falarmos em um fenômeno de somatização pois se trata de um processo onde diversos fatores e mecanismos intera gem para o surgimento de queixas físicas trazidas aos profissionais como sintomas e que não apresentam alterações anatomopatológicas que as justifiquem É um fenômeno extremamente abrangente e perpassa desde as formas culturalmente aceitas de manifesta ção de sofrimento emocional até mecanismos psico patológicos ainda não totalmente conhecidos levando a quadros clínicos crônicos e com alto comprometi mento funcional e social desses pacientes Para melhor entender esse processo e seus meca nismos nosso capítulo será dividido em três partes Definição através do estudo das definições histó ricas do processo de somatização delimitaremos o que hoje é descrito como sintomas somáticos sem explicação médica SEM o nosso objeto de estudo Gênese após relatarmos os diversos fatores asso ciados ao surgimento de queixas somáticas sem explicação médica nos aprofundaremos na dis cussão dos principais fatores associados à presen ça dessas queixas Alterações fisiopatológicas um breve relato sobre as alterações funcionais associadas à presença de somatizações crônicas e graves DEFINIÇÃO O ESTADO DA ARTE DA NOSSA COMPREENSÃO DO QUE E SOMATIZAÇÃO HOJE O primeiro grande desafio reside na própria de finição do que é somatização Inicialmente cunhado por Stekel na primeira metade do século XX o termo somatização tem sido usado desde então de forma muito variada e impre cisa um dos principais motivos de existirem tantas formas diferentes de entender esse processo Assim sendo como se pode indagar O que é a somatizacão Quando está presente o fenômeno da somatiza cão 45 SOMATIZAÇÃO HOJE Sandra Lucia Correia Lima Fortes Luis Fernando Farah Tófoli Cristina Moriz de Aragão Baptista Psicossomaticaindd 546 Psicossomaticaindd 546 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 547 a A Somatização foi originalmente e para muitos ainda o é considerada um mecanismo de in terferência da mente no corpo Nessa visão o termo somatizacão está associado à Medicina Psicossomática que desde a primeira metade do século XX Mello Filho 1994a b sinalizou a in teração entre sofrimento emocional e o adoeci mento físico como sendo muito mais íntima do que fazia crer o modelo biomédico dominante naquele momento Alexander 1950 na primeira metade do século XX estudou as doenças classi camente definidas como as doenças psicossomá ticas em que essa interação seria especialmente forte como por exemplo a doença coronariana ou a úlcera péptica Ainda hoje muitos profissio nais consideram essas patologias como forma de somatização11 Devese destacar porém que nos casos dessas doenças existem lesões alterações anatomoclínicas bem conhecidas o que distingue esses pacientes da queles que na atualidade considerados somatizado res nos quais essas alterações não são verificadas Com a evolução histórica e transformação dos modelos de compreensão do processo de saúde e do ença incluindo a superação das teorias etiológicas li neares e unicausais e a própria visão cartesiana em si Engel 1980 o conceito de doenças psicossomáticas no sentido daquelas onde haveria um componente emocional na determinação da doença é superado O atual nível de desenvolvimento de nossos conhe cimentos demonstra que considerando os modelos multicausais e integrais que atualmente norteiam as pesquisas em saúde todas as doenças de uma forma ou de outra em maior ou menor grau são também determinadas pelos aspectos psicológicos e sociais envolvidos na sua evolução Assim sendo dentro de um modelo integral não haveria doença que não fos se psicossomática Brasil e Furlanetto 1997 Ao se universalizar a utilização dessa nova concepção o conceito de doença psicossomática perde seu senti do específico e se torna obsoleto Hoje se considera que toda doença é biopsicosocial A partir dessa cons tatação e da mudança de modelo o termo somati zação perde seu caráter genérico de influência da mente sobre o corpo e adquire uma especificidade Passamos então a falar de sintomas físicos onde não se verificam mecanismos anatomopatológicos que os justifiquem adequadamente b Porém as queixas somáticas sem substrato anato mopatológico a pedra fundamental do moderno conceito de somatizacão são universais sendo muito frequentes em todas as pessoas Estudos demonstram que a grande maioria das pessoas apresenta alguma queixa física anormal no prazo de uma semana Kellner e Sheffield 1973 mas em geral elas não procuram os médicos ou qual quer outro tipo de cuidado A explicação que é construída para essa sensação somática anormal é fundamental na determinação da forma como esse indivíduo irá lidar com ela Esse padrão explicativo denominado Padrão de Atribuição Kirmayer Young e Robbins 1994 Kirmayer e Ro bbins 1991 Garcia Campos e PerezEcheverria 1996 é fundamental na determinação de bus car ou não tratamento médico Perante qualquer nova sensação somática anormal um indivíduo pode considerála como tendo uma de três dis tintas origens construindo três distintos padrões explicativos Uma origem nas coisas da vida definido com um padrão normalizador Considerar que alguma coisa da rotina normal causou aquela sensação anômala uma noite maldormida causando cansaço comer na rua causando desconforto estomacal o colchão causando dor nas costas Uma origem somática definido como padrão somatizador considerase que o sintoma físi co está sendo causado por alguma alteração orgânica que é considerada como digna de ser objeto de investigação e cuidado e en tendido como representativo de uma doença Nesses mesmos sintomas anteriormente cita dos teríamos como explicação uma anemia para a astenia uma infecção intestinal para a queixa dispéptica ou uma patologia de coluna para a dor lombar Uma origem psicológica definindo um pa drão psicologizador onde o sofrimento emo cional é a origem do sintoma Assim sendo esses mesmos sintomas seriam então explica dos como depressão sendo a causa da fadiga ansiedade a origem da dor de estomago ou dor lombar pela tensão Essas diferentes explicações levam necessa riamente a diferentes comportamentos de doente e às distintas condutas de busca de cuidado para esse sofrimento Se uma sensação física anormal é inter pretada como indicativa de doença física isso levará a procura de atendimento médico É importante re lembrar que numa parte significativa das pessoas que procuram as unidades de saúde com queixas somáti cas inexplicáveis e nenhum tipo de transtorno asso ciado sejam eles físicos ou psíquicos é detectado c Existe também um grupo significativo de pacien tes onde é muito grande a presença de queixas Psicossomaticaindd 547 Psicossomaticaindd 547 05012010 121226 05012010 121226 548 Mello Filho Burd e cols somáticas SEM que são os portadores de quadros ansiosos depressivos ou simplesmente pacientes que estejam submetidos a situações de estresse Exatamente pela compreensão abrangente que dispomos hoje podemos entender que o corpo so fre quando a mente sofre Uma parte significativa das queixas somáticas inespecíficas apresentadas por pacientes em consultas médicas são queixas físicas relacionadas a transtornos mentais comuns TMC principalmente transtornos ansiosos e de pressivos altamente prevalentes em unidades ge rais de saúde Fortes 2004 e não podem ser con sideradas como patológicas em si pois são parte inseparável de processos de sofrimento psíquico onde a existência de alterações físicas é parte ine rente ao processo e totalmente compreensível já que não existe uma separação mentecorpo A pergunta fundamental nesses casos é porque as pessoas apresentam queixas físicas prioritariamen te nas consultas médicas quando seu sofrimento é emocional É importante lembrar que na maior parte das vezes essas queixas somáticas inexplicáveis estão fortemente associadas à pre sença concomitante de queixas psicológicas For tes 2004 Ring et al 2005 Salman 2004 esses pacientes reconhecem a associação dessas queixas com problemas de ordem emocional e se sentem particularmente gratificados quando os profissionais demonstrando interesse abertura e capacidade de escuta Salmon 2000 2005 Sal mon et al 2006 Ring et al 2004 Dorwick et al 2004 permitem que esses problemas sejam veiculados nas consultas Tornase necessário entendermos que as quei xas médicas inexplicáveis estão relacionadas à busca de cuidado sendo esse comportamento determina do não só pelos fatores individuais do pacientes tal como o padrão de atribuição já citado mas princi palmente nos seus determinantes culturais familia res e sociais incluindose entre eles o próprio sistema de saúde e seus profissionais Ou seja essas queixas somáticas inexplicáveis estão muito mais relaciona das à forma como o paciente apresenta seu sofrimen to para o profissional do que se constituem como doença específica Os conceitos de illness e disease originados da Antropologia Médica explicam bem esse processo Formulado por Eisenberg 1977 e utilizado por Hel mam 2005 em particular esse conceito distingue doença disease ou disfunções que ocorrem no or ganismo de adoecimento illness ou a experiência subjetiva da doença e suas repercussões nas relações sociais Considerase que o profissional tem uma con cepção do processo de adoecimento definido como disease doença que é fundamentalmente centra do nas alterações anatomopatológicas presentes nes te processo Essa doença é o foco de sua atenção e de suas intervenções Porém o paciente tem outra concepção e vivência desse mesmo processo que é de finido como illness aqui traduzido como adoecimen to e que envolve não só suas representações pessoais e suas reações emocionais em relação ao que sente mas também aos de seu grupo social incluindo a for ma como o seu sofrimento é reconhecido como legí timo podendo ainda ser visto como uma resposta adaptativa tanto psicológica como cultural A dife rença entre os dois conceitos resume grande parte das dificuldades nas relações médicopaciente Enquanto o primeiro se refere ao processo fisiopatológico que o modelo biomédico reconhece como o problema a ser tratado e que embasa a prática médica tradicional o segundo engloba o complexo processo do adoecer envolvendo aspectos relacionados à subjetividade do sujeito que adoece às concepções sociais e culturais relacionadas ao papel de doente e à determinação da saúde e da doença Superar essa diferença é funda mental para que se estabeleça um vínculo terapêutico realmente eficaz Afinal mesmo que a tradição médi ca ainda siga infelizmente se referindo aos pacientes como o fígado do leito 10 nosso objeto de cuidado é a pessoa que adoeceu e não sua doença A forma como o sofrimento causa primeira da busca de cuidado e é reconhecido validado e ampa rado é parte integrante do processo do adoecer As queixas físicas em geral são mais reconhecidas como legítimas tanto pelos familiares quanto pelos profis sionais de saúde enquanto queixas psicológicas não encontram o mesmo grau de aceitação Assim sendo podemos considerar que a somati zacão é uma forma de comunicação do sofrimento de nossos pacientes ou seja somatizacão é uma forma de illness d Por fim resta a pergunta fundamental de nosso capítulo a somatizacão nunca será fenômeno pa tológico em si Como então explicar os transtornos definidos após a terceira edição do manual diag nóstico e estatístico da American Psychiatric As sociation DSMIIInas categorias dos transtornos somatoformes e dos transtornos dissociativoscon versivos Ou seja em que circunstâncias a somati zação pode ser considerado um processo patológi co específico uma doença um tipo de disease Dentro de uma perspectiva histórica o termo somatização passa a partir da DSMIII 1980 que Psicossomaticaindd 548 Psicossomaticaindd 548 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 549 reestrutura a classificação nosológica psiquiátrica a se referir a um grupo de transtornos mentais trans tornos somatoformes e dissociativos que tem como sintoma central a presença de queixas somáticas inexplicáveis de caráter crônico com grande com prometimento funcional e social associadas a uma dificuldade de perceber sua relação com sofrimento emocional e muitas vezes acompanhada de ganhos secundários no processo do adoecer Dentre eles des tacase como seu principal subtipo o transtorno de somatização Presente em uma parcela pequena de pacientes sendo considerado equivalente a dita Sín drome de Briquet esse transtorno tem um curso crô nico e comprometimento funcional grave trazendo uma perspectiva completamente diferente da soma tização frequente e proporcionalmente mais branda que se apresenta na Atenção Primária a saúde por exemplo Mas é interessante destacar que desde o ano de 1980 quando a neurose histérica foi retirada das classificações nenhuma das classificações posteriores DSMIIIR 1987 DSMIV1994 CID101993 CID 10AP 1998 chegou a um consenso sobre o diag nóstico adequado desses pacientes Devido a essa inadequação das classificações as atuais categorias nosológicas da CID10 e DSMIV relacionadas à so matizacão crônica transtornos somatoformes e dis sociativos não tem contribuído para maiores escla recimentos desses quadros Hoje mais do que nunca com o eminente ad vento de novas versões das classificações psiquiátri cas DSMV e CID11 onde a própria permanência da categoria nosológica dos transtornos somatofor mes incluindo o transtorno de somatização se encon tra ameaçada a discussão sobre se existe ou não um processo psicopatológico específico que caracterize esses pacientes somatizadores crônicos é fundamen tal e tem sido tema de diversos artigos e encontros Sharpe e Carson 2001 Mayou et al 2005 Entre os problemas citados envolvendo essas ca tegorias diagnósticas e a caracterização dos pacientes somatizadores crônicos nas categorias dos transtor nos dissociativos e somatoformes os estudos mun diais têm verificado que A categoria nosológica que é o modelo dentre os transtornos somatoformes o transtorno de soma tizacão é uma categoria raramente encontrada As categorias mais comumente encontradas são as categorias residuais transtornos somatoforme in diferenciado ou maldefinidas transtorno da dor somatoforme Fortes 2004 Isaack et al 1995 Assim sendo com qual o conceito de somatiza cão iremos trabalhar A definição de somatização que iremos utilizar se baseia em Lipowsky 1988 Consideramos que o termo somatização se refere à presença de sintomas físicos sem explicação médica estes sintomas não apresentam substrato anato moclínico conhecido que os justifiquem verificase que estão associados a sofrimento emocional e até mesmo a transtornos mentais mas muitas vezes essa associação não é reconhe cida pelo paciente e levam a busca de tratamento médico com uma demanda de cuidado para sua solução Com toda a polêmica envolvendo o fenômeno da somatizacão tem havido uma tendência na litera tura científica sobre somatização pela utilização da definição presente na CID10AP atenção primária para se referir aos pacientes somatizadores Nesta eles são nomeados como portadores de sintomas físi cos inexplicáveis em inglês MUS medically unex plained symptoms Historicamente tem havido uma ênfase no sintoma físico SEM explicação médica como ponto nuclear para a identificação da presença de somatização Esse é o sintoma central ao redor do qual se organizam as classificações Assim sendo a ausência de lesões anatomoclínicas que justifiquem as queixas é o indicador utilizado pelo médico para a classificação de um paciente como portador de soma tização Porem podemos questionar que Como considerar como necessariamente patológi co esse fenômeno se queixas físicas sem explicação médica estão normalmente presentes no dia a dia das pessoas Assim sendo apresentar queixas somáticas sem substrato anatomopatológico pode ser considerado um processo normal Onde esta nesse caso o processo patológico a doença Se queixas somáticas são parte inerente dos transtornos mentais comuns geralmente quadros ansiosos ou depressivos quando eles devem ser considerados como justificativa para que outra categoria nosológica indicativa de outro proces so psicopatológico específico deva ser considera da na sua classificação Além dessas dificuldades inerentes a caracteri zação desses pacientes como portadores de um pro cesso patológico específico há outras dificuldades a considerar quando um sintoma é considerado sem explicação médica o que isso pode significar Pode ser um exame mal feito onde é o sintoma é inexplicável porque o paciente não foi adequada mente atendido e tratado Psicossomaticaindd 549 Psicossomaticaindd 549 05012010 121226 05012010 121226 550 Mello Filho Burd e cols Pode ser uma dificuldade na relação médicopa ciente em que o médico e o paciente não conse guem chegar a uma explicação em comum para aquele sintoma Essa dificuldade pode ser causada pela relação pelo sistema de saúde por diferenças culturais entre as duas partes dessa relação Pode ser que esses sintomas mesmo sendo físicos possam ser causados por transtornos mentais e aí o termo explicação médica se refere mais dire tamente a fato de que a visão biomédica não con segue elaborar essa junção físicomental por ser embasada em um modelo científico cartesiano E finalmente podem esses sintomas em alguma circunstância ser causados por mecanismos pato lógicos específicos que ainda não conhecemos de forma adequada É fundamental esclarecer que existe um ponto central em nossa compreensão do fenômeno de so matização Consideramos que o núcleo central do conceito de somatização enquanto fenômeno patológico não esta relacionado apenas à presença de sintomas físi cos medicamente inexplicáveis mas no padrão expli cativo que esses pacientes apresentam3841 para estes sintomas e que se relaciona a um padrão de busca de atendimento médico para essas queixas poden do ou não evoluir para um comportamento anormal de doente Ou seja os sintomas físicos inexplicáveis representam um padrão de adoecimento uma forma de illness Referemse antes de tudo á forma como o paciente percebe suas alterações corporais e busca ser cuidado alterações essas que estão relacionadas à presença de sofrimento emocional e até mesmo a um transtorno mental Porem os autores que vem se dedicando ao estu do desses pacientes desde a década de 1980 concor dam que estes não se trata de um grupo uniforme de pacientes existindo subgrupos distintos dentre eles Essa constatação reforça a idéia de que o processo de somatizacão ocorre de forma contínua na popu lação Henningsen et al 2005 e que se relaciona as distintas formas como o sofrimento emocional incluindo os transtornos mentais propriamente dito é apresentado nas consultas médicas Consideramos a partir desses autores Kirmayer 2004 Goldberg 1992 GarciaCampayo 1998 que existem as seguin tes formas de apresentação do sofrimento emocional na busca de cuidado Pacientes psicologizadores aqueles que apresen tam queixas psicológicas na consulta geralmente associados a diagnóstico mais rápido do proble ma por parte dos profissionais Pacientes somatizadores aqueles que apresentam queixas somáticas nas consultas para as quais não se verifica a presença de doenças físicas que as justifiquem adequadamente São divididos em dois principais subgrupos Os opcionais ou de apresentação geralmente agudos muitas vezes sem transtornos psiqui átricos associados ou com transtornos ansio sos ou depressivos reativos ou de inicio recen te e curta duração Facilmente reconhecem a origem psíquica de suas queixas quando o so frimento emocional é abordado na consulta têm pouca adesão ao papel de doente com praticamente nenhum ganho secundário esta belecido e pequeno comprometimento social e funcional Os verdadeiros embora também seja alta a prevalência de transtornos ansiosos e depres sivos nesses pacientes geralmente ocorrem em comorbidade com transtornos somato formes e dissociativos CID 10 e DSMIV ou nas síndromes ditas funcionais Sharpe 2001 Brasil et al 2005 que incluem a fi bromialgia colon irritável e fadiga crônica alem de outras Esses pacientes apresentam grande resistência a admitir uma correlação entre suas queixas e seu sofrimento psíquico e demonstram uma grande adesão ao papel de doente Essa negação dos problemas emo cionais que estão associados às queixas físicas se manifesta também através de uma ausên cia de queixas psicológicas Apesar de muitas vezes esses pacientes apresentarem sintomas compatíveis com transtornos mentais eles ne gam veementemente a presença de qualquer queixa no âmbito psicológico Esses pacientes representam o oposto dos pacientes psicolo gizadores Nos somatizadores verdadeiros as queixas somáticas inespecíficas se apresentam com um caráter opositivo às queixas psicoló gicas esses pacientes dificilmente aceitam a existência de uma associação entre as queixas físicas e o sofrimento emocional Esse é um padrão característico desses pacientes identi ficado desde os estudos clássicos sobre soma tização realizados ainda sob a ótica da Psica nálise e da Psicossomática McDougall 1983 Marty e de Múzan 1973 1994 Tófoli et al 2007 Além disso apresentam curso crônico com grande comprometimento funcional so cial e laborativo Assim sendo uma segunda forma de diferenciar esses subgrupos pode ser pelo seu curso prognóstico e evolução onde eles podem didaticamente ser divi didos em somatizadores agudos e crônicos com as seguintes características Psicossomaticaindd 550 Psicossomaticaindd 550 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 551 Características Somatizadores agudos Somatizadores crônicos Sintomas médicos inexplicáveis Recentes Crônicos Percepção do sofrimento psíquico Identificado pelo paciente Negado pelo paciente Associação com transtornos mentais Muitas vezes apenas existe um grau de Alta comorbidade com transtornos sofrimento psíquico sem caracterização ansiosos e depressivos porem sintomas específica de um transtorno mental não correspondem ao quadro clínico embora também possa ser uma forma dessas síndromes Presença de de apresentação de transtornos Transtornos dissociativos somatoformes ansiosos e depressivos ou de síndromes funcionais Relação com o profissional clínico Na consulta demonstra que sofrimento Não refere sofrimento emocional e emocional esta presente mas isso reforça inúmeras vezes como é única costuma ser ignorado Presença de a sua doença queixas psicológicas associadas Papel de doente Sem apresentar adesão ao Aderido ao papel de doente papel de doente Historia familiar Família atua como fonte de um padrão Historia familiar de reforço e valorização cultural de comunicação de sofrimento excessiva da doença como fonte de através de queixas físicas atenção e carinho Ausência de atenção em situações normais Historia de abuso sexual e violência física Geralmente ausente Geralmente presente Reação da família ao adoecer Em geral apoio e carinho Irritação abandono e ignorância das queixas físicas Para melhor organizar nossa compreensão desses quadros sintomáticos podemos caracterizálos não ape nas pela presença de queixas somáticas medicamente inexplicáveis mas também segundo seu padrão de atri buição seu curso e grau de comprometimento funcio nal e social Na Figura 451 correlacionamos essa divi são com as atuais categorias nosológicas englobando os distintos tipos de transtornos que nossos pacientes po dem apresentar sem nos deter nos detalhes envolven do essas classificações cujas controvérsias já citamos e podem ser acompanhadas na literatura GÊNESE Na busca de entender o fenômeno da somatiza cão sua gênese e sua evolução alguns fatores foram identificados como estando a ele associado desempe nhando papel importante na definição de seu curso agudo ou crônico e de sua gravidade comprometi mento funcional Embora diferentes entre si os sub tipos de somatizadores compartilham esses fatores de risco que se referem a três áreas Tófoli et al 2007 Fatores individuais Sexo femino Comportamento anormal de adoecimento adesão ao papel de doente com ganhos se cundários Amplificação de sensações somáticas Atribuição somática de sensações físicas anor mais Autoconceito de pessoa fraca e incapaz Dificuldade de elaboração verbal do sofrimen to psíquico Transtornos mentais comuns ansiedadede pressão História pessoal de adoecimento físico em es pecial na infância História pessoal de abuso físico e sexual em especial na infância Fatores familiares coletivos História familiar de doenças graves com ga nho de atenção diferenciada por esse motivo História familiar de somatizaçãotranstornos mentais comuns Atribuição somática de sensações físicas anor mais pelo grupo familiar e social Estruturas sociais que favorecem situações de submissão e desempoderamento Culturas latinoamericanas Fatores ligados aos serviços de saúde Condutas excessivamente centradas no adoe cimento físico Falta de manejo terapêutico para queixas físi cas inexplicáveis Diálogo médico sem sensibilidade psicosocial Psicossomaticaindd 551 Psicossomaticaindd 551 05012010 121226 05012010 121226 552 Mello Filho Burd e cols FIGURA 451 Diagrama de classificação das apresentações dos sintomas físicos sem explicação médica segundo dois eixos curso incapacitação e atribuição etiológica ATRIBUIÇÃO PSICOLÓGICA CRONICIDADE INCAPACITAÇÃO ATRIBUIÇÃO SOMÁTICA CURSO AGUDO AUTOLIMITADO Transtornos ansiosos e depressivos agudos com sin tomas físicos proeminentes Reação ao estresse e trans tornos de ajustamento Transtornos conversivos e dissociativos agudos e com estressores bem delimitados Queixas somáticas ineplicá veis agudas e inespecíficas Transtornos ansiosos e transtornos depressivos crônicos com sintomas físicos proeminentes Transtornos conversivos e dissociativos crônicos e com estressores mal definidos Transtornos somatoformes clássicos Síndromes funcionais Sistema de saúde pouco organizado com vín culos com o paciente frouxos ou inexistentes Perante essa amplitude de fatores como anali sar a determinação da somatização frequente e até de certa forma normal quais seriam os fatores as sociados à cronificação e a instalação de transtornos somatoformes dissociativos ou de alguma das sín dromes funcionais Dentro dessa visão destacamos os seguintes fa tores como desempenhando papel fundamental nesse processo FATORES FAMILIARES E COLETIVOS O papel da cultura Um dos pontos controversos acerca do proces so de somatização referese à possível determinação cultural sobre a forma de apresentação de transtor nos mentais em unidades gerais de saúde Em estudo sobre neurastenia Kleinman 1986 observou que na cultura chinesa pacientes com transtornos mentais apresentam queixas físicas em vez de psicológicas Outros estudos monstram que em culturas onde re presentações e modelos de compreensão do processo de adoecer fogem ao cartesiano com marcante divi são entre mente e corpo a presença de queixas somá ticas sem justificativa médica é bastante alta Estudo realizado nos Estados Unidos na década de 1980 sobre prevalência e incidência de transtor nos mentais é exemplo das variações culturais em um mesmo ambiente Nas populações estudadas pre valeciam de transtornos de somatização e somatiza ção abrangente em populações de origem hispânica Escobar 1978 Escobar et al1987 Um estudo multicêntrico sobre problemas psicológicos em uni dades gerais de saúde realizado pela OMS em 15 centros em diversas partes do mundo Üstun e Sar torius 1995 revelou maiores índices de Transtornos de Somatização em populações latino americanas Kleinman 1981 cita um estudo feito em Hong Kong onde os autores afirmam que para a maioria Psicossomaticaindd 552 Psicossomaticaindd 552 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 553 da classe trabalhadora chinesa que usa formas mais concretas de expressão a conceptualização a nível psí quico parece ser por demais abstrata p53 A soma tização enquanto escolha de queixas físicas como forma de manifestar sofrimento é a expressão pre dominante em sociedades não ocidentais Kleinman 1981 Em estudo anterior assinala que na cultura chinesa a harmonia das relações sociais e a manifes tação de sentimentos individuais e autocêntricos são desestimulados Em relação aos padrões de linguagem e suas ex pressões disponíveis para transmissão das emoções verificouse a existência de termos linguísticos que fazem uma ponte entre o somático e o psíquico re ferindose às emoções por meio de seus componentes físicos treme de medo meu coração não aguenta tanta emoção etc Algumas línguas são altamente eficazes na transmissão de sofrimento e ultrapassam a visão cartesiana da sociedade ocidental que separa mente e corpo A transmissão da subjetividade asso ciase a aspectos religiosos num discurso distante da perspectiva ocidental atéia psicológica médica e mo derna Duarte 1986 estudou essa questão em seu li vro sobre o nervoso demonstrando que o sofrimento psíquico é incorporado por categorias não psicológi cas que constituem a dimensão físicomoral Estamos diante de formas distintas de comunicação oriundas da supremacia do individual presente no discurso subjetivo psicológico em detrimento do coletivo cuja valorização é mais evidente entre as classes popula res Nesses grupos o discurso é centrado no concreto e no corporal no externo e no detalhe Esta diferença foi verificada em pesquisas realizadas no Brasil base adas nos estudos de Dumont 1985 que revelaram a presença de diferentes conceitos de indivíduo entre as distintas classes sociais Em estudo comparativo entre a sociedade indiana e a sociedade moderna ocidental Dumont 1985 demonstrou a existência de uma es trutura dita holista em que impera uma ordem base ada na transcendência Papéis sociais são fortemente estabelecidos com vínculos hierárquicos onde o eu não tem valor especial mas é definido a partir de sua relação com o outro e referido a uma totalidade que dá sentido ao indivíduo e o define como pessoa Nas sociedades modernas individualistas materialistas e psiológicas o indivíduo é o centro do mundo Da Mata 1978 infere que na sociedade brasileira coexistem duas concepções de indivíduo e as caracterizou como pessoa versus indivíduo Segundo Duarte 1985 p 135 essa diferença apresentase no universo das classes trabalhadoras urbanas cuja cultura é fundamentalmente hierár quica e holística em oposição e talvez em boa parte por oposição à ideologia individualista que axia a ver são letrada e ideal da cultura moderna p135 Na verdade para essa população o corpo faz parte de uma rede de representações que não é con siderada de forma estanque como ocorre em outras classes sociais mais apegadas a concepções cartesia nas Se o que importa é o corpo para viver e sobre viver nele estará a expressão do sofrimento São pessoas que possuem uma forma de comunicação e uma concepção do mundo e de pessoa que se distin gue grandemente daquela do profissional de saúde Duarte 1986 A família As características e o funcionamento do sistema familiar de origem irão determinar a interpretação das experiências somáticas e o comportamento de busca de ajuda e utilização de serviços médicos Pes quisas têm demonstrado que a tendência a somatizar desenvolvese nos primeiros anos de vida a partir de experiências no ambiente familiar Schicchitano et al 1996 Craig et al 1993 1999 Stuart e Noyes 1999 Noyes e Stuart 2002 Waldinger et al 2006 Minuchin et al 1978 Ciechanowski ei at 2002 Lipowski 1998 já havia assinalado que os sintomas apresentados por crianças somatizadoras são seme lhantes aos apresentados por um outro membro da família Adultos somatizadores costumam preocupar se com os mesmos sintomas físicos que seus pais du rante a infância No campo da teoria sistêmica da família obser vouse que famílias em situação de grande estresse tendem a identificar um dos membros como fraco reforçando seu comportamento de doente o que desvia o foco de atenção alivia a ansiedade mini miza o conflito e permite encontrar algum equilíbrio ServanSchreiber et al 2000 A instabilidade do INDIVÍDUO livre com direito a um espaço próprio igual a todos os outros tem escolhas que são vistas como seus direitos fundamentais tem emoções particu lares a consciência é indivi dual a amizade é básica no relacionamento escolhas faz as regras do mun do onde vive PESSOA presa a totalidade social a qual se vincula de modo necessário complementar aos outros não tem escolha a consciência é social isto é a totalidade tem precedência a amizade é residual e juridicamente definida recebe as regras do mundo onde vive Psicossomaticaindd 553 Psicossomaticaindd 553 05012010 121226 05012010 121226 554 Mello Filho Burd e cols sistema familiar quer pela ausência de coesão por disputas conjugais ou pela vulnerabilidade de suas fronteiras emocionais impede a criança de desen volver mecanismos saudáveis de adaptação Adultos com alto índice de sintomas somáticos em geral cres ceram em famílias disfuncionais que respondiam de forma estereotipada às necessidades de mudança e impediam a emergência de comportamentos alterna tivos mais adequados O comportamento somatizador crônico tem sido também associado a padrões familiares de negli gência indiferença e abuso Em estudo longitudinal Craig e colaboradores 1993 1999 relacionaram a somatização à falta de cuidados parentais e observa ram que pacientes somatizadores apresentavam um histórico de doenças físicas na infância além de do enças crônicas em seus pais Os autores ressaltam que nenhum fator isoladamente pode explicar a presença da somatização porém a relação temporal entre es ses fatores sugere que o adoecimento funciona para a criança como fonte de atenção e cuidados dos pais Efetuase assim o aprendizado de um padrão de res posta somática em vez de emocional para atrair cui dados ou desarmar comportamentos hostis por parte dos membros da família Os trabalhos de Craig e cola boradores 19931999 exploram a trajetória entre as experiências infantis e o comportamento somatizador adulto lançando uma nova luz sobre a ainda obscura relação entre mente e corpo vivência familiar e pro dução de sintomas Terre e Ghiselli 1997examinaram fatores do funcionamento familiar inerentes ao ambiente de ori gem de crianças adolescentes e jovens adultos soma tizadores e observaram que vários deles aumentam a probabiliidade da apresentação de queixas somáticas como ausência de uma estrutura adequada de apoio e falta de cuidados e de condutas previsíveis respon deriam pelo aumento do risco de queixas somáticas entre jovens em distintas etapas do desenvolvimento dificultando a adaptação psicológica prejudicando a autoestima a autorregulação e criando problemas de comportamento Vínculo e sua importância na construção da identidade de somatizador crônico O comportamento somatizador na vida adulta resulta portanto da evolução de estratégias para lidar com as dificuldades da vida Minuchin 1978 Simon et al 1999 que embora inicialmente fossem adaptativas se tornam inadequadas e problemáticas para o indivíduo adulto e suas interações no meio social Do ponto de vista individual o somatizador pode assumir o papel de doente para obter alívio de pressões e expectativas interpessoais e receber aten ção Barsky apud ServanSchreiber et al 2000 afir ma que não existe pílula que cure nem cirurgia que extirpe a necessidade de ser doente Stuart e Noyes 1999 sugerem a existência de dois principais modelos para explicar a etiologia da somatização No primeiro entendese que a criança exposta a modelos de comportamento de doente du rante a infância assume mais tarde um comportamen to similar diante de situações estressantes O segun do modelo descreve o comportamento somatizador como uma distorção na manifestação de perturbação em resposta ao estresse ambiental O comportamento de doente suscita uma resposta por cuidados por par te dos outros desviando a atenção de outras áreas de conflito Em ambos os casos verificamse uma mobi lização familiar em torno daquele que se queixa que obtêm assim atenção e cuidado reforçando a identi dade e o comportamento anormal de doente asso ciado a ganhos secundários e à manipulação do am biente O comportamento anormal de doente como veremos a seguir Villano 1998 Gureje et al 2004 é uma das características marcantes de somatizado res crônicos São muitas vezes mais doentes até do que pacientes portadores de patologias mais graves A somatização inserese num quadro conceitual que explora o impacto das experiências infantis de apego sobre o comportamento interpessoal e o de senvolvimento de um modo de perceber sintomas e comportarse em relação à saúde A teoria de Bowlby sobre apego e somatização segundo Ciechanowski e colaboradores 2002 propõem a existência de um laço entre bebê e cuidador que garante a proteção e a sobrevivência da criança Se a criança recebe res postas inconsistentes pode desenvolver estratégia adaptativa amplificando a reação emocional Esses padrões tornamse modelos cognitivos ou modelos de funcionamento interno de resposta interpessoal que persistem durante a vida Em 1991 Bartholomew e Horowitz apud Wal dinger et al 200660 publicaram um estudo com base no trabalho de Bowlby apresentando um sistema de classificação que inclui quatro estilos de apego prin cipais um estilo seguro e três estilos de apego inseguro desengajado preocupado e temeroso O apego segu ro redundaria em independência e perspectiva positiva de si e dos outros O estilo de apego desprendido dismis sing tem como consequência adultos autossuficientes Nos indivíduos com estilo de apego preocupado que re ceberam cuidados inconsistentes imagem negativa de si como pessoa assim com tendência à dependência em relação aos outros Em contraste indivíduos com um estilo de apego temeroso recordam experiências de rejeição e consequente imagem negativa de si e dos outros ânsia por contato e temor de rejeição Psicossomaticaindd 554 Psicossomaticaindd 554 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 555 Para Stuart e Noyes 1999 2002 esquemas in ternalizados de apego são a ponte de ligação entre situações traumáticas da infância e o desenvolvimen to de uma preocupação somática na vida adulta Para os autores experiências adversas de relacionamento na infância favorecem modelos de apego inseguro ge rando vulnerabilidade à somatização em adultos FORMAS DE INTERAÇÃO DISPONÍVEIS COM O SISTEMA DE SAÚDE O sistema de saúde enquanto gerador de somatizacão A organização dos sistemas de saúde influen cia tanto o encontro clínico modificando as formas através das quais a relação médicopaciente se dá quanto à organização dos serviços de saúde Como veremos a maneira pela qual a interação entre mé dicos e pacientes se dá pode influenciar a geração de sintomas físicos inexplicáveis nos pacientes A evidência mais impactante de que a organi zação dos serviços de saúde é também uma variável nessa equação que está representada em sua totali dade na Figura 452 provém de dados de um estudo multicêntrico internacional realizado pela OMS com o objetivo principal de conhecer as estimativas de prevalência de transtornos mentais em unidades ge rais de saúde na década de 1990 contando inclusive com um centro brasileiro no Rio de Janeiro Nele as 17 unidades de saúde estudadas foram divididas em dois tipos a depender de características de seu fun cionamento As unidades que tendiam a manter um médico pessoal para cada paciente a ter um segui mento coordenado a usar prontuários e a manter um sistema de agendamento foram classificadas como de tipo A As que tendiam a não ter uma organização desse tipo entre eles a unidade brasileira foram classificados como de tipo B Os pacientes entrevista dos nas clínicas de tipo B apresentavam uma chance significativamente mais alta de se queixarem de três ou mais sintomas físicos sem explicação médica con trolando para idade e sexo além de também apresen tarem um risco significativamente maior de apresen tarem quadros somáticos de transtorno depressivo Kirmayer 1984a b Kirmayer e Looper 2006 Gask e Usherwood 2002 Isso nos faz levantar algumas questões Sabe mos pelos livrostexto psiquiátricos que os pacientes somatizadores têm a tendência a trocar de médico doctorshopping Será possível pelo menos na so matização leve que aconteça justamente o inverso ou seja que a troca exagerada de médicos leve ao estabelecimento de sintomas inexplicáveis Poderá ser que as diferenças encontradas nas taxas de soma tização nas diferentes culturas sejam ao menos em parte causadas por diferenças de funcionamento dos sistemas de saúde Qual a influência dos sistemas de saúde e sua organização na geração dos rótulos di vergentes através dos quais as diferentes especialida des médicas reconhecem pacientes com os mesmos sintomas inexplicáveis Tais questionamentos ainda sem resposta le vam à necessidade do delineamento de uma agen da futura de investigação para o elucidamento desta questão A nosso ver num país como o Brasil que dispõe de sistemas de atenção à saúde que diferem conforme o poder aquisitivo do seu usuário SUS x segurosaúde tal tema se coloca ao mesmo tempo como uma demanda a ser esclarecida e um espaço fértil para pesquisas Para o momento basta colocar a reflexão des tinada especialmente a gestores e gerentes dos servi ços de saúde como organizar o cuidado de forma a minimizar a morbidade por sintomas físicos inexpli cáveis Acreditamos que elas estejam no sentido da organização de um sistema de saúde pautado pela integralidade e humanização à saúde O poder somatizador da consulta médica A relação médicopaciente desempenha impor tante papel na forma de como os pacientes apresen tam seu sofrimento e sua relação com o surgimento das queixas somáticas inexplicáveis tem sido estuda da por Kirmayer 1984a b 2006 e por autores in gleses em especial Gask 2002 Dowrick 2005 e Salmon 2005 entre outros Inúmeros trabalhos têm FIGURA 452 Mapa conceitual sobre possíveis vias de influência da orga nização do sistema de saúde na gênese eou manutenção de sintomas físicos inexplicáveis indicadas através das setas em destaque mais espessas Sistema de saúde Cultura Relação médi copaciente Serviços de saúde Sintomas físicos inexplicáveis Psicossomaticaindd 555 Psicossomaticaindd 555 05012010 121226 05012010 121226 556 Mello Filho Burd e cols sido por eles publicados e deles podemos destacar os seguintes aspectos Ao contrario do que se considera empiricamente os pacientes com queixas médicas inexplicáveis apresentavam durante a consulta varias pistas de seu sofrimento psicosociais mas os médicos não as acolhiam e respondiam oferecendo inter venções médicas tradicionais medicações exa mes e encaminhamentos que não tinham sido originalmente solicitadas pelos pacientes Na realidade pacientes com queixas somáticas inexplicáveis buscavam mais suporte emocional de seus médicos do que os outros pacientes e os profissionais respondiam com intervenções somá ticas Ao estudarem as diferenças entre médicos que aceitavam ou não ser treinados para abordar pa cientes com MUS foi verificado que a falta de confiança em suas próprias habilidades em abor dar psicologicamente seus pacientes era uma di ferença fundamental entre os dois grupos Para que modelos explicativos em comum entre médicos e pacientes sejam construídos é neces sário que estes façam sentido para ambos os en volvidos em especial quando envolve explicações normalizadoras de sintomas somáticos inespecífi cos Tranquilizações genéricas exames comple mentares negativos e explicações físicas simplistas não se revelaram eficientes mas sim explicações que envolvessem mecanismos que respondessem as preocupações dos pacientes em geral ligando aspectos físicos e emocionais Assim sendo há fortes indicações que a somati zacão do sofrimento emocional é um fenômeno construído na relação médicopaciente muito mais do que uma alteração básica presente no paciente como tem sido considerado tradicional mente até os dias de hoje Na realidade brasileira também podemos desta car alguns aspectos da prática médica que con tribuem para a gênese e manutenção das quei xas somáticas inexplicáveis tais como os modelos diferentes de compreensão do processo de saúde e doença como se entende o papel do médico na resolução dos problemas e sintomas trazidos pelos pacientes incluindo a legitimação da iden tidade de doente desses pacientes e o princípio da exclusão como base da formação médica na abordagem tradicional dos problemas psicosso ciais trazidos pelos pacientes Helman 2005 aponta que para que uma boa relação médicopaciente seja estabelecida é necessá rio que os dois participantes consigam construir um modelo explicativo comum do processo de doença que se esta abordando Esse é o primeiro problema Enquanto os médicos são formados dentro de uma perspectiva cartesiana estrita onde só existe doença quando se verifica uma lesão anatomopatológica os doentes são autoridades na percepção de suas altera ções corporais e esperam dos profissionais que eles tenham compreensão e explicações para essas alte rações que são as queixas somáticas inexplicáveis Os médicos tendem a referir que não há nada e reagir como se esses sintomas fossem invenções ou mentiras dos pacientes que obviamente se sentem desacredi tados e até agredidos ao perceberem esta avaliação Instalase aqui um conflito fundamental para compre ensão da evolução desses sintomas Sem conseguir que suas alterações corporais sejam devidamente ex plicadas os pacientes reassumem sua peregrinação em busca de um médico que os entenda reforçando o comportamento somatizador Estabelecese um cabo de guerra entre médicos e paciente que inviabiliza a aliança terapêutica o médico dizendo que o paciente não tem nada garantido em seu saber técnico e nos exames o paciente com o conhecimento e o saber de seus sintomas e consciente de que algo está errado consigo mesmo atesta a ineficiência do médico no processo de solucionar esse mal estar Apenas exis tem perdedores nesse conflito Ring et al 2005 Hel man 2005 Outro aspecto importante de problema é que os médicos acreditam que eles devem propor soluções para todos os problemas que seus pacientes trazem e que os pacientes esperam isso deles Assim tendem a evitar abordar problemas psicossociais pois não se sentem aptos a solucionálos pelos seus pacientes Na verdade estudos Ring et al 2005 Helman 2005 demonstram que antes de tudo os pacientes querem compreensão apoio e atenção especialmente quan do conflitos emocionais estão presentes Essa diferença de visão se perpetua com o en tendimento dos profissionais de que para que um sintoma seja entendido como sendo uma somatiza ção toda e qualquer possível causa orgânica deve ser afastada antes Isso reflete uma dificuldade do profissional de lidar diretamente com o sofrimento emocional e os transtornos mentais presentes nestes pacientes que ficam relevados a um segundo plano Tendem a não querer entender que a problemática psicosocial dos seus pacientes também é objeto de seu cuidado o que reforça que as queixas emocionais diretas não sejam adequadamente escutadas e trata das E aumenta a solicitação de exames e pareceres reforçando o padrão somatizador de entendimento dos sintomas Psicossomaticaindd 556 Psicossomaticaindd 556 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 557 Para completar o médico é fundamental para que estes pacientes se sintam autorizados como le gitimamente doentes Essa legitimação e toda a plê iade de ganhos associados familiares socioculturais e até financeiros dependem de que esse profissional endosse essa identificação fato que geralmente es tabelece conflitos importantes na relação médicopa ciente No caso das síndromes funcionais esse aspec to é particularmente importante A presença de um rótulo um diagnóstico e fundamental pois justifica uma série de mudanças de posicionamento social e familiar que acompanham o papel de doente Cho et al 2008 Podemos citar uma síndrome funcional muito em discussão atualmente que é a síndrome do Golfo até hoje pouco esclarecida em sua definição e caracterização mas ponto de honra para dezenas de militares americanos que estiveram no campo de batalha da primeira guerra do Iraque Também a sín drome da fadiga crônica tem sido objeto de batalhas entre pacientes profissionais seguradoras e institui ções médicas na busca de definir a existência e o re conhecimento de uma doença autorizando uma nova identidade para seus portadoresPilowski 1997 FATORES INDIVIDUAIS Do ponto de vista individual dois fatores tem se destacado pela sua associação com a cronificação dos quadros de somatização Comportamento anormal de doente Um importante aspecto relacionado ao desen volvimento de somatizações crônicas é a presença de comportamento anormal de doença conforme for mulado por Pilowsky 1997 Esse autor se baseia na definição de Parson apud Pilowsky 1977 de um papel de doente referindo se as formas consideradas normais como os pacien tes lidam com suas doenças seguindo determinados padrões culturais A sociedade ocidental através da cultura e da família e até mesmo da legislação tam bém constrói esse padrão socialmente aceito visando o fortalecimento do paciente para sua melhor recu peração e que tem as seguintes características Aceitar a posição de doente como indesejável Reconhecer seu compromisso com a melhora Procurar apoio técnico serviços de saúde ade quado para sua melhora Ser considerado como isento de responsabilidade pelo mal que o está acometendo Ser considerado merecedor de ser cuidado Ser liberado das obrigações sociais normais Mas esse comportamento pode também adqui rir feições patológicas com uma adesão a excessiva a esse papel de doente com ganhos secundários Nesse caso observase o que é chamado de comportamento anormal de doente caracterizado por u ma regressão excessiva com vivências de incapacidade solicitações de ser isento de responsabilidades e por uma adesão as queixas físicas que seriam as justificativas para o comportamento de doente apresentado Esse ganho secundário pode estar associado com a resolução de problemas familiares ou profissionais através do fato de se estar doente Pode buscar inclusive compen sações financeiras diretas sob a forma de benefícios previdenciários ou litígios trabalhistas Em geral é um fator grave de cronificação e baixa resposta ao trata mento Um exemplo interessante nesse sentido é o da síndrome da fadiga crônica onde estudos demonstra ram que entre diferenças entre as pacientes com esses sintomas no Brasil e no Reino Unido destacandose o grau de comprometimento funcional e a presença de beneficio previdenciário Pilowski 1997 Por outro lado há que se lembrar que a classificação deste com portamento como anormal é feito por teóricos que são profissionais de saúde É importante recordar que o paciente segue padrões determinados social e indi vidualmente e que eles não têm consciência de que do ponto de vista etnocêntrico do sistema de saúde esteja agindo de forma errada VIVÊNCIAS TRAUMÁTICAS E VERBALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO EMOCIONAL Varias pesquisas demonstram a associação da presença de queixas SEM com historias de vitimiza ção por violência física severa ou abuso sexual em especial se a violência se acompanha de uma ausên cia de reconhecimento de denuncias acerca dessa violência por exemplo em crianças vitimas de vio lência Fatores como maus tratos falta de cuidados ou negligência são considerados precursores impor tantes de uma ampla variedade de sintomas para os quais não existem explicações médicas De acordo com Waldinger e colaboradores 2006 apesar de grande número de pesquisas terem examinado espe cialmente casos de abuso físico e sexual recentemen te observouse que situações de abuso emocional e negligência estão também associadas à somatização Muitos somatizadores cresceram em ambientes fa miliares frios distantes sem apoio e caracterizados por abuso emocional crônico e maus tratos físicos Psicossomaticaindd 557 Psicossomaticaindd 557 05012010 121226 05012010 121226 558 Mello Filho Burd e cols não sendo necessariamente o abuso sexual um pré requisito para o surgimento da somatização Brown Scrag Trimble 2005 Essa associação de vivencias de desempoderamento com processos crônicos de soma tização é particularmente frequente e norteia alguns aspectos das intervenções terapêuticas Ela pode fazer uma ponte entre as explicações psicanalíticas tradicionalmente relacionadas para as somatizações crônicas a partir do conceito de alexi timia sem palavras para as emoções onde esta se ria provocada por uma incapacidade de verbalização do sofrimento emocional Mcdougall 1983 Marty e De Múzan 1994 Tófoli et al 2007 De fato a im possibilidade de verbalizar insatisfação e outros sen timentos negativos se associa a presença de queixas somáticas inexplicáveis embora se relacione muito mais intensamente com questões sociais pacientes vitimas de perseguição política ou crianças abusadas sexualmente de reconhecimento e legitimação dessa insatisfação do que de uma incapacidade individual tal como o déficit simbólico proposto no conceito de alexitimia do paciente SOMATIZAÇÃO ILLNESS mas também DISEA SE A questão das alterações funcionais cerebrais nas somatizações crônicas Recapitulando consideramos que as queixas somáticas inexplicáveis são uma forma de apresen tação de sofrimento emocional incluindo transtor nos mentais ou seja uma forma de manifestação de um processo de adoecimento uma forma de illness Essa enfermidade ou adoecimento pode ser refor çado pelo sistema de saúde e seus profissionais e em alguns casos pode evoluir de forma crônica Nesses casos costumam estar associadas a um comportamen to anormal de doente e a grave comprometimento funcional com alto grau de incapacidade pessoal familiar e social São pacientes graves e de difícil tra tamento Nesses casos crônicos tem sido pesquisada a pos sível existência de mecanismos fisiopatológicos fun cionais específicos sem alterações anatomoclínicas pelos quais essas somatizações crônicas se perpetuam e que podem representar um processo especifico de doença ou seja uma forma de disease Essa é hoje uma das grandes perguntas para aqueles que pesquisam somatização E a resposta ain da esta longe de ser alcançada No processo de am pliação do conhecimento sobre as síndromes funcio nais em separado ou dentro da perspectiva de uma entidade patológica única alguns avanços no conhe cimento desses pacientes foram obtidos e algumas novas evidências têm sido verificadas principalmen te em termos de estudos de neuroimagem Gostarí amos de fechar o capitulo apresentando a discussão sobre os possíveis mecanismos envolvidos nos casos de somatização crônica Não existe um consenso no meio cientifico sobre esses processos e nem mesmo se serão os mesmos para todas as síndromes funcio nais ou para os transtornos somatoformes de dor ou para os quadros envolvendo sintomas conversivos e dissociações histéricas Mas representam o que hoje se pesquisa em termos de pacientes somatizadores crônicos Não podem no entanto serem ainda defi nidos como marcadores biológicos devido à sua baixa confiabilidade Iremos nos deter em estudar como exemplo as alterações encontradas em casos de fibromialgia enquanto exemplo de uma síndrome funcional fre quentemente associada a somatizações crônicas UM EXEMPLO ESTUDANDO FIBROMIALGIA Na fibromialgia como na maioria das síndromes funcionais não se detecta uma lesão específica Mas já se conhecem alterações fisiopatológicas em fun ções e mecanismos neuroquímicos presentes nesses quadros embora não necessariamente exclusivos dessa patologia e que parecem envolver alterações neuroquímicas e processos de hipersensibilização neuronal Diversos autores têm apontado Waitzkin et al 1997 Roelefs 2005 Claws 2001 De Gucht e Maes 2006 Gur et al 2004 Brown 2004 alguns aspectos relativos aos mecanismos fisiopatológicos presentes na fibromialgia Amplificação somática O comportamento soma tizador crônico no adulto está estreitamente vin culado aos processos de amplificação somática e catastrofização das sensações somáticas anormais que são frequentes em todas as pessoas Apresen tam uma preocupação em relação às funções do corpo e a sua integridade física como uma forma de elaboração das sensações somáticas muitas vezes normais que por acaso venham a apresen tar Como já vimos agressões físicas o não aten dimento de necessidades básicas ou negligência produzem indivíduos adultos apreensivos com seus próprios corpos e saúde escrutinandose in cessantemente em busca de sintomas anormais que possam representar ameaça a sua integridade física e sobrevivência Psicossomaticaindd 558 Psicossomaticaindd 558 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 559 Hipersensibilização Essa alteração de regiões do sistema nervosos acompanhase de anormalida des no sistema aferente envolvido no processa mento dos estímulos sensoriais envolvendo uma amplificação da percepção de estímulos patológi cos No caso da fibromialgia parece haver uma diminuição na atividade descendente inibitória córticoespinhal uma maior concentração de substância P no líquor alterações nos níveis de serotonina e noradrenalina e uma hipersensibili dade aos estímulos álgidos Essa hipersensibiliza ção que pode ser a vários tipos de estímulos e diferente em cada uma das síndromes funcionais até agora tem sido considerado o mecanismo pa tológicos central nessas doenças Alteração da atividade do eixo hipotálamo hipofisárioOs resultados de estudos sobre alte rações no funcionamento do eixo hipotálamo hipofisário em pacientes com fibromialgia têm sido contraditórios Mas verificaramse alterações nos níveis de cortisol em diversos estudo Brown 2004 Sharpe e Wessely 2005 que se associam à presença de depressão alterações do sono e fadi ga nesses pacientes Okifuji 2003 Estresse crônico A presença de estressores que agem como desencadeantes é fator importante no surgimento dos quadros de somatização Es ses estressores podem ser de vários tipos físicos imunológicos emocionais ou químicos e envol vem o comprometimento da homeostase natural do organismo Esses fatores estressores tem sido fonte de confusão pois se verifica que esses pa cientes tendem a valorizar estressores somáticos em detrimento a estressores de origem emocio nal muitas vezes de muito maior intensidade Esse processo com a valorização do sofrimento orgânico foi o ocorrido nos primórdios dos es tudos sobre síndrome da fadiga crônica em que infecções virais muitas vezes nem confirmadas por exames posteriormente eram valorizadas e associadas ao início dos sintomas Autoimagem de pessoa fraca e incapaz Vários autores têm apontado a importância da forma como os pacientes lidam com fatores estressantes principalmente crônicos na etiologia das síndro mes funcionais Apresentando sintomas que são muito frequentes na população geral esses pa cientes parecem se distinguirem exatamente pela forma como lidam com problemas e dificuldades da vida sentindose incapazes de lutar e supe rar as dificuldades muitas vezes mais corriqueiras da vida Aqueles que apresentam mecanismos de enfrentamento passivos ou evitativos tendem a apresentar piores evoluções e prognósticos mais reservados Maior confiança em si e posturas mais proativas estão associadas a melhor resposta a tratamento e menor comprometimento da fun cionalidade e e qualidade de vida Brown 2004 Sharpe e Wessely 2005Merskey e Mai 2005 Exposição anterior a estressores7985 tornando es ses indivíduos mais suscetíveis de desenvolvimen to da doença As alterações envolvidas nesse pro cesso estão associadas à resposta do organismo a estresses crônicos porém algumas das caracterís ticas desse processo devem ser bem compreendi das para que possamos entender os mecanismos deste processo a O estresse crônico representa uma agressão para a qual estamos menos bem preparados ao que parece somos mais aptos a enfrentar feras do que engarrafamentos b O estressor terá tanto maior impacto negativo quanto mais forte for sua associação com uma sensação impossibilidade de superação não havendo escapatória nem fonte de suporte para enfrentálo c Estressores precoces na vida têm um impacto permanente e profundo na resposta biológi ca ao estresse que será instalada ao longo da vida Esse mecanismo pode explicar a associa ção existente entre transtornos somatoformes e síndromes funcionais e relatos de abuso fí sicos e sexuais na infância Clauws 2001 De Gucht e Maes 2006 Gur et al 2004 Brown 2004 Sharpe e Wessely 2005 Merskey e Mai 2005 Esses são alguns dos processos que se sabe hoje estarem envolvidos nas somatizações crônicas Pou co ainda se conhece de seu desenvolvimento E não muito mais sobre como tratar e transformar essa re alidade CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da última década apoiado no desen volvimento de exames complementares de sofisticada tecnologia o conhecimento sobre o funcionamento cerebral avançou muito permitindo entender e ali viar o sofrimento mental de muitos pacientes O mo delo biomédico base tradicional da Medicina ate o século XX em muito contribuiu para esses avanços Por outro lado o impacto das doenças crônicas na saúde nesse terceiro milênio despertou a percep ção para a importância dos aspectos psicossociais no Psicossomaticaindd 559 Psicossomaticaindd 559 05012010 121226 05012010 121226 560 Mello Filho Burd e cols processo de adoecimento ampliando a prática clíni ca que hoje considera os hábitos as relações e os eventos de vida de seus pacientes como parte inte grante de sua ação terapêutica Nesse encontro ressurge a questão da soma tização E se coloca a grande pergunta atual nesse campo o que representam as queixas somáticas sem explicação médica E como podemos ajudar esses pa cientes Se puderem ser superadas as dualidades mente corpo se o espaço clínico terapêutico puder incluir o Cuidar do sofrimento psíquico se o apoio e o empo deramento de nossos pacientes que mais se conside ram incapazes doentes e abandonados forem parte habitual do Cuidado se os problemas familiares e sociais de nossos pacientes incluindo o abuso a vio lência e a miséria forem considerados objetivos das intervenções das equipes de saúde talvez os pacien tes poliqueixosos também se transformem Deixarão com certeza de serem enquadrados como os pacien tes mais rejeitados pelos médicos Superadas as divi sões sendo cuidados superarão suas dores e retoma rão uma vida produtiva E muito nos terão ensinado sobre como o sofrimento da mente marca o corpo REFERÊNCIAS Alexander F Psychosomatic Medicine New York Norton 1950 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION DSMIVTR Manual Estatístico de Diagnóstico de Transtornos Mentais 4a Ed Rev Porto Alegre Artes Médicas 2002 Barsky A J Borus J F Functional Somatic Syndromes Ann Intern Med V130 N11 Jun 1 P 91021 1999 Brasil M A Furlanetto LM A Atual Nosologia Psiquiátrica e a sua Adequação ao Hospital Geral 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Mar113190200 Salmon P Voiced but Unheard Agendas Qualitative Analysis of the Psychosocial Cues that Patients with Unexplained Symptoms Pre sent to General Practioners Br J Gen Pract 2004 545001716 Salmon P Humphris GM Ring A Davies JC Dowrick CF Why do Primary Care Physicians Propose Medical Care to Patients with Medically Nunexplained Symptoms A New Method of Se quence Analysis to Test Theories of Patients Pressure Psychosom Med 2006 Jul Aug6845 Salmon P Ring A Dowrick CF Humphris GM What do Ge neral Practice Patients want when hey Present Medically Unex plained Symptoms and why do Their Doctors Feel Pressurized J Psychosom Res 20095 Oct 59425560 Discussion 2612 Schicchitano J Lovell P Pearce R Marley J Pilowsky I Ill ness Behaviour And Somatization In General Practice Journal Of Psychosomatic Research 1996 413 247254 ServanSchreiber D Randall Kolb N Tabas G Somatizing Pa tients Part I Practical Diagnosis In American Family Physician 2000 Vol 61No 4 15 Fevereiro Sharpe M Wessely S 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Psychosomatics Feb 1999 403443 Taylor PE The Boring Patient Can J Psychiatry 29217 2221984 Terre L Ghiselli W A Developmental Perspective On Family Risk Factors In Somatization Journal Of Psychosomatic Research Vol 42 No2Pp197 208 1997C Tófoli L F Investigação Categorial e Dimensional sobre Sintomas Físicos e Síndromes Somatoformes na População Geral 2004 201 P Tese Doutorado Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo São Paulo Tófoli LF Somatização In Benseñor IM Tibério IC Bernik M Marcuz F Dórea EL Lotufo PA Orgs Medicina em Ambula tório 1ª Ed São Paulo Sarvier 2006 P 888897 Tófoli LF Transtornos Somatoformes Síndromes Funcionais e Sintomas Físicos sem Explicação Médica In Lopes AC Amato Neto Vicente Org Tratado de Clínica Médica 1ª Ed São Pau lo Roca 2006 V 2 P 25042512 Tófoli LF Fortes S Gonçalves D Chazan LF Ballester D Somatização e sintomas físicos inexplicáveis para o médico de família e comunidade In Eno Dias de Castro Filho Maria Inez Padula Anderson Org Programa de Atualização em Medicina de Família e Comunidade 1 ed Porto Alegre Artmed 2007 v 2 p956 Üstun TB Sartorius N Mental Illness in General Health Care an International Study John Wiley Sons 1995 Chichesser En gland Villano La Problemas Psicológicos E Morbidade Psiquiátrica Em Serviços De Saúde NãoPsiquiátricos O Ambulatório De Clínica Geral Tese De Doutorado São Paulo Unifesp 1998 Waitzkin H Mangaña H The Black Box In Somatization Unex plained Physical Symptoms Culture And Narratives Of Trauma Soc Sci Med Vol45No6Pp8118251997 Waldinger R J Schulz MS Barsky AJ Ahern D K Mapping The Road From Childhood Trauma To Adult Somatization The Role Of Attachment In Psychosomatic Medicine 2006 68129135 Psicossomaticaindd 562 Psicossomaticaindd 562 05012010 121226 05012010 121226 Como podemos observar na epígrafe o reco nhecimento de que problemas afetivos interferem no desenvolvimento das crianças e são responsáveis por diversas patologias e mesmo por suas mortes é anti go e consolidado A pergunta que se impõe é esta situação foi acompanhada por medidas preventivas e de modifi cação das ações do meio ambiente que responde por cuidar dos bebês Mais de 240 anos depois do texto da epígrafe uma autora como Estela V Welldon 2006 pergunta Por que se deseja ter um filho Escreve em seu ar tigo que a maternidade pode muitas vezes ser usa da inconscientemente como veículo para motivações perversas A mulher sabe inconscientemente que ao se tornar mãe terá total e completo controle do novo ser que estará à sua mercê p 100 Diante desse cenário ainda vigente na contem poraneidade cremos que um século das contribuições pioneiras de Freud acrescidas ao longo do tempo com as de seus seguidores nos forneceram um vasto esto que de conhecimentos dos processos afetivos fisioló gicos e hoje também neurofisiológicos que ocorrem durante o desenvolvimento desde os seus primórdios Por isso acreditamos que muito ainda há a ser feito em benefício de um desenvolvimento psicossomático integrado desde a infância Os pediatras especialmente aqueles que se de dicam ao trabalho em salas de parto são os primeiros profissionais a terem a oportunidade de cuidar do ser humano frágil e desamparado ao nascer Em sua contribuição inicial à psicossomática com o texto A mente e sua relação com o psiquesoma 1949 2000 Winnicott define alguns pontos im portantes O psiquesoma ou psicossoma como foi recentemente traduzido seria o mais perto desde o início da existência do ser humano original É um conceito complexo e desafiador pois concebe um in divíduo total e tira a importância de uma hierarquia ou precedência ou antagonismo entre físico e mental Winnicott diz Eis aqui um corpo sendo que a psique e o soma não devem ser distinguidos um do outro a não ser quanto à direção a partir da qual estivermos olhando É possível olhar para o desenvolvimento do corpo ou da mente p 333 Podemos ver em seu texto a importância que concede ao meioambiente perfeito para que haja um desenvolvimento saudável do psicossoma até que a mente possa acontecer como resposta do bebê às fa lhas gradativas da mãe Winnicott entende o ambiente do útero como bom e o nascimento como uma perturbação excessiva à con tinuidade idem p 337 provavelmente referindose à quebra da homeostasia da existência fetal Os momen tos iniciais do psicossoma são afetados duradouramente nos casos em que ocorra quebra excessiva levando a uma situação que ele chamou de catalogação Esta foi entendida como uma lembrança inconsciente de reação a um trauma o nascimento e Winnicott postula que o ser humano é capaz de recordar tudo o que lhe aconte ce tanto em nível físico quanto emocional Analisando estes conceitos Abram 2000 diz que se a experiência do nascimento for súbita será traumática será arma zenada porém não poderá ser processada A memória está localizada em alguma parte do corpo mas não é integrada como experiência p 191192 Nos anos de 1960 e 1970 o obstetra francês Frédérick Leboyer trouxe importantes contribuições referentes à importância da realização de um tipo de nascimento que minimizasse as descontinuidades Preconizava o corte tardio do cordão umbilical e su geria que deixasse o bebê se reencontrar com sua mãe 46 INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA INTERSUBJETIVIDADE E APORTES CONTEMPORÂNEOS Sérgio A Belmont No orfanato as crianças ficam tristes e muitas morrem de tristeza Diário de um bispo espanhol datado de 1760 Psicossomaticaindd 563 Psicossomaticaindd 563 05012010 121227 05012010 121227 564 Mello Filho Burd e cols depois de nascer Estas singelas e profundas suges tões permitiriam na prática que se evitasse as cita das descontinuidades bruscas e a fundação de uma das angústias fundamentais do ser humano ligada à obrigação de respirar para receber oxigênio e sobre viver No parto com corte tardio alguns minutos o bebê poderia ter mantida a homeostasia anterior continuando a receber oxigênio e nutrientes pelo cor dão e ingressando no mundo de diferenças e descon tinuidades de modo suave Além disso trouxe outros importantes conhecimentos trazidos de suas observa ções realizadas na Índia Entre elas a importância do shantala que ao enfatizar a integração propiciada pelo manuseio amoroso do corpo do bebê pode ser equacionado à importância que Winnicott atribuiu ao holding e handling Os cuidados pósnatais serão essenciais na integração psicossomática e nas funda ções de espaço e tempo Leboyer 1998 p 17 dizia poeticamente a esse respeito Fora dentro Eis o mundo dividido em dois Dentro a fome Fora o leite Nasceu O espaço Infelizmente com muitas outras excelentes ideias seus conceitos não puderam ser mantidos e integrados à evolução científica e às necessidades contemporâneas de adaptação ao ritmo frenético da vida Atualmente quase não encontramos suas ideias nas práticas e técnicas ligadas ao nascimento e cui dados pósnatais É útil lembrar o quanto o trabalho dos neonatologistas e obstetras informados a respeito dessas noções pode ter papel fundamental no encon tro do bebê com os primeiros cuidadores Começamos nosso texto com conceitos de Win nicott pediatra e teórico das relações objetais en tre outras razões porque muitas de suas formulações teóricas trazem a marca multifacetada paradoxal e não reducionista que define o campo epistemológico das ciências na pósmodernidade Outras seriam suas contribuições a respeito das questões psicossomáti cas onde se destaca a interação entre os aspectos cons titucionais individuais e a definitiva importância da in fluência das ações e omissões do meioambiente sobre o sujeito nascente que alcançam a contemporaneidade A título de uma importante comparação e exten são discutiremos também algumas ideias da Escola Francesa de Psicossomática muito ligada em seu iní cio a Pierre Marty e coincide operacionalmente com a fundação do Hospital de la PoternedesPeupliers em 1978 onde funciona o IPSO Sua presença é de vida entre outros fatores como a enorme e justifica da influência que adquiriu na esfera da cena psicos somática mundial pela extensão e profundidade de discussão de seu material clínico Os aportes contemporâneos propostos no título terão a ver neste texto com as contribuições atuais trazidas pelas neurociências permitindo no entendi mento deste autor a possibilidade de comprovação empírica e integração conceitual de várias teorias psi codinâmicas ligadas aos fenômenos psicossomáticos e sua compreensão A infância será entendida aqui não como lat infantia período da vida no ser humano que vai desde o nascimento até a adolescência meni nice Dic Michaelis 1998 e sim como a etapa do desenvolvimento primitivo compreendido entre o nascimento e o início da capacidade para o uso da linguagem falada usualmente entre o primeiro e segundo anos de vida do bebê A acepção é pro veniente do termo latino infansantis que não fala infantil encontrada no Dicionário Etimológico de Cunha 1982 p 434 Essa distinção extrapola de muito as questões semânticas entranhandose com os aportes teóricos que serão discutidos pois nossa intenção é enfatizar o fato do sujeito humano durante os meses iniciais de sua vida não ter recursos verbais expressivos de seus estados corporais de desagrado de dor de fome ou de frio que mais tarde poderão ser evidenciados como angústia e ansiedade De modo análogo é de modo físico que satisfação e bemestar aconchego e pacífico existir fisiológico em repouso são vividos sendo posteriormente entendidos e sentidos como alegria paz ou felicidade Também é importante acentuar que a citada fase do desenvolvimento que alguns autores acreditam ser mais fisiológica do que psicológica impõe mais do que qualquer outra a participação e interferência do meioambiente representado por aqueles que têm o bebê sob seus cuidados Em sua visão premonitória e demiúrgica usando este termo em ilação ao senti do platônico original aqui se referindo ao universo dos fenômenos emocionais Winnicott disse que Não existe tal coisa com um bebê afirmando em sua maneira provocadora que a existência do ser humano em seus primórdios estava definitivamente condicionada pela presença e os atos de uma pessoa cuidadora Sempre que pensamos em um bebê nós o visualizamos com alguém ao lado sendo a vida hu mana fora de um contexto relacional e intersubjeti vo em realidade uma abstração teórica Existe uma situação de enlace entre a depen dência absoluta inicial dos bebês e a necessidade im periosa de que para que sua fisiologia matriz da psicologia futura seja mantida no registro do equi líbrio e homeostasia silenciosos o meioambiente possa perceber suas expressões corporalafetivas Psicossomaticaindd 564 Psicossomaticaindd 564 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 565 atendendoas de maneira suficiente para aquele bebê em particular Winnicott definiu esta situação inicial a ser otimistamente preservada como going on being ex pressão complexa que pode ser entendida como ir sendo significando que o bebê para que possa se desenvolver de maneira integrada precisa ser visto por alguém antes de ter a capacidade de se ver Foi dentro dessa compreensão da complexidade inter subjetiva dos primórdios da vida que Winnicott cons truiu em grande medida seu corpus teórico e Julio de Mello Filho 1989 espalhou seu pensamento no Brasil com o seminal O Ser e o Viver uma visão da obra de Winnicott A Psicossomática vai ser entendida neste texto como a interação atualizada de suas três fases defi nidas Mello Introdução 1992 como a inicial ou psicanalítica b intermediária ou behaviorista c atual ou multidisciplinar A atualização proposta diz respeito como já foi citado às contribuições contemporâneas trazidas pelas pesquisas e descobertas em neurociências que evidenciaram uma nova possibilidade de integração entre campos anteriormente antagônicos e reducio nistas A situação vigente ao longo da maior parte do século XX quando uma visão pontual e não inte grada determinou que a psicologia comportamental e a psicanálise a psiquiatria e a neurologia sujeito e meioambiente e sujeito natureza fossem estuda dos por disciplinas separadas e sobretudo não co municantes que resultou em grande prejuízo para a compreensão dos fenômenos afetivos emocionais e mentais As próprias dicotomias corpomente sujei tonatureza sujeitosociedade e cérebromente têm sido transformadas e superadas em grande medida com as contribuições atuais das neurociências Há muito pouco tempo seria quase impossível encontrar um livrotexto intitulado A Neurociência da Psicoterapia construindo e reconstruindo o cérebro hu mano Cozolino 2002 onde o editor diz que o autor demonstra com clareza como a arquitetura do cére bro se relaciona com os problemas paixões e aspira ções dos seres humanos Em outro texto intitulado O self sináptico como nosso cérebro se torna quem nós somos Le Doux 2002 o autor diz que o quebra cabeça de como natureza e meioambiente nutrição educação moldam quem nós somos fica simplificado pela constatação de que as sinapses são a chave para a operação de ambosp 5 Destes dois textos entre centenas podese ver um amplo movimento de articulação entre processos mentaiscerebrais anteriormente separados não ape nas em sua compreensão mas também nos campos que os estudavam ficando evidente que um novo e fascinante espaço transdisciplinar está em desenvol vimento acelerado Este capítulo tem a intenção de chamar a aten ção para este cenário como já dito impensável até a bem pouco tempo Anteriormente alguns autores brasileiros produ ziram trabalhos muito importantes tratando de arti cular psicanálise e neurociências Lembro apenas para falar do Rio de Janeiro de Carlos Doin da SBPRJ e Vitor Manuel de Andrade da SPRJ Apesar da excelên cia de seus textos e da sua característica premonitória do quadro atual para o qual muito contribuíram creio que permaneceram mais como iniciativas isoladas até recentemente Agora parecendo ser um reflexo nas Sociedades de Psicanálise do reconhecimento de que houve um salto epistemológico irreversível abrindo um amplo espaço transdisciplinar abrangendo neuro ciências e psicoterapias e outras disciplinas começa uma organização institucional de grupos de estudo e comissões de pesquisa das relações entre a psicanáli se e as neurociências No Rio de Janeiro está sendo criado um curso pioneiro de pósgraduação na Santa Casa de MisericórdiaRJ intitulado NeuroPsicotera pia Enfoque AfetivoRelacional Alguém imaginaria esta situação há 10 anos O curso citado tem o subtítulo de Afeto e Rela ção o processo de transformação do self e tem em seu corpo docente psicanalista psicólogos doutores em neurociências psiquiatras e neuropsiquiatra O mosaico dos profissionais envolvidos mostra a com plexidade do campo em estudo e a compreensão da necessidade imperiosa do diálogo inter e transdisci plinar Atendendo a estes princípios uma publicação de ampla pesquisa do National Academy of Sciences Institute of Medicine 2000 realizada nos Estados Unidos durante dois anos e meio envolvendo 17 es pecialistas de diferentes áreas reunidos em comitê de avaliação e integração das ciências atuais a respeito do desenvolvimento na infância precoce definiu os seguintes princípios centrais do desenvolvimento 1 O desenvolvimento humano é moldado por uma interação dinâmica e contínua entre biologia e experiência 2 A cultura influencia todos os aspectos do desen volvimento humano e é refletida em crenças so bre cuidados infantis e em práticas destinadas a promover uma adaptação saudável 3 O desenvolvimento da autorregulação é uma viga mestra do desenvolvimento inicial da infância que além do mais atravessa todos os domínios do comportamento Psicossomaticaindd 565 Psicossomaticaindd 565 05012010 121227 05012010 121227 566 Mello Filho Burd e cols 4 As crianças são participantes ativos de seu pró prio desenvolvimento refletindo o impulso hu mano intrínseco de explorar e dominar seu meio ambiente 5 As relações humanas e os efeitos de relações so bre outros relacionamentos são os blocos que constroem um desenvolvimento sadio 6 A ampla escala de diferenças individuais entre crianças muito pequenas frequentemente torna difícil distinguir variações normais e atrasos ma turacionais de desordens transitórias e deficiên cias permanentes 7 O desenvolvimento de crianças evolui ao longo de caminhos individuais cujas trajetórias são carac terizadas por continuidades e descontinuidades bem como por uma série de transições significa tivas 8 O desenvolvimento humano é moldado pelo in terjogo permanente entre fontes de vulnerabili dade e de resiliência 9 O timing das experiências precoces conta porém com mais frequência do que o contrário a crian ça em desenvolvimento se mantém vulnerável a riscos e aberta a influências protetoras desde os anos iniciais de suas vidas até a idade adulta 10 O curso do desenvolvimento pode ser alterado na infância precoce através de intervenções efetivas que alteram o equilíbrio entre risco e proteção mudando deste modo as chances em favor de resultados mais adaptativos Creio podermos dizer que este eixo conceitual que os autores definiram como central para uma compreensão atual do desenvolvimento primitivo hu mano nos traz à mente inúmeras teorias e autores psicanalíticos ao longo de 100 anos de produção teó rica e exercício clínico nesse campo O fato que avulta e que procuro enfatizar é que longe de representar uma temida morte da psicaná lise o quadro atual das ciências do desenvolvimento vem a confirmar os princípios centrais definidos por gerações de psicanalistas desde Freud até hoje O ho mem é um ser da natureza possuidor de uma mar ca biológica individual e chega ao mundo trazendo um conjunto de circuitos de adaptação e coping que entretanto só vai poder se organizar e receber o sof tware de experiências e aprendizado se for recebido e cuidado dentro de um ethos humano A psicanálise que sempre buscou teorias expli cativas dos vários aspectos do desenvolvimento tem hoje a oportunidade ímpar pelos aportes trazidos na contemporaneidade pelas ciências de dar o recheio de empirismo investigativo com o qual seu fundador sonhou desde o Projeto O momento é de integrar e caminhar O último mas não menos importante aspecto dos aportes contemporâneos diz respeito às enormes transformações que a família nuclear vem sofrendo nas últimas décadas Em lugar do modelo de família patriarcal vigente por séculos que serviu de moldura para muitas das formulações e modelos teóricos das relações psicológicas entre seus membros temos hoje em dia famílias sem a presença do pai outras forma das pela união de filhos de vários casamentos vivendo juntos filhos de casais homo e heterossexuais conce bidos por inseminação artificial anônima ou adoção e outras questões como a clonagem que abrem um largo mosaico de problemas não existentes até a bem pouco tempo Este novo quadro trazido pela contem poraneidade guarda nichos que ainda esperam por elaboração teórica e legislação apropriada WINNICOTT INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA Donald Winnicott como já foi dito foi pediatra antes de ser psicanalista permanecendo em conta to diário com bebês crianças e suas famílias durante toda sua vida profissional Sua longa experiência re sultou em conceitos e sugestões clínicas que ajuda ram a transformar a prática pediátrica e são extrema mente valiosos e atuais ainda hoje Este capítulo reúne um conjunto de seus concei tos básicos sobre o desenvolvimento emocional pri mitivo privilegiando os ligados à teoria das questões psicossomáticas Em outro ponto chamei este eixo conceitual de princípios básicos ou fundamentais analogamente ao proposto por Laplanche e Pontalis 1973 ao referir se ao local e perfil da metapsicologia Freudiana como textos que são mais básicos no sentido de desen volverem ou exporem as hipóteses que dão suporte ou substância à psicologia psicanalítica seus princí pios Prinzipien ou conceitos fundamentais Grun dbegrieff Creio que podemos incluir nesse sentido temas estudados por Winnicott dentre os quais seleciona mos os seguintes preocupação materna primária a mente e sua relação com o psicossoma going on being privação deprivação delinquência espelhamento holding e handling e mãe suficientemente boa A preocupação de Winnicott com a importância das mães no cuidado e desenvolvimento dos bebês já pode ser vista de modo individualizado no con ceito 1949 de mãe devotada comum Este termo nasceu de uma conversa espontânea apud Abram Psicossomaticaindd 566 Psicossomaticaindd 566 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 567 2000 entre Winnicott e a produtora da BBC Isa Ben zie onde buscavam nome para um conjunto de pales tras que ele faria pelo rádio para mães sobre aquilo que elas fazem melhor e o fazem bem simplesmente porque cada uma delas é devotada a uma tarefa ou seja cuidar de um bebê Isa disse Esplêndido A Mãe Devotada Comum A importância dessa devoção está ligada à iden tificação inconsciente da mãe com seu bebê e o desen volvimento dessa ideia o levou a escrever em 1956 o texto Preocupação Materna Primária considerado pela autora citada e por muitos outros admiradores e estudiosos de Winnicott como seu texto definiti vo sobre o assunto De minha parte eu considero o conceito como o motor que põe em movimento a maioria das outras formulações teóricas relativas às relações mãebebê primitivas sendo importante no tar sua peculiaridade dinâmica de funcionar tanto nos processos de integração quanto nos de não inte gração quando falha Nesse texto 1956 2000 Winnicott dialoga com outros autores como Anna Freud e Margatet Mahler e dele destaco o trecho onde diz A Srta Freud afirma que o relacionamento com a mãe embora seja o primeiro com outro ser humano não é o primeiro com um ambiente Precedeo uma fase anterior na qual não o mundo objetivo mas as necessidades corporais sua satisfação ou frustração de sempenham o papel principal p 400 meu itálico Ele faz uma definição desse estado tão impor tante para a vida do bebê humano em seus momentos iniciais nos quais avulta em importância o fato de que ele não pode expressar suas necessidades corpo rais mais simples ou prementes de outra maneira que não seja corporal o que determina a importância da presença atenção e devoção de alguém a seu lado Chega a definir o estado de preocupação materna primária como uma condição psiquiátrica não fosse pela presença da gravidez e diz que as mulheres nes sa condição devem alcançar esse estado de sensibili dade exacerbada quase uma doença e recuperarse dele Diz que A mãe que desenvolve esse estado ao qual chamei de preocupação materna primária fornece um contexto para que a constituição da criança comece a se mani festar para que as tendências ao desenvolvimento co mecem a se desdobrar e para que o bebê comece a ex perimentar momentos espontâneos e se torne dono das sensações correspondentes a essa etapa inicial da vida Tentei descrever tais ideias dizendo que se a mãe proporciona uma adaptação às necessidades do bebê a linha da vida da criança é perturbada muito pouco por reações à intrusão Naturalmente são as reações às intrusões o que conta não as intrusões em si mesmas A falha materna provoca fases de reação à intrusão e as reações interrompem o continuar a ser do bebê O excesso de reações não provoca frustração mas uma ameaça de aniquilamento p 403 Lembremos que um texto citado por mim antes dizia que o desenvolvimento humano é moldado por uma interação dinâmica e contínua entre biologia e experiência relações aprendizado e que a cultura influencia todos os aspectos do desenvolvimento sendo a aquisição da autorregulação uma viga mes tra desse trajeto inicial dana infância que além do mais atravessa todos os domínios do comporta mento Dentro da visão atual da compreensão das re lações iniciais dos bebês com seus meioambientes aqueles são entendidos como participantes ativos de seu próprio desenvolvimento refletindo o impulso humano intrínseco de explorar e dominar o mundo sendo as relações e os efeitos de relações sobre ou tros relacionamentos os blocos que constroem um desenvolvimento sadio p 3 Podemos observar que os autores atuais também falam de interações desde o princípio do desenvolvi mento podendo ser entendido que os efeitos delas sobre outras futuras mostram a importância inicial da presença e das ações ou omissões definidas por Winnicott Em seu texto de 1956 2000 ele já se preocupava em definir um lugar e um papel para o bebê em seu desenvolvimento ao dizer que O bebê apresenta uma constituição tendências inatas ao de senvolvimento motilidade e sensibilidade instintos eles próprios engajados na tendência ao desenvolvi mento p 402 Mais adiante ele conclui que de acordo com essa tese os fatores constitucionais terão mais proba bilidade de se manifestar na normalidade quando o ambiente da primeira fase for adaptativo p 404 A ponte entre a visão transdisciplinar e multi profissional atual do desenvolvimento e aquela pro posta por Winnicott fica evidente sendo importante destacar o papel da mãe nesse cenário inicial uma vez que é ela a primeira presença humana constante jun to ao bebê sendo seus atos gestos ações e omissões fundamentais para a constituição do sujeito humano assim como para a sua integração psicossomática As relações entre os bebês e seus cuidadores são sempre expressas por gestos atos e ações e me diadas na normalidade pela visão implicando per cepção Sempre foi muito importante em termos psicológicos a questão de ver e ser visto e particu larmente em termos winnicottianos a capacidade Psicossomaticaindd 567 Psicossomaticaindd 567 05012010 121227 05012010 121227 568 Mello Filho Burd e cols da mãe suficientemente boa de ver o bebê em sua rea lidade própria de modo a permitir que ele pos sa se ver refletido em seus olhos Visão ação movi mento e percepção formam um conjunto dinâmico essencial em termos da dinâmica de espelhamento e auto e hetero visão A ESCOLA FRANCESA DE PSICOSSOMÁTICA ALGUNS AUTORES E CONCEITOS Léon Kreisler 1999 um dos expoentes desse grupo juntamente com o já citado Pierre Marty M de MUsan e outros no texto referido traça alguns princípios e fundamentos epistemológicos e clínicos representativos de seu pensamento e atuação Diz que a psicossomática encontrou o que chama de re conhecimento oficial em um estudo epidemiológico realizado no INSERM coordenado por M Choquet 1982 Foram aceitas como afecções psicossomáticas de crianças pequenas não apenas o mericismo a ano rexia e a insônia mas incluídas também a asma e as afecções respiratórias altas e baixas e enfatizada sua característica de iteratividade Kreisler faz uma distinção clara do psicosso mático ligandoo a patologias verdadeiramente or gânicas e contrastandoo vivamente com fenômenos histéricos ou hipocondríacos Ele lembra que o histé rico fala por meio de seu corpo e o paciente somático sofre com seu corpo O corpo é para o primeiro um instrumento de linguagem para o segundo é uma vítima p 14 Continua definindo o pensamento do IPSO ao dizer Uma das ideias centrais das concepções contempo râneas repousa na relação entre o equilíbrio somáti co e os fundamentos psicoafetivos da personalidade Uma formulação básica poderia ser enunciada da se guinte forma uma constituição afetiva plena equi librada e estável ocupa um local essencial entre as defesas que se opõem às desordens psicossomáticas Essa afirmação não é gratuita Provém de observa ções concretas inspiradas em concepções psicana líticas que vêm sendo aprofundadas há um quarto de século p 15 Propondo evidenciar as relações entre os de senvolvimentos sintomáticos vias comportamental e psíquica pensa em estruturas vulneráveis desta cando por sua importância para seu estudo e nossa revisão aqui a síndrome do comportamento vazio da criança pequena Diz ainda que estes estados quan do mais graves determinam situações de não orga nização que vão ao encontro de carências afetivas severas Postula que os quadros depressivos desempe nham um importante papel como desencadeadores de desorganizações psicossomáticas chamandoos em particular de depressões frias Os autores que compõem o IPSO dizem que se os lactentes puderem trazer alguma contribuição aos conhecimentos psicossomáticos isso se deverá às hi póteses levantadas a respeito da gênese da mentali zação e dos processos representacionais Asseveram que é uma característica das patologias psicossomáti cas que o olhar seja dirigido tanto na reflexão sobre as faltas quanto nas terapêuticas propostas para as faltas as falhas os vazios de pensamento afetivo e quando se trata do bebê para as modalidades inte rativas geradoras de buracos relacionais ou de distor ções causadoras de falhas objetais p 27 Postulam que durante os primeiros meses de vida do bebê a interação entre os parceiros da díade é o lugar funcional do equilíbrio mental do lactente e de suas disfunções e dizem em conti nuação que a partir dos seis meses embora ainda prevaleça o funcionamento interativo emergem in dícios de um primeiro funcionamento mental autô nomo e de disfunções psíquicas próprias do bebê idem p 362 Acentuam que um dos elementos de perigo na psicossomática da criança pode ser o fato de seu es tudo ser um campo partilhado por múltiplas disci plinas cada uma delas orientando e influenciando o olhar dos profissionais que as exercem Alertam para a eventualidade perigosa de as teorias não se mate rializarem em ações positivas interpondose entre os profissionais e a criança e até mesmo despedaçan doa No capítulo dedicado às consultas terapêuti cas na psicossomática do bebê dizem que entram por fim em discussão os fatores externos familiares e sociais Winnicott já sublinhara a importância das causas externas cuja intensidade e continuidade as coloca fora do alcance da CT exigindo o recurso a outras soluções p 364 MATERIAL CLÍNICO DA ESCOLA FRANCESA A análise de alguns dos casos clínicos de crian ças pequenas trazidos por Kreisler nos mostrará o modo de entender a estruturação dos fenômenos psi cossomáticos seu tratamento e o lugar que aquilo que definiram como fatores externos ocupa em sua visão teórica e prática clínica Os bebês relatados em parte do material clíni co eram muito pequenos e todos apresentavam pa tologias extremamente graves Um deles chamada Claude tinha 8 meses e meio e foi internada por um Psicossomaticaindd 568 Psicossomaticaindd 568 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 569 quadro de mericismo que a levou à beira da morte Em sua história destacase o fato de ter sido cuida da nos primeiros meses de vida por diferentes pesso as pois a mãe se aborrecia por ver sua filha ajudada por outros e os substituía O autor acredita que tal fato impediu o estabelecimento de relações estáveis com os objetos iniciais fato também destacado por Winnicott em sua importância no desenvolvimento primitivo Kreisler acha que a situação relatada pro vocou dificuldades de introjeção duradoura e dis túrbios de noção de tempo e de espaço Foi obser vado que ela não olhava para a mãe ao ser colocada em seu colo tentava fisgar olhares das pessoas ao redor e apresentava grande exacerbação motora O autor diz que a bebê tinha um comportamento de enganche instantâneo e fugidio às coisas e às pes soas todos eles objetos intercambiáveis englobados em relação anônima inclusive pai e mãe Winnicott diria que a maternagem instável inicial poderia ser a causa de tal reação em submissão da neném ao meioambiente O quadro de mericismo é descrito como um vô mito particular que aparece durante o segundo se mestre e é acompanhado por ruminação Parte do ali mento é mantido na boca para a ruminação e depois deglutido outra vez O potencial de letalidade deste quadro é grande devido à perda de peso e desidra tação Martine outra neném com o mesmo quadro acima tinha pais jovens que segundo o autor dese jaram intensamente a filha Diz que ela teve desen volvimento normal até o aparecimento dos vômitos Kreisler considera que ela era apática e tinha uma tristeza que ele considerou desconcertante acre ditando que seu comportamento considerado como depressivo não era causado pela desnutrição aguda pois a antecedia Em relação ao meioambiente onde crescia re lata que os contatos com a mãe aconteciam apenas durante as refeições e cuidados corporais e que o res tante do tempo ela ficava só em seu berço Quando começou a chupar o dedo aos 8 meses e meio foi impedida de fazêlo com alguma violência pois man tiveram seus braços amarrados Outro fato de seu treinamento inicial era a submissão a rotinas rígidas chegando perto de um quadro obsessivo que depois de um certo tempo foi substituído por uma atitude incoerente pois a mãe passou a caminhar com a ne ném no colo durante todo o dia Logo depois teve um breakdown depressivo Kreisler lembra em seu texto o estudo clássico de Spitz 1945 introduzindo o termo depressão anaclítica e ligando seu aparecimento às relações iniciais com a mãe e à ocorrência de rupturas do vín culo Tais estudos continuaram e Kreisler descreveu 1981 a partir de avaliações de quadros psicosso máticos de lactentes alguns aspectos essenciais da depressão precoce a saber 1 atonia tímica 2 inércia motora 3 pobreza de comunicação interativa e 4 vulnerabilidade psicossomática Diz em seu texto que a depressão do lactente é uma desordem tímica de evolução aguda ou subaguda cujo principal determinante é uma ruptura prolongada do vínculo materno e o componente mental essencial uma atonia afetiva que priva o bebê de suas apetências vitais Quase no fim de suas reflexões diz que o me ricismo e outras formas de vômito na infância têm grande potencial de letalidade sendo o resultado fa tal provavelmente classificado sob a rubrica de morte por causa desconhecida na infância Mélanie e Julienne as pacientes a quem se refe ria no texto citado chegaram ao êxito letal depois de vários meses de internação em diferentes hospitais inclusive o psiquiátrico Haviam falecido em decor rência de uma mesma doença num intervalo de menos de um ano e meio a primeira quatro meses após o nascimento da segunda de uma síndro me associando anorexia e vômitosp 250 Julienne nasceu em 1977 normalmente mas sua mãe teve intensas cólicas nefríticas durante a gravidez e uma forte depressão puerperal que se prolongou Foram detectados em sua história clínica dois episódios supostamente depressivos um aos 17 anos e o segundo logo após o nascimento da primeira filha Mélanie foi concebida durante a evolução da doença de Julienne e nasceu a termo com três quilos Foi amamentada ao seio por pouco tempo e depois recebeu suplemento lácteo A partir do quarto mês começou a comer de tudo e seu peso e tamanho eram normais Os problemas alimentares começaram aos 9 meses quando a mãe voltou a trabalhar e ela fi cou sob os cuidados da mesma tiaavó que cuidara de Julienne Por ser estritamente vegetariana e visivel mente perturbada a senhora talvez tenha tentado forçar a neném a aceitar uma dieta vegetariana O que para nós ficou evidente em todas as situa ções relatadas é que sua gravidade clínica foi sempre coincidente com intensos distúrbios emocionais dos cuidadores Tais problemas expressos em gestos e rotinas alterados inconstância seriam em termos de conceituação winnicottiana considerados como alte rações graves do going on being infantil Tais respos tas patológicas seriam as formas que os bebês possu íam naquele ponto de seus desenvolvimentos para evidenciar as falhas e imposições ambientais Psicossomaticaindd 569 Psicossomaticaindd 569 05012010 121227 05012010 121227 570 Mello Filho Burd e cols Um bebê de sete ou oito meses ainda não fala Não pode se defender de agressões por falta ou ex cesso falando ou se afastando Por esse motivo acre ditamos que o foco de compreensão de tais quadros assim como as estratégias de atuação clínica devem estar focados um pouco além do atendimento e tenta tiva de solução das crises que motivam os atendimen tos de tais situações Um trabalho recente de Samuel Hulak 2007 propondo uma classificação das somatizações faz uma distinção entre suas diferentes apresentações cunhando os termos alexitimia e pseudoalexitimias não só como forma de compreensão e de abordagem em medicina psicossomática como também para re curso orientador de escolha terapêutica pertinente e adequada a cada condição somatizante De seu texto destaco que a alexitimia vera foi por ele colocada em gráfico que ilustra seu texto como marginal ao eixo progressivo de gravidade Como marginal entendi que ele atribui à alexitimia um eixo próprio e destaco mais um trecho onde ele nos lembra que trabalhos sobre o desenvolvimento infantil Mah ler Spitz Anna Freud Klein Kohut e destacadamente Winnicott lançaram uma nova compreensão sobre a importância da relação mãebebê e dos trágicos des tinos que traumas arcaicos poderiam determinar em uma criatura frágil sem defesas sofisticadas para ela borar conflitos complexos e ainda portadora de um discurso sem palavras Nascemos alexitímicos e carecemos de uma mãe que ponha palavras nomes nas nossas emoções A ausência ou a insuficiência de uma mãe que afetualize erogenize o discurso do bebê em uma relação empática poderá contri buir para a construção de um novo alexitímico meu negrito Aplicando estes princípios aos quadros apresen tados por Kreisler no texto citado creio que podemos dizer que não tenha havido tempo para a construção de um novo alexitímico Muitos pacientes chegaram ao centro especializado em atendimento psicossomá tico depois de uma longa peregrinação vindo alguns inclusive de outro país Em termos da violência dos traumas relatados podemos dizer que tenha sido máxima incidindo sobre bebês ainda sem os recur sos defensivos das palavras passando por diferentes settings terapêuticos e durando um largo período de tempo Kreisler diz que essas circunstâncias e estrutu ras patológicas inquietantes podem retroceder des de que o essencial seja feito a tempo meu grifo Qual seria o prazo útil de intervenção para que o resgate da criança fosse feito a tempo de salvar sua vida Nos casos descritos anteriormente Desorgani zação depressiva letal O destino de duas irmãs ape sar dos profissionais que descrevem os quadros serem grandes experts em psicossomática infantil e terem feito os atendimentos no hospital que é referência mundial para tais casos as pacientes morreram Kreisler faz uma pergunta inquietante e propõe uma dramática conclusão Mas essa relação mãebebê não estaria fissurada como que trespassada por um buraco num vínculo com uma mãe presenteausente Falha primária que poderia muito bem ser a razão profunda e essencial da evolução irremediável p 261 Diante de tão graves situações parece residir na prevenção ou caso se consiga salvar os bebês numa incisiva modificação ambiental póscrise em segui mento terapêutico a solução para tais problemas Se tal não ocorrer como nos quadros relatados é possí vel que os bebês acabem morrendo física ou emocio nalmente sobrevivendo como os novos alexitímicos referidos antes NEUROCIÊNCIAS PONTES COM A PSICOTERAPIA E A PSICOSSOMÁTICA Em termos atuais a presença e os gestos das pessoas que constituem o meioambiente inicial dos bebês adquiriram importância ainda maior do que a já definida pelas diferentes escolas psicológicas do desenvolvimento Isso se dá porque as neurociências com o es tabelecimento de teorias como a da imitação Melt zoff e Prinz 2002 descobriram em pesquisas com macacos Rizzolatti et al 1998 áreas de neurônios que descarregam durante movimentos de mão e são localizados na parte rostral do córtex ventral pré motor Segundo Fogassi e Galese 2002 p 14 eses neurônios foram identificados e chamados de F5 a partir de técnicas de impregnação com citocromo oxi dase É muito importante lembrar que além de fun ções puramente motoras das quais se ocupa a maior parte dos neurônios da área F5 esta contém duas outras classes de neurônios visuomotores Ambas não se distinguem dos apenas motores neste aspecto embora sejam diferentes em suas características de percepção visual Fogassi e Galese 2002 idem dizem que A primeira categoria é constituída por neurônios que respondem à apresentação de objetos de tamanho e forma particulares Com frequência o tamanho ou a forma dos objetos efetivos ao provocarem o disparo da descarga dos neurônios é congruente com o tipo especí fico de ação que eles codificam Rizzolatti et al 1988 Murata et al 1977 Estes neurônios foram chamados Psicossomaticaindd 570 Psicossomaticaindd 570 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 571 de canônicos Rizzolatti e Fadiga1998 Rizzolatti et al 2000 O segundo tipo é composto por neurônios que descarregam quando os macacos observam uma ação executada por outro indivíduo da mesma espé cie e então executam uma ação igual ou semelhante Estes neurônios visualmotores foram chamados de espelho Galese et al 1996 Rizzolatti et al 1996a Estas descobertas têm importância pois foram estendidas do campo da pesquisa com animais ao do desenvolvimento primitivo dos seres humanos Foi evidenciada uma ampla rede de estruturas neuronais que servem de base neurofisiológica ao desenvolvimento da linguagem memória reconheci mento de ações e sua repetição ou imitação chegan do os autores até a hipotetizar sua participação em temas complexos como o reconhecimento da alteri dade e a transmissão cultural O campo é marcada mente dialógico aumentando em muito a dinâmica das citadas relações primitivas Fica claro que o meio ambiente inicial ao exercer modulações que podem ser entendidas como mediações resolutivas das ne cessidades particulares de cada bebê permite atenção focal e sustentada a tarefas não rela cionadas com a sobrevivência física Um calmo mundo interno pode ser construído e revisitado de tempos em tempos servindo de base para um pensamento priva do sem relação com a solução de problemas externos Estes momentos calmos fornecem o espaço para a ima ginação e a criatividade e são especialmente importan tes para a construção e consolidação do self Winnicott 1958 Ele sugeriu também que o ego e o sentido do self são consolidados durante períodos de quietude 1962 Períodos de calma são possíveis quando a criança se sente a salvo e protegida não reagindo a imposições ou demandas do meio ambiente ou às necessidades físicas ou emocionais Em termos psicológicos uma necessida de menor de atenção ao meio ambiente como Winni cott sugeriu pode ser um prérequisito para a ativação parietal relacionada à consolidação do self Cozolino 2002 p 143147 Os quadros resultantes de falhas e omissões ou instabilidade nos cuidados primitivos com os bebês seriam estados de não integração psicossomática com eventos patológicos nessa área quadros psicóti cos ou borderlines condutas antissociais e delinquên cia e o falso self e depressão entre outros eviden ciando diferentes graus de impactos sobre o cérebro É consenso atual que os traumas severos ocorridos no período inicial provocam resultados graves devas tadores mesmo e de difícil tratamento Tem ficado evidente que os traumas mais primitivos ocorrem por meio dos pais e cuidadores primários e como inter ferem na construção e interação do cérebro causam profundas e duradouras lesões em redes neurais es senciais É importante ressaltar que o conceito de trauma que estamos estudando é mais amplo do que alguns manuais diagnósticos sugerem e incluem falta de atenção e carinho instabilidade emocional depres são violência física e emocional dos cuidadores pri mários ou mesmo traumas sutis como distancia mento afetivo ou a colocação do bebê fora do centro de atenção inicial nos primeiros momentos de seu desenvolvimento A relação entre depressão materna durante o primeiro ano de vida de bebês e posterior apareci mento neles de alterações de neurotransmissores com desregulação fisiológica e de comportamento tem sido demonstrada Alterações de norepinefrina cortisol ativação maior do lobo frontal direito baixo tônus vagal e ritmo cardíaco acelerado foram encon tradas nesses casos Field 1997 Field et al 1998 apud Cozolino Em relação à tendência antissocial que Win nicott ligava à deprivação à ou perda de uma boa experiência precoce resultando em mentira furto impulsividade e agressividade se levarmos em conta os conceitos sobre trauma citados antes fica claro o forte impacto que têm sobre as crianças e as altera ções neurofisiológicas que também causam Uma das áreas afetadas poderia ser segundo pensa o Dr Allan Schore da Faculdade de Medicina da UCLA o córtex órbitofrontal que ele vê muito implicado tanto na ca pacidade de ligação do infante quanto na regulação de suas emoções A falta de desenvolvimento dessas capacidades por falhas da mãe ou cuidador primário pode resultar em violência impulsiva Essa região está localizada acima das órbitas logo abaixo da superfície e entre os dois hemisférios e devido a sua localização anatômica especial recebe tanto estímulos sensoriais afe rentes visão tato som odor vindos do meio ambiente quanto informações viscerais vindas de dentro do corpo de modo que experiências interpessoais são associadas a estados emocionais apud Karr e Wiley idem p 37 Donald Winnicott atribuía à tendência antisso cial um valor positivo um sinal de esperança pois acreditava que a criança nessa condição tentava chamar a atenção das pessoas de seu meioambiente para a perda que havia sofrido buscando através de nova provisão ambiental a restauração do equilíbrio perdido Levando em conta os aspectos neurofisiológicos citados faço a hipótese de que traduzindo a ideia de Winnicott em termos atuais teria havido uma boa interação inicial levando a um desenvolvimento in tegrador do córtex órbitofrontal alterado de modo súbito pela deprivação afetiva Os autores citados acima dizem que essa é a área do cérebro responsável Psicossomaticaindd 571 Psicossomaticaindd 571 05012010 121227 05012010 121227 572 Mello Filho Burd e cols pelas ligações entre a deprivação sensual e emocional e os sintomas físicos resultantes sempre que um bebê para de ganhar peso de crescer e parece perder o inte resse em viver Karr e Wiley idem ibidem Como eles estão se referindo a um bebê reite ramos que os meios de expressão são exclusivamente corporais e fisiológicos por lhe faltar desenvolvimen to motor e cognitivo que lhe possibilite mostrar atra vés de atos ou palavras as perdas sofridas Seu corpo faz uma tentativa de comunicação com o meio am biente que se puder enxergar o que está por trás dos sintomas físicos consegue mudar o rumo da situação e impedir que o bebê venha até a morrer Com o continuar do desenvolvimento a partir da deprivação sugiro que passarão a conviver duas formas de registro no sistema de intermediação bebê meioambiente localizado no córtex órbitofrontal Uma da experiência de integração e acolhimento e outra de não integração provocando talvez uma al ternância de funcionamento ou a tentativa de fugir dos sinais fisiológicos de ameaça e crise Em termos da psicologia Winnicottiana a espe rança a que ele se refere quando fala da tendência antissocial pode estar vinculada aos laços iniciais de natureza positiva resultantes do encontro do bebê com o meioambiente cuidador O comportamento ligado à tendência antissocial talvez signifique uma tentativa desesperada de agenciar o meio ambiente através de expressões afetivomotoras comportamen tais e verbais agora já possíveis Duas possibilidades de resposta podem ser pen sadas na primeira e melhor hipótese o meioam biente inicial representado pela mãe ou cuidador primário percebe a crise instalada e modifica sua forma de atuar voltando a ser provedor de atendimen to às necessidades promovendo desse modo apazi guamento e integração retorno ao going on being Mesmo nesse caso permanecerão as marcas da ex periência de desencontro e ameaça que tem dupla face uma voltada para novos encontros e outra representando o disparar de neurotransmissores ligados à situação de crise com as alterações fisioló gicas associadas na outra hipótese o meio ambiente persiste em sua incapacidade de perceber as neces sidades afetivofi siológicas agravando o estado de crise e obrigando a criança a tentar um desesperado acordo com ele submetendose e abrindo mão de suas necessidades situação que representa o fal so self definido por Winnicott Em outro cenário a criança traumatizada por sucessivas deprivações pode evoluir para uma desestruturação duradoura chegando à delinquência ou a um desespero com co res de ameaça constante que poderia ser associado ao medo do colapso Winnicott 1963 1974 si tuação trágica que coloca no futuro um desastre já ocorrido no passado e pode terminar com a morte por suicídio ou por agravamento da não integração psicossomática Lembremos Winnicott 1963 1974 a esse res peito Uma questão colocase aqui por que o paciente conti nua atormentado por isto que faz parte do passado A resposta é que a experiência original da agonia primi tiva não pode pertencer ao passado a menos que o ego primeiramente adquira suas próprias experiências no tempo presente e um controle onipotente aceitando a função de suporte de ego auxiliar da mãe analistaO propósito deste estudo é atentar para a possibilidade de que o colapso já tenha se dado próximo ao princípio da vida do indivíduo Nesse caso a única forma de o paciente lembrarse é vivenciar este algo do passado pela primeira vez no presente ou seja na transferên cia Esse algo que é do passado e do futuro transforma se em uma questão do aqui e agora de tal forma que o paciente a experimenta como se fosse pela primeira vez apud Abram p 336 acréscimo meus Podemos ver o quanto temas discutidos ampla mente por Winnicott como o holding e o handling antecipavam os conceitos atuais sobre a interação precoce descobertos pelas neurociências Ele enfa tizou sempre a importância fundamental de que os atos realizados com o bebê levassem em conta suas peculiaridades e necessidades não as dos pais ou cui dadores Ao destacar a importância de considerar a sensibilidade da pele a acuidade auditiva e visual e a susceptibilidade às variações de cada um desses as pectos Winnicott propôs uma interação efetiva entre o psicossoma inicial o bebê e sua fisiologia e o meio ambiente que resultaria em integração psicossomáti ca e desenvolvimento emocional em seu sentido mais amplo quando fosse bem feita Hoje com os aportes das neurociências já re latados o domínio das relações iniciais extrapola para um espaço ampliado O ser humano submetido a gestos atos contatos corporais expressões faciais e vocais e outras modalidades de integração interpes soal também possui circuitos voltados para perceber imitar e espelhar sendo as marcas resultantes dessas interações muito mais dinâmicas Prinz e Meltzoff 2002 2003 dizem Não podemos mais manter uma distinção rígida entre os domínios de percepção e ação pela qual vivemos confortavelmente desde os tempos de DescartesO tempo de estudar a imitação parece ter chegado Ela nos informa sobre percepção controle motor os meca nismos subjacentes ao acoplamento percepçãoação e relações selfoutro Durante a próxima década ela pro mete se tornar um caso modelar de pesquisa interdis ciplinar sobre relações entre cérebro e comportamento Psicossomaticaindd 572 Psicossomaticaindd 572 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 573 e iluminar ao mesmo tempo questões cognitivas e tam bém as voltadas para a compreensão da intersubjetivi dade O que vem ficando mais claro com os aportes trazidos pelas neurociências desvendando os meca nismos neurofisiológicos subjacentes aos sentimen tos emoções e afetos é que a importância da pre sença humana junto ao bebê desde o seu nascimento assim como os cuidados dispensados a ele tornou se mais visível e complexa pelo descobrimento dos circuitos e estruturas préexistentes prewired nele Esse conjunto que era anteriormente denominado de maneira inespecífica de constituição fator es sencial para o encontro ou tentativa de encontro com o sujeito original e sua posterior interação saudável ou não com o meio ambiente deu mais visibilidade e consistência ao que anteriormente ficava no terreno da teoria Entendemos que a psicossomática seja o estudo das ligações e interações entre o bebê como evento único do ponto de vista biológico dotado de estru tura genética específica com capacidades incapaci dades e mecanismos de adaptação coping próprios resistência resiliência e vulnerabilidades também específicas Este conjunto vai se encontrar com o meio ambiente também específico onde começa sua vida Desse encontro poderá resultar integração psi cossomática ou não Mesmo potenciais genéticos par ticulares podem ser ativados ou não dependendo do maior ou menor nível de estresse que ocorra durante a gestação Ressaltese que o meio ambiente a que nos refe rimos é de natureza complexa incluindo o universo afetivo e emocional da família as condições socio culturais particulares que a circundam assim como o meio ecológico em que vive Todos estes vetores terão importância no desenho do resultado entre o bebê e todos estes elementos podem e devem ser an tecipados ao prénatal e às relações entre a grávida e seu feto Belmont 2006 Psicossomática e ecologia humana devem ser pensadas antes que o bebê en xergue a luz pela primeira vez KarrMorse e Wiley 1997 dizem As causas de violência são altamente complexas e mul tifacetadas mas um corpo de conhecimento científico vem se acumulando e demonstra que maus tratos du rante os nove meses de desenvolvimento fetal e os 24 meses depois do nascimento com frequência levam a crianças e adultos violentos Os venenos que vêm se acumulando na comunidade humana a partir de maus tratos com os bebês são apenas em parte aqueles já co nhecidos drogas álcool e tabaco Os últimos 30 anos trouxeramnos evidências de toxinas mais sutis mas não menos lesivas ao desenvolvimento primitivo de be bês e crianças estresse crônico e negligência que afe tam o desenvolvimento do cérebro do feto ou do bebê abuso precoce e negligência afetam duradouramente um aprendizado focal depressão crônica dos pais ne gligência ou falta dos estímulos necessários para um desenvolvimento cerebral normal perda prematura de relações primárias ou cortes nos cuidados com os be bês Todos esses são os precursores de uma epidemia crescente de violência que agora aparece na infância e na adolescência p 15 Vejamos o que o pensamento premonitório de Winnicott 1956 nos permite ver a esse respeito na exegese do texto de Abram cf Existe um ponto no desenvolvimento emocional em que o bebê necessita conciliar as raízes pulsionais da motilidade com as da libido Nesse ponto a mãe torna se fundamental para o bebê porque nesse estágio o ego do bebê ainda é bastante frágil para que possa conduzir a tarefa de integração Este é o chamado período da perda original p 51 A autora cita Winnicott Na base da tendência antissocial encontrase uma boa experiência precoce que foi perdida É uma carac terística essencial que o bebê tenha podido atingir a capacidade de perceber que a causa do desastre encontrase em uma falha ambiental Ter o conhe cimento correto de que a causa da depressão ou desin tegração é externa e não interna é responsável pela distorção da personalidade e pelo anseio de buscar a cura através de nova provisão ambiental Um grande número de compulsões antissociais surge e é tratado nos estágios iniciais com algum sucesso pelos pais Antisocial Tendency p 313 É exatamente este último aspecto o que sofreu maiores alterações nas últimas décadas pelas mu danças sociais e culturais que transformaram o perfil tradicional da família assim como os papéis de seus membros Mesmo nos Estados Unidos país com re cursos econômicos infinitamente superiores aos nos sos os autores e as entidades que tratam do tema da violência e da infância como o Fundo de Defesa das Crianças que publica um livro anual intitulado O Estado das Crianças da América 1996 1997 de monstram a seguinte situação apud KarrMorse e Wiley Um bebê nasce de mãe adolescente a cada minuto A taxa de mortalidade de bebês americanos abai xo da idade de um ano é maior do que a de qual quer outra nação ocidental industrializada bebês afroamericanos têm o dobro da possibilidade de morrerem durante o primeiro ano de vida em re lação aos bebês brancos Psicossomaticaindd 573 Psicossomaticaindd 573 05012010 121227 05012010 121227 574 Mello Filho Burd e cols Dos préescolares 25 vivem abaixo da linha da pobreza Uma em cada quatro das crianças abrigadas em cinco Estados pesquisados entrou nos locais de abrigo antes de seu primeiro aniversário Recém nascidos formam a maior parte desses infantes Uma em cada três vítimas de abuso físico é um bebê com menos de 12 meses Cada dia pelo me nos um bebê morre por abuso ou negligência nas mãos de seus cuidadores Três de cada quatro das crianças assassinadas nos 26 países mais industrializados somados eram Americanas Os mesmos autores citados acima acreditam que o período da infância e toddlerhood coincidente com o começo cambaleante da marcha ereta é uma época de grande complexidade durante a qual os po tenciais para um desenvolvimento saudável podem ser aumentados diminuídos ou até mesmo perdidos Acham que pelo interjogo entre o cérebro em desenvolvimento e o meioambiente durante os nove meses de gestação e os dois primeiros anos após o nascimento o núcleo central da habilidade do sujeito para pensar sentir e se relacionar com os outros é formado Maus tratos a um bebê podem levar à perda permanente ou à lesão de fatoreschave de proteção tais como inteligência confiança e empatia que permitem que muitas crian ças sobrevivam e até mesmo superem circunstâncias fa miliares desfavoráveis e traumas posteriores p 15 O relato dramático dessas questões pode ser imaginado em relação aos países da América Lati na onde os problemas econômicos e sociais são in finitamente mais graves e seu significado para uma compreensão atual dos temas ligados à psicossomá tica e ao desenvolvimento saudável pode e deve ser reiterado Em 1949 em A mente e sua relação com o psicos soma Winnicott já dizia que A mente não existe enquanto entidade no esquema in dividual das coisas sempre que o esquema corporal ou psicossoma desse indivíduo tenha evoluído satisfatoria mente desde os estágios mais primitivos O desen volvimento inicial do indivíduo implica um continuar a ser para que ocorra o desenvolvimento saudável do psicossoma inicial é necessário um ambiente perfeito No início o bom ambiente psicológico é na verdade físico com a criança ainda no útero ou sendo cui dada de um modo geral De acordo com esta teoria em todo desenvolvimento individual a mente tem uma raiz talvez sua raiz mais importante na necessidade que o indivíduo tem no cerne mesmo de seu eu de um ambiente perfeito a continuidade do ser necessária ao psicossoma em desenvolvimento é perturbada pelas reações às intrusões ambientais ou seja às falhas do ambiente em relação à adaptação ativa p 332346 Sabemos que essas ideias de Winnicott sobre as relações iniciais entre os bebês e suas mães ou cuida dores primários foram o ponto de partida para suas primeiras elaborações psicológicas nos distúrbios fí sicos da infância Seus trabalhos sobre transtornos alimentares nos anos de 1930 e 1940 já mostram a participação ativa do meioambiente no desenrolar dos quadros Posteriormente ele ampliou sua com preensão sobre a importância dessas interferências nas elaborações sobre o falsoself e as condutas an tissociais entre outros construindo uma teoria de relação a partir da clínica na qual a sintaxe é predo minantemente psicológica Podemos perceber entre tanto o quanto a sua visão era dialógica e complexa ao discutir essas ideias Exemplos clínicos de um período imediatamen te posterior 1942 mostram essa evolução como no caso de Ellen que segundo seu relato era uma crian ça normal física intelectual e emocionalmente até 1 ano quando sua mãe abandonou o marido e a levou junto Depois disso ela passou a ter encontros espo rádicos com ele até os 6 anos quando ele a levou embora de volta para Londres Ela ficou calada e não reclamou O pai se divorciou e casou com outra mu lher com quem Ellen se dava bem As queixas em relação a ela eram de que era artificial sendo im possível alcançarse uma base sincera com ela p 134 Trouxeramna à consulta por ter feito um furto na escola tendo sido a ausência de vergonha o que chamou a atenção de Winnicott Em termos de teoria winnicottianna teríamos que lidar neste caso com os seguintes fatores a o humor da mãe verdadeira era pouco confiável b houve uma separação brusca da menina de seu pai quando ele foi abandonado pela mulher sem aviso e sem discussão do caso c encontros esporádicos com o pai durante cinco anos configurando relacionamento instável d a menina foi separada da mãe biológica também de maneira abrupta em episódio que hoje em dia talvez fosse notificado como rapto Esse conjunto de experiências pode ser entendi do como deprivações sucessivas respondendo direta mente pela artificialidade dificuldade de alcançar se uma base sincera furto e ausência de vergonha que a menina desenvolveu em continuação Os princípios relacionais estabelecidos por ele e outros psicanalistas ligados às teorias das relações objetais e implicados na gênese de distúrbios afetivos e emocionais diversos são hoje em dia ratificados e Psicossomaticaindd 574 Psicossomaticaindd 574 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 575 passam a ter uma base fisiológica empiricamente de terminada O que podemos dizer é que as neurociên cias estão nos ajudando a entender como as relações interpessoais iniciais influem na modelagem e cons trução do cérebro e de suas funções e mais ainda por estarem sendo descobertos mecanismos de remo delação ou reconstituição cerebral a importância da ação psicoterápica vem sendo reafirmada As ligações entre neurologia e psicologia já ha viam sido esboçadas por Freud com seus trabalhos ini ciais mas perderam energia durante décadas e hoje nos permitem sonhar com um trabalho integrado Um dos autores dessa fascinante nova área Co zolino 2002 XVI diz Cursos sobre farmacologia e neurobiologia são agora comuns em muitos Institutos de Psicanálise o treinamento em psicoterapia inclui crescentemente atenção à neurobiologia subjacente ao desenvolvimento psicológico e às relações pais bebês e doenças mentais As ideias de Donald Winnicott têm a nosso ver uma extraordinária importância neste cenário pois ele definiu a importância da mãe e do meioambiente na constituição do ser humano em seu nascimento ressaltou o valor de serem atendidas as capacidades e as dificuldades de cada bebê enfatizou que a eficácia e a estabilidade dessas ações são fundamentais para o estabelecimento de um sujeito verdadeiro capaz de fidelidade a si mesmo e por consequência de pos sibilidade de aceitação e reconhecimento do outro dentro de uma moldura de fundamentos psicossomá ticos Até mesmo sua visão inovadora a respeito da capacidade para estar só 1958 diferenciandoa de retraimento e solidão encontra hoje em dia amparo nas neurociências CLÍNICA PSICOSSOMÁTICA INFANTIL COM UM OLHAR WINNICOTTIANO Vejo no desenvolvimento das teorias psicanalí ticas sobre o desenvolvimento e integração humanos mais integração e continuidade do que confrontos excludentes Desde a criação freudiana de uma teoria complexa marcada como lócus onde se encontram o biológico pulsional o social e o históricocultural a técnica psicanalítica e sua aplicação ao homem con creto da clínica foram sofrendo mudanças que cami nham no sentido das relações primitivas Klein Mahler Bowlby Kohut e Winnicott entre muitos outros autores trouxeram os bebês ao centro da cena analítica ampliando o espectro de possibi lidades terapêuticas da psicanálise No aspecto da compreensão e tratamento dos quadros psicossomá ticos os autores do IPSO fizeram não apenas uma formulação e delimitação conceitual mas criaram o espaço real que permite o seu atendimento Marty Lebovici Fain Kreisler e outros alargaram o campo da atenção aos bebês a partir da criação por Pierre Marty em 1978 do Hospital de La PoternedesPeu pliers o primeiro dedicado exclusivamente à medi cina psicossomáticaKreisler idem p 20 Percebendo que os problemas afetando o desen volvimento humano deveriam ser enfrentados e tra tados desde o início autores como Bertrand Cramer e Francisco PalácioEspasa trabalhando em Genebra formularam de maneira mais organizada o conceito de consultas terapêuticas que já havia sido descrito por Winnicott em 1942 Cramer e PalácioEspasa definiram as terapias conjuntas breves como um tratamento setorial de conflito entre mãe e bebê através de uma redistri buição das projeções parentais e de uma diminuição das interações patogênicas a elas ligadas afetando si multaneamente os investimentos que a criança pode fazer1993 No esquema de CT proposto por eles as tera pias devem ser postas em ação apenas nos casos em que seja determinado um foco principal passível de ser desfeito pela interpretação da patologia relacional e que esta não seja um distúrbio profundo do apego Nas consultas o bebê tem que estar presente junto com a mãe e o terapeuta As consultas são em média 6 e podem variar entre 4 e 12 na frequência de uma por semana Um ponto muito importante é que o início do tratamento é feito pelo encaminhamento do bebê devido a um sintoma que a mãe percebe no filho apud Pereira E 1999 Kreisler cf diz que A psicopatologia da primeira idade contém singulari dades e a idade confere a essa patologia uma pri meira orientação No primeiro período a interação entre os parceiros da díade é o lugar funcional do equi líbrio mental do lactente e de suas disfunções O princi pal objetivo terapêutico e seus instrumentos voltamse para os fenômenos de interação Continua dizendo que o exame psiquiátrico do lactente é feito dentro de uma relação triangular que inclui paiscriançaobservador Sua finalidade é ava liar 1 a patologia do lactente 2 a mãe que evidentemente contém o estatuto paterno 3 a interação mãefilho Kreisler L Cramer B Les bases cliniques de la psychiatrie du nourisson La psychiatrie de lenfant 1981 XXIV 1 Psicossomaticaindd 575 Psicossomaticaindd 575 05012010 121227 05012010 121227 576 Mello Filho Burd e cols 4 O pai a constelação familiar sua estrutura indivi dual e social e a economia de seu funcionamen to ibidem p 363 Podemos observar que os autores citados acima ampliam o espaço da relação mãebebê incluindo o ambiente no qual ela se insere assim como as re lações outras que ali acontecem Esta visão vem ao encontro de ideias winnicottianas a respeito do am biente que pode ser facilitador do desenvolvimento primitivo do bebê ou não Em alguns casos a relação mãebebê acontece em ambientes que chamo de famílias tóxicas Estas são caracterizadas por transtornos transgeracionais como ódio e agressividades não reconhecidos inca pacidade para expressão de sentimentos e de afetos depreciação das funções maternas preconceitos em relação às funções paternas que incluam delicadeza e cuidados com a mulher e o filho pobreza intelectual e afetiva violência física e sexual idealização não rea lística do bebê imaginado Stern 1998 e uso de drogas pela mãe durante a gravidez e no pósparto imediato Nestes casos a relação mãebebê vai estar afetada por múltiplos vetores obrigando a que os dispositivos usuais sejam modificados e ampliados incluindo tratamento de familiares do pai e mesmo a adoção de medidas judiciais Casos difíceis como os dos autores do IPSO ci tados pacientes Melanie e Julienne que chegaram ao êxito letal mostravam graves alterações trangera cionais A tiaavó que cuidou de ambas era visivel mente perturbada nas palavras do autor e sua mãe havia sofrido cólicas nefríticas durante a gravidez e teve depressão puerperal Quero enfatizar uma vez mais que nos casos nos quais o ambiente apresente as características tó xicas já descritas e mesmo nas falhas de interação mãebebê menos profundas o atendimento deve es tar voltado para uma mudança ambiental Seja no caso de mudança da mãe ambiente ou do ambiente maior onde a mãe e seu bebê vivem O material clínico pessoal que apresento agora tenta demonstrar o que pode ser entendido como um olhar winnicottiano dos transtornos psicossomáticos na infância e seu tratamento Um neném do sexo feminino de 1 ano e 2 me ses a quem darei o nome de Clara começou a apre sentar de maneira repentina um quadro de intensa ansiedade aumento acentuado da psicomotricidade insônia severa e recusa em se alimentar A avó ma terna a trouxe à entrevista dizendo que ela sempre tinha sido um bebê calmo tendo se alimentado ex clusivamente ao seio pela mãe até os 6 meses com apetite e sono normais Nunca havia se separado da mãe até poucos dias antes da instalação do quadro quando ela viajou para a Europa junto com o marido para um congresso de sua profissão Deveria ficar 12 dias fora Já na primeira noite Clara não pôde dor mir pois diariamente ficava junto da mãe até pegar no sono Foi levada a seu pediatra que fez um exame completo e nada encontrando fisicamente prescre veu um tranquilizante benzodiazepínico que piorou o quadro inicial de maneira evidente Ao observar a neném percebia muito inquieta no colo da avó virandose em várias direções e não fixando olhar em nós Pegueia no colo e ela se vira va ora fixando os olhos na avó ora olhando para um ponto no infinito localizado na parede O olhar me pareceu triste e sem vida e sua situação me desper tou sentimentos intensos de compaixão e forte preo cupação Pensando em termos winnicottianos ima ginei que ela estivesse vivendo uma deprivação pois o bom e estreito relacionamento que havia mantido com a mãe até então havia sido rompido de maneira brusca Podia imaginar uma alteração aguda do going on being com alterações de temporalidade e do ritmo circadiano Tentando me colocar empaticamente em seu lugar pensei que talvez ouvindo a voz da mãe pelo telefone ela se acalmasse Sugeri isso à avó e liga mos naquele mesmo instante para a mãe que estava aguardando o resultado de nosso encontro Pedilhe que falasse com a filha e ao ouvir a voz conhecida ela parou de se movimentar no mesmo instante fi xou o olhar no telefone e relaxou todo o tônus mus cular até então quase rígido Ficou ouvindo durante mais de 10 minutos e sugeri que naquele dia e até a mãe voltar as duas ficassem em contato telefônico no máximo de três em três horas Suspendi o tran quilizante pelo efeito paradoxal que havia provo cado mas principalmente por achar que a resposta psicossomática à deprivação estava sendo alterada por seu uso O quadro foi diminuindo de modo rá pido e dentro de três dias quando a mãe voltou antecipando a viagem já encontrou a filha em seu estado normal Destaco nesse quadro a importância tanto da estreita relação entre as duas quanto das consequên cias imediatas da interrupção de seu contato por um tempo superior ao que ela tinha capacidade de supor tar naquele ponto de seu desenvolvimento É impor tante também o fato de a mãe haver interrompido sua viagem privilegiando o bemestar da filha e podendo entender e aceitar que sua presença fosse essencial para o equilíbrio da criança Esse fato ratifica o sig nificado da mudança do meioambiente para que se consiga a regressão do quadro psicossomático Depois de retornar ao convívio com Clara eu as vi em duas consultas conjuntas A neném continuava calma sem problemas de sono ou de alimentação Psicossomaticaindd 576 Psicossomaticaindd 576 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 577 Eventualmente recebo notícias de Clara e sei que ela está se desenvolvendo normalmente No segundo caso dois irmãos um menino de 2 anos e sua irmã de 3 aos quais darei os nomes de Roberto e Marta estavam sendo levados no mínimo três vezes por semana à consulta com seu pediatra Ele não encontrava patologias específicas apenas distúrbios respiratórios indeterminados inapetência vômitos e transtornos do sono Por isso resolveu pe dir minha avaliação A mãe compareceu sozinha e disse ser muito nervosa com mania de doenças e que tinha medo de que os filhos morressem o que a perseguia cons tantemente Quando lhe disse que seus filhos não apresenta vam doenças graves e sim disfuncionalidades como coriza febre baixa e perda do apetite ela disse para meu espanto que só se sentia tranquila quando os levava ao pediatra e ele não encontrava nada Dis se que assim se sentia calma como se estivesse se antecipando ao destino e salvando os filhos Contou também que na infância havia passado por situação semelhante com sua mãe Quando eu lhe sugeri que talvez seus filhos estivessem reagindo com alterações funcionais em resposta à sua necessidade de se acal mar ao leválos ao médico reagiu com incompreen são e alguma hostilidade Perguntou se eu a estava achando louca por inventar doenças para os filhos Mesmo assim aceitou começar a ser atendida psico terapicamente e depois de alguns meses pôde esta belecer laços entre sua história infantil e sua atitude com os filhos Notese que mais uma vez a inter venção foi voltada para uma tentativa de alteração das condições emocionais da cuidadora que em sua angústia hipocondríaca e de antecipação onipotente impunha aos dois filhos sua patologia Podemos dizer que a reação dos dois filhos fosse o que Winnicott en tendia como submissão falso self e que eu seguindo conceitos das neurociên cias referidos antes proponho chamar neste caso de alterações psicossomáticas do self por ação estressora do meioambiente A propos ta terapêutica ficou voltada para o atendimento às questões ambientais mais do que para uma atenção direta às crianças naquele momento O terceiro e último caso faz parte de uma si tuação clínica supervisionada por mim Uma colega atendeu uma grávida a quem chamaremos Ângela que era filha de uma mulher da rua e havia sido ado tada quando ainda era bebê O pai adotivo que nunca a registrou formalmente mantinha relações sexuais com a cunhada e assim que a menina ficou mens truada passou a manter relações com ela também Nem ela nem a tia adotiva tinham coragem de falar nada pois ele era extremamente violento e dizia que se sua irmã havia sido estuprada pelo pai ele podia sem qualquer problema fazer sexo com ela que nem era sua filha de verdade Essa situação permaneceu até os 19 anos quando conheceu o marido e foi mo rar em outra cidade O atendimento foi solicitado porque começou a ter medo do nascimento da filha achando que seu marido pudesse fazer com ela o mesmo que seu pai lhe fizera A gravidez começou a apresentar proble mas pois passaram a ocorrer uma angústia desespe radora e dores pelo corpo principalmente na região pélvica diagnostica pelo clínico como fibromialgia A angústia segundo relato da paciente aumentava quando pensava e tinha a certeza de que o marido faria com a filha aquilo que fizeram com ela ou quan do já no sexto mês de gravidez ao entrar numa loja ou numa farmácia não sentia vontade de comprar nada para o bebê O feto passou a ter sua motilidade aumentada mas a gravidez chegou a termo uma vez que a terapeuta conseguiu uma ótima relação com a cliente interpretando seu quadro como resultante das situações traumáticas que havia vivido Creio que possamos levantar a hipótese de que essa gravidez seria uma das muitas que terminam em abortos es pontâneos sem causas físicas comprováveis Antes mesmo do nascimento foi discutido por várias sessões o desejo persistente da paciente de co locar o berço do bebê no quarto do casal apesar de haver um para o bebê Após o nascimento e depois de um breve perío do de encantamento com o bebê voltou a ansiedade a amamentação ficou difícil o que não era bem expli cado e os fantasmas do medo de que o marido vio lentasse a filha reapareceram Ressaltese que o ho mem em questão é uma pessoa tranquila carinhoso tanto com a esposa quanto com sua filha A paciente sempre levou o bebê às consultas e meses depois quando a mãe começou a sentirse ansiosa a tera peuta observou que ela continuava calma e bastante curiosa engatinhando pela sala tocando os objetos Sempre que sua mãe falava de temas que a angus tiavam havia uma sintonia entre as duas pois a neném parecia intranquila e procurava se aproximar da mãe Quando voltou ao trabalho de doméstica na casa da família em cuja empresa seu marido trabalhava ocorreu o seguinte episódio O filho adolescente a respeito de quem o marido da paciente já a havia aler tado pois o achava esquisito uma tarde pediu para ficar tomando conta da neném Como estiveram em silêncio por algum tempo a paciente foi até o quarto verificar e o rapaz estava com a calça abaixada e com o pênis de fora empurrando a cabeça do bebê A mãe deu um berro e o adolescente se recompôs Apesar de a terapeuta ter mostrado de modo claro a seme lhança da situação atual com as ocorridas na história Psicossomaticaindd 577 Psicossomaticaindd 577 05012010 121227 05012010 121227 578 Mello Filho Burd e cols da paciente ela só a muito custo conseguiu enten der o significado da situação e pretendia nem contar ao marido o que havia ocorrido Decidiram não falar nada com os patrões com medo de perderem o em prego tendo sido feita uma entrevista conjunta dos dois com a terapeuta Ficou decidido que ela ficaria no trabalho mas vigiaria a filha impedindo que ela ficasse só com o adolescente Desse episódio podemos observar o quanto as experiências traumáticas de natureza sexual ou não têm uma força e permanência intensas e se não fo rem tratadas e modificadas permanecem como fan tasmas transgeracionais afetando bebês e crianças sem relação direta com o trauma original Mais uma vez podemos observar que a preser vação da integridade psicossomática do bebê só foi possível com a modificação da estrutura psicológica masoquista da mãe que a estava levando a colocar sua filha em risco A paciente continuou em tratamento durante um ano e três meses depois do parto tendo havido importante remissão dos sintomas A alta se deu de maneira normal e a paciente saiu do emprego de do méstica e trabalha atualmente como secretária em outro local CONSIDERAÇÕES FINAIS Donald Winnicott com seus trabalhos iniciais nos anos de 1930 quando ainda não havia completa do sua formação psicanalítica provocou uma profun da transformação no entendimento do adoecer infan til Ele introduziu a importância de serem olhados os aspectos emocionais envolvidos as relações familia res e estabeleceu pontes entre esses diversos vetores desenhando uma visão intersubjetiva das relações humanas e da integração psicossomática que trans formou a prática pediátrica de maneira duradoura Como ponto de partida desta tentativa de con clusão lembramos a singela colocação de Winnicott de que os bebês não nascem com 2 ou 3 anos e que as questões que os afligem em seus desenvolvimentos ocorrem desde o nascimento ou mesmo antes dele Outrossim ressalto que a discussão sobre as raízes dos eventos psicossomáticos feita aqui está circuns crita aos primeiros meses de vida em período ante rior à aquisição da linguagem falada É de um bebê que possui apenas seu corpo e sua fisiologia como meio de expressão de quem falamos Em nosso recorte a essa questão ligandoa às da infância saudável e aos problemas psicossomáti cos acreditamos firmemente que os bebês nasçam orientados para a vida e para o encontro com al guém que a viabilize como qualquer animal Nessa dimensão todos os mamíferos representariam com seu nascimento a expressão concreta do instinto de vida conforme postulado por Freud em oposição ao instinto de morte Cada nascimento seria uma nova oportunidade de usufruir os dons da vida as capacidades de cada espécie e de cada ser vivo em particular No caso dos homens os únicos a terem desenvolvido a percepção da morte e por oposição o sentido e importância da vida o nascimento de um bebê deveria ser mais do que uma imposição instinti va aprisionadora e irremediável Deveria representar uma escolha que envolvesse sempre afinidade amor liberdade e compartilhamento Em O Uso de um Objeto no Contexto de Moisés e o Monoteísmo Winnicott faz um dos raros comen tários sobre a pulsão de morte pela qual diz nunca ter morrido de amores e diz que ficaria muito feliz se pudesse aliviar Freud do ônus de carregála nos ombros por toda a eternidade p 242 É importante destacar que Winnicott faz nesse texto uma ligação explícita ao papel do pai no de senvolvimento infantil vendoo como um exemplo para integração do infante logo após a sua unifica ção Dessa forma podemos ver que o pai pode ser o primeiro vislumbre dado pela criança em direção à integração e à totalidade pessoal A pulsão de morte está nessa visão a serviço do desenvolvimento e da integração uma vez que faz parte do estabelecimento de diversos limites sendo desse modo instrumento da vida em plenitude psi cossomática e intersubjetiva A visão de um hipotético impulso para mor rer é entendida aqui e creio na maior parte da teorização de Winnicott como uma reação lesão por agravamento ou ativação de potencialidades pa tológicas ou submissão a graves falhas privações e deprivações provocadas por um meioambiente não empático ou doente e hostil ao recémnascido que o empurra inevitavelmente em certos casos para a morte Creio que poderíamos falar nesses casos mais de uma impulsão para a morte do que em uma pulsão de morte As recentes pesquisas e evidências trazidas pe las neurociências dizem que Cozolino 2002 idem Até recentemente eram realizadas cirurgias sem anes tesia em infantes porque sua falta de resposta de pro testo era mal interpretada como sendo devida a in sensibilidade à dor Menos de 25 de circuncisões em recémnascidos usam alguma forma de analgesia ape sar das evidências fisiológicas de que eles estão sofren do stress e dor durante os procedimentos p 266 Vemos que mesmo um ato de inclusão cultural como é o da circuncisão para os judeus feito por pais amorosos e desejosos de doar a seus filhos uma rica Psicossomaticaindd 578 Psicossomaticaindd 578 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 579 herança cultural pode ser toldado pela dor e deixar marcas O que pensar então das cicatrizes deixadas pelas ações devastadoras de abuso sexual falta de carinho e maustratos e negligência com crianças e bebês Vimos ao longo do texto que em todos os ca sos de distúrbios psicossomáticos e doenças relata das houve uma clara relação com abusos de diversos graus violando o mais importante aspecto da relação dos pais com seus bebês que é o da proteção Kramer Richards 2006 diz em seu artigo Com preendendo a mãe abusiva no qual analisa a vida e a obra da poetisa americana Anne Sexton que em seu sentido mais importante o abuso infantil pode ser definido como um fracasso da proteção Continua a discussão dos poemas da autora cita da ganhadora do prêmio Pulitzer de 1967 e também do prêmio Shelley Memorial da Sociedade Americana de Poesia analisando as questões ligadas às perver sões quando estas atingem os filhos O aspecto essencial da perversão é a agressiva deshu manização do objetoEscrever sobre as filhas foi nesse caso um aspecto importante do abuso Seus sentimen tos refletem os do abusador quando ela era uma meni na O ponto central deste trabalho não é discutir se o abuso sexual infantil é característico dos artistas O ponto central deste trabalho não é se os pais artistas são menos protetores de seus filhos do que os pais que não o são O centro deste trabalho é que os pais artistas podem nos mostrar as formas pelas quais os que não são artistas são motivados a abusar Os artistas podem articular o que necessitamos acerca do que nossos pa cientes não artistas estão sofrendo p 257 Em outro momento de seu texto a autora diz que de modo claro os dramas e ofensas sofridas por Sexton são repetidos com suas filhas e afirma que uma mãe tão ferida com tantas cicatrizes volta seu dano sobre suas filhas e cria uma outra geração de mães que a menos que recebam ajuda e apoio também abusarão de suas crianças p 255 Uma pergunta se impõe a título de encerramen to deste capítulo O que pode ser feito por nós para prevenir que tão dramáticos e devastadores eventos continuem a ocorrer ainda hoje No Encontro Latinoamericano sobre o Pensa mento de Winnicott realizado em 2006 em Buenos Aires apresentei o trabalho Projeto Criação uso de teoria Winnicottiana no prénatal de adolescentes Este foi pensado em razão das descobertas atuais que demonstram claramente que diversas situações es tressoras durante a gravidez causam danos que vão alterar significativamente as possibilidades de inte ração mãebebê e seu desenvolvimento e integração posteriores No texto propus o uso dos conhecimentos psicanalíticos e de psicologia do desenvolvimento acumulados desde que os textos pioneiros de Freud inauguraram a psicanálise somados em uma visão transdisciplinar àqueles trazidos pela sociologia po lítica economia direito e neurociências Apesar des ta moldura a proposta é singela em sua execução O trabalho é para ser feito por equipe multiprofis sional composta por psicanalista e psiquiatra psicó loga assistente social fisioterapeuta acadêmico de enfermagem e estagiário de direito atuando na vara de família atendendo grupos formados por até 10 grávidas de 12 a 21 anos durante toda a gestação e até o segundo ano de vida dos bebês O singelo a que me referi antes diz respeito à maneira simples e carinhosa com que elas serão ouvidas em conversas a respeito de suas necessidades alegrias e medos co tidianos Haverá um máximo de quatro grupos sendo três submetidos ao prénatal comum somado ao atendimento psicoterápico em grupo e individual sempre que a equipe detecte alguma situação social ou emocional que requeira atenção específica Dentro de um cuidar com visão multiprofissional problemas como desemprego dos pais uso de drogas prisão ou violência excessiva podem ser atendidos de modo direto e otimistamente solucionados As grávidas serão provenientes de grupamentos socioeconômicos menos favorecidos encaminhadas por ONGs igre jas ou programas públicos de atendimento médico familiar O outro grupo que servirá de controle não receberá a atenção psicoterápica proposta apenas o prénatal regular e para que não haja um senti do de orfandade frente aos outros três deverá vir de outra comunidade ou serviço Nossa ideia é fazer uma avaliação qualitativa e quantitativa levando em conta parâmetros de incidência de problemas fetais como circulares de cordão motilidade exacerbada baixo peso defeitos congênitos prématuridade ao nascer etc Esses dados serão contextualizados com a história emocional de cada uma das grávidas em atendimento buscando correlações Faz parte do pro jeto a realização de três ultrassonografias no tercei ro sexto e nono meses de gestação Um ponto específico do Projeto Criação é o uso de fantoches criados por mim aos quais dei nomes como o seio falante a mãe má a avó sabetudo o marido rapper e a madrasta bruxa entre outros Minha intenção foi usar com as adolescentes muitas bem jovens e com traços ainda fortes de pensamento infantil com aspectos mágicos atuantes os conceitos de Winnicott 1971 sobre a importância do brincar na construção de uma realidade mais rica e criativa A ideia contida no projeto é usar os temas deba tidos naquele texto na intenção de agenciar as ado Psicossomaticaindd 579 Psicossomaticaindd 579 05012010 121227 05012010 121227 580 Mello Filho Burd e cols lescentes pelo brincar e nessa interação participar em alguma medida do que Stern chama da criação do bebê da fantasia da grávida que vai ter que se confrontar com o da realidade após o nascimento Em esquetes e encenações conjuntas feitas com a equipe muitos temas de difícil abordagem como a aparência do bebê desemprego e violência dos ma ridos namorados e ficantes ou as intromissões da avó sabetudo que pode estar dizendo algo como Você ainda pensa em sexo mas na minha época ser mãe era ter a Virgem como modelo podem ser discutidos e enfrentados Outros ligados à própria juventude das adolescentes e o luto de seu corpo e preocupações com mudanças físicas podem ser dis cutidas pelo seio falante ou a barriga com estrias mas ainda sexy A ideia é que o humor seja muito im portante para lidar com temas tão difíceis que ficam mais fáceis de serem ouvidos e modificados com um sorriso nos lábios Se acreditamos que seja principalmente sobre o meioambiente que as intervenções terapêuticas de vem ser feitas nossa intenção com o Projeto Criação é antecipar ao prénatal o conceito de ambiente fa cilitador e mãe suficientemente boa de Winnicott criando um meioambiente prénatal facilitador O colega Samuel Hulak comunicação pessoal disse que se formos realmente buscar as origens das questões psicossomáticas devemos pensar em um amor imunológico que permite a nidação do óvulo fecundado e sua evolução como ovo Nossa visão sobre as questões de psicossomática na infância abraça esta ideia e a estende ao cenário onde acontece o encontro entre este homem e esta jo vem ou mulher que irá engravidar Todo esforço deve ser feito para que ele aconteça dentro de um clima de amor e desejo liberdade de escolha e amor pelo bebê ainda não nascido que não deveria vir para servir a outro objetivo que não o de existir Nossas crianças hoje e no futuro merecem a chance de simplesmen te viver com amor e saúde pois como disse David Chamberlain um dos fundadores da Associação para a Psicologia e Saúde Pré e Perinatal existem evidên cias de um tipo de memória rudimentar armazenada em nível sensorial durante os últimos meses de ges tação Cientistas como Allan Schore e Joseph LeDoux nos lembram que desde que os bebês não têm nem razão nem memó ria explícita e desde que a maioria de nós não possui memórias conscientes anteriores aos 2 anos de idade pode parecer que esse período tenha pouca influência em nosso funcionamento presente Schore diz que por que o córtex órbitofrontal é a única que se projeta dire tamente ao hipotálamo e aos centros autonômicos loca lizados profundamente no cérebro ele age como centro de controle ao mesmo tempo sobre os sistemas sim páticos e parassimpáticos que geram os componentes corporais das emoções Diz ainda que o período crítico para o desenvolvimento desse sistema coincide com o período extensamente investigado por pesquisadores das ligações primitivas A ligação do bebê com a mãe cria a fonte a partir da qual os circuitos de processa mento emocional das relações é implantado LeDoux lembra que a amígdala junto com o hipocampo no sis tema límbico podem explicar o que os analistas vêm dizendo há décadas eventos no início de nossas vidas em particular os marcados por fortes emoções podem ficar e permanecerem durante toda nossa vida Karr Morse e Wiley p 1945 O going on being de Winnicott não é apenas um conceito teórico ligado à atenção e à dedicação individualizadas a que todos os bebês deveriam ter direito ao nascerem É uma realidade imperiosa para um desenvolvimento integrado em termos humanos e psicossomáticos Em Pediatria e Neurose na Infância Winnicott mostra as diversas formas algumas singelas como levar a criança de férias ou comprar um cachorro capazes de ajudar a criança a enfrentar suas dificul dades iniciais Vemos que ele usa nesse texto a ideia impor tante de prevenção da doença psicológica quando tentamos dar o que é necessário nos estágios iniciais da infância e termina o capítulo dizendo Neste ponto serei dogmático e pessoal Passei minha vida profissional com um pé na pediatria e outro na psi canálise Gostaria de assinalar como ponto central de minha contribuição que mais cedo ou mais tarde será reconhecido que a ciência subjacente à pediatria psicológica já existe na forma da psicologia dinâmica ou seja na psicologia dos processos conscientes e in conscientes derivada de Freud A psicanálise tanto como ciência quanto tendo em vista a formação que pode oferecer merece coexistir com a fisiologia Peço aqui e agora o respeito das ciências físicas pela psicanálise e o peço especialmente aos que não gostam dela Não gostar da psicanálise não é argumento contra ela p 422423 A luta pela integração científica e clínica que Winnicott prescreve no texto acima continua até hoje assim como as resistências contra ela impedindo que a existência humana possa começar com uma infân cia pacífica e integrada psicossomaticamente Podemos ver na literatura especializada im prensa e literatura geral e poética que a falta dessa integração resulta nos dramas e infelicidades que cor rem de geração em geração e é nossa obrigação tentar minorar Psicossomaticaindd 580 Psicossomaticaindd 580 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 581 REFERÊNCIAS Abram J 2000 A Linguagem de Winnicott dicionário das pala vras e expressões utilizadas por Donald Winnicott Revinter Rio de Janeiro 2000 Belmont S A 2006 Projeto Criação Uso de teoria Winnicot tiana no pré e perinatal de adolescentes Apresentação em mesa redonda no Encontro latinoamericano sobre o Pensamento de Winnicott B Aires dezembro de 2006 Cozolino L 2002 The Neuroscience of Psychoterapy building and rebuilding the human brain WW Norton Company NYork London 2002 Cramer B PalacioEspasa F 1993 Técnicas psicoterápicas mãe bebê apud Pereira E Técnicas psicoterápicas mãebebê estudos clínicos e técnicos 1993 A Psicológica 1999 vol 17 número 2 pg 360362 Lisboa Freud S 19201922 Além do Princípio do Prazer Psicologia de Grupo e Outros TrabalhosImago Rio de Janeiro 76 Hulak S 2007 Alexitimia e pseudoalexitimias texto recebido por Email Recife 2007 KarrMorse R Wiley M 1997 Ghosts from the Nursery The Atlantic Monthly Press N York 1997 Kreisler L 1999 A Nova Criança da desordem Psicossomática Casa do Psicólogo São Paulo 1999 Leboyer F 1979 Nascer Sorrindo Editora Brasiliense 1979 1998 Shantala uma arte tradicional massagem para bebêsGround Editora sétima edição1998 São Paulo LeDoux J 2002 Synaptic Self how our brains become what we are Penguin Books NY Meltzoff A N Prinz W eds 2002 2003 The Imitative Mind Development Evolution and Brain Bases Cambridge University Press 2002 Mello Filho J 1992 Psicossomática Hoje Artes Médicas Porto Alegre 1992 1995 O ser e o viver uma visão da obra de Winnicott primeira impressão revista Artes Médicas Porto Alegre RS Richards A K 2006 Comprendiendo A La Madre Abusiva in La maternidad y sus vicisitudes hoy ed por Zelaya C Talledo J Dupuy E 2006 Lima Perú Shonkoff J Phillips D eds 2000 From Neurons to Neighbou rhoods The Science of Early Child Development National Rese arch Council USA 2000 Stamenov M Gallese V 2002 Mirror Neurons and The Evolu tion of Brain and Language Jon Benjamins Publishing Company Amsterdam Philadelphia 2000 Stern D Stern NB 1998 The Birth of a Mother how the motherhood experience changes you forever Basic Books NY 1998 pg3241 Welldon Estela V 2006 Por Qué Se Desea Tener un niño in La maternidad y sus vicisitudes hoy ed por Zelaya C Talledo J Dupuy E 2006 Lima Perú Winnicott W D 1936 O Apetite e os problemas Emocionais in Da Pediatria à Psicanálise 19582000 Imago Rio de Janeiro 2000 p91 1948 A Reparação Relativa à Defesa Organizada da Mãe contra a Depressão idem p 156 1945 Desenvolvimento Emocional Primitivo idem p 218 1949 Memórias do Nascimento Trauma do Nascimento e Ansiedade idem p254 1949 A mente e sua relação com o Psicossoma idem p227 1956 Preocupação Materna Primária idem 1956 Pediatria e Neurose na Infância idem pp 417 423 1971 O Brincar a Realidade Imago 1975 Rio de janeiro Psicossomaticaindd 581 Psicossomaticaindd 581 05012010 121228 05012010 121228 O primeiro caso de diabete foi constatado no Egito em 1500 aC como uma doença desconhecida Diabete em grego quer dizer sifão devido aos sintomas da doen ça que provoca sede intensa e grande quantidade de urina O termo diabete foi usado pela primeira vez em 250 aC por Apolônio e Memphis Só adquire a termi nologia mellitus que no latim quer dizer mel no sé culo I dC Logo a patologia passa a ser chamada de uri na doce Gama 2002 citado por Marcelino 2005 Entre 1986 e 1988 com o apoio do Ministério da Saúde e do CNPq realizouse um censo nacional sobre a prevalência do diabete no Brasil Este estu do mostrou uma prevalência de 76 na população entre 30 e 69 anos Um dado importante foi de que quase 50 dessas pessoas não conheciam o diag nóstico Para mostrar como a doença é minimizada na sua importância iremos apresentar dados de uma pesquisa recente Um grupo de discussões foi realizado para ve rificar qual seria a percepção dos participantes a res peito da gravidade das principais doenças Em uma escala de 1 a 10 foi pedido aos participantes desse grupo para classificar a gravidade de vários proble mas de saúde incluindo câncer doenças do coração e diabete O câncer e as doenças cardíacas foram clas sificadas como 9 e 10 e o diabete só ficou em 4 e 5 na escala Larry Hausner diretor da ADA Associação Americana de Diabete que comandou as discussões disse que havia pouco conhecimento dos participan tes sobre tudo relacionado ao diabete DM O con senso geral parece ser existem remédios veja como as pessoas parecem estar bem com diabete ou nunca ouvi falar de ninguém que morreu de diabete diziam as pessoas do grupo wwwportaldiabetescombr 2008 Mas o diabete é tudo menos uma doença insig nificante e a discrepância entre a percepção e a reali dade é particularmente preocupante numa época em que o número de diabéticos está aumentando bem como dos que apresentam intolerância à glicose e dos prédiabéticos Sem dúvida o DM é tratável e um leque de medicamentos e de ferramentas de monitoramento melhorou incrivelmente a qualidade dos cuidados aos pacientes Mas manter a doença sob controle exige constante vigilância e cuidados dispendiosos Focados na sua doença e com acesso à assistência médica regular os pacientes têm uma boa chance de mantêla controlada e com uma boa qualidade de vida O diabetes mellitus segundo vários autores Graça Burd e Mello Filho 2000 Grünspun 1980 Anjos 1982 Ajuriaguerra 1976 Joode 1976 e Debray 1994 citados por Marcelino 2005 é uma doença psicossomática ou seja que sofre influência de fatores psicossociais em sua etiologia O DM é uma doença multifatorial e a medicina sozinha não conse gue dar conta de ajudar no controle da doença para que não haja complicações Silva 1994 citado por Marcelino et al 2005 afirma que doença psicossomática é qualquer alte ração somática física decorrente de sofrimentos psíquicos diferentemente da somatopsíquica que é qualquer alteração psíquica decorrente de sofrimento físico por exemplo os efeitos psíquicos sofridos pelo indivíduo que possui uma enfermidade crônica ou uma debilidade física Sendo assim o diabetes melli tus pode ser tanto uma doença psicossomática quanto somatopsíquica Segundo definição de Mello Filho 2008 A do ença psicossomática é qualquer doença do corpo isto é física que se inicia ou se potencializa pela ação de fatores psicossociais no seu desencadeamento evolu ção e agravamento O diabetes mellitus é uma doença psicossomática porque ela se inicia frequentemente numa fase de estresse emocional e sofre a influência de fatores ou de distúrbios somáticos na sua evolu ção Como doença orgânica influencia o psiquismo daqueles que a apresentam O diabetes mellitus não é apenas uma doença mas um grupo de distúrbios metabólicos Muito já se descobriu desde 1500 aC quando um antigo texto egípcio relacionava remédios para várias patologias inclusive para uma que era considerada misteriosa 47 DIABETES MELLITUS UMA VISÃO PSICOSSOMÁTICA Miriam Burd Psicossomaticaindd 582 Psicossomaticaindd 582 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 583 e na qual as formigas eram atraídas pela urina dos doentes A ciência muito já avançou desde que os douto res canadenses Banting e Best em 1921 descobriram a insulina A tecnologia se aperfeiçoou e já se dis põe de bombas infusoras de insulina que podem ser programadas e acopladas ao corpo do paciente e mo dernos aparelhos para medição da glicose no sangue que de longe se parecem ao primeiro glicosímetro patenteado em 1968 que pesava quase um quilo Não existe diabete emocional um mito que ain da hoje faz parte do imaginário das pessoas O estres se emocional por qualquer motivo não é o causador de diabete mas quem é portador pode fazêlo evoluir mais rápido vivendo sob o mesmo Algumas vezes os pacientes que desconheciam que eram diabéticos des cobrem a elevação da taxa durante um evento emo cional fazendo essa relação causaefeito Alguns indi víduos que apresentavam diabete leve assintomático podem descobrir a doença nessas situações Entretan to variações emocionais podem alterar o controle do diabete naqueles indivíduos portadores da doença O estresse libera hormônios que aumentam a glicose e muitas vezes reagimos a ele comendo ou bebendo mais ou nos exercitando menos O que sabemos é que o diabete pode causar mu danças no comportamento A autoestima ou o equi líbrio das emoções podem ser afetados pela presença da doença que muitas vezes causa surpresas ao por tador É necessário um acompanhamento do pacien te por uma equipe de saúde multidisciplinar médi co enfermeiro psicólogo nutricionista odontólogo educador físico etc para tratar essa doença crônica que interfere sobre todos os aspectos da vida Para Jeammet Reynaud e Consoli Os suces sos da medicina na atualidade ressaltam o papel dos fatores patogênicos ligados ao meio ambiente na saúde e a importância da prevenção das doenças Considerar o órgão doente é necessário mas não suficiente Devese levar em conta os parâ metros ligados à personalidade do doente inserido no ambiente O desempenho ou o resultado de qualquer pes soa ao enfrentar problemas de risco à saúde é mui to menos determinado pelo fator vivenciado e muito mais relacionado às fontes de recursos disponíveis para se buscar um apoio nesses momentos Há indi cadores pessoais como a percepção do risco o nível de informação o envolvimento emocional as habi lidades cognitivas a maturação e outras dimensões do desenvolvimento que modificam a percepção da situação e risco vivenciados Há também indicadores globais como pobreza desagregação familiar exposi ção à violência etc As pesquisas demonstram que o diabete está muito relacionado com o estado emocional dos seus portadores e que o acompanhamento psicológico é de suma importância para que o paciente e sua família possam elaborar os aspectos emocionais da doença e assim minimizar os sofrimentos psíquicos O psicólogo deve estar sempre presente nas equipes de saúde e o seu trabalho poderá ser realizado com o indivíduo por tador o grupo de pacientes e com a equipe de saúde Esse capítulo pretende dar uma visão geral das várias facetas dos vários diabete Os indivíduos são diferentes entre si bem como o são os portadores de diabetes mellitus Tudo vai depender de como se de ram as suas experiências anteriores à doença como foi a sua abertura de como a família e os amigos rea giram frente ao diagnóstico de como soube que era diabético da relação que consegue estabelecer com os profissionais que o tratam etc Na primeira parte privilegiaremos o diabete tipo 1 através de um caso clínico de um adolescente que des cobre a doença com uma complicação aguda a cetoa cidose diabética A segunda parte irá enfocar o diabete tipo 2 através de um caso clínico de paciente diabético já com complicação crônica a retinopatia diabética A terceira parte abordará o diabete tipo 2 no idoso e o tra balho de grupo Acreditamos que dessa forma também possamos dar uma visão geral das diversas formas de atendimento no hospital geral em consulta conjunta e em grupo de apoio psicológico e no consultório priva do em terapia de apoio psicológico O diabete e os diabéticos são diferentes mas todos os seus portadores enfrentam as mesmas vi cissitudes e dificuldades Tudo vai depender dos re cursos internos do portador Entre sentirse escravo da doença e aceitar a doença e o seu tratamento como fazendo parte da sua nova vida há um longo caminho a percorrer Com certeza aceitando que a doença é psicossomática todos os envolvidos percor rerão esse caminho com mais facilidade PRIMEIRA PARTE Caso clínico evolutivo Da cetoacidose à alta hospitalar Marcos adolescente 15 anos abertura aguda do DM1 Através de um caso clínico que vai ser desen volvido abaixo procuraremos descrever e explicar O presente caso clínico foi apresentado em parte na primeira mesa do Simpósio A Equipe Multidisciplinar no tratamento do Diabetes Mellitus da Sociedade Brasileira de Diabetes RJ 16 de agosto de 2008 Psicossomaticaindd 583 Psicossomaticaindd 583 05012010 121228 05012010 121228 584 Mello Filho Burd e cols o trabalho da psicologia nos diversos setores de um hospital geral e de emergência No Setor de Emergência Marcos foi admitido no Setor de Emergência A avalia ção do paciente revelou dor abdominal generalizada encontravase letárgico com sede intensa pele extre mamente seca e tinha hálito cetônico O diagnóstico médico foi de cetoacidose diabética primodescom pensação desidratação intensa e encaminhamento para o CTI O profissional psi uma psicóloga que integrava a equipe do Setor de Emergência também atendeu o adolescente e sua família Estavam muito ansiosos in seguros e com medo do diagnóstico e prognóstico Este estado emocional se intensificou quando soube ram da necessidade de encaminhamento para o centro de tratamento intensivo Já tinham alguma ideia sobre o diabete porque o avô paterno de 70 anos de idade era diabético tipo 2 há alguns anos Esse foi o primeiro contato da psicóloga com Mar cos e sua família Boa tarde meu nome é Miriam e sou a psicó loga do setor Seu nome é Marcos não é E vocês são seus pais Foi bom também encontrar o Dr Álvaro que está passando para vocês o diagnóstico e a necessidade de encaminhamento para o CTI Vim até vocês porque procuro acompanhar de perto todos os pacientes que abrem o quadro de diabete Nesse momento vocês devem estar ansiosos com toda essa crise e precisan do de ajuda psicológica É comum e normal que vocês estejam dessa forma preocupados e com medo prin cipalmente ao ouvir as palavras Diabete tipo 1 e CTI não é Doutor Álvaro é importante que o senhor possa ajudálos nesse momento dando algumas explicações sobre o que vai acontecer de agora em diante Essas explicações rápidas podem diminuir a ansiedade dessa família e facilitar as providências que estão por vir A família se coloca através das palavras da mãe Isso mesmo embora o avô paterno tenha diabe te do tipo 2 ele nunca veio parar numa emergência e não precisou ficar num CTI Ele é idoso tem 70 anos e ficou diabético há dois anos Mas o Marcos é tão jovem vai tão bem no colégio é bom aluno e joga futebol mui to bem Como isso veio a acontecer com ele Dr Álvaro responde O que aconteceu com ele é que pelo o que vocês relataram dos sintomas como emagrecimento sede e fome intensa e urinando muito nisso já está ocorrendo aumento de açúcar há alguns dias O quadro de saúde do Marcos se agravou muito a glicemia está muito alta e ele já está com cetoacidose Não podemos mais per der tempo porque tudo pode se agravar mais O CTI é para pacientes que precisam de cuidados intensivos e possam ser tratados com maior rapidez e eficácia A equipe é grande muito competente e vai tratar do Mar cos muito bem É uma questão de poucos dias e vocês poderão vêlo nos horários de visita e saber notícias sempre que telefonarem A Dra Miriam também faz parte da equipe de lá e continuará atendendo o Marcos e vocês Vou estar acompanhando de perto Marcos o que você tem é diabete tipo 1 seu pâncreas não está fabricando insulina é necessário ministrar insulina através de injeções Marcos também se coloca Isso que eu tenho é igual à doença do meu avô Estou me sentindo tão mal e estou com medo Já perdi colégio prova e o jogo de futebol O senhor disse que estou diabético O que mais eu vou perder Tenho um colega do clube que toma insulina no banheiro Ele me disse que toma injeção todos os dias Vou ter de fazer isso Eu peguei do meu amigo A psicóloga pede ao Dr Álvaro para dar mais uma resposta E acrescenta Precisamos ser breves para começar o tratamen to logo Dr Álvaro o Marcos e sua família têm medo porque a doença abriu de uma forma aguda esse e ou tros sentimentos passam pela cabeça de qualquer um que não entende porque aconteceu isso com eles As informações também fazem parte do tratamento O im portante é saber agora que o tratamento já começou e vai continuar no CTI Estaremos lá para continuar a ajudálos Fiquem calmos e Marcos colabore As per guntas vão ser respondidas aos poucos Dr Álvaro encerra a consultaconjunta A Dra Miriam resumiu muito bem para mim e para vocês esses sentimentos e as perguntas são nor mais e irão sendo respondidas em etapas Confiem e vamos ter de leválo já A Psicologia Médica no Setor de Emergência Trabalhando com medos mitos e os mecanis mos de defesa frente ao adoecimento Quando a doença o DM1 abre de forma abrup ta como uma crise aguda o paciente pode sofrer um impacto diante da doença grave e ser levado a um hospital com uma complicação a cetoacidose Com o impacto vem o medo da morte e alguns mecanismos de defesa são acionados para proteger o portador e no caso sendo um adolescente também a sua família que veio trazêlo Eis alguns dos mais importantes Por parte do paciente ansiedade medo diante do desconhecido dúvidas o que eu tenho o que vai aconte cer comigo o que eu fiz de errado para onde vão me levar minha família vai poder ficar comigo vou demorar a ficar bom há perigo de morte inconsciente ou não Por parte da família ansiedade e dúvidas o que o meu filho tem o que vão fazer com ele para onde será levado o que fizemos de errado há perigo de morte ele vai ficar bom em quanto tempo Psicossomaticaindd 584 Psicossomaticaindd 584 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 585 Por todos os envolvidos impacto diante do diagnóstico expresso por dúvidas mitos e preocupações será que en tendemos bem o que nos explicaram o que é diabete tipo 1 ele vai ter de tomar insu lina o que ele comeu para ficar assim quem tem diabete fica cego amputa o pé ele vai ter de fazer dieta a vida toda tem cura o que eu fiz por merecer estou sendo punido O trabalho da Psicologia Médica se deve pau tar em acolher o paciente e sua família no sentido de au mentar a autoconfiança e a autoestima deles ajudar no sentido de manter a integralidade biop sicossocial dos envolvidos condição decisiva para favorecer os cuidados com a doença ajudar na coesão da equipe de saúde da unidade esclarecer os mecanismos de defesa que estão sendo usados no momento de crise aguda aos en volvidos no processo ajudar a encontrar os recursos psicológicos e am bientais a fim de viabilizar o aumento de coping conjunto de estratégias utilizadas para as pessoas se adaptarem a circunstâncias adversas favorecer as estratégias de enfrentamento para lidar com o estresse do momento de crise e com a doença encontrar os recursos necessários para o adven to de resiliência capacidade de recuperação dos mecanismos de adaptação após algum dano do paciente e demais envolvidos O acolhimento do paciente e de sua família Apresentação do diagnóstico e prognóstico Acolher o paciente e sua família é fornecer o holding suporte necessário para que ele não se en tregue à eclosão da doença e sua instalação cons trua um sentido próprio para ela e possa receber o diagnóstico e prognóstico do médico bem como as outras informações que estão e estarão sendo forne cidas pela equipe Para um adolescente isso signifi ca mais ainda uma ferida ao seu narcisismo no seu sentimento de onipotência e imortalidade levando a uma vivência de fragilidade e dependência em rela ção aos outros Há o impacto do diagnóstico de uma doença crônica o DM1 no início pode haver o mecanismo de defesa a negação que protege o paciente e sua família através de algumas racionalizações que po dem ser usadas O diagnóstico pode estar errado meu filho vai ficar bom tudo isso vai passar logo vou sair daqui A negação é a principal defesa da fase aguda da doença A esse mecanismo citado pode se seguir o da regressão onde o paciente se deixa cuidar de forma passiva havendo um afrouxamento de funções e ati tudes mais adultas e deixando aflorar aspectos mais infantis e dependentes Esses mecanismos de defesa podem ser bem vindos no início ou abertura da doença mais adian te no entanto não devem ser estimulados eles serão prejudiciais para o autocuidado e aceitação por parte do paciente da doença crônica Admitido no CTI a equipe médica realizará Hidratação e correção gradual da hiperglicemia outros procedimentos A Psicologia Médica no CTI Acolhimento do paciente na CTI onde ele será monitorado e medicado o psicólogo é um mem bro da equipe de um CTI É esperado que o paciente regrida para se deixar cuidar o tratamento é bastante invasivo e inten sivo o ambiente é estressante há necessidade de melhorar as relações das pessoas que estão envol vidas Se o paciente confiar e colaborar com a equipe de saúde a ansiedade será menor e os procedimen tos sentidos como menos dolorosos As dúvidas quanto à sua doença continuarão exis tindo numa unidade intensiva o estado grave da saúde do paciente o impedirá de absorver todas as informações recebidas ele se volta para si mes mo num mundo seu onde o que importa é o seu corpo enfermo As vivências de morte e de desamparo deverão ser acolhidas pela equipe a ansiedade deverá ser contida às vezes medicada o estresse é intenso e o paciente poderá apresentar reações depres sivas à medida que a negação diminui e ele vai tomando consciência de sua doença esse quadro pode muitas vezes diminuir quando o médico der um nome à doença e introduzir um significado para aquilo que atinge o doente Observação Outros procedimentos serão pos síveis de acordo com o estado de saúde grave le tárgico com acentuada melhora etc do paciente Psicossomaticaindd 585 Psicossomaticaindd 585 05012010 121228 05012010 121228 586 Mello Filho Burd e cols a família deverá ser atendida individualmente ou em grupo de familiares do CTI Moncada Leite D 2000 2007 Marcos na medida em que houve melhora do quadro clínico começa a se mostrar ansioso no CTI A enfermagem pede ajuda da psicóloga da equipe Dra Miriam pede que ela a acompanhe para uma consultaconjunta A equipe já está acostumada com esse tipo de intervenções Pergunta a psicóloga Olá Marcos como está essa manhã A Dra Sonia me pediu que viesse até o seu leito para atendêlo Pedi a ela que me acompanhasse Em que podemos ajudá lo Marcos responde Bom dia Estou me sentindo bem melhor mas é muito difícil para mim Neste lugar só tem pacien tes graves que estão dormindo A equipe corre de um lado para o outro À noite passada quando ia começar a dormir soou uma campainha e os enfermeiros come çaram a fazer uma porção de coisas com o doente do meu lado Fiquei nervoso e acordado a noite toda Fi quei com medo de que ele morresse Quando vou poder sair daqui A psicóloga se coloca Dra Sonia você estava certa quando me pediu para atendermos o Marcos O adolescente quando fica um pouco melhor de saúde se torna impaciente e an sioso para sair O CTI é um lugar muito estressante por que os procedimentos precisam ser rápidos e eficientes Quase sempre acontecem eventos como esse da noite passada É um correcorre geral e a maioria dos pacien tes é adulto ou idoso grave e sedada Como podemos ajudar o Marcos A enfermeira responde Vejo Marcos que sua alta daqui não deve demo rar você está melhor e paciente melhor reclama e pede para sair Peço a você que entenda que num CTI os apa relhos às vezes disparam precisamos ser rápidos Isso quer dizer que um paciente precisa mais de nós do que os outros Tente se acalmar logo o médico vai passar a visita e ver como você está Eis que entra o Dr Álvaro nos vê e vem ao nosso encontro Olá Marcos já li seu prontuário e a evolução está conforme o esperado Logo você vai poder sair daqui Pela presença da psicóloga e da enfermeira posso pres supor que você está sendo atendido por elas Em que posso também ajudar A psicóloga responde Dr Álvaro nós acabamos de dizer o mesmo que o senhor falou agora A ansiedade do Marcos é normal no caso de já estar apresentando melhoras A palavra do médico tem um peso muito grande sobre o paciente responder algumas dúvidas e conversar com o Marcos sobre o que está acontecendo com ele é muito impor tante É assim que se estabelece uma boa relação médi copaciente e melhora por parte do paciente a compre ensão da situação e a sua adesão ao tratamento Marcos você quer me fazer alguma pergunta ou fazer algum pedido pergunta o médico Dr Álvaro o que eu tenho é diabete como do meu avô e do meu amigo do clube pergunta Marcos O Dr Álvaro responde O que você tem é igual ao diabete de seu amigo Você disse que ele toma insulina todo dia É do tipo 1 Do seu avô é do tipo 2 Pode ser que mais tarde ele também precise tomar insulina A Dra Sonia pode me ajudar nesse ponto A enfermeira se coloca Dr Álvaro Marcos o seu pâncreas já não está fabricando toda a insulina de que você precisa Agora você a está recebendo por infusão contínua de insulina regular endovenosa em bomba de infusão mais tarde isso vai ser realizado sob a forma de injeção exógena de fora e você e sua família vão aprender a fazer isso A psicóloga se coloca Então Marcos sua principal dúvida foi respon dida Você está mais seguro agora O principal agora é confiar na equipe de saúde do CTI nos chamar quando precisar e se deixar cuidar Esses sentimentos são nor mais na sua situação e os demais profissionais sabem que esse tipo de consultaconjunta à beira do leito é importante para deixar o paciente mais tranquilo e co laborativo Dr Álvaro complementa A vinda da psicóloga para a equipe nos ajudou a entender a parte psicológica de nossos pacientes Quando ela não está presente às vezes me arrisco e faço um pouco o trabalho dela A enfermeira completa O trabalho em equipe facilitou nosso trabalho dá para ver o resultado desse nosso encontro hoje com o Marcos Podemos sair daqui certos de que o Marcos vai ficar mais tranquilo no tempo que lhe resta no CTI A psicóloga resume Obrigado aos colegas e a você Marcos Podem nos solicitar mais vezes Você deve estar querendo falar um pouco comigo sobre o que está precisando enfren tar e as mudanças que serão necessárias Pois bem O médico e a enfermeira pedem licença e se afas tam Marcos está bem e concorda em conversar com a psicóloga Acabada a sessão de apoio psicológico os dados da consultaconjunta e o atendimento individual são pas sados sucintamente para o prontuário do paciente É colocada também uma prescrição O paciente Marcos está na fase da adolescência e passou por uma crise aguda As consultasconjuntas da equipe podem ser solicitadas por qualquer profissional do CTI sempre que forem necessárias Elas ajudam a acelerar o processo de alta Após dois dias Marcos se apresenta ainda ema grecido Demonstrase amedrontado entristecido e ansioso mas bastante colaborativo com o tratamen to Está corado hidratado os vômitos cederam e a diurese normalizouse A cetonemia está negativa Psicossomaticaindd 586 Psicossomaticaindd 586 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 587 Não refere dores e não apresenta tosse Iniciou insu lina subcutânea e alimentação via oral Encaminhado para Unidade de Internação Enfermagem O trabalho da enfermagem do CTI foi focalizado na monitorização da glicemia e insulinização Reco nhecer e tratar a hipoglicemia são muito importantes Foram realizadas as orientações de alta Nutrição A nutrição procurou avaliar o paciente e inseri lo nos conceitos do plano alimentar Foram realiza das as orientações de alta A psicologia na unidade de internação Nem sempre no hospital geral há uma enferma ria especializada em adolescentes dos 12 anos até os 19 anos incompletos Quando houver o trabalho poderá ser realizado de forma a deixar o adolescente junto com seus pares e com uma equipe especializada nessa faixa etária para atendêlos Esse é o melhor momento para promover uma terapia breve focal com o paciente esses encontros do paciente com o profissional psi terão como objetivo preparar o paciente para sua vida como portador de doença crônica o DM1 fora da instituição médica as emoções e sentimentos poderão vir à tona e o pro cesso de luto poderá começar a ser iniciado perda da saúde perfeita limites colocados pela doença inter nação etc Neste período as informações a respeito do auto cuidado serão fornecidas pela enfermagem a aprendi zagem da monitoração e automedicação do paciente o nutricionista também ajudará o paciente e sua fa mília a escolher os alimentos e a sua quantidade o profissional psi pode e deve estar também envolvido nesses encontros outros profissionais da equipe pode rão também contribuir como o educador físico É também nesse momento que se pode preparar o paciente e sua família para o encaminhamento ao Ambulatório de Diabete os mecanismos de defesa nesse momento e nos que se seguirem poderão ser a revolta e a barganha quando poderei comer doce não vou ficar bom não suporto mais tomar tanta injeção e picar o dedo não poderei ir ao colégio não poderei comer na cantina de lá eu não aguento mais tanto teste essa doença é uma droga eu quero ir à micareta com meus amigos se não deixar eu vou comer doce até eu ficar doente mesmo eu faço tudo tão bem feito só hoje me deixa comer um docinho eu sou um óti mo filho me deixa ficar sem tomar insulina à noite doutor meu açúcar está bom eu posso me considerar curado e deixar de tomar insulina etc Orientações de alta e encaminhamento ao ambulatório Após uma semana quando do retorno ao ambulatório Marcos e a sua família ainda estão inseguros e sem compreender a variação glicêmica Ele refere desejo de consumir doce e outros alimentos A apli cação de insulina está sendo realizada pela mãe e ele se apresenta resistente à monitoração testes de uri na ou de sangue para avaliar o grau de glicemia A pedido do educador físico da escola a família solicita atestado para o adolescente não participar das aulas de educação física o professor tem receio de deixar Marcos fazer a aula e passar mal O endocrinologista Dr Luiz Paulo recebe Marcos e sua mãe a Sra Virgínia Bom dia Como está indo Marcos Já se passa ram alguns dias depois que você deixou a unidade de internação e foi para casa Você e sua mãe tiveram al guma dificuldade Dona Virgínia se adianta ao Marcos e responde Doutor essa semana foi muito difícil para mim O Marcos quer comer doce e não entendeu ainda que não posso deixar Ele está revoltado com a doença e só me pergunta quando vai ficar bom Meu marido vai trabalhar bem cedo e não consegue colaborar comigo Não sei se vou aguentar isso muito tempo O Marcos precisa ajudar no tratamento precisa aprender a fazer pelo menos o teste Além dele ainda tenho duas filhas menores que necessitam de mim Dr Luís Paulo tenta responder sem ser interrom pido Marcos vejo que vamos ter inicialmente um pou co de trabalho mas logo você e sua mãe vão aprender a fazer a rotina sem se estressarem Doces Marcos O aluno deve ser monitorado antes durante e depois da aula de educação física Se necessário deve fazer um lanche mais reforçado para não ter hipoglicemia uma baixa de açúcar no sangue e passar mal Os exercícios físicos são muito necessários para o paciente diabético Psicossomaticaindd 587 Psicossomaticaindd 587 05012010 121228 05012010 121228 588 Mello Filho Burd e cols você não vai poder comer Quando a glicemia estiver bem controlada existem doces diet Mas isso vai ser visto com a nutricionista Você e sua mãe vão passar por ela A psicóloga que já conhece os dois se coloca Marcos e Dona Virgínia já me conhecem Du rante os dias de internação no hospital estive acompa nhando e atendendoos nas unidades Marcos está na adolescência e ficou diabético Essa revolta é normal na fase em que está Ele e a mãe estão inseguros Tirar sangue do dedo colocar no aparelho medir a glicemia aplicar a injeção de insulina isso tudo é muito novo para eles fazerem sozinhos Ainda tem o estresse por que passaram no hospital e na semana que ficaram em casa tendo que continuar o tratamento sozinhos Dona Virgínia logo o Marcos vai começar a aprender tudo isso e ajudála se ajudando É claro que com a sua su pervisão Marcos se coloca de forma ansiosa e um pouco agressiva Doutora Miriam a senhora já me conhece um pouco Já conversamos outras vezes Muita gente con versou comigo Pediram para eu ficar calmo colaborar que tudo se resolveria Nada se resolveu Eu continuo com diabete não fiquei bom minha mãe fica o tem po todo atrás de mim ainda não fui ao colégio e já o professor de Educação Física quer um atestado médico Estou nervoso e revoltado o professor no colégio está com receio do que possa acontecer comigo na aula Dr Luís Paulo intervem Marcos tudo o que você falou está correto Pela minha experiência com meus pacientes adolescentes a maioria deles fica como você está Mas com o tempo começam a entender e colaboram Dra Miriam completa Marcos e Dona Virgínia o diabete veio para ficar não tem cura mas tem controle através do tratamento bem realizado A sua revolta é típica da adolescência e vai ser colocada em outras questões a serem negociadas com a sua família querer sair com os amigos ir à bala da etc No tratamento do diabete você não vai poder se rebelar É isso ou isso Aprender a se cuidar vai lhe dar responsabilidades mas também vai lhe dar maior liberdade de ação sua mãe vai confiar mais em você e deixálo ir ao baile aos passeios com os amigos etc Marcos enfim se rende e se acalma Quem vai me ensinar a fazer os testes Quero logo aprender isso e tudo mais E o atestado médico quem vai ajudar meu professor Quero continuar a pra ticar esportes Dr Luís Paulo responde Vou encaminhálos para a enfermeira Ela pode ir até a sua escola e conversar com o seu professor no seu colégio Dra Miriam pode acompanhálos até a en fermagem A consulta conjunta com a enfermagem se seguiu após o término da consulta com o médico A psicóloga con tinuou fazendo a ponte entre os profissionais da equipe multidisciplinar o paciente e sua família A psicologia médica no ambulatório Acolher o paciente e sua família nesse momen to a doença se torna crônica e possui características próprias O objetivo inicial é trabalhar as dificuldades emo cionais do paciente e de sua família relacionados ao DM1 e sua adesão ao tratamento dificuldades com a dieta monitorização e autocuidados a fase da adolescência em que se encontra o pa ciente também tem características próprias como a rebeldia o sentimento de onipotência e imorta lidade etc Essas características podem prejudicar ou não a adesão do paciente ao tratamento As entrevistas individuais servirão neste mo mento para triagem psicológica junto ao paciente e sua família e para o levantamento da teoria etiológica para a abertura da doença Para isso podese usar uma entrevista semiestruturada e uma pergunta como Houve algum evento muito estressante pouco antes da abertura da doença Os envolvidos são levados a procurar um sentido para a doença relatando incidentes estressantes eou traumáticos antes da abertura da doença Os mais comuns são a perda de um parente ou de uma relação afetiva importante a mudança de casa a migração da terra natal as mudanças no status econômico eou social etc Verificamse também as condições de coping e de resiliência dos envolvidos Serão depois priorizadas as consultas conjuntas do paciente com os demais profissionais da equipe de saúde onde o profissional psi junto ao médico ou outro profissional o atende Esse trabalho visa a prevenção de problemas médicopsicoló gico nutricionalpsicológico etc na adesão ao tratamento e o controle estrito do DM1 monitori zação e automedicação dieta e exercícios físicos na educação para o diabete para toda a vida etc Graça Burd Mello Filho 2000 2007 As psicoterapias de apoio individual e de grupo também fazem parte do trabalho no Ambulatório Grupos de Sala de Espera Grupos de Apoio para Adolescentes Grupo de Apoio a Familiares Grupos de Educação para o Diabete Grupos Lúdicos dra matizações vivências etc Esses grupos devem funcionar com equipe multiprofissional Idem Observações A equipe de psicólogos pode ser formada de vá rios profissionais ou apenas um profissional da Psicossomaticaindd 588 Psicossomaticaindd 588 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 589 equipe do Ambulatório de Diabete onde atuará nas diversas unidades O importante é manter a coesão do tratamento com uma filosofia comum de trabalho e encontros frequentes para discussão dos casos clínicos Os registros no prontuário do paciente deverão ser realizados de forma concisa e objetiva sempre no intuito de fornecer informa ções à equipe de saúde As prescrições por parte do profissional da Psicologia Médica são cabíveis e necessárias As consultas no Ambulatório deverão ser reali zadas no início semanalmente depois quinze nalmente até se conseguir a aprendizagem dos envolvidos quanto aos procedimentos necessários e haja a criação de um vínculo positivo primei ramente com a instituição médica depois com os profissionais da equipe do Ambulatório Con seguido isso as consultas serão espaçadas para uma em cada três meses Essas consultas abran gerão o médico o psicólogo o nutricionista e o enfermeiro A cada ano serão realizadas consul tas mais amplas onde serão revisados todos os conteú dos passados nas consultas iniciais como numa aprendizagem continuada As visitas às escolas para educação para os diabe te quando necessárias eou solicitadas são rea lizadas geralmente pela assistência social o ele mento designado pela enfermagem e o educador físico se o Ambulatório possuir um Os exercícios físicos desde que monitorados devem fazer sem pre parte do tratamento do paciente diabético O adolescente e as condutas de risco A personalidade falso self e o diabete A adolescência é um momento crítico para o controle do diabete Segundo Burd 2004 p 314 Burlar a dieta não querer fazer os exames são algu mas das transgressões ao tratamento e características de uma atuação permanente ou transitória de falso self A adolescência é a fase de contestação dos valores vigentes e das normas familiares da busca de independência em relação aos pais do reaflorar da sexualidade da vinculação a grupos e do gosto pelo risco baseado no sentimento de imortalidade idem De acordo com as identificações que faça com o grupo que escolha o jovem poderá reafirmar ou não um verdadeiro self Rosine Debray 1995 p 78 considera que os jovens ao atacar os aspectos do tratamento expri mem suas reações de oposição e se abstém de pôr em questão a própria existência da doença que os afe ta sem que esta de certo modo não deixe dúvidas Tais condutas descritas comumente como gosto pelo risco os adolescentes se utilizam da sintomatologia somática como veículo de seus conflitos do momento bem como de seu desconforto interior Na adolescência o jovem será cobrado pela sua participação no tratamento pela família e pela equipe médica Há a chance de se manter ainda em postura passiva e dependente dos pais e ao mesmo tempo em que pode burlar a dieta às escondidas Um fenômeno já estudado desde a década de 1980 é o denominado diabulimia e cujo termo foi criado em 2005 para uma desordem alimentar es pecífica em adolescentes e adultos jovens diabéticos tipo 1 O paciente manipula a dose da insulina com o objetivo de manter ou perder peso Quando as inje ções de insulina são suspensas o nível de açúcar fica alto e os sintomas são de início as de hiperglicemia boca seca vontade de urinar perda de peso e po dem chegar ao quadro mais grave de cetoacidose dia bética O transtorno é mais encontrado em pacientes do sexo feminino e essas condutas se constituem em verdadeiras atividades bulímicas similares aos vômi tos induzidos exercícios físicos em excesso etc pra ticados pelas pacientes não diabéticas A omissão de insulina é considerada um comportamento de risco Para Aguiar 2000 p 19 apud Mello Filho 1983a essas inúmeras transgressões ao tratamento representam por um lado um desafio do adolescente à doença e um teste para sua pretensa indestrutibi lidade e por outro podem se constituir em autên ticas tentativas de suicídio Em termos de falso self considerase que o suicídio pode significar a última defesa contra o domínio total do falso self seria uma tentativa de evitar o aniquilamento do self verdadei ro recorrendo à destruição do self total Winnicott 1990 Pode também ocorrer o contrário quando en contramos o paciente muito cordato e bonzinho que aceita todas as formas de tratamento sem discutir ou se rebelar Esse comportamento também pode ser uti lizado pelo paciente falso self Ele aceita passivamen te o que lhe se apresenta O atendimento especial à escola e à família Segundo o trabalho de pesquisa wwwportal diabetescombr 2008 de um Laboratório Farmacêu tico e da Sociedade Internacional para o Diabete Pe diátrico e do Adolescente Ispad cerca de 90 das crianças diabéticas do mundo frequentam colégios Psicossomaticaindd 589 Psicossomaticaindd 589 05012010 121228 05012010 121228 590 Mello Filho Burd e cols onde não há enfermaria para ajudar a controlar sua doença e o tratamento O secretáriogeral da Ispad o cientista Thomas Danne aponta que a falta de apoio faz com que os alunos diabéticos possam correr riscos graves que ameaçam a vida A pesquisa também aponta que os alunos com diabete abandonam os estudos antes dos que não têm a doença fato de que 6 em cada 10 crianças não seguem o tratamento nem os controles adequa dos quando estão no colégio e de que 40 faltam à aula pelo menos uma vez ao mês Outro aspecto fundamental da pesquisa referida é que há necessi dade de sensibilizar o sistema educacional para que as crianças diabéticas não se sintam incomodadas ou isoladas na aula já que um terço delas assegura que a doença limita sua vida social e as relações com seus companheiros Perante essa situação tanto os pacientes como alguns professores e pais da pesquisa reivindicaram uma melhor educação para os docentes para apren derem como reagir quando o aluno tem um proble ma ou sobretudo quando as crianças são pequenas e não sabem aplicar bem o tratamento A escola e a família precisam estar preparadas para lidar com o diabete do aluno ou do filho Mu nidas de informações básicas a respeito da afecção e com um mínimo de recursos para eventualidades extraordinárias poderão oferecer rapidamente os primeiros socorros As situações agudas deverão ser raras se o trata mento estiver sendo bem conduzido e a glicemia sob controle Saber o que é a doença e o que fazer dá se gurança e diminui o estresse que pode acompanhar eventos agudos e inesperados Essas informações dão clareza no que se refe re aos limites que devem ser impostos ao paciente as atividades que a ele serão permitidas e cobradas minimizando assim os ganhos primários e secundá rios à doença levando a um efetivo desenvolvimento físicopsicológico sem maiores transtornos evitando a superproteção ansiosa ou o seu contrário a negli gência de possível gravidade do evento O diabete não se mostra quando controlado mas apresenta limites e possibilidades para o pacien te Se é uma criança ela pode e deve brincar estudar fazer exercícios físicos e praticar esportes ter prazer nas coisas que pode fazer e se relacionar com muitas pessoas principalmente outras crianças no seu am biente e fora dele Se for um adolescente ele pode e deve fazer as aulas de educação física desde que monitoradas estudar fazer pesquisas participar nor malmente dos intervalos das aulas das brincadeiras enfim participar efetivamente do ambiente escolar e de convívio social Durante nosso trabalho em unidades públicas de educação e saúde os pacientes crônicos foram bem absorvidos por elas as intercorrências bem ad ministradas e superadas casos de hipoglicemia ne cessitam ser atendidos rapidamente porque podem perder a consciência Evitar o constrangimento do aluno na escola é uma medida muito importante O aluno diabético vai necessitar picar o dedo obter uma gota de sangue para fazer o teste de glicemia e depois aplicar a injeção de insulina Um local próprio e designado pela direção da escola deve ser colocado ao seu dispor O preconceito também deve ser enfo cado entre os alunos e professores as informações a respeito da afecção nestes casos podem ajudar mui to a desmistificálo Com o advento cada vez maior de pacientes crônicos essas informações e rápidos treinamentos se fazem cada vez mais necessários e precisam ser encarados como uma rotina atual nas vidas familiar e escolar Isso já acontece nas escolas inclusivas onde qualquer necessidade especial do aluno não é moti vo para sua exclusão ou não inclusão do ambiente escolar O que é importante frizar é que a escola não substitui a família as duas são muito importantes para a criança e o adolescente complementandose Diante disso recomendamos que o aluno com doença somática e crônica deve ser acolhido pelo colégio através de seus profissio nais professores coordenadores psicólogos supervisores pedagógicos etc com atitudes de suporte holding Fora de uma crise aguda o aluno deve ser considerado um aluno como ou tro qualquer o aluno ao ingressar no colégio deve ser atendi do bem como a família preventivamente pelo coordenador do turno procurando adaptálo às condições do colégio escadas rampas distân cias enfermaria bebedouros colocação numa turma adequada etc fazendo uma anamnese da doença para conhecer os fatos mais importantes da sua história clínica que tipo de doença tem restrições limites poderá fazer exercícios físicos telefones importantes a quem chamar em caso de eventos agudos nome do médico do plano de saúde do hospital de referência etc devido à complexidade do diabetes mellitus tipo 1 o colégio deve se informar com a família com o médico sobre que tipo de eventos agudos podem acontecer e o que fazer nos casos de emergência treinamento de algumas pessoas para um rápido atendimento etc os professores e os funcionários que lidam dire tamente com o aluno devem ser informados dos Psicossomaticaindd 590 Psicossomaticaindd 590 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 591 comportamentos a serem tomados no dia a dia e em caso de eventos agudos bem como serem treinados para identificálos rapidamente o orientador educacional eou psicólogo escolar devem ter noção dos mecanismos de defesa frente ao adoecimento para estabelecer um bom rapport com o aluno eou sua família e atendê los visando formar vínculos positivos e escolher as melhores estratégias pedagógicas para atendê lo na instituição escolar não se pretende fazer atendimento clínico e terapia Qualquer que seja a idade do diabético seu cuidado efetivo requer um envolvimento familiar Quando ocorre com crianças pequenas os pais assu mem toda a responsabilidade do tratamento Com o tempo a criança vai adquirindo condições de desem penhar um papel mais ativo Isso depende mais da autonomia da criança da sua maturidade do que a idade cronológica Na adolescência a ajuda da famí lia se faz necessária para a obtenção dos materiais necessários para o autocuidado e manter a vigilância sob a forma de verificações periódicas Na idade adulta o diabético deve ser capaz de ter responsabilidade e fazer seu tratamento A família deve de longe cooperar principalmente com a dieta Muitos pacientes reclamam da família que ostensiva mente comem muitos doces e ingerem uma dieta des regrada A visita ao nutricionista do familiar acom panhando o membro enfermo ajuda a reestruturar a dieta do paciente e de toda a família ajudando a todos Muitas vezes a partir da doença a família co meça a se alimentar de uma forma mais harmoniosa e saudável e melhora a qualidade dietética de todos Uma pesquisa Revista da SBD 2008 p4 rea lizada na Universidade Nova de Lisboa em Portugal sobre o estado civil do paciente diabético foi reali zada pelo Dr JM Boavida et al Chegaram à con clusão de que as pessoas casadas controlam melhor o valor da glicemia do que as solteiras e estas têm um risco cinco vezes maior do que os casados de não controlarem bem o diabete O apoio familiar é muito importante na adesão ao tratamento e o apoio do cônjuge se revela fundamental na maioria dos casos Na presença de complicações crônicas e idade avançada do paciente diabético a família entra como um verdadeiro suporte para possibilitar o tratamento de seu membro Há pacientes que burlam o tratamen to às escondidas ou abertamente Os familiares de vem entender e saber lidar de forma compreensiva mas não negligente as escapulidas e as transgressões do paciente Repreender apenas não reverte esse pro cesso de burla A família deve funcionar como conti nente na ajuda de um tratamento que é muito longo Quando a patologia se instala e a dificuldade da família está prejudicando o paciente no tratamento do diabete restanos ainda a ajuda do profissional psi através de psicoterapia breve e focal e os grupos de apoio psicológico aos familiares Estes devem fazer parte da oferta no tratamento ambulatorial e funcio nar com a ajuda da equipe multidisciplinar SEGUNDA PARTE O Diabetes Mellitus tipo 2 Caso clínico evolutivo Humberto 50 anos DM2 com retinopatia diabética Para o fotógrafo cego Eugen Bavcar A escuridão pode ser uma iluminação Do momento que não se vê percebese de outra maneira traçando nova fronteira entre o visível e o invisível Através do caso clínico de Humberto 50 anos de idade com mais de 10 anos com diabete e atendido em consultório particular em Psicoterapia de Apoio Psicológico as vinhetas da terapia vão ser entremea das com os achados dos estudos relativos ao DM tipo 2 no adulto com complicação crônica Humberto é solteiro e mora com uma irmã mais nova de um total de sete irmãos vivos e um falecido O pa ciente vem encaminhado pela médica psiquiatra da clí nica onde atendo Após começar a perder a acuidade visual do segundo olho ele se apresenta com depressão reativa Em uso de medicamentos antidepressivos há algumas semanas é encaminhado para sessões de psi coterapia Além de diabético Humberto é hipertenso e faz uso de antihipertensivos e antidiabéticos orais Tem sobrepeso e se encontra inativo fisicamente Muito abatido e ainda deprimido conta que perdeu 80 da acuidade visual do primeiro olho há quatro anos e do segundo olho começou a perder nos últimos seis meses Perguntado se a retinopatia era causada pelo diabete e pela hipertensão não soube responder Tinha poucas informações sobre as duas doenças de base cuidava se mal não possuía endocrinologista e cardiologista de As Unidades Hospitalares públicas e as Associações de Pacientes Diabéticos geralmente quando solicitadas fazem esse tipo de treinamento Sugerimos para aprofundamento do tema a leitura dos capítulos da autora nos livros Doença e Família Grupo e Corpo Psicoterapia de grupo com pacientes somáticos e A Criança e o Diabetes Uma Visão Psicossomática Psicossomaticaindd 591 Psicossomaticaindd 591 05012010 121228 05012010 121228 592 Mello Filho Burd e cols referência Com o endocrinologista que o acompanhara nos últimos meses não conseguiu fazer um bom víncu lo A referência dele era o centro oftálmico onde vários médicos já o haviam atendido em diversas ocasiões Alguns pacientes aprendem a controlar o dia bete ficam um tempo em boas condições de saúde e acham que já sabem se tratar sozinhos não precisan do mais do endocrinologista O diabete controlado não dói não se mostra Outros adiam o início do tra tamento porque é feriado é fim de semana vão pas sar as férias longe de casa e quando percebem já se passaram meses e anos Os sintomas não são visíveis e o paciente acredita que poderá resolver a questão a qualquer momento Malerbi maio 2008 p 23 diz que há três ti pos de pacientes diabéticos os que aprendem a se cuidar adequadamente e o fazem incorporan do o tratamento do diabete às suas rotinas diárias sem enfrentarem maiores problemas os que acham que sabem o que devem fazer quando de fato não sabem como muita coisa na vida aqueles que sabem de fato o que precisa ser feito mas não aplicam esse conhecimento às suas vidas é a diferença entre saber e fazer O paciente se encontrava em licença médica no traba lho e esperava ser aposentado por doença Contou que sempre cuidou dos outros dos pais e do irmão fale cidos dos irmãos dos sobrinhos órfãos Agora estava sendo cuidado por eles principalmente pela irmã caçu la que morava consigo Ficava a maior parte do tempo dentro de casa no seu quarto dormindo e sua prin cipal atividade era tentar ver TV bem de perto Para vir às sessões dependia dos irmãos mais velhos que o traziam de carro A retinopatia diabética é uma manifestação ocu lar do diabete e uma das principais causas de ceguei ra O aumento dos níveis de açúcar no sangue glice mia que caracteriza o diabete causa alterações nos pequenos vasos sanguíneos da retina no interior do olho Os vasos alterados deixam sair líquido e san gue para a retina reduzindo a visão Inicialmente não há sintomas daí a importância dos diabéticos vigia rem a sua visão através de exames médicos oculares regulares A retinopatia diabética é tratada mediante foto coagulação realizada com raios laser mas o ideal é que o doente controle os níveis de açúcar no sangue desde as fases iniciais da doença Segundo Caditz 1992 a retinopatia diabéti ca é uma condição frequentemente instável que faz com que as pessoas alternem entre o sentimento de que o problema se estabilizou e o sentimento de que está por ocorrer um agravamento e que estão prestes a perder a visão Esse sentimento de incerteza com binado com a falta de conhecimentos sobre os objeti vos dos tratamentos se traduzem num impacto bru tal dessa complicação crônica na vida dos pacientes Muitas vezes é mais difícil para o paciente lidar com a incerteza com a dúvida acerca do agravamento do que com a presença da complicação crônica Humberto vivia entre os sentimentos de ficar comple tamente cego e o de ainda ter um tempo enxergando mal Recusouse o tempo todo da terapia a procurar um serviço de reabilitação para deficientes visuais O meca nismo de defesa que ele vinha usando era a regressão e passou a depender pelo menos no início dos irmãos para tudo eles o levavam a todos os lugares faziam sua comida antes o paciente gostava muito de cozinhar iam ao banco administravam o seu dinheiro etc Per maneceu dependente por muito tempo À terapia vinha porque lhe disseram que era necessário que gostava da terapeuta era uma oportunidade para sair de casa vir no táxi do irmão etc Vinha quinzenalmente porque dependia desse irmão para trazêlo Das doenças de base o paciente quase nada sa bia Ele não tinha o hábito de fazer tratamento crô nico com especialistas medicamentos monitoração etc Repetia as receitas dos medicamentos prescritos por longo prazo sem retorno periódico ao médico Foilhe difícil aceitar que a perda da visão se dera por retinopatia diabética e que a pressão alta só contri buiu para o seu agravamento Estudos comprovaram que o controle intensivo da pressão arterial diminui o risco de evolução e gra vidade da retinopatia O controle glicêmico precoce protege a visão de pacientes diabéticos e o retardo no tratamento do paciente com risco de cegueira pela retinopatia por mais de dois anos pode levar à perda irreversível da visão Diretrizes SBD 2007 p 106 A depressão de Humberto mesmo medicada melhora va lentamente O paciente acordava às 9 horas da ma nhã para tomar seus medicamentos e voltava a dormir até a hora do almoço ou mais tarde Almoçava e vol tava a dormir até o final da tarde Sem sono varava a madrugada acordado Não atendia aos telefonemas dos amigos que tanto prezava Às vezes faziao de forma lacônica e sequer se desculpava Não saía à rua porque não queria que os vizinhos soubessem da sua situação de quase cego Na sessão procuro puxar o assunto da dificuldade dele de acordar do acordar Da dificuldade que Humberto tinha de viver ainda com a acuidade visual que lhe restava Aquela espera pela possibilidade da ce gueira total lhe tolia os movimentos não lhe dava o di reito de viver a vida de colorir o despertar e viver cada dia com um mínimo de prazer e sentido de viver Acredito que essa clarificação mudou algo na evolu ção da terapia Humberto já estava vindo bem barbea do com uma roupa que me parecia nova apesar de Psicossomaticaindd 592 Psicossomaticaindd 592 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 593 ainda portar óculos escuros Disseme que duas vezes por semana estava indo sozinho à padaria da esquina para tomar café da manhã Era um hábito antigo do qual gostava e lhe dava prazer Na terapia de apoio usamos mais as clarifica ções e assinalamentos No início o paciente somático necessita falar muito da doença e da complicação E há uma preocupação do terapeuta de incentivar à conscientização da doença e da complicação mas procurando dar um acolhimento às suas aflições Po derá haver momentos de catarse Exaurido esse tema a terapia de suporte ou apoio pode caminhar para um trabalho mais aprofundado de maior conheci mento e reflexão Na sessão seguinte o paciente começou me falando de sua vontade de voltar a cantar nos coros da igreja da Universidade etc Dizia que a sua voz era muito bonita de meio barítono Muitas vezes tinha solado peças im portantes Agora porém não conseguia ler a partitura a letra como fazer Para Kastrup 2007 A perda da visão exi ge um estar sempre reinventando atualizando outras virtualidades da atenção e da percepção Retirados de boa parte dos compromissos da vida prática encon tram um tempo solto Os processos de criação funcio nam neste caso como outro tipo de compensação Não mais como busca de caminhos indiretos para che gar ao mesmo fim mas para trilhar outros caminhos Algumas das transformações cognitivas da de ficiência visual adquirida está diretamente relaciona da à redução da eficiência de habilidades e hábitos anteriores ou seja de comportamentos caracteriza dos pelo automatismo como verter água num copo colocar pasta na escova de dente ou caminhar pela rua O comportamento automático é um comporta mento sem atenção Sua utilidade na vida prática é justamente liberar a atenção para outras atividades A perda da visão quando se instala produz uma re dução das ações automáticas e um aumento da parti cipação da atenção nas mais simples tarefas da vida cotidiana idem Humberto nos conta que a mãe morreu de problemas pulmonares e diabete Fala da morte do irmão por ou tro motivo e dos dois sobrinhos órfãos filhos desse irmão que vivem em outro Estado com a mãe e a avó O paciente me diz Esses meninos são a minha ra zão de viver precisam da minha ajuda financeira Digo a ele que o dinheiro era importante mas a presença dele era muito mais importante para eles Eles faziam questão de aceitar o convite para passar as fé rias da escola na casa dele iam ao seu quarto acordá lo conversavam conseguiam que ele saísse do quarto e descesse para almoçar na sala Ele me diz que gosta de ficar na cama de olhos fechados mesmo acordado Digo a ele que essa é a forma que ele arranjou de não saber se está cego ou se pode ainda enxergar do olho melhor Humberto concorda e diz que veio pensando em sair da terapia mas que agora não pensa mais assim estava gostando da sessão achava interessante e válido estar comigo conversando Passados 15 dias Humberto sobe as escadas até meu consultório com desenvoltura e sem os óculos es curos Logo após sentarse digo que ele me pareceu melhor Assinalo que sem óculos seus olhos não tinham nenhum defeito aparente Ninguém perceberia que era deficiente visual O paciente respondeume que não sabia disso Os óculos ajudavam quanto à grande luminosidade da rua à tarde Fala da consulta que teve com a psiquiatra e as mudanças realizadas por ela nos horários dos remé dios Visavam que ele tivesse menos sono durante o dia Disseme que fora ao teatro à igreja que frequentara e à casa da irmã que mora na zona sul da cidade Disse me entusiasmado que sonhara e queria falar de um sonho Digo a ele que esses 15 dias passaram para ele com muitas situações prazerosas e eu estava muito feliz por ele Que era importante falarmos da crença que se tem de que se não se é perfeito restanos ser um fracas so Ele tinha ido ao teatro mesmo sem enxergar tudo da peça fora ao culto da igreja e assumiu para os amigos que estava perdendo a visão que tinha ido visitar a irmã que mora distante dele e sentirase feliz por ter ido Ele fica emocionado e me diz que já estava come çando a aceitar a dificuldade visual e esperava que pu desse através dos tratamentos manter o que ainda lhe restava Nem sempre a terapia caminhou tão bem al gumas vezes muitas sessões se transcorriam sem muita novidade e minha contratransferência estava me atrapalhando Como não via grandes melhoras parecia que também ficara cega a melhoras minúscu las Trocava informações com a psiquiatra e ela me incentivava a continuar Cheguei a falar que iria dar alta ao paciente pois não via sentido insistir A crença da perfeição tinha me tomado Procurava trabalhar comigo mesma esses sen timentos de derrota Tomeime de grande coragem para suportar os silêncios do paciente da falta de in sigts das recaídas A partir desse momento comecei a perceber que tudo isso fazia parte do processo Eu estava ansiosa com a falta de grandes melhoras e no fundo me culpava Reconhecer a transferência do paciente é tão importante quanto perceber a nossa contratransferência a do terapeuta Após três anos de terapia o paciente começou a dar sinais de grandes melhoras O diabete e a hiper Psicossomaticaindd 593 Psicossomaticaindd 593 05012010 121228 05012010 121228 594 Mello Filho Burd e cols tensão estavam bem controlados as sessões de foto coagulações mantiveram o quadro estável da retino patia O paciente perdera algum peso e caminhava pelo bairro todos os dias Humberto tinha feito várias viagens para lugares próximos e já havia começado a cantar no coro de um grande amigo Começava a depender cada vez menos dos irmãos para se locomo ver Permitia que os amigos também o ajudassem Decidimos que era hora de aumentar os inter valos entre sessões de 2121 dias de mês em mês uma a cada dois meses O paciente vinha sempre trazendo novos progressos Acertamos sua alta de forma compartilhada e deixamos abertas as portas para um retorno caso necessitasse A terapia de apoio ou de suporte a pacientes somáticos principalmente com doenças crônicas já com complicações é muito importante Não tenho informação sobre qual complicação do diabete é a mais dolorosa do paciente suportar Acredito que cada um tem mais medo de uma em detrimento da outra Cada paciente nos fala de uma em particular Não gostaria de amputar a perna nos diz Antônio Já para Maria o insuportável seria ficar em diáli se na máquina esperar por um rim de um doador Para Pedro que já precisou fazer uma cirurgia de revascularização miocárdica o pior seria ficar cego O apoio psicológico os ajuda a suportar a doença sem complicações as que possam vir podem ficar para um próximo momento Ao lado da psicotera pia os centros de reeducação são muito importan tes porque levam o paciente a aprender atividades substitutas para as que perderam ou irão perder em breve Aprender a usar a bengala ler em braile com certeza ajudarão muito o deficiente visual diabético colocar uma prótese de perna e treinar os movimen tos com ela certamente vai minorar o sofrimento do diabético amputado TERCEIRA PARTE O DM2 no idoso Psicoterapia de grupo com pacientes somáticos Se a abertura do diabete se dá na maturidade ou na velhice eou coincide com a aposentadoria a doença pode ser vivida como esperada e aceita ou não se considerar a possibilidade de mudanças ven do a perspectiva de morte como inevitável O diabete pode ser confundido com o próprio envelhecimen to bem como as complicações da doença Burd M 2004 p 315 Para Lerário apud Burd 2004 a prevalência e a incidência do DM na terceira idade são elevadas Os idosos com diabete necessitam de maior assistência de saúde visita mais frequente aos médicos e ambu latórios e apresentam uma maior dificuldade para o desempenho de exercícios físicos necessitando com maior frequência de cuidados de uma outra pessoa para sobrevivência idem p 315 Para um paciente mais velho que se torna dia bético ou é portador da doença há muito tempo as limitações que lhe são impostas são dolorosas e sua resistência é grande A pessoa mais velha tem menos tolerância e flexibilidade Os hábitos e o estilo de vida já estão enraizados e os comportamentos são difíceis de serem mudados O controle glicêmico ideal é a principal meta no tratamento do diabete no adulto e no idoso para viver livre das complicações crônicas Segundo Mello Filho 1983 abrjun p 180 ressalta que a equipe de saúde deve estar atenta à fan tasia dos idosos quanto a ficarem impotentes sexual mente bem como de apresentarem outros quadros mórbidos AVC demências depressão seja pela idade seja pelo diabete Devem fazer a diferenciação entre os verdadeiros casos de impotência daqueles de ordem psicológica relacionados exatamente com o temor exagerado de adquirir esta condição Nove pacientes e a esposa de um deles fizeram parte de um Grupo de Apoio Psicológico durante um ano em ses sões quinzenais de 90 minutos cada em cocoordenação de duas psicólogas Eram todos pacientes do Ambulató rio de Diabete e Metabologia do HUPEUERJ com idade entre 68 e 76 anos e todos com DM2 Havia um livro de registros onde se colocava as presenças os temas desen volvidos e observações pertinentes Antes de iniciarmos o grupo um dos cocoordenadores era escolhido para fa zer os registros Desses registros feitos pinçamos alguns trechos para ilustrar o presente trabalho Os pacientes foram encaminhados pelos médicos do ambulatório gostaram e se beneficiaram muito do trabalho em grupo e compareciam assiduamente às ses sões Alguns pacientes já conheciam bem as psicólogas antes de começar o grupo homogêneo As sessões transcorreram numa sala do Ambula tório de Psiquiatria do HUPE Os participantes passa ram antes por uma entrevista com as duas coordena doras onde receberam informações sobre o objetivo do grupo Falar a respeito do diabete tipo 2 na vida do porta dor suas dificuldades no controle e no tratamento da doença Os grupos de terapia nos settings médicos come çam com as preocupações principais dos pacientes Agradeço à Psicóloga Márcia Rebelo Maia que cocoorde nou o grupo homogêneo de pacientes com DM2 idosos Psicossomaticaindd 594 Psicossomaticaindd 594 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 595 o manejo direto e o impacto de suas doenças Vino gradov e Yalom 1992 p 189 Reduzem o medo a ansiedade e o isolamento relativos a uma situação particular através do desenvolvimento do manejo e novas estratégias para o comportamento Neste grupo há uma composição homogênea consistindo de membros unidos por sua luta contra um problema comum E era constituído de pacientes diabéticos tipo 2 e na terceira idade Quanto ao gêne ro era um grupo misto Os limites não são muito rígidos os cônjuges amigos e outros membros da família podem ser in cluídos regular ou intermitentemente A doença é uma questão familiar a partir da qual encorajamse as mudanças de estilo de vida ou outros padrões de hábitos em família e procurase livrar o familiar da fantasia comum de que são culpados pela doença O terapeuta usa similaridades entre os membros para favorecer um senso de universalidade e coesão As terapeutas começam o grupo se apresentando Mi riam e Márcia e pedindo para os pacientes se apre sentarem Há um paciente novo que veio pela primeira vez ao grupo Alcino já conhece alguns integrantes do Ambulatório e diz Já conheço alguns de vocês da sala de espera do ambulatório Só soube do grupo agora por isso estou chegando depois dele ter começado Aliás eu sou novo também no Rio de Janeiro vim da minha terra natal no nordeste e lá é muito diferente daqui Elvira diz que conheceu o nordeste que já faz mui to tempo Valdir retruca Você lá já era diabético Seus pais também eram diabéticos Alcino diz que não sabe se era e se seus pais eram Só veio a saber aqui no mês passado numa consulta no ambulatório Ia fazer uma cirurgia e descobriram o diabete no précirúrgico Dra Miriam se coloca Acho que cada um poderia dizer rapidamente como souberam que eram diabéticos Cada um tem uma história diferente para contar No diabete tipo 2 às vezes leva tempo para se descobrir e quando vem o diagnóstico vocês já apresentam alguma complicação Maria da Glória diz que quer ser a primeira porque deverá sair mais cedo do grupo vai para Copacabana fazer testes de glicemia na praia Eu ajudo a fazer diagnóstico de muitas pessoas a Associação Carioca de Diabete vai às praças às praias e a outros lugares fazer os testes Já vi cada coisa tem gente que não acredita no teste e a glicemia estava 180 Nós o acalmamos explicamos que tem gente que não sente nada outros já sentem sede fome vontade de urinar a toda hora Precisa diagnosticar de início Francisco diz que já está tomando insulina e já fez cirurgia no coração apesar de se cuidar muito bem Nesses 20 anos que tenho diabete fiz dieta e venho ao médico toda a vez que ele marca Ele me disse que tenho muitos anos de diabete e preciso da insulina além dos remédios para baixar o açúcar Tive medo de que in sulina viciasse e que eu estivesse no fim da linha Alcino preocupado se coloca Fim da linha quer dizer que quando se toma in sulina é o fim Dra Márcia aparteia Há um mito entre os pacientes que insulina é fim de linha que estão graves e têm pouco tempo de vida Atualmente a insulina está sendo usada em conjunto com os antidiabéticos orais que vocês já tomam A insu lina é um hormônio que as pessoas fabricam Não é o fim da linha é mais um tratamento que está dando certo Nair esposa de José diz que o marido não toma insulina mas se precisar vai fazêlo Sempre diz a ele que todos os tratamentos que forem realizados no Am bulatório ele deve fazer José então complementa Fui cozinheiro a minha vida toda acostumeime a cozinhar para 150 pessoas por dia Tinha até nutri cionista lá onde trabalhava aprendi a comer direito mas agora é a Nair quem cozinha ela faz a minha dieta perfeita Dra Miriam confirma Estamos vendo que o senhor José e Dona Nair estão sempre juntos no hospital Até no grupo precisam estar juntos Parecenos que um completa o outro José é cozinheiro de grandes grupos Nair cozinha em casa a dieta do marido Dra Márcia completa Vocês tocaram num assunto muito importante a dieta Sem ela remédio nenhum faz efeito É como o nosso casal aqui o José e a Nair Ana se coloca muito emocionada Tive que amputar a perna direita porque não fazia a dieta bem feita Comia todos os dias à tarde um pedaço grande de cuscuz escondido da minha fa mília O vendedor Jorge só recebia uma vez por mês Ele chegava ao portão eu ia até ele e comia o doce no jardim Sei agora e tarde demais que a dieta é muito importante Fernando completa Pois eu não ligo a mínima para doce mas o sal me faz muita falta Sem ele fico me sentindo muito fra co Eu sou hipertenso Dra Miriam diz Lembra Fernando de que eu estava com o senhor e o médico na consulta Ele disse que o senhor era hi pertenso e o sal era um veneno O senhor disse que se sentia fraco e eu lhe disse brincando que o sal deveria ser transformado em sol o sol bem tomado deixa as pessoas mais alegres e dispostas E sair com um sol lin do e caminhar também é um dos pilares do tratamento do diabete Dra Márcia encerra a sessão Chegamos no grupo aos grandes pilares do tra tamento do diabete a medicação remédios orais e in jeções de insulina quando necessárias a dieta bem feita os exercícios físicos como a caminhada estando bem disposto e feliz para aproveitar esse sol lindo do Rio de Janeiro claro que com protetor solar e até as 10 horas ou após as 4 da tarde O estado emocional do Psicossomaticaindd 595 Psicossomaticaindd 595 05012010 121228 05012010 121228 596 Mello Filho Burd e cols paciente é fundamental Estressado ninguém aproveita a natureza e só pensa na doença e seus problemas Nessa sessão vimos que o assunto primordial para o grupo de pacientes era a doença e seu tra tamento Essa sessão aconteceu no primeiro mês de funcionamento do grupo Ao final de 12 meses o gru po estava assim Os pacientes chegam cumprimentamse afetuosamen te ou já chegam juntos em pares da sala de espera Não é preciso que as terapeutas comecem o grupo os pacientes já sabem a rotina de funcionamento e já vão falando Liguei para dona Mariana como você me pediu Ela já tinha faltado a sessão passada Perguntei o que estava acontecendo e que o grupo estava sentindo a falta dela Ela me disse que teve hipoglicemia e ficou com receio de vir e passar mal no ônibus diz Maria da Glória para a terapeuta 1 Elvira se coloca E aí não veio hoje também Assim atrapalha o grupo e a ela mesma Faltar ao grupo só em último caso ninguém me deixa mentir depois do grupo nós estamos recebendo elogios da equipe do ambulatório e melhoramos muito o nosso controle do diabete Dra Miriam se coloca Ligar para o paciente faltoso e se preocupar com ele é muito importante Obrigado Maria da Gloria pelo favor Já sabemos que o problema já está sendo re solvido dona Mariana deverá vir no nosso próximo en contro Essa força que vocês se dão é que faz esse grupo coeso forte e determinado Um ajuda o outro quando fraqueja quando adoece Dona Mariana é pipoqueira nas portas de escolas e já nos disse que quando tem hipo tem dificuldade até de ingerir açúcar para elevar a glicemia no sangue Não dá para ser radical com o diabete o açúcar que faz mal quando se está com hiper faz bem quando na hipo é tudo uma questão de bom senso Alcino diz então Quando se tem algum problema ou estamos tristes preocupados também podemos ter dificuldades de controlar o diabete Ontem lembrei da minha terra da minha gente e fiquei triste Deu um dó de cortar o coração Mas hoje vim assim mesmo todos vocês me ajudam a suportar a falta que meu Nordeste faz Saio daqui mais forte menos deprimido pronto para seguir a vida Estou guardando um dinheirinho para viajar para lá no Natal Dra Márcia se coloca Quando o grupo começou vocês falavam muito da doença das dificuldades com o diabete Esse era o objetivo principal colocado no início por nós Mas vo cês avançaram Vocês falam da vida pessoal dos sen timentos de como o grupo ajuda também na vida de vocês Isso é um avanço um ajuda o outro com a sua verdade e o seu exemplo Se esforçar para vir ao grupo é sinal de que ele é importante para vocês e para nós terapeutas também Aprendemos muito com vocês E a tristeza do Alcino da terra natal dele também é a tristeza do término do ano e da nossa passagem pelo diabete Francisco intervem Quer dizer que o grupo acabou A terapeuta 2 responde O nosso tempo no ambulatório de diabete é de um ano Aí vêm as férias de verão e o grupo voltará ano que vem com uma nova dupla de coordenadores vocês vão gostar da troca Francisco fala de novo Lembra de que lhes falei que tinha um sonho de passar mal de hipoglicemia perto de uma barraca de caldo de cana O meu sonho agora é que vocês conti nuem conosco É pedir muito Valdir se coloca Aí é romper os limites do curso de especialização delas como não podemos fazer com o nosso tratamen to Elas deixaram bem claro no início que seria assim Também sabemos que o tratamento do diabete impõe regras e limites Francisco então retruca Posso pedir o número de telefone de vocês e o dia do nascimento Vou ligar todo ano nessa data para vocês Nair completa Vamos passar uma lista com os nossos telefones e dia dos aniversários Vamos nos comunicar sempre Dra Miriam se coloca O processo do luto pelo término do ano e da for mação desse grupo poderá ser ajudado pela troca de telefones entre nós Não esqueçam que a Dona Ana a paciente que amputou a perna deixou de vir ao grupo porque não havia como se locomover sem ajuda da fa mília peçam o telefone dela também e liguem O grupo pode funcionar ajudando Dona Ana mesmo sem ela vir Ligar e saber notícias e levar notícias a ela também fun ciona positivamente Maria da Glória anuncia a festinha do fim do ano desembrulha um bolo salgado e apanha uma garrafa de refrigerante diet e os copos Nós pensamos em tudo é preciso haver festa para comemorar nossas melhoras Se não podemos co mer açúcar podemos comer e beber com moderação o que trouxemos Queria saber quem inventou que é preciso doces para comemorar a alegria Vamos pessoal à festa Francisco ligou para a terapeuta 1 durante muitos anos no aniversário dela Dava os parabéns e contava alguma coisa sobre a vida dele Os pacientes Para Júlio de Mello Filho 2002 p 202 O empobreci mento progressivo da vida rural e a ambição de viver na grande cidade promovem uma permanente corrente migra tória chegando ao litoral passam a enfrentar dificulda des e após poucas semanas ou mesmo depois de um ano começam a apresentar sintomas funcionais variados podemos chamar de síndrome de desenraizamento ou síndrome psicossomática de desadaptação Psicossomaticaindd 596 Psicossomaticaindd 596 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 597 entenderam que mudanças de hábitos de todo não são negativas O diabete impõe limites e o trabalho no hospital universitário também Há regras que não podem e não devem ser burladas Fizemos uma listagem dos principais temas dis cutidos nesse grupo Vamos dividir segundo alguns critérios e apresentar algumas frases de pacientes nos grupos 1 Dificuldades com a instituição médica univer sitária esperar muito na sala de espera pela con sulta as mudanças constantes na equipe esperar muito tempo no laboratório para tirar o exame de sangue pré e pós prandial as consultas são rápidas a marcação das consultas é com grande intervalo Trago minha colação merenda para o hospital fico muito tempo esperando Tem gente que fica impaciente na sala de espera do ambulatório eu saio de perto ou fico calado mas isso não me faz bem Comecei a tomar insulina depois que fui participante da pesquisa daquela médica fui cobaia de pesquisa O Grupo de Sala de Espera nos ajuda a esperar pela consulta e falamos e ouvimos coisas muito interessantes Sempre achei que aqui no hospital público tudo era de graça agora sei que pagamos impostos muito altos eu também ajudo a manter o hospital funcionando e outras questões 2 Dificuldades com a doença mitos fantasias crenças tabus adesão ao tratamento Fiquei de primido quando soube que era diabético Tenho medo de ter hipo O diabete é uma tragédia não consigo aceitar A insulina vicia Estou tomando chá da planta folha de insulina se não melhorar acho que não piora Se vou a um churrasco não resisto e caio de boca O diabete é para sempre Se descobre por acaso Meu diabete é emocional A minha mãe é velha ela é diabética há 30 anos ela está socada em casa só quer cama Gostaria de tomar um remédio quando fico irritada Não há diabético que não fuja da dieta todos são mentirosos A fome me acompanha sempre como fazer dieta O dia bete não dói destrói Ficar magra e diabética não vale a pena o aspecto do rosto fica horrível não quero mais ficar com açúcar tão alto A di ficuldade de ser diabética é a boquinha nervosa O diabete é uma doença negra pega tudo todo o corpo A insulina é a última etapa do diabete depois é aguardar a morte ou é o fim de linha e outras 3 Dificuldades com faixa etária Ficar velho é muito ruim Ficar velho e diabético é pior ain da Quando se tem muita idade e muito tempo de diabete as complicações aparecem não tem jeito Tenho mais medo de ficar cego e velho ainda por cima Pois eu tenho mais medo de ir para a máquina Conheço um diabético que teve de tirar a perna depois de um erro médico isso deve ser horrível O chá dançante da última sextafeira foi ótimo dançar é muito bom para o idoso faz bem para cabeça e para o corpo Ser velho é ser um estorvo para a família Vou ter de me aplicar a insulina eu não enxergo bem os tracinhos da seringa Ainda bem que fiquei dia bética aos 70 anos já estava velha mesmo Ser velho não é igual a ser um trapo um traste eu tenho meu valor eu me gosto e outras 4 Dificuldades com a família superproteção x negligência impaciência falta de apoio Minha família não gosta de me ver doente Se eu co mer às escondidas o que não posso minha famí lia grita comigo Meu irmão ficou diabético por praga minha O meu diabete não me emagrece o meu marido é magro de ruim come tudo e não engorda e não é diabético A minha família não colabora no último domingo minha nora fez três sobremesas e colocou na mesa dá para resistir assim Minha esposa senta para ver TV com a caixa de bombons no colo dá para fingir que não é comigo Meu marido na Páscoa me deu um ovo de chocolate não diet será que ele ainda não se tocou que sou diabética Quando meu mari do me deixou levou minha pressão alta e minha úlcera agora ninguém me segura e outras 5 Dificuldades no grupo de apoio Tive muita di ficuldade em falar pela primeira vez no grupo Às vezes começamos no grupo brincando isso é uma forma de nos preparar para falar coisas mais duras Hoje ainda não se falou nada de novo estamos batendo na mesma tecla É preciso se impor respeitar é uma coisa obedecer é outra sou o raspo do tacho eu questiono mesmo Vim para dizer que não vinha ao grupo preciso ajudar a presidente da Associação Carioca de Diabete tô indo fui Hoje não quero falar da doença minhas dores da alma estão maiores do que dos furúnculos nas minhas costas Agora no fim do ano vejo uma luz no fim do túnel Acho que o Sr Fulano é muito triste por detrás dessa alegria toda Somos pessoas que sempre cuidamos das outras pessoas aqui no grupo permitimos que vocês as psicólogas cuidassem de nós No co meço não tinha fé no grupo psicologia não trata o diabete pensava agora sei o quanto foi impor tante para mim Depois de se ter alguma com plicação do diabete fica impossível vir ao grupo Veja a senhora fulana amputada da perna direita como vai subir no ônibus e as escadas daqui e outras Psicossomaticaindd 597 Psicossomaticaindd 597 05012010 121228 05012010 121228 598 Mello Filho Burd e cols 6 Relação médicopaciente Não gosto de tirar dú vidas na consulta tenho receio de atrapalhar o mé dico Agora estou gostando mais do médico que está me atendendo ele me deixa falar está sempre sem pressa Meu médico me disse que meu diabe te não é emocional como não Quando fico depri mido meu açúcar fica alto Tenho medo de que o médico me repreenda por causa do meu açúcar alto O médico Dr Sicrano vai se aposentar e ago ra como vamos ficar sem ele e outras 7 O achismo Doutor eu já sei me cuidar Por muito tempo eu não me cuidei direito Por mui to tempo achei que sabia me cuidar sozinho Por muito tempo fingi que era não diabético Tudo que me ensinam eu faço para baixar o açú car Minha vizinha me deu uma dica muito boa vocês querem saber qual é Tudo tem o lado bom o lado ruim no diabete o bom e o ruim eu tiro de letra Pra que vir ao médico de três em três meses basta vir uma vez por ano e repetir a receita e outras 8 Questões religiosas e culturais A igreja hoje acha que pode curar tudo Tem diabético que vai à igreja e se diz curado isso não é verdade o diabete não tem cura Fazer uma novena pe dir ao santo de devoção fazer promessa ajuda se fica mais calmo Meu médico me disse Toma chá de pata de vaca mas não esquece da insuli na e outras 9 O estresse Acho muito estressante cuidar da mi nha doença É todo dia a mesma coisa O estres se dificulta o controle da glicemia mas como não ficar estressado Se explodir meu estresse vai di minuir mas vou ser chamado de velho ignorante Perder a calma a linha é horrível somos antes de tudo humanos mas pagamos o preço e outras 10 Outros assuntos a relação com o trabalho e a perda a aposentadoria a relação com o dinheiro e a falta dele a sexualidade na velhice a dificul dade de viver a vida ter de vir ao hospital quase semanalmente a falta de atividades para os ido sos e outros CONSIDERAÇÕES Quando acabei de escrever o presente capítulo admireime de ter ainda tanto material inédito para brindar aos leitores Fiquei feliz também ao abordar o diabetes mellitus de uma forma totalmente diferente do que tinha já feito Explorei a prática sempre pen sando na teoria mas a prática nesse momento foi a tônica do capítulo era a minha prioridade Fui aos livros onde escrevíamos sobre os grupos e me inspi rei nas colocações dos pacientes Aprendi muito com eles Eles mereciam um espaço privilegiado Ao dividir o capítulo em três partes o adolescen te o adulto maduro o idoso todos diabéticos acredito que consegui mostrar o quanto psicossomático é o dia betes mellitus e o quanto o tipo 1 e o tipo 2 se diferem e se aproximam diante da visão da psicossomática Todos os pacientes lutam com os pilares da doen ça e de seu tratamento os medicamentos orais ou injetáveis a dieta e o exercício físico O emocio nal não poderia ficar de fora e conseguimos incluilos como o quarto pilar da mesma forma que para man ter uma cadeira em pé precisamos das quatro pernas como aos três mosqueteiros precisou se juntar um quarto cavaleiro Todos esses ingredientes trabalham juntos para a receita dar certo o controle da glicemia Nem pou co açúcar mas também não muito e chegar ao equi líbrio é tão difícil de ser alcançado no controle e no tratamento do DM Se o açúcar é um símbolo de ter nura e carinho da mãe ao seu filho ele também não pode ficar doce demais porque adoece Só se fica diabético quando existe predisposição genética sem a herança ninguém fica doce E essa herança é diferente para os dois tipos de diabete e é maior no tipo 2 Mas não adianta culpar só nossos ancestrais ajudamos a nossa genética nos tornando obesos e ociosos Na pósmodernidade não temos muito tempo para fazer a comida descobrimos as semiprontas aposentamos o fogão e elevamos ao primeiro plano o microondas Fomos além discamos o número de telefones e o entregador nos traz em casa o fastfood rápido de pedir mais rápido de consumir E as por ções se agigantam Mas não adianta culpar só as co midas rápidas se não conseguimos dizer não a elas Depois de comer sentamos no sofá e através do controle remoto ligamos a TV o computador os ga mes E lá fora está uma tarde linda nos chamando para caminhar gastar energias Mas não adianta cul par os jogos modernos ou a internet temos a nossa parcela nessa história Como nos fazer levantar da cadeira e gastar as nossas calorias O diabete segundo o Consenso de 2007 da So ciedade Brasileira de Diabete tornouse uma epide mia de diabetes mellitus DM e está em curso o nú mero de adultos diabéticos no mundo está crescendo muito e se estima que no ano de 2030 possa chegar a 300 milhões Dados alarmantes e que crescem em espiral O que fazer para mudar este presságio Será que só se informar a respeito vai nos livrar dele Mudar hábitos melhorar o nosso estilo de vida Mas hábitos são muito difíceis de mudar uma vez enraizados colocamonos no piloto automático e a Psicossomaticaindd 598 Psicossomaticaindd 598 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 599 vida segue sem pensarmos sem reagirmos sem ques tionarmos Mudar a forma de consumo Mas se a oferta e a demanda movem o mundo O diabete pela sua natureza crônica a gravi dade de suas complicações e os meios necessários e custosos para controlálas tornam esta uma doença muito onerosa para os indivíduos acometidos suas famílias e para o sistema de saúde Além do problema econômico há os custos intangíveis como a dor a ansiedade a inconveniência e a perda da qualidade de vida O custo social é cinco vezes maior do que os custos diretos Alguns indivíduos acometidos se tor nam incapazes de continuar trabalhando ou em de corrência de complicações crônicas ou porque ficam com alguma limitação no seu desempenho laboral e de produtividade E aí a demanda aumenta agora de medicamentos de produtos ligths e diets de acesso à saúde regular etc A prevenção efetiva significa mais atenção à saú de um sistema de qualidade mais rápido e eficiente Isso pode ser feito ainda na prevenção de reduzir ou retardar a abertura da doença a prevenção primária ou de tratar suas complicações agudas e crônicas a prevenção secundária A primária então é melhor Por que não fazemos acontecer Mas não dá para culpar só o sistema de saúde Para Hipócrates 460 aC É mais importante conhecer a pessoa que tem a doen ça do que conhecer a doença e a pessoa que tem fé nos médicos digo na equipe isso pode ajudar na cura Para Michel Balint Toda a doença é também um veículo de um pedido de amor e atenção E o médico é o primeiro remédio a ser dado ao pacientedigo o psicólogo a nutricionista a enfermeira etc Para Helládio Capisano Qualquer tipo de tratamento poderá ser puramente sintomático se o seu objetivo não for a reorganização da vida E digo porque o paciente não muda Reorganizar a vida e mudar hábitos tem tudo a ver com o diabete Mudar a dieta deixar o sedenta rismo deixar de se estressar apreciar a vida E por que isso não acontece Para Julio de Mello Filho O diabetes mellitus é uma doença psicossomática por que se inicia frequentemente numa fase de estresse emocional e sofre a influência de fatores ou de distúr bios somáticos na sua evolução 2008 E a visão psicossomática Como tratar Através do holding suporte e do handling ma nejo sendo continentes como nos disse Donald Win nicott A doença é crônica mas tem tratamento e con trole Cabe à equipe multidisciplinar ajudar o pa ciente e sua família através de uma boa relação à aceitação de sua doença O tratamento e o controle do diabete passam então a ser os objetivos a serem alcançados e uma forma de cura Mas de que autor me apropriei esse parágrafo É meu com algum coautor Isso já não me importa muito se levei informa ção esperança e motivos para os leitores e pacientes tentarem alcançar essa forma de cura As doenças crônicas estão aumentando muito e iremos cada dia mais com viver como pacientes ou como profissionais de saúde com o diabete ou outra doença qualquer Aceitar ser paciente é preciso alcançar a aceita ção da doença crônica é imprescindível Espero ter ajudado de alguma forma para isso REFERÊNCIAS Aguiar J M Uma visão sobre o falso self no paciente diabético Monografia de final de curso de especialização em Psicologia Mé dica Faculdade de Ciências Médicas da UERJ 2000 Burd M Diabetes e Família Capítulo18 In Doença e Família Mello Filho J Burd M São Paulo Casa do Psicólogo 2004 Caditz J An educationsupportgroup program for visually impai red people with diabetes Journal of Visual Impairment Blindess 1992 861 8183 Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 2007 Debray R O Equilíbrio Psicossomático e um estudo sobre diabéti cos SP Casa do Psicólogo 1995 Graça L A Burd M Mello Filho J Grupos com Diabéticos Ca pítulo 13 In Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pacien tes Somáticos Mello Filho J Organizador PA ArtMed 2000 pp213232 Relançamento 2007 Ed Casa do Psicólogo Jeammet P Reinaud M Consoli S Manual de Psicologia Médi ca São Paulo Ed MassonAtheneu Kastrup V A invenção na ponta dos dedos a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual Psicol rev Belo Horizonte v13 n1 Belo Horizonte jun 2007 Malerbi F Revista da SDB Diabetes RJ Volume 15 número 03maio 2008 pp23 Marcelino D B et al Artigo Reflexões sobre o Diabetes Tipo 1 e sua Relação com o Emocional Revista Psicologia Reflexão e Críti ca 2005 18 1 pp 7277 Mello Filho J Concepção psicossomática Visão Atual São Paulo Casa do Psicólogo 2002 Comunicação pessoal RJ 2008 Psicossomaticaindd 599 Psicossomaticaindd 599 05012010 121229 05012010 121229 600 Mello Filho Burd e cols Aspectos psicológicos do diabetes mellitus parte 1 In méd HCUERJ Curso sobre Diabetes Mellitus 22 174180 abrjun1983 Moncada Leite DP Grupos em uma Unidade de Terapia Intensiva Capítulo 27 In Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pa cientes Somáticos Mello Filho J Organizador PA ArtMed 2000 pp 413423 Relançamento 2007 Ed Casa do Psicólogo Vinagradov S Yalom I D Manual de psicoterapia de Grupo PA Artes Médicas 1992 Winnicott D O Ambiente e os processos de Maturação Estudos sobre a teoria do Desenvolvimento Emocional Porto Alegre Artes Médicas 1990 wwwportaldiabetescombr 2008 OUTROS TRABALHOS DA AUTORA SOBRE DIABETES MELLITUS Burd Miriam 1996 A Família e a Doença Crônica na Infância o Diabetes Mellitus Tipo 1 Atendimento Psicológico Grupal aos Familiares de Crianças Diabéticas Monografia de Curso de Espe cialização em Psicologia Médica Faculdade de Ciências Médicas da Univ do Estado do Rio de Janeiro 130 pág Burd M 2000 Experiência de Trabalho Multidisciplinar em Diabetes no Hospital Universitário Pedro Ernesto Revista da Associação de Medicina Psicossomática Rio de Janeiro Ver ABMP vol4 nov pág2932 Burd M Maia MR 2002 Grupos de Sala de Espera com Pacientes Diabéticos Revista Diabetes Clínica vol 6 nº 2 Rio de Janeiro pág129134 Teixeira A L M Burd M Eisenstein E 2006 Diabetes Juvenil Relato de Caso Artigo da Revista Adolescência e Saúde NESA Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente vol3 nº 2 abr Burd M 2007 O Adolescente e a Experiência do Adoecer o Diabetes Mellitus Publicado na Revista Adolescência e Saúde NESAHUPEUERJ em Jan vol3 nº1 Burd M 2007 A Criança e o Diabetes Uma Visão Psicossomá tica Rio de Janeiro gráfica Trena Psicossomaticaindd 600 Psicossomaticaindd 600 05012010 121229 05012010 121229 Atualmente muito se tem discutido no Brasil sobre como produzir estratégias na formação que provoquem mudanças objetivas dos profissionais de saúde de forma a prestar uma atenção integral e hu manizada aos pacientes Feuerwerker 2002 Neste contexto têm sido alvo de discussões os diferentes cenários de aprendizagem modos de inserção na prática concepções pedagógicas metodologias de ensino processos avaliativos que contemplem conhe cimentos habilidades e atitudes Ribeiro 2004 en fim uma mescla de aspectos da formação que conju gados instrumentalizem o profissional para atuar em sintonia com as necessidades e demandas de saúde da população É nesta perspectiva que apresentamos este capí tulo uma prática de ensino em serviço denominada ConsultaConjunta originária da Interconsulta que visa a integrar pessoas e saberes no cotidiano dos ser viços de saúde objetivando sensibilizar mobilizar e capacitar para mudar concepções práticas e relações a fim de proporcionar cuidado integral à saúde BREVE HISTÓRICO A Interconsulta é uma ação de saúde interpro fissional e interdisciplinar que tem o objetivo integrar e promover a troca de saberes de diferentes atores que atuam nos serviços de saúde visando ao apri moramento da tarefa assistencial Fazse por meio de pedido de parecer discussão de caso e consulta conjunta A consultaconjunta como o nome indica reú ne na mesma cena profissionais de diferentes cate gorias o paciente e se necessário a família deste A ação se faz a partir da solicitação de um dos pro fissionais para complementar eou elucidar aspectos da situação de cuidado em andamento que fujam ao entendimento do solicitante ao traçar uma conduta terapêutica Este capítulo focalizará a parceria entre o médico solicitante e o profissional psi psicólogo psiquiatra solicitado junto ao paciente A consultaconjunta nasceu de forma prática de acordo com o relato de seu criador o professor Julio de Mello Filho Em meados de 1997 era eu um professor de Psicolo gia Médica do então Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro HUCFFUFRJ quando um interno de medicina me procurou pedindo que atendesse a uma paciente com um quadro de asma brônquica refratária ao approach médico que estava sendo utilizado Eu então lhe pro pus como costumo fazer nestes casos Podemos ver a paciente juntos ao que ele concordou Fizemos então uma entrevista a três na qual es tabeleci contato com uma paciente branca solteira de meiaidade ansiosa com um quadro de asma refratário ao tratamento médico habitual com brocodilatadores e corticoides O fato de conhecer bem a doença do ponto de vista clínico foi importante para o interno poder valorizar meu enfoque segundo depreendi de sua conduta Logo percebi que a exacerbação da doença da paciente esta va ligada a uma condição de luto não resolvido pelo fato do filho único ter ido morar e trabalhar numa cida de distante com poucas possibilidades de se visitarem Propus então um enfoque de duas consultas semanais num total de oito durante as quais abordamos seu caso com a presença do interno Ele era interessado em questões psicológicas e concordou em participar da ex O conceito de Interconsulta foi divulgado por Ferrari Luchina e Luchina 1980 Os autores advogam o emprego desta técnica para substituir a prática de respostas a pedidos de parecer em um Hospital de Psiquiatria ou Geral Segundo os autores a técnica da interconsulta dinamiza a prática individual de resposta de pareceres transformandoa num momento interativo de discussão dos elementos envolvi dos no atendimento O emprego desta técnica fertilizou e renovou o trabalho de Psiquiatria num Hospital Geral conhecido também como Ligação 48 CONSULTACONJUNTA UMA ESTRATÉGIA DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE Julio de Mello Filho Lia Márcia Cruz da Silveira Miriam Burd Psicossomaticaindd 601 Psicossomaticaindd 601 05012010 121229 05012010 121229 602 Mello Filho Burd e cols periência de psicoterapia breve durante a qual dirigia perguntas e muitas escassas opiniões pois se tratava obviamente de um novo campo de trabalho para ele De minha parte permitime opinar sobre a medicação da paciente de forma não intrusiva Tentava assim manter a perspectiva de uma conduta realmente con junta A psicoterapia evoluiu como muitas outras em se melhantes condições de um luto patológico que eu já chamei de luto corporal para um luto mais normal prescindindo das reações de estresse que mantinham o processo de somatização funcionando sendo o pulmão o órgão de expressão de todo o sofrimento vivido pela paciente porém não conscientizado As etapas do luto pôde se queixar do objeto pôde aceitar a distância deste pôde perdoar o objeto foram vividas e então as metas da terapia breve foram cumpridas Pôdese trabalhar a alta da paciente que ficou sendo atendida pelo interno quinzenalmente por se tratar de uma con dição crônica e sujeita a agravamentos Durante toda a experiência terapêutica vivida con juntamente eu esclarecia detalhes da psicodinâmica da paciente da técnica que estava sendo empregada e o interno me informava de sua evolução clínicome dicamentosa Após a alta da paciente ele passou a frequentar o Grupo Balint que eu mantinha naquele hospital de modo interessado Eventualmente ele me informava sobre o estado da paciente que evoluiu bem durante o período que estive no Hospital do Fundão até me transladar para o Hospital Pedro Ernesto onde estou até hoje No HUCFFUFRJ desenvolvemos esta experiência com outros casos e então repetimos no Hospital Univer sitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro HUPEUERJ inicialmente com alunos do terceiro ano do curso médico Com estes que iniciavam seus primeiros contatos com pacientes participávamos da leitura da anamnese de modo conjunto como tam bém de um diagnóstico e de uma planificação terapêu tica O interesse maior nesta situação é a elaboração de uma anamnese que integra aspectos subjetivos e objeti vos que envolvem o adoecer já que o aluno desta série ainda está pouco amadurecido academicamente para participar de outros itens de uma observação clínica Percebemos na prática que uma importante área de aplicação da consultaconjunta é o trabalho ambu latorial nas unidades clínicas onde a Psicologia Médica estiver representada Ali estão presentes basicamen te internos e residentes que realizam seu trabalho de diagnóstico e tratamento de pessoas em atendimento Mesmo que já tenham tomado contato com conceitos de Psicologia Médica eles se sentem inseguros diante dos problemas psicológicos apresentados pelos pacien tes presentes em cerca de 70 dos casos segundo vá rias estatísticas atuais Então nos perguntam Quer ver este caso para mim Ao que respondemos Podemos ver juntos E deste modo sem fragmentar a relação do internore sidente com o paciente fazemos uma abordagem con jugada sempre com o cuidado de que nossas opiniões tenham valências livres para que os primeiros possam interagir conosco Deste modo cumprimos de forma prática as eta pas de uma anamnese psicossomática e de um diagnós tico psicológico ou psiquiátrico se for o caso sempre a quatro mãos Se não houver tempo ou condições para uma consulta mais integral respondemos questões for muladas pelos colegas sempre cuidando para que se questionem também Um dos pontos essenciais da consultaconjunta é que cada um dos participantes aprenda com o outro sobre as técnicas de abordagem utilizadas reconhe cendo os recursos terapêuticos presentes numa relação favorável à produção de saúde Deste modo o clínico aprenderá com o profissional psi e este aprenderá mais sobre aspectos clínicos das enfermidades em questão O trabalho de consultaconjunta se desenvolveu mais nos Serviços de Diabete e Metabologia Nefrologia e Reumatologia onde sou JMF supervisor da Psico logia Médica e cresceu sobremaneira no Serviço de Diabete por conta da interação com a Dra Edna Ferrei ra da Cunha responsável pelo atendimento clínico às crianças deste serviço APRESENTAÇÃO DE EXEMPLOS DE CONSULTAS CONJUNTAS No Ambulatório de Diabete e Metabologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto HUPEUERJ as consultasconjuntas ocorrem com frequência A presença do profissional psi durante a consulta do pa ciente e sua família faz uma dupla com o médico ou o nutricionista o enfermeiro o assistente social e outros A população que acorre ao nosso serviço é na sua maioria de classe popular e de baixa renda As intervenções são integradas e os papéis de todos os profissionais se complementam É um recurso muito importante quando se atende pacientes com doença crônica que sistematicamente precisam comparecer às consultas Esses pacientes podem ser ouvidos e medicados A troca entre os profissionais numa con sultaconjunta é muito rica o médico é sensibilizado pelas emoções vividas de seus pacientes adotando postura mais compreensiva e menos impositiva Tais consultas privilegiam os aspectos clínicos e psicológicos do paciente diabético e de seus acom panhantes O trabalho se iniciou em maio de 1995 solicitado pela pediatra que atendia as crianças dia béticas Burd Mello Filho Graça 1997 A partir de 1997 essa prática se estendeu a todo atendimento no ambulatório Grupo Balint ou grupo de reflexão sobre a tarefa médica no dizer de Luchina são coordenados por um profissional da área psi e destinados a clínicos eou especialistas cen trados na discussão de casos com abordagem de aspectos pessoais familiares e institucionais Mello Filho 2003 Psicossomaticaindd 602 Psicossomaticaindd 602 05012010 121229 05012010 121229 Psicossomática hoje 603 Quando a doença acomete as crianças Burd e Graça 2007 o profissional psi as convida a se dese nharem e a desenharem sua família a falarem sobre o paciente a doença o tratamento e as repercussões no ambiente familiar enquanto o pediatra examina a criança e conversa com a sua família O psicólogo presente à consulta observa a crian ça em três níveis na sua doença no seu desenvol vimento psicossocial incluindo a relação com a fa mília e na relação com o médico Esses dados são recolhidos a partir da observação de como a criança família relacionase com o médico e a doença por meio de desenhos livres feitos pela criança e da fala da família Já se nota com o decorrer do tempo e o exer cício de sua prática que o paciente e sua família consegue expor seus sofrimentos e aspectos corres pondentes no lidar com a doença e seu tratamento Os pacientes que antes evitavam fazêlo porque acreditavam estar incomodando o médico ou não davam importância como fato relevante para a con sulta hoje se sentem encorajados e com isso alivia dos pela boa acolhida demonstrada pelo médico que os ouve O médico ou outro profissional de saúde já começa a dar valor a esses comportamentos e às informações que recebe dos pacientes e de seus acompanhantes Na sua formação médica isso não é privilegiado e quando precisam depararse na sua prática com tais fatos não sabem como fazêlo A postura ativa do paciente e sua família no tratamento também é notada o que favorece toma rem para si as rédeas do controle da doença Possíveis transgressões do tratamento também podem ser fala das assim como a tristeza a depressão a raiva ou a revolta podem ser externadas na consultaconjunta sendo mais bem acolhidas pelo profissional de saúde e entendidas no seu contexto Podemos ilustrar essa técnica com alguns casos clínicos extraídos da nossa prática no Ambulatório de Diabete e Metabologia HUPEUERJ CASO CLÍNICO SHAYANE DM1 12 ANOS Participantes a adolescente o staff médico a mãe a psicóloga e a residente da nutrição Resumo do caso A adolescente recebeu o diagnóstico da doença no dia de seu aniversário Apresentou sempre muitas dúvidas com relação à dieta a ser realizada para o tra tamento do DM1 Diz não ter ficado com raiva com relação ao diagnóstico Hoje na consulta médica Shayane fala da von tade de comer doce e do fato de não querer tomar mais injeções de insulina A paciente está com a avó internada em decorrência de complicações crônicas do DM2 pelo fato de não ter tratado a doença de for ma adequada e não ter tido um bom controle da gli cemia A paciente evita falar o que pensa da internação da avó mas ao mesmo tempo fala da importância do tratamento bem feito e do fato de não querer ficar como ela Em relação à insulina diz nunca ter ficado sem usála e da raiva por não poder comer mais doce A paciente mostra um discurso ambíguo relacionado à dieta tendo como fator principal a raiva pelo trata mento apresentar restrições alimentares A residente de nutrição foi solicitada pelo médi co do staff do Ambulatório Foi realizado um atendi mento em conjunto que visava tirar as dúvidas sobre o que Shayane poderia e não poderia comer quando fosse a uma festa de aniversário Ela estava evitan do sair porque não sabia o que comer neste tipo de evento Shayane não conhecia o médico que a estava atendendo naquela consulta O médico inicia a consulta falando que a pacien te não poderia comer doce Mostrouse impositivo Shayane você não pode comer doces em hipótese nenhuma O médico precisou durante a consulta medir a glicemia da paciente e a adolescente ficou extrema mente nervosa seu rosto começou a ter movimentos involuntários ficando pálida O resultado do teste es tava dentro dos padrões normais A mãe explica que é sempre assim a filha fica muito nervosa com medo de a glicemia estar alta A reação da paciente de nervosismo e palidez não foi percebida pelo médico A psicóloga então sinaliza esse fato para o médi co e nesse momento o médico olha para a paciente e diz que ela não precisava ter ficado nervosa Em relação aos pés da paciente o médico falou em tom de ordem que ela não podia andar descalça de forma nenhuma Neste momento a psicóloga pergunta se ela sabia o motivo disso Ela responde que não sabia o porquê Quando o médico percebeu que a paciente não sabia olhou para a psicóloga e explicou à paciente Nas consultasconjuntas 1 e 2 a psicóloga do Curso de Especialização em Psicologia Médica era Renata Abreu Mangia Souza biênio 20042006 supervisionada pelo Professor Julio de Mello Filho Psicossomaticaindd 603 Psicossomaticaindd 603 05012010 121229 05012010 121229 604 Mello Filho Burd e cols qual era o motivo Podese perceber a partir desse fato que médico teve uma reação diferenciada da inicial Mostrouse mais atencioso com as questões e dúvidas da paciente como quanto às explicações para conduzir o tratamento de forma correta O médico a partir desse momento passou a olhar antes para a psicóloga quando necessitava falar à paciente Discussão do caso Não é raro a eclosão do diabete acontecer no dia do aniversário do paciente Essa data é muito espera da e valorizada pelas crianças e adolescentes e é um momento cercado de grande estresse O tema dessa consulta era a necessidade de fa zer dieta para o bom controle da glicemia e tratamen to do DM1 o que comer o que não comer numa festa de aniversário não poder comer mais doces e a raiva que a paciente sentia dessas proibições A dieta em geral é considerada pelos pacientes a pior e mais difícil parte do tratamento O medo de Shayane de a sua glicemia estar alta deviase às suas transgressões e burlas à dieta Essas burlas devem ter sido feitas comendo doces o que de forma impositi va o médico proibiu Em casa com a mãe isso também acontecia e pareceu ser sinal de que a adolescente não conseguia seguir as normas da nutricionista Resolvera não ir mais às festas de aniversários para evitar ficar tenta da e ingerir principalmente alimentos com açúcar branco Culturalmente estamos acostumados a comer salgadinhos e doces durante essas festas e não apre ciamos o melhor delas as brincadeiras a música a dança as conversas com os amigos o clima de festa a alegria O médico começou a consulta de forma muito impositiva e rígida Usou as expressões não pode em hipótese nenhuma de maneira alguma Enquanto isso examinava o sangue da paciente e seus pés sem per ceber sua palidez e nervosismo Foi necessária a intervenção da psicóloga para que o médico fosse menos iatrogênico Passou a res ponder às solicitações de Shayane e explicou o por quê de não andar descalça pois poderia ferir os pés e ter uma cicatrização prejudicada pelo diabete mal controlado Apesar disso o problema inicial que era fazer dieta corretamente e não comer doces ficou em se gundo plano na consulta A raiva da paciente tam bém O médico sentindose culpado responde à pa ciente olhando antes para a psicóloga Percebeu que estava sendo agressivo e passa a ser mais continente explicando com calma sobre as dúvidas que iam sur gindo na consulta A psicóloga teve uma atitude pedagógica ao fa zer o assinalamento Dr Fulano Shayane está pálida devido ao nervosismo que a acompanha sempre aqui e em casa com a mãe ao medir a glicemia e esta vir a se mostrar alta A glicemia se mostrou normal e é necessário di zer à paciente o quão importante é medir a glicemia para corrigir uma possível hiperglicemia O controle do diabetes mellitus pode ser alterado também devido aos problemas emocionais e ao gran de estresse que acompanha os sentimentos de culpa do paciente por burlar a dieta ou andar com o pé descalço ou por ter raiva por não poder come doce ou quando se defronta com um médico desconhecido e autoritário CASO CLÍNICO WILSON ADOLESCENTE 13 ANOS DM1 Participantes a mãe o adolescente a médica e a psicóloga Resumo do caso A consulta se inicia com a médica pedindo ao adolescente para ver o seu mapa de glicemias capila res diárias O paciente não trouxe e responde que o esqueceu em casa A mãe diz nesse momento que o filho compra doce na rua e escondido dela Ela por estar muito ansiosa se antecipava e respondia às perguntas for muladas ao filho Ao Wilson restava ficava calado A médica mede no momento da consulta a gli cemia capilar de Wilson e afere o valor de 250mg É um valor muito alto e indica hiperglicemia Neste momento a psicóloga tenta direcionar as perguntas feitas pela médica para o paciente res ponder e dessa forma facilitar uma interação médico paciente e a participação mais ativa deste Solicita que a médica ouvisse o que o paciente tinha a dizer a respeito de tudo o que se tinha falado O paciente começou a chorar de cabeça baixa não conseguindo se expressar de outra forma nesse momento da consulta A psicóloga nota claramente uma mudança do olhar da médica sobre a conduta do paciente Ela percebeu que existia uma grande dificuldade do pa ciente em lidar com as questões relativas à doença Não era apenas uma questão de burlar a dieta sim plesmente tratavase de aspectos mais complexos Psicossomaticaindd 604 Psicossomaticaindd 604 05012010 121229 05012010 121229 Psicossomática hoje 605 que incluíam a aceitação ou não da doença e de ser portador Conclusão do caso A dieta é um dos pilares do tratamento do DM1 e a mais difícil de ser alcançada de forma totalmente satisfatória O adolescente burla a dieta e come doce escondido da mãe A médica por sua vez constata durante a consulta uma hiperglimecia e deve ter li gado ao fato do esquecimento do diário de glicemia diárias de Wilson Provavelmente haveriam outros registros de hiperglicemia A mãe do adolescente durante a consulta se mostra ansiosa e preocupada não deixa o filho falar e fala no seu lugar A psicóloga direciona a consulta para que a mé dica faça suas perguntas para o paciente e dessa for ma impeça que a mãe responda por ele Isso estava tirandolhe a possibilidade de perguntar falar e res ponder durante a consulta Wilson acuado e também muito nervoso não contém o choro convulso que o impede de falar Neste momento um novo olhar da médica faz com que ela veja e compreenda que por detrás da burla à dieta está a grande dificuldade do adoles cente de se aceitar diabético e assim poder colaborar com o tratamento proposto Pequenos assinalamentos do profissional psi po dem mudar todo o rumo do encaminhamento da con sulta de forma a privilegiar as dificuldades emocionais do paciente da fase da adolescência à qual ele passa e em que a revolta e a rebeldia características da fase também se estendem à doença e ao ser doente Nesta consultaconjunta a psicóloga também tentou trazer o adolescente para uma participação mais ativa no tratamento visto que o DM1 é uma característica dele e deve ser encarado por ele e pela médica como uma chance de tornar o momento da consulta uma oportunidade de estreitar essa relação de confiança onde tudo se pode dizer um para o ou tro e de forma a consolidar os vínculos positivos ne cessários nessa parceria CASO CLÍNICO FRANCISCO O menino de 8 anos diabético tipo 1 vem à consulta médica acompanhado da mãe e da irmãzi nha um bebê de 4 meses É o filho mais velho tem ainda dois irmãos menores de 6 e 3 anos Partici pam também o médico residente em Endocrinolo gia Dr Álvaro e a psicóloga Miriam da Psicologia Médica Vamos apresentar esse caso descrevendo mais detalhadamente a consultaconjunta e reproduzindo os diálogos O médico pede a ajuda da psicóloga que se en contra presente no Ambulatório O paciente Francisco já é diabético há alguns anos e tem na prescrição da dieta e conseguir seguila a sua maior dificuldade para controlar o diabetes mellitus tipo 1 A situação do meu encontro com essas pessoas se dá da seguinte forma Todos estão sentados Francisco de olhos baixos o médico a mãe com uma bebezinha ao colo linda e risonha Chego e pergunto o que estava acontecendo e em que poderia ajudálos O médico diz que sistema ticamente Francisco não faz a dieta prescrita e que o controle da doença está muito prejudicado Dirijome ao menino ele já me conhece há mui to tempo e de outros momentos como este e per gunto O que está acontecendo com você e qual a dificuldade com a dieta A mãe começa a sorrir de uma forma encabu lada e diz que a situação em casa está complicada a bebezinha nasceu há poucos meses está amamentan doa e cuidando dela o tempo todo Os outros meninos menores também estão sendo amamentados ao seio para que parem de gritar ou de brigarem Francisco por ser o mais velho está sem a atenção direta dela no controle da sua doença Com isso o menino burla a dieta porque para ele é o mais difícil de ser seguido Dr Álvaro se coloca Francisco a sua glicemia está alta e tem es tado alta há muito tempo antes de a sua irmãzinha nascer Eu não sei mais o que fazer com você Dirijome ao menino e à mãe começo a conver sar sobre comida e faço algumas perguntas O que ele gosta de comer quando ele come mais do que deve Sobre a dieta sobre as restrições sobre a quantidade o que ele gosta de comer do que não gosta As respostas são monossilábicas Faço outras perguntas para quebrar o silêncio que se instala Dona Margarida o que a senhora faz quan do ele come além do permitido ou fora das prescri ções Ela responde que briga repreendeo e o deixa de castigo Pergunto ao Francisco O que sua mãe faz Ele responde que ela briga e se coloca timida mente mais encolhido e de cabeça baixa Neste momento começo a perceber que é dessa forma que o menino se chega à mãe consegue sua atenção porque os outros irmãozinhos gritam ber ram e exigem o seio dela Psicossomaticaindd 605 Psicossomaticaindd 605 05012010 121229 05012010 121229 606 Mello Filho Burd e cols Falo para todos que deve ser essa a forma que Francisco tem de se chegar à mamãe consegue dessa forma a sua atenção Dessa forma deixo claro com palavras aquilo que de psicológico está subja cente ao fato burlar a dieta prescrita e obter aten ção da mãe Dr Álvaro continua Francisco o que você achou do que a psicólo ga falou agora Ela está com a razão Francisco se encolhe mais e não responde O si lêncio toma conta da consulta Continuo a conversar com eles pergunto sobre o bebê menina que no momento está fartamente mamando ao seio da mãe e esta embevecida olha para ela gordinha e sadia Digo a Francisco Eu percebo você com dificuldades de fi car mais perto da mamãe e conseguir receber dela também a atenção de que necessita Francisco você ainda é pequeno para controlar sozinho uma doença como o diabete Continuo dizendo que podemos achar uma so lução para que alguns momentos do dia mãe e filho possam ficar juntos e apenas os dois Assim ele po deria abrir mão da burla à dieta para se chegar à mamãe e obter o seu olhar e atenção Penso rapidamente em algo a propor e sugiro a ida à feira ou ao hortifruti para que os dois possam escolher e comprar as verduras os legumes e as fru tas que ele poderá comer Digo Seriam momentos a dois e com a finalidade de comprar alimentos gostosos para a sua dieta O importante é deixar os irmãozinhos neste momento em casa com alguém que possa ficar com eles talvez o pai o avô ou algum outro parente Francisco passa a sorrir levanta a face e seus olhos brilham O médico fica espantado com a minha pequena intervenção Dr Álvaro conclui Estou percebendo que a psicóloga acertou em cheio Não pensei nesta possibilidade mas gostei No hortifruti vocês vão poder escolher alimentos e aproveitar para ficarem a sós Seria então importante pedir uma ajuda ao nutricionista para saber o que você pode comer e em que quantidade Não é só ir e comprar É ir saber comprar e saber comer Concluo que às vezes é preciso prescrever ações bem diferentes das usuais do modelo médico cartesiano Digo Dr Álvaro espero que dessa vez tenhamos as melhoras que estão sendo necessárias Terminamos nossa conversa fechando alguns pontos para que a intervenção possa ser o prescrito irem à feira e comprar os alimentos para a dieta e que esta possa ser seguida O médico contudo ainda não tem a certeza que vá dar certo Ele diz ao Francisco Se não der certo o controle do diabete vai piorar ainda mais A psicóloga propôs algo relativa mente fácil de cumprir Digo a ele Dr Álvaro fazer dieta é muito mais do que reduzir ou escolher a comida a ajuda ao menino é ele poder ficar também perto da mãe e depois em consequência a dieta poderá ser seguida Falo também diretamente com a mãe É importante que a senhora se divida nas atenções aos diferentes filhos o seio é só para a be bezinha Sua menina é muito linda Dona Margarida Veio depois de três filhos homens Vejo que a senhora está muito feliz mas aos poucos o bebê também vai precisar cada vez menos da senhora sobrando mais tempo para si mesma É importante que não dê mais o seio para os outros dois filhos isso não é bom nem para eles nem para a senhora A mãe se coloca Dr Álvaro Doutora vou tentar tudo que estiver ao meu alcance para ajudar o Francisco e os outros Não conto com a ajuda do pai deles Só meu sogro me ajuda Ele poderá ficar com os mais novos para irmos à feira É mais perto e tem tudo fresqui nho E aí Francisco ainda não ouvimos sua voz disse o médico Você vai fazer isso e melhorar sua dieta Disso depende o controle da sua glicemia e de sua saúde Francisco faz um sinal afirmativo com a cabeça Notase que mesmo mudo se comunica pela lingua gem não verbal Está feliz Burd 2007 A INTEGRAÇÃO DE PESSOAS E SABERES A consultaconjunta é uma ação de saúde que tem como característica unir o viés assistencial ao pe dagógico na medida em que integra pessoas e saberes na aprendizagem em serviço Tem por objetivo apri morar a tarefa assistencial no que diz respeito à qua lificação profissional e surge da necessidade viva de dar respostas resolutivas durante a dinâmica ágil da assistência à saúde Atualmente a consultaconjunta vem sendo exercitada nos Ambulatórios do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Rio de Janeiro com o propósito de capacitar médicos e psicólogos para a prática do cuidado integral à saúde e realizada pelos alunosprofissionais do Curso de Es Psicossomaticaindd 606 Psicossomaticaindd 606 05012010 121229 05012010 121229 Psicossomática hoje 607 pecialização em Psicologia Médica FCMUERJ sob a supervisão do staff do Serviço Este recurso de capacitação profissional em ser viço tem objetivos comuns e específicos referentes aos diferentes atores envolvidos Entre os objetivos comuns podemos citar Levar o profissional a compreender e identificar os diferentes aspectos envolvidos no processo saúdedoença Ampliar o repertório de recursos dos profissionais para lidar com os diferentes fatores que envolvem situações de adoecimento Favorecer a percepção do sofrimento e a identi ficação dos recursos do paciente para lidar com a doença estimulandoo a participar do trata mento Romper com a fragmentação e com a concentra ção da informação sobre o paciente Favorecer a integração teoria e prática buscando transformar a conduta dos profissionais envol vidos Possibilitar aos profissionais envolvidos entender a atuação clínica e terapêutica de seu colega am pliando a consciência para seus limites e possibi lidades Capacitar para interagir com o outro e para o tra balho em equipe incentivando práticas que aliem qualidade de atenção resolutividade das ações e que proporcionem a educação permanente entre os profissionais Promover uma prática integradora visando à in terdisciplinaridade instituindo o cuidado como eixo estruturante na prática em saúde Possibilitar o suporte mútuo entre profissionais frente a uma prática complexa e repleta de dú vidas e ansiedade para que possam exercêla de forma resolutiva e eficaz Com relação aos objetivos específicos da consul taconjunta no que se refere aos profissionais envolvi dos médicos e profissionais psi podemos destacar No que diz respeito aos médicos Ampliar a compreensão do processo saúdedoen ça para além do modelo biologicista em prol de uma medicina mais humana que leve em conta a unidade somatopsíquica do paciente Capacitar o médico a dar suporte psicológico a seus pacientes e a reconhecer o seu limite de atuação favorecendo um encaminhamento ade quado ao especialista em saúde mental quando necessário Compreender a importância da psicoterapia da prática médica assim como o seu papel terapêu tico junto ao paciente Instrumentalizar o médico para ver além do sin toma No que se refere ao profissional psi Promover a compreensão da interação corpo mente num contexto biopsicossocial Favorecer uma abordagem psicoterápica ágil fo cal e criativa adequada ao tempo e ao setting onde a consulta se desenrola Levar o profissional psi a atuar na consultacon junta como facilitador da comunicação por meio da compreensão da dinâmica da relação médico paciente Auxiliar no diagnóstico e na prescrição de condu tas terapêuticas adequadas ao estilo de vida do paciente Trabalhos conjuntos entretanto não têm sido uma prática comum em virtude da estruturação dis ciplinar compartimentalizada no que diz respeito aos conteúdos e da valorização de ações predominante mente individuais durante a formação na área de saú de Neste sentido no exercício da consultaconjunta temos encontrado dificuldades de diferentes ordens entre as quais podemos citar Junto aos médicos Desconhecimento teórico e prático uma vez que o trabalho integrado não é contemplado nos cur rículos da maioria das escolas médicas Desconhecimento eou incompreensão do mode lo de atenção biopsicossocial posto que o modelo de atenção à saúde tem sido calcado predomi nantemente na compreensão biologicista Dificuldade de compartilhar com um profissional de outra especialidade pela hegemonia do saber médico nos serviços de saúde Desconhecimento da função do profissional psi porque a prática deste profissional é recente nas unidades de atenção à saúde Excesso de demanda de trabalho por questões que vão desde o ordenamento da porta de entrada do sistema de saúde ou até mesmo pelo paradigma predominantemente curativo que tem norteado as ações em saúde Junto ao profissional psi Desconhecimento desta prática pois são poucas as unidades de saúde que utilizam esta metodolo gia de ensino em serviço Psicossomaticaindd 607 Psicossomaticaindd 607 05012010 121229 05012010 121229 608 Mello Filho Burd e cols Equívoco de compreensão na sua formação pro fissional que facilita a identificação com o pacien te e propicia uma aliança contra o médico Desconhecimento da biomedicina ou dos meca nismos biológicos das doenças que direcionam a compreensão do processo saúdedoença com excessiva ênfase na subjetividade em detrimento das demais dimensões que compõem o homem Exclusão ou pouca valorização dos determinantes sociais na etiologia das doenças Excesso de interpretação subjetiva dos dados da realidade fatos concretos Para viabilizar a prática da consultaconjunta têmse utilizado algumas estratégias para identificar e diluir pontos de resistência fomentar parcerias e integrar os profissionais discussão multidisciplinar de casos clínicos aproximação por temas afins nas discussões se minários e oficinas encaminhamentos em que a devolução ou respos ta de parecer ou da conduta traçada se faz de forma presencial incentivo à produção conjunta para participação em eventos artigos e pesquisas A atuação compartilhada se desdobra em pro dução conjunta sob diferentes formatos novas consultas em parceria para clarificação diagnóstica assunção do atendimento por um dos profissio nais envolvidos após discussão do caso sem a presença do paciente encaminhamentos mais precisos para especiali dades eou locais que desenvolvam terapêuticas requeridas pela situação em questão trabalhos de grupo com pacientes sob a coorde nação conjunta dos profissionais Todo processo é construído com e para o pa ciente eou família promovendo a aproximação e o diálogo valorizando a parceria e fortalecendo a au tonomia na busca do cuidado CONSIDERAÇÕES FINAIS Este é um recurso metodológico que temos uti lizado para quebrar as barreiras das dificuldades do trabalho conjunto para promover a compreensão in tegral do processo saúdedoença e facilitar a interlo cução entre profissionais visando a produzir novas configurações de saberes que favoreçam uma abor dagem resolutiva das reais necessidades de saúde da população É um procedimento que pode se tornar útil para qualquer profissional envolvido na relação doente doençameioambiente A prática da consultaconjunta potencializa o cuidado e os momentos dos profissionais ao propiciar que solidariamente partilhem problemas reflitam sobre eles e busquem soluções evitando a prática impessoal e a reprodução padronizada Este tipo de atuação torna o cuidado mais extenso e mais intenso e possibilita a construção de movimentos conjuntos viabilizando a mudança dos profissionais e das práti cas de saúde REFERÊNCIAS Burd M A Criança e o Diabetes Uma Visão Psicossomática Rio de Janeiro Gráfica Trena 2007 Burd M Graça LA Grupos com Diabéticos In Grupo e Corpo Psicoterapia com Pacientes Somáticos Capítulo 13 Porto Ale gre Ed Artmed 2000 São Paulo Ed Casa do Psicólogo 2007 relançamento Burd M Mello FJ Graça LA ConsultaConjunta uma forma de aprender e atuar a partir de uma dupla Tema Livre Congresso de Medicina Psicossomática Penedo Rio de Janeiro 1997 Ferrari H Luchina I Luchina N La interconsulta medicopsi cológica em el marco hospitalario Buenos Aires Nueva Vision 1980 Feuerwerker LCM Estratégias para a mudança da formação dos profissionais de saúde Caderno CE 2002 24 1124 Mello Filho J Cruz da Silveira LM Consulta Conjunta uma Es tratégia de Capacitação para Atenção Integral à Saúde Artigo da Revista Brasileira de Educação Médica ABEM Rio de Janeiro v29 nº 2 maioago 2005 Mello FJ Isaac Luchina e a Interconsulta MédicoPsicológica In Rodrigues Branco RFG A relação com o paciente Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2003 Ribeiro ECO Educação Permanente em Saúde In Marins JJN Rego S Lambert JB Araújo JGC Orgs Educação Médica em Transformação instrumentos para a construção de novas realida des São Paulo HucitecABEM 2004 Psicossomaticaindd 608 Psicossomaticaindd 608 05012010 121229 05012010 121229 ÍNDICE A AIDS aspectos psicossomáticos e sociais 431435 atendimento aos pacientes e a equipe 406407 atendimento grupal 412414 grupo de reflexão multiprofissional 439443 mulher com 414415 paciente terminal e a morte 416419 429430 pacientes homossexuais 407412 trabalho com equipes de saúde 425429 usuários de drogas 415416 Atitude médica 8081 Alexitimia pensamento operatório e 158165 Asma brônquica desencadeamento de crises 311312 pacientes com 311316 perfis psicodinâmicos 312313 resistência ao tratamento 312316 B Burnout conceito de 137138 contexto social e de trabalho no 141145 fontes de 138140 relacionamentos com pessoas e 140141 síndrome de 135150 Brasil atendimento de emergência no 472477 situações clínicas 474477 C Cardiologia e psicossomática aspectos psicossomáticos 318340 coronariano 332335 hipertenso 335339 meios de reagir ao estresse 322329 papel das emoções 318320 preferência pelo coração 329332 Câncer e psicossomática cirurgia de 303304 como totalidade 297 dogmas e modelos 296297 mitos 300302 modelo psicossomático e psicossocial 304308 privilégios biológicos 308309 Cirurgia cardíaca aspectos psicológicos 344345 no adulto 345349 impacto emocional 343349 Cirurgia plástica aspectos filosóficos e psicossociais 356366 correlação cirurgia estética e reparadora 358359 D Doenças alérgicas 178 infecciosas 181185 neoplásicas 185 Doente terminal assistência ao doente terminal 389400 boa morte 398399 cuidados paliativos 399 morte e morrer 389400 morte na velhice 394398 síntese dos opostos Dor classificação da 237239 crônica 239241 244245 depressão e 244245 neurofisiologia da 236237 no paciente com câncer 241243 problema da 235252 psicogênicas 243244 246247 psicose 247249 E Estresse e trabalho cultura empresarial 120128 dimensão interativa 131133 estresse e doença de adaptação 117119 mecanismo de formação do sintoma 115117 modelo de intervenção128129 perspectiva psicossocial em psicossomática 111133 tratamento estatístico 130131 Estudante adolescência 62 expectativas e ansiedades 6264 Psicossomaticaindd 609 Psicossomaticaindd 609 05012010 121229 05012010 121229 610 Índice relação com os professores 64Fenômenos psicossomáticos tentativa de aproximação psicanalítica 154156 F Fictícias desordens 368371 tratamento 371 G Grupo Balint 214222 estudantes de medicina com 216222 o homem e a obra 214216 com vida 444447 H Hemofilia aspectos clínicos 449 e AIDS 449458 Hipocondria 246 Histeria e hipocondria fenômeno psicossomático 153157 I Identidade cientista 8889 homem e Deus 8788 iniciação contradições e crises médica 8183 8789 mundo de relações 87 ser adulto 88 sociedades médicas 89 Interconsulta aspectos conceituais 225226 aspectos históricos 223224 desenvolvimento no Brasil 224225 estruturação e organização dos serviços de 229230 formação em 230231 natureza dos pedidos 226 no hospital geral 226229 M Medicinapaciente estudante 6264 paciente 5862 relação estudante paciente 6467 Medicina e a morte estudante de 7278 Médico atitude médica 8081 atributos do 8385 cliente relação 522544 identidade médica 8183 formação psicológica do 8086 Michael Balint reflexões sobre 214222 N Neurociência conceitos fundamentais 510512 corpo e mente 512513 neurônioespelho 517 519 psicologia cognitiva evoluçãodesenvolvimento 513517 Neurótico imagem corporal do 266267 O Obesidade doença mental 371372 identificação e imagem corporal 370371 narcisimo e self objeto alimentar 372 relação profissionalpaciente 372 Obstetrícia e psicossomática 289295 lugar do filho 289291 parto 291292 prevenção e tratamento 293295 puerpério e amamentação 292293 P Paciente aspectos sociais culturais e econômicos 5859 cirurgião e 350355 crônico e terminal 7375 deveres e perdas 6162 direitos e ganhos 6061 estar doente 5960 Psicoimunologia Sistema da vida de relação Psicossomática afeto na 158165 conceito de 2930 diálogo entre a psicanálise e a medicina 93105 infância e 563580 olhar winnicotianno 575578 no Brasil 3031 3946 pediatria e 273286 psicanálise e 102105 psicanálise e psicanalista 9899 psicanalista e a medicina 102 Psicologia médica curso de 5152 ensino de 4957 grupo de reflexão 5254 história da pessoa 5556 R Regênesis considerações teóricas 462467 mito da Fênix 461462 S Somático grupo terapêutico para paciente 488506 psicoterapia psicanalítica do paciente 481489 delimitando o campo 481 T Transplantes AIDS no tranplantado 382383 doador 376377 de medula óssea 385388 em crianças e adolescentes 383 Psicossomaticaindd 610 Psicossomaticaindd 610 05012010 121229 05012010 121229 Índice 611 grupos terapêuticos com doadores 378379 reações emocionais 381 receptor 379 renais 376382 rejeição 380 Transtornos de dor psicofisiológicos de conversão 246 de somatização 245246 somatoformes 245 V Via biológica 481485 simbólica 481485 Psicossomaticaindd 611 Psicossomaticaindd 611 05012010 121229 05012010 121229
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72402 psicossomatica afFH11 102609 500 PM Page 1 Composite C M Y CM MY CY CMY K Psicossomática hoje JULIO DE MELLO FILHO MIRIAM BURD E COLABORADORES 2ª edição MELLO FILHO BURD E COLS JULIO DE MELLO FILHO MIRIAM BURD E COLABORADORES Psicossomáticahoje 2ª edição 2ed consolidase como um marco na área da saúde mental Nesta nova edição o leitor encontrará textos reconhecidos como referência no assunto muitos totalmente atualizados além de novas e importantes contribuições para este que é livrofonte brasileiro em Psicossomática Tratase de um novo vigor para essa abordagem fundamental para a compreensão e o atendimento integrais dos indivíduos Mello Filho Burd e colaboradores garantem o respeito e a premissa antropológica no trabalho do profissional da saúde tratar os pacientes e não as doenças propiciando insights clínicos e orientações práticas que garantem o cuidado eficaz de muitas patologias ABREU Cols Síndromes psiquiátricas diagnóstico e entrevista para profissionais de saúde mental ABREU HERMANO CORDÁS Cols Manual clínico dos transtornos do controle dos impulsos ANDREASEN BLACK Introdução à psiquiatria 4ed ANDREASEN N C Admirável cérebro novo vencendo a doença mental na era do genoma APA Diretrizes no tratamento da esquizofrenia guidelines APA Diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos compêndio 2006 APA Referência rápida às diretrizes para o tratamento de transtornos psiquiátricos Compêndio 2006 BARKLEY R Transtorno de déficit de atençãohiperatividade TDAH guia completo para pais professores e profissionais da saúde BARKLEY MURPHY Transtorno de déficit de atençãohiperatividade TDAH exercícios clínicos 3ed BARKLEY R Cols Transtorno de déficit de atençãohiperatividade TDAH manual para diagnóstico e tratamento 3ed BARLOW CERNY Manual clínico dos transtornos psicológicos BECK FREEMAN Terapia cognitiva dos transtornos de personalidade 2ed BECK RUSH SHAW Terapia cognitiva da depressão BECK JS Terapia cognitiva BOTEGA JN org Prática psiquiátrica no hospital geral interconsulta e emergência 2ed BROWN TE Transtorno de déficit de atenção a mente desfocada em crianças e adultos BUSSE BLAZER Psiquiatria geriátrica 2ed CAMPBELL RJ Dicionário de psiquiatria 8ed CARLAT DJ Entrevista psiquiátrica 2ed CID10 Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID10 descrições clínicas e diretrizes diagnósticas CID10 Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID10 diretrizes diagnósticas e de tratamento para transtornos mentais em cuidados primários CIRAULO Cols Interações medicamentosas em psiquiatria 3ed CONNERS C K Transtorno de déficit de atençãohiperatividade CORDÁS MORENO Cols Condutas em psiquiatria consulta rápida CORDIOLI A V TOC manual de terapia cognitivocomportamental para o transtorno obsessivocompulsivo CORDIOLI A V Vencendo o transtorno obsessivocompulsivo manual de terapia cognitivocomportamental para pacientes e terapeutas 2ed CORDIOLI AV Cols Psicofármacos consulta rápida 3ed CORDIOLI AV Cols Psicoterapias abordagens atuais 3ed DALGALARRONDO P Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais 2ed DALGALARRONDO Religião psicopatologia e saúde mental DSMIV Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais DSMIVTR DSMIV Referência rápida aos critérios diagnósticos do DSM IVTR DUBOVSKY DUBOVSKY Transtornos do humor EARLEY P Loucura a busca de um pai na loucura do sistema de saúde EDDY J M Transtornos da conduta EDWARDS MARSHALL COOK O tratamento do alcoolismo um guia para profissionais da saúde 4ed ELMALLAKH GHAEMI Depressão bipolar um guia abrangente FIRST FRANCES PINCUS Manual de diagnóstico diferencial do DSMIVTR FLECK Cols A avaliação de qualidade de vida guia para profissionais da saúde FRIEDMAN M Transtorno de estresse agudo e estresse pós traumático GABBARD GO Psiquiatria psicodinâmica na prática clínica 4ed GABBARD GO Tratamento dos transtornos psiquiátricos 4ed GITLOW S Transtornos relacionados ao uso de substâncias 2ed BIBLIOTECA ARTMED Psiquiatria GOODWIN JAMISON Doença maníacodepressiva 2ed GRAY G E Psiquiatria baseada em evidências GREENBERGER PADESKY A mente vencendo o humor HALES YUDOFSKY Tratado de psiquiatria clínica 4ed HOLLANDER SIMEON Transtornos de ansiedade HOUNIE MIGUEL Orgs Tiques cacoetes e síndrome de Tourette um manual para pacientes seus familiares educadores e profissionais da saúde IZQUIERDO I Memória KAPCZINSKI Cols Transtorno de pânico o que é como ajudar um guia de orientação para pacientes e familiares KAPCZINSKI QUEVEDO Transtorno bipolar teoria e clínica KAPCZINSKI QUEVEDO IZQUIERDO Bases biológicas dos transtornos psiquiátricos 2ed LAMBERT KINSLEY Neurociência clínica LICINIO WONG Cols Biologia da depressão LIEBERMAN TASMAN Manual de medicamentos psiquiátricos LOUZÃ Cols TDAH ao longo da vida LOUZÃ ELKIS Cols Psiquiatria básica 2ed LOWENKRON T Psicoterapia psicanalítica breve 2ed MAJ SARTORIUS Esquizofrenia 2ed MAJ SARTORIUS Transtornos depressivos 2ed MAJ Cols Transtorno obsessivocompulsivo 2ed MACKINNON MICHELS BUCKLEY A entrevista psiquiátrica na prática clínica 2ed MARANGELL Cols Psicofarmacologia MELLO MELLO KOHN Cols Epidemiologia da saúde mental no Brasil MELLO FILHO BURD Cols Psicossomática hoje 2ed MILLER ROLLNICK Entrevista motivacional preparando as pessoas para a mudança de comportamentos adictivos Livros em produção no momento da impressão desta obra mas que muito em breve estarão à disposição dos leitores em língua portuguesa MORRISON J Entrevista inicial 3ed NUNES Cols Transtornos alimentares e obesidade 2ed PLISZKA S R Neurociência para o clínico de saúde mental QUEVEDO SCHMITT KAPCZINSKI Emergências psiquiátricas 2ed REITE RUDDY NAGEL Transtornos do sono 3ed ROHDE MATTOS Princípios e práticas em TDAH SADOCK SADOCK Compêndio de psiquiatria 9ed SADOCK SADOCK Manual conciso de psiquiatria clínica 2ed SADOCK SADOCK SUSSMAN Manual de farmacologia psiquiátrica de Kaplan e Sadock 4ed SCHATZBERG COLE DEBATTISTA Manual de psicofarmacologia clínica 6ed SPITZER Cols DSMIVTR casos clínicos v2 STEKETEE PIGOTT Transtorno obsessivocompulsivo STUBBE D Psiquiatria da infância e adolescência SUPPES DENNEHY Transtorno bipolar TABORDA CHALUB ABDALLAFILHO Psiquiatria Forense TOLMAN A Depressão em adultos TORRES SHAVITT MIGUEL Orgs Medos dúvidas e manias orientações para pessoas com transtorno obsessivocompulsivo e seus familiares TOY KLAMEN Casos clínicos em psiquiatria WERLANG BOTEGA Cols Comportamento suicida YOUNG JE Terapia cognitiva para transtornos da personalidade uma abordagem focada no esquema 3ed YOUNG KLOSKO WEISHAAR Terapia do esquema guia prático YUDOFSKY HALES Neuropsiquiatria e neurociências na prática clínica 4ed ZAVASCHI Cols Crianças e adolescentes vulneráveis M527p MelloFilho Julio de Psicossomática hoje recurso eletrônico Julio de Mello Filho et al 2 ed Dados eletrônicos Porto Alegre Artmed 2010 Editado também como livro impresso em 2010 ISBN 9788536322759 1 Psicologia 2 Transtornos psicofisiológicos I Título CDU 1599 Catalogação na publicação Renata de Souza Borges CRB 101922 IniciaisEletronicoindd 2 IniciaisEletronicoindd 2 2612010 154821 2612010 154821 2010 Psicossomática Psicossomática hoje 2a edição edição JULIO DE MELLO FILHO MIRIAM BURD E COLABORADORES Versão impressa desta obra 2010 IniciaisEletronicoindd 3 IniciaisEletronicoindd 3 2612010 154821 2612010 154821 IniciaisEletronicoindd 4 IniciaisEletronicoindd 4 05012010 121614 05012010 121614 Artmed Editora SA 2010 Capa Paola Manica Preparação de originais Cristiano Silveira Pereira Leitura final Marcos Vinícius Martim da Silva e Rafael Padilha Ferreira Editora Sênior Saúde Mental Mônica Ballejo Canto Editora responsável por esta obra Carla Rosa Araújo Projeto e editoração Armazém Digital Editoração Eletrônica Roberto Carlos Moreira Vieira Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à ARTMED EDITORA SA Av Jerônimo de Ornelas 670 Santana 90040340 Porto Alegre RS Fone 51 30277000 Fax 51 30277070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume no todo ou em parte sob quaisquer formas ou por quaisquer meios eletrônico mecânico gravação foto cópia distribuição na Web e outros sem permissão expressa da Editora SÃO PAULO Av Angélica 1091 Higienópolis 01227100 São Paulo SP Fone 11 36651100 Fax 11 36671333 SAC 0800 7033444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL AUTORES JULIO DE MELLO FILHO ORG Médico Professor Adjunto de Psicologia Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Rio de Janeiro Presi dente da ABMPRJ Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática MIRIAM BURD ORG Psicóloga clínica escolar e hospitalar Pósgraduada em Orien tação Educacional Medicina Psicossomática e Psicologia Mé dica Professora convidada dos Cursos de Especialização em Psicologia Médica e Medicina Psicossomática da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Estácio de Sá Vicepresidente da ABMPRJ biênio 20062008 ABRAM EKSTERMAN Médico Psicanalista Professor de Psicologia Médica Fundador e expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática Diretor do Centro de Medicina Psicossomática e Psicologia Médica do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro Exprofessor titular de Psicologia médica e An tropologia médica da Escola de Medicina Souza Marques apo sentado ADOLPHO HOIRISCH Professor Titular de Psicologia Médica da Faculdade de Medici na da Universidade Federal do Rio de Janeiro aposentado Titular da Academia Nacional de Medicina Titular da Acade mia de Medicina do Rio de Janeiro ADOLPHO MENEZES DE MELLO Professor Titular de Pediatria da Faculdade de Medicina de Marília Doutor em Medicina pela Universidade Estadual de Campinas ALEXANDRE KATHALIAN Analista titular da Sociedade psicanalítica do Rio de Janeiro IPA Professor Adjunto de Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio de janeiro Membro da International Association for Psy choanalytical Self Psychology San Diego ALFRED LEMLE Professor Titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro aposentado ALÍCIA REGINA NAVARRO DIAS DE SOUZA Professora Associada Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutora em Ci ências da Saúde Psiquiatria AMAURY DE OLIVEIRA QUEIROZ Professor Adjunto do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro aposentado Exchefe do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hos pital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Fede ral do Rio de Janeiro Membro Efetivo da Associação Psicanalítica do Estado do Rio de Janeiro Rio4 ANA CRISTINA LIMONGIFRANÇA Psicóloga mestre doutora livredocente e professoraasso ciada da Universidade de São Paulo Faculdade de Economia Administração e Contabilidade Núcleo FEAUSP de Gestão da Qualidade de Vida no Trabalho Filiada à Associação Brasileira de Medicina Psicossomática desde 1987 atuou como secretá ria executiva vicepresidente e conselheira Consultora autora e pesquisadora do tema psicossomática e qualidade de vida no trabalho Desenvolveu centenas de produções científicas e cor porativas em fóruns nacionais e internacionais ANA CRISTINA M PROCACI Psicóloga ANDREA DÓRIA BATISTA Clínica e hepatologista do Real Hospital Português RecifePE ANTÔNIO FRANCO RIBEIRO DA SILVA Psiquiatra e Psicanalista Membro e Didata da Formação em Psicanálise do Círculo Psi canalítico de Minas Gerais Membro fundador do Grupo de Estudos em Psicossomática GEPSI AVELINO LUIZ RODRIGUEZ Médico especialista em Psiquiatria pela AMBABP Professor Doutor da Universidade de São Paulo do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia Coordenador do Laboratório de Pesquisa Sujeito e Corpo SuCor do Institu to de Psicologia da USP Líder do Grupo de Pesquisa CNPq psicossomática psiconeurologia e promoção de saúde Dou tor em Psicologia Social pela PUCSão Paulo Presidente da Associação Brasileira de Medicina PsicossomáticaRegional de São Paulo 19881990 Presidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática 19901992 Presidente do Comitê Multidisciplinar de Psicossomática da Associação Paulista de Medicina 19911993 membro do corpo clínico do Instituto de Gastroenterologia de São Paulo também atua em Consul tório Particular como psiquiatra e psicoterapêuta Psicossomaticaindd 5 Psicossomaticaindd 5 05012010 121201 05012010 121201 vi Autores CARLOS DOIN Médico com Especialização em Psiquiatria Psicossomática e Psicanálise Membro da International Psychoanalytical Association da So ciedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro e da Associa ção Psicanalítica de Nova Friburgo CRISTIANA MONIZ DE ARAGÃO BAPTISTA Doutora em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia So cial UFRJ Especialista em Psicologia Médica UERJ Pósdoutorado em Psicologia Clínica The Wright Institute Berkeley Califórnia Atualmente trabalha no Spine One Reha bitation Programs Los Gatos Califórnia DAVID EPELBAUM ZIMERMAN Médico Psiquiatra Grupoterapeuta Psicanalista Didata da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre Autor de livros sobre Psicanálise e Grupoterapia ELISA MARIA PARAYBA CAMPOS Professora Doutora do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Coordenadora do Laboratório Centro de Recuperação em Oncologia e Saúde Chronos do Instituto de Psicologia da Uni versidade de São Paulo Professora dos cursos de Graduação e Pósgraduação nessa Instituação Coordenadora do labora tório ChronosCentro Humanístico de Recuperação em On cologia e Saúde EUGÊNIO PAES CAMPOS Professor titular de Psicologia Médica do Centro Universitário Serra dos ÓrgãosRJ Doutor em Psicologia Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicosso mática FERNANDO LUIZ BARROSO Emérito do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Livre docente de clínica cirúrgica da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro Titular e fundador do Colégio Brasi leiro de Cirurgia digestiva CBCD Titular fundador da Socie dade Brasileira de Cirurgia Bariátrica e Metabólica SBCBM FRANCISCO JOSÉ TRINDADE DE BARRETO Médico clínico geral filiado ao Colégio Americano de Médicos Exprofessor da Universidade Federal de Pernambuco Chefe do Serviço de Doenças Autoimunes do Hospital Português de RecifePE FRANCISCO SALGADO Cirurgião plástico e diretor do Departamento de Pesquisas e Documentação Científica da clínica do professor Ivo Pitanguy GEORGE LEDERMAN Membro titular da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Expresidente da Regional Recife da Associação Brasi leira de Medicina Psicossomática GERALDO CALDEIRA Médico gastroenterologista e psicanalista Expresidente da Asso ciação Brasileira de Medicina Psicossomática Membro Titular e do Conselho Superior da Academia Mineira de Medicina Profes sor do Curso de Pósgraduação em Psicologia Médica UFMG GISELA CARDOSO Psicóloga do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hos pital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Fede ral do Rio de Janeiro Mestre em Saúde Coletiva Instituto de Estudos em Saúde Coletiva IESCUFRJ Doutora em Saúde Coletiva Instituto de Medicina Social IMSUERJ HELÁDIO FRANCISCO CAPISANO Psicanalista pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Exfundador e expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática IVO PITANGUY Professor Titular de Cirurgia Plástica da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Instituto de Pósgraduação Carlos Chagas Rio de Janeiro Visiting Professor ISAPS Membro Titular da Academia Nacional de Medicina Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Patrono da Sociedade Brasi leira de Cirurgia Plástica FICS FACS Membro da Acade mia Brasileira de Letras Membro titular da Academia Nacional de Medicina JACQUES BINES Médico do Serviço de Oncologia Clínica do Hospital Clemen tino Fraga Filho Médico da Clínica Oncologistas Associados OAL no Rio de Janeiro JOSÉ GALVÃOALVES Chefe da 18º Enfermaria do Hospital Geral da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro Serviço de Clínica Médica Pro fessor Titular de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Fundação TécnicoEducacional Souza Marques Professor Ti tular de Clínica Médica da Universidade Gama Filho Professor Titular de Gastroenterologia da Pontifícia Universidade Católi ca do Rio de Janeiro Membro Titular da cadeira 51 da Acade mia Nacional de Medicina JOSÉ ROBERTO MUNIZ Médico psiquiatra psicanalista e terapeuta familiar Professor da Disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Ciên cias Médi cas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro JOSÉ SCHÁVELZON Titular de La Sociedade Argentina de Psicoterapia Psicanalíti ca Presidente Del Comitê de Psiconcologia de La Associación Médica Argentina Exprofessor de Cirurgia da Universidade de Buenos Aires Membro honorário e Diretor do Comitê de Psicobiologia da Asociación Médica Argentina KENETH ROCHEL CAMARGO JR Doutor em Medicina Social pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro LIA MÁRCIA CRUZ DA SILVEIRA Psicóloga Mestre em Tecnologia Educacional nas Ciências da Saúde NUTESUFRJ Especialista em Psicologia Médica UERJ Preceptora de Saúde Mental da Medicina da Família e Comuni Psicossomaticaindd 6 Psicossomaticaindd 6 05012010 121201 05012010 121201 Autores vii dade UERJ Hospital Universitário Pedro Ernesto Coordena dora do Núcleo de Apoio Psicopedagógico ao Residente NA PREUERJ Facilitadora do Grupo COM VIDA HUPEUERJ LISANDRE FIGUEIREDO DE OLIVEIRA Psicóloga LUCIANA RUBINSTEIN Médica Hillingdon Hospital Inglaterra LUÍS FERNANDO FARAH DE TÓFOLI Psiquiatra e Psicoterapeuta Professor Adjunto de Psiquiatria da Universidade Federal do Ceará Campus Sobral Doutor em Medicina Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo LUIZ ANTONIO NOGUEIRA MARTINS Livre Docente Professor Associado da Disciplina de Psicolo gia Médica e Psiquiatria Social do Departamento de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo UNIFESP Coordenador do NAPREME Núcleo de As sistência e Pesquisa em Residência Médica LUIZ FERNANDO CHAZAN Psicanalista Professor da Unidade Docenteassistencial de Psi cologia Médica e Saúde Mental da Faculdade de Ciências Médi cas da Universidade do Rio de Janeiro MÁRCIA PINTO FONTENELE MELLO Psicóloga clínica MARIA APARECIDA DE LUNA PEDROSA Psicóloga Mestre em Psicologia Clínica pela USP Membro da IFCLAFCL Internacional de Fóruns do Campo Lacaniano e Associação de Fóruns do Campo Lacaniano MARIA DE FÁTIMA PRAÇA DE OLIVEIRA Psicóloga Especialista na área hospitalar Diretora do serviço de Psicologia da equipes da PRF Sérgio Almeida de Oliveira no Hospital da Beneficência Portuguesa de São Paulo MARIA TEREZA MALDONADO Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRio Diretora de MTM Consultoria Psicológica Membro da American Family Therapy Association MARLENE ZORNITTA Psicóloga do Programa HIVAIDS DIP HUCFFUERJ Mes tre em Ciências na Área de Saúde Pública Escola Nacional de Saúde Pública ENSP FIOCRUZ MAURÍCIO DE ASSIS TOSTES Psiquiatra Médico do Serviço de Psiquiatria e Psicologia Médica do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho Universidade Federal do Rio de Janeiro Doutor em Medicina pela UFRJ MAURO DINIZ MOREIRA Doutor em Medicina pela Universidade Federal Fluminense Professor Associado da Faculdade de Medicina da Universida de Federal Fluminense MIRIAM BARON Psicóloga Especiliata em psicologia Hospitalar pela Universi dade Federal do Rio de Janeiro UFRJ e Psicóloga clínica Psi canalista Membro Associado da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro SPRJ Membro Associado da Sociedade Psicanalíti ca do Rio de Janeiro SPRJ Membro Associado da Federação Brasileira de Psicanálise FEBRASPSI Membro Associado da International Psychoanalytical Association IPA Atualmente trabalha no Instituto Ncaional do Câncer INCA OLY LOBATO Professor Titular do Departamento de Medicina Interna da Facul dade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Consultor em Medicina Psicossomática OTELO CORRÊA DOS SANTOS FILHO Médico Psicanalista Exchefe do Serviço de Psicossomática do Hospital Central do Instituto de Aposentadoria dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicosso mática PATRÍCIA CORINA ROCHA Psicóloga PAULO ROBERTO BASTOS CANELLA Livredocente de Ginecologia da UFRJ Professor Titular de Ginecologia da UFRJ Responsável pelo Ambulatório de Sexologia do Instituto de Gi necologia da UFRJ PROTÁSIO LEMOS DA LUZ Diretor da Unidade Clínica de Aterosclerose Instituto do Co ração HCFMUSP Professor Associado de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo Membro titular da Academia Brasileira de Ciências RODOLPHO PAULO ROCCO Professor Titular e Chefe do Departamento de Clínica Médi ca da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro SAMUEL HULAK Psiquiatra Psicoterapeuta Expresidente da Associação Brasileira de Medicina Psicosso mática Autor de livros e artigos sobre Psicoterapia SANDRA LUCIA CORREIA LIMA FORTES Psiquiatra Professora Adjunta de Saúde Mental e Psicologia Médica do curso de Especialização em psicologia Médica e do Programa de Pósgraduação em Ciências Médicas da Faculda de de Ciências Médicas da UERJ PhD em Saúde Coletiva SÉRGIO ANTONIO BELMONT Psicanalista Membro da Associação brasileira de Psiquiatria Mestre em Psicologia Clínica USP Membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Psicossomaticaindd 7 Psicossomaticaindd 7 05012010 121201 05012010 121201 SÉRGIO ZAIDHAFT Professor Assistente de Psicologia Médica da Faculdade de Me dicina da Universidade Estácio de Sá THEREZINHA LUCY MONTEIRO PENNA Médica Professora convidada do Curso de Pósgraduação em Psicologia Médica FCMUERJ Professora convidada do Cur so de Pósgraduação em Medicina Psicossomática e Psicologia viii Autores Médica da Universidade Estácio de SáRJ Exprofessora con vidada da Escola de Medicina da Universidade de Columbia Nova York Columbia University VIRGÍNIA FONTENELE EKSTERMAN Pediatra e Psicanalista Especialista em Medicina Psicossomática Membro fundador da ABMP Associação Brasileira de Medicina Psicossomática Psicossomaticaindd 8 Psicossomaticaindd 8 05012010 121202 05012010 121202 A Danilo Perestrello Helládio Francisco Capisano José Fernandes Pontes e Luiz Miller de Paiva pioneiros da Psicossomática no Brasil Julio de Mello Filho Psicossomaticaindd 9 Psicossomaticaindd 9 05012010 121202 05012010 121202 SUMÁRIO Apresentação à segunda edição 15 PARTE 1 Conceituação 1 Introdução 29 Julio de Mello Filho 2 Medicina psicossomática no Brasil 39 Abram Eksterman PARTE 2 Ensino e formação 3 Ensino de psicologia médica 49 José Roberto Muniz e Luiz Fernando Chazan 4 Relação estudante de medicinapaciente 58 Rodolpho Paulo Rocco 5 O estudante de medicina e a morte 72 Sérgio Zaidharf Andrea Doria Batista Jacques Bines e Luciana Rubinstein 6 A formação psicológica do médico 80 David Epelbaum Zimerman 7 Identidade médica 87 Adolpho Hoirisch PARTE 3 Temas básicos 8 Psicossomática o diálogo entre a psicanálise e a medicina 93 Abram Eksterman 9 Algumas considerações sobre a relação doençasociedade em psicologia médica 106 Kenneth Rochel Camargo Jr 10 Uma perspectiva psicossocial em psicossomática via estresse e trabalho 111 Avelino Luiz Rodrigues e Ana Cristina Limongi França 11 Síndrome do burnout 135 Avelino Luiz Rodrigues e Elisa Maria Parayba Campos Psicossomaticaindd 11 Psicossomaticaindd 11 05012010 121202 05012010 121202 12 Sumário 12 Histeria hipocondria e fenômeno psicossomático 153 Otelo Corrêa dos Santos Filho 13 Alexitimia e pensamento operatório a questão do afeto na psicossomática 158 Antônio Franco Ribeiro da Silva e Geraldo Caldeira 14 Psicoimunologia hoje 167 Julio de Mello Filho e Mauro Diniz Moreira 15 Reflexões sobre Michael Balint comunicando uma experiência de grupos 214 Maria Aparecida de Luna Pedrosa 16 Interconsulta hoje 223 Luiz Antonio Nogueira Martins 17 O problema da dor 235 Oly Lobato 18 Imagem corporal 255 Helládio Francisco Capisano PARTE 4 Temas específicos Trabalhos em especialidades médicas 19 Psicossomática e pediatria 273 Adolpho Menezes de Mello 20 Psicossomática e obstetrícia 288 Maria Tereza Maldonado 21 Psicossomática e câncer 296 José Schávelzon 22 Aspectos psicossomáticos em pacientes com asma brônquica 310 Alfred Lemle 23 Aspectos psicossomáticos em cardiologia mecanismos de somatização e meios de reagir ao estresse 318 Eugênio Paes Campos 24 O impacto emocional da cirurgia cardíaca 343 Maria de Fátima Praça de Oliveira e Protásio Lemos da Luz 25 O paciente e seu cirurgião 350 Fernando Luiz Barroso 26 Aspectos filosóficos e psicossociais da cirurgia plástica 356 Ivo Pitanguy e Francisco Salgado 27 Obesidade um desafio 368 Alexandre Kahtalian 28 Transplantes renais 376 Miriam Baron 29 Transplantes de medula óssea entre doadores e receptores não aparentados avanços biopsicológicos 385 Miriam Baron Psicossomaticaindd 12 Psicossomaticaindd 12 05012010 121202 05012010 121202 Sumário 13 30 A morte e o morrer a assistência ao doente terminal 389 Francisco José Trindade de Barreto PARTE 5 AIDS 31 AIDS o doente o médico e o psicoterapeuta 405 Julio de Mello Filho 32 AIDS aspectos psicossomáticos 423 Amaury Queiroz 33 Aspectos psicossomáticos e sociais da AIDS 20 anos de experiência 431 Amaury Queiroz Gisela Cardoso Marlene Zornitta e Maurício Tostes 34 Grupo de reflexão multiprofissional em AIDS uma estratégia em psicologia médica 439 Alícia Navarro Dias de Souza 35 Grupo com vida a adesão à vida frente à ameaça de morte 444 Lia Silveira 36 Hemofilia e AIDS 449 Virgínia Fontenelle Eksterman Ana Cristina M Procaci Lisandre F Oliveira Marcia Pinto Fontenelle Mello e Patrícia Corina Rocha PARTE 6 Trabalhos originais 37 Regênesis o mito da Fênix em psicossomática 461 Samuel Hulak e George Lederman 38 Desordens fictícias 468 Therezinha Lucy Monteiro Penna 39 O médico o paciente e o atendimento de emergência no Brasil 472 José Galvão Alves PARTE 7 Tratamento 40 Psicoterapia psicanalítica do paciente somático 481 Otelo Corrêa dos Santos Filho 41 Psicoterapia em instituições médicas 491 Therezinha Lucy Monteiro Penna 42 O paciente somático no grupo terapêutico 497 Eugênio Paes Campos 43 Psicossomática e neurociência 510 Carlos Doin 44 Relação médicocliente 522 Paulo Canella Psicossomaticaindd 13 Psicossomaticaindd 13 05012010 121202 05012010 121202 45 Somatização hoje 546 Sandra Lucia Correia Lima Fortes Luis Fernando Farah Tófoli e Cristina Moriz de Aragão Baptista 46 Infância e psicossomática intersubjetividade e aportes contemporâneos 563 Sérgio A Belmont 47 Diabetes mellitus uma visão psicossomática 582 Miriam Burd 48 Consultaconjunta uma estratégia de atenção integral à saúde 601 Julio de Mello Filho Lia Márcia Cruz da Silveira e Miriam Burd 14 Sumário Psicossomaticaindd 14 Psicossomaticaindd 14 05012010 121202 05012010 121202 APRESENTAÇÃO À SEGUNDA EDIÇÃO Após várias reimpressões do livro resolvemos fa zer uma nova edição revisada atualizada e ampliada e desta vez com a colaboração de Miriam Burd A trajetória deste livro foi francamente vitorio sa entre nós A aceitação da classe dos profissionais brasileiros de saúde mental foi praticamente integral Também nas Faculdades de Medicina e Psicologia nas disciplinas de Psicologia Médica e Psicologia Hospita lar a aceitação foi total E hoje o livro é bibliografia obrigatória em todos os concursos de psicologia de psicologia médica ou de psicossomática Tudo isso reforça o acerto dos autores e da edi tora em lançar este livro Nada mais natural portan to do que atualizálo neste momento e ampliálo fazendoo cada vez mais completo Digase todavia que em função da experiência dos autores este li vro se manteve atual e o que se busca agora é uma atualização ainda maior e a possibilidade dos leitores tomarem contato com outros poucos nomes e temas que estiveram até então ausentes A maioria dos autores ampliou seus capítulos desde pequenas modificações a grandes alterações formando praticamente um capítulo novo e substi tuindo o anterior Outros fizeram postscriptum Um importante número decidiu manter seu capítulo ori ginal sem fazer alterações Desde a primeira edição deste livro a psicosso mática e a psicologia médica sua filha dileta e primo gênita que cresceu mais do que a mãe continuaram em expansão a psicossomática principalmente no campo da psicoimunologia que domina as pesquisas em uma área da medicina Também as unidades de psicossomática nos vários serviços do hospital geral em muito se multiplicaram e hoje são praticamente obrigatórias em pediatria obstetrícia neonatologia ginecologia clínicas de adolescentes e idosos cardio logia gastroenterologia pneumologia nefrologia endocrinologia diabetes e nutrição cirurgia clínica geral e CTI A medicina e a área da saúde em geral traba lham sempre com equipes multiprofissionais num enfoque interdisciplinar que foi pioneiro na psicos somática e está sendo amplamente posto em prática A isso também se deve o trabalho da medicina social igualmente cada vez mais vitorioso Assim o profis sional da saúde brasileiro e não apenas o médico trabalha de um modo geral cada vez mais com o en foque psicossomático durante a consulta na feitura do diagnóstico bem como na prescrição terapêutica Outra prática em franco desenvolvimento é a interconsulta cada vez mais realizada pelas unidades de psicologia médica e de psicologia hospitalar tra balhando em ambulatórios e enfermarias de hospitais universitários públicos e privados Com a intercon sulta nós introduzimos a percepção da contratrans ferência do profissional de saúde na relação com seu paciente bem como os problemas e crises institucio nais interatuando com este Criase assim um espaço de reflexão em torno do ato de saúde a possibilidade de construção de uma prática realmente interdiscipli nar A esse respeito Luiz Antonio Nogueira Martins nos brinda com um capítulo novo sobre o tema no qual ele faz um resumo histórico a partir dos traba lhos de Luchina e colaboradores e enfatiza o quanto a prática da interconsulta cresceu no Brasil princi palmente com os seus trabalhos e os de Neury Botega Reis na UNICAMP em São Paulo Numa derivação da prática da interconsulta nós criamos JMF a consultaconjunta quando trabalha mos no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ e a desenvolvemos no Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ Como o nome diz tratase de uma consulta a dois no caso um profissional clíni co e um profissional psi entrevistando um mesmo pa ciente ajudandose mutuamente Esse tema constará de um novo capítulo deste livro A psicossomática não é hoje em dia apenas uma prática médica como pensavam seus pioneiros ela se espraiou por todas as áreas da saúde Assim os psicólo gos encontraram na psicossomática um excelente cam po de trabalho e estão aderindo maciçamente a essa prática Há alguns anos criaram a Sociedade de Psicolo gia Hospitalar uma entidade poderosíssima que realiza congressos com aproximadamente 3500 participantes Psicossomaticaindd 15 Psicossomaticaindd 15 05012010 121202 05012010 121202 16 Mello Filho Burd e cols Por tudo isso as entidades que congregam pro fissionais da área também se multiplicaram A prin cípio éramos apenas nós da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática depois vieram as congêne res de Psicologia Hospitalar as Associações de Psico logia da Saúde a Associação Brasileira de Intercon sulta Psiquiátrica ligada à Associação Brasileira de Psiquiatria e o grupo da Psiconeuroendocrinologia todas realizando férteis congressos com muitos par ticipantes e animados debates Contrasta com todo esse crescimento e dinamis mo a involução dos Grupos Balint em nosso meio Essa atividade que começou com Michael Balint na Ingla terra e que consistia na discussão de casos clínicos em pequenos grupos centrada na relação médicopacien te alcançou seu apogeu nas décadas de 1950 60 e 70 principalmente na Europa nos Estados Unidos no Brasil e na Argentina Houve depois um decréscimo muito acentuado na América do Sul onde praticamen te não vem mais funcionando Entre as causas desse fato podemos apontar a resistência do establishment médico às abordagens psicossociais sendo ainda o mé dico a classe profissional mais retrógrada a esse tipo de abertura E observese ainda que há cerca de um sé culo com o advento da psicanálise existe tal enfoque Outro fator é que o médico não quer ser pego no con trapé de sua contratransferência não quer que suas emoções inadequadas positivas e principalmente ne gativas venham à baila sejam expostas ao grupo Nes se sentido é possível que parte de nós profissionais de psicologia médica tenhamos errado denunciando precocemente atos de iatrogenia que os médicos não estavam ainda preparados para admitir Ademais na Interconsulta com apenas uma dupla a atuar a exposi ção contratransferencial fica contida a quatro paredes daí a preferência do médico por esse procedimento Ao mesmo tempo a interconsulta tornouse um ato de rotina enquanto o Grupo Balint é ainda uma atividade eletiva Nesse ínterim a personalidade do médico e do estudante de medicina continua a ser investigada Se por um lado podem existir fortes traços narcísicos e de onipotência levando à arrogância e à dificulda de de se igualar com os outros existe também um potencial de empatia e de amor ao próximo mescla dos com uma forte idealização que levam a um feliz encontro com outrem Na prática o coração do médico e do futuro médico balança entre uma medicina humanizada e governada pelo afeto com o paciente e outra cientí fica e mecanicista fria e impessoal governada por exames e procedimentos técnicos de diagnósticos e tratamentos Nada contra exames e procedimentos técnicos em si minha crítica se faz ao mal hábito de considerálos alternativa contra o bom e necessário relacionamento com o paciente Nós que lidamos com a psicologia do estudante de medicina sabemos que há um somatório de problemas que se imbricam durante sua formação Assim este estudante já pode trazer traços de personalidade negativos como os an teriormente apontados e um grau maior ou menor de esquizoidia dificultando a relação com os outros e irá se refugiar no discurso tecnológicocientífico da medicina como defesa psicológica contra seus proble mas de autoestima Então é preciso que o estudante seja ajudado pelos professores humanistas logo no início do cur so Em nossa Faculdade o Curso de Psicologia Médi ca se inicia no 2º ano porém os calouros têm a pos sibilidade de se inscreverem no PAPE ou no Projeto Tutoria logo que ingressam e passam por uma fase de muita ansiedade No PAPE podem ser ajudados em seus proble mas psicológicos ou pedagógicos em entrevistas indi viduais e na tutoria discutir em grupo sua inserção na faculdade aquisição de bolsas e feitura de está gios escolha de especialidades bem como qualquer problema de ordem emocional ou familiar ou de mau resultado no curso Anteriormente e paralelamente à feitura deste livro foi fundada uma Associação Brasileira de Medi cina Psicossomática sendo os fundadores professores universitários vinculados à psicanálise e essa entida de hoje se mantém com núcleos regionais por todo o Brasil e congrega além de médicos profissionais da saúde em geral sendo ou não pertencentes ao esque ma psi A ABMP mantém uma revista que vem divul gando o trabalho de psicossomática no Brasil graças principalmente ao empenho de Samuel Hulak de Per nambuco No momento a presidência do movimento está com a psicóloga Cacilda Maciel de Minas Gerais A ABMP realiza congressos brasileiros bianualmente Comecemos agora a descrever as modificações realizadas nos capítulos já existentes Avelino Luiz Rodrigues e Elisa Maria Parahyba numa fase de intensa produção científica nos brin dam com um trabalho completo sobre um tema tão atual o estresse profissional dos profissionais de saú de em suas formas deterioradas psicossóciohigiêni Curso de Psicologia Médica programa de Apoio Psicopeda gógico ao Estudante PAPE e Projeto Tutoria da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ Atualmente sou o Coordenador do Projeto Tutoria Nossa equipe prepara professores para serem tutores Um projeto semelhante é desenvolvido por residentes da UERJ coor denado por Denise Herdy Psicossomaticaindd 16 Psicossomaticaindd 16 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 17 cas no mundo de então Centrandose na pessoa do médico e do enfermeiro eles fazem uma crítica pun gente das condições de trabalho desses profissionais e das repercussões destes fatos na saúde física e men tal no exercício da profissão e da vida familiar No caso de Avelino podemos considerar este trabalho como uma extensão do seu capítulo anterior Uma Perspectiva Social em Psicossomática via estresse e trabalho escrito em colaboração com Ana Cristina Limongi O atual trabalho que é uma revisão completa do tema Burnout termina com uma pesquisa reali zada pelos autores sobre a situação laboral com 351 médicos da cidade de São Paulo culminando com a pergunta O que é que significa para você a medici na a sua prática profissional e que consequências ela tem na sua vida Geraldo Caldeira e Antônio Franco Ribeiro da Silva ampliam e atualizam seu capítulo sobre Alexi timia e Pensamento Operatório com as contribui ções de vários autores em estudos recentes sobre o assunto os trabalhos de Le Shan e David Kissen com pa cientes com problemas torácicos dentre os quais metade sofria de câncer de pulmão e a outra meta de ficou em grupo controle aqueles que não pos suíam canais suficientes para a descarga emocio nal eram muito mais predispostos a ter câncer o trabalho apresentado por Christophe Dejours com a leitura do aparelho psíquico intitulado A Terceira Tópica na qual o considera dividido um Inconsciente Primário sede dos impulsos pri mitivos pulsão de morte e um Inconsciente Secundário constituído pelo material recalcado o trabalho científico que Angélica Lie Takushi e Avelino Luiz Rodrigues apresentaram no VI Con gresso Sulmineiro de Psicossomática 2007 Divã de Procusto reflexões a partir de estudos de caso elaborado no Laboratório Sujeito e Cor po do Instituto de Psicologia da USP no qual es tudaram casos clínicos aparentemente como pa cientes alexitímicos e operatórios e o trabalho do Prof Samuel Hulak a ser breve mente publicado no seu novo livro em comuni cação pessoal 2008 em que propõe no trabalho Alexitimia e Pseudoalexitimias uma classificação das somatizações e um modelo de anamnese psi cossomática que se caracteriza por um questio nário do qual Caldeira retira algumas perguntas mais demonstrativas da alexitimia Julio de Mello Filho e Mauro Diniz Moreira um psicanalista e um imunologista fazem um PostScrip tum do seu capítulo Psicoimumologia Hoje no qual atualizam as pesquisas e os novos conhecimentos ad quiridos nessa área que é talvez o campo que apre sentou mais desenvolvimento e crescimento dentro da Psicossomática Para tanto fazem uma importante atualização dos recentes conhecimentos sobre o funcionamento do eixo neuroimune nos seus aspectos neurológicos endocrinológicos e psicológicos Trazem à baila as vá rias descobertas realizadas dentro desse campo nos últimos anos como o papel das citosinas e as novas participações dos neurohormônios ao mesmo tempo em que repenetram no campo da Psicoimumologia Clínica da asma das alergias das doenças infeccio sas do câncer e das enfermidades autoimunes Lia Silveira no seu capítulo Grupo COM VIDA con tinuando um trabalho em grupo que foi iniciado por Lyzete Macário Costa e Julio de Mello Filho com pa cientes portadores de AIDS aborda uma experiência realizada no Departamento de Medicina Integral Fa miliar e Comunitária do Hospital Universitário Pedro Ernesto da UERJ abordando os vários aspectos do enfoque grupal desses pacientes Ao contrário dos casos de AIDS descritos por Julio de Mello Filho no capítulo inicial sobre Psico terapia do Paciente Aidético em que na fase inicial da doença lidávamos quase sempre com quadros dra máticos que iam ao êxito letal defrontamonos ago ra depois do uso das terapias antirretrovirais com pacientes crônicos angustiados temerosos com as questões de contágio porém sem a presença constan te do fantasma da morte Nos grupos que passaram a ser denominados COM VIDA passouse a discutir sobre os vários fan tasmas vinculados à doença HIVAIDS como a incu rabilidade o risco de infecções secundárias o medo de contaminar pessoas queridas o perigo de se sentir alguém lesivo à comunidade O grupo passou a ser um importante instrumento terapêutico para ques tões familiares profissionais e dos cuidados com a vida em geral O trabalho vem se multiplicando e os grupos cada vez mais se tornam espaços de reflexões e de sapiência sobre as questões da vida e da morte Interconsulta Hoje de Luiz Antônio Nogueira Mar tins faz jus à contribuição de Isaac Luchina no con ceito e na prática da interconsulta que se iniciou na Argentina sobre os auspícios de sua equipe cita as pre ciosas contribuições de Neury Botega em nosso meio Neste trabalho ele destaca a prevalência dos distúrbios psiquiátricos nos hospitais gerais os be nefícios e as vantagens que a interconsulta propor ciona aos pacientes aos familiares aos profissionais de saúde e à sociedade em geral a estruturação e a Psicossomaticaindd 17 Psicossomaticaindd 17 05012010 121202 05012010 121202 18 Mello Filho Burd e cols organização dos serviços de interconsulta e por úl timo aborda a formação dos profissionais em inter consulta Oly Lobato um dos azes do movimento de psicosso mática do Rio Grande do Sul faz um aprofundamen to ainda maior no seu capítulo já anteriormente com pleto sobre O Problema da Dor É um capítulo tão consistente que vale como se fosse um tratado sobre a dor Nele o autor se refere à classificação das dores aos procedimentos farmacológicos e não farmacoló gicos utilizados para o tratamento da dor a questão das dores psicogênicas o problema da simulação a neurose de compensação os transtornos de somati zação a dor nas psicoses e finalmente o complexo problema do placebo José Schávelson uma das maiores figuras vivas de cancerologia do mundo faznos uma extensão de seu capítulo Psicossomática e Câncer enviandonos uma síntese de seu livro recém publicado Freud um homem com câncer no qual estuda o entorno médico familiar hipocondríaco de Freud que o levou a inter pretar uma lesão benigna apresentada como um tu mor maligno levandoo à morte por hiperradiação Eugênio Paes Campos em Aspectos Psicossomá ticos em Cardiologia com toda a sua experiência de excardiologista psicólogo e atual psicossomati cista reescreve seu capítulo reestudando a questão do estresse o chamado fenômeno psicossomático os mecanismos de somatização a hipocondria e a his teria a morte vudu além de enriquecer muito as considerações sobre os coronarianos e hipertensos transformandoo num capítulo ainda mais completo sobre o tema Maria de Fátima Lemos da Cruz e Protásio Le mos da Luz em O Impacto Emocional da Cirur gia Cardíaca enfatiza que hoje há uma grande dis seminação dos conhecimentos médicos na imprensa leiga e portanto o grau de informação dos pacien tes afeta a conduta dos profissionais de saúde diante dos pacientes que se submetem à cirurgia cardíaca Os próprios pacientes buscam na internet sobre seus problemas médicos sobre o tratamento e mesmo so bre o perfil dos seus médicos Maria de Fátima nos diz que este comporta mento em princípio é sadio mas é importante lembrar a capacidade de filtrar separar o bom do ruim ou o verdadeiro e o especulativo Além do mais o conhe cimento muda rapidamente e nem sempre promessas aparentemente bem fundamentadas se consolidam na prática A autora salienta que para isso os profissio nais de saúde devem estar cientes das novas exigên cias de seus pacientes e tratálas com transparências Ivo Pitanguy faz uma ampliação do seu preciosíssi mo capítulo introduzindo por exemplo o problema da cirurgia estética do nariz Aqui e ali ele faz novas contribuições ao seu texto uma das preciosidades deste livro Alexandre Kahtalian no seu capítulo Obesidade um desafio já como epígrafe nos brinda com um tre cho de Murilo Rubião A obesidade é hoje um assunto de saúde pública em alguns países do mundo ociden tal e já existe a preocupação nas escolas nas institui ções e nas famílias com a chamada comida junk food excessivamente calórica Kahtalian coloca nas suas ampliações as carac terizações das obesidades segundo o Índice de Mas sa Corporal utilizado pela ONU Chama a atenção porém para o critério que é apenas classificatório e que não leva em consideração a compleição física na avaliação do tecido adiposo excedente Sobre a recente possibilidade de cirurgia bariá trica com as técnicas restritivas ou disabsortivas para os pacientes ditos desafios ou os chamados grandes obesos o autor aponta os estudos de Fandino Vas quez e colaboradores e enfatiza que a cirurgia impli ca acompanhamento psiquiátrico e psicológico antes durante e após o ato cirúrgico Kahtalian nos diz que existem muitas notícias de sucesso dessas cirurgias que saem em jornais e re vistas Os êxitos às vezes são transitórios Relevante é para o autor no tratamento da obesidade a bio grafia do indivíduo e o eclodir da obesidade a com preensão global da história e a boa relação profissio nalpaciente que permita a ele exercer melhor o seu papel terapêutico Junto a várias medidas e trabalhos promissores o autor chama a atenção para os chamados Vigilantes do Peso e Comedores Compulsivos Anônimos que de forma leiga têm sido um importante auxiliar à clas se médica e de nutrólogos no combate persistente ao desafio da Obesidade Miriam Baron continuando a escrever sobre o tema transplante faznos agora um trabalho sobre os Trans plantes de Medula Óssea entre Doadores e Re ceptores não Aparentados falandonos sobre essa relação peculiar entre o que salva e o que é salva do não se conhecerem sobre as fantasias os desejos de encontro e o trabalho da psicologia e do serviço social com cada um isoladamente e com a dupla Na sua experiência no Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro diz que Psicossomaticaindd 18 Psicossomaticaindd 18 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 19 o encontro de ambos pode ser definido a partir de um tempo determinado e em condições favoráveis definido caso a caso O paciente deve estar restabelecido e adap tado ao seu novo status fica explícito que não há como evitar eternamente o desejo do encontro de duas pes soas implicadas num evento de tão grande proporção Chamamos esse processo de quebra de anonimato Comenta que o transplante não é um procedimento simples Envolve coragem sacrifício na preparação no ato propriamente dito e depois Tratase de uma operação casada em que doador e receptor formam um par em uníssono em prol de um objetivo comum a melhora do paciente Como conclusão do trabalho realizado aponta para o aumento do número de doadores voluntários e que os cuidados nos preparos dos mesmos evitam suspensões adiamentos e desistências entre os possí veis doadores Francisco José Barreto Trindade atualiza e amplia o seu capítulo A Morte e o Morrer que trata sobre o paciente terminal e começa nos brindando com uma epígrafe em forma de poesia de sua autoria O autor desenvolve o tema A síntese dos opos tos um trabalho não verbal realizado com dese nhos Apresenta os desenhos de três pacientes e os classifica em grupos a falta de síntese a síntese lógi ca e a síntese mística Embora os aspectos da morte na velhice estejam em todo o capítulo o autor a coloca como um tópico separado Apresenta dois estudos O primeiro traba lho realizado na Holanda consistiu numa avaliação dos procedimentos e condutas de médicos e clientes em fase terminal que trouxe como resultado a legis lação da eutanásia naquele país e um segundo estu do nos Estados Unidos realizado em duas fases O autor nos diz que a comparação entre as duas fases do estudo acima não mudou o comportamento médico mas consolidou o ato do governo criando a emenda do advanced directi ve act em 1992 e o living bill que permitem ao doente escolher suas preferências de tratamento e aos médicos serem consoantes com isso em relação à prescrição de ordens médicas contra os procedimentos de ressuscita ção DNR do not ressucitate CMO comfort measures only iniciação ou suspensão de ventilação mecânica alimentação por sonda O estudo em si teve o nome de SUPPORT Study to Understand Prognoses and Prefer ences for Outcomes and Risk of Treatments Francisco Barreto nos diz que a partir desses es tudos foi criado o conceito de boa morte do ponto de vista humanitário e médicolegal e aberto o es paço para a conceituação dos Cuidados Paliativos como subespecialidade sobretudo dentro da oncolo gia e a criação dos hospices No tópico Preparo da Equipe a atitude do autor mostra a ênfase ou seu interesse maior nos Grupos de Sensibilização O autor nos diz que a reconstrução da fé faz parte do atendimento às neces sidades emocionais e espirituais do paciente sejam elas de qualquer ordem e esse apoio tanto ajuda a evitar a morte nos pacientes cirúrgicos bem como a possibili dade da eliminação do desespero e a introdução da paz nos pacientes verdadeiramente terminais Ilustra esse tema com a descrição de três casos clí nicos seus tornando seu capítulo ainda mais completo No tópico Cuidados Paliativos destaca o ex celente artigo de Karen Kehl pela evolução do con ceito e pela revisão da literatura e as publicações mais recentes que sumarizam em seis os temas que constituem uma boa morte o tratamento da dor e dos sintomas o processo decisório claro a prepara ção para a morte finitude Morreu em paz a con tribuição para os outros e a afirmação da totalidade da pessoa Amaury Queiroz de um capítulo inicial AIDS as pectos psicossomáticos no qual nos falava das com plicações psiquiátricas com uma grande variedade de quadros clínicos muito graves e ameaçadores da vida mostra que hoje em dia esses aspectos se cingem a eventuais complicações neuropsiquiátricas com um bom arsenal terapêutico capaz de tratar e até mesmo de curar tais manifestações Em função das possíveis complicações dos qua dros clínicos anteriores decidimos manter a publica ção do capítulo anterior em que há um bom inven tário das possíveis lesões neuropsiquiátricas da AIDS ao mesmo tempo em que Amaury nos brinda hoje com seu novo capítulo Aspectos Psicossomáticos e Sociais da AIDS 20 anos de experiência já com a segurança do tratamento medicamentoso e uma melhor qualidade de vida dos pacientes abordando muitos casos com terapias não farmacológicas a fim de melhorar a autoestima dos pacientes e estimular os seus aspectos de resiliência Em torno de seu conceito original de Regênesis essa interessante e curiosa criação do tema em condi ções de falso self imposto e suposto Samuel Hulak e George Lederman propõe um postscriptum como acréscimo ao seu capítulo e faz uma homenagem ao colega e coautor George Lederman que eregiu con sigo tão rico trabalho e nos brinda com um exemplo clínico altamente significativo desta condição Diz nos Hulak Psicossomaticaindd 19 Psicossomaticaindd 19 05012010 121202 05012010 121202 20 Mello Filho Burd e cols A escolha de Renata se deve à universalidade de sua história e sua característica condição de falso self im posto com somatização grave Durante a terapia ela pode examinar os ódios acumulados pela vida negada que teve pela revolta contra o self imposto e pelo atur dimento de um Ego angustiado em busca de um self perdido tão bem espelhado pelo primeiro olhar de Re nata quando nos conhecemos O autor sempre brilhante completa Renata continua em psicoterapia Tenho procurado ajudála a se desfazer dos papéis que lhe foram impos tos e sempre que possível recheando os buracos esva ziados com as pertinências descobertas ela e eu temos sofrido juntos as batalhas de uma guerra cuja conclusão desconhecemos Uma coisa entretanto sabemos ela e eu estamos em busca de Renata ela mesma e quando sofre ela me diz Dói mas não faz mal pois sinto que esta dor é mi nha só minha José Galvão Alves no seu capítulo O Médico o Paciente e o Atendimento de Emergência no Bra sil fala o tempo todo da sua vivência clínica e faz importantes adendos ao texto anterior O autor nos diz que um clima de respeito entre os plantonistas no setor de emergência ameniza o alto grau de tensão demonstra seriedade e admiração dos que sofrem e que a medi cina lida com o povo suas dores seus medos e suas an gústias e apenas um médico bom pode transformar se num bom médico Galvão Alves frisa a necessidade de um inves timento profundo do Setor de Emergência um local de perdas moral ética e humana e onde a violência urbana e as tragédias já são por demais dolorosas Sobre o domínio total dos riscos de contamina ção física de um médico o autor diz que jamais se conseguirá isso mas que se poderia tentar impedir a contaminação de nossas mentes com atos de descaso e desamor Lembra que não existe consolo para a dor o sofrimento a perda mas a mão sobre os ombros o olhar solidário e as atitudes objetivas transmi tem segurança e respeito Therezinha Penna em seu capítulo Psicoterapia em Instituições Médicas veste sua contribuição anterior com uma nova roupagem atualizada e de forma objetiva Aborda o tema das psicoterapias em hospitais com pacientes hospitalizados e ambulato riais Diznos a autora O primeiro passo ao atender a um pedido de consulto ria deve ser o de comunicar ao paciente o motivo pelo qual foi requisitada uma avaliação psicológica ou um atendimento psicoterápico É importante transmitir que embora a avaliação seja necessária por ter sido requi sitada NÃO É MANDATÓRIO que ele aceite a proposta psicoterápica Aceitar ou não o atendimento psicote rápico a possibilidade de poder optar introduz um elemento salutar de resgate de sensações de poder e de controle Para Therezinha Penna em uma terapia com pes soas portadoras de doenças graves ou crônicas uma boa adaptação e eficácia para lidar com as limitações perdas e sofrimentos impostos pela doença implica a diferença entre uma vida mais ou menos feliz ou uma melhor ou pior qualidade de vida na vigência da enfermidade A resolução favorável do ponto de vista emocional ou o adoecimento psicológico resultante da experiência de estar enfermo depende de forças homeostáticas entre a estrutura emocional recursos adaptativos e a realidade externa Eugênio Paes Campos em O Paciente Somático no Grupo Terapêutico também reescreveu seu capítulo anterior principalmente sobre a sua experiência de supervisionar grupos de hipertensos na cidade de Te resópolis pelo SUS adicionando muito material clí nico Neste trabalho que serviu de base para o seu livro recém publicado Quem cuida do cuidador que está fazendo grande sucesso ele apresenta sua visão do trabalho teórico com grupos de suporte basea dos no apoio e no holding e com grupos de elabora ção baseados na prática da psicanálise e no insight Como capítulos novos convidamos autores es pecialistas nos assuntos abordados e acreditamos que irão contemplar temas muito necessários ao entendi mento do campo da Psicossomática Esses capítulos irão preencher algumas lacunas que há muito tempo gostaríamos de têlas preenchidas Convidamos Carlos Doin um dos psicanalistas mais cultos e de pensamento mais revolucionário de nossa Sociedade de Psicanálise Telepatia e Comunicação Sutil para escrever o novo capítulo sobre Psicosso mática e Neurociên cias No seu texto Doin estuda sobre a interface psicológicapsicossomáticaneuroci ências cognitiva evolutiva Desde seu início a psicanálise vem se consti tuindo uma disciplina de duas faces um saber e um fazer do entre a ciência natural e a ciência huma na diznos Doin O ser humano se compreende no encontro de vertentes a físicoquímica a biológica somatopsíquica a antroposociológicaestrutural Escrevendo sobre a vertente naturalista Doin nos prova que Freud começou por ela Projeto de uma Psicologia Científica mas que depois a aban donou pela pouca evolução da neurologia na época Psicossomaticaindd 20 Psicossomaticaindd 20 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 21 e passou a se empenhar em pesquisas psicológicas construindo o edifício da psicanálise tal qual é conhe cido hoje em dia Surgiram assim em oposição ao universo positivista as teorias da mecânica quântica da relatividade das probabilidades das plausibilida des e aproximações A seguir Doin nos fala das correntes monista a começar com Hipócrates e dualista Platão Descar tes e mais modernamente Popper Acredito para meu uso que corpo e mente sejam duas ou uma única unidade ontológica essencial funcionan do como uma unidade funcional interagindo perma nentemente O termo neurociência engloba várias disciplinas ligadas ao sistema nervoso desde as grandes estru turas até a biologia molecular e a bioquímica de suas células Ali se alinham a neuroanatomia a neurofi siologia a neuropsicologia a neurologia clínica en tre outras Destacamse aí as técnicas de obtenção de neuroimagens encefálicas Criouse o rico campo da psicologia cognitiva que permite explicar o fenômeno do insight biológico Ah agora entendi No item evolução filogenética versus desenvolvi mento ontogenético escreve Doin Vão se formando um todo que possui forte tendência a se conservar regenerar reorganizar e restaurar a se modificar e evoluir somatopsiquicamente numa faixa mais ou menos regular e constante de desempenhos re gistrados como úteis e bons para a perpetuação da vida Por outro lado agem forças antagônicas no sentido da destruição Nosso fenótipo resulta da interação do ge nótipo com o meio ambiente físico biológico humano com as experiências da história pessoal Nesse sentido com as devidas restrições vale o dito Genética não é destino E noutro trecho sobre a relação precoce com a mãe acrescenta O pequeno ser individual se forma e se transforma em função da mãe adaptase ao mundo que principia sen do ela tende a alinharse ao que ela sente e pensa sobre tudo e sobre cada pessoa e o que é mais importante ao que ela pensa sente e espera em relação a ele E sobre a integração neuropsicossomática De fato considerando as vias neuromentais ascenden tes e descendentes de mãodupla do corpo passando pelo sistema nervoso profundo e periférico medula tronco cerebral diencéfalo cerebelo núcleos da base córtex até o córtex préfrontal fica difícil de pensar em um corpo radicalmente separado de uma mente A visão integrada somatopsíquica psicossomática é a mais compatível com os conhecimentos interdisciplina res atuais A última parte do trabalho se refere à mais im portante descoberta efetuada pela neurociência a dos neurôniosespelho feita recentemente por Rizzo latti e colaboradores na Itália Esses neurônios em um macaco por exemplo disparam quando um macaco realiza um ato de pegar uma fruta levandoo a fazer o mesmo ato São neurônios vinculados ao ato de imitar e portanto de se identificar com o outro Desse modo relacionamse a vários fenômenos psicológicos particularmente estudados pela psica nálise como a empatia a função especular materna as identificações saudáveis com as figuras de base do nosso passado e com as identificações patológicas como o fenômeno do falso self com a função alfa de Bion com o processo do apego estudado por Bowlby e com as identificações introjetivas de Melanie Klein Para Doin os neurôniosespelho e outras des cobertas das neurociências em geral ressaltaram em muito os influenciados processos inconscientes enfa tizados pela psicanálise bem como sobre a importân cia do contexto transferência contratransferência e repetição compulsiva reforçando a importância e a esperança da aplicação de técnicas psicanalíticas no tratamento das doenças mentais No capítulo Relação MédicoCliente Paulo Canella com toda a sua experiência clínicocirúrgica de gine cologista de quatro costados e de professor de medi cina nos faz um completo estudo ao mesmo tempo teórico e prático sobre esse importantíssimo tema Estuda de início as duas partes em questão o médico com seus problemas humanos a cliente como a pessoa necessitada e a relação consulta que se es tabelece entre os dois A seguir estuda o papel da instituição em que se dá a relação No que chama de formas atípicas através das quais o médico costuma se comunicar com seus pa cientes estuda as várias formas de iatrogenias habi tuais ordens e ameaças lições de moral sugestões e conselhos persuasões negação de percepções ofere cer falsos apoios ignorar problemas dar mensagens contraditórias criticar e ridicularizar o problema dos elogios fazer perguntas atender de modo impessoal e técnica A seguir Canella discorre sobre as formas te rapêuticas aquelas que possibilitam ao médico ampliar seu potencial de ação na medida em que abrem seus canais de comunicação aprofundando diálogo de pessoa a pessoa A sua base é a empatia que permite nos colocarmos na posição do outro As Psicossomaticaindd 21 Psicossomaticaindd 21 05012010 121202 05012010 121202 22 Mello Filho Burd e cols suas principais formas terapêuticas são a reflexão de sentimentos o focalizar em pistas não verbais a au toexpressão o ato de colocar limites produzindo o confronto a resolução conjunta de impasses a orien tação antecipatória e o reasseguramento A reflexão dos sentimentos para o autor é o principal veículo de transmissão da atitude clínica e depende da capacidade do terapeuta de sintonizarse com o paciente e responder a ele de acordo com sua ótica É preciso entender dois níveis na mensagem do paciente o manifesto e o latente Na reflexão dos sentimentos entramos em sintonia com o paciente e respondemos explicitamente ao nível latente da men sagem que ele nos envia focalização em pistas não verbais tom timbre expressão facial postura gestos qualidade do olhar e do sorriso etc estratégias e abordagens de lidar com as pistas não verbais perceber registrar e arquivar per ceber e apontar perceber apontar e decodificar o significado autoexpressão reflexão dos nossos sentimentos colocar limites clareza concisão e firmeza confronto dar evidência a aspectos contrastantes das mensagens do paciente resolução conjunta de impasses respeito às pró prias necessidades e às do outro orientação antecipatória clarificação descrever para o paciente o panorama geral de uma situa ção a ser enfrentada reasseguramento aliviar ansiedades e temores do paciente quando possível A seguir Canella explicita estas e várias situa ções positivas e negativas com exemplos práticos Na parte final o autor faz considerações sobre a relação médicopaciente e a evolução dos conceitos e da prática da psicossomática Somatização Hoje capítulo de Sandra Fortes Luís Fernando Tófoli e Cristiana M A Baptis ta é um dos capítulos mais completos sobre o tema mecanismos de somatização partindo das ques tões o que é somatização quem é e o que é um paciente somatizador Os autores propõem dividir o capítulo em três partes definição gênese principais fatores e meca nismos fisiopatológicos Eles discutem essas questões num subcapítulo intitulado O estado da arte da nossa compreensão do que é somatização hoje Des crevendo conceitos antigos e atuais processos disso ciativos histéricos e somatoformes abordando o pro blema das classificações psiquiátricas eles terminam classificando os somatizadores em agudos e crônicos definindo as suas características Dividem a seguir os fatores incriminados nas so matizações em individuais familiarescoletivos e li gados aos serviços de saúde descriminandoos Entre os fatores familiares e coletivos discutem longamen te o papel da cultura e o sistema de saúde A seguir abordam o fenômeno do poder de somatização da consulta médica Em relação aos fatores individuais estudam o comportamento anormal de doente e de pois a questão das alterações funcionais cerebrais nas somatizações crônicas Por último como modelo de enfermidade sínte se dos vários problemas abordados estudam a fibro mialgia em relação aos mecanismos fisiopatológicos apontados no trabalho Sérgio A Belmont no seu capítulo Infância e Psi cossomática Intersubjetividade e Aportes Con temporâneos começa já na epígrafe com uma frase do diário de um bispo em 1760 a nos chamar a aten ção para a importância dada aos problemas afetivos que interferem no desenvolvimento das crianças e são responsáveis por diversas patologias e mesmo por suas mortes Segundo Belmont a moldura dada ao seu capí tulo é dividida em três partes a primeira a dos teóricos das relações objetais destacando Donald W Winnicott pelas suas con tribuições a respeito das questões psicossomáti cas e a sua elaboração de uma teoria ponte ou em movimento entre o freudismo clássico e as suas próprias visões sobre o desenvolvimento emocio nal primitivo além do conceito going on being vir a ser como fundamental ao desenvolvimen to do indivíduo a segunda com a importância de algumas ideias da Escola Francesa de Psicossomática com Pierre Marty Michel Fain C Dejours David Soullé e Leon Kreisler entre outros pela profundidade de discussão de seu material clínico que traçam al guns princípios e fundamentos epistemológicos e clínicos representativos de seu pensamento e ação Kreisler faz uma distinção clara do psicossomático ligandoo a patologias verdadeiramente orgânicas e constratandoo vivamente com fenômenos his téricos e hipocondríacos mostra o trabalho com bebês muito pequenos nos quais havia muita di ficuldade de estabelecer relações com os objetos iniciais que os levaram a situações de merecismo e outros quadros psicossomáticos infantis e a terceira com as contribuições atuais trazidas pelas neurociências possibilitando ao autor a Psicossomaticaindd 22 Psicossomaticaindd 22 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 23 possibilidade de comprovação empírica e integra ção conceitual de várias teorias psicodinâmicas ligadas aos fenômenos psicossomáticos privile giando os autores como Meltzoff e Prinz Fogassi e Galese entre outros Sobre as contribuições das neurociências o au tor cita a importância do estabelecimento de teorias por exemplo como da imitação das áreas dos neu rônios que descarregam durante movimentos das mãos as identificações das chamadas F5 teorias que têm importância porque foram estendidas do campo de pesquisa com animais ao campo do desenvolvi mento primitivo dos seres humanos Esses estudos e outros mostram a importância da presença humana junto ao bebê desde seu nascimento assim como os cuidados dispensados a ele No tópico Clínica Psicossomática Infantil apre senta material clínico pessoal para demonstrar o que pode ser entendido como um olhar winnicottiano dos transtornos psicossomáticos na infância É de um bebê nos seus primeiros meses de vida que possui apenas um corpo e sua fisiologia como meio de ex pressão que Belmont nos fala O autor cita também o trabalho de Samuel Hu lak 2007 sobre Alexitimia e Pseudoalexitimias bem como as contribuições de Mahler Spitz Anna Freud Klein e Kohut sobre o desenvolvimento infantil O autor acrescenta um trabalho de sua autoria chamado Projeto Criação uso de teoria winnicottia na no prénatal de adolescentes e que ele pretende concretizar na prática com equipe multiprofissional atendendo grupos com grávidas entre 12 e 21 anos de idade durante toda a gestação e até o segundo ano de vida do bebê em que se utilizará de fantoches cria dos por ele e com nomes como o seio falante mãe má etc e que irão possibilitar a vivência prática da importância do brincar conceito de Winnicott No capítulo de Miriam Burd Diabetes Mellitus Uma Visão Psicossomática a autora que já nos brindou com outros trabalhos sobre diabete inova mais uma vez sobre o mesmo tema No seu trabalho dividido em três partes apresenta o atendimento de um ado lescente DM1 que descobre a doença em cetoacidose diabética e precisou ser internado em estado grave constituindose numa verdadeira aula de Psicologia Médica num hospital geral de um paciente de meia idade com DM2 já apresentando retinopatia diabé tica e deficiência visual grave atendido em consul tório privado em Psicoterapia de Apoio Psicológico e o atendimento em coterapia de um Grupo de Apoio Psicológico com Pacientes DM2 idosos no Hospital Universitário Pedro Ernesto UERJ onde a autora fez seu treinamento durante quase oito anos seguidos no Ambulatório de Diabete e Metabologia Miriam Burd na primeira parte o complementa no subitem O adolescente e as condutas de risco A personalidade falso self e o diabete e nos diz que a adolescência é um momento crítico para o controle do diabete e burlar a dieta não querer fazer os exa mes são algumas das transgressões ao tratamento e ca racterísticas de uma atuação permanente ou transitória de falso self O atendimento especial à escola e à família é outro tema que não foi esquecido pela autora Ela nos diz A escola e a família precisam estar preparadas para li dar com o diabete do aluno ou do filho Munidas de informações básicas a respeito da afecção e com um mí nimo de recursos para eventualidades extraordinárias poderão oferecer rapidamente os primeiros socorros O que é importante frizar é que a escola não substitui a família as duas são muito importantes para a criança e o adolescente e se complementam Ao dividir o capítulo em três partes o adoles cente o adulto maduro e o idoso todos diabéticos acredito que Miriam Burd conseguiu mostrar o quan to de psicossomático é o diabetes mellitus e o quanto o DM tipo 1 e o DM tipo 2 se diferem e se aproximam diante da visão da psicossomática Todos os pacientes lutam com os três pilares da doença e de seu tratamento os medicamentos orais ou injetáveis a dieta e o exercício físico O emo cional não poderia ficar de fora e a autora o incluiu como o quarto pilar Da mesma forma que para manter uma cadeira em pé precisamos das quatro pernas aos três mosqueteiros precisou se juntarem um quarto cavaleiro A autora utiliza a definição de Julio de Mello Filho em comunicação pessoal 2008 O diabetes mellitus é uma doença psicossomática por que se inicia frequentemente numa fase de estresse emocional e sofre a influência de fatores ou de distúr bios somáticos na sua evolução E a visão psicossomática Como tratar Pergun tanos a autora E ela mesma responde Através do holding suporte e do handling manejo sendo continentes como nos disse Donald Winnicott Consulta Conjunta uma Estratégia de Atenção Integral à Saúde é um novo capítulo escrito a seis Psicossomaticaindd 23 Psicossomaticaindd 23 05012010 121202 05012010 121202 24 Mello Filho Burd e cols mãos por Mello Filho seu criador Lia Márcia da Silveira e Miriam Burd Os autores trazem a impor tante técnica de treinamento em serviço a Consulta Conjunta filha dileta da Interconsulta Julio de Mello Filho nos conta em breve histórico e apresentação de um caso clínico comentado como criou a técnica em 1977 quando trabalhava no Hospital Clementino Fraga Filho e ao se transferir para o Hospital Pedro Ernesto amplioua Miriam Burd desenvolve três ca sos clínicos comentados um seu e dois de JMF mais recentes com crianças e adolescentes diabéticos de senvolvendoos na prática e Lia da Silveira nos pre senteia com os objetivos da técnica as dificuldades encontradas e apresenta algumas estratégias para identificar e diluir pontos de resistência fomentar parcerias e integrar profissionais A Consulta Conjunta é uma ação de saúde que tem como característica unir o viés assistencial ao pe dagógico na medida em que integra pessoas e sabe res na aprendizagem em serviço Atualmente a Consulta Conjunta vem sendo exercitada nos Ambulatórios do Hospital Universitá rio Pedro Ernesto da Universidade do Rio de Janeiro com o propósito de capacitar médicos e psicólogos para a prática do cuidado integral à saúde e realizada pelos alunosprofissionais do Curso de Especialização em Psicologia Médica FCMUERJ sob a supervisão do staff do Serviço Diznos os autores A prática da Consulta Conjunta potencializa o cuidado e os momentos dos profissionais ao propiciar que so lidariamente partilhem problemas reflitam sobre eles e busquem soluções evitando a prática impessoal e a reprodução padronizada Cabe aqui uma dolorosa homenagem para aqueles que neste ínterim nos deixaram cumprindo o destino final do ser humano Em 1992 estavam todos vivos produtivos e nos brindaram com inestimáveis capítulos neste livro Heladio Capisano junto com Miller de Paiva foi a alma da Psicossomática em São Paulo e um dos nossos grandes líderes no Brasil Foi nosso terceiro presidente da ABMP numa gestão que consolidou o movimento Foi também um dos pioneiros da psico terapia analítica de grupo no Brasil escrevendo um precioso trabalho sobre o tratamento em grupo da colite ulcerativa Seu trabalho sobre iatrogenia na relação médicopaciente é um dos clássicos em me dicina e como também o é sobre Imagem Corporal neste livro Professor de Psicologia Médica na Faculdade de medicina do ABC teve a ousadia naquela época meados de 1970 de realizar grupos terapêuticos com estudantes de medicina o que lhe valeu a perda do cargo de Diretor da Faculdade naquela época No final da vida tornouse um quase sábio transmitindo preciosas lições de vida às reuniões as quais comparecia Teve uma série de enfermidades antes de falecer das quais emergia sempre lúcido e revigorado Para isso teve a ajuda se sua segunda es posa Lúcia com quem fazia um casal adorável Rodolpho Rocco fez uma carreira médica com pleta Foi professor de medicina Presidente da Regio nal do Rio de Janeiro da ABMP Diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ e finalmente presidente do Sindicato dos Médicos do Rio de Janeiro num pe ríodo conturbadíssimo nos anos finais da ditadura militar A presença de Rocco na Chefia de Clínica do Serviço de Clínica Médica do Professor Lopes Pontes UFRJ foi a principal razão que escolhi esta Cadei ra para desenvolver meu trabalho de psicossomática Rocco foi talvez a pessoa mais equilibrada que conhe ci Sem dúvida ele era um líder carismático porém criterioso e profundamente equilibrado Seus amigos e discípulos estão no momento editando um livro so bre sua pessoa e sua obra Seu capítulo sobre O Estudante de Medicina e o Paciente é precioso não conheço coisa igual tão completo Ele faleceu de forma trágica assassinado em seu consultório por um paciente psicótico vítima de um delírio que Rocco por forças sobrenaturais esta va controlando em sua mente Que forma de morte injusta para alguém da grandiosidade e da bondade de um Rocco Rocco também teve uma segunda esposa Maria Alice que igualmente muito o ajudou em sua vida científica e na sua carreira médica George Lederman autor de um dos trabalhos mais originais desse livro Regênesis junto com Samuel Hulak faleceu ainda relativamente jovem numa morte muito sentida pelos seus colegas e ami gos de Recife onde ele era muito querido Simples modesto generoso ele desenvolveu uma bela carrei ra de psicossomaticista e psicanalista sendo muito procurado como supervisor Adolfo Menezes de Mello foi uma outra gran de perda Eu o chamava de Winnicott da pediatria brasileira Ele dominava um auditório como poucos Brilhante culto comunicativo era um prazer vêlo falar Fascinava adultos e crianças com as quais era mestre em brincar e desenhar Passou toda a sua vida em Marília onde era professor de pediatria Também perdemos Antonio Franco Ribeiro da Silva que nos fez junto com Geraldo Caldeira um excelente texto sobre Alexitimia e Pensamento Ope ratório Ele foi um dos líderes do Círculo Mineiro de Psicossomaticaindd 24 Psicossomaticaindd 24 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 25 Psicanálise um dos principais grupos lacanianos do país Sua perda foi muito sentida na classe médica de Minas Gerais por quem era muito querido Cabe aqui ainda uma homenagem ao Professor José Fernandes Pontes que em 1947 como gastro enterologista já difundia os princípios da medicina sóciopsicosomática em nosso meio como ele com sua postura integral costumava designar Foi um dos fundadores da ABMP e seu segundo presidente Era a alma do Serviço de Gastroenterologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP ini ciando um trabalho multidisciplinar que congrega va médicos psicanalistas e outros profissionais de saúde Apesar de ter feito formação psicanalítica nun ca abandonou a gastroenterologia e a clínica médi ca inclusive como Professor em Sorocaba levando para o interior paulista nossas ideias e nossos ideais Fundou também o Instituto Brasileiro de Pesquisas em gastroenterologia estimulando a pesquisa em psi cossomática no nosso meio Deixou um grupo de as sistentes que tendo à frente Avelino Rodrigues está contribuindo para tocar a psicossomática no Brasil Para uma melhor compreensão e elaboração do conteúdo científicodidático deste livro resolvemos introduzir principalmente nesta nova edição uma série de novos casos clínicos relatados e discutidos pelos seus autores Os organizadores Psicossomaticaindd 25 Psicossomaticaindd 25 05012010 121202 05012010 121202 PARTE 1 Conceituação Psicossomaticaindd 27 Psicossomaticaindd 27 05012010 121202 05012010 121202 O termo psicossomática surgiu a partir do século passado depois de séculos de estruturação quando Heinroth criou as expressões psicossomática 1918 e somatopsíquica 1928 distinguindo os dois tipos de influências e as duas diferentes direções Contudo o movimento só se consolidou em meados deste sé culo com Alexander e a Escola de Chicago Porém as incertezas sobre a relação mentecorpo se expressam na própria denominação psicosomático com hífen ainda utilizada entre estudiosos destes fenômenos e por médicos em geral A Psicossomática evoluiu em três fases a inicial ou psicanalítíca com predomínio dos es tudos sobre a gênese inconsciente das enfermi dades sobre as teorias da regressão e sobre os benefícios secundários do adoecer entre outras b intermediária ou behaviorista caracterizada pelo estímulo à pesquisa em homens e animais tentando enquadrar os achados à luz das ciências exatas e dando um grande estímulo aos estudos sobre estresse c atual ou multidisciplinar em que vem emergindo a importância do social e da visão da Psicossomá tica como uma atividade essencialmente de inte ração de interconexão entre vários profissionais de saúde1 Só bem recentemente com contribuições como as de Engel sobre a teoria geral dos sistemas com os conceitos de Perestrello entre nós sobre a chamada Medicina da Pessoa e com a própria concepção mais recente de saúde da OMS como equilíbrio biopsicos social pôde a Psicossomática assumir seu verdadei ro papel integrador e multidisciplinar vindo a funcio nar quanto ao ensino como as antigas cadeiras de Patologia Geral na sua possibilidade de vislumbrar o complexo jogo de causas e efeitos presentes na evo lução de uma enfermidade de um modo muito mais rico e completo Psicossomática em síntese é uma ideologia so bre a saúde o adoecer e sobre as práticas de Saúde é um campo de pesquisas sobre estes fatos e ao mes mo tempo uma prática a prática de uma Medicina integral Hoje entretanto o termo psicossomática está mais restrito à visão ideológica deste movimento e às pesquisas que se fazem destas ideias ou seja sobre a relação mentecorpo sobre os mecanismos de produ ção de enfermidades notadamente sobre os fenôme nos do estresse A relativa complexidade dessas definições e desses conceitos pois há uma Medicina Psicosso mática eou Holística ou Integral etc se complica um pouco mais ainda quando surge a chamada Psi cologia Médica designação proposta na França por Pierre Schneider para este mesmo tipo de interface em Medicina e para seu ensino Dando um sentido eminentemente prático seguindo a vertente de Ba lint na Inglaterra propõe Schneider que este seja o campo de estudo da relação médicopaciente Ou a Psicologia da Prática Médica designação ainda mais abrangente proposta por Alonso Fernandez Desse modo a Psicologia Médica vem a ser o todo que con tém o particular a visão psicossomática da Medicina neste caso No Brasil o termo psicossomática é comumente utilizado para esse tipo de serviço quando se trata de um hospital público municipal ou estadual No caso das universidades das faculdades de Medicina fun cionando geralmente em conjunto com a Psiquiatria costuma chamarse de setor ou serviço de Psicologia Médica por vezes se continuando com um braço os núcleos de orientação psicopedagógica que têm a seu encargo o atendimento aos alunos que respondem às situações traumáticas do curso com reações desadap tativas várias neuróticas ou mesmo psicóticas 1 INTRODUÇÃO Julio de Mello Filho 1 José Fernandes Pontes entre nós com toda a sua qualifica ção de pioneiro do nosso movimento já havia se antecipado a este fato quando propôs a expressão sociopsicossomática para nos caracterizar Psicossomaticaindd 29 Psicossomaticaindd 29 05012010 121202 05012010 121202 30 Mello Filho Burd e cols Hoje a gama de atividades do que se chama de Psicossomática ou de Psicologia Médica2 abrange o ensino ou a prática de qualquer tipo de fenômenos de saúde e de interações entre pessoas como as relações profissionaispacientes as relações humanas dentro de uma família ou de uma instituição de saúde a questão das doenças agudas e crônicas o papel das reações adaptativas ao adoecer a invalidez a morte os recursos terapêuticos extraordinários Atualmente o papel de emissários da Psicosso mática e da Psicologia Médica vem sendo exercido não apenas por médicos psicanalistas em sua maio ria mas também por profisionais outros da saúde mental como psiquiatras e sobretudo psicólogos Estes por razões várias que incluem desde aspectos ideológicos a problemas de mercado de trabalho têm acudido em massa a este campo e é nossa tarefa atual bem acolhêlos e atendêlos Uma tarefa importante é aperfeiçoar nossa linguagem e nosso campo de co nhecimentos para melhor dialogar com outros pro fissionais de saúde que têm se dirigido para nosso campo como enfermeiros assistentes sociais e nutri cionistas por exemplo Como podemos ver evoluímos por razões vá rias da prática de uma Psicossomática dirigida ape nas a medicos para a necessidade de um campo de conhecimentos que possa se voltar para qualquer profissional de saúde não só porque estes estão in cluídos nessas práticas como também pelo fato de que estão se voltando para o universo dos fenômenos psicossomáticos e para uma prática de saúde que seja realmente integral Quanto ao médico este continua a ser o alvo maior e ao mesmo tempo o maior proble ma para aqueles que militam em Psicossomática e em Psicologia Médica Tivemos que mudar nossa bússola de uma direção que via em todo médico o agente de uma visão psicossomática e da prática de uma au têntica Psicologia Médica para uma visão pragmáti ca ensinada pelos tempos da força secular de uma dicotomia mentecorpo e de uma prática que funda mentalmente acentua tal dissociação Por isso talvez seja uma tarefa não para décadas mas para séculos corrigir esses fenômenos que são ao mesmo tempo ideológicos e decorrentes de toda uma práxis Nossa luta todavia valeu Hoje há um número muito maior de médicos e de estudantes de Medicina com uma visão sociopsicossoniática bem estabelecida do que decorre uma prática diferente voltada para as nuances do psicossocial do familiar do relacional com um investimento maior na chamada psicoterapia da pratica médica No Brasil como está exposto no trabalho de Abram Eksterman a Psicossomática particularmen te proliferou a partir do trabalho de psicanalistas em hospitais de ensino especialmente no Rio de Janeiro em São Paulo Porto Alegre e Recife Criouse a opor tunidade não só para que futuros médicos pudessem partilhar desses conhecimentos como também para influenciar jovens profissionais numa prática nessa direção A divulgação dessas ideias fora das faculda des de Medicina alcançando outros profissionais de Saúde pavimentou o terreno para a construção de uma Associação Brasileira de Medicina Psicossomáti ca que na prática já existe há mais de 20 anos Todo este intróito fazse necessário para se entender o porquê de Psicossomática Hoje Psicosso mática e não psicologia médica porque este nome consagrouse principalmente entre leigos e entre mé dicos E Hoje pela necessidade de se atualizar tudo que se pensa se pratica e se escreve a esse respeito no Brasil Aqui temse discutido e praticado muito e se publicado pouco porque o brasileiro à diferen ça do europeu do americano e mesmo do argentino é malpreparado para escrever Então digase a bem da verdade que excetuados alguns livros e outros trabalhos publicados perdeuse boa parte das exce lentes comunicações apresentadas em aulas cursos simpósios mesasredondas congressos e várias ou tras reuniões científicas sobre Psicossomática que se realizaram nos últimos anos Psicossomática Hoje pretende resgatar alguns desses fatos não somente convidando para participar desta edição os nomes mais consagrados em nosso meio como também autores mais jovens ou menos conhecidos que têm porém uma importante contri buição ainda pouco divulgada fora do ambiente mais restrito de circulação dessas ideias No Brasil a grande maioria dos que militam em Psicossomática são psicanalistas psiquiatras e psi cólogos que trabalham com referenciais analíticos na linha do que os americanos chamariam de uma Psiquiatria Dinâmica Em nosso meio praticamente não temos profissionais de orientação behaviorista e pouquíssimos profissionais envolvidos com Socio logia Médica ou Medicina Social frequentam nossas reuniões Essa situação particular explica também as peculiaridades deste livro sempre baseado numa rea lidade brasileira So fizemos exceção para um autor estrangeiro através do convite feito ao professor José Schavelzon como forma de homenageálo por suas várias publicações de renome internacional sobre 2 Em outros países como os de origem anglosaxônica não se usa uma designação ou outra e sim uma terceira Psiquiatria de Ligação e Consulta para designar atividade semelhante à que estamos descrevendo porém mais restrita a um papel de atendimento de casos psiquiátricos num hospital geral do que a uma atividade mais ampla de inter consulta que é o método mais utilizado em nosso meio Psicossomaticaindd 30 Psicossomaticaindd 30 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 31 Psicossomática e câncer e agora mais recentemen te por seu brilhante trabalho em que encara aspec tos totalmente originais sobre a doença de Freud ao comprovar que esta não era câncer porém tornou se câncer em razão de todo o tipo de iatrogenia que Freud sofreu De um modo geral Psicossomática Hoje é um li vro do que poderíamos chamar de autores em Psicos somática de segunda geração caracterizando nosso momento atual em que os pioneiros do movimento passam o bastão para aqueles que os seguem Um aspecto que acreditamos incomum em nos sa conjuntura é a presença de importantes nomes da Medicina brasileira de fora do movimento de Psicos somática escrevendo para nosso livro sobre aspectos psicológicos e psicossomáticos de suas especialidades Assim temos Rodolpho Rocco em Educação Médica Fernando Barroso em Cirurgia Geral Ivo Pitanguy em Cirurgia Estética Alfred Lemle em Pneumologia José Galvão Alves clínico com o tema até então inédito em publicações psicossomáticas sobre os aspectos psi cossociais das urgências médicas Obviamente esses autores não foram convocados ao acaso sabíamos da amplitude de suas ideologias médicas e da riqueza humanística de suas práticas profissionais Um espírito nos norteou na feitura deste livro apresentar nossa Psicossomática e nossos autores tais como são Por esse motivo contribuições não previs tas foram posteriormente aceitas e autores que apre sentaram trabalhos importantes durante a feitura do livro foram convidados a participar Poucos não pude ram corresponder ao convite feito e por esse motivo alguns centros de Psicossomática não estão represen tados nesta obra Não poderíamos entretanto num país com a extensão territorial do nosso e com um movimento psicossomático verdejante convidar todos aqueles que têm o que dizer e como dizer ao selecionar sem pre colocamos pontos de vista pessoais e concomi tantemente cometemos arbitrariedades contra aque les que não foram lembrados ou escolhidos A estes que ficaram de fora nossas escusas e a certeza de que tentamos uma publicação ampla e abrangente porém nunca perfeita e total Temos neste livro dois trabalhos introdutórios e conceituais de Abram Eksterman sobre o histórico da Psicossomática no Brasil É não só um trabalho inédito como também da maior importância para entendermos à luz dos profundos conhecimentos de Eksterman sobre as realidades médica e psicossomá tica do Brasil as raízes do nosso movimento e o por quê dos nossos rumos atuais Ao mesmo tempo é um trabalho conceitual e por tudo isso fundamental para nos introduzir nos demais temas deste livro Tenta mos classificar os demais trabalhos para fins didáti cos em temas de ensino e formação temas básicos temas específicos temas originais temas sobre trata mento e trabalhos sobre AIDS que pelo seu universo e importância ganharam um lugar à parte Porém há trabalhos ao mesmo tempo básicos e específicos outros que são originais e específicos Chama a atenção neste livro o número de tra balhos sobre a questão do ensino demonstrando não só o interesse do coordenador por esse tema como o número de autores que o estudam atualmente Sig nificativamente há um trabalho sobre o ensino de Psicologia Médica e quatro sobre a formação do es tudante de Medicina e do médico No primeiro tra balho sobre ensino de Psicologia Médica podemos destacar a importância dos grupos de reflexão com alunos na elaboração das temáticas vividas por es tes necessidade de manutenção de um ensino teó rico necessidade de um curso que acompanhe todas as etapas do currículo trabalhos práticos realizados pelos alunos como entrevistas e acompanhamentos de pacientes necessidade da presença de um Cen tro de Psicopedagogia que possibilite acompanhar os alunos francamente em crise crise do ingresso crise do terceiro ano crise do final do curso outras cri ses de ordem pessoal familiar ou institucional Os demais trabalhos embora de professores de Psicolo gia Médica em sua maioria atestam sobre o quanto é possível fazer neste campo fora do escopo do ensi no tradicional disciplinar Ou ao lado deste Assim o trabalho de Rodolpho Rocco no qual ele enfatiza a importância dos aspectos socioculturais no processo ensinoaprendizado e na relação estudantepaciente é realizado com alunos de Clínica Médica de cujo departamento ele é o professor Digase a bem da verdade que Rodolpho Rocco sempre manteve uma relação muito próxima da Psicossomática desde o Hospital São Francisco de Assis caracterizando um tipo de cooperação indispensável a nosso ensino O trabalho de Rodolpho Rocco é o único sobre o tema da relação estudantepaciente escopo sobre o qual irá se formar e modelar a primeira raiz básica e maior do nosso sucesso como profissionais O tema seguinte de Zaidhaft também professor de Psicologia Médica3 relata um trabalho feito com estudantes de Medicina em torno do tema da morte ao entrevistarem um suposto paciente terminal e sua filha O trabalho se agiganta na capacidade dos alu nos de refletirem e concluirem sobre vários aspectos 3 Zaidhaft publicou recentemente uma obra básica em Me dicina e em Psicologia Médica intitulada Morte e formação médica introduzindo o livro com uma relação entre morte arte história e psicanálise enfeixao sobre a questão da Medicina e do ensino médico Psicossomaticaindd 31 Psicossomaticaindd 31 05012010 121202 05012010 121202 32 Mello Filho Burd e cols da posição do paciente e da filha diante da morte e da vida e deles mesmos como futuros profissionais Esse trabalho ilustra a riqueza que um grupo de re flexão pode alcançar e a capacidade de alunos de ela borar um trabalho e escrever um texto aspecto que temos destacado em nossa experiência de ensino de Psicologia Médica na UERJ conforme se pode consta tar no trabalho de Muniz e Chazan a esse respeito David Epelbaum Zimerman conhecido psica nalista individual e de grupos em Porto Alegre nos mostra como conhece relação medicopaciente e educação médica num trabalho primoroso pleno de preciosidades para o tema escolhido A formação psi cológica do medico A base desse trabalho foi sua experiência em programas de educação médica con tinuada quando durante alguns anos visitou cidades do interior do Rio Grande do Sul nas quais realizava grupos de reflexão com médicos e estudantes de Me dicina Aqui vemos portanto todo o desenvolvimen to de um ensino de Psicologia Médica fora da facul dade em termos de pósgraduação O trabalho de Adolpho Hoirisch versa sobre um tema fundamental para os médicos a questão da identidade médica baseado na sua interessante tese sobre a crise de identidade que pode acometer um médico quando ele adoece É um tema que pode ser também pensado e estudado em relação a todas as repercussões que a atual crise que vivemos subem prego desprestígio social e de status deterioração de valores e de modelos ideológicos papel de bode expiatório de toda uma sociedade em crise etc atin gindo o médico e sua identidade Mas este seria um tema extenso demais para abordar no presente capí tulo Na seção de temas básicos encontramos nova mente Eksterman com o tema de há muito por ele estudado sobre as relações o diálogo como muito bem o diz entre a Psicanálise e a Psicossomática É de fato um diálogo pois há as contribuições da Psica nálise que desde Freud estruturaram a própria Psicos somática e os conceitos oriundos desta como ale xitimia e pensamento operatório que fertilizaram o pensamento psicanalítico Eksterman nos aponta quatro grandes áreas do conhecimento e da prática médica que têm especial interesse para o psicanalis ta a área da Patologia a área da relação médicopa ciente a área da formação psicológica do profissional de saúde e a área da prevenção Kenneth Camargo Júnior escrevendo sobre a relação doençasociedade recorda que a relação sociedadedoença é múltipla pois não apenas a es trutura social é causadora da doença como a própria definição de doença é antes de tudo cultural Outro aspecto que não pode ser descuidado é que a doença é ela própria um acontecimento social especialmente quando grave ou crônica É importante frisar que a consulta médica é o momento em que duas subcul turas a do médico e a do paciente entram em confronto às vezes de modo desastroso Do mes mo modo que quisemos registrar a voz da Medicina Social neste livro achamos oportuno que fosse abor dado o tema do trabalho em relação às doenças so máticas e psicossomáticas o que é feito por Avelino Rodrigues e Ana Cristina Gasparini em artigo no qual é apresentada uma importante síntese dos conceitos e principais noções atuais sobre estresse tema que é também magistralmente desenvolvido por Eugênio Campos no seu trabalho sobre Cardiologia As relações entre histeria hipocondria e fenô meno psicossomatólogo condições que ocupam o campo do psicossomático e que é preciso distinguir são o tema do interessante trabalho de Otelo Cor rea dos Santos Filho Em sua comunicação além da parte conceitual e do vértice psicanalítico através do qual diferencia as três condições ele nos ilustra com oportunos exemplos clínicos Em Alexitimia e pen samento operatório a questão do afeto na Psicosso mática Antônio Franco Ribeiro e Geraldo Caldeira fazem à luz dos trabalhos da Escola Psicossomática de Paris da Escola de Psicossomática de Boston de Joyce MaCDougall e de Kristal uma extensa revisão desses importantes conceitos que mudaram mesmo a teoria e a clínica em Psicossomática Está presente a questão de representação no paciente psicossomático e os pontos de vista de auto res lacanianos como Cuir e Dejours ainda pouco co nhecidos em nosso meio Em Psicoimunologia Hoje fazemos junto com Mauro Moreira imunologista uma revisão deste tema que introduzimos no Brasil em Concepção psicossomática visão atual 1976 São discutidas as relações entre os sistemas nervosos en dócrino e imunológico e as situações clínicas decor rentes dessas interrelações mais estudadas doenças alérgicas estados infecciosos doenças neoplásicas e autoimunes As diferentes condições relatadas são ilustradas com casos clínicos Sendo o Grupo Balint e a Interconsulta instru mentos básicos da tarefa psicossomática pensamos em trabalhos que pudessem refletir uma atualização desses procedimentos em nossa prática atual Por que por exemplo estão os Grupos Balint quase em desuso em nossos serviços de Psicossomática Maria Apare cida de Luna Pedrosa em Reflexões sobre Balint faz uma oportuna apresentação da pessoa de Balint e de sua obra recordando que ele foi analisando de Ferenczi cujas ideias foram consideradas avançadas demais para a Psicanálise de então Descreve suas es tadas em Budapest Berlim e Londres onde realizou Psicossomaticaindd 32 Psicossomaticaindd 32 05012010 121202 05012010 121202 Psicossomática hoje 33 seu famoso trabalho com médicos generalistas que foi a base da Psicologia Médica e dos conhecimentos atuais sobre a questão da relação médicopaciente A autora ilustra sua comunicação com um trabalho com Grupos Balint com residentes de Medicina compro vando as várias formas de resistência levantadas por estes diante desse tipo de enfoque Após uma análise dos aspectos positivos da ex periência bem como do papel e da crise das insti tuições de saúde em geral ela conclui que Não se deseja que o médico tenha que aprender Psicoterapia nem fazer Psicanálise mas se deseja que ele se trans forme em um observador qualificado que possa admi nistrar a sua pessoa Luiz Antônio Nogueira Martins abalizado pela sua extensa experiência com o tema na Escola Pau lista de Medicina escrevendo sobre lnterconsulta hoje faz uma excelente síntese sobre as complexi dades e as dificuldades desse método enfatizando entretanto vantagens e perspectivas o campo ofe rece ao interconsultor a possibilidade de ampliar sua formação profissional seja no âmbito da observação dos fenômenos ligados ao adoecer seja no campo da Psicologia e da Psicopatologia individual grupal e institucional assim como no aprendizado das com plexas interações entre os fatores biológicos e psicos sociais que coexistem no ser humano Enquanto os grupos Balint apesar de sua excelência como mo delo clínico e pedagógico praticamente caíram em desuso em nosso meio as interconsultas cresceram e se firmaram de tal modo que hoje se cogita mesmo da formação de uma entidade nacional de profissionais em Interconsulta Já os grupos Balint profundamen te prejudicados pelo modelo de saúde vigente que desprivilegia a relação médicopaciente parecenos que podem ser parcialmente resgatados nas reuniões de equipe de saúde em que situações de relaciona mento pacienteprofissionalinstituição possam ser debatidas O capítulo O problema da dor do gaúcho Oly Lobato é uma extensa apresentação e revisão geral do tema com ênfase nos aspectos psicológicos abor dando tópicos de grande interesse como depressão comportamento de dor dor no paciente com câncer dor psicogênica hipocondria conversão e simulação O último trabalho desse item de Helládio Capisano diz respeito a um importante tema para a Psicossomá tica de implicações conceituais e clínicas a questão da imagem corporal desde que foi descrita por Paul Schilder ainda em 1935 No seu trabalho claríssimo minucioso e precioso Schilder estudou entre várias questões o desenvolvimento da imagem corporal as imitações e as identificações o problema do tônus o membro fantasma a imagem da face os orifícios a dor a despersonalização a histeria e a doença orgâ nica Capisano inicia seu interessante trabalho citan do Muraro que realizou uma importante pesquisa em mulheres de várias classes sobre as imagens que têm dos seus próprios corpos No tópico referente à construção da imagem corporal ele nos faz uma cor relação entre o desenvolvimento dessa imagem com o id o ego e com as zonas erógenas Já em relação à Patologia ele nos diz Em clínica médica ou cirúrgi ca consciente ou inconscientemente o corpo é trata do como objeto externo Sobre a aparência externa no corpo ele escreve O individuo pode excluir do seu corpo certos órgãos como incluir em sua imagem corporal anéis penduricalhos e até um automóvel Em A aparência interna do corpo ele nos descreve as várias alterações da imagem corporal decorrentes de um processo psicótico em paciente por ele tratado cuja profissão lida diretamente com o corpo e com seus conteúdos internos No item seguinte de temas específicos procu ramos englobar trabalhos com uma nítida inserção numa prática realizados a partir de uma especialida de médica fosse a prática de um especialista fosse o trabalho de um profissional de Psicossomática Come çamos este tópico com o trabalho de Adolpho Mene zes de Mello que através de sua extensa experiência de pediatra psicoterapeuta e professor de Medicina apresentanos uma completa visão da Pediatria como especialidade com sua multidão de problemas psico lógicos que o pediatra com sensibilidade curiosida de e criatividade deve enfrentar O trabalho como toda a experiência de Adolpho é ilustrado com ricos e significativos exemplos clínicos Maria Tereza Mal donado autora de mais de uma dezena de livros so bre Ginecologia maternidade e problemas da mulher e do casal escreve sobre um dos temas de que ela tem mais experiência Psicossomática e Obstetrícia Numa linguagem ao mesmo tempo precisa e elegan te ela diz que a perspectiva psicossomática em Obs tetrícia nos é dada por um diagnóstico Situacional possibilitado por várias vertentes do saber a teoria psicanalítica a teoria geral dos sistemas e a teoria do vínculo A modificação de algumas intervenções de cunho psicanalítico a dinâmica dos grupos e algu mas técnicas de terapia familiar são subsídios básicos de atuação E continua A sensibilidade a criativida de a observação cuidadosa do contexto e o respeito pelas características e pelas reais necessidades das pessoas que demandam atendimento são requisitos fundamentais para que o profissional possa de fato prestar uma assistência eficaz Através de tópicos a autora caminha conosco por vários momentos e eta Psicossomaticaindd 33 Psicossomaticaindd 33 05012010 121202 05012010 121202 34 Mello Filho Burd e cols pas do processo o lugar do filho fecundação e gesta ção o parto puerpêrio e amamentação prevenção e tratamento verdadeiro Conclui escrevendo Como se pode ver o leque de possibilidades de atendimento é bastante amplo embora as condições de viabilizar projetos nesse sen tido sejam ainda bastante precárias Mas vale a pena prosseguir nas tentativas de realizar trabalhos pio neiros e dar continuidade ao que já está implantado persistindo no esforço de contribuir para a melhoria da saúde da população e na busca de melhores condi ções de vida para essas crianças que estão nascendo Este é o campo da Psicossomática que mais se desen volveu inclusive em relação aos grupos grupos de grávidas de puérperas de amamentação etc No trabalho seguinte ao mesmo tempo erudito rico e original José Schavelzon escreve sobre vários tópicos da relação psicossomática e câncer tão do seu agrado os dogmas os modelos e o narcisismo o câncer como totalidade mitos preconceitos e a ces sação de privilégios biológicos assistência emocional ao paciente com câncer cirurgia do câncer e Psicos somática Freud um paciente com câncer Como po demos perceber tratase de um trabalho abrangente sobre o problema do câncer relacionandoo com a história da Medicina e do próprio homem com o nar cisismo e com os nossos preconceitos com a possibi lidade da recuperação e com a morte ilustrandoo com a estranha e fantástica história do câncer que vitimou Freud Alfred Lemle pneumologista com grande vi vência escreve um trabalho completo sobre a asma brônquica como doença psicossomática Nesta co municação podemos encontrar as teorias dos perfis psicodinâmicos de French Alexander e Deutsch a atuação psicoterápica nas crises e entre as crises a questão do desencadeamento das crises como redi recionar a relação do asmático com a asma descrição de um trabalho conjunto entre pneumologistas e pro fissionais de Psicologia Médica impasses da relação médicopaciente em asma Em um extenso e completo trabalho Eugênio Campos excardiologista psicólogo e psicoterapeu ta discorre sobre os aspectos psicossomáticos da Cardiologia através dos tópicos papel das emoções emoções e coração o problema da escolha do órgão o paciente funcional o coronariano o hipertenso É feito um minucioso e completo estudo sobre o pro blema do estresse constituindose praticamente num capitulo à parte Em outro trabalho sobre Cardiologia Maria de Fátima Praça de Oliveira e Protásio Lemos da Luz escrevem sobre os aspectos psicológicos da cirurgia cardíaca baseados na experiência do atendimento de múltiplos casos num dos maiores centros de cirurgia cardíaca do pais Em relação à cirurgia de cardiopa tias congênitas referemse aos efeitos negativos da hospitalização à importância da presença do psi cólogo e da ludoterapia bem como à relevância do trabalho com os pais A respeito do paciente adulto referemse ao medo da morte à questão da dor ao aumento da sensibilidade do paciente e à passagem pela unidade de terapia intensiva É dado um desta que especial ao paciente coronariano e a suas preo cupações a longo prazo trabalho esportes restrições alimentares proibição de tabagismo uso crônico de medicamentos sexualidade e reprodução risco de novas cirurgias Outros trabalhos versando sobre cirurgia têm como autores dois profissionais de muito renome entre nós como Fernando Barroso e Ivo Pitanguy O artigo de Barroso é sumamente bem escrito denso contendo uma verdade em cada parágrafo Centrado na relação cirurgiãopaciente ele começa discutindo a pessoa do paciente seus medos e suas expectativas acentuando a importância das suas experiências ante riores Esereve Uma das deformações mais comuns é a que procura ver o cirurgião como ser onipotente e fantástico capaz de evitar sofrimento e morte E falando sobre a pessoa do cirurgião ele nos diz que o exercício continuado da tomada de grandes deci sões sobre a vida o sofrimento e a morte estimula no médico o crescimento da sua onipotência Se a hipertrofia da imagem deve ser evitada sua defor mação descaracterização ou apagamento constitui se em falha igualmente grave Depois de estudar o problema do pré e do pósoperatório e a questão da anestesia Barroso discute à parte o problema do pa ciente cirúrgico com doença mental dizendo que é inegável que o trabalho integrado do cirurgião com o psicoterapeuta resulta na melhor qualificação profis sional de ambos Termina o trabalho escrevendo que o cirurgião jovem acha fácil entender o paciente e difícil aprender a cirurgia Na medida em que os anos passam a maturidade ensina que a cirurgia é certa mente muito mais fácil do que aprender a ajudar as pessoas que operamos Com todo o peso de sua autoridade médica Ivo Pitanguy nos brinda com um precioso trabalho sobre Aspectos psicológicos e psicossociais da cirurgia plás tica ao mesmo tempo extenso delicado e profundo O cirurgião diz ele logo no início do seu trabalho sendo um escravo da forma e da anatomia Mui tas vezes sentese frustrado pois lidando com o ser humano o acrescentar e o tirar estão mais sujeitos às leis do próprio corpo do que à sua força criativa Aqui Pitanguy nos fala da importância da criatividade tão presente no seu trabalho tão ausente lamenta velmente da prática médica dos tempos atuais Ele desenvolve seu artigo numa série de tópicos conceito Psicossomaticaindd 34 Psicossomaticaindd 34 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 35 de beleza e de raças imagem corporal deformidade e grupo social correlação entre cirurgia estética e re paradora a face a mama e o abdome envelhecimen to relação médicopaciente pré e pósoperatório o cirurgião e a cirurgia Através de algumas afirmações de Pitanguy poderemos ter uma ideia da importância deste trabalho Tornase clara e crescente a impor tância da cirurgia plastica mas é imprescindível que o cirurgião saiba distinguir os motivos que levam um paciente a seu consultório Não se pode correr o risco de interpretações errôneas Muitas vezes o paciente transporta para uma parte do corpo comumente a face o cerne de seus problemas emocionais Até onde podemos analisar não houve necessariamente uma correlação entre satisfação ou insatisfação das pacientes com o sucesso da cirurgia Dessa forma podemos considerar que o resulta do estaria intimamente relacionado com expectativas fantasias e desejos de cada pessoa Assim o cirurgião deve ter perfeita noção crítica do seu paciente de seu plano cirúrgico e de sua própria pessoa cabendolhe responsabilidade bem maior do que simples progra mação e execução do ato operatório A obesidade condição essencialmente psicosso mática com repercussões nas cardiopatias e na hiper tensão arterial é um dos maiores problemas terapêu ticos que a medicina enfrenta pelo que é frequente sede de práticas de curandeirismo e de charlatanismo É este tema que Alexandre Kahtalian com sua expe riência de psicanalista e exendocrinologista aborda em Obesidade um desafio Ele nos faz caminhar pelas diversas condições e situações da obesidade desde seus primórdios quando a mãe que responde sempre com a oferta de alimento às solicitações várias do bebê dá os primeiros passos na direção de uma fu tura obesidade Assim pois podemos ter distorções deste tipo também em pessoas adultas cuja presença deste lado infantil coloca comida onde poderia haver a pessoa amada por exemplo É no dizer do psicanalista Fenichel uma adição sem droga comparando o comer contínuo com uma toxicofilia do tipo alcoolismo drogas etc Quando se refere a identificação e imagem corporal ele lembra que o volume corporal pode ser associado a ideias de força recordando o famoso trabalho de Glucks man e Hirsch que estudando obesos submetidos a grandes perdas corporais detectaram sentimentos de esvaziamento perda de forças como se estivessem se liquefazendo Finalmente falando sobre a rela ção profissionalpaciente Kahtalian nos diz coisas de grande validade prática É fato comum que o obeso tem enorme dificuldade em associar a hiperfagia a polifagia a situações emocionais que atravessa ou atravessou Outras vezes é a mentira que é de difícil abordagem passa a ser uma forma de controlar o médico imobilizandoo O que de modo geral des perta no medico raiva e desnorteamentos E assim acho que o pior a regressão tem um potencial muito pequeno para conter tal situação e a meu ver seria necessário que a agressividade do paciente pudesse aparecer para que o tratamento continuasse e pudes se ser mais efetivo Quanto ao tratamento psicoterá pico enfatiza as técnicas grupais principalmente em nossas instituições hospitalares Com o advento das diálises e dos transplantes renais criouse uma série de novas condições nos ser viços de nefrologia exigindo a presença de profissio nais de Psicologia Médica para fazer face a diferentes situações sejam de ameaças sejam de prolongamen to da vida Assim surgiu a chamada Psiconefrologia e é sobre este tema que Miriam Uryn escreve com sua experiência na Unidade de Transplante Renal do Hos pital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro Fa lando sobre o processo da doação ela distingue os problemas da doação familiar da situação que é vivi da quando o receptor recebe um rim de cadáver e en fatiza os resultados positivos obtidos com a realização de grupos de doadores Acentua o papel do psicólogo no seu preparo do receptor para ser submetido a um transplante e descreve o doloroso processo por que passa quando ocorre uma rejeição São feitas consi derações especiais sobre o transplante em crianças e adolescentes bem como sobre o difícil problema da ocorrência de AIDS no transplantado Todo o traba lho de Miriam é ilustrado com situações clínicas Desde os trabalhos de Elizabeth Kübler Ross a questão da assistência ao paciente terminal vem ga nhando um interesse maior tanto que diversos traba lhos vêm sendo realizados em nosso país a respeito Desta vez temos um clínico Francisco Trindade Barre to falando sobre o tema na condição de pesquisador inquieto e criativo que o caracteriza Ele começa dis tinguindo pacientes verdadeiramente terminais com um declínio inexorável para a morte potencialmente terminais que tem uma condição potencialmente re versível pseudoterminais que têm uma percepção er rônea de sua realidade mentalmente terminais cuja morte começa na mente Após escrever e discutir minuciosamente essas quatro condições o autor nos introduz em um inte ressante trabalho com desenhos que realiza com seus pacientes terminais e préterminais demonstrando como os desenhos representam a percepção profun da do doente de sua condição Esses desenhos servem de mote para um fecundo diálogo entre médico e pa ciente sobre questões como a esperança a percepção do tempo o desamparo A questão da eutanásia seja passiva seja ativa é abordada com profundidade A caminhada inexo Psicossomaticaindd 35 Psicossomaticaindd 35 05012010 121203 05012010 121203 36 Mello Filho Burd e cols rável para a morte é discutida em três tipos de situa ção trajetória prolongada trajetória rápida espera da trajetória rápida inesperada O trabalho é pleno de citações e de resumos de trabalhos estrangeiros geralmente de autores médicos americanos No item referente a AIDS temos quatro traba lhos o primeiro contém generalidades sobre a doen ça e trata da psicoterapia do paciente com AIDS o segundo discute as questões psicossociais da AIDS o terceiro aborda o problema do hemofílico com AlDS o quarto descreve um trabalho grupal realizado com profissionais de saúde que atendem pacientes com AIDS O primeiro trabalho de nossa autoria baseado no atendimento a pacientes com AIDS realizado na Seção de Psicologia Médica do Hospital Universitário Pedro Ernesto UERJ aborda os seguintes itens pro blemas psicológicos em doentes com AIDS o atendi mento aos pacientes e à equipe a questão do pacien te homossexual o atendimento grupal a pacientes soropositivo a mulher com AIDS os usuários de dro gas o paciente terminal e a morte Outros problemas abordados nesse trabalho são as complexas relações parceirosfamília interação do psicoterapeuta com a equipe médica complexidades do diagnóstico psi quiátrico e do tratamento a demência terminal e a morte do doente com AIDS O trabalho seguinte de Amaury Queiroz representando o Serviço de Psicolo gia Médica e Saúde Mental do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho UFRJ aborda os seguintes tópicos as repercussões sociopolíticas e o problema do preconceito atendimento às familias referindose ao trabalho que é realizado pelas assistentes sociais do Serviço importância dos grupos de reflexão pa pel do profissional de saúde mental junto ao clínico e ao paciente A seguir Queiroz descreve as principais reações psicológicas e psiquiátricas que acometem esses doentes reação depressiva paranoia reações maniformes e reações histeriformes O trabalho con clui com o problema da abordagem do paciente ter minal Escrevendo sobre Grupo de reflexão multipro fissional em AIDS uma estratégia em Psicologia Mé dica Alícia Navarro de Souza relata uma experiência também vivida no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho com um grupo de médicos enfermeiros assistentes sociais nutricionistas e psicólogos coor denados por Amaury Queiroz e por ela própria Este trabalho centrado nas ansiedades vivências e con flitos destes profissionais frente à tarefa comum de assistir pacientes com AIDS propiciou várias refle xões entre elas A experiência central deste grupo é a vivência da importância terapêutica de limite do conhecimento que aproxima os vários profissionais de saúde e estes dos pacientes com AlDS A relação do grupo com respeito à instituição hospitalar como um todo é claramente ambivalente O grupo deseja um reconhecimento e esta demanda de um reconhe cimento institucional é particularmente intensificada pela AIDS num conflito entre prestígio institucional e impotência terapêutica A experiência com este gru po de reflexão que foi denominado muito propria mente por um dos seus integrantes como grupo de arrisco representou uma contribuição para o estudo e a elaboração não só da intensidade conflitiva na tarefa assistencial a pacientes com AIDS como das relações conflitivas entre os diferentes profissionais que integram a equipe de saúde Há poucos anos abateuse uma quase epidemia de AIDS entre a população de hemofílicos do Rio de Janeiro o que representou uma tragédia para essas pessoas já vitimadas por uma moléstia crônica É so bre esse conjunto de fatos que versa o trabalho de Virgínia Fontenele Eksterman realizado com a co laboração de psicólogas e que relata o resultado do atendimento de pacientes hemofílicos num centro de Hematologia Num trabalho sensível elaborado com muito cuidado e escrito de forma poética as autoras começam recordando o que é a hemofilia como vi vem esses pacientes no que chamaram de uma gran de família e o modo como se contaminaram pelos crioprecipitados ao mesmo tempo vida e morte com a AIDS Com flashes de atendimentos individuais e sobretudo grupais é descrito o drama desses pacien tes sua ansiedade perplexidade e revolta diante da AIDS e da instituição que os contaminou Escrevem elas inicialmente Nosso objetivo era compreender a psicodinâmica do funcionamento mental do paciente hemofílico suas relações familiares institucionais e com a própria doença Tentávamos não rotular essas pessoas pois percebíamos que sua identidade já era comprometida Elas se colocavam sempre como he mofílicas não se sentindo homens pessoas Depen diam do sangue dos outros para serem inteiros Nesta família do hemofílico o homem é sempre sentido como fraco ameaçado a perigo e a mulher como forte e invulnerável Quando o risco da AIDS começa a se desenhar os pacientes comentam ago ra ser hemofílico é dizer que somos de um grupo de risco AIDS para o hemofílico é sinal verde para o in ferno É descrita a angústia da família principal mente da mãe diante da nova situação bem como da equipe médica O trabalho termina com a angústia do vir a morrer descrevendo o acompanhamento lado a lado desses pacientes até o instante final Concluem So fremos juntos buscando integrálos dentro de uma realidade impossível Lidamos o tempo inteiro com Psicossomaticaindd 36 Psicossomaticaindd 36 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 37 a onipotência descobrimos a dor as perdas e nossas limitações de pacientespsicólogas dentro de um uni verso de absurdos O item seguinte que denominamos de Traba lhos Originais referese a contribuições sobre temas até então inéditos em Psicossomática como Regêne sis o mito da Fênix em Psicossomática ou a questões que estejam sendo pela primeira vez abordadas em Psicossomática em nosso pais Desordens factícias e Urgências aspectos psicossociais A partir do mito da Fênix em um dos mais originais trabalhos des te livro Samuel Hulak e George Lederman criam o conceito de Regênesis como a fantasia da busca da regeneração cuja intensidade é tão fortemente de sejada que pode mobilizar as ordens destrutivas do organismo permitindo a produção de doenças psi cossomáticas severas com intenção letal Baseados em casos de sua clínica particular descrevem certas características comuns desses pacientes como inacei tação do esquema corporal fantasia de serem outra pessoa falta de criatividade existência de somati zações severas com risco letal Os casos estudados compreendiam a doença de Wegener o lupo a artrite reumatoide a infertilidade por anticorpos tumores malignos da mama e da tireoide e anorexia nervosa Nesses pacientes há sempre uma patologia nar císica e o que chamaram de falso self imposto ca racterizando um grau maior da constituição de uma estrutura falso self a partir de uma imposição e uma intrusão ambiental No manejo terapêutico desses pacientes cha mam a atenção para o funcionamento do setting como espaço potencial alertam contra as interpre tações precoces e para a necessidade de o terapeuta suportar relações de extrema fusão sem que isto des perte muita angústia ou reações contratransferenciais difíceis de serem manejadas Therezinha Penna introduz o estudo de uma condição que vem sendo pesquisada nos Estados Unidos as desordens factícias também chamada de Síndrome de Münchhausen em alusão ao famoso mentiroso que era barão Como características destes pacientes que têm uma necessidade psicológica de assumir um papel de doente ela aponta autoindu ção de infecções produção de feridas crônicas au tomedicação e simulação de doenças que é o mais comum Esses pacientes forçam internações hospitalares conseguem se submeter aos mais sofisticados e inva sivos exames abusam de analgésicos e outros medi camentos e têm geralmente internações tumultuadas Quanto à psicodinâmica destes casos que precisam ser diferenciados das doenças psicossomáticas em ge ral da histeria e da hipocondria parecem estar em jogo privação afetiva ou rejeição por parte dos pais nos primeiros anos de vida sentimentos de desva lorização e inferioridade defesas malestruturadas e primitivas incapacidade de desenvolver relações ob jetais satisfatórias Valendose de uma excelente formação clínica e de um acurado enfoque psicossomático José Galvão Alves baseado em sua vivência prática num pronto socorro do Rio de Janeiro escreve sobre os aspectos psicossociais das urgências médicas em um trabalho que é um libelo contra o estado de nossas institui ções de saúde e de como estão despreparadas para prestar assistência psicológica aos que a ela recorrem Descrevendo com muita propriedade o ambiente ao mesmo tempo carente e agressivo dos nossos pronto socorros Galvão relata uma série de condições que provocam frequentemente a iatrogenia o preconceito e a agressão da equipe médica distúrbios chamados de neurovegetativos homossexualidade alcoolismo toxicomania os velhos os suicidas A indiferença e as defesas maníacas são a forma habitual de os médicos se defenderem das angústias e frustrações inerentes às limitações institucionais e ao clima próprio das emergências Considerando os serviços de emergên cia como verdadeiros ambulatórios das classes desfa vorecidas Galvão nos fala também de sua importân cia como força inesgotável de treinamento No último tópico sobre tratamento são discuti dos três trabalhos dois sobre psicoterapia individual e um sobre psicoterapia grupal O primeiro se refere a abordagens de base psicanalítica mais tradicional e em voga em nosso meio e o segundo à psicoterapia breve técnica ainda pouco empregada no tratamento de casos psicossomáticos entre nós O terceiro tra balho versa sobre a abordagem grupal de pacientes somáticos tema sobre o qual ainda muito pouco se escreve apesar de sua enorme aplicação prática Em um trabalho muito extenso e detalhado pleno de exemplos clínicos Otelo Correa dos Santos Filho escreve sobre Psicoterapia psicanalítica do pa ciente somático tema que ele vem particularmente estudando e pesquisando De início Otelo nos apon ta duas grandes possibilidades de atenção psicológica aos doentes orgânicos Na primeira via está todo o campo da reabilitação o retorno à vida e à família o uso afetivo e sexual do corpo a reestruturação da imagem corporal a procura de um novo equilíbrio corporal principalmente narcísico A outra via e representada pela Psicoterapia A esse respeito dis correndo sobre uma base conceitual teórica que pavimenta as posições que irá tomar ele apresen ta o paciente psicossomático como carente de uma elaboração psíquica e com uma falha nos processos de simbolização A doença é desencadeada por um Psicossomaticaindd 37 Psicossomaticaindd 37 05012010 121203 05012010 121203 38 Mello Filho Burd e cols acontecimento da ordem da perda ou equivalente Tal perda não é relacionada pelo sujeito ao fenômeno somático e em geral é minimizada e bem tolerada Sobre a técnica baseada na sua experiência Otelo nos faz uma série de contribuições que a presença do terapeuta deve ser viva falante e questionadora face a face com o paciente a interpretação quando hou ver deve tratar de promover uma maior aproximação do paciente às vivências que surgem devem ser evita das interpretações psicanalíticas clássicas pois serão vividas como invasão sugestão ou ferida narcísica os pacientes relacionamse mais com as disposições verdadeiras interiores do terapeuta do que com as pa lavras que este diz Na parte final do trabalho o au tor se refere à psicoterapia do paciente somático no ambulatório das instituições resumindo do seguinte modo suas experiências a mediação da instituição é geralmente nociva pelo que cada terapeuta deve ma nejar a marcação de consultas férias etc o modelo é a psicoterapia psicanalitica de consultório e os pres supostos teórico Clínicos os referentes aos pacientes somáticos exigindo uma atitude ativa empática e pouco interpretativa essa prática exige uma reflexão constante através de reuniões regulares de discussão de casos clínicos deve ser articulada a outras práticas de psicologia médica ligadas ao ambulatório geral ou ao hospital Ao descrever com detalhes o uso da psicotera pia em hospitais gerais e particularmente as psicote rapias breves Therezinha Penna falando sobre um tema abordado por Otelo Santos Filho presta um inestimável serviço a todos nós Falando sobre a equi pe ela se refere às várias manobras através das quais os médicos empurram os pacientes difíceis para o psicoterapeuta Na hierarquia das tarefas médicas a conversa é pouco valorizada e vista como uma função menor Sobre o setting ela se refere às inadequações às quais o psicoterapeuta terá que se adaptar às questões de privacidade e sigilo e aos problemas da transposição da técnica psicanalítica para um hospital geral ao invés de uma escuta psicodinâmica Sobre as psico terapias breves propriamente ditas descreve a técni ca de crise e as técnicas supressoras de ansiedade e provocadoras de ansiedade Kaplan Quanto às táti cas empregadas refere interpretação interpretação educativa apoiar ou estimular defesas adaptativas informação promover identificações positivas com outros pacientes estímulo da afirmação pessoal O trabalho se encerra com a questão do apoio psicoló gico aos pacientes terminais O último trabalho de autoria de Eugênio Cam pos diz respeito a O paciente somático no grupo tera pêutico ou seja a perspectiva de tratarmos pacientes somáticos através de técnicas grupais Em sua forma rica e pormenorizada de abordar um tema Campos começa fazendo uma revisão do que é um paciente so mático quais os mecanismos da somatização e sobre a psicoterapia do paciente somático como introdução à questão dos grupos somáticos homogêneos A esse respeito ilustra com riqueza de detalhes o trabalho realizado com grupos de hipertensos no INAMPS de Teresópolis através do relato de várias sessões É um trabalho de grande alcance social que visa atender a toda a população de hipertensos daquela cidade A respeito desses grupos ele sintetiza O grupo de hipertensos nós o vemos não no sentido de grupo psicoterapêutico propriamente dito cujo foco é a vida do paciente mas como grupo de orienta ção e reflexão cujo foco é a doença Ao mesmo tempo visualizamos nesse tipo de grupo um efeito terapêutico claro enquanto suporte social na medida em que os pacientes estão reunidos em torno de um problema comum e sustentados por uma equipe que os apoia A seguir o autor se refere à experiência de atendimento a pacientes neuróticos e psicossomáticos no mesmo posto do INAMPS de Teresópolis agora sob um referencial de psicoterapia analítica grupal Escreve o autor sobre tal experiência O foco não é mais a doença ou a queixa física O clima do grupo é mais de elaboração e menos de suporte Os pacientes se sentem autorizados a falar mais de sua intimidade das fantasias e do lado proibido Em relação às queixas somáticas frequentemente no decorrer das sessões questionamos os pacientes sobre o que estariam falando com o corpo Interpretamos suas falas somáticas ou não em relação ao grupo a nós a situações passadas Encerrando o trabalho o autor faz uma correlação entre a função terapêuti ca e as contribuições de Winnicott holding e função materna e Kohut função Self objetal Psicossomaticaindd 38 Psicossomaticaindd 38 05012010 121203 05012010 121203 PERSPECTIVA CONCEITUAL A Medicina Psicossomática é tema recente no âmbito mundial embora seus princípios estejam con tidos na doutrina médica desde os tempos hipocrá ticos Alguns pioneiros e os principais divulgadores no Brasil ainda estão vivos para contar sua história Ergueramna sobre três teses centrais 1 A etiopatologia somática está comprometida em casos determináveis ou de forma universal com a função psicológica 2 A ação assistencial é um processo complexo de in teração social que além de incluir os conhecidos atos semiológicos diagnósticos e terapêuticos contêm elementos da vida afetiva e irracional dos participantes 3 A natureza essencial do ato médico é humanista e portanto a terapêutica deve estruturarse em função da pessoa do doente e não apenas organi zarse preventiva ou curativamente a partir do reconhecimento de uma patologia Cada uma dessas afirmações embora estejam sendo revistas na atualidade continua representan do os elementos principais das três vertentes teóricas comuns a toda concepção psicossomática Respecti vamente 1 a Psicogênica 2 a Psicologia Médica 3 a Antropologia Médica Destacando o desenvolvimento histórico da Medicina Psicossomática no Brasil poderíamos ficar tentados a percorrer cada um desses caminhos isola dos exigindo que cada qual representasse a Psicos somática Aparentemente simplificadora tal atitude reducionista nos conduziria apenas às perspectivas conhecidas com alguma ampliação ou da Patologia geral ou da conduta clínica ou da filosofia médica Para delimitarmos nosso campo de estudo creio que a mais precisa e aquela que estrutura os três aspectos num só ou seja um conceito de Medicina Psicosso mática que integre as três perspectivas a doença com sua dimensão psicológica a relação médicopaciente com seus múltiplos desdobramentos a ação terapêu tica voltada para a pessoa do doente este estendido como um todo biopsicossocial Se pudermos concor dar com essa perspectiva conceitual poderemos fixar o início do movimento psicossomático no Brasil na década de 1950 tendo como alavanca a atividade de alguns médicos dedicados ou aficionados pela Psica nálise notadamente nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo Um pouco mais de 40 anos de desenvol vimento de cuja maior parte tive o privilégio de ser testemunha pessoal Por outro lado dentro de um horizonte con ceitual mais amplo multiplicaríamos de tal forma as possibilidades de uma revisão histórica que não haveria como discriminála da própria Medicina em geral tornando este estudo uma redundância con fusa Sequer haveria necessidade de se introduzir o conceito de Psicossomática se estivéssemos apenas entusiasmados em acentuar o valor etiológico das emoções em um grupo de doenças ou mesmo em toda Patologia no afã de recuperar para a Medicina a questão das relações da alma com o corpo Não creio que qualquer psicossomatólogo confunda psiquismo com alma como tampouco confunda psiquismo com cérebro Tais temas pertencem a domínios intelectu ais consagrados como a Metafísica e a Neurofisiolo gia Da mesma forma o problema do comportamento médico que parece ser o estudo central da configu ração médicopaciente em seu encontro clínico pode ser resolvido pela Deontologia e pela Psicologia So cial permeadas pela Psicanálise Com efeito um dos ramos clínicos mais recentes da Psicologia é o da Psicologia Hospitalar justamente dedicado ao com portamento clínico tanto dos doentes em sua vida em geral como na sua relação com seu médico tema também nuclear da Psicologia Médica e da chamada Medicina do Comportamento Finalmente a Filosofia Médica tem investido no tópico magno da humaniza ção do ato assistencial cerne do pensamento da An tropologia Médica vasada no século XX pela filosofia 2 MEDICINA PSICOSSOMÁTICA NO BRASIL Abram Eksterman Psicossomaticaindd 39 Psicossomaticaindd 39 05012010 121203 05012010 121203 40 Mello Filho Burd e cols da existência esta tendo como paradigma Martin Heidegger e aquela Victor von Weiszäcker A Psicossomática é portanto uma nova visão da Patologia e da Terapêutica tornando possível o axioma antropológico do objetivo médico Em outras palavras trouxe para o pensamento médicocientífi co e para a prática assistencial o mote clássico tratar doentes e não doenças Devo explicar por que considerei a Psicanálise como responsável pela estruturação da Neurofisiolo gia e da Antropologia Médica Em síntese porque a Psicanálise descobriu para a prática médica e para a Patogenia o valor da palavra e operacionalizou sua função na Terapêutica Descobriu como as tensões in ternas derivadas de impulsos de aspecto instintivo transfiguramse em sonhos fantasias e pensamentos Desenvolveu a partir dessas descobertas teorias e técnicas para utilizar essa transformação com fins te rapêuticos Aplicandoas à Patologia geral somática permitiu redimensionar a doença como um acidente biográfico e na prática clínica a relação médicopa ciente como um recurso terapêutico Além disso na medida em que é a dimensão do mundo simbólico a que traduz a essência do existir humano a Psicaná lise como veiculadora de recursos simbólicos é por definição Medicina humanizante Medicina da pes soa Assim pois a essência da descoberta psicanalíti ca representada pelo papel da palavra na Patogenia e pelo valor da palavra na Terapêutica produziu a con cepção psicossomática moderna independente das variações e dos desenvolvimentos da própria Psica nálise Não se trata de Psicanálise aplicada aos doen tes somáticos ou mesmo psicanalisar portadores de enfermidades físicas Isso nos remeteria ao próprio contexto teóricoclínico da Psicanálise Referimonos à transformação do pensamento e ato médico o pri meiro incluindo a dimensão simbólica do homem na geração da doença e da saúde e o segundo impri mindo ciência e técnica à arte de tratar doentes As tentativas e os estímulos meritórios de hu manizar a função médica estiveram sempre presentes nos grandes nomes de nossa Medicina Torres Ho mem Aluízio de Castro Miguel Couto Clementino Fraga são apenas alguns exemplos consagrados To dos na verdade inspirados na revalorização do ho mem atitude patrocinada pela filosofia positivista do século XIX à qual também se atribui injustamente a desumanização médica inspirada na derivação or gânicoempirista dessa mesma filosofia Vemos neles não os precursores mas os formadores indispensáveis da mentalidade básica para conter a ideia psicosso mática E não e por acaso que três seguidores desses grandes mestres da Medicina brasileira Clementino Fraga Filho Carlos Cruz Lima e José de Paula Lopes Pontes professores de Clínica Médica no Rio de Ja neiro abriram seus Serviços de forma pioneira para abrigar setores de Medicina Psicossomática As mesmas considerações cabem à influência de Pavlov e às consequentes concepções cérebrovisce rais de Sechenov que levaram a especulações psi cossomáticas na verdade contribuições neurofisio lógicas à Patologia e vale citar Nelson Pires com sua Clínica Psicossomática acrescida de um sugestivo subtítulo Fisiodinâmica Neurovegetativa Mesmo as contribuições de um dos pioneiros da Psicanálise no Brasil Durval Marcondes pertencem no nosso entender apenas à compreensão psicanalítica de cer tos aspectos da atividade médica Creio que o marco psicossomático na Medicina brasileira está em uma tese de livredocência daquele que se tornou seu principal divulgador Danilo Peres trello A tese inteira A Psiquiatria Atual como Psico biologia 1945 está vasada por definitivas sugestões psicossomáticas Vejamos apenas algumas citações Dia a dia os vários fatos observados na prática clí nica evidenciam que soma e psiquismo formam uma só unidade que a oposição entre os termos mental e corporal físico e anímico psíquico e somático carece de existência real bem como que tais pala vras que não representam mais que instrumentos do nosso espírito para designar acontecimentos que têm sido estudados sob ângulos diferentes Impõese pois a noção do homem como unidade psicossomá tica Por último um ponto de magno interesse o material de trabalho do médico e portanto do psi quiatra é o homem e como tal um ser humano que necessita ajuda e conforto Assim o médico além de seus conhecimentos técnicos tem de pôr em jogo tudo aquilo de que tem conhecimento como ser hu mano que também é e encarar o paciente como seu semelhante O paciente deve ser encarado não como simples máquina que precisa de reparo mas como ser necessitado que pede ajuda e proteção porque como em frase expressiva disse Peabody o que se chama quadro clínico não é o retrato de um homem dei tado no leito é o quadro impressionista do paciente rodeado pelo lar pelo trabalho pelos parentes pelas alegrias pelas mágoas pelas esperanças e pelos te mores Impõese assim ver o doente como pessoa e não somente no presente como também no passado pois como assinalou Bayliss uma das características da matéria viva conquanto não lhe seja completa mente peculiar é que seu estado em qualquer mo mento está sempre parcialmente determinado pela própria história da vida Deveríamos esperar 13 anos para que se inicias se a expansão prática dessa vigorosa proposta o que se deu no Serviço de Clínica Médica do Hospital Ge ral da Santa Casa do Rio de Janeiro 1a Cátedra de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ Psicossomaticaindd 40 Psicossomaticaindd 40 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 41 dirigida pelo Prof Clementino Fraga Filho que auto rizou Danilo Perestrello a fundar em 1958 a pioneira Divisão de Medicina Psicossomática Não lhe foi di fícil realizar a empreitada do ponto de vista pessoal embora tivesse passado as maiores dificuldades para desenvolver a tarefa Reunia em si uma experiência rara em um só médico Psiquiatria Clínica Médica Psicanálise sopesadas pela sólida cultura humanís tica e pelo agudo espírico crítico Assim a Medicina Psicossomática entrou na história da Medicina bra sileira A ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE MEDICINA PSICOSSOMÁTICA Realizavase em 1965 no Rio de Janeiro o XVII Congresso Brasileiro de Gastroenterologia Sugeri então a Danilo Perestrello reunido com ele em seu pequeno e memorável gabinete no Serviço de Cle mentino Fraga Filho na Santa Casa aproveitarmos a presença dos paulistas José Fernandes Pontes Hel ládio Francisco Capisano e Luiz Miller de Paiva para discutimos a possibilidade da constituição de uma so ciedade que congregasse cientificamente em âmbito nacional os interessados em Medicina Psicossomáti ca especialmente as experiências mais ou menos es parsas que tinham lugar em Porto Alegre São Paulo e Rio de Janeiro Todas patrocinadas por psicanalistas ou alunos de Psicanálise associados a atividades do centes e médicohospitalares universitários ou não Perestrello entusiasmouse com a ideia e imediata mente tornouse seu defensor Reunimonos em uma sala do Congresso quando decidimos realizar no mês de setembro do mesmo ano três meses depois a reunião de fundação convocando o máximo de cole gas interessados Escolhemos como sede da reunião o auditório da Associação Paulista de Medicina onde seriam lançadas as bases do programa societário e se elegeria uma diretoria provisória Ao mesmo tempo promoveríamos um encontro científico que seria or ganizado pelo instituto de Gastroenterologia de São Paulo dirigido por José Fernandes Pontes Assim foi feito Cento e quarenta e sete médicos principal mente do Rio de Janeiro São Paulo e Porto Alegre reuniramse em São Paulo e tornaramse membros fundadores da Associação Brasileira de Medicina Psi cossomática aclamando Danilo Perestrello seu pri meiro presidente Elegeram ainda como companhei ros da primeira diretoria executiva Oswaldo Arantes Pereira e Abram Eksterman com mandatos por dois anos após o definitivo registro do estatuto Na mes ma época foram eleitos vicepresidentes Mário Mar tins de Porto Alegre e José Fernandes Pontes de São Paulo os quais deveriam assumir a presidência por mandatos sucessivos de dois anos A nova Associação deveria ter como objetivo básico a promoção de uma nova atitude na assistêneia educação e pesquisa mé dicas a atitude psicossomática a qual visava à inte gração dos elementos psicodinâmicos e biológicos da Patologia e conformar a conduta assistencial dentro desse novo parâmetro A reunião científica presidi da por José Fernandes Pontes teve como relatores Danilo Perestrello e Abram Eksterman do Rio de Ja neiro e Milton Abramovich de Porto Alegre discor rendo sobre Tensão emocional e sua repercussão na patologia Lembro dessa ocasião crítica que sempre julguei da maior pertinência a necessidade de se en contrar uma linguagem comum entre o somatólogo e o psicólogo para que se efetivasse a integração psicossomática É possível que alguém algum dia se ocupe com a intrigante questão de por que certos médicos raros não se satisfazendo com simples contempla ção e reflexão do somático atiramse em arriscadas aventuras para além do corpo levandoos a impas ses existenciais como aos que chegou o Dr Fausto de Goethe procurando a essencialidade humana Assim foi desde o início de sua carreira com o Prof José Fernandes Pontes Já em 1944 reuniase com os psi canalistas Noemi Rudolfer Silveira e Mário Yahn no instituto Aché de São Paulo para compreender o com portamento sintomático de alguns casos de retocoli te ulcerativa Já havia lido e se entusiasmado pelos textos de Franz Alexander Flanders Dunbar e Weiss e English Em 1945 organizava um grupo de estudos o qual incluiu ainda outra psicanalista Virgínia Leone Bicudo que mais tarde durante cerca de três anos de 1965 a 1968 na Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo ministrou o curso oficial de Psico logia Médica tendo na sua equipe Luiz Miller de Pai va Nesse mesmo grupo de estudos Fernandes Pontes recebeu um exaluno Helládio Francisco Capisano Nessa época tornase assistente do Prof Cantídio de Moura Campos catedrático de Terapêutica Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Pau lo e em seu Serviço no Hospital das Clínicas recém fundado em 1943 assume a responsabilidade por um Serviço de Gastroenterologia Nesse mesmo Serviço Helládio Capisano assume um ambulatório de Medi cina Psicossomática É interessante a oposição que recebeu por essas iniciativas do Prof Pacheco e Sil va catedrático de Psiquiatria que não via com bons olhos a presença de uma psicanalista além do mais não médica numa equipe assistencial de médicos Não seria a primeira vez que um Serviço de Psicos somática nascente receberia oposição da Psiquiatria oficial O Serviço não prosperou mas o grupo sim A experiência com grupos terapêuticos em pacien tes portadores de retocolite ulcerativa foi levada por Psicossomaticaindd 41 Psicossomaticaindd 41 05012010 121203 05012010 121203 42 Mello Filho Burd e cols Fernandes Pontes ao IV Congresso das Associações Europeias e Mediterrâneas de Gastroenterologia em 1960 A mesa onde apresentou o trabalho foi dirigi da nada menos que por Truelove Em 1948 Fernan des Pontes encontra Danilo Perestrello no l Congresso PanAmericano de Gastroenterologia em Buenos Ai res Queixase a Perestrello das dificuldades que vem encontrando na implantação de seu Serviço e Peres trello recordalhe que se não fora Clementino Fraga Filho a apoiálo talvez não pudesse desenvolver seu trabalho na Psicossomática Fernandes Pontes recorda como batiam excelentes papos numa confeitaria na calle Florida quando aprendeu a vencer as resistên cias que pacientes orgânicos têm em comunicar suas dificuldades emocionais e seus dramas de vida atra vés da técnica de eco sugestão dada por Perestrello e que consistia em sublinhar para o paciente durante a anamnese as últimas palavras ou um assunto im portante que o paciente houvesse mencionado Mais tarde fundando o Instituto de Gastroenterologia de São Paulo a Psicossomática tornase um importante núcleo de pesquisa e educação Vamos encontrar já em 1947 Helládio Fran cisco Capisano instalado numa unidade de Medicina Psicossomática no Serviço de Clínica Médica do Prof Antonio de Almeida Prado na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo quando publica seu trabalho sobre Neuroses Gástricas Vemolo colabo rar em seguida no Serviço de Gastroenterologia im plantado por Fernandes Pontes na Cadeira de Tera pêutica Clínica do Prof Cantídio de Moura Campos Em 1963 funda a Sociedade de Psicossomática de São Paulo a qual promove juntamente com o jornal A Folha de São Paulo um curso sobre Condições de Vida ao qual comparecem cerca de 800 ouvintes da comunidade em geral Esse curso teve como pro fessores Eduardo Etzel Mario Yahn Luiz Miller de Paiva Noemi Rudolfer Silveira e Darcy de Mendonça Uchoa o qual depois tornase professor catedrático de Psiquiatria da Escola Paulista de Medicina onde vai apoiar decididamente a Medicina Psicossomática publicando inclusive um livro sobre Psicologia Médi ca O êxito desse início da Sociedade leva Capisano a pensar numa Federação Brasileira de Medicina Psicossomática e e proposto Luiz Miller de Paiva para seu primeiro presidente Esses planos são postos de lado com a proposta de Danilo Perestrello de se fundar a Associação Brasileira de Medicina Psicos somática em 1965 renunciando Capisano inclusive a continuar a Sociedade de Medicina Psicossomátíca de São Paulo Trabalhando no Instituto de Gastroen terologia de São Paulo dirigido por Fernandes Pontes até 1966 passa a lecionar na Cadeira de Psicologia Médica e Psicossomática da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo dirigida então pela psi canalista Virgínia Leone Bicudo Tornandose pro fessor titular de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina do ABC de São Paulo entre 1968 e 1978 funda com Miller Paiva o Instituto de Psicossomática de São Paulo Capisano é um dos responsáveis mais importantes por uma série de congressos argentino brasileiros trazendo para o Brasil a experiência do grupo argentino liderado por Luiz Chiozza dedica do à investigação psicanalítica de sintomas orgâni cos O interesse de Luiz Miller de Paiva remonta a 1943 quando estuda a tensão prémenstrual sob o ângulo psicossomático isso no Rio de Janeiro onde após formarse em Medicina ligase a um serviço de endocrinologia interesse que nunca abandonou Com efeito vemolo em seus numerosos escritos nos anos posteriores dedicado a compreender os inter mediários neuroumorais do fenômeno psicossomáti co Conhece Perestrello como professor assistente de Waldemar Berardinelli então pontificando na Facul dade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro suas lições de Clínica Médica A visão clínica de Berardi nelli e Luiz Capriglioni impressionamno sobremanei ra Sempre comprometido com Capisano já vivendo em São Paulo multiplica com ele os cursos e aulas sobre temas psicossomáticos Em 1966 publica volu moso texto sobre Medicina Psicossomática contendo capítulos escritos por Perestrello lsac Leon Luchina outro importante autor argentino e Marcelo Blaya de Porto Alegre Esses são os três paulistas da histórica reunião da qual resultou a Associação Brasileira de Medicina Psicossomática em flagrantes biográficos que sem dúvida não fazem justiça ao que têm sido na vida médica brasileira A intenção é apenas retratar em 6 x 8 foto de passaporte para introduzir o tema da Asso ciação de Medicina Psicossomática da qual têm sido seus líderes Deveria incluir nesses esboços biográfi cos alguns traços mais de Danilo Perestrello e de mim próprio os dois cariocas presentes na reunião Sobre Perestrello deixemos Marialzira sua esposa dedica da médica de cultura invulgar e psicanalista proemi nente falar Publicou no primeiro número da revista brasileira Psicossomática dedicada a Perestrello as seguintes referências sobre seu marido Carioca diplomado pela Faculdade Nacional de Medi cina da Universidade do Brasil em 1939 Cedo é assis tente de Clínica Propedêutica Médica e da 4a Cátedra de Clínica Médica da mesma Faculdade Trabalha com seu primeiro mestre Prof Waldemar Berardinelli Interessase pelo elo psiquiatriaproblemas sociais A respeito de Guerra e Relações de Raça de Arthur Ramos escreve O futuro médico precisa estar a par de noções de Antropologia na acepção larga da palavra como modernamente é concebida e assim poderá me Psicossomaticaindd 42 Psicossomaticaindd 42 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 43 lhor realizar a sua tarefa lsso em 1943 Esperan çoso e idealista termina De posse dos conhecimentos da Clínica que individualiza e da Antropologia que generaliza poderá o futuro médico trabalhar por um mundo melhor baseado na Ciência Podese di zer que Perestrello foi o pioneiro da Psicossomática no Rio de Janeiro apesar de alguns artigos aqui e acolá terem aparecido antes dele De qualquer modo foi o batalhador incansável o arauto do ponto de vista psi cossomático no Rio de Janeiro e em algumas partes do Brasil Em 1958 no mesmo ano em que organizou sua Di visão de Medicina Psicossomática no Serviço do Prof Clementino Fraga Filho publica um volume sobre Me dicina Psicossomática contendo importantíssima cole tânea de artigos Vejamos alguns Sobre o ensino de Medicina Psicossomática de 1956 Conceito de Medi cina Psicossomática de 1951 O fator psicológico em gastroenterologia de 1946 Sobre um caso de ptiríase rósea de 1956 Alternância Psicossomática de 1954 Estudo psicanalítico da dor de cabeça de 1953 Já em 1946 no primeiro Congresso InterAmericano de Medi cina realizado no Rio de Janeiro apresenta o trabalho Importânciado fator psicológico na etiologia da úlcera gastroduodenal Sua elaboração psicossomática culmi nou no consagrado texto A Medicina da Pessoa livro publicado em 1974 lido e relido em todo o Brasil Embora eu próprio desde que me graduei em Medicina em 1959 estivesse interessado em Psicos somática tendo aberto em 1962 um Setor no Serviço de Clínica Médica do Prof Carlos Lima da Santa Casa do Rio de Janeiro 2a Cátedra de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ meu encontro com Perestrello foi o marco decisivo A partir daí sempre estivemos juntos especialmente na organização de cursos de Psicologia Médica Creio que essa influên cia também foi exercida sobre Julio de Mello Filho o qual mesmo não tendo sido um dos presentes na reunião de 1965 é inegavelmente um dos pilares da Associação Formado em Recife veio estagiar na Santa Casa do Rio de Janeiro no Serviço do Prof Edgard Magalhães Gomes em 1958 onde estudou os aspectos psicossomáticos em doentes do colágeno Familiarizandose com a obra de Balint organiza um primeiro grupo de discussão no Hospital Pedro Er nesto sobre a tarefa assistencial em 1964 Em 1966 começa no Serviço de Clínica Médica do Prof José de Paula Lopes Pontes seu setor de Medicina Psicosso mática no Hospital São Francisco de Assis Tornase livredocente em Psicologia Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1976 e publica sua tese em livro já leitura obrigatória em todo o Brasil Con cepção psicossomática visão atual Em 1979 assume o Setor de Psicologia Médica da Faculdade de Medi cina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro na cadeira de Psiquiatria e Psicologia Médica do Prof Jorge Alberto Costa e Silva Todos os cinco foram presidentes da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática A sequência foi a seguinte até 1986 Danilo Perestrello de 1965 até 1974 período que inclui os dois anos de im plantação institucional os dois anos próprios do seu mandato e cinco anos de indefinição institucional nos quais Mário Martins de Porto Alegre não quis assumir e São Paulo preferiu manter durante algum tempo a presidência com Perestrello José Fernandes Pontes assumiu o biênio de 1974 a 1976 Helládio Francisco Capisano de 1976 a 1978 Abram Ekster man de 1978 a 1980 Julio de Mello Filho de 1980 a 1982 Otello Correa dos Santos Filho de 1982 a 1984 Finalmente o último dos fundadores dirigiu a Associação de 1984 a 1986 Luiz Miller de Paiva Para 1o biênio de 1986 a 1988 dirigiu a Associação Samuel Hulak de Recife De 1988 a 1990 Eugênio Campos de Teresópolis e no biênio 1990 a 1992 está dirigindo a ABMP o paulista Avelio Luiz Rodrigues Clementino Fraga Filho foi feito membro honorário assim como os professores José de Paula Lopes Pon tes e Carlos Cruz Lima no final da gestão de Abram Eksterman Todos os três constituíram os ambientes clínicos que propiciaram como o de José Fernandes Pontes o desenvolvimento da Medicina Psicossomáti ca no ambiente universitário brasileiro Não é impos sível que sem eles as dificuldades iniciais tivessem se transformado em barreiras intransponíveis Em 1967 juntamente com Ataliba de Castro e sob a presidência de Danilo Perestrello organizei a I Reunião Nacional de Medicina Psicossomática o que se constituiu no primeiro Congresso Brasileiro da área e que pôde utilizar o ambiente da Academia Na cional de Medicina do Rio de Janeiro graças ao apoio de Carlos Cruz Lima então presidente da Academia Esse Congresso teve também o apoio do então minis tro da Educação o Prof Raimundo Muniz de Aragão que facilitou a vinda do Prof Michael Balint e de sua mulher Enid Balint de Londres Michael Balint foi o presidente de honra do Congresso Reuniramse cer ca de 300 congressistas lotando as dependências da Academia Podese afirmar que essa reunião marcou o início do movimento nacional da Medicina Psicos somática A data 7 e 8 de abril de 1967 Michael Balint pronunciou a conferência inaugural Medicine and Psychossomatic Medicine e sob a coordenação de Carlos Cruz Lima e moderação de Michael Balint desenvolveuse o tema oficial Relação MédicoPa ciente Os relatores oficiais foram José Femandes Pontes de São Paulo dissertando sobre O médico de família Milton Abramovich do Rio Grande do Sul sobre O valor da queixa na relação médicopa ciente Oswaldo Arantes Pereira do Rio de Janeiro sobre O valor semiológico dos exames complemen tares do ponto de vista psicossomático Helládio Psicossomaticaindd 43 Psicossomaticaindd 43 05012010 121203 05012010 121203 44 Mello Filho Burd e cols Francisco Capisano de São Paulo sobre A indicação do especialista na relação clínica Abram Eksterman do Rio de Janeiro sobre O inconsciente do médico na relação clínica Marcelo Blaya do Rio Grande do Sul sobre Atuação psicoterápica do clínico e Dani lo Perestrello do Rio de Janeiro sobre Os medica mentos na relação médicopaciente Julio de Mello Filho nessa época associouse ao movimento apre sentando na Seção de Temas Livres o trabalho Pro blemas da relação médicopaciente em portadores de colagenoses A presença do modelo da interpretação psicanalítica da patologia somática foi marcante nes sa reunião mas delinearamse duas vertentes concei tuais que influenciaram consideravelmente todos os desenvolvimentos posteriores a prática integral da Medicina que depois tomou a forma da Medicina da Pessoa como conceituada por Perestrello e o estudo aprofundado da relação médicopaciente o que per mitiu fixar os parâmetros básicos para a formulação de uma política educacional e a definitiva introdução da disciplina de Psicologia Médica na formação do médico e dos demais profissionais da área de Saúde Nessa mesma reunião tendo eu elaborado e redigido o projeto dos estatutos da Associação foram os mes mos aprovados na assembleia administrativa É interessante assinalar que as repercussões des sa primeira reunião foram na época de pouca monta no meio médico Tanto que o tema escolhido para o simpósio comemorativo do Primeiro Decênio da cria ção do Setor de Medicina Psicossomática a cargo do Prof Danilo Perestrello organizado por mim na 1a Cátedra de Clínica Médica da Universidade Federal do Rio de Janeiro dirigida por Clementino Fraga Fi lho foi expressivamente Dificuldades da utilização efetiva da orientação psicossomática na prática médi ca Participaram Fernandes Pontes Helládio Capisa no Milton Abramovich Julio de Mello Filho Abram Eksterman Hélio de Souza Luz LF Medina de Mi nas Gerais e alguns novos discípulos de Perestrello Felix Zyngier Angelo Papi Rosa Cukier Maria de Lourdes ODonnell Alice Rosa e Carlos Doin este úl timo dirigindo um setor de Medicina Psicossomática na Cadeira de Clínica Médica do Prof Jacques Houli na Escola de Medicina e Cirurgia no Rio de Janeiro O tema aberto por ocasião desse simpósio continua em plena discussão até os dias atuais Da gestão de Helládio Capisano em diante co meça a Associação a ramificarse em Regionais pelo Brasil a partir das matrizes do Rio de Janeiro e São Paulo Capisano inaugura a Regional de Marília li derada por Alfredo Colucci e a de Campinas com Wilson Vianna e Maurício Knobel este último recém chegado de Buenos Aires para ocupar a cátedra de Psiquiatria da Universidade de Campinas UNICAMP e com importante trabalho já realizado no domínio da Psicossomática Durante minha administração inauguro a regional de Presidente Prudente em São Paulo liderada por Pedro Carlos Primo e estimulo o desenvolvimento de grupos em Juiz de Fora e Belo Horizonte Minas Gerais Taubaté São Paulo Vitó ria Espírito Santo Londrina Paraná Ribeirão Pre to São Paulo Recife Pernambuco e Salvador na Bahia Nesta última capital deixo quase constituída a Regional liderada por Raimundo Pinheiro e com o Prof de Psiquiatria da Universidade da Bahia Álvaro Rubim de Pinho Em Presidente Prudente ocorre o I Forum Brasileiro de Medicina da Pessoa entre 16 e 19 de outubro de 1980 reconhecimento à expressão já consagrada de Perestrello através do livro editado em 1974 Perestrello afastarase desde 1976 doente de toda vida profissional É o primeiro congresso em que vejo na mesma mesaredonda a discussão de Me dicina integral feita por representantes da Medicina Científica e de várias correntes de Medicina Alterna tiva notadamente espiritismo e homeopatia Especialmente na gestão seguinte a de Julio de Mello Filho a Associação toma ritmo nacional na medida em que estimula o desenvolvimento de gru pos ligados ou não a universidades em geral forma da por especialistas de várias disciplinas da área de assistência e ensino e interessados em desenvolver o estudo e a divulgação de Medicina Psicossomática Vale assimilar o esforço de Samuel Hulak e seus companheiros de Recife que fundam a revista Psi cossomática que passa a circular a partir do início de 1986 com um número homenageando Danilo Pe restrello Infelizmente a revista após oito números de excelente qualidade editorial deixa de circular em 1988 por falta de recursos PSICOSSOMÁTICA NO BRASIL DE HOJE lnspirada inicialmente no movimento psicana lítico brasileiro a Medicina Psicossomática dos anos 1990 começa a tomar outros rumos por conta de al gumas importantes trasformações na estrutura assis tencial decorrentes da intervenção maciça do Estado com a mobilização maior de atividades paramédicas e a formação de equipes multidisciplinares Funções como a de Enfermagem Assistência Social Nutrição e Psicologia comprometidas com o cuidado geral e a dimensão social da patologia além da condição existencial do doente abrem perspecti vas conectadas com a Psicossomática e a ela recorrem para buscar apoio teórico Além disso as recentes in vestigações no campo da Psiquiatria Biológica abrem o hospital para uma maior e decisiva participação do psiquiatra Várias orientações começam a tomar forma deixando de lado a orientação psicodinâmica Psicossomaticaindd 44 Psicossomaticaindd 44 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 45 original ou dela fazendo uso apenas para breves ex plicações ora da patogenia ora da conduta médica A progressiva e maciça participação do psicólo go na área de saúde nos hospitais nos ambulatórios nos postos de saúde até nos serviços clínicos parti culares nas mais variadas especialidades e tipos de atendimento tem estimulado uma crescente preocu pação com as questões psicológicas A despeito dessa efervescência do interesse no aspecto psicossocial da assistência as linhas mestras da questão psicosso mática ainda mal foram tocadas na prática Recordemos que as linhas mestras resumemse em duas l A patologia no homem sempre deve levar em conta a dimensão simbólica de que é constituído o que impõe o conhecimento dos aspectos psicossociais do doente 2 O êxito terapêutico está estreitamente vinculado à relação dinâmica médicopaciente A in trodução do psicólogo da assistente social e do psi quiatra só produzirá efeitos psicossomáticos efetivos se esses profissionais estiverem comprometidos com essas duas linhas mestras infelizmente nem sempre tem sido o caso A participação do psiquiatra no Hospital Geral tem seguido o diagnóstico fenomenológico e orga nizado serviços de Psiquiatria de Ligação Liaison Psychiatry voltados para as intercorrências psiquiá tricas nosologicamente identificáveis ou como uni dades nosográficas definidas ou como psicopatolo gias participantes de entidades clinicossomáticas Isso tem produzido assistência psiquiátrica no Hospital Geral mas não tem contribuído para o de senvolvimento da Psicossomática A participação do psicológo também padece de alguns defeitos estruturais Sua institucionalização na área de saúde particularmente nos serviços materno infantis clínicogerais e cirúrgicos tem sido orienta da segundo as necessidades de ajustar os pacientes a modelos assistenciais Prática portanto behaviorista que não favorece uma compreensão nem da relação médicopaciente nem das dificuldades psicodinâmi cas do paciente Frequentemente assim o psicólogo passa a ser mais um agente dos interesses da institui ção do que das necessidades efetivas do paciente É o modelo corrente de Psicologia Hospitalar cuja prática está longe de ser uniforme Há que se reconhecer que muitos profissionais da área de Psicologia consegui ram graças a uma adequada formação psicodinâmi ca estabelecer estratégias de atendimento próximas ao modelo preconizado pela Psicologia Médica A Psicologia Médica é o braço clinico da concep ção psicossomática original que se apoiou em seu desenvolvimento nas teorias básicas de psicanálise admiravelmente aplicada nos grupos de discussão de tarefa clínica como Michael Balint e colaborado res desenvolveram na Tavistock Clinic de Londres a partir de 1949 Com justa razão esses grupos passa ram a ser conhecidos por grupos Balint Desde 1958 Danilo Perestrello começou a realizar reuniões desse feitio no Rio de Janeiro no Hospital Geral da Santa Casa sem conhecer ainda o trabalho de Balint Hoje essa atividade é muito disseminada no Brasil e faz parte obrigatória de todas os que passam pela forma ção em Psicologia Médica Um primeiro curso de pósgraduação de espe cialização em Psicologia Médica de dois anos de du ração foi inaugurado por mim em 1983 com quaren ta alunos inscritos Tratavase até onde pude apurar de uma primeira tentativa de criar especialistas nesta área no Brasil para trabalharem como parte compo nente da equipe assistencial É possível que em futuro próximo a ideia psicos somática deixe de existir na medida em que se tornar mais comum a prática da Psiquiatria de Ligação da Psicologia Hospitalar e da Psieologia Médíca De to das a Psicologia Médica parece destinada a herdar os principais atributos da Medicina Psicossomática Com uma diferença fundamental A Medicina Psicos somática estuda as relações mentecorpo e seu foco é a patogenia Por sua vez a Psicologia Médica estuda as relações assistenciais e seu foco é a terapêutica No primeiro ressalta a questão diagnostica no segundo a atuação clínica A Psicologia Médica por isso pas sou a ser ensinada como disciplina isolada nas prin cipais Faculdades de Medicina do país Nesse sentido podese dizer que o trabalho dos pioneiros em Psi cossomática já produziu um fruto notável Mas muito ainda falta para que a Medicina da Pessoa entre no quotidiano clínico Talvez isso se dê quando a Me dicina voltarse para o fenômeno humano integral Sem isso a Psicossomática continuará sendo mais es perança do que realidade prática Isso porque persiste o maior dos desafios o efe tivo encontro do ser humano consigo próprio e com o outro Psicossomaticaindd 45 Psicossomaticaindd 45 05012010 121203 05012010 121203 PARTE 2 Ensino e formação Psicossomaticaindd 47 Psicossomaticaindd 47 05012010 121203 05012010 121203 A Psicologia Médica e um capítulo novo na his tória da Medicina Pretende estudar a psicologia do estudante do médico do paciente da relação entre estes da família e do próprio contexto institucional dessas relações Tarefa sem dúvida de grande com plexidade que por tal representa um desafio Ensinar e aprender são questões de uma vida En tretanto algumas questões que julgamos importantes serão desenvolvidas neste capítulo tendo como foco principal uma proposta de ensino Acreditamos que o ensino só produz resultado satisfatório isto é produz uma verdadeira modifica ção da conduta de acordo com Perestrello 1974 se puder diluirse no ser self do aluno apresentando lhe um saber que vai ampliar os limites de sua identi dade Segundo Allonso Fernandez 1974 se um cur so de Medicina não promover alguma modificação na personalidade do aluno este curso deve ser reavalia do pois não está cumprindo seus objetivos Pensamos que no decorrer da formação acadêmica o aluno se confronta com a doença com o doente com o seu ser médico com a morte e outras tantas situações gera doras de ansiedade Além disso percebemos que a pessoa que escolhe a Medicina como profissão já o faz frequentemente motivada pelas expectativas de solucionar questões internas nem sempre conscien tes Tudo isso vai se constituir na matéria do ensino de Psicologia Médica Ao professor caberá absorver ouvindo e entendendo essas situações O professor que não escuta o aluno falha no método e oferece um modelo de não comunicação Explicitando podemos dizer que no encontro entre duas pessoas no caso professoraluno o que é feito a conduta que o pro fessor demonstra tem muito mais alcance no outro do que o que é dito Coerência entre atos e discurso no ensino é essencial Aquilo que o professor for para o aluno servirá de modelo que este se identificando guardará dentro de si Esta questão no ensino médico é de capital impor tância pois se o professor for incapaz de se relacionar com o aluno de ouvilo de estabelecer com ele uma relação de franqueza e confiança poderá ser este o modelo apreendido É evidente que os modelos absor vidos dependerão em última análise das ansiedades do estudante do momento emocional que este esti ver vivendo de sua própria história pessoal buscan do identificações de acordo com essas características Para situações desconhecidas mobilizadoras de maior tensão procura modelos defensivos que por sua vez serão sintônicos com sua característica de personali dade Temos observado por exemplo estudantes que se identificam com modelos de médicos mais autoritá rios rígidos em lidar especialmente com situações que desconhecem e que vão evidenciar sua falta de expe riência ou conhecimento O poder aí está a serviço da insegurança da fraqueza do desconhecimento Outro elemento a ser considerado é que o ensi no de Psicologia Médica engloba o ensino do que se convencionou chamar de Medicina Psicossomática Com essa perspectiva a Psicologia Médica ga nha um status que se estende a toda a Medicina con soante com a atual dimensão de que toda a doença é psicossomática Lembramos que a Psicologia Mé dica é a psicologia da relação médicopaciente con forme nos diz Pierre Schneider 1974 Entretanto podemos ampliar tal conceituação e concordar com Allonso Fernandez 1974 quando afirma que a Psi cologia Médica é a psicologia da pratica médica Assim a Psicologia Médica tem como principal objetivo de estudo as relações humanas no contexto médico Portanto a compreensão do homem em sua totalidade no seu diálogo permanente entre mente e corpo na sua condição biopsicossocial é fundamental para a Psicologia Médica É com este sentido que fala mos em Medicina Psicossomática incluindo a Medici na da Pessoa tema brilhantemente exposto por Dani lo Perestrello 1974 em seu livro com este título É para esta prática médica por conseguinte que deve se voltar o foco de atenção do ensino de Psi cologia Médica A integração do ensino com a prática é questão indispensável A prática aqui assume duas direções 3 ENSINO DE PSICOLOGIA MÉDICA José Roberto Muniz Luiz Fernando Chazan Psicossomaticaindd 49 Psicossomaticaindd 49 05012010 121203 05012010 121203 50 Mello Filho Burd e cols 1 No contexto de ensino com as vivências do aprendizado médico no hospitalescola na rela ção com os professores acompanhando as várias etapas de formação médica do primeiro ao último ano do contato com o cadáver à pessoa doente sempre sob a ótica do estudo da Iatropatogenia 2 Na prática médica propriamente dita no ambula tório enfermaria e unidade de emergência com os avanços da Medicina CTI unidade de hemo diálise etc e suas consequências para a pessoa doente no contexto familiar o doente agudo o crônico e o terminal a relação médicopaciente nas várias áreas especializadas da Medicina a equipe de saúde as relações interpessoais entre médicos e profissionais de saúde o médico enfer mo etc Considerando a amplitude desta prática a inte gração com outras áreas da Medicina vem a facilitar e enriquecer o ensino da Psicologia Médica Temos de senvolvido trabalhos no âmbito das enfermarias e do ambulatório do Hospital Universitário Pedro Ernesto HUPE da Faculdade de Ciências Médicas da Uni versidade Estadual do Rio de Janeiro FCMUERJ o que sem dúvida ao se integrar ao ensino permite uma visão global da assistência Entretanto este é um trabalho difícil desafiador A começar pela ad ministração de programas de ensino com essa ótica considerando principalmente o corpo docente lnicialmente verificamos que este ensino quan do administrado pela cadeira de Psiquiatria mui tas vezes não alcança estas finalidades precípuas A Psiquiatria como especialidade médica constitui um saber especifico que nem sempre direciona seus obje tivos para uma maior integração com outras áreas de saber dentro da Medicina Resulta muitas vezes que o ensino de Psicologia Médica administrado dessa for ma acaba sendo um curso restrito a programas teóri cos específicos que por vezes servem mais como cur sos preparatórios à Psiquiatria propriamente dita Há principalmente uma grande perda no que diz respeito ao ensino da prática como exposto anteriormente Por outro lado o curso quando administrado por professores de Clínica Médica parece também in suficiente E aqui o que sentimos é a necessidade de uma preparação não só do aporte de conhecimento das teorias afins como também da própria participa ção emocional do professor nesse processo O proble ma pedagógico observado frequentemente se liga à ansiedade que o contexto de aprendizagem provoca no aluno e para isso se requer uma adequada abor dagem desses problemas por parte do professor En tretanto observamos colegas de Clínica Médica que conosco têm desenvolvido excelentes resultados neste processo Fica claro que não está vedada àqueles sua participação Pelo contrário é desejada até para que se incremente assim uma maior integração Pensa mos entretanto que a Psicologia Médica pelas suas peculiaridades e seu próprio corpo de saber deve se constituir em uma disciplina à parte da Psiquiatria e da Clínica Médica porém com funcionamento inte grado a ambas Um outro objetivo central do ensino de Psico logia Médica é de simples enunciado e complexa execução a prevenção da iatropatogenia E no nosso entender é o estudo a detecção das situações iatro gênicas observadas e inerentes à prática médica que vão possibilitar medidas preventivas quer no nível individual quer num contexto mais amplo Outros objetivos que contribuirão para alcançar tal prevenção são descritos na ementa do curso de Psicologia Médica para graduação da FCMUERJ compreender o homem sempre como unidade biopsicossocial perceber a importância da biografia e da persona lidade do paciente em seu modo de adoecer e na forma de se relacionar com a equipe de saúde valorizar o papel das ideologias e instituições mé dicas na prática da medicina e no relacionamento com o paciente ouvir e respeitar o paciente como ser humano e dentro do seu marco sociocultural entrevistar psicologicamente o paciente ou sua família quando necessário perceber a atmosfera psicológica que acompanha o exame do paciente e saber como manejála em proveito do relacionamento transmitir ao doente os achados obtidos suposi ções e diagnósticos em função de sua personali dade e do momento vivido solicitar os exames complementares avaliando as possíveis reações do paciente à sua execução e utilizar técnicas adequadas para lhe comunicar os resultados planejar a terapêutica conforme as necessidades globais do paciente como ser humano identificar a atuação de fatores psicossociais na gênese e evolução das enfermidades atuando de forma a tentar neutralizar seus efeitos admitir que a atitude do médico é de importân cia capital no relacionamento com o paciente e que o médico pode reagir emocional e inadequa damente perceber as dificuldades emocionais que mais frequentemente ocorrem em seu início de prática profissional conhecer o funcionamento básico da personali dade humana seus processos adaptativos e seus modos mais comuns de adoecer Psicossomaticaindd 50 Psicossomaticaindd 50 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 51 distinguir os aspectos mais característicos da saú de e da doença mental no marco sociocultural do paciente começar a distinguir os pacientes que podem re ceber ajuda psicológica do médico em geral da queles que necessitam ser encaminhados aos es pecialistas em doenças mentais Acrescentaríamos hoje mais um objetivo que é o de ter uma visão crítica da formação e prática medica e sua integração com o meio sociopolítico e cultural Com relação ao como atingir os objetivos pro postos podemos inicialmente citar Danilo Perestrello 1974 A transmissão de conhecimentos teóricos ou práticos por meio de exposições ou leitura de textos mostrase inoperante o que não ocorre na situação oposta isto é mesmo quando o ensino é ministrado sem se recor rer às aludidas exposições ou leituras quando não se utilizam inclusive terminologias técnicas e sim a lin guagem cotidiana para os sentimentos pensamentos e atos de todos nós Somente depois de certo período de treinamento com base na vivência individual pode rão os livros aprimorar e ampliar as aquisições obtidas quando então se verifica por parte dos alunos surpre endente capacidade crítica de assimilação dos textos porventura lidos Partindo do princípio de que aprendizagem é modificação da conduta é fácil verificar que pouco adiantam os conhecimentos de ordem intelectual em Psicologia Médica e Medicina Psicossomática se eles não forem experienciados na prática clínica do estu dante ou médico Não somente pouco adiantam como frequente mente e nossa observação é rica neste particular representam obstáculos para a verdadeira mudança da conduta afastando o estudante no caso o médi co do objetivo visado Podemos dizer que os textos são os exames com plementares do ensino da Psicologia Médica Ajudam no ensino mas não substituem a relação professor aluno E aqui encontramos uma das boas razões para a existência dos grupos de reflexão que serão comen tados adiante O CURSO DE PSICOLOGIA MÉDICA O curso se desenvolveu na FCMUERJ sob a co ordenação geral do Prof Julio de Mello Filho A Psi cologia Médica é ensinada durante os primeiros anos do curso de graduação da FCMUERJ Nos dois pri meiros anos tem a duração de um semestre do ano letivo cada um e tem sido ministrada recentemente em conjunto com o lnstituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro IMSUERJ Esta integração reflete esforço concreto para aprimo rar a coerência do currículo médico aproximando a versão macroscópica do social à dimensão psicológi ca do ser humano Inauguramos assim um diálogo entre duas áreas de conhecimentos que acreditamos se propõem a dar ao aluno uma visão holística do homem Em todo o curso ao longo dos três anos temos desenvolvido técnicas grupais junto aos alunos No primeiro ano o curso que se intitula Fun damentos de Saúde da Comunidade FUNSACO se divide em dois tempos o primeiro de aula expositi va e o seguinte de grupo de reflexão A programa ção teórica desenvolve os seguintes temas além dos específicos da Medicina Social o Biopsicossocial o Médico e o Curandeiro o Estresse Social a Identida de Médica e a do Estudante de Medicina Teoria da Comunicação Nos grupos temos como objetivo promover a reflexão das experiências emocionais ligadas à entra da do estudante na Faculdade de Medicina o curso de Anatomia o contato com o cadáver a utilização deste etc além de acompanhálo no projeto desen volvido pelo IMS em que o aluno é incumbido de acompanhar um paciente que chega ao ambulatório geral do HUPE para sua primeira consulta Cabe ao estudante acompanhar a trajetória do paciente sem interferir nos rumos que esta possa tomar Tratase de uma pesquisa participatória na qual o aluno não só coleta os dados observados mas também vivencia a experiência do ponto de vista pessoal Dentre outros um dos principais objetivos é colocar o estudante de Medicina no outro lado da mesa a partir da ótica do paciente e dessa maneira introduzilo desde cedo na assistência Essa experiência por sua riqueza me receria um capítulo à parte No segundo ano a turma é dividida em quatro grupos com cerca de 15 a 20 alunos cada reunindo se uma vez por semana durante uma hora e meia Cada grupo recebe com antecedência textos sobre os temas teóricos que deverão ser lidos previamen te Cabe ressaltar que todas as aulas são organizadas de maneira a privilegiar a discussão nos grupos Não recorremos mais às clássicas aulas expositivas e acre ditamos que grupos menores de alunos favorecem a participação ativa Os textos são elaborados pela equipe de profes sores ressaltando os aspectos básicos de cada unida de estudada e enriquecidos com capítulos de livros citados na bibliografia geral As discussões sobre as entrevistas parte práti ca alteramse com os temas teóricos Psicologia Evo lutiva Psicossomaticaindd 51 Psicossomaticaindd 51 05012010 121203 05012010 121203 52 Mello Filho Burd e cols crises vitais discussão das entrevistas com pessoas que lidam com situações de crise médicos bombeiros poli ciais religiosos etc primeira infância discussão das entrevistas com mães eou pais de bebês saudáveis e doentes segunda infância discussão das entrevistas com crianças eou pais saudáveis e doentes adolescência E assim sucessivamente até o tópico sobre mor te em que a aula com textos é substituída por um painel de que participam um médico clinico um filó sofo um professor de Medicina Social e um professor de Psicologia Médica As entrevistas são feitas com profissionais que lidam diretamente com a morte É importante esclarecer que essas entrevistas têm alguns objetivos principais que são 1 Estimular a visão crítica e a criatividade dos alu nos isto é eles deverão através das entrevistas procurar avaliar o que foi estudado nos grupos de discussão teórica 2 Iniciar o treinamento de entrevistar pessoas des conhecidas com o objetivo de conhecêlas obter dados etc Temos como objetivo o preparo para o futuro estudo das anamneses e da História da Pessoa no terceiro ano 3 Iniciar o desenvolvimento de uma identidade mé dica que possa tornarse capaz de ouvir o pacien te no seu contexto psicossocial 4 Estimular o contato com profissionais da área médica e de outras ouvindo sobre seu trabalho sobre suas dificuldades e gratificações 5 Ajudar a elaborar a futura crise do terceiro ano antecipando o contato com o paciente Isso permite um contato mais livre com a pessoa do paciente encontrando nos grupos de reflexão o clima elaborativo adequado E importante ressaltar que os alunos não rece bem nenhum roteiro prévio sendo a entrevista livre completamente elaborada por eles apenas partindo do tema geral O programa teórico durante o terceiro ano com preende os seguintes assuntos Conceito de Psicologia Médica Estudo de Me dicina Psicossomática Psicologia da Personalidade Aspectos Psicodinâmicos Estudo da Relação Médico Paciente Estudo dos Grupos Humanos O Normal e o Anormal A Saúde e a Doença o Adoecer Humano e os Processos Adaptativos Estudo da Vocação Médi ca Estudo da Iatrogenia e Efeito Placebeo o Médico e o Paciente diante da Morte Recursos Terapêutioos Extraordinários Relação entre Doença e Família Re lação entre Doença Cultura e Sociedade a Enfermi dade do Médico e suas Particularidades Outros temas são expostos sob forma de painéis e discussões em grupo Nos painéis temos tido a oportunidade de con vidar profissionais que através de relato de sua expe riência têm contribuído para promover um interesse maior dos alunos em assuntos pertinentes à prática médica Temas como o Médieo e o Pacicnte diante da Morte Emergências Médicas CTI Equipe de Saúde e outros ganham um lugar de discussão no decorrer do curso médico Sabemos o quanto as suntos dessa magnitude têm sido excluídos de uma atenção maior que sem dúvida merecem O ensino prático de Psicologia Médica no tercei ro ano vem sendo o maior desafio que encontramos E o momento em que o aluno de Medicina estabelece contato e compromisso com os pacientes internados nas enfermarias de Clínica Médica e quando efetiva mente procura um modelo para essa relação Como conseguir estimular o estudante a desenvolver uma abordagem uma escuta não usual de seu paciente Como ampliar o sentido de uma pesquisa semiótica E propiciar a formação de uma identidade profissio nal que possa se voltar ao atendimento das necessi dades do paciente Estas e outras são questões esti mulantes Perceber o que não é diretamente explicitado pelo paciente não é tarefa fácil Escutar o que não é dito em palavras requer um modelo de relação que de forma alguma é o habitual Procuramos através do ensino e por intermédio da relação professoraluno nos aproximar de um modelo de relação que possa em última análise ser introjetado pelo estudante As transformações ou melhor as possibilidades de mu danças nas atitudes dos estudantes estarão ligadas di retamente à intensidade das experiências emocionais vividas no decorrer de sua formação médica E desen volvendo a capacidade de elaborar seus conflitos De refletir sobre suas angústias que o estudante poderá posteriormente ouvir as angústias do paciente GRUPO DE REFLEXÃO Temos dado este nome aos grupos que desen volvemos ao longo do curso Tratase de nossa técni ca de ensino nossa ferramenta principal São grupos constituídos por até 20 alunos em média coordena dos usualmente por uma dupla de professores nas quais se discutem as situações vividas pelos alunos quer na vida acadêmica quer na relação com os pa cientes de maneira geral Psicossomaticaindd 52 Psicossomaticaindd 52 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 53 O fato de existir uma dupla de coordenadores traz algumas vantagens l Permite o treinamento do segundo coordenador atendendo à demanda do aprendizado nesta téc nica de ensino 2 Amplia a visão crítica da atuação de coordenação pois os coordenadores podem trocar vivências e opiniões entre si 3 Aumenta as possibilidades de empatia e identifi cações positivas por parte dos alunos É propício ressaltar que estes grupos não têm nenhum caráter terapêutico explicito não são feitas interpretações por parte dos coordenadores Como existe um es paço efetivo holding para a reflexão reassegu ramento da identidade através das identificações e enfrentamento dos conflitos não temos dúvidas de que esses grupos contribuem para a elaboração das crises do viver a formação médica Com relação ao material trazido pelos alunos podemos identificar alguns temas que mais frequen temente aparecem dependendo do ano que os alu nos estão cursando No primeiro ano temos observado a mobili zação dos estudantes nos primeiros contatos com a Medicina suas expectativas seus entusiasmos e suas decepções Desde o início percebemos quão marcan te é um curso de Medicina Os alunos manifestam cla ramente esse impacto quer entre seus colegas quer no grupo social a que pertencem Sentemse tratados alguns deles de maneira diferenciada entre seus fa miliares atendendo às vezes a solicitações médi cas às quais não sabem como responder Os amigos que desejam saber sobre questões médicas a roupa branca que começam a trajar já os coloca num papel diferente que frequentemente ajuda a desenvolver um sentimento de que se está iniciando algo de muito especial A curiosidade em saber em conhecer o corpo humano a vida vai logo ao encontro do estudo da Anatomia Olhar o que se tem por dentro ver como é A dissecação de cadáve res por outro lado é uma atividade de grande Signi ficação na formação da identidade médica Ela marca a diferença com qualquer outro curso de formação A violação de cadáveres ganha aqui status científico O aluno é oficialmente autorizado a profanar cadáve res Além disso a dissecação em sua dimensão sim bólica faz parte a nosso ver de um verdadeiro ritual de iniciação à prática do futuro curandeiro É no ca dáver que o aluno tem o seu primeiro paciente E este fica como um modelo de paciente ideal não incomo da não se queixa não interfere e não tem história As histórias que podem incomodar neste momento são as do próprio aluno E como aconteceu com uma aluna que no grupo de discussão manifestou estar chocada com o estudo de Anatomia e que não sabia por que passou a ter dificuldades até mesmo de se aproximar do anatômico Outros colegas no grupo começaram logo a falar sobre suas experiências com relação ao cadáver dizendo que consideravam este uma peça somente um objeto de estudo necessário a formação médica e que por isso não tinham maiores problemas em lidar com a situação A aluna insistia em dizer que ela pensava o mesmo vinha bem com isso mas num determinado momento não sabe por que passou a sentir ansiedade com as aulas o grupo evolui na discussão do tema ganhando maior com plexidade e deixando de tãosomente caracterizar a situação da dissecação do cadáver como de estudo propriamente dito Foram surgindo então questões como a de que para alguns incomodava pensar que uma peça de cadáver já tinha sido uma pessoa que aquela mão por exemplo já havia cumprimenta do várias pessoas que havia portanto uma história por trás daquelas peças Num determinado momen to a aluna que relatava suas dificuldades começa a falar da perda que sofreu com a morte de seus avós há cerca de um ano deixando vir sua emoção e que ela agora relacionava a suas dificuldades em entrar no anatômico Os grupos têm permitido aos alunos um lugar para elaborar essas emoções que por vezes dificul tam o aproveitamento do estudo que devem levar adiante Outro grupo logo no início da discussão atri buía ao cheiro forte do formol a única dificuldade em lidar com o cadáver A transfiguração do cadáver já dividido em peças o caráter racional das aulas a im portância do aprendizado científico eram os fatores alegados pelos alunos como os mais importantes para não se envolverem emocionalmente Acreditavam que esta atitude seria fundamental para o aprendiza do Mais adiante uma aluna diz que quando come çou o curso de Anatomia não conseguia estudar pelo seu envolvimento emocional e procurou orientação com um professor que lhe recomendou ver o cadá ver como um livro o que acabou ajudando Conta entretanto que gostava muito de ver filmes de terror se divertia com isso mas que desde então não con segue mais ter a mesma diversão de outrora Outros alunos neste momento do grupo passam a falar de questões pessoais como o que revela um sonho que ele não desejava a nenhum de seus colegas sonha va que era um cirurgião que operava um paciente seu pai médico por profissão e que este morre na cirurgia sem poder salválo Este aluno já havia fala do anteriormente sobre suas intenções de seguir a especialização do pai Lembra um filme que fala de fantasmas e de pessoas mortas Outro aluno diz que Psicossomaticaindd 53 Psicossomaticaindd 53 05012010 121203 05012010 121203 54 Mello Filho Burd e cols gostava deste tipo de filme como A Volta dos Mortos Vivos mas que agora depois das aulas de Anatomia deixou de ver Nesse momento o grupo atingiu uma descontração maior com muitas pessoas falando rin do e chegando a admitir que tinham medo de que abrindo uma cuba no anatômico os cadáveres pode riam virar fantasmas agarrandoos pelo pescoço As tensões finalmente ganhavam um escoadouro Entretanto cabe ressaltar que apesar da rique za do material desenvolvido pelo grupo não há in terpretação dele Os coordenadores funcionam mais no sentido de permitir a revelação dos sentimentos muitos recalcados dando aos alunos uma oportuni dade de perceber mais claramente o que acontece consigo próprios Isso tem facilitado não só a coesão dos alunos entre si como também e principalmente a elaboração de situações conflitivas no aprendizado da Medicina Permitese como no caso da revelação do sonho pelo aluno a colocação de situações mais pessoais íntimas procurando sempre criar condições propícias nesses momentos protegendo o aluno sem interpretar o material inconsciente pois isso fugiria de nossos objetivos Esse lugar o grupo de reflexão passa com esse processo a ter uma condição espe cial para o aluno onde este se sente reforçado para fazer depoimentos mais pessoais diminuindo ansie dades persecutórias Para isso é fundamental um clima de relação amistosa próxima cordial entre coordenadores e alunos Temos observado com isso que é possível dar aos alunos um encorajamento para aceitar e lidar com o emocional deixando que faça parte do seu processo de formação E dessa maneira acreditamos que possam permitir futuramente que o emocional e o imaginário de seus pacientes possam também ser aceitos No segundo ano iniciase um processo de de sidealização no que se refere a estar no curso médi co Um determinado grupo por exemplo começou a discutir e a trocar experiências sobre a época em que descobriram que Papai Noel não existia Vivenciam perdas no tocante à vida cultural e de lazer frente às exigências do curso médico estudos provas etc Questões sobre vocação identidade tratamse entre si de meninos e meninas são compatíveis com a ado lescência que ainda vivem Sentemse muitas vezes diminuídos diante de outros colegas mais graduados e de professores Um aluno com saudavel ironia trouxe para discussão o Poema em Linha Reta de Fernando Pessoa 1985 que contém versos do tipo Nunca conheci quem tivesse levado porrada Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo Toda a gente que eu conheço e que fala comigo Nunca teve um ato ridículo nunca sofreu um enxova lho Nunca foi senão príncipe todos eles príncipes na vida Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra No terceiro ano as questões voltamse mais para a identidade médica propriamente dita Que medico serei Quero ser médico Estas questões são reforçadas pelas observações que fazem nas enferma rias onde por vezes repudiam práticas observadas Nessa ocasião rejeitam a ideia de serem médicos por se identificarem mais com os pacientes e também por não possuírem ainda cultura médica consistente Pacientes não ouvidos excessivamente exami nados discussões à beira do leito pacientes sendo tratados pelos seus diagnósticos às vezes graves em voz alta etc tudo isso contribui para o desconforto sentido pelo estudante por uma identidade ainda não definida É muito comum que surja um sentimento de culpa por acreditam eles estarem usando os pacien tes para aprender sem nada dar em troca Sentemse como dizem sanguessugas Nesse particular quando o grupo de reflexão evolui satisfatoriamente eles percebem que têm muito a oferecer especialmente no tocante às rela ções humanas com carinho compreensão e respei to ajudando os pacientes no enfrentamento de suas patologias Alguns chegam inclusive a acompanhar pacientes graves em trabalhos dignos de qualquer profissional experiente Sob nossa supervisão fazem verdadeiras psicoterapias de crise como no trabalho de George M N Silva Júnior 1983 Em momentos iniciais dos grupos de reflexão podemos nos utilizar de técnicas didáticas específicas que servem para o esquentamento das discussões Destacamse grupostarefa nos quais se subdivi de a turma em grupos menores dandoselhes ques tões Após breve discussão reúnemse os subgrupos e atravês de relatores promovese a discussão geral dos temas desenvolvidos pelos respectivos grupos Utilizamos essa técnica principalmente no trabalho inicial com cada turma para com isso facilitar a emergência de temas A dramatização como técnica de ensino tem nos facilitado promover a discussão de situações práticas Temos feito dramatizações de exames físicos por ocasião de treinamento de Se miologia como por exemplo a palpação da cabeça e pescoço de um paciente que apresenta nódulos palpáveis ou da consulta de uma adolescente que vai acompanhada da mãe ao ginecologista desta so licitar receita de anticoncepcional São situações que mobilizam muito interesse e pela dramatização em si podese participar ao vivo dessas situações que permitem discussões muito enriquecedoras Psicossomaticaindd 54 Psicossomaticaindd 54 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 55 HISTÓRIA DA PESSOA Tema desenvolvido por Danilo Perestrello 1974 a História da Pessoa que foi posteriormen te sistematizada por Julio de Mello Filho e Abram Eksterman procura desenvolver a importância da co lheita de uma história que leve a uma compreensão global do ser humano e não restrita à doença apre sentada como a anamnese tradicionalmente utiliza da E uma história da pessoa e não da doença somen te Visa proporcionar ao estudante o conhecimento da pessoa com quem está lidando de sua curva de vida e permitir fazer correlações com o estar doente seja no presente ou no passado Ao mesmo tempo funcionará como treinamento para a abordagem psi cológica do paciente A colheita desses dados é tarefa que exige tato sensibilidade e respeito às peculiaridades de cada caso A habilidade virá com o acúmulo de experiência Mais importante do que cumprir um roteiro ou ter um grande número de informações é saber ouvir o paciente Durante a entrevista o estudante deverá observar as reações do paciente e as suas próprias Nenhum dado de registro com exceção do cronogra ma familiar deverá ser escrito na presença do pa ciente Outros aspectos da técnica de abordagem do pa ciente são desenvolvidos individualmente ou durante as aulas Este registro compõese de seis tópicos 1 Cronograma Familiar Dá uma ideia da posição do paciente dentro de sua família permitindo vá rias correlações Utilizase o modelo da Genética Médica que de forma simplificada reproduzimos aqui 2 Biografia resumida do doente Relato da vida do paciente como ele a vivenciou aproveitando suas próprias palavras 21 Aspectos que podem ser destacados condições de nascimento primeiros anos de vida relações com os pais e demais parentes durante a infância irmãos e relacionamentos com estes escolaridade e aproveitamento no am biente escolar jogos brinquedos e preferências aspira ções e interesses quanto à vida adulta desenvolvimento psicossexual adolescência casamento cônjuge filhos e relações fa miliares trabalho condições econômicas e relacio namento com o ambiente profissional climatério e condições de vida na velhi ce hábitos e crenças vida social traumas psíquicos e perdas de relevân cia 3 Circunstâncias de vida nas quais sobreveio a en fermidade atual Pesquisar também as circunstân cias de vida dentro das quais adoeceu anterior mente 4 Maneira como encara a enfermidade atual e fan tasias a respeito desta Reações às enfermidades passadas 5 Modificações adaptações eou desadaptações de vida decorrentes da enfermidade 6 Forma pela qual se relaciona com a equipe médica Investigar também as relações com os seus mé dicos no passado Não temos a preocupação ao treinar a colheita desta história de corrigir os alunos mas sim de fazer com que exercitem a tarefa de entrevistar uma pes soa de abordar questões conflitivas possibilitando até mesmo uma escuta mais apropriada Procuramos incentivar a troca de experiência entre os alunos para que eles possam expressarse da maneira mais livre e espontânea nos grupos de refle xão Temos priorizado a discussão de casos clínicos quer sejam de apresentação de anamneses colhidas por eles ou situações vividas na relação com os pa cientes Falamos do paciente do caso clínico e suas correlações da relação propriamente dita do tipo de personalidade do paciente seu modo de relacionar se etc deixando que o estudante fale só se assim o desejar de suas vivências de si próprio Verificamos que assinalar as ansiedades do estudante ou apontar Legenda em preto o destaque para o paciente Psicossomaticaindd 55 Psicossomaticaindd 55 05012010 121203 05012010 121203 56 Mello Filho Burd e cols as dificuldades apresentadas usualmente provoca an siedades persecutórias que não favorecem o entrosa mento grupal e principalmente o compartilhar expe riências O aluno de Medicina já vive muitas tensões com relação ao seu aprendizado Sentese ignorante inseguro e aprendiz e isso o coloca numa posição de defesa assustado com críticas de qualquer ordem E necessário respeitar esse momento para possibilitar um acolhimento destas ansiedades Com isso visamos possibilitar que o estudante va lorize seu potencial humano sua experiência pessoal como individuo Verificamos com frequência que os alunos sentemse culpados por usar seus pacientes no treino da Semiologia Médica com a repetição de anamneses e exames físicos sem dar nada em troca por sua inexperiência médica Entretanto deixam de lado as possibilidades várias de que dispõem para de senvolver um relacionamento humano que vai ao en contro das necessidades emocionais dos pacientes O nosso objetivo enquanto professores é tãosomente o de auxiliar a uma descoberta isto é proporcionar os meios através da coordenação destes grupos para que os alunos cheguem até a reflexão e daí introspecti vamente descubram e valorizem o fato de que o que buscam saber vindo de fora eles já trazem dentro de si como com acerto afirma ACS Escobar 1986 Entretanto a postura do coordenador não deve ser passiva esperando psicanaliticamente que o es tudante traga espontaneamente suas questões Temos observado melhores rendimentos nos grupos quando os coordenadores estimulam seus alunos a discutir casos clínicos A essa discussão os professores acres centam as experiências que tiveram enquanto alunos ou mesmo depois de formados e as situações difíceis por que passaram Paulatina e gradualmente poderão ser introduzidas condutas mais adequadas sempre com base nas situações apresentadas E na reunião de coordenação didática que os co ordenadores dos grupos de reflexão trocam experiên cias São discutidas as dificuldades encontradas com os diferentes grupos de alunos a condução dos semi nários teóricos os momentos críticos de cada grupo dando sempre atenção especial à maneira como se estabelece a relação dos coordenadores com seus res pectivos grupos As técnicas empregadas no funcionamento des tes grupos quer de reflexão quer de seminários teó ricos são no sentido de estimular a participação ativa dos membros possibilitando a expressão de cada um sempre numa linguagem acessível de maneira que a comunicação possa efetivamente ser conseguida da forma mais ampla possível A coordenação didática tem por finalidade não só observar o cumprimento do programa preestabelecido como também a evolução de cada grupo com seus coordenadores Temos observado que essas reuniões têm contribu ído para que coordenadores em dificuldades com seus respectivos grupos possam vir a superar fases críticas Essas fases representam em sua maioria expressões de grande resistência dos grupos em aceitar vivências emo cionais dos pacientes ou dos próprios alunos ou do ma terial teórico em si Por outro lado verificamos existi rem grupos que se identificam com uma Medicina mais organicista em que o aspecto emocional a dimensão psicodinâmica do paciente não é levado em conta Nes ses casos procuramos através da prática discussões de casos etc diluir polarizações Acreditamos que sem essas reuniões de coorde nação didática o curso sem dúvida não teria os re sultados que vêm apresentando até agora Essas fases são também discutidas pelo próprio grupo através do que chamamos avaliações grupais que são realizadas posteriormente ao final de cada semestre ou sempre que forem necessárias Essas avaliações feitas pelos alunos têm contribuído sobremaneira para o aprimo ramento do curso Ao final do curso são apresentados pelos alu nos trabalhos escritos de conclusão Essa etapa tem apresentado resultados surpreendentes além de se constituir em atividade estimulante tanto para pro fessores quanto para alunos Estes muitas vezes têm sua primeira oportunidade de redigir trabalhos científicos e de pesquisa Os temas são livres esco lhidos pelos alunos que se reúnem em grupos para seus trabalhos Assuntos dos mais variados têm sido escolhidos sendo temas de preferência A Sexualida de do Adolescente Medicina Alternativa Equipe de Saúde Identidade Médica e Escolha de Especialida de Estresse O Velho na Sociedade Relação Médico Paciente em Hospital de Ensino Relação Estudante Paciente Medicina Psicossomática Gravidez Parto e Puerpério A Figura Mítica do Médico A Criança com Medo de Médico O Paciente Crônico e muitos outros Vários destes trabalhos foram realizados a partir de pesquisas de campo com entrevistas ques tionários grupocontrole Temos tido a oportunida de de promover a publicação em revistas científicas de trabalhos selecionados tais como os de A Almei da e colaboradores 1988 AL DAnnunciacão e colaboradores 1990 KR Camargo Jr e colabora dores 1991 M Correa e colaboradores 1981 A Lewandowski e colaboradores A Lorga Jr e cola boradores 1982 C Motta e colaboradores 1986 e GMN Silva Jr e colaboradores 1983 Como forma de avaliação dos alunos além dos trabalhos escritos são realizadas provas com ques tões dissertativas Essas provas são posteriormente discutidas nos grupos numa revisão quando apro veitamos para esclarecer dúvidas e aprofundar os co nhecimentos Psicossomaticaindd 56 Psicossomaticaindd 56 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 57 CONSIDERAÇÕES FINAIS Pensamos neste capítulo transmitir as experiên cias que temos desenvolvido com o ensino de Psicolo gia Médica Deixamos propositalmente a concepção teórica ou melhor os fundamentos teóricos da Psico logia Médica sem o aprofundamento merecido pois pensamos priorizar aqui as dificuldades que temos en contrado na prática do ensino propriamente dito O relato de nossa experiência portanto se justifica como tentativa de procurar definir o lugar da Psicologia Mé dica na formação em Medicina tentando para isso incluíla no currículo médico Após 13 anos procuran do aprimorar a experiência neste campo percebemos que muito caminho há pela frente Conseguimos bons frutos entretanto muito há o que desenvolver Per cebemos que nossa participação efetiva na formação do estudante de Medicina necessita maior amplitude ou seja é preciso sistematizar nossa participação além do terceiro ano especialmente durante o internato em Medicina Aí é que o aluno tendo o seu paciente in crementando as vivências desta relação vai necessitar de um suporte para este desenvolvimento Como a prática médica se intensifica Acreditamos que nossa participação principalmente na discussão de casos clínicos seja fundamental para ajudar na consoli dação de uma identidade médica mais humana Entretanto temos observado resultados cons trutivos O trabalho realizado pelo Setor de Psicolo gia Médica nas enfermarias do HUPE junto à equipe e aos pacientes por exemplo tem sido cada vez mais bem recebido quando não solicitado explicitamen te Os pedidos de parecer ou interconsulta dirigidos à Psiquiatria ou à Psicologia Médica passam de for ma crescente a expressar esta demanda Não raro encontramos exalunos que nos relatam abordagens que exemplificam a compreensão mais global que adotaram dos pacientes a quem prestam assistência Outros referem que buscam aplicar nos setores onde atuam os conhecimentos assimilados Por outro lado temos ampliado o curso de ex tensão em nível de posgraduação possibilitando com isso prestar uma maior assistência às enferma rias e ambulatórios do HUPE Visamos uma maior integração com os professores de várias clínicas e consequentemente procuramos atingir também os alunos nos vários níveis de sua formação Muito ainda poderia ser acrescentado Especial mente no que diz respeito a uma desejada integração com outras disciplinas do ensino médico Cabenos entretanto finalizar deixando claro que nossos pla nos para o futuro se guiam por uma linha mestra a formação de médicos essencialmente voltados para a dimensão humana da Medicina Esperamos trabalhando o futuro REFERÊNCIAS Almeida A Alves A Barros A Nakajima M Salgado Jr W Medicina Alternativa Psicossomzitica OEDIP v3 n 1 1988 DAnnunciação A L Coelho A Mafra C Esteves G A Figura Mitica do Médico Analisada por Pacientes do HUPE Iniorm Psiq Rio de Janeiro v9 n1 2730 1990 Balint M O Médico seu Pacienre e a Doença Rio de JaneiroSão Paulo Livraria Atheneu 1975 Bleger J Temas de Psicologia Buenos Aires Edieiones Nueva Vision 1978 Camargo Jr K R Binenbojm C O Estudante de Medicina e o Pacientc Relato de um Caso Inform Psiq Rio de Janeiro v 10 n 2 p 5154 1991 Camargo Jr K R Chazan L F A Crise do Terceiro Ano e o Curso de Psicologia Médica Infonn Psiq Rio de Janeiro v 6 ri 34 p 9092 1987 Corrêa M Ramalho M Ahramovith P Marrocos R e Beck V O Paciente Terminal Inform Psiq Rio de Janeiro v 2 n 3 p 2934 1981 Eksterman A Formação Psicossomática em Ciéncias da Saúde o Ensino de Psicologia Médica Buenos Aires Congresso de Medici na Psicosomática en La Cuenca del Plata 1977 Escobar A C S Psicologia Médica instituição e Ensino Psicosso mática OEDIP v 1 ano 1 n 2 1986 Fahaer R Magaz A Temas de Psicología Médica Buenos Aires CTM 1986 Fernandez F A Psicologia MédiCayoCia1 Sevilla Paz Montal vo 1974 Jeammet P Reynaud M Consoli S Manual de Psicologia Mëdi ca São Paulo Durhan 1989 Lewandowski A BohringerB Bohringer P Silva D DAcri A Nóvoa C M Ulcera de Stress Visão Atual Psieossomatiea v 2 n 3 julser 1987 Lorga Jr A Limp C A Silveira G Camargo Jr K R O Paciente Crónico Infomt Psiq Rio de Janeiro v3 n 1 p 1114 1982 Mello Filho J Concepçáo Psicossomáticas Visao Atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1978 Mello Filho J Queiroz A Figlioulo R Psicossomatica Ensino e Prática Médica Jornal Brasileira de Medicina v 30 n 4 p 8892 abr 1976 Moita C Carvalho C Afonso D Silva E A Criança com Medo de Médico Inform Psiq Rio de Janeiro v 5 n 3 p7073 1986 MunizJ R Chazan L F Miodownik B1Jina Experiência com Grupos de Ensino de Psicologia Medica Inform Psiq Rio de Ja neiro v 2 n 1 p 1516 jariÍcv 1981 MunizJ R Integração da Psiquiatria numa Unidade Clinica de Ado lescentes Intbrm PSiq Rio de Janeiro v 4 n 4 p 7780 1983 Perestrc1loDA Medicina da Pessoa Rio de Janeiro Livraria Atheneu 1974 Pessoa F Poemas Rio de Janeiro Nova Fronteira 1985 Pikunas J Desenvolvtmento Humano São Paulo McGrawHill 1979 Roceo R P O Estudante de Medicina e o Paciente Rio de Janeiro Achiame 1979 Schneider P B Psicologia Aplicada a la Práelica Médica Buenos Aires Paidos 1974 Silva Jr G M N O Estudamc de Medictna C o Paciente Termtnal Inform PSíq Rio de Janeiro v 4 n 4 p 8589 1983 Zaidhaft S Morte e Formaçao Módica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 57 Psicossomaticaindd 57 05012010 121203 05012010 121203 Recebe o estudante da instituição de ensino re ferências da relação com o enfermo que irá ser sua constante na prática pósdiplomação Somos daqueles que valorizam que quanto mais precoce esse tipo de ensino seja administrado no cur rículo obrigatório ou em cursos eletivos melhores e mais aptos serão os diplomados em Medicina Para tanto interrogase existe disponibilidade temporal no currículo de graduação Quem deve en sinála quando e por quanto tempo Que valor terá esse aprendizado no âmbito das instituições universi tárias e nos trabalhos que o aluno executa em locais fora do controle da Escola Médica Como e quem deve avaliálo sob esse aspecto Perguntas desse tipo nem sempre ensejam res postas objetivas eou definitivas e o propósito da monografia é apontar aspectos do problema e sugerir possíveis soluções O PACIENTE Na realidade sócioeconômicocultural em que vivemos são muitos os doentes de que iremos cuidar com características próprias do grupo de que provêm seus conceitos e preconceitos em relação aos sistemas de saúde vigentes e em última instância aos médi cos e à equipe de saúde onde deverá estar inserido o estudante de Medicina Assim este assistirá e par ticipará dos eventos que se sucedem muitas vezes passivamente até que no decorrer do curso ganhe segurança e conhecimentos para vôo próprio O que costuma ocorrer no período do internato Aspectos sociais culturais e econômicos A relação entre o enfermo e a equipe de saúde que o trata especialmente a binária com o médi co deve levar em consideração aspectos outros que não apenas as personalidades envolvidas Portanto há que se destacar e conhecer a cultura e a sociedade em que vive o paciente No Brasil com seus conhe cidos regionalismos este pode ser ponto importante que influencia um bom ou mau relacionamento das partes interessadas Ao abordar aspectos gerais do doente consi dero as dificuldades e diferenças existentes entre o enfermo analfabeto inculto frequentemente sem di nheiro que irá recorrer aos ambulatórios e hospitais de caridade estaduais municipais e os que mantêm convênios com a previdência aí incluídos muitos dos universitários e o paciente rico culto que terá meios de usar consultórios e hospitais particulares Em nossos serviços nos hospitais de atendimento e ensino de modo geral nos defrontamos com doentes do primeiro tipo e é desses que irei me ocupar mais detalhadamente Assinalo que a grande maioria das publicações estrangeiras que tratam da relação médi copaciente o faz à base de vivências com doentes de melhor nível culturaleconômico tendo assim pouco a ver com a nossa realidade Março de 1988 Quase ao mesmo tempo que os alunos do 6 período chega J ao hospital Trazido de Manhumirim Minas Gerais por primo que mora no Rio é um rapaz de 17 anos lavrador e que nas últimas semanas mal pode fazer os trabalhos de en xada a que estava habituado cansaço e taquicardia o dificultam É retraído não olha o interlocutor faz longos silêncios para depois responder por monossí labos Acentuada anemia ao exame físico é o único achado importante Por sorteio será seu quartanista R nascido em Copacabana com excelentes notas de aproveitamento no 3o ano que pouco consegue no relacionamento No terceiro dia faço a troca coloco M lotado na mesma enfermaria aluno não tão bri lhante oriundo de Manhuaçu cidade vizinha da de J e que se mostrava interessado nele O rapport é instantâneo a começar pelo sota que Em dois dias J já fala espontaneamente ri co labora com a equipe e em dez dias obtém alta após transfusão de sangue e tratamento da necatorose M nos diz o que fez recordou sua cidade as pescarias a lavoura do milho o bom tratamento que o hospital 4 RELAÇÃO ESTUDANTE DE MEDICINAPACIENTE Rodolpho Paulo Rocco Psicossomaticaindd 58 Psicossomaticaindd 58 05012010 121203 05012010 121203 Psicossomática hoje 59 proporcionava conversando muito enquanto fazia a evolução diária O intuído mostrouse verdadeiro e a lição é cla ra o paciente identificouse com aquele próximo de suas raízes culturais e valores de vida que o tranquili zou e com quem pôde colaborar na própria melhoria Lembro aquilo que é tantas vezes esquecido o enfer mo fora do seu ambiente social e cultural desenrai zado tornase com frequência melancólico deprimi do desconfiado e algumas vezes hostil à abordagem médica especialmente se esta vem acompanhada de instrumental agressivo Para muitos a internação é ameaçadora pois aprenderam que só se hospitalizam casos graves ou fatais Quantos perdem tempo precioso sem procu rar assistência mais efetiva mantidos por terapêu ticas duvidosas receitadas por vizinhos curiosos empregados de farmácia Acrescento os medica mentos difundidos pela propaganda leiga de pou co ou nenhum valor lamentável e mercantilistica mente anunciados por figuras de sucesso por vezes retardam o diagnóstico de doenças graves Lembro outros exemplos e todos nós recordamos vários famílias oriundas do Mediterrâneo em que o comer bem e o estar à mesa é o momento por tradição importante do dia e nas quais o controle do diabete será difícil o hábito de induzir jovens a beber pinga tão difundido no interior como prova de virilidade as muitas proibições de alimentos que fazem mal ao fígado etc O entendimento pelo paciente de que o médico não é mais a figura mítica idealizada e supervalori zada de outros tempos as reivindicações da catego ria médica equiparandose aos outros assalariados a contestação frequente dos atos médicos e da própria Medicina como promotores maiores da saúde vêm produzindo profundas variações no relacionamento médicopaciente O que era uma relação entre o que sabe o que manda o que tem poder e aquele que necessita não sabe oprimido dirigido e obediente evoluiu para um nivelamento mais aberto e adequa do Nas relações diretas pessoais o médico deve discutir com o doente o porquê das condutas a se rem seguidas sejam exames complementares ou te rapêutica comprometendoo com o atendimento e eventualmente reformulando orientações de comum acordo O progressivo conhecimento pelo enfermo de seus direitos em relação à obtenção ou manuten ção da saúde enseja manifestações mais agressivas e contestadoras do interessado produzindo com frequência respostas de igual teor do médico es pecificamente daqueles ainda encastelados no saber e na onipotência isolados do contexto social que os rodeia Estar doente A falta ou perturbação da saúde é sentida e so frida de maneira pessoal variável de acordo com as vivências próprias anteriores de enfermidades na família ou no grupo de relações As experiências in dividuais do adoecer colocam em jogo mecanismos inconscientes de adaptação e defesa de regressão negação e racionalização principalmente Regressão O sentimento de estar doente pode pro vocála em muitas pessoas e é termo psicanalítico usado para descrever uma volta a etapas iniciais do desenvolvimento emocional O doente volta a com portarse como criança que foi isto é ele também fica numa posição frágil dependente abrindo mão de dirigir sua vida e de se bastar em atividades corri queiras Esta dependência é proporcional à gravidade da doen ça e às fantasias que o paciente faz sobre a mesma condizentes ou não com a realidade Assim o doente que tem de guardar o leito precisa de ou tra pessoa até para suas necessidades mais básicas fisiológicas alimentares de locomoção Seu conta to com o mundo é feito através das pessoas a que é ligado e que se disponham a trazer o lá fora para ele A presença do médico é aguardada com a mesma expectativa com que em outras épocas aguardava a presença da mãe que lhe trazia conforto Da mesma forma que a criança tentava adivi nhar o que havia por trás das palavras da mãe pro curando descobrir no tom de voz no olhar ou num gesto o que se passava e se poderia ficar tranquila ou não o doente hoje procura saber o que o médico está pensando se está lhe escondendo algo se ele pode ficar sereno ou não Porque regredido necessita o paciente de mais cuidado emocional pois só atendido nestas fragilida des psiquicas é que terá condições de seguir o trata mento adequado a sua afecção física Portanto se tentarmos tratar da doença ig norando o doente veremos que os resultados não serão satisfatórios Ao aprofundarmos o porquê da terapêutica não fazer efeito verificamos que ela não foi observada e o remédio não foi tomado conforme indicação mas segundo uma amiga que teve a mes ma coisa e se curou determinadas prescrições não foram seguidas porque não se pensou que fossem importantes Isso significa que na medida em que o doente não for compreendido pelo seu médico não se juntará a ele no processo de cura Esta aliança se fará com a pessoa que der apoio às sensações de desamparo e insegurança que a regressão desenca deou e a partir daí poderá seguir integralmente as prescrições Psicossomaticaindd 59 Psicossomaticaindd 59 05012010 121204 05012010 121204 60 Mello Filho Burd e cols Negação É um conceito psicanalítico desenvolvido por Anna Freud que o definiu como um mecanisno de defesa de que o inconsciente lança mão para se defender de sentimentos dolorosos A negação seria assim a substituição de algum aspecto insuportável da realidade por uma ilusão desejada Como o negar a realidade vai de encontro a uma função precípua da consciência que é a de reconhecêla e valorála criticamente para que se faça a negação é necessária a ocorrência de algo um sintoma um trauma que ameace a percepção do real Lembrome da mãe de um paciente de 14 anos que sofreu sério acidente de motocicleta do qual veio a falecer e que junto ao filho não só via o estado gravíssimo em que ele se encontrava como era man tida a par pelos médioos dos resultados de todos os exames que eram feitos Quando a avó do menino telefonou alarmada para saber o que havia aconteci do ela transmitiu todas as informações corretas e a pressão está zero para em seguida acalmála mas não se preocupe pois está tudo indo bem Sob o choque ela perdeu a capacidade de valo rar criticamente a realidade e usou a negação pres são zero assim como todas as outras evidências do caso não era coisa alguma a ilusão desejada era que tudo estivesse bem pois assim o filho se salvaria A negação é um dos mecanismos de defesa mais arcaicos pois ao escotomizar a percepção da reali dade no nosso caso a doença impede qualquer tentativa de alterála Isso frequentemente provoca reações hostis do médico ou estudante de Medicina quando desconhecem o mecanismo inconsciente que rege tais atitudes Racionalização Segundo Laplanche e Pontalis 1970 é o processo pelo qual o indivíduo procura uma explicação coerente do ponto de vista lógico para uma ação ou ideia de cujos verdadeiros motivos não se apercebe por retirar o afeto da situação É um serviço de censura que a pessoa exerce sobre si mes ma frente a situações difíceis Embora não permita que o paciente perceba de forma adequada sua doen ça ainda é um mecanismo que permite a ele cum prir as prescrições feitas pelo médico sendo por isso menos prejudicial que a negação Como as emoções desagradáveis referentes à doença não são admiti das elas não têm condições de ser elaboradas o que muitas vezes faz com que surjam fenômenos substi tutivos como insônia diarreia ou outros quaisquer sintomas psicossomáticos Exemplifico com o caso de um cliente que teve por um desastre automobilístico amputada a perna direita e que dizia às visitas uma semana após Mas que sorte Imagine se fosse meu irmão que é atleta Blum 1964 destaca outra frequente reação frente à enfermidade o medo Medo que a doença impeça projetos e desejos medo da dor ou do mal estar medo do desconhecido evolução da doença do resultado do tratamento e finalmente o medo maior da morte A índole da afecção temperamento experiência e cultura do enfermo orientarão para tal ou qual medo que predominantemente irá sentir O adoecer do médico é todo um problema à par te pelas informações que este tipo especial de doente possui e pelas próprias complexidades do ser médi co A este respeito Hoirisch 1976 na sua tese sobre Identidade Médica escreve Na crise de identidade do médico enfermo agigantase muitas vezes no con teúdo manifesto não o temor de perder a vida mas sim o medo de não voltar a ser médico Perguntase pode o médico doente tratar de outros Direitos e ganhos O papel de doente como vários outros na so ciedade é regulado e codificado por determinadas expectativas de conduta e comportamento que in cluem obrigações e privilégios Depois da abordagem de Parsons 1968 da modema prática médica muito pouco pôde ser acrescentado ao que ele então expôs sobre o papel social do enfermo É destacada em pri meiro lugar a inserção das responsabilidades e obri gações sociais O enfermo não pode tomar conta de si regressando ao estado de dependente da sua pró pria família ou da grande família social e a socieda de passa a ser mãe através das entidades estatais de previdência ou de seguros O estar doente é um direi to do enfermo e reconhecido como obrigação social desde que legitimado e atestado pelo médico que se constitui então numa verdadeira corte de apelação Na prática essa inserção se comprova por exemplo pelo não poder trabalhar ou não fazer o serviço mi litar Em segundo lugar não se espera que a pessoa fique boa por magia ou apenas por desejo próprio pois na maior parte das vezes não é responsável pela doença Nesse sentido ela é também isenta de res ponsabilidade está numa condição em que tem de ser amparada e tem direito a ajuda da família ou do estado A dependência evoca as recordações infantis que todos tivemos quando doentes cuidado especial da mãe em detrimento dos irmãos saudáveis comida na cama pratos especiais brinquedos novos Há tra ços comuns de personalidade dos enfermos regredi dos que se exagerados incomodam e até afastam os responsáveis pela terapêutica sejam familiares ou os membros da equipe de saúde destacandose egocen trismo interesses restritos dependência emocional e Psicossomaticaindd 60 Psicossomaticaindd 60 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 61 hipocondria E claro que se é percebida a não colabo ração do doente no tratamento se a vontade de ficar enfermo é maior do que a de curar as atenções e os privilégios diminuirão A mobilização daqueles que os atendem pro porcionandolhes carinho atenção e cuidados que habitualmente seriam apenas normais ou não exis tiriam dá aos enfermos compensações pelo sofrer primário da afecção Esse ganho secundário é eviden ciado a todo momento a cama da mãe o presente a enfermeiramãe as visitas as revistas e os livros a comida especial o remédio nas horas certas Nos hos pitais é frequente a recusa da alta por conta desses benefícios que cessarão com o retorno ao barraco ou às condições ruins externas Se não conscientizada e trabalhada pela equipe de saúde e pelo paciente essa recusa leva ao hospitalismo isto é à permanên cia indevida e desnecessária em termos de recupera ção de Saúde Entre nós destaco os aspectos sociais acrescidos aos emocionais é a criança ou adulto que não tem condições adequadas para comer vestir e ob ter remédios fora do hospital Deveres e perdas Esperase do doente que deseje a cura e a procu re Existe uma série de leis que protegem o enfermo assegurandolhe o direito de se cuidar asseguramen to este proporcionado tanto através do tempo licen ça no trabalho quanto de dinheiro seguros e subsí dios E a parte que cabe à sociedade fazer para que um de seus membros possa se curar A outra parte só pode ser feita pelo paciente e é evidenciada através do seu empenho em se tratar Procurar o atendimento cumprir as prescrições feitas cooperar com o médico são deveres do paciente E quando este não o faz desencadeia conflitos em várias áreas por exemplo arriscandose a perder o emprego e ao surgimento de problemas matrimoniais e familiares Algumas vezes o médico defrontase com os si muladores que usam a doença para auferir lucros tanto de carinho e proteção quanto de seguros e licen ças O que se pode fazer para ajudálos Inicialmente entender que é uma atitude doentia a pessoa se des valorizar e viver como inválido abrindo mão de toda uma série de riquezas e benefícios que a saúde propor ciona Vale então mostrar a inexistência de qualquer doença física naquele momento utilizandose da ob servação clínica arguta e dos exames complementares bem solicitados Confirmada a não afecção física cabe ao médico fazêlo entender que está usando a doença como expressão de outra carência e eventualmente encaminhálo ao psicólogo ou ao psiquiatra A neurose é uma enfermidade que adquire lu gar peculiar o neurótico era tido como responsável pela própria doença e não podia reivindicar o mesmo status de doente que tinham outros enfermos Após o desenvolvimento da psicanálise o enfoque dos neuróticos mudou A maior compreensão do incons ciente principalmente a partir das contribuições da escola kleiniana demonstrou que o ser humano não e um bloco monolítico mas tem dentro de si vários aspectos divididos e conflitantes que podem tornar se responsáveis pelo fato de o paciente não cooperar como forma de boicote a si próprio ou a alguma re lação sua Conforme o médico se torna aliado de sua parte psiquicamente saudável está feita a aliança que levará a termo a luta pela cura Se o paciente é doente mental e o psicótico é o exemplo certamente está impossibilitado de as sumir a obrigação de se curar ou procurar auxílio A sociedade se compromete a cuidálo e o faz na maioria das vezes internandoo e segregandoo do seu convívio social tomando medidas médicosociais sem consultálo as mais das vezes com apoio da família que não tem como manter exemplificando o filho esquizofrênico em casa Goffman 1951 considera cinco tipos diferentes do que chamou de instituições totais Englobou sob este título prisões internatos campos de concentra ção quartéis e certos tipos de hospitais Segundo ele são instituições que dificultam a comunicação entre seus membros e a destes com o exterior desculturam e desindividualizam os internados tratandoos como siglas ou números atingem o sentimento de privaci dade dos indivíduos ao obrigálos a executarem tare fas íntimas em regime de coletividade Dentre essas projetadas para amparar as pessoas incapazes e que representam ameaças para a sociedade estão os hos pitais psiquiátricos além dos sanatórios para tuber culose e os leprosários A perda da identidade é sentida pelos doentes quando são hospitalizados pois ao entrarem trazem consigo crenças valores atitudes relações sociais roupas Para facilitar o manejo dos enfermos e até diminuir as diferenças para poder tratálos maciça mente certas instituições privam seus pacientes das representações de si mesmos Recebem uniformes leitos e quartos numerados passando a ser um doen te entre muitos O controle inclui além dos recursos a própria mentalidade Certas organizações impedem os pacientes de usarem o telefone e outros meios de comunicação e também informarse sobre o hospital e particularmente sobre seu próprio estado esta é uma das fontes de queixa mais importante num hos pital geral O confinamento a um determinado setor do qual o paciente não pode sair sem autorização Psicossomaticaindd 61 Psicossomaticaindd 61 05012010 121204 05012010 121204 62 Mello Filho Burd e cols se por um lado permite saber onde ele se encontra por outro tende a isolálo e o impede de estabelecer relações sociais É típico o exemplo das enfermarias e quartos dos hospitais psiquiátricos O hospital não inicia o processo de despersonalização consequência as mais das vezes da própria vida impessoal das gran des cidades mas decerto pode colaborar em muito para intensificálo O ESTUDANTE Adolescência É o período de transição entre os polos da infân cia e da idade adulta apresentando como caracterís tica bem definida o aparecimento de uma nova forma biológica e psicossocial Do lado biológico o homem tornase reprodutor e de outro lado há uma reorga nização de sua personalidade assim como uma exi gência de atuação por parte da sociedade Esta lhe exigirá a observância de papéis isto é de pensar e agir de determinada maneira e o que é a crise da adolescência provoca uma crise na família Riviere diz que há um processo dialético entre o grupo fami liar cuja tarefa é socializar o adolescente e o próprio que tenta se colocar e reivindicar de acordo com suas novas exigências Deutsch 1974 mostra que a estrutura social atual dilatou o período de adolescência pois na me dida que se estendem as metas educacionais e que a sociedade não só permite mas também estimula que os jovens adiem para uma idade posterior a toma da de responsabilidades adultas a adolescência vai até os 20 anos Hoirisch 1976 aumenta esse limite achando que pode ir até os 25 anos Aberastury e Knobel 1971 sintetizam as carac terísticas do adolescente no que chamam de síndro me normal da adolescência 1 Busca de si mesmo e de sua identidade 2 Tendência a formar grupos que permitem diluir as responsabilidades de suas ações e até mesmo podem levar a atuações de aparência psicopática porem normais para esta etapa do desenvolvi mento 3 Necessidade de intelectualizar e fantasiar que aparece na preocupação do adolescente por prin cípios éticos filosóficos e sociais 4 Crise religiosa oscilando do ateísmo ao misticis mo 5 Crise na estruturação da noção do tempo vivido ora de modo infantil o aluno que se sente repro vado no primeiro dia de aula porque não vai ter tempo de estudar todo o programa ora de for ma mais adulta permitindo formular no presente projetos para o futuro 6 Evolução da sexualidade desde o autoerotismo à aquisição de uma vida genital adulta 7 Atitude social reivindicatória com tendência a as sumir atitudes antissociais diretamente relacio nada com o modo como é recebido pelo mundo adulto 8 Instabilidade de conduta variando do hostil ao amoroso 9 Necessidade de separarse progressivamente dos pais ou de seus substitutos 10 Variações constantes do humor irritabilidade depressão euforia A compreensão da adolescência possibilita pois um melhor entendimento do estudante de Medicina que na sua maioria é constituído de jovens dessa fai xa etária A dinâmica da relação e a elaboração dos con flitos inerentes a essa fase podem depender de três fatores 1 Posição do adulto frente aos questionamentos do adolescente 2 intensidade com que o adolescente precisa exerci tar suas ideias 3 Enfoque que o grupo social dá aos conflitos A posição dos adultos frente aos questionamen tos propostos pelo adolescente vai depender não só de como incorporou estereótipos sociais mas tam bém de como estão elaboradas suas ansiedades in conscientes É muito comum o adolescente despertar inveja no adulto por ser o que tem a vida pela frente e por ser seu competidor aquele que pode vir a to mar o seu lugar É importante que o professor saiba que pode ter inveja do estudante quando negada pode dar lugar a opressão sobre o aluno Estas fan tasias inconscientes estão ligadas a fases bem ante riores do desenvolvimento da espécie Experiências com macacos no cativeiro mostram que numa típica família de monos o pai mata o filho quando chega a adolescência Expectativas e ansiedades Muitas vezes o estudante de Medicina inicia o curso sem a noção exata da escolha que fez Esta pode corresponder a uma idealização feita por ele ou pela família perpetuar a tradição médica quando com parentes médicos vocação para fazer o bem e servir ao próximo e à comunidade sensibilidade es pecial para o sofrimento alheio Além disso há todo Psicossomaticaindd 62 Psicossomaticaindd 62 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 63 um prestígio que o status de médico ainda confere a magia e o poder de curar um domínio sobre as pes soas A compreensão de que estas razões não esgota vam as causas que justificassem a escolha da Medicina levou professores a se questionarem mais profunda mente Turrel enfatiza as motivações inconscientes Identificação maior ou menor com os pais e que o leva a preservar e continuar seus valores Desejo de expiar impulsos agressivos em que o exercício da Medicina o curar representa uma repa ração da agressividade sendo então uma elaboração positiva dos conflitos infantis inconscientes Curiosidade inconsciente por conhecer o corpo da mãe A criança possui normalmente esta curiosidade o corpo da mãe e algo mágico do qual sai nova vida Este interesse pode ter sido sentido pela crian ça como proibido e portanto reprimido A Medicina pode ser uma forma de resolvêlo sem o sentimento de fazer algo errado condenado Negação da morte O ser médico corresponderia a uma fantasia mágica de deter a morte Por mais que racionalmente ele saiba que vai morrer como toda a espécie há uma fantasia inconsciente de que ele poderá controlar a saúde e curar todos os males de modo onipotente Sobre a escolha da Medicina Blaya 1972 assi nala é antes de tudo uma curiosidade e um desejo consciente ou inconsciente de saber mais e cuidar melhor daquilo que sentimos como doente em nós mesmos Turrel destaca as grandes contradições com que se depara o estudante de Medicina geralmen te emergente das classes média e alta onde os pa drões éticos são muito valorizados Foramlhe sempre transmitidas inibições e cautelas referentes a sexo e se lhe exige que supere essas proibições para estudar a estrutura anatômica e as funções fisiológicas tem que examinar excrementos que sempre foram vistos com repugnância dissecar cadáveres ele que foi bem educado no respeito aos mortos inspecionar todos os orifícios do corpo humano e examinar o mais ín timo de homens e mulheres dominando sua reação pessoal assistir à morte de um paciente e continuar seu trabalho sem que sua emoção o perturbe O tra balho diário do médico constitui uma transgressão às proibições comuns e isso é exigido do estudante de Medicina implicitamente sem preparo No primeiro ano o estudante começa sua distor cida visão do doente sendo apresentado ao cadáver Diz Mello Filho 1978 oferecemlhe o cadáver como se dissessem estude este corpo sem alma este é seu material de trabalho Pura e simplesmente lhe é en tregue uma parte formalizada para dissecar e apren der e é grotesca a disputa do cadáver recémvindo pelas peças ainda não trabalhadas pela atenção do monitor sobrecarregado A seguir ele se penaliza ou não do pobre animal de experiência esquartejado Ao mesmo tempo o quadronegro cheio de fórmu las lhe mostra como é o funcionamento enzimático do corpo Frequenta laboratórios e entra em contato com máquinas e instrumentos sofisticadíssimos sem a presença do animanobile a ser examinado Logo ele aprende como atuam os remédios e decora suas do ses Tudo isso reforça sua visão da Medicina apenas organicista um preparo para ver doença e não doen tes E de repente lá está ele de branco respeitoso ouvindo a teorização da anamnese e do exame físico daquele que será seu companheiro permanente na relação binária profissional Ate então não lhe foi en sinada coisa alguma sobre a psicologia o sentir o ser da pessoa doente Em algumas faculdades já então tardiamente serão ministrados ensinamentos teóri cos da relação já iniciada Em outras nem isso O absurdo é evidenciado a partir daí São as vocações que se esboroam na realidade pois o es tudante não aguenta o sofrimento do enfermo ou a própria escolha de lidar e aí ele pode começar a entender o que seja morbidez com a dor a penúria a morte restandolhe desistir do curso ou optar pelo distanciamento do enfermo indo para a pesquisa ou laboratório São as reações defensivas da situa ção que o rodeia não participando dos trabalhos da enfermaria não identificando os fatores sociais da doença desqualificando professores para justificar a ausência Mas a maioria prossegue e frequentemente usa para apoio nessa fase de transmissão as atitudes ge rais do professor eu me adaptei vocês têm que se adaptar também É comum o uso de modelos médicos constituí dos pelos docentes Suas atitudes e comportamentos frente ao doente sua segurança e bondade identifi cados e aceitos como adequados são imitados Começa a se tornar real o que haviam intuído ou aprendido nas aulas de Psicologia a pessoa do doente é diferente do caso do doente Aquilo que os grandes clínicos do passado tinham como dom a per cepção integral somatopsíquica do enfermo é agora possível de ser transmitido despertando e aprimo rando os estudantes na relação com o paciente Terão também apoio no intemo ou residente ir mão mais velho de idade próxima à sua que recém sofreu e ainda está elaborando os mesmos problemas Este companheirismo é muito adequado para o bom trabalho das equipes de leito e nos ambulatórios É comum entre nós a especialização precoce sendo frequente alunos de 2o e 3o ano darem plan tões nas maternidades ou atenderem em ambulató rios com mínima supervisão com os óbvios riscos Psicossomaticaindd 63 Psicossomaticaindd 63 05012010 121204 05012010 121204 64 Mello Filho Burd e cols para os doentes e para sua formação Muitas vezes a escolha da especialidade baseiase na identificação com os pais professores ou profissionais de renome predominando assim o aspecto afetivo Relação com os professores O estudante chega à faculdade após exame de seleção aleatória e quase nada sabe sobre suas mo tivações conscientes e muito menos dos aspectos in conscientes envolvidos na escolha profissional Traz os vícios e conceitos do ensino formal do ensino mé dio e espera encontrar a mesma maneira de ensinar que lhe foi proporcionada até então Terá poucas surpresas Exceto em algumas facul dades que procuraram modificações curriculares mais radicais e consentâneas com o moderno ensino e a de Brasília foi o exemplo as demais limitamse a qua se só transmitir os progressos teóricoinstrumentais da profissão voltadas ainda para a prática liberal em extinção através de docentes que se tornam meros repetidores da experiência alheia lida e ouvida em livros revistas e estágios no exterior Como as pesqui sas nacionais originais e voltadas para os interesses da saúde do país são poucas e mal dotadas mesmo este estudo teórico feito tendo por base uma realida de que não a nossa O ensino continua em muitas das faculdades bancário isto é alunos sentados nos bancos ouvin tes atentos copiando as aulas em detrimento do ou tro problemático questionador em que educador e educando aprendem juntos trocando vivências pro blemas e experiências dialogando sem dominação de uma parte sobre a outra Isso requer sem dúvida que haja plena liberdade de expressão para pesqui sar criar construir aventurarse sem opressão e sem medo um dos ideais universitários Mas lá estão eles frente a frente Os estudantes inseguros e algo assustados pelas experiências e sen timentos novos que experimentam a todo momento E os professores novos ou velhos inquietos ou passi vos cansados ou dispostos e que têm entre si pontos comuns São abnegados e mal remunerados quase sempre não sabem ainda reivindicar quase sempre são modelos para os alunos sempre De modo ge ral não têm formação didática não aprenderam para exercer a função Dão aulas teóricas e práticas por imitação de modelos antigos que os impressionaram anteriormente Podem ser modelos bons ou maus Como adolescente que muitas vezes é o estu dante considera como bom aquele que lhe seja mais próximo por quem não se sinta ameaçado Este será o eleito para uma identificação sem ser necessaria mente o bom como médico Da mesma forma que um bom profissional que não estabelece relação sa tisfatória com os alunos pode ser rechaçado e com esta rejeição vão de roldão todas as suas demais qua lidades A contestação estará intimamente ligada à relação estabelecida com o professor e será menor quando houver melhor relação O monitor o residente o auxiliar de ensino possuem um papel muito importante Eles poderão servir como degrau intermediário entre o professor mais graduado e o estudante Sendo mais próximos de idade e de interesses poderão atuar como irmão mais velho aquele que por vivência pessoal mostra como funcionam os ensinamentos do pai Assim o estudante se permitirá mostrar suas dúvidas e fracas sos com menos temor e também aceitará com mais tranquilidade as críticas Docente bom será o que além da postura da correção e elegância no falar do conteúdo das aulas favorecer o contato com os alunos com a motivação humana da profissão o encarar prático da realidade social responsável tantas vezes pela doença ali expos ta o que dá uma visão mais completa do problema e que vem ao encontro da preocupação éticosocial que é tão marcada no estudante Docente mau é o que não se dá emocionalmen te ao enfermo e ao grupo de estudantes procurando manterse dominador sobre a equipe de saúde de fendendose com a onisciência que pretende ter O bom professor não nega as dificuldades emo cionais que sentiu naquelas fases diversas do curso de formação e identificase assim facilmente com o aluno A resposta é sempre gratificante e reconhecida no interesse assiduidade motivação e atenção dos estudantes Experiências várias mostram que a relação de professores e estudantes e da própria equipe de saú de entre si melhora quando compartilham de recrea ções culturais sociais e esportivas das quais às vezes também participam pacientes Há que se valorizar o lúdico RELAÇÃO ESTUDANTEPACIENTE O aluno que segue exclusivamente o currículo da maioria das faculdades só no 3o ano ou 5o6o pe ríodos terá contatos com doentes Doença aquilo que ele se prepara para curar terá significado diverso de acordo com vivências pessoais anteriores mais ou menos ameaçadoras que ocorre ram nele mesmo doenças eruptivas apendicite amig dalectomia hepatite ou em familiares infarto do pai colecistectomia da mãe pneumonia do irmão ou pri mo Para os poucos que vieram de classe social menos Psicossomaticaindd 64 Psicossomaticaindd 64 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 65 favorecida acrescento irmão morto por desidratação mãe tuberculosa pai com doença de Chagas Alguns no primeiro ou segundo ano na precoce vontade de usar a persona do doutor já examinaram e acompanharam enfermos nas maternidades e hos pitais da periferia e chegam com visões parciais em bora tiradas da realidade do que é a atenção médica aos pobres e carentes de tudo Não é a melhor orien tação porém serão esses mais desenvoltos nas anam neses iniciais que terão menores receios dos doentes e do ambiente hospitalar do que os colegas que cum priram apenas o currículo Isso reforça a suposição de muitos de que o estudante deva já no primeiro ano se incorporar ao hospital onde receberá aulas e parti cipará de visitas sob orientação e supervisão especiais de docentes da área da psicologia médica Frequentemente o terceiranista se questiona que devo exigir de mim Que exigirá de mim o instru tor E o doente Perguntas que mostram a ansiedade e a angústia pelas etapas seguintes da sua formação Roberto Figliuolo 1980 no Hospital Escola São Francisco de Assis da UFRJ fez em 1976 uma experiência com seu grupo de alunos do terceiro ano No primeiro dia de aula pediulhes apenas que fossem conversar com os pacientes com os quais futuramente fariam anamneses Conversa em aberto social diri gida à pessoa sem indagar dados de anamnese nem tinham preparo para isso Aluna L Seu enfermo homem de 60 anos fora internado por grave psoríase generalizada que não respondia aos tratamentos habituais Aspecto exter no desagradável o próprio médico responsável tinha asco de chegar ao leito L sentouse ao lado e puxou conversa o que repetiu até a alta três semanas de pois mal sabendo o que era doença porém conver sando sempre Depois fez anamnese e exame físico sem maiores dificuldades O doente melhorando foi suspenso o corticoide e obteve alta com mínimas le sões Nos poucos dias em que L não compareceu à enfermaria ao encontro ele ficou ansioso e frustra do Não houve preparação para se desligar de L a quem chamava de netinha Retornou em quinze dias piorado com lesões sangrantes apesar de voltar a usar altas doses de corticoides Aluno F Coubelhe um adolescente asmático rebelde querelante viscoso que não estudava mais e brigava constantemente com um sobrinho de cinco anos quando ia para casa Asma quase permanente não respondendo a corticoides e imunossupressores F ouvia e pedia que falasse sobre suas coisas empi nar pipa bola de gude problemas em casa O doente era acompanhado pelo Setor de Psicossomática que encarregou F de sob supervisão prosseguir Modifi couse substancialmente a evolução houve readapta ção doméstica o jovem é agora auxiliar de cozinheiro e voltou a estudar Poucas crises de asma controlada por broncodilatadores não necessitou mais da asma para estabelecer vínculos com os outros O estudante de regra não é preparado para a relação humana que vai estabelecer com o desconhe cido e as explicações que ouviu do instrutor ou que leu sobre técnicas de abordagem de enfermos não bastam para superar as ansiedades do momento Se é retraído introvertido ou inseguro a sensação é pior pois se compara com os outros colegas mais desen voltos e para ele mais aptos Por vezes vê no doente o teste que irá reprovalo tal a ignorância que julga ter Outras vezes se sente invadindo a intimidade do paciente quando este lhe conta aspectos mais reser vados da sua vida É destacada por muitos alunos a falta de priva cidade das enfermarias mesmo as de poucos leitos o que para eles torna difícil ou impossível perguntar e esclarecer tópicos julgados mais delicados da ana mnese como por exemplo hábitos sexuais Sentem se também vigiados pelos outros colegas ou médicos ali presentes e não querem arriscar expor seu pouco conhecimento Alguns até sugerem que as entrevis tas deveriam ser em pequenos consultórios anexos às enfermarias As ansiedades desse período levam os alunos a sentir sintomas ou a apresentar sinais semelhantes aos dos doentes Assim a adenomegalia da infecção da faringe passa a ser a doença de Hodgkin ou a leu cemia temidas o desconforto pósprandial é o câncer gástrico do leito A isso Eksterman denominou hi pocondria transitória do terceiranista A sedução na relação estudantepaciente é tal vez mais frequente que na relação médicopaciente e uma das explicações seria o comportamento niti damente adolescente de alguns alunos que seduzem para agradar ou conquistar o afeto e confiança dos enfermos A sedução pode ser ostensiva apesar de inconsciente Por exemplo a aluna M irrompeu em prantos na sala onde estava seu instrutor Fazia uma sondagem gástrica no seu doente quando ele acari ciou sua coxa Os presentes olharam para a minissaia e nada disseram Ou o da outra aluna morena capi tosa extrovertida que chamava os doentes de meu querido e que após ser solicitada por três dias a palpar os gânglios inguinais do paciente percebeu seu pênis ereto Todavia a sedução é também dos enfermos que presenteiam os estudantes para comprar afeto ou daqueles que querem ou precisam permanecer inter nados e que se especializam em bem contar a história e facilitar o exame físico A relação do estudante e da equipe médica com o enfermo pode ser dificultada por sua segregação pois em determinados lugares há pletora de auxilia Psicossomaticaindd 65 Psicossomaticaindd 65 05012010 121204 05012010 121204 66 Mello Filho Burd e cols res residentes internos outros alunos que con fundem papéis atribuições e obrigações dificultando ao doente conhecer e se ligar a um deles É notório que por estarem no final do aprendizado residentes e internos tudo querem fazer dando poucas oportu nidades aos mais novos O clima da enfermaria é relevante para o bom relacionamento Enfermos mal assistidos irritados descuidados pelos serviçais mostramse refratários à abordagem estudantil A manipulação excessiva faz com que muitos se retraiam se escondam fujam da enfermaria na hora em que atuam os estudantes às vezes em horário distinto do da visita médica diária Por esse motivo os 12 doentes de uma enfermaria entraram em greve recusaramse a ser objeto de au las de demonstração por uma semana Mello Filho contoume de um rapaz internado num hospital de ensino que colocou um cartaz na cama Estou proibi do de conversar e ser examinado por alunos durante uma semana A morte do paciente especialmente se for sú bita ou de jovem repercute nos outros enfermos na equipe de saúde e nos estudantes de forma variada e às vezes inesperada A interna do leito onde morrera na véspera uma moça com linfossarcoma maltratou asperamente e proibiu de entrar na enfermaria os dois quartanistas do leito eles não haviam compa recido no dia fatal estavam num congresso de estu dantes e a falta de providências resultou na morte A moça lhe era muito ligada estivera internada por duas vezes sob seus cuidados e após ai primeira re missão chegaram a sair juntas ir à praia É comum nessas circunstâncias os demais pacientes ficarem deprimidos falarem pouco se retraírem por algum tempo Se isso não for captado pelos responsáveis pela enfermaria os alunos para lá designados podem se sentir ineptos e incapazes de fazer boa anamnese ou evolução diária Falar sobre a morte é então relevante O aluno tem sentimentos complexos sobre a morte do doente frustração decepção quebra da onipotência acusa ção aos que poderiam têla evitado pensamentos so bre sua própria morte etc Será bom médico aquele estudante que sempre sentir a morte do enfermo como uma perda pessoal e não como o nada demais que alguns aprendem dos organicistas Zaidhaft 1990 estuda a fenomenolo gia da morte na formação médica de forma muito adequada É recomendável sua leitura Destaco a grande ajuda que o estudante inclu sive do terceiro ano pode dar à equipe quando se dispõe a permanecer na enfermaria durante a visita familiar Ai ele pode captar e auxiliar na solução de problemas psicossociais e comunitários indo até à vi sita domiciliar após a alta quando necessário Jouval Filho fala da decepção dos alunos do curso de relação médicopaciente da Faculdade de Brasília que participaram como observadores de consultas nos ambulatórios de Sobradinho 1974 desatenção dos médicos para com os enfermos di cotomia entre problemas orgânicos e emocionais que são para quem tem tempo a perder e assim insônia tristeza nervosismo não são valorizados exames complementares desnecessários rapidez das consultas etc Mas a relação estudantepaciente não se pro cessa exclusivamente nos hospitais e ambulatórios de ensino Ela pode ser mais dramática angustiante po rém produtiva nos hospitais de prontosocorro onde via de regra é rápida e sem consequências aparentes e por isso mesmo desvalorizada Entretanto é lá que costumam aparecer claramente a onipotência o sa dismo e a inconsequência de uns poucos médicos e estudantes É cruel e desumana a maneira como alguns tra tam a crise histérica com amônia éter subcutâneo compressão de olhos e ovários a irresponsabilidade de se deixar o caso cirúrgico grave para o plantão seguinte o exame de laboratório que não é feito pois é madrugada Mas os alunos terão também exemplos múltiplos de abnegação responsabilidade profissio nal e até de sacrifício físico nos modelos de que falei anteriormente Plantão na maternidadeescola O intemo acompanha a grávida 7o filho do pré para a sala de partos ela levando a Bíblia da qual lia trechos o que parecia confortála das do res das contrações Aproximase o momento da parição e ela tenta folhear a Bíblia O aluno lhe segura a mão e pergunta que trecho quer ouvir e ela Doutorzinho será que eu vou morrer Ele diz que não claro que não o professor avisa que está nascendo a criança última contração o choro o quase desmaio da mãe o estudante informa que é menino e após os cuidados pede ao professor para leválo à mãe e lhe diz que é o mais bonito que nasceu no plantão Ela chora lhe beija a mão pergunta seu nome e L responde Vai ser o nome do meu filho diz ela Que relação fugaz foi essa que marcará a pa ciente e o aluno pelo resto de suas vidas e que o faz pensar no descanso do plantão e após ouvir o elogio do professor pelo seu componamento humanístico na grandeza da arte que abraçou A educadora francesa Ginette Raimbault falan do sobre o ensino dos aspectos psicológicos da re lação estudantepaciente na universidade destacou Psicossomaticaindd 66 Psicossomaticaindd 66 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 67 que 25 dos alunos eram refratários ao tema e que dos outros suscetíveis uma parte tornavase motiva da para trabalhar na área de saúde mental Lembro que pode ocorrer competição declarada ou não entre os professores e os que atuam na área da Psicologia Médica e os médicos e professores pu ramente organicistas felizmente em decréscimo po dendo daí resultar mensagens duplas contraditórias dirigidas aos estudantes dificultando sua formação e o relacionamento com os pacientes VERIFICAÇÃO DA RELAÇÃO ESTUDANTEPACIENTE Achei importante que as duas partes interessa das na relação fossem ouvidas através de perguntas diretas que apurassem os aspectos relevantes e as dificuldades que ambos experimentam no contato mútuo Foram submetidos a questionários há alguns anos 120 estudantes e 44 pacientes Quis que opi nassem grupos de alunos em níveis diferentes de co nhecimento e prática Os doentes estavam internados em enfermarias do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ e da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro O questionário dos pacientes continha além dos dados de identificação apenas uma pergunta Como se sentiu sendo examinado e acompanhado na sua evolução diária por estudantes de Medicina Eralhes apresentado no dia da alta pedindo toda a franqueza na resposta e com os esclarecimentos de que se destinava a trabalho de pesquisa científica Eles poderiam escrever poucos o fizeram ou ditar a resposta O questionário dos estudantes vai abaixo trans crito literalmente Discussão Análise do material obtido a Questionário dos pacientes 41 dos 44 doentes responderam dizendo que se sentiam muito bem sendo examinados pelos estudantes e as justifi cativas variavam desde que percebiam que um ajudava o outro a que é preciso colaborar aju dando como se fosse um filho meu ou os es tudantes são muito delicados e o remédio quem receita mesmo e o médico sempre com o deno minador comum de que o fato de várias pessoas ouvirem sua história é prova de interesse Apenas três revelaram desagrado um disse que é chato ser muito examinado e repetir sempre as mesmas coisas outro que o estudante não passou re médio que curasse e o terceiro contou que após se queixar de várias coisas como falta de ar não poder se locomover barriga grande dor no estô mago o estudante perguntou só isso ao que ele retrucou mais do que isso e eu já tinha mor rido Ressalto o fundamental o doente gosta de e precisa ser ouvido A maneira o modo a técnica é que têm que ser discutidos Há exceções óbvias rela tivas ao estado físico ou psíquico precários má dispo sição naquele dia traumas físicos recentes de exames complementares ou manipulações dolorosas ou mes mo a simples recusa a falar ao aluno ou a deixarse examinar A expressão filho bom referida por vários pa cientes mais idosos pode representar de fato uma identificação amorosa com o bom filho que os cuida porém pode também encobrir a defesa do velho con tra a submissão ao mais jovem Chama a atenção a ausência de críticas do pa ciente examinado por estudantes que podem come ter erros devido a sua suposta precária formação além do desconforto de ser examinado várias vezes Não há correspondência entre o sentimento do estu dante que se considera usando o paciente e o deste que não se sente usado Isso contradiz resultados obtidos em entrevistas com os próprios alunos e durante grupos operativos no hospital universitário onde os pacientes se quei xam deste fato A resposta pode esconder o medo de ser discriminado pela instituição como revide à crítica ou funcionar como penitência por tudo de bom que está recebendo ao assinalar os cuidados e o conforto que esses hospitais de regra proporcionam Uma das respostas críticas merece comentário especial É o caso do paciente com ascite que após expor várias queixas ao estudante ouve dele o só Período do Curso Este questionário destinase a trabalho sobre relacionamento estudantedoente Para que você se sinta à vontade em suas respostas ele não será identificado Por favor não o assine Muito obrigado Questões 1 Vivências e sentimentos quando de suas primeiras anamneses 2 Dificuldades na obtenção da história do paciente 3 Dificuldades que encontrou para fazer o exame físico 4 Que preparo teve previamente O questionário era entregue aos estudantes du rante as tarefas diárias na enfermaria e poderia ser respondido no momento ou quando o desejassem e a maioria levouo para casa Psicossomaticaindd 67 Psicossomaticaindd 67 05012010 121204 05012010 121204 68 Mello Filho Burd e cols isso Parece que aqui o aluno repete automatica mente uma regra da anamnese sem se dar conta da repercussão negativa iatrogênica no paciente talvez por estar distante emocionalmente dele como defesa contra as ansiedades inerentes àquele relacionamen to que é visto como tão difícil b Questionário dos estudantes 119 das 120 respos tas demonstraram o malestar que sente o aluno em examinar o paciente por se achar usandoo sem lhe dar nada em troca Apenas um respondeu que se sentiu bem por se dar conta do prazer que o enfermo tinha em falar de si da sua história e como era importante ouvilo Esta também foi a única exceção na queixa de se sentir exigido a ter que dar o que não tem em termos de diagnóstico eou tratamento na linguagem dos outros entre vistados E necessário mostrar ao estudante que ouvir o paciente representa uma parte importante do apoio de que ele necessita O enfermo assustado com sua doença na situação de dependência que esta lhe con fere muitas vezes sentindose inoportuno porque trabalhoso no ambiente familiar tem afinal alguém que não só escuta suas queixas mas que as valoriza de forma intensa detendose em aspectos que até en tão eram considerados desagradáveis Um aluno do 10o período respondeu que no ambulatório fico tão aflito em ter que pensar numa terapêutica certa que mal ouço o que o doente diz Este comentário ilustra a ansiedade muito comum principalmente entre estudantes no final do curso de necessitar conhecer toda a medicação para tratar de todos os males pois é este o ideal que julga necessá rio atingir para ser médico No item 2 obtenção da história do paciente 87 destacaram como se sentiram tensos por saber que a história tinha que ser colhida e não sabiam como fazêlo Nenhum se referiu a que isso seria conse quência de um bom relacionamento e ao contrário demonstraram que depois da história colhida é que se dedicariam a trabalhar a relação médicopaciente Pareceume que só se sentem capazes disso a partir da prescrição terapêutica Na resposta a estes dois itens chamam a aten ção a insegurança e a ansiedade demonstradas em alto grau seja pelo aspecto culposo de estar usando o paciente seja pela responsabilidade de colher uma boa história o que a meu ver parece demonstrar a falta de preparo psicológico dos estudantes para rea lizar essas tarefas A totalidade respondeu ao item 3 que houve dificuldade no exame das partes sexuais e se critica vam por isso Aliás já tinha observado como os pró prios instrutores lidam com este fato Via de regra não se referem a aspectos especiais de exames tão íntimos como também pouco ou nada ensinam sobre a investigação da vida sexual do paciente tema que fica apenas a cargo dos cursos de Psicologia Médi ca Toda nossa formação inibidora sobre sexo leva a uma dificuldade em tratálo como função natural o que só será conseguido com a familiarização do tema advinda da repetição Para tal é necessário elaborar o afeto proibido ligado ao assunto pois só assim te remos condições de tratar o sexo do paciente como função natural dele e não como área proibida que é feio invadir Além disso o estudante como adolescente que na maioria das vezes ainda é recém está aprendendo a lidar com sua própria sexualidade de forma integral Só depois de superadas suas dificuldades pessoais terá condições de lidar com os aspectos sexuais de forma objetiva e externa e não como se fosse um caso pessoal seu e do paciente Essas dificuldades com a sexualidade podem se manifestar não só durante os exames das partes sexuais como também durante toda a realização do exame físico propriamente dito principalmente quan do se trata de doentes jovens e do sexo oposto Isso foi verificado de modo muito claro durante aulas de simulação de exame físico realizadas com alunos do curso de Psicologia Médica no hospital universitário Ao item 4 94 estudantes responderam que ti nham sido preparados previamente por docentes ou por parentes próximos médicos mas 119 responde ram que não se sentiram bem mostrando a pouca eficácia deste preparo E interessante observar que os questionários funcionaram como catarse para os estudantes alguns se referindo a isto explicitamente até que enfim al guém se interessa em ouvirnos tomara que esta pesquisa sirva para nos dar mais atenção Este fato também pôde ser constatado pela forma viva emo cional participante com que relataram suas expe riências Vivências e experiências próprias Visita tipo round O interno pega a radiografia sobre a cama faz negatoscópio da janela e diz O Sr João tem graves lesões degenerativas da coluna e além disso e segue comentando em termos técnicos os achados radiológicos e fazendo correlações Vejo o doente empalidecer e ficar distante Fora internado dias antes por lombalgia muito forte irradiada para a coxa Era prestativo amável porém reservado Ao sairmos da enfermaria eis que prorrompe em choro Eu e o interno fomos conversar com ele Estou con Psicossomaticaindd 68 Psicossomaticaindd 68 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 69 denado que será dos meus filhos quanto tempo ain da tenho Ele interpretava degenerativas como câncer e as palavras desconhecidas do linguajar médico que se seguiram assustaramno mais ainda O ocorrido retra ta o que ainda sucede em muitos lugares de ensino quando alunos e professores sem perceber transmi tem informações ao paciente em linguagem equívoca e inadequada pois termos técnicos não explicitados podem ser além de incompreensíveis ameaçadores Pareceme em concordância com outros que as vi sitas às enfermarias do tipo assinalado devem ser abolidas por improdutivas no sentido de ensino e questionáveis quanto ao atendimento dos enfermos Era comum que estudantes e docentes se expan dissem em perguntas e explicações indevidas para o momento algumas vezes até querendo valorizar seus conhecimentos perante todos Muito mais adequado será que a visita geral se faça em salas ou anfiteatros próximos sem a presença do paciente reservando se ao horário próprio visita diária para evolução e tratamento e pela equipe do leito o contato com o doente O professor C conhecido organicista chama seus quatro alunos para assistirem à retossigmoidos copia do seu paciente suspeito de esquistossomose Faz com que dois deles contrafeitos toquem o reto enquanto conversa jocosamente com o doente Os ou tros dois saem da sala e são depois repreendidos pelo professor Assim vocês vão mesmo aprender nada o exame era necessário e naquela posição o doente deixa fazer tudo Esta atitude inadequada de ensinar com furor é contrária à norma básica de qualquer hospital de ensino o doente vem ao hospital em primeiro lugar para ser bem atendido e não para dar auxílio na edu cação dos estudantes Destaco que só o bom atendi mento propicia o bom ensino e é a base de qualquer pesquisa clinica O interno S recémaprovado como monitor da disciplina e substituindo um professor na aula prática desnudou como se fosse natural a jovem com dupla lesão mitral e ordenou que todo o grupo ouvisse aqueles sopros espetaculares A moça pôs o travesseiro no rosto e a série só foi interrompida porque um dos alunos recusou a ordem e repreendeu energicamente o colega mais velho pelo que expôs da doente não respeitando seus naturais pudores Creio que os casos descritos são alguns dos mui tos exemplos do quanto pode ser iatrogênico o com portamento de médicos e estudantes num hospital de ensino buscando ambos antes de mais nada ensinar e aprender a todo custo mesmo em detrimento do fundamental que é repito o atendimento adequado do paciente Assim vigiar as palavras e atitudes caso inicial evitar demonstrações intempestivas caso da retossigmosdoscopia ou respeitar os valores morais do paciente a doente cardíaca são algumas das ma neiras de o professor ensinar aos seus alunos a boa relação com o enfermo Recordo o quanto é danoso o exame físico repe tido e intensivo nas práticas de enfermaria e acres cento a vigilância necessária em relação a comen tários e perguntas na frente dos doentes pelo que podem desencadear nele de ansiedades angústias e expectativas às vezes captadas não pelo médico ou estudante mas pela enfermeira ou pelos vizinhos do leito O doente acromegálico mostravase deprimido e apático até que no rodízio quinzenal a aluna B foi ser a quartanista do leito Em poucos dias conseguiu conversando e examinandoo sempre com atenção e muito cuidado técnico mudarlhe o ânimo e a vonta de de permanecer deitado contrastando com o aluno que com ele estivera antes desinteressado e omisso Mas durou pouco Ela foi designada no novo rodízio para a enfermaria do andar de cima e a recaída psí quica do paciente foi notada quase de imediato Ca sos como este fizeram com que os rodízios passassem a ser mais espaçados pois boas relações estudante paciente não podem ser seccionadas dessa forma Nos hospitais universitários os enfermos devem ser entrevistados pela assistente social quando da in ternação e além dos esclarecimentos habituais sobre obrigações e direitos devem ser informados quanto às solicitações que vão ter por parte dos alunos e aos exames complementares a que serão submetidos ao mesmo tempo que são salientadas as vantagens da internação num hospital deste tipo Esses pacientes em comparação com os inter nados nas demais enfermarias do Serviço reagiram muito melhor à presença dos estudantes e aceitaram com maior boa vontade os exames complementares O aconselhamento dos estudantes faz parte da orientação psicopedagógica e é um procedimento natural de muitos professores que assim agem sem qualquer preparo prévio intuitivamente em suas ati vidades docentes O desejável é que isso pudesse ser transmitido de forma sistemática aos que têm a res ponsabilidade de ensinar FINALIZANDO Os questionários dos alunos mostram que o estudante de Medicina se sente na prática despre parado ansioso e inseguro mais explorador do que doador na sua relação com o paciente e isso apesar de se afirmar previamente preparado para os contatos iniciais com o doente Psicossomaticaindd 69 Psicossomaticaindd 69 05012010 121204 05012010 121204 70 Mello Filho Burd e cols Esse resultado é semelhante ao obtido por Tur rel na Universidade do Colorado onde fez uma pes quisa com os alunos do penúltimo ano metade deles cursou o semestre habitual e a outra teve além do habitual várias aulas teóricas extras sobre como lidar com o paciente No final do semestre foram aplica dos questionários e provas práticas aos estudantes e viuse que não houve diferença significativa entre os dois grupos Sua conclusão é que o necessário para lidar com o doente é dado através de vivência e não de aulas teóricas Os grupos operativos em enfermarias coorde nadas pelo setor de Psicologia trabalham sobre di ficuldades comuns a seus membros dando uma vi vência das mesmas e à medida que elas vão sendo elaboradas permitem um uso maior e melhor dos conceitos teóricos Dessa forma os problemas comuns assinalados de se sentir usando o paciente ou da dificuldade de exame dos órgãos sexuais seriam discutidos no gru po podendo então o estudante utilizar as conceitua ções teóricas A catarse observada nos questionários even tual seria canalizada de forma sistemática para os grupos e a baixa de ansiedade subsequente unida ao trabalho feito sobre os problemas dos estudantes permitiria uma maior fruição do seu embasamento teórico Além disso os grupos operativos serviriam como triagem para os estudantes que apresentassem difi culdades pessoais mais acentuadas encaminhandoos para orientação psicopedagógica e eventualmente para orientação psicoterápica O estudante de Medicina enfrenta duas crises importantes durante sua graduação a entrada para os hospitais e prontossocorros e a época da formatu ra ambas mobilizando sentimentos profundos Fre quentemente mal conhecidos por ele como negação da morte regressão emocional sedução onipotên cia vistas no paciente e nele próprio quando inicia a relação com o enfermo O medo da nãorealização profissional a incerteza do mercado de trabalho que o espera a dificuldade de se tornar independente faz com que muitos queiram continuar como estudantes sendo esta uma das explicações para a grande procu ra das residências médicas E destacada a importância do estudante na equi pe médica e acentuo que ao mesmo tempo em que ele recebe informações aprende Deve também atuar de forma efetiva colaborando com os conhecimentos que progressivamente adquire no atendimento inte gral do paciente Exemplifico o aluno de terceiro ano pode presenciar as visitas familiares assistir grupos operativos de pacientes internados e grupos operati vos de familiares providenciar lazer e atvidades cul turais para o doente visitálo domiciliarmente após a alta Relembro problemas importantes nas equipes que são o ciúme a competição e a rivalidade princi palmente entre os estudantes dos vários anos Tudo que favorece a saúde física e mental me lhora a relação com o paciente devendo ser valoriza dos os vários meios de coesão grupal como ativida des conjuntas esportivas sociais e culturais Considero que o médico é obrigado a aprender na prática profissional o que a faculdade habitualmen te não lhe dá em termos de relação médicopaciente Acho que o preparo para que essa relação seja boa tem época ideal para ter início ao chegar o aluno à faculdade Assim o estudante deve vestirse de bran co frequentar passear usufruir do hospital desde o primeiro ano recebendo a partir daí orientação psi cológica progressivamente mais complexa Penso que boa parte das relações estudantepa ciente não exitosas devemse à falta ou à insuficiência de preparo dos instrutores para orientálos Cursos compactos de Psicologia Médica ou relação médico paciente destinados especificamente aos docentes da área médica poderiam melhorálas A iatrogenia do ensino médico deve ser denun ciada para que possa diminuir e as instituições mé dicas faculdades e hospitais devem se autocriticar e avaliar permanentemente no sentido de atenuála A questão respondida pelos pacientes ressal vada a pequena amostragem sugeriu que quase todos estavam satisfeitos por serem examinados e acompanhados pelos estudantes a maioria dizendo eles me ouvem A propósito do triângulo de relacionamento nas escolas médicas das três personagens principais pro fessorestudantepaciente escreveu Fernandes Pon tes 1966 Não esquecer que o estudante é a figura mais importante se se quiser estabelecer prioridade Dele nascem diretamente o médico e o professor e poderá dar origem ao paciente tanto mais direta e facilmente quanto menos se lhe presta atenção como ser humano com a personalidade médica e humana em formação REFERÊNCIAS Aberastury AKnobel M La Adolescencia Normal B Aires Pai dós 1971 Publicado pela Artmed Editora Balint M O médico seu paciente e a doença Rio de Janeiro Atheneu 1975 Blaya M Dinámica de grupo em psiquiatria Alter n 3 p 193 1972 Blum R H Sadusk J Waterson R The management of the doctorpatient relationship New York MacGrawHill 1960 apud Entralgo P L La relación médicoenfermo Revista de Oc cidente Madrid 1964 Psicossomaticaindd 70 Psicossomaticaindd 70 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 71 Deutsch H Problemas psicológicos da adolesCénCiaRio de Ja neiro Zahar 1974 Eksterman A Formaçáo psicossomática em ciências da saúde o ensino de psicologia médica Congreso de Medicina Psicosomáti ca en La Cuenca del Plata BAires 1977 Figliuolo R Comunicação pessoal 1980 Freire P Pedagogia do oprimido Rio de Janeiro Paz e Terra 1975 Freud A El ego y los mecanismos de defensa Buenos Aires Pai dós 1949 Goffman E Intemados Buenos Aires Amorrortu 1961 Hoirisch A O problema da identidade médica Tese Rio de Ja neiro 1976 lllich I A expropriação da saúde Rio de Janeiro Nova Fronteira 1975 Jouval Filho H Comunicação pessoal Laplanche J Pontalis J B Vocabulário de psicanalise Rio de Janeiro Martins Fontes 1970 Mello Filho J Concepçáo psicossomática visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1978 Parsons T 777e social System New York Free Press 1968 Perestrello D A Medicina da Pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1974 Pontes J F O ensino da psicologia no currículo médico In Asso ciação Brasileira de Escolas Médicas Anais da IV Reunião Salva dor Rio de Janeiro 1966 Rocco R P O estudante de Medicina e o paciente Tese Rio de Janeiro Ed Achiamé 1979 Zaidhaft S Morte e formação médica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 71 Psicossomaticaindd 71 05012010 121204 05012010 121204 Há uma brincadeira de crianças em que ao soar a sirene de uma ambulância uma delas a que pri meiro ouve a sirene ou a mais rápida diz tocando o corpo daquela que estiver mais próxima passa morte que eu tô forte Assim também fazem todas as crianças do grupo A que não consegue passar a morte a nenhuma outra fica sendo a morta até o próximo som de sirene quando rediviva terá nova oportunidade de passála adiante Já que estamos constantemente ouvindo sire nes de ambulância seja em nossos pacientes seja em nós mesmos e o recurso mágico de passála adiante e ficarmos fortes nem sempre funciona a contento queremos propor uma brincadeira um pouco diferen te vamos deixar a morte conosco por algum tempo o que também não deixa de ser um recurso mágico para tentar controlála mas é um jogo que acredi tamos pode dar bons frutos Brinquemos então Só por uns dez minutos tentemos seguir a pista destes dois mistérios o da vida e o da morte Bem entendido não exatamente esses dois mis térios que nossa sandice também não é tão grande mas sim uma outra pista de um outro mistério o ensino médico relativo à morte E inserido no ensino médico o que a disciplina de Psicologia Médica pode fazer eou tem feito neste campo Muito já se falou sobre o afastamento dos médi cos de seus pacientes terminais sobre a importância para os doentes que os médicos não os abandonem nesta hora sobre a necessidade de se humanizar o atendimento assim por diante Por que a morte neste nosso fim de século se dá principalmente no campo médico a morte medicalizada ou por que a Medi cina chegou a um estágio em que se necessita de sua humanização são temas de que não trataremos aqui Ver a respeito S Zaidhaft 1990 e P Ariés 1991 p 623 Importanos sim neste trabalho examinar as experiências relativas à morte por que passam os estudantes de Medicina em seu processo de aprendi zagem e dentre elas como a disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ tenta pre parar os alunos para lidar com as questões desperta das pelo contato com a morte questões estas que no nosso entender são as cruciais do curso médico Deixaremos as considerações quanto a esta úl tima afirmação para o final deste trabalho e apre sentaremos agora o método que utilizamos para sua realização Método sim porque parafraseando Shakespeare 1990 p 1084 seguir a pista desses mistérios pode ser sandice mas há que se ter um mé todo para conseguir nosso objetivo Cabe lembrar que nos dois primeiros anos de seu aprendizado os alunos passam em nossa Facul dade por um curso básico em que são oferecidas dis ciplinas que não exigem o Contacto com pacientes A experiência relativa à morte se dá na disciplina de Anatomia através da dissecção de cadáveres É curio so que a iniciação dos estudantes se dê dessa forma já que tal modelo de relação com um objeto sem vida fica sendo visto por eles como o ideal a ser buscado posteriormente quando forem examinar os pacientes conforme Sapir 1972p 307 Ao ingressar em seu 5 O ESTUDANTE DE MEDICINA E A MORTE Sérgio Zaidharf Andrea Doria Batista Jacques Bines Luciana Rubinstein Sandice deixeme ficar algum tempo mais estou na pista de um mistério Razão Oue mistério Sandice De dois o da vida e o da morte peçolhe só uns dez minutos Machado de Assis Memórias Póstumas de Brás Cubas Participaram do capítulo Gabriela Costa Rego e Luiz Eduardo F Drumond Psicossomaticaindd 72 Psicossomaticaindd 72 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 73 terceiro ano do curso médico os alunos passam a ter a disciplina de Medicina Clínica I na qual aprendem a colher as histórias dos pacientes e a fazer o exame físico Com este fim em pequenos grupos orientados por um instrutor percorrem as enfermarias onde se encontram os doentes internados para aprender por exemplo a reconhecer um sopro cardíaco um es tertor a palpar um fígado assim por diante Nesse processo não há o acompanhamento diário de um paciente específico de sua internação à alta ou ao óbito Em alguns casos exceção à regra após co lherem a história os alunos por iniciativa própria vão ainda algumas vezes ver os pacientes que entre vistaram mas geralmente o contacto se restringe a um ou no máximo dois encontros para a realização da anamnese E nesse mesmo período letivo que os estudantes cursam nossa disciplina que tem a duração de um semestre sendo sua carga horária de três horas sema nais Em relação ao tema que estamos examinando os alunos têm uma aula expositiva e assistem ao filme Johnny vai à guerra Além disso um grupo de cada uma das quatro turmas em que os 80 alunos são di vididos realiza um trabalho para o qual é indicada uma bibliografia sendo solicitado que entrevistem algum paciente terminal para o aprofundamento das leituras efetuadas Este trabalho curricular é então apresentado discutido com o restante da turma Pensamos que a melhor maneira de examinar como a questão da morte é discutida em nossa disci plina e de modo geral no curso médico é ouvir a pa lavra viva de quem no momento está passando por esta experiência Por palavra viva queremos signi ficar as reflexões e os sentimentos de estudantes que ingressaram recentemente no ciclo profissional fren te a seu primeiro contacto com pacientes terminais Com este fim apresentaremos o trabalho referente a nosso tema realizado por um grupo de alunos de Psicologia Médica do 2o semestre de 1990 seguido do relato dos sentimentos experimentados por eles durante a feitura da tarefa curricular e uma discus são na parte final deste trabalho Pedimoslhes apenas uns dez minutos UM PACIENTE CRÔNICO E TERMINAL Este trabalho se baseou na leitura de textos in dicados Haynal 1983 p 232241 Hoirisch 1985 p 275289 Illich I 1975 Kübler 1987 e Queiroz 1976 p1521 e em entrevistas com um paciente in ternado no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho e com sua filha e a equipe médica Tem como objetivo analisar os diversos aspectos relacionados ao acompanhamento de pacientes crônicos eou termi nais suas famílias e técnicos envolvidos com o tra tamento O paciente escolhido para ser entrevistado já havia sido visto por um membro do grupo numa aula de Semiologia não tendo sido mantida qualquer ou tra relação mais estreita anteriormente com qualquer outro componente do grupo MSS 46 anos branco masculino separado há 12 anos natural de Portugal há 36 anos no Brasil curso primário completo trabalhava como gerente de padaria atualmente aposentado tem dois filhos um rapaz de 20 anos uma moça de 18 Internado há 15 dias com queixas de queima ção na barriga e para tratamento de feridas Seu quadro teve início há 13 anos com paresia generalizada emagrecimento impotência sexual e episódios alternados de constipação e diarreia Foi diagnosticada amiloidose familiar distúrbio genético que se manifesta na idade adulta comum na região de onde veio o paciente Os sintomas são consequen tes à infiltração de vários órgãos pela proteína ami loide por exemplo nos nervos periféricos dando um quadro de polineuropatia que é o apresentado O paciente relata que já conhecia a doença por esta ter acometido seu pai duas irmãs suas outros familiares além de muitas outras pessoas em sua ci dade natal MSS encontrase caquético impossibilitado de se locomover com dificuldades na fala o que pode ser causado pela macroglossia com visão restrita incontinência urinária e fecal escaras de decúbito e sem sensibilidade superficial e profunda distalmente Mora em casa própria com boas condições de higiene com sua mãe seus dois filhos e dois dos seus irmãos ficando também próximo às casas de outros familiares seus É cuidado principalmente por sua mãe e sua filha sendo esta quem o acompanha no hospital O pai do paciente apresentou a doença quando este tinha 10 anos vindo a falecer 12 anos depois Ao surgirem nele paciente os primeiros sintomas não se sentiu surpreso por achar natural ter a mesma doença que seu pai No momento diz estar satisfeito por estar durando mais e em melhores condições que ele atribuindo estes fatos ao avanço da Medici na Refere que a separação de sua mulher coincidiu com o surgimento da impotência sexual relacionan do os dois acontecimentos Pareceunos ressentido ao falar sobre a exesposa Perguntado a respeito de seu tratamento rela tounos que há 6 anos foi desenganado pela médica que o acompanhava quando de um episódio de infec ção urinária Abandonou então aquele tratamento por acreditar que poderia viver mais Conta também Psicossomaticaindd 73 Psicossomaticaindd 73 05012010 121204 05012010 121204 74 Mello Filho Burd e cols que desejavam transferilo do hospital onde estava internado para um outro uma clínica de apoio e diz que para este segundo hospital vai quem não tem família e está para morrer e não era meu caso Nossa impressão é que o paciente deve ter se sentido desafiado ao ter sido desenganado pela médica seu relato neste momento da entrevista tinha um tom ao mesmo tempo de rancor e de vitória Quanto ao tratamento atual diz que não está sendo bem atendido não reconhece qualquer médico como seu responsável não há rotina de atendimento a não ser de professores e alunos tendo recebido apenas duas visitas médicas em 15 dias Seus curati vos são trocados uma vez ao dia enquanto em casa além do maior cuidado em sua realização esse pro cedimento é feito três vezes ao dia Refere também não se sentir atendido em relação a suas queixas pi rose e escaras de decúbito e que se for só para co mer como em casa Perguntado sobre o que espera do hospital disse que se internou com o intuito de prolongar a vida fazer alguns exames e tomar algum remédio que o alivie de sua queimação Perguntado se tinha planos para o futuro respondeu pretendo viver enquanto puder Tivemos que interromper a entrevista ao virem buscar MSS para a realização de um exame Qual não foi nossa surpresa pouco tempo depois cruza mos com ele já de volta Soubemos então que o referido exame a que o paciente iria ser submetido era uma prova de esforço que lhe exigiria capaci dade de se movimentar o que era visivelmente im possível Conversamos também com a acompanhante do paciente sua filha L 18 anos Ela é quem cuida dele em casa dandolhe banho comida e trocando os curativos enquanto sua avó se encarrega de cozi nhar e lavar suas roupas constantemente sujas Está terminando o segundo grau e diz que seus estudos ficam em parte comprometidos pelo tempo que de dica ao pai Conhece a doença sua etiologia seu curso prognóstico etc e participa de uma associação que congrega médicos portadores da enfermidade e seus familiares Acha a doença horrível e relaciona seu desencadeamento entre outros fatores a abalos emocionais estresse e má alimentação Exemplifica citando o caso de suas tias uma delas apresentou os primeiros sintomas após a morte de um filho por atro pelamento e a outra após uma gravidez complicada que havia sucedido a dois abortos espontâneos Quanto a seu pai relata que antes de apresen tar a doença se alimentava mal trabalhava exces sivamente e devido à idade que ela tinha não sabe precisar se a separação dos pais ocorreu antes ou de pois do início da doença Conta que sua mãe vinha tendo uma ligação com outro homem quando o pai fi cou doente não sabendo informar se ele teve conhe cimento desse fato Em relação à mãe diz que desde a separação tem muito pouco contacto com ela Diz que o pai reclama de depender de outras pessoas mas pensa que ele está conformado com a doença e com a possibilidade da morte preferindo no entanto manterse vivo a morrer Acha ruim o tra tamento dispensado a seu pai no hospital por con siderar que as enfermeiras desconhecem a doença e que são inaptas para cuidar dele Relata assim como o paciente que o médico veio vêlo duas vezes em 15 dias não lhe parecendo interessado no caso Segun do ela seria melhor para seu pai ficar em casa apesar de ser um alívio para a família principalmente sua avó sua internação Teme ter a doença e não quer fazer o teste diag nóstico por pensar que só lhe traria sofrimento saber que iria desenvolver a doença mais tarde Quer ter um filho apesar do risco de que ele fique doente por achar que vale a pena viver e também porque es tará presente para cuidar dele Pretende parar de estudar temporariamente e começar a trabalhar e fala sobre como será sua vida quando seu pai falecer não que eu queira que ele morra mas vai ser um alivio Diz que seu pai fez um seguro em seu nome o que facilitará sua vida em termos financeiros Quanto ao irmão que é marinhei ro e está viajando diz que ele não cuida do paciente como ela embora o pai esteja sempre reclamando dela dizendolhe que seu irmão não faria assim Dra A que acompanha MSS no ambulatório foi quem solicitou sua internação e é a responsável pelo leito em que ele se encontra Relatounos que só internou o paciente devido aos insistentes pedidos de sua mãe que lhe telefonou várias vezes pintando um quadro muito mais grave que o real Falou a res peito da doença e da inexistência de um tratamento eficaz O prognóstico é ruim sendo de 15 anos o tem po máximo de sobrevida após o surgimento dos sinto mas Segundo ela o paciente em questão encontrase em fase terminal Perguntada a respeito da frequên cia das visitas médicas respondeu que ia à enferma ria todos os dias para acompanhar o tratamento e as prescrições ficando o residente encarregado de fazer a evolução sendo esta a rotina do hospital Na entrevista que realizamos com a enfermeira chefe do posto onde se encontrava MSS ela nos informou que não há uma enfermeira específica para o atendimento de cada paciente Trabalham em es quema de plantão com revezamento diário e fazendo o que lhes cabe da melhor maneira possível cuidar das feridas do banho da medicação e das mudan ças de decúbito Relata estar insatisfeita com o salá rio que recebe e com o déficit de pessoal Devido a Psicossomaticaindd 74 Psicossomaticaindd 74 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 75 todas essas dificuldades não é possível haver uma aproximação maior com o paciente o que dificulta a relação Diz que ele reclama muito mas pensa que isso é compreensível pelo seu estado Por sentir pena dis pensa a ele maior tolerância mas não sou babá de paciente para ter que aguentar tudo Relata conhe cer a médica responsável mas nunca conversaram sobre o tratamento e prognóstico do paciente Nosso trabalho curricular consistia no exposto até aqui além de uma análise dos textos indicados e de uma conclusão Relataremos a seguir nossas an gústias e questionamentos ao realizar aquela tarefa elaborados para apresentação neste trabalho QUAL NÃO FOI NOSSA SURPRESA Ao sabermos no início do curso de Psicologia Médica que nos caberia a realização de um trabalho sobre pacientes crônicos e terminais nos sentimos ao mesmo tempo atraídos desafiados e temerosos Pensamos que isso se deveu ao fato de o tema ser delicado controvertido e até assustador Não sabía mos como nos aproximar de um doente terminal como abordálo que postura adotar e além do mais tínhamos medo de ficar aturdidos e de que o paciente percebesse nosso malestar Influenciados pela bibliografia indicada e pela crença de que câncer é sinônimo de morte iminente nosso primeiro movimento foi no sentido de procurar um paciente com essa patologia que soubesse seu diagnóstico e prognóstico pois pensamos que dessa forma o trabalho ficaria mais rico Pedimos auxílio a algumas enfermeiras para que nos designassem al gum doente que preenchesse nossa expectativa Elas sabiam informar quanto à gravidade do estado dos pacientes mas não sabiam dizer se eles tinham co nhecimento de sua situação alegando que esta infor mação é uma atribuição exclusiva dos médicos De cidimos então entrevistar MSS por ser adequado aos temas do trabalho paciente com doença crônica em fase terminal e pelo fato de já ser conhecido por um membro do grupo o que talvez tenha nos dado um pouco mais de segurança Ainda influenciados pelos textos que havíamos estudado imaginávamos encontrar um paciente pas sivo em relação a seu tratamento sozinho em sua an gústia abandonado pela família e iludido pela equipe médica Encontramos ao invés um paciente ativo na medida de suas possibilidades sabedor de seu esta do reivindicando melhor tratamento com familiares a seu lado todo o tempo em uma palavra vivo E esta foi apenas uma das muitas surpresas que tivemos ao realizar nossa tarefa curricular Uma ou tra talvez a que mais tenha nos perturbado foi sua tranquilidade ao nos descrever sua situação e sua resposta quanto a seus planos para o futuro viver enquanto puder Todos nós pensamos que em seu lugar estaría mos desesperados e que preferiríamos morrer Poste riormente nos perguntamos por que motivo tínha mos ficado tão perturbados com esta sua vontade de viver e verificamos que havia em nós um certo desejo de encontrar um paciente sem vida alguma o que se constituiria numa ameaça menor para nós Podemos pensar também a partir dessa constatação que um paciente grave inconsciente ou que não reivindique isto é mais morto que vivo talvez crie menos di ficuldades para a equipe médica em termos de um real acompanhamento e atendimento de suas ne cessidades do que alguém como MSS que apesar de quase morto se mantinha vivo questionando o tratamento recebido interagindo conosco e com sua família Em relação à entrevista com o paciente cabe re gistrar um dado curioso após termos o grupo intei ro conversado com ele percebemos que não havía mos feito qualquer pergunta que lhe desse margem a falar o que pensava sobre suas perspectivas de vida Um dos componentes do grupo com isso em mente voltou a ele e após mais algum tempo de conversa perguntou o senhor tem planos para o futuro Esta pergunta comportava na verdade duas questões uma quanto ao que pretendia fazer em ter mos objetivos e uma outra subjacente a ela quanto ao que pensava em relação à morte O paciente res pondeu não isto é formulou a resposta à pergunta manifesta e prosseguiu dizendo pretendo viver en quanto puder que era o que o entrevistador efetiva mente desejava saber Com relação à filha do paciente nos chamou a atenção sua capacidade de adaptar sua vida à doen ça e às necessidades de seu pai sem no entanto abrir mão de seus próprios projetos Dizer que o faleci mento do pai seria um alívio não significa que sua atitude em relação a ele deixe de ser predominante mente amorosa Pelo contrário talvez o fato mesmo de poder reconhecer este seu sentimento bastante compreensível por sinal é que lhe possibilite sentir e demonstrar tanta afeição por seu pai como verifi camos que fazia Discutimos longamente entre nós as dificulda des que L deve ter passado tendo que se adaptar à ausência de sua mãe e à doença de seu pai desde seus cinco ou seis anos e como estas perdas pode riam ter tido influência em seu modo de se relacionar com seu pai e consigo mesma Além evidentemente da ameaça que deve sentir de que também ela venha a apresentar a doença Psicossomaticaindd 75 Psicossomaticaindd 75 05012010 121204 05012010 121204 76 Mello Filho Burd e cols Após a entrevista impressionados com sua ati tude alguns de nós acharam que L era uma pessoa demais que lidava bem com a doença do pai e com a possibilidade de ficar doente e que sua postu ra era a melhor para ela ou seja que ela priorizava a vida apesar de todo o sofrimento e ameaça Por outro lado outros membros do grupo pensaram du rante a própria entrevista que seria um absurdo L ter um filho pelo risco de que ele ficasse doente tendo sido até perguntado a ela Você não vai ter filho não não é Quanto à sua resolução de não se submeter ao teste diagnóstico pareceunos por um lado que era uma decisão que denominaríamos positiva porque como ela disse não adianta pensar nisso agora e também por não ter como se precaver caso saiba que irá desenvolver a doença Por outro lado pensamos que é improvável que ela não pense sobre isso te nho medo de ter a doença e a decisão de não fazer o teste expressaria a fantasia de que ficará doente Afinal pode ser que ao fazer o teste descobrisse que não possui o gene causador da doença suas chances são de 50 e isso certamente a tranquilizaria De qualquer forma o que percebemos em nós foi o uso de nossas pressuposições como parâmetro para julgar o que é melhor ou pior para o outro em situações por vezes tão delicadas como esta que L atravessa e em decisões tão terríveis qual uma role tarussa como a que tem de tomar Ainda quanto a seu desejo de ter um filho pode ríamos compreender seu relato de que se o filho ficar doente ela estará presente para cuidar dele como uma tentativa de negar a possibilidade de que ela adoeça ou como expressão de que a vida em si vale a pena mesmo com este risco Em relação à família do paciente pensamos que o fato de ser uma doença conhecida por todos de ca ráter hereditário e comum numa determinada região teria ajudado a família de MSS a ter condições de se organizar de modo a melhor atender suas necessi dades sem uma desestruturação muito grande e isso se deu mesmo com a separação do casal Cremos que este contexto familiar faz com que o paciente te nha uma qualidade de vida melhor do que a que teria caso não houvesse este amparo por parte de todos Esta coesão familiar pode ser responsável também pela manutenção da esperança na vida como verifi camos em MSS e em sua filha Examinemos agora o tratamento dispensado ao paciente após a leitura dos textos indicados fi camos com a impressão de que os médicos têm mui ta dificuldade em lidar com pacientes terminais e tendem a se afastar deles Ao entrevistarmos MSS este nos relatou sua insatisfação com o atendimen to que vinha recebendo o número de visitas médi cas e a não resolução de suas queixas Estes dois elementos os textos e a entrevista se somaram e como resultado fomos procurar a médica tendo em mente a imagem de uma verdadeira carrasca O que encontramos Uma médica jovem de olhos claros magrinha serena e atenciosa que nos recebeu com a maior solicitude e se mostrou totalmente a par da situação do paciente Um outro motivo de surpresa foi sua informa ção quanto à verdadeira razão para a internação do paciente ou seja os pedidos da família Bem após essa série de surpresas passamos a nos perguntar se haveria outros motivos que nos ti vessem feito imaginar a médica como uma carrasca Talvez por termos nos sentido impotentes em relação ao caso de MSS e decepcionados com os limites da Medicina tenhamos necessitado buscar formas de atenuar a insatisfação do paciente o que poderia ser explicado pela ausência da médica e de atenuar nos sa própria frustração e impotência Em relação a esse tratamento pensamos que o mais importante é o paciente se sentir bem atendido e isso tem relação com a atitude médica O que de melhor se poderia oferecer a MSS seria uma aten ção maior por parte da profissional que poderia au mentar o número de visitas e conversar mais com o doente O fato de haver um médico residente a quem caberia este papel pela rotina do hospital não fez com que o paciente reconhecesse um médico como o seu Por outro lado percebemos que MSS apesar de assistido por todos em casa e por sua filha no hos pital não se mostrava satisfeito com isso De todas essas considerações muitas questões ficaram sem resposta para nós será que a pequena frequência de visitas médicas tem a ver com a difi culdade de lidar com o paciente que está morrendo Será que é rotina mesmo do hospital Por que será que MSS não reconhece o residente como seu mé dico Será que o paciente ficaria satisfeito com um maior número de visitas Será que sua insatisfação quanto ao atendimento é a maneira que encontrou de se queixar de sua vida Na entrevista que fizemos com a enfermeira chefe do posto onde se encontrava MSS percebe mos que nossa atitude em relação a ela foi de ataque como que novamente buscando encontrar algum car rasco a quem pudéssemos responsabilizar pelo sofri mento do paciente Apesar dessa nossa pressuposição pudemos constatar a dificuldade ou quase ausência de co municação entre os membros da equipe se é que se pode chamar de equipe as pessoas que participam do atendimento ao paciente Psicossomaticaindd 76 Psicossomaticaindd 76 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 77 DISCUSSÃO Ao nos reunirmos para a elaboração deste tra balho ocorreu um fenômeno curioso por longo tem po uns dez minutos que duraram horas falamos todos a respeito das mortes reais ou imaginadas de pessoas próximas parentes e amigos e de animais de estimação e sobre a repercussão desses eventos em nós Lembramonos então principalmente da dor pela perda da raiva do morto por nos ter deixa do da culpa pela morte do outro do medo de ser cas tigado em virtude desta culpa dos recursos mágicos utilizados para tentar afastar a morte das tentativas de reparação e do processo de elaboração do luto E isso ocorreu sem que houvesse qualquer combinação prévia nesse sentido Pareceunos posteriormente que necessitamos deste percurso como uma forma de purgar nossos mortos até para nos sentirmos mais livres para a realização do trabalho a que nos havía mos proposto Perguntamonos a partir daí por que com todo o sofrimento que falar ou pensar sobre morte acarre ta resolvemos escrever este trabalho e mais ainda por que escolhemos ser médicos já que assim estaría mos inevitavelmente lidando com ela todo o tempo Quanto ao trabalho os sentimentos despertados em nós foram semelhantes aos experimentados quan do da realização da tarefa curricular já descritos no capitulo anterior Já em relação à motivação para escolha da carreira percebemos em nós um desejo de desvendar certos mistérios em relação ao corpo humano à sexualidade à nossa própria identidade e à morte ou seja os mistérios da vida e da morte Havia também e ainda há embutida nesta escolha uma expectativa de que por sermos médicos estaría mos imunes à morte Recordamonos então do impacto que as aulas de Anatomia nos causaram e do clima de brincadeira estabelecido muitas vezes durante a realização das dissecções como tentativa de negar a morte Curio samente ao falarmos deste tema surgiram inúme ras associações com alimentação por exemplo não conseguir almoçar após dissecar banana associada a tecido adiposo e o espanto com o fato de alunos mais antigos estarem comendo enquanto dissecavam identificação com o morto com a morte através de sua ingestão Freud 1976 p 133134 170 Zai dhaft op cit p 127128 Essas primeiras experiências relacionadas a morte já como estudantes de Medicina ao mesmo tempo que nos causaram um certo choque faziam com que nos sentíssemos pertencer a um mundo à parte como que possuindo um poder conferido pelo conhecimento dos segredos do corpo humano e da morte Por outro lado ou por isso mesmo esse poder acarretava uma sensação de ter o cheiro da morte en tranhado em cada um de nós algo de que não pode ríamos mais nos desvencilhar Sigamos nosso caminho na disciplina de Me dicina Clínica 1 quinto período ou seja primeiro semestre do terceiro ano da Faculdade a morte foi se revestindo de outras características Percebemos pela primeira vez no curso médico a existência da dor do sofrimento e do medo nos pacientes que exa minávamos constatamos que doença e morte não es colhem idade pessoas às vezes mais jovens que nós com doenças letais nos sentíamos preocupados a cada órgão examinado com o futuro do possuidor daquele órgão acometido por alguma enfermidade Como aqui já não lidávamos com cadáveres mas com seres vivos o impacto foi bem maior do que o expe rimentado no curso de Anatomia Entretanto apesar de percebemos que eram seres vivos e de adquirirem para nós alguma subjetividade ao colhermos suas histórias ainda eram essencialmente corpos que so friam Algo diverso ocorreu quando da realização da tarefa solicitada pela disciplina de Psicologia Médica O título que demos à terceira parte deste trabalho devese exatamente a este fato uma sucessão de sur presas A maior delas se deu como já descrito ao percebermos que o paciente entrevistado embora em péssimo estado geral estava vivo no sentido de de sejar viver enquanto pudesse sua solicitação de um melhor atendimento etc Por que nossa surpresa e perturbação Pensamos em algumas hipóteses para compre ender este nosso sentimento é possível que estivés semos imbuídos do modelo aprendido na Anatomia o do paciente passivo como o cadáver que tínhamos dissecado é possível também que os trabalhos li dos tivessem nos influenciado a tentar encontrar um paciente sem vida alguma novamente é possível que pensássemos na morte como algo distante de nós e que quando ela viesse fazer sua colheita a fizesse de vez é ainda possível que tivéssemos ficado surpresos pelo fato de perceber que alguém com vida e não apenas um corpo que sofre pudesse vir a falecer Todas estas hipóteses podem corresponder à rea lidade e é bastante provável que assim seja No entan to a que nos parece mais plausível é a seguinte nossa perturbação seria devida ao fato de que se o paciente Um esclarecimento neste capítulo ao nos referirmos aos sentimentos despertados pela realização da tarefa curricular entendase sujeito da frase como sendo o grupo de alunos Psicossomaticaindd 77 Psicossomaticaindd 77 05012010 121204 05012010 121204 78 Mello Filho Burd e cols em questão estava para morrer mas se mantinha vivo nós que o entrevistamos e que estávamos e felizmen te ainda estamos vivos e sem qualquer doença nos vimos forçados a perceber que também carregamos a possibilidade da morte em nós mesmos A partir dessa hipótese podemos compreender nosso sentimento de que preferiríamos morrer se es tivéssemos em seu lugar Parece ser a expressão de um desejo nosso de que o paciente morra logo pois assim a morte ficaria só com ele e nós nos livraríamos dela como na brincadeira passa morte que eu tô forte Após a realização da tarefa curricular e também deste trabalho verificamos que demos muito mais destaque à filha do paciente e aos sentimentos por ela despertados que ao próprio doente Algumas hipóte ses que levantamos sua idade muito mais próxima à nossa que a do paciente o fato de ser filha como nós e não pai ou mãe o fato de ter sido mais confor tável para nós conversar com ela que com o paciente e como extensão desta última hipótese o fato de estar saudável Quer dizer foi mais fácil nos identificarmos com alguém jovem saudável mesmo sob uma ameaça como a que L vive do que com um doente terminal e isso certamente se deve às ansiedades despertadas pelo contacto oom alguém que está morrendo Ainda em relação à entrevista com L percebe mos em nós um sentimento semelhante ao experi mentado ao lidar com o paciente A pergunta você não vai ter filho não é expressaria nosso desejo de condenála à morte no caso morte de sua capacida de procriativa porque dessa forma nós é que ficarí amos vivos e férteis Este fenômeno é curioso no momento em que estamos investidos do papel de médicos escapa de nossa consciência a compreensão de que todos esta mos morrendo um pouco a cada dia e de que não te mos como saber se nós é que vamos antes da filha do paciente E ficamos então espantados com sua espe rança na vida como que desejando que ela também adoeça logo desespere e morra Ou seja sou só eu quem não adoece sou só eu quem pode levar a vida sem qualquer ameaça sou eu quem não corre perigo a morte não me pega passa morte que eu tô forte Fique bem claro que este possível desejo de passar a morte para o paciente e sua filha não era o único presente em nós Percebemonos admirando os dois por sua força de vida e tendo um sentimento de compaixão por sua dor e de pesar pela constatação de que nada poderia ser feito para ajudálos no sen tido de cura do paciente e de prevenção da doença na filha Entretanto aceitar tal realidade é profunda mente doloroso e lutamos arduamente para nos afas tar dessa certeza Pareceunos que a busca que em preendemos para encontrar algum responsável pelo sofrimento do paciente um carrasco é um exem plo claro desta nossa luta Não somente do pacien te esta busca talvez seja nossa tentativa de atenuar nosso próprio sofrimento ao constatar nosso fracasso frente ao caso do paciente e nossa impotência ao nos certificarmos de nossa própria finitude E mais ainda será que nossa procura de algum carrasco também não decorreu de uma necessidade de passar a alguém mais nossa passagem da mor te para o paciente e sua filha O carrasco que tanto buscamos somos nós Esses sentimentos que estamos relatando longe de serem originais ou exclusividade nossa não de vem diferir muito dos experimentados por outros alu nos e médicos Surge a questão então de que espaço e possibilidades são oferecidos para que se possa dis cutir estes temas no curso médico A esse respeito é curioso que o impacto senti do durante as entrevistas não tenha sido relatado no corpo do trabalho curricular mas somente durante sua apresentação para o restante da turma E possível que isso tenha ocorrido por não ter sido solicitado ex pressamente que assim fosse feito mas as entrevistas com familiares e equipe técnica também não e estas constaram do trabalho escrito Talvez haja também uma ideia de que sentimentos experimentados du rante o contacto com o paciente não podem ser con siderados como algo científico por serem puramente subjetivos algo assim No entanto mais que as hipóteses acima pensa mos que esta omissão é reveladora de um fenômeno que perpassa todo o curso médico qual seja a utiliza ção do silêncio como arma para enfrentar as questões levantadas pelo lidar com a morte E a este silêncio estão condenados não apenas os alunos mas também os pacientes Talvez o tão falado afastamento dos médicos de seus doentes terminais se deva exatamente a este fato ao ingressarmos na faculdade é como se neces sitássemos de um modelo de conduta frente a situa ções novas e angustiantes com as quais não sabemos lidar Se o modelo que vemos é o do silêncio como tentativa de se desvencilhar de sentimentos difíceis de tolerar e de pacientes difíceis de tratar este é o modelo que trataremos de seguir E é este mesmo mo delo que silencia o que temos de mais vivo em nós e o que os pacientes terminais têm de vida em si Aqui reside o que pensamos ser nosso grande fruto ao realizar este trabalho a quebra desta barrei ra do silêncio pela possibilidade de ouvir o paciente e de discutir com colegas nossas impressões frente a uma situação aflitiva para todos Evidentemente a recomendação ouvir o pa ciente também pode ser tomada como um modelo a Psicossomaticaindd 78 Psicossomaticaindd 78 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 79 ser seguido sem que haja uma reflexão ligada a essa necessidade e este é um risco que sabemos existir A esse respeito recentemente um membro de nosso grupo assistiu a uma conversa se podemos chamar assim entre um paciente e sua médica O doente re clamava de não estar sendo bem atendido numa cer ta queixa sua e ela falando ao mesmo tempo que ele dizia eu sempre ouço o paciente Ela não disse que estava tentando ouvir entender aquele doente mas sim a uma entidade inespecífica denominada pacien te Ou seja o que verificamos aqui é o uso da máxima ouvir o paciente para silenciálo Fechando o parêntese pensamos que poder con versar com colegas nos ajudou a perceber que nossas angústias não eram originais nem tão terríveis que não somos donos de uma verdade única e inquestio nável a corrigir nossas pressuposições e a tentar acei tar as diferenças Se a partir dai podemos afirmar que em nosso grupo conseguimos funcionar como uma equipe o mesmo não podemos dizer quanto à estruturação da assim chamada equipe médica A in dicação da prova de esforço sem avaliação das condi ções do paciente e o desconhecimento por parte da enfermagem quanto à noção que os doentes têm de seu diagnóstico e prognóstico são prova disso Esse fato nos surpreendeu desfavoravelmente por pensar que a equipe médica deveria trabalhar com algum entrosamento e que todos os seus compo nentes deveriam saber da situação de cada paciente guardadas as ressalvas quanto às funções específicas de cada membro da equipe Utópico isso Talvez mas nos parece fundamental que se lute para que as sim seja Havíamos proposto na introdução deste traba lho uma brincadeira de deixar a morte conosco por algum tempo Sandice Talvez Afinal o paciente en trevistado está para morrer mesmo e não há nada que se possa fazer para evitar este seu destino aliás tam bém nosso mais cedo ou mais tarde Talvez a Ra zão com quem a Sandice dialoga devesse prevalecer todo o tempo e não devêssemos dedicar quaisquer dez minutos para tentar desvendar mistérios do paciente e nossos que não são desvendáveis Entretanto mesmo sabendo de tudo isso pen samos ou melhor concluímos a partir da experiên cia que tivemos que ter uns dez minutos para ouvir o paciente seus familiares e a nós mesmos é funda mental para que não condenemos ao silêncio à mor te o paciente e a nós mesmos Chegamos a esta certeza a partir da constatação de que o fato de deixar a morte conosco por algum tempo longe de nos matar nos deixou mais vivos no sentido de mais atentos às nossas dificuldades no contacto com pacientes terminais na verdade com qualquer doente Melhor dizendo não se trata de deixar a morte conosco como algo distante inespecífico mas sim de poder conhecer a situação de vida de cada paciente específico o que pode incluir a proximidade da morte e os sentimentos daí decorrentes Ou seja na verdade este trabalho não é sobre morte da qual nada sabe mos mas sobre vida mesmo que dela reste apenas um fio E já que estamos falando de vida o que espera mos é que a nossa sucessão de surpresas ou melhor que nossa capacidade de nos surpreendermos fren te à vida persista e que nossas dúvidas permaneçam para que a cada paciente examinado não pensemos que já sabemos de antemão o que é melhor para o outro pois assim estaríamos transformando o doente num corpo que sofre e condenado ao silêncio Fique claro portanto que não estamos nos re ferindo apenas aos pacientes terminais e à aprendi zagem das questões a eles concernentes O fato de termos ficado restritos neste trabalho ao tema mor te não significa que esta seja a nossa única preocu pação Pelo contrário pensamos que por estarmos li dando com situaçõeslimite podemos utilizar nossas reflexões para o dilema vidamorte no atendimento a qualquer paciente e para a questão vidamorte no ensino médico em geral À guisa de conclusão cabe dizer que a possibili dade que tivemos durante a realização deste trabalho de discutir inúmeros pontos que nos afligiam e que de forma diferente esperamos que continuem a nos afligir só nos reforçou a convicção de que é funda mental que discussões como esta perpassem todo o curso médico e não apenas uma disciplina específica REFERÊNCIAS Ariés P O homem diante da morte Rio de Janeiro Francisco Alves 2v 1981 Freud S Totem e tabu Rio de Janeiro lmago 1976 Haynal A Manual de Medicina Psícnssomatica São Paulo Mas son 1983 Hoirisch A Eutanásia Aspectos médicos In Academia Nacio nal de Medicina Etica Médica Forum Nacional Rio de Janeiro 1985 lllich 1 A expropriação da Saúde 3ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1975 Queiroz Ao Mello Filho J O médico diante do doente crônico e da morte J Bras Med ago 1976 Skakespeare W Hamlet In The complete works oi William Shakespear New York Avenel 1990 Sapir M La formation psychologique du Médecin Paris Payot 1972 Zaidhaft S Morte e formação médicaRio de Janeiro Francisco Alves 1990 KiiblerRoss E Sobre a morte e O morrer 3ed São Paulo Mar tins Fontes 1987 Psicossomaticaindd 79 Psicossomaticaindd 79 05012010 121204 05012010 121204 À clássica e muito significante frase do psica nalista inglês Michael Balint citada em epígrafe po demos acrescentar que o médico vale principalmente pelo que de fato ele é antes do que pelo que sabe diz ou faz Por outro lado as melhores estatísticas indicam que numa média de 70 os pacientes or gânicos apresentam fatores psíquicos que desempe nham um papel importante às vezes determinante no contexto de sua doença A soma destes dois fatos estabelece de forma incontestável a enorme importância da formação psi cológica do medico e logo nos leva a perguntar como ela se processa em nosso pais Essa pergunta pode ser desdobrada em outras que se complementam que tipo de médico nossas faculdades devem formar na atualidade Qual a motivação que leva tantos jovens a procurar os caminhos da Medicina Quais os atri butos mínimos necessários para que um indivíduo se forme como um bom médico Vamos tentar responder por partes ao longo do texto Não é demais sublinhar que a formação de um bom médico se assenta no clássico tripé conheci mentos habilidades atitudes É claro que esses três aspectos estão sempre congeminados e são indis sociáveis mas podemos discriminar e conceituálos separadamente O conhecimento se organiza a partir de informações provindas dos instrutores e princi palmente de muito estudo e leitura A habilidade depende de um treinamento continuado em que o aluno saiba tirar proveito do aprendizado conferido pelas experiências vividas na práticados atos médi cos tanto as de acertos e gratificantes como também e principalmente as das baseadas na frustração dos inevitáveis erros e limitações Mas é sobretudo o de senvolvimento da atitude médica protótipo de sua formação psicológica que pretendemos abordar mais detidamente ATITUDE MÉDICA Um esboço histórico nos mostra que é muito an tiga a arte médica então exercida pelos feiticeiros Xamãs e sacerdotes enquanto que a ciência médica é muito recente apenas nascida a partir do século XIX e do ponto de vista psicológico sempre sofrendo a forte influência daqueles predecessores místicos Des sa forma até há pouco tempo a relação do médico com seu paciente era unidirecional com esse último submisso e esvaziado investindo o primeiro com uma aura de forte idealização e magia A própria termino logia corrente em medicina comprova isso Qualquer insucesso era tributado à vontade de Deus Médico que quisesse ter uma bem sucedida clientela deve ria ter um dom inato ou aprender a arte de desper tar carisma É fácil entender que quanto maior for o primitivismo e ignorância que cerca a doença maior também será o apelo ao misticismo Atualmente a tendência crescente e irreversível é a de uma maior participação do doente e da fa mília e em passos muito tímidos da comunidade enquanto paralelamente a figura do medico vai des cendo do pedestal para uma superfície mais nivelada onde ele se imporá pela sua real competência Obser vase cada vez mais que à medida que descresce O papel deificado do médico e diminui o gap entre ele e o seu paciente menos este último se conforma em 6 A FORMAÇÃO PSICOLÓGICA DO MÉDICO David Epelbaum Zimerman O remédio mais usado em Medicina é o próprio médico O qual como os demais medicamentos precisa ser conhecido em sua posologia reações colaterais e toxicidade M Balint A palavra clínica deriva de klinos que em grego significa na horizontal daí vem inclinado etc já que os pacientes deveriam ficar deitados Ambulatório era para os que po diam caminhar ambulare Medicamento e daí médico deriva de medicamen étimo latino que significa bruxaria Paciente vem de patiens que em latim significa passivida de E assim por diante Psicossomaticaindd 80 Psicossomaticaindd 80 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 81 seguir servil e cegamente a conduta médica que lhe é traçada e cada vez mais ele quer ser esclarecido e participativo nas decisões Dessa forma o linear binômio médicopaciente foi gradativamente se modificando para o modelo de um polígono de forças dinâmicas onde se entrecru zam necessidades desejos expectativas valores sen timentos angústias pressões etc Essas forças não se processam só na direção do médico para com a doen ça e o doente mas também com os familiares deste com o hospital e todo o seu pessoal com a institução que o paga com a sociedade que lhe cobra etc e principalmente na relação consigo próprio Devese acrescentar ainda a existência de uma crise que assola o médico brasileiro crise que apa rentemente é da Medicina mas na realidade é a de sua identidade médica Isso decorre das intensas ex tensas e rápidas mudanças de toda ordem como são por exemplo as transformações socioeconômicas as da política estatal de assistência médica as demográ ficas a proliferação de faculdades de Medicina com a formação ou deformação de um número exces sivo de profissionais a transição dos valores sociais o ter passa a ser mais importante que o ser uma desenfreada busca de lucros por parte de policlínicas e uma pressão das indústrias farmacêuticas voltadas para esse mesmo fim os céleres avanços da tecnolo gia moderna e a avalancha de novas informações a desidealização às vezes tangenciando o denegrimen to da figura do médico etc Tudo isso concorre para que o estudante se debata com dilemas deste tipo que tipo de médico quero ser posso ser devo ser ou esperam que eu seja Essas questões nos remetem ao problema das motivações que determinam a escolha da profissão médica Ao lado dos fatores mais manifestamente conscientes como por exemplo um sentimento de talento e vocação ou uma boa identificação com um progenitor médico ou a busca de status e um promis sor mercado de trabalho existem os motivos incons cientes O primeiro estudo com embasamento científico em relação à estrutura psíquica do médico se deve ao psiquiatra alemão Simmel 1926 o qual descreveu algumas das fantasias inconscientes determinantes da escolha da profissão médica Entre outras ele destacou que o exercício prático da Medicina propiciava uma adaptação do princípio do prazer ao da realidade ou seja o médico podia satisfazer os seus impulsos primá rios ver e palpar gente desnuda ter acesso ao interior do corpo e aos mistérios do nascimento sexua lidade e morte penetrar nos segredos mais íntimos das pes soas manipular urinas e fezes etc tudo isso sendo conseguido de forma sutil e com o aval de admiração da sociedade Noutras palavras o ego do médico honra o juramento de Hipócrates enquanto o seu id se grati fica Outras motivações inconscientes podem ser cita das como por exemplo o fato de ser médico permite lhe reforçar a negação da doença e portanto da sua inexorável morte já que por dissociação o paciente é a sua antítese Uma importante necessidade incons ciente cujo cumprimento é propiciado pelo exercício da medicina é o de poder fazer reparações as quais podem ser verdadeiras ou falsas e a predominância de uma ou outra dessas é que vai determinar se a atitude médica é igualmente autêntica ou falsa A própria escolha da especialidade médica em função dos conflitos inconscientes do médico assim como o tipo e grau de primitivas fantasias com que ele revestiu a imagem corporal e as funções vegetati vas orgânicas mereceria um estudo mais aprofunda do mas não cabe fazêlo aqui Retomando a linha de reflexão acerca da im portância da atitude médica é necessário enfatizar que essa acima de tudo deve manterse inalterável por maiores que sejam as pressões externas e inter nas que antes apontamos e isso só será conseguido se o médico tiver a sua identidade profissional bem definida IDENTIDADE MÉDICA A formação psicológica do médico resulta do precipitado de uma série de elementos complemen tares tais como entre outros temperamento moral personalidade ética caráter atributos do ego e iden tidade Como esses termos são assemelhados antes de prosseguir e para evitar uma confusão semânti ca é útil esclarecer os significados que aí são dados a cada um deles Temperamento resulta da têmpera dos impulsos e humores heredoconstitucionais Moral é a manifestação do tipo de superego do indivíduo e No jargão psicanalítico este termo expressa a necessidade que qualquer pessoa tem de consertar os danos reais ou fantasiados que ela imagina ter infligido às pessoas im portantes de sua vida A reparação é verdadeira quando a determinação em restaurar os danos se forma no indivíduo a partir da assunção da parte da responsabilidade que de fato lhe cabe ao que se segue a formação de uma atitude de autêntica consideração e preocupação pelos outros A reparação é denominada falsa quando movida pelo afã de apaziguar culpas os intentos reparatórios ficam embasados em recursos de natureza mágicoonipotente Psicossomaticaindd 81 Psicossomaticaindd 81 05012010 121204 05012010 121204 82 Mello Filho Burd e cols é quem lhe determina os costumes em latim costu me é mos moris de onde vem moral Personalida de de acordo com a etimologia persona é o nome que davam à máscara usada pelos atores do antigo teatro grecoromano é a forma como a imagem da pessoa impressiona os demais Ética deriva de ethos significa meio ambiente território e indica que um indivíduo não pode invadir o terreno dos demais Ca ráter como a palavra evidencia é o que caracteriza a conduta da pessoa e ela se estrutura a partir de uma adaptação no plano inconsciente entre os impulsos e os mecanismos de defesa A expressão atributos do ego diz respeito às funções e capacidades tais como as de percepção pensamento atenção memória juízo críti co linguagem e ação Identidade e a propriedade de o indivíduo independentemente das circunstâncias e de pressões manterse basicamente o mesmo a palavra identidade vem de idem que quer dizer o mesmo e portanto é a expressão do que de fato ele é A identidade de cada pessoa funciona como se fosse uma carteira de identidade isto é a nomeia dá as suas características principais e a acompanha imutável através dos tempos do espaço e da inser ção social A estruturação da identidade do indivíduo formase a partir de identificações com figuras impor tantes de sua vida e com a assunção de papéis tanto os espontâneos como os que lhe são designados ou os que imagina que os outros esperam dele Uma identidade só fica bem estabelecida quando leva o tri plo selo da autonomia da estabilidade e da autentici dade Caso contrário é possível que se trate de uma falsa identidade quer sob a forma de algum tipo de impostura ou de uma modalidade mimética a qual é lábil porque como um camaleão o indivíduo procu ra adivinhar o que esperam dele e adaptarse a isso Pode tratarse também de uma identidade ambígua caso em que a pessoa funciona com as reais capaci dades adultas mas no fundo sentese como se fosse uma criança e viceversa Como toda a identidade é resultante da inte gração de identificações parciais a introjeção de um tanto das características de pai outro tanto da mãe etc é importantc que o médico saiba discriminar quais as partes que podem estar sendo mobilizadas em determinadas situações clínicas e que podem in vadir a função médica propriamente dita Estão neste caso os médicos que se deixam seduzir ou intimidar ou se superdesvelam entre tantas outras reações que vamos abordar no tópico que segue RELAÇÃO MÉDICOPACIENTE Não é possível conceber a formação psicológica do médico em termos individualizados antes e in dispensável incluir toda a larga gama dos sentimen tos despertados nos interrelacionamentos contidos em qualquer ato médico e que estão condensados na habitual expressão relação médicopaciente a qual apesar de estar na forma singular é em verdade plu ral sempre com o envolvimento de muita gente Como esquema de exposição é útil destacar os aspectos que a meu juízo se constituem como sendo os básicos na determinação de uma boa ou má rela ção entre o medico e o seu paciente A instalação da doença costuma levar o pacien te e muitas vezes a família inteira a um estado conhecido por regressão e que consiste num retorno a um nível de funcionamento mais primitivo com a reedição de ansiedades fantasias e expectativas pró prias às da época de quando ele era criancinha Isso é mais possível de ocorrer em situações de hospitali zação especialmente em UTI em razão de o doente sentirse coagido e ameaçado na preservação de sua identidade por enfrentar um ambiente físico estra nho sucessão de rostos não familiares mudança nos hábitos na roupa na alimentação rotinas hospitala res regressivantes etc São muitos os fatores que podem ser desenca deantes da regressão mas o distúrbio emocional que surge é sempre o fruto das características da psicolo gia própria de cada indivíduo O surgimento da doença orgânica fica acrescido de profundos significados simbólicos de ordem psí quica que estão investidos na formação da imagem corporal e isso pode provocar que além do sofrimen to físico o paciente possa estar sendo invadido por sentimentos de desamparo medo confusão culpa vergonha e até o sentimento de humilhação por ter fraquejado em ter adoecido ou pela ferida narci sista em ter que reconhecer que é um mortal como qualquer outro Por outro lado é comum que uma patologia somática tenha como desencadeante certas perdas importantes de pessoas coisas afetos ou va lores às quais o indivíduo reage com o sentimento de abandono e desesperança O fenômeno pelo qual o paciente especialmen te em estado regressivo tende a repetir com o seu médico os típicos modelos de como ele se relacionava com as importantes figuras do seu passado é conhe cido como transferência a qual sob graus e níveis diferentes está sempre presente na relação médica Essa reação transferencial tanto pode ser positiva como negativa Dessa forma podese perceber que um mesmo médico pode estar sendo visto por um de terminado paciente como sendo uma mãe boa que o cuida e dá bons alimentos simbolizados nos medi camentos enquanto outro paciente pode vivenciar estes mesmos medicamento como sendo porcarias que envenenam provindas de uma mãe má Da mes Psicossomaticaindd 82 Psicossomaticaindd 82 05012010 121204 05012010 121204 Psicossomática hoje 83 ma forma certas manipulações médicas podem estar significando castigo para uns sedução para outros e assim por diante É o fenômeno transferencial que explica o fato de que no cotidiano clinico o médico se defronta com pacientes que vão desde um polo de extrema dependência e que o solicitam por tudo e por nada até aos de outro extremo e que apresentam uma hostilidade com um negativismo em colaborar em reconhecer melhoras etc Da mesma forma como foi destacada a transfe rência é preciso enfatizar que também o médico tem sentimentos de toda ordem em relação a seus dife rentes pacientes sendo que esse fenômeno é denomi nado contratransferência É importante no entanto diferenciar de quando se trata de contratransferência decorrente da resposta do médico às angústias nele depositadas pelo paciente ou se é uma transferência do próprio médico em relação a seu paciente pelo fato de que este possa estar lhe representando uma mãe um pai um irmão rival um filho etc Um crité rio que o médico pode utilizar mercê de uma capa cidade de autoobservação é o de reconhecer se ele apresenta de forma repetitiva os mesmos problemas com uma mesma categoria de pacientes Descrevemos separadamente a transferência e a contratransferência mas deve ficar bem claro que ambas são simultâneas e interativas sendo que elas configuram em cada situação médica um vínculo muito singular e na maioria das vezes de um curso natural e produtivo Mas há riscos quanto à possibili dade da formação de conluios inconscientes os cons cientes e melhor chamalos de pactos corruptos os quais consistem numa despercebida aliança que complementa e atende às demandas neuróticas de ambos Esse é um tópico muito importante entre outras razões óbvias pela sua alta incidência Costumamos perceber com facilidade quando o paciente procura in duzir o médico ao papel de mágico de amante etc mas o fato de que a recíproca é verdadeira é de reco nhecimento bem mais difícil A bem da verdade não se pode negar o fato nada incomum de que o médico possa estar buscando gratificações através do paciente para as suas necessidades de amizade amor prestígio poder sexo ou dinheiro O dia a dia da prática médica nos fornece uma abundância de situações de conluios médicopaciente mas para ficar em um ou dois exem plos serve o sabido fato de que não são nada raras as cirurgias que alguns médicos possam reconhecer como sendo desnecessárias mas assim mesmo as praticam quando são induzidos por pacientes masoquistas por exemplo Outro exemplo trivial de um conluio que promove uma recíproca gratificação ilusória con siste numa atitude do médico em presentear seu pa ciente com amostras grátis de medicamentos mesmo sabendo que estes não vão ajudar em nada ou pelo contrário podem causar prejuízos E assim por diante mas prefiro deixar para o leitor exercitar sua capaci dade de observação e imaginação para suplementar a extensa e poliforme exemplificação a qual pode ser colhida a partir de um adequado senso critico em rela ção aos outros colegas ou com algum esforço e cora gem em relação a si próprio O tipo de personalidade do médico é sem dúvi da um importante fator determinante da qualidade da relação médicopaciente mas a formação de um bom médico não exige um determinado tipo padro nizado pelo contrário não importa se ele é mais ou menos extrovertido circunspecto bonachão de esti lo brincalhão e assim por diante desde que conserve alguns atributos mínimos e indispensáveis que serão mais adiante especificados A predominância de cer tas características psíquicas define o tipo de persona lidade que numa descrição a mais sintética possível permite destacar os seguintes Depressivo prevalece um permanente pessimis mo negativismo e autodesvalia Maníaco um otimismo exagerado sem base real Paranoide atitude querelante e desconfiada Obssessivo rigidez e um desgastante detalhis mo Fóbico evitação de tudo que possa despertar al guma ansiedade Histórico dramatização de qualquer situação in tolerância às frustrações usa muito o recurso da seducão Esquizoide um jeito esquisito e uma acentuada dificuldade de relacionamento pessoal Psicopata o engodo é a tônica Narcisista O valor mais importante é sempre o da busca do aplauso para si Uma combinação dos itens acima descritos con verge para a conduta médica a qual fica estrutura da numa série de capacidades e atitudes internas do médico As quais somadas aos seus conhecimentos e habilidades definirão o perfil de sua formação Isso lhe exige uma série de atributos ATRIBUTOS DO MÉDICO Faz parte de sua identidade profissional que para assegurar uma consistência e coerência profis sional o médico tenha seu esquema referencial e isso consiste no conjunto de conhecimentos afetos e experiências com os quais ele pensa age e se co munica Psicossomaticaindd 83 Psicossomaticaindd 83 05012010 121205 05012010 121205 84 Mello Filho Burd e cols O médico tem de uma forma manifesta ou la tente uma relevante potencialidade de exercer uma ação psicoterápica se entendermos Psicoterapia num sentido mais amplo ou seja como significando to das as influências psicológicas aplicadas ao paciente para fins terapêuticos É importante que o médico não incorra em ex cesso na costumeira dissociação entre o psique de um lado e o soma de outro ou do órgão doente iso ladamente dissociado da integração biopsicossocial Capacidade de intuição e de empatia É útil fa zer uma distinção entre o significado de empatia e os de simpatia e intuição Essa última é uma capacidade que pertence à área cognitiva surge antes do raciocí nio lógico dedutivo e permite ao médico reconhecer aquilo que vai além do que aparece como concreto e visível Simpatia designa a qualidade de agradar e ca tivar sendo que ela tanto pode ser um dom natural e genuíno como pode ser fruto de um estudado esfor ço A empatia no entanto é uma capacidade da área afetiva e tem uma significação bem mais profunda qual seja a de poder colocarse no lugar do paciente conforme nos ensina a etimologia em estar den tro da patia a pathos do outro Não é raro que a título de empatia o médico adote uma conduta de um desvelamento excessivo quase sempre a serviço de suas próprias ansiedades o que pode leválo a borrar os indispensáveis limites que devem sempre ser mantidos Da mesma forma é imperativo que o médico saiba delimitar os distin tos papéis e funções que em todo o ato médico são atribuições respectivas do médico do paciente do fa miliar etc e isso ganha relevância quando coincide que e um médico que esteja na condição de paciente Nos casos mais extremos em que fique perturbada a delimitação da distância e dos papéis a situação mé dica restará confusa quando não caótica E de uma adequada capacidade de empatia que derivam os es senciais atributos de respeito e tolerância Capacidade de ser continente O termo conti nente vem do latim coritenere conter e aduz à capa cidade do médico poder conter nos mesmos moldes como uma mãe tranquila faz com seu filho pequeno as angústias fantasias e necessidades de seu paciente aflito especialmente aquelas que acompanham as vi vências de morte e as agudizações das crises existen ciais É igualmente importante que o médico possa ser continente de suas próprias angústias dúvidas e do não saber A falta dessa capacidade é respon sável pela atitude médica que se caracteriza por um excesso da medicação de encaminhamentos de pe didos de exames por uma devoção exagerada ou por alguma forma de fugir do doente Capacidade para se deprimir Toda e qualquer pessoa tem virtudes e defeitos alcances e limitações e comete acertos e erros O aprendizado do médico se tempera na prática da experiência especialmente das frustrantes desde que ele tenha condições para se deprimir ou seja reconhecer e se responsabilizar por suas falhas e limitações e a partir daí procurar corrigir a trajetória de sua ininterrupta formação profissional O contrário disso ocorre com aqueles que apresentam exagerados traços caracterológicos do tipo paranoide ou narcisista o que faz com que no primeiro caso estejam sempre procurando ver a responsabilidade nos outros enquanto os mais narci sistas não conseguem olhar além do seu próprio um bigo pois estão convictos que o acerto e a verdade sempre lhes pertence e por isso mesmo não toleram contestações e se dão mal com os pacientes que não melhoram logo Uma boa elaboração depressiva abre os caminhos para a discriminação individuação au tonomia reflexão e criatividade Capacidade de comunicação Sabemos que a comunicação humana não se processa pela via única da linguagem verbal Pelo contrário é muito comum que ela se expresse através de recursos não verbais entre os quais deve ser levado muito em conta o códi go da linguagem corporal contida por exemplo nos gestos posturas actings sintomas conversivos doen ças psicossomáticas etc Não há nada pior no ato médico do que o diá logo de surdos da incomunicação razão por que é da máxima importância que o médico possa traduzir a linguagem do paciente quando ela vem trazida sob signos primitivos Toda a comunicação importa um emissor de alguma mensagem e um receptor da mes ma sendo que os seus distúrbios se originam num desses dois polos ou em ambos Na pessoa do médico essas falhas mais comu mente decorrem do fato de a não saber escutar é diferente de ouvir que é uma simples função fisiológica assim como saber ver e bem mais complexo do que simplesmente olhar b ter a mente saturada por preconceitos ou seja por préconceitos c incorrer no vício daquilo que Balint chama de função apostólica consiste numa tendência co mum nos médicos a de catequizar seus pacientes com julgamentos morais e padrões de comporta mento d haver um envolvimento contratransferencial com uma perda na delimitação dos papéis Há mais de 100 anos William Motsloy em Fisiologia da Mente escreveu Quando o sofrimento não pode se expres sar através do pranto ele faz chorar outros órgãos Psicossomaticaindd 84 Psicossomaticaindd 84 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 85 e haver um descompasso semântico ou seja mui tas palavras ou jargões técnicos que para o médi co têm um significado e para o paciente podem estar tendo outro às vezes bem o oposto f dificuldade de lidar com as verdades Este tópico diz respeito à maior ou menor capacidade do mé dico em ouvir reconhecer e comunicar as verda des penosas Dentre os inúmeros exemplos contidos em meus apontamentos recolho ao acaso um muito simples o de uma médica muito competente que não conse guira chegar ao diagnóstico de um processo maligno apesar dos claros indícios clínicos percebidos pelos demais colegas que com ela participavam de uma dis cussão clínica No grupo de reflexão que se seguiu surgiu a verdade a médica era amiga da paciente e por isso teve que negar inconscientemente é claro tão dura realidade É uma arte saber comunicar com uma linguagem de compreensão clara sem nunca fu gir da verdade as meiasverdades sim são permiti das quando elas representam um respeito ao ritmo e dosagem ditados pelo paciente sem ferir a autoes tima deste e principalmente nunca desesperançálo totalmente Creio desnecessário frisar que outros atributos poderiam ser arrolados e os que foram acima men cionados são indissociados sendo que só foram des critos separadamente em razão de um esquema de exposição ALGUMAS SUGESTÕES É de consenso que tradicionalmente nossas faculdades de Medicina descuram quase completa mente da formação psicológica do médico apesar de que mais recentemente algumas delas têm es boçado um movimento no sentido reverso O exces sivo número de alunos em cada faculdade impede uma vivência mais particularizada com os médicos instrutores o que leva a um prejuízo em ter mo delos para a identificação e logo na formação da identidade médica O mercado de trabalho compele o estudante a entrar na faculdade já querendo ser especialista e lhe falta a motivação em começar o aprendizado pela atenção primária da saúde Por outro lado esses inconvenientes são compensados pelo fato de que os alunos da atual geração são sau davelmente mais contestadores e não aceitam a im posição de uma retórica se a mesma não tiver com provação concreta A formação psicológica do médico no tocante ao desenvolvimento de atitudes internas as externas são decorrências dessas exigiria que o programa cur ricular do ensino normal fosse complementado com um Programa de Educação Médica Educação para a modificação de conduta não se consegue através de aulas seminários de psico logia dinâmica palestras cursos de atualização ou qualquer outra programação teórica ou até mesmo prática se essa não for acompanhada de um efetivo espaço que propicie exercícios de reflexão sobre as vicissitudes do ato médico Dentro deste contexto e sem a menor preten são de qualquer originalidade vamos a algumas su gestões A filosofia dos responsáveis pelo ensino médico deveria estar centrada na preocupação de conseguir uma melhor média harmônica entre a parte infor mativa e afirmativa sempre dentro de um integrado tripé biopsicossocial É evidente que outros recursos modernos como videotapes circuitos de televisão dramatizações computadores etc podem e devem ser utilizados desde que isso não implique um menos cabo à experiência única e insubstituível do contato direto com a doença e o doente Um problema que se interpõe é que nem sempre os professores mesmo os competentes e bem intencio nados estão preparados para servir como um bom mo delo de formação psicológica médica e seria desejável que os mesmos participassem de grupos de reflexão de Programas de Educação Médica Continuada As atividades clínicas constantes de seminários rounds discussões clínicas etc exercidas sempre ao vivo junto ao paciente e a posterior discussão em ambiente privado dos aspectos técnicos deveria de forma sistemática ser simultânea à apreciação da atmosfera emocional que cercou o ato médico E igualmente importante por parte dos alunos do gru po de aprendizado o exercício de auto e heteroava liação da relação médicopaciente É evidente que não é preciso que o médico seja analista ou psiquiatra para reunir as necessárias condições para bem poder coordenar atividades dessa natureza Mas é desejá vel especialmente no início que um psiquiatra bem treinado participe da equipe de educação médica O realce ao bem treinado se deve ao fato de que nada é pior do que uma participação em que prevaleçam explicações de profundos psicodinamismos ou in terpretações selvagens acerca da doença do doente e Há uma diferença quanto à ideologia de aprendizado entre ensino e educação Como nos ensina a etimologia a palavra ensino alude a Colocar dentro do aluno en uma renovada carga de informação signo enquanto o termo educação indica que a essência da aprendizagem consiste em dirigir para fora ed ducare os recursos que em estado potencial já estão dentro do individuo Psicossomaticaindd 85 Psicossomaticaindd 85 05012010 121205 05012010 121205 86 Mello Filho Burd e cols do médico isso só conduz a um descrédito da teoria psicanalítica a uma falsa noção do que deve ser con duta psicoterápica e a uma crescente incomunicação entre psiquiatras e não psiquiatras Trabalho clínico com o espírito de equipes mul tidisciplinares e serviços de interconsultoria Quanto à consultoria psiquiátrica deve ficar bem claro que a função do psiquiatra consultor não é a de quebrar galhos de intercorrências psiquiátricas ou a de as sumir o atendimento da parte psíquica Sua função é a de promover condições para o médico continuar atendendo seus pacientes só que a partir de uma vi sualização mais compreensiva Da mesma forma a interconsultoria ficaria muito enriquecida a partir da instalação de unidades psiquiátricas dentro dos hos pitais gerais e de um estímulo à investigação e pes quisa dos aspectos psicossomáticos da Medicina Participação do médico em programas de pro moção de saúde mental em nível comunitário com um estímulo a que exercite a coordenação de ativi dades grupais com fins de Educação em Saúde Pri mária Promoção de programas integrativos de Educa ção Médica Continuada como apregoamos Zimer man 1980 p 155158 desde o início da vida aca dêmica com ênfase nos grupos de ref1exão O manejo técnico utilizado neste tipo de grupo consiste em que seu coordenador centralize a discus são no tema que como um denominador comum emerge da livre discussão que se estabelece a par tir do aporte das vivências clínicas O coordenador através de breves estímulos colocações e indagações mercê de uma capacidade de discriminação e sínte se ajuda o grupo a sentir indagar e incorporar um conjunto de valores que convergem para as atitudes médicas A responsabilidade pelo ensino médico e pelas chefias de serviços assistenciais deveria ser entregue a médicos sintonizados com o espírito da formação que foi preconizado ao longo deste trabalho REFERÊNCIAS Balint M The doctor his patient and the Íllness Londres Pitman Medic Public 1957 Bleger J Gmpos operativos no ensino In Temas de Psicologia São Paulo Martins Fontes 1987 Dellarosa A Grupos de Reflexión Buenos Aires Paidós 1979 Simmel E The doctor game illness and the profession of Medici ne Inr 1 Of PsychoAnal n 7 1926 Tahka Veikko O relacionamento médicopaciente Porto Alegre Artes Médicas 1988 Zimerman D E Considerações em torno de um Programa de Educação Médica Continuada Rev AMRIGS Porto Alegre v 24 n 2 p 155158 1980 Zimerman D E Aspectos psiquiátricos na prática médica O me dico e seus relacionamentos Rev Psiquiatria do RS Porto Ale gre v 3 n 1p36401981 Zimerman D E Consultoria Psiquiátrica Rev AMRIGS Porto Alegre v 27 n 2 p 271274 1983 Zimerman D E Técnicas grupais aplicadas ao ensino médico In Grupoterapia Hoje Porto Alegre Artes Médicas 1986 Grupo de reflexão é a denominação utilizada pelo psicanalista argentino Dellarosa 1979 para um tipo de atividade grupal de educaçãoaprendizagem cujo modelo de funcionamento equivale ao de outros conhecidos com denominações diferentes como por exemplo Grupo Balint Balint 1957 ou Grupo operativo de Pichon Riviere Ble ger 1987 ou Grupo F F vem de formation e de free Prefiro o termo reflexão porque este sugere mais claramente que os participantes possam se refletir uns nos outros com vistas a uma maior valorização dos aspectos positivos e a uma menor desvalorização dos neuróticos por outro lado o termo re flexão indica que a finalidade precípua do grupo é a de levar o indivíduo a flectirse sobre si próprio através do pensar e do sentir e assim leválo a aprender a aprender Psicossomaticaindd 86 Psicossomaticaindd 86 05012010 121205 05012010 121205 Psicologia Médica é uma ciência nova e se ocu pa fundamentalmente da relação médicopaciente Embora o encontro diagnóstico e terapêutico crie uma unidade funcional fazse mister estudar o que é ser médico a fim de compreender como diferentes fatores interferem na tarefa assistencial A preocupação com a identidade é milenar e se na adolescência sua consolidação é meta relevante esperase que na idade adulta dois aspectos básicos já estejam definidos o desempenho do papel profis sional e do papel heterossexual A identidade basta ver nas carteiras ou nos cabeçalhos de dossiês pessoais tem dimensões que a fundamentam e impregnam de significado tais como nome filiação naturalidade nacionalidade religião idade estado civil e profissão Enquanto tais dimensões radicam no biológico status e papel são o que de fato são configurandose a identidade etária genética e sexual Entretanto no campo psi cossocial o que se agiganta é um leque de opções em que a atividade laborativa nem sempre repre senta o objetivo colimado Há destarte pessoas que não escolheram suas profissões delas não gos tam e caso sejam médicos o grande prejudicado é o paciente Assim em circusntâncias ideais a profissão médica deveria originarse na vocação vocare cha mar Isso significa que o médico optou pelo papel porquanto se sente por ele chamado atraído e capa citado a amar sua atividade Tratase pois de uma opção adulta e o papel só pode ser exercido por quem já está suficientemente amadurecido Estes são aspectos que pavimentam o início de uma carreira ser adulto e amar a atividade profis sional Todavia há certas particularidades de ine gável importância que passaremos a ver pois per mitem aprofundar o conhecimento da identidade médica O MUNDO DE RELAÇÕES Surge em primeiro lugar a relação consigo mes mo Em sua trajetória existencial o médico passa por crises em que se altera Em que pesem grandes trans formações ditadas por crises evolutivas ou acidentais há normalmente um vínculo de integração temporal que assegura ao médico ser ele mesmo sempre Em segundo lugar há que enfocar a relação que resulta nos pares simétricos Isso quer dizer que no relacionamento com seus colegas o médico com eles se identifica positiva ou negativamente depurando e aprimorando sua identidade profissional Ao lado disso desponta a relação médicopa ciente que cria um par complementar Assim aparece a vivência contrastante eu sou eu porque não sou como o outro No caso anterior a formulação é nós médicos somos idênticos universalismo No entanto ser médico e ser paciente são condi ções que se opõem dialeticamente É de notar que o médico quando adoece se compreender as vicissitu des do enfermo ganhará uma dimensão mais huma na no exercício de sua função HOMEM OU DEUS A medicina nasceu com o sacerdócio e assim apareceu impregnada de magia religião e poder O médico das sociedades tribais e o intermediá rio entre deuses e mortais Em realidade seu poder é maior que o do próprio chefe reforçando a fanta sia arcaica do ser humano ambicioso por ser divino Na trilha mítica do herói encontramos não raro sua morte na identidade humana para renascer na identi dade divina sendo então adorado como tal A importância do status de médico no sistema social embriaga e desde os feiticeiros tribais até seus 7 IDENTIDADE MÉDICA Adolpho Hoirisch Psicossomaticaindd 87 Psicossomaticaindd 87 05012010 121205 05012010 121205 88 Mello Filho Burd e cols sucessores contemporâneos diplomados todo cuidado é pouco para não nos comportarmos como deuses A evocação do mito grego do deus da Medicina reforça a tese em questão Asclépios ou Esculápio foi além da arte de curar e começou a ressuscitar os mortos Hades ou Plutão vendo seu reino despo voado queixouse a Zeus ou Júpiter e o pai dos deuses senhor absoluto do Olimpo fulminou Asclé pios com um raio A identidade médica se deforma quando este profissional impede que o moribundo pereça com dignidade prolongando uma vida impregnada de so frimento e humilhação Outra distorção da identidade médica vinculase ao papel heróico destarte certos profissionais sentemse frustrados e até reagem com desprezo e hostilidade quando são chamados a aten der casos sem gravidade bem como a simuladores ou hipocondríacos A ideia de que a águia não pega moscas não se aplica ao exercício da Medicina INICIAÇÃO CONTRADIÇÕES E CRISES O rito de iniciação do médico passou a ser efetua do nas faculdades e a prática profissional saiu dos tem plos para se concretizar nos consultórios e hospitais A entrada do estudante na faculdade de Medi cina abre um mundo novo em que rupturas vincu ladas a contradições se sucedem com extraordinária rapidez O aluno que fora habituado a respeitar os mortos sentese agora como um profanador Aliás o contacto com o morto revestese de particular im portância constituindose em verdadeiro batismo de fogo Tal crise põe à prova a capacidade de enfrentar a morte e conviver com sua presença marcando de modo indelével a iniciação do calouro A par disso o aluno geralmente um jovem até então condicionado a sentir aversão por fezes urina secreção purulenta etc passa a partir do ingresso na faculdade a lidar com tais materiais Sucede como crise não menos relevante a tran sição do ciclo básico para o ciclo clínico Do convívio com peças anatômicas e material de laboratório en fim com o inanimado o estudante é lançado no hos pital onde no ambulatório e nas enfermarias estão pessoas vivas porém avassaladas pela doença pelo sofrimento pela mutilação pela invalidez e o que se agiganta na formação médica pela morte O acompanhamento de pacientes acometidos de doenças graves acarreta vez por outra nos estu dantes de Medicina autêntica identificação com os pacientes Os alunos chegam mesmo de tão impres sionados que ficam a experimentar os sintomas dos enfermos E o que A Eksterman chama de hipocon dria transitória do terceiro ano Outra condição que se soma às anteriores refe rese à invasão da intimidade Os estudante de Medi cina anteriormente educado a respeitar a nudez e a privacidade das pessoas quando se iniciam no ciclo profissinal devem mudar de comportamento Crises e contradições se sucedem comparando se a verdadeira corrida de obstáculos Verificam que professores de aulas bem ordenadas claras e ricas de conteúdo podem não ser bem sucedidos no exercício da clínica privada Desiludemse também com alguns mestres que tratam de modo diverso o paciente parti cular e o institucional Seguemse várias outras Vale mencionar a per da do primeiro paciente que acompanha o caso de difícil diagnóstico eou de resultados desconcertantes à terapêutica o convívio com loucos na psiquiatria a escolha da especialidade e finalmente a colação de grau SER ADULTO É inadmissível imaginar o desempenho do papel de médico sem que o indivíduo seja adulto ou velho O adulto apresenta uma série de característi cas muitas das quais indispensáveis à atividade em apreço Citemos algumas alto nível de tolerância à frustração capacidade de controlar racionalmente ou derivar adequadamente os impulsos agressivos e eró ticos capacidade de se adaptar às situações novas ter propósitos bem definidos e coerentes capacidade de suportar a realidade capacidade de fazer planos para o futuro e até mesmo prevêlo maturidade psi cossexual renúncia ao impossível etc A tudo isso que foi enfocado em relação à ma turidade agrega o velho como características mar cantes a sabedoria a prudência e a experiência É óbvio que um dos traços do velho o modo de ser conservador não pode contaminar a ciência médica timbrada como todo corpo de conhecimento pela initerrupta renovação CIENTISTA Como cientista deve o médico orientarse pela procura permanente da verdade Entretanto ocorre que muitas verdades são provisórias razão pela qual deve o médico se capacitar a substituir seus conheci mentos por outros mais atualizados e úteis sempre que necessário O espírito jovem que se confunde com o revolucionário deve nortear o cientista na busca in cessante de novos inventos e descobertas A ciência não pode ficar escravizada ao espírito conservador agora ela se supera em progressão exponencial Psicossomaticaindd 88 Psicossomaticaindd 88 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 89 Surge então a educação permanente que marca o verdadeiro cientista Congressos livros e revistas especializadas centros de estudos etc são formas de renovar conhecimentos e técnicas colimando o bem estar da clientela É direito de qualquer cientista ter religião ou pro fessar e defender ideias políticas o que não se pode aceitar é o avassalamento da ciência a preconceitos Evidentemente o trato aos pacientes é igualitário é inconcebível diferir ao sabor de religião partido políti co nível econômico relevância social etc Nunca é demais recordar a formulação de Mário Bunge 1972 segundo a qual a ciência se corrompe quando se põe a serviço da destruição do dogma do privilégio e da opressão Nessa linha importa enfatizar que o médico in tegra uma confraria elitista juramentada subordina da a rigoroso Código de Ética Se voltarmos ao passado histórico da Medicina veremos o Código de Hamurabi como enérgica adver tência à responsabilidade pecando porém pelo peso extremado das penas impostas aos médicos O insu cesso de certos tratamentos resultando em invalidez podia ser motivo suficiente para amputar as mãos dos médicos No Egito Antigo havia nos templos um livro com as regras da arte de curar Quem as violava podia ser castigado até com a pena de morte Episódio digno de alusão ocorreu na Grécia An tiga quando Alexandre condenou Glauco à crucifica ção porque abandonou um paciente febril a fim de ir ao teatro Outro aspecto merecedor de estudo referese às manchas cegas do conhecimento médico Heródoto de Halicarnasso redigiu em 450 aC o primeiro do cumento sobre a medicina egípcia Diz ele O país todo está cheio de médicos pois há médicos para os olhos outros para a cabeça outros para os dentes outros para o corpo e outros também para doenças obscuras O médico que não foge ao enigma das doen ças obscuras se não for um charlatão represen ta a figura heróica sempre disposta a saber mais da Medicina e de seus pacientes É neste mundo do desafio da ignorância que cresce o estudioso e o pesquisador sem os quais a ciência permanece estagnada Podese dizer que até o século XVI as inovações encontravam sempre grandes resistências No perío do renascentista foi quebrada a influência escolástica da Igreja e os dogmas foram substituídos pela experi mentação e pela observação sob o domínio da lógica e do raciocínio Como uma profissão verdadeiramente baseada em sólido e atualizado saber científico e uma práti ca sabidamente eficiente a Medicina autêntica não pode mais ser confundida com o charlatanismo o curandeirismo popular ou a feitiçaria O médico que abraça as práticas heterodoxas ou acientíficas distan ciase de seu verdadeiro papel SOCIEDADES MÉDICAS A exemplo das sociedades secretas que se em penham na constante busca da verdade apresentan do na sua inserção do contexto social uma clara deli mitação entre fora e dentro assim se apresentam os médicos frequentemente A denominada letra difícil os termos impreg nados de raízes gregas a anatomia prenhe de nomes próprios difíceis de memorizar a bioquímica e a far macopeia girando em torno de estruturas complexas e até mesmo de denominações que encerram um sem número de radicais desconhecidos dos leigos o co nhecimento das iatropatogenias que tira dos curan deiros populares onde se incluem os balconistas de farmácia o conhecimento dos efeitos adversos dos medicamentos tudo isso e muito mais dá maior ni tidez à delimitação que se impõe entre os iniciados nos segredos da Medicina e os profanos Como confraria elitista juramentada sentem seus integrantes a necessidade da coesão e solidarie dade análogas à das sociedades maçônicas que tam bém impõem pesadas sanções aos transgressores de seus códigos CONSIDERAÇÕES FINAIS Se a Hipócrates coube alicerçar o ensino médi co com ensinamentos profundos e bem estruturados foi na universidade medieval que o título de doutor foi criado Com o título surgiu também o status no contexto social uma educação apropriada com im portantes afiliações em diferentes instituições Assim no século XV apareceram leis que regulamentavam o exercício da Medicina criando currículos exames e concessão do grau a partir do estado a remuneração e vigilância sanitária das cidades Essa legislação se espalhou gradativamente da Sicília para a Espanha e a seguir para a Alemanha Surgiu então o papel social do médico com estabilidade e proteção para desenvolver métodos e técnicas aplicando conheci mentos de uma ciência que combatia doenças Aspecto interessante bem ilustrado no cine ma teatro e histórias em quadrinhos é a imagem do médico na sociedade contemporânea Além de pôr ênfase em seu comportamento altruísta retratase o médico em um homem como pessoa de meiaidade ou velho de cabelos encanecidos ou calvo de óculos Psicossomaticaindd 89 Psicossomaticaindd 89 05012010 121205 05012010 121205 90 Mello Filho Burd e cols que mantém sua neutralidade afetiva a despeito de comportamento sedutor e erótico das pacientes ou diante de reações hostis dos enfermos Esmaecidos os laços mágicoreligiosos tornou se o médico mais e mais um cientista Esperase sempre que o médico tenha conhecimento científico amplo profundo e atualizado além de prática para lidar eficientemente com os pacientes O interesse voltado ao bemestar do público re legando a segundo plano os ganhos materiais é uma característica marcante do papel social de médico considerado como algo singular se comparado a ou tras profissões A especificidade funcional dálhe direitos até deveres muito específicos exame físico questionar aspectos íntimos do paciente decidir internações Ao mesmo tempo sua função encerra aspectos universais da profissão isto é não emanam de casos particulares Incluise aqui por exemplo a decisão de desligar aparelhos ou ministrar entorpecentes pos sibilitando assim a chamada morte com dignidade Vale dizer há determinados procedimentos do médi co que fazem parte do comportamento universal ima nente à profissão O Xamã é uma figura altamente ilustrativa que sobrevive nas sociedades tribais do mundo atual Ora ali fica também clara a exigência da neutralida de afetiva Um dos modelos de relação xamãdoente se as senta na circulação da enfermidade É de notar que por meio de contacto físico a doença migrará do corpo do paciente para o do feiticeiro e este por sua vez a jogará para fora em um campo tabu Entretanto o as pecto importante é que apesar da doença ser incorpo rada pelo médico tribal esta não lhe causa dano Isso é válido ainda hoje visto como é de se desejar não ter o médico de contrair doenças e no modelo psiquiátrico não se envolver na loucura do enfermo Do exposto podemos concluir resumidamente que o médico é uma pessoa amadurecida um cien tista diplomado consciente da educação permanente como indispensável altruísta capaz de controlar suas emoções para preservar a relação com o paciente e não lhe causar dano com domínio de métodos e téc nicas com funções específicas e universais integrado a grupos societários isento de preconceitos no trato de paciente que ama sua atividade a pratica o bem responsável pela liderança da equipe de saúde e ins tituições de assistência ensino e pesquisa no campo da saúde obediente a preceitos éticos etc Como qualquer trabalho científico este não está completo Se motivou o leitor a pensar e descobrir outros aspectos terá atingido um de seus fundamen tais objetivos REFERÊNCIAS Bloom S W The doctor and his patient New York Free Press 1965 Bunge M Ética y Ciencia 2 ed Buenos Aires Siglc Veinte 1972 Coe R M Sociología dela Medicina 2ed Madrid Alianza Edi toria 1979 Galdston I Social and historical foundations Of modem medi cine New York BrunnerMazel 1981 Hoirisch A O Problema da Identidade Médica Tese de Concurso Rio de Janeiro 1976 Mazzei M L D S Dignidad de la Medicina y Otros ensayos mé dicos Buenos Aires Lopez Libreros 1974 Merton R M Ambivaléncia sociológica Rio de Janeiro Zahar 1979 Parsons T The social system New York Free Press 1964 Thørwald J O Segredo dos Médicus Antigos São Paulo Me lhøramentos 1985 Vilabrega1 P La relation thérapeutique Paris Flammariøn 1962 Psicossomaticaindd 90 Psicossomaticaindd 90 05012010 121205 05012010 121205 PARTE 3 Temas básicos Psicossomaticaindd 91 Psicossomaticaindd 91 05012010 121205 05012010 121205 PSICANÁLISE E MEDICINA PSICOSSOMÁTICA A Psicanálise e a Medicina Psicossomática es tão articuladas histórica e praticamente Renovar a análise dessa articulação é sempre tarefa oportuna permite revelar novos enlaces da Medicina com a Psi canálise e abrir perspectivas Antes é necessário diante da profusão de con ceitos delimitar nosso campo epistemológico A Psi canálise continua sendo uma psicologia em função do inconsciente um método de investigação da mente e uma atividade terapêutica Medicina Psicossomática por sua vez é um estudo das relações mentecorpo com ênfase na explicação psicológica da patologia so mática uma proposta de assistência integral e uma transcrição para a linguagem psicológica dos sinto mas corporais Creio desnecessário lembrar as raízes históricas desse último conceito mas vale sublinhar o tema das organoneuroses pautado no modelo de histeria de conversão como propôs o Fenichel Tem aumentado minha convicção de que a Me dicina Psicossomática deve mais ao psicanalista que à Psicanálise e talvez devesse restringir minha expo sição a esse aspecto embora o tema me obrigue a buscar principalmente os pontos de interseção das duas disciplinas Mas há que resgatar a pessoa do psicanalista como o grande arquiteto do movimento psicossomático do século XX e portanto da medicina integral e humanística enfim do discurso médico assistencial neohipocrático Valeria a pergunta o que é um psicanalista Sa bemos algumas coisas do que ele não é mais do que ele é Por exemplo não é exatamente um psicólogo ou um antropólogo um médico sociólogo educa dor filósofo ou religioso embora tenha algo de cada um desses profissionais Sabemos que na origem foi médico mas Freud repudiou essa equivalência não porque rejeitasse sua formação mas porque sempre percebeu a emergência de uma nova área do conheci mento situada entre o corpo e a mente e também nos espaços intermediários das relações interpessoais A Psicologia ocupase da mente mas isso não atende aos objetivos específicos da Psicanálise que privilegia as relações da mente assim a Sociologia estuda os elementos da constituição social e suas re lações enquanto a Psicanálise visa às raízes incons cientes das relações interpessoais Não é Antropologia porque não estuda o homem ente concreto mas a re lação dele consigo próprio tampouco assemelhase à Pedagogia porque é mais que ministrar conhecimen tos é o ato de se revelar e se autoconhecer Não se equipara à Metafísica no seu afã pelas respostas finais da Filosofia atémse apenas às origens da necessi dade de conhecer e aproximase do religioso quando aspira à verdade O religioso Deus o psicanalista a limitada verdade de si mesmo Não põe sequer a realidade entre parênteses como o faria o fenome nólogo contentase em descobrir os significados do acontecer mental O psicanalista é assim o estudioso e o profissional dos atos intermediários da vida hu mana humana enquanto coexistência significado e recriação Não é por acaso que a Psicanálise mal conse guiu construir uma linguagem própria para expres sar seus conceitos específicos e toma seguidamente empréstimos de outras ciências humanas e naturais Como também terse prestado como laboratório de infindas elucubrações intelectuais sobre o homem A Psicanálise é o lugar de criação permanente e o psi canalista é o espectador privilegiado desse momento Conforme Freud expôs em sua teoria estrutural é o momento em que a carne se faz verbo ou seja em que id se transforma em ego ou o isso se transforma em mim Nada tão absolutamente psicossomático quanto essa transformação e nada tão decididamente psica nalítico quanto o conhecimento dessa transformação Eis o ponto chave da interseção da Psicanálise com a Medicina Psicossomática Se pudéssemos dissecar to dos os componentes comprometidos na transforma ção do id em ego teríamos possivelmente respondido aos enigmas que subsistem entre a mente e o corpo 8 PSICOSSOMÁTICA O DIÁLOGO ENTRE A PSICANÁLISE E A MEDICINA Abram Eksterman Psicossomaticaindd 93 Psicossomaticaindd 93 05012010 121205 05012010 121205 94 Mello Filho Burd e cols Muitos elementos desse fenômeno complexo já foram revelados mas ainda não formam uma tota lidade coerente e significativa Já compreendemos alguns concomitantes hermenêuticos das manifesta ções físicas como desvelamos íntimos bioquimismos de delicadas operações mentais Já não nos surpre endem generalizações em que se afirma que todas as doenças males e distúrbios são psicossomáticos mesmo aqueles da clientela psicanalítica assim como a Medicina já deixou o sorriso irônico e cético ante interpretações psicanalíticas de manifestações corporais Ainda é pouco embora estejamos esmiu çando a intimidade físicoquímica das dimensões mo leculares e desvelando as mais estranhas fantasias do inconsciente É pouco para se estabelecer a unidade psicossomática em que a mente e o corpo possam ser representados mais que como partes de um todo o próprio todo o sujeito da existência O ponto teórico nodal que descreve a transfor mação do id em ego constitui a área de interseção da Psicanálise com a Medicina Psicossomática Freud quando discute a origem da própria mente Freud 1950 1900 1911 1915 1921 1923 1926 1933 e 1940 estabelece que a atividade corporal origina o id que em contato com o mundo exterior diferen cia uma capa mais superficial o ego Sugere que não só a atividade físicobiológica está representada na mente mas ela própria se transforma em mente Em bora no rigor do modelo físicoquímico de seu mestre Bruecke não creio que tenhamos hoje nada melhor para explicar a gênese da mente Entendase aqui não só a gênese dos processos mentais mas da própria existência da mente a qual resultaria da atividade biológica e dos múltiplos di namismos que intervêm na adaptação do organismo ao meio tanto para se perpetuar como espécie como para se preservar como indivíduo Assim a pergunta o que é mental é respondida pelo biológico Essa perspectiva unitária que não esgota o tema e a raiz de nossa concepção psicossomática Torna imperativo o estudo da mente como atividade biológica se qui sermos compreender o homem como um todo holos e refuga as observações ingênuas de sequências ou concomítáncias físicas e mentais como indicadores de causalidade tanto no psíquico para o somático como do somático para o psíquico O psicanalista patrocinou a contemplação do lugar onde o sistema físicocorporal se transfigura no ser humanopsicológico Um sistema abrindose para o outro e não causandoo Quando o id se transforma em ego o humano está sendo criado e assim a hu manidade Vários conceitos confluem para caracterizar esse espaço onde se transformam as atividades bio lógicas em mentais Um deles é o da transformação do processo primário em secundário ou em outros termos o que é experimentado como concreto real transmutase em algo abstrato virtual suscetível de ser consciente O alucinar tornase pensamento Ainda nesse espaço mental podemos entender como os conceitos da Escola Inglesa representados pelos dois impulsos básicos de amor e ódio corporificamse em substân cia mental do id e ensejam uma complexa trama de associações e conflitos a partir do contato sensorial com o mundo exterior apreendendo objetos tanto de dentro quanto de fora e produzindo uma espécie de casa malassombrada Assim como os conceitos de Bion que servem como o tecido conjuntivo dessas transformações através de composições caprichosas dos elementos psíquicos São enfim as hipóteses heuristicamente mais férteis para operacionalizar a retórica psicossomática no sentido de assegurar fun damento para a terapêutica psicológica da patologia com expressão corporal Portanto o corpo representase e recriase na mente produzindo significados que permitem o diá logo e a intervenção de um interlocutor A interven ção do interlocutor situação básica da psicanálise clínica não assegura na esfera somática necessaria mente influência curativa Caso estivéssemos traba lhando com a concepção dualista mente e corpo psí quico e somático poderíamos inferir relações causais no sentido da mente para o corpo como o fizemos no sentido corpo para a mente quando compreendendo o corpo como um sistema afirmamos que o corpo causa a mente ao se esgotar sua capacidade como sistema abrindose para um sistema hierarquicamen te mais complexo a própria mente Nesse caso não há sentido inverso Concebemos a mente não como substância no sentido material e concreto mas como algo que se estende para além das concepções sen soriais Por isso quando Freud expõe suas concepções sobre o aparelho mental o faz metaforicamente como uma espécie de realidade material que se esten de por espécie de espaço E um construto teórico A observação empírica da aparente influência dos processos mentais sobre as funções somáticas é que deu origem às especulações sobre a gênese psi cológica dos transtornos somáticos E sem dúvida quando estados emocionais corriqueiros são acom panhados de modificações somáticas é difícil resistir à tendência de estabelecer nexos causais entre por exemplo a tristeza e o choro a raiva e a azia o medo e a palidez a alegria e a mímica do riso São infini dades de exemplos frequentemente apontados como evidências axiomáticas das relações causais mente corpo e que engordam o rol dos argumentos em favor da psicogenia Quando tantas evidências falam pela Psicossomaticaindd 94 Psicossomaticaindd 94 05012010 121205 05012010 121205 dualidade a referência à unidade psicossomática soa como quimera metafísica Como sabemos essas explicações causais passa ram por três vertentes teóricas da Psicanálise A primeira delas e também a mais primitiva parte da premissa de energias psíquicas capazes de intervir nos fenômenos orgânicos corporais Essas energias livres ou ligadas antecipam princípios da moderna Cibernética e servem para lastrear a con cepção econômica da mente Delas derivam o conceito de libido de investi mento ou catexia e as bases dinâmicas dos processos de defesa Problemas técnicos como o da analisabili dade também receberam influência do ponto de vista econômico Dois mecanismos de fundamental impor tância estão vinculados às formulações energéticas a sublimação da qual deriva a formação cultural do ego e a formação de sintomas base para o estudo da Patologia Psicanalítica e subsídio essencial para o estudo da Patologia Geral A segunda vertente teórica referese a organiza ção simbólica da mente e tem subministrado impor tantes contribuições para a Psicolinguística Aí estão incluídos os conceitos de representação o estudo da memória o do esquecimento e falsificação da associação de ideias e dos processos de pensar nos quais Freud distinguiu uma forma primária ligada à linguagem inconsciente e uma forma secundária ligada à consciência e à comunicação Daí derivam nos dias atuais estudos para o esclarecimento psica nalítico do processo cognitivo Através de complexos processos de interação com o mundo a mente como concebida pela Psicanálise organiza as percepções e individualiza o ambiente Tal organização percep tiva é resultado do amálgama de elemetos das fan tasias inconscientes com as informações sensoriais estruturando um universo simbólico dentro do qual o individuo passa a viver É um modelo superponível ao concebido por Jacob von Uexküll 1922 deriva do do estudo do comportamento de certos animais Afirmava o grande biólogo alemão que nosso mundo circundante Mitwelt é percebido de forma diferente pelos seres vivos cada indivíduo vive de forma pró pria o seu mundo Umwelt Podese compreender destarte como a dinâmi ca mental constrói a sua realidade externa a qual por sua vez é responsável por acionar os mecanismos adaptativos do organismo E como cada indivíduo tem seu mundo o que nos seres humanos os converte em pessoas Mundo bom mau agressivo amoroso não tanto como ele o mundo de fato é mas como ele e construído O que chamamos de realidade exterior é a troposfera ecológica de cada pessoa construída a partir do universo simbólico de seu psiquismo e assim convertido a um hábitat cultural capaz de atender às necessidadcs do organismo Dessa forma os modelos ecológicos podem variar desde aqueles capazes de as segurar adaptações ótimas até aqueles psicotizados e psicotizantes que deterioram e desintegram a capaci dade adaptativa Aqui temos uma alternativa para refletir sobre a intervenção da mente sobre o corpo substancialmen te diferente daquela que sublinha relações causais A mente na medida em que constrói suas concepções de mundo e portanto o próprio ambiente onde pas sa a viver não só experimenta suas criações como reais como as empurra para fora transformandoas em objetos da cultura transfigurando a realidade ex terna O corpo terá assim de se adaptar àquele mun do particular criado pelo próprio indivíduo e pela sua cultura que passa a ser sua única realidade Assim pois não existe ambiente natural para o homem por que para ele a Natureza foi convertida em mundo humano por seus próprios processos mentais A terceira vertente teórica referese ao momen to evolutivo que o organismo privilegia nas suas de cisões adaptativas Faz parte da concepção psicana lítica o estudo pormenorizado do desenvolvimento com uma importante diferença sobre todas as demais psicologias Enquanto o modelo adotado pela Psico logia do Desenvolvimento é o do processo transfor mações ao longo da linha do tempo o da Psicanálise é o da estrutura transformações cambiantes dentro do espaço O espaço psicanalítico contém o tempo biográfico e se estrutura com ele A concepção atem poral do inconsciente permitenos entender que o mental psicanaliticamente concebido contém uma biografia sempre presente ou seja no homem his tória é um presente contínuo A memória fica sendo não a reserva do passado mas o fato préconsciente ou inconsciente de uma estrutura mental Quem pois responde às exigências do mundo exterior ao Umwelt amálgama de fantasias incons cientes com informações sensoriais Um ponto privi legiado do desenvolvimento de uma totalidade bio gráfica que se estende como estrutura Eis o esboço das interseções da Psicanálise com a Medicina Psicossomática com alguns vislumbres de como a mente e o corpo estão ligados na teoria como se articulam para produzir prazer sofrimento saúde lesão ou doença Assim o luto pode ser luto patológico nas identificações simbólicas com o mor to o corpo altera a imunidade para se adaptar a uma ecologia percebida como estéril mas que pode estar repleta de microorganismos as perdas emocionais empobrecem o ego vulnerabilizando dessa forma o corpo na medida em que seu espaço simbólico care ce de objetos amorosos e protetores enfim o mun do pode ser vivido como sendo um lugar de estresse insuportável ou ao contrário um lugar idealizado Psicossomaticaindd 95 Psicossomaticaindd 95 05012010 121205 05012010 121205 96 Mello Filho Burd e cols onde igualmente o organismo acaba lesado por não conseguir acionar defesas indispensáveis É sempre oportuno precaverse contra o entu siasmo exagerado quanto à contribuição psicanalíti ca imaginandoa uma cornucópia inesgotável de ex plicações ou uma fonte de possibilidades terapêuticas de molde a tornála panaceia universal Não creio que o modelo psicanalítico possa ser vir ao modelo médico dedicado à pesquisa etiológica A Psicanálise não me parece ciência que explique cau sas Ela expõe processos estruturas sistemas comple xos em que o conceito de causa se dilui na infinita causalidade Não é função da Psicanálise estabelecer etiologias mas gnose conhecimento Cabe portanto a insistência crítica sobre a noção de psicogênese tão em voga na Medicina Psicossomática o que chegou a produzir indicações da terapêutica psicanalítica como específica para certas doenças psicossomáticas A contribuição da Psicanálise à Patologia Geral e ace nar com uma nova concepção do adoecer e do gerar saúde a concepção psicossomática holistica Não cessa na compreensão da patogenia somá tica a contribuição da Psicanálise A Psicossomática também designa conota assistência integrada Aqui voltamos à contribuição não exatamente da Psica nálise mas do psicanalista trabalhando no Hospital Geral na medida em que pode apreender e traba lhar os aspectos irracionais das relações humanas na prática assistencial tomando como base o modelo transferencial contratransferencial da interação psi canalítica Ao lado disso estimula o médico do corpo a conviver com patologias mais sutis de expressão mental e acima de tudo conviver oom os pacientes compreendendoos Muita iatropatogenia é assim poupada respeitandose o estado do paciente neuró tico e com personalidade perturbada além de com prometer o médico com seu doente ampliando sua ação assistencial E o pediatra que inclui a mãe o obstetra que inclui o marido da gestante o clínico que se abre para o contorno social do doente o ci rurgião que pensa na família o hospital nos acom panhantes Exemplos ao acaso apenas para esboçar um novo horizonte assistencial O médico de família ressurge com uma perspectiva de ação e de compre ensão da maior abrangência das raízes inconscientes da conduta A relação médicopaciente apresentase como fonte extraordinária de recursos terapêuticos e criase uma nova disciplina a Psicologia Médica DANILO PERESTRELLO O PSICANALISTA E A MEDICINA Para destacar a pessoa do psicanalista como articulador do movimento psicossomático vou utili zar o exemplo de Danilo Perestrello Mas devo aos amantes do pensamento imparcial se é que os há uma advertência renunciei a qualquer tentativa de uma apreciação crítica e isenta das ideias médi cas e psicanalíticas de meu mestre e amigo Danilo Perestrello Não sem algumas explicações sobre essa atitude que parece perverter a boa educação científi ca e portanto desacreditar um texto que pretendo seja levado a sério Éme impossível dissociar a obra de seu autor Minha convivência intelectual com ele ao longo de muitos anos fizeramme chegar a saber sem modéstia mais do que ele mesmo publicou por que o texto mais importante Perestrello para mim o escreveu dentro de minha vida seja através da análise que com ele tive de todo trabalho conjunto que realizamos ou da associação acadêmica fundi da com a mais completa amizade Assim tudo o que disser dele e de sua obra não será certamente da perspectiva do relator desapaixonado Pelo contrário repensando suas ideias sintoas vir de sentimentos profundos e intensos com todo aquele entusiasmo das épocas felizes em que dávamos aulas juntos es crevíamos pensávamos estudávamos E ríamos a va ler principalmente dos que não sabiam rir Digo tudo isso sem pudor porque aprendi com Perestrello que o relacionamento humano se estabelece nas malhas de afetos intensos o pensamento se agrega num todo significativo a partir da capacidade de sentir a vida o homem é compreendido das profundezas de suas paixões a Natureza só faz sentido quando pode ser amada ou odiada As ideias pousadas em terra fir me são moribundos prestes a serem enterrados As ideias vivas são como barcos ao sabor dos caprichos do mar Talvez por isso Perestrello amasse o mar e por ele navegasse tanto Ele convenceume que o diálogo entre a Psica nálise e a Medicina só é possível pela presença do intérprete psicanalista Não exatamente aquele que faz interpretações como poderíamos deduzir do es quema da psicanálise terapêutica mas o que apro xima os significados de duas linguagens diferentes a biomédica e a psicológica e as torna inteligíveis entre si Também convenceume embora nunca o ti vesse declarado que a Psicanálise pode ser o alicerce da própria arte médica daquela arte que transcen dendo a simples cura de doenças restaura o mode lo hipocrático de tratar doentes o que é o cerne da própria cura Convivi com ele 13 anos no Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro de 1963 a 1976 quando se afastou por doença deixan dome no encargo de prosseguir sua obra Antes de encontrálo pela primeira vez já havia instalado na mesma Santa Casa no Serviço do Prof Carlos Cruz Lima um Setor de Medicina Psicossomática Devo a Psicossomaticaindd 96 Psicossomaticaindd 96 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 97 Cruz Lima a insistência por nossa aproximação Fui vêlo em minúscula saleta dedicada ao gabinete de Psicossomática no Serviço do Prof Clementino Fraga Filho Amável e inquieto ao mesmo tempo seus olhos penetrantes pareciam passear o tempo todo e tinha o hábito de cruzar as pernas e agitar uma delas Pare cia pensar com o corpo todo e assim dava a estranha sensação de saber demais Acho que por isso também procurei mostrar que sabia alguma coisa e despejei meus parcos conhecimentos Perestrello ficou muito quieto ouvindome com atenção e interesse e fez al gumas quantas perguntas Tive até a incrível sensa ção de terlhe ensinado alguma coisa quando sabia que ali estava aprendendo Não se tornar humilde como se poderia supor mas ouvinte Raramente me senti tão ouvido e confesso tive medo E assim fiquei sem procurálo alguns meses quando encontroume na rua insistiu para que frequentasse suas famosas reuniões de sextasfeiras e o fez com tanta convicção que não resisti mais Por que tive medo Possivelmen te por duas razões Perestrello era avassaladoramente autêntico e diante de alguém assim ficase obrigado a ser o que se é Acho que tive medo de me revelar Assim também sua intensa capacidade de ligação pes soal comprometia de imediato o interlocutor num vínculo afetivo Naquela época não estava disposto nem a me revelar nem a me comprometer em novas amizades Este é o psicanalista no Hospital Geral Suscita compromisso pessoal e autenticidade Assim era Pe restrello o psicanalista O encaixe com ele era com um catalisador que revolve as entranhas afetivas E ainda hoje o é apesar de doente Muito a propósito vejoo apor como epígrafe de um trabalho a frase de Guimarães Rosa retirada de Sagarana Eu sou é eu mesmo Disse tudo Não podia compreender a prática médica senão como um compromisso pessoal Dai sua noção sempre insistida de singularização do caso clínico Autêntico e pessoal só podia expres sarse em linguagem coloquial para os pacientes ou falando deles Os grandes discursos faziaos para in telectuais jamais para alunos ou doentes O colóquio é a linguagem do encontro e encontrar Perestrello era vivêlo porque ele vivia seu interlocutor Fui seu analisando durante minha formação psicanalitica e paciente em terapia de grupo na Santa Casa Embo ra sendo seu aluno discípulo colaborador e amigo acho que nunca cheguei a conhecêlo muito bem É muito esquisito até para mim fazer essa revelação mas é isso exatamente o que sinto Não se pense con tudo que emprego o sentido de conhecer como habi tualmente fazemos É claro que o conhecia intelectual afetiva e pessoalmente Falo do conhecer em que o outro se revela a partir da ocupação do seu espaço pessoal E quando o outro se define e se limita Hoje creio saber por quê Perestrello não se empurrava para dentro de ninguém Não se projetava como o fazem as pessoas quando estabelecem certo grau de ligação afetiva Ele estava ali mas não se metia dentro do interlocutor Ao contrário estando ali permitia a reflexão Na ver dade meu convívio com ele sempre aumentou o co nhecimento que tinha de mim mesmo embora nunca estivesse muito certo a respeito dele Não era uma atitude artificialmente profissional Era apenas ele Não havia na sua convivência disputa por saber textos ou citações aquilo que a intelectualidade elegante faz ostentando um saber emprestado dos outros Seu saber empurrava para a vida para o autoconhecimento para a percepção do paciente Os nomes técnicos ou os autores famosos pouco importavam Costumava dizer pilheriando que quem afirmara tal ou qual coisa fora o famoso professor francês PeritPois Era contra o estereótipo por isso seu discurso frequentemente era despojado embora fosse um cuidadoso diria mesmo minucioso cultorestudante dos autores e de suas obras interes savase mais pelo que a própria pessoa tinha a dizer Não tinha modéstia quando esta soasse falsa e assim não era portador do saber artificial construído essencialmente nos gabinetes de leitura mesmo sen do frequentador pertinaz desses mesmos gabinetes Errava com convicção e corrigiase tão logo percebes se o erro até psicanalisando o que é raro E aprendia com os alunos Acho que por isso fez discípulos Fala va fácil porque falava da alma e as frases fluíam com destino certo o ouvinte As aulas as construía ao sabor da convivência Não importa o tema dizia importa conhecer a pessoa e ao médico a pessoa do doente O tema é sempre o mesmo as palavras é que variam Não foi por outra razão que chegou a planejar e propor o que na época pareceu in sólito aos especialistas em Educação um curso de pósgraduação em Psicologia Médica sem especificar temas Não foi compreendido e não houve o curso Fi quei com o encargo de organizarlhe os cursos de gra duação Construí programas articulei a disciplina e discriminei temas As aulas de Psicologia Médica na Escola de Medicina Souza Marques ministrávamos em conjunto para uma audiência de quase duzentos alunos Frequentemente perguntavame entrando na sala de aula Qual é o tema de hoje Sobre o que Perestrello disse e escreveu sua bi bliografia extensa pode se encarregar Perestrello 1958 1974 1986 Não é difícil seguir seus passos conceituais Sua obra está permeada de coerência com seus princípios humanistas O homem e o doen te foram desde o princípio seu mote e seu foco de preocupações Pouco importava que na época fosse professor de Clínica Médica Psiquiatria adepto da Psicossomaticaindd 97 Psicossomaticaindd 97 05012010 121205 05012010 121205 98 Mello Filho Burd e cols Psicologia lndividual de Adler psicobiologista entu siasta de Adolf Meyer ou psicanalista E que tipo de psicanalista ele foi e que escola seguiu na época de sua plena atividade profissional não como hoje afas tado por doença insidiosa Foi psicanalista toutcourt aquele que alicerça em si próprio os fundamentos da Psicanálise e os reestrutura continuamente através do estudo crítico das novas contribuições Creio que isso só é exequível numa constituição pessoal parti cular quando o saber se integra ao ser A pessoa de Perestrello conjugava de preferência o verbo ser ao invés do ter E na medida em que se é tornase im possível o sectarismo Perestrello discorreu sobre o homem doente seu sofrimento seu pathos Suas teses essenciais sempre estiveram definidas a a importância da biografia na estruturação e defi nição da doença b a importância do significado emocional na com preensão antropológica do sintoma c a importância da relação médicopaciente na or ganização de uma estratégia assistencial O primeiro tópico referese à patogenia o se gundo ao diagnóstico o terceiro à terapêutica E assim que configurou sua Psicossomática em parâme tros basicamente clínicos e a transformou na Medici na da Pessoa intermediado pela Psicanálise Ao longo dos anos em que participei de suas reuniões clínicas todas as semanas ouvindo e pen sando os casos clínicos apresentados perguntavame como conseguia ele transfigurar um simples relato no cenário vivo de uma relação médicopaciente Seria porque como psicanalista introduzia novos signifi cados extraídos da linguagem inconsciente Ou se ria resultado de uma arte oculta apenas revelada a um prestidigitador do conhecimento Mais uma vez a resposta veio do óbvio A razão de seu êxito é que ele era um psicanalista que não estava fazendo psi canálise Compreendi com certa melancolia diante de tanto esforço despendido embora não de todo inútil meu e de tantos outros que o psicanalista no hospital geral não está ali para fazer psicanálise mas para ser psicanalista E se pudermos diferenciar claramente entre uma coisa e outra talvez possamos abrir uma perspectiva inteiramente inusitada não só no papel do psicanalista na patologia somática como na própria arte de psicanalisar PSICANÁLISE E PSICANALISTA Estamos habituados a pensar sobre os profissio nais em função do que fazem Assim um atleta é uma pessoa que faz esportes um professor é o que ensina um médico o que trata doentes e cura doenças um mecânico o que trabalha com ferramentas e constrói ou conserta máquinas um alfaiate o que faz roupas um psicanalista o que faz psicanálise Se perguntás semos igualmente a uma criança o que é uma pedra ele poderia nos dizer que é uma coisa para jogar ou para bater A uma menina de nove anos a quem perguntaram o que fazia o pai respondeu que era psicanalista E à professora que fizera a pergunta insistindo sobre o que era um psicanalista respondeu a menina depois de pensar um pouco um descom pliquento Portanto quando procuramos definir um profissional continuamos como uma criança concei tuandoo pelo que faz Não pelo que é Um atleta que é um cultor do corpo também pode estar assustado com a morte é além disso alvo de admiração não só por suas habilidades como por representar ideais físicos e cada atleta é algo diferente do outro Em criança admirava a habilidade de um jardi neiro cortando grama com seu longo alfanje a quem gostava de ajudar varrendo as pontas cortadas Seus movimentos perfeitos e sua postura causavamme profunda impressão Eram metódicos e certeiros nunca falhava O rosto era sereno todo salpicado de pontas de barba meio oculto por um chapéu de palha molengo roto em várias partes por onde so bressaiam pontas de palha pedindo também para se rem podadas Porque eu nunca consegui vêlo apenas como um profissional de jardim conheci o jardi neiro Jamais o definiria por sua função Como com primir um amante de plantas flores paisagens em um cuidador de jardins Como é alguém que sente a vegetação vivelhe seus brotos e sabe quando pre cisa de água ou de adubo ao qual aliás não tratam como adubo mas como comida E a tratam de fazer saborosa para suas plantas familiares para quem sorriem quando as veem verdes floridas ou com fru tos e com elas têm conversas parecendo ouvirlhes as vozes e ciumentos as protegem de mausolhados como é a vida mental o mundo simbólico de um jar dineiro Esse de minha infância observandome na faina de varrer a grama cortada advertiume Faça de modo que você não precise voltar para trás Ouvi o como a um sábio A frase repercutiu fundo na alma desfazendo meus modos atrapalhados em voltar sem pre para trás catando restos de grama que na minha pressa deixara de varrer Mas afinal o que havia de notável na frase daquele homem rústico desprovido de letras enrugado pelo sol e encanecido pela idade Frase que ficou em minha memória impregnada de paisagem e de afeto pela Natureza É porque vinha da experiência autêntica de vi ver Parecia emergir dos golpes certeiros do alfanje do plantio correto em covas perfeitas nas quais as plantas Psicossomaticaindd 98 Psicossomaticaindd 98 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 99 pareciam se acomodar como num leito mágico Sua frase nascia da força do viver e sua sabedoria da ex periência de conviver Assim aprendi que jardineiro é mais que uma relação de trabalho é uma configuração existencial que acomoda relações ímpares e salpica de significados seu contorno humano E no que se refere ao psicanalista É ele um de cifrador um hermeneuta um intérprete um desvela dor do inconsciente Não isso ele não é isso ele faz Um psicanalista é mais do que ele faz E se discuto o fato de que a Medicina Psicossomática deve mais ao psicanalista que à Psicanálise é mister esclarecer o que é afinal um psicanalista Estou convencido de que o psicanalista come çou a partir da Interpretação dos Sonhos e a Psicaná lise dos Estudos sobre a Histeria Neste último a Psi canálise assentou seus objetivos decifrar sintomas compreender a dinâmica mental e organizar ações transformadoras da vida psíquica Na Interpretação dos Sonhos o psicanalista transcende sua função e encontrase submerso em seu hábitat o mundo mí tico E que mundo é esse É a recriação humana do mundo natural mundo natural que por sua vez está dentro da constituição orgânica do homem enfim desdobrado nas múltiplas manifestações do universo físico Usando a sensoriabilidade interna e externa o homem capta seus múltiplos sinais organizase num amálgama de sensação e fantasia e assim recons truindo a realidade percebea Psicanalista é o contemplador permanente des se ato de criar o universo humano universo cujo nú cleo é o espaço mental onde continuamente fundem se sensopercepções que se transfiguram em sonhos e fantasias expressandose nas infinitas transcrições míticas cujo produto final é a cultura Por ela cultu ra o homem realiza seus sonhos na medida em que os empurra e os impõe à realidade natural Ele psi canalista como ente transfigurado pela Psicanálise é ao mesmo tempo produto autor e contemplador dessa metamorfose No cruzar a realidade física e a realidade humana é a testemunha o operário e a matéria em transformação Este é creio o âmago do problema da interpretação Não está no elemento a ser decifrado nem em sua transcrição Mas no ato de interpretar No wo Es war so Ich werde onde era id seja ego o elemento essencial da frase é a vírgula a pausa onde um se transforma em outro Nessa pau sa está o psicanalista como intérprete do processo A presença do intérprete pareceme também o aspecto mais notável do drama de Édipo Aristóteles afirma que a tragédia é o desfecho infeliz por erro de interpretação do personagem Laio manda matar Édipo ainda bebê por um erro de interpretação do oráculo mais tarde Édipo abandona Corinto e seus pais adotivos por outro erro de interpretação do orá culo de Delfos por outro erro de interpretação Édipo mata seu próprio pai na estrada e diante da Esfinge ela própria supondose corretamente interpretada em seu enigma o que entendo que foi outro erro se mata Quem é que tendo uma só voz tem às ve zes dois pés ás vezes três às vezes quatro e quanto mais débil é mais pés tem perguntou a Esfinge Na tragédia de Sófocles percebese que só Tirésias o adivinho intérprete sabe a resposta E em torno de Tirésias e de sua extraordinária capacidade que gira o desfecho Sua revolução contém a transfiguração dos personagens e em suas mãos está o próprio destino de Tebas Quem é Tirésias o adivinho Um entre muitos mitos nos conta que Tirésias desempatou a disputa entre Zeus e Hera a respeito de quem gozava mais no ato sexual Zeus opinava que era a mulher e Hera o homem Tirésias consultado replicou Se as partes do prazer amoroso podem ser contadas em dez cor responderá três vezes três para as mulheres e uma só para os homens Graves 1958 Hera castigouo com a cegueira e Zeus em compensação concedeulhe a visão interior Que significava esse extraordinário dote concedido por Zeus Nada menos que compre ender as razões dos deuses no destino dos homens Pois os próprios deuses gregos os elementos máxi mos de seus mitos eram a representação dos ideais humanos Os gregos que ainda não compreendiam physis Natureza procuravam o entendimento nas musas Por isso os gregos são o berço do humanismo Em nenhuma outra cultura fomos tão longe no enten dimento do Homem sobretudo do mundo humano Freud recupera a figura de Tirésias na cultura moderna Tornouse ele próprio Tirésias redivivo ao colocarse no centro da disputa sexual e no centro do universo mítico Eis que o psicanalista é o Tirésias atual ou pelo menos tenta sêlo O PSICANALISTA E A MEDICINA PSICOSSOMÁTICA Voltemos ao mito edípico Em outro momento apresentei com todo o atrevimento possível minha contribuição interpretativa ao mito edípico centran dome no que considero o momento culminante o encontro com a Esfinge Naquela ocasião lembrei a propósito do Corpo como linguagem Eksterman 1985 que não passaria despercebida a um psicana lista a insistência com que a Esfinge referiase a pés na frase que propõe o enigma a Édipo Recordemola Quem é que tendo uma só voz tem às vezes dois pés às vezes três as vezes quatro e quanto mais débil é mais pés tem Assim quando ouvi o enigma não pude deixar de olhar para os pés de Édipo e nada me Psicossomaticaindd 99 Psicossomaticaindd 99 05012010 121205 05012010 121205 100 Mello Filho Burd e cols Pacto psicossomático que só um gênio como Goethe pôde descrevera Também Freud engajouse na empreitada des cobrir a unidade essencial do homem E começou conferindo peso científico ao mais abstrato e subjeti vo de seus rincões o mundo onírico Esse é o desafio da Esfinge O ser tripartido e um Um também deve ser o ser dividido que é o Ho mem Um com quê Um em quê Ou apenas Um Psicossomática com outros nomes é pois o de safio permanente à inteligência do homem Não im porta que Helmholtz tenha usado esse vocábulo pela primeira vez em 1818 Se olharmos atentamente as pinturas de Lascaux veremos a preocupação do homem de Neanderthal com o enigma psicossomá tico Ali imprimiu seu alimento o bisonte o ca çador e o ato de caçar Que relação conseguiu esse Tirésias primitivo estabelecer entre esse desenho e a realidade Que pretendia deixando a marca mítica de seu mundo nas paredes mais recônditas de suas cavernas Talvez apenas a mágica de sua interpreta ção e portanto de sua criação Ali ficou o retrato de sua mente a pintura o gesto necessário para ligar sua substância mental aos objetos de seu mundo O sofrimento do homem diz a Bíblia decorre de sua separação original Sua cara depende do retorno a sua unidade essencial O que hoje podemos entender como seu problema psicossomático Em outro trabalho que intitulei O médico como psicanalista Eksterman 1978 recordei as quatro contribuições da Psicanálise no campo médico Assi naloas novamente aqui 1 um método terapêutico das neuroses 2 um método de investigação da personalidade cujos resultados permitiram aumentar considera velmente a eficácia dos tratamentos psicológicos das caracteropatias das psicoses e dos distúrbios emocionais da infância 3 uma psicologia em função do inconsciente cujo modelo teórico possibilitou interpretar sintomas orgânicos dentro de uma hermenêutica análoga à adotada para os fenômenos conversivos 4 o estudo das relações de objeto cujo modelo transferencialconstratransferencial tem escla recido alguns enigmas da interação emocional médicopaciente E continuei adiante Como sabemos essa pers pectiva de solução do clássico problema corpomente provocou considerável entusiasmo estimulando a emergência de teorias dispostas a unificar o conhe cimento da patologia do psíquico e do somático Contudo não tiveram êxito pois levadas à prática clínica acabavam sugerindo critérios terapêuticos pareceu tão óbvio nos pés de Édipo estava a cha ve do enigma portanto numa parte de seu próprio corpo Ali em seus pés estava o estigma de ação de Laio seu pai Aqueles pés gordos deformados quan do bebê atados que foram por um cravo metálico Ali estava sua identidade e alternativa para o desfe cho trágico através de uma interpretação correta A resposta É o homem dada à Esfinge quem supôs estivesse correta era insuficiente Era necessário sa ber quem era o Homem que amaldiçoava Tebas Ou quem era o centro da maldição Era ele próprio Édipo Se apenas tivesse olhado para seus pés entendido a linguagem de sua desven tura infantil impressa na sua deformação corporal jamais teria entrando naquela cidade origem e fim de sua tragédia Não conhecendo sua história teve de cumprir o oráculo como se este constituísse um man dato imperativo Assim a resposta à Esfinge seria É o homem Édipo Eu A Esfinge é um corpo mítico Por isso é construí da de várias partes de figuras diversas Tem cabeça de mulher corpo de leão asas de águia e cauda de serpente Esse tipo de construção não é para descrever um monstro é antes para representar uma ideia que deve suscitar determinado estado emocional e esti mular o retorno a si mesmo É um estímulo ao co nhecete a ti mesmo presente em toda a mitologia e em toda a filosofia grega A mulher é nossa origem a águia representa o espaço o leão símbolo da força vive na terra e a serpente símbolo da sabedoria é o elo da terra com os céus espaço É a serpente no Gênese que encanta o homem primitivo Adam com o fruto da sabedoria A Esfinge é o símbolo do enigma psicossomático A Édipo é dada a tarefa de decifrar o enigma e reunir o que parece eternamente separado a psyché e o soma a mente e o corpo Essa pretensão unificadora aparece como tema central em todos os mitos históricos e os mistérios das religiões que deles derivaram dãonos conta des se objetivo básico reunir Ao alcançar essa unidade essencial o ser humano comum convertese em um sábio e partilha a sabedoria dos deuses tornandose como eles um criador E o que pretendiam os sacer dotes dos tempos védicos ao tomar a beberragem soma assim como os parsis de Zoroastro O mesmo percebemos nas práticas de ioga dos vedantistas esti mulando a kundalini representada por uma serpente a unir os centros do corpo aos centros espirituais E o que o cabalista místico judeu busca na decifração do nome de Deus ou na representação mística do Homem O que dizer das duas Cidades de Santo Agostinho É assim que Fausto pede a Mefistófeles o encontro dele consigo próprio de seu intelecto hi pertrofiado de ideias com a carne palpitante de vida Psicossomaticaindd 100 Psicossomaticaindd 100 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 101 duplos psíquicos e somáticos levantando questões insolúveis como as relativas à prioridade entre uma abordagem clínica psicanalítica ou mista face a uma patologia diagnosticada como psicossomática Dai decorrem as tentativas de unificar através da Psicanálise as várias separações ou melhor disso ciações do conhecimento e da prática médica E isso depende vale sublinhar outra vez mais do psicana lista que da Psicanálise E agora poderíamos dizer de certos psicanalistas que como Perestrello consegui ram mais que praticar ser intérpretes Há pois quatro grandes áreas do conhecimento e da prática médica que têm especial interesse para o psicanalista A primeira referese à patologia Os primeiros estudos derivados da Psicanálise e que deram origem à Psicossomática moderna corresponderam ao pro blema da psicogenia de certos transtornos somáticos como por exemplo a asma brônquica o eczema a hipertensão essencial a úlcera péptica o hipertireoi dismo a colite ulcerativa a enxaqueca Quando Pe restrello assinalou que todas as doenças são psicos somáticas Perestrello 1964 recebeu críticas por pretender um reducionismo ao absurdo da questão psicossomática Hoje é assente que a questão psicos somática é a de toda patologia Fica a pergunta por que houve a dissociação entre mental e somático da patologia E que ainda persiste na concepção psico lógicopsiquiátrica por um lado e somática por outro do sofrimento bem como das consequências práticas na terapêutica Ambas ainda disputam suas áreas de domínio na patologia nos tratamentos e insistem nas interrelações O fato de que um transtorno neurótico pareça mais psicológico ou uma lesão orgânica pareça mais somática e portanto sua orientação terapêutica seja manipulável ora mais por recursos físicos ora mais por psicológicos não significa que ambos não sejam igual mente psicossomáticos O problema não está na pato logia está na mente do pesquisador e na do terapeuta Ele é quem dissocia a enfermidade e o sofrimento que são unitários psicossomáticos em sua origem e noso logia Por que o faz é a nossa questão Saber o que é ou não psicossomático tornase assim irrelevante A resposta não vem da Psicanálise embora pu dessemos conjecturar com base em grande núme ro de mecanismos de defesa contra a lesão física a morte a invalidez e a loucura A resposta pode ser apreendida da observação do psicanalista com o pro blema Não aquele que busca a causa da patologia como o fizeram os pioneiros que descreveram psico dinamismos causadores de patologias orgânicas mas o que percebe o doente submerso em sua construção simbólica particular em que a doença é apenas mais um componente necessário Em outros termos o psicanalista percebe a di mensão simbólica da existência além da visão bioló gica fisicalista do terapeuta biomédico São visões propriamente não se completam nem se antagoni zam São apenas perspectivas diferentes permitem configurar o doente ofuscado pela visão da doença O psicanalista pois revela o doente presença perma nente e invisível Traz à percepção a figura do asmá tico do eczematoso do hipertenso do ulceroso do hipertireoideo do colítico do enxaquecoso Revela o doente Procede como Tirésias que denunciou por trás da doença de Tebas o homem Édipo É assim que procedia Perestrello em suas reu niões clínicas Fazia o doente revelarse do quadro geral apresentado pelo relator de um caso clínico quadro que poderia ser representado como uma Ges talt de fundo e figura O médico absorto na imagem da patologia tornaa figura de um fundo que é o do ente A figura recortada do fundo patologia é pois uma abstração teórica e se confundida com a reali dade prática de forma o ato terapêutico Perestrello valorizando a pessoa e interessandose pela vida do doente progressivamente destacavao da Gestalt passando a sobressair como figura de um fundo que agora passava a ser a doença Isso era possível pelas peculiaridades do psicanalista Perestrello que acen tuava a importância da relação interpessoal Tal re velação da presença do doente mudava o destino dos procedimentos terapêuticos nem tanto por seus conteúdos mas pela forma como passavam a ser de senvolvidos E o que permitia a singularização do caso clí nico e ensejava a Medicina da Pessoa Perestrello 1974 Notável postura que lembra os procedimentos hipocráticos da Escola de Cós onde o médico con vivia com seus doentes antes de medicálos E as sim fazendo percebia as peculiaridades do doente moldando sua terapêutica para aquele doente em especial Por essa razão considero as propostas de Perestrello como neohipocráticas e pareceme que sua efetivação só se tornou possível por ele ser psi canalista A segunda fase referese à relação médico paciente A utilização da convivência como recurso terapêutico Balint 1957 é derivada da noção psi canalítica de campo transferencial Como na prática psicanalítica o campo transferencial é construído pela interpenetração dos elementos históricos dos participantes da relação Esse campo transferencial organiza o ambiente clínico o diálogo a cognição e o ato terapêutico O ambiente clínico é responsável pelo apoio holding que o paciente regredido pela enfermidade e pela privação necessita para enfrentar o estresse múltiplo desencadeado pela enfermida de pelas revivescências de conflitos históricos pelos Psicossomaticaindd 101 Psicossomaticaindd 101 05012010 121205 05012010 121205 102 Mello Filho Burd e cols exames traumáticos e pela hospitalização eventual O dialogo além dos aspectos psicoterápicos que lhe são inerentes é a fonte de informação privilegiada ao proporcionar ao médico o saber que necessita do estado do doente A cognição joga papel básico na elaboração diagnostica O ato terapêutico enfim é decorrência do am biente clínico do diálogo e do diagnóstico e se orien ta pelos vetores emocionais do campo transferencial A recomendação tradicional de que o médico não deve se envolver emocionalmente com o doente é contradita pela observação psicanalítica Ao contrá rio o médico está sempre enredado emocionalmente com a pessoa ou pessoas que estiver atendendo O grau de ignorância dessa situação emocional deter minará a qualidade da condução dos procedimentos clínicos A terceira referese à formação psicológica do profissional de saúde Nesse sentido a partir dos conhecimentos de Medicina Psicossomática desen volveuse a disciplina conhecida como Psicologia Médica que intervem na formação do profissional de saúde Medicina Enfermagem Assistência So cial Odontologia Nutrição e que pretende através de técnicas de aprendizagem ativas a familiarização do estudante com a dimensão mítica e irracional da mente entre outros temas da vida mental Permite sobretudo lidar com problemas relativos a iatropato genia induzidos pelo campo transferencial São ainda tentativas incipientes e cujos efeitos costumam ser observados por enquanto muito adiante na práti ca profissional Mas já se pode perceber o questiona mento de algumas estruturas assistenciais rígidas e pouco humanas e inclusive sua transformação pa rece derivar dessas influências na formação profissio nal Entre elas O pleito pela humanização da relação médicopaciente e dos hospitais a transformação dos ambientes pediátricos e maternoinfantis a insistên cia no alojamento conjunto e aleitamento materno a preparação psicológica do paciente cirúrgico o in teresse pela avaliação psicológica do paciente subme tido a cirurgia plástica reparadora a análise crítica e sistemática da tarefa assistencial pelos chamados gru pos Balint a formação de equipes multidisciplinares para tratamento de pacientes terminais e pacientes dependentes de atenção médica continuada desde os diabéticos aos dialisados a modificação da estru tura das UTIs E só posso continuar com um etc Na verdade o grau de influência merece uma pesquisa pormenorizada embora curiosamente os serviços de Psicologia Médica continuem com frequência como cinderelas nos hospitais onde estão instalados A quarta e última área é a da prevenção Essa aponta para o futuro embora já tivesse discorrido so bre o tema Eksterman 1983 Gostaria apenas de consignar refletindo sobre toda a investigação psi canalítica realizada a respeito do desenvolvimento humano que o modelo básico preventivo do qual podemos derivar todos os demais é aquele em que representamos um bebê instalado com segurança no colo de uma mãe sadia PSICOSSOMÁTICA E PSICANÁLISE Resta examinar a influência que a Psicossomáti ca exerceu exerce ou deverá exercer sobre a Psicaná lise tarefa sobremaneira antipática para aqueles que consideram a Psicanálise um território epistemologi co autossuficiente Considero este um problema mais do psicanalista que de sua área de conhecimento Um problema de identidade pessoal projetado sobre ciência Freud tinha em alto apreço a interdiscipli naridade Freud 1913 Seu construto teórico fun damental o inconsciente produziu tais influências sobre a cultura do século XX que dificilmente po derão ser elas avaliadas com o devido critério Dele inconsciente deriva a noção de processo primário de pensar do imaginário da função onírica da fanta sia e fantasma do impulso e processos defensivos Mesmo os modelos teóricos extraídos do estudo das relações de objeto desde Melanie Klein e Fairbairn passando por Winnicott e Balint até modernamente O Kenberg M Mahler e H Kohut antecipados pelos estudos adaptativos do ego de H Hartmann e segui dores só fizeram ampliar a importância do conceito de inconsciente O mundo irracional perscrutado pela pequisa do inconsciente tornouse nas décadas atuais tão importante como o racional a partir de Descartes Aos poetas míticos esoteristas e sobretudo aos sonhado res foram abertas as portas do interesse científico não certamente pelos seus métodos de conhecer mas pelos objetos de seu conhecimento Um eu sinto logo é parece até substituir o eu penso logo existo O afeto e não a razão passou a ser o objeto privile giado da própria razão E diferente a cultura atual bafejada pela Psicanálise daquela intimista e tímida do final do século passado caracterizado por lesprit de fin de siècle como bem assinalou H Ellenberger Lá beirando os 1900 ansiavase pela intimidade da alma pelo oculto pela outra versão da realidade na medida em que já se vivia oprimido pelo império da razão Hoje nos anos finais de mais um século a in timidade da alma parece ser objeto do tráfico popu lesco em trocas impudicas e baratas na feiralivre da cultura Não é por acaso que se acena com algo até mais oculto que o inconsciente o self Esse não é o momento para uma análise crítica da progressiva vulgarização do discurso psicanalítico Psicossomaticaindd 102 Psicossomaticaindd 102 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 103 empurrado para um pseudossaber da intimidade hu mana levando com indesejada frequência à ideali zação quanto à abrangência e possibilidades práticas desse discurso Talvez por isso a Psicanálise se feche nos seus esteios teóricos procurando originalidade expositiva e rejeitando como bárbaras as demais contribuições ao conhecimento do homem beiran do então os expurgos ideológicos das ortodoxais religiosas e políticas Como disse considero esse um problema mais do psicanalista e por extensão da instituição psicanalítica que da Psicanálise Basta ve rificar quantas desconfianças sobrevivem nos encon tros entre profissionais tão afins como o psiquiatra e o psicanalista Estamos distantes daqueles primórdios quan do a Psicanálise estudava doenças criando até algu mas nosografias Hoje estamos comprometidos com a identidade a realização pessoal a superação do sofrimento Se não fôssemos psicanalistas diria que estamos criando uma comunidade pitagórica Esses novos objetivos que mobilizam na atualidade tanto a teoria quanto a prática do psicanalista são o que mais tem influenciado o pensamento psicossomático contemporâneo confluindo dessa forma com a An tropologia Médica no seu interesse por temas éticos e margeando a Sociologia a interação do doente com sua cultura e seu mundo social É interessante notar que possivelmente o início dessa virada da Psicanáli se do nosográfico para o antropológico começou no Luto e Melancolia Freud 1917 quando foi introdu zida no foco do cenário psicanalítico a imagem fugi dia do objeto Daí a psicologia das massas a análise do ego e a noção desconcertante do superego Foram os estudos de Melanie Klein e seus seguidores que principalmente desenvolveram esses passos iniciais um pé no Luto e Melancolia outro no Além do Princí pio do Prazer com as noções finais sobre impulsos de vida e de morte A Escola Inglesa destacou o que não era ob jeto de dentro do que era sujeito bem como as relações entre um e outro desde o princípio do de senvolvimento ontogenético Dessa forma emergiu a exigência de se evidenciar a identidade na me dida em que a análise discriminava entre o sujeito e objeto entre o eu e o outro além de esmiuçar os mecanismos de dissolução e resolução dos objetos endopsíquicos bem como da experiência de fusão lembrando esta última processos simbióticos Para os mesmos objetivos a identidade e por outros ca minhos desenvolveramse os estudos dos processos de formação e adaptação do ego de H Hartmann e seguidores entremesclados pelos estudos de Winni cott sobre desenvolvimento e self os de M Balint so bre a integridade do eu e finalmente Spitz e Bowlby buscando nas interações primitivas os fatores de in tegração e desintegração Completando a extraordi nária expansão da Psicanálise assim como de seus interesses terapêuticos Bion investe em formulações básicas sobre a intimidade de pensar e Lacan sobre a intimidade da linguagem inconsciente caminhando ao lado da concepção do homem como animal sim bólico do filósofo Ernst Cassirer considerado o mais eminente neokantiano de nosso século Essa acentuação no problema da identidade e do self parece realizar um antigo pleito de Freud que sempre deixou transparecer seu interesse sobre uma concepção mais abrangente do homem mesmo não pretendendo uma entologia ou um Weltanschauung Ambicionou desde o Projeto uma teoria da mente que permitisse conhecer o significado da existência humana Muito mais que um médico Freud foi um especulador da natureza humana e seu estudo das neuroses pode ser considerado o grande pretexto para abrir as portas da alma ao conhecimento cientí fico como bem assinalou Bettelheim Talvez seja isso o que se pretenda hoje em dia com a expressão self ou seja aquilo que o sujeito é Caminhouse muito desde a hipnose de uma puérpera em 1892 para que pudesse amamentar seu filho até as amplas pretensões de formação do self da atualidade Saberia Freud que ao tratar aquela puérpera curandoa de sua inibição estava ensejando o estimulo ao vínculo maternoinfantil e assim estabelecendo o núcleo central de um self mais sadio naquele bebê Eis o exemplo de preven ção em psicanálise Não deixa de chamar a atenção o paradoxo de que a Psicanálise inspiradora da noção de totalida de na Medicina moderna ajudandoa a transcender a simples visão da doença e recuperar a percepção do ser humano doente esteja ela própria Psicaná lise perdida no dualismo conceitual mentecorpo E justamente Freud talvez o maior de todos os de silusionantes da cultura moderna tenha ensejado uma dicotomia tão importante no conhecimento do homem doente a ponto de nos dias atuais procu rarse uma linguagem exclusiva para os fenômenos psicológicos distanciandoos ainda mais de uma concepção unitária Se o psicológico era o canto des prezado de Meynert o cérebro é o tópico esquecido da Psicanálise O que dizer então do resto do corpo Por esse caminho dicotomizado as ideologias unicistas dos mestres de Freud Helmholtz Bruecke Meynert foram marginalizadas Sabemos que eram radical mente orgânicas fisicalistas mas pretendiam uma unidade necessária para a compreensão do homem e até que ponto esses mestres embora Helmholtz tives se influência apenas indireta estavam incorretos ao tentar reduzir os fenômenos humanos às leis gerais Psicossomaticaindd 103 Psicossomaticaindd 103 05012010 121205 05012010 121205 104 Mello Filho Burd e cols da Natureza Poderíamos dizer que suas assertivas levaram a um erro trágico a desumanização clínica a incompreensão e o desleixo com os sentimentos sobretudo aqueles que pertencem à intimidade de cada um Mas não creio que estivessem equivocados quanto ao seu objetivo científico Procuravam a seu modo essa unidade biológica essencial que conduz à integridade Nesse caminho foi Cannon o fisiologis ta assim como Adolf Meyer o psiquiatra e também Selye Entre nós Perestrello o psicanalista Creio que Freud também pretendia o mesmo encontrar a ponte que une o mental ao somático uma espécie de volta à unidade perdida nos Estudos sobre a Histeria em 1895 A lição que a Psicossomática aprendeu da Psica nálise ou seja voltando ao mote de Perestrello não há doenças psicossomáticas todas as doenças são psicossomáticas nos leva talvez a deduzir que não há um objetivo psicanalítico senão aquele que pos sa se integrar às demais áreas da biologia humana Se com sua microaudiologia o psicanalista ouve os murmúrios do inconsciente e os decodifica numa lin guagem com sentido isso não faz dele psicanalista um misantropo investigador isolado dos demais in teresses humanos Um outro erro trágico de Édipo foi recortar sua experiência com a Esfinge de dois con textos essenciais sua história e a história de Tebas Tendoa recortado sua resposta foi digna apenas de um charadista esperto Se no seu encontro com a Es finge incluísse sua história e a história de Tebas veria que o homem a que se referiu era ele próprio e que em Tebas seria cumprido o oráculo que justo naquele momento estava em suas mãos modificar através de uma interpretação completa e integradora Comentários de que o psicanalista só tem a ver com seu reduto transferencial são comuns Pratica mente abstraise a pessoa É exatamente o que o psicanalista no hospital geral critica em seus colegas médicos veem apenas órgãos doentes abstraindo a pessoa Entendo que trabalhar com a transferência não significa reduzir a pessoa a um campo transfe rencial E creio insuficiente recuperarmos essa noção de pessoa através de um conceito mais sofisticado como o de self embora já seja um avanço Recuperar a pessoa e com ela estabelecer uma relação analítica pareceme a resposta que a Psicossomática pode dar à Psicanáli se de cujo seio nasceu e em cuja intimidade elaborou uma nova imagem do ser humano A pessoa é mais que um self ou uma identidade Compreendêla não é apenas aterse às suas comunicações verbais ou mes mo extraverbais recortandoa de seu contexto bioló gico e social Se como teóricos da Psicanálise pode mos ser especialistas na prática psicanalítica clínica só consigo visualizar um holismo radical embora não simpatize com qualquer tendência radical Assim entendi o psicanalista Perestrello comigo com sua vida com seu ensino com sua obra com seus alunos e com seus doentes Estabelecia relação com totalidades Para ele não fazia sentido interpretar um sintoma orgânico senão dentro da Gestalt históricocircunstancial do paciente Hoje advertiria ampliando seu ponto de vis ta que a tentativa de reduzir o fenômeno orgânico à dinâmica dos processos mentais tratandoo como expressão linear de um conflito endopsíquico e por tanto suscetível de interpretação de conteúdo in consciente é uma inadequação clínica que pode levar a riscos iatropatogênicos consideráveis Pois mobiliza atividade pulsional que invadindo um ego debilitado e desorganizado pela doença física amplia a lesão do corpo É aqui que vemos a importância da construção do setting ambiente clínico como elemento essen cial do próprio ato terapêutico na medida em que facilita elementos de relação simbiótica necessários à recuperação do ego lesado por fundas feridas narcísi cas desencadeadas pela lesão orgânica Reencontramos pensando na pessoa do doen te a ação terapêutica interdisciplinar indispensável a meu ver no tratamento do paciente psicótico fre quentemente recomendável em crianças e adolescen tes e sem dúvida absolutamente indicada nos doen tes orgânicos E continuando a pensar na pessoa do analisando creio que não seria demais lembrar a importância do que ele diz de forma manifesta entu siasmados pelo discurso latente no campo transferen cial não raro enveredase pela negação do que está efetivamente sendo dito como se tudo fosse possível transcrever e como se essa transcrição sempre fosse absoluta e necessária Saber ouvir ensinou a Psica nálise aos médicos que praticam sua clínica nos sofri mentos orgânicos Restou ao psicanalista aplicar esse ensinamento a sua própria prática Voltar à imagem do jardineiro de minha infân cia Se contasse essa história numa sessão psicana lítica com o terapeuta submerso no campo transfe rencial creio que posso imaginar que interpretações essa minha historinha poderia suscitar Afinal tam bém sou psicanalista Como exercício clínico nada mais interessante Mas é um equívoco quase cômico confundir modelo brinquedo exercício teórico com a realidade Há os que fazem isso tornandose alvo da caricatura e do humorista Quando lembrei que Perestrello e eu ríamos a valer principalmente dos que não sabiam rir referia me em parte a esses sisudos e espertos interpreta dores de tudo Mas infelizmente temos uma desig nação etimologicamente trágica para uma disciplina tão essencialmente humana como a nossa Psicaná Psicossomaticaindd 104 Psicossomaticaindd 104 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 105 lise E sem dúvida Freud analisava Mas não fa zia só isso Reconstruía também a memória o ego as funções mentais recuperava as relações do passado e patrocinado pela transformação psíquica estabele cia novas relações Isso não seria psicossíntese Ou talvez antropossíntese O carinho com que recordo o jardineiro é a sín tese de minha experiência infantil recuperada pela ação transfigurada da psicanálise de Perestrello Pa rece o cenário de um conto de fadas mas é mais do que isso É a descoberta da magia da vida mesmo que evocada pelo longo alfanje da morte Talvez seja exatamente essa a unidade buscada e que Freud ge nialmente expôs em sua última teoria dos instintos A unidade no diálogo entre a vida e a morte REFERÊNCIAS Balint M The doctor his patient end the illness New York Int Univ Press 1987 Bettelheim B Freud mans soul New YorkKnopf 1983 Bion WR Elements of psychoanalysis London Heineman 1963 Cassirer E An essay on man New Haven Yale 1944 Eksterman A O médico como psicanalista In Contribuições psicanalíticas a Medicina PSiCoSsomáticaSão Paulo ABMP vI 1978 O psicanalista no Hospital Geral VIII Congr Brasileiro de Psicanálise Rio de Janeiro 1980 Prevenção e psicanálise XII Congresso Intcmacional de Psicorerapia Rio de Janeiro 1982 Psychotherapy in General Hospital 136ª Reunião Anual da American Psychiatric Association New York 1983 O Corpo como Linguagem X Congresso Brasileiro de Psi canálise Rio de Janeiro 1985 Ellenberger H F The discovery of the unconscious The history and evolution of dynamic Psychiatry New York Basic Books 1970 Freud S A case ofsuccessful trearment by hypnotism SE I 1982 Project for a scientiiic Psychology SE I 1950 Srudies on hysteria SE II 1985 Interpretation of dreams SE V cap VII 1900 Fomiulations ou tlie two principles of mental functio ningSE XII 1911 The Claims OPsychoAnalysis to Scientitîc interest S E XIII 1913 The uncnriscious SE XIV 1915 Mouming and Melancliolia SE XIV 1917 Beyond the pleasure principle SE XVIII 1920 Group Psychology and the analysis of the ego SE XVIII 1921 The ego and lhe id SE XIX 1920 Inhibitions symptoms and anxiety SE XX 1926 New intmductory lectures On PsychoAnalysis XXXI XXXV SE XXII 1933 An Outline oí Psychoanalysis SE XXIII 1940 Goldstein K La Structure de lOrganisme Paris Galli mard 1951 Graves R Greek Myths 1958 Perestrello D Medicina Psicossomática R de Janeiro Borsoi 1958 Stellungnahme und Tátigkeitsbericht aus Brasilien In Trai ning in Psychosomatic Medicine New York Basic Books 1964 A Medicina da Pessoa Ric de Janeiro Atheneu 1974 Trzábalhos selecionados de Psicanálise Psicossomática e Psiculu gia Módica Rio de Janeiro Atheneu 1976 Segal H Intmduction te the work OfMcIanie Klein London Hei neman 1964 Uexküll J vcn Ideas para una Ooncepción biológica del mundud Madrid Calpe 1922 Psicossomaticaindd 105 Psicossomaticaindd 105 05012010 121205 05012010 121205 Algumas palavras têm a característica contradi tória de mais esconder do que revelar significados Isso ocorre frequentemente com termos originados em áreas técnicas e que caem no uso popular como aconteceu por exemplo com vários conceitos oriun dos da Psicanálise como recalque frustração e até mesmo inconsciente Da mesma forma certos termos que transitam em áreas sujeitas a controvérsias de cunho ideológico também estão sujeitos a este tipo de paradoxo pa lavras como democracia participação ou povo têm acepções diversas dependendo de quem as enuncia Social é uma dessas palavras Subjacente à ideia de sociedade existe uma concepção de como é ou deveria ser a organização coletiva dos homens o que remete para uma série de outras discussões in clusive a respeito da definição de homens que se tem em mente Quando falamos em sociedade estamos falando de situações concretas de um arcabouço jurídico de relações de trabalho e até de localizações geográficas mas também estamos falando de uma intrincada rede de significados que não só está subentendida em tudo o que descrevemos anteriormente como molda a própria percepção que os indivíduos que a com põem têm em si próprios e do mundo que os cerca e mesmo da linguagem utilizada para descrever tudo isso Mesmo a produção científica não é infensa a esta contaminação cultural Até quando estamos descrevendo objetivamente fenômenos o fazemos a partir de nossos referenciais Um bom exemplo disso é o surgimento das analogias mecânicas para descre ver o funcionamento de tudo o homem ao univer so quando o processo de industrialização torna as máquinas elementos familiares na paisagem humana Esse tipo de situação é particularmente visível nas Ci ências Sociais em particular na Antropologia Cate gorias inteiras do pensamento antropológico primi tivo selvagem entre outras têm muito mais a ver com o óbvio etnocentrismo de quem observa do que com qualquer característica intrínseca de quem é ob servado salta aos olhos nestes casos um julgamento implícito de valor Outra dificuldade metodológica é central para a Medicina Uma vez que a experimentação com seres humanos é obviamente restrita as evidências de relações causais dependem em larga margem de estudos epidemiológicos que procuram estabelecer comparações entre populações diferentes ou em dois momentos distantes no tempo da mesma popula ção Entretanto como consequência do fato acaciano de que neste caso só se encontra o que se procura os vieses ideológicos dos pesquisadores já se impõem no momento mesmo do desenho do estudo Dito de outra forma o que o pesquisador define como fator potencial de adoecimento é o que vai ser estudado e outros componentes podem ser deixados de lado Um exemplo concreto talvez esclareça melhor esse ponto houve um momento há alguns anos em que vários estudos provavam uma estreita relação entre morta lidade infantil e número de filhos por casal Por conta disso entidades defensoras do controle compulsório da natalidade utilizaram esses estudos como embasa mento para suas teses Ocorre que havia outro fator fortemente associado aos dois tanto à mortalidade infantil quanto ao tamanho da prole a pobreza das populações estudadas Outra fonte importante de distorções diz respei to ao que poderíamos chamar de naturalização das relações sociais Num dos trabalhos que consulta mos o autor escandinavo ao comentar investigações sobre um possível papel das relações sexuais préma ritais na determinação de casamentos malsucedidos confessase surpreso que alguém pudesse considerar esse tipo de evento como problema evidentemente com uma ponta de ironia além de questionar bas tante o que viria a ser um casamento bemsucedido Da mesma forma uma série de conceitos e estruturas basilares de nossa sociedade tendem a ser tomados como universais tanto geográfica como historica mente Assuntos como família profissão trabalho 9 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELAÇÃO DOENÇASOCIEDADE EM PSICOLOGIA MÉDICA Kenneth Rochel Camargo Jr Psicossomaticaindd 106 Psicossomaticaindd 106 05012010 121205 05012010 121205 Psicossomática hoje 107 papéis sexuais infância e outros são vistos como uni formes e diferenças eventuais são debitadas ao pri mitivismo de outras sociedades Assim sendo a organização social pode ser vis ta por alguns como uma extensão ampliada da orga nização biológica numa visão positivista que iguala agrupamentos humanos aos de abelhas ou cupins ou enquadrada dentro de modelos cibernéticos cientifi camente neutros Um dos artigos que consultamos trazia o seguinte trecho Nossa definição de socieda de deveria ser tão biológica quanto possível deveria abranger todas as formas de sociedade humana E mais adiante Esta definição parece aplicável tan to a pássaros quanto a seres humanos é tão relevante para os cidadãos de Nova Iorque como para as tribos do deserto do Kalahari Kagan 1971 Os grifos são nossos Neste trabalho optamos por outras visões que procuram detectar nas formas de organização humana não uma enganosa cooperação mas lutas mais ou menos aparentes conflitos de interesses e sobretudo desigualdades Dessa forma ao discutirmos categorias sociais é importante ter sempre em mente que estamos dis correndo sobre algo que é a um só tempo externo e interno ao ser humano criatura e criador Pois se o ser humano cria as sociedades tudo aquilo que de finimos como atributos humanos língua ciência moral ética educação organização política são em última análise construções sociais internalizadas pelo ser humano ao longo de sua vida Mais que isso o fato social como diria Durkheim tem uma qualida de coercitiva de imposição externa ao indivíduo até mesmo talvez principalmente contra seus desejos Um conceito chave encontrado tanto na Psica nálise quanto na Antropologia embora com acepções ligeiramente diferentes é o de representação Pode mos definilo provisoriamente como uma construção psíquica com componentes conscientes e inconscien tes que simboliza objetos e categorias mais ou menos abrangentes moldada dialeticamente a partir da inte ração do indivíduo com as culturas das qualis faz parte o porque dos plurais será explicado mais adiante Assim a ideia de casa por exemplo car rega dentro de si uma representação média para uma determinada população de um objeto consti tuída a partir da experiência concreta Mas para cada indivíduo casa evoca afetos com significado próprio dentro da experiência de cada um Assim é que para alguns pacientes internados a maior ansiedade é po der voltar para a sua casa enquanto para outros o hospital é ele próprio casa no sentido de lar As varias culturas elaboram discursos com graus variados de complexidade procurando abranger suas relações internas com outras culturas com o mun do natural Há vários discursos possíveis do ponto de vista antropológico pouco importando se um e mais verdadeiro do que outro Assim dentro des se ponto de vista o discurso médico é apenas mais um dos discursos sobre a doençasaúde aquele que nos médicos gostamos de acreditar como científico verdadeiro mesmo que nem sempre seja assim O que temos observado é que na verdade o discurso médico acaba por ser uma forma bastante eficiente de manter o paciente alienado de sua própria situa ção Quantas vezes não ouvimos coisas do tipo não adianta explicar nada para estas pessoas são igno rantes O que efetivamente ocorre e que situações que poderiam ser entendidas são expostas num jar gão ininteligível a não ser para quem já é iniciado À época em que este trabalho estava sendo escrito iniciouse a vacinação contra meningite no Rio de Ja neiro Num posto de vacinação cartazes orientavam pais e mães que vacinavam seus filhos nos seguintes termos Se seu filho apresentar petéquias exantema equimoses procure um posto de saúde Quantas pessoas não médicas mesmo com excelente nível de instrução podem decifrar tal lista de sinais Esta é uma das razões independentemente de qualquer eficácia terapêutica da preferência de determinados setores populacionais pelos curandeiros eles pelo menos explicam o que as pessoas sentem em termos que elas podem entender porque ambos curandeiro e paciente fazem parte de um mesmo recorte social Por outro lado esta explicação é em si terapêutica Levi Strauss 1975 e Loyolla 1984 Da mesma forma que seus pacientes um médi co vê o mundo através do filtro de suas representa ções Mesmo deixando de lado os significados parti culares de cada um existem concepções comuns a respeito de coisas como saúde doença tratamento entre outras alimentadas pelo processo de ensino aprendizado formal ou não os vários estágios que acadêmicos fazem ao longo de sua formação são cha mados por alguns de currículo paralelo expondo os futuros médicos de forma sistemática à tradição oral de sua profissão Dessa forma consolidamse representações e modos de agir que passam através das gerações de médicos muitas das quais francamente hostis aos pa cientes que atendemos molambos pés inchados são termos que se ouvem nos corredores de hospi tais de prontosocorro endereçados aos pacientes Crenças também se solidificam desse modo mesmo sem base empírica como por exemplo a ideia cor rente de que um paciente só sai satisfeito de uma consulta se tiver em mãos uma receita Tais crenças são poderosas o suficiente para impedir que o médico enxergue para além delas seu paciente Outro aspecto relevante é que dentro de uma organização social maior como um país ou uma cida Psicossomaticaindd 107 Psicossomaticaindd 107 05012010 121205 05012010 121205 108 Mello Filho Burd e cols de várias subculturas se agitam se tocam e às vezes entram em confronto aberto em rebeliões e conflitos de rua Ao mesmo tempo um indivíduo pode fazer parte de várias destas microssociedades às vezes so frendo como resultado de conflito de lealdade O que importa para nossos fins é que estas várias pequenas culturas emprestam aos seus constituintes uma vi são de mundo que determina seus valores sua ética e mesmo o modo como percebem e cuidam de seus padecimentos Isso quando não é ela própria fonte de sofrimento como nos mostra Freud no MalEstar na Civílização 1930 Assim a relação sociedadedo ença é múltipla não apenas pode a estrutura social ser causadora de doenças como a própria definição de doença é antes de tudo cultural Um fato bastante simples pode ilustrar esta úl tima afirmação Bem poucas pessoas podem afirmar de modo isento que tiveram prazer na primeira vez que fumaram um cigarro Ainda assim com o correr do tempo e com o estímulo social sob a forma de comportamento do grupo do qual fazia parte tenta tiva de emular o pai ou outro modelo de identifica ção pressão publicitária dos meios de comunicação o fumante aprende a gostar a ter prazer no uso do cigarro Ou seja alguma coisa aparentemente tão primitiva biológica quase como o prazer pode ser aprendido como parte do processo de viver em socie dade Da mesma forma a percepção da dor é também sujeita a modulações socioculturais Inúmeros traba lhos de antropólogos e cientistas sociais mostram que o limiar de dor é maior entre saxões do que entre latinos por exemplo Poderíamos ainda lembrar toda a discussão sobre a mobilidade das pulsões quanto aos seus objetos ver por exemplo O Instinto e suas Vicissitudes também de Freud 1915 Assim dificilmente poderia ser surpreendente a afirmativa feita acima de que a própria ideia de doen ça é também socialmente determinada No entanto os médicos agem de forma geral como se as doen ças fossem objetos concretos esvaziados de qualquer significado seja ele psíquico seja ele cultural Isso faz com que frequentemente aquilo que o médico vê como problema seja bastante diverso das preocupa ções do paciente Não raro observamos em nossa experiência com pacientes ambulatoriais em Clínica Médica pessoas entrarem e saírem de consultas com a frustrante sensação de que nenhuma de suas doen ças teve qualquer solução e que o médico acrescen tou algumas novas Dito de outra forma a doença depende tanto de quem a tem quanto de quem a diagnostica ou de onde se diagnostica Determina das reações que podem ser encontradas em qualquer manual de Psiquiatria com sintomas psicopatológicos podem ser parte integrante de rituais culturalmente estabelecidos e perfeitamente admissíveis portan to Existem certas situações que despertam no médi co respostas que dificilmente poderíamos qualificar de cientificamente fundamentais exemplo típico está na relação com a Morte Houve uma determina da ocasião em que uma paciente de uma enfermaria onde trabalhávamos faleceu Era uma menina de 12 anos acometida de uma neoplasia rara Sua mãe ao perceber que a filha havia morrido apresentou um quadro que poucos hesitariam em qualificar como conversivo desfaleceu e colocouse deitada com os olhos abertos imóvel A identificação com a filha morta era óbvia como era óbvio o processo de luto que ali se iniciava Não obstante outros profissionais presentes insistiam na necessidade de administração de um tranquilizante àquela senhora A dor de uma mãe pela perda de uma filha deixava de ser um even to de sua vida e passava a ser sintoma passível por tanto de medicalização Foi necessária uma intensa negociação para que se evitasse a tranquilização compulsória da mãe da paciente parece também cla ro que a demanda pelo medicamento era basicamen te da equipe e no devido tempo a mesma voltou a si e chorou como qualquer mãe faria Ainda nesse aspecto devemos ter em mente que ao tomar a decisão de procurar um médico as pessoas já se dão algum diagnóstico E fato estabele cido que todo paciente traz fantasias mais ou menos conscientes sobre sua doença Mais do que isso es tas fantasias são referidas a uma nosologia e estão hierarquizadas em termos de gravidade Assim para uma pessoa que tenha no seu próprio corpo uma fer ramenta de trabalho doenças que ameacem a ativi dade física são mais graves porque implicam o risco até de perda do emprego A febre por exemplo é tida como sintoma de gravidade No que diz respeito ao médico as fantasias também estão presentes mas travestidas de racio nalidade Via de regra exames complementares que gerem uma imagem ou um valor numérico são mais prontamente aceitos como expressão da verdade mesmo que não haja qualquer razão científica para isso Também costumamos hierarquizar as doenças de nossos pacientes de acordo com nosso interesse acadêmico entre outras coisas Desse modo doen ças evidenciadas objetivamente são mais graves do que as ditas funcionais independentemente de qualquer consideração relativa ao sofrimento dos pa cientes que deveria ao menos em tese ser o referen cial da prática médica Quantos pacientes não foram classificados com a tristemente famosa condição de não ter nada simplesmente para negarlhes qual quer ajuda Numa outra perspectiva a vida em sociedade pode ser fonte de sofrimento e doença É importante frisar que esta não é uma relação mecânica em que Psicossomaticaindd 108 Psicossomaticaindd 108 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 109 o sofrimento social levaria imediatamente ao ado ecimento Dentro dessa ótica observações feitas em países ocupados militarmente à época da Segunda Guerra Mundial que constataram uma menor inci dência de úlceras pépticas nessas circunstâncias se riam inexplicáveis É óbvio que uma série de fatores desde a forma como o indivíduo lida internamente com situações desagradáveis até o seu perfil genético modulam e interferem na resposta dada às tensões sociais Da mesma forma parece claro que socieda des diferentes tendem a oferecer chances diferentes para que seus constituintes se protejam destas ten sões em aspectos como oferta de emprego mecanis mos de seguridade social proteção à segurança li berdade de expressão apoio interpares peer support entre outros Do ponto de vista da mediação psicofisiológica ou melhor ainda psicofisiopatológica entre fenô menos sociais e o adoecimento uma linha bastante óbvia é a do estudo do estresse entendido aqui em sentido estrito no que diz respeito às alterações neu rohormonais que será conduzido em outra parte No que nos concerne pareceunos mais interessante tentar descrever o modo como situações sociais de sencadeiam a resposta genérica do estresse com a óbvia intermediação psíquica Essa relação é bastante clara e bastante bem es tabelecida em algumas doenças em especial as car diovasculares Não podemos deixar de lado entre tanto situações bem menos aparentes Vários outros modos de adoecer podem estar relacionados a situa ções sociais até porque as respostas adotadas nessas situações além da intervenção psicofisiológica direta muitas vezes representam agressões ao próprio orga nismo Quando estão em dificuldades as pessoas fu mam mais tomam álcool e outras drogas e assumem comportamentos que podem colocar em risco sua in tegridade física ou mesmo suas vidas Mais ainda as condições de vida de uma maneira geral tornamse mais insalubres com um pior nível de vida e inver samente tendem a decrescer com a melhora daque le O estudo de Friedrich Engels sobre a incidência de tuberculose pulmonar em operários britânicos no decorrer do processo de industrialização é clássico mostrando que com a melhora da qualidade de vida dessa população a incidência de tuberculose decaiu mesmo que se soubesse o que causava a tuberculose Fica claro portanto que as sociedades huma nas umas mais outras menos dividemse em classes com interesses muitas vezes divergentes antagôni cos até as quais têm controle sobre partes variáveis de sua produção artística de bens de consumo de assistência médica etc bem como do poder políti co Também é evidente que os impactos sociais reper cutem de forma diferente em classes diferentes e que essa diferença será tanto maior quanto mais desigual for uma dada sociedade A forma como cada indiví duo percebe e reage a esses impactos entretanto dá se pela interação desses aspectos externos vincu lados à sua classe com o conjunto de representações internas de que dispõe para lidar com cada situação específica Não fosse por isso frente a uma ameaça de desemprego coletivo todos os indivíduos na mes ma condição deveriam reagir de uma mesma forma fosse ela qual fosse na realidade vemos que as coisas não se passam dessa forma Mais ainda como já dis semos antes a própria percepção é filtrada pelo con junto de representações grupaisindividuais Assim sendo se a ameaça de demissão é vista por exemplo como algo que atinge a todos indiscriminadamente o sofrimento individual pode ser menor Por outro lado se a situação é vista como insolúvel ou se as pessoas perdem a esperança de dias melhores certa mente o impacto será maior Nessas circunstâncias embora cada qual encare a situação à sua maneira é bastante razoável supor que os indicadores sanitários desta população expresso pela incidência de várias doenças bem como as chamadas condutas antisso ciais consumo de drogas delinquência etc etc certamente mostrarão uma piora acentuada Outro aspecto que não pode ser descuidado é que a doença é ela própria um acontecimento so cial especialmente quando grave ou crônica Mais que isso a doença é parte integrante de nossas vidas Wolf 1971a discorrendo sobre padrões de ajusta mento social Diz textualmente que a doença é uma reação às mais do que um efeito das forças no civas Noutro trabalho esse mesmo autor 1971b faz uma ilação que chega a ser revolucionária falan do dos eventos que levam à morte súbita ele escreve Se existe uma significação adaptiva num mecanismo que resulta na morte cardíaca devese considerar que a morte é às vezes a solução definitiva para um problema premente Logo em meio a um sofrimento intolerável devido a uma doença incurável ou situa ção de vida a morte pode ser o que melhor atende às necessidades do individuo Assim doença e morte são eventos da vida das pessoas e portanto parte in tegrante do tecido social O esforço maior da etnografia método pelo qual a Antropologia estuda uma sociedade é et nografar o etnógrafo como forma de diminuir ao mínimo inevitável a influência que suas próprias concepções poderiam ter na descrição daquilo que se observa Talvez seja chegado o momento de o médico ser ele próprio um etnógrafo não apenas de seus pacientes mas também e principalmente da Me dicina e de si mesmo Talvez o esforço contínuo de reflexão sobre os condicionantes de nossa prática nos permita criar pontes que nos reaproximem de nossos Psicossomaticaindd 109 Psicossomaticaindd 109 05012010 121206 05012010 121206 110 Mello Filho Burd e cols pacientes fonte primeira de nosso conhecimento e objetivo último de nossa prática Finalizando é importante frisar que a consulta médica é o momento em que duas subculturas a do médico e a do paciente entram em confronto às vezes de modo desastroso Enquanto estas linhas estão sendo escritas assistimos uma vez mais ao ressurgimento da tática de atribuir aos profissionais de saúde em especial o médico a responsabilidade pela situação caótica da assistência médicosanitária em nosso país Dessa forma o que deveria ser um momento de cooperação entre alguém que busca aju da e outro que a oferece passa a ser uma disputa entre adversários desde o início Assim sendo parece oportuno apontar caminhos que sirvam para recupe rar as funções terapêuticas dessa relação REFERÊNCIAS Appels A Falger P ed The role of psychosocial factors in the pathogenesis of coronary heart disease Psychother Psychosom n 34 1980 Boltanski L As classes sociais e o corpo Rio de Janeiro Graal 1984 Freud S El malestar en la cultura Madrid Biblioteca Nueva 1930 Los instintos y sus destinos Madrid Biblioteca Nueva 1915 Hertoft P Some comments on premarital Sex in Scandinavia In Levi Lennart Society Stress and disease v 3 Oxford Oxford University Press 1978 Kagan A Epidemiology and society stress and disease In Levi Lennart Society Stress and disease Oxford Oxford University Press 1971 leviStrauss C A eficácia simbólica In Antropologia estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975 O feiticeiro e sua magia In Antropologla estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975 Loyolla M Médicos e curandeiros São Paulo Difel 1984 Luz M T Natural racional social Tese IFICSUFRJ Rio de Ja neiro 1987 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1979 Patterns of social adjustment and disease Levi Lennart Society Stress and dlsease Oxford Oxford University Press 1971 Wolf S Psychosocial forces in myocardial infarction and Sud den death In Levi Lennart Society Stress and disease Oxford Oxford University Press 1971 Psicossomaticaindd 110 Psicossomaticaindd 110 05012010 121206 05012010 121206 As questões da promoção da saúde não decor rem somente de fatores meramente individuais mas também de manifestações em dimensões coletivas sobre o que propomos esta reflexão especialmente sobre a cultura das relações de trabalho Este assunto hoje é diretamente proporcional a sua complexidade Desde que Hans Seyle 1947 1965 em 1936 utilizou pela primeira vez o termo stress na forma aportuguesada estresse em Me dicina um grande número de pesquisas e publicações foram produzidas dentro desta linha de pensamento pois a riqueza deste conceito e a operacionalidade do modelo propiciaram o descortinar de um grande horizonte No entanto houve algumas distorções im portantes que infelizmente se popularizaram Muitas vezes tivemos a impressão de que o termo estresse havia se tornado uma panaceia Assim sendo tornase quase obrigatório darmos início a este texto com uma série de considerações ainda que elas se mostrem para muitos leitores algo maçantes e cansativas Sabemos que o rigor e a lógica não demarcam ou caracterizam o pensamento científico já que são condições necessárias ao próprio discurso inteligen te como afirma Castro 1978 Dessa forma algumas condições devem ser preenchidas antes de se carac terizar um discurso como científico Antes de tudo temos que delimitar com a maior clareza e objetividade possíveis os objetos que estão em questão Caso esta précondição não seja satisfei ta o trabalho não poderá reivindicar para si o esta tuto científico Será metodologicamente considerado inadequado e portanto suas conclusões e resultados não poderão ser confiáveis Estas premissas da metodologia científica atingem em cheio os meandros deste tema Estres se doen ça e Psicossomática constituem excelentes exemplos de termos que são usualmente utilizados sem muito rigor evidenciandose uma predominân cia de conceitos que derivam do senso comum que em geral são excessivamente vagos ou ainda quan do no plano dos saberes científicos ignorase que o significado dos termos varia muito de um jargão téc nico para outro tornando o texto hermético e propí cio a malentendidos O discurso científico exige que o sentido das palavras seja restrito com o intuito de tornálo preciso e com fronteiras o mais claro possí veis sob pena de criarmos uma torre de Babel E pior dando a impressão de que estamos falando a mesma coisa situação esta que fica muito próxima daquela que descrevemos como psicótica Apenas para exemplificar podemos citar um excelente trabalho realizado por Vingerhoets e Mar celissen 1988 em que os autores apresentam nove caminhos diferentes sobre estresse Embora seja pos sível nas pesquisas verificar um certo grau de cola boração entre estes diferentes vértices notadamente nos últimos anos graças aos estímulos da interdis ciplinaridade ainda assim é possível perceber que muitos autores tomam os seus referenciais como os únicos e bem conhecidos ignorando as premissas aqui sumarizadas O fato é que existem enormes con trovérsias na definição do conceito de estresse Ado taremos uma categorização que evidenclará de uma forma mais ou menos consistente referencial episte mológico do tema De uma forma geral esta linha de pesquisa concentrase sob perspectivas psicofísiológi cas psicológicas e psicossociais Esta diversidade em si não constitui problema algum Sob uma perspectiva democrática e algo bas tante positivo e até louvável pois estes vértices não são excludentes entre si ao contrário complemen 10 UMA PERSPECTIVA PSICOSSOCIAL EM PSICOSSOMÁTICA VIA ESTRESSE E TRABALHO Avelino Luiz Rodrigues Ana Cristina Limongi França Psicossomaticaindd 111 Psicossomaticaindd 111 05012010 121206 05012010 121206 112 Mello Filho Burd e cols tamse e ajudam a construir um conjunto organiza do de conhecimentos de uma aproximação holística para a promoção de saúde É aqui por este vértice da mais recente epistemologia que se insere o discurso da modernidade em Psicossomática Existe também uma confusão conceitual em re lação ao termo Psicossomática embora isso não seja explicitado o que possibilita a falsa ideia de que a noção de Psicossomática seja homogênea quando na verdade não é Concretamente e este advérbio é de grande importância quando pensamos em pesquisa e prática na promoção de saúde existe um grande nú mero de significados e tendências na Psicossomática o que revela a dificuldade ou mesmo a impossibilida de de estabalecermos um estatuto preciso e definitivo para a Psicossomática O significado do termo que aparentemente nos traria menor dificuldade seria a noção de doença Mas um olhar atento mostranos que isso não é ver dade E este é outro ponto fundamental que gosta ríamos de destacar Doenças respectivas causas e compreensão de seus processos apresentamse no decorrer da história em constante mutação Não iremos nos aprofundar demasiadamente na história da Medicina apenas o suficiente para que tenhamos alguns elementos que permitam compre ender pelo menos um pouco mais o estado presente da prática médica visto que ela está profundamente ligada à noção de doença E no seu combate ela está historicamente legitimada Retornemos à áurea época para a Medicina de Pasteur e Koch cujas descobertas criaram as condiçoes para se obter uma explicação mais racio nal dos processos de adoecer notadamente das do enças infectocontagiosas Do laborioso trabalho des tes cientistas desenvolveuse o imponente edifício da bacteriologia e a introdução neste campo do conhe cimento do rigor científico Estes feitos fizeram de Koch o detentor do Prêmio Nobel de 1905 A partir desse momento as ideias sobre cau salidade ou seja sobre a compreensão do processo de determinação das doenças concentramse quase exclusivamente na ideia de contágio em que o or ganismo é o receptáculo da doença Surge a ilusão ideológica de que a bacteriologia iria liberar a Me dicina dos complexos determinantes econômicos so ciais e políticos E o desenvolvimento da enfermidade seguia mais ou menos a representação da Zoologia da Botânica e da Biologia Exemplificando assim como as pragas são capazes de afetar uma lavoura e a extensão ou não deste comprometimento era en tendido como uma forma de competição entre duas espécies a da plantação versus a praga também estaria acontecendo mais ou menos a mesma coisa quando o organismo humano era acometido por um microorganismo Essa forma de pensar as doenças tornouse hegemônica no sentido dado por Gramsci Gruppi 1981 ou seja como ideia dominante e que determina a direção No nosso caso da pesquisa e práxis sobre a causalidade das doenças Mais alguns aspectos devem ser destacados No plano particular da Medicina evidentemente pro duto cultural determinado pelo momento histórico intensificamse os estudos médicos mais na tentativa de localização das sedes das doenças no organismo e aclarar os sinais e sintomas clínicos Este redirecio namento propiciou um grande desenvolvimento do método clínico que por suas características prioriza a dimensão particular do indivíduo o modelo hos pitalar de cuidado especializado individualizado e curativo deixando em plano bastante secundário os estudos e ideias de incorporar a dimensão do coletivo como causa das doenças A forma de ver descrever e interpretar ou em outras palavras o método científico não é o mesmo para os diferentes vértices da realidade que pode se constituir de aspectos físicos químicos e bio lógicos cujo campo é organizado pelas Ciências Na turais e de aspectos sociais e psicológicos que têm as suas próprias bases de ordenamento que são das Ciéncias Humanas e Sociais Quando forem verificadas alterações mórbidas através de sinais ou seja quando houver manifesta ção física ou química objetiva da doença os métodos das Ciências Naturais são úteis e exatos enquanto que quando olhamos e enfrentamos questões psi cossociais e históricas tais métodos se mostram ina dequados porque não nos fornecem instrumentos para a objetivação de tais vértices da realidade Existe pois a necessidade de se diferenciar as diversas categorias do ser humano ser biopsicosso cial para criarmos um terreno favorável a uma lei tura adequada Estamos falando de categorias que possuem seus próprios métodos de verificação e ob jetivação ainda que todos esses elementos estejam presentes compondo a realidade humana Há que se criar condições para a apreensão tam bém da dimensão coletiva do processo saúdedoença e suas determinações sociais Hoje através do método interdisciplinar é possível à Medicina Psicossomática que tem pretensões holísticas envolverse na análise das estruturas sociais pensandoas como um dos fa tores de risco na cadeia etiológica das doenças Quando a explicação do processo de adoecer escapava da ideia de contágio surgiram outras tentativas de compreen são como a constituição e a hereditariedade ou ainda as doenças passavam a ser chamadas de idiopáticas essenciais ou inespecíficas Psicossomaticaindd 112 Psicossomaticaindd 112 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 113 As preocupações sobre a saúde do trabalhador vêm desde a época da revolução industrial a ponto de Virchow afirmar o proletariado em grau sempre crescente tornouse a vítima de doenças e epidemias seus filhos ou morriam prematuramente ou se tor navam incapacitados Nessa mesma época surgem esforços na tentativa de regulamentar a higiene das condições de trabalho Mas notese que as preocupa ções ainda enfatizam um certo modelo ecológico ou seja as condições higiênicosanitárias e nutricio nais O indivíduo adoeceria se o organismo ficasse exposto a determinados agentes físicos A legislação trabalhista de vários países a brasileira entre elas re conhece a relação de causa e efeito de vários agentes físicos químicos e biológicos na produção das doen ças ditas ocupacionais Bem menos tranquila é a aceitação mesmo em países economicamente mais avançados do fato de ser o trabalho enquanto forma de organização e muito menos em razão de sua pró pria natureza fator morbigênico em si em que pese o crescente número de evidências Pitta 1990 Está posto pela própria experiência e pelo co nhecimento acumulado até os dias de hoje que o modelo que tem como paradigma médico a Biologia tem encontrado dificuldade em gerar novos conhe cimentos que permitam a compreensão de inúmeros problemas de saúde principalmente aqueles que afli gem as regiões mais industrializadas As enfermidades e isso ficará bastante eviden te naquelas que decorrem do processo de estresse enquanto fenômeno humano têm componentes só ciohistóricos e psicológicos que não podem ser com preendidos sem ajuda de métodos adequados Assim a objetivação do processo de saúde doença pelo vértice de uma Psicossomática com pretensões holísticas procura adicionar aos conhe cimentos gerados pela Medicina através do método BioFísicoQuímico um outro conjunto de saberes que nos mostra as facetas do ser humano enquanto Ser Psicológico e Social por intermédio das Ciências Humanas e Sociais O método que se impõe é o inter disciplinar que nos possibilita observar o fenômeno humano como um processo extremamente complexo e de mútua interação entre a infraestrutura biológica e a superestrutura social mediada pelo psicológico Nas palavras de Gilberto Freire 1983 o ser hu mano é um todo biológica ecológica e sociocultural mente determinado E seu bemestar além de físico psicossocial está dependente e relacionado a situa ções que o envolvem como membro de um grupo em particular e de uma comunidade e mais do que isso de um sistema sociocultural em geral e não apenas de sua herança biológica ou de fatores ecológicos E importante ampliarmos a nossa capacidade de entendimento sobre o comportamento dos indivíduos no que eles são influenciados socialmente Esta in fluência históricosocial se faz de acordo com o grupo social ao qual eles pertencem e que reforçará ou puni rá os seus comportamentos As emoções ainda que se jam respostas universais de um organismo submetem se às influências sociais Lane 1986 Assim aquilo que nos entristece ou nos alegra decorre da visão de mundo que se adquire através do contato social Na verdade todo fenômeno humano é um fenômeno so cial como também a ordem social existe unicamente como produto da atividade humana Vamos aprofun dar um pouco mais esta questão pois ela merece ser melhor apreendida Algumas linhas acima através de Lane observamos que o comportamento humano é determinado pelo menos em grande parte através da interrelação do indivíduo com o grupo do qual ele faz parte Ora o ser humano é dotado de algumas par ticularidades que o diferenciam de todos os animais da escala zoológica E importante frisar que desenvol vimentos orgânicos significativos se completam após o nascimento do bebê Por conseguinte o organismo humano desenvolveuse em interação com o seu am biente social grupo no qual se insere e assim muitas das funções orgânicas são fortemente influenciadas e serão determinadas socialmente Talvez um exemplo bastante evidente do que pretendemos demonstrar está no estudo da lingua gem a emissão da voz fenômeno físico abre a pos sibilidade de combinar os sons em palavras que a gramática articula em frases fenômeno psicológico constróise o discurso que é produzido dentro de um contexto social no qual o indivíduo está localizado fenômeno psicossocial A palavra tem um caráter instrumental altamen te significativo para a sobrevivência e formação do homem diferenciandoo de outras espécies animais na medida em que permite a transmissão do co nhecimento para outros homens e essa capacidade garante a criação da cultura Cultura e discurso estão intimamente articula dos de forma que o conteúdo do discurso sempre contém uma impregnação ideológica O ser humano está em constante movimento e a todo momento surgem situações que exigem dele uma solução Este contínuo movimentarse é deter minado em parte pelo conjunto das necessidades inconscientes e pelas exigências da cultura Um bom exemplo disso é o trabalho que pode ser fonte de satisfação e criador de condições para a satisfação de necessidades inclusive as instintivas Este contínuo movimentarse para buscar a satisfação é em geral movido por emoções muitas vezes inconscientes disso decorre a criação de situa ções de que surge a necessidade de se obter soluções o que gera a ação Psicossomaticaindd 113 Psicossomaticaindd 113 05012010 121206 05012010 121206 114 Mello Filho Burd e cols A linguagem surge como algo que medeia a ação Por um lado ela tem um caráter instrumental na medida em que expressa ao outro uma comunica ção e por outro lado um conteúdo ideológico cultu ral que está a ela vinculado A emoção busca a expressão por meio da lin guagem para solucionar o estado de necessidade e obter a satisfação No entanto se esse processo for total ou parcial mente bloqueado e em geral este bloqueio é de ori gem ideológica e cultural a solução não é adequada a ação mostrase comprometida e a emoção fica con tida o que implica que a manifestação da emoção então fazse de forma indireta eou simbólica Aproximamonos muito neste momento dos conceitos de somatização e conversão Um bom exemplo do que pretendemos demons trar é facilmente observado na primeira infância onde o verbal é incipiente mas a ação ideológica está presente nos valores emitidos pelo comportamento dos adultos não é provavelmente a palavra mais emitida pelos pais e geram na criança emoções ne gativas para as quais ela não encontra soluções per manecendo assim contidas e se manifestando de for mas indiretas eou simbólicas Lane 1985 Temos então um modelo que nos ajuda a pensar a integração psicossomática via linguagem desde seu momento mais físico da emissão da voz passan do por seus momentos mais psicológicos na articula ção de frases até atingirmos o psicossocial através do conteúdo do discurso Nosso próximo passo e dar sentido a este co nhecimento em uma situação prática concreta da clínica Para tanto vamos eleger a doença coronária como nosso objeto Sabemos que estruturas objetivamente alienan tes como as condições e modo de organização do trabalho alienado que se caracterizam por trabalho coercitivo sem criatividade em que o indivíduo que o executa não tem controle sobre o seu processo de trabalho sendo a tarefa aborrecida e intensidade e duração arbitrariamente decididos com relações de trabalho fragmentadas e competitivas têm a possi bilidade de produzir sentimentos que se denominam experiência subjetiva da alienação que se caracteri za por sensação de falta de poder insatisfação frus tração O trabalho produz também sentimentos de alhea mento e impressão de que se situa em um alie nado mundo hostil e insensível Esta experiência subjetiva da alienação tem sido correlacionada como um dos fatores de risco da doen ça coronária Podemos citar aqui o trabalho de senvolvido por Dreyfuss Shanon e Sharon em que demonstram que existe maior risco de doença co ronária em pessoas que experimentam um pequeno controle sobre suas vidas nas quais a relação entre o esforço despendido e a realização é muito incerta e relatam conflitos com o seu contexto de vida Outros dados de observação que se acrescen tam a este podem ser localizados nos estudos que têm sido efetuados sobre a relação entre doença co ronária e a denominada Personalidade tipo A fato já há algum tempo demonstrado A nós interessa des tacar que a Personalidade tipo A frequentemente é encontrada em indivíduos envolvidos em uma luta constante para obter um número ilimitado de coisas em um período relativamente curto que enfrentam os esforços contrários e reprimem fortemente senti mentos de frustração hostilidade e insegurança Tal conjunto aproximase muito daquilo que foi acima categorizado como sentimentos subjetivos da aliena ção qual seja experiência de falta de poder insatis fação e frustração Vale ainda ressaltar que o comportamento ma nifesto que caracteriza a Personalidade tipo A é extre mamente estimulado e reforçado no contexto do tra balho na medida em que é estimulada a competição entre os colegas de trabalho que se rivalizam para obter gratificação e promoção que se esforçam para produzir mais e melhor dentro de prazos rigorosos e que frequentemente levam trabalho para casa Frente ao que foi exposto podemos perceber que há uma relação segura evidente entre o risco de doença coronária e o tipo de organização social do trabalho Quanto aos outros fatores de risco de doença coronária a dieta hábito de fumar falta de exercício e antecedentes familiares com exceção desta última Emoções Sintoma Palavra comunicação Conteúdo ideológico Busca expressão para solucionar o estado que foi criado Se o processo for bloqueado Solução fica prejudicada emoção fica contida Emoção manifestase indiretamente eou simbólica FIGURA 101 Psicossomaticaindd 114 Psicossomaticaindd 114 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 115 revelam uma forma de viver de organizarse frente às vicissitudes da vida que merecem uma investigação igualmente detalhada Podemos dizer que o ser humano é compelido pelos seus impulsos biológicos à busca de alimentos Esses impulsos extremamente plásticos na espécie humana sofrem influência direta de fatores sociais que são internalizados incorporados na interrela ção que se estabelece com os membros de seu gru po social em especial a família Isso nos conduz ao seguinte o ser humano é obrigado pela sua consti tuição biológica a buscar a satisfação instintiva esta é geralmente canalizada através de vias socialmente determinadas como o quê e quando comer o dia a hora o local a conveniência a atividade profissional as regras de ética hábitos etc Berger 1987 Ou tro exemplo da plasticidade do organismo humano e de sua disposição especial para sofrer as influências sociais é a sexualidade humana suficientemente do cumentada na Antropologia Essa ideia holística foi concisamente estabeleci da por Wooder em seu livro Biologia e Linguagem no significado da palavra pessoa que inclui a noção de que todo indivíduo é membro de uma comunidade de pessoas Essa comunidade determina que espécie esta pessoa será e até mesmo sua existência depende dela Pessoa membro de um grupo social é o ponto inicial de uma unidade indivisível do qual as noções de corpo e mente são abstraídas através de uma es tratégia metodológica com o propósito de estudálas Lipowski 1984 MECANISMO DE FORMAÇÃO DOS SINTOMAS O conceito de Medicina Psicossomática enquan to método de investigação científica e prática na pro moção de saúde é bastante recente organizandose há cerca de 50 anos Rodrigues 1989 No entanto tem apresentado uma rápida evolução Por um lado o avanço demonstra um grande esforço e interesse em relação a esta modalidade de saber por outro gerou uma certa confusão em relação ao significado da ex pressão psicossomática Rodrigues loc cit Este termo psicossomática foi introduzido na Medicina em 1818 por Helmholtz e tinha naquela ocasião o sentido de designar as doenças somáticas que surgiam tendo como fator etiológico os aspectos mentais Rodrigues 1989 e Mello Filho 1983 Na moderna Psicossomática esse conceito evoluiu para o estudo da pessoa como ser histórico que é um sis tema único constituído por três subsistemas corpo mente e social Acabou assim adquirindo a configu ração de um verdadeiro movimento médioo aplicado à promoção de saúde dentro desses princípios Pelo menos no seio do Intemational College of Psychosomatic Medicine e da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática a concepção de Psicossomá tica hoje não se configura como ramo da Psiquiatria E uma atitude de Medicina Integral que concebe o ser humano tanto na saúde como na doença como um ser biopsicossocial Isso implica que o profissio nal da área da saúde deve ir além da realidade física dos pacientes sem no entanto negála Eksterman 1978 Procura adicionar aos tradicionais saberes médicos calcados dentro de uma metodologia pró pria das ciências naturais ou seja aquele conjunto de conhecimentos sobre os sinais e sintomas orgâni cos todo um conhecimento que deriva das ciências humanas e sociais Descartamse portanto as noções ou raciocínios etiológicos tendentes ao biologismo ao psicologismo e ao sociologismo O conceito de holismo básico para a Medici na Psicossomática foi introduzido na Medicina por Smutes em 1926 O termo advém do grego holos que significa todo Esse conceito estabelece noções acerca da natureza biopsicossocial do homem na saúde e na doença bem como o respectivo tratamen to Lipowski 1984 Rodrigues 1989 e Prite 1987 O estudo e a pesquisa devem sempre levar em conta a pessoa como um todo e não as partes isoladas Pon tes loc cit A Medicina Psicossomática investiga e oferece caminhos para uma prática na promoção de saúde mais voltada para o paciente portanto menos volta da para o sintoma ou para a doença Seu avanço só tem sido factível graças à possibilidade de diferentes e complexas disciplinas serem utilizadas de forma in tegrada Dessa maneira a Psicossomática tem seus pilares assentados sobre os conhecimentos da Fisio logia em especial da Psicofisiologia da Psicologia Social da Patologia Geral das Psicologias Dinâmicas notadamente a Psicanálise e das concepções holís ticas Esse tipo de perspectiva desemboca em um tipo de proposta metodológica interdisciplinar em que os diferentes subsistemas da unidade biopsicossocial humana são adequados e concomitantemente abor dados Entendese aqui por método interdisciplinar uma postura científica que trata das interações e dos métodos comuns às diferentes especialidades Japiassu 1976 Isso é básico Sem a adoção de tal método fica impossível pensamos em Psicossomática como proposta assistencial integral É fundamental a insistência de se levar em con sideração a totalidade do ser humano e das circuns tâncias que o rodeiam para termos uma compreensão mais ampla dos processos de adoecer A totalidade surge quando se leva em conta a pessoa o doente e não a doença Daí a tendência atual da Psicosso Psicossomaticaindd 115 Psicossomaticaindd 115 05012010 121206 05012010 121206 116 Mello Filho Burd e cols mática de compreender os processos de adoecer não como um evento casual na vida de uma pessoa mas sim representando a resposta de um sistema de uma pessoa que vive em uma sociedade De uma pessoa que nessa sociedade vive em relação recíproca com outros sistemas inclusive outras pessoas e que é parte ativa de uma microestrutura familiar inserida na macroestrutura social e cultural situada em de terminado ambiente físico e que procura resolver do melhor modo possível os problemas da sua existên cias no mundo Pontes O estudo e a compreensão da biografia do indivíduo nos permite perceber que os fenômenos humanos têm sempre uma motivação nada acontecendo por acaso Assim o processo de adoecer deixa de ser um evento casual e passa a ser integrado à sua biografia O indivíduo no decorrer do seu desenvolvimento constrói e estrutura formas de ser e reagir aos diferentes estímulos aos quais pode ser submetido no sentido de manter a homeostase do sistema humano Wolff em 1952 já demonstrava que os distúrbios da relação do homem com o seu ambiente físico e psicossocial podem gerar emoções desprazerosas e estimular reações de vários tipos A doença é uma reação ativa do organismo e não ape nas um efeito aos estímulos nocívos A Organização Mundial de Saúde em relatório datado de 1986 afir ma que há uma multiplicação de manifestações de doenças decorrentes de desequilíbrios psicossociais sendo esta a mais frequente razão de consultas médi cas chegando a cerca de 50 nas regiões mais indus trializadas e 25 naquelas menos industrializadas No saber contemporâneo podemos afirmar que o ho mem é capaz de responder às ameaças simbólicas de correntes da interação social e não apenas às amea ças concretas biológicas como os microorganismos e ou físicas e químicas Assim situações como quebra de laços familiares e da estrutura social privação de necessidades básicas obstáculos à realização pessoal separação perda de emprego viuvez aposentadoria entre outros são tão potencialmente danosos à pes soa quanto os fatores concretos acima citados O sindicalista Carlos Aparecido Clemente coor denador do Departamento de Segurança do Sindica to dos Metalúrgicos de Osasco disse o seguinte em uma recente mesaredonda sobre saúde no contex to organizacional no dia em que o profissional da área de saúde perguntar ao paciente como é o seu trabalho como está no trabalho onde como e com quem mora quanto tempo demora para ir de casa para o trabalho e viceversa teremos uma revolução no atendimento e na promoção de saúde Um gran de número de estudos epidemiológicos de Psicofi siologia e de Psicoendocrinologia demonstram que são vários os agentes ambientais e sócioeconômicos culturais na sociedade industrial e urbana potencial mente patogênicos O ser humano tem apresentado dificuldades em reagir de forma adequada nos diz Lennart Levi diretor do Karolinska Institut de Es tocolmo considerada a instituição de referência da OMS para os estudos da influência dos fatores psi cossociais no ser humano Dentro dessa perspectiva podese compreender um grande número de doen ças senão a maioria das doenças mais frequentes do homem urbano contemporâneo que denunciam expressam e relevam a forma de uma pessoa viver a sua interação com o mundo Assim a compreensão da Patologia dentro da perspectiva de um processo histórico e interrelacio nal amplia e enriquece os conhecimentos sobre os complexos mecanismos biofísicoquímicos relaciona dos com o processo de adoecer É de fundamental importância abrir espaço para compreender que a situação de conflito seja do indiví duo consigo mesmo seja do indivíduo com a circuns tância à qual está submetido geradora de emoção é suficiente para originar transtomos funcionais e estes se repetidos e persistentes alteram a vida ce lular acarretando a lesão orgânica e suas complica ções Pontes loc cit A emoção é um fenômeno que ocorre simultaneamente no nível do subsistema do corpo e no nível do subsistema processos mentais Aquilo que no nível dos sentimentos é medo raiva dor tristeza alegria fome no corpo concomitante mente se expressa através de modificações no subsis tema somático através de modificações das funções motoras secretoras e de irrigação sanguínea Este conjunto de alterações é coordenado pelo conjunto hipotálamohipófise e sistema límbico que foram as sim explanados por Fernandes Pontes A disfunção pode resultar da alteração de fibra muscular lisa que existe ubiquitariamente em vários órgãos Assim a pessoa pode apresentar disfunções motoras no nível do aparelho digestivo vômitos síndrome hipoestêni ca diarreia prisão de ventre discinesias do apare lho respiratório asma bronquite do aparelho geni turinário disúria cólica pielouretral dismenorreia polaciúria vaginismo taquiespermia do aparelho circulatório hipertensão arterial diastólica enxa queca cefaleia de tensão de pele neurodermites eczemas pruridos e de outros órgãos e aparelhos A disfunção quando secretora manifestase não só na produção de muco mas também na produção de secreções endócrinas na produção de hormônios do aparelho digestivo secreção gástrica pancreática biliar e entérica A disfunção da irrigação sanguínea nos órgãos exerce importante papel na determinação de processos agudos e crônicos e na dependência da intensidade da repetição e da duração deles pode ocasionar a diminuição da resistência damucosa a outros agentes agressivos surgindo hemorragias e Psicossomaticaindd 116 Psicossomaticaindd 116 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 117 ulcerações de extensão e profundidades variáveis As alterações destas três funções parciais ocorrem em combinações múltiplas ao sabor das mais varia das situações de vida ligadas a sentimentos de raiva hostilidade medo dor malestar fome humi lhação depressão desesperança desalento tristeza e melancolia E suas apresentações na clínica são as mais variadas Manter a vida enquanto se luta para ganhála nem sempre é fácil O desgaste a que as pessoas são submetidas no seu processo de viver é um dos cofato res mais potentes no desenvolvimento de doenças ESTRESSE E DOENÇA DE ADAPTAÇÄO Um bom referencial que nos ajuda a nós mé dicos a compreender melhor estes processos está nos estudos desenvolvidos por Hans Seyle endocri nologista radicado no Canadá sobre o estresse Seyle utilizou este termo para denominar aquele conjun to de reações que um organismo desenvolve ao ser submetido a uma situação que exige esforço para a adaptação Na verdade a todo instante estamos fazendo movimentos de adaptação ou seja tentativas de nos ajustarmos às mais diferentes exigências seja do am biente externo seja do mundo interno este vasto mundo de ideias sentimento desejos expectativas sonhos imagens etc que cada um tem dentro de si Assim o politraumatizado de um acidente de trânsi to a mãe que se preocupa com o filho o operário que trabalha em um ambiente barulhento ou perigoso para sua integridade o executivo que luta para cum prir os prazos o jogador de futebol estão em situa ção de estresse Tambem nós já experimentamos si tuações de vida relacionadas ou não com o trabalho que nos exigiram um esforço adicional experimen tando esta situação de estresse ou seja aquele de nominador comum de todas as reações de adaptação SISTEMA LÍMBICO OU SISTEMA NERVOSO CENTRAL Informações e respostas Recebe processa emite e regula dos e para os mundos Pelos mensageiros Nervosos e químicos inclusive hormônios dão origem à Externo Interno Físico ecologia e que Células e órgãos inclusive nervoso Sentimentos Inibição à satisfação das forças instintivas Conflito interno ou intrapsíquico Conflito interno ou intrapsíquico Competente latente em níveis de sentimentos Competente manifesto em nível do soma Discinesias Discrinias Distúrbios circulatórios Disabsorção etc Malestar Angústia Disfunção ou distonia sintoma com Hemorragia infecção reação alérgica e imunitária litíase neoplasias Tensão dos sentimento Tensão celular e visceral Inflamação Permeabilidade capilar necrose Ulceração Dependendo da intensidadeduração Repetição da constelação etiologica Complicações Tensão emocional sistema límbico Soma Sociocultural etologia Processos mentais FIGURA 102 Mecanismo de formação de sintomas e doenças pela teoria da psicologia dinâmica psicanalítica Pontes et al Reproduzido da Apos tila do Curso de Psicologia Médica Abordagem Sóciopsicossomática Psicossomaticaindd 117 Psicossomaticaindd 117 05012010 121206 05012010 121206 118 Mello Filho Burd e cols de um organismo Seyle loc cit O referido autor demonstrou em trabalhos aqui mencionados e pu blicados a partir de 1936 que o organismo quando exposto a um esforço desencadeado por um estímulo percebido como ameaçador à homeostase seja ele fí sico químico biológico ou mesmo psicossocial apre senta a tendência de responder de forma uniforme e inespecífica anatômica e fisiologicamente respostas estas que constituem uma síndrome A esse conjunto de reações inespecíficas na qual o organismo parti cipa como um todo ele chamou de Síndrome Geral de Adaptação que resumidamente vamos expor Ela consiste em três fases Reação de Alarme Fase de Re sistência e Fase de Exaustão Não é necessário que a fase se desenvolva até o final para que haja o estres se e é evidentemente só nas situações mais graves que se atinge a última fase a de exaustão A Reação de Alarme subdividese em dois tempos o shock e o contrashock Parte desta reação assemelhase à Re ação de Emergência de Cannon Rodrigues 1989 Pontes 1987 célebre fisiologista responsável pelo desenvolvimento das noções de homeostase Cannon percebeu que quando um animal era submetido a es tímulos agudos ameaçadores da homeostase inclusi ve medo fome dor e raiva apresentava uma reação em que o animal se preparava para a luta ou para a fuga Esta reação caracterizase por a aumento da frequência cardíaca e da pressão ar terial para permitir que o sangue circule mais ra pidamente e portanto cheguem aos tecidos mais oxigênio e nutrientes b contração do baço levando mais glóbulos verme lhos à corrente sanguínea acarretando mais oxi gênio para o organismo c o fígado libera açúcar armazenado na corrente sanguínea para que seja utilizado como alimento e consequentemente mais energia para os mús culos e cérebro d redistribuição sanguínea diminuindo o fluxo para a pele e vísceras aumentando para múscu los e cérebro e aumento da frequência respiratória e dilatação dos brônquios para que o organismo possa cap tar e receber mais oxigênio f dilatação pupilar com exoftalmia para aumentar a eficiência visual g aumento do número de linfócitos na corrente san guínea para reparar possíveis danos aos tecidos Tais reações são desencadeadas por descargas adrenérgicas da medula da suprarenal e de noradre nalina em fibras pósganglionares Paralelamente é acionado o eixo hipotálamohipófisesuprarenal que desencadeia respostas mais lentas e prolongadas e que desempenha um papel crucial na adaptação do organismo ao estresse a que está sendo submetido O estímulo agudo provoca a secreção no hipotálamo do hormônio corticotrophin releasing hormone que por sua vez determina a liberação de ACTH da adenohi pófise além de outros neuro hormônios e peptídeos cerebrais como as betaendorfinas que atuam sobre o componente doloroso do estresse STH prolactina etc O ACTH desencadeia a síntese e a secreção de glicocorticoides pelo córtex da suprarenal Estabele cese então um mecanismo de feedback negativo com os glicocorticoides atuando sobre o eixo hipotálamo hipofisário Essas reações são mediadas pelo sistema diencéfalohipofisário visto que não surgem em ani mais de experimentação que tiveram a hipófise ou parte do diencéfalo destruídos Se os agentes estres santes desaparecem tais reações tendem a regredir no entanto se o organismo e obrigado a manter seu esforço de adaptação entra em uma nova fase que é chamada Fase de Resistência que se caracteriza ba sicamente pela reação de hiperatividade córticosu prarenal sob mediação diencéfalohipofisária com aumento do córtex da suprarenal atrofia do baço e de estruturas linfáticas leucocitose diminuição de eosinófilos e ulcerações Se os estímulos estressores continuarem a agir ou se tornarem crônicos e repetitivos a resposta ba sicamente se mantém mas com duas características diminuição da amplitude e antecipação das respostas Poderá ainda haver falha nos mecanismo de defesa com desencadeamento da terceira fase que é a de Exaustão com retorno à Fase de Alarme dificuldade na manutenção de mecanismos adaptativos perda de reservas e morte Seyle 1965 e 1947 Rodrigues 1989a Mello Filho 1983 Pontes 1987 Granboulan 1988 As reações de estresse resultam pois dos esfor ços de adaptação No entanto se a reação ao agres sor for muito intensa ou se o agente do estresse for muito potente eou prolongado poderá haver como consequência doença ou maior predisposição ao de senvolvimento de doença Pois a reação protetora sistêmica desencadeada pelo estresse pode ir além da sua finalidade e dar lugar a efeitos indesejáveis É oportuno lembrarmos mais uma vez Levi 1971 o ser humano é capaz de adaptarse ao meio ambiente desfavorável mas esta adaptação não ocorre impune mente O perigo parece ser maior nas situações em que a energia mobilizada pelo estresse psicoemocio nal não pode ser consumida Aliás Seyle op cit nos lembra que as doenças de adaptação são conse quências do excesso de hostilidade ou de excesso de reações de submissão Além disso a possibilidade de que o organismo contenha memória afetiva sistema límbico hipotálamo conectados com o córtex de si Psicossomaticaindd 118 Psicossomaticaindd 118 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 119 tuações de estresse anteriores perpetua o potencial nocivo Granboulan 1988 As proposições acima podem ser mais facilmen te comprovadas nas doenças em que notoriamente há um componente de esforço de adaptação como por exemplo nas úlceras digestivas nas alterações dis pépticas crises hemorroidárias alterações da pres são arterialditas essenciais alterações na parede dos vasos sanguíneos alguns tipos de doenças renais alterações inflamatórias do aparelho gastrintestinal diversas afecções derrnatológicas alterações metabó licas várias manifestações alérgicas artrites reumáti cas e reumatoides perturbações sexuais comprome timento do sistema imunológico e algumas alterações tiroidianas A lista de doenças poderia ser imensa princi palmente na dependência da formação do profissio nal médico mas existem dados epidemiológicos que não podem ser ignorados que situam em cerca de 25 a prevalência da morbidade psiquiátrica nos consultórios de clínica geral Cubi 1989 Wilkinson 1986 acredita que a percentagem de morbidade psiquiátrica não detectada na clínica geral chega na Inglaterra a cerca de 33 a 60 no nível de atenção primária à saúde Se nos limitarmos ao nosso tema podemos perceber que várias das patologias hoje es tudadas pela Medicina do Trabalho têm íntima cor relação com o estresse O desgaste a que as pessoas são submetidas nos ambientes e nas relações com o trabalho é fator dos mais significativos na determina ção de doenças Cremos que este trabalho não escapa ao conhecimento médico mas também é fato que o espaço dedicado na anamnese à investigação desses aspectos é pequeno em relação à sua importância Não nos estenderemos contudo no estudo das doenças ocupacionais e suas relações com a teoria do estresse Vamos deternos numa das linhas possíveis ainda que de uma forma introdutória que é o estudo entre os agentes estressores psiçossociais e o trabalho A importância desses agentes estressores os psicossociais é hoje reconhecida pela imensa maioria dos médicos Sabemos que são tão potentes quanto os microorganismos ou a insalubridade no desencade amento de doenças Um recente projeto de lei sueco de saúde pública afirma Nossa saúde depende em grande parte de nossas condições e modo de vida E são estas as mais frequentes razões de consultas médicas nas regiões mais desenvolvidas afetando in diferentemente as mais variadas classes sociais Ou seja tanto o operário como o executivo são passíveis de apresentar alterações no seu funcionamento devi do aos agentes estressores psicossociais Sabemos que as reações de estresse são natu rais e até necessárias para a própria vida no entan to sob algumas circunstâncias elas podem se tornar prejudiciais ao funcionamento do indivíduo Já nos referimos a isto O gráfico ao lado pode ilustrar o que tentamos transmitir A CULTURA EMPRESARIAL O conjunto de práticas e as redes de significa dos compartilhados em grupamentos sociais formam o processo cultural Tem permanência de tempo tem caráter de coletividade e tem continuidade além da vida de quem a cria Laraia 1988 Este processo rea liza a construção social da realidade Uma cultura adquire conformação e caráter específicos graças à coerência e unidade de suas instituições sociais Tais instituições possibilitam a continuidade social e cons tituem os instrumentos efetivos do seu equilíbrio Laraia 1988 Esta conceituação considera a cons trução transformação e manutenção deste fenômeno da vida em comum organizada para o viver e o sobre viver humano Para Mello Filho 1988 a cultura é o resulta do das atitudes ideias e condutas compartilhadas e transmitidas pelas pessoas de uma sociedade jun tamente com as respectivas transformações isto é invenções métodos de investigação do ambiente e objetos manufaturados As características da cultura representam po tencialidades adaptativas e estressoras dentro da numerosa gama de possibilidades de transformações reproduções e expressões próprias da complexidade Área de melhor performance Estresse no trabalho PERFORMANCE NO TRABALHO FIGURA 103 Performance no trabalho Psicossomaticaindd 119 Psicossomaticaindd 119 05012010 121206 05012010 121206 120 Mello Filho Burd e cols e riqueza humanas No entanto existem processos culturais que limitam e moldam a expressão desta natureza sobre o que Geertz in Laraia op cit p 58 afirma um dos mais significativos fatos sobre as pessoas é a constatação de que todos nascem com um equipamento para viver mil vidas mas temrinam tendo vivido uma só O homem não é apenas o pro dutor da cultura mas também num sentido especifi camente biológico o produto da cultura Analisando as influências culturais sob o enfo que das manifestações psicossomáticas existem es tudos em que a atuação da cultura sobre o biológico se torna evidente no processo do adoecer e do curar Por exemplo o surgimento de sintomas de malestar provocados pela ingestão combinada de determina dos alimentos leite com manga Outro exemplo é a sensação de fome nos horários de alimentação esta belecidos diferentemente em cada cultura Relatase também o caso de africanos removidos violentamen te de seu continente ou seja de seu ecossistema e de seu contexto cultural que transportados para uma terra estranha perdiam a motivação para continuar vivos Nessas ocasiões ocorriam muitos suicídios e o mal denominado banzo traduzido como Sauda de Os casos de curas decorrentes da fé no remédio ou na religião são outros exemplos Nessa dinâmica estão os processos psicosso ciais Eles são constituídos em parte por percepções e atitudes dos indivíduos e em parte por elementos culturais que direcionam os vínculos reproduzem e recriam valores sobre vários fatos da realidade Os critérios específicos sobre saúde doença indivíduo trabalho produtividade força vulnerabi lidade são construídos pela cultura e transformadas pelos indivíduos Os elementos culturais objetivamse quando os indivíduos dão significados à queixa psicossomática às atitudes dos indivíduos doentes às reações do gru po de trabalho à frequência no ambulatório e a ou tras situações cotidianas A cultura é edificada a partir do meio ambiente O meio ambiente é o mundo externo e a realidade imediata Realidade esta que segundo Berger e Luck mann 1987 é decorrente da vida cotidiana que se apresenta interpretada pelos homens e é subjetiva mente dotada de sentido para eles na medida em que forma um mundo coerente Existem estudos realizados por Wittkower sobre estresse cultural conforme relata Mello Filho 1983 a partir dos quais é possível relacionar respostas psicos somáticas e cultura Neles foram identificados aspec tos culturais estressantes como o uso acentuado de tabus saturação de valores instabilidade de modelos culturais privação de vida social rigidez de normas e condições minoritários Esses dados demonstram que as respostas psicossomáticas sofrem influências dife rentes em cada cultura ou subculturas AS RELAÇÕES EMPRESAPESSOA Toda empresa é um conjunto sociocultural com plexo organizado para realização de serviços fabrica ção de coisas transformação ou extração de produtos da natureza Segundo Lapassade 1983 constituise de um sistema de redes de status e papéis Possui coordenação das atividades de uma série de pessoas para consecução de algum serviço ou produto por meio da divisão de trabalho e através da hierarquia de autoridade e responsabilidade Este complexo de pessoas com seus modos próprios transforma e provoca transformações no trabalho que se realiza no espaço empresarial Suas atividades visam à satisfação de necessidades organi zacionais e individuais a partir de limites estruturais e tecnológicos sobre os quais se processam acomoda ções dentro e fora do espaço empresa Katz e Kahn 1976 afirmam que na organiza ção há uma interpretação dos sistemas de autoridade e recompensa na qual processos de desenvolvimen to por cujo intermédio os grupos adquirem mecanis mo regulatório e uma estrutura de autoridade não são independentes mas sim interativos Na cultura empresarial em função desta uni lateralidade de apreensão do comportamento so bressaem valores objetivos e impessoais isto é não contando com a emoção vêse o individuo de forma incompleta com habilidades específicas para a rea lização de tarefas isolado das suas características de ser das suas experiências de vida Dessa forma durante a relação indivíduoempresa há uma cisão do comportamento de um lado a força de trabalho com subordinação às regras da empresa de outro o vivenciar emoções nem sempre expressas adequada mente A relação com a empresa está representada por uma ou mais pessoas que já pertencem à organização às quais foram atribuídas responsabilidades adminis trativas para falar em nome da empresa O falar em nome da empresa envolve a legitimação dos mo delos administrativos da política administrativa e do controle da conduta O processo de firmar contrato de trabalho na verdade caracterizase por acatar as normas os valores e os procedimentos utilizados de forma coletiva e em geral coletivamente aceitos Nas empresas brasileiras este processo é objetivado a partir da Consolidação das Leis do Trabalho CLT que regulamenta o registro a remuneração o repou so o afastamento a validade de atestados médicos as condições especiais para o trabalho da mulher do Psicossomaticaindd 120 Psicossomaticaindd 120 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 121 menor as atividades insalubres e penosas e as resci sões contratuais Ao celebrar o contrato de trabalho a pessoa com todos os fenômenos intrapessoais e interacionais que caracterizam sua identidade acata as normas or ganizacionais A pessoa quando é admitida na empre sa traz consigo sua história sua personalidade e uma forma de funcionar tanto orgânica como psíquica e social E tende a produzir nas suas relações não só as expectativas mas também sua história que vai inte ragir com o sistema de organização manutenção e de adaptação do indivíduo do grupo da empresa O homem organizacional passa a maior parte de seu tempo dentro de uma estrutura empresarial burocratizada e realiza um conjunto de tarefas com graus diferentes de complexidade Convive com ou tros indivíduos em função da realização dessas tare fas e de suas afinidades pessoais que procura realizar dentro desse contexto Leva toda sua potencialidade psíquica para o espaço da empresa o pensamento a intuição o sentimento o julgamento Mira y Lopez 1949 Sua potencialidade física as características mentais as anatômicas as fisiológicas e as sensitivas E sua potencialidade social a história de vida expe riências adquiridas os valores introjetados a capaci dade de compartilhar A entrada da pessoa para o sistema empresa é celebrada através da Consolidação das Leis do Tra balho CLT de práticas administrativas e de proce dimentos seletivos específicos Implícito a este mo mento formase o contrato psicológico de trabalho Caracterizase por um conjunto de expectativas que se estabelecem entre o indivíduo e a empresa acer ca das características de comportamento profissional produtivo das responsabilidades da remuneração dos incentivos e dos benefícios Este pacto geralmen te não é explicitado de forma direta mas é fator de terminante no processo adaptativo do indivíduo na empresa Alguns aspectos contidos na cultura organizacio nal e nas características das pessoas indicam as pro váveis características deste contrato Entretanto estas expectativas e proposições informais ficam encobertas e só emergem em momentos de crise ou intervenções específicas em programas de mudança organizacio nal referentes às respostas psicossomáticas Para atuação deste homem organizacional apenas alguns aspectos são utilizados estimulados e aceitos Frequentemente ocorre fragmentação e desarticulação das suas dimensões vitais biopsicos sociais visando a um enquadramento homogêneo e predeterminado a partir do cargo ou função Cargos e funções propostos projetados em modelos estáticos pobres e limitados com um referencial preestabeleci do de forma incompleta e obsoleta Não se pretende o trabalho para o homem mas o homem para o tra balho Arendt 1983 p 248 faz a seguinte reflexão sobre a autonomia da pessoa no seu trabalho o animal laborans pode escapar à sua difícil situação como prisioneiro do ciclo interminável do processo vital à eterna sujeição à necessidade do labor e do consumo unicamente através da mobilização de ou tra capacidade humana a capacidade de fazer fabri car e produzir o que é atributo do homo faber o qual como fazedor de instrumentos não só atenua as dores e as fadigas do labor como erige um mundo de durabilidade Com relação à sobrevivência aspecto direta mente ligado à vinculação com o trabalho coletivo Codo 1985 destaca que a sobrevivência de um or ganismo depende em última instância da capacidade física biológica e psicológica de transformar o meio a sua imagem e semelhança portanto de autotransfor marse à imagem e semelhança do meio O grupo de trabalho legitima as articulações entre interesses individuais coletivos e empresariais Formamse redes de influências com processos rela tivos à cooperação competição conflitos nível de motivação e pressões externas Formamse também redes de afetos emoções e sentimentos entre as pes soas com as quais se mantêm variada frequência e intensidade de convivência Na prática as atividades empresariais se efeti vam ao nível dos pequenos agrupamentos organiza dos com os subsistemas grupais da estrutura organi zacional da empresa O equilíbrio é um dos processos determinantes da dinâmica do grupo Está associado ao contexto amplo em que está inserido Sobre os grupos Lewin citado por Amado 1982p 94 afirma que grupos são totalidades dinâmicas que resultam das intera ções entre seus membros Estes grupos realizam for mas de equilíbrio no seio de um campo de forças E em função da organização perceptiva do espaço so cial que as energias postas em jogo se completam e se combatem A reciprocidade no grupo é elemento definitivo na estrutura de grupos e na empresa É uma expec tativa constante Se dentro do grupo de trabalho na empresa a regra é não quebrar ou não parar a pro dução se ocorre esta quebra em função de doença estabelecese uma condição de suspensão da recipro cidade atingindose vínculos de produtividade que existem entre os indivíduos desse grupo Desenca deiamse novos tipos de vínculos em função dos sin tomas e a alteração de comportamento do queixoso novos fatores da dinâmica do grupo Para Rodrigues 19881990 esta interrelação pessoaempresa será mais ou menos conflituosa quanto maiores forem as Psicossomaticaindd 121 Psicossomaticaindd 121 05012010 121206 05012010 121206 122 Mello Filho Burd e cols diferenças de expectativas dos dois polos ou quanto mais rígidos eles forem com relação à capacidade de adaptação TRABALHO E PRODUTUVIDADE Trabalho é fator básico na empresa Caracteri zase pelo esforço planejado sobre a manipulação ou transformação da natureza atingindose os mais di versos objetivos frequentemente reduzidos à busca da produtividade eficaz É obtido com o investimento de energia sobre atividades ou conjunto de tarefas que é a força de trabalho Em nível pessoal constitui uma das condições determinantes para identidade e integração do indivíduo na sociedade Para Marx 1988 v1 p202 trabalho é Um processo de que participam o homem e a natureza processo em que o ser humano com sua própria ação impulsiona regula e controla seu intercâmbio mate rial com a natureza Entretanto Marx ib indica que quando o trabalhador chega ao mercado para vender sua força de trabalho é imensa a distância histórica que medeia sua condição e a do homem pri mitivo com sua forma ainda instintiva de trabalho Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira o qual constitui a lei de terminante do seu modo de operar e ao qual tem que subordinar sua vontade A ergonomia ciência que trata do conjunto de interrelações sob o enfoque da adaptação e do des gaste do indivíduo e da máquina aponta para as fal sas crenças a respeito de ritmo de trabalho para a repetitividade de tarefas para as atividades motoras para previsão e controle das situações de trabalho O trabalho envolve demandas de necessidades indivi duais e organizacionais em sintonia Quando elas não são atendidas as vinculações pessoasempresa modi ficamse e criamse processos patogênicos de adap tação como o desligamento da empresa a perda de promoções ou o isolamento na carreira profissional Assim quando não ocorre a sintonia nas interações em nível grupal ou organizacional surgem os confli tos Conflitos decorrentes de necessidades opostas ativadas ao mesmo tempo Argyris 1957 aborda o conflito dentro da inte ração indivíduoorganização e situa o comportamen to humano em uma organização como originário de fatores individuais de pequenos grupos informais e de fatores organizacionais Esses fatores atuam de forma isolada ou combinada Bleger 1984 considera que a ação individual das organizações depende da estabilidade e da neces sidade contínua de crítica e de melhoramento Para ele a instituição é o meio pelo qual os seres humanos podem enriquecer empobrecer ou se esvaziar como seres humanos o que comumente se chama de adap tação O melhor grau de dinâmica da instituição não é dado pela ausência de conflitos mas sim pela possi bilidade de superálos dentro do limite institucional O conflito é um elemento normal e imprescindível no desenvolvimento e em qualquer manifestação huma na A patologia do conflito se relaciona mais do que com a existência do próprio conflito com a ausência dos recursos necessários para resolvêlos ou dinami zálos A estereotipia é uma das defesas institucionais frente ao conflito mas se transforma assim mesmo em um problema atrás do qual é necessário encontrar os conflitos que se aludem ou evitam Spink 1982 analisando aspectos de conflito e estereotipia como processo dinâmico da organização aponta o trabalhar que desencadeia processos neuro tizantes Para o autor modelos de trabalho são uma forte determinação para a emergência de conflitos Esses conflitos ocorrem em função de áreas de atrito que criam por uso de autoridades por incompatibi lidades entre tarefas estabelecidas para as diferentes funções além de confusão nos limites e nos compor tamentos específicos em determinados processos de produção Dentre os poucos autores que observaram as res postas psicossomáticas na empresa Argyris 1957 afir ma que as doenças psicossomáticas representam um mecanismo defensivo em que o indivíduo transforma um problema psicológico num problema fisiológico O mesmo autor aponta que entre os membros da alta ad ministração são comuns as úlceras enquanto entre os empregados são comuns dores de cabeça e costas de pressões dúbias Em ambos os casos são reações adap tativas às ansiedades experimentadas no trabalho ESTRESSORES PSICOSSOCIAIS Um grande número de pesquisas realizadas con cordam que o conflito entre as metas e a estrutura da empresa de um lado e as necessidades individuais de autonomia realização e identidade é um gran de agente estressor importante Levi 1971 A de sumanização do trabalho presente na produção em grande escala que tem como característica marcante a mecanização e a burocratização tornamse agentes estressantes porque atentam contra as necessidades individuais de satisfação e realização entre outras Estes aspectos têm sido destacados por diferentes au tores e estão presentes independentemente do siste ma político dominante seja ele modo de produção capitalista socialista ou misto ibidem O filme de Chaplin Tempos Modemos ilustra muito bem esse Psicossomaticaindd 122 Psicossomaticaindd 122 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 123 tema Embora frequentemente se faça a correlação entre ser humano e máquina a verdade é que ele não é O trabalhador que é transformado em uma máqui na de apertar parafusos perde a noção do processo de produção como um todo tem o ritmo de trabalho fora do se controle perde o poder de decisão sobre o seu trabalho Assim tem a sua autoestima diminuí da seu trabalho não é percebido como importante ou interessante não vê que seu esforço é socialmen te significativo e não há reforço na sua identidade através do trabalho Não é difícil interpretar tudo isso como uma ameaça à dignidade humana pois são jus tamente essas necessidades que devem ser satisfeitas no local de trabalho Além desses fatores outros autores citam os se guintes liderança do tipo autoritário execução de ta refas sob pressão falta de conhecimento no processo de avaliação de desempenho e de promoção carência de autoridade e de orientação excesso de trabalho e grau de interferência na vida particular que este pode ter Levy 1971 Peter Spink 1982 nos diz o seguinte o que muitas empresas têm de desumano é o seu pró prio modelo de trabalho um modelo que diariamente sistematicamente violenta e restringe as reais capaci dades de um pessoa dentro de um escritório ou de uma fábrica Muito provavelmente estas reais capacidades estão ligadas a potencialidades intelectuais e emocio nais que sofrem constantes negações e sanções a partir de interesses pessoais que embora aplicadas em nome da produtividade pouco têm a ver com ela A American Management Association publicou uma pesquisa que realizou com executivos portanto de classe social diferente da do apertador de parafu sos em que mostrava quais eram as necessidades que as pessoas procuravam satisfazer no trabalho Surgiu o seguinte recompensa material progresso na carrei ra reconhecimento status na comunidade satisfação no trabalho percepção do trabalho como algo signifi cativo tranquilidade doméstica preservação da saú de e segurança no trabalho Bauk 1985 Frente a estressores psicossociais notadamente quando suas necessidades não estão sendo satisfeitas o indivíduo tende a reagir ou melhor dizendo ajus tarse basicamente de duas maneiras Levy 1971 1 Ajuste ativo o indivíduo expressa o seu desejo de mudança na estrutura a que está submetido afastase ou solicita transferência do serviço vo luntariamente tem participação em movimentos trabalhistas organizados ou não 2 Ajuste passivo é o mais comum e conduz à alienação sentido sociológico do termo o indivíduo passa a depreciar o trabalho e sentilo como um peso e não como fonte de satisfação O objetivo tornase apenas a remuneração de condi ções físicas e higiênicas o trabalho passa a ser sentido como desinteresan te e não envolvente que passa a ser instrumen talizado de forma que as satisfações só são en contradas fora do local de trabalho em diferentes maneiras de consumo absenteísmo maior predisposição à doenças pela falta de coe rência social do sistema em que o indivíduo está inserido e que atua como um agente estressor psi cossocial Ou seja a ocorrência de manifestações de doença em um meio de trabalho e um índice importante para se verificar o nível de saúde des te meio agora não somente em termos higiênico sanitários mas também em termos de saúde so cial que pode comprometer o indivíduo inclusive biologicamente Os dois últimos itens citados costumam de saguar no médico do trabalho Para abordar estas questões o absenteísmo e manifestações de doenças como indicativos de desgaste e ajuste passivo da maneira mais eficiente possível o médico deve agir com tato ter em mente que as questões de saúde no tadamente aquelas já referidas e que se incluem neste tipo de raciocínio não se resolvem apenas pela via do biológico ou da repressão São problemas que fazem parte de um contexto maior muitas vezes de respon sabilidade da empresa e o médico não pode ser o profissional que apenas torna apto o corpo para o tra balho O maior número de mortes no Brasil devese às doenças cardiovasculares As doenças isquêmicas do coração e a hipertensão arterial estão ocorrendo cada vez com maior frequência em indivíduos jovens e especificamente em determinadas categorias pro fissionais independentemente da classe social Todas as pesquisas feitas até agora indicam que as causas são o ritmo de trabalho a exigência irrecorrível de atenção e todos os condicionamentos que envolvam o homem e o trabalho Lacar 1984 Alguns estudos dirigidos de forma específica à relação estresse e trabalho mostram que mudanças no trabalho que interferem na motivação no tipo de trabalho executado no aumento da exigência de pro dutividade são suficientes para comprometerem não só o desempenho profissional mas também funções orgânicas como alteração da secreção de catecolami nas favorecendo o surgimento de hipertensão arte Psicossomaticaindd 123 Psicossomaticaindd 123 05012010 121206 05012010 121206 124 Mello Filho Burd e cols rial e alteração no metabolismo dos lipídeos plasmá ticos provocando hiperlipidemias importante fator na arterioesclorose A doença coronária conforme já foi demonstrado por Groen 1976 está intimamente ligada à relação do indivíduo com seu trabalho Também situações como promoção aumento de salário sucesso e elogios são capazes de aumentar a secreção de catecolaminas Levy 1971 Bauk 1985 pois são também estímulos psicossociais importantes Isso nos ajuda a compreender porque algumas pesso as adoecem às vezes bastante gravemente frente a eventos tidos como muito agradáveis A DIMENSÃO PSICOSSOCIAL NO PROCESSO SAÚDEDOENÇA Para a Organização Mundial de Saúde OMS saúde representa um completo bemestar físico men tal e social e não apenas ausência de doença De jours 1987 a partir desta definição reforça o fator processo para a dimensão saúdedoença e não esta do Eksterman 1986b afirma que a saúde não é um produto espontâneo da natureza Segundo o autor a saúde como a doença é uma construção humana uma faz uma sinfonia e a outra uma sintomatolo gia Seligman Silva 1986 com relação ao traba lho afirma que saúde mental é um processo em que as agressões dirigidas à mente pela vida laboral são confrontadas pelas fontes de vitalidade e saúde re presentadas pelas resistências de natureza múltipla individuais e coletivas que funcionam como preser vadoras da identidade dos valores e da dignidade dos trabalhadores A mesma autora ib cita estudos de McQueen e Segrist sobre as influências psiconeuroen dócrinas determinadas por vivências prolongadas de tensão de origem social que afetem a competência imunológica do organismo Segundo a autora as ações morbígenas de caráter essencialmente socioe conômico exercem influências através de diferentes vias social psicológica e do próprio corpo do traba lhador instrumentalizado pelo processo laboral em caminhos que se cruzam numa trama dinamizada por inúmeras interações Donnangelo e Pereira 1971 partindo da aná lise do objeto da prática médica afirmam que não é apenas a ciência do corpo mas o próprio corpo que constitui o objeto da prática médica e ainda mais o corpo normal ou patológico suscetível de uma mani pulação com vistas a determinados efeitos Souza e Veras 1983 afirmam que em um sis tema social em que a grande maioria da população dispõe apenas da sua própria força de trabalho para garantir sua subsistência o corpo é visto fundamen talmente como instrumento de trabalho E a doença representa então uma dupla ameaça tanto no sentido de afetar sua saúde como sua capacidade produtiva Roberto Machado Foucault 1985 comenta os seguintes aspectos relacionados a poder e corpo Onde o corpo não é um objeto natural uma coisa é uma prática social e como tal constituída historica mente O poder intervém materialmente atingindo a realidade mais concreta dos indivíduos o seu cor po e que se situa no nível do próprio corpo social e não acima dele penetrando na vida cotidiana e por isso podendo ser caracterizado como micropoder ou subpoder Estas articulações entre poder corpo e busca da sobrevivência relacionamse aos aspectos da patolo gia do trabalho documentados por Dejours 1987 de onde respostas psicossomáticas entre outros re cursos emergem como mecanismos de resistência estratégicos na sua sobrevivência que formam uma ideologia defensiva Destaca que a organização do trabalho age sobre a economia psicossomática Basta enfatizar que a organização do trabalho determina o conteúdo da tarefa através da divisão do trabalho Não somente o conteúdo significativo mas também o conteúdo ergonômico quer dizer os gestos a postura e os ambientes físicos e químicos que de certo modo visam à economia do corpo em situação de trabalho A organização do trabalho é causa de uma fragi lização somática na medida em que ela pode bloquear os esforços do trabalhador para adequar o modo ope ratório às necessidades de sua estrutura mental O conflito entre a economia psicossomática e a organi zação do trabalho potencializa os efeitos patogênicos das más condições físicas químicas e biológicas do trabalho Friedmann 1983 p168 afirma que quando não há possibilidade de afirmação da personalidade no trabalho ocorrem processos de depressão e tensão nervosa permanente E acrescenta muitas pessoas que se sentem insatisfeitas hesitam sob a pressão do meio em confessálo a si próprias e menos ainda ao seu círculo de relações sentimento de estar insa tisfeito no trabalho e mesmo infeliz pode ser profun damente reprimido como é no casamento Não obstante sintomas que não escapam ao analista como os sonhos a tensão nervosa a insônia a fadiga geral a hipertensão arterial as úlceras e outras mani festações psicossomáticas podem revelar a existência destes sentimentos inconscientes Os critérios de saúde nas empresas sofrem in fluência das práticas administrativas e do modo de conceber as pessoas para o trabalho organizado A saúde física ou mental não foi incorporada no con texto dos pressupostos das escolas tradicionais de administração Este aspecto é tratado apenas atra vés de referenciais ergonômicos das condições de Psicossomaticaindd 124 Psicossomaticaindd 124 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 125 segurança do trabalho com os procedimentos da análise de acidentes e de doenças ocupacionais ape nas de ordem física Tratamento que é praticado em função de determinação legal ou de queda de ren dimento de trabalho Assim na prática empresarial desenvolveramse de um lado diversas abordagens do psiquismo para a motivação e de outro a análise de condições ambientais adversas e os modos de pro dução A ideologia de trabalho e as crenças sobre a organização continuam sendo fatores importantes de desgaste físico e psíquico mesmo considerandose as novas escolas administrativas com enriquecimento de tarefas rodízios e planos de carreiras A emergência de sintomas não específicos ainda tem sido tratada como fator secundário da dinâmica organizacional o que se reflete nas políticas intemas de saúde A saúde está articulada na empresa com a manutenção da força de trabalho A percepção desta força de trabalho sofre influência da própria história da atuação médica o indivíduo deve ser um recurso estável forte e confiável um tipo muito especial de máquina que não quebra Da saúde depende a per manência do funcionário na empresa ou nela se pro jeta o sucesso profissional Esta crença tornase real dentro do processo de adaptação para suportar ne gar e até superar mesmo que temporariamente pro blemas decorrentes de agentes patogênicos em nível físico e mental Em princípio o indivíduo não pode e não deve quebrar deve suportar as adversidades e recriálas para sentirse bemsucedido na sua vida organizacional Possas 1981 esclarece que o profissional mé dico constrói mentalmente um projeto de organismo normal antes de tentar moldálo à realidade Este modelamento é adaptado às características sociocul turais Muitas vezes à técnica médica impõese uma prática social determinando a qualidade da percep ção e classificação dos sintomas Portanto a prática médica na empresa reproduz modelos da saúde pú blica e com ela interage A relação do profissional de saúde mais espe cialmente do médico pode ser caracterizada como a relação entre a pessoa que alivia o sofrimento e a pessoa que está sofrendo O médico é socialmente reconhecido como detentor do conhecimento e da técnica das intervenções e dos padrões de saúde e doença Estes são os valores da cultura organizacio nal que formam os códigos perceptuais sobre os crité rios de administração e práticas de saúde na empresa e interagem com o fenômeno psicossomático Eles compõem o cenário invisível mas influente no espa ço organizacional de onde emergem as mais diversas práticas e recursos terapêuticos Lacaz op cit Seligman Silva op cit Cohn 1985 Sato 1988 e vários outros pesquisadores relatam situações em que condições físicas do traba lho comprometem o estado de saúde incapacitando a pessoa para o trabalho em diversos espaços de tempo Quando a característica é prevalente na esfera mental esta incapacitação ocorre num prazo mais longo Mello 1988 comenta situações de doença as sociadas a momentos de intensa dor física ocupando lugar de destaque em narrativas colhidas em campo junto a mulheres da periferia de São Paulo A autora narra que a sobrevivência depende da aptidão física para a labuta qualquer deficiência na máquina do corpo constitui ameaça de extema gravidade PRÁTICAS TERAPÊUTICAS NA EMPRESA Os recursos terapêuticos institucionalizados na empresa são o ambulatório e o atestado médico o serviço conveniado e público Para ali convergem as queixas e os sintomas que não foram superados pela pessoa dentro do seu cotidiano dentro ou fora da empresa Os recursos altemativos são a automedica ção as chamadas medicinas alternativas e algumas seitas religiosas O tratamento dos sintomas apre sentam condutas de caráter medicamentoso quan do há posologia prescrita pelo médico ou enfermeiro ou então o doente automedicase psicoterapêutico quando se busca uma compreensão psíquica dos sintomas através da conscientização de sua dinâmi ca inter e intrapessoal e mágico quando se adota comportamentos recursos e rituais específicos para exorcizar a dor A posição do departamento médico como um setor intemo da empresa subordinado a diretorias administrativas influi nos critérios de diagnóstico conduta acompanhamento liberação ou retorno do paciente para o trabalho Aliada a esta inserção no sistema produtivo a legislação trabalhista atribui ao atestado médico uma força de lei O atestado médico homologado pela empresa é um dos poucos instrumentos para abono de faltas isto é significa para qualquer funcionário ausência do trabalho sem perda da remuneração independentemente do parecer da chefia ou grupo de trabalho O funcionário dessa forma diante de comprometimentos socioeconômicos de segurança física familiares e outros dos mais variados muitas vezes busca no departamento médico a justificativa para sua ausência justificada que pode não ser pro priamente de saúde Esses aspectos tomam o poder de decisão de serviço médico complexo e abrangente Frequen temente os médicos devem dar ou rejeitar suporte para demandas que não são propriamente de saúde no trabalho Psicossomaticaindd 125 Psicossomaticaindd 125 05012010 121206 05012010 121206 126 Mello Filho Burd e cols Nesse cenário acontecem várias influências psicossociais às quais Souza e Veras op cit p 11 referemse da seguinte forma Em um sistema social onde a grande maioria da população dispõe apenas da sua força de trabalho para garantir sua subsistên cia o corpo é visto fundamentalmente como instru mento de trabalho E a doença representa então uma dupla ameaça tanto no sentido de afetar sua saúde como sua própria capacidade de produtividade Nes se enfoque os autores abordam dinâmicas presentes no processo de adoecer o estar doente o sentirse doente e o poder ficar doente que caracterizam a po sição individual relativa das pessoas Dentre os efeitos limitadores da percepção sobre a realidade o estereótipo é um dos mais importantes pois envolve distorções sobre a realidade e a intro jeção de crenças sobre articulações desta realidade que podem chegar à negação de fatos desta mesma realidade Nele ocorre a estigmatização constituída pelas expectativas construídas culturalmente anali sada por Goffman 1982 p 61 como um processo em que a manipulação do estigma é uma ramifi cação de algo básico na sociedade ou seja a estereo tipia ou o perfil de nossas expectativas normativas em relação à conduta e ao caráter As práticas na empresa influem no desdobra mento dos sintomas provocando a estigmatização do sujeito que relata com frequência sintomas de qual quer ordem O estigma ocorre não sobre o sintoma mas a partir da frequência com que é expresso e a partir do seu nivel de visibilidade Os fatos organi zacionais apontam a presença do corpo dentro de dimensões saúdedoença capacidadeincapacidade nas interações sociais Interações que além de apre sentarem cargas emocionais específicas no nível in dividual trazem representações significativas de valores e representações organizacionais A estigma tização ocorre a partir de uma diferença de compor tamento considerado normal porque é aceito social mente Caractcriza uma situação de desvio O estigma é uma relação entre atributos e este reótipos Velho 1987 Cada grupamento social cria regras específicas Se por uma questão de poder elas são impostas aos seus membros então o desvio ocor re a partir dessas mesmas regras Tal desvio provoca a individualização que é o mascaramento da per cepção de fatos da realidade em função de crenças sociais Costumeiramente as diferenças se transfor mam em divergências A percepção de desvio decorre da fragmentação de fatos que são percebidos apenas em nível individual Mesmo que tenham presença em nível coletivo Combinadas à história de vida com as mani festações orgânicas eou psicoemocionais reinciden tes o doente tornase particularmente suspeito da responsabilidade da emergência do só psicológico dentro da relação empresasaúdetrabalho Algumas vezes esse doente tornase depositário destas cren ças ratificando a tendência de julgamentos estigma tizados Fato decorrente da desinformação e do grau de consciência sobre a interação biopsicossocial na manifestação dos sintomas Há casos em que os indivíduos estigmatizados manipulam sua própria identidade Acomodamse e usam os ganhos secundários derivados da situação de restrições sociais Na atitude do estigmatizado observase que sintomas incorporam o estigma que prejudica a identidade social O doente fica desacre ditado perante os outros Costumeiramente recaem sobre o doente percepções de fraqueza oportunismo infelicidade ou frustração Quando a incapacidade diminui a produção avaliase como fraqueza mas se apesar de doente o indivíduo mantém a produção transformase em força A alta frequência dos sintomas rompe com a norma social dos atributos do bom funcionário que é trabalhador e continente ao trabalho A individua lização que é um processo de estigmatização atua como mecanismo de controle do comportamento des viante em defesa dos valores da organização e das crenças a respeito da obrigação de controle sobre as manifestações em que o sintoma não e visível O sofrimento pessoal é intrínseco à dor à queixa e aos sintomas Daí a tendência de individualização ratificada pelos desdobramentos sociais de rejeição compaixão e culpa Esses fatores extrínsecos são ava liados como secundários na evolução dos sintomas o responsável é o indivíduo porque o comportamento desviante nele está objetivado Alguns indicadores podem nos ajudar na detec ção de pessoas em que a ação dos agentes de estresse estão determinando um comprometimento de seu de sempenho no sentido biopsicossocial São eles que da da eficiência ausências repetidas insegurança nas decisões sobrecarga voluntária de trabalho aumento do consumo de cigarros de alimentos e drogas uso abusivo de medicamentos ou agravamento de doen ças Rodrigues 1990 E importante frisar mais uma vez que as rea ções de estresse não são as bandidas da história es tão presentes em todos os momentos de nossa vida são tão importantes que não podemos viver sem elas pois nos auxiliam em todos os momentos de adaptação que necessitamos Assim como a alimenta ção e o exercício físico se estiverem dentro de limites adequados satisfatórios serão benéficos O trabalho também pode ser fonte de satisfação realização sub sistência mas frequentemente se torna uma verdadei ra prisão em decorrência das más condições em que é realizado o trabalho da desatenção a programas de Psicossomaticaindd 126 Psicossomaticaindd 126 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 127 prevenção e promoção da saúde Daí a necessidade de resgatar a dimensão coletiva do fenômeno estres se sobre o enfoque de uma Medicina Psicossomática realmente efetiva Em seguimento à nossa exposição vamos apre sentar duas metodologias de compreensão e inter venção psicossocial em psicossomática que se com plementam e sustentam o conteúdo teórico deste capítulo A primeira tratase de um caso clínico atendido em consultório onde procuramos observar a relação de um indivíduo com o seu trabalho e de como as atividades profissionais podem ser vinculadas à pul são de morte e não de vida eou de realização pessoal e profissional A segunda enfoca e destaca um modelo de in tervenção e compreensão psicossocial na psicologia do trabalho numa perspectiva psicossomática que escapa da compreensão e intervenção individual do processo saúdedoença CASO CLÍNICO A situação clínica a seguir resulta de minha experiência clínica Os dados do paciente e outras informações que po deriam permitir a sua identificação foram modificados sem prejuízo no entanto do conteúdo da história e dos objeti vos propostos ROBERTO 27 anos filho único de um casal oriundo da Europa Central pai e empresário de razoável sucesso casado há três anos tem uma filha de 2 anos engenheiro ocupa cargo de gerência em empresa multinacional quando retornou do país matriz desta empresa onde realizou está gio de aperfeiçoamento Foi encaminhado pelo seu Clínico Geral No começo de fevereiro de 2008 foi diagnosticado gas trite erosiva também sentia dor e queimação nos braços o tórax quente dormência em extremidades sic além de ansiedade irritabilidade dificuldades de sono bruxismo e dor de cabeça hemilateral que sugere disfunção tempo mandibular Posteriormente apresentou quadro semelhan te associado a taquicardia mal estar intenso sendo levado por três vezes à PS onde realizou vários exames inclusive ECGs sem alterações Relata que naquela ocasião passava por momento de grande sobrecarga de trabalho tanto que não pode comemorar o seu aniversário pois estava viajando muito Sua vida tem sido dominada pelo trabalho sai da em presa tarde quando chega em casa sua filha e esposa estão dormindo Tem dificuldade em sair mais cedo tanto em função da sobrecarga de trabalho como também porque acredita ser uma desconsideração para com os subalter nos e outros membros da equipe sair do trabalho antes deles No início deste ano conseguiu tirar férias sic e foi para o litoral com esposa e filha no entanto teve que interrom pêla pois foi solicitado que retornasse à empresa em fun ção de problemas na produção No entanto diz não estar satisfeito com sua produtivi dade e que tem muitas coisas pendentes para resolver Se olharmos para esta situação clínica apenas pela perspectiva individual jovem extremamente responsável cioso de seus deveres e obrigações com espírito de equipe e colaboração em função de um nível de exigência extremamente alto severo e rigo roso tornase de tal forma voltado com seu trabalho que este ocupa quase todo o espaço de sua vida men tal a ponto de distanciarse dos demais aspectos de sua vida Esta forma de funcionamento pode terlhe pro vocado um desgaste progressivo e por consequência as manifestações de ansiedade e a somatização no sentido lato Ainda por essa perspectiva é possível neste fragmento de história clínica identificar os principais indicadores para o diagnóstico de uma reação de es tresse ou distresse como pode ser demonstrado no seguinte raciocínio queda da eficiência insegurança nas decisões tomadas de decisão começam a ser proteladas sobrecarga voluntária de trabalho grande nível de tensão irritabilidade explosões emocionais sentimentos de desconfiança tendência ao pensamento onipotente com dimi nuição da possibilidade em reconhecer limites uso de medicamentos drogas eclosão ou agravamento de doenças Chega ao consultório às 2045h Sua aparência é de alguém que está exausto Diz estou no limite estamos vivendo um momento de concorrência alguém preparou um cronograma maluco quase inviável tivemos uma dis cussão na empresa alguns são contra o cronograma mas fui da opinião de que devemos aceitar Reconhece que o cronograma proposto necessariamente demandará uma carga de trabalho significativa percebo que no decorrer deste discurso há certa ponta de orgulho quando destaca a capacidade de trabalho a coesão de sua equipe e a dis posição para o sacrifício Logo em seguida com muita raiva critica o pessoal de outro departamento que se comporta como peão de obra visto que não fica no ser viço além do tempo obrigatório pois não são pagos para fazer hora extra Esse tipo de comportamento é interpretado por Ro berto como falta de espírito de colaboração e de equipe e complementa será que eles não percebem que estamos em uma guerra Que se a gente não luta vai morrer Não Psicossomaticaindd 127 Psicossomaticaindd 127 05012010 121206 05012010 121206 128 Mello Filho Burd e cols tem outra saída senão trabalhar 12 14 horas por dia sába do domingo no meu departamento nós colaboramos não é a toa que somos considerados a elite os eleitos O Fulano referindose ao gerente do departamento dos peões é um incompetente não sabe motivar seus funcionários por isso eles não colaboram Em outro momento mais adiante comenta que a em presa dispensou vários funcionários a máquina está enxu ta quem não tinha como colaborar foi embora Em outro encontro Roberto mais uma vez com a apa rência de muito cansado entra na sala com uma embalagem de suco e diz estou tentando tomar este suco desde às 14 horas são 2100 hoje chutei o balde em uma reu nião às vezes parece que o pessoal não sabe decidir temos prazos compromissos cronogramas a cumprir e as pessoas são muito reativas isso não dá aquilo também não quero saber se não dá vai ter de dar Continua a frase com ênfa se um misto de angústia e raiva Não dá prá perder tempo não tenho tempo pra discussões inúteis essas reuniões são um saco o tempo é curto e se não cumprir o cronograma e não participar da concorrência vai morrer Quem não está disposto a colaborar devia ir embora agora é a hora de produzir crescer mostrar serviço Todo mundo sabe que daqui a 10 anos outros virão para nos substituir quem não crescer for promovido vai perder o emprego e não vai conseguir outro com 37 ou 40 anos São muitos os vértices que poderiam dirigir nosso olhar para essa situação A angústia de morte a sensação de desamparo ainda que não reconheci das e negadas que demandam defesas igualmente intensas como a onipotência A vivência de desam paro ocupa um lugar proeminente na segunda teo ria da angústia de Freud remete à impotência em face da realização de uma ação que consiga dar um fim a um estado de tensão interna gerada por uma necessidade não satisfeita A percepção ainda que parcial a este estado de desamparo é vivida como um trauma uma angústia sinal ao narcisismo com o consequente desenvolvimento de angústia Para Klein remete à angustia de aniquilamento ou de morte ou seja uma vivência de intensa ameaça à sobrevivência ou de antecipação de uma catástrofe eminente sendo que esta experiência é acompanha da de fantasias ou sentimentos de impotência fren te a situações exteriores ou interiores interpretadas como perigosas contra as quais a pessoa se sente incapaz além das defesas onipotentes surge a pro jeção da ameaça aos objetos que são vividos como persecutórios e a experiência emocional de agressi vidade hostilidade em relação aos objetos perce bidos como perseguidores Esse exemplo real pareceme claro demonstra como o trabalho pode surgir como fator de morte e não de vida Podemos nos perguntar de onde derivam tão intensas angústias e que provocam efeitos tão de vastadores como podemos observar nessa história clínica De forma sucinta a necessidade em asse gurar os predicados socialmente valorizados pela cultura Sabemos que a cultura através do proces so de socialização impõe traços de conduta e as pirações que dirigem o indivíduo na busca de seu tipo psicológico coerente a esta cultura ideal que muitas vezes incita a desempenhos que excedem suas possibilidades o que provocará feridas narcísi cas e evocará representações associadas a vivência de desamparo o que para Freud está intimamente correlacionado a três principais fontes de angústia perda do amor do objeto de castração e da punição do superego para Klein pulsão de morte ansieda de persecutória e angústia de aniquilamento ou de morte Figura 102 O indivíduo no decorrer de seu desenvolvi mento gradualmente vai sendo confrontado com problemas mais complexos como a manutenção de sua existência e de sua própria família sua posição social seu desenvolvimento profissional e a garantia do emprego Tal complexidade tem se mostrado não só cres cente mas também mais precoce na vida das pessoas notadamente no que tange ao trabalho Jovens são imersos em um ambiente onde predomina uma com petição hostil não raro ameaçadora e que ao mesmo tempo exige um grande controle sobre seus próprios sentimentos e impulsos em um momento de suas vi das em que se deveria privilegiar o desenvolvimento o aprendizado e a evolução pessoal emocional e pro fissional Existe uma tendência que vem se desenhando nos últimos anos nas empresas onde profissionais ra zoavelmente jovens são recrutados para funções de grande complexidade responsabilidade e competiti vidade Funções estas que em um tempo recente só eram desempenhadas por profissionais considerados mais experientes e maduros emocionalmente em ter mos de tempo na carreira UM MODELO DE INTERVENÇÃO O projeto foi apresentado na 40a Reunião Anual da SBPC em julho de 1988 e dentre aproximada mente 3000 trabalhos apresentados foi indicado entre os 100 pelo interesse econômico social e po lítico para matérias em órgãos de comunicação do evento Dados genéricos do projeto foram apresenta dos em outubro de 1989 no 10th World Congress of the International College of Psychosomatic Medicine em Madrid Essas contingências da pesquisa geraram sintonia de dados e socialização de informações den tro e fora da empresa Psicossomaticaindd 128 Psicossomaticaindd 128 05012010 121206 05012010 121206 Psicossomática hoje 129 CASO CLÍNICO Lambari O OPERÁRIO DE UMA FÁBRICA O Sr Ambrósio Pereira da Silva mais conhecido como LAMBARI é funcionário de uma empresa metalúrgica Há cinco anos ele trabalha na mesma seção já tendo operado três tipos diferentes de máquinas Começou como ajudan te hoje é operador O LAMBARI é casado pai de quatro filhos mora longe da empresa Só ele trabalha fora a esposa cuida da casa e dos filhos Ultimamente ele está com acúmulo de trabalho e a chefia controla bastante os funcionários e o serviço Em ge ral trabalha de 10 a 12 horas por dia contando a hora extra Com muita frequência trabalha aos sábados e ás vezes aos domingos e feriados Nos fins de semana o LAMBARI não costuma sair para muito longe sempre aproveita para dormir e descansar Quando dá tempo gosta de jogar futebol e de um bom papo tomando uns aperitivos com os amigos no bar As vezes sente dores no corpo ou malestar como dor de cabeça palpitações no coração empachamento dor no estômago pressão alta falta de ar dor nas juntas insônia dor no fim da coluna tontura constipação falta de apetite e batedeira no coração Quando isso acontece vai ao am bulatório que receita um medicamento para aliviar a dor ou se vira a sua moda Nestes dias quando não está passando bem sente que alguma coisa muda no seu relacionamento com os chefes e os colegas no trabalho A partir das entrevistas e das discussões prelimi nares foram elaboradas 63 perguntas agrupadas em 5 áreas para serem relacionadas á história projetiva As áreas consideradas fundamentais foram o indivíduo na empresa as relações entre a empresa e os sintomas as práticas terapêuticas a realidade imediata A maioria das entrevistas foi realizada no con sultório médico da empresa Algumas vezes por falta de espaço ou para evitar o deslocamento do sujeito para o ambulatório realizouse as entrevistas nas sa las de enfermaria e de treinamentos no restaurante da gerência ou na sala de trabalho do sujeito A história foi datilografada e colada num cartão e durante a entrevista foi lida para o sujeito Depois da leitura o cartão com a história ficou em cima da mesa à disposição do entrevistado As instruções foram as seguintes Estamos estudando alguns aspectos das doenças e dos malestares no dia a dia das empresas Por isso gostaríamos que você senhor respondesse algu mas perguntas a partir da história que será lida É muito importante que você senhor pergunte se tiver alguma duvida ou se desejar algum escla recimento a mais Neste questionário não apare cera nenhum dado pessoal Serão entrevistadas de 65 a 70 pessoas da empre sa dos seguintes setores pessoal da produção mestres e encarregados pessoal de relações in dustriais gerentes e diretores Cada um receberá um número O seu número será X Estou fazendo isso para garantir a liber dade das respostas As informações aqui colhidas farão parte de um estudo que será desenvolvido para você e para a empresa A amostra e as subamostras grupos por função e nível hierárquico Foram entrevistados 68 sujeitos que constituíram 5 subamostras com critério seletivo Fezse um corte vertical de modo a abranger todos os níveis hierárquicos desde os serviços gerais produção direta supervisor técnicos staff de relações in dustriais administração e alta gerência confor me quadro com a distribuição e características descritas no quadro seguinte A faixa etária dos sujeitos variou entre 21 e 60 anos com um pouco menos da metade da população 43 possuindo de 31 a 40 anos A subamostra su pervisão B apresentou o maior índice 67 de funcionários entre 41 e 50 anos Objetivo Apresentação e discussão dos resultados quantitativos da pesquisa Participantes Sujeitos das entrevistas individuais com representantes dos seguintes tipos de atuação na empresa produção supervisão relações industriais gerenciamento e saúde Formação dos grupos Quatro grupos heterogêneos com até 20 participantes Duração das sessões 3 horas Horários um grupo de manhã 9 às 12h dois gru pos à tarde 14 às 17h e um grupo à noite 19 às 22h Roteiro básico Primeiro momento dinâmica de grupo recorte de figuras humanas explicação dos objetivos do seminário exposição dos conceitos de queixas psicossomá ticas somatização percepção e cultura organiza cional Segundo momento apresentação das categorias de respostas mani festadas nas entrevistas a partir da história O Caso do Operário de uma Fábrica Psicossomaticaindd 129 Psicossomaticaindd 129 05012010 121206 05012010 121206 130 Mello Filho Burd e cols QUADRO 101 Distribuição e características da amostra SUBAMOSTRAS NÚMERO CARACTERÍSTICAS A PRODUÇÃO 28 func 12 not produção direta de peças para motores Operários dos setores de montagem usinagem banco de testes manutenção e serviços gerais 16 diurno representantes da CIPA e da comissão de fábrica B SUPERVISÃO 9 func 4 not subgerentes mestres encarregados 5 diurno tarefas de supervisão de grupos de operários C RELAÇÕES INDUSTRIAIS 9 func diurno técnicos da divisão de relações industriais dos setores de segurança treinamento pesquisa e rotinas de pessoal desenvolvimento de projetos e atividades de manutenção preparação e acompanhamento do pessoal da empresa D DIREÇÃO 10 func diurno gerentes de desenvolvimento de pessoal comunicações e processamento cargos e salários segurança do trabalho produção diretores de produção relações industriais e presidente E SAÚDE 12 func 2 not enfermeiros recepcionistas médico clinico médico do trabalho psicoterapeuta dentista e médicogerente 10 diur atendimento administrativo e clínico da saúde dos funcionários Atuam com o pessoal do período diurno e noturno Terceiro momento avaliação dos participantes sobre os resultados Quarto momento demonstração dos principais conceitos abordados nos comentários relacionandoos especialmente às características das causas atribuídas á queixa psicossomática às formas de terapêutica dentro e fora da empresa aos comportamentos dos indi víduos com relação ao doentequeixoso à visão saúdedoença no contexto sócioorganizacional ao fenômeno psicossomático individual ou cole tivo e à significância das respostas Os resultados e desdobramentos destes seminá rios estão relatados no item A dimensão interativa da pesquisa ANÁLISE DAS RESPOSTAS As respostas a cada pergunta foram analisadas e agrupadas em categorias O número de categorias variou inevitavelmente de uma questão para outra A análise de conteúdo que orientou esse proces so baseouse na similaridade de temáticas Para facili tar a comunicação foram atribuídos títulos sintéticos para cada categoria de respostas TRATAMENTO ESTATÍSTICO Por ter sido utilizada amostra seletiva compos ta por subamostras em que algumas se constituíram da metade ou até da população global do segmento hierárquico correspondente adotouse o cálculo de porcentagens ponderadas quadros na página seguin te para um tratamento estatístico descritivo O objetivo estatístico foi organizar as respostas sem generalizar os dados apenas descrevêlos Por ser um trabalho exploratório foram utilizadas mais perguntas do que o usual Isso ocorreu para garan tir uma delimitação mais real do objeto de análise Essa característica entretanto afetou a possibilidade de uma análise estatística diferencial diante da grande quanti dade de variáveis 63 e o pequeno número relativo de sujeitos 68 subdivididos em 5 subamostras Psicossomaticaindd 130 Psicossomaticaindd 130 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 131 A análise inferencial ocorreu porém em nível qualitativo a partir do tratamento estatístico descriti vo e da discussão dos conteúdos das respostas O tratamento estatístico descritivo está estrutu rado com dois cortes o primeiro com as porcenta gens de cada resposta sobre o total de respostas o segundo com as porcentagens de cada resposta nas subamostras que estão calculadas no quadro das por centagens ponderadas a seguir A apresentação das respostas na amostra geral foi estruturada em gráfico de setores E o detalha mento das respostas de cada subamostra foi estrutu rado através dos gráficos de barras de forma a per mitir comparação entre elas As respostas foram analisadas a partir das rele vâncias quadro abaixo isto é das diferenças e das semelhanças indicadas nas porcentagens pondera das Considerouse relevante toda diferença a partir de 20 entre as porcentagens comparadas varian do no entanto o número de sujeitos na amostra e nas subamostras Fator de relevância igual ou maior a 20 número mínimo de sujeitos a representam Subamostra B supervisão 2 sujeitos C rel industriais 2 sujeitos D direção 2 sujeitos Subamostra E saúde 3 sujeitos Subamostra Aprodução 6 sujeitos Amostra GERAL 13 sujeitos DIMENSÃO INTERATIVA Processo A proposta de realizar uma pesquisa de forma que houvesse inserção significativa e socialização dos dados foi polarizada realizada em seis momentoschave O PRIMEIRO momento ocorreu durante o ma peamento da empresa que projetado de forma am pla especificouse a partir das visitas da disponibili dade dos funcionários e da troca de informações com o pessoal da empresa Nesse sentido o ambulatório foi o centro de muitas informações Ali foram cole tados dados sobre tipos de queixa características dos pacientes usuais e influência da sua localização des te serviço nos comportamentos dos funcionários em relação ao seu uso está localizado em frente á área da produção local que apresenta maior demanda de sintomas Nas visitas e entrevistas procurouse atuar de acordo com os segmentos e responsabilidades hie rárquicos já existentes o que facilitou o acesso aos diversos locais da empresa O SEGUNDO momento foi a construção do instrumentochave a história do Lambari com dados contundentes daquele cenário A definição de um local e um espaço específico foi importante para a inserção da pesquisadora pois permitiu estabilidade nos trabalhos de consulta a documentos dados esta tísticos e contatos com os funcionários da empresa Havia falta de espaço na empresa Reservouse um local com mesa e cadeira ao lado das salas de cura tivos Neste momento ocorreu troca de material mé dico e psicológico O TERCEIRO momento aconteceu durante rea lização das entrevistas individuais em que se dialo gou de forma significativa clarificouse expectativas do indivíduo com a empresa e revelouse aspectos pessoais vividos mas desconhecidos do próprio su jeito Houve espontaneidade nas verbalizações e mui tos dados reveladores Muitos sujeitos sentiramse familiarizados com o cenário e o personagem Verba lizavam Conheço este cara mas este não sou eu Puxa parece um lugar que conheço Poucos sujei tos recorreram à releitura da história Alguns des confiavam do objetivo daquela entrevista outros se posicionaram claramente identificados ou não iden tificados Isto é se eram iguais ou diferentes daquele personagem central justificavam esta posição de for ma moral ou funcional O QUARTO momento interativo emergiu nos seminários para devolução dos dados Houve troca e reflexão A empresa e os participantes permitiram a gravação de todos os seminários Os assuntos mais discutidos foram os conceitos da dinâmica psicosso mática tipos de sintomas atitudes das pessoas e da empresa Os grupos que participaram dos seminários eram heterogêneos sob os aspectos funcionais e hie rárquicos A característica grupos heterogêneos foi positiva pois reduziramse através da discussão dos dados barreiras e mitos entre cargos pessoas e me canismos psicológicos No primeiro seminário participaram o diretor de relações industriais o gerente de produção a ge rente de desenvolvimento de pessoal o gerente do serviço de saúde um enfermeiro mestres encarrega dos operários e uma psicóloga convidada Ocorreram interações em nível de esclarecimento do gerente da área de saúde sobre diagnóstico somatizações causa das por frustrações pessoais e avaliação sobre a per cepção de paternalismo da organização em relação aos doentes Outro tema comentado neste seminário foi a alimentação fornecida pelo restaurante da em presa Este aspecto havia sido uma das causas indi cadas para o aparecimento de sintomas ou malestar na empresa Psicossomaticaindd 131 Psicossomaticaindd 131 05012010 121207 05012010 121207 132 Mello Filho Burd e cols O segundo seminário foi particularmente rico Estavam presentes o presidente da empresa o mé dicopsiquiatra um representante da comissão de fábrica o enfermeiro alguns funcionários da área administrativa e a assistente social Nesta sessão du rante a discussão dos dados um dos operários trouxe a questão do tratamento psicológico da filha inicial mente comentada por ele como uma pessoa apenas conhecida O seu relato desencadeou discussões so bre preconceito com o psicológico e sobre o padrão de saúde na empresa Em determinado momento o médico dirigiuse ao presidente chamandoo pelo nome Um dos funcionários administrativos ao perce ber só naquele momento a posição hierárquica da quela pessoa que vinha participando largamente das discussões e dinâmicas de grupo expressou sua sa tisfação em vêlo discutindo abertamente sobre este tipo de assunto O horário previsto foi ultrapassado O terceiro seminário foi realizado à noite Es tiveram presentes o gerente daquele turno operá rios e o mestre de um dos setores mais insalubres da empresa uma pessoa com facilidade de expressão e carisma Participaram também uma analista de de sempenho com a qual não houve oportunidade de realizar a entrevista específica e uma convidada sua irmã que tinha interesse pelo tema O quarto seminário foi composto por funcioná rios da empresa dos mesmos segmentos hierárquicos anteriores a dentista o pessoal do escritório em maior número que em sessões anteriores e uma as sistente social convidada As discussões mais signifi cativas relacionaramse a dúvidas sobre diagnósticos importância desse tipo de assunto na empresa e ne cessidade de divulgação O aspecto mais comentado foi a doença como malandragem e a automedicação por indicação de colegas e conhecidos Neste seminá rio um dos participantes contou um curioso caso de automedicação que transcrevemos Um funcionário nosso com problemas de coluna tomou aquele mate rial que faz aço Chumbo Não não é chumbo Parece uma cera Porque disseram que era bom Então ele derreteu aquilo e tomou Ah Breu É breu Porque disseram que breu era bom pra coluna Tomou breu e ficou sentado lá risos Esses seminários não esgotaram as expectativas dos participantes Foi cobrado durante um deles o livro uma discussão mais detalhada e distribuição antecipada do material Depois dos seminários foi preparada uma pequena apostila com os textos apre sentados e as conclusões do trabalho Esta apostila não chegou a ser distribuída na empresa Apenas um exfuncionário que havia sido sujeito da pesquisa solicitou a apresentação do tema e do material a um grupo de administradores de pessoal Relatos dos seminários abertos Olha houve uma questão que não foi trazida aí que é a seguinte se sabe que ele fica doente A grande maioria disse que sabe todo mundo sabe o que sente Só que não consegue às vezes interpretar bem Então como respostas a gente tem assim que 75 das pessoas cada uma sabe que não está bem Então acha que em princípio as pessoas sabem que não estão bem Um outro grupo acha que não sabe porque se soubesse se trataria o que não é tão simples assim O sujeito muitas vezes bem se dá conta porque ele não sabe Porque se soubesse ele sararia ele iria tentar se tratar E também tem aqueles sin tomas que você só percebe quando você conhece A única coisa que tem é o complexo de culpa será que a minha dor de cabeça é psicológica será que esta dor de estômago é de fundo emocional Tem este outro lado do complexo também que acaba atrapalhando mais a solução do problema Porque vai ser difícil lo calizar a origem ou as origens Então eu gostaria de saber do doutor Ernesto como é que um médico conhece as pessoas quando elas estão falando a verdade se é pelo jeito pela fisionomia Dentro desse parágrafo eu acho que todos nós temos um pouco do Lambari Aqui todos nós sentimos a mesma coisa O problema é ver se dá para gostar do que a gente faz Você diz em relação a gostar do que faz tem que ha ver uma visão um pouco mais complexa mais ampla do que é gostar do que faz Eu posso gostar de pintar mas tenho um trabalho em substituição Eu gosto do que eu faço Agora tem uma outra pergunta que eu me faço que é quanto a questionar ao emprego e ao empregador substitui o espaço para não ter que questionar outras coisas na vida dele Relato Todo o resto da minha vida Cadê o meu lazer cadê a minha mulher os meus filhos Será que era essa mu lher que eu queria Coisas que tudo isso fica muito escondido atrás da faltaacho que o emprego concreti za muito todo o social A malandragem aparece primeiro num sentido de confusão porque não sabe o que sente ali no meio principalmente quando são determinadas situações E a outra é uma forma de negar isto é eu não gosto de aceitar que doença é uma coisa corriqueira que cada um pode ter Eu só quero acreditar que eu não posso ter isto é que eu sou forte Então estas duas afirmações as duas hipóteses são essas que tem influência da cultu ra que e a outra saída que é a mentira Psicossomaticaindd 132 Psicossomaticaindd 132 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 133 A gente vivia com dor de cabeça Aí o Divaldo chegou um enfermeiro novo que ele falou corre lá que tem um remédio bom pra dor de cabeça Eu corri lá e o que era Uma ampola de novalgina que ele quebrava botava no copo e dava pra gente tomar Sarava E o pessoal corre daqui que esse negócio é bom porque fica Martelinho É martelinho dá um martelinho que eu sabia que era ampola de novalgina Então quando você falou nisso aí eu lembrei que o outro disse do remé dio que era bom aí eu tomei também daquelas am polas tamanho família de novalgina pôs num copo porque a novalgina é injetável Acabou a dor de cabeça na hora o enfermeiro era bom Teve um colega nosso aí que abandonou o cargo por que não podia chegava em casa roubaram o cara mataram o cara roubaram tudo e ainda dava a propriedade dele e isso é possível Realmente isso aí é uma grande preocupação a pessoa está trabalhando aqui e está pensando na família O QUINTO momento interativo aconteceu du rante a tabulação e construção dos gráficos no Se tor de Gráficos e Atendimento ao Usuário do Centro de Processamento de Dados Neste período que du rou aproximadamente 8 meses foi lançado o jornal interno da empresa e uma das chamadas da capa era Você sabe o que é somatização escrito pela médica clínica do ambulatório Enquanto os gráficos estavam sendo impressos funcionários que frequen tavam esta sala queriam saber quem era o Lambari Observavam os gráficos com as causas dos sintomas e as respostas sobre o uso secundário da doença a malandragem ou a desculpa para não trabalhar O assunto parecialhes familiar Havia curiosidade so bre quem era o personagem hipotético e comentários sobre a realidade daqueles dados O SEXTO momento foi a entrega de um exem plar da dissertação para cada sujeito para a Co missão de Fábrica e para a Biblioteca do Clube de Funcionários Após essa entrega serão programadas sessões para discussão detalhada sobre o conteúdo desta dissertação Este será o sexto e último momen to da pesquisa Esses processos interativos sintetizados nos mo mentos descritos foram importantes para a empresa para a construção da pesquisa para os sujeitos e para a pesquisadora Para a empresa pela possibilidade de abordagem e aprofundamento de um tema emergen te com padrões administrativos e técnicos diferentes dos usuais Para a elaboração desta dissertação no que se refere à qualidade das fontes utilizadas e aos recursos funcionais e tecnológicos disponibilizados na empresa Para os indivíduos da empresa pela possibili dade de aquisição de novos conhecimentos sobre a dinâmica psicossocial da saúdedoença para seu au toconhecimento identificação de alguns elementos desconhecidos da sua realidade organizacional e tro ca de percepções sobre a dimensão psicossocial das respostas psicossomáticas Houve interesse de outras empresas em discutir o tema foram publicados artigos em revistas especia lizadas de recursos humanos por parte da pesquisa dora e apresentação do tema em congressos de recur sos humanos de psicologia da saúde de ergonomia e de medicina psicossomática O projeto foi apresentado na 40a Reunião Anual da SBPC em julho de 1988 e dentre aproximadamen te 3000 trabalhos apresentados foi indicado entre os 100 pelo interesse econômico social e político para matérias em órgãos de comunicação do evento Dados genéricos do projeto foram apresentados em outubro de 1989 no 10th World Congress of the International College of Psychosomatic Medicine em Madrid Estas contingências da pesquisa geraram sintonia de dados e socialização de informações dentro e fora da empresa REFERÊNCIAS Amado G Guittet A A dinâmica da comunicação nos grupos 2 ed Rio de Janeiro Zahar 1982 Arendt M A condição humana Rio de Janeiro Forense Univer sitária 1983 Argyris C Personalidade e organização O conflito entre o siste ma e o indivíduo Rio de Janeiro Renes 1957 Bauk D A Stress Rev Bras de Saúde Ocupacional São Paulo Fundacentro v 13 n 50 1985 Berger L P Luckmann T A construção social da realidade 7 ed Petrópolis Vozes 1987 Bleger J Psicohigiene e psicologia institucional Porto Alegre Art med 1984 Castro C M A prática da pesquisa São Paulo McGraw Hill do Brasil 1978 Cohn A et al Acidentes do trabalho São Paulo Brasiliense 1985 Cubi R Los transtomos psicopatológicos en la atención sanitaria primaria aspectos epidemiológicos In Detección de transtornos psicopatológicos en atención primaria Barcelona Sociedad Cata lana de Medicina Psicossomática 1989 Dejours C A loucura do trabalho São Paulo Oboré 1987 Fonte Transcrição da disssertação Era uma vez um certo Lambari do só psicológico à revelação social Ana Cristina Limongi França Gasparini PUC São Paulo 1990 orien tador profdr Peter Spink publicado também em Psicologia do Trabalho Psicossomática valores e práticas organiza cionais Editora Saraiva São Paulo 2008 Psicossomaticaindd 133 Psicossomaticaindd 133 05012010 121207 05012010 121207 134 Mello Filho Burd e cols Donnangelo M C F Pereira L Saúde e sociedade São Paulo Duas Cidades 1979 Eksterman A O ensino da psicologia médica Revista Psicossomá tica Recife OEDIP janmar 1986a A medicina do ser Revista Psicossomática v 1 Recife OEPID julset 1986b Contribuições psicanalíticas à Psicossomática Associação Brasileira de Medicina Psicossomática São Paulo 1978 Foucault M Microfísica do poder 5 ed Rio de Janeiro Graal 1985 Freire G Médicos doentes e contextos sociais uma abordagem so ciológica Rio de Janeiro Globo 1983 Friedmann G O trabalho em migalhas São Paulo Perspectiva 1983 Goffman E Estigma notas sobre a manipulação da identidade deteriorada 4 ed Rio de Janeiro Zahar 1982 Granboulan V Mercuel A Stress y Depresión Semaine des Hos pitaux Paris Expansion Scientifique Française 1988 Groen J J Psychossomatics aspects of ischemia heart disease In Modem Trends in Psychossomatic Medicine London Butterworths 1976 Gruppi L O conceito de hegemonia em Gramsci São Paulo Edi tora Geral 1981 Japiassu H Interdisciplinaridade e patologia do saber Rio de Ja neiro Imago 1976 Katz D Kahn R L Psicologia social das organizações 2ed São Paulo Atlas 1976 Lacaz F A Ribeiro M P et al De que adoecem e morrem os tra balhadores São Paulo Diesat 1984 Lane S T M O que é psicologia social São Paulo Brasiliense 1986 Lane S T Codo W et al Psicologia social o homem em movi mento 2 ed São Paulo Brasiliense 1985 Lapassade G Grupos organizações e instituições 2 ed Rio de Janeiro Francisco Alves 1983 Laraia R B Cultura um conceito antropológico 3 ed Rio de Janeiro Zahar 1988 Levy L Society stress and disease London Oxford University Press 1971 Limongi Gasparini A C F Era uma vez um certo Lambari um estudo sobre respostas psicossomáticas na empresa desde o só psicológico à revelação social Dissertação de Mestrado Pontíficia Universidade Católica São Paulo 1989 Lipowski Z J What does the word psychossomatie really mean A historical and semantic inquiry Psichossom Med v 46 n 2 p1531711984 Loyola M A Médicos e curandeiros conflito social e saúde São Paulo Difel 1983 Marx K O Capital Rio de Janeiro Bertrand Brasil 1988 Mello S L Trabalho e sobrevivência São Paulo Ática 1988 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual 3 ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 Mira y Lopez E Os fundamentos da psicanálise Rio de Janeiro Cieutífica 1949 Pontes J F et al Curso de Psicologia Médica Abordagem Sócio psicossomática 2 ed São Paulo Instituto Brasileiro de Estudos e Pesquisas em Gastroenterologia IBEPEGE 1987 Pitta A Hospital dor e morte como ofício São Paulo Hucitec 1990 Possas C Saúde e trabalho Rio de Janeiro Graal 1981 Rodrigues A L Estresse e trabalho Revista Psicorama v 9 n 2 São Paulo Roche 198890 manuscrito Palestra apresentada no VII Congresso Bra sileiro de Medicina Psicossomática de Belo Horizonte 1990 Conceito atual de psicossomática Temas de Medicina Psi cossomática volume 1 São Paulo Roche 1982a Rodrigues A L Rodrigues D M Introdução à história da Medi cina Psicossomática Temas de Medicina Psicossomática v 1 São Paulo Roche 1989b Sato L Trahalho pode levar ao suicídio Rev Trabalho e Saúde São Paulo Diesat junago 1988 Seligman Silva E Crise econômica trabalho e saúde mental In Crise Trabalho e Saúde Mental no Brasil São Paulo Traço 1986 Seyle H Stress a tensão da vida 2 ed São Paulo IBRASA 1965 The general adaptation syndrome and disease of adapta tion 1 Cli Metab v 6 n 117 1947 Souza L R Veras R Ideologia e saúde In Saúde e Trabalho no Brasil IBASE Petrópolis Vozes 1983 Spink P K Quando trabalhar e neurotizante Rev Psicologia Atual v 5 n 27 São Paulo Spagat ago 1982 Velho G Desvio e divergência 5 ed Rio de Janeiro Jorge Zahar 1987 Vingerhoets A J J M Marcelissen F H G Stress Research its present status issues for future developments SUC Sci Med v 26 n 31988 Wilkinson G Overview of mental healtli practices in primary care setting Washington National lnstitute of Mental Health 1986 Wolff HG Life Stress and bodily changes A formulation In Life Stress and Bodily Disease Baltimore Williams and Wilkins 1950 Psicossomaticaindd 134 Psicossomaticaindd 134 05012010 121207 05012010 121207 BURNOUT Considerações preliminares uma visão geral De início uma consideração acerca do uso do termo em inglês Uma das razões disso é o fato de se tratar de um termo já consagrado sendo inclusive assim utilizado em diversas línguas Outra razão é a própria complexidade do conceito por ele designado a qual torna difícil encontrar tradução adequada e há por fim o sentido metafórico do termo o qual abordaremos adiante Trabalhos em língua espanhola Diaz Gonzáles e Rodrigo 1994 e francesa Gran than 1985 ou mantêm no título o termo burnout e usam no texto a denominação Síndrome do Esgo tamento Profissional entre parênteses afirmam es tarem se reportando ao burnout ou utilizam a tra dução no título do trabalho mas aí já colocada entre parênteses Rodrigues 1998 Algo semelhante acontece com o termo stress criado por Hans Selye pois não importa qual a língua utilizada ele costuma aparecer no original em inglês Rodrigues 1998 Segundo o Websters College Dictionary 1990 burnout significa to exhaust oneself or become or apathetic through overwork stress or intense activity Talvez a partir da definição de burnout do Websters pudéssemos traduzilo por exaustão desgaste ou mesmo esgotamento Acredito serem os mais pró ximos da ideia transmitida pelo dicionário Porém como demonstra a literatura sobre burnout o signifi cado expresso pelo Websters é falho e incompleto e não transmite a complexidade da ideia Por exemplo o vocábulo esgotamento exclui do conceito as forças do contexto social e a complexa interação entre as condições sociais e a experiência pessoal Rodrigues 1998 mantendo a síndrome em uma perspectiva in dividual Como afirma Maslach 1982 o termo bur nout evoca o extinguir de uma chama uma cápsula vazia a chama de um archote agonizante e também a perda de entusiasmo no envolvimento com outras pessoas perda de energia de dedicação e disposição em dedicarse aos outros Em modelo mais recente Carroll e White 1984 definem o burnout como um constructo usado para esclarecer a redução do de sempenho tanto qualitativa como quantitativamen te da pessoa no trabalho Tais pessoas experimentam um distress biopsicossocial ou uma doença fruto da exposição aos estressores e às situações de frustração superiores à sua capacidade de tolerância e seus re cursos para mobilizar mecanismos de enfrentamento considerados eficazes para lidar com o stress e a frus tração oriundos da situação à qual está submetido Maslach 1982 O conceito assim leva considera a relação do indivíduo com o trabalho além das forças sociais atuantes na organização do trabalho Rodri gues 1998 Segundo Dejours 1994 na relação do homem com o trabalho devem ser ressaltados três fa tos o organismo do trabalhador é objeto permanente de excitações não só exógenas quanto endógenas o trabalhador não chega ao local de trabalho como uma máquina nova possui uma história tem desejos e motivações e uma estrutura de personalidade No trabalho nem sempre o individuo dá vazão satisfató ria à sua energia psíquica em termos econômicos o prazer ou o desprazer na execução da tarefa ocorre com a diminuição ou não da carga psíquica do traba lho Sem tal diminuição da descarga psíquica o tra balho se torna fatigante A síndrome do burnout SB é extremamente complexa Pode ser investigada em diferentes níveis de organização seja no nível individual seja no orga nizacional E é claro abordar cada um destes níveis requer a utilização de modelos e metodologias espe cíficas Rodrigues 1998 Freudenberger 1975 lançou o termo burnout em 1975 seguido de Maslach 1982 em 1976 Os trabalhos destes pioneiros tiveram como foco princi pal a exaustão emocional a fadiga e a frustração em profissionais decorrentes ou do desgaste resultan te do contato com pessoas ou da não satisfação das expectativas e dos projetos do indivíduo em relação à profissão O conceito teve de início receptividade positiva Maslach 1984 Após algum tempo porém 11 SÍNDROME DO BURNOUT Avelino Luiz Rodrigues Elisa Maria Parayba Campos Psicossomaticaindd 135 Psicossomaticaindd 135 05012010 121207 05012010 121207 136 Mello Filho Burd e cols surgiram críticas severas como por exemplo a de não passar de nova apresentação de velhos temas ou apenas de manifestações depressivas em resposta às objeções quanto à própria existência da Síndrome do Burnout SB Millan 2007 Kirwan e Armstrong 1995 afirmam que embora a síndrome do SB apre sente algumas semelhanças com as reações depressi vas decorrentes de transtornos de ajustamento após uma situação de stress deve ser considerada uma síndrome à parte por estar nitidamente relaciona da ao trabalho e costumar ser temporária E citam Paine 1984 e Freudenberger 1981 defensores da existência da síndrome por ela possuir um grupo es pecífico de sintomas surgidos sempre em conjunto evidenciando uma entidade reconhecível Diaz Gon záles e Rodrigo 1994 acrescentam o seguinte racio cínio existe certa semelhança entre os sintomas da SB e a síndrome de depressão essencial descrita por Pierre Marty neste quadro não existe sintomatologia depressiva manifesta o indivíduo continua a desem penhar as atividades cotidianas sem os grandes sin tomas de depressão descritos nas síndromes depres sivas psiquiátricas ou de autoacusação no entanto a relação com o ambiente profissional e social fica pre judicada pois o indivíduo deixa sem grande envol vimento afetivo frias e distantes as relações com as outras pessoas e delas não obtém prazer Na compa ração entre burnout e depressão convém ainda citar Vieira e colaboradores 2006 embora apareçam as sociados com frequência vários estudos mostram que burnout e depressão são conceitualmente diferentes eles citam Freudenberger 1987 para quem o es tado depressivo no burnout é temporário e orienta do para uma situação precisa na vida da pessoa no caso o trabalho e Maslach 2001 para o qual o burnout afeta apenas o campo profissional enquanto a depressão atinge todas as áreas da vida do indivi duo Brenninkmeyer apud Vieira et al 2006 assim sintetiza as diferenças com a síndrome depressiva No burnout as pessoas 1 aparentam mais vitalidade e são mais capazes de obter prazer nas atividades 2 raramente apresentam perda de peso retardo psicomotor e ideação suicida 3 os sentimentos de culpa se os têm são mais rea listas 4 atribuem à sua indecisão e inatividade a fadiga 5 a insônia é com mais frequência inicial e não ter minal Vale citar também o trabalho de Schwartzmann 2004 sobre o tema e no qual realiza revisão siste mática da literatura sobre os conceitos de stress bur nout e depressão Já para Maslach 1982 muitos questionamen tos em relação ao SB decorrem de importantes distor ções ocorridas no desenvolvimento e uso do conceito principalmente por ser um constructo recente dando margem à utilização do modelo de forma equivoca da ou inadequada E segundo ela para conhecer o conceito é fundamental terse a consciência de não se tratar de conceito simples O pesquisador deve to mar conhecimento das referências fundamentais na literatura e ter um claro entendimento do verdadeiro significado de burnout A partir da década de 1980 cresceu a produ ção científica sobre SB Rodrigues 1998 Maslach 1984 Deixou de ser considerado um campo isolado de pesquisa e incorporouse à imensa área do estu do sobre o stress diferenciandose por focalizar o stress no trabalho stress ocupacional na perspec tiva psicossocial Rodrigues 1998 Na área de saú de as contribuições podem ser inúmeras no estudo da relação médico paciente das relações entre os componentes da equipe de saúde das relações entre estes profissionais e o local e condições de trabalho Maslach 1984 Além disso fornece subsídios para a compreensão da interferência do estilo e qualidade de vida na saúde do ser humano e de como as esco lhas pessoais podem ser determinadas pela intensi dade do impacto da situação estressante vivida pelo sujeito Rodrigues 1998 Importante assinalar o caráter insidioso da SB Autores como Maslach 1982 Freudenberger 1975 e Paine 1984 ressaltam a SB corrói pro gressivamente a relação entre o sujeito e sua ativida de profissional Alguns autores destacam a importância do contexto sóciohistórico no qual foi desenvolvido o conceito e na proeminência por ele alcançada Cher nis 1984 Além do maior conhecimento quanto aos complexos mecanismos psicossociais envolvidos nas relações profissionais para eles o burnout é tão antigo quanto à noção de stress no trabalho e da vivência de frustração profissional mas mantinha O Código Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde em sua 10a edição reserva o código F43 aos Transtornos de ajustamento e os caracteriza como estados de angústia subjetiva e perturbação emocional usualmente interferindo com o funcionamento e desem penho sociais e que surgem em um período de adaptação a uma mudança significativa de vida ou em consequência de um evento de vida estressante As formas clínicas ou os aspectos predominantes podem surgir sob a forma de reações depressivas mistas de ansiedade e depressão e com alterações da conduta Psicossomaticaindd 136 Psicossomaticaindd 136 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 137 se de certa forma oculto tornandose visível frente às dramáticas mudanças das últimas décadas Tais mudanças provocaram incremento no stress na frustração na insatisfação com a profissão com o decréscimo do reconhecimento social e das possibi lidades de ascensão profissional social e econômica Rodrigues 1998 Para Arnetz 1997 por exemplo as pesquisas relacionando o trabalho médico ao stress enfocam principalmente a urgência do tempo as demandas de alta produtividade a necessidade contínua de de senvolver novas rotinas e conhecimentos o contato frequente com pessoas em distress e o ritmo rápido das mudanças nos aspectos organizacionais e econô micos na atividade médica O conceito de burnout O conceito foi desenvolvido na década de 1970 tendo como pioneiros Cristina Maslach 1982 psi cóloga social e Herbert J Freudenberger 1975 psicanalista Para ambos burnout é o preço pago pelo profissional por sua dedicação ao cuidar de outras pessoas Freudenberger 1975 ou por sua luta bus cando uma grande realização Dejours 1994 Em ambos a SB é fruto de situações de traba lho notadamente entre os profissionais cujo objeto de trabalho é o contato com pessoas em especial aque les denominados profissionais de ajuda nos Esta dos Unidos da América ou profissionais da saúde A SB seria a resposta emocional à exposição ao stress crônico em função de relações intensas no traba lho com outras pessoas Freudenberger 1975 ou a de profissionais com grandes expectativas em relação ao sucesso na carreira os quais apesar de enorme dedicação à profissão não alcançaram o retorno es perado Para Dejours 1994 o nível de expectativa é dramaticamente oposto à realidade e estas pessoas persistem em tentar alcançar estas expectativas suas trajetórias se tornam turbulentas problemáticas e o resultado é uma depleção dos recursos individuais e um comprometimento de suas habilidades Outros aspectos inerentes ao conceito da SB são destacados por Pines e colaboradores 1981 Se gundo eles os profissionais além de expostos a fre quentes situações de stress experimentam a vivência de oferecer muito em comparação ao recebido Ou seja o retorno em termos de gratificação é reduzi do insuficiente frente às expectativas em relação à profissão surgindo com maior frequência quando a relação com a profissão é baseada em grande idealis mo e entusiasmo Segundo Maslach 1982 a SB é uma síndro me caracterizada por três aspectos básicos 1 exaustão emocional 2 despersonalização 3 redução da realização pessoal e profissional Exaustão emocional Frente à intensa carga emocional fruto do con tato frequente e penoso com pessoas em situações de sofrimento o indivíduo pode desenvolver uma exaustão emocional O profissional sentese esgota do com pouca energia disponível para o dia seguin te de trabalho e tem a impressão de não ter como recuperar as energias Esta carência de energia deixa os profissionais pouco tolerantes irritáveis nervosos amargos no ambiente de trabalho e até mesmo fora dele com familiares e amigos Ro drigues 1998 Tais profissionais sentemse pouco capacitados a cuidar dos outros e dar de si As re lações com o trabalho e com a vida ficam insatis fatórias e pessimistas Para escapar do progressivo desgaste emocional em mecanismo defensivo tendem a assumir atitudes distantes evitam contato com os pacientes reduzindoo ao mínimo apenas o indispensável para o trabalho Tornamse pouco generosos insensíveis e muitas vezes apresentam comportamento rígido com rotinas inflexíveis im parciais Webster 1990 Freudenberger 1975 Se gundo Rodrigues 1998 rotulam e referemse aos pacientes como a objetos e o relacionamento fazse quase só em função dos rótulos a histérica do 4º andar do diagnóstico aquele ulceroso ou de um número a mulher do leito 7 Segundo Maslach 1976 os médicos são os re presentantes ideais destes mecanismos de distancia mento e muitos médicos até acreditam tratarse de prérequisito para um atendimento adequado De maneira um pouco diferente da de Masla ch Pines 1981 assim descreve os sintomas da SB malestar exaustão ou fadiga esgotamento e perda de energia mental e física com sentimentos de in felicidade desamparo diminuição da autoestima perda do entusiasmo com a profissão e com a vida em geral além da sensação de disporem de poucos recursos para cuidar de outros Rodrigues 1998 Despersonalização Aqui despersonalização é termo que vem da so ciologia diferindo daquele da psicopatologia Trata se do distanciamento emocional exacerbado com frie za e indiferença frente às necessidades dos outros e insensibilidade Rodrigues 1998 Os contatos ficam impregnados por uma visão e atitudes negativas fre Psicossomaticaindd 137 Psicossomaticaindd 137 05012010 121207 05012010 121207 138 Mello Filho Burd e cols quentemente desumanizados a consciência de seu trabalho lidar com seres humanos fica comprometi da e há perda de aspectos humanitários na interação pessoal O profissional ao assumir tal atitude desu manizada deixa de perceber os outros como seme lhantes com sentimentos impulsos e pensamentos que ele mesmo pode ter perdendo assim a capaci dade de identificação e empatia com as pessoas em busca de ajuda e tratamento Webster 1990 Freu denberger 1975 Os pacientes não são mais perce bidos como seres humanos tornamse coisas ob jetos a serem reparados São agora um transtorno um problema a ser resolvido um incômodo Assim o contato com os pacientes será apenas indulgente e a atitude será de intolerância irritabilidade ansie dade com exacerbação de aspectos onipotentes da personalidade A atitude para com os pacientes tornase depre ciativa os mesmos são tratados de forma pejorativa deles sempre se espera o pior Os contatos são pouco ou nada corteses os apelos e necessidades são aten didos com dificuldade e por vezes o atendimento fica até comprometido tecnicamente O desejo é ter os pa cientes o mais distante possível Redução da realização pessoal e profissional Neste quadro de deterioração da atividade a realização pessoal e profissional fica extremamente comprometida Segundo Freudenberger 1975 a SB surge principalmente nas áreas tidas pelas pesso as como as mais promissoras para suas realizações Os médicos desejam ter através de sua atividade enorme impacto positivo nas pessoas Querem ser ca pazes de proporcionar saúde e bem estar Procuram ser competentes e reconhecidos pela comunidade e alcançar boa situação econômica No entanto muitos têm a sensação de estar batendo a cabeça dia após dia ano após ano Desenvolvem então intensos sen timentos de decepção e frustração Rodrigues 1998 Com o incremento da exaustão emocional e da des personalização e de suas consequências há não raro um senso de inadequação e surge o sentimento de ter falhado em seus ideais normas conceitos e com os pacientes Dejours 1994 Freudenberger 1975 Fica a sensação de ter se tornado outro tipo de pessoa di ferente bem mais fria e descuidada A consequência é a queda da autoestima e a eventual depressão FONTES DE BURNOUT São considerados como fontes de burnout O envolvimento com as pessoas e o contexto social e do trabalho Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 O envolvimento com as pessoas O stress é considerado intrínseco à prática dos profissionais de saúde pelas próprias características da profissão Gardner Hall 1981 Serry et al 1994 Mcraine Brandsma 1988 McCue 1982 em estudo clássico vê no trabalho em saúde exige o contato com situações plenas de conteúdos emocionais intensos como o sofrimento o medo a sexualidade e morte O encontro entre profissionais da saúde e pa ciente tem na ansiedade uma das principais caracte rísticas Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardi ni 2006 A ansiedade está em ambos pelo receio de cada um de não atingir o fim desejado tratase as sim de um contato comprometido pois dele se espe ra um resultado Pontes Rodrigues Rodrigues1980 Rodrigues Campos Pardini 2006 Por outro lado alguns pacientes apresentam situ ações particularmente difíceis de serem vividas pelos profissionais pois o sofrimento trazido pelo paciente ou é estranho ou familiar demais para o profissional estudos com enfermagem confirmam isso revelando incremento do burnout em atendimentos a pacientes em situações de risco e em serviços com altas taxas de mortalidade Simon 1987 Linda et al 2002 Na atividade em saúde os profissionais enfren tam constantemente situações de crise precisam ser tolerantes frente às expressões de frustração dos pa cientes Rodrigues 1998 advindas do fato de esta rem doentes de ter de suportar a dor e o sofrimento ou da convivência com o sintoma de necessitar de auxílio de outrem da ameaça da perda de poder so bre si mesmo e tais reações mobilizadas pelo medo dor raiva ou vergonha precisam ser acolhidas pelo profissional Questões semelhantes podem ser obser vadas na enfermagem Pela própria natureza deste trabalho a sociedade e principalmente os doentes e seus familiares esperam de tais profissionais desem penho isento de erros o trabalho deve ser realizado Desumanização é um conceito desenvolvido por psicólogos sociais e tem sido empregado no estudo de determinadas situações da interação humana notadamente aquelas que envolvem diferentes formas de violência Ver os trabalhos de Bernard V Ottenberg P e Redle F Desumanização A composite psychological defense in relation to modern war In Behavior Science and Human Survival ed Schwebel M Palo alto Science and Behavior SBoks 1965 Kelman MC Violence without moral restraint Reflections on the dehumanization of victims and Victimizers Journal of Social Issues 291973 p2561 Vail DJ Dehumaniza tion and the institutonal career Springfield Ill Charles Thomas 1966 Psicossomaticaindd 138 Psicossomaticaindd 138 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 139 sempre da melhor maneira possível e o enfermeiro precisa ser íntegro respeitoso e cheio de compaixão Arnold Povar Howell 1987 No entanto os profis sionais raciocinam de maneira análoga O American Board of Internal Medicine descreve como qualidades centrais do médico a integridade o respeito e a com paixão conforme assinala Arnold e colaboradores 1987 exigindo onipotentemente deles mesmos uma conduta perfeita na qual o erro mesmo sendo considerado possível é pouco ou nada tolerado Por outro lado o paciente a nível inconsciente reproduz de forma mais evidente com o médico mas também com todos os profissionais de saúde senti mentos experimentados na infância em relação aos pais ou figuras substitutas e espera do médico posi ções idênticas às adotadas por suas figuras importan tes ou seja atitude protetora afetuosa autoritária etc Rodrigues Campos Pardini 2006 O paciente se sentirá frustrado ou satisfeito caso o médico assu ma ou não as posições desejadas inconscientemente Em casos de frustração apresentam agressividade e colaboram pouco com o tratamento Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 A dor o medo e a frustração são estímulos bastante potentes para desencadear no paciente uma postura agressi va para com o médico É frequentemente uma relação de amor e ódio Pontes Rodrigues Rodrigues 1980 Mas estes aspectos constituem uma via de duas mãos Por parte do médico as relações familiares iniciais também se mostram igualmente importantes na de terminação de suas posturas frente ao paciente e do tipo de relação médicopaciente por ele desenvolvida ChristieSeely Fernandez Paradis 1984 Crouch 1986 Mengel 1989 do tipo de prática médica alme jada e de suas expectativas quanto à profissão De acordo com inúmeros estudos a comunica ção profissionalpaciente não é fácil e com frequên cia os pacientes não seguem as orientações recebi das do médico Geersten Gray Ward 1973 Esta frequente dificuldade adicional não deve ser vista apenas como resultado de atitudes transferenciais carregadas de afetos negativos Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Por vezes os pa cientes possuem crenças próprias sobre as doenças crenças construídas a partir de seus conhecimentos e valores e que constituem importante mecanismo com o qual enfrentar a doença notadamente as de curso crônico Willians Wood sd Se os profissionais não estiverem atentos a esta possibilidade o desgaste da relação será inevitável Estes diferentes aspectos da profissão são gera dores de um tipo de stress cuja característica principal é o fato social e suas interações humanas usualmente complexas embora o profissional nem sempre tenha esta percepção Maslach 1976 Para quem busca auxílio a situação da qual padece é sempre comple xa importante uma ameaça à sua integridade física mental ou moral gerando muito medo Sem uma in teração produtiva entre o profissional e o paciente e são inúmeros os fatores a determinar este desacerto o resultado do trabalho e a consequente gratifica ção da realização do mesmo será decepcionante para ambos podendo daí surgir o burnout Niku 2004 Como já assinalamos as interações são carrega das de afeto e são também formas de comunicação E não comunicam apenas a presença de elementos geradores de dor ou prazer mas fundamentalmente explicitam as necessidades e a solicitação de receber ajuda visando satisfazêlas Rodrigues 1998 Rodri gues Campos Pardini 2006 Para Szasz 1975 o modelo mais primitivo do significado comunicativo da dor e do prazer surge durante as primeiras semanas de vida O grito do bebê provoca uma sensação ex tremamente dolorosa nos pais Impulsionaos a agir afastando o desconforto da criança e assim também o seu próprio sofrimento Deyo Linus Sullivan 1981 Ao aliviar o sofrimento da criança os pais recebem ou tra comunicação indicando poderem eles cessar sua ação pois a necessidade foi satisfeita Quero chamar atenção neste contexto para o fato de que numa in teração entre A e B cada qual procura no estado afe tivo do outro orientação para o seu próprio estado de espírito Em outras palavras o afeto de A é um sinal para B e o afeto de B funciona como sinal para A No relacionamento médicopaciente por exemplo a dor do paciente ordena ao médico tomar uma providência Se ele puder alterar o sinal do paciente tanto paciente como médico se sentirão bem Se não conseguir o mé dico se sente mal Rodrigues 1998 Maslach 1982 A experiência de cuidar de pessoas doentes faz bem ao profissional é portanto uma relação de mútua de pendência Timothy Johnson 1990 Uma das características marcantes da atuação do médico Malasch e dos demais profissionais de saúde é a de buscar sempre realizar o melhor tra balho Lutam o tempo todo todososdias semana apóssemana mêsapósmês atendendo pessoas com demandas físicas e emocionais bastante significativas e usualmente com expectativas superiores às possi bilidades do profissional O empenho em compreen der e combater o sofrimento é sem dúvida uma das características principais do ser humano Nenhuma cultura deixou de se preocupar com a doença Sim bolicamente o trabalho médico lembra o castigo de Sísifo o qual por ter enganado Tânatos foi condena do pelos Deuses a rolar um bloco de pedra montanha acima No entanto mal chegando ao topo o bloco rola montanha abaixo e Sísifo recomeça a tarefa in terminável Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Brandão 1966 Psicossomaticaindd 139 Psicossomaticaindd 139 05012010 121207 05012010 121207 140 Mello Filho Burd e cols Em sua complexa tarefa o profissional de saúde experimenta níveis significativos de stress o conceito de burnout nos ajuda a melhor entender a complexi dade destas situações EXPRESSÕES DO BURNOUT EM FUNÇÃO DO RELACIONAMENTO COM AS PESSOAS Observar as pessoas através de uma perspectiva negativa Quatro aspectos são importantes na gradativa mudança entre os profissionais da forma de perce ber as pessoas que os procuram Tais aspectos intrín secos à própria atividade dos profissionais da área de saúde Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 são O objetivo da relação é lidar com problemas A profissão existe em função de pessoas com problemas de saúde eou outras dificuldades Ro drigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Seu objeto de trabalho é o sofrimento humano e a busca de alívio Carnevale et al 2006 Aquilo de positivo e saudável no ser humano recebe bem me nos atenção e consideração no trabalho em saúde E quando os pacientes melhoram não retornam só o fazendo quando suas situações não foram bem re solvidas Assim é pequena a interação com base em aspectos prazerosos e positivos A existência de um número cada vez maior de pacientes crônicos torna tal situação bastante presente Rodrigues 1998 Ro drigues Campos Pardini 2006 O médico frente a este tipo de paciente abandona sua necessidade de ser um curador onipotente contentandose ape nas em assistir o doente muitas vezes em declínio constante durante anos e até décadas Tähka 1988 Estes retornos podem despertar no profissional sen sação de fracasso e ansiedade Este aspecto e o foco do trabalho centrado nos problemas e no sofrimento desgastam o profissional Ele tem a vivência de ser sugado quotidianamente podendo desenvolver uma sensação de desamparo e atitudes negativas pejo rativas e até mesmo rudes e cínicas em relação aos clientes Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Par dini 2006 Ausência ou carência de reconhecimento Nestas relações profissionais ou não existe re conhecimento ou ele é com frequência sujeito a críticas Os médicos acreditam e em muitos casos isso é verdade que a sociedade tem uma série de expectativas em relação à postura deles no trabalho devem ser acolhedores pacientes e generosos jamais frios ou hostis Porém se correspondem às expecta tivas positivas não recebem reconhecimento por isso Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 e se as mesmas não forem preenchidas as críticas são intensas It is a chronic nowin situation either you loose or you get nothing Maslach 1982 Muitos médicos queixamse do fato de os clien tes eou familiares expressarem apenas críticas Co mentários sobre a tarefa estar sendo conduzida de forma eficaz e com bons resultados são raros Assim é comum o médico desenvolver sentimentos de não ser compreendido surgindo a frustração a raiva e a postura hostil defensiva Os contatos passam a ser desagradáveis e fica a noção de não compensar o es forço empregado e nem de tentar melhorar a vida dos outros Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Vale aqui ressaltar alguns aspectos relativos à organização do trabalho face à influência desta ins tância no reconhecimento ou não do trabalho médi co pelos pacientes A relação de confiança e conside ração antes predominante vem progressivamente se deteriorando O fenômeno não é privilégio da medi cina brasileira embora talvez tenha aqui expressão mais contundente em países como os Estados Uni dos ou da Europa Ocidental observase o mesmo fe nômeno Maslach 1976 Kirwan Armstrong 1995 Copeman 1990 As mudanças na prática médica das últimas décadas provocaram fortes impactos na rela ção entre os médicos e suas atividades a satisfação com o trabalho está comprometida bem como o nível de remuneração e há uma perda do controle sobre o tratamento encaminhamentos e outros aspectos da tarefa médica Reames Jr Dunstone 1989 Os anos de 1980 caracterizaramse por uma divisão do mercado público assalariado ou conveniado e pela expansão dos planos privados de assistência os quais com o credenciamento de profissionais re presentaram para os médicos a perda da prática li beral Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Assim houve uma perda crescente da autono mia do exercício profissional e redução da remunera ção O resultado foi um perfil de profissional com pelo menos três vínculos de trabalho uma re muneração baixa a difícil sobrevivência profissional adequada com reflexos negativos na qualidade da assistência médica prestada e o desgaste do tra balho médico com a categoria revelando desconfian ças em relação ao sistema e ao mesmo tempo sua impotência e desesperança em corrigir trajetórias e recuperar conquistas Mesquita 1997 Psicossomaticaindd 140 Psicossomaticaindd 140 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 141 O nível de stress emocional A natureza do trabalho médico produz relaciona mentos com características depressivas aflitivas e si tuações muito estressantes Quando pouca ou nenhu ma ajuda pode ser fornecida não raro o profissional adota uma postura distante Isso fica bem evidente nos casos de pacientes com diagnóstico de câncer ou ou tras patologias de prognóstico reservado Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 O médico pode ser mobilizado pelos mesmos preconceitos cole tivos em relação à doença e ser tomado por sentimen tos de frustração e raiva frente à própria impotência passa então a adotar um comportamento aversivo evitando ao máximo o contato pessoal com o paciente e seus familiares conscientemente ou não pode ainda tornarse agressivo se não com o paciente e familiar com membros da equipe e colegas Outra atitude co mum é lançar mão de posturas que falseiam a reali dade não informando o real diagnóstico ao paciente ou mesmo a familiares adulterando a realidade reve lando a dificuldade em lidar com o stress emocional desencadeado pela gravidade da situação Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Possibilidade de mudança ou melhora Nossa percepção sobre as pessoas são influen ciadas pela possibilidade delas em responder às nos sas intervenções Freudenberger 1975 Pessoas que não apreciam a presença do profissional que não lhes fornecem retorno positivo ou não seguem suas orien tações com frequência despertam atitudes negativas e facilitam o desenvolvimento de um relacionamento desumanizado Tais pessoas provocam nos profissio nais a ideia de que seus esforços são ineficazes e que é perda de tempo dedicarse a elas Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Lidar com pacientes crônicos pode se tornar um desafio pois eles representam um problema cons tante e sem fim Se a prática do médico for mui to orientada para a cura a relação com este tipo de paciente será desgastante e pouco prazerosa Rodri gues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Há uma espécie de compromisso entre os médicos de ajudar o paciente a recuperar a sua saúde o mais rápi do possível Clearihan 1991 no entanto em várias situações isso não é possível como por exemplo nos tratamentos paliativos ou pacientes terminais e po dem desencadear em médicos sentimentos de frus tração e de que falharam Whippen Canellos 1991 em suas tarefas Estas ocorrências tornamse impor tantes fontes do burnout Ou seja as expectativas do médico em relação aos objetivos a serem alcançados no seu exercício profissional constituem importantes fatores de burnout Deckard Hicks Hamory 1992 NO CONTEXTO SOCIAL E DE TRABALHO Altos níveis de burnout estão associados a bai xos níveis de satisfação organizacional e altos níveis de exaustão emocional estão correlacionados a bai xas avaliações quanto a aspectos organizacionais e qualidade de vida no trabalho Gardner Hall 1981 Deckard Metererko Field 1994 O contato entre o profissional e o cliente é fre quentemente realizado no contexto formal de uma instituição Com o incremento da medicina tecno lógica o acesso do médico a estes recursos se faz principalmente pela via institucional Mesmo os mé dicos cuja atividade é desenvolvida em consultório em tempo parcial ou integral necessitam estabelecer um vínculo com uma instituição hospitalar ou clínica seja para utilizar a tecnologia seja para desenvolver o trabalho com pacientes nos casos de internação Ro drigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Por outro lado a infiltração progressiva e dominan te observada a partir dos anos de 1980 de institui ções de caráter eminentemente mercantil como os segurossaúde e as medicinas de grupo resultou em novas configurações do exercício da medicina tanto a institucional quanto a da clínica privada324 A dependência quase absoluta de instituições resul ta na perda da autonomia na queda expressiva da remuneração e na diminuição do poder e do pres tígio social Estes aspectos dão um excelente retrato do profissional médico nos dias de hoje Rodrigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Além disso o contexto organizacional determina e estrutura os relacionamentos no local de trabalho entre o profissional e o paciente entre os profissionais entre a equipe médica e o pessoal administrativo Estes aspec tos bem como o tipo e local de trabalho determinarão maior ou menor stress e são fontes do burnout Um aparente paradoxo merecedor de estudo mais aprofundado é o de se por um lado o desen volvimento do conhecimento na medicina é enorme são espetaculares as contribuições da medicina à nossa capacidade de sobreviver e à nossa qualidade de vida nunca na história da medicina houve tan tos instrumentos para prevenir doenças e a morte Martini 1988 de outro a competência dos pro fissionais tem sido questionada Timothy Johnson 1990 e a profissão médica nunca esteve em condi ção tão desfavorável Light Levine 1988 É consen so no mundo ocidental que a profissão médica está em crise Stella e Nogueira Martins 1997 relatam a ocorrência de um Congresso Internacional realizado Psicossomaticaindd 141 Psicossomaticaindd 141 05012010 121207 05012010 121207 142 Mello Filho Burd e cols pela Associação Médica da Noruega intitulado The physician role in transition is Hippocrates sick cujo objetivo era discutir a profissão médica em função das profundas transformações da profissão por exemplo na remuneração no estilo de vida no comportamento ético do médico e nas relações entre médicos e pacientes Kernicick sd A Associação Médica Norueguesa criou um instituto de pesquisa com o objetivo de desenvolver estudos sobre diver sos aspectos da profissão médica inclusive o stress profissional e o desgaste físico e emocional stress burnout impairment Os profissionais médicos estão abatidos e sentemse impotentes Timothy Johnson 1990 Por sua vez pacientes e familiares relatam insatisfação com os profissionais médicos Reinhardt 1972 e com experiências desagradáveis em hospi tais Muitas vezes tais pessoas foram vítimas de uma negligência psicológica Mason 1961 Não é dife rente no Brasil Machado 1997 em pesquisa sobre os médicos no Brasil assinala recentes pesquisas de opinião realizadas no país atestam o crescente descontentamento da população com os serviços de saúde e apontam a prática médica como objeto cen tral de suas críticas Os médicos são assim alvo de queixas críticas acusações e por vezes de processos éticos nos Conselhos Profissionais E em muitos ca sos o profissional recebeu as críticas dos clientes e familiares sem ter sido responsável pelas normas e desacertos da instituição ou pela política que deter mina o que deve ser feito e como deve ser feito Ro drigues 1998 Rodrigues Campos Pardini 2006 Fontes de burnout no contexto social e do trabalho O excesso de solicitações que resulta em sobrecarga Costuma ser uma das fontes mais citadas pelos médicos Pode ser emocional ou física e caracterís tica básica do stress quando as solicitações excedem a capacidade das pessoas de responder a elas Se há um excesso de informações eou de solicitações e além disso em ritmo acelerado nem sempre as pes soas conseguem mobilizar os mecanismos necessários para ajudálas a lidar com tal sobrecarga e os impactos desta situação acabam resultando em um desgaste im portante e insatisfação no trabalho Johnson 1995 Conforme Arnetz 1997 40 dos médicos pesquisa dos independente do sexo relatavam apresentar um nível de cansaço diário ou quase diariamente que os impossibilitava de interagir com seus familiares Em muitos serviços a quantidade de pacientes a serem atendidos em um período curto é excessiva face às ne cessidades do atendimento Tamayo Troccoli 2002 O volume de pacientes é sempre intenso nos Serviços Públicos Universitários e de Medicina de Grupo e os médicos são obrigados a efetuar número grande de atendimentos em tempo muito reduzido E a tensão aumenta se o caso requer cuidado e atenção maiores Isso ocorre tanto na prática do clínico quan to e com maior frequência em especialidades nas quais a ameaça à vida do paciente é iminente Doan Wiggns 1995 Molassiotis e Van Den Akker 1995 examinaremos estes aspectos mais adiante A questão da sobrecarga de trabalho ocorre também com outros profissionais de saúde por exemplo na enfermagem produzindo o burnout neste sentido destacamos o trabalho de Vinacci Alpi e Alvaran Flórez 2004 so bre o stress laboral em auxiliares de enfermagem A perda do controle sobre o seu trabalho O burnout costuma ser alto nos profissionais sem o controle sobre suas atividades Maslach 1982 Al tos índices de exaustão emocional estão relacionados com perda da autonomia e do controle sobre suas atividades Rodrigues 1998 A perda de controle é um dos fatores mais importantes na satisfação no tra balho e na qualidade do atendimento Breslau No vac Wolf 1978 e Lichenstein citados por Deckard e ocorre quando o profissional perde a liberdade de decidir o que e quando fazer Mesmo não sendo per cebidas suas razões a perda de autonomia representa importante stress emocional Desencadeia a sensação de desamparo com vivência de frustração e raiva podendo também surgir a ideia de ser ineficaz com intervenções ineficientes Maslach 1982 Outro aspecto é a não possibilidade de definir intervalos ou limitar o número de horas de trabalho Quanto maior o número de horas de contato direto maior o risco do burnout Maslach 1982 Kirwan e Ar mstrong 1995 assim como estar em serviço o tempo todo algo costumeiro em determinadas especialida des Limitações importantes quanto aos aspectos eco nômicos também aumentam o risco do burnout Relacionamento com os colegas O relacionamento com os colegas muito sig nificativo e fonte de satisfação e reforço de recursos pode entretanto faltar ou mesmo ser mais estres sante que o contato com os pacientes Os problemas de relacionamento no trabalho contribuem para o burnout de duas formas Rodri gues 1982 1 Tornamse uma nova fonte de desgas te e posterior exaustão emocional e de sentimentos negativos em relação às pessoas 2 Retiram a possi Psicossomaticaindd 142 Psicossomaticaindd 142 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 143 bilidade de utilizar estes relacionamentos suporte social ao stress como recurso de enfrentamento e assim de prevenção do burnout Os médicos tendem a dedicar pequena parcela de seu tempo para a integração da equipe e troca de infor mações sobre os pacientes podendo surgir desencon tros nas comunicações com os mesmos prejudicando a relação e a confiança do paciente Rodrigues 1982 Alguns profissionais trabalham isolados e distan tes do contato com colegas Esta característica bastan te observada em médicos cuja atividade é centrada na clínica privada é um fator adicional de burnout Como demonstra Deckard e colaboradores 1994 pequeno suporte da equipe e dos colegas tem forte rela ção com baixa satisfação no trabalho e com altos índices de exaustão emocional Isso também foi confirmado por Ramirez 1996 ao estudar fontes de burnout em mé dicos de hospitais na Inglaterra DoanWiggins 1995 pesquisou a satisfação e o stress ocupacional em médi cos de unidades de emergência e detectou altos níveis de atritos na equipe dado este correlacionado com in satisfação no trabalho e com os níveis de stress PLANOS POLÍTICA E PROCEDIMENTOS Os serviços institucionais determinam o tipo de conduta a ser tomada as pessoas a serem atendidas e quais serviços são restritos ou não a elas E assim alteraram a estrutura da relação médicopaciente O paciente vinculase cada vez mais à instituição e menos ao médico surgindo daí novos fatores de stress emocional O trabalho institucional interfere ainda no tempo de atendimento em especial quando se exige um número grande de atendimentos Com tempo limitado é difícil o profissional fazer um bom trabalho e ele se defende tornando o relacionamento impessoal frio insuficiente Rodrigues 1998 Rodri gues Campos e Rodrigues 2006 O crescente avanço tecnológico da medicina com o aumento substancial da necessidade de capi tal força os profissionais a depender de instituições fortes economicamente e de empresários capitalis tas para garantir o acesso à tecnologia Tal fato tem sido determinante na perda de poder e controle pelos médicos e no crescente poder das instituições e do capital na área da saúde Em função disso os médi cos mantêm um relacionamento burocratizado e im pessoal Maslach 1982 no qual o paciente vira ob jeto e é despersonalizado coisificado Rodrigues 1998 Rodrigues Campos e Rodrigues 2006 Altos índices de exaustão emocional e de des personalização estão relacionados à insatisfação com o local de trabalho A estrutura organizacional acres centa ou diminui fontes de burnout Deckard Me terko Field 1994 Estudo realizado por Borges e co laboradores 2002 constatou o papel de mediação das organizações no relacionamento entre valores organizacionais e a síndrome de burnout de modo que os polos axiológicos efetivamente relacionados à referida síndrome eou aos seus fatores dependem da configuração geral da cultura organizacional de cada uma e dos conflitos que lhe são inerentes As exigências das corporações financeiras e dos administradores em relação ao trabalho são opostas às dos médicos Em função de necessidades das insti tuições inúmeras atividades burocráticas deverão ser executadas como relatórios atestados guias de con sultas e solicitações de exames bem documentados e justificados A burocracia sem nenhuma prioridade para o profissional cuja prioridade maior é o atendi mento o aborrece Scott et al 1995 e ele a vê como perda de tempo afastandoo das reais obrigações e ele a executa de mávontade insatisfeito e com stress O descontentamento da sociedade com os siste mas de saúde é notório Tal fato é observado nos USA e Inglaterra Thompson 1990 e no Brasil a situação não é diferente Cerca de 50 milhões de pessoas têm algum acesso ao sistema público de saúde outros aproxi madamente 40 milhões têm direito parcial ou integral à assistência vinculada à iniciativa privada Restam 70 milhões de habitantes que não têm acesso de maneira regular ao sistema de saúde Ferraz 1997 Em geral a sociedade desconhece estes dados e os médicos historicamente os símbolos dos cuidados com a saúde por estarem na linha de frente no contato com os pacientes e familiares acabam responsabilizados pelas dificuldades nos atendimentos Além disso raramente os médicos ilustram os pacientes a respeito de suas re ais possibilidades reforçando assim os desencontros e desgastes da relação Rodrigues 1998 Sobrecarga de trabalho A sobrecarga de trabalho é queixa constante dos médicos não apenas pelo desgaste mas também pela influência negativa na qualidade do atendimento e na interferência em suas vidas particulares Timothy Johnson 1990 Mason 1986 Johnson et al 1995 Lattimer et al 1996 Oates e Oates 1995 Deckard e colaboradores 1994 afirmam haver forte associação entre exaustão emocional e sobrecarga de trabalho quer de cunho administrativo ou de atividade clínica além da baixa satisfação profissional e de altos índices de exaustão emocional e despersonalização Ramirez 1985 encontrou relação entre sobrecarga de traba lho e transtornos psiquiátricos em médicos oncologis tas da unidade especializada do Guys Hospital em Londres O excesso de trabalho mais os plantões de 24 Psicossomaticaindd 143 Psicossomaticaindd 143 05012010 121207 05012010 121207 144 Mello Filho Burd e cols horas e em turnos são citados por Losek 1984 como causadores de fadiga crônica distúrbios de sono au mento da taxas de depressão e de acidentes no trajeto ao local de trabalho além de colaborar no surgimento de doenças cardiovasculares e gastrointestinais Tipo e local de trabalhoespecialidade Ao estudar manifestações de burnout em clínicos gerais pediatras e ginecologistas e obstetras GOs Deckard e colaboradores 1994 encontraram maio res índices de exaustão emocional nos clínicos gerais seguidos pelos de pediatras e dos GOs Na desperso nalização os GOs e Clínicos gerais apresentavam os escores mais altos Ramirez e colaboradores 1996 pesquisando o burnout em médicos de hospitais gas troenterologistas cirurgiões radiologistas e oncolo gistas percebeu nos radiologistas o maior nível de comprometimento na realização profissional Molas siotis e colaboradores 1995 observando uma uni dade de transplante renal detectou manifestações de ansiedade em mais de 10 da equipe e de depressão em 38 dos médicos além de altos índices de exaus tão emocional despersonalização e baixa realização profissional Estes achados foram correlacionados ao tipo de trabalho realizado como excessiva responsa bilidade ter de lidar com pacientes de má evolução e os rápidos avanços da tecnologia Trabalhar em unida des de emergência significa sem dúvida submeterse a intensas fontes de stress e burnout Revicki 1996 a pressão do tempo a intervenção precisa a pou ca margem para dúvidas e erros a ameaça constante de morte e as ocorrências imprevisíveis são aspectos da atividade médica exacerbados neste trabalho Pes quisa de DoanWiggins 1995 encontrou os seguintes dados dentre os médicos da unidade de emergência da Loyola University of Chicago 252 apresentavam manifestações de burnout e 231 planejavam aban donar esta especialidade Keller e Koening 1989 em estudo feito em Los Angeles com médicos de serviços de emergência tanto em hospitais públicos quanto privados e universitários encontraram significativos índices de burnout 60 destes médicos apresentavam altos escores de exaustão emocional 78 entre mé dio e alto de despersonalização e 84 entre médio e alto de comprometimento da realização profissional A possibilidade de receber chamadas de emergência é outro aspecto destacado pelos médicos como fonte potencial de stress Johnson et al 1995 Kirwan e Armstrong 1995 Atividade com pacientes reconhe cidamente graves como em oncologia ou infectologia em situações de pacientes com AIDS é fonte de stress e burnout Inúmeros outros trabalhos confirmam es tas influências Barni e colaboradores 1996 em es tudo realizado na Itália Ramirez 1995 Gardner e Hall 1987 e Colón 1986 Arnetz e colaboradores 1988 e no Brasil Glasberg e colaboradores 2007 Reconhecimento Há alguns anos os pacientes admiravam e res peitavam o médico e aceitavam aquilo que ele falava sem questionamentos O pagamento poderia ser feito com um saco de batatas ou uma galinha mas a hon ra e o prestígio compensavam muito mais Rodri gues 1998 Tähka 1988 Os médicos geralmente são pessoas para quem o sucesso é importante Mengel 1989 Quando a posição do médico é socialmente considerada e ele é reconhecido por sua atividade a satisfação em relação à profissão a autoestima e a motivação para manter a atividade são importantes na proteção ao burnout Ro drigues 1998 Rodrigues Campos e Rodrigues 2006 O mito de Asclépio filho de Apolo e da ninfa Coronis ilustra a fantasia inconsciente do ser humano em relação ao exercício da medicina Hoirisch 1976 Asclépio em seu progresso na arte de curar chegava a ressuscitar os mortos Zeus temendo que a ordem do mundo ficasse transtornada o matou Brandão 1966 Partindo do mito de Asclépio superpomos as aspirações inconscientes do médico à identidade do herói Médicos e sociedade esperam do profissional o papel heróico de defender o ser humano da ameaça da morte E como tal deverá ser altruísta e protetor Isso lhes confere uma posição especial na sociedade a qual vai ao encontro das necessidades dos médicos de prestígio e reconhecimento social Tal situação hoje achase comprometida A maioria dos pacientes espera dos médicos além da competência e da cortesia demonstrações de interes se por seus problemas sem pressa e fornecendo o maior número possível de informações a respeito de suas doenças Tähka 1988 citando pesquisa de opi nião pública realizada pela Associação Médica Fin landesa em 1973 assinala o paciente de hoje não mais se vê no papel tradicional de submeterse sem queixas e sem perguntas a quaisquer medidas que o médico supostamente infalível ache melhores Ele espera que sua individualidade seja respeitada achase muito melhor informado sobre assuntos mé dicos que gerações anteriores Como já assinalamos os médicos raramente re cebem um retorno realista ao exercício de sua função profissional comprometendo sua autoestima e neces sidades de reconhecimento Os médicos dão grande importância a este reconhecimento social e esta ne cessidade quando satisfeita funciona como importan te mecanismo na proteção ao burnout Ramirez et al Psicossomaticaindd 144 Psicossomaticaindd 144 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 145 1995 Inúmeros estudos sobre burnout evidenciam a forte relação entre a intensidade da síndrome e a falta do reconhecimento social ao trabalho médico entre eles podemos citar Whippen e Canellos 1991 Deckard e colaboradores 1994 Diaz Gonzáles e Rodrigo 1994 Makin e colaboradores 1988 Fieds e colaboradores 1995 Johnson e colaboradores 1995 Ramirez e co laboradores 1995 1996 Rodrigues 1998 Durante muito tempo estudantes de medicina e médicos acreditaram que o stress e o desgaste da profissão seriam compensados pelo ganho financeiro e status social Isso hoje não é uma certeza e nem uma realidade3 Rodrigues 1998 Rodrigues Cam pos e Rodrigues 2006 UMA PESQUISA SOBRE BURNOUT EM MÉDICOS NA CIDADE DE SÃO PAULO A EXPERIÊNCIA EMOCIONAL DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA COMO FONTE DE BURNOUT Os procedimentos visão geral Face aos objetivos propostos adotamos métodos qualitativos de investigação e interpretação dos dados colhidos em campo notadamente na análise dos de poimentos A população a ser estudada era composta de médicos em pleno exercício profissional ou seja indivíduos possivelmente saudáveis o objetivo do es tudo foi o stress e burnout provocados pela prática profissional através da investigação dos significados da mesma e de suas consequências sobre o médico profissional Foram eleitos os seguintes procedimentos a Questionário dados de identificação e da forma ção profissional e referentes à inserção profissio nal b Depoimento sobre a pergunta O que significa para você a medicina a sua prática profissional e que consequências ela tem sobre a sua vida A amostra Após consentimento da Associação Paulista de Medicina enviamos questionários a 351 médicos es colhidos aleatoriamente no cadastro do Departamen to de Processamento de Dados Por nossa recomen dação os médicos selecionados deveriam ter entre 10 e 15 anos de experiência profissional Recebemos uma listagem dos médicos com seus endereços já em etiquetas Cada um deles recebeu pelo correio um enve lope contendo a Carta assinada com apresentação do pesquisador e informação sucinta dos objetivos da pesquisa sem especificação do termo stress b Orientação de como proceder com os questioná rios anexados e com o depoimento além da ga rantia do sigilo c Um envelope selado e etiquetado com o endere ço do autor para envio das respostas Recebemos 64 questionários ou seja 1823 do total dos enviados Análise dos depoimentos Introdução A utilização de instrumentos qualitativos de análise na área de saúde aqui no Brasil é exempli ficada pelos trabalhos de Mary Jane Spink 1994 na análise da construção do conhecimento sobre a saúde de Schraiber 1993 no estudo de narrativas de médicos o de Pitta 1990 aliando instrumentos da epidemiologia em sua pesquisa sobre profissionais da área de saúde a tese de Nogueira Martins 1994 sobre stress em médicos residentes e cuja busca de entendimento inclui a apreensão dos significados das suas vivências e de sua ação e o de Turato 1999 na Pesquisa ClínicoQualitativa Metodologia utilizada na análise dos depoimentos Os depoimentos ao estimular reflexões nos pro fissionais forneceram informações as quais além de elaboração intelectual traziam as vivências afetivas sobre o tipo e qualidade das relações com a Medici na enquanto modalidade de conhecimento além das possibilidades de intervenção e das repercussões do exercício profissional nas suas vidas A escolha de depoimentos como técnica de co leta de dados obedeceu a várias determinações al gumas de ordem prática É de fácil aplicação permite ser sucinto e delimitar o tema bem como a coleta do material através do correio Desta forma não se reve la o objeto de estudo o stress resultante do exercício profissional não induzindo os relatos dos sujeitos Por outro lado a abordagem favorece um fluxo asso ciativo de ideias sobre a experiência vivida e as dife rentes formas de percebêla pelos sujeitos O objetivo de delimitar a amostra a médicos en tre 10 a 15 anos de trabalho profissional era o de possibilitar considerações refletindo uma experiência mais amadurecida em relação à profissão ao menos tal era nossa suposição Além disso a escolha aleató Psicossomaticaindd 145 Psicossomaticaindd 145 05012010 121207 05012010 121207 146 Mello Filho Burd e cols ria dos sujeitos forneceu a possibilidade da reflexão efetuarse sobre os depoimentos de médicos falando de suas experiências vividas no dia a dia de suas prá ticas profissionais experiências no dizer de Schrai ber 1995 de médicos comuns concretas uma ela boração de seus quotidianos um ponto de vista sobre o momento presente da prática médica cujo registro nem sempre ocorre Spink1994 O conjunto de depoimentos dos sujeitos recons titui um momento social representado pelos médi cos pelas diferentes formas de prática da Medicina e pelas diversas maneiras de vivêla e interpretála Eles explicitam tanto a diversidade quanto o que há de comum e compartilhado no exercício profissional da Medicina Para estimular os depoimentos foram formula das as seguintes perguntas 1 Que significado tem para você a Medicina 2 Que significado tem para você o exercício profis sional da Medicina 3 Que influência ela tem sobre a sua vida Nosso intuito era o de extrair dos depoimentos a existência do stress se o mesmo é vivido ou não como sofrimento se poderia resultar em burnout em decorrência dos impactos acima citados do signifi cado que atribuíam à Medicina e sua prática profis sional e como tais significados mediavam o processo de stress Antes de qualquer estudo comparativo procede mos a uma leitura de cada depoimento isoladamente com o intuito de captar a relação que o indivíduo tem com seu exercício profissional O discurso contido nos depoimentos enuncia uma reflexão sobre a experiên cia e informa através de seu conteúdo não só por meio de esclarecimentos cognitivos mas também do investimento afetivo em relação à profissão Utilizamos elementos da técnica usada na aná lise de conteúdo de entrevistas detalhada por Spink 1994 Com base nesta abordagem os depoimentos foram divididos em três grupos Grupo 1 Não há descrição de distress no depoimen to e o relato se caracteriza por uma relação satisfatória como o exercício profissional Grupo 2 No depoimento há o relato de uma rela ção predominantemente satisfatória com a profissão mas também há a presença de distress no exercício profissional Grupo 3 Há relato de distress no depoimento e o conteúdo do discurso é marcado por uma forte tendência a caracterizar uma relação insatisfatória com o exercício profissional com presença de burnout A criação das categorias Procurouse mapear cada discurso através das seguintes perguntas 1 Por que a prática profissional é sentida por este sujeito como satisfatória 2 Por que a prática profissional é sentida por este sujeito como insatisfatória 3 Que fatores de distress estão presentes no depoi mento Evidentemente a primeira pergunta foi direcio nada aos Grupos 1 e 2 a segunda pergunta ao Grupo 3 e a terceira questão aos Grupos 2 e 3 Como os depoimentos do Grupo 3 possuíam uma característi ca de desprazer quanto à relação com a profissão a segunda e a terceira perguntas foram fundidas pois a insatisfação vinculavase fortemente não só à vivên cia de esforço e ao desgaste mas principalmente à experiência emocional do desprazer e até mesmo so frimento Ao lado de cada pergunta colocávamos a resposta do sujeito Por exemplo A Por que a prática profissional é sentida como sa tisfatória Sujeito 27 A medicina significa o meu sustento financeiro e psicológico onde me sin to útil realizando um trabalho signifi cativo para mim e para os pacientes Sujeito 35 Adoro estudar e me aprofundar em assuntos que me interessam B Por que a prática profissional é sentida como insa tisfatória Sujeito 21 A medicina foi e ainda é o ideal maior Todavia muito do sonho de longe já terminou Sujeito 56 Se Hipócrates vivesse no tempo do INSS certamente não teria feito o ju ramento como o fez Com este procedimento obtivemos um número significativo de respostas explicitando as razões da re lação com a profissão ser satisfatória ou insatisfatória e quais fatores de distress eram percebidos e relatados Frente à variedade de respostas ou seja o nú mero de diferentes percepções sobre o trabalhofoi necessário ordenar as formulações de forma condi zente com os objetivos Procuramos agrupar as res postas em categorias que as representassem de uma forma lógica que apreendessem significados comuns presentes nas diversidades dos relatos categorias que explicitassem os significados para os sujeitos do exercício profissional a partir de um conhecimento prático no dizer de Sato 1993 Conhecimento prá Psicossomaticaindd 146 Psicossomaticaindd 146 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 147 tico segundo Pereira de Sá porque constituem ati vidades intelectuais da interação social quotidiana relacionadas com um saber apropriado sobre a práti ca adquirida nesta mesma prática O material coletado segundo Schraiber 1995 revestese de um duplo caráter ao mesmo tempo dado empírico para exploração de dimensões transcenden tes do singular tanto quanto já resultado do estudo Assim construímos as categorias tendo como fonte de inspiração o próprio conteúdo do discurso dos sujei tos nos depoimentos Elas surgiram das respostas dadas às questões Ou seja as categorias que serão apresen tadas e que serão utilizadas como base para a interpre tação qualitativa dos depoimentos embora possam ser consideradas partes deste processo não existiam até a obtenção das diferentes respostas às questões formula das Surgiram como um movimento próprio do proces so científico que é o de tentar ordenar um conjunto de informações que emergiram dos dados de campo para buscar uma apreensão e compreensão do real RESULTADOS E DISCUSSÃO Dados demográficos Dos médicos da amostra 52 cursaram residên cia médica em um total de 21 especialidades Fize ram curso de especialização 31 médicos em um total de 23 especialidades e possuíam título de especialis ta 49 sujeitos Dados de inserção profissional Dos médicos com título de especialista 34 tra balham na especialidade e 29 sujeitos em outras especialidades Quanto ao trabalho com maior gra tificação profissional o destaque entre as escolhas são consultório e instituição de ensino Como local de trabalho de maior possibilidade de progresso pro fissional com maior frequência foram apontados o consultório hospitais particulares e instituições de ensino Em termos de carga horária de trabalho se manal 21 sujeitos trabalham 40 horas ou menos 15 trabalham entre 41 e 50 horas 17 trabalham entre 51 e 70 horas e 10 sujeitos trabalham mais de 70 horas Possuem consultório 48 dos sujeitos da amostra 23 destes sujeitos atendiam entre 0 e 30 de pacientes particulares 8 sujeitos entre 40 e 90 de pacientes particulares e 17 sujeitos 100 de pacientes particu lares A frequência de pacientes conveniados corres ponde para 22 sujeitos entre 0 e 30 do movimento de seus consultórios para 15 médicos entre 40 a 90 e para 5 entre 92 a 100 Apresentação do grupo 3 Relato de distress e conteúdo do discurso mar cado por forte tendência de evidenciar uma relação insatisfatória com o exercício profissional com pre sença de burnout Lembramos que o material apresentado a seguir contém o duplo caráter mencionado acima Segundo os dados colhidos e tomando como comparação o Grupo 1 da amostra os sujeitos do Grupo 3 tendem a ser mais jovens um menor nú mero deles fez residência médica ou curso de espe cialização ou exercem a prática médica na respectiva especialidade em sua maioria a prática médica não é realizada nos locais de maior gratificação profissio nal e financeira possui em menor número o título de especialista e trabalham um maior número de horas Nos Grupos 1 e 2 não há relato de dificulda des quanto ao reconhecimento do trabalho falta de recursos ou de condições e nem de trabalhar com populações carentes Categorias referentes ao burnout Definimos as seguintes categorias a Pressão no trabalho pelo êxito ao lidar com a possibilidade da morte e ameaça à integridade do paciente Estes aspectos inerentes ao trabalho médico são carregados de dor e sofrimento Sujeito 07 quando algo não vai bem é es tressante cansativa urgente difícil e você fica sozinho Medicina nunca trata com assuntos felizes só com doenças dores problemas Sujeito 21 o stress é uma constante visto a gravidade dos casos que normalmen te atendo b Sobrecarga de trabalho e o fato da profissão exigir um tempo diário de dedicação inclusive o tempo consagrado ao estudo considerado excessivo Sujeito 15 Trabalho demais estudo demais participo de reuniões de especiali dade cursos congressos sem pers pectiva de melhora profissional e em termos de qualidade de vida Sujeito 54 Como consequência tenho menos tempo para a minha família e traba lho mais para poder viver um pouco melhor financeiramente c Interferência da atividade profissional na vida pessoal eou familiar em função do descrito aci ma Alguns relatos entretanto mencionam a in terferência nociva sobre sua vida pessoal não só Psicossomaticaindd 147 Psicossomaticaindd 147 05012010 121207 05012010 121207 148 Mello Filho Burd e cols decorrente da sobrecarga de trabalho mas tam bém pelo grau de frustração e malestar que a prática profissional impõe Sujeito 21 trabalhar com uma população pobre socioculturalmente o stress é uma constante visto a gravidade dos casos que normalmente atendo e a grande falta de recursos que dispo nho no final do dia a tensão é grande assim como o questionamen to pelo quão útil estou sendo tendo perdido um casamento pela dedicação tão intensa à profissão Sujeito 37 A medicina significa tudo embora não me traga retorno econômico e pessoal acredito que não tenha muito o que crescer é uma car reira desvalorizadíssima grifo é do próprio sujeito em termos de hono rários fazem o que entendem com os médicos convênios governo me dicina de grupo etc Carreira onde não há praticamente lugar para elo gios só para críticas Embora linda não encontro adjetivos para designar a lama em que lamentavelmente a medicina se encontra d Tem que suportar o sentimento de impotência os limites da intervenção do conhecimento Sujeito 21 O stress é uma constante visto a gra vidade dos casos que normalmente atendo Sujeito 49 A medicina significa a ciência e a profissão que escolhi para exercer precocemente e sem maiores escla recimentos quantos as dificuldades e limitações que encontraria Dentro da especialidade que escolhi oncologia clínica tenho alguns momentos de satisfação e muitos de insatisfação não só com os resultados obtidos com as abordagens terapêuticas atuais e Questões relativas à organização do trabalho ao relacionamento com os colegas à falta de re cursos ou de condições para realizar o trabalho E ter de lidar com populações carentes dificul dades na inserção no mercado de trabalho e as interferências institucionais no trabalho médico Sujeito 07 para os colegas um médico secun dário que faz o paciente ficar quieto quando eles operam O reconheci mento não existe nem do paciente nem dos colegas Sujeito 15 Tudo é muito difícil desde a com pra de equipamentos que geralmen te para o médico é mais caro até a própria prática profissional que se encontra monopolizada O indivíduo formase submetese a estágio ou residência presta concurso para es pecialista monta consultório e per cebe que não tem chance nenhuma no mercado Então sai a procura de convênios voltando frustrado para casa pois não é amigo ou não foi indicado por ninguém para entrar no convênio procurado As empresas seguradoras e de medicina de grupo monopolizaram o mercado Tirou o paciente particular do consultório e o direcionou para alguns profissio nais credenciados pelas mesmas Sujeito 21 Hoje por trabalhar em hospital público municipal carente em um bairro pobre com uma população pobre socioculturalmente o stress é uma constante visto a gravidade dos casos que normalmente atendo e a grande falta de recursos que dis ponho Quando não é a frustração quanto ao que se pode receitar o paciente vai à farmácia e optar com prar um ou dois medicamentos e não o total prescrito Exames subsidiários e internações são proibitivos na gran de maioria das vezes o que por cer to no final do dia a tensão é grande assim como o questionamento pelo quão útil estou sendo Sujeito 24 A prática profissional é bastante difí cil concorrida sem grandes estímu los e muitos colegas querendo que você caia f As transformações que a profissão sofreu no imaginário dos sujeitos a frustração das expecta tivas não concretizadas e as dificuldades no reco nhecimento do trabalho Sujeito 07 Medicina significava para mim quando comecei a estudar ajudar os outros ter muito conhecimento e cultura participar de uma classe so cial e financeira superior superar um desafio O reconhecimento não existe nem do paciente e nem dos co legas Sujeito 15 A medicina foi o maior investimento de tempo de vida que eu fiz Acredi tei na profissão porém a mesma não me trouxe o retorno profissional e fi nanceiro desejado Psicossomaticaindd 148 Psicossomaticaindd 148 05012010 121207 05012010 121207 Psicossomática hoje 149 Sujeito 54 A medicina seria para mim a realiza ção de um grande sonho de criança onde pudesse exercer uma profis são ajudando as pessoas e sentindo recompensado também financeira mente Na prática o que vemos é uma total falência do sistema de saúde e uma enorme crise moral nas pessoas que a dirigem CONSIDERAÇÕES FINAIS O material coletado revestese do duplo caráter apontado por Schraiber 1996 O fato de na análise dos depoimentos as res postas terem sido agrupadas em categorias apreen dendo significados comuns presentes na diversidade dos relatos permitiu atingirse uma realidade que é coletiva e compartilhada pelos elementos do grupo que compõem a amostra Surgiu daí a revelação de um conjunto de características transindividuais re forçando assim a apreensão do coletivo ao qual per tence o depoimento Os médicos do Grupo 3 no qual apareceram os maiores níveis de burnout vivem de maneira mais radical as dificuldades impostas à realização profis sional em função a das novas formas de organização do sistema de saúde no sistema privado caracterizado pelo qua se domínio das instituições para as quais a saúde é um mercado a ser conquistado b da precariedade das condições do exercício pro fissional notadamente nos serviços públicos de saúde e de medicina de grupo Assim a presença destes aspectos parece tornar os médicos mais expostos aos fatores de stress ineren tes à profissão com maiores interferências penosas em suas vidas pessoais e familiares Outro aspecto entretanto precisa ser destacado estes profissionais vivem situações quotidianas de insa tisfação desprazer e sofrimento em suas vidas profis sionais marcadas pela presença de um sentimento de desesperança na qual a relação com o trabalho é vivida como violência pois como diz Pereira de Sá 1993 ela é uma experiência emocional que vai além e se di ferencia tanto em intensidade como em qualidade dos sentimentos de frustração eou desprazer Para melhor compreender este aspecto recor remos à noção de violência desenvolvida por Freire Costa 1986 para quem ela é um acontecimento de rivado da ruptura de um contrato até então implícito na ordem social contrato este expressando ideias an teriormente compartilhadas e presentes de forma evi dente quando da escolha e da formação profissional as pessoas que sofreram a ação tinham tais ideias como suas e as mesmas faziam parte de suas identida des integrando portanto suas visões de mundo e de si mesmas Além disso este rompimento de contrato foi arbitrário pelo uso da força ainda que os agentes da violência não possam ser personificados em um su jeito e só possam ser nominados de Estado ou Grupos mercantis Esta ruptura do contrato social fez com que vários aspectos da relação destes médicos com o exercício profissional fossem vividos como a experiência emocional de uma violência o que pode ser observado em diversos relatos como os dos sujeitos 7152154 As oportunidades para uma grande maioria de médicos de alcançar as aspirações que a cultura legi timava são esvaziadas no decorrer de seus desenvol vimentos profissionais Mas não são e não podem ser facilmente abandonadas O investimento na profis são e na formação tanto em nível afetivo como em termos de tempo e financeiro foi muito grande tal vez por causa disso a adesão dos médicos à profissão costuma ser um dos maiores em comparação com outras profissões conforme foi destacado por Macha do 1997 Além disso a partir de um certo teto de socialização urbana de concorrência por status a aspiração é irreversível Maslach 1982 Alguns sujeitos da amostra procuram levar adiante a profissão defendendose deste ataque ao self nutrindo expectativas de futuras mudanças Em outros isso já não ocorre E como assinala mos anteriormente a relação com a profissão é mar cada pelo desprazer e sofrimento em uma situação vista como sem saída sem alternativas e tendem a responder através de mecanismos psicológicos seme lhantes a economia da dor Vamos desenvolver este raciocínio porque nos permite entender como a representação mental da violência está atuando na determinação do compor tamento destas pessoas na medida em que partes importantes do self integrantes do tipo psicológico coerente com a identidade construída na interrela ção com o padrão social do grupo estão francamente ameaçadas de destruição A experiência da satisfação é o principal fator de crescimento e desenvolvimento psicológico Assim quando a pessoa busca na realidade situações de pra zer além dos aspectos ligados à satisfação realiza um movimento que favorece o seu desenvolvimento pes soal e a auxilia a lidar com as outras situações gera doras de decepção e desprazer A polarização prazer desprazer faz o pensamento transitar na esfera das representações e afetos que concernem o prazer de pensar e a possibilidade de viver de novo o prazer Ou seja de que algo poderá vir a ser incorporado pelo Psicossomaticaindd 149 Psicossomaticaindd 149 05012010 121207 05012010 121207 150 Mello Filho Burd e cols seu self Na experiência da dor ocorre algo diferente ela está associada à morte e a destruição e o psiquis mo para defenderse aciona defesas com o objetivo de controlar fazer desaparecer a experiência doloro sa Há um refluxo narcísico em direção ao Ego com o desenvolvimento de comportamentos estereotipados mecânicos rígidos deslibinizado em suas ações que representam uma tentativa de neutralização afetiva mais ou menos duradoura da experiência São formas de lidar com a violência da qual o sujeito sentese vítima Violência que adveio da infra ção de um contrato que estava implícito na ordem so cial e que legitimava as aspirações que sustentavam a própria escolha da profissão Quebra de contrato realizada de forma arbitrária imposta geradora de sofrimento vivida como sem alternativa e que amea ça a sua identidade A partir da década de 1980 delineiamse no Bra sil as transformações do sistema de saúde com duas modalidades alternativas de organização a estatal representada hoje pelo SUS e pelos serviços de saúde dos municípios e dos estados e a outra de caracte rística privada cujo ponto central são as empresas Desta forma a prática médica autônoma e individual tida como modelo de exercício da profissão passou gradativamente a perder espaço Machado 1997 Segundo Donnangelo 1975 tais transforma ções só podem ser adequadamente interpretadas a partir de processos desenvolvidos concretamente no interior destas sociedades e que transcendem o âmbi to da prática médica e estão relacionadas às transfor mações de uma sociedade fundamentalmente urbana e industrial Estes aspectos determinaram outras transforma ções na prática médica A incorporação da tecnologia fezse de forma crescente e acelerada tornandose praticamente padrão de competência e eficiência Isso levou os médicos a práticas semiológicas e terapêuti cas fundamentadas quase exclusivamente na tecnolo gia A pesquisa Os médicos no Brasil um retrato da realidade Machado 1997 confirma esta asserção os recémformados fazem escolhas mais racionais e menos vocacionais amparados na ideia de fazer medicina mais tecnológica com menos envolvimento pessoal e que lhes dê maiores rendimentos De acordo com os participantes deste estudo a prática médica tal como está sendo mediada pela buro cracia estatal ou pelas empresas privadas a decorrente queda da remuneração aliadas às demandas de alta produtividade o excesso de trabalho o predomínio da tecnologia sobre o saber clínico provocam graves com prometimentos na relação dos médicos com o exercício da profissão Tudo isso acarreta a experiência emocional da violência e o desenvolvimento do burnout REFERÊNCIAS Arnetz BB et alli Comparasison between surgeons and general practitioners with respect to cardiovascular and psychosocial risk factors among physicians Scand J Work Environ Health 14118 124 1988 Arnetz BB PhysiciansView of their Work Environment and Orga nisation Psychother Psychosom 199766155162 Arnetz BB PhysiciansView of their Work Environment and Orga nisation Psychother Psychosom 199766155162 Arnold RM Povar GJ Howell JD The humanities humanistic behavior and the human physician a cautionary note Ann In tern Med1063133181987 Arnold RM Povar GJ Howell JD The humanities humanistic behavior and the human physician a cautionary note Ann In tern Med1063133181987 Bakan D Enfermedad Dolor Sacrificio hacia una psicologia del sufrimiento Fondo de Cultura Económica México1979 Barni S Mondin R Nazzani R Archilli C Oncostress evalua tion of burnout in Lombardy Tumori 821 8592 1996 Borges LO Argolo JCT Pereira ALS et al A síndrome de bur nout e os valores organizacionais 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somáticos representam articulações diversas do cor po com a psique articulações essas que se expressam caracteristicamente rio corpo A histeria nos remete à neurose a hipocondria ao delírio e à psicose e os fenômenos psicossomáticos a uma malestabelecida e intrigantemente pesquisada relação corpomente na qual o corpo vêse atingindo concretamente em sua intimidade tecidual e humoral não raras vezes levando a internações cirurgias e à própria morte Também as manifestações psicossomáticas são fre quentemente consideradas como o limite analisável deixandonos analistas diante da paradoxal sensa ção de impotência e desafio na busca de expansão de nossos limites terapêuticos em confronto com os limites do investimento narcísico de nossa qualidade e capacidade analítica Tomo a histeria e a hipocon dria neste texto como referenciais para uma tentativa de aproximação psicanalítica aos fenômenos psicos somáticos esta sim a razão principal do trabalho HISTERIA E HIPOCONDRIA A histeria conta uma história Há uma escrita a ser decifrada por um leitor que privilegiado pela atenção flutuante surpreende o retomo do recalcado As manifestações corporais na histeria são consequên cias singulares do processo de recalcamento Assim uma representação que não pode ser consciente por sua característica afetiva intolerável parte de uma si tuação conflitiva tornase inconsciente porém esta belecendo um vínculo associativo com a consciência através do sintoma histérico O sintoma histérico arti cula a representação recalcada à sua própria demons tração deformada o que paradoxalmente esconde e insinua a situação conflitiva Este arranjo dáse por uma via simbólica em oposição à via anatômica O corpo narra fala e simultaneamente descarrega O fenômeno da conversão histérica é uma solução sim bólica e econômica para a questão conflitiva A repre sentação é recalcada retorna através do sintoma e o afeto correspondente à representação é convertido na qualidade física da manifestação corporal Tomo emprestado um exemplo citado por Goldin e Piedi monte em seu livro La Histeria 1976 Uma moça Ana é trazida pela mãe à consulta psicanalítica Ana chega pedindo que não se toque nela pois lhe dói muito todo o corpo Está toda contorcida torta e mal consegue an dar Ao falar adverte que vem de uma família muito direita que não se pense que está louca ou que pade ce de algo incomum Está assim há dois meses No de correr da consulta Goldin associa estar ela torta com vir de uma família muito direita e questiona se há dois meses não teria acontecido algo relacionado ao tocar perder a rectitude termo usado no original em oposição à torcido e algo doloroso Daí surge a lembrança de uma cena na qual estava voltando com o noivo de uma festa quando pararam o carro e tiveram vários jogos sexuais sem no entanto terem re lações sexuais isso há cerca de dois meses Interrom po aqui o exemplo Já nos basta O sintoma histérico corpo torcido e dor em todo o corpo expressa si multaneamente uma relação entre a família direita e a sexualidade como algo torto O corpo torto dra matiza como num jogo de mímica à procura de um decifrador simultaneamente a situação não direita e a posição torta que Ana ocupava na ocasião da cena do carro Também lhe era esta situação muito dolo rosa como talvez algo doloroso tivesse lhe acontecido no carro O recalcamento incide na representação da cena e em sua articulação com os significantes torto direito retorna através do sintoma Mais ainda re torna através do sintoma dor de transgredir algo que é direito a família o que nos leva ao especial lugar ocupado por esse namorado que o torna parcialmen te proibido E assim vamos tecendo esta trama como o fez Goldin na consulta e em seu livro E nada disso é novidade apenas um reforço da posição que ocupa o corpo na histeria Corpo simbólico corpo história corpo mímica pedindo e evitando ao mesmo tempo 12 HISTERIA HIPOCONDRIA E FENÔMENO PSICOSSOMÁTICO Otelo Corrêa dos Santos Filho Psicossomaticaindd 153 Psicossomaticaindd 153 05012010 121208 05012010 121208 154 Mello Filho Burd e cols ser desvendado Não há lesão orgânica a não ser eventualmente secundária A via é a da escrita não a da anatomia A anatomia do corpo simbólico é uma anatomia muito singular relacionada à história da sexualidade e à vida do sujeito a quem pertence este corpo em particular Outro ponto importante diz respeito à relação com a realidade O vínculo com a realidade é mantido e há implícita neste jogo de esconder e demonstrar uma possibilidade de subjetivação do sujeito histéri co A própria característica principal do recalcamen to a via simbólica contém um outro à espera de ser subjetivado no decorrer de um processo psicanalíti co por exemplo A hipocondria nos leva a outras considerações Considerações sobre o corpo delirante o corpo inimi go do sujeito o corpo como um outro alheio estra nho pertencente a um sistema que ultrapassa a rea lidade e impõese como uma alucinação com delírio Não me refiro às ideias hipocondríacas ou às suspei tas de mau funcionamento corporal tão comum em todos principalmente em estados depressivos Falo da hipocondria como estrutura em que não há um estabelecimento de laços simbólicos com o corpo os quais tentam se estabelecer através do delírio hipo condríaco Aqui não se trata do recalcamento de represen tações relacionadas ao corpo Há uma rotura radi cal das relações com o mundo objetal incluindo o próprio corpo como realidade e uma tentativa de restauração desses vínculos através do delírio Na hipocondria o corpo não se articula simbolicamen te a uma história ou a um discurso mas justamente por ser radicalmente excluído dessa possibilidade de articulação retorna como delírio imposto pelo real O hipocondríaco chega à análise mais raramente É paciente dos clínicos e cirurgiões os quais procura na busca de curar o seu câncer ou tratar as bactérias que o estão invadindo ou operar aquele tumor cerebral que com angustiada certeza vai leválo à morte Há uma perda do juízo de realidade de tal ordem que frequentemente convence os médicos levandoos a exames complementares desnecessários na busca ou do convencimento do paciente de que ele não padece de nenhuma doença orgânica o que dá um ligeiro e breve alívio da angústia ou para convencer ao mé dico já partner do delírio de que realmente se trata de um sujeito hipocondríaco Tomo um exemplo para ilustração Marta 25 anos vem à análise em estado de absoluto desespero Analisase quase ininterrup tamente desde os 8 anos Acaba de chegar de uma consulta com o clínico Está em pânico porque teve uma evacuação com fezes um pouco moles e vai ter o seu corpo todo invadido por vermes que vão cul minar em sua morte Pela manhã mais cedo pisou numa poça de água suja e lavouse com álcool pois estava contaminada por bactérias que poderiam des truíla Ontem esteve num ortopedista porque acha que pisou de mau jeito e teme precisar ser operada no pé Frequenta uma média de um a dois médicos por dia Logo que uma lesão ou doença é descartada outro aparelho órgão ou sistema corporal se impõe como nova vítima de um inimigo implacável Há uma mínima relação com a realidade Não sabe bem por que está na análise mas algo a leva a vir talvez para obter um pouco de alívio de sua enorme angústia Na hipocondria o corpo sofre uma dupla clivagem Numa não faz parte do sujeito mas ou o domina ou é por ele dominado Noutra dividese em um cor po em estado de desamparo importante submetido às torturas de um órgão inimigo ou de inimigos ex ternos bactérias vírus câncer que vão destruílo A ameaça é de aniquilamento de esfacelamento não de um representação mas da própria capacidade de representar de construir vínculos associativos Esta mos no terreno do repúdio da recusa e não do re calcamento O médico e o analista são desesperada mente convidados a serem aliados desse corpo frágil clivado para protegêlo do inimigo implacável Não são convidados a participar de um deciframento ou de uma possível subjetivação O que se mostra é a própria incapacidade de subjetivação de construção desse outro escondido recalcado Se pudéssemos pensar diacronicamente estaría mos numa etapa présimbólica em que se demanda ria a possibilidade de construir uma capacidade de articulação discursiva que contivesse o corpo e seus vínculos de constmir um remendo nessa brecha aber ta na constituição do sujeito OS FENÔMENOS PSICOSSOMÁTICOS UMA TENTATIVA DE APROXIMAÇÃO PSICANALÍTICA A histeria e a hipocondria se delimitam respec tivamente ao campo da neurose e da psicose e per tencem a uma área conceitual teoricamente definida pela Psicanálise desde Freud E os fenômenos psicossomáticos Em busca de resposta para tão intrigante ques tão da teoria e prática psicanalítica vejome traçando um caminho e chegando a algumas hipóteses Esse caminho começa com os clássicos trabalhos e pes quisas na chamada Medicina Psicossomática Tomo como exemplo as ideias de Franz Alexander de Chi cago Alexander estudou sete doenças mais tarde universalmente chamadas psicossomáticas em bus ca de correlacionadas a específicas constelações de personalidade as quais diante de certos momentos Psicossomaticaindd 154 Psicossomaticaindd 154 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 155 vitais e aliadas a fatores de natureza constitucional deflagrariam a crise psicossomática Essa corrente se assim posso chamar desemboca numa busca de especificidade psicológica para cada doença psicos somática e submetida a critérios estatísticos aponta mais para uma tendência do que para a configura ção clara e estrutural desta especificidade Ficamos sem uma resposta satisfatória evidenciável à obser vação entre determinadas manifestações corporais nem histéricas nem hipocondríacas e determinados eventos de natureza psicológica Outras pesquisas da década de 1950 simultâneas ao trabalho do grupo de Chicago também buscavam correlacionar alteracões do funcionamento fisiológico corporal com determi nados momentos existenciais como as crises vitais Cito para exemplificar o trabalho de Mirsky e cola boradores 1950 pesquisando o desenvolvimento de úlceras pépticas em recrutas um interessante mo delo duplocego de pesquisa psicossomática Nessa pesquisa por um lado foram realizadas entrevistas psicanalíticas e testes projetivos e por outro dosada determinada enzima sanguínea cuja elevação diz de uma predisposição a doença ulcerosa Ambos busca vam prever que adolescentes desenvolveriam a doen ça quando se tornassem soldados A pesquisa teve um percentual de acerto correlacionado de cerca de 70 Incluo estes trabalhos por fazerem parte de meu acer camento da questão psicossomática o que vejo como importante historicamente para construção de um hi potético sistema de ideias sobre esta questão Sifneos e Nehemiah 1983 na década de 1970 descrevem o conceito alextimia como uma impossibi lidade de nomeação dos próprios sentimentos como uma falha no reconhecimento dos estados afetivos do próprio sujeito e o condiciona a um achado clínico nos pacientes psicossomáticos agora já assim cha madas as pessoas que padecendo de determinados transtornos somáticos não histéricos evidenciam uma demonstrável relação entre esses transtornos e determinados acontecimentos e situações vitais que por seu caráter repetitivo conferem uma característi ca singular aos fenômenos é às pessoas Situação típica seria dada por uma imaginária pessoa que sempre se vê diante de um desafio exis tencial que ameace sua situação de equilíbrio anterior desenvolve uma crise ulcerosa Nesta pessoa como achado clínico descobrese uma enorme dificulda de para falar sobre e para identificar seus próprios sentimentos Esta a descrição de alextimia Outros estudos da mesma época como os de Engel e Medei ros correlacionam a doença somática à situação de perda separação e a estados depressivos Na França a chamada Escola Psicossomática de Paris hoje insti tuto de Psicossomática através de P Marty M de Mú zan e C David introduz o conceito de pensamento operatório encontrado nos pacientes somatizantes Marty 1988 Cito a descrição Os pacientes portadores de doenças somáticas têm uma atividade fantasmática muito reduzida Em particular eles sonham pouco e seus sonhos são realistas eles repetem o que fizeram durante o dia o que se passa na realidade Há muito pouca elaboração psíquica como se o préconsciente funcionasse de modo insuficiente Por consequência eles não têm grande coisa para contar ao analista Eles falam do seu tratamento dão as novidades e é o silêncio Se acontece um lapso ele não é seguido de associações não há afeto nem representações in vestidas fantasmaticamente nem via imaginária Se lhe sobrevém um acidente da existência uma perda qualquer luto licença reage com uma doença somá tica mais ou menos grave Sobressai à primeira vista uma coincidência Um certo número de autores na minha amostra corre lacionam a eclosão psicossomática a acontecimentos reais em geral ou diretamente uma perda como a morte de um ente querido desemprego separação migração ou indiretamente como no caso das crises vitais a adolescência ou o vestibular ou o casamen to por exemplo Também sobressai a descrição de uma peculiar relação com a vida de fantasia e com os estados afetivos Vejome aqui tentado e acho que muitos também se sentirão atraídos a buscar estabe lecer um diagnóstico estrutural do paciente psicosso mático como outra categoria junto aos neuróticos psicóticos e perversos Mas a prática como elemento teste da realidade impede minha tentação de êxito Vemos manifestações psicossomáticas desen volveremse em histéricos obsessivos e psicóticos na clínica diária como vemos sintomas psicossomáticos serem incorporados a cadeias associativas significan tes nos neuróticos ou articularemse a um delírio em psicóticos embora também observamos a existência dos pacientes classicamente somatizantes de P Marty Duas possibilidades ou estamos observando e diag nosticando equivocadamente ou a resposta à ques tão psicossomática ainda não está suficientemente formulada Tendo a crer que ainda temos um cam po aberto à pesquisa e à reflexão com inequívocas consequências para clínica psicanalítica Trabalho com hipóteses e neste trabalho deixo clara a ausência de um pesquisa extensa sistemática aos autores que atual mente têm elaborado a Psicossomática contan do com o estado de meus conhecimentos atuais Falase do afeto no sujeito psicossomático como ou não reconhecido ou praticamente inexistente De que se fala Relembremos Freud 1915 que em seu tex to sobre o Recalcamento e o Inconsciente propõe para o destino do afeto a sua transformação con Psicossomaticaindd 155 Psicossomaticaindd 155 05012010 121208 05012010 121208 156 Mello Filho Burd e cols versão deslocamento e transformação ou a supres são Unterdrückung onde já não encontramos mais nada dele do afeto suprimido Este termo Unter drückung e o que designa o desaparecimento do afeto foi apontado e pouco desenvolvido por Freud e creio ser um conceito central na questão psicosso mática Assim como na neurose o que importa é o destino dado à representação no fenômeno psicos somático o que importa é o destino dado ao afeto Não quero assemelhar a supressão ao recalcamento e supor um retorno do suprimido através do sintoma somático Tratase de algo singular que diz respeito a uma impossibilidade de acercamento a afetos de per da e creio que o conceito supressão deva referirse a esta impossibilidade Não há como recalcar a repre sentação para evitar o afeto pois não está se lidando com representações e sim com acontecimentos reais nos quais está implícita uma perda ou separação E esta a rotura que é temida Não se trata de uma possi bilidade psicótica nem neurótica de arranjo com uma realidade penosa e sim um destino dado ao afeto im possível de ser vivenciado ou transformado Deixarei propositadamente de fora considera ções etiológicas embora creia possam ser buscadas nas relações do sujeito com seu objeto primordial articulados a aspectos corporais tangenciados por Freud quando se refere à Complacência Somática no Caso Dora Temos adiante duas outras questões A primeira diz respeito ao fato de que fenômenos psi cossomáticos são também desencadeados por deter minadas representações e não só por acontecimentos vitais o que aparentemente contradiz o que foi dito até aqui A segunda que as manifestações somáticas atingem os neuróticos psicóticos e perversos portan to convivem com o recalcamento o repúdio e a recu sa Equacionamos a primeira As representações que desencadeiam os fenô menos somáticos não têm uma ligação simbólica com perda ou separação mas uma ligação imaginária ou seja são representações sem a mediação de um discurso Logo adiante vou descrever o caso de Ber nardo em que se evidencia esta relação mas tomo aqui dois pequenos exemplos para ilustrar esta re lação da representação à evocação da perda no fato psicossomático e na histeria Primeiro exemplo um homem começa a sentirse dispneico e tem uma cri se de asma ao ver um casal de namorados brigando Segundo exemplo uma moça tem crise de dispneia e sufocação histérica ao ver o trono de determina do rei em um museu No primeiro exemplo a cena da briga evoca diretamente a questão da separação é a própria imagem da separação daí o desencadea mento da asma No segundo a histérica associando posteriormente viu nas formas femininas dos braços do trono sua relação de submissão com o namorado que era seu rei e a subjugava o que desencadeou a crise de angústia e sufocação O namorado a sufo cava e era preciso fugir desta constatação Vamos à segunda questão que penso só poder ser respondida se pensarmos em termos da clivagem do ego Esta clivagem como descrita por Freud 1938 permite a coexistência no ego de determinadas articulações para a pulsão e suas representações e outros para a possibilidade de perda do objeto Sintetizando teríamos no fenômeno psicosso mático uma situação real de perda ou equivalente ou ainda uma representação imaginariamente presa a uma cena de perda um particular destino dado ao afeto que lhe corresponderia e que é impossível ser vivenciado a supressão e uma clivagem do ego que permitiria a coexistência com outras defesas e estru turas de articulação da pulsão Esta hipótese traz consequências clínicas na me dida em que o que é buscado na análise das manifes tações psicossomáticas ou do sujeito psicossomático não é uma escritura a ser lida nem uma brecha a ser remendada É mais que tudo construção de uma pos sibilidade de vivenciar afetos sem o risco de uma dor impossível a de sua própria destruição como sujeito alienado que está primariamente àquele do qual não pode ser separado BERNARDO E A REPRESENTAÇÃO FOTOGRAFIA Bernardo tem 8 anos e foime derivado por uma pediatra Esteve internado por um mês com diagnóstico endoscópico de úlcera duodenal tendo sido medicado durante sua internação Obtendo alta com remissão sintomática A pediatra notou certas características em sua história pessoal que a fizeram recomendálo ao Serviço de Psicossomática Com a própria pediatra e com os pais de Bernardo colhi a seguinte história Bernardo é o segundo filho tendo uma irmã 2 anos mais velha Seu pai é um pequeno industrial e sua mãe professora Ambos trabalham muito tendo a mãe três empregos portanto estando muito pouco com Bernardo que desde os 3 meses fica com a empregada Bernardo no dia 27 de ou tubro de 1988 amanheceu com fortes dores abdomi nais Levado ao Setor de Emergência foi internado para investigação diagnostica sendo posteriormente transferido para a Pediatria Na conversa com os pais surge uma triste e curiosa história No dia 27 de ou tubro de 1987 ou seja exatamente um ano antes do aparecimento dos sintomas havia acontecido um fato trágico em sua casa A pedido de Bernardo e de sua irmã a empregada havia levado seu filho de 1 ano para que eles o vissem Num determinado momento Psicossomaticaindd 156 Psicossomaticaindd 156 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 157 a criança dormia na cama do quarto de empregada quando uma bicicleta ergométrica despencou de cima de um armário sobre ela ocasionando sua morte Nes te dia Bernardo chorou um pouco mas pareceu ter rapidamente assimilado o ocorrido voltando à sua vida normal sem demonstrar muita emoção Repa raram os pais que apenas uma conduta de Bernardo se incrementou Uma quase compulsiva disposição a brincar e a cuidar de animais abandonados prin cipalmente cachorros Onde Bernardo vai sempre encontra um animal sujo vadio do qual cuida Tive uma entrevista com os pais ficandome a impressão da mãe com uma mulher ansiosa prestes a explodir com muitas dificuldade de administrar seus encargos familiares tendo o trabalho intenso como forma de escape e do pai como um psicossomático distante realista preocupado com os negócios embora tam bém bastante preocupado com Bernardo Em sua hora diagnóstica ofereci material de desenho lápis de cor papel e borracha que Ber nardo pegou fazendo o desenho que está anexo ao texto Tentei que imaginasse algo sobre o desenho mas nada surgiu apenas a descrição realística do que estava desenhado Isto é isto aquilo e aquilo e vai por aí Terminamos a entrevista nesse padrão que de certa forma mantémse até hoje Atualmente compartilhamos certos jogos como o do rabiscoe a forca em que descobrimos palavras um do ou tro e nada de histórias nem de imaginações por en quanto pelo menos apenas palavras O que mostra o desenho senão uma imagem semelhante à cena que ocasionou a morte do filho da empregada A cena traumática é terrível e não pode ser incluída em uma cadeia simbólica Não há sintoma ou sonho ou o trabalho do luto ou assombro pela culpa e sua elaboração Não se monta uma história A cena fica congela da inarticulável e este é o terreno da supressão e da formação da manifestação psicossomática Um ano depois exatamente um ano depois e aqui também a memória serve à repetição imaginária surge a dor abdominal numa época em que a empregada está grávida novamente o que certamente concorre para redespertar a lembrança da cena O desenho funcio na como uma fotografia daquele momento sempre pronta a evocar a emoção que não pode surgir A eco nomia deve ser mantida a todo custo E uma via pre cocemente estabelecida pela não inclusão plena do corpo biológico num sistema de representações signi ficantes surge a via do fenômeno psicossomático A consequência clínica imediata dessa hipótese é a ne cessidade do estudo aprofundado da noção de traba lho elaboração no decorrer do processo psicanalítí co aí penso estar o cerne da questão da construção da capacidade simbólica Mas é um outro trabalho REFERÊNCIAS Goldin M A Piedimonte R C Diálogos sobre psicopatologia I La Histeria Buenos Aires Ediciones Kargieman 1976 Mirsky C col Psychosomatic Classics New York sn 1950 Many P LAgenda de Psychosematique 215216 Paris sn 1988 Freud S Repressão Rio de Janeiro Imago 1915 O inconsciente Rio de Janeiro Imago 1915 A divisão do Ego no processo de defesa Rio de Janeiro Imago 1938 Sifneos P Nehemiah C Alextymia An Overview In Modern trends in psychosomatic medicine Boston Little Brown 1983 Psicossomaticaindd 157 Psicossomaticaindd 157 05012010 121208 05012010 121208 O conceito de Psicossomática termo usado pela primeira vez em 1818 por Helmholtz tem variado em função do referencial teórico de quem o usa Vá rios autores têm feito esforços para levantar um cor po teórico consistente capaz de explicar e de tornar compreensível o fenômeno psicossomático Assim são bastante conhecidas as ideias dos perfis psicos somáticos de F Dumbar os conflitos específicos de F Alexander a nomeação das doenças psicossomáticas a hipótese de se tratar de doentes psicossomáticos de fenômenos psicossomáticos entre os principais Nos últimos anos surgiram os conceitos de alexiti mia e pensamento operatório relativos ao problema desenvolvidos respectivamente pelas escolas ameri cana e francesa Neste capítulo iremos analisar estes conceitos dando ênfase às concepções formuladas por psiquiatras e psicanalistas No acompanhamento de pacientes definidos como psicossomáticos autores franceses e america nos encontraram características comuns e frequentes que apontam para uma forma peculiar de pensamen to e de lidar com as emoções Assim Marty e Mú zan 1983 partindo de estudos sobre a vida oníri ca feitos por Fain e David e os estendendo a seus pacientes encontraram uma forma de pensamento que julgaram original ou quando presente de pou ca significação funcional para o equilíbrio psíquico Ainda que tais características não fossem específicas desses pacientes estes autores postularam a hipótese de uma estrutura psíquica à semelhança das estru turas neurótica psicótica perversa etc Eles chama ram este tipo de estrutura de pensamento operatório Sifneos 1973 assinalou que tais pacientes apresen tavam uma característica que se traduzia na dificul dade de descrever suas emoções e mesmo de senti las Este autor criou o termo alexitimia do grego a sem lexis palavra thumus ânimo ou afetividade Significa pois ausência de palavras para nomear as emoções Os dois termos citados pensamento operatório e alexitimia são hoje largamente empre gados pelos estudiosos do problema Todavia referi dos autores mostram que estas características tam bém são encontradas em outros pacientes mas sua frequência é significativamente maior nos chamados psicossomáticos que demonstram maior vulnerabi lidade psicossomática Os portadores de pensamento operatório têm um mundo interno pobre e investem intensamente na realidade externa da qual passam a ser dependen tes ou hiperadaptados De orientação pragmática são tenazmente aderidas ao circunstancial Quando sofrem problemas existenciais intensificam o inves timento no trabalho para que este ocupe o lugar do objeto interno segurador mãe Kristal 1973 afir ma que a dificuldade do psicossomático de cuidar de si mesmo decorre do fato de quando criança viver como transgressão e sujeito a castigo o ato de inte riorizar o objeto materno com o propósito de adqui rir funções protetoras e tranquilizadoras O uso do trabalho é facilitado porque registram pouco cansaço ou sinais físicos do mesmo As representações ou per cepções carregadas de afetos são afastadas da mente e as tensões físicas não encontram caminho para o psíquico permanecendo no campo físico Neles ocor re também que os resíduos diurnos não se articulam com os traços de memória portanto não se traduzem em elaborações adequadas de sonhos tornando po bre a vida fantasmástica e não podendo ser usados adequadamcnte como cenário da pulsão Segundo Dejours 1988 que defende a ideia de existir um inconsciente primitivo que abriga e se constitui na pulsão da Morte clivado defensivamente do Inconsciente Secundário ou Inconsciente Freudia no onde todo o material recalcado aí está o sonho teria uma função fundamental de recolher e recalcar os impulsos destrutivos violentos originários da refe rida pulsão tornando mais efetivos os mecanismos de fensivos do ego Para esse autor o sonho seria um dos elementos estruturantes do aparelho psíquico função esta importantíssima ao lado da conhecida função que 13 ALEXITIMIA E PENSAMENTO OPERATÓRIO A QUESTÃO DO AFETO NA PSICOSSOMÁTICA Antônio Franco Ribeiro da Silva Geraldo Caldeira Psicossomaticaindd 158 Psicossomaticaindd 158 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 159 lhe atribuiu Freud da realização de desejos incons cientes A presença da pulsão de morte nos fenômenos psicossomáticos é defendida principalmente por Marty 1983 como responsável pelos movimentos de desor ganização psíquica e corporal levando a alterações so máticas fisiológicas patológicas e mesmo mortais Le Shan 1994 em seu longo estudo e acompa nhamento de pacientes com câncer diz Todos os pa cientes de câncer que observei em minha vida mais de 500 pareciam ter mais emoções do que ener gia para expressálas Todos davam a impressão de possuir maior energia emocional do que formas para manifestálas Entretanto isso não acontecia nos in divíduos do grupo controle que não tinham câncer Na verdade entre os pacientes do grupo controle era comum terem mais exigências do que a energia necessária para atendêlas A ausência de formas de expressão para a energia emocional e a incapa cidade para manifestálas afetavam os pacientes de câncer de duas maneiras Primeiro como vimos an teriormente estes indivíduos eram incapazes de dar vazão a seus sentimentos de deixar que os demais soubessem quando estavam magoados zangados ou hostis Ficava claro que os pacientes de câncer nas mais variadas situações sentiam dificuldade para de monstrar raiva ou agressividade em defesa própria Segundo sempre achavam que o outro é que está certo e não protestavam Dr David Kissen citado por Le Shan estudou mais de 300 pacientes com problemas torácicos e ob servou que metade sofria de câncer de pulmão e a outra metade ficou em grupo controle Aqueles que não possuíam canais suficientes para a descarga emo cional eram muito mais predispostos a ter câncer Um estudo posterior mostrou que a taxa de mortalidade para câncer de pulmão em 100000 pessoas por ano era de 270 para os que não possuíam canais suficien tes e apenas em 59 para aqueles que possuíam canais adequados de expressão emocionais Mais interessan te que essa diferença existia independente do núme ro de cigarros consumidos Como foi dito por Marty o pensamento operató rio está ligado ao inconsciente mas se comporta em relação ao mesmo como cego de nascimento isto é num nível tão baixo que não permite uma elaboração integrada da vida pulsional Por outro lado também apresenta características do processo secundário de pensamento mas em sua essência o pensamento operatório traz diferenças significativas como só tra tar o tempo dentro de limites precisos e curtos só se ligar às coisas Nele a palavra serve para descarregar uma tensão mas não consegue mantêla em suspen so para artículála num processo egoico defensivo ou na produção de sonhos ou fantasias Dejours propõe uma leitura do aparelho psíqui co num trabalho intitulado A Terceira Tópica na qual o considera dividido Um Inconsciente Primário sede dos impulsos primitivos pulsão de morte e um Inconsciente Secundário constituído pelo mate rial recalcado Os dois seriam separados por um me canismo de báscula Nos indivíduos em que predomi na o Inconsciente Primário o pensamento é do tipo operatório Esses indivíduos reagem às descompensa ções com um mecanismo de negação ou atuação para fora agressivos paranoicos ou psicóticos ou para o próprio corpo acarretando a formação de fenômenos psicossomáticos Eles atuam no lugar de elaboração dos conflitos em sonhos ou fantasias A dinâmica dos fenômenos da Terceira Tópica encontrase sinteti zada em meu artigo Psicossomática Hoje Às vezes o pensamento operatório lembra o pen samento obsessivo Todavia ao contrário deste o ope ratório mantém a palavra subinvestida que só duplica e reforça a ação dentro de um real muito próximo A dúvida que é clássica no obsessivo praticamente está ausente e enfim o obsessivo usa da palavra para ma nipular o pensamento ocupar o lugar das emoções e o mantém rico em magias e simbolismo Estes pacientes não estabelecem uma relação afetiva com o outro o qual é visto contendo também características operatórias de pensamento André Green citado por Marty 1983 chama a esta relação de relação branca ou de pacientes isto é tudo Es tão presentes um frente ao outro mas vazios Veem no médico uma figura que vai lhes resolver os pro blemas articulandoos com o real de forma concreta como se fosse um operador Para exemplificar citamos o caso de um homem de 45 anos casado pai de quatro filhos criado den tro de uma famfiia tradicional e muito rígida Era fi lho de um professor catedrático muito conceituado em sua área mas o paciente que posteriormente revelou ter sérias dificuldades com o pai não conse guiu estudar Por influência do pai conseguiu um em prego de vendedor de uma grande firma porém dois anos após a morte do pai foi despedido do emprego Logo em seguida passou a apresentar transtornos que foram diagnosticados como labirintite Procurou psi coterapia praticamente um ano depois do início das crises e no momento em que havia conseguido um novo emprego bem inferior ao primeiro A psicotera pia foi indicada pela ineficácia do tratamento clínico A entrevista inicial transcorria de maneira vazia e na ausência de dados sobre a história pessoal tentouse estabelecer alguma relação das crises com algum fa tor desencadeante O médico Então descreva para mim sua última crise Psicossomaticaindd 159 Psicossomaticaindd 159 05012010 121208 05012010 121208 160 Mello Filho Burd e cols O paciente A crise foi no dia tal Em seguida ele descreve pela terceira vez o seu malestar após a me dicação que recebeu no dia O médico insistindo sobre a pergunta Eu quero que você me diga tudo o que aconteceu antes da crise O paciente Eu já lhe disse Senti uma tontura tudo rodou e eu bati o carro O médico Você estava só no carro O paciente Não estava eu e a secretária da firma O medico Mas então e daí O paciente E daí que eu estou com este galo na testa até hoje Dormi não sei quantas horas depois daquela injeção Até hoje estou meio tonto O médico Mas e a secretária Vocês discutiram O paciente Não ela é legal O médico Você estava conversando com ela O paciente Estava O médico já desistindo Então não aconteceu nada de especial né O paciente Absolutamente Não aconteceu nada Nós estavamos na Av Amazonas Estávamos conver sando Então eu olhei e vi as pernas dela Coloquei a mão direita nas coxas dela Aí tudo rodou e eu bati o carro Não aconteceu mais nada Mc Dougall 1986 os chama de normopatas ou pacientes que usam de uma pseudonormalidade como forma de viver Para esta autora eles são de safetados A relação interpessoal acaba tornandose operatória pragmática Sifneos 1974 diz que não há negação das emoções mas ausência de sentimen to Marty e Múzan citam o caso de um paciente em terapia que ao perder o pai vem à sessão e pergun ta O que devo sentir nesta hora Este exemplo é muito semelhante ao de uma cliente nossa tipo ope ratória que ao receber a notícia telefônica de que seu filho menor havia sido salvo de um afogamento não acreditando que ele estivesse vivo desliga o telefone e pensa Vou ver agora o que vou ter de sentir Angélica Lie Takushi e Avelino Luiz Rodrigues apresentaram no VI Congresso SulMineiro de Psi cossomática um trabalho científico Divã de Procus to reflexões a partir de estudos de caso elabora do no Laboratório Sujeito e Corpo do Instituto de Psicologia da USP no qual estudaram casos clínicos aparentemente como pacientes alexitímicos e opera tórios e que foram submetidos ao Teste de Percep ção Temática TAT e de Rorschach Tais pacientes demonstraram ter boa capacidade de sentir falar e expressar emoções ao longo do tratamento Os refe ridos autores chamam a atenção para o risco de se rotular pacientes de operatórios e de alexitímicos como muitos fazem acomodandose nesta posição As conclusões deste trabalho foram DISCUSSÃO É possível que muitas vezes o paciente com ma nifestações somáticas apresentese nos primeiros en contros com o médico terapeuta entrevistador com uma postura que sugere características alexitímicas e pensamento operatório seja por aguardar as per guntas para poder dizer algo seja na economia das palavras procurando falar algo mais relacionado à doença julgando talvez que é isso que o outro quer ouvir Isso foi verbalizado pela paciente A que no iní cio tinha essa postura diante da terapeuta Ela disse posteriormente que falava pouco porque não queria que a terapeuta a achasse chata e que tinha vergonha de falar sobre seus sentimentos e pensamentos por medo de que a terapeuta achasse tudo aquilo uma bobagem A partir do momento em que uma relação de confiança foi estabelecida a paciente pôde trazer esses conteúdos que eram guardados até então e contar que eles sempre estiveram presentes em suas fantasias e imaginações apenas aguardando o mo mento de serem colocados para fora Nemiah Freyberger e Sifneos 1976 atentam para o cuidado que se deve ter para não fazer cor relações diretas entre características alexitímicas e psicossomáticas uma vez que pessoas com manifes tações somáticas podem ser encontradas sem as ca racterísticas alexitímicas assim como inúmeras pes soas com características alexitímicas são vistas sem indícios de manifestações somáticas Da mesma forma Marty 1993 afirma que o pensamento operatório e a própria noção de ope ratório serviram de ponto de partida a numerosas pesquisas e ultrapassaram amplamente o campo da psicossomática não sendo características exclusi vas de pacientes somatizantes Outros autores tam bém afirmam a existência dessas características em pacientes sem manifestações somáticas e viceversa Santos Filho 1992 Silva e Caldeira 1992 Assim o que gostaríamos de enfatizar através deste trabalho é que se utilizamos indiscriminada mente alguns conceitos como uma cama de Procusto corremos o risco de mutilar o que emerge da singula ridade de cada paciente e comprometer dessa forma a compreensão deste indivíduo assim como o proces so analítico Esses pacientes levam o médico a uma escuta operatória ou como afirma Chevnik 1983 a tentar interpretar os padecimentos orgânicos que são apre sentados como se fossem simbólicos transformando se numa máquina de interpretar O terapeuta passa a assegurar ao paciente que sua mente não está vazia procura dar sentido aos seus padecimentos mas isso faz com que o espaço psíquico do paciente fique no Psicossomaticaindd 160 Psicossomaticaindd 160 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 161 espaço psíquico do analista Como consequência os psicossomáticos acabam ficando com um pobre ou nenhum domínio sobre a angústia Outra caracterís tica interessante nestes atendimentos é a sensação de inércia nas consultas bem como outras manifesta ções contratransferenciais como as assinaladas por Nemiah 1975 sentimento de paralisação interior frustração aborrecimento e tédio O médico acaba se sentindo alexitímico Kristal 1973 aponta que outra característica desses pacientes é a dificuldade de viver as emoções prazerosas o que chamou de anedonia Assinala que infans do latim significa que não pode falar ain da A mãe é que tem de nomear os afetos do filho no início O adulto alexitímico funciona como se fos se esta criança não verbal no que se relaciona com seus afetos Observouse em muitas situações que os pais criticam ou deixam dúvida quanto ao afeto da criança às vezes lhe indicam o que deve ou não deve sentir ou mesmo a proíbem de sentir tipo menino homem não chora A criança acaba se confundindo e não sabe o que pode ou não pode sentir Essa dificuldade em clarear os afetos Freud já havia assinalado nos primitivos que não sabiam dis criminar entre amor e ódio e só sentiam um impacto emocional O infans também é assim necessitando do intercâmbio com a mãe para perceber o que é hos til e o que é carinhoso Lacan 1978 ao introduzir o conceito de dis curso que se situa entre a língua e a fala língua social discurso fala individual centra sua importância na interrelação das duas e conclui que a palavra não vem nomear os sentidos preexistentes mas produzilos discriminadamente Em seus estudos mostra que o sujeito não tem os significados em sua mente O sentido só surge através da palavra que vai expressálo Todavia a palavra só tem uso possível se segue leis preestabe lecidas ou seja um código Em Lacan este código só existe em função de mensagens que por sua vez não existem sem códigos Há uma relação entre o vetor língua que é o significante e o vetor sujeito o que fala O código está relacionado com os significantes coletivos os quais são passados à criança pela mãe em suas solicitações dando um sentido para as suas necessidades e a forma como resolvêlas Nos operatórios ou alexitímicos pensase que a família também seria alexitímica McDougall 1986 cita um cliente que diz na minha família estava proibido estar triste enfadado ou necessitando de qualquer coisa Sigo sentindome confuso quando você me pergunta o que é que estou sentindo como se fosse uma ninharia ter sentimentos Muitas ve zes a mãe usa o corpo do filho como prolongamento do seu e no qual investe preenchimentos narcísicos e libidinais O resultado é o individuo sentir o seu cor po como se fosse estranho ou como afirma Kristal o corpo fica controlado de forma autônoma ou segun do McDougall o corpo é sentido como pertencente ao mundo externo pertencente à mãe Ficam muito vulneráveis às situações de perda tais como morte dos pais nascimento de um filho perda do objeto amado e outras situações de feridas narcísicas Segundo Guir 1983 no entanto a segunda vivência de perda é que desencadeia o fenômeno psi cossomático Ele descreve o fenômeno como tendo três etapas a separação brutal de um ente querido morte des mame hospitalização etc b separação se repete na realidade ou um conjun to de significantes particulares relembram o su jeito c antes de um ano a lesão aparece Há uma dificuldade de vivência do luto McDou gall 1983 após acompanhar sete pacientes com tu berculose pulmonar diz por não terem sido capazes de abrir seu coração para o luto abriram o pulmão para o bacilo de Koch Sintetizando podese citar Valabrega 1973 que assim define as características alexitimicas e operatórias uma defesa arcaica operando em es truturas psíquicas marcadas por uma carência ca rência mental como um déficit em relação a alguma dimensão do psiquismo Essas carências podem se dar no plano a das relações objetais que se traduz clinicamente pela inexistência ou pobreza das relações transfe renciais relação branca b da significação da sintomatologia o sintoma tende ao vazio destituído de sentido c da fantasmatização pobre ou ineficiente d do pensamento meramente operatório sem or ganização simbólica Sifneos 1973 tenta mostrar que a expressão clínica dessas carências está presente nos pacientes psicossomáticos que pode ser percebida através de um questionário que o médico faz para si mesmo e cujas respostas a perguntaschave são bastante signi ficativas Quanto à descrição destas características os au tores estão de acordo As divergências existem quan to a ser ou não uma estrutura psíquica específica Psicossomaticaindd 161 Psicossomaticaindd 161 05012010 121208 05012010 121208 162 Mello Filho Burd e cols quanto a ser uma defesa no sentido psicanalítico do termo e quanto às causas e aos fatores que levam ao seu surgimento Achamos oportuno trazer algumas ideias a respeito destas questões Kreisler 1981 diz não creio na existência de uma clínica psicossomática que não utilize os nossos conhecimentos sobre a fisiologia dos fatores libidi nais e agressivos e a história de seus avatares gené ticos normais e patológicos Enfatiza a necessidade de conhecer os processos de formação das estrutu ras psíquicas Sabese classicamente da importância da angústia nessas formações de sua origem e dos mecanismos para lidar com ela Dejours 1988 fez um interessante estudo da angústia e a subdivide em duas categorias a angústia somática que não se acompanha de afe to correspondente e não tem representação psí quica seria próprio de psicossomáticos e se asse melha à angústia das Neuroses Atuais de Freud b angústia psiquica que se acompanha de afetos e é por sua vez subdividida em com representação psíquica e não simboliza da nas psicoses com representação psíquica e simbolizada nas neuroses A angústia somática seria fundamentalmente uma tensão física registrada no corpo e característi ca do que o autor chama de Psicossomatose O mes mo autor traz estudos de Neurobiologia e suas ideias sobre neurorreguladores assinalando a presença de sistemas reguladores tais como dopaminérgico se rotoninérgico gabaérgico etc que atuando em ex cesso ou em deficiência favoreceriam o surgimento ora de um ora de outro tipo de angústia conforme referido anteriormente inclusive nas psicossomato ses Uma afirmação frequente conforme dissemos nesses fenômenos psicossomáticos é de que não há representação psíquica Essas questões da angústia somática sem repre sentação psíquica e a ausência de sentido já haviam sido tratadas por Freud 1985 nas chamadas Neuro ses Atuais nas quais incluía manifestações somáticas não conseguindo fazer nelas uma leitura psicanalítica Para ele tratarseia de uma tensão física de origem sexual que não podia ser transformada em afeto por elaboração psíquica Não significa pura e simplesmente uma descarga dessa tensão no corpo mas a impossibilidade total ou parcial de sua elabo ração e transformação em afeto isto é da realização de um trabalho psíquico Esse conceito de uma des carga puramente física da tensão sexual produzindo angústia se generalizou a partir do seu artigo Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma síndro me intitulada Neurose de Angústia de 1895 Havia ainda o fato extremamente importante de que não se podia rastrear nenhuma origem psíquica da ansie dade que subjaz aos sintomas clínicos Para ele o fa tor atual dessas neuroses era mesmo sexual Em sua Conferência de no 24 falando das neuroses atuais e psiconeuroses diz em ambos os casos os sintomas se originam da libido e consituem portanto empre gos anormais da mesma são satisfações substituti vas Mas os sintomas das neuroses atuais pressão intracraniana sensação de dor estado de irritação em um órgão enfraquecimento ou inibição de uma função não tem nenhum sentido nenhuma signi ficação psíquica Não só se manifestam predominan temente no corpo como por exemplo os sintomas histéricos entre outros como também constituem eles próprios processos inteiramente somáticos em cuja origem estão ausentes todos os complicados me canismos mentais que já conhecemos Mas quando Freud diz que os sintomas das neuroses atuais não tem nenhum sentido nenhum significado psíquico o que ele quer dizer com isso Pensamos que ele está realmente dizendo e que o sintoma ocorre sem nenhum propósito aparente que não se sabe de início qual é sua intenção É o próprio Freud quem dá esta explicação ao abordar as parapraxias Vejamos o que ele diz vamos mais uma vez chegar a um acordo sobre o que se deve entender por sentido do processo psíquico Queremos dizer tão somente a intenção à qual serve a sua posição em uma continuidade psíquica Na maioria de nossas investigações podemos substituir sentido por in tenção ou propósito Portanto nenhum sentido ou nenhum significado psíquico não quer dizer que não tenha nenhum ato psíquico Quer dizer isto sim que o propósito a intenção não é traduzida Acreditamos que nenhum sentido hoje talvez seja melhor expresso como foradesignificado Da nossa parte pensamos que o fator atual é importante não apenas como elemento desencadean te mas também como fator específico Ele é atual por ser do momento mas também é atual por atualizar por ser capaz de atualizar ressignificando uma repre sentação que se encontrava congelada isolada ou ilhada O que é incompreensível é que esta ressignifi cação não passa pelos mecanismos psíquicos comuns às psiconeuroses o que torna o fenômeno ainda mais incompreensível Por outro lado o próprio sujeito ig nora as causas que podem produzir eou desencadear as manifestações desse fenômeno Este fator atual pode tanto ser um fato concreto como pode ser sim plesmente um olhar Tanto pode ser uma coisa banal do dia a dia do sujeito como pode ser uma vivência fora do habitual De qualquer maneira o efeito do Psicossomaticaindd 162 Psicossomaticaindd 162 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 163 fenômeno será imprevisível podendo ou não ter con sequência dramática Compreendese que esta afirmação da falta de sentido dos sintomas nas Neuroses Atuais cuja an gústia somática é retomada pelos estudiosos de Psi cossomática tem influência na ideia de uma ausên cia de simbolização ou pior como sendo o resultado de uma ausência total de trabalho psíquico nestes casos A negação até mesmo da existência de uma representação psíquica no fenômeno psicossomático se isso fosse possível excluiria toda e qualquer parti cipação psíquica Esta hipótese nem em Freud existia sendo sua opinião de que essas Neuroses Atuais só ocasionalmente se apresentam de forma pura mais frequentemente estão mescladas umas às outras e mesmo às psiconeuroses Cremos que em parte este malentendido ocorre por se considerar que a elabo ração psíquica se limita aos mecanismos de desloca mento condensação e recalque A clínica revela que o portador desses fenômenos corporais quase sempre apresenta uma notável pobreza da vida fantasmática o que parece confirmar a hipótese de ser o fenômeno psicossomático em si produzido com pouco trabalho psíquico Contudo esta reduzida capacidade fantas magórica ou o baixo nível de trabalho psíquico não representam jamais ausência de simbolização Esta mos plenamente de acordo com Laplanche 1980 quando ele afirma não se deve ser seduzido ape sar de tudo pela hipótese de que existiriam afecções sem simbolização Excluir do determinismo simbólico seus dois extremos por um lado o conflito como se ele fosse doravante real e nada pudesse ser feito por outro lado o sintoma como se estivesse inscrito no corpo e como se bastasse por exemplo operálo não é apenas formular certa teoria é entrar em certa teoria e em certo jogo do próprio paciente e de sua negação Os trabalhos mais recentes de Sifneos e Nehe miah e Sifneos 1974 levantaram a hipótese de que esses pacientes teriam uma predisposição biológica em dois níveis a centralneurológica seria um defeito neurofísico ou neuroquímico no sistema límbico gerador das emoções b periféricovisceral seriam alterações hormonais ou funcionais sem as quais estes estados psicos somáticos não apareceriam Para McDougall nas psicossomatoses há uma estrutura semelhante à estrutura psicótica só que nesta o pensamento é delirante e naquela o corpo é que delira O sintoma é desprovido de sentido quer no campo biológico quer no campo psíquico Rea firma que sem afeto não se liga psique e soma Os lacanianos dizem que no fenômeno psicossomático o sintoma não é para ser lido Dentre estes Quinet 1988 diz que o corpo é comprometido mas não o corpo fantasmático e que os fenômenos psicossomá ticos não são mesmo sintomas no sentido psicana litico do termo Valas 1988 pensa que não há um sujeito psicossomático e que qualquer pessoa pode ter fenômenos psicossomáticos enfatizando que o fenômeno psicossomático é induzido pelo signifi cante mas não estruturado como sintoma Voltan do a Kristal 1973 este autor fez estudos em toxi cômanos vítimas de holocausto e psicossomáticos concluindo que o que ocorre é um bloqueio no desen volvimento dos afetos em consequência de situações traumáticas infantis excesso de afetos não neutrali zados ou amortecidos pela ajuda materna levando a uma paralisação do desenvolvimento afetivo normal Sabese que neste desenvolvimento deve ocorrer uma diferenciação eunão eu uma verbalização e uma dessomatização Em circunstâncias traumáticas aqui consideradas fundamentalmente as distorções da re lação mãefilho haveria uma interrupção nessa evo lução ficando o individuo a meio do caminho de sua elaboração afetiva e sob posterior situação traumáti ca sobrecarga de afetos haverá regressão às fases de não diferenciação não verbalização e ressomati zação McDougall diz que o afeto suprimido não recebe compensação não deixando atrás de si na mente mais que um branco e corre o risco de seguir seu curso como um feito puramente somático abrin do caminho para a desorganização psicossomática Essa autora no mesmo estudo afirma que este meca nismo é defensivo contra o surgimento de ansiedades psicóticas ligadas ao perigo de perda de identidade perda de limites do corpo fragmentação erupção de afetos sem controle explosão afetiva Ela não contesta as ideias de Sifneos e Nehe miah mas dá ênfase às vivências emocionais primá rias surgidas na relação mãefilho nas relações ob jetais primitivas É a ideia semelhante à de Kristal como vimos diferente apenas quando ela coloca o fenômeno como defesa o que não pensa este autor que fala em paralisação afetiva Em se falando de relação objetal primitiva tornase imperioso citar os trabalhos de Spitz 1983 e seus estudos sobre o pri meiro ano de vida São trabalhos clássicos nos quais se mostra que as alterações ou melhor as distorções nessas relações trazem consequências funcionais e ou consequências psicopatológicas decorrentes destas situações inadequadas seja por excesso seja por pri vação afetiva marcando o início de muitos fenôme nos psicossomáticos posteriores Winnicott 1978 ao descrever o conceito de objeto transacional e es tudar largamente a relação mãefilho marcou um momento importante do trabalho psíquico Contudo Psicossomaticaindd 163 Psicossomaticaindd 163 05012010 121208 05012010 121208 164 Mello Filho Burd e cols não nos é possível em apenas um capítulo entrar em detalhes sobre suas ideias e de todos os autores que estudaram este assunto Assim utilizaremos o qua dro sinóptico idealizado por Bekei 1982 que nos parece muito ilustrativo Todos os autores citados por ela são unânimes em assinalar a importância da relação mãefilho e suas distorções entre estas as mães excessivamente possessivas preocupadas mais com o corpo do filho e aquelas mais distantes ou ausentes no concreto como situa ções de morte ou hospitalização ou em decorrên cia de vivências depressivas prolongadas ou psicoses A ausência de uma mãe suficientemente boa no sen tido de Winnicott não permite a internalização de um objeto interno vivo o qual é procurado no extemo ca racterística clássica do pensamento operatório confor me já assinalado no início deste capítulo Finalizando vêse tanto pelo quadro de Bekei como pela elaboração que desenvolvemos neste ca pítulo que as vivências iniciais da vida são de funda mental importância no aparecimento dos fenômenos psicossomáticos e da forma operatória de pensamen to Aliás este período da vida é fundamental não ape nas para a Psicossomática mas também para outras questões da vida psíquica especialmente as psicoses O Prof Samuel Hulak em comunicação pessoal propõe num trabalho Alexitimia e pseudoalexiti mias a ser brevemente publicado no seu novo livro em publicação próxima uma classificação das soma tizações Nesta classificação ele expõe Psicossomaticaindd 164 Psicossomaticaindd 164 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 165 1 Somatizações Reativas reações neurovegetativas normais próprias de todos seres vivos 2 Somatizações Supressivas Repressivas e Regres sivas somatizações como sintoma como meca nismos adaptativos 3 Somatizações expressivas nas quais se situam os somatizadores estruturais os mais característicos pacientes da medicina psicossomática os alexití micos Samuel aborda adequadamente as característi cas de cada uma e propõe um modelo de anamnese psicossomática que se caracteriza por um questioná rio do qual retiramos algumas perguntas mais de monstrativas da alexitimia Tem sintomas que não são compreendidos pelos médicos É capaz de expressar sentimentos com fidelida de Sonha muito Pouco Não sabe Prefere analisar problemas a descrevêlos Tem sentimentos que não consegue identificar Viver emoções é essencial As pessoas costumam lhe dizer que deveria ex pressar seus sentimentos Tem dificuldade de expressar o que sente pelas pessoas Tem dificuldade de reconhecer o que os outros sentem Fica facilmente emotivo quando presencia fatos tristes Consegue distinguir quando está triste Assusta do Entediado Com raiva Costuma descontar no corpo quando se estres sa Frequenta muito como paciente consultórios ou serviços médicos Como se sente quando fica só ou inativo por mui to tempo Confundese entre o que pensa e o que sente Descreva as doenças mais frequentes que tem so frido Sua sociabilidade é Sua vida afetiva é Caso clínico Uma senhora 44 anos casada queixavase de cefaleia crônica Já havia feito todos os procedimentos neurológicos e clínicos para detectar a causa sem nada de anormal ser en contrado fisicamente Foime encaminhada por saber que eu era um médico muito bom Ao lhe perguntar desde quando tem esta dor de cabeça Respondeu desde o dia em que meus pais que vinham me visitar a convite meu para passarmos juntos o meu aniversário morreram num acidente automobilístico Relatou o acontecimento cheio de lances dramáticos quando ela foi pela estrada afora para procurálos e até encontrar o carro todo destroçado com os pais ainda dentro sem demonstrar nenhuma emoção ou tristeza Ela morava em Brasília e eles vinham de Goiás Ao tentar ligar a cefaleia com o trauma eou culpa que ela sentiria por têlos convidado a vir de carro ela negou vee mentemente tal possibilidade Ficou decepcionada com o caminho que eu queria levála a percorrer Se o Sr é bom médico o Sr tem que encontrar a causa dentro da ciência médica e não na minha vida pessoal que está boa exceção para a dor de cabeça Mandoume um recado tempos depois e pela mesma pessoa que a havia encaminhado que tinham descoberto a causa da cefaleia era distúrbio vagosimpático Caso clínico Uma senhora adulta jovem do lar casada e com dois filhos procurandome por ser portadora de queixas várias e vagas sem causas orgânicas detectadas Sempre falante de coisas banais e negando problemas afetivos ao longo da vida Dizia não sei por que tenho tanta queixa se a minha vida está muito boa e tenho tudo para ser feliz Certo dia ela recebe um telefonema do interior do Es tado próximo à cidade de nascimento onde moravam de mais familiares que o seu filho de 3 anos estava passando de canoa num dos grandes lagos próximos acompanhando o seu futuro cunhado que casaria com sua irmã mais nova Este teria morrido no acidente e o filho não Ela diz se o meu cunhado que sabia nadar morreu é claro que o meu filho que não sabe deve ter morrido também Ela desliga o telefonema e diz vou ver agora o que eu tenho que sen tir Quando me relata em verdade por milagre que o filho escapou e o cunhado lutando para que ele não se afogasse cansou e se afundou tão logo alguém segurou o filho não expressou pezar pelo acontecimento nenhuma emoção perceptível REFERÊNCIAS Bekei M Transtorno del desarrollo temprano como condicionan te de la enfermedad psicossomática Revista de Psicanálisis Aso ciación Psicanalítica Argentina Buenos Aires v 39 1982 CaldeiraG Psicossomática Hoje Revista da Associação Brasileira de Psicossomática Vol7 nº12 Janeiro a Junho 2003 Chevinik M Aspectos narcisistas en el paciente psicosomático en la cura psicanalítica Revista de Psicanálisis Asociación Psicoana lítica Argentina Buenos Aires v 40 1983 Dejours C O Corpo entre a Biologia e a Psicanálise Porto Alegre Artmed 1988 Freud S Rascunho E Como se origina a ansiedade In Corres pondência Completa FreudFliess Rio de Janeiro Imago 1985 Psicossomaticaindd 165 Psicossomaticaindd 165 05012010 121208 05012010 121208 166 Mello Filho Burd e cols Sobre os critérios para destacar da Neurastenia uma sín drome particular intitulada neurose de Angústia Edição Standart Brasileira v3 Rio de Janeiro lmago 1969 Parapraxias 1a e 3a Conferência lntrodutória à Psicanálise Edição Standart Brasileira v15 Rio de Janeiro Imago 1969 O Estado Neurótico Comum Conferência No 24 Edição Standart Brasileira v16 Rio de Janeiro Imago 1969 Guir J A Psicossomática na Clínica Lacaniana São Paulo Jorge Zahar 1983 Kreisler L Cols A criança e seu corpo Psicossomática da primeira infância São Paulo Jorge Zahar 1981 Kristal H Aspects of deffect theory Bulletin of the Menninger Cli nic v41 n1 1973 Lacan J Os escritos A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud São Paulo Perspectiva 1978 Laplanche Problemáticas I a angústia São Paulo Martins Fontes 1980 Le Shan L Brigando Pela Vida Aspectos emocionais do câncer 2ª edição Ed Summus Editorial SP 1994 Marty P Los movimientos individuales de vida y de muerte Barce lona Toray 1965 Marty P Múzan M El pensamiento operatorio Revista de Psica nálisis Asociación Psicoanalítica Argentina Buenos Aires v40 1983 Mc Dougall J Em defesa de uma certa anormalidade Artmed 1983 Theatres of the mind Ilusion and truth on psychonalytic stage London FAB 1986 Nehemiah JC Denial revisited reflexion on psychosomatics theo ry Psychotherapy and Psychosomatics v 126 nî 3 1975 Sifneos PE The prevalence of alexrhymic characteristics in psychosomatics patients Psychotherapy and Psychosomatics v 22 1973 A reconsideration of psychosomatic mechanism in psychosomatic syntom formation in view of recent clinicai obser vation Psychotherapy and Psychosomatics v24 n 23 1974 Spitz RA O primeiro ano de vida São Paulo Martins Fontes 1983 Valabrega JI Problèmes de la Théorie Psychossomatique In Encyclopedie Médico Cirurgicale Psychiatrique Paris 1973 Valas P Setor de Estudo de Psicanálise Analytica no 48 Winni cott Da Pediatria à Psicanálise Rio de Janeiro Francisco Alves 1978 Psicossomaticaindd 166 Psicossomaticaindd 166 05012010 121208 05012010 121208 Ainda no segundo século depois de Cristo Ga leno um dos pais da nossa Medicina observou que mulheres melancólicas pareciam ser mais susceptí veis a desenvolver um câncer do que aquelas que ele chamava de sanguíneas Do mesmo modo através de suas experiências práticas clínicos de todos os tempos aprenderam sobre a importância do estado emocional dos seus pacientes na evolução de doenças infecciosas e neoplásicas Salk citado por Friedman Friedman 1972 fez um paralelo entre as células do Sistema Nervoso e as do Sistema Imune são dotadas de memória e têm função defensiva contribuindo para a homeostasia e o autorreconhecimento porém quando funcionam adaptativamente mal costumam provocar enfermi dades Foram os trabalhos de Korneva Korneva 1972 e Stein Stein 1969 sobretudo que demonstraram que a intermediação desses sistemas se faz através do hipotálamo possibilitando estudar a partir daí a integração dos três sistemas nervoso endócrino e imunológico constituindose naquilo que costuma mos chamar de tripé homeostático Mello Filho Mello Filho 1976 Trabalhos de Friedman Glasgow e Ader Fried man 1961 principalmente deram uma base experi mental para se compreender as complexas interações entre estresse e ambiente com base em infecções e neoplasias produzidas em animais de laboratório Em 1975 Amkraut e Solomon Amkraut So lomon1975 sintetizando uma série de trabalhos e conclusões deste último publicaram uma monografia que se tornou clássica na qual após estudar as três fases da resposta imune alça aferente central e efe rente relacionam as doenças bacterianas o câncer as doenças alérgicas e autoimunes e as disfunções do sistema imune como induzidas pelo estresse e me diadas pelo sistema endócrino Esta foi a revisão que possibilitou inclusive que se cunhasse a expressão Psicoimunologia ou mais modernamente Psiconeu roimunologia para designar este novo campo de co nhecimentos Desde então outras revisões apareceram sobre o tema Rogers Rogers 1979 Ader Ader 1975 Ader 1981 Schindler Schindler 1985 Em nosso meio o tema tem sido estudado por Mello Filho e Moreira dentre outros Para fins didáticos faremos uma apresentação do sistema imunológico estudaremos as relações entre o estresse e este sistema e finalmente estudaremos as repercussões clínicas destes fenômenos nas doenças alérgicas infecciosas neoplásicas e autoimunes O SISTEMA IMUNE COMO UM SISTEMA DA VIDA DE RELAÇÃO Dificuldades do organismo em lidar com agen tes infecciosos têm sido historicamente associadas a distúrbios no funcionamento do Sistema Imune SI A pandemia causada pelo vírus da imunodeficiência humana HIV parece ilustrar com riqueza de detalhes esse entendimento pois este retrovírus tem como alvo principal um dos componentes centrais do SI o linfóci to T auxiliar helper CD4 Como consequência obser vase na AIDS um trágico leque de infecções causadas por germes oportunistas complicações não usuais de infecções invasões infecciosas amplamente destrutivas e infecções com baixa resposta à terapêutica além de inúmeras outras alterações somente explicáveis pela falência de um sistema de defesa do organismo A concepção do SI como um sistema de defesa apenas voltado contra agentes externos foi preva lente durante muitos anos no estudo da Imunologia Essa concepção foi no entanto contestada através de vários experimentos que detectaram a presença de anticorpos em animais criados na ausência de estí mulos infecciosos germfree Por outros meios esses anticorpos também foram demonstrados no homem Deduzse como consequência da existência desses 14 PSICOIMUNOLOGIA HOJE Julio de Mello Filho Mauro Diniz Moreira Psicossomaticaindd 167 Psicossomaticaindd 167 05012010 121208 05012010 121208 168 Mello Filho Burd e cols autoanticorpos naturais AAN a presença de uma autorreatividade no organismo humano independen te de estímulo externo Coutinho 1995 Estes AAN são formados como resposta fisioló gica a constituintes do próprio self Fazem parte do repertório imune individual juntamente com os anti corpos que surgem como resposta a estímulos infec ciosos Ao contrário destes os AAN aumentam sua di versidade durante a infância independentemente de exposição infecciosa e se mantêm com poucas altera ções durante a vida adulta e o envelhecimento Não se conhece a extensão de seu papel mas acreditase que constituam um dos lastros de um sistema de re gulação orgânica Seus distúrbios quando não com pensados eficientemente pelo organismo poderiam gerar doenças autoimunes Coutinho Kazatchkine 1995 Ferreira 1997 Stahl 2000 A tarefa de se estabelecer o correto papel fisio lógico e fisiopatológico destes AAN tem se constituí do em um grande desafio para os imunologistas O grupo de Niels Jerne Jerne 1974 autor que mais tarde receberia um prêmio Nobel por tais estudos elaborou um modelo conceitual desenvolvendo o que foi chamado de teoria da rede Para esse autor uma primeira geração de anticorpos formada a partir da reação ao estímulo perturbador do equilíbrio portar seia também como um estímulo perturbador levan do à formação de uma segunda leva de anticorpos antiidiotipos o que foi demonstrado em animais de experimentação Seguirseiam por consequência novas ondas de anticorpos contra anticorpos Como esses eventos deveriam obrigatoriamente apresentar um término o autor sugeriu que tais antianticorpos se disporiam sob a forma de uma rede levando a um sistema em equilíbrio dinâmico permanente que se rearranjaria à medida que captasse perturbações Fi gura 131 O estímulo inicial ou antígeno agente dotado da propriedade de induzir a formação de anticorpos seria definido neste modelo como o elemento exter no ou interno perturbador do equilíbrio O sistema ao reagir ao estímulo pela ação de seus diversos com ponentes e produtos tenderia a recuperar o equilí brio eliminando o agente perturbador ou adaptando se a ele Vaz 1978 Atualmente compreendese o SI como um siste ma mediador das relações do indivíduo com agentes do meio externo bactérias vírus e outros por meio de resposta imunológica clonal de células e anticor pos ver adiante e com agentes do meio interno não cognitivos por meio da autorreatividade interna Coutinho 1995 O SI se envolveria desse modo na manutenção da tolerância aos componentes internos self e atuaria como um sistema autorregulável ope rando em íntima associação com os outros sistemas de cognição interna o Sistema Nervoso e o Sistema Endócrino Considerandose os estímulos perturba dores do equilíbrio orgânico como físicos químicos biológicos e psicossociais a ciência que estudaria as diversas interações entre o estimulo psicossocial per turbador e as consequentes reações seria a Psiconeu roimunologia A ORGANIZAÇÃO ANATOMOFUNCIONAL DO SISTEMA IMUNE As três linhas de defesa do organismo As defesas naturais Para que um agente patogênico possa multipli carse no organismo é necessário que vença obstá culos diversos representados inicialmente por um conjunto de meios físicos químicos e biológicos Estes meios constituem as defesas naturais como a integridade mecânica da pele e das mucosas as se creções e o muco que banha as superfícies mucosas Diversas substâncias bactericidas naturais com poten cial para inibir o crescimento dos microorganismos encontramse dissolvidas nos tecidos exercendo essa função O papel relevante desta primeira linha de defesa pode ser convenientemente apreciado pe las graves infecções surgidas nos grandes queimados em virtude do extenso dano à barreira cutânea Essa primeira linha de defesa age em vários aspectos de forma integrada a uma resposta imune dita natural ou inata envolvendo elementos celulares e substân cias solúveis FIGURA 141 Diagrama que ilustra o modelo conceitual da teoria da rede Vaz 1983 Antígeno Antígeno Psicossomaticaindd 168 Psicossomaticaindd 168 05012010 121208 05012010 121208 Psicossomática hoje 169 O sistema imune inato A essa resposta imune presente no indivíduo desde antes de seu nascimento concedese atualmen te um papel preponderante na função imune Esta segunda linha de defesa contra as infecções é ativada pela penetração de patógenos dotados de proprieda des proliferativas no meio orgânico A partir de pro dutos oriundos do foco infeccioso inicial liberamse as chamadas substâncias de fase aguda que o fígado produz sob a influência de citocinas ver adiante Servem de sinalização inicial para a dilatação capi lar e consequente inflamação daí os clássicos sinais de dor rubor turgor e calor além dos fenômenos sistêmicos como febre e lassidão que constituem a resposta clínica de fase aguda Essas substâncias tam bém facilitam a adesão às membranas dos capilares e a passagem rápida para os tecidos das células envol vidas na resposta inata Parslow 2001 Dentre elas umas neutrófilos e macrófagos são especializadas em fagocitar englobando e destruindo os germes em seu citoplasma outras incluem as células produtoras de inflamação linfócitos neutrófilos eosinófilos mastócitos basófilos e plaquetas enquanto outras têm papel preponderante na destruição de células ne oplásicas as células Natural Killers NK Uma característica importante da resposta natu ral é que não há aqui ao contrário do sistema imune adaptativo ver adiante envolvimento de memória imunológica ou seja à medida que contatos com os mesmos agentes patogênicos se deem posteriormen te a resposta continuará sendo da mesma magnitude e qualidade ao contrário da resposta adaptativa que aumenta e muda quando ocorrem novas exposições àqueles germes O reconhecimento inato do que é es tranho nonself é baseado no encontro de estruturas peculiares aos agentes infecciosos como determina dos açúcares e glicoproteínas que não são familiares ao organismo humano Esta é outra diferença em re lação à resposta adaptativa anticorpos e células T e B onde o reconhecimento se dá por meio de recep tores que reconhecem formas nas partículas que lhes são apresentadas podendo inclusive agir contra for mas self como nas doenças autoimunes Conhecemse doenças provocadas por funcio namento anormal da resposta inata Constituem as imunodeficiências primárias do sistema inato Ou tras por alterações em receptores de inflamação os receptores tolllike levam a doenças inflamatórias como doenças inflamatórias intestinais campo hoje de grande experimentação Medzhitov 2000 A resposta imune adquirida adaptativa Diferentemente da inata a resposta adquirida varia adaptase à medida que um conjunto de célu las linfócitos T e B reage em um primeiro contato com o antígeno resposta primária mas apresenta um comportamento diferente em um contato pos terior resposta secundária Vejase o exemplo das doen ças infecciosas comuns na infância quando após a infecção inicial adquirese imunidade A resposta adaptativa possui memória Células de memória que recentemente mostraramse eficazes em destruir o ví rus da gripe espanhola datada da 1a Guerra mun dial em sobreviventes daquela infecção comprovan do uma memória imunológica de cerca de 90 anos e passa de uma resposta inicial modesta para uma resposta altamente eficaz muito rica em anticorpos e células especializadas de defesa Existem outras diferenças entre o sistema ina to e o adaptativo mas talvez a principal delas seja a forma de reconhecimento da substância estranha Enquanto algumas centenas de receptores reconhe cem quimicamente o antígeno na resposta inata o sistema que intervém na resposta adaptativa possui em seu conjunto bilhões de estruturas capazes de re conhecer os antígenos pela forma Tais estruturas de reconhecimento apresentamse como organelas dis tribuídas na superfície das células do sistema adquiri do Como reconhecem os antígenos pela forma deve evidentemente haver no organismo uma série de res trições que impeçam que a resposta se volte contra um componente próprio que apresente forma muito similar à de um microorganismo por exemplo o que FIGURA 142 Os braços da resposta imune Oliveira Lima 1984 THR TC TS TH B P IgG IgA IgM IgD Ige Mφ Δ antígeno Mφ macrófago TH Linfócito T helper TS Linfócito T supressor THR Linfócito T da hipersensibilidade retardada TC Linfócito T citotóxico B Linfócito B P Plasmócito IgG IgA IgM IgD IgE imunoglobulinas anticorpos estimula inibe Psicossomaticaindd 169 Psicossomaticaindd 169 05012010 121208 05012010 121208 170 Mello Filho Burd e cols provocaria uma reação de autoagressão o que na re alidade acontece nas doenças por autoimunidade Órgãos e células do sistema imune adaptativo Podemos conhecer o SI Adaptativo a partir do estudo de seus órgãos e células Os primeiros podem ser classificados em centrais e periféricos Os órgãos linfoides centrais Os órgãos centrais são assim denominados por se portarem como centros de diferenciação das cé lulas primárias do sistema São representados pelo timo e pela medula óssea O timo é um órgão loca lizado na parte central alta do tórax mediastino e muito ativo no período neonatal quando atinge sua maior massa relativa diminuindo gradativamente com a idade No timo ocorre a maturação funcional de células primitivas e que serão chamadas de linfóci tos T ou timo dependentes Neste órgão os linfócitos imaturos oriundos do fígado fetal e da medula óssea são expostos a um conjunto de moléculas antigênicas que se encontram também no restante do organismo Esta exposição dáse através de células especializadas nesta função de apresentação de antígenos APC e muito abundantes no timo Neste processo apenas os linfócitos que têm receptores para essas moléculas e ao mesmo tempo demonstram reatividade não exa gerada aos componentes self que lhes são apresen tados são bem sucedidos em seu desenvolvimento amadurecem e migram para os órgãos linfoides pe riféricos onde estabelecerão as interações que carac terizam as respostas do sistema Salientese que mais de 95 de todos os linfócitos que entram no timo nesse processo de seleção central morrem na intimi dade da glândula por não obedecerem aos critérios apontados Supõese que tal processo de seleção tí mica nos ofereça uma primeira e fortíssima garantia de que não haveria reações contra estruturas próprias no decorrer da vida o que no entanto pode falhar como veremos nas doenças autoimunes Os linfócitos T dividemse em subpopulações distintas de acordo com estruturas da superfície ce lular e de moléculas que elaboram além das funções diferenciadas que exercem na resposta imune Uma divisão inicial contempla as células T auxiliares Th do inglês helper e as células T citotóxicas cujos mar cadores as fazem ser reconhecidas respectivamente como células CD cluster of differentiation 4 e 8 En quanto as primeiras ocupam lugar de destaque na co operação celular as segundas são especializadas em destruir células parasitadas por vírus e outros agentes patogênicos além de um papel na regulação da res posta imune Ambas estão envolvidas nas atividades inflamatórias geradas pelo sistema mas de forma diferente A célula T auxiliar responsabilizase pelas importantíssimas funções de auxilio às células B na produção de anticorpos participando ainda da rejei ção de transplantes e das reações contra antígenos estranhos fixos em tecidos como é o caso das derma tites alérgicas por contato e da reação à tuberculina Outro grupo de linfócitos oriundos dos órgãos primitivos medula óssea e fígado fetal não passa pelo timo em sua instrução Na medula óssea essas células evoluem de linfócitos primitivos ou imaturos até formas adultas que emergem desse órgão por tando organelas receptores de superfície que os ca racterizam como células potencialmente produtoras de anticorpos Constituem o grupo de linfócitos timo independentes ou linfócitos B de bone marrow me dula óssea Essas células exibem como receptores de superfície moléculas proteicas formadas nos 3 a 5 dias que passam no interior da medula óssea graças à ação de diversas enzimas e genes que cortam e co lam sequências do DNA elaborando uma diversidade de bilhões de sequências anticorpos Os órgãos linfoides periféricos Os dois grupos linfocitários T e B exigem am biente especializado para interagirem Aninhamse nos órgãos linfoides periféricos onde se darão as nu merosas interações entre as células do SI Os linfócitos localizamse em aglomerados nos gânglios linfáticos linfonodos e no baço Nestes órgãos a localização dos diversos elementos celulares obedece a regras que facilitam anatomicamente a exposição às substâncias captadas na circulação ou elementos fixos nos tecidos trazidos pelos fagócitos via linfa ou sangue circulan te Os linfócitos são dotados de grande capacidade de circulação e em alguns poucos minutos informações relevantes para a produção de elementos de defesa são geradas e comunicadas à distância posicionando o or ganismo em sua totalidade na reação ao agente que provocou o distúrbio Respostas aos microorganismos circulantes são geralmente iniciadas no baço enquan to as respostas a patógenos tissulares são estabelecidas nos linfonodos No caso de substâncias ingeridas ou inaladas ou que atingem o trato urogenital entra em ação o SI associado às mucosas O sistema imune das mucosas É composto por tecido linfoide associado às mu cosas do aparelho respiratório digestivo e urogenital Psicossomaticaindd 170 Psicossomaticaindd 170 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 171 Difere do SI sistêmico pela produção preferencial de um tipo de imunoglobulina anticorpo da classe IgA abundante nas secreções daqueles aparelhos e sistemas e pelo fato de que sua ação sobre o que é ingerido frequentemente leva a uma resposta de tole rância em oposição à inflamação Uma cooperação de alta complexidade ocorre entre os compartimentos T B e o sistema inato ou na tural Nos órgãos linfoides periféricos acontecem as interações entre os antígenos e os diversos elementos celulares que vão gerar respostas efetoras no sangue e nos líquidos dos diversos tecidos tais como secre ções digestivas respiratórias líquido cerebrospinal e outros Esse conjunto faz parte do chamado braço hu moral do SI Dáse aí a produção de anticorpos imu noglobulinas que são classificadas em cinco tipos ou classes designados pelas letras G A M D e E IgG IgA IgM IgD e IgE AS BASES ANATOMOFUNCIONAIS DA RESPOSTA AO ESTRESSE A INTEGRAÇÃO NEUROENDOCRINOIMUNOLÓGICA De um ponto de vista histórico vários experi mentos foram elucidativos na integração funcional entre o Sistema Nervoso Central SNC e o Sistema Imune SI Lesões no hipotálamo provocaram despo voamento celular do timo de ratos Jankovic 1973 alteraram respostas imunitárias e a composição ce lular em órgãos linfoides periféricos Macris 1970 Fessel 1963 bem como modularam reações anafilá ticas Fillip 1958 Sventivany 1958 1968 Szekely 1958 Obtevese a supressão da resposta imunitária com a extirpação da hipófise ou sua inibição funcio nal Khansari 1990 e observouse que a estimulação alfaadrenérgica potencializa e a betaadrenérgica inibe as respostas de linfócitos diante de substancias normalmente estimuladoras dessas células como a fitohemaglutinina Hadden 1970 1987 XIAO 1998 Blalok 2007 A rede de regulação neuroendócrina é ampla e complexa Vários de seus aspectos têm sido reconhe cidos O sistema hipotálamo pituitária e adrenal O sistema regulador neuroendócrino tradicio nalmente mais bem estudado é o eixo hipotálamo hipófise e suprarenal HPA A comunicação cen tral entre o Sistema Nervoso o Sistema Endócrino e o Sistema Imune acontece provavelmente a partir do sistema límbico que faz interagir as percepções córticocerebrais com o hipotálamo Esta integração dáse por contiguidade por meio de citocinas e de hormônios hipotalâmicos especialmente o hormônio liberador de corticotropina CRH que estimulando diretamente a hipófise anterior orquestra a resposta endócrina aos agentes de estresse A ativação hipofi sária por sua vez através do hormônio adrenocortico trópico ACTH faz com que se ative a córtex supra renal com consequente liberação de diversos fatores particularmente o cortisol o hormônio classicamente envolvido nas reações aos agentes estressores Este juntamente com os hormônios adrenérgicos alfa e betaadrenérgicos modula as respostas imunológicas ao estresse Ao contrário da visão inicial de que os hormônios envolvidos teriam apenas uma glândula de origem descobriuse que sua secreção se dá tam bém por outros tecidos e células Podese inferir por tanto a grande complexidade da rede neuroendócri noimunológica Malarkey 2007 As ações dessas diversas substâncias ganham um caráter de abrangência visto que as células do sistema imune linfócitos e macrófagos dentre outras pos suem receptores para os diversos hormônios e neuro transmissores podendo a eles responder ativando ou inibindo respostas imunitárias Por ação específica dos glicocorticoides liberados as respostas da imunidade inata diante das infecções alteramse Os linfócitos T também são ativados através desses mecanismos e po dem aparecer desvios do eixo Th1 para Th2 por inibi ção de citocinas pro inflamatórias IL1 IL12 O ramo simpático do sistema nervoso autônomo Os órgãos linfoides recebem predominantemen te inervação simpáticanoradrenérgica e simpática neuropeptidérgica o que já foi verificado no timo no baço nos linfonodos nas amígdalas palatinas no tecido linfoide associado às mucosas e na medu la óssea Elenkov 2000 Vários neurotransmissores como peptídeos e hormônios neuroadrenérgicos são liberados nessas junções anatomofuncionais Saben dose que as células imunitárias apresentam recepto res para essas substâncias sua interação com aquelas e seu envolvimento local e sistêmico constituem uma importante forma de ação efetora neuroimune sobre o tráfego de linfócitos sua proliferação produção de anticorpos e funções de defesa Yang 2002 Ke meny 2007 Funcionalmente há integração entre o eixo HPA e o SNA em regiões cerebrais locus ceruleus núcleo paraventricular gerando um feedback positi vo que tende à ativação de um sistema pelo estímulo do outro Quando o ramo simpático do SNA é ativado por hormônios do estresse e por alterações imunes as catecolaminas e o cortisol liberados irão estimular o eixo HPA Elenkov 2000 Psicossomaticaindd 171 Psicossomaticaindd 171 05012010 121209 05012010 121209 172 Mello Filho Burd e cols O ramo vagal do sistema nervoso autônomo Embora o papel regulador do SNA na ativida de cardiovascular seja evidente controle da pressão arterial e da frequência cardíaca só recentemente foram reconhecidas atividades pertencentes a um eixo regulador neuroendócrinoimunológico As fibras autonômicas através do ramo simpático relacionado com o sistema de produção de energia e o ramo va gal associado às funções vegetativas são distribuídas no organismo e funcionam em equilíbrio com uma variabilidade que depende das diversas situações vi vidas incluindose a resposta aos agentes estressores Thayer Sternberg 2006 Esse sistema está também sob controle de área cortical prefrontal amígdala cerebral e locus ceruleus A regulação do eixo HPA depende em parte do SNA em particular do ramo parassimpático Experiências em humanos Thayer Hall 2006 sugerem que a regulação do HPA depen de pelo menos em parte do ramo vagal do SNA As áreas que influenciam a liberação de CRF são áreas localizadas na amígdala cerebral e recebem estímulos de fibras vagais regulando assim os neurônios pro dutores deste fator Zobel 2004 A ação citotóxica de linfócitos por exemplo é aumentada por estimu lação do ramo vagal do sistema nervoso autônomo Strom 1972 O sistema dos neuropeptídeos Neuropeptídeos são substâncias elaboradas por terminais nervosos ou células residentes nos tecidos e dotadas de poder de transmissão bioquímica Neu ropeptídeos como a calcitonina a substância P o pep tídeo intestinal vaso ativo e a norepinefrina podem influenciar um número expressivo de alvos celulares como por exemplo as células de Langherans na pele que são células de múltiplas funções dentre as quais se destaca a apresentação de antígenos aos linfócitos T e B Inúmeros outros neuropeptídeos exercem atra vés de receptores na superfície dos linfócitos ações negativas inibitórias ou positivas estimulantes so bre as células imunitárias Como exemplo sabemos que linfócitos e células NK alteram suas funções pela influência de peptídeos opioides como as endorfinas Carr 1996 Os neuropeptídeos modulam funções de células T como proliferação secreção de citocinas e adesão celular necessária para que a haja intera ção celular tanto em situações fisiológicas quanto patológicas Levite 2002 Alguns peptídeos também afetam a diferenciação de células T e sua ação apre sentadora de antígenos Delgado 2004 Dada a grande quantidade de neuropeptídeos e neurotransmissores sintetizados no SNC o cérebro pode ser considerado um dos mais destacados órgãos endócrinos Fehm 2000 Perifericamente um nú mero muito grande de neurônios espalhados pelos diversos aparelhos e sistemas produz neuropeptídeos que se portam como elementos de ligação das fibras nervosas com as células do SI como se dá por exem plo no tubo digestivo O sistema das citocinas Nas últimas décadas vêm sendo descobertas di versas substâncias responsáveis isoladamente ou em conjunção com outros mecanismos por comunicação intercelular Já se conhecem várias centenas dessas substâncias genericamente chamadas de citocinas Regulam em seu conjunto não somente as respostas das células imunitárias mas também respostas infla matórias cicatrização hematopoiese angiogênese e muitos outros processos biológicos São produzidas em quantidades infinitesimais mas extremamente potentes exercem seus efeitos nas próprias células que as produzem em células contíguas ou a distân cia Oppenheim 2001 Grupos dessas citocinas interessam particu larmente ao estudo do SI Os linfócitos T auxiliares Th orquestradores da cooperação celular na res posta imune podem por exemplo de acordo com as citocinas que produzem subdividiremse em Th1 en volvidos na resposta inflamatória produzindo e sen do sensíveis às citocinas pro inflamatórias TNF α IL1 IL6 IL12 Interferons em Th2 que produzem e são influenciados por citocinas IL4 1L51L13 que os derivam para respostas de hipersensibilidade alergias e de autoimunidade e Th17 responsáveis principalmente por infiltrações neutrofílicas e cola boração nas doenças autoimunes Por outro lado determinadas citocinas como a IL10 têm efeito re gulador ou supressor sobre os processos de ativação imunitária Crescente importância vem sendo atribuída às citocinas citocinas na regulação neuroimune Trata se de substâncias proteicas solúveis liberadas espe cialmente por linfócitos interleucinas e macrófagos monocinas além de astrócitos e microglia SNC Desde a descoberta das primeiras citocinas os in terferons IFNs descobriuse um sem número de receptores celulares para estas substâncias nos diver sos tecidos orgânicos Podese falar de um conjunto de propriedades comuns às citocinas Abbas 1994 como o papel na regulação imune e inflamatória com produção das mesmas citocinas por células diferen tes A interleucina 1 IL1 o fator de necrose tumo ral TNFα e o Interferongama IFNγ secretados pelas células imunes ativadas podem modificar a fun Psicossomaticaindd 172 Psicossomaticaindd 172 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 173 ção do eixo HPA Doenças que ativam grandemente o sistema imune como traumas sepse e enfermidades autoimunes podem provocar manifestações psicopa tológicas A produção de citocinas tem sido dividida em duas grandes categorias dependendo do perfil fun cional dos dois tipos de células secretoras T helper1 Th1 que mediam a resposta celular imune através de linfócitos citotóxicos células NK e macrófagos e in cluem a produção de citocinas IFNγ TNFα e IL2 e T helper2 Th2 que aumentam as reações de anticor pos induzem a produção de IL4 IL5 IL6 e IL10 A IL4 e a IL10 possuem um efeito antiinflamatório suprimindo a atividade das células Th1 e estimulam as células Th2 e a atividade humoral anticorpos alergia autoimunidade Condições como estresse agudo ou crônico exaustivos exercícios traumatismos grandes cirurgias grandes queimaduras severas isquemias ou hipóxias gravidez e pósparto contribuem para alte rações nas concentrações locais ou sistêmicas das cito cinas via modulação da IL12 e o balanço entre TNFα e IL10 Essas alterações também desempenham pa pel na indução expressão e progressão de algumas doenças cardiovasculares e autoimunes osteoporose diabete do tipo 2 artrite reumatoide alergias e cresci mento de alguns tumores Foi observado que essas células funcionavam sob o efeito da estimulação do IFNγ de uma forma semelhante a um estímulo hormonal verificandose uma ação endócrina símile para este agente Como exemplo tecidos cardíacos murinos eram induzidos a um aumento de frequência nos batimentos pela ação dos IFNα e IFNβ de forma muito parecida como se tivessem sido estimulados por hormônios adrenérgicos Blalock 2007 1984 Também células da suprarenal aumentavam a produção de cortisol quando expostas ao IFNα Estudos recentes citados por Blalock Blalock 2007 mostraram que os recep tores celulares desses agentes podem ativar vias de transmissão de estímulos intracelulares produzindo por consequência grande quantidade de manifesta ções clínicas As células do sistema imune são estimuladas por citocinas e também as produzem Diversas célu las do organismo possuem receptores para citocinas incluindo células no hipotálamo e na hipófise Bla lock 2007 Encontramse sítios de união de IL1 em gânglios próximos de fibras nervosas vagais bem como receptores para esta citocinas foram detectados em fibras vagais aferentes Sabese que a estimula ção elétrica do vago induz o aparecimento de IL1 no hipotálamo e no hipocampo Blalock 2007 Kelley 2003 Maier 2003 A IL10 quando administrada por via intracerebral diminui as ondas lentas do sono resultando em tempo maior de vigília Smith 2006 citado por Blalock 2007 Além disso a mesma ci tocina estimula a produção de ACTH pela hipófise e inibe a produção de cortisol pela suprarenal Smith 2006 citado por Blalock 2007 Há recentes evidencias implicando o papel das citocinas pro inflamatórias particularmente a IL6 como um componente central de um grupo de doen ças em adultos idosos Elas são classificadas segundo seus efeitos no sistema imune em pro inflamatórias IL1 IL6 e FNT e antiinflamatórias IL10 e IL13 As principais ações das primeiras são atrair as células imunes ao sítio da infecção ou injuria e tornálas ati vas para responder Já as antiinflamatórias inibem a resposta imune causando a diminuição da função celular e a síntese de outras citocinas A resposta inflamatória do sistema imune pode ser acionada por múltiplos caminhos inclusive a infecção e o trauma Assim infecções recorrentes e crônicas podem provocar modificações patológicas Hamerman 1999 Por exemplo baixos níveis de persistente inflamação podem se dar quando proces sos infecciosos crônicos tais como doença periodontal infecções do trato urinário doença pulmonar crônica e doença renal crônica persistente estimularem o sis tema imune com grandes repercussões entre homens idosos que já mostravam aumentos na produção de IL6 ligado à idade Cohen 2005 Na verdade a inflamação tem sido recente mente correlacionada a uma série de condições ligadas à idade incluindo doença cardiovascular osteoporose artrite diabete tipo 2 certas doenças linfoproliferativas ou cânceres incluindo mieloma múltiplo linfoma não Hodkin e leucemia linfocítica crônica doença de Alzheimer e doença periodontal Ershler 2000 A associação entre doença cardiovascular e IL6 é relacionada em parte ao papel central que esta citoci na joga promovendo a produção da proteína C reativa PCR recentemente reconhecida como um importan te fator de risco para o infarto do miocárdio Dessa forma infecções crônicas amplificam o risco para o desenvolvimento de arteriosclerose mes mo em pacientes que não têm os demais fatores de risco De igual modo indivíduos com altos níveis de IL6 e PCR tem 26 vezes mais chances de morrerem em um período de 4 a 6 anos que aqueles que apre sentam estes níveis baixos Ao mesmo tempo a IL6 contribui para o declínio da atividade física e a atrofia muscular Por tudo isto a IL6 e a PCR desempenham papéis importantes na patogenia de doenças comuns na velhice como a osteoporose as artrites e a insufi ciência cardíaca congestiva Em animais de laboratório o estresse e a admi nistração de epinefrina elevam a IL6 evidenciando que a sua produção é estimulada através de receptores Psicossomaticaindd 173 Psicossomaticaindd 173 05012010 121209 05012010 121209 174 Mello Filho Burd e cols β adrenérgicos Através desta mesma linha de ideias comprovouse que o distresse inibe a cicatrização de feridas tendo portanto um importante papel nos pro cessos pósoperatórios Também foram feitos vários experimentos com inoculação de vacinas comprovan dose que os indivíduos mais ansiosos e estressados tinham respostas mais fracas e lentas São exatamente estes pacientes que fazem as infecções mais graves e mais resistentes aos antibióticos causa de morte tão frequente nas populações idosas acometidas de pneu monia ou de septicemia em nossos CTIs Assim a com binação de influenza e pneumonia é a quarta causa de morte na população de mais de 75 anos É também importante salientar que citocinas tais como a IL6 estimulam o funcionamento do sistema endócrino um dos muitos funcionamentos bilaterais dos dois sistemas A IL6 é um potente estimulador da CRH um mecanismo que leva a uma maior produ ção de ACTH e cortisol Então as emoções negativas que desregulam a IL6 podem também promover por esta via alterações neuroendócrinas com suas conse quências imunes Regulação bidirecional Desde 1975 foi demonstrado que a imunização de animais com diferentes antígenos era capaz de provocar alterações neuroendócrinas incluindo al terações do potencial elétrico de neurônios do hipo tálamo Besedovsky 1977 Por sua vez a atividade elétrica cerebral promove aumento da produção de CRF pelo hipotálamo o que estimula a liberação de ACTH pela hipófise e consequentemente aumento dos glicocorticoides pela suprarenal Estes chamados hormônios da resposta ao estresse podem pela dura ção do processo eou sua intensidade provocar alte rações na regulação do Sistema Imune provocando doença Ader 2000 Blalok 2007 Linfócitos são capazes de sintetizar hormônios incluindo ACTH hormônio do crescimento e prolac tina Malarkey 1989 e vários aspectos da resposta imune são afetados por hormônios corticoesteroides e ACTH Yang 2002 Foi demonstrado que leucóci tos tratados com catecolaminas in vitro são inibidos em sua função de síntese de IL12 Elenkov 1996 2002 promovendo um desvio do eixo Th1 para Th2 Yang 2002 Linfócitos macrófagos e granulócitos apresentam receptores para muitos neurotransmisso res e peptídeos Felten 1991 Estes dados dentre outros demonstram a exis tência de uma rede de múltiplas influências que se retroalimentam na produção da resposta a um agente perturbador que poderia ser desde uma substância estranha ao organismo e dotada de poder de se mul tiplicar como um agente estressor promovendo alte rações imunitárias Yang 2002 Wrona 2006 No Quadro 13l podemos observar alguns dos efeitos imunomoduladores na rede neuroendócrina Amkraut e Solomon Amkraut 1987 apresen tam interessante resumo dessas influências hormo nais sobre o sistema imune dividindoas por locais de influência como sendo 1 Sobre a captação processamento e apresentação do antígeno que eles chamam arco eferente da resposta a ativação e inativação de macrófagos b efeitos diretos sobre o fluxo linfático e sanguí neo controlando a intensidade de apresenta ção do antígeno o que pode ser especifica mente de importância em relação a agentes infecciosos c modificação de substâncias do próprio orga nismo que poderiam passar a apresentarse como antígenos autoantígenos por exem plo por ativação de plasminogênio em plas mina o que tem se demonstrado em estresse psicológico 2 Na produção montagem da resposta que os autores chamam de arco central não confundir com órgãos linfoides centrais a alterações marcantes nos números absolutos proporção e distribuição de células imuno competentes nos tecidos linfoides b efeitos sobre secreção de anticorpos por plas mócitos e alterações no estímulo de células T sobre B c efeitos sobre subpopulações supressoras o que poderia levar a doenças autoimunes d alterações na regulação de produção de anti corpos específicos o que poderia alterar pro fundamente o curso de doenças infecciosas 3 Em nível periférico poderíamos ter como exem plo a níveis levemente aumentados de corticoes teroides auxiliariam macrófagos na remoção de complexos antígenoanticorpo enquanto a inativação dessas células seria obtida com altas doses permitindo a difusão da doença b catecolaminas em níveis aumentados podem suprimir reações de hipersensibilidade c efeitos de linfocinas podem ser modificados por alterações hormonais como resposta ao estresse bem como alterações nas interações célulacélula tão importantes na efetivação da resposta imune Psicossomaticaindd 174 Psicossomaticaindd 174 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 175 FATOR AÇÃO EFEITO Glicocorticoides S Produção de anticorpo atividade NK produção de citocinas Catecolaminas S Proliferação linfocitária sob estímulo mitógeno in vitro Acetilcolina E Número de macrófagos e linfócitos na medula óssea Hormônios sexuais SE Transformação blástica de linfócitos Endorfina ES Síntese de anticorpo ativação de macrófagos células T Metionina Encefalina E Em dose baixa ativação de células T em altas doses supressão Endorfina E Transformação blástica de linfócitos por mitógenos Tiroxina E Ativação de células T e anticorpos Prolactina E Ativação de macrófagos produção de interleucina 2 Hormônio do crescimento E Síntese de anticorpos ativação de macrófagos modulação de 112 Vasopressina E Proliferação de célula T Acitocina E Proliferação de célula T Peptídeo intestinal vasoativo SE Produção de citocinas por macrófagos e linfócitos Melatonina E Síntese de anticorpos ACTH ES Produção de citocinas atividade NK síntese de anticorpos ativação de macrófagos Somatostatina SE Síntese de anticorpos respostas de linfócitos a mitógenos Adaptado de Khansari 1990 S Suprime E Estimula QUADRO 141 Neurotransmissores e hormônios com propriedades imunomodulatórias Portanto as células do sistema imune encon tramse sob extensa e complexa rede de influência dos sistemas nervoso e endócrino Seus mediadores neurotransmissores e hormônios diversos atuam sinergicamente com produtos linfocitários de macró fagos e moléculas de produtos inflamatórios na regu lação de suas ações Trabalhos bem recentes corroboram a grande interdependência dessas estruturas Farrar 1986 por exemplo demonstrou que células do sistema ner voso podem produzir moléculas do sistema imune Figura 133 Apesar do aumento do nível dos conhecimen tos sobre esta extensa e complexa rede ainda não se conhecem os mecanismos pelos quais o organismo estabelece adequada ou má resposta diante dos agentes de estresse ESTRESSE E SISTEMA IMUNE Estresse físico psicológico ou social é um ter mo que compreende um conjunto de reações e estí mulos que causam distúrbios no equilíbrio do orga nismo frequentemente com efeitos danosos O conceito de estresse foi apresentado por Selye em 1936 a partir de experimentos em que animais eram submetidos a situações agressivas diversas tais como dor frio e fome agentes de estresse e sempre respondiam de forma regular e específica Selye 1936 descreveu o que chamou de sín drome geral de adaptação com três fases sucessivas alarme resistência e esgotamento Após a fase de es gotamento surgem as doenças as chamadas doenças de adaptação como a úlcera péptica a hipertensão arterial artrites e lesões miocárdicas Embora Selye tenha estudado o estresse físico componentes de sua equipe fizeram as primeiras ob servações sobre o estresse psicológico relatando al terações hormonais encontradas em equipes náuticas de competição nas horas que antecediam as provas Thorn 1953 Pincus e Hogland 1943 também comprova ram aumento da excreção urinária dos hormônios da suprarenal em pilotos e instrutores aeronáuticos em voos simulados Além dos agentes físicos e psíquicos atualmen te dáse grande importância ao chamado estresse social motivo de contribuições de diversos autores como nos trabalhos de Levy 1964 apontando situa Psicossomaticaindd 175 Psicossomaticaindd 175 05012010 121209 05012010 121209 176 Mello Filho Burd e cols ções como exposição a ruídos aglomeração urbana isolamento trabalho monótono e repetitivo ou seja o que corresponde ao modo de viver das grandes me trópoles como poderosos fatores de doença princi palmente as doenças cardiovasculares Lazarus conceituou o que chamou de coping que Eugênio Campos traduziu como sistema de adaptação e enfrentamento isto é o conjunto de mecanismos de que o organismo lança mão em rea ção aos agentes do estresse representando a forma como cada pessoa avalia e lida com estas agressões Os mecanismos de coping explicam por que ava liamos desta ou daquela forma a situação desafiadora enfrentandoa ou não e o fazendo com particularida des muito pessoais com maior ou menor repercussão sobre o organismo Estresse e sistema imune duas revisões Foram publicadas em 2007 duas excelentes revisões sobre este tema a de Kemeny e Manfred Schedlowski 2007 e a de Laudenslager e Coe 2007 a partir de trabalhos encontrados principalmente na re vista Brain Behaviour and Immunity BBI Kemeny e Schedlowski 2007 destacam que nos últimos 20 anos com a utilização de novos mé todos experimentais estudos sobre o ato de cuidar de bebês análise de lutos e de conflitos conjugais e empregando parâmetros de resposta imunológica circulação de subpopulações de linfócitos atividade linfocitária produção de citocinas etc comprovou se a ação inibitória do estresse psicológico sobre o Sistema Imune SI Por outro lado trabalhos sobre o estresse agudo inerente a alguns eventos como falar em público e saltar de paraquedas mostraram que em tais situações poderia darse estimulação do SI Coe e Laudenslager 2007 abordam do pon to de vista histórico uma fase antes de 1987 onde citam contribuições da Psicanálise no entendimento das doen ças psicossomáticas e na identificação de atributos da personalidade que poderiam afetar o câncer ou a progressão da AIDS Citam a literatura que ressalta a importância de eventos traumáticos infantis contribuindo para o aumento da incidência de patologias na vida adulta e predispondo a uma tendência pro inflamatória Trabalhos envolvendo os enlutados em especial provocaram curiosidade nos pesquisadores Bartrop 1977 Irwin 1987 Irwin 2007 Logo nos dois primei ros meses após a perda estes indivíduos apresentavam significativa diminuição da estimulação de linfócitos uma função indispensável na geração da reação imu nitária e também na reposta das células Natural Killers NK que como sabemos respondem por importan tíssima função na eliminação de células neoplásicas Ficou claro que as células NK eram as mais responsivas ao estresse reduzindose desde os minutos iniciais até horas dias ou mesmo semanas após o mesmo Tam bém ganhou relevância segundo os autores a ligação entre depressão e imuno deficiência demonstrandose que a depressão po deria induzir estados imunodefici tários Posteriormente esta lista cresceu para abarcar o estresse dos exames escolares do desemprego e das discórdias conjugais Os autores Coe 2007 enfatizam a ação bené fica do suporte social na proteção à ação do estresse Notaramse os efeitos protetores da companhia social nos maus momentos e os efeitos estimuladores à saú de nos bons momentos Cohen 1985 Trabalhos em animais confirmavam o que esta va sendo observado em seres humanos Observouse que a superpopulação e a aglomeração de ratos impe diam repostas contra infecções e facilitavam o desen volvimento de tumores Em animais domesticados os resultados eram semelhantes confirmando uma forte ligação com o ambiente onde o animal era testado seja por rompimentos das relações sociais seja pela imprevisibilidade de novos estímulos ou pela ameaça eletrochoque ou confinamento Na revisão que fazem da década seguinte Kemeny e Schedlowski Kemeny 2007 abordam doen ças como a Artrite Reumatoide AR e o Lupus SNC Sistema Nervoso Central SE Sistema Endócrino SI Sistema Imune Estressores Hormônios endócrinos Hormônios endócrinos Hormônios pituitários Imunotransmissores Imunotransmissores Neuropeptídeos SNC SE SI FIGURA 143 Interdependência dos sistemas nervoso endócrino e imune Khansari 1990 Eugênio Campos 1988 Comunicação Pessoal Psicossomaticaindd 176 Psicossomaticaindd 176 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 177 Eritematoso Sistêmico LES que geralmente são de sencadeadas por episódios ou períodos de estresse Nessas doenças um processo inflamatório crônico parece estar associado com disfunção do eixo Hipo tálamo Hipófise Suprarenal HPA resultando numa secreção alterada do hormônio liberador de corticotropina CRH do ACTH que estimula a su prarenal e dos glicocorticoides todos participantes das funções efetoras no processo autoimune Ver As Bases Anatomofuncionais da Resposta Ao Estresse A Integração Neuroendocrinoimunológica Em rela ção ao Sistema Nervoso Autônomo SNA os autores relatam que em ratos com artrite experimentalmente induzida os antagonistas adrenérgicos rapidamente reduzem os sintomas articulares Em contraste o uso dos agonistas exacerba a manifestação Outros estu dos demonstraram anormalidades na interação SNA e SI via receptores betaadrenérgicos em pacientes com Artrite Idiopática Juvenil AIJ portandose como um fator agravante na resposta ao estresse nestes casos e em menor extensão na Artrite Reumatoide AR Nas associações entre estresse e doenças infec ciosas Kemeny e Schedlowski Kemeny 2007 citam importantes pesquisas feitas em animais particular mente através de indução de viroses Usando tais técnicas Cohen Cohen 1991 encontrou que índices mais elevados de estresse prediziam maior susceti bilidade a infecções virais por rinovirus menor for mação de anticorpos e sintomas mais intensos Em experimentos com seres humanos com modelos que avaliam as respostas imunes a vacinações contra a in fluenza e a hepatite B taxas menores nos anticorpos induzidos por aqueles agentes vacinais puderam ser previstas em pessoas em situações de estresse agudo exames médicos escolares ou crônico cuidadores de pacientes com Alzheimer Um terceiro tipo de si tuação emblemática relatada é a reativação de viroses latentes como as produzidas pelo vírus BarrEpstein EBV o herpes simples HSV e o citomegalovirus CMV Em outro importante campo de estudo nos indivíduos infectados pelo vírus da Imunodeficiência Humana HIV que frequentemente são submetidos a constantes e importantes estresses tais como estig mas conflitos familiares ligados ao seu diagnóstico e às vezes à morte de companheiros as por eles con taminados experimentos puderam prever a queda dos níveis de CD4 e o início dos sintomas da doença com base nos estresses enfrentados de maneira surda ou aguda Respostas como pessimismos sobre a evo lução da doença predisseram degradação imunitária e inclusive morte Coe e Laudenslager Coe 2007 resumem a década de 1987 a 1996 referindo alguns dos traba lhos que se voltaram para a questão dos cuidados aos recémnascidos Afirmam que se o sistema imunoló gico do adulto é altamente sensível a questões inter nas e externas é natural que a criança com toda a sua fragilidade também deva ser Cientistas criaram a técnica de handling manuseio de animais de labo ratório que consiste em tirar por algum tempo a cria de junto da sua mãe gerando uma interferência na relação mãefilho Esta técnica como outra nitida mente estressora de promover o desmame precoce mente levam a modificações na resposta antigênica na resposta celular imune e na capacidade de conter um tumor transplantado Segundo trabalhos dos pró prios autores uma ou duas semanas após macacos serem separados de suas mães há diminuição da fun ção linfocitária Em sua revisão da década de 1997 a 2006 Coe e Laudenslager Coe 2007 citam os avanços dos mé todos através da obtenção de neuroimagens cerebrais com escalas mais precisas que vem permitindo uma visão real do órgão e a possibilidade de poder estudá lo em conjugação com técnicas da psicoimunologia estabelecendose correlações com aspectos psicológi cos e comportamentais Quanto às citocinas afirmam que esta foi a sua década Foram apreciadas inicialmente como media dores intracelulares da inflamação local Simultanea mente houve uma conscientização da sua importân cia inicialmente da IL1 e logo a seguir do triunvirato IL1 IL6 e TNFα Inúmeras outras pesquisas de monstraram que as citocinas são ubíquas e que faci litam a comunicação entre sistemas fisiológicos Esta descoberta é um evento historicamente significante para o campo da Psiconeuroimunologia Além de vá rias outras funções exercem ações diretas no cére bro bem como na atenção e na memória Altos níveis de citocinas na corrente sanguínea criam um estado de mal estar falta de apetite e fadiga enquanto níveis mais baixos atuam no hipocampo afetando a cria ção e a recuperação de memórias Uma constatação surpreendente e da maior importância para a rede pública é a de que a inflamação desenvolvida por es tes agentes em determinados contextos desempenha um papel na doença coronariana Blalock 2007 e quando a IL6 aumenta com a idade principalmente em indivíduos que vivem em condições estressoras isso poderia levar à arteriosclerose Outras áreas continuaram a ser investigadas na década como as alergias e da asma demonstrando se que nesta última influências estressoras agravam os processos responsáveis pela inflamação e constri ção das vias aéreas Os autores Coe 2007 comentam as catástro fes ambientais que assolam nosso planeta provocan do epidemias infecções e infestações maciças prin cipalmente em populações carentes e com possíveis brechas imunológicas Segundo eles trabalhos de Psicossomaticaindd 177 Psicossomaticaindd 177 05012010 121209 05012010 121209 178 Mello Filho Burd e cols psicoimunologia permitiriam explicar porque estas doenças continuam a se manifestar muito depois da catástrofe inicial Um número especial do BBI abordou um tema muito original em 1999 de como os fatores psicoló gicos em homens e animais podem afetar a imuni dade e de como experiências precoces conduzem ou para o equilíbrio ou para a fragilidade emocional e a doença A ideia parte de trabalhos psicanalíticos que demonstraram que traços de personalidade ou mes mo de caráter são muito precocemente construídos geralmente em torno de falhas ambientais Segers trom e colaboradores 1999 baseandose em que traços como otimismo persistente aborrecimento e inibição social podem ser hereditários postulou que o mesmo poderia acontecer com os animais isto é que estes também teriam seus traços de personalida de O fato é que muitas espécies de ratos e também de macacos apresentam sempre um comportamento estável e predisposição de temperamento para a so ciabilidade e a docilidade o que deveria associarse a um determinado perfil imunológico Na infecção pelo vírus da imunodeficiência dos macacos SIV a variação na sociabilidade e no temperamento ajudou a explicar porque a imunodeficiência progrediu mais rapidamente em alguns macacos Essa abordagem aponta para uma questão muito em voga hoje em dia que trata dos marcadores genéticos neurohormonais e imunohistoquímicos de determinadas doenças e seus correspondentes aparentes os chamados fenóti pos neuroendócrinos Na revisão empreendida por Kemeny e Schedlo wski Kemeny 2007 sobre a década de 19972007 no item estresse e doenças inflamatórias os autores formulam a hipótese de que nas doenças inflamatórias crônicas possa existir uma interação neuroendócrinai munológica distorcida ou uma resposta inadequada do eixo HPA e do ramo simpático do SNA ao estresse Altos níveis de estresse têm sido associados à baixa de CD4 CD8 e da diminuição da atividade NK Os autores citam estudos com macacos que com provaram que experiências de troca de jaulas e de separação prolongada aumentavam a gravidade da doença nos infectados com o vírus da imunodeficiên cia dos símios SIV Finalmente os autores afirmam que os últimos 10 anos foram muito férteis em importantes contri buições para o entendimento do câncer e das doenças autoimunes bem como para o a patogenia do HIV e das viroses em geral Destacam que se todos os elos desta corrente não são ainda conhecidos isso é resul tado da presença de múltiplos fatores controlando as suas etiologias como genética estilo de vida macro e microambientes DOENÇAS ALÉRGICAS Um maior interesse acadêmico pelas doenças alérgicas remonta ao inicio do século passado quan do se conseguiu provocar reações anafiláticas em laboratório Foram assim denominadas por se ima ginálas à época opostas à profilaxia um estado de proteção também obtido experimentalmente Nos anos 1920 e 30 tipificouse um grupo de indivíduos que poderia ser diferenciado pela tendência a apre sentar determinadas doenças alérgicas tanto em ní vel pessoal quanto familiar Essa tendência foi chama da de atopia e estes indivíduos de atópicos Tinham dentre outras características a propriedade de seu plasma poder transferir ainda que por curto espaço de tempo a reatividade que apresentavam a indiví duos não atópicos As substâncias do soro que se ima ginava dispor desta propriedade foram chamadas de reaginas elementos que reagiam Na década de 1960 descobriuse que as reaginas eram na verda de imunoglobulinas anticorpos da classe E IgE Portanto estes indivíduos passaram a ser definidos além das características clínicas e epidemiológicas como aqueles que tinham predisposição a formar IgE para antígenos comuns do meio ambiente fungos epitélios de animais microparasitos etc Bem mais recentemente descobriuse que os linfócitos T auxi liares Th destas pessoas diante daqueles antígenos davam origem preferencialmente a linfócitos Th2 células que elaboram citocinas próalérgicas diferen temente dos indivíduos não atópicos que produzem nestas circunstâncias preferencialmente citocinas do tipo Th1 as quais participam ativamente do combate a agentes infecciosos Ver a Organização Anatomofun cional do Sistema Imune Portanto imaginase que os atópicos sofram de um desequilíbrio entre as cito cinas Th1 IL1 IL12 IFNγ e Th2 IL4 IL5 IL13 predispondo assim às reações alérgicas Estresse e sistema imune nas alergias Observouse experimentalmente que o estres se influencia a divisão Th1 e Th2 Wrigth 1998 Chung 2003 As doenças alérgicas como a anafi laxia a asma alérgica e outras têm seu mecanismo patogênico ligado a determinadas células dos teci dos e seus sucedâneos no sangue respectivamente os mastócitos e os basófilos Estas célulasalvo das alergias têm suas membranas celulares recobertas por anticorpos da classe IgE em grandes quantidades nos atópicos Quando os antígenos por exemplo pó caseiro ácaros metabolitos da penicilina alimentos e outros entram em contato através de ingestão Psicossomaticaindd 178 Psicossomaticaindd 178 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 179 inalação ou injeção com as moléculas destes anti corpos adsorvidos na célulaalvo esta libera para o meio externo mucosa sangue tecidos substâncias farmacologicamente ativas especialmente histamina e enzimas que se encontravam préformadas em seu citoplasma Essas substâncias pela vasodilatação e constrição brônquica que acarretam moldam o de senho clínico dos quadros de urticária asma alergias gastrintestinais cutâneas dentre outras Os mastócitos são enervados por fibras adrenér gicas Rook 1994 sendo que a norepinefrina tam bém estimula a produção de IL4 fundamental para a divisão dos linfócitos em sua transformação para Th2 e consequente produção de IgE Os mastócitos esta belecem uma relação anatômica com o SNA estan do sob a influência de inervação de fibras simpáticas pósganglionares que liberam norepinefrina além de outras substâncias Sugiura 1992 Tudo isso nos faz apreciar a importância potencial das interações entre o SN e o SI em relação às doenças alérgicas Asma brônquica Certamente uma das doenças que mais tem sido considerada como exemplo de doença psicosso mática é a asma brônquica Ela é claramente multi fatorial visto que tanto na prática clínica como em experiências de laboratório demonstrase a presença de desencadeantes de diversas origens tais como alér genos fumos pós exercício e situações estressantes A importância dos fatores emocionais na asma vem sendo amplamente documentada por trabalhos de orientação psicanalítica clínica e experimental desde Alexander e French French Alexander 1941 Abramsom 1961 Sperling 1949 A sugestionabili dade do paciente asmático é sobejamente conhecida e explica as curas milagrosas nestes pacientes Têm sido observadas na clínica das doenças atópicas in fluências de diversas situações de estresse sobre o agravamento da diátese alérgica Existem experimen tos já clássicos de sugestão envolvendo inalação de soro fisiológico induzindo asma Pastorello 1987 ou um aumento de ventilação em provas funcionais pul monares em laboratório pela evocação de lembranças de ataques de asma Clarke 1980 A necessidade da presença simultânea de fato res de ordem psicológica e física alérgica na história natural da asma é marcante Estudo de 41 pacientes alérgicos em geral com testes cutâneos e investigação psicológica entrevistas e testes de personalidade encontrou em 75 dos casos ser necessário a pre sença de ambos os fatores para que a sintomatologia asmática apareça Quando a predisposição somática era pequena e o fator psicológico intenso o paciente apresentava sintomatologia neurótica Porém quando ambos eram prevalentes os sintomas alérgicos cons tituíam a regra Jacobs 1966 Tem sido observado também que indivíduos pertencentes a famílias de atópicos e portanto aptos a desenvolverem sintomas das referidas doenças não as desenvolvem até que se exponham a algum acontecimento estressante agudo ou crônico Nesse momento o sujeito passa a exibir por dificuldades em lidar com o estresse a doença de seus familiares em todos os detalhes Referimos um caso clínico acompanhado por um dos autores de um individuo assintomático de 49 anos oriundo de uma família em que existiam vários casos de rinite alérgi ca incluindo seus três irmãos Com a perda inespera da do emprego quando já se deparava com a possi bilidade de uma aposentadoria passou a exibir com riqueza de sintomas um quadro de rinite alérgica Mesmo com a admissão em outro trabalho a doença não mais o abandonou Comunicação pessoal Um estudo prospectivo de 90 crianças 6 a 13 anos portadoras de asma persistente e acompanhadas durante 18 meses por meio de entrevistas e testes psi cológicos indicou uma associação entre estresse agudo e exacerbações da asma É interessante observar que os autores notaram um intervalo de até duas semanas en tre o episodio provocador e a exacerbação Sandberg 2000 Isso leva a suspeitar de uma influência do estres se sobre a fase tardia inflamatória da reação asmática que sabemos ser responsável por morbomortalidade au mentada nesta doença Chen 2007 A asma é considerada uma doença na qual a in flamação desempenha importante papel A descober ta que a exposição a um alérgeno induzia uma reação tardia pela ação especialmente de citocinas IL5 re volucionou o tratamento Hoje os antiinflamatórios corticosteroides inaláveis constituem a pedra de toque na condução terapêutica dos asmáticos Na epp 2007 A descoberta de que o estresse desem penha importante papel na indução e manutenção da inflamação explica a já tão conhecida influência das emoções no desencadeamento e na persistência dos sintomas asmáticos Um papel do estresse sobre a asma seria o de predispor o indivíduo a uma maior susceptibilidade de sua árvore respiratória hiperrea tividade brônquica aos diversos fatores desencade antes Chen 2007 Isso pode ser demonstrado pelo achado de hiperreatividade brônquica em estudantes durante as fases de seus exames escolares com au mento concomitante de IL5 Liu 2002 Moreira MD 1996 Psicossomaticaindd 179 Psicossomaticaindd 179 05012010 121209 05012010 121209 180 Mello Filho Burd e cols A incidência da asma e das alergias está aumen tando em todo o mundo Estabelecer uma relação firme entre esses diversos fatores pode possibilitar novos enfoques terapêuticos e possíveis estratégias profiláticas Marshall 2004 Urticária Até aproximadamente a década de 1950 a ur ticária doença caracterizada pelo aparecimento de placas pápulas avermelhadas difusas ou localiza das e muito pruriginosas era considerada uma do ença essencialmente alérgica O enfoque moderno desse problema aponta para causas alérgicas e não alérgicas no seu desencadeamento Quando a urticária permanece por seis semanas ou mais é denominada crônica e constituise em sério problema de diagnóstico etiológico visto que cerca de 80 dos casos são apontados como sendo de cau sa desconhecida Champion 1969 Além deste aspecto a urticária crônica tende a permanecer por longo tempo em termos médios cerca de 5 anos segundo Champion e colaboradores 1969 Apesar de relatos de associação entre urticária crônica e fatores psicossomáticos tal associação tem sido desprezada nos modelos investigativoetiológi cos clássicos Moreira Moreira 1983 reviu 12 pacientes consecutivos portadores de urticária crônica ado tando além de um modelo investigativoetiológico clássico uma abordagem integral do doente incluin do aí além da história da pessoa a avaliação das cir cunstâncias que cercaram o aparecimento da doença e a discussão dos diversos conflitos que auxiliavam a manutenção dos sintomas Como resultado observou que ao contrário do que se estabeleceu classicamente em cerca de 80 dos casos existiam conflitos emocionais na gênese e na manutenção dos sintomas da urticária crônica o que o levou a classificar esse distúrbio como sendo de natureza psicossomática Em consequência da abordagem terapêutica uti lizada pôde apreciar evolução muito mais favorável em confronto com os dados disponíveis na literatura médica pois em cerca de 55 dos casos os sintomas desapareceram em média com 4 meses de tratamen to Em todos os casos criaramse condições para um verdadeiro processo psicoterápico entre o paciente e o médico alergologista levando a uma eficácia clíni ca nitidamente superior à obtida com a clássica abor dagem organicista A seguir apresentamos um resumo de um dos casos atendidos Caso clínico H R feminina 34 anos branca natural de Itaboraí RJ solteira do lar QP Urticária há três meses HDA Há cerca de três meses aparecimento de lesões urticariformes fugazes difusas diárias sem horário fixo Nega circunstâncias desencadeantes apesar de suspeitar de chocolate e peixes Antecedentes alergológicos pessoais e familiares apre senta rinite alérgica caracterizada por crises de espirros prurido nasal e obstrução nasal basculante mais frequente no inverno e que piora com pó domiciliar Revisão de apare lhos e sistemas Portadora de síndrome de WolfParkinson White em uso de antiarrítmicos Exame físico Mucosa nasal edemaciada e pálida Exa mes complementares Testes epicutâneos com antígenos inalatórios pó doméstico positivo forte paina positivo moderado e epitélio de gato positivo fraco Demais exa mes Sem alterações Instituído controle de ambiente para pó domiciliar e trocado o antiarrítmico durante uma sema na pelo cardiologista a nosso pedido A paciente é a mais velha de três filhos sendo os ou tros respectivamente um irmão com 32 e uma irmã de 20 Diz ter tido uma infância muito presa Sua mãe estava frequentemente doente sofrendo de cefaleia e distúrbios digestivos que atribuía a males do fígado O pai dirigia a família autoritariamente A paciente relata ter tido grande desilusão amorosa em passado recente Sua urticária iniciouse durante episódio de separação deste namorado O namoro não havia sido aprovado pelo pai sob a alegação de que o rapaz era par do O pai proibiua de continuar encontrandose com o na morado e ameaçandoa com agressão física caso o fizesse Devemos observar que a oposição do pai em relação ao namoro não era diretamente comunicada à paciente mas sim intermediada pela esposa A paciente rompeu o namoro e passou por um período de depressão iniciandose nessa época sua urticária Nas primeiras entrevistas conosco apresentase poli queixosa e deprimida com palpitações e dispneia suspirosa Nossa atuação passa a ser feita no sentido de relacionar o que estava claro àquela altura ou seja suas diversas queixas somáticas e depressivas com os fatos ocorridos em rela ção ao namoro recémterminado e a outros fatos de seu relacionamento familiar principalmente em relação a seu progenitor Tais fatos eram trazidos pela paciente quase sempre sob o aspecto da interferência paterna no sentido de desautorizar comportamentos da paciente em relação a amizades e de influir diretamente em suas questões ínti mas como o uso de determinadas roupas etc H R chora va durante as entrevistas sentindose injustiçada pelo com portamento do pai em relação a si própria Um episódio de exacerbação de suas lesões ocorreu quando seu pai convidou um seu irmão tio da paciente e que havia abandonado a mulher para morar com a família apesar da discordância dos outros membros da família e da paciente No entanto prevaleceu a vontade paterna e o tio juntouse à família desta Psicossomaticaindd 180 Psicossomaticaindd 180 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 181 Tratavase de alcoólatra que na ausência do pai da pa ciente assume atitude autoritária passando segundo a pa ciente por chefe da casa O tratamento continuava com nossas tentativas de as sociar para a paciente os recentes episódios de hostilidade surda da parte dela contra as figuras do pai e do tio e a exacerbação dos sintomas e sua depressão Depois de algumas entrevistas em que chora copiosa mente passa a apresentarse sem urticária Passou a dedicarse a trabalho religioso em sua comuni dade onde exerce a função de coordenação de um grupo que vai de casa em casa nos bairros mais pobres procu rando determinar as condições de vida do local para levar auxílio religioso e material Nessa fase começa a namorar um rapaz do movimento religioso a que pertence Em casa passa gradativamente a cultivar atitude de maior liberdade contestando ocasional mente o pai mas guardando ainda uma linha de conduta introvertida Isso se dá após cerca de quatro meses de con sultas conosco Após mais quase dois meses de entrevistas semanais sem urticária concordamos em que venha mais espaçada mente a cada três meses Três meses após essa consulta concordamos que deva ter alta Outros casos clínicos Um paciente atendido por um de nós JMF que chamaremos de João enfrentava um momento muito difícil em decorrência da enfermidade da es posa Esta portadora de lupus eritematoso sistêmico estava em fase de atividade da doença com o aco metimento de vários órgãos e sistemas internações hospitalares e episódios depressivos Nessa situa ção funcionando como o sustentáculo de sua famí lia atual soube de súbito de outra crise vivida pela sua família de origem da qual estava distante nada podendo portanto fazer João tinha uma história de liderança familiar e foi muito difícil para ele não se encontrar em condições de ajudar seus pais e irmãos naquele momento Pensou então É pressão demais para mim não estou podendo suportar acho que vou ficar doente No dia seguinte surgiu um quadro de intensa expectoração brônquica Ao ser radiografado ele apresentava extensa lesão pulmonar compatível com síndrome de Löeffler exsudato pulmonar eosi nofílico O diagnóstico foi confirmado pelo achado de eosinofilia de 22 Como essa doença alérgica tem curso benigno em poucos dias o quadro desa pareceu Neste quadro pode ser visto o aparecimento da doença em decorrência de uma sucessão de estres ses quando surgem sentimentos de desistência e de desesperança Há uma nítida percepção do momento do adoecimento que já temos visto em outras opor tunidades porém não é o mais comum e sim o sur gimento menos nítido de percepções sintomas e ma nifestações Em João também pudemos observar um fenômeno interessante ele tolerar os vários estresses da convivência com a doença da esposa mais difíceis ainda por ser ele da área médica porém não o estres se da notícia da crise da sua família de origem Por um lado isso funcionou como aquele algo a mais que faz o copo transbordar por outro como um tipo de estresse em relação ao qual ele se sentia paralisado e não podia agir como o estava fazendo continuamen te em relação a sua esposa João sofreu muito sobretudo com o início pois o aspecto radiológico era compatível com neoplasia o que foi transmitido pelos médicos de modo não ver bal João porém captou essa possibilidade e ficou muito assustado até que a doença fosse de todo es clarecida Lídia é uma paciente desquitada de 29 anos mãe de um casal de filhos que sofre de asma brôn quica desde os primeiros anos de vida Descreve a mãe como muito controladora e possessiva e o pai machista e autoritário ambos pernambucanos Ela é uma mulher tímida porém muito independente o que levoua a se separar por ser o seu marido tão prepotente como o pai escolha edipiana Lídia fez um período de psicoterapia analítica grupal com um de nós JMF tendo alta aos 8 anos de tratamento clinicamente curada da asma Ela tinha crise de asma todas as vezes que se sentia oprimi da controlada inclusive por mim Adotava no grupo uma postura muito desafiadora comigo apesar da timidez Numa oportunidade notou que eu empurrava com os pés o pufe onde os repousava todas as vezes em que eu entrava em conflito com o grupo Lidia denunciou Dr Júlio está puto com o grupo e empur rou o banquinho Expliquei que deste modo aliviava a tensão mas que não retaliava o grupo Este episó dio se repetiu por várias vezes discutindose que si tuações do grupo poderiam estar afetando o analista Pôdese entender que diferentemente do analista que empurrava suas tensões para fora ela engolia as suas para dentro para os pulmões As crises de Lídia foram amainando aos poucos até que desapareceram e ela pode ter alta como uma pessoa muito mais feliz e descontraída disposta para viver os embates da vida emocionalmente e não mais apenas somaticamente DOENÇAS INFECCIOSAS Sem dúvida o campo de estudos mais pesqui sado em Psicoimunologia é aquele que relaciona os Psicossomaticaindd 181 Psicossomaticaindd 181 05012010 121209 05012010 121209 182 Mello Filho Burd e cols fatores psicológicos e o estresse com as doenças in fecciosas A manutenção da homeostase do organismo diante dos agentes infecciosos visa a impedir sua multiplicação bem como a resistência às infecções Apontamse como mecanismos inespecíficos as bar reiras naturais pele cílios presença de ácidos nas superfícies substâncias inativadoras da proliferação dos germes nos humores e muitos outros Já os meca nismos específicos estão representados por uma eli minação muito mais eficaz graças à interferência do sistema imune Os anticorpos por exemplo facilitam extremamente a atração a aderência e a fagocitose dos germes invasores pelas células brancas e pelos macrófagos Os anticorpos também participam da neutralização de partículas virais circulantes Graças ao braço celular da resposta imune podem ser des truídas células infectadas por vírus ou por outros pa rasitos intracelulares pelas células T linfotóxicas Mais uma vez lembramos que o estresse desem penha sobre o sistema imune um papel de inibição ou estimula parte importante de seus componentes o que em certos casos poderia levar a um aumento de morbidade e mortalidade por dificuldade nos meca nismos de coping Em um trabalho junto com Plaut 1981 repor tase à variabilidade dos efeitos mórbidos provoca dos experimentalmente em animais de laboratório dependendo da natureza do organismo patogênico da qualidade e quantidade do estresse e de fatores genéticos e ambientais Em sua monografia depois de enfatizar a natu reza multifatorial das doenças infecciosas Amkraut e Solomon Amkraut 1975 escrevem Pequenas mu danças no processo imune podem causar alterações iniciais para permitir o estabelecimento de infecções por patógenos para alterar o curso da doença des de que a infecção esteja instalada ou mesmo para permitir a invasão por organismos não patogênicos como no caso da gengivite aguda necrotizante a qual é associada com o estresse emocional Citam o caso da infecção pneumocócica lembrando que estes germes estão presentes no trato respiratório e em condições normais nem atravessam a mucosa ou entram nos pulmões em número significativo A na tureza da mucosa as secreções desta e a flora normal impedem proliferação excessiva e penetração Entre tanto as condições destes mucos a e a flora podem ser modificadas pelo estresse permitindo a multipli cação e a passagem de microorganismos Estes se em pequeno número podem ser opsonizados e ataca dos por fagócitos Entretanto a atividade das células fagocíticas pode ser afetada por hormônios ou pelo estresse acarretando seu estímulo ou pelo contrário inativação o que possibilitaria o início da doença Os macrófagos alterados também funcionam menos eficientemente na apresentação dos antígenos às cé lulas linfocitárias Também devemos levar em conta que os polissacarídeos capsulares dos pneumococos estimulam os linfócitos B diretamente e que uma leve diminuição da atividade destes pelo estresse pode le var a uma produção inadequada de anticorpos Do mesmo modo a redução dos níveis de complemento do paciente ou de um particular componente do sis tema de complemento pode aumentar a severidade da doença Não é difícil para aqueles que lidam com a tu berculose constatar as relações entre melhoras e pio ras dos pacientes e seus problemas emocionais Já em 1919 Ishigami citado por Schindler 1985 escreveu sobre isso quando estudando a opsonização do bacilo tuberculoso observou a diminuição da atividade fa gocitária durante episódios de excitação emocional atribuindoos ao estresse da vida de então Wittkower 1955 escreveu que algumas vezes pode ser mais adequado firmar o prognóstico do paciente na base de sua personalidade e nos conflitos emocionais que na base das imagens de suas radiografias Podemos lembrar que a psicoterapia de grupo nasceu com Pratt quando este na década de 1930 começou a atender pacientes tuberculosos em peque nos grupos para possibilitar um processo educativo em relação a suas enfermidades bem como a pers pectiva de melhor lidarem com elas favorecendo a alta e a reabilitação Também devemos lembrar os famosos trabalhos de Renée Spitz 1960 sobre crianças internadas em instituições onde entre várias situações mórbidas descritas depressão anaclítica marasmo hospitalis mo ele também constatou aumento de mortalida de por uma maior susceptibilidade a infecções Em suas preciosas observações Spitz descreveu como a simples presença da mãe fazia reverter os quadros relatados Em um importante trabalho de pesquisa Mar tin Jacobs 1966 autor que vem estudando proble mas psicossomáticos em pneumologia constatou que adoeciam com infecções das vias aéreas superiores sobretudo pessoas em situações de mudança de vida que estavam usando mal seus mecanismos psicológi cos de adaptação De fato sabem frequentemente os médicos e muitas vezes ainda mais os leigos que com facilidade situações de resfriado gripe ou bron quite ocorrem em pessoas fatigadas emocionalmente ou mesmo deprimidas Meyer 1962 Greenfield e colaboradores 1959 realizaram um interessante trabalho experimental sobre a relação entre a capacidade de recuperação de uma doença in fecciosa e a saúde mental de um paciente Nesse sen tido aplicaram o Minnesota Multiphasic Personality Psicossomaticaindd 182 Psicossomaticaindd 182 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 183 Inventory MMPI um importante teste de avaliação psicológica em 38 pessoas homens e mulheres que estavam em recuperação de um processo de mononu cleose infecciosa Eles dividiram os pacientes em dois grupos os de longa recuperação e os de curta recu peração O grupo que se recuperou mais rapidamente apresentava significativos escores de maior força de ego do que o grupo que se recuperou mais lentamente Na discussão desse trabalho escrevem os autores que parecenos que há agora uma substancial evidência empírica para a assertiva de que a saúde psicológica e a somática são separáveis apenas arbitrariamente Para parafrasear uma citação familiar Onde existir soma existirá ego Em importante trabalho retrospectivo de 1979 Kasl e colaboradores 1979 descrevem o estudo de 1327 cadetes de West Point nos quais entre outros aspectos foram pesquisados episódios de mononu cleose infecciosa Aqueles que desenvolveram a do ença tinham altos níveis de motivação porém pobres performances acadêmicas e ao mesmo tempo eram filhos de pais com muitas realizações na vida Alguns trabalhos vêm estudando mais moder namente os mecanismos através dos quais os fatores psicossociais podem alterar a capacidade do sistema imunológico para lidar com infecções Nesse sentido por exemplo Gruchow 1979 conseguiu detectar elevações de catecolaminas três dias antes de episó dios infecciosos Tivemos oportunidade de acompanhar pacientes com mal de Hansen em um trabalho de psicoterapia grupal que supervisionamos Oliveira et al 1988 Nesse trabalho no qual o que mais nos impressionou foi a questão do estigma psíquico destes pacientes tivemos oportunidade de constatar por várias vezes recorrência dos sintomas e das lesões cutâneas du rante ou após episódios traumáticos ou conflitivos in trafamiliares Após três anos de psicoterapia grupal praticamente todas as pacientes se mostraram benefi ciadas por este processo seja através de uma melhora de suas enfermidades mantida a medicação que já faziam anteriormente seja por uma atitude menos hipocondríaca culpada ou submissa E as exacerba ções das lesões cutâneas que se seguiam aos estresses praticamente desapareceram Entre as viroses tem sido estudado sobretudo o herpes simples Amkraut e Solomon 1975 descre vem do modo a seguir a sequência de fatos que se passariam na infecção herpética Eles recordam que os anticorpos coexistem com uma infecção aberta ou inaparente A doença que se dissemina por uma transferência célula a célula do vírus é talvez posta em cheque por uma contínua monitoração das célu las infectadas por linfócitos T Estes podem destruir os vírus diretamente ação citotóxica ou através da ativação de macrófagos da vizinhança O estresse acrescentam eles perturba esse equilíbrio possibili tando a proliferação do vírus o que também se dá por febre ou radiação ultravioleta Na prática é muito fácil colher testemunhos vários sobre a interação entre situações de estres se e crises herpéticas Os próprios pacientes com o decorrer dos seus tratamentos psicoterápicos ou analíticos aprendem a diagnosticar sobre que situa ções de estresse serão capazes de reativar os vírus Num paciente de um de nós JMF as crises de her pes genital estavam relacionadas com sua situação conjugal Se ele não estava bem com a esposa mos trandose ressentido ou insatisfeito surgia o herpes como forma de evitar o relacionamento e poder con taminar a companheira Quando eventual mente se dispunha a ter relações extraconjugais também sur gia o herpes como forma de sabotar os encontros eivados de culpa Esta é uma importante doença em seus aspectos psicossomáticos pois se calcula que de 10 a 25 da população sexualmente ativa neste momento nos Es tados Unidos padece de crises recorrentes de herpes simples Outro terreno muito fértil para a pesquisa em Psicologia Médica é representado pela AIDS Aqui te mos uma doença infecciosa uma virose que nitida mente provoca várias situações somatopsíquicas e o agravamento de suas crises Solomon 1987 em um trabalho recente so bre enfoques psiconeuroimunológicos e pesquisas em AIDS diz que só mais recentemente estas questões vêm sendo pesquisadas e cita o Projeto Biopsicosso cial de São Francisco sobre AIDS do qual ele próprio está participando e outro trabalho da Universidade de Berkeley também prospectivo Os homossexuais são sujeitos ao estresse da ho mofobia societária a qual em alguns é internalizada com dano consequente à autoestima Uma variedade de severas psicopatologias geralmente subjaz à dro gaadição a qual tende a ser caracterizada por falha em lidar com um afeto e com um uso mal adaptativo do mecanismo de defesa da negação Os hemofílicos têm uma doença ameaçadora de suas vidas que é cer tamente estressante dolorosa e autolimitante Pre existentes estados emocionais podem modificar os efeitos do estresse na imunidade Estudantes de Me dicina que estão só reagem ao estresse de um exame com uma maior imunossupressão Se um siste ma imune já está comprometido sêmen opiáceos ou infecção virótica não é compreensível que o estresse possa ser mais imunossupressor que em um sistema imune intacto e mais resistente Em relação ao desencadeamento da doença é difícil muitas vezes fazer correlações pois o tempo de Psicossomaticaindd 183 Psicossomaticaindd 183 05012010 121209 05012010 121209 184 Mello Filho Burd e cols incubação costuma ser longo e muitas vezes de difícil determinação Temos visto todavia pacientes que se expõem de modo consciente ou não à doença e que efetivamente depois de um prazo maior ou menor lo gram se contaminar Isso é relativamente frequente em homossexuais passivos com muitos traços maso quistas ou em usuários de drogas endovenosas Caso clínico Marta é uma paciente de 50 anos que poderíamos cha mar de infectofílica plagiando as personalidades trau matofílicas descritas por Dunbar em razão de uma longa história de ocorrências infecciosas como iremos descrever Ela está em psicoterapia analítica de grupo há alguns anos com um de nós JMF tendo feito inúmeros progressos em sua forma ansiosa de ser e nas dificuldades de relaciona mento com os demais logorreica e necessitando tornarse centro de atenções dos outros Foi a penúltima de cinco irmãs tendo sido caçula por vários anos Nasceu prematura e foi apelidada com o nome de um crustáceo pelos pais Era considerada muito frágil ao nascer e durante os primeiros anos de vida O pai sempre a preferiu ostensivamente às outras irmãs gerando vários problemas de ciúme e rivali dade com estas que em parte continuam até os dias atuais Quando Marta tinha 6 anos o pai passou por uma seve ra crise de depressão que durou mais de um ano Nesta fase e em decorrência da crise ele abandonou uma carreira profissional de muitas realizações tendo resolvido estudar Medicina Tornouse especialista e professor de doenças in fecciosas tendo feito uma carreira muito brilhante Aos sete anos Marta teve um episódio importante de impetigo que lhe tomou todo o corpo eu era uma chaga só Durante toda a infância apresentou furunculoses que se repetiam precisando até raspar o couro cabeludo Também por isso ela ficou estigmatizada deu várias vezes aparece até nos retratos sentindose por esta ra zão feia e doente Depois na juventude teve um quadro infeccioso também arrastado de difícil diagnóstico tratado como febre tifoide e mononucleose infecciosa concomitan tes O próprio pai como de outras vezes a diagnosticou e medicou Na década dos vinte Marta apresentou um qua dro de neurodermatite em ambas as pernas Foram alguns anos de crises e ida a vários dermatologistas até que um deles a curou sic Em meados dos 40 anos envolvida com um namoro crônico que não se definia numa fase de muito desgaste da relação começou a apresentar um quadro de febre e as tenia que foi diagnosticado como mononucleose infecciosa por um gabaritado clínico geral seu pai já havia falecido Fez repouso e tomou medicamentos inclusive cortisona porém não apresentava melhoras contra as expectativas médicas Por esse motivo e como seu médico a achasse deprimida ele resolveu lhe sugerir análise Enquanto de cidia se iria aceitar a indicação Marta resolveu terminar o namoro tendo o quadro infeccioso e o mau estado geral desaparecido Só depois em meio a dificuldades com uma nova relação com quem veio a se casar resolveu iniciar o tratamento analítico Do seu casamento Marta em sua primeira gestação deu origem a filho prematuro que veio a falecer com poucos dias de nascido em meio a complicações pulmonares sín drome de membrana hialina Sofreu bastante com esta perda significativa pois seria seu primeiro filho Marta teve uma segunda gestação da qual nasceu seu filho atual por todas as razões uma pessoa importantíssima em sua vida Durante esta gestação exatamente aos oito meses confi gurando o que chamamos uma reação de aniversário teve um episódio de pneumonia que a igual modo de várias in fecções anteriores foi de difícil cura e recuperação O tratamento de Marta prossegue com avanços e difi culdades dadas suas particularidades de vida e o acúmulo de problemas anteriores Um dos progressos foi a sua de cisão de poder se separar do esposo ao reconhecer neste uma série de dificuldades pessoais tornando o casamento difícil e espinhoso Nesta nova fase de sua vida separada e enfrentando uma série de problemas profissionais com os quais não esperava se defrontar fruto mais de situações conjunturais do que de dificuldades pessoais não resolvi das Marta apresentou dois episódios depressivos maio res que necessitaram uso de medicamentos No primeiro destes apresentou surtos gripais e tosse crônica No últi mo episódio numa fase em que estava se dando conta de que a ligação com um atual namorado era mais precária do que imaginava ao mesmo tempo em que enfrentava uma situação de ameaça de perder o emprego teve novo surto pneumônico desta vez porém de melhor evolu ção que os anteriores Há que esperar em pacientes como Marta que estes possam abandonar o recurso do apelo à via somática quando em situação de crise aprendendo a expressar o pedido de ajuda por outros meios mais ma duros e menos primitivos Isso todavia se torna difícil quando se relata toda uma história de vida de aprendizado e condição A reação de aniversário foi descrita por Engel 1955 e por outros autores A esse respeito escrevemos anteriormente Mello Filho 1976 Tratase da ocorrên cia de uma enfermidade no período que corresponde ao aniversário de um evento traumático que afetou uma pessoa importante para o paciente morte de um familiar geralmente Por vezes surge como reação ao aniversário de uma patologia importante Nessas situações a vivên cia inconsciente do tempo muito mais poderosa do que geralmente imaginamos joga um papel decisivo já que o fenômeno ocorre sem que o paciente se dê conta da inter relação dos fatos PostScriptum Nas associações entre estresse e doenças infec ciosas Kemeny e Schedlowski Kemeny 2007 citam importantes pesquisas feitas em animais particular mente através de indução de viroses Usando tais técnicas Cohen 1991 encontrou que índices mais elevados de estresse prediziam maior suscetibilidade a infecções virais por rinovirus menor formação de anticorpos e sintomas mais intensos Em experimen Psicossomaticaindd 184 Psicossomaticaindd 184 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 185 tos com seres humanos com modelos que avaliam as respostas imunes a vacinações contra a influenza e a hepatite B taxas menores nos anticorpos induzidos por aqueles agentes vacinais puderam ser previstas em pessoas em situações de estresses agudos exa mes médicos escolares ou crônicos cuidadores de pacientes com Alzheimer Um terceiro tipo de situ ação emblemática relatada é a reativação de viroses latentes como as produzidas pelo vírus EpsteinBarr EBV o herpes simples HSV e o citomegalovírus CMV Ainda em relação à AIDS os indivíduos infecta dos são submetidos a constantes e importantes estres ses tais como estigmas conflitos familiares ligados ao seu diagnóstico e às vezes à morte de companheiros as por eles contaminados Experimentos puderam prever a queda dos níveis de CD4 e o início dos sinto mas da doença com base nos estresses enfrentados de maneira surda ou aguda Respostas como pessimismo sobre a evolução da doença predisseram degradação imunitária e inclusive morte Altos níveis de estresse têm sido associados à baixa de CD4 CD8 e da diminuição da atividade NK Os autores citam estudos com macacos que compro varam que experiências de troca de jaulas e de sepa ração prolongada aumentavam a gravidade da doen ça nos infectados com o vírus da imunodeficiência dos símios SIV DOENÇAS NEOPLÁSICAS Emoções e câncer Este é o terreno da psicoimunologia clínica que mais se desenvolveu nos últimos anos provavel mente em razão da própria importância da doença do sofrimento dela decorrente e das tentativas de através da exploração do psiquismo descobrirse uma via régia para o entendimento dessas enfermi dades pois na realidade não há um câncer existem cânceres Depois de Galeno citado anteriormente talvez tenha sido Amussart 1854 o primeiro a falar dessas relações quando escreveu que a influência do luto parece ser a causa mais comum de câncer Schavelzon 1965 grande estudioso desde há muitos anos das relações psiqueneoplasia cita três importantes precursores neste campo Evans 1926 que foi aluno de Jung e estudou 100 pacientes en contrando o fato comum de que perderam uma par te de suas relações antes da neoplasia Foque 1931 considerava que determinados estados psíquicos tor nariam as células receptíveis a transformações malig nas no momento da eclosão da doença Peller 1940 foi um dos primeiros a chamar a atenção para as si tuações de perda e luto ao demonstrar uma maior predisposição de viúvos ao câncer Quatro autores podem ser considerados clássi cos a esse respeito pela seriedade extensão e número de casos estudados Leshan 1966 Greene 1966 Schmale 1966 e Kissen 1966 Greene estudando casos de linfoma e de leu cemia observou o surgimento da doença durante situações de perda ou de separação provocando sen timentos de tristeza desespero e desesperança Nas suas palavras os linfomas e as leucemias surgiriam quando os pacientes estivessem esgotados de recur sos psicológicos produzindose vergonha e desespe rança Leshan 1966 fez talvez o trabalho mais com pleto até os dias atuais sobre o tema inclusive por que se baseou em quase 500 casos entrevistados e ou acompanhados psicoterapicamente Ele encontrou em seus pacientes perda de uma relação significativa antes do início da doença incapacidade de expressar sentimentos hostis importante tensão em relação a uma figura parental sentimentos de desamparo e de desesperança Sugeriu que os pacientes com câncer têm uma vida particular de abandono solidão cul pa e autocondenação Embora essas pessoas estives sem em um total desespero de serem elas mesmas frase de Kierkegaard continuavam a executar suas atividades e rotinas mesmo sem adquirir satisfação depletandose por se dar incessantemente aos outros não se permitindo receber Kissen 1966 que trabalhou por muitos anos com câncer de pulmão publicou vários trabalhos com base nos casos que atendeu e na aplicação de testes psicológicos Maudsley Personality Inventory Esse autor postulou que estes pacientes apresentam uma típica tendência a suprimir seus problemas emocio nais e conflitos Por tudo isso eles teriam uma saída diminuída para a descarga emocional Schmale e Iker Schmale 1966 em importan tíssimo trabalho prospectivo estudando mulheres predispostas as câncer de colo de útero encontraram fatos semelhantes aos até aqui relatados Em uma pesquisa 1964 estes autores estudaram através de entrevistas psicológicas e testes de personalidade 51 mulheres assintomáticas porém predispostas ao cân cer de colo uterino pois apresentavam esfregaços va ginais classe III de Papanicolau Na base da avaliação psicológica feita os autores tentaram prever quais das pacientes desenvolveriam câncer A expectativa é de que a doença se instalaria naquelas mulheres que tivessem suas vidas marcadas por fortes sentimen tos de desesperança e que tivessem apresentado um acontecimento vital capaz de despertar esses senti mentos dentro dos últimos seis meses antes de terem Psicossomaticaindd 185 Psicossomaticaindd 185 05012010 121209 05012010 121209 186 Mello Filho Burd e cols sido examinadas As previsões estavam corretas em 36 dos 51 casos estudados apresentando portanto resultados de alta significação estatística e fidedigni dade em relação à hipótese estabelecida Estes trabalhos quase todos retrospectivos cen trados no estudo da personalidade dos pacientes e nas situações desencadeadoras têm sido criticados por poderem refletir aspectos da vida emocional se cundários ao aparecimento da neoplasia reações so matopsíquicas Ponderam estes críticos de orienta ção behaviorista que somente estudos prospectivos poderiam comprovar que certas tendências ou rea ções psicológicas seriam realmente significativas em relação ao surgimento e evolução de uma neoplasia O fato é que os estudos prospectivos nos quais se seleciona determinado segmento da população que é estudado previamente e acompanhado com entre vistas e exames vários ao longo dos anos são muito dispendiosos e difíceis de serem realizados Por esse motivo poucos trabalhos desse tipo foram relatados com referência ao câncer até o momento Em um destes trabalhos Thomas e colaboradores 1979 estudaram um grupo de estudantes de Medicina da Universidade John Hopkins Encontraram uma se melhança na história e no perfil psicológico daqueles que desenvolveram câncer ou tiveram doenças men tais Esses grupos relatavam uma história de relacio namento emocional distante com seus pais o que não aconteceu no grupo considerado normal e naqueles que desenvolveram coronariopatia O trabalho de Schmale e Iker Schmale 1966 já citado é do tipo prospectivo e parece não oferecer sombra de dúvida sobre a importância dos sentimentos de desesperan ça nas situações anteriores ao desencadeamento do câncer Do mesmo modo como se tem estudado os as pectos psicológicos dos pacientes com câncer e a si tuação do início da doença têm sido pesquisados tais aspectos em relação ao agravamento surgimento de metástases e o desenlace ou ao contrário a regres são espontânea da doença Leshan e Gassman Leshan 1958 através do acompanhamento psicoterápico dos seus casos pu deram observar que o aparecimento de problemas emocionais não resolvidos podia ser seguido por um crescimento mais rápido do tumor enquanto a reso lução de tais problemas podia ser seguida de uma regressão temporária Miller e colaboradores 1977 e 1979 referem a ocorrência de recidivas da do ença em pacientes com 10 a 20 anos de remissão após a ocorrência de um severo estresse emocional Alguns desses trabalhos tentando ser mais objeti vos basearamse em testes psicológicos Blumberg e colaboradores 1954 usando o MMPI compara ram os resultados do grupo de rápida evolução com aqueles de sobrevivência maior que a esperada Os pacientes do primeiro grupo má evolução eram sig nificativamente mais sérios cooperativos ansiosos e sensitivos Eles também tinham um maior grau de depressão e ansiedade e uma diminuição da capaci dade de reduzir essa ansiedade através de uma ação corretiva externa Os autores interpretaram estes e outros achados como indicativos de que a ação dos estresses de longa duração sem a capacidade de uma expressão externa pode ter um efeito estimulador no crescimento de um câncer Posteriormente Stavravy 1968 estudou a questão da evolução através do uso deste mesmo teste psicológico MMPI O ponto mais significativo dos seus achados é o de que os pacien tes com longa sobrevida exibem exatamente o perfil oposto ao desesperodesesperança tão assinalado nos estudos com pacientes com câncer Consideramos este achado altamente significativo pois está de acor do com a observação genericamente feita por clínicos e cirurgiões de que os pacientes de boa evolução e sobrevida são exatamente aqueles que conseguem se manter esperançosos diante de suas enfermida des muito embora esta esperança se sustente mesmo através de mecanismos de negação e racionalização Psique e cura espontânea do câncer O fenômeno da cura espontânea de uma neopla sia vem intrigando de há muito o meio médico lei gos e ambientes paramédicos já que este fenômeno surge muitas vezes com uma aura mística e sobrena tural Ele ganhou reputação e notoriedade científica quando Sir William Osler relatou em 1901 a redução espontânea de metástases em duas mulheres com cân cer de mama O assunto naquilo que nos diz respeito foi revisado por Stoll 1979 cuja exposição em li nhas gerais passaremos a seguir Ele nos diz que esta questão não é tão incomum como pode parecer e re fere que Everson e Cole Everson 1976 fizeram em 1976 um apanhado da literatura mundial coletando 176 casos Segundo Stoll 1979 este número de ca sos deve ser muito maior se levarmos em conta fatores como casos em que há regressões totais de algumas metástases e de outras não casos de regressão lenta não dramática que deixam de ser relatados casos de regressão fora de um ambiente médico e portanto não documentados Cita Stoll sete fatores apontados como imbricados neste fenômeno aumento da reação imune ação hormonal trauma cirúrgico irradiação agentes químicos eliminação das influências carcino gênicas e episódio infeccioso agudo Acrescenta que sem dúvida o aumento da resistência imunológica é Psicossomaticaindd 186 Psicossomaticaindd 186 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 187 o principal fator e que sua ação de gatilho pode ex plicar os efeitos de um possível trauma cirúrgico da suposta ação da irradiação e de um estado infeccioso agudo Recordanos Stoll que existem evidências de mecanismos imunológicos de defesa em muitos tipos de câncer humano Assim os tumores primários evo cam a formação de anticorpos específicos os quais se combinam com os antígenos do tumor inativandoos As células linfoides específicas e imunologicamente reativas também são estimuladas Para ele a demons tração da presença de antígenos associados ao tumor nos casos demonstrados do fenômeno é a prova cabal da importância da ação deste gatilho imunológico Por tudo isso os mecanismos são basicamente imunoló gicos e endocrinológicos inclusive porque há muitas evidências de que manipulações imunológicas ou en docrinológicas podem provocar rápidas regressões de cânceres em homens ou em animais Essas ações po dem ser desencadeadas pela atividade cerebral cortical através da mediação de centros hipotalâmicos como já foi visto antes A seguir Stoll 1979 cita o inte ressante trabalho de Ketcham e colaboradores 1976 sobre 108 casos em que houve completa remissão após uma cirurgia Eles consideram que o efeito psicológico da hospitalização e da cirurgia pode indubitavelmente afetar mecanismos metabólicos e neuroendócrinos e daí postulam que tais efeitos psicofisiológicos asso ciados com a crença na cura levam o tumor a regredir em alguns dos casos operados Sobre as chamadas curas da fé ele escreve É então possível que fatores mentais ou emocionais possam estar envolvidos em alguns dos assim chama dos casos inexplicáveis de regressão espontânea de um câncer Fé religiosidade e uma crença muito po derosa parecem ser os fatores comuns em muitos dos pacientes que mostram cura espontânea de um cân cer Entretanto em alguns dos casos relatados um incidente capaz de elevar emocionalmente o paciente parece ter precedido o início da remissão Para de monstrar esse tipo de ocorrência Stoll 1979 cita o seguinte caso uma freira apresentou icterícia em cuja pesquisa etiológica demonstrouse a presença de um câncer de cabeça de pâncreas através de uma ex ploração cirúrgica abdominal O diagnóstico foi feito por uma biópsia realizada durante o ato cirúrgico Irmãs da ordem desta freira começaram a interceder por ela rezando Ela recuperouse rapidamente da cirurgia e do seu estado de grande debilidade Re tomou o trabalho onde permaneceu por sete anos até falecer Na autópsia apresentava embolia pulmo nar maciça porém nenhuma evidência do tumor de cabeça do pâncreas Sobre a influência da religião e do misticismo citamse casos em que se processou a cura espontânea de uma neoplasia algumas em es tado avançado O único dado em comum nesses pa cientes era o apego à religião IKEMI O câncer como modelo de doença integral Poucas doenças demonstram ser tão dependen tes de uma etiologia multifatorial como o câncer Daí ser um reducionismo considerar que a história de um tumor que se segue a uma situação de perda ou de es tresse se esgote em uma ou outra destas situações Es tas situações no caso do câncer parecem incluir os seguintes fatos ser uma doença geneticamente deter minada e programada incluir uma falha do sistema imunológico em algum momento de sua programa ção ser susceptível a várias influências ambientais tais como a ação dos raios ultravioleta no câncer da pele ser susceptível à ação de várias substâncias tó xicas presentes artificialmente no hábitat humano como a nicotina no caso do câncer de pulmão de pender da influência de fatores alimentares tal como é o caso de dietas excessivamente ricas em gordura que podem favorecer o aparecimento ou a evolução de várias neoplasias ser decorrente da ação de múl tiplos agentes virais os oncovírus que explicam a etiologia de muitos tipos de câncer ser susceptível à influência de fenômenos de estresse e a fatores psi cológicos vários quer no seu desencadeamento e má evolução quer na direção de um curso mais benigno podendo mesmo incluir o seu desaparecimento Se o câncer é uma doença vinculada à pessoa integral do paciente ele deve ser o reflexo de suas re lações pessoais de sua vida familiar e social Leshan e Worthington Leshan 1956 fizeram um importante trabalho de ordem estatística a esse respeito Postu laram que se estes fatos são verdadeiros a incidência do câncer nos diferentes grupos sociais deveria variar em relação à frequência com que houvesse se produ zido uma alteração em sua vida de relação ou uma perda sentimental grave Por exemplo em diferentes relações conjugais Assim as viúvas figurariam em primeiro lugar depois o grupo divorciado depois o grupo de casados que só manteriam o vínculo por ra zões religiosas financeiras ou outras e finalmente o grupo dos solteiros Todos os estudos realizados pelos autores mantiveram estatisticamente esta curva de frequência Acompanhando pacientes com câncer de vários tipos podese constatar com relativa facilidade a in fluência das posturas familiares na evolução de cada Comunicação pessoal Congresso Mundial de Medicina Psicossomática Rio de Janeiro 1982 Psicossomaticaindd 187 Psicossomaticaindd 187 05012010 121209 05012010 121209 188 Mello Filho Burd e cols caso Isso ficou patente na experiência de Corbineau em nosso Serviço coordenando durante 3 anos um grupo terapêutico com pacientes portadoras de cân cer de mama Corbineau 1986 Nas três pacientes que faleceram havia más relações familiares princi palmente com os filhos As relações com os esposos eram melhores muito embora uma delas tenha sur preendido o marido em situação de intimidade com uma prima O que pareceu chocála ainda mais foi contudo a repetição de fato semelhante na vida de uma filha deixandoa verdadeiramente revoltada e desesperada Isso se deu pouco tempo antes de sua morte Nas três pacientes podiam ser constatadas ati tudes de rejeição por parte dos filhos como se estes captando a gravidade de suas doenças preferissem não se envolver com elas para não assumirem a dor e o peso da responsabilidade implícitos em aceitar o problema daí decorrente Um fato que impressionou Corbineau no acom panhamento de suas pacientes foi a facilidade com que estas desenvolviam metástases após situações de perda ou de estresse Assim nos conta que depois que uma paciente passava por uma situação desse tipo ela ficava numa condição de expectativa para o que viesse a acontecer e quase invariavelmente dois três ou mais meses após a metástase se anunciava sem que nada pudesse ser feito para evitála Ainda den tro deste tema rejeição familiar e agravamento de uma neoplasia cabem algumas palavras sobre o caso da rejeição consumada por uma equipe de saúde fato muito frequente infelizmente em nosso meio prin cipalmente em relação aos pacientes de baixa renda Friedman falando em 1982 entre nós sobre Morte Vodu e relação médicopaciente fez um para lelo entre a atitude do feiticeiro vodu em apontar o osso para alguém e uma série de atitudes médicas iatrogênicas comuns Assim o feiticeiro da Jamaica ao apontar o osso denuncia ao indivíduo que ele infringiu um importante tabu familiar comunitário ou religioso condenandoo a uma espécie de estado depressivo no qual não se alimenta retraise de tudo e de todos e termina falecendo Do mesmo modo a equipe que não visita o paciente não se dirige ao mesmo e nem o cumprimenta está apontando o osso para ele dizendo implicitamente que ele está mal que nem vale mais a pena investir nele Friedman também se referiu em uma conferência ao ato de in formar a um paciente apressadamente e maciçamen te que este tem um câncer como uma forma de lhe apontar o osso e apressar sua morte O lado oposto a ação benéfica do apoio familiar ou social também merece ser revelado No caso da paciente Fernanda descrito a seguir o apoio prestado pelo esposo e a alegria de ter adotado uma filha bem como a atenção os cuidados e a empatia sempre pre sentes na equipe médica que a atendeu foram fatores que sem dúvida melhoraram sua qualidade de vida e quem sabe retardaram a fase final de uma neoplasia que desde o início se apresentou como muito grave e metastatizante Reed e Jacobsen Reed 1988 em um artigo de revisão intitulado Emotions and cancer new pers pectives on an old question colocam uma série de importantes questionamentos sobre este tema que passaremos a discutir Eles consideram as seguintes questões como de prioridade atual de que modo os estados psicológicos afetam a transformação de célu las normais em malignas o impacto do câncer e seu tratamento psicológico visando a um ajuste emocio nal papel dos suportes sociais no câncer o impacto do câncer de longa duração e seu tratamento o luto familiar que se segue à morte de um paciente com câncer o papel do psiquiatra e do psicoterapeuta na redução dos efeitos colaterais dos quimioterápicos Alertamnos para uma questão importantíssima Normalmente leva muitos anos para aparecerem sin tomas depois que as células benignas se transformam em malignas E com que facilidade consideramos tout court que um estresse de um dos ou dois anos atrás foi o responsável pelo início da doença de um paciente Reed e Jacobsen Reed 1988 recordam nos de que as neoplasias evoluem através de múlti plas fases início promoção e progressão Com dis tintas interações bioquímicas ocorrendo em cada fase existe a possibilidade que estas possam ser afetadas diferencialmente por fatores psicossociais É provável que fatores psicossociais sejam mais importantes para a promoção e a progressão do que para o início E citando um trabalho de Fox 1981 criticando a ten dência de juntaremse achados de neoplasias várias desconhecendo suas diferenças e particularidades eles escrevem É crucial portanto que as pesquisas individuais se foquem em um câncer particular ou em um grupo de cânceres com similaridades conhecidas Um pool indiscriminado de dados psicossociais para pacientes com diferentes tipos de câncer seria como misturar laranjas e maçãs sem saber no que elas di ferem Dois importantes trabalhos de orientação psicoi munológica são referidos pelos autores Levy 1991 usou um método para determinar a relação entre fa tores de personalidade e parâmetros imunológicos associados como indicadores de um prognóstico em pacientes de câncer de mama Eles evidenciaram que Friedman S Comunicação Pessoal 1982 Shavelzon nos dá uma média de 5 anos para que uma neoplasia inicial se manifeste clinicamente Psicossomaticaindd 188 Psicossomaticaindd 188 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 189 pacientes que relatavam sentimentos de apatia in diferença e depressão tinham níveis mais baixos de atividade natural killer que pacientes que eram mais expressivos Em outro interessante trabalho citam Schleifer e colaboradores 1983 que seguiram espo sos de mulheres portadoras de carcinomas avançados de mama e analisaram os parâmetros imunes desses maridos no período antes e após a morte da paciente A função imune isto é a resposta à estimulação lin focitária estava deprimida nos primeiros meses que se seguiam à morte da esposa Uma depressão menos pronunciada era em seguida observada do quarto ao décimo quarto mês Por tudo o que foi dito podese deduzir que cada vez um maior número de clínicos e cirurgiões pesqui sadores reconhece o papel dos fenômenos psicosso ciais no câncer Apesar disso um número grande de médicos presta pouca ou quase nenhuma assistência psicológica aos seus pacientes e sequer os encaminha a um profissional de Psicologia Médica Todas as etapas do diagnóstico e tratamento do câncer são difíceis e exigem tato e conhecimento na abordagem dos problemas psicossociais e familiares Na questão do diagnóstico evoluiuse de uma posição de nada dizer ao paciente para outra a de informar o diagnóstico ao paciente esquecendose muitas vezes do cuidado de preparálo e esperar pelo momento ti ming em que esteja mais preparado para lidar com uma situação tão difícil Também requer sensibilida de e tato em relações humanas perceber qual familiar do paciente pode ser nosso interlocutor em relação à doença deste Igualmente durante os períodos de quimioterapia ou radioterapia muitos pacientes ne cessitam de suporte psicológico a ser prestado pela equipe clínica ou pelos especialistas Obviamente as coisas se complicam ainda mais quando a doen ça evolui apesar do tratamento clínico ou cirúrgico e principalmente quando o caso caminha para os estágios finais A psicoterapia de um paciente onco lógico nessas condições é sempre uma tarefa difícil e que deveria ficar a cargo de um terapeuta mais expe riente os mais jovens poderiam se beneficiar com a supervisão de pessoas muito experimentadas nestas questões A nosso ver é preciso antes de tudo que o psi coterapeuta tenha uma atitude de muita humildade e possa inicialmente captar e aprender sobre a rea lidade médica daquela especial condição do pacien te antes de fazer juízos ou intervenções psicológicas sobre o caso Os conhecimentos médicos de um psi quiatra psicanalista e mais ainda de um psicólogo são muitas vezes insuficientes pelo menos para o caso daquele paciente pelo que é preciso que o pro fissional psi tenha uma visão da situação como um todo e sempre funcione como parte de uma equipe una e coesa Vimos mais acima que o espaço de tempo médio entre o surgimento de uma neoplasia e a momento em que ela começa a produzir sintomas podendo ser então reconhecida está em torno de 5 anos E quantas vezes dizemos ou escrevemos que este ou aquele câncer se iniciou há seis meses ou há sete anos atrás na decorrência de um estado depressivo ou de determinado trauma psíquico que afetou o paciente Nesse sentido uma visão abrangente da doença se impõe com o reconhecimento do papel desempenha do pela genética dia a dia mais comprovado labo ratorialmente Um raciocínio que leve em conta as fases de promoção e progressão propostos por Reed e Jacobsen Reed 1988 também poderá nos levar a posturas mais realísticas e mais verdadeiras Ob viamente os dados a favor de uma Psicooncologia são muitos e cada vez mais pormenorizados porém é preciso conhecêlos interpretálos combinálos e comparálos para poder darlhes uma real utilização clínica em prol de um paciente Voltando à tarefa do psicoterapeuta no mais das vezes vemos que ela é difícil e espinhosa É di fícil trabalhar com um paciente que quer acima de tudo negar a realidade ferindo nossos preceitos de levantar a verdade acima de todas as causas e tor nar o inconsciente consciente É difícil trabalhar com um paciente que percebemos ter condições de saber a verdade porém esta tem que permanecer subterrâ nea pois a equipe médica pensa de modo contrário É difícil deixar o aconchego do consultório para acom panhar o paciente na residência ou no hospital pre cisando improvisar um setting e se sujeitar por vezes a ser interrompido pelos mais variados profissionais de saúde É difícil sobretudo acompanhar o pacien te sem dispor de recursos diagnósticos e terapêuticos cirurgias endoscopias exames e medicamentos vá rios que deem a sensação de termos a força o novo o mágico a cura E podemos continuar apenas com nossa conversinha mantendo a convicção de que te mos realmente algo a fazer por aquele paciente Num caso que ocorreu num dos hospitais em que já trabalhamos uma psicoterapeuta sem maior experiência começou a tratar uma paciente jovem com um tumor maligno de reto Ela não fez contatos mais profundos com a equipe médica que atendia a paciente que estava deprimida e abordoua dizendo que sua doença estava relacionada com seus desejos de autoagressão Certo tempo após ela soube atra vés da equipe que o caso havia se agravado e que A atitude de informar toutcourt o diagnóstico é geralmente um plágio da medicina americana de uma forma de pensar e proteger o médico e não o paciente Psicossomaticaindd 189 Psicossomaticaindd 189 05012010 121209 05012010 121209 190 Mello Filho Burd e cols seria tentada uma cirurgia paliativa para adiar a con dição que se esboçava de doença terminal Nesse momento ela me procurou para uma ajuda supervi são pois estava insegura em manter aquele enfoque diante de uma paciente com possibilidades reais de morrer E acima de tudo muito temerosa diante da evolução para ela inesperada do caso A supervisão foi prestada e a colega pôde ajudar melhor sua pa ciente em sua caminhada final Terapeutas geralmen te menos experientes ou com formações menos com pletas costumam com muita facilidade interpretar pacientes com câncer ou doenças autoimunes como se estes estivessem simplesmente se autoagredindo internamente Eles dizem aos pacientes hipertensos que estão assim porque têm muita raiva retida em seu interior Essas coisas podem inclusive acontecer porém não de forma tão simples Esses terapeutas precisariam pensar na frase de Hamlet que deveria ecoar mais dentro de nós Há mais verdades entre o céu e a terra do que supõe nossa vã filosofia Caso clínico Uma paciente que chamaremos de Fernanda nasceu em 1944 de parto normal tendo sido amamentada pela mãe até os dois anos Nesta época para desmamála a mãe colocou Iodex no seio e disse a ela que era cocô de galinha A mãe sempre tratou esta filha como frágil e doen te Toda a família de classe média sofria devido à situação financeira de poucos recursos Na infância Fernanda ficou muito marcada com a morte do avô materno de infar to do miocárdio a quem era muito ligada Quando tinha 16 anos os pais se separaram e ela veio residir na cidade grande Adaptouse fez novas amizades porém teve em torno dos 20 anos uma primeira crise depressiva que foi tratada naquela época 1964 com internação e eletro choques No ano seguinte uma irmã se suicidou de for ma dramática atirandose de um andar alto praticamente diante dos filhos Um ano após Fernanda casouse com um rapaz da sua idade com quem tinha muitas afinidades Em 1969 iniciou seu primeiro tratamento analítico Desde 1972 sua vida se voltou para conseguir ter filhos pois estes não vinham espontaneamente Procurou médicos especia lizados em esterilidade começou a tomar hormônios e em 1979 fez uma cirurgia de abertura em cunha no ovário sem resultado Desde 1975 começou a apresentar surtos predominantemente maníacos tendo perdido 12 quilos em um destes depressivo Entre estes surtos mostrava se depressiva em função de não conseguir engravidar e por estar vivendo novamente em casa a situação de estar com pouco dinheiro Desde então se tornou obesa e não mais recuperou seu peso habitual Em 1980 é constatada a presença de um tumor na mama direita que é excisado cirurgicamente descobrem se metástases em gânglios axilares A mastectomia é seguida de quimioterapia Seu médico lhe dá 5 anos de sobrevida Um mês após a cirurgia durante a quimioterapia descobre estar grávida tinha feito apenas um aborto antes Subme tese a um aborto terapêutico em meio a uma grande dor sua e do marido O casal resolve então ambos em análise adotar um filho o que é feito em um processo muito bonito que dá nova vida ao casal e ao próprio casamento Fernanda continua a árdua luta pela manutenção da vida e em 1981 tem um episódio delirante maníaco durante o qual se sentia espionada por vizinhos e por pessoas escon didas dentro de sua própria casa Em 1982 surge uma me tástase cutânea que regride com quimioterapia e cobalto A partir de 1983 aparecem metástases ósseas e finalmente em 1984 metástases pulmonares que levam ao seu faleci mento através de um quadro de insuficiência pulmonar Nos últimos meses de vida Fernanda foi assistida por uma psicoterapeuta especializada no atendimento a pacien tes terminais Este tratamento foi muito valioso para ajudá la a enfrentar a morte e a fase terminal Ela suportou estes momentos com muita coragem lutando até onde lhe foi possível O depoimento do grupo analítico ao qual pertenceu seu esposo é de que este se tornou uma pessoa diferente amadurecida e muito mais lutadora depois da experiência de ter acompanhado a doença de Fernanda por todos estes anos Vemos em Fernanda uma paciente com depressão bipo lar depressões alternadas com episódios maníacos uma história de sucessivas perdas tais como a morte do avô se paração dos pais suicídio da irmã e perda da capacidade de procriar Na vida com o marido voltou a reviver a situação de dificuldades financeiras da casa do seu pai Acreditamos que como decorrência de toda esta situação de frustração ela se torna obesa e vem a apresentar com 36 anos de ida de um câncer de mama Sua vida passa a ser daí por dian te uma luta contínua contra a enfermidade em que o casal opta pela vida e adota uma filha dando um novo sentido à vida dos dois O episódio delirante em que se via espionada por vizinhos e por pessoas escondidas dentro de sua casa pode ser entendido como expressão dos múltiplos exames e técnicas utilizadas para investigar o câncer a partir de ins trumentos que permanentemente pesquisavam o interior do seu próprio corpo O caso de Fernanda ilustranos a capacidade de um pa ciente de usar todos os seus recursos na luta contra uma enfermidade Assim quando não havia mais alternativa ela se entrega a um psicoterapeuta especializado em pacien tes terminais Todos os recursos do ego são empregados a serviço da adaptação e da sobrevivência E aqui podemos ver seja em Fernanda seja em seu marido a doença fun cionando como experiência existencial criativa fonte de crescimento emocional e de novas possibilidades de vida Fernanda se foi porém deixou com os seus o testamen to de sua coragem e de sua luta e o esposo em que pese a perda de sua mulher já não era mais o mesmo homem depois de todos estes acontecimentos Tinha amadurecido e se humanizado na decorrência de todos estes embates Hoje está muito bem casado com uma nova mulher com quem teve duas filhas constituindo uma nova família feliz e bem realizada Psicossomaticaindd 190 Psicossomaticaindd 190 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 191 PostScriptum Histórico Alison Fife e colaboradores publicaram impor tante revisão sobre PsicoOncologia em 1996 Citam a já famosa observação de Galeno sobre as mulhe res melancólicas que desenvolveriam neoplasias de mama com maior frequência do que as mulheres sanguíneas Em 1759 segundo os autores o cirur gião Richard Guy caracterizou as mulheres com cân cer como sedentárias com uma disposição melancó lica da mente e que se encontram com tais desastres na vida em ocasiões de muitas perturbações e luto Em 1870 James Page em outra citação dos autores relatou que são muito frequentes os casos nos quais uma profunda ansiedade desesperança e desaponta mento são rapidamente seguidos por crescimento e aumento do câncer levando à suspeita de que estas e outras influências participam no desenvolvimento de uma constituição cancerígena Luto depressão sistema imune e câncer Os autores citam relatos de casos de associa ção de luto e depressão em câncer hipertireoidismo diabete e cardiopatias Apontam vários estudos onde estados depressivos antecedem o surgimento de um câncer Isso se explicaria porque ambas as ocorrências podem estar envolvidas com uma depressão imune Para os autores o eixo Hipotálamo Hipófise Adre nal HPA costuma ser estimulado na depressão sen do tais mudanças marcadas por altos níveis de cor tisol na urina diminuição da resposta do hormônio adrenocorticotrófico ACTH e do fator de liberação da corticotrofina CRF um aumento da concentração de CRF no SNC e hipertrofia da suprarenal e da hipó fise Citam um estudo prospectivo onde a aplicação de dados obtidos pelo Minnesota Multiphasic Personality Inventory MMPI em 1020 empregados pelo Western Electric mostrou que o dobro de mortes por câncer foi encontrado 17 anos depois entre os empregados que apresentaram escores altos de depressão O es tudo citado controlou outros fatores de risco como idade fumo álcool exposição ocupacional e histó rico familiar de câncer Concluíram que havia uma pequena porém estatisticamente válida relação entre depressão e o desenvolvimento do câncer Depressão e disfunção neuroendócrina têm sido estudadas em pacientes com câncer gástrico ginecoló gico e pancreático Citam também um trabalho onde se investigou a possibilidade de que indivíduos sadios com uma história familiar de câncer tenham baixos níveis de atividade das células Natural Killer NK Quarenta e três mulheres hígidas foram recrutadas independen temente de seus históricos patológicos familiares Bo vbjerg 1991 Nenhuma diferença no estado de saúde psicofísico foi encontrada entre aquelas com ou sem his tórico familiar de câncer Independentemente da histo ria familiar as mulheres de alto nível de estresse tinham mais baixos índices de atividade NK e a atividade NK permanecia baixa nas pacientes que tinham histórico familiar de câncer Os autores especulam que defeitos hereditários e redução da atividade NK contribuiriam para aumentar o risco de neoplasia Uma interessante revisão sobre o tema também é apresentada por Reiche e colaboradores 2006 Citam um trabalho com pessoas enlutadas Quinze viúvos de mulheres que morreram de câncer de mama avançado submeteramse ao método de estimulação de células T As respostas estiveram significativamente suprimidas nos dois meses após a morte das companheiras Em relação a casais em separação estes auto res apontam que os níveis de estresse costumam ser maiores que nos casos enlutados Citam dois estudos a respeito que sugerem que mulheres separadas ou divorciadas têm uma função imune mais pobre qua litativa e quantitativamente e que mulheres com um ano de separação apresentam função imune pior que as casadas com taxas mais baixas de células NK e células T Em outra pesquisa sobre casais os homens que eram mais hostis durante uma discussão dos pro blemas com as esposas apresentavam uma maior re dução da atividade NK nas 24 horas seguintes Fatores psicossociais e câncer adoecimento e sobrevida AlisonFife e colaboradores 1996 citam um es tudo Jenkins 1983 onde os pesquisadores levanta ram os dados dos óbitos da cidade de Massachussetts nos anos de 1972 e 1973 verificando que a morte por câncer se associava a índices socioeconômicos como po breza desemprego baixos salários moradia em casas outorgadas e estado civil solteiro Os autores também citam um estudo de casos de nove pacientes de câncer e que tinham excepcionais sobrevidas Postulavase que isso se deveria ao seu modo de viver excepcionalmente otimista e positivo Além deste cita um trabalho pros pectivo onde pacientes com melanoma maligno foram estudados sobre a influência de estilos de coping em sua sobrevivência usando autoescalas de medida do ajus Este trabalho de Jenkins é famoso cientificamente Foi através dele que o autor provou que a doença coronariana não é apenas uma doença de status que ela é também uma doença da pobreza que atinge todas as classes sociais Psicossomaticaindd 191 Psicossomaticaindd 191 05012010 121209 05012010 121209 192 Mello Filho Burd e cols tamento à doença A escala média era menor nos reci divantes que nos não recidivantes Concluiuse que os pacientes com maior dificuldade de ajustamento a seus cânceres viveram menos Referem que a pesquisa nesta área é complexa pelas diversas variáveis que cercam o advento da doença e o seu tratamento Finalmente no item fatores psicossociais e so brevida do câncer citam que a intervenção psicosso cial melhora o humor o ajustamento à doença a dor a fadiga e a possibilidade de sobrevivência em um es tudo onde os efeitos do biofeedback e da terapia cog nitiva em 19 recémdiagnosticados casos de câncer de mama demonstraram melhora no nível da ansiedade e redução do cortisol urinário Relatam ainda um estudo semiprospectivo com 75 pacientes com câncer de mama relacionando os fatores psicológicos a ati vidade NK e a sobrevida das pacientes Ajustamento à doença suporte social fadiga e depressão influencia ram a variação da linha de base da atividade NK Os fatores psicossociais não foram significativos para se rem relacionados como indicadores prognósticos dos nódulos positivos porém a atividade NK mantinhase baixa e a depressão alta nas mulheres com nódulos positivos Citam Spiegel 1989 e 2002 e colabora dores que fizeram um trabalho grupal em mulheres portadoras de câncer metastático de mama Essas mulheres se reuniam semanalmente num grupo de apoio Após um ano uma avaliação mostrou que a sobrevida deste grupo era de 363 meses comparada com 189 meses num grupo controle As mulheres do grupo terapêutico mostraram menos fadiga confusão e tensão do que aquelas do grupo controle O grande número de agentes etiológicos envol vidos no câncer fumo obesidade genética idade gênero fatores hormonais dificulta o estudo da ação de apenas um deles Um interessante trabalho examinou o efeito do papilomavirus HPV associado à neoplasia intraepi telial cervical do útero NIC um precursor do câncer cervical Antoni 2007 Estresse e pessimismo pre dizem uma maior severidade de NIC Em mulheres coinfectadas com HIV e HPV eventos negativos de maior porte prognosticaram declínio das células NK maiores riscos de herpes genital e persistência da NIC por prazos de até um ano Doenças autoimunes doenças do colágeno Chamamse doenças autoimunes ou de autoa gressão aquelas em que se desenvolvem reações imu nes aos constituintes naturais do organismo self le vando a lesões localizadas ou sistêmicas As doenças autoimunes resultam da interação de múltiplos fatores predisponentes incluindo as rela ções entre os agentes gatilhos vírus autoantígenos o estado do sistema de resposta ao estresse incluin do o eixo HPA e o SNA e o sistema de hormônios gonadais com os estrogênios como estimuladores e os androgênios e a progesterona como inibidores Cutolo 2003 Fazem parte deste grupo de doenças a artri te reumatoide AR o lupus eritematoso sistêmico LES a esclerose sistêmica progressiva a polimiosi tedermatomiosite a tireoidite autoimune a mias tenia grave a doença de Sjögren a colite ulcerativa a esclerodermia a doença de Crohn e outras mais As doenças autoimunes apresentamse geralmente isoladas mas por vezes combinadas o que fala a favor de terem uma mesma natureza No momento dou su pervisão a um caso de artrite reumatoide escleroder mia e Sjögren A síndrome de Sjögren é caracterizada por artrite acompanhada secura de mucosa labial e ocular Por outro lado podem coexistir casos de mesma ou de outras doenças autoimunes nos parentes de um paciente qualquer apontando para um componente genético familiar As lesões são provocadas por mecanismos que levam à interação de anticorpos formados contra constituintes próprios do organismo passando estes a comportarse como antígenos A reação antígeno anticorpo dáse na superfície celular ou em nível sistêmico imunocomplexos circulantes A reunião antígenoanticorpo atrai proteínas plasmáticas que se tomando ativadas estimulam uma cadeia de reações que culmina na destruição celular e necrose tissular com muitas consequências sobre a função do órgão lesado eu sobre o próprio organismo Chamamse doenças autoimunes ou de autoa gressão aquelas em que parecem desenvolverse certas reações imunes aos constituintes naturais do organismo self levando a lesões localizadas ou sis têmicas Fazem parte deste grupo de doenças a artrite reumatoide o lupus eritematoso sistêmico a esclero se sistêmica progressiva a polimiositedermatomio site a tireoidite autoimune a miastenia grave a colite ulcerativa e outras mais Esta denominação usada anteriormente devese ao fato de que as manifestações destas doenças se dão geralmente no interior do tecido conjuntivo ou colágeno Os casos Crohn ileíte regional atingem basicamente o intestino delgado Esta também é uma doença francamente psicossomática A tendência atual é reunir Crohn e colite ulcerativa que acomete o cólon e o reto sob o título de Doenças Inflamatórias Intestinais Psicossomaticaindd 192 Psicossomaticaindd 192 05012010 121209 05012010 121209 Psicossomática hoje 193 As lesões são provocadas por mecanismos que levam à interação de anticorpos formados contra constituintes próprios do organismo passando estes a comportarse como antígenos A reação antígeno anticorpo dáse na superfície celular ou em nível sistêmico imunocomplexos circulantes A reunião antígenoanticorpo atrai proteínas plasmáticas que se tomando ativadas estimulam uma cadeia de reações que culmina na destruição celular e necrose tissular com muitas consequências sobre a função do órgão lesado eu sobre o próprio organismo Muitas indagações têm sido feitas no sentido de se determinar porque um constituinte orgânico passa a ser reconhecido como nonself Supõese que uma atividade diminuída de células supressoras permitiria esse tipo de reação Ao que parece tais constituintes são normalmente liberados porém a atividade de células T supressoras poderia impedir a ampliação das reações contra tais constituintes En tão a hipótese de falência dessa atividade supres sora explicaria em linhas gerais a eclosão de certas doenças de autoagressão Seria isso que ocorreria basicamente no LES Como já vimos anteriormente o estresse atra vés da ação neuroendócrina pode modificar as ativi dades das células T incluindo a atividade supressora Os processos autoimunes embora progressivamente mais conhecidos e estudados envolvem uma série de fenômenos com toda uma aura de mistério e de complexidade cuja natureza compreende uma gama muito grande de enfermidades ou de estados que predispõem a enfermidades Ângelo Papi falanos de um conceito sobre os processos autoimunes são antes de tudo fenômenos fisiológicos nem sempre patológicos como se pen sava antes A intensidade de produção desses fenô menos a quantidade alcançada faz o distúrbio a doença Assim familiares de pacientes com doenças do colágeno podem ter as alterações laboratoriais dessas doenças sem ter a doença propriamente dita Por outro lado sabese que os fenômenos autoimunes tendem a aumentar com o envelhecimento e tal fato tem mesmo sido aventado como de importância na etiopatogenia do câncer Outro aspecto já muito estudado diz respeito ao condicionamento genético dessas doenças Tal é o caso por exemplo da artrite reumatoide ou do pên figo vulgar doenças em que se conhece a influência que determinado aminoácido exerce provocando seu aparecimento Também em relação ao lupus eritematoso sistê mico LES conseguiuse provar que os camundongos híbricos do cruzamento NZW e NZB neozelandeses branco e negro desenvolvem uma forma de doença semelhante ao LES humano com maior incidência nas fêmeas presença de autoanticorpos anemia he molítica e nefrite por deposição de imunocomplexos Tudo isso nos demonstra que tem uma doença do colágeno poderíamos assim dizer não exatamente quem quer porém quem pode isto é quem tem con dições genéticas para tal São tipicamente doenças multifatoriais e aqui se inserem o estresse e os fatores psicossociais no seu desencadeamento evolução agravamento e desen lace como estudou Papi Papi 1964 Dentro deste ponto de vista vêm sendo estudadas principalmente as interações com vírus Nesse sentido já se sabe que o antígeno da poliarterite nodosa doença do gru po das colagenoses é o vírus da hepatite B Quan to à AR já se sabe que vírus do tipo EpsteinBarrr vírus da mononucleose infecciosa ao parasitarem os linfócitos B produzem o fator reumatoide uma gamaglobulina presente no sangue desses pacientes Também foi evidenciada a importância dos vírus HIV e tipos do vírus Picorna na poliomiosite doença na quais os Cocxakievirus parecem desempenhar papel patogênico em casos de crianças Essas interações estão presentes num grande número de enfermidades tais como hipertireoidismo anticorpos contra a glândula tireoide miastenia grave anticorpos contra os receptores de acetilcoli na nas junções neuromusculares diabetes mellitus linfócitos T contra células pancreáticas produtoras de insulina esclerose múltipla linfócitos T contra a bainha de mielina de células nervosas Juntemse a estas a síndrome de Sjöegren a síndrome de Reiter a doença de Crohn e a colite ulcerativa entre outras Apesar da riqueza de aspectos psicossomáticos que temos encontrado em pacientes com doenças au toimunes temnos impressionado com exceção da artrite reumatoide do lupus e da colite ulcerativa uma quase ausência de trabalhos ou referências a esse respeito principalmente em doenças do coláge no Tal fato tem sido motivo de estranheza e quase perplexidade de nossa parte por termos constatado a importância dos condicionamentos psicossomáticos nessas doenças desde que nos dispusemos a estudá las a partir da década de 1960 Uma das notáveis exceções é Solomon 1987 que vem estudando os aspectos psicossomáticos da artrite reumatoide há vários anos postulando para seu desencadeamento a ação de fatores estressores e concomitantemente falha de mecanismos adaptativos em indivíduos com distúrbios imunológicos e possíveis alterações prévias de personalidade Vamos nos centrar no estudo dos aspectos inte grais da colite ulcerativa e das doenças do colágeno Papi A Comunicação Pessoal 1983 Psicossomaticaindd 193 Psicossomaticaindd 193 05012010 121210 05012010 121210 194 Mello Filho Burd e cols enfermidades que estamos estudando há mais tempo e sobre as quais acreditamos ter algo a oferecer em termos de experiência pessoal Mello Filho 1964 1965 1966 Artrite reumatoide As artrites inflamatórias são doenças comuns que atingem 3 da população A mais comum é a Artrite Reumatoide AR que atinge 1 das pessoas Existem as artrites das demais doenças autoimunes a artrite anquilosante considerada por alguns como uma forma de AR a artrite psoriásica das doenças inflamatórias intestinais e as induzidas por cristais gota e artropatia pirofosfática A AR é associada a um aumento da morbidade cardiovascular caráter sistêmico Há uma predispo sição genética a influência do estresse a presença de autoanticorpos AAC e o Fator Reumatoide FR uma proteína encontrada no sangue de pacientes com AR A fase préclínica dura até 15 anos 50 dos pacientes apresentam FR no sangue e a presença de AAC O elemento característico da doença é uma sinovite persistente que acomete as articulações peri féricas simetricamente A inflamação sinovial causa destruição da cartilagem e erosão óssea e consequen te deformidade articular Supõese que esse processo se deva a liberação articular de citocinas A lesão mi crovascular e o aumento de células do revestimento sinovial parecem ser as lesões mais precoces da sino vite reumatoide junto com uma infiltração perivas cular de células mononucleares Patogênese da AR A AR é uma artrite inflamatória e destrutiva que afeta mulheres e homens na meiaidade Sinais libe rados pelo sistema neuroendócrino podem aumentar o risco de indivíduos predispostos desencadearem AR O melhor modelo estudado usa ratos Lewis e ratos Fisher JaparianTehrani 2000 Os primeiros que possuem um eixo HPA embotado desenvolvem artrite em contato com antígenos estreptocócicos Já os ratos Fisher que apresentam uma forte resposta CRH não desenvolvem artrite quando estimulados Tais fatos demonstram a importância do eixo HPA na artrite experimental Têm sido feitas análises genô micas na AR feminina A predisposição à doença tem sido atribuída à genes HLA em um terço 13 dos casos Steinsson 2005 A resposta antiinflamatória fisiológica tem sido bastante estudada por um grupo da Universida de de Genova e muitos trabalhos têm demonstrado uma resposta de ACTH cortisol relativamente baixa Straub 2001 Também têm sido encontrados níveis de androgênios antiflogísticos baixos Tudo isso in dica uma atividade reativa do organismo antiinfla matória defensiva para os níveis inflamatórios altos da AR Por outro lado níveis baixos de androgênios também têm sido encontrados no LES na doença de Crohn e na psoríase falando a favor de um problema mais geral nas doenças autoimunes Straub 2001 Essas falhas nos mecanismos adaptativos antiflogísti cos repercutem ainda mais no caso de doenças basi camente inflamatórias como a AR Cutolo 2003 Aspectos psicológicos Em 1942 Halliday Halliday 1942 descreveu esses pacientes como muito reprimidos em sua vida afetiva sendo predominantemente tímidos quietos e controlados comportandose como pássaros domés ticos Rimon 1969 que também fez em 1969 um tra balho que se tornou clássico sobre os aspectos psico lógicos da artrite reumatoide descreveu três grupos de pacientes Os do primeiro grupo grupo confliti vo que correspondiam a 55 do total tinham o iní cio da doença e as exacerbações nitidamente ligadas a situações conflitivas a evolução era rápida e havia pouca predisposição hereditária No segundo grupo 33 que chamou de não conflitivo os conflitos não eram importantes a influência da hereditarieda de era marcante e a evolução da doença era lenta e favorável Finalmente no terceiro grupo 12 de conflitos paralelos estes existiam porém não se re lacionavam com a evolução da enfermidade Cobb 1969 continuando vários estudos es tabeleceu em 1969 novos achados em relação à personalidade do paciente com artrite reumatoide Observou diferenças entre as mulheres que mais frequentemente são acometidas da doença e os ho mens Mulheres com artrite reumatoide a queixamse das mães como autoritárias e agres sivas mas comportamse como elas Não expres sam contudo agressividade diretamente à mãe b em situações difíceis há uma maior tendência a responderem com sintomas Os AAC são inicialmente contra peptídios cítricos citru linados Ainda não se sabe ao certo se o FR tem um papel etio lógico Psicossomaticaindd 194 Psicossomaticaindd 194 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 195 c no casamento há frequentes conflitos conjugais os maridos são de posição social inferior e há fre quentes casamentos com homens ulcerosos Homens com artrite reumatoide a têm menor frequência de lares conflitivos b têm menor hostilidade à mãe c no casamento há menores níveis de atritos conju gais as esposas apresentam pouca agressividade e há grandes problemas financeiros e desempre go Um curioso achado desse trabalho inclusive de significação estatística é o encontro de frequentes casamentos entre mulheres com AR e homens com úlcera péptica o que caracterizaria uma ligação neu rótica entre mulheres agressivas e controladoras e homens passivos e dependentes Uma referência comum nesses trabalhos é sobre a inibição da expressão da agressividade como um dos elementos mais importantes de suas personalidades num constante esforço de contenção de sentimentos hostis inconscientes no nível músculoósteoarticular A imobilidade funcional articular devida à dor e à inflamação é uma queixa comum nesses doen tes refletindose em sua vida de relação trabalho e atividades sexuais Tem importância no acompanha mento psicoterápico por ser fonte de sentimentos depressivos e de repercussões negativas na autoes tima Por vezes a impotência funcional ou mesmo a quase paralisia do paciente é negada por eles numa tentativa de esquecer a doença incapacitante e as de formações Tal era o caso de um paciente que assis timos no Hospital Escola São Francisco de Assis um homem na década dos 50 anos com quadro de evo lução de muitos anos e acometimento de múltiplas articulações apresentando as juntas dos membros ni tidamente edemaciadas e deformadas Sua impotên cia funcional era nítida pois se movia e andava com dificuldade O fato é que esse homem estava saindo de um segundo casamento com uma mulher muito mais jovem Tanto esta ligação como a anterior foram desfeitas porque ambas as mulheres o traíram com outros homens Seu grau de negação era tão grande que relatava estas situações como se referisse a ou tra pessoa Era esta mesma negação que o levava a envolverse com mulheres tão jovens que poderiam ser suas filhas Estas efetivamente comportavamse como filhas permitindose contudo ter namorados que deveriam ser naturalmente aceitos por um pai e não por um marido Tudo isso se fazia sob o pano de fundo de um forte componente masoquista através do qual o paciente se castigava por uma doença nun ca aceita apenas tolerada Enquanto a forma adulta da doença tem sido muito estudada em seus aspectos psicossomáticos a artrite reumatoide juvenil praticamente não foi pes quisada a esse respeito com exceção dos trabalhos de Bagger 1981 e da comunicação feita por um de nós Mello Filho 1977 Tratase da pesquisa realiza da em 18 pacientes estudados através de entrevistas com estes e seus pais e de testes psicológicos de per sonalidade Em 61 desses casos havia uma relação entre o início da doença e problemas familiares sig nificativos Já nas exacerbações só encontramos tais relações em 30 dos casos Os pais desses pacientes via de regra negavam a gravidade da doença de seus filhos e estes frequentemente tentavam compensar sua condição de enfermos acentuando seus aspectos intelectuais e tornandose excelentes alunos com o que conseguiam agradar aos pais Um dado impor tante encontrado em nossos casos foi o achado de franca rejeição por parte das mães em 40 dos casos por vezes bem anterior ao início da doença outras vezes constituindo o principal fator desencadeante Assim MCS uma menina de 7 anos filha de uma relação extraconjugal da mãe foi como seus irmãos abandonada por ela quando tinha apenas um ano de idade fase em que se iniciou sua doença Em outros casos a rejeição não era tão manifesta mas tam bém parecia relacionada com a enfermidade como no caso de EFP masculino 17 anos cuja doença se iniciou na época em que sua mãe começou a traba lhar fora do lar Uma hipótese que fizemos ao final deste traba lho foi a de que o surgimento de uma artrite reuma toide juvenil doença muito menos frequente que a forma adulta pode ter seu aparecimento precoce ligado à gravidade de situações conflitivas e traumá ticas experimentadas como é o caso de outras enfer midades como o diabetes mellitus Lupus eritematoso sistêmico Quanto às demais colagenoses temos estudado particularmente o lupus eritematoso LES a esclero se sistêmica progressiva e a dermatomiosite São do enças disseminadas que podem atingir vários órgãos e múltiplas localizações e portanto gerar os mais va riados quadros clínicos numa real ameaça à integri dade corporal do paciente podendo inclusive levar à morte No lupus há uma forma benigna cutânea o lupus discoide e uma forma disseminada maligna o LES Nessa doença há a produção de complexos imu nes autoantígenos e autoanticorpos vários que vão encalhar nos pequenos vasos de múltiplos tecidos nobres do organismo sinóvia pele membrana basal renal produzindo lesões várias eritema cutâneo Psicossomaticaindd 195 Psicossomaticaindd 195 05012010 121210 05012010 121210 196 Mello Filho Burd e cols artrite pleuropneumonite nefrite lesão cerebral e outras Isso confere ao lupus o caráter de ser uma das doenças mais pleomórficas que se conhece ori ginando quadros de muita complexidade e de difí cil diagnóstico e reconhecimento Assim o paciente pode numa das crises pode apresentar uma pleu ropericardite noutra oportunidade um quadro neu rológico ou um surto caracterizado por febre artral gias e lesão cutânea A gravidade da doença é dada sempre sobretudo pela lesão renal que leva com sua evolução à insuficiência renal e à uremia Tudo isso pode levar o paciente com LES a um estado paranoi co tornandose temeroso de a qualquer momento ter uma exacerbação que pode se apresentar com formas imprevisíveis O LES por ser uma das doenças mais genera lizadas e de quadros mais agudos já foi chamada de epilepsia do sistema imune É uma enfermidade predominantemente de mulheres 95 no período fértil Hoje sabese que este fato está ligado à ativi dade estrogênica É uma doença com características próprias em sua localização geográfica Assim ela é mais frequente no Extremo Oriente China Singapu ra com 1 caso por 250 habitantes do que no resto do mundo 11000 Observouse também que essa incidência diminui quando os pacientes passam a ter hábitos ocidentais e se mantém se os hábitos orien tais permanecem Também se sabe que enquanto o lupus na África é raro sua incidência entre negros americanos é muito alta Tudo isso mostra que há ní tidas influências culturais na incidência e evolução da doença Há substancias químicas medicamentos como a hidralazina e a procainamida que podem provocar um quadro lupus símile quando administradas a cer tos pacientes Também há casos de lupus que se se guem à aplicação de uma vacina ou a uma transfusão de sangue demonstrando a força dos mecanismos imunológicos no desencadeamento da doença Como se pode ver há vários progressos feitos nos últimos anos na etiopatogenia do lupus o que torna ainda mais clamorosa a pobreza de trabalhos sobre os con dicionantes psicológicos da doença Em nossa expe riência clínica de atendimento a mais de 50 pacientes de LES poucas enfermidades vimos com um caráter mais psicossomático do que esta Geralmente é fá cil conversando com esses pacientes mesmo como clínicos determinar o condicionante psicossocial da doença problemas conjugais situações de perda estados depressivos etc Em pesquisa realizada por um de nós JMF e pela psicóloga Maria da Gloria Wanderley Costa com cerca de 30 pacientes de LES submetidos a entrevistas e testes de personalidade Rorschach e Teste de Relações Objetais encontra mos o que poderíamos chamar de uma etiopatoge nia psicológica em dois terços dos pacientes Esta se apresentava como uma situação de estresse ou de crise claramente definida antecedendo o início da enfermidade Por vezes essa crise era crônica e vinha evoluindo como uma situação geral de infelicidade marcando nitidamente os pacientes e assim de modo surdo se insinuava aos poucos no universo da doen ça caso de Nair a ser apresentado Uma honrosa exceção à falta de trabalhos so bre o universo psicológico dos pacientes com LES em nosso meio é a recente tese de mestrado de Gloria Regina Bandeira de Araújo Araújo 1989 da UFRJ Interessaranos particularmente uma doença onde há história de estreita correlação temporal entre os aspectos emocionais e seu início eou exacerbações e com características de ser multisistêmica crônica de curso imprevisível repercutindo psicologicamente nos pacientes alterando de modo direto sua vida de relaçãoaspectos somatopsíquicos Sobre a patogenia do LES escreve O LES é uma doença caracterizada por diversas anormali dades imunológicas sugestivas de hiperatividade policlonal de células B hipergamaglobulinemia e aparecimento de numerosos autoanticorpos princi palmente contraantígenos nucleares As células T também participam da patogênese da doença tan to pelas alterações funcionais depleção de células T redução de células T supressoras quanto pela infiltração celular tecidual por células mononuclea res A maioria das alterações do sistema nervoso central convulsões psicoses alterações cardíacas pericardite miocardite alterações dermatológicas alopecia sensibilidade solar e outras anormalida des clínicas e laboratoriais decorrem de mecanismos patogênicos causado pelos complexos imunes ou por anticorpos citotóxicos dirigidos contra hemácias leu cócitos plaquetas e neurônios Sobre o que chamou de estresse psicossocial do LES a autora faz considerações que têm muito em co mum com as observações que temos feito nestes pa cientes Embora haja pacientes típicos há certos as pectos psicológicos presentes na população com LES Quando encaminha o paciente para psicotera pia o especialista deve avaliar qual das três caracte rísticas da doença pode estar causando a sintomato logia apresentada a Cronicidade Os pacientes apesar de não apre sentarem anormalidades entre episódios agudos de exacerbação da doença não se sentem nor mais Consequentemente assumem o papel de pacientes regridem renegam responsabilidades e se tornam dependentes criando tensões entre eles que se consideram doentes e os familiares e clínicos que os consideram bem Psicossomaticaindd 196 Psicossomaticaindd 196 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 197 b Caráter imprevisível do curso do LES As frequen tes e imprevisíveis exacerbações da doença fazem com que os pacientes com LES tenham dificulda de em planejar um futuro Como proteção vivem o seu dia a dia não se desenvolvendo pessoal ou profissionalmente afastandose socialmente às vezes em graus desproporcionais à severidade da doença Criam mecanismos de defesa para li dar com essa imprevisibilidade como pensamen tos mágicos e obsessivos que os afastam de pes soas ou lugares que julgam causar os episódios agudos Alguns pacientes assumem essa definição de forma concreta e creem que o corpo se au toataca como reflexo de conflitos internos mal resolvidos que necessitem de punição c Doença multisistêmica Não são só imprevisíveis as exacerbações agudas do LES como qual o órgão ou sistema que será afetado Agrava esta situação o fato da superespecialização a que a Medicina está sujeita hoje em dia sendo o pa ciente visto por um médico diferente a cada crise dependendo do órgão atingido Há um intenso sentimento de fragmentação e desamparo não sabendo o paciente a quem recorrer quando do início de algum sinal ou sintoma da doença Outros comentários sobre esse mesmo tipo de problema são feitos pela autora ao escrever sobre O lupus e a mulher Adquirem hábitos de vestuário específicos adaptando sua indumentária à necessidade de escon der as lesões existentes lançando mão de artifícios como perucas lenços e chapéus no caso de alope cia e roupas fechadas e mangas sempre compridas se houver lesões em braços por exemplo O trabalho de Gloria Regina De lupus et homine é baseado no estudo de 13 casos que foram acompa nhados ambulatorialmente em nível de psicoterapia breve de 6 meses de duração Quase todos os pacien tes referiam situações várias de estresse anteceden do o início de suas enfermidades ou as exacerbações destas A psicoterapia foi considerada um importante elemento de auxílio para as pacientes poderem lidar com as questões psicossomáticas e somatopsíquicas tão presentes nessa enfermidade O LES costuma ser marcante ou estigmatizan te para quem o apresenta Frequentemente há lesões cutâneas que podem acometer a face ou ser genera lizadas presentes em cada crise As recomendações feitas sobre evitar a exposição à luz solar ou não fa zer uso de certos medicamentos podem atemorizar o paciente sobre a gravidade da sua doença Aliás nessa doença o risco de iatrogenia começa pelo fato de o paciente captar as preocupações do seu médico com sua enfermidade E muitos médicos ainda trans mitem preocupações exageradas pois mantém uma visão da doença e de sua gravidade mais relacionada com o passado do que com o presente com os inú meros recursos terapêuticos de que se dispõe hoje em dia para o controle do LES Sentimos esse problema de perto quando um de nós JMF à frente de um grupo instalou um Am bulatório de Doenças do Colágeno na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro ainda em 1960 Per cebíamos como os pacientes moviamse para lá iden tificados com as esperanças dos membros de nossa equipe fator que por si só explicava a boa evolução de muitos doentes e a tolerância com uma enfermi dade de curso crônico e prolongado A boa relação formada com um médico que estudava a sua doença em profundidade e que acreditava que algo podia ser feito em seu favor explicava por que esses pacientes passavam a tolerar até os efeitos adversos dos corti costeroides face de lua obesidade abdominal hirsu tismo dentre outros apesar do seu incômodo e das grandes repercussões sobre sua imagem corporal Ao mesmo tempo as pacientes estabeleciam intensas re lações com suas colegas de ambulatório passando a conversar sobre aspectos em comum de suas enfer midades e sobre o tratamento Estabeleciamse vín culos de suporte mútuo que mais tarde voltamos a encontrar e a estudar nos grupos de autoajuda Tais vínculos faziam com que as pacientes chegassem ao ambulatório antes da hora da consulta para conver sar trocar ideias desabafar umas com as outras Era um embrião do que depois passou a se chamar de grupos de sala de espera Nós aprendíamos com aqueles exemplos e se tí nhamos determinada paciente internada avisávamos aquelas que sabíamos serem suas amigas para que pudessem visitála Com o passar do tempo aquele ambulatório funcionava como se fosse a casa de uma imensa família Foi todo um período de muitas con quistas em Medicina Com interesse empatia e por vezes com o uso de uma medicação mais adequada começávamos a obter resultados satisfatórios em ca sos crônicos e considerados até então irremissíveis Apenas com psicoterapia revertíamos depressões que hoje seriam certamente alvo de altas doses de an tidepressivos Principalmente aprendemos que muito podia ser feito em doenças que eram vistas pelos mé dicos em geral àquela época como se fossem equi valentes a um câncer em que muito pouco restasse a fazer por aquelas pobres criaturas A possibilidade de psicoiatrogenia nesses casos é muito grande desde a transmissão de más expec tativas às recomendações excessivas levando os pa cientes e se sentirem assustados e temerosos Outros exemplos de iatrogenias que são cometidos com todo tipo de paciente também podem atingir esses casos Psicossomaticaindd 197 Psicossomaticaindd 197 05012010 121210 05012010 121210 198 Mello Filho Burd e cols Assim por exemplo uma das pacientes descritas nes te trabalho Nair ficou deprimida e chorosa depois que foi apresentada numa aula prática aos alunos É que o professor havia dito a estes que ela tinha cara suja referiase às lesões hipercrômicas que conferem este aspecto ao doente com lupus sistêmico e esta tinha tomado o dito ao pé da letra sentindose feia e asquerosa É um exemplo de iatrogenia muito fre quente ligada ao ensino médico decorrente de des respeito cometido em aula pública com pacientes Hoje os clínicos começam a reconhecer os as pectos psicológicos e psiquiátricos da doença e certos pacientes com LES são encaminhados para tratamen to psiquiátrico ou psicológico Porém os profissio nais psi cometem com estes pacientes outro tipo de iatrogenia Por exemplo numa das iatrogenias mais comuns frequentemente confundem autoagressão imunológica com autoagressão psicológica e dizem ao paciente tout court que está se autoagredindo com sua enfermidade o que vai produzir um efeito muito negativo em alguém que já se sente profundamente agredido pela enfermidade de que padece São exa geros de um enfoque por demais simbólico num pro fissional muitas vezes com pouca vivência de clínica e sobre a enfermidade que está tratando Pensamos ser a abordagem psicoterápica funda mental nessa enfermidade para adaptar o paciente à convivência com uma doença crônica para ajudá lo em estados depressivos ou em repercussões que a doença possa ter para sua fertilidade Por exemplo temos visto casos em que a evolução modificouse in teiramente depois que entrou em jogo a pessoa do psicoterapeuta A incidência de sintomas psiquiátricos no LES é alta e devese principalmente ao acometimento do sistema nervoso central através de arterites que po dem atingir várias regiões do encéfalo podendo gerar quadros os mais diversos desde convulsões e quadros do tipo acidente cerebrovascular passando por esta dos confusionais podendo chegar ao coma Alguns pacientes fazem reações psicóticas especialmente do tipo esquizofrênico O diagnóstico diferencial deve ser feito com a perspectiva de quadros psíquicos rea tivos à presença de uma enfermidade ameaçadora e estigmatizante e principalmente à presença de uma psicose induzida por esteroides fato relativamente frequente quando se emprega altas doses deste medi camento o que pode ser o caso do LES Nosso trabalho JMF nos últimos anos com doenças autoimunes tem sido de Supervisor da Psi cologia Médica na Unidade Docente Assistencial de Reumatologia do Hospital Pedro Ernesto da UERJ Também realizamos durante três anos um trabalho de psicoterapia grupal com a psicóloga Valéria Cris tina de Azevedo Nascimento Nascimento 2000 em coterapia com ótimos resultados com pacientes de LES relatado no livro Grupo e Corpo Neste trabalho que contou com uma boa adesão por parte das pacientes o caso novo sempre contava com a primeira sessão para apresentação Tratavase de um grupo aberto homogêneo semanal de supor te e com um enfoque analítico grupal composto de pacientes nas várias fases evolutivas da doença Logo se instalava uma forte solidariedade entre as pacien tes que faziam contatos de apoio extra grupal Como eram quase todas do sexo feminino faziam via de regra uma forte transferência idealizadora com Va léria Apresentavam com frequência uma problemá tica sexual em comum Por apresentar na fase agu da febre astenia dores articulares e lesões cutâne as tornavamse frígidas e deixavam de ter relações sexuais com seus maridos ou companheiros Na fase crônica as dificuldades sexuais tinham continuidade pois apresentavam as marcas antiestéticas do uso crônico de cortisona e por isso depressão e baixa autoestima Enquanto alguns maridos toleravam esta situação e esperavam a melhora das esposas outros não toleravam a frustração sexual e atuavam tornan dose agressivos apelavam para o álcool ou partiam para casos extraconjugais por vezes com vizinhas ou outras mulheres conhecidas das esposas A ventilação desses problemas no grupo a dis cussão em torno de uma sexualidade mais aberta e livre por parte das mulheres e de estratégias de rea proximar os casais fraturados funcionou para a maio ria das pacientes que enfrentavam esses problemas Outras foram encaminhadas para terapias de casais Nair era uma mulher negra de 36 anos quando a acompanhei em serviço de clínica médica JMF Era uma paciente tipicamente carente algo pegajosa que se ligou a mim durante a fase em que a acom panhei em uma internação hospitalar como clínico que lhe dava também apoio psicoterápico Ela conta va que praticamente não conheceu sua família e que morou num orfanato até os 9 anos Saiu de lá para a casa de uma senhora que achava muito má Eu só queria comer açúcar e ela só queria que eu estudasse Tornouse deprimida foi mandada de volta ao orfa nato rebelouse e não aceitou Foi então para o Servi ço de Assistência aos Menores SAM posteriormente FEBEM No SAM conheceu uma enfermeira que a le vou para trabalhar em sua casa como doméstica Nas circunvizinhanças Nair conheceu José que viria a ser o homem de sua vida Ela se perdeu engravidou foi expulsa de casa e foi viver encostada na casa da sogra Nasceu uma filha que ficou com a sogra José que tinha todas as características de um malandro e que não trabalhava abandonou Nair já numa segun da gravidez Ela provocou um aborto e depois disso Psicossomaticaindd 198 Psicossomaticaindd 198 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 199 ficou perambulando pelas ruas Conseguiu um novo emprego como doméstica porém reencontrou José novamente engravidou e surgiram então artralgias edemas de membros inferiores e lesão cutânea típi ca de lupus eritematoso sistêmico Nasceu um filho que foi doado No puerpério há um agravamento do lupus com febre e poliartralgias Começa a se tratar comigo É iniciada medicação com corticosteroides porém se inicia uma complicação tuberculose miliar que todavia regride com medicação específica Du rante sua internação Nair se mostra rebelde infan til e ciumenta das demais pacientes Com manobras várias tenta obter um lugar de destaque e um tra tamento especial dentro da enfermaria e na relação comigo Também se constata uma série de pequenos furtos cometidos pela paciente que tenta incriminar vizinhas de enfermaria A essa altura dos acontecimentos sou acome tido de hepatite a vírus e severamente ictérico fui internado no mesmo hospital em que trabalhava num quarto ao lado da enfermaria onde está Nair Durante os quase dois meses que estive no hospital ela foi uma espécie de enfermeira incansável a me assistir esmerandose numa série de pequenos cuida dos como receber recados telefônicos Nesse perío do não houve furtos na enfermaria nem brigas com colegas Sentiase uma filha que privilegiadamente cuidava do pai Corrigiuse e só nesse período seu comportamento As coisas todavia se complicam ainda mais em sua vida José morre inesperadamente e ela embora diga que nem liguei tem uma severa agudização da doença até então sob controle Pouco tempo depois morre seu filho com quem estava tendo bons con tactos Nair se torna depressiva depois se recupera Como sua doença estava sob controle e ela pratica mente vivesse numa condição de hospitalismo foi tentada uma alta hospitalar com acompanhamento ambulatorial Esse esquema todavia não funcionou pois nesse período ela não voltou ao hospital pas sou a mendigar e esteve temporariamente num asilo Só voltou para se reinternar em franca desagregação psíquica e somática em estado confusional febril e coberta de lesões cutâneas Foi mais uma vez medi cada com corticosteroides e antimaláricos porém no vamente instalouse a mesma complicação anterior tuberculose miliar da qual veio a falecer A história de Nair é o típico relato de uma pes soa privada e carente que passou toda a sua vida em instituições de assistência num país que tem muito pouco de bom para oferecer a esse respeito como o Brasil Nela a doença se instala num quadro ge ral de falência existencial conforme temos observa do em muitos casos de lupus eritematoso sistêmico tornandose por vezes difícil determinar que evento tivesse possibilitado o aparecimento da doença por serem tantas as condições de estresse ou de infelici dade em histórias desse tipo No caso de Nair a doen ça aparentemente se instalou durante uma gravidez na qual houve edema de membros inferiores e lesão típica do lupus eritematoso sistêmico O quadro do lupus se exacerbou no puerpério como é de praxe Desde então esteve em tratamento com corticoste roides e antimaláricos respondendo bem a essa me dicação por ter uma forma relativamente benigna da enfermidade Como seu clínico assistente procurei sempre lhe oferecer apoio e compreensão em suas difíceis problemáticas existenciais Seus problemas se agravaram na decorrência da ligação do tipo sa domasoquista que estabeleceu com seu parceiro um personagem do tipo sociopata que parecia feito sob medida para uma mulher carente e quase oligofrêni ca como ela Aliás Nair se não atingiu o estágio de uma sociopata teve toda uma história de vida que a levava a isso pelo menos na condição que Winnicott chamou de antissocial que a levava a cometer furtos funcionando estes mais como uma forma de clepto mania José ficou sendo o marginal que ela não foi e daí toda a sua fascinação por ele que funcionava como uma parte sua não realizada e não assumida Nair não mais saiu desta relação e das suas conse quências como as gravidezes impossíveis de assumir que geravam abortos ou filhos impossíveis que iam agravar sua enfermidade conforme lhe aconteceu no LES a ponto de por falta de condições reais de subsistência morrer A história de Nair é realmente trágica como o é a de muitos habitantes pobres do nosso país e os acontecimentos dramáticos as perdas se sucedem uns aos outros José morre ao que se sucede uma exacerbação do lupus Pouco tempo depois falece o filho com o qual embora não morasse com ela vinha conseguindo estabelecer bons contactos Ela se depri miu e aparentemente se recuperou depois A direção do serviço de clínica médica no qual ela estava inter nada constatando uma condição de hospitalismo que se prolongava cada vez mais tentou uma situação de alta com a colaboração de Nair que dizia que iria co laborar com a alta tentar se adaptar a uma vida fora do hospital trabalhar etc Nada disso entretanto aconteceu Nair começou a mendigar nesse período estágio final da decadência social numa paciente com uma história de vida como a sua e esteve num asilo Quando voltou ao Hospital foi num estado já bem avançado da doença com acometimento ence fálico estado confusional e em franca fase aguda da doença Foi medicada com os fármacos habituais em doses elevadas o que deve ter contribuído para que novamente apresentasse a complicação infeccio sa da corticoterapia que finalmente a vitimou uma Psicossomaticaindd 199 Psicossomaticaindd 199 05012010 121210 05012010 121210 200 Mello Filho Burd e cols tuberculose disseminada condição comum em pes soas desnutridas e carentes policarentes de corpo e alma como foi ao longo da sua vida PostScriptum de Glória Regina Bandeira de Mello em 2008 O Lupus Eritematoso Sistêmico é uma doença autoimune crônica de etiologia discutida caracte rizada por inflamação nos diferentes órgãos e siste mas Sua alteração principal caracterizase por uma reatividade imunológica anormal com a produção de autoanticorpos reagentes a componentes nucleares citoplasmáticos e de membrana celular principal mente superfície das hemácias leucócitos plaquetas e neurônios estruturas estas que funcionam assim como antígenos O curso é frequentemente imprevisí vel alternando períodos de exacerbação e remissão Embora possa ocorrer em qualquer idade e sexo as mulheres são mais acometidas que os homens 121 o que não implica que os homens tenham formas mais brandas da doença A faixa etária de maior in cidência é entre os 13 e 40 anos e a prevalência é maior em determinados grupos étnicos como o orien tal japoneses e chineses e em especial os negros Esses dados em conjunto sugerem que mesmo sen do de etiologia ainda discutida tanto fatores gené ticos quanto psicossociais ao lado dos hormonais e bioquímicos contribuem para a patogênese do LES Quanto aos aspectos genéticos alguns trabalhos indi cam que em média 10 dos pacientes com LES pos suem parentes em primeiro ou segundo graus com a mesma enfermidade ou com outras patologias autoi munes sendo também significativa a presença de al terações laboratoriais em parentes assintomáticos Já são conhecidos alguns fatores genéticos envolvidos como genes que levam a um aumento das respostas de anticorpos consequentemente a uma variedade de estímulos assim como genes do sistema HLA lócus D DR2 e DR3 que predispõem a uma resposta par ticular do autoan ticorpo Fatores hormonais e am bientais atuam no substrato imunológico facilitado geneticamente predispondo ou protegendo a expres são da doença Nesse caso pelo menos três exemplos podem estar interligados androgênio que parece ter função protetora estrogênio possível função pre disponente e a prolactina também predisponente A interrelação entre eles estaria no fato de a prolac tina ter efeito inibitório na produção dos hormônios sexuais sendo sugerido por Mcmurray 1994 que a indução de deficiência de androgênio em indivíduos com hiperprolactinemia poderia induzir ao apareci mento do LES Uma grande variedade de infecções virais e bacterianas pode estimular o sistema imuno lógico ocasionando o início do quadro Por uma série de diferentes mecanismos ainda não devidamente esclarecidos a exposição à luz solar UV pode pro vocar exacerbações no curso do LES Diversas drogas podem induzir sintomas de uma síndrome designada lupuslike dentre as quais podemos citar a Hidralazi na Procainamida Acido Valproico Fenitoina Primi dona Carbamazepina e Etosuximida Outro fator relevante nos quadros lúpicos são os aspectos emocionais que hoje se sabe desempenham papel importante no desencadeamento e nas exacer bações da doença Desde as observações pioneiras de Hans Seyle que conceituou e cunhou o termo stress para uso na área médica muito se pesquisou a respei to da relação entre os estados psicológicos e a função imunológica onde a resposta mediada pelos linfóci tos T estava diminuída em pacientes deprimidos A alteração funcional nos linfócitos T levaria a uma alteração também na resposta imunológica humoral já que as primeiras contribuem na proliferação de cé lulas B através de secreção do fator de diferenciação das mesmas As alterações psíquicas apresentamse com uma ampla diversidade de quadros gerando in clusive a alcunha de grande imitador para o LES No que diz respeito à patogênese destes distúrbios há quatro causas interrelacionadas efeitos relacionados ao envolvimento direto do Sistema Nervoso central por depósitos de imu nocomplexos efeitos relacionados a complicações clínicas alte rações metabólicas azotemia efeitos iatrogênicos arsenal medicamentoso hospitalização stress psicossocial do LES Este último merece especial atenção pois as principais características desta doença crônica cur so imprevisível e multisistêmica causam uma vasta gama de transtornos psicológicos que precisam ser cuidadosamente observados para que os pacientes possam levar uma vida relativamente normal dentro das limitações a que estão sujeitos REFERÊNCIAS Araujo GRB De Lupus et Homini Contribuições a uma defi nição do espaço de atuação do psiquiatra em Hospital Geral Rio de Janeiro UFRJ Instituto de Psiquiatria 1989 139p Dissertação de Mestrado Correlatos psiquiátricos e neuropsicológicos no Lupus Eritematoso Sistêmico comparação com Artrite Reumatoide e a Miastenia Gravis Rio de Janeiro UFRJ Instituto de Psiquiatria 1998 Tese de Doutorado Cecil Textbook of medicine 23th Ed 2007 Psicossomaticaindd 200 Psicossomaticaindd 200 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 201 Harrison TR Adams RD Bennet Jr IL Resnik W H Thorn GW Wintrobe MM Medicina Interna 17th Ed 20080921 Tavares FMS Eventos estressores e estratégias de enfrenta mento psicológico de portadores de LES Universidade Católica de Goiás 2004 Trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia Navarrete NN Efectos de La terapia de afrontamiento del es trés cotidiano em pacientes com Lupus Universidad de Granada Faculdad de Medicina 2007 Esclerose sistêmica progressiva e dermatomiosite A esclerose sistêmica progressiva escleroder mia é outra doença difusa do tecido conjuntivo que também atinge mais a mulheres e se localiza prin cipalmente na pele da face membros superiores inferiores e tórax conferindo peculiar aspecto de espessamento e esclerose cutâneos diminuindo a mobilidade dos dedos e a abertura da boca Também pode atingir o esôfago pulmões coração rins e ou tros órgãos nobres Diferentemente do LES há pouca resposta aos corticosteroides e quimioterápicos o que pode tornar a tarefa terapêutica frustrante para am bos os participantes da relação Principalmente se le varmos em conta que o paciente pode se tornar muito ameaçado com o acometimento cutâneo que atinge a face e mãos e pode vir acompanhado de fenômeno de Raynaud alterações cianóticas de extremidades decorrentes de fenômenos vasoespásticos Tudo isso leva a distúrbios isquêmicos que provocam o apare cimento de pequenas ulceras dolorosas na ponta dos dedos das mãos O acometimento do esôfago leva a acalasia e a dificuldade de deglutição sintomas muito desagradá veis que podem provocar depressão As lesões pulmo nares levam a insuficiência respiratória geralmente a causa mortis desses pacientes As lesões do miocárdio levam à insuficiência cardíaca e ao acometimento renal mais raro Por conta de todas essas lesões e um pobre arsenal terapêutico os pacientes com escle rodermia apresentamse via de regra deprimidos e pouco esperançosos quanto à possibilidade de cura Em um trabalho mais atual e extenso Hyphan tis 1990 estudaram os aspectos psicológicos de 50 pacientes com esclerodermia usando testes e ques tionários com grupo controle Entre os sintomas psiquiátricos predominava a ansiedade mais ligada a dor articular e a depressão correlacionada com o grau de espessamento da pele as artralgias o com prometimento pulmonar e principalmente as lesões esofagianas muito incômodas levando à disfagia e ao emagrecimento Não encontraram casos de psicose mas apenas traços esquizoides e paranoides princi palmente em jovens atribuindoos basicamente aos distúrbios da adolescência Fatores adaptativos como o uso de defesas egoicas senso de coerência resiliên cia estilos de coping e diversos graus de hostilidade também atuavam para atenuar ou agravar os sinto mas e sua tolerância a estes Os sujeitos com escle rodermia tinham quatro vezes mais quadros psiqui átricos que os controles Com efeito é incomum um paciente com um quadro moderado a avançado de esclerodermia que não se apresente deprimido Por outro lado é sabido que a esclerodermia não apre senta acometimento cerebral Quadros psicóticos sur giam mais em pacientes jovens envolvidos com os problemas da adolescência Dentre as doenças psicossomáticas que tivemos oportunidade de acompanhar mais de perto a escle rodermia e a colite ulcerativa são as que apresentam maior riqueza de aspectos psicológicos em relação às demais Assim na experiência que tivemos com essa enfermidade na década de 1960 em cerca de 20 casos assistidos não nos recordamos de um paciente que não tivesse uma etiologia nitidamente psicosso mática e uma evolução francamente marcada por es tes fenômenos Isso se vê com muita clareza no fenô meno de Raynaud que por vezes o próprio paciente associa conscientemente com as vicissitudes do seu estado emocional As pacientes de esclerodermia que examinamos ou acompanhamos eram geralmente pessoas esquizoides ou depressivas com vidas fran camente infelizes independentemente da influência da doença em suas evoluções Uma dessas pacientes pedianos sem qualquer emoção que déssemos um jeito de operála para lhe tirar o sexo já que isso de nada lhe adiantava Outra paciente era pianista e praticamente na vida só tirava prazer dessa profissão até que surgiu a doença exatamente em suas mãos Temos visto dois grandes riscos de iatrogenia no acompanhamento dessas pacientes um enfoque ex cessivamente cutâneo que esqueça os aspectos sistê micos da enfermidade e um enfoque eminentemente orgânico que desconheça os aspectos psicológicos tão prevalentes nesta doença Sabemos de casos de esclerodermia em acompa nhamento psicoterápico em proporção menor do que no lupus Aqui o desafio maior para o psicoterapeu ta nos parece ser o acompanhamento basicamente silencioso aparentemente morto da maioria destes pacientes ao contrário do lupus em que é geralmen te tumultuado e cheio de imprevistos A dermatomiosite é uma doença de etiologia múltipla corantes de cabelo agrotóxicos vírus HIV picornavirus etc que acomete basicamente pele e músculos podendo provocar lesões sistêmicas pul mões coração rim etc As lesões da dermatomio site são eritematosas e podem ser generalizadas As lesões musculares conferem um caráter mais grave à doença pois podem levar à atrofia muscular com Psicossomaticaindd 201 Psicossomaticaindd 201 05012010 121210 05012010 121210 202 Mello Filho Burd e cols grande prejuízo para a movimentação dos membros superiores e inferiores Acreditase que são conse quência da presença de anticorpos antimúsculo Um caráter ainda mais grave é decorrente da presença de lesões viscerais geralmente pulmonares ou car díacas A doença pode ainda vir acompanhada de neoplasias malignas Nesse caso a dermatomiosite funciona como uma reação imunológica à presença da neoplasia denunciandoa É o que se convencio nou chamar de síndrome paraneoplásica Por vezes a dermatomiosite que tem coisas em comum com a esclerodermia como a síndrome de Raynaud podendo ser acompanhada de lesões cutâneas indistinguíveis desta outra enfermidade constituise numa forma combinada das duas doen ças a esclerodermatomiosite Existe uma forma ape nas muscular da doença a poliomiosite com menor comprometimento sistêmico Por ser uma doença de incidência bem menor que o lupus e também menos frequente do que a esclerodermia a dermatomiosite é uma entidade ainda pouco conhecida fazendo com que haja casos por muito tempo não identificados le vando estes doentes a serem submetidos a vários exa mes desnecessários Por essas razões estes pacientes chegam muitas vezes à primeira consulta cansados e desanimados por terem sido submetidos a várias peregrinações inúteis O tratamento médico pode ser frustrante pois a dermatomiosite não responde tão bem à terapêutica com cortisona quanto o lupus As sim a melhora das lesões cutâneas pode ser lenta e mais ainda a do quadro muscular principalmente se há atrofia Em nossa fase de clínico atendemos a cerca de 10 pacientes com dermatomiosite Queremos ilustrar as vicissitudes do acompanhamento desse tipo de pacientes com a descrição de dois casos ambos em mulheres jovens A primeira paciente que chamaremos de A era ainda adolescente quando surgiu a doença Era a mais velha de quatro irmãos de uma família que vivia bem até que o pai foi acometido de um qua dro de demência présenil que desorganizou de todo a vida familiar Em pouco tempo este não mais se comunicava porém estava sempre profundamente agitado e incontinente Ela e a mãe adoeceram jun tas a mãe começou com um quadro enxaquecoso e posteriormente uma artrite reumatoide que rapida mente evoluiu para a deformidade articular Quan do atendemos A pela primeira vez era como se ela não tivesse pais quem a trazia para a consulta era um namoradinho Estava francamente deprimida em virtude da doença dos pais e do seu próprio esta do lesões cutâneas muito chamativas reumatismo e dores musculares Com o tratamento com corti costeroides o quadro cutâneo e músculo articular começaram a declinar mas a paciente mantevese severamente deprimida pois sua face começou a inchar moon face bem como o abdome e a par te superior das extremidades Seu acompanhante e namoradinho foi muito importante nesta difícil fase inicial de sua enfermidade A vem sendo acompanhada no mesmo ambu latório desde então nos três primeiros anos por nós e teve uma evolução de curso benigno porém sem pre necessitando de uso de corticosteroides e anti maláricos Casouse com o namoradinho tem filhos são felizes e de vez em quando vem visitarme para demonstrar sua gratidão matar saudades e dar no tícias B é uma paciente que tinha 26 anos quando iniciou um quadro de febre alta reumatismo e do res nos músculos proximais das extremidades Esta va dispneica e seu quadro inspirava cuidados pelo que foi internada Praticamente não podia se alimen tar por acometimento de faringe e esôfago devido à enfermidade O diagnóstico veio com uma biópsia muscular e o estado de B se agravava cada vez mais mesmo com o uso de altas doses de corticosteroides Era preocupante o quadro pulmonar resultante de extensas lesões bilaterais de pneumonite Apesar de todos os recursos terapêuticos corticosteroides anti bióticos oxigênio etc seu estado foi se agravando e ela veio a falecer com um grave quadro toxêmico na decorrência principalmente de falência pulmonar Na autópsia apresentava lesões generalizadas de derma tomiosite que atingiam também o coração e os rins o que é raro O que levou B a esta evolução não pôde ser identificado no estado de conhecimentos daquela época Ela levava uma vida sadia com o esposo e fi lhos e sempre se mostrou cooperativa com os médi cos enfermeiras e todo o pessoal da equipe supor tando com estoicismo toda sua via crucis Minha relação com B era muito intensa embo ra girasse toda ela em torno do seu acompanhamento clínico Falávamos pouco pois ela era uma pessoa in trovertida e no final perdeu sua fonação por acometi mento de laringe Sua relação comigo era feita princi palmente através do olhar Ela me transmitia aflição inquietude mas também esperança luta interesse cooperação No final passava sobretudo gratidão e nos últimos dias resignação Eu tentava me comu nicar com ela através de palavras enquanto isso foi possível falando se necessário daquilo que captava do seu olhar No final deixeime entrar em comunica ção silenciosa com ela B foi uma das pacientes que mais me ensinou sobre a importância desse tipo de comunicação Depois que ela morreu uma vizinha de leito me disse Psicossomaticaindd 202 Psicossomaticaindd 202 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 203 B comentou que sabia que ia morrer mas que valeu a pena esta internação pois conheceu um médico como senhor Vale sempre a pena ajudarmos nossos enfermos B em seu leito de morte ainda teve forças para ex pressar sua gratidão Deixoume um presente que iria repercutir em toda a minha vida profissional Colite ulcerativa A colite ulcerativa é uma doença caracteriza da por um processo inflamatório no intestino grosso que em virtude da intensidade deste pode se apre sentar com múltiplas ulcerações Em decorrência dis so surge diarreia geralmente acompanhada de muco e sangue podendo ocorrer verdadeiras hemorragias intestinais Assim na fase aguda da doença esses pacientes podem apresentar 10 20 exonerações in testinais sendo por vezes indicada a internação hos pitalar Há uma grande literatura a este respeito a maioria dos trabalhos enfatizando a gravidade da estrutura psíquica destes pacientes Assim Karush 1969 em 30 casos encontrou apenas um paciente com estrutura neurótica e Sperling 1959 que ficou famosa por seus estudos sobre colite ulcerativa em crianças acha que esta doença é o equivalente somá tico de uma depressão psicótica Engel 1955 que estudou 70 casos em um trabalho que consideramos de grande importância diz que estes pacientes pela fraqueza dos seus egos tendem a fazer relações simbióticas cuja ameaça de rotura é o principal fator desencadeante das crises há melhora espontânea quando o doente consegue desfazer tal tipo de relação Ele chama atenção para a importância de tal fato na relação médicopaciente o paciente por exemplo piora quando o médico se ausenta de seu convívio viagens outros compro missos ameaçando este tipo de vínculo simbiótico Temos visto na clínica com frequência esse tipo de vínculo e as ameaças decorrentes do perigo de sua dissolução Tudo isso se passa no terreno do incons ciente sendo difícil para o paciente a percepção da cadeia de eventos Em publicação anterior Mello Filho 1976 apresentamos nossa experiência com essa doença àquela altura representada por sete casos acompa nhados psicoterapicamente e estudados através de testes de personalidade Era uma casuística toda ela composta de pacientes que necessitaram de hos pitalização pelo que acreditamos predominavam francamente as estruturas limítrofes havia casos de alcoólatras de prostitutas pacientes paranoicos ou esquizoides A psicoterapia estava sempre indicada porém não apresentava bons resultados quando os pacientes não se mostravam motivados para este tipo de abordagem Constatamos o paralelo apontado en tre a gravidade das estruturas psíquicas e a gravidade das formas clínicas apresentadas Atualmente com uma maior experiência com esses pacientes e tendo visto uma série de casos não hospitalizados modificamos algo da nossa impressão sobre essa enfermidade Já não mais a vemos como a doença psicossomática psicótica ao contrário da úlcera péptica modelo de doença psicossomática neurótica Temos visto casos de pacientes neuróticos obviamente com um prognóstico melhor Alguns pa cientes são alexitímicos o que torna a condução do caso mais complicada o contacto é mais difícil como também o ganho emocional e a aquisição de insight Não temos dúvida de que a imensa maioria des tes pacientes precisa de ajuda psicoterápica A rela ção com o clínico quando este não tem uma maior profundidade de abordagem tende a se tornar um verdadeiro diálogo através de fezes como já deno minamos anteriormente Assim a preocupação do paciente com sua diarreia é usada inconscientemente pela dupla para impedir um verdadeiro diálogo exis tencial com preocupações sobre a vida e suas vicis situdes O resultado da psicoterapia irá depender da es trutura psicológica do paciente sendo mais reservado nos borderlines ou naqueles abertamente psicóticos bem como nos esquizoides ou naqueles com distúr bios de caráter O ideal é que esses pacientes mais graves possam se submeter a um tratamento analítico que possa atingir as camadas mais profundas de suas personalidades É fundamental que exista uma boa aliança te rapêutica com o clínico assistente e com a família do paciente Por vezes fazse necessário um trabalho com a família para tentar imobilizar certos núcleos conflitivos que estejam interferindo com a recupera ção do paciente Pode ocorrer que o clínico de modo inconsciente solape o trabalho do psicanalista por não acreditar neste ou mesmo por pensar que não será de utilidade para o paciente Geralmente nessas situações triangulares entra em jogo o dedo do pa ciente que mobilizado pelo tratamento psicoterápico atua às escondidas através do clínico fazendo uso das resistências deste à psicanálise Nas fases agudas o tratamento com estes pa cientes se torna ainda mais uma questão de empatia tato e sensibilidade Nessas fases são contraindicadas interpretações de conteúdo ou transferenciais Ali ás estes mesmos nos dizem quais as interpretações adequadas ou não respondem com diarreia aos enfo Psicossomaticaindd 203 Psicossomaticaindd 203 05012010 121210 05012010 121210 204 Mello Filho Burd e cols ques não empáticos que não podem suportar O psi coterapeuta deve se manter disposto a acompanhar o paciente em sua residência ou no hospital se o seu estado assim o indicar Tanto na residência ou num quarto particular não é difícil reconstituir um setting psicoterápico E mesmo numa enfermaria isso é pos sível os vizinhos de leito costumam se retirar na hora das visitas para possibilitar um clima de intimidade Também para acompanhar uma internação por uma intercorrência cirúrgica fístula intestinal megacolo tóxico adenocarcinoma adenoma de cólon como complicação o psicoterapeuta deve estar presente inclusive por serem momentos difíceis e de desânimo para o paciente Pacientes com história de doença crônica mui to sofrimento e muitas recidivas são particularmente resistentes a uma abordagem psicoterápica é preciso saber lidar com o seu desalento e ajudálos a poder novamente dar uma oportunidade a si mesmo e aos outros O doente por vezes numa recaída atribui tudo a uma falha da relação psicoterápica É o resul tado de uma visão simplista reducionista que tudo atribui a um superterapeuta e que não corresponde às suas expectativas de grandiosidade Nesses casos é fundamental que se enfoque a idealização para que o paciente aos poucos possa tolerar as falhas do tera peuta faltas pequenos atrasos não se mostrar sem pre disponível etc Escrevendo sobre o atendimento psicoterápico a pacientes com colite ulcerativa tivemos oportunidade de expressar que De um modo geral os pacientes só melhoravam do quadro diarreico quando um único médico clínico assumia o caso passava a ser a mãe do paciente como costumávamos dizer evitando a prática nociva do rodízio da relação médicopaciente descrita por Balint Não somente o psicoterapeuta obtém resultados nestes casos Também o médico comum dotado de empatia intuição e sensibilidade atuando como uma mãe suficientemente boa na concepção de Winni cott pode ajudar o paciente a sair dessas crises de respostas somáticas regressivas Por tudo isso não devemos afirmar que todos os pacientes com coli te ulcerativa necessitam de uma psicoterapia reali zada por especialista Porém é fundamental que o gastrenterologista ou o proctologista que lidam com pessoas com essa enfermidade reconheçam aqueles casos que de fato necessitam de tal abordagem pois só assim conseguiremos evitar que muitos pacientes cheguem a uma colostomia ou tenham de enfrentar certas complicações da doença decorrentes do seu agravamento Casos clínicos Carla tem 48 anos e sua doença colite ulcerativa se iniciou aos 44 É doméstica casada e tem duas filhas com pequena diferença de idade Foi educada no interior do Es pírito Santo em um lar judeu Seu pai teve dois matrimô nios com três filhos do primeiro e dois do segundo Carla e um irmão Seus pais conviveram apenas por uma semana quando resolveram se casar ele escondeu da mãe que já era pai de 3 filhos O pai era um homem muito patriarcal autoritário e agressivo um dia quase enforcou a filha com as suas próprias tranças quando estava com raiva costumava trancar toda a família no porão A mãe também era agressiva pirracenta costumava bater em Carla com uma corda de borracha fina Todos os irmãos saíram de casa cedo para escapar des te clima no qual pai e mãe viviam se desafiando diante dos filhos Quando Carla tinha apenas 5 anos foi internada num colégio de freiras católicas apesar da educação judia para aprender a comer corretamente sic Apesar dos rigores do internato ela preferia estar lá a estar em casa Tornouse uma menina sapeca que levava as colegas à noite para observar as freiras que estavam dormindo para ver se ti nham a cabeça raspada Só gostava de brincadeiras de me ninos jogava bola de gude descia o morro em cima de um pedaço de papelão Aos 13 anos como não estivesse ainda na puberdade foramlhe receitadas injeções de hormônio Por esta razão sempre desconfiou de sua feminilidade a partir daí sic A mãe sempre quis que Carla estudasse piano e pratica mente a induziu a isso Também a proibiu de jogar vôlei Por tudo isso ela estudou piano à força e por pirraça obteve péssimas colocações só para tentar fazer raiva à mãe Aos 16 anos Carla veio morar com uma tia materna no Rio ficando em sua casa até 19 anos saindo para casar Durante quase todo esse período foi assediada pelo marido desta tia tio por afinidade que propunha lhe dar um dote para frequentar seu futuro apartamento de casada até ten tar de vários modos penetrar no quarto onde dormia Um primo intercedeu por ela e construiu um cinto de castidade que passou a usar para dormir e que era conectado à tranca que protegia a porta do quarto Nesse ínterim Carla começou a namorar Paulo que seria seu futuro esposo e começou a se sentir menos des protegida Desde o início Paulo se mostrava um homem ansioso rígido e autoritário como seu pai Todavia Carla se adaptou ao seu modo de ser pelo que tinham de início poucos atritos Carla casouse virgem e assim permaneceu durante um mês com um receio muito grande de ter rela ções de ser desvirginada Engravidou de sua primeira filha Maria logo aos 3 meses de casada Embora esta nascesse prematura e a fórceps seu nascimento foi uma enorme ale gria para Carla Somente a amamentou por um mês porém ficou muito ligada a esta filha por toda a vida Mariana nas ceu nove meses depois Maria e Mariana nasceram muito parecidas dando a Carla a sensação de que eram filhas gê Psicossomaticaindd 204 Psicossomaticaindd 204 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 205 meas Também se ligou muito a ela porém a sensação de completitude não era a mesma que com Maria Nos anos que antecederam o surgimento de sua colite ulcerativa Carla vinha enfrentando dois tipos de proble mas O primeiro de ordem financeira era decorrente de toda uma instabilidade que começava a se apresentar nos negócios do marido Assim este mudava de ramo constan temente farmácia móveis eletrodomésticos ouro finan ças etc e em pouco tempo deixava o dinheiro acabar para grande insegurança da família Carla sentiase sem ter o que fazer diante dessa situação que se agravava Nesse período Carla teve um episódio de psoríase no couro cabeludo que todavia remitiu com o tratamento dermatológico habitual Um segundo tipo de problema era decorrente do ca samento que Mariana recém havia feito Seu marido parecia um adolescente contestador que não trabalhava e resolveu enveredar pelo mundo do teatro com Mariana porém numa companhia dele mesmo que nunca conseguia montar um espetáculo Os dois passavam dias inteiros na casa de Carla sem nada fazer Ela ficava com muita raiva porém nada dizia com medo de piorar mais as coisas Foi nessa fase muito insatisfeita com os destinos da filha que por dificuldades financeiras passou a morar numa região que se confundia com o meretrício que Carla iniciou seu processo de co lite ulcerativa com diarreia que se alternava com emissão de muco com estrias sanguinolentas Ela se mostrava muito fechada ao contacto conosco parecendo uma personalida de esquizoide ou uma paciente alexitímica O medo que demonstrava do contacto e os aspectos persecutórios que percebíamos no seu comportamento foram nesse ínterim empurrando o seu diagnóstico para o polo das personalida des esquizoides Carla mostrava muito pouca capacidade de insight inclusive por estar hipocondriacamente preocupada com sua doença que temia ser um câncer A falta de insi ght era também decorrência de sua relutância em entender de todo o que estava acontecendo na relação com a filha Carla num background de dificuldades financeiras por falhas sucessivas do marido não tolerou as decepções do casa mento da filha que fugia totalmente às suas aspirações e expectativas Inconscientemente se culpava por tudo aquilo estar ocorrendo com a filha menos amada Ajudoume muito neste início de tratamento o ambien te de holding e de acolhimento de um grupo terapêutico antigo que recebeu Carla com empatia sem rivalidades ou qualquer outra conduta negativa que tornasse o seu trata mento difícil num setting grupal Nosso trabalho foi mostrar que a filha estava vivendo através do casamento a rebelião adolescente que não tinha expressado antes e mostrando sua necessidade de se se parar de Carla do quanto ela ainda se mantinha simbioti camente ligada às filhas Admitiuse no grupo a culpa por ela ter se vinculado menos a Mariana porém sempre na direção de poder fazer agora por ela aquilo que não pode ser feito antes reparação e nunca ficar apenas masoquisti camente se amargurando por isso Como resultado desses insights Carla pode adotar uma atitude menos passiva na vida começando a trabalhar com o marido numa confecção de roupas e a preparar sanduíches naturais que eram vendi dos por Mariana numa atitude de contribuir para a solução das crises que acometiam a família Com cerca de seis meses de tratamento a colite ulce rativa entrou em remissão e Carla continuou a ser tratada agora mais como uma paciente neurótica comum Come çouse a abordar a relação com o marido seu medo e sub missão a este como era com seu pai Também começamos a falar das suas inibições sexuais tema muito difícil de ser abordado por ela no grupo Com cerca de um ano de tratamento seu cunhado irmão de Paulo que é como se fosse um gêmeo deste separouse da mulher para ir viver com uma amante aba lando a família e principalmente Carla que tinha dúvidas da fidelidade do esposo Esta teve então uma nova crise da doença que durou quatro meses exato período que levou para o cunhado sair desta situação Porém Carla começou a melhorar quando percebeu que seu medo era em relação ao marido não ao cunhado Diz ela própria Quando eu me conscientizei deste fato melhorei Desde então Carla não mais teve episódios de diarreia e vem fazendo sucessi vos progressos em seu tratamento não mais voltando a ser a pessoa esquizoide de antes mostrandose comunicativa tendo mesmo recuperado um lado brincalhão que parecia perdido Há um ano atrás um episódio traumático funcionou como teste para suas condições psicológicas e psicosso máticas Através de um telefonema anônimo teve conhe cimento de que o marido tinha uma amante fato que pôde investigar e confirmar Não perdeu a fleuma em todo o epi sódio nem teve diarreia apesar de ter se sentido perplexa traída e diminuída Admitindo suas dificuldades sexuais op tou por melhorar seu desempenho sexual com o marido reconquistandoo Hoje a situação parece diferente Car la não mais se refere às atitudes de Paulo em tratála com agressividade Os dois se entendem com respeito Ele está muito mais carinhoso comigo Às vezes eu procuro vestígios de uma outra relação e não mais encontro Postscriptum INTRODUÇÃO Os autores Hart e Kamm Hart 2002 fazem uma revisão das contribuições à fisiopatologia das doenças inflamatórias intestinais levando em conta a influência do estresse porém dando apenas quase nenhuma importância em nossa opinião ao papel das emoções e dos conflitos Referemse a uma visão inicial que consideram obsoleta onde a retocolite ulcerativa seria uma doen ça exclusivamente ligada às emoções Reconhecem porém que há ligação entre a doença de Crohn a retocolite ulcerativa e o estresse Citam inclusive al guns estudos que relataram uma associação positiva a certos traços de personalidade como neuroticis Psicossomaticaindd 205 Psicossomaticaindd 205 05012010 121210 05012010 121210 206 Mello Filho Burd e cols mo introversão traços obsessivocompulsivos de pendência perfeccionismo e outros Alguns desses estudos referem uma relação temporal com pequeno ou nenhum espaço de tempo decorrendo entre estres se e as exacerbações clínicas Essa associação estres se e exacerbação foi comprovada por meios clínicos e por endoscopia Recentemente tem sido sugerido que o estresse breve não provoca exacerbações na co lite ulcerativa diferentemente do de longa duração que aumenta o risco de exacerbações exacerbações essas que podem persistir por meses ou anos Muitas evidências sobre o papel do estresse na patologia humana provêm de estudos com animais Evidenciouse segundo Hart e Kamm Hart 2002 que o estresse não somente provoca reincidências mas causa a enfermidade experimental em novos ani mais Citam estudos onde a inflamação desenvolve se espontaneamente em animais sujeitos a situações estressoras Assim macacos Saguinus oedipus sub metidos a uma situação de prisão desenvolvem uma colite que guarda proximidade clínica com a colite ulcerativa humana Wood 2000 Foi demonstrado além disso que agentes estressores agindo por mais tempo como a privação maternal precoce podem predispor a barreira da mucosa a uma permeabilida de anormal Soderholm 2001 O EIXO SISTEMA IMUNECÉREBROINTESTINO Assim os autores intitulam o capítulo onde dis criminam influências entre os três níveis O cérebro segundo eles claramente influencia o intestino por via motora sensitiva e secretora através do SNA Ver Estresse e Sistema Imune Tem se demonstrado a influência do estresse na evolução clínica na in tensidade dos sintomas na motilidade intestinal na sensibilidade visceral e na reatividade autonômica HART 2002 O marcante efeito placebo observado nas do enças inflamatórias intestinais traznos evidências de uma ligação entre os fatores psicológicos e os processos inflamatórios O efeito placebo na colite ulcerativa não é limitado à melhora dos sintomas do paciente ou à percepção de sua doença mas com preende também uma melhora do próprio processo inflamatório É difícil explicar este mecanismo sem se referir ao clássico reflexo condicionado O condi cionamento pavloviano traz evidências de conexões neuroimunes que exercem seu efeito direto na fun ção da mucosa intestinal Esta mucosa é inervada e contem peptídeos regulatórios citocinas fatores do crescimento e hormônios locais que coexistem em íntimo contato MECANISMOS DE AÇÃO DO ESTRESSE NAS FUNÇÕES DE BARREIRA Neste subcapítulo os autores HART 2002 lembram que a integridade do epitélio intestinal funciona como barreira para a penetração de corpos estranhos Esta barreira compreende a secreção de muco fluidos e os agentes da microbiota local além dos componentes do sistema imune inato e adquiri do Ver As Três Linhas de Defesa do Sistema Imune Em particular o estresse pode aumentar a permea bilidade do epitélio ou a secreção de água e libera ção de mucina afetar as células imunes a micro flo ra entérica e a produção de citocinas Modificações resultantes podem ter como consequência a invasão de antígenos da cavidade intestinal iniciando e per petuando a inflamação Demonstrouse que parentes em primeiro grau de pacientes com doença de Crohn um subgrupo com uma possibilidade aumentada de adquirir a doença tinham permeabilidade intestinal aumentada Wyatt 1993 As mudanças na atividade secretora podem ser constatadas in vitro e in vivo No homem o estresse resulta em excessiva secreção jejunal Por outro lado tem sido evidenciado que o estresse pode causar um significativo aumento na aderência das bactérias à mucosa particularmente no ceco o que aumenta a permeabilidade desta Os autores recordam que os processos inflama tórios do intestino podem ser modulados ao nível do SNC do sistema nervoso periférico do SNA e dos ner vos intrínsecos do intestino Muitas evidências exis tem que o Fator Liberador de Corticotrofina CRF é o principal mediador do estresse relacionando o hipotálamo e a hipófise à córtex adrenal Como tal intermedia os efeitos do estresse sobre as funções in testinais principalmente sobre a motilidade intestinal onde células imunes macrófagos linfócitos liberam corticotrofina integrando essa rede de neuroimuno modulação Quanto ao SNA este já é classicamente envolvido na fisiopatologia do funcionamento intes tinal Assim na colite ulcerativa foi descrito um au mento da inervação adrenérgica do cólon e um au mento do tônus simpático Foi também sugerido que os nervos simpáticos podem ser próinflamatórios Já os nervos colinérgicos desempenham um impor tante papel na úlcera péptica e regulam o transporte intestinal de íons e a secreção de mucina Somente Melita Schimidberg relatou em trinta casos que estudou de colite ulcerativa em crianças que a maioria delas tinha uma estrutura obsessivo compulsiva Em dois casos que um de nós acompanhou havia uma forte dependência ao cônjuge Psicossomaticaindd 206 Psicossomaticaindd 206 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 207 A ação de neurotransmissores como a substân cia P que é amplamente distribuída no sistema nervo so central periférico e entérico tem papel modulador nas doenças intestinais inflamatórias e na resposta ao estresse A ativação da substância P tem sido as sociada com a dilatação arteriolar o extravasamento plasmático a adesão de neutrófilos e eosinófilos e a estimulação de linfócitos macrófagos e mastócitos EMOÇÕES MORBIDADE E MORTALIDADE Em mais um trabalho de revisão KiecoltGla ser e colaboradores 1984 da Universidade de Ohio estudaram as influencias das nossas emoções nega tivas nos processos de morbidade e mortalidade à luz das novas descobertas da psicoimunologia Entre as emoções negativas citam a depressão ansiedade hostilidade e raiva No final também consideram o papel das emoções positivas neste contexto pouco estudadas Em relação à depressão citam o trabalho de Pratt 1996 prospectivo de 13 anos que evidencia que os indivíduos com depressão maior tinham quatro vezes e meia mais chances de desenvolver um ataque cardí aco que os normais Por outro lado a mortalidade en tre pacientes que já tinham desenvolvido um ataque cardíaco era quatro vezes maior entre os deprimidos desse grupo FrasureSmith et al 1993 A depressão também favorece o curso de mui tas enfermidades para pior Nas mulheres agrava os processos e osteoporose nos homens diminui a for ça muscular após três anos Também interfere com a reabilitação em várias enfermidades AVC fraturas e doenças pulmonares A dor muito ligada à depressão através da se creção aumentada de catecolaminas e cortisol acele ra a frequência cardíaca e aumenta a pressão arterial Dados de 11242 pacientes externos de um médico mostraram que aqueles com uma desordem depressi va tinham pior saúde física social e mais frequente queixas de dor Wells 1989 A ansiedade também tem um papel adverso que tem sido muito estudado na doença coronariana personalidade tipo A Por outro lado os ataques de pânico predizem uma mortalidade três vezes maior por esta enfermidade em 7 anos do que em controles normais Haynes 1980 Por outro lado a ansieda de tem um importante papel na hipertensão arterial na insuficiência cardíaca e em certas arritmias A an siedade também tem um papel negativo no processo de cicatrização como também a hostilidade e a raiva crônica Um importante estudo de 9 anos de homens com um alto nível de hostilidade provou que estes tinham um risco duas vezes maior de mortes por cau sas cardiovasculares em geral do que homens com um grau menor de hostilidade Goldstein 1992 DOENÇA DEPRESSIVA E IMUNIDADE 20 ANOS DE PROGRESSOS E DESCOBERTAS Introdução Em mais um trabalho de revisão da revista Brain Behavior and Immunity BBI Michel Irwin e Andrew Miller Irwin 2007 fazem resumo abrangente des te tema Com alta prevalência a depressão tem um grande impacto no indivíduo e na sociedade e será a segunda causa de doença no mundo em 2020 segun do a OMS Além das consequências emocionais essa desordem tem sido implicada em um sem número de condições médicas Por outro lado inúmeros traba lhos vêm demonstrando que a depressão mesmo a depressão menor acarreta diversas consequências imunológicas Irwin 2007 Durante os 10 primeiros anos de publicações na BBI 19871996 foram relatados avanços como alterações imunológicas na depressão maior Nos se gundos 10 anos da revista BBI 19972006 surgiram evidências de que a depressão também está associada à resposta imune inflamatória inata ver A Organiza ção Anatomofuncional do Sistema Imune incluindo alterações na habilidade da célula imune em liberar citocinas inflamatórias A primeira década 1987 a 1996 A depressão tornouse um bom modelo para se estudar a interação comportamentocérebrosistema imune pois os pacientes afetados exibiam distúrbios do comportamento humor depressivo distúrbio do sono juntamente com alterações dos sistemas neu roendócrino e simpático vistos como vias eferentes na regulação da imunidade pelo cérebro Entre as primeiras descobertas de alterações imunológicas na depressão estavam o aumento geral de leucócitos bem como dos neutrófilos e linfócitos As células Na tural Killer NK encontravamse diminuídas e por isso logo se supôs que estes pacientes fossem mais susceptíveis às infecções Estudo sobre os fatores clínicos moderadores Muitas variáveis clínicas podem influenciar o estado imune e modular a associação entre depressão e imunidade incluindo idade sexo massa corporal grau de estresse fumo e comorbidades psiquiátricas Psicossomaticaindd 207 Psicossomaticaindd 207 05012010 121210 05012010 121210 208 Mello Filho Burd e cols Como exemplo os autores Irwin 2007 citam a in fluência do sexo O declínio na imunidade celular co mumente observado em homens idosos e que parece ser devido à imunosenescência é exacerbado pela de pressão pois quando são comparados a mulheres de primidas os declínios das células T e a atividade NK são mais proeminentes no sexo masculino Influên cias relacionadas ao tabagismo também podem ser observadas Um interessante trabalho citado pelos autores em 245 pacientes deprimidos constatou que a depressão e o fumo interagiam para produzir um maior declínio na atividade NK do que em grupos de deprimidos e de fumantes tomados isoladamente Por último diagnósticos específicos de comorbidades tais como ansiedade e dependência de álcool em combi nação com depressão provocam maiores quedas na atividade NK do que modificações em pacientes de pressivos sem tais comorbidades Irwin 2007 Efeitos de tratamentos clínicos Um conjunto de estudos investigou o curso clíni co da depressão e as mudanças da imunidade celular em relação à medicação antidepressiva Em um es tudo longitudinal citado pelos autores Irwin 2007 com pacientes deprimidos em curso de um tratamen to com antidepressivos tricíclicos observouse que um aumento da atividade NK trouxe melhoras paralelas ao alívio dos sintomas Em outra citação um estudo longitudinal em adultos jovens com depressão uni polar envolvendo um tratamento com nortriptilina e alprazolam as melhoras clínicas estiveram associa das à diminuição do número de linfócitos circulantes e à recuperação de respostas funcionais de linfócitos quando estimulados Em outro trabalho citado pelos autores o tratamento com fluoxetina resultou num aumento da atividade NK juntamente com melhoras nos sintomas depressivos Tomados em conjunto esse dados sugerem que a resolução de sintomas depres sivos resulta em melhora das respostas linfocitárias e da atividade NK Mediadores biológicos Pacientes deprimidos mostram elevadas taxas do hormônio liberador da corticotrofina CRH no SNC Esse peptídeo participa nas respostas neurais neuroendócrinas e imunes ao estresse ver As Ba ses Anatomofuncionais da Resposta Ao Estresse A Integração Neuroendocrinoimunológica Modelos animais citados Irwin 2007 foram usados para mostrar que o CRH provoca declínios marcantes na atividade NK Estudos posteriores mostraram que o CRH provocava também a diminuição da resposta imune celular e humoral através da mediação de mecanismos efetores simpáticos do Sistema Nervoso Autônomo SNA Esses dados caracterizaram o CRH como um peptídeo central que pode modular a imu nossupressão nos pacientes deprimidos Em relação aos mecanismos efetores começou a ser levada em conta o papel dos neurotransmissores simpáticos na contribuição às alterações imunes na depressão Os autores discorrendo sobre o papel do eixo neuroendócrino afirmam que uma das marcas da depressão maior é a desregulação do eixo hipo tálamopituitárioadrenal HPA e a hiper secreção de cortisol Insônia e desordens do sono Segundo os autores inúmeros estudos vêm de monstrando que o sono tem importante papel na re gulação da função imune Diminuições da atividade NK correlacionavamse com insônia mas não com outros sintomas depressivos como somatizações per da de peso e distúrbios cognitivos Ao mesmo tempo em estudos que usaram a polissonografia a diminui ção do sono total correlacionavase com o declínio da função celular imune Citam também estudos com pacientes com insônia primaria que demonstraram que o sono latente e sua fragmentação associavamse com a elevação noturna de catecolaminas e o declínio dos níveis diuturnos das respostas das células NK A Segunda Década 1997 a 2006 Em uma provocativa revisão dos achados imu nes na depressão o significado vigente das alterações imunes inespecíficas foi desafiado com uma série de observações Segundo os autores Irwin 2007 vários pesquisadores trabalharam com respostas imunes mais específicas e que poderiam estar mais intima mente associadas ao risco de doença Alguns estudos de destaque apareceram como a demonstração que a função celular T em resposta a agentes virais es pecíficos era mais baixa em pacientes deprimidos do que em controles e que o estresse psicológico possi velmente produzia declínio na resposta à imunização contra infecções virais Para complementar tais acha dos os estudos começaram a focar importantes en fermidades com estreita relação com o sistema imu ne principalmente as doenças infecciosas e virais Por exemplo a infecção pelo HIV mostra um curso altamente variável com depressão luto e má adapta ção psicológica aos estresses incluindo o próprio es tresse causado pela doença HIV AIDS todos esses Psicossomaticaindd 208 Psicossomaticaindd 208 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 209 fatores predizendo a degradação do sistema imuno lógico Na verdade a depressão maior em mulheres com HIV tem sido associada à baixa da atividade NK e também ao aumento do número de linfócitos CD8 ativados e com carga viral o que sugere que o declí nio de linfócitos NK em associação com a depressão pode aumentar o risco da exacerbação do HIV nessas mulheres O declínio do sistema imune e a replicação do HIV são particularmente rápidos em pacientes vi vendo sob estresse crônico por exemplo gays que escondem sua condição e vivem inteiramente sós já em pacientes com melanoma maligno metastático a grupoterapia levou a melhoras no humor depressivo e na função NK bem como ao aumento do tempo de sobrevida Depressão e níveis circulantes de marcadores inflamatórios Em pacientes com desordens inflamatórias como a Artrite Reumatoide AR e doença cardiovascular a depressão tem sido encontrada predizendo um au mento da morbidade e da mortalidade Zautra 2004 e Lesperance 2004 A depressão tem sido associada a aumento dos níveis circulantes de citocinas próin flamatórias IL6 em adultos com depressão maior em populações de idosos deprimidos e naquelas pes soas deprimidas com doenças crônicas como AR câncer e doenças cardiovasculares O autor cita que doentes deprimidos exibem uma exagerada ativação da resposta inflamatória que se segue a um estresse psicológico agudo com elevação de IL6 e ativação do Fator de Transcrição Nuclear B NFκB um fator que assinala o início de uma variedade de processos próinflamatórios Da mesma forma pacientes depri midos com severo distúrbio do sono podem ter um maior risco de aumento de marcadores inflamatórios em função de níveis elevados de IL6 e outros agentes próinflamatórios Aumentos nos níveis circulantes de outras citocinas próinflamatórias tais como o fator de necrose tumoral TNFα e interleucina 1 IL1 também têm sido relatados em pacientes deprimidos incluindo as depressões senis Aumentos da IL12 em uma larga amostra de pacientes deprimidos também têm sido descritos A IL12 é uma citocinas que é pri mariamente produzida por monócitos e macrófagos e desempenha um papel central nas fases precoces da inflamação Elevações na proteína C reativa têm sido encontradas em associação com a depressão inclu sive em adultos sadios bem como em pacientes de primidos com síndrome coronariana aguda Miller 2002 Lesperance 2004 A depressão parece produ zir aumento nos marcadores inflamatórios em alguns pacientes e diminuir as respostas NK em outros Por outro lado especulase que anormalidades nas citocinas possam contribuir para a depressão Como exemplo pacientes que exibem evidências de infecção autoimunidade ou doença neoplásica exibem altos índices de depressão Além do mais a terapia por citocinas para doenças infecciosas e cân cer notoriamente causa alterações comportamentais Finalmente há outros caminhos conhecidos envol vendo a fisiopatologia da depressão que são influen ciados pelas citocinas incluindo o funcionamento neuroendócrino e a função neurotransmissora Terapias com citocinas A depressão maior é frequente nos pacientes se riamente enfermos com cerca de 50 deles apresen tando sintomas depressivos que dependem do tipo e da intensidade da doença básica Novos conhecimen tos sobre a biologia dos distúrbios do humor têm le vantado a possibilidade que citocinas próinflamató rias liberadas em função dos processos inflamatórios atuando na doença grave participem da fisiopatolo gia da depressão Graças aos efeitos antivirais imunomoduladores e antiproliferativos as citocinas têm sido utilizadas no tratamento de diversas doenças como a hepati te C a AIDS e doenças imunomediadas como a AR A terapêutica com citocinas induz frequentemente depressão maior e sintomas comportamentais Esse comportamento doentio pode ser notavelmente re produzido pela administração de cada uma das cito cinas pro inflamatórias isoladamente ou por agentes que induzem a ativação de outras citocinas Há duas distintas síndromes comportamentais com diferentes fenomenologias e graus de resposta a antidepressivos em pacientes que tiveram depressão no curso de tra tamentos com citocinas Numa delas a síndrome cog nitiva ocorrem típicos sintomas de depressão e humor depressivo ansiedade irritabilidade distúrbios da memória e atenção usualmente entre o primeiro e o terceiro mês em pacientes vulneráveis Outra síndro me a neurovegetativa caracterizada por sintomas de fadiga lentificação psicomotora anorexia e distúrbio do sono desenvolvendose precocemente dentro de duas semanas no caso do Nα em um grande número de pacientes A síndrome humoral cognitiva responde muito bem ao uso de paroxetina enquanto a síndrome neurovegetativa não responde aos antidepressivos O futuro 2007 e além Baseados nesses conhecimentos da fisiopatolo gia da depressão existem oportunidades para pesqui Psicossomaticaindd 209 Psicossomaticaindd 209 05012010 121210 05012010 121210 210 Mello Filho Burd e cols sas que focam o manuseio dos sintomas depressivos usando novas terapias Provavelmente os próprios alvos são as citocinas incluindo o uso do anti IL1 o anticorpo desenvolvido contra o receptor solúvel do TNFα Etanercept ou anticorpos contra o TNFα Infliximab bem como a IL10 uma citocina anti inflamatória contra múltiplas moléculas inflamató rias A assinalar Etanercept Infliximab e Arakin ra são todos empregados atualmente no tratamento da AR Por outro lado o uso por 12 semanas do Eta nercept foi útil no tratamento da depressão severa em 618 pacientes com psoríase Tyring 2006 Outras indicações promissoras incluem o CRH o qual é induzido pelas citocinas proinflamatórias como alvo Tem sido observada a diminuição de mui tos dos sintomas do comportamento doentio quando antagonistas do CRH são administrados a animais de laboratório Muitas indústrias farmacêuticas estão comercializando antidepressivos tendo como alvo o CRH e novos de seus antagonistas Outros alvos in cluem mediadores inflamatórios como as prostaglan dinas e as monoaminas do SNC serotonina noradre nalina e dopamina Dada a capacidade das citocinas de influencia rem as mono aminas cerebrais terapias baseadas na estimulação destas podem ser muito úteis Na conclusão os autores Irwin 2007 afirmam que há uma forte evidência de que a depressão en volve alterações em múltiplos aspectos da imunidade e que podem não somente contribuir para o desen volvimento ou exacerbação de um sem número de condições médicas como também colaborar para a fisiopatologia das próprias doenças Portanto o ma nuseio agressivo das desordens depressivas em popu lações medicamente enfermas ou indivíduos em risco pode melhorar o seu prognóstico ou impedir o seu desenvolvimento REFERÊNCIAS Abramson HA et al Group psychoterapy of the parents of intrac table asthmatic children J Asthma Res 1961 177 Ader R et al Behaviourally conditioned immunosuppression 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GRUPOS BALINT Michael Balint médico psicanalista húngaro nascido em 1886 desde cedo interessase por com preender os pacientes além das queixas somáticas que levavam ao consultório Entendia que o indivíduo portador de uma doença apresentavase a si mesmo como alguém com uma história que lhe era própria e a qual deveria estar o médico atento para ouvir Michael Balint teve em sua formação a influên cia de Ferenczi discípulo de Freud que fundou na Hungria a Associação Psicanalítica de Budapeste Aí nessa Associação Balint e sua esposa Alice também psicanalista começam a apresentar suas primeiras publicações sobre temas psicanalíticos Por volta dos anos 20 os Balint assim como outros analistas por não conseguirem ficar na Hungria em função do regime próalemão e antissemita que se ampliava emigraram para a GrãBretanha Balint e Alice insta laramse em Manchester Balint nesta época foi para Berlim onde fez sua análise com Hanns Sachs Nesse mesmo período em contato com a Sociedade Psica nalítica de Berlim observou que esta buscava implan tar um programa para atendimentos psicanalíticos à população de uma maneira geral e que esses atendi mentos faziam parte do curriculum de formação da Sociedade o qual continha aspectos da teoria geral da Psicanálise e de sua técnica Consideramos importante apontar aqui que neste contato de Balint com Berlim são reforçadas suas intenções e convicções no que diz respeito aos cuidados de atendimento ao doente Pois era por Balint ainda muito bem lembrada a conferência de Freud em Budapeste no ano de 1918 Naquela oca sião Freud disse que chegaria ainda o dia em que a Psicanálise alcançaria todo indivíduo que necessitas se de cuidados pois seria direito dos homens o acesso a este tipo de tratamento nervoso assim como o de qualquer outra afecção e que os médicos deveriam estar preparados para isso Berlim por sua vez pare cia então querer cumprir com esta tarefa e atender a todo aquele que adoecia oferecendolhe tratamento Balint retomando à GrãBretanha encontrase em inúmeras dificuldades inclusive enconômicas O país encontravase em guerra e a seguir Balint perde sua esposa Alice Foram tempos cruéis para Michael Balint Por volta de 1945 com 60 anos aproximada mente Balint vai para Londres onde recomeça sua vida tornandose um respeitado psicanalista Começa a atender na Clínica Tavistock e aí co nhece Enid a quem desposa Esta desenvolve como psicanalista uma pesquisa com grupos de assistentes sociais que atendem famílias Balint juntamente com Enid inicia nesses grupos a supervisão e discussão do que chamavam caseworks Essa atividade acaba sendo ampliada com a participação de médicos clíni cos os quais começavam a buscar o entendimento e a superação de dificuldades que encontravam no seu trabalho clínico O fenômeno de procura de alguém para atender e supervisionar casos com a finalidade de complementar a compreensão da clínica se dava porque já naquela época era observada a falta nos currículos das escolas médicas de formação psicoló gica do médico necessária para a prática clínica Balint acreditava que a formação psicológica do médico oportunizaria o desenvolvimento de uma ati tude mais sensível às demandas inconscientes que os pacientes trazem às consultas e que as respostas do médico a esses pacientes desde que entendidas as demandas poderiam produzir um efeito terapêutico complementar ao tratamento médico tradicional Podese observar a atenção de Balint toda volta da à ação do médico sobre o paciente Fazemos notar 15 REFLEXÕES SOBRE MICHAEL BALINT COMUNICANDO UMA EXPERIÊNCIA DE GRUPOS Maria Aparecida de Luna Pedrosa Psicossomaticaindd 214 Psicossomaticaindd 214 05012010 121210 05012010 121210 Psicossomática hoje 215 que essa atenção mostra ter sido influenciada pela sua formação como psicanalista o que deixa trans parecer no trabalho que vai propor nos Grupos que caracterizaria as supervisoes Esta atenção está voltada à relação médico paciente e ao que se produz nessa relação ou seja o fenômeno transferencial A temática da relação trans ferencial é apresentada de formas diversas na litera tura psicanalítica sendo o elemento nodal na clínica nas relações interhumanas nos trabalhos de Balint Balint dá enorme valor à intervenção do mé dico insistindo sobre a natureza da aliança tera pêutica sobre a influência do terapeuta na relação médicopaciente para a manutenção de tal aliança pois entende que o conhecimento dos efeitos dessa aliança é que pode produzir respostas terapêuticas e mudanças no comportamento do paciente Mudanças essas que poderão ocorrer no curso de uma doença O paciente nessa concepção é que acaba sendo o gran de beneficiado Isso poderá ser melhor compreendido quando tratarmos do lugar que ocupa o médico para seu paciente na relação que se estabelece Podese perceber que a tarefa proposta por Ba lint de certa maneira reflete o desenvolvimento que a Psicanálise enfrentava na época e ideologia do cam po psicanalítico que se ocupava da utilização da téc nica psicanalítíca para produzir observações de com portamento Isso parecia necessário principalmente para a época em que era buscado no campo da aten ção ao doente o atendimento a um número cada vez maior de pacientes em especial aos que sobreviviam às tragédias experimentadas pela guerra e suas con sequências na reorganização da estrutura social Achamos que é oportuno insistir no que enten demos uma marca na teoria e prática balintiana para que seja possível compreender e avaliar sua utilização Em razão disso não é possível esquecer a figura do psicanalista Sándor Ferenczi já citado no início desta exposição Esse personagem teve presença marcante na Psicanálise mesmo junto a Freud que segundo al guns biógrafos e historiadores o teria adotado Tanto é verdade que Ferenczi é descrito por alguns como o filho rebelde visto que causou preocupações a Freud com o que produzia Com relação à Psicanálise Ferenczi produz mo dificações na técnica de intervenção e isso acaba por deixar uma nova definição sobre o lugar que o psicanalista ocuparia na relação com o paciente ou analisando A posição adotada por Ferenczi vai inovar e causar apreensões no círculo psicanalítico especialmente em Freud pois Ferenczi se desviava da regra de negar ao paciente qualquer atenção maior Assim se fundava com Ferenczi o que se vai conhecer por terapia ativa intervenção ativa Ferenczi en tendia que uma intervenção direta e dirigida era na maioria das vezes necessária nas análises pois dessa forma se precipitaria um aceleramento e o final dos tratamentos Essas ideias de Ferenczi trouxeram influên cias que podemos identificar em Balint Observase a importância da compreensão sobre o material do paciente o uso dessa compreensão para sustentar a interação com o paciente e para definir a direção do tratamento Podese compreender até aqui que Balint não se afasta da ideia sobre a intervenção que o médi co poderia desenvolver na sua tarefa clínica E com preender que ele acaba por dar de alguma forma cumprimento às ideias de Freud expressas naquela conferência em Budapeste no ano de 1918 O que não significava porém que o analista devesse dar cumprimento à realização de análise a todo paciente mesmo porque não é isso que Freud proclama na ci tada conferência Importa notar que a Psicanálise só é desenvolvi da em sua plenitude frente a uma demanda de aná lise que se delimita em torno de algum elemento quando se produzem questionamentos por parte do paciente Notamos que Balint mostra em seus trabalhos a preocupação de oferecer ao paciente que desenvolve um quadro orgânico um cuidado psicológico comple mentar que não seja necessariamente o tratamento psicanalífico Todos sabemos que a análise não é possível para todos Balint porém naquele período da Inglaterra sofrida e desolada contribuía com o nascimento pela necessidade e pela premência de uma sistematização sobre a intervenção psicoterapêutica Assim começa ram as primeiras empreitadas em direção ao que veio a se configurar como as Psicoterapias Dinâmicas e Psicoterapias Breves Ao passar os olhos pela história da clínica psica nalítica e psicológica podemos observar que a Psica nálise tem uma enorme contribuição tanto na teoria como na técnica das psicoterapias pois oferece uma estrutura que tornou possível a pesquisa no campo das psicoterapias É importante notar o lugar de terapeutas que as psicoterapias oferecem na relação médicopaciente terapeutapaciente pois o lugar é diferente daquele que ocupa o analista onde a escuta está presente mas a atenção tem outro princípio não sendo ativa Nas psicoterapias o lugar do psicoterapeuta é de suporte apoio e de alguma interpretação No entanto interpretação tem por pressuposto a busca do paciente de algo que além do que tradicional mente o médico tem para oferecer um diagnóstico O paciente busca na relação com o médico algo que na maioria das vezes não é possível ser nomeado de Psicossomaticaindd 215 Psicossomaticaindd 215 05012010 121210 05012010 121210 216 Mello Filho Burd e cols verá ser descoberto Balint entende que o que falta a alguém é o que se representa por uma necessidade e frente a uma necessidade algo precisa satisfazer O que pode satisfazer é o que se representa por sua vez como um objeto em um afeto sorriso ou ato Adentramos aqui um outro elemento teórico presente no trabalho e obra de Balint que nos leva a compreender os fundamentos teóricos de seu traba lho Recorremos aos primeiros trabalhos dos Balint Michael e Alice Tomamos brevemente os trabalhos sobre a relação de objetos tema aliás que permeava as produções psicanalíticas dos anos de 1920 e 1925 na Inglaterra A relação de objetos em Balint vai se traduzir por aquilo que conjuga uma necessidade com um objeto o qual por sua vez satisfaz essa ne cessidade Na concepção balintiana objeto é antes de tudo objeto de satisfação A relação de objeto satisfaz de fomia plena uma relação mesmo com palavras Mesmo com palavras é uma conclusão nossa pois entendemos que a palavra será sempre o represen tante que identificará o que pode satisfazer A cons trução de Balint se deduz e sustenta na observação das relações mãebebê a saber no resultado da rela ção no primary love Essas ideias apresentam sua fecundidade e mos tramse no contexto em que nas relações ocorre sem pre que satisfeitas a complementariedade A ideia é a de que onde falta um objeto outro é buscado para que nada falte para que se mantenha um estado de completude Por outro lado essas ideias também da rão consistência para o que se define na relação con tratransferencial pois vemos que assim como objeto que pode complementar ou completar o terapeuta ocupa um lugar que na maioria das vezes o paciente espera ou seja ocupa o lugar desse objeto que pode ouvir falar corresponder até Balint em seu trabalho O médico seu paciente e a doença diz que o médico deve fazer uso de uma compreensão de forma a que esta tenha efeito tera pêutico Desse modo Balint procura mostrar que o médico ocupa a si próprio como uma droga a mais frequentemente utilizada na clínica Balint aponta e pontua insistentemente a importância do médico em ocupar esse lugar mesmo como objeto Esse objeto deve assegurar um bom tratamento devese asse gurar que possa ser este bom objeto Ocupar um lugar de terapeuta implica buscar qualificação para tal e essa qualificação seria possível talvez através das discussões de estudos de casos e supervisões Nesse sentido o recurso oferecido através dos Grupos Balint pode servir como importante fer ramenta para a ação psicoterapêutica além da ferra menta medicamentosa ou farmacológica Nos Grupos Balint a discussão dos atendimentos é realizada bus cando o entendimento da forma oomo a intervenção se dá ou ocorreu Frente a isso a atitude do médico segundo Balint poderá sofrer uma modificação trans formação porque também a atitude é discutida Daí surgir a possibilidade para o médico de desenvolver uma compreensão de si mesmo como objeto de rela ção que pode suportar ou não as demandas do pacien te demandas que segundo a perspectiva balintiana se riam de completude Balint considera que o trabalho do médico sempre comporta uma psicoterapia em que os objetivos são naturalmente limitados Procuraremos na sequência apresentar ao lei tor uma breve descrição do que foi nossa experiên cia com Grupos Balint esperando possa ser tomada como uma modesta contribuição por aqueles que se ocupam com as mesmas questões com respeito ao en sino e que se encontram efetivamente comprometi dos também com a prevenção em relação aos futuros profissionais na área de saúde GRUPOS BALINT COM ESTUDANTES DE MEDICINA Este espaço foi reservado para que pudéssemos dividir com demais interessados os resultados e as re flexões advindos de alguns anos de trabalho docente e clínico Naturalmente aqueles que experimentam a atividade em especial a docente poderão compre ender como se encontram comprometidos nos dias de hoje os sistemas de ensino e avaliação das escolas e instituições de grau superior no que diz respeito à formação dos profissionais que se dirigem às áreas de Saúde Foram questionamentos acerca da formação que desenvolvem e recebem os profissionais e alunos da área de saúde bem como a experiência decorrente do fato de termos sido procurados há alguns anos por residentes médicos desejosos de serem auxiliados na tarefa médica com ensinamentos do campo psico lógico que nos levaram ao estudo dos trabalhos de Michael Balint acerca da educação e formação médi ca Dessa forma iniciamos uma primeira experiência de Grupos Balint nas dependências do Centro de Psi cologia Aplicada no Curso de Psicologia da Universi dade Federal do Paraná local próximo ao Hospital de Clínicas da mesma Universidade com médicos resi dentes na época 1982 A partir dessa primeira experiência e munidos das observações do funcionamento desse primeiro Grupo Balint propusemonos a realizar Grupos Ba lint com estudantes sextanistas e residentes do curso de Medicina da Universidade Federal do Paraná no Departamento de Clínica Médica o qual mostrouse sensível ao trabalho que propúnhamos Desse nosso interesse resultou uma dissertação de mestrado e outra série de trabalhos Isso foi possí Psicossomaticaindd 216 Psicossomaticaindd 216 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 217 vel também em função do incentivo que recebíamos de figuras como Julio de Mello Filho Abram Ekster man Avelino e Davida Rodrigues e da amiga e colega de docência Jussara Miranda que na época já se ocu pava de uma disciplina de Anatomia na Universidade Federal do Paraná Entendemos que é nosso dever referir essas pes soas como tantas outras que labutam no sentido de buscar no campo da educação a formação médico psicológica e psicanalítica nas universidades rea lizando cursos de especialização em hospitais nos congressos e em entidades como a Associação Brasi leira de Medicina Psicossomática pois todos dão sua contribuição no sentido de aprimoramento do ensi no Desse investimento todos dependemos e muito mais as gerações futuras Procuraremos passar ao leitor partes do traba lho que desenvolvemos Lembramos que a literatura pesquisada nos convencia e motivava mais e mais pois mostrava o esforço que inúmeros pesquisadores e educadores realizavam no sentido de buscar uma maior qualificação para os estudantes da área de saú de e apontava a importância da recuperação da visão integral do paciente do homem inserido na comuni dade geopolítica da qual participa Iniciamos nosso trabalho de pesquisa propria mente dito refletindo em parte uma metodologia utilizada anteriormente por Lee Sheingold médico e professor na Universidade de Seattle Washing ton Nosso método comportou como no trabalho de Sheingold elementos de encorajamento do partici pante quanto à cooperação e oonfiança entre os par ticipantes de exame das relações interprofissionais multiprofissionais e institucionais assinalando valo res que pudessem interferir na atenção ao paciente Ainda buscamos verificar na comunidade de estu dantes e profissionais residentes o tipo de aborda gem ensinada para a ação terapêutica e identificar possíveis conflitos que impedissem o atendimento e entendimento médico Atendemos doutorandos alunos do sexto ano do curso médico em grupos distribuídos em um cronograma que ocupou o período de um ano Cada grupo destes se apresentava para a atividade experi mental de Grupo Balint a cada seis semanas Assim formouse o que denominamos os GBI 1 GBI 2 GBI 3 GBI 4 GBI 5 GBI 6 Tal distribuição obedecia a sequência de seis semanas para cada gru po Logo tivemos seis grupos com doutorandos ou sextanistas do curso médico Isso ainda se deu dessa forma obedecendo o percurso que faziam tais douto randos no Departamento de Clínica Médica no de correr do último ano acadêmico Com os residentes realizamos um grupo apenas devido ao número de indivíduos que se encontravam naquela fase de formação ou seja no segundo ano de residência Esse grupo foi denominado GB Il e a duração foi igualmente de seis semanas Tanto os grupos GBI como os GBII foram rea lizados quando os doutorandos e residentes encon travamse em atividades no Departamento de Clínica Médica porque esse departamento era o responsável na época pela corbertura dos atendimentos dos servi ços de Emergência Ambulatório ProntoAtendimen to e enfermarias com pacientes internados As reuniões realizadas com os Grupos Balint tive ram duração de aproximadamente duas horas semanais e o trabalho desenvolveuse com as seguintes fases Fase 1 Iniciando o trabalho fizeramse contatos com a preceptoria para acerto de horários e local de reuniões Fase 2 Início das reuniões Nestas se fixaram as observações e foram feitos seus registros Nessa fase deramse os passos seguintes 21 Apresentação do que se pretendia com a ex periência 22 Esclarecimentos gerais sobre Michael Balint e seus grupos 23 Discussões do grupo de suas práticas 24 Atendimento às discussões das tarefas que interessavam e ocupavam o grupo na sua prática médica e institucional e acerca de sua formação Fase 3 Utilizamos um questionário que conti nha dados acerca das observações realizadas nos grupos que diferentemente de Sheingold per mitiram uma aferição objetiva das observações e depoimentos obtidos nos grupos bem como a verificação da validade deste tipo de intervenção no trabalho de ensino e formação Os resultados que obtivemos nos mostraram ini cialmente médicos residentes e doutorandos aten tos receptivos e mesmo surpresos frente à disponibi lidade do Departamento de Clínica Médica da escola e também do hospital de oferecer e permitir tal expe riência Todos os participantes mostravam entender que pela primeira vez se estava oportunizando ao aluno e residente naquela escolahospital colocar as dificuldades e ansiedades que enfrentavam na prática que iniciavam No decorrer das reuniões alguns par ticipantes não compareciam mais e os colegas sem jeito procuravam justificar suas faltas Havia uma preocupação com a instituição for madora e de atendimento Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná pois acabavam sen do apontadas as dificuldades que diziam respeito a toda a fomiação que vinham recebendo muito embo Psicossomaticaindd 217 Psicossomaticaindd 217 05012010 121211 05012010 121211 218 Mello Filho Burd e cols ra fosse possível analisar também as particularidades de cada indivíduo que por sua vez se somavam às dificuldades institucionais Finalmente se revelaram as dificuldades que se estabeleciam nas relações pro fissionais com os pacientes e outros indivíduos cole gas amigos e professores Os participantes percebiam a continuidade e preservação de um modelo de atendimento em que prevalece o diagnóstico orgânico com base nos sinais e sintomas apenas de ordem somática e palpáveis con cretamente Apareciam preocupações com a falta de orientação e de informação às famílias que poderiam servir como o alívio e entendimento em relação ao familiar doente e à doença Percebiam o desestimulo no ensino e aprendizado frente a disciplinas como a Psicopatologia por exemplo e a Psicologia Médica estas disciplinas são uma brincadeira sic Os participantes ridicularizavam o ensino dessas disci plinas bem como o despreparo para os atendimentos de cuidados primários e secundários atendimento terciário é só o que se aprende e se faz sic Os participantes sentiamse como futuros pro fissionais despreparados sabiam de técnicas de inter venção mas faltavam as bases para o entendimento e atendimento àquela população maior de pacientes que chegam aos consultórios e que ficam sem um diag nóstico preciso porque o médico não sabe o que fazer quando não encontra nada concretamente orgânico na queixa do paciente E isso diziam os participan tes se dava por não compreenderem a ansiedade do paciente e à própria ansiedade despertada em si mes mos Assim acabavam por realizar encaminhamentos desnecessários exigindo a perambulação dos pacien tes por vários ambulatórios à procura de alguém que desse solução ao caso Os participantes acabaram por sugerir que tal experiência de grupo fosse desenvolvi da e oferecida aos seus professores pois concluíram que estes eram na verdade os primeiros responsáveis pela formação e com certeza desconheciam a clínica do entendimento de Balint sic Os temas relativos aos casos mais graves traziam enormes angústias que eram colocadas nos grupos Buscamos aqui trazer um exemplo de sessão realizada para ilustrar Um paciente comunica ao residente que morre ria até o final do dia e isso aconteceu O médico ficou ocupado em compreender o que se passara com o paciente e como ele poderia ter previsto sua morte O grupo ouvindo o colega bus cou refletir sobre o acontecido e o estado do colega Acabou por concluir que ficar intrigado decorria da preocupação natural que todos tinham em acertar dosar e calcular efeitos mas que frente à morte o saber técnico e acadêmico é insuficiente A seguir o médico que trouxera o caso fala da sua preocupação como clínico geral e como especialista pois não con seguia nessa circunstância se definir embora per cebesse uma inclinação pela clínica geral Frente a tal exposição na sequência dos comentários sobre a morte do paciente um dos colegas aponta que a preocupação que ocorria naquele momento parecia motivada pela ocorrência da morte de um paciente Daí surgiu a questão sobre as fantasias que poderia provocar a ideia de que o paciente talvez tivesse sido salvo se o médico fosse especialista Houve concor dância quanto à interpretação das associações signi ficando que tudo que fora pensado e discutido tinha fundamento Essa sessão continua muito viva até hoje em nós Mostra quão importante pode ser o Grupo Ba lint propiciando a análise e reflexão que podem au xiliar na avaliação crítica da tarefa médica Com relação aos questionários realizados po demos apresentar aqui algumas das respostas que exemplificam de forma significativa o pensamento dos sujeitos acerca da formação e sobre os grupos Sobre a formação obtivemos respostas como A instituição médica é vista como uma estrutura políti ca burocrática que aparece oprimindo restringindo e dificultando o trabalho do médico O médico é sentido e concebido como um sujeito que incorporou os desvios que a instituição apresenta Tivemos respostas que nos surpreenderam mas que de qualquer forma mostraram o perfil de alguns profis sionais Isso nos serve de exemplo pois podemos nos servir dessas respostas para repensar também critérios de avaliação em nossas escolas A resposta O médico é o indivíduo formado para curar e de potencial valor para a evolução científica Outras respostas nos mostram a intenção de mudanças O médico deve sofrer uma formação que o habilite ser também um agente de mudanças Sobre a experiência com os grupos obtivemos respostas como Somos técnicos não sabemos lidar com o paciente como pessoa Ao receitar diazepam resolvemos o nos so caso e não o do paciente É possível estabelecer relação de confiança relação interpessoal isso existe Grupo lugar para a troca de ideias aflições difi culdades imprescindível na formação médica importante pelo aprimoramento que oferece O que leva a procurar um grupo é a relação con flituosa a ansiedade e a certeza de não sentirse só e despreparado Procurase um grupo para não se aceitar simples mente a onipotência como alguns O que pode impedir a participação e a reflexão é a imaturidade o medo da crítica a crença na onipotên cia como acontece com alguns O grupo mostra uma abordagem biopsicossocial parece uma ilusão todo ensino deve ser reavalia Psicossomaticaindd 218 Psicossomaticaindd 218 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 219 do ter professores com disposição para ensinar e aprender Até aqui o leitor pode ter uma ideia do quão sério e o tema da educação e quão comprometidos encontramse nossos futuros profissionais na área de saúde principalmente do ponto de vista da falta de incentivos à ampliação de conhecimentos humanís ticos pois compreendemos a necessidade de promo ver a transmissão do conhecimento em um sentido mais universalizado Esse seria o papel natural de nossas universidades que estariam retomando o seu compromisso histórico Aproveitamos para lembrar o pronunciamento nesse sentido da professora Jussa ra Miranda hoje não mais lecionando na Universida de Federal do Paraná mas na Universidade Federal do Estado de Goiás A escola deve exercer um papel catalizador capaz de preparar o futuro profissional para a atuação direta no combate aos problemas de saúde do Homem porém deve sobretudo capacitálo para a prevenção desses problemas indicandolhe os caminhos para o aprimoramento dos programas de planejamento em saúde e sobretudo capacitálo para a pesquisa que é o primeiro móvel da ciência Estes três aspectos a atuação a prevenção e a pesquisa necessitam para o seu pleno desempenho ser implementados com aspectos sociológicos e an tropológicos e complementados com os conhecimen tos sobre a psique do Homem pois as ciências na área de saúde implicam uma relação humana que se esta belece sempre entre os dois indivíduos O profissional que cura previne e planeja está relacionado com o cidadão que se encontra inserido em sua comunida de geopolítica Ao refletir sobre estas questões todas vemos sem qualquer dúvida que um dos possíveis instrumentos para a abordagem desses elementos capaz de injetar ânimo nessa mudança foi a experi ência com Grupos Balint Todos os argumentos e observações que foram levantados mostram incontestavelmente o valor e a dimensão que podem assumir os Grupos Balint No entanto para que deles se obtenham resultados satis fatórios bem como o seu desenvolvimento é neces sário sério investimento teórico e prático Voltando ainda à experiência com os doutoran dos e residentes pareceunos importante avaliar as atividades do ponto de vista da frequência dos par ticipantes nos grupos Para isso realizamos um bre ve estudo e notamos que nos GBII a permanência foi maior Achamos inicialmente que isso se devia ao grau de exigências e amadurecimento maior entre os residentes mesmo porque socialmente tinham sta tus de médicos No entanto realizandose a análise de significãncia verificamos que os grupos não se distinguiam quanto à frequência donde concluímos que o fato de serem os participantes doutorandos ou residentes não exerceu qualquer influência sobre a frequência Achamos que esse tipo de informação teria al gum valor porque temse a impressão muitas vezes que o fato de uma pessoa encontrarse em um estágio mais adiantado de formação a faz mais comprome tida Tivemos a demonstração neste estudo que tal impressão não é sempre verdadeira Discutindo a experiência bem como refletindo sobre ela notamos que há muitos anos cientistas têm procurado se ocupar com o fato de alertar e demons trar que o conhecimento das ciências em geral têm muito a oferecer orientando a tarefa dos profissio nais do médico O exame do campo de interação médicopacien te tema dos trabalhos de Michael Balint teve grande influência sobre as pesquisas principalmente da Psi cossomática nos anos 1950 na Europa Hoje vêse difundido nos grandes centros médicos do mundo em razão do processo de retorno ao projeto humano que na ciência médica acabou por se perder Por ter se preocupado demasiadamente como cita Gilberto Freyre com o especialismo e diminuído seu com preensivismo Gorling afirma ser irônico nestes tempos domi nados pelos rápidos avanços técnicos que médicos e doentes sintam crescentemente uma rejeição um pelo outro Jean Clavreul médico e estudioso da Psicanáli se nos diz em seu livro A Ordem Médica Poder e Im potência do Discurso Médico que a Ordem Médica é um problema em si Que a eficácia da Medicina é sua cientificidade que constitui lei Ninguém ousa con testar o saber médico A crença na Medicina ultrapas sa de longe a crença em qualquer religião A bibliote ca do médico não precisa ser abundante pois a bíblia é suficiente Nada convence mais que o enunciado preciso sobre uma doença uma indicação terapêuti ca um novo remédio Não há tempo a perder e o mé dico sempre sofre por lhe faltar um saber utilizável O resto é filosofia e literatura O corpo médico não tem interesse em ser dividido por considerações vãs e o médico não pode suportar ser subjetivamente di vidido na realização de sua tarefa A Medicina acaba por levar o médico a calar seus sentimentos porque o discurso médico assim exige Consequentemente a relação médicopaciente é substituída pela relação instituiçãomédicodoença Clavreul lembra Claude Bernard retoma Bacon nunca ter o olhar umedeci do pelas paixões humanas A análise que faz Clavreul reflete o pensamento médico criticado na literatura Traz a Clínica mos trando que esta se inicia na função da transferência e contratransferência Podemos compreender isso pois Psicossomaticaindd 219 Psicossomaticaindd 219 05012010 121211 05012010 121211 220 Mello Filho Burd e cols estamos no centro de todas as relações tendo que re solver o que é o outro para nós o tempo todo qual seu significado seu valor para nós Estamos de qual quer forma tratando da transferência e respondendo dela e em relação a ela O médico não está isento em sua relação com seu paciente ele traz em si uma história que é anterior aos conhecimentos médicos que detém E é essa história e seus efeitos que estão o tempo todo a passar uma rasteira digamos assim sob seus atos e atitudes o que o faz desentenderse muitas vezes a ter dúvidas muitas vezes e se isso não ocorre seria interessante pensar em outros afazeres A investigação que realizamos nos mostrou que os futuros médicos aqueles que estavam concluindo o curso médico apresentavam em suas verbalizações uma preocupação sobre a maneira como praticavam a Medicina Posicionavamse em um sentido de ata que à instituição aquela responsável pela chamada ordem de Clavreul Os médicos consideraram que esta ordem é responsável pela forma como os aten dimentos ocorriam pois interessava segundo os sujeitos muito mais à causa da instituição que à do doente Podese observar que existia sempre uma an siedade intensa nos participantes que aparecia nas reuniões de forma catártica Isso mostrava a existên cia de um conflito estabelecido que se acercava do médico As reuniões permitiam o aparecimento desse conflito de forma abrupta na fala dos participantes Esses mostravam preocupação com a morte o que pode ser trazido com o exemplo de sessão realiza da em que um residente chegava a se perguntar se a clínica geral seria mesmo uma boa escolha pois ser especialista poderia ser alguma garantia para fazer frente à morte Isso é trágico não para esse residente mas para a Medicina pois é a Clínica Geral que deve se desenvolver A Medicina para os sujeitos observados é um elemento com características poderosas assim é a ordem E assim sendo um novo elemento os Gru pos que os levava a uma crítica sobre seu lugar e sua função na relação médicopaciente era recebido com sofrimento Entendeuse que esse sofrimento transparecia expressado assim como sintoma A instituição ao ser refletida era sentida como má retaliadora e persecu tória Os que não conseguiram frequentar as reuniões poderiam estar se defendendo defendendo seu papel e a si mesmos seu equilíbrio Frequentar um grupo da natureza do Grupo Ba lint colocava os sujeitos sob uma ameaça ou seja ter que definir sua real função e como deveriam executá la A defesa com recusa aparece analisada por Freud em 1938 no trabalho Resumo da Psicanálise Antes aparece nos estudos sobre a histeria a recusa do indi víduo em reconhecer a realidade de uma percepção que pode ter um caráter traumatizante Frente à per cepção da ausência de elementos que propiciariam um maior entendimento de sua clínica entendase como ação médica recusamse ou negam a falta que existe Aparece então a crença talvez onipotente de que são suficientes Tal análise inferiuse a partir da observação da ausência de doutorandos ou residen tes em algumas sessões e de verbalizações A questão acerca da identidade do médico pare ceunos dado relevante na experiência E em relação a isso lembramos Julio de Mello Filho ao comentar que o médico passa no momento presente por duas crises que se entrelaçam uma de identidade e outra de ideologia Entendendo que o progresso industrial e tecnológico trouxe a fragmentação da atividade mé dica e a criação de superespecialidades estas cada vez mais setorializadas em relação ao paciente perdendo o médico com isso o impacto como pessoa sobre o mesmo A necessidade da socialização tomou o mé dico empregado e assim afastouo da antiga situação profissional com toda aura de poder e importância A isso juntouse uma crise de ideologia visto que a formação empírica não proporciona o necessário em basamento ideológico ao profissional Como resulta do cada médico tem até certo ponto uma ideologia particular sobre a sua profissão seus ideais seu pa ciente Já é insuficiente a solidez ideológica e prática do médico de antigamente de amar seu paciente Hoje segundo Julio de Mello Filho juntamse outros aspectos sociocomunitários preventivos e progressos terapêuticos desconhecidos pelos médicos de antiga mente Enquanto uns defendem uma postura prag mática outros advogam informação mais abrangen te As ideologias médicas tradicionais chocamse com concepções inovadoras Frente a isso entendeuse que não poderia ser suportável admitir qualquer empreendimento novo porque conflitos se estabeleciam Idealizar a Medici na era sempre uma forma de manter intacto o nar cisismo que se acercava do médico e que é mantido pelo superego ordem Médica A identificação com o modelo médico tradicio nal empírico é intensa e por outro lado garante um equilíbrio ao profissional Clavreul ao pensar na identificação do médico comenta que tudo que não é identificação aos mais altos valores na ordem médica é percebido como fracasso e que não há como justificar a posição do clínico através de uma pretensa competência nas re lações humanas porque definitivamente e o grande médico o titular que encarna o personagem ideal do médico Ele é o mestre que deve fazer pesquisa constituir novos significantes através dos quais asse gura o domínio sobre o real Psicossomaticaindd 220 Psicossomaticaindd 220 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 221 Lembramos Marcelo Blaya que ao interpretar o médico diz que ser médico sempre foi e continuará sendo uma escolha profissional estranha pois o sofri mento e a morte estarão sempre perto Que o motivo da escolha talvez estivesse no desejo do médico de tratar de si ao tratar do paciente Verificando os casos trazidos aos grupos pode se de fato constatar que o que importava era sempre muito mais entender a dificuldade do médico ele precisava ser ouvido compreendido e esperava por sua vez compreenderse A vontade de lutar contra a morte e o sofrimen to estava sempre presente e a necessidade de superá los era imensa Ryad Simon analisa e discorre sobre o que cha ma o complexo tanatolítico que seria formado por fantasias acerca do triunfo sobre a morte e pelos quais o sujeito idealiza um ser onipotente capaz de retardar impedir e até mesmo anular a ameaça de morte É o desejo de imortalidade O médico nessa visão assume funções tanatolíticas para impedir a morte O perigo a que se expõe o indivíduo na profis são é o de fazer uma identificação total entre seu eu e o ser tanatolítico assumindo compromissos onipo tentes A não consecução de tais compromissos leva o indivíduo a voltarse contra si mesmo como punição por culpa persecutória Tal culpa se deve pelo envol vimento da pessoa do médico por apelos narcisica mente sedutores de seu complexo tanatolítico Ryad Simon considera importante neste trabalho que para se opor ou atenuar o risco de sujeição às armadilhas do inconsciente seria desejável que os profissionais de saúde se submetessem a um processo de esclareci mento quanto à aquisição de conhecimentos sobre as vicissitudes de seu complexo tanatolítico Os pontos de vista apresentados pareceram im portantes para compreender os sentimentos trazidos pelos membros dos grupos e a necessidade de com preender os casos mais graves e terminais como o caso exemplificado em que o médico não podia en tender como o paciente poderia falar de sua morte Entendeuse que o ser tanatolítico se apresentava pois a culpa transparecia nas verbalizações dos mem bros do grupo uma vez que não podiam atuar so mente com sua pessoa Foi possível evidenciar o despreparo para a rela ção médicopaciente Prepararse implica uma apren dizagem do entender o paciente e as fantasias subja centes do médico Médicos chegaram a dizer que suas dificuldades ficavam mesmo era num bom papo com cerveja Mas não conseguiam compreender que no barzinho com amigos os problemas discutidos acabavam ape nas num desabafo Na realidade tratar dessas ques tões mais intimamente era mais sério Finalmente podese verificar que os médicos ao refletir sobre a sua prática sentiamse frágeis e a an siedade suscitava o desejo de recuperação da prática medica baseada no entendimento da pessoa Aqueles que se autorizaram uma autocrítica passaram por um momento de depressão com sentimentos de perda Mas sentiramse impelidos a desejar projetos acerca de seu trabalho que consideravam possível ser recu perado Entenderam a importância de uma formação que os capacitasse para os atendimentos preventivos e primários Tal entendimento por sua vez contri buiu para uma reparação das deformações às quais se sentiam presos Tivemos respostas que comprovaram o estado de crise em que se encontram os médicos face às con dições de trabalho e de aprendizagem e que existe a percepção por parte deles de se sentirem comprome tidos com essas condições as grandes responsáveis pelas práticas existentes e que estão a impedir o esta belecimento da clínica do entendimento Podese por outro lado deduzir dada a seve ridade das críticas e de seu irrealismo que grande parte desses ataques a formação e às instituições é resultado de elas terem se tornado continentes de projeções do médico quando não eram suportadas a frustração e angústia relacionadas à sua tarefa Dessa forma podemos considerar que é mais fá cil criticar as instituições formadoras tomandoas res ponsáveis pela deformação profissional do que partir para uma análise e autocrítica do ser humano que a partir deste século em face dos grandes avanços tec nológicos afastouse de valores simples como o amor ao próximo Isso porque a tecnologia os aparelhos de raio X os diagnósticos computadorizados tornaram o ensino tão onipotente que o aluno o estudante univer sitário acabou por ficar distante de qualquer possibili dade de avaliação de aspectos psicológicos sociológi cos ou humanísticos Essa situação sem dúvida afasta o terapeuta de seu paciente de seu doente O contexto da ciência nos dias de hoje é muito complexo Não se podem ignorar as máquinas e computadores a robó tica Tudo está também a serviço do homem porém não podemos esquecer que o ser humano continua precisando de cuidados mais simples oomparados à robótica por exemplo E tais cuidados muitas vezes não precisam de um botão ou de um sinal técnico precisam de um sinal mais primitivo de um sinal no olhar um claro sorriso um aperto de mão Isso tão simples poderia depois receber o computador Tão simples mas entender a subjetividade pas sou a tomar ares de tamanha complexidade que pas sou a constituirse em uma ilusão utopia idealismo Contar aqui neste espaço a nossa experiência foi em parte difícil pois precisávamos deixar de lado o tom acadêmico que adquirimos em nossa tarefa de Psicossomaticaindd 221 Psicossomaticaindd 221 05012010 121211 05012010 121211 222 Mello Filho Burd e cols pesquisadores Por outro lado foi imensamente in teressante pois nos colocou novamente em contato próximo com todas as questões que nos afligiram e que na verdade não nos abandonaram Gostaríamos que experiências como estas se re produzissem oportunizando como Luchina defende em seu trabalho com Grupos Balint a introdução e a aprendizagem dos aspectos contratransferenciais como elementos importantes em cada caso a busca e o enriquecimento da práxis médica ampliando a capa cidade de diagnosticar e a ação terapêutica bem como a ampliação do campo dinâmico da relação médicopa ciente semelhante ao campo do analistaanalisando É pois esta ampliação do entendimento na clí nica o que entendemos que levaria os profissionais a reaver e compreender a complexa interação do tera peuta com a instituição a família e o paciente Não se deseja que o médico tenha que aprender psicoterapia ou fazer psicanálise mas se deseja que ele se transforme em um observador qualificado que possa administrar sua pessoa Cremos ser este um dos caminhos para alguma contribuição na clínica inse rindose a prevenção bem como a Psicossomática às ciências psicossociais e antropológicas oferecendo seu campo teórico e prático para a compreensão do doente do Homem Psicossomaticaindd 222 Psicossomaticaindd 222 05012010 121211 05012010 121211 ASPECTOS HISTÓRICOS O desenvolvimento da prática psiquiátrica em hospitais gerais foi fruto de um amplo movimento históricoinstitucional que se consolidou no início do século XX Ferrari et al 1971 NogueiraMartins e Frenk 1980 Shavitt et al 1989 Mello Filho 1978 1992 2006 NogueiraMartins 1992 NogueiraMar tins e Botega1998 De Marco 2003 Botega 2006 Esse movimento teve como base de sustenta ção as concepções psicossomáticas em Medicina Sua institucionalização se deu por meio da criação das primeiras unidades psiquiátricas nos hospitais gerais UPHG Embora a primeira UPHG tenha sido criada em 1728 no Hospital St Thomas em Londres tanto essa como outras unidades semelhantes implantadas em diversos hospitais ingleses tiveram vida curta não ultrapassando a metade do século XIX A implantação das UPHG em seu sentido mo derno com planejamento terapêutico integração à medicina geral internações breves com rápido retor no à comunidade de origem ocorreu em 1902 com a inauguração da UPHG do Albany Medical Center em Nova Iorque Botega e Dalgalarrondo 1993 Nas duas décadas subsequentes a importância de se considerar o homem como uma unidade biopsi cossocial ganhou força Apoiados principalmente no corpo doutrinário da nascente Psicanálise foram pu blicados os primeiros trabalhos sobre Medicina Psi cossomática e Psiquiatria de Consultoria e Ligação Lipowski 1996 Em 1929 George Henry publicou o primeiro ar tigo sobre as diretrizes gerais que deveriam nortear o trabalho de consultoria psiquiátrica no hospital geral ConsultationLiaison Psychiatry Em 1934 Helen Dunbar uma das pioneiras do movimento psicosso mático e criadora da teoria dos perfis psicossomáti cos previa que num futuro próximo psiquiatras se riam requisitados para todas as enfermarias clínicas e cirúrgicas nos hospitais gerais Lipowski 1986 Após a II Guerra Mundial observouse um im portante crescimento das UPHG em especial nos Estados Unidos De 1952 a 1976 o número de lei tos em UPHG nos Estados Unidos cresceu de 7000 para 29000 O número de unidades cresceu de 40 em 1940 para 1358 em 1984 Esse crescimento das UPHG foi acompanhado por um decréscimo de leitos e internações nos hospitais psiquiátricos tradicionais Em 1980 nos Estados Unidos 20 das internações foram em hospitais psiquiátricos públicos 21 em hospitais psiquiátricos privados e 59 em serviços psiquiátricos em hospitais gerais Botega e Dalgalar rondo 1993 As principais vantagens das UPHG têm sido facilidade de acesso à população mais recursos diagnósticos maior transparência da prática psiqui átrica melhor atenção à saúde física diminuição do estigma da doença mental e ampliação da assistência ensino e pesquisa Botega 2006 No Brasil as primeiras enfermarias de psiquia tria em hospital geral surgiram na década de 1950 sendo nesse período publicado o primeiro trabalho sobre um serviço de psiquiatria em hospital geral de ensino Sampaio 1956 Somente na década de 1970 é que foram criadas as primeiras UPHG em sua con cepção mais abrangente para as quais postulamos a denominação de Unidade de Saúde Mental em Hospi tal Geral USMHG constituídas por enfermaria de psiquiatria em hospital geral hospitaldia ou Centro de Atenção Psicossocial CAPS ambulatório de psi quiatria em ambulatório geral serviço de emergência em pronto socorro geral e serviço de Interconsulta Em 1977 no Departamento de Psiquiatria e Psi cologia Médica da Escola Paulista de Medicina teve início o primeiro Serviço de Interconsulta IC estru turado e organizado sob a forma de um estágio de treinamento em um programa de Residência Médica em Psiquiatria constituindose em um dos serviços de uma Unidade de Saúde Mental em Hospital Geral USMHG Em 1980 NogueiraMartins e Frenk pu blicaram o primeiro artigo relatando a experiência de um Serviço de Interconsulta pertencente a uma USMHG no Brasil Os primeiros serviços de IC no Brasil se cons tituíram sob a influência do trabalho pioneiro dos psicanalistas argentinos Héctor Ferrari Isaac L Lu china e Noemí Luchina Em suas obras Interconsulta 16 INTERCONSULTA HOJE Luiz Antonio Nogueira Martins Psicossomaticaindd 223 Psicossomaticaindd 223 05012010 121211 05012010 121211 224 Mello Filho Burd e cols médicopsicológica en el marco hospitalario Ferrari et al 1971 e Asistencia Institucionalnuevos desarrollos de la interconsulta médicopsicológica Ferrari et al 1979 esses autores apresentaram as bases do desen volvimento de um instrumento metodológico aplicá vel ao trabalho de profissionais de saúde mental em hospitais gerais a interconsulta médicopsicológica Mello Filho 2003 em seu trabalho intitulado Isaac Luchina e a interconsulta médicopsicológica elaborou reflexões aprofundadas sobre as bases con ceituais deste instrumento de trabalho e de análise institucional salientando a importância desse méto do na valorização das vivências do paciente o adoe cer e dos profissionais o cuidar e das interações que se desenvolvem entre os usuários das instituições hospitalares e os provedores de cuidados em saúde Refletindo sobre algumas das bases conceituais da Interconsulta MédicoPsicológica pontua Para esse autor Luchina a medicina clássica promove sempre uma dissociação do fenômeno doente x doença desenvolvendo cientificamente o conhecimento da últi ma enquanto o conhecimento do doente não é objeto de um estudo dessa índole isto é seu conhecimento é esquecido e sempre postergado Paralelamente fun ciona outra dissociação mais geral mente x corpo através da qual os fenômenos do corpo recebem toda a abordagem científica com um aval históricogenético das descobertas médicas com técnicas de observação próximas das ciências naturais e em troca os fenôme nos mentais são submetidos a enfoques apenas pessoais ou empíricos p 41 Mello Filho 2003 destaca também a impor tância que Luchina e seus colegas deram à valoriza ção do campo dinâmico da relação médicopaciente como o palco principal onde se desenrolam os dra mas vividos por pacientes familiares e profissionais cada um com suas características idiossincráticas e suas peculiares circunstâncias de vida Ferrari Luchi na e Luchina no texto clássico de 1971 chamam a atenção para o fato de que o campo dinâmico é em realidade triádico pois além da díade médicopa ciente envolve também a instituição que os alberga A questão referente às crises e mazelas do sistema de saúde e suas repercussões na prática assistencial hos pitalar tema abordado de forma detalhada no capí tulo Interconsulta hoje publicado na primeira edição deste livro em 1992 é especificamente salientado por Ferrari Luchina e Luchina nas instituições hospitalares o contexto interna ção é a estrutura básica na qual todos os fatores que a integram médicospacientesenfermeirosfamílias etc se expressam por meio de qualquer um deles se pode transmitir e evidenciar as doenças ou patologias institucionais É comum que o paciente mais do que qualquer outro dos fatores interatuantes devido à es pecifica situação psicológica da internação dependên cia e ansiedade acompanhados de recursos defensivos que dependerão da personalidade prémórbida seja o emergente patológico mais frequente Através dele e de sua crise muitas vezes se evidenciam verdadeiras fra turas institucionais p 161 NogueiraMartins 2004 em seu livro Huma nização das relações assistenciais a formação do profissional de saúde ao discorrer sobre o caráter multifatorial da atividade assistencial salienta em basada nas concepções formuladas por Ferrari Lu china e Luchina 1979 que para uma avaliação da complexidade da tarefa assistencial em especial a as sistência realizada em instituições devese levar em conta que o paciente está inserido em um contexto pessoal familiar e social complexo que deve ser conside rado a assistência deve efetuar uma leitura das neces sidades pessoais e sociais do cliente na instituição interatuam as necessidades de quem assiste e de quem é assistido que devem ser consideradas O DESENVOLVIMENTO DA INTERCONSULTA NO BRASIL A partir da década de 1980 houve um cresci mento significativo no campo da Interconsulta no Brasil Alguns marcos desse período merecem desta que XIV Simpósio de Psiquiatria do Departamento de Psiquiatria e Psicologia Médica da Escola Paulista de Medicina realizado em maio de 1984 sobre o tema Tarefa médica o resgate através da Psico logia Este simpósio contou com a participação de eminentes pesquisadores e autores de obras clássicas no campo da Psicanálise Medicina Psi cossomática Interconsulta e Psicologia Médica tais como Isaac L Luchina Julio de Mello Filho e Roosevelt Cassorla I Congresso Brasileiro de Psiquiatria e Medicina Interna realizado em 1987 organizado pelo De partamento de Psiquiatria da Faculdade de Me dicina da Universidade de São Paulo cujos anais foram publicados em um livro intitulado Psiquia tria e Medicina Interna Fortes et al 1988 I Encontro Brasileiro de Interconsulta Psiquiátri ca realizado em 1989 organizado pelo Departa mento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo do qual resultou Psicossomaticaindd 224 Psicossomaticaindd 224 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 225 um livro intitulado Interconsulta Psiquiátrica no Brasil editado por Miguel Filho e colaboradores 1990 onde foram publicadas as experiências de vários Serviços de Interconsulta no Brasil II Encontro Brasileiro de Interconsulta Psiquiátri ca realizado em 1991 em Porto Alegre no qual foi criado o Departamento de Interconsulta e Psi quiatria de Hospital Geral da Associação Brasilei ra de Psiquiatria VII Encontro Brasileiro e I Encontro Lusobrasi leiro de Interconsulta e Psiquiatria de Hospital Geral realizados em 2002 em Florianópolis II Encontro Lusobrasileiro de Interconsulta e Psi quiatria de Hospital Geral realizado em 2005 em Coimbra Esses eventos expressam a vitalidade da Inter consulta no Brasil Um censo nacional realizado em 1997 revelou que serviços de Interconsulta encon travamse disponíveis em 86 de 63 hospitais gerais que contavam com uma enfermaria de psiquiatria Botega e Schechtman 1997 A publicação de trabalhos nacionais tem se multiplicado dentre as várias e importantes obras da produção científica brasileira no campo da Inter consulta merecem destaque as teses de mestrado de Letícia Maria Furlanetto 1995 Paola Bruno Araú jo Andreoli 1998 e Vanessa de Albuquerque Cíte ro 1999 dentre as teses de doutorado devem ser ressaltadas as de Neury José Botega 1989 Renério Fraguas Jr 1995 e Vanessa de Albuquerque Cítero 2005 Alguns trabalhos de pesquisadores brasileiros da área de Interconsulta foram publicados nos últi mos anos em revistas especializadas de alto impac to como Psychosomatics e General Hospital Psychiatry Furlanetto et al 2000 e 2003 Andreoli et al 2003 Fraguas Jr et al 2007 Cítero et al 2008 Diversos livros que tratam da atividade profis sional em Interconsulta contribuíram para enriquecer o nosso acervo de trabalhos na área Psicossomática Hoje Mello Filho 1992 Saúde Mental no Hospital Geral Botega e Dalgalarrondo 1993 e Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral Botega 1995 A Face Humana da Medicina De Marco 2003 e em especial o livroreferência na área intitulado Prática Psiquiátrica no Hospital Geral Interconsulta e Emer gência Botega 2002 e 2006 ASPECTOS CONCEITUAIS A Interconsulta é em essência uma atividade interprofissional e interdisciplinar NogueiraMar tins 1993 O termo interconsulta é utilizado em nosso meio em um sentido amplo envolvendo tan to o trabalho de consultoria como o de ligação A consultoria se refere à atividade do profissional de saúde mental que é chamado para atender pacientes que estão internados sob os cuidados de equipes de saúde de unidades ou serviços hospitalares Assim a presença do interconsultor é episódica e responde a uma solicitação específica feita por algum membro da equipe de saúde Ligação se refere a um trabalho constante que é desenvolvido por profissionais de saúde mental em conjunto com outros profissionais que compõem as equipes de saúde ou seja o pro fissional de ligação é membro efetivo da equipe de saúde NogueiraMartins 1989 De Marco 2003 Botega 2007 Além de ser considerada uma subespecialidade que se ocupa da assistência do ensino e da pesquisa na interface entre a psiquiatria e a medicina a inter consulta é também um recurso utilizado por profis sionais de saúde mental no trabalho em instituições de saúde visando compreender e aprimorar a tarefa assistencial por meio de auxílio especializado no diagnóstico e no trata mento de pacientes com problemas psicológicos psiquiátricos e psicossociais auxílio especializado no diagnóstico e tratamento de disfunções e distúrbios interpessoais e institu cionais envolvendo o paciente a família e a equi pe de saúde NogueiraMartins Botega 1998 O objetivo último do trabalho em Interconsul ta é melhorar a qualidade da atenção ao pacien te auxiliando na provisão de cuidados a todos os aspectos envolvidos na situação de estar doente e hospitalizado Outros objetivos podem ser desta cados tais como modificar a estrutura assistencial centrada na doença para uma forma de trabalho centrada no paciente valorizar o papel da relação médicopaciente aprofundar o estudo da situação do doente e dos profissionais nas instituições as sistenciais bem como aproximar a psiquiatria e a saúde mental das outras especialidades médicas NogueiraMartins 1992 No que se refere à formação de recursos huma nos para a área de saúde a Interconsulta é uma im portante estratégia pedagógica destinada a melhorar a qualificação profissional das equipes de saúde au mentando sua capacidade para identificar e resolver problemas de natureza psicológica psiquiátrica e psi cossocial em uma população onde a prevalência de tais problemas é alta Um outro objetivo é o de aprimorar a qualifica ção do profissional de saúde mental mediante sua participação em unidades ou enfermarias clínicoci rúrgicas nas quais o interconsultor pode ter contato Psicossomaticaindd 225 Psicossomaticaindd 225 05012010 121211 05012010 121211 226 Mello Filho Burd e cols com situações que habitualmente não ocorrem em serviços especializados de Psiquiatria e Psicologia A experiência com a prática de Interconsulta tem suscitado o debate sobre alguns temas relevan tes dentre os quais se destacam os seguintes No gueiraMartins 1989 1993 1995a Botega 1991 1992 1995 2006 2007 Cítero et al 2002 2008 De Marco et al 2003 2007 natureza dos pedidos de Interconsulta prevalência de distúrbios psiquiátricos em pacien tes internados em hospitais gerais benefícios e vantagens que o atendimento em in terconsulta proporciona aos pacientes familiares profissionais da equipe de saúde hospitais e à so ciedade estruturação e organização de serviços de Inter consulta A NATUREZA DOS PEDIDOS DE INTERCONSULTA Os pedidos de Interconsulta abrangem uma ex tensa gama de situações hospitalares Os casos rela tados a seguir ilustram os tipos de pedidos mais fre quentes a O interconsultor é chamado para atender o caso de um paciente de 70 anos hipertenso e diabéti co que foi encontrado no corredor da enfermaria desorientado e falando coisas sem sentido Este é um exemplo típico de pedido de Interconsulta que ocorre em diversas enfermarias com pacien tes de ambos os sexos de várias faixas etárias e que estão internados em um hospital geral pelos mais diferentes tipos de doenças São os estados confusionais agudos b A Interconsulta é solicitada para atender uma jo vem de 22 anos que está internada devido a sin tomas de fraqueza e de dor no braço direito As investigações excluíram qualquer doença neuro vascular e o médico neurologista pede uma avalia ção quanto a possibilidade de ser um quadro con versivo Este é um outro padrão de Interconsulta onde o interconsultor é chamado para fazer um diagnóstico diferencial entre quadro de etiologia predominantemente orgânica ou psicológica c O interconsultor é solicitado para avaliar o caso de um paciente internado devido a uma fratura na perna com osteomielite e que tem apresenta do diversas alterações de conduta na enfermaria como por exemplo uma ameaça de se jogar pela janela caso não fosse atendido em uma série de rei vindicações Este tipo de Interconsulta com graus variáveis de comprometimento na relação equipe paciente ocorre em diversas unidades médicas estando habitualmente associado ao atendimento de pacientes com transtornos de personalidade borderline e abuso de substâncias psicoativas d O interconsultor é chamado para atender um caso de uma paciente testemunha de Jeová que se recusa a receber sangue por convicção religio sa Este é um outro exemplo de solicitação de In terconsulta que tende a crescer em número e que abrange um conjunto de situações os chamados dilemas éticos NogueiraMartins et al 1991 Os dilemas éticos mais frequentes no hospital geral incluem decidir sobre a manutenção ou interrupção de tratamentos em pacientes graves lidar com situações nas quais o paciente não aceita continuar um tratamento eou se sub meter a um procedimento manejar situações associadas à comunicação aos pacientes e aos familiares de diagnóstico de câncer AIDS e outras doenças graves óbi to complicações inesperadas com sequelas graves as comunicações dolorosas Na maioria das vezes o interconsultor é chama do para avaliar o estado mental do paciente colabo rar no diagnóstico diferencial entre etiologia orgâni ca ou psíquica atender casos de tentativa de suicídio e para acompanhar pacientes submetidos a procedi mentos traumatizantes como amputações e cirurgias de grande porte Há no entanto em cerca de 25 dos pedidos de Interconsulta um conjunto de outras situações que não se enquadram em diagnósticos psiquiátricos São desajustes e conflitos na relação entre equipe mé dica e paciente ou familiares Nessas situações cum pre ao Interconsultor tentar desobstruir os canais de comunicação propiciando à equipe condições para restaurar a relação terapêutica O trabalho em Interconsulta envolve a elabo ração de diagnósticos situacionais a devolução das informações trabalhadas é um de seus aspectos mais importantes O interconsultor deve transmitir im pressões ideias e conceitos de forma clara evitando o uso de jargões da especialidade eou uma lingua gem hermética que possa bloquear a interação con sultanteinterconsultor FREQUÊNCIA E NATUREZA DOS DISTÚRBIOS PSIQUIÁTRICOS NO HOSPITAL GERAL Cerca de 50 dos pacientes internados em hos pital geral apresentam algum tipo de distúrbio psi Psicossomaticaindd 226 Psicossomaticaindd 226 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 227 quiátrico A variação nessa cifra depende da popu lação estudada características sociodemográficas tipo de enfermidade gravidade cronicidade e de definições metodológicas critérios de inclusão ins trumentos de pesquisa ponto de corte definição de caso etc Os transtornos observados podem ser a expressão de um problema mental crônico de mani festação psiquiátrica decorrente do quadro clínico de base ou ainda de reações à doença aguda de seu tratamento e da hospitalização Botega et al 1995 2002 2006 Os principais diagnósticos psiquiátricos em pa cientes internados em hospital geral são a reações de ajustamento ao adoecer e à interna ção com sintomatologia predominantemente de pressiva b estados confusionais agudos associados a quadros cérebroorgânicos decorrentes de quadros infecciosos encefalites meningites toxoplasmose cerebral abscessos cerebrais AIDS septicemia etc distúrbios metabólicos diabete insuficiência renal insuficiência hepática etc intoxicações exógenas acidentes uso de dro gas tentativas de suicídio alcoolismo síndrome de abstinência Wernicke KorsaKoff vasculopatias cerebrais hipertensão diabete arterioesclerose vasculite por lupus etc O mais extenso estudo multicêntrico sobre morbidade psiquiátrica em Interconsulta conduzido pelo European CL Work Group Huyse et al 2001 abrangendo 11 países 56 serviços de IC 226 psiquia tras e 14717 pacientes mostrou as seguintes preva lências de transtornos mentais Transtorno do Humor 187 Transtorno Mental Orgânico 177 Abu so de Substâncias Psicoativas 133 Transtorno de Ajustamento 124 Transtornos Somatoformes 75 Transtorno de Ansiedade 53 Transtor nos Psicóticos 44 A morbidade psiquiátrica é maior em enferma rias de serviços de emergência e em unidades que lidam com pacientes em estado crítico Transtornos mentais orgânicos são mais frequentes em idosos quando comparados a pacientes mais jovens estes úl timos tendem a apresentar transtornos afetivos Den tre os transtornos afetivos as reações de ajustamento constituem o grupo mais frequente A exemplo do ob servado na atenção primária o padrão mais comum de sintomas é de natureza indiferenciada compreen dendo uma combinação de preocupações excessivas ansiedade depressão e insônia No caso de doenças agudas os sintomas desenvolvemse dentro de dois ou três dias A ansiedade surge primeiro principal mente quando não se tem certeza do diagnóstico e da evolução do quadro clínico Sintomas depressivos aparecem posteriormente e podem durar semanas Quadros clínicos como o acima descrito melho ram com asseguramento apoio e boa comunicação esta última compatível com a necessidade e o nível intelectual do paciente Estas funções idealmente deveriam ser desempenhadas pelo médicoassistente ou em caso de impossibilidade por um membro da equipe assistencial Psicofármacos e psicoterapia con duzida por especialista são raramente necessários Em alguns casos os sintomas persistem por mais tempo Geralmente são de natureza depressi va atingindo níveis de gravidade compatíveis com critérios diagnósticos para episódio depressivo maior Na avaliação do paciente sintomas como anedonia e perda de interesse e de prazer devem ser ativamente pesquisados A persistência e a natureza dos sintomas indicam a necessidade de tratamento específico A decisão de iniciar um tratamento com medicamento antidepressivo deve ser pautada pelas mesmas dire trizes utilizadas em casos de depressão não associada a doenças físicas Entretanto efeitos adversos con traindicações e interação medicamentosa devem ser cuidadosamente considerados quando da escolha do antidepressivo a ser utilizado Apesar de causarem considerável sofrimento e implicações clínicas pelo menos 30 dos pacientes acometidos por transtornos mentais não são reconhe cidos como tais pelos seus médicos Tal fato pode ser decorrente da combinação de vários fatores entre os quais Botega e Smaira 2006 os pacientes queixamse do corpo não relatando problemas psicológicos acusamlhes a presen ça entretanto se questionados diretamente as pistas fornecidas pelo paciente a respeito de seu estado emocional não são percebidas pelo médico falta de privacidade em alguns ambientes para se conversar ao encontrarem uma causa física os médicos de têm aí a investigação certos sintomas vegetativos fadiga insônia taquicardia falta de ar anorexia diminuição da libido etc podem ser decorrentes de patologia tanto orgânica quanto mental confundindo o diagnóstico considerados como compreensíveis ou fazendo parte do quadro clínico certos transtornos afeti vos deixam de receber tratamento específico mesmo quando suspeitam da presença de um problema psicológico os profissionais podem se Psicossomaticaindd 227 Psicossomaticaindd 227 05012010 121211 05012010 121211 228 Mello Filho Burd e cols sentir inseguros para o aprofundamento e o ma nejo outra dificuldade conhecida nessa área é que no hospital geral tornase difícil diferenciar casos psiquiátricos notadamente quando se combinam além do sofrimento psíquico doenças físicas e problemas sociais concomitantes OS BENEFICIÁRIOS DA INTERCONSULTA É antiga a crença entre os psiquiatras que tra balham em hospitais gerais de que o atendimento psiquiátrico a pacientes hospitalizados melhora a qualidade da assistência ao paciente reduz o tempo de hospitalização e diminui as reinternações Hales 1985 NogueiraMartins 1995 Edward Billings o criador do termo consulta tionliaison psychiatry há quase 70 anos já externava essa convicção A integração dos princípios da Psiquiatria com os de outras áreas da Medicina diminui os erros diagnósticos e terapêuticos reduz o tempo de hospitalização e isso representa uma economia para o hospital para o pa ciente e para a comunidade Hales 1985 Vários estudos contemporâneos têm confirmado as afirmações desse autor Em um estudo sobre altas hospitalares e tempo de internação em uma enferma ria de clínica médica Ferrari e colaboradores 1979 observaram que as internações se prolongavam por um tempo excessivo segundo os autores a conju gação de fatores psicossociais dos pacientes com as dificuldades da equipe médica em identificar e lidar com esses fatores colaboravam para um aumento ex cessivo do tempo de internação dos pacientes Levitan e Kornfeld 1981 comparando um grupo de pacientes idosos submetidos a cirurgia cor retiva de fratura de fêmur que recebeu acompanha mento psiquiátrico no pósoperatório com um grupo controle que não recebeu este atendimento observa ram que a internação hospitalar para o primeiro grupo foi 12 dias mais curta que para o grupo controle um número duas vezes maior de pacientes no pri meiro grupo foi diretamente para suas casas após a alta ao invés de serem encaminhados para ou tra instituição de saúde Diversos pesquisadores têm procurado mensu rar os benefícios de intervenções psicossociais em pa cientes hospitalizados e ambulatoriais Essa questão revestese de significativa importância econômica dado o alto custo dos serviços médicos em geral e das hospitalizações em particular Mumford e cola boradores 1984 publicaram um importante estudo metanalítico sobre as evidências na redução do custo do uso de serviços médicos após tratamentos e in tervenções psicossociais este trabalho é a principal fonte dos dados relatados a seguir Em 1965 na Alemanha foi realizado o primei ro estudo relatado na literatura demonstrando que o custo de um tratamento psicoterápico era compensado pela economia que se obtém através de uma diminuição do uso de serviços médicos A pesquisa mostrou que pacientes que se subme tiam à psicanálise ou à psicoterapia psicanalítica tiveram um menor índice de hospitalização que um grupo controle Uma revisão de trabalhos sobre os efeitos da psi coterapia mostrou que havia uma redução de 20 no uso de serviços médicos pelos pacientes que estavam em psicoterapia Um outro estudo revelou uma queda no uso de exames radiológi cos e de laboratório 157 e de serviços médi cos não psiquiátricos 136 em pacientes sob tratamento psicoterápico A análise de 13 estudos sobre os efeitos de uma intervenção psicossocial orientação e apoio psi cológico a pacientes infartados revelou uma re dução média de dois dias no tempo de internação hospitalar Resultados semelhantes foram obtidos na análise de 49 estudos sobre os efeitos de uma intervenção psicopedagógica no período préope ratório uma redução de 131 dias no tempo de hospitalização Outro estudo envolvendo 22 tra balhos que correlacionam intervenções psicológi cas com tempo de internação revelou uma redu ção média de 15 dias Alguns estudos sobre a relação custobenefício que visam medir a redução dos custos hospitala res após intervenções psicossociais em pacientes hospitalizados são relatados na literatura To dos os estudos foram realizados em enfermarias de Ortopedia com pacientes idosos submetidos a cirurgias corretivas de fraturas de ossos do quadril Em um estudo conduzido por Boone e colaboradores citado em Strain e colaborado res 1991 houve uma redução de 125 dias no tempo de hospitalização após uma intervenção realizada por assistentes sociais durante 6 meses com 187 pacientes A redução do custo hospita lar foi de 54000 dólares Strain e colaboradores 1991 trabalhando com 452 pacientes durante 2 anos em dois hospitais americanos referem uma redução de 2 dias no tempo de hospitali zação A redução de custos hospitalares foi de 160000 e 100000 dólares respectivamente Psicossomaticaindd 228 Psicossomaticaindd 228 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 229 Esses dados corroboram a crença de que o tra balho em consultoria psiquiátrica e psicológica no hospital geral reverte em benefícios para os pacien tes para o hospital e para a comunidade conforme já afirmava Billings em 1941 apud Hales 1985 Em resumo há evidências na literatura que justificam a noção de que intervenções psiquiátricas psicológicas e psicossociais resultam em benefícios para os pacien tes e para os hospitais Os benefícios se expressam através de uma diminuição do uso de serviços médi cos em geral e uma redução do tempo de hospitaliza ção com consequente queda dos custos hospitalares Kornfeld em excelente revisão publicada em 2002 com base em estudos desenvolvidos por inter consultores em várias áreas da prática profissional em hospitais gerais destacou algumas das conquis tas avanços e benefícios que a Interconsulta trouxe para a prática médica mudanças nos procedimentos das cirurgias de catarata para evitar os quadros de delirium que os interconsultores verificaram estar associados a privação sensorial induzida pelos procedimentos pósoperatórios mudanças na estrutura física e nos procedimentos das UTIs para prevenir a ocorrência de delirium pois também foi verificado que certas condições ambientais e determinados procedimentos esti mulavam sua ocorrência na área de transplantes de órgãos importantes contribuições foram desenvolvidas com relação à avaliação préoperatória e a previsão da capaci dade de adesão do paciente aos procedimentos e aos cuidados necessários para a vida após o trans plante em relação ao estresse ocupacional durante o treinamento na residência médica estudos de senvolvidos por interconsultores sobre a privação do sono em residentes de primeiro ano contri buíram para a implementação de mudanças na forma pela qual os residentes são formados e na prevenção de riscos para a segurança dos pacien tes Ainda que seja difícil avaliar sua efetividade Cítero et al 2002 2008 Andreoli et al 2003 há uma tendência entre profissionais que trabalham em serviços de IC de hospitais gerais a considerar que a Interconsulta melhora a qualidade da assistência dis pensada ao paciente embora em alguns casos possa eventualmente aumentar o tempo de internação Es tudo realizado com médicos que solicitaram pedidos de IC mostrou que os solicitantes estavam satisfeitos com o atendimento dado pelos interconsultores An dreoli et al 2002 ESTRUTURAÇÃO E ORGANIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE INTERCONSULTA Com o objetivo de manter e aprimorar os be nefícios que o atendimento em interconsulta propor ciona aos pacientes e familiares aos médicos e aos hospitais alguns pontos importantes devem ser con siderados como por exemplo aspectos relativos ao registro de dados Andreoli et al 1996 ao se es truturar um serviço de Interconsulta NogueiraMar tins 1993 NogueiraMartins e Botega 1998 Botega e NogueiraMartins 2002 2006 Uma característica básica e fundamental do tra balho em Interconsulta é a natureza aguda dos pro blemas no Hospital Geral Os estados confusionais agudos são exemplos eloquentes Outro aspecto a ser aqui considerado é que a decisão de pedir ajuda ao psiquiatra pode ter sido postergada ao máximo Ocorre então que essa decisão pode ser tomada num momento em que o médico já atingiu seu limite de suportar a angústia desencadeada por uma situa ção Quando solicita a Interconsulta quer a presença urgente do psiquiatra pois urgente é sua aflição A Interconsulta portanto deve ser considerada uma si tuação emergencial o serviço deve dispor de uma es trutura que possa atender à demanda com rapidez Dada a velocidade com que os fatos se sucedem no hospital geral impõese um acompanhamento diá rio das situações Não é raro que ao atender um pa ciente em determinada unidade o interconsultor en contre no dia subsequente mudanças significativas na situação A morte do paciente a piora do quadro clínico com transferência para a UTI a realização de uma cirurgia em caráter emergencial a alta hospita lar por decisão médica ou por solicitação do paciente são alguns exemplos relativamente frequentes É importante ressaltar que uma Interconsulta não termina quando o paciente vem a falecer As cir cunstâncias em que o óbito ocorreu devem ser pes quisadas assim como as repercussões e os desdobra mentos desse evento na equipe assistencial Vivências de fracasso ou incompetência profissional acompa nhadas de sentimentos de culpa tendem às vezes a desencadear verdadeiros tribunais em busca dos culpados pelo doloroso evento Em casos de suicídio as repercussões tendem a abranger a instituição como um todo podendose observar um aumento transitó rio do número de pedidos de IC Outra característica vinculada à natureza agu da dos problemas que ocorrem no hospital geral diz respeito à necessidade de decisões rápidas em curtos períodos de tempo Essa questão revestese de signi ficativa importância econômica dado o alto custo de uma hospitalização Muitos esforços têm sido feitos no sentido de diminuir este custo Assim o pronto Psicossomaticaindd 229 Psicossomaticaindd 229 05012010 121211 05012010 121211 230 Mello Filho Burd e cols atendimento aos pedidos de Interconsulta e o acom panhamento diário contribuem para uma diminuição do tempo de internação com consequente redução de custo A estruturação de um serviço de Interconsulta segundo as premissas anteriores demanda tempo e recursos Recomendase dar prioridade à qualidade do atendimento aos pedidos para progressivamente planejar a extensão e abrangência do serviço Assim sugerese iniciar com uma abrangência limitada a alguns serviços médicos atendendo rapidamente os pedidos iniciais e oferecendo um suporte diário para as eventuais intercorrências As sucessivas experiên cias permitirão elaborar uma reflexão crítica sobre o serviço e planejar a extensão para outras unidades ou serviços médicos A Interconsulta pode contribuir para um me lhor relacionamento entre os profissionais de saúde mental e os outros profissionais da saúde auxilian do na construção de um saber interdisciplinar ou ao contrário pode favorecer a cristalização de estereó tipos Sabendose que há resistências preconceitos e dificuldades em relação à saúde mental uma das premissas que deve nortear a organização e estrutu ração de um serviço de Interconsulta é procurar não aumentálos A FORMAÇÃO EM INTERCONSULTA O interconsultor deve ser um profissional de saúde mental em nosso serviço no Hospital São Paulo trabalhamos com uma equipe multiprofissio nal constituída de psiquiatras psicólogos e terapeu tas ocupacionais com experiência em psicologia médica e ter familiaridade com o trabalho médico em hospitais gerais onde o atendimento se faz em condições especiais via de regra à beira do leito na presença de outros pacientes e com frequentes inter rupções em virtude de sintomas do paciente ou de procedimentos de enfermagem O interconsultor deve em todo atendimento de Interconsulta conhecer as condições clínicas do pa ciente bem como estar informado sobre o uso atual e recente de medicamentos visando nortear a eventual administração de terapêutica psicofarmacológica Um aspecto importante a ser considerado pelo interconsultor diz respeito às reações que o contato com o ambiente hospitalar provoca O receio de con trair doenças o convívio com pacientes que causam repugnância o contato com a perspectiva de morte as reações de desespero de pacientes familiares e profissionais são situações difíceis que atualizam nos interconsultores conflitos ligados à escolha da profis são e da especialidade O interconsultor deve também estar atento às eventuais identificações que possa fazer com as pessoas envolvidas em cada situação A importância desta questão está ligada à possibilidade de se iden tificar tanto com os pacientes quanto com os médi cos consultantes As ansiedades geradas no trabalho de Interconsulta podem interferir na percepção dos fenômenos que se pretende examinar Podem por outro lado ser estímulos enriquecedores para o au toconhecimento auxiliando o crescimento pessoal e profissional do interconsultor O interconsultor é um profissional que se intro duz como observador participante de uma situação podendo eventualmente se tornar o depositário de poderosas ansiedades e reagir de forma inapropria da A possibilidade de se identificar maciçamente com pessoas envolvidas na situação é um dos riscos a que está frequentemente exposto Em função dessas características inerentes à ati vidade em Interconsulta recomendase que os profis sionais encarregados do atendimento aos pedidos de Interconsulta no Hospital Geral tenham com quem dividir e encaminhar a solução das suas ansiedades supervisão dos atendimentos e que sejam também estimulados a buscar sua própria terapia Para a formação teórica em Interconsulta há hoje um grande número de publicações nacionais e internacionais Os temas básicos que devem ser de senvolvidos são Botega e NogueiraMartins 2006 O processo de Interconsulta Modelos de ação e estratégias em interconsulta Reações psicológicas ao adoecimento e à hospita lização Temas de relação médicopaciente Síndromes orgânicocerebrais Depressão e ansiedade Paciente terminal Tentativa de suicídio Condições clínicas especiais transplante de ór gãos alterações da imagem corporal UTI vítimas de violência interconsulta com crianças etc Elementos de psicologia e psicopatologia institu cional Abordagens psicoterapêuticas Noções de técnicas grupais grupos Balint grupos de reflexão etc Uso de psicofármacos no hospital geral Saúde mental dos profissionais da saúde Como temas complementares devem ser desta cados os estudos a respeito da natureza das ansieda des no trabalho em hospitais gerais e temas correlatos como as características da dinâmica da relação equipe médica paciente internado família as vicissitudes Psicossomaticaindd 230 Psicossomaticaindd 230 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 231 do exercício profissional em saúde e os mecanismos psicológicos adaptativos e desadaptativos dos profis sionais da área da saúde NogueiraMartins 1995 2005 2006 INTERCONSULTA AMANHÃ A despeito das diversas dificuldades que o traba lho de interconsultoria propõe as perspectivas conti nuam promissoras O campo oferece ao interconsultor a possibilidade de ampliar sua formação profissional seja no âmbito da observação dos fenômenos ligados ao adoecer seja no campo da psicologia e da psico patologia individual grupal e institucional assim como no aprendizado das complexas interações entre os fatores biológicos e psicossociais que coexistem no ser humano Esse trabalho representa também uma rara oportunidade para profissionais da área de saúde mental psiquiatras psicólogos terapeutas ocupa cionais assistentes sociais conhecerem a intimida de das instituições assistenciais e a possibilidade de desenvolvimento de pesquisas na área da otimização dos recursos humanos no trabalho assistencial e na organização dos serviços de saúde Ao atender a um pedido de consulta no hospi tal geral um interconsultor além de conhecer me lhor do ponto de vista clínico um grande número de doenças tem acesso a situações inusitadas com características que às vezes nunca supusera existir Ao conhecer a intimidade organizacional dos serviços médicos e as peculiaridades microinstitucionais es tará aparelhado a poder estabelecer com maior pro priedade as relações entre as políticas de educação saúde e assistência Em seu amanhã os interconsultores têm pela frente algumas tarefas e desafios aprimoramento dos estudos científicos ênfase especial deverá ser dada ao desenvolvimento de instrumentos de avaliação do impacto do trabalho em interconsulta melhoria das estratégias de intervenção e extensão de seu campo de ação à atenção primária além dos muros do hos pital geral Botega 2006 2007 Cítero et al 2002 2008 De Marco et al 2007 Casos clínicos UMA INTERCONSULTA O CONTEXTO INSTITUCIONAL E AS VICISSITUDES DA TAREFA MÉDICA Uma interconsulta IC é solicitada para o atendimento de um paciente internado em uma unidade da Clínica Médi ca A médica residente R1 que solicitou a IC informa que o paciente havia sido internado em função de um quadro caracterizado por febre emagrecimento e queixas respira tórias que tivera início há cerca de três meses o paciente havia passado por outros serviços médicos sem que fosse estabelecido um diagnóstico Segundo ela as imagens do raioX de tórax eram suges tivas de uma pneumopatia por micoplasma Em resumo do ponto de vista clínico tratavase de um caso de pneumopa tia a esclarecer e as investigações prosseguiam No terceiro dia de internação o paciente subitamen te ficou agitado falando coisas desconexas havia saído da enfermaria caminhando pelo corredor desorientado não reconhecendo o próprio pai Em função desse quadro a re sidente havia solicitado a consulta à Psiquiatria Seguindo a sistemática do nosso serviço após o contato com a médica consultante o interconsultor um residente de Psiquiatria que estava em final de estágio no serviço de IC dirigiuse ao leito do paciente À beira do leito havia um senhor e no leito um jovem negro emagrecido sono lento vestes desalinhadas que balbuciava algumas palavras inaudíveis e ininteligíveis com fala algo pastosa O exame psíquico sinteticamente revelou um estado de obnubilação da consciência lentificação e incoerência do pensamento desorientação temporoespacial e comprometimento im portante da atenção espontânea e voluntária Reunindo os dados clínicos fornecidos pela médica e os dados psicopatológicos encontrados no exame psíquico o interconsultor construiu um diagnóstico sindrômico estado confusional agudo decorrente de provável quadro cérebro orgânico Após fazer uma sucinta anamnese com o pai do pacien te aquele senhor que estava no quarto o interconsultor volta a procurar a médica que havia solicitado a IC Transmi telhe sua impressão diagnóstica e levanta a hipótese de um eventual quadro de abscesso cerebral Assinala também que tinha a impressão de que o paciente era usuário de drogas apesar de esse uso ter sido negado de forma categórica pelo pai Em função dessa impressão discutiu com ela a possibi lidade de pedir um exame HIV relatandolhe o caso de um paciente com quadro semelhante que atendera recente mente na enfermaria de Moléstias Infecciosas que estava com toxoplamose cerebral A médica disse que já havia solicitado pedido de con sulta à Neurologia e que achava adequado solicitar o exa me HIV Quanto ao uso de psicofármacos o interconsultor recomendou o uso de neuroléptico Haloperidol em dose baixa e forneceu orientações sobre o manejo de pacientes com delirium fornecer dados que facilitem a orientação têmporoespacial identificarse sempre e explicar detalha damente todos os procedimentos a serem realizados ao final comunicou que retornaria na manhã seguinte Na supervisão realizada logo após o atendimento do pedido o interconsultor relatou a situação Mostravase relativamente tranquilo acreditando ter elaborado raciocí nio clínico correto e satisfeito em poder ajudar sua colega e colaborar com o atendimento do paciente Supunha que a Neurologia iria indicar uma tomografia e que a partir daí seria estabelecida uma conduta clínica ou cirúrgica À noite o psiquiatra de plantão no PS foi chamado para atender o paciente e na manhã seguinte foram feitos no Psicossomaticaindd 231 Psicossomaticaindd 231 05012010 121211 05012010 121211 232 Mello Filho Burd e cols vos pedidos de consulta tanto por escrito como por tele fone Um desses telefonemas havia sido da diretoria clínica do hospital que solicitava com urgência a presença de um psiquiatra na unidade Dadas as circunstâncias e na ausên cia do interconsultor que estava atendendo outro pedido o supervisor professor do Departamento de Psiquiatria que havia supervisionado o caso dirigiuse à enfermaria Em contato com a médica residente que estava cui dando do paciente o supervisor soube que no dia anterior após a consulta da Psiquiatria a Neurologia havia feito uma avaliação e indicara uma tomografia de crânio que no en tanto não fora ainda possível realizar Referiu também que a família estava se queixando da demora da realização do exame e da não melhora do estado do paciente O exame psíquico do paciente permanecia compatível com a hipótese de um quadro confusional agudo Foram reafirmadas verbalmente e por escrito as orientações e a conduta Ao deixar a unidade o supervisor se percebia preocu pado Uma significativa ansiedade circulava no ambiente Ela se expressava nos gestos da residente nos seguidos pedidos de consulta no telefonema da direção clínica do hospital no olhar desconfiado do pai do paciente A seguir supervisor e interconsultor se reuniram e trocaram impressões O interconsultor não compreendia o porquê daquele alvoroço e sentiase injustiçado Havia atendido prontamente o pedido fizera um diagnóstico cor reto e dera orientação verbal e por escrito Afinal o que querem de mim desabafou Nesse encontro supervisor e interconsultor compartilharam algumas impressões e am bos destacaram um fato que lhes chamara a atenção o pai do paciente tinha se apresentado como sendo funcionário de uma pessoa muito conhecida ligada aos meios de comu nicação e durante as entrevistas fizera questão de enfatizar esta condição mais de uma vez Uma indagação básica se impunha o que haveria de es pecífico e particular nesta situação que mobilizara tanto a equipe médica e a família do paciente Para a construção do diagnóstico situacional referen te a essa IC serão considerados dois níveis o macroscópico e microscópico Do ponto de vista macroscópico os diferentes atores desta cena institucional estão inseridos em um ambiente social A articulação dos fatos desta novela institucional foi reconstruída e os papéis dos diferentes atores foram se tor nando mais transparentes 1 A internação deste paciente havia sido intermediada por uma conhecida personalidade da mídia televisiva junto à direção do hospital o que transformava esse paciente em alguém especial alguém que tinha um padrinho importante 2 Esse tipo de internação costuma despertar sentimentos de insatisfação nos residentes que reagem com ironia apelidandoos de pacientes VIPs ou particuloides 3 O pai do paciente por sua vez não perdia uma oportuni dade para alardear sua condição de funcionário de fulano de tal e desde início do quadro confusional do filho ma nifestava desconfiança quanto ao tratamento levantando dúvidas sobre o que os médicos teriam feito com o seu filho que segundo suas palavras sempre fora normal 4 Em um contexto social caracterizado pelo crescente au mento de processos éticodisciplinares e judiciais o medo de errar amplificava a ansiedade da equipe médica 5 A demora na realização da tomografia aumentou a inse gurança e o medo A pressão familiar aumentava O pai do paciente passava das ameaças veladas para a culpabi lização direta a equipe médica obrigada a engolir uma internação tinha ainda que suportar acusações e tratar de um paciente de difícil manejo No nível microscópico da dinâmica interna da inter consulta merecem destaque os seguintes aspectos 1 Um paciente com alteração de comportamento confu so e agitado em uma unidade clínica desperta angústia e provoca muitos problemas no funcionamento rotineiro do serviço É natural portanto que ao solicitar consulta à Psiquiatria o médico clínico espere a adoção de uma conduta que atenue os distúrbios comportamentais do paciente preferentemente por meio do uso de medica mentos sedativos contenção química 2 Neste caso que ressaltese é classificado na categoria de casos de difícil manejo o psiquiatra ao contrário do esperado além de não sedar o paciente formulou uma hipótese de um quadro cérebroorgânico abscesso ce rebral 3 A elaboração de um diagnóstico de doença orgânica por um psiquiatra talvez tenha sido sentido pela médica clíni ca como uma ameaça à sua competência profissional ou como ação inapropriada invadir seara alheia 4 Além de elaborar uma hipótese de abscesso cerebral a ação profissional do interconsultor contribuiu para des vendar uma realidade que a família do paciente tentava negar O exame HIV revelouse positivo e a tomografia mostrou uma massa compatível com toxoplasmose ce rebral Segundo a família o paciente era um bom menino que havia sido internado por causa de uma pneumonia adquirida em um outro hospital e que ficara doente da cabeça devido a algum erro médico durante a atual in ternação Era muito difícil aceitar a ideia de um filho com AIDS e provavelmente usuário de drogas Este diagnóstico situacional é uma hipótese que per mite tentar compreender porque uma atuação profissional do interconsultor tecnicamente correta em relação à for mulação diagnóstica e orientação do caso provocou tantas reações adversas O caso acompanhado com a Neurologia apresentou uma boa evolução com a instituição de tratamento medi camentoso específico para toxoplasmose o que contribuiu sobremaneira para atenuar os medos ansiedades e descon fortos de todos os envolvidos incluídos os membros do serviço de IC Vale ressaltar as angústias que experimenta o intercon sultor ao atender um paciente com quadro de delirium Se por um lado a elaboração do diagnóstico é relativamente fácil já o manejo terapêutico apresenta às vezes graus variáveis de dificuldade em especial quanto ao uso de psi cofármacos pois há o potencial risco de produzir sedação excessiva com eventual comprometimento de parâmetros do estado de consciência Psicossomaticaindd 232 Psicossomaticaindd 232 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 233 REFERÊNCIAS Andreoli PBA Peluso ET Andreoli SB NogueiraMartins LA Padronização e informatização de dados em serviço de intercon sulta médicopsicológica de um hospital geral Revista ABPAPAL 19961838994 Andreoli PBA Avaliação dos programas assistenciais em intercon sulta psiquiátrica Dissertação Mestrado Escola Paulista de Medicina Universidade Federal de São Paulo 1998 Andreoli PBA NogueiraMartins LA Mari JJ Satisfação do usu ário médico com um serviço de interconsulta psiquiátrica e psicoló gica Psiquiatria na Prática Médica 2002 344100105 Andreoli PBA Cítero VA Mari JJ A systematic review of the cost effectiveness studies in mental health consultationliaison interven tions at general hospital Psychosomatics 2003 44499507 Botega NJ No Hospital Geral lidando com o psíquico encami nhando ao psiquiatra Tese de Doutorado Universidade Estadual de Campinas Campinas São Paulo 1989 Botega NJ Encaminhamento ao psiquiatra e funcionamento insti tucional Revista ABPAPAL 1991 131 2731 Botega NJ Cassorla RMS Encaminhamentos ao psiquiatra e rela ção médicopaciente uma análise qualitativa dentro de um referen cial psicodinâmico Revista ABPAPAL 1991132 5358 Botega NJ Consultationliaison psychiatry in Brazil psychiatric resi dency training General Hospital Psychiatry 1992 143186191 Botega NJ Dalgalarrondo P Saúde mental no hospital geral es paço para o psíquico São Paulo Hucitec 1993 Botega NJ Pereira WAB Bio MR Garcia Jr C Zomignani MA Psychiatric morbidity among medical inpatients a standardized assessment GHQ12 and CISR using lay interviewers in a Bra zilian hospital Social Psychiatry and Psychiatry Epidemiology 1995 30127131 Botega NJ Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral Campi nas Papirus 1995 Botega NJ Schechtman A Censo Nacional de Unidades de Psi quiatria em Hospitais Gerais I Situação Atual e Tendências Revis ta ABPAPAL 1997 1937986 Botega NJ Psiquiatria no hospital geral histórico e tendências In Botega NJ org Prática psiquiátrica no hospital geral intercon sulta e emergência Porto Alegre Artmed 2006 Botega NJ Interconsulta Psiquiátrica fatores presentes na relação entre especialistas In Guimarães KBS Saúde mental do médico e do estudante de medicina São Paulo Casa do Psicólogo 2007 Cítero VA Descrição e avaliação da implantação do Serviço de In terconsulta Psiquiátrica no Centro de Tratamento e Pesquisa Hospi tal do Câncer AC Camargo Dissertação Mestrado Escola Pau lista de Medicina UNIFESP São Paulo 1999 Cítero VA Andreoli SB NogueiraMartins LA Lourenço MT In terconsulta psiquiátrica e oncologia interface em revisão Psiquia tria na Prática Médica 2000 331013 Cítero VA De Marco MA NogueiraMartins LA Por que é tão difícil avaliar a efetividade da interconsulta psiquiátrica Revista Brasileira de Psiquiatria 2002 242100 Citero VA NogueiraMartins LA Lourenço MT Andreoli SB Clinical and demographic profile of cancer patients in a CL psychia try service São Paulo Medical Journal 2003 121111116 Cítero VA Identificação de medidas subjetivas como possíveis in dicadores clínicos de efetividade de serviços de interconsulta psiqui átrica em hospital geral Tese Doutorado Escola Paulista de Medicina UNIFESP São Paulo 2005 Cítero VA Andreoli PBA NogueiraMartins LA Andreoli SB New potential clinical indicators of consultationliaison psychiatry effectiveness at Brazilian general hospitals Psychosomatics 2008 4912938 De Marco MA Interconsulta In A face humana da Medicina do modelo biomédico ao modelo biopsicossocial São Paulo Casa do Psicólogo 2003 De Marco MA Cítero VA NogueiraMartins LA Revisando con ceitos o papel da psiquiatria moderna no hospital geral e na aten ção primária Revista Brasileira de Psiquiatria 2007 29188 Ferrari H Luchina N Luchina IL La interconsulta médico psicológica en el marco hospitalario Buenos Aires Nueva Vision 1971 Ferrari H Luchina N Luchina IL Asistencia Institucional Nue vos desarrollos de la interconsulta médicopsicológica Buenos Ai res Nueva Vision 1979 Fortes JRA Miguel Filho EC Ramadam ZBA Arruda PV Psi quiatria e Medicina Interna São Paulo Astúrias 1988 Fraguas Jr R et al Major depressive disorder and comorbid car diac disease is there a depressive subtype with greater cardiovas cular morbidity Results from the STARD study Psychosomatics 2007 48541825 Furlanetto LM Depressão em pacientes em hospital geral Disser tação Mestrado Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 1995 Furlanetto LM von Ammon Cavanaugh S Bueno JR Creech SD Powell LH Association between depressive symptons and mor tality in medical inpatients Psychosomatics 2000 415426 432 Furlanetto LM Da Silva RV Bueno JR The impact of psychiatry morbidity on lengh of stay of medical inpatients General Hospital Psychiatry 2003 251149 Hales RE The benefits of a Psychiatric ConsultationLiaison Service in a General Hospital General Hospital Psychiatry 1985 7214218 Huyse FJ et al ConsultationLiaison psychiatric service delivery results from a European study General Hospital Psychiatry 2001 233124132 Kornfeld DS Consultation LiaisonPsychiatry contributions to medical practice American Journal of Psychiatry 2002 15912196472 Levitan SJ Kornfeld DS Clinical and cost benefits of liaison psychia tric American Journal of Psychiatry 1981 1386790793 Lipowski ZJ ConsultationLiaison Psychiatry the first half cen tury General Hospital Psychiatry 1986 8305315 Lipowski ZJ History of consultationliaison psychiatry In Wise MG Rundell JR Textbook of consultationliaison psychiatry Wa shington American Psychiatric Press 1996 Mello Filho J Concepção Psicossomática Visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1978 Mello Filho J Identidade Médica São PauloCasa do Psicólogo 2006 Mello Filho J Psicossomática Hoje Porto Alegre Artes Médicas 1992 Mello Filho J Isaac Luchina e a interconsulta médicopsicológica In Branco RFGR org A relação com o paciente teoria ensino e prática Rio de janeiro Guanabara Koogan 2003 Miguel Filho EC Ramadam ZBA Malbergier A Souza DG In terconsulta psiquiátrica no Brasil São Paulo Astúrias 1990 Mumford E et al A new look at evidence about reduced cost of medical utilization following mental health treatment American Journal of Psychiatry 1984 1411011451158 NogueiraMartins LA Frenk B Atuação do profissional de saúde mental no hospital geral a interconsulta médicopsicológica Bole tim de Psiquiatria 1980 13143037 Psicossomaticaindd 233 Psicossomaticaindd 233 05012010 121211 05012010 121211 234 Mello Filho Burd e cols NogueiraMartins LA Tarefa médica e interconsulta médicopsico lógica em um hospital universitário Boletim de Psiquiatria 1984 173108111 NogueiraMartins LA Consultoria psiquiátrica e psicológica no hospital geral a experiência do Hospital São Paulo Revista ABP APAL 1989 114160164 NogueiraMartins LA De Marco MA Manente MLF Noto JRS Bianco SM Dilemas éticos no hospital geral Boletim de Psiquia tria 1991 24122834 NogueiraMartins LA Interconsulta Hoje In Mello Filho J org Psicossomática Porto Alegre Artes Médicas 1992 NogueiraMartins LA Ensino e formação em interconsulta Revis ta ABPAPAL 1993 1526874 NogueiraMartins LA Residência Médica um estudo prospectivo sobre dificuldades na tarefa assistencial e fontes de estresse Tese Doutorado Escola Paulista de Medicina São Paulo 1994 NogueiraMartins LA Os beneficiários da interconsulta psiquiátri ca Boletim de Psiquiatria 1995 2812223 NogueiraMartins LA Vicissitudes do exercício da medicina e saúde psicológica do médico Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabolismo 1995 3934188193 NogueiraMartins LA Residência Médica estresse e crescimento São Paulo Casa do Psicólogo 2005 NogueiraMartins MCF Humanização das relações assistenciais a for mação do profissional de Saúde São Paulo Casa do Psicólogo 2004 Sampaio AP Serviço psiquiátrico do hospital geral de ensino Neu robiologia 1956 19127282 Shavitt RG Busato Filho G Miguel Filho EC Interconsulta psi quiátrica conceito e evolução Revista Paulista de Medicina 1989 1072108112 Strain JJ et al Cost offset from psychiatric consultationliaison in tervention with elderly hip fracture patients American Journal of Psychiatry 1991 148810449 Psicossomaticaindd 234 Psicossomaticaindd 234 05012010 121211 05012010 121211 A dor e o medo são provavelmente os mais pri mitivos sofrimentos do homem diante dos quais ao contrário do que ocorria com o frio e a fome ele fica va totalmente impotente Os sinais de dor ultrapassam os limites da histó ria e segundo Bonica 1990 a descoberta de esque letos humanos préhistóricos revelou em muitos deles sinais de enfermidades geradoras de dor Apesar de coeva com a raça humana os mistérios que envolviam a verdadeira natureza da dor só começa ram a ser desvelados no último século Digase contu do e como exaltação ao espírito altruístico do homem que os recursos para aliviar a dor precederam de milê nios o entendimento do seu mecanismo Assim o papi ro Ebers 1500 aC incluía muitos remédios entre eles o ópio prescrito por ISIS para as cefaleias de RA Placas de argila encontradas na Babilônia e datadas de 2250 aC descreviam o emprego de uma amálgama formada de sementes de meimendro e argamassa que colocada na cavidade de um dente cariado fazia passar a dor Aristóteles discípulo de Platão e considerado um gênio ainda não ultrapassado considerava a dor e o prazer como paixões da alma excluindoa dos sentidos Para ele o cérebro não tinha função direta no processo sensitivo a localização da percepção sen sorial centralizavase no coração ou por ele chamado sensorium comune sede também de todas as funções fundamentais da vida e ainda lócus da alma Bonica 1990 Mas nem todos aceitavam as ideias do sábio macedônio quanto à função subalterna do cérebro como Theophrastus 372287 aC mas Galeno que viveu entre 131 e 200 dC que começando o estu do experimental de visão anatômica direta mostrou que o centro da sensibilidade era o cérebro ligado ele a diferentes nervos periféricos que conduziriam sensações específicas ibidem Apesar disso a concepção de Aristóteles a dor como uma paixão da alma foi aceita por mais de 2000 anos e constituiu um fator de monta no atraso das pesquisas fisiológicas e psicológicas sobre a natu reza do fenômeno doloroso A partir da metade do século XIX a dor come çou a ser investigada por fisiologistas e discutida em laboratórios e os resultados obtidos nesse campo levantaram uma celeuma entre fisiologistas de um lado e psicólogos e filósofos de outro cada grupo querendo dar uma explicação única cabal e definiti va para o fenômeno A massa dos trabalhadores de pesquisa favore ceu aos fisiologistas e a teoria da dor como sensação foi aceita de maneira geral inclusive pelos psicólo gos no começo do século passado e dessa forma a opinião tradicional defendida pelos filósofos foi pos ta de lado Bonica 1953 Cabe registrar todavia que René Decartes 15961650 autor de L Homme que pode ser con siderado o primeiro manual de fisiologia descreveu a relação entre o cérebro os nervos periféricos e a captação das sensações inclusive a dor afastandose assim do sensorium comune aristotélico Foi como Galeno um precursor Com o desenvolvimento da neurofisiologia o componente emocional da dor foi deixado de lado Mas o pêndulo tinha ido longe demais e vários es tudos no século XX voltaram a considerar o quanto existia de psicológico na sensação dolorosa manten dose porém a dualidade entre sensação e reação emocional Merskey e Spear num lúcido artigo 1967 ana lisaram essa dicotomia e propuseram uma definição mais abrangente da dor que fundamenta o conceito estabelecido em 1979 pela Associação Internacional para Estudos da Dor IASP Para a IASP a dor é uma experiência desagra dável sensitiva e emocional associada com lesão real ou potencial dos tecidos ou discreta em termos dessa lesão Merskey 1982 Como diz Kanner 1998 essa definição pode conter certa circularidade mas ela coloca explicita mente a importância do componente subjetivo da dor e talvez seja esta sua maior valia Em outros ter mos sempre existe dor quando alguém se queixa de 17 O PROBLEMA DA DOR Oly Lobato Psicossomaticaindd 235 Psicossomaticaindd 235 05012010 121211 05012010 121211 236 Mello Filho Burd e cols dor com exceção dos simuladores haja ou não um estímulo nociceptivo reconhecido Dentro desse contexto o que significa dor O que expressa ela Como diz Andrew Sims 2001 certamente o significado da dor é mais que a dor por si só e amiúde é razão para a sensação ser interpre tada como sofrimento Szasz Strain 1975 de forma algo pragmá tica fala que a simbolização da dor ocorre em três níveis no primeiro ela constitui um sinal registrado pelo ego de que se acha ou parece se achar em curso uma ameaça à integridade estrutural e funcional do organismo num segundo nível ao verificarse que a experiência pode ser repartida isto é comunicada a alguém transformamna num meio básico de pedir ajuda num terceiro e último plano a dor não mais denota uma referência ao corpo mas pode isto sim expressar queixa ataque aviso de perda iminente do objeto Neste último nível de simbolização a dor pode ser utilizada como forma de manipular os ou tros ganhar o controle sobre eles Ainda num outro plano seria uma forma de aliviar a culpa por algu ma falta real ou imaginária que teria sido cometida Bond 1984 A dor pode às vezes constituir uma solução neurótica para um conflito e como tal ser assim mantida Sims 2001 e cita Trethoven tal paciente não está sofrendo de dor ele está sofrendo do sofri mento Desde o Velho Testamento a dor foi considera da como castigo para os pecadores e uma provação para os justos A ideia de punição fica bem expressa no Gênesis 316 quando Eva recebeu o veredicto multiplicarei grandemente a tua dor e tua concep ção com dor parirás os filhos No livro de Job a fé do justo é provada com dor pela grandeza da força das dores se demudou meu vestido e ele como o cabeção da minha túnica me cinge 3117 Com o advento do Cristianismo a dor foi vista de maneira definitiva como forma de iluminação ou de obtenção de graças e até como sacramento Bo nica 1953 A palavra latina poena e grega poiné am bas significando castigo ou punição deram origem ao termo inglês pain mostrando a conotação entre dor e castigo Bond 1984 Bonica diz com razão que como a dor foi sa cralizada e considerada como boa para a alma seja queimase o corpo para salvar a alma se a retirou das pesquisas científicas e qualquer atitude destinada a abolir tal sofrimento era desencorajada Com isso o entendimento do problema foi retardado Não foi em vão que Dante no inferno colocou em cada cír culo uma variedade de pecado e uma corresponden te forma de castigo que implicava uma dor Loteiko 1909 Mas a dor não apresenta somente aspectos nega tivos Como acima visto ela é uma forma de aviso de alarme para o organismo uma espécie de algo está errado comigo Segundo Ripley 1953 as crianças têm boa tolerância à dor e tal fato é importante pois os frequentes traumatismos que lhes ocorrem são ne cessários no processo normal de desenvolvimento Não fosse a dor bem tolerada as crianças ficariam inibidas para a prática de qualquer experiência que resultasse em conhecimento novo e dessa forma sua maturidade seria retardada Nos raros casos de analgesia congênita por não sentirem dor ficam as crianças expostas à múltiplos traumatismos às vezes bastante graves Figueiró 2000 Por outra parte e em termos práticos a dor é o sintoma mais comum em medicina clínica surgindo em torno de 75 a 80 das pessoas que procuram o Sistema de Saúde Figueiró 2000 Estimase que a dor crônica ocorra em 30 a 40 da população brasi leira e que seja a principal causa de falta ao trabalho licença médica aposentadoria por doença indeniza ção trabalhista e baixa produtividade ibidem NEUROFISIOLOGIA DA DOR A neurofisiologia tem progredido tanto nas úl timas décadas desde que Melzack e Wall desenvol veram em 1965 a sua célebre teoria do portão e Hunghes revelou a importância dos opioides endóge nos em 1975 que se torna difícil ao não especialis ta dominar seus múltiplos aspectos Eximiremonos portanto de abordar o assunto e sugerimos ao leitor interessado algumas revisões Harvey 1987 Brose e Spiegel 1994 e em nosso meio os excelentes ar tigos de Ferreira e Torres 2003 e no mesmo texto a revisão sobre neuroplasticidade de Arteni e Alexan dre Netto Há todavia algumas noções ligadas à neuro fisiologia que são pertinentes à dor experimental mas que servem para explicar alguns aspectos da experiên cia dolorosa em nível clínico São elas o limiar fisiológico o limiar de tolerância e a resistên cia à dor O limiar fisiológico estável de um indivíduo para outro pode ser definido como o ponto ou o momento em que um dado estímulo é sentido como doloroso Quando se usa o calor como fator de esti mulação o limiar doloroso situase em torno dos 44º Strain 1975 não só para o homem como também para diferentes mamíferos símios ratos Limiar de tolerância é o ponto em que o estí mulo atinge tal intensidade que não pode mais ser Psicossomaticaindd 236 Psicossomaticaindd 236 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 237 Origem periférica Superficial cutânea Profunda somática e visceral Referida Origem central Dor central desaferentação Psicogênica QUADRO 171 Classificação das dores Bonica 1953 aceitavelmente tolerado Janowsky 1976 e na ex periência acima alcançada os 48º A importância prática do conhecimento do limiar da dor está no fato de que ele pode ser ele vado diminuindo a dor pelo sono pelo repouso pela simpatia pela compreensão pelo carinho pela distração pela redução da ansiedade e pelo estres se pela música etc Ao contrário o limiar pode ficar mais baixo aumento da dor por múltiplos fatores estresse desconforto fadiga ansiedade medo rai va tristeza solidão etc Pavani 2000 Resistência à dor seria a diferença entre os limites É também modificada por traços culturais emocionais e ao sis tema límbico cabe a modulação da resposta compor tamental Harvey 1987 Outra noção importante é a da expressão da dor isto é a forma pela qual a dor experiência que pode ser dividida é comunicada pelo paciente A comuni cação pode ser verbal ou não verbal e incluir gestos gemidos atitudes posições analgésicas etc Um clássico trabalho de Mark Zborowski 1952 mostra o quanto a expressão da dor está li gada a fatores culturais Para esse autor nas socie dades humanas a dor como tantos outros fenôme nos fisiológicos adquire um significado cultural e social bem específico e certas reações a ela podem ser entendidas à luz desse significado Assim ele comparou a forma como judeus italianos e ameri canos old americans expressavam a dor causada por doen ças neurológicas principalmente hérnias discais e outras lesões vertebrais Os judeus e ita lianos mais livres na expressão de suas emoções menos contidos demonstravam seu sofrimento de forma mais veemente que os americanos Naqueles diferentemente destes últimos a ex pressão pública das emoções não era tão mal vista como nos americanos educados dentro de um auto controle que os levava a minimizar a dor evitar quei xas ou despertar piedade Sternbach 1977 pensa que além dos aspectos culturais traços pessoais também influem os extro vertidos manifestam suas dores de modo mais livre e imediato que os introvertidos Os fatos acima expostos mostram que mesmo sendo a dor um fenômeno universal cada um de nós sente e expressa suas dores de forma muito pessoal cremos que sem exagero se poderia dizer que nós somos as nossas dores CLASSIFICAÇÃO DAS DORES Toda classificação é um tanto formal e esque mática mas como existem certas características fi siopatológicas e clínicas que distinguem alguns tipos de dor parecenos útil expor as classificações exis tentes Uma primeira é usada por Bonica no seu monu mental tratado sobre o manejo da dor 1953 e que ao considerar a origem do estímulo nociceptivo divi de as dores em periféricas centrais e psicogênicas As dores superficiais originadas na pele carac terizamse por serem em picada ou em ardência e sua localização é bem definida A única dor profun da em ardência é a que ocorre no refluxo gastre sofágico Porto 1981 As dores profundas do tipo somático incluem as originadas em músculos ossos articulações vasos etc Elas como as dores viscerais têm um caráter dolente e são bem menos localizadas que as superficiais A dor referida expressa classica mente uma dor profunda sentida longe do seu local de origem Nas dores centrais a disfunção que inicia a expe riência dolorosa localizase em zonas do sistema ner voso central ou periférico Segundo Tasker 1984 o termo dor por desaferentação designa um descon forto surgido ou em qualquer parte do corpo de onde os impulsos nervosos aferentes tenham sido parcial ou totalmente interrompidos Tal fato pode resultar de lesões dos nervos periféricos como na nevralgia pósherpética ou a dor do membro fantasma ou ser consequente a alterações situadas em níveis mais al tos do sistema nervoso incluindo lesões de medula espinhal ou doenças vasculares do tronco cerebral A dor psicogênica para Bonica é aquela em que nenhuma lesão orgânica pode ser encontrada A segunda classificação divide as dores em agu das e crônicas agudas são as dores que todos conhe cem de curta duração minutos horas dias nas crônicas ultrapassaria de quatro a seis meses Ster nbach 1977 Bonica 1990 não aceita a duração como critério único para caracterizar a dor crônica Seus argumentos são bastante razoáveis mas não modificaram a tradição Esta como se viu é um tanto convencional mas como a etiologia fisiologia diag Psicossomaticaindd 237 Psicossomaticaindd 237 05012010 121211 05012010 121211 238 Mello Filho Burd e cols Duração Aguda Crônica Transitória Persistente Significado para o paciente Positivo indica Negativo Positivo lesão ou doença sem propósito útil Obtenção de ganho secundário Traços concomitantes Luta ou fuga Vegetativos Dilatação pupilar Distúrbio de sono Sudorese Anorexia Taquipneia Libido diminuída Taquicardia Constipação Shunting de sangue das vísceras para os músculos Preocupação somática Mudança de personalidade Inibição para o trabalho QUADRO 172 Dor aguda e crônica nóstico e terapêutica dos dois tipos são bastante dife rentes podese justificar a divisão No quadro abaixo tirado de Sylvia Lack 1984 aparecem algumas dessas diferenças Quadro 17 2 Dor aguda As causas de dor aguda são geralmente identifi cáveis e como regra agem através de um dos seguin tes mecanismos 1 lesão mecânica 2 irritação química de tecidos 3 queimadura 4 estresse tecidual como isquemia 5 distensão aguda de vísceras ou de vasos sanguí neos 6 espasmo de músculos lisos Exemplos comuns de dores agudas são as que ocorrem no pósoperatório nos traumatismos exten sos no infarto agudo do miocárdio no trabalho de parto algumas cefaleias obstruções de vísceras ocas e em tantas outras situações clínicas Importantes dentro desse contexto são as dores que poderíamos chamar de catastróficas que se iniciam intensas e assim se mantêm sem alívio como a cefaleia da he morragia subaracnoidea ou a dor do aneurisma dis secante Ainda que conhecida e sentida em algum mo mento da vida por todos nós a experiência de dor aguda é um processo complexo que não se limita à alterações de tecidos mas que põe em jogo toda uma série de mecanismos neurofisiológicos hormonais e emocionais que vão em última análise caracterizar a reação de alarme de Cannon Quadro 173 e preparam o organismo para a ação lutafuga A resposta emocional básica do individuo à dor aguda na medida em que ela representa um evento ameaçador ou como tal interpretado é a ansiedade e todas as reações físicas que a acompanham Como dizem Janowsky e Sternbach 1976 Existem tantas evidências clínicas mostrando a interre lação entre dor e ansiedade que se poderia estabelecer como axioma que a dor aguda produz ansiedade e esta emoção por sua vez potencializa de forma marcada a dor e reduz a tolerância e a resistência ao estímulo nocicéptico Como uma bola de neve na pitoresca expres são de Brose e Spiegel 1994 No dizer de Mindus 1987 as conexões entre o sistema límbico e os lobos frontais explicam o proces so a dor causaria um nível aumentado de ansiedade e esta leva à estimulação autonômica à maior tensão muscular e ao aumento da dor estabelecendose des sa forma um círculo vicioso É assim que na dor aguda os fenômenos somá ticos da ansiedade estão presentes quase de forma completa em particular os que dependem da hipera tividade autonômica tremor palpitações sudorese malestar précordial boca seca polaciúria e urgên cia miccional taquicardia taquipneia elevação da pressão arterial etc Estaria além do propósito desta revisão uma análise dos diferentes meios terapêuticos usados no tratamento da dor aguda No Quadro 173 procura mos esquematizar as várias modalidades terapêuticas usadas no tratamento das dores em geral O que acima foi mostrado serve apenas como referência Uma revisão é encontrada entre ou Psicossomaticaindd 238 Psicossomaticaindd 238 05012010 121211 05012010 121211 Psicossomática hoje 239 por nós é mais frequentemente usado o clonazepan sublingual Uma técnica não farmacológica de aliviar a an siedade é chamada de tranquilização divulgada por Sapira 1972 e ainda que pareça ser demorada pode ser executada em poucos minutos e não exclui outras medicações Quadro 174 DOR CRÔNICA Em termos simples crônica é a dor que dura de quatro a seis meses Mas de fato essa denominação dor crônica abrange muito mais que um sintoma prolongado Expressa uma situação comum em me dicina bastante complexa em termos fisiopatológi cos diagnósticos e especialmente terapêuticos que amiúde põe em cheque o conhecimento e a paciência do médico Não poucas vezes os enfermos com dor crônica são despachados de forma mais ou menos sumária por seus clínicos cansados com as queixas constantes de pessoas que nunca melhoram sejam quais forem os recursos utilizados Não poucos desses enfermos foram submetidos à cirurgias desnecessárias e sua peregrinação de con sultório em consultório constitui uma característica universal Com o passar do tempo a dor tornase o centro da vida do indivíduo e de sua família e passa ela mesma a constituirse como doença É incalculável o montante de tempo e de recur sos gastos com os pacientes de dor crônica DC Nos Estados Unidos a principal causa da incapacidade é Medidas Específicas Tratamento etiológico médico ou cirúrgico hérnia discal ulcera péptica litíase angina Medidas Inespecíficas a Farmacológicas Dores somáticas antiinflamatórios não esteroides paracetamol e associação paracetamolcodeína relaxantes musculares antidepressivos Dores viscerais opioides ou similares anti colinérgicos Dores neuropáticas antidepressivos anti convulsivantes gababentina carbamazepina b Não Farmacológicas Cirúrgicas cirurgia da dor Não cirúrgicas acupuntura estimulação elétrica transcutânea fisioterapia em geral psicoterapia estratégias cognitivocomporta mentais medicamentos QUADRO 173 Tratamento da dor Primeiro Estágio Obter uma detalhada descrição do sintoma Segundo Estágio Evidenciar o significado afetivo do sintoma Terceiro Estágio Examinar o paciente Quarto Estágio Fazer um diagnóstico Quinto Estágio Explicar ao paciente a fisiopatologia do sinto ma Sexto Estágio Tranquilização como resultado dos passos ante riores QUADRO 174 Técnica da tranquilização tras no Current Medical Diagnosis Treatment 20067179 É importante ressaltar a necessidade de se planejar a terapêutica em função da causa da dor e quando isso não for possível o medicamento deve ser escolhido conforme a origem provável do estímulo doloroso Assim seria inadequado usar o AAS para dores viscerais ou codeína para uma dor neuropática etc O uso indiscriminado de produtos comerciais compostos de vários fármacos deve ser condenado Por outra parte para o manejo de alguns tipos de dor aguda o uso de bloqueios nervosos temporá rios ou mais modernamente o de morfina epidural veio substituir em muitos casos e com grandes van tagens o útil mas muitas vezes limitado emprego de analgésicos injetáveis Mais pertinente ao nosso assunto é o manejo da ansiedade que acompanha a dor aguda e que pode por si ser causa de morbidade secundária Uma pri meira modalidade de manejo é se assim se pode chamálo a técnica de informação antecipada Há um relato clássico mostrando que quando se aplica va aos pacientes em préoperatório para cirurgia de vias biliares o que poderiam esperar em termos de dor e malestar durante e após a cirurgia havia uma ponderável redução de números em dias de hospita lização e se conseguia diminuir em 50 as doses de analgésicos utilizados Mindus 1987 O manejo da ansiedade pode também ser feito pelo uso de diazepínicos seja pelo diazepan ou como Psicossomaticaindd 239 Psicossomaticaindd 239 05012010 121211 05012010 121211 240 Mello Filho Burd e cols dor lombar prolongada e a mais comum razão para o absenteísmo ao trabalho Thompson 1998 Confor me Singh 2005 35 dos americanos têm alguma manifestação de dor crônica e calculase que os custos do tratamento médico e dos dias de trabalho perdidos montam cerca de 70 bilhões de dólares por ano No Brasil alguns levantamentos mostram que 48 das consultas num ambulatório ocorrem devi dos à dor Artrose foi o principal diagnóstico e dor lombar foi a mais prevalente Leite e Gomes 2006 Nosso objetivo neste trabalho é o de abordar os principais aspectos da síndrome de dor crônica ressaltando na medida do possível seu manejo diag nóstico e terapêutico Não custa enfatizar que a dor crônica como qualquer situação médica é uma abs tração não há doenças mas doentes Tudo o que se disser sobre DC referese implici tamente ao paciente com dor crônica Parece neces sário de início classificar as dores crônicas levando em conta presença ou ausência de lesão tecidual ou pregressa Sabemos que tal atitude é um tanto arbi trária mas como diz Magni 1987 a dicotomia é permitida quando tratamos de fatores causais Den tro dessa linha de pensamento dividimos as dores em orgânicas e emocionais Quadro 175 Nas dores crônicas nociceptivas há claramente um estímulo doloroso periférico originado em vísce ras em tecidos somáticos As dores neuropáticas re sultam de lesão em algum nível do sistema nervoso central ou periférico Nas dores emocionais não se reconhece a existência de estímulos neuropáticos e ou nociceptivos atuais e pregressos ainda que essa afirmação possa não ser válida para o chamado com portamento de dor ver adiante A classificação é um tanto formal pois existem algumas síndromes dolorosas que podem depender seja de fatores orgânicos seja de causas emocionais é o caso da síndrome de dor pélvica em mulheres Walker 1988 Outras há em que a dor começa como orgâni ca a lesão ou a doença curam mas a dor continua Podemos dizer que nesse caso à medida que passa o tempo mais intervêm os fatores emocionais esta belecendose uma mistura e consequências somáti cas e emocionais permitindo que se diga com toda a propriedade que a dor crônica é a verdadeira dor psicossomática Dores crônicas orgânicas Como já se viu podem ser de dois tipos noci ceptivos e neuropáticos Nas dores nociceptivas há lesão tecidual e estímulos nocivos periféricos somá ticos ou viscerais São dores constantes como regra de caráter dolente bem localizadas no tipo somático mas com localização menos definida e amiúde refe ridas a zonas cutâneas na dor originada em vísceras Payne 1987 Exemplos de dores somáticas são as das metástases ósseas das espondilopatias das artri tes Dores viscerais mais comuns são as que ocorrem em diferentes tipos de neoplasias pâncreas fígado ou em situações benignas como o cólon irritável Num le vantamento feito por correspondência realizado na região oeste do estado de Washington detectouse num período de seis meses a seguinte prevalência na localização das dores lombar cabeça abdominal to rácica e da articulação têmporomandibular Leite e Gomes 2006 As dores neuropáticas por desaferentação são atípicas e muito desagradáveis em queimadura dormência em carne viva Geralmente espontâ neas podem em alguns doentes ser desencadeadas por estímulos não nocivos alodínia ou manifestase como uma resposta anormalmente intensa a estímu los menores hiperpatia Por vezes à dor de fundo associamse sensações paroxísticas de choque ou disparo que não caem dentro de uma região anatô mica definida Harvey 1987 Payne 1987 Podem estar associadas com anestesia e ocasio nalmente com as agora chamadas síndromes com plexas de dor regional tipo I e II que substituem os antigos termos distrofia simpático reflexa CRPS I e causalgia CRPS II a diferença entre os tipos está em que o CRPS I não há lesão nervosa demons trável o contrário do tipo II Cecil 2004 Dores neuropáticas são as observadas nas plexo patias braquiais do câncer de mama e induzidas por lesão cirúrgica metastática ou por radioterapia do plexo braquial Também nas lesões desmielinizantes da medula espinhal associadas amiúde com escle rose múltipla dor do membro fantasma etc É de ressaltar pela frequência a nevralgia pós herpética cuja prevalência nos Estados Unidos é de 200000 casosano Acomete como regra pacientes idosos É definida como a dor que persiste no míni mo três meses após a cicatrização das lesões agudas É dito Rowbotham 2004 que ainda que a reativa ção viral afete patologicamente o gânglio de uma raiz Orgânicas Nociceptivas e Neoplásicas ou neuropáticas Não Neoplásicas Psicofisiológicas Emocionais QUADRO 175 Classificação das dores crônicas Psicossomaticaindd 240 Psicossomaticaindd 240 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 241 dorsal única a área de dor e alodínia ao toque suave pode cobrir mais de 1000 cm2 de pele É provável que nessa como em outras dores por desaferentação haja participação do chamado meca nismo de sensibilização central Tratamento do paciente com dor orgânica crônica O médico que trata pacientes com dor crônica DC deveria responder preliminarmente às seguin tes perguntas antes de prescrever drogas qual o tipo de dor somática como nas artroses Visceral como cólon espasmódico Neuropática como na nevralgia pósherpética Passaria logo a verificar se há indícios de enfer midade dolorosa definida como artrite reumatoide ombro doloroso ou artrose cervical ou de quadril Buscaria depois verificar se existem fatores emocionais sociais especialmente ocupacionais que estejam influindo sobre a dor Assim não caberia prescrever analgésicos para alguém que passe horas digitando mas sim o aconselhamento ao repouso pe riódico e alongamentos adequados Não se pense que isso demandaria tempo exces sivo pois uma história clínica orientada e um exame físico adequado seriam suficientes para obter as res postas pretendidas e o planejamento inicial Sob o ponto de vista emocional é importante obter dados que permitam avaliar se há depressão transtorno de ansiedade abuso ou dependência de drogas eou problemas familiares conjugais ou sexuais Singh 2005 Se há necessidade de se prescrever medicamen tos desde o início parece estabelecido que os antiin flamatórios não esteroides são a primeira medicação ao menos para as dores músculoesqueléticas Entretanto no comum dos casos sendo dor crô nica não parece necessário o uso imediato de drogas até que se analise o problema no seu todo e se possa então tomar uma atitude mais completa Isso tam bém para as dores viscerais em que o medicamento apropriado seria um opioide morfina oxicodona co deína fentanyl etc Logo veremos que todo este último grupo de fármacos tem sua indicação maior no paciente com dor crônica neoplásica Nas dores crônicas neuropáticas as drogas de escolha têm uma conexão direta com seu mecanis mo fisiopatológico Os fármacos comumente usados pertencem a dois grupos antidepressivos e anticon vulsivante Os anticonvulsivantes como a carbamazepina oxcarbazepina gabapentina clonazepan etc são usados para as dores do tipo paroxístico enquanto os antidepressivos têm sua maior indicação nas dores urentes em meia ou luva O tramadol se tem mos trado útil nas dores neuropáticas Digase de passagem que os antidepressivos tricíclicos mas também a fluoxetina e similares in cluindo a venlafaxina mercê de sua ação sobre o sistema descendente modulador da nocicepção têm um papel assegurado em diferentes tipos de dor seja ela somática como na artrite reumatoide ou visceral como em alguns tipos de neoplasias entrando neste último caso como coadjuvante dos opioides Há um relato de uso isolado de diferentes an tidepressivos no tratamento da dor lombar crônica Salerno 2002 Foi feita uma metanálise abrangen do 504 pacientes Houve um efeito pequeno mas sig nificativo na dor e um efeito menos nítido no referen te à melhora funcional Antidepressivos em geral são eficazes no con trole de cefaleias crônicas enxaquecosas ou não Além disso a trazodona é usada como droga profilática na cefaleia da infância Sadock e Sadock 2002 Mas nem só com medicamentos tratamse os enfermos com dor crônica Cada paciente deve ser analisado como um todo e a terapêutica manejada em função deste todo Medidas não farmacológicas são muito úteis No quadro abaixo achamse algumas delas Quadro 177 Incluase o tratamento dos fatores emocionais Aguiar e Caleffi 2003 O efeito analgésico dos antidepressivos diferen temente de sua ação nos transtornos afetivos inicia se dentro de 24 a 48 horas A ideia que fica de diferentes trabalhos é que a dor crônica deveria ser manejada por uma equipe multidisciplinar Isso não parece possível dado o nú mero grande de sofredores de DC e as poucas equipes à disposição dos mesmos Cabe bem aqui o dito evangélico muitos são os chamados poucos os escolhidos O que realmente nos parece é que todo clíni co deveria saber conduzir o tratamento do paciente crônico ao menos em seu início Para isso o ensino da dor em geral deveria receber especial ênfase nos currículos dos cursos de medicina DOR NO PACIENTE COM CÂNCER A dor ocorre em um 13 dos pacientes com cân cer por ocasião do diagnóstico e até 75 dos pacien tes que morrem de câncer experimentam dor Robow e Pontilat 2006 e na maioria deles as dores são múl tiplas Twycross 1984 Num levantamento feito em pacientes com neo plasia avançada constatouse que as três situações Psicossomaticaindd 241 Psicossomaticaindd 241 05012010 121212 05012010 121212 242 Mello Filho Burd e cols que eles mais temiam na evolução e no final de sua doença eram o abandono a dispneia e a dor Cassen 1977 Esses achados justificam que se desenvolva um pouco mais o tratamento da dor no câncer Existem dois princípios fundamentais que de vem ser contemplados na terapêutica desses enfer mos 1 Considerar a dor total 2 Definir tão exatamente o quanto possível o meca nismo determinante da dor O conceito de dor total tem sido desenvolvido por Sylvia Lack 1984 e corresponde ao conjunto de fatores emocionais ambientais e sociais que acres centados ao componente nociceptivo tendem a in crementar e manter a dor a depressão com seus dife rentes componentes a ansiedade originada de várias fontes e a raiva por diferentes motivos De que adian taria elevar o limiar da dor com drogas se o paciente está ansioso pelo seu futuro pelas perdas todas que lhe ocorreram em virtude da doença pelo abandono dos familiares ou amigos pela aparente ineficiência dos médicos e assim por diante Só a consideração global desses diferentes as pectos e sua modificação é que poderiam trazer o controle da dor Dentro desse mesmo contexto está a síndrome da noite vazia Lobato 1982 em que os pacien tes referem uma exacerbação noturna das dores isso quando as visitas se retiram escasseiam as enfermei ras dormem os outros pacientes o movimento cessa as luzes se apagam e o paciente fica sozinho com seu medo e sua dor Não adianta neste momento aumen tar a dose de analgésicos O que o enfermo precisa é de alguém a seu lado tranquilizandoo Quanto à causa da dor no câncer pode haver dor nociceptiva metástase ósseas ou hepáticas ou dor neuropática plexopatia braquial ou lombar e cada uma delas pode depender da própria doença de enfermidades concomitantes ou associadas ou da própria terapêutica neuropatia póscirurgia ou pós quimioterapia etc É necessário então que ao se planejar a analgesia do paciente se considerem esses pontos Na abordagem da dor crônica cancerosa é im prescindível que o esquema analgésico proposto seja administrado após o ajuste inicial da dose em horários regulares ou seja em horários fixos pelo relógio conforme a duração de ação de cada droga ao invés do regime de demanda se necessário com o propó sito de manutenção de um nível plasmático constante que impeça a recorrência da dor e a sensibilização central com a consequente ampliação dos estímulos dolorosos Pavani 2000 Tal orientação preencheria as sete metas sugeridas por Cassileth 1982 ao tem po que suprimindo o esquema QN quando necessá rio e SN se necessário retiraria o caráter operante da dor ou seja o reforço positivo do remédio Em 1990 a OMS desenvolveu e divulgou um es quema analgésico conhecido como escada analgési ca da OMS em que a abordagem gradual da terapia analgésica é baseada em uma avaliação da intensida de da dor do enfermo Ratkin e Swarm 2004 Esse esquema já vinha sendo usado em forma incipiente antes de 1990 Twycross 1984 Um dado importante é que a intensidade da dor bem como a resposta terapêutica pode ser avaliada entre outras maneiras por uma escala numérica graduada de zero a dez onde zero significa sem dor e o dez indica a pior dor imaginável O doente indica a intensidade de sua dor ao longo desta linha Pava ni Essa avaliação permitiria considerar a dor como o quinto sinal vital ao lado do pulso PA frequên cia respiratória e temperatura e os prováveis ajustes no regime terapêutico Ratkin e Swarm 2004 No esquema da OMS a dor menos grave é trata da com antiinflamatórios não esteroides Aines A dor moderadamente intensa poderia ser con trolada com a adição de opioides fracos codeína en quanto a dor mais grave ou não controlada é tratada com a adição de opioides fortes morfina metadona oxicodona Em todos os níveis se podem usar drogas adjuvantes geralmente antidepressivos tricíclicos ou do grupo ISRSs inclusive a venlafaxina A meperidi na substituto mais pobre da morfina foi um dia usa da via oral mas as irregularidades de sua absorção e o potencial tóxico de seus metabólitos a excluíram de todo da terapia antineoplásica O fentanil medicação opioide apresenta a especial característica de ser ab sorvido via transdérmica com um adesivo e sua ação pode durar até 72 horas ibidem sua maior indica ção é a impossibilidade de se usar via oral Ambiente terapêutico Comunicação Hipnose Técnica de relaxamento Meditação Biofeedback Calor e frio Massoterapia Pressão Estimulação elétrica transcutânea Acupuntura Manejo psicológico QUADRO 176 Procedimentos não farmacológicos para alívio da dor Psicossomaticaindd 242 Psicossomaticaindd 242 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 243 A morfina é usada via oral na dose inicial de 5 a 10mg a cada 4 horas dependendo do estado físico do enfermo e de sua idade O aumento das doses para os níveis de analgesia é feito progressivamente em função da resposta terapêutica Não há limite para a dose de morfina aumentarseá até o nível da neces sidade Uma ampla e completa exposição sobre o uso de morfina oral na analgesia do paciente com câncer pode ser encontrada nos trabalhos de Sylvia Lack e Twycross 1984 e em nosso meio no trabalho de Newton Barros 1994 e mais recentemente no de Neusa Pavani 2000 já citado Todos os autores ressaltam a importância de prevenir ou controlar os efeitos colaterais dos opioi des especialmente náuseas vômitos e constipação prescrevendose concomitantemente antieméticos e laxantes Na dor neuropática que como já foi visto pode ocorrer no câncer por motivos vários as drogas de escolha são antidepressivos e anticonvulsivantes O tramadol também tem algum efeito nas dores neu ropáticas Quando a dor não responde as medidas usuais apelamse para outras modalidades de tratamento apontados também nos trabalhos de Pavani ibidem e Ratkin e Swarm ibidem DORES PSICOGÊNICAS Quando alguém se apresenta ao médico quei xandose de dor há em princípio 50 de probabi lidade de que essa dor seja psicogênica Janowsky 1976 isto é um tipo de dor que não depende de uma lesão tecidual atual ou pregressa O conceito de dor psicogênica não é universal mente aceito e Wayne Hall 1982 o analisa num lúcido trabalho concluindo que os critérios e a meto dologia até então usados não eram tão convincentes como parecem à primeira vista e que não se pode afir mar com segurança que exista tal dor psicogênica Na realidade o assunto da dor emocional vem modificandose na medida em que pesquisas nas áreas da neurofisiologia e neurofarmacologia vão es maecendo as diferenças entre o lesional o funcional e o emocional puro Segundo cremos não é outro o pensamento de Sadock e Sadock quando tratam dos transtornos so matoformes 2006 e dizem alterações mínimas ou até então não detectáveis na neuroquímica neurofi siologia e neuroimunologia podem ser o resultado de mecanismos mentais ou cerebrais que resultem em doença Em que pesem os argumentos de Hall e a teori zação de Sadock e Sadock até o presente momento ainda que com restrições o conceito e a caracteri zação clínica das dores psicogênicas tal como acima formulado continua sendo usado Ainda mais se aceitarmos que alguns tipos de dor crônica estão ligados a situações de estresse como o são as dores psicofisiológicas estudadas por Sternbach 1990 ou são mantidas por fatores emo cionais como o comportamento de dor Fordyce 1990 mais se amplia o campo das dores psicogêni cas Tal fato justifica o plural entre aspas no subtítulo deste capítulo Antes de tentarmos classificar as dores psicogê nicas parecenos útil introduzir dois conceitos o de paciente propenso à dor e o de alexitimia Engel 1959 baseado numa longa experiência clínica com dor descreveu o que ele chamava de pain prone patients Nesses enfermos os fatores psíquicos desempenham um papel primário na gênese da dor quer haja ou não lesões periféricas Nos pain prone patients dizia Engel a dor evoluiu de um primitivo sistema de proteção para o de um mecanismo defen sivo que teria a finalidade de evitar ou afastar sen timentos ou experiências mais desagradáveis e que até poderia chegar a ponto de se transformar numa forma de obter gratificações não obstante o alto pre ço pago Nos indivíduos propensos à dor era possível in dividualizar alguns traços importantes 1 proeminência de culpa 2 história de sofrimentos frequentes seguidos de reveses e de intolerância ao sucesso 3 intensos impulsos agressivos não satisfeitos 4 aparecimento de dor diante de uma perda real ou ameaçada Com a expressão pain prone patients não pre tendia Engel designar um quadro psiquiátrico mas tão somente certas características da personalidade que dentro de um espectro de etiologias diferentes teria na dor seu traço mais marcante O segundo conceito é o de alexitimia introdu zido por Sifneos Sriran 1987 para caracterizar um distúrbio afetivo e cognitivo em que há uma pobreza da vida de fantasia ao lado da incapacidade de iden tificar e descrever sentimentos Sriran e colaborado res num estudo bem conduzido verificaram como já haviam feito em outros a maior prevalência de alexi timia em pacientes com dor crônica comparados com um grupo testemunha Aguiar e Caleffi a partir de 1992 trabalhando no hospital de Clínicas de Porto Alegre encontraram uma alta prevalência de alexitimia em mais de 200 portadores de cefaleia tensional migrânea ou mista 2004 Psicossomaticaindd 243 Psicossomaticaindd 243 05012010 121212 05012010 121212 244 Mello Filho Burd e cols Atualmente pouco se fala em pacientes propen sos à dor e menos ainda no pain prone disorder de Blummer Heilbron 1982 O outro conceito de significado indefinido re lacionado às dores psicogênicas é o de somatização Como dizem Sandra Fortes e colaboradores 2002 o termo somatização é usado por clínicos e pesquisa dores para uma variedade de processos e fenômenos diferindo seu significado conforme o autor e a escola de pensamento Ainda mais como o termo somatização po pularizouse e alguns pacientes sentemse rejeitados quando a expressão é usada para explicarlhes um quadro clínico ou sintoma Salmon 1999 achamos que poderia ser proscrito em seu significado primiti vo Butler e colaboradores 2004 escreveram uma lúcida análise do assunto Isso nos traz de volta para a classificação das dores psicogênicas Não há consenso entre os au tores quanto a forma de classificálas De fato não sabemos se isso é tão importante Na primeira edição deste texto 1992 foi se guida a orientação de Hackett e tínhamos depres são transtornos somatoformes psicoses neurose de compensação e simulação Arbitrariamente acres centamos as dores psicofisiológicas e o comporta mento de dor DOR CRÔNICA E DEPRESSÃO A relação entre depressão e dor crônica é aceita de maneira geral mas há considerável controvérsia a respeito da natureza e extensão dessa relação Em termos de especulação poderiam ocorrer as seguintes possibilidades 1 os pacientes com DC de qualquer etiologia vão apresentando com o tempo traços psíquicos que permitem o diagnóstico de depressão 2 uma das manifestações de transtorno depressivo seria a dor crônica 3 depressão e ansiedade aparecem como transtor nos comórbidos da dor crônica quiçá com uma base fisiopatológica comum e qualquer fosse a causa da última O termo comorbidade foi introduzido por Feins tein em 1970 e indica a existência de qualquer anor malidade doença aflição incômodo num paciente que apresente uma doença índice Merikangas e Ste vens 1997 Em relação ao primeiro tópico dor crônica depressão houve uma ampla revisão de Zanonato 1987 entre nós e Magni 1987 fora do Brasil Este último autor analisando seus casos junto com os da literatura por ele revisada chegou às seguintes conclusões 1 Uma alta percentagem de pacientes com DC vis tos em clínicas de dor ou em hospitais apresenta depressão clinicamente evidente 2 A análise dos familiares de portadores de DC e depressão permitiu verificar uma alta prevalên cia de antecedentes familiares com transtorno de humor ou transtornos do espectro depressivo de pressão alcoolismo sociopatia A fração dos pacientes com transtorno do hu mor e dor crônica é variável conforme o autor Dennis Thorton 1998 assim se expressa sintomas depres sivos significantes estão presentes em 30 a 87 dos pacientes com DC e em 8 a 50 desses pacientes acharamse indicadores de um episódio depressivo maior Uma boa análise feita por Marcante e colabo radores 2005 num grupo de setenta enfermos com migrânea crônica estudados através do Inventário de Depressão de Beck BDI mostrou depressão mode rada ou grave em 587 dos pacientes mas algum grau de transtorno afetivo foi achado em até 858 tornandose mais grave quando coexistia com fibro mialgia e fadiga crônica Como já foi citado Aguiar e Caleffi 2004 no Hospital de Clínicas de Porto Alegre estudaram in divíduos com migrânea cefaleia tensional ou mista sob o ponto de vista emocional A impressão clínica dos autores é que nesse grupo predominavam sinto mas de ansiedade e depressão Já anteriormente Hackett 1985 tinha encon trado uma alta prevalência de transtornos de humor em enfermos com doença crônica Dizia ele que nega ção de afeto particularmente raiva vem a ser um pro blema significativo em 44 dos portadores de DC As localizações da dor são variáveis mas tal como nos estados de ansiedade cefaleia dor facial dor lombar e abdominal são os tipos mais comuns ibidem A segunda possibilidade acima apontada de pressão dor tem como maior dificuldade a de es tabelecer o diagnóstico do transtorno depressivo nos pacientes com DC que por certo deve ser do tipo psicogênica isto é sem lesão tecidual Surge então em função dessa dificuldade a ex pressão depressão mascarada para designar aque les estados em que as alterações do humor são nega das e a manifestação do problema emocional é a dor Tal depressão mascarada equivalente depressivo ou pitorescamente smiling depression ocorreria Psicossomaticaindd 244 Psicossomaticaindd 244 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 245 mais comumente nos velhos Kanner 1998 Geraldo Caldeira 2001 fala nos equivalentes depressivos e cita LopezIbor Alinõ 1972 para o qual muitos pacientes não apresentam sintomatologia depressiva atípica mas usam o seu corpo para expressála sob várias queixas ou sintomas sendo a dor a mais co mum Fala Caldeira que os equivalentes depressivos não são mais aceitos pela nosologia psiquiátrica mo derna Segundo Harkins a dor crônica no velho é amiú de acompanhada de perda da autoestima e uma reduzida expectativa de recuperála resultando em depressão Esta é então segundo o referido autor uma reação a dor crônica e às condições de vida que ela cria e o reverso pode também acontecer Continua pois indefinida a resposta à segunda possibilidade levantada O terceiro ponto síndrome dolorosa crônica ansiedade e depressão como condições comórbidas foi bem estudado por Merikangas e Stevens ibidem As autoras numa metanálise da literatura pertinente encontraram uma alta associação entre migrânea de pressão e ansiedade quer em estudos clínicos quer em comunitários Prosseguiram na pesquisa fazendo então estu dos prospectivos longitudinais e familiares buscando a prevalência familiar de entidades comórbidas Seus achados altamente sugestivos apontam para uma sequência um tanto inesperada Os pacien tes estudados apresentavam ansiedade na infância ou adolescência logo seguiase a migrânea a qual mais tarde juntavase à depressão formando o que se poderia chamar uma tríade comórbida final Cre mos que seu original trabalho poderia ser um modelo para pesquisas afins Finalmente na associação entre depressão e dor crônica poderseia comentar sobre o efeito comum dos antidepressivos em ambos os transtornos quer ou não coexistissem dor e depressão Tais achados levantaram a hipótese da similari dade entre os sistemas neurotransmissores envolvi dos na depressão e na dor crônica Nesta última os antidepressivos são úteis mesmo sem o transtorno do humor de forma que outras síndromes dolorosas crônicas além da migrânea como cólon irritável e a fibromialgia poderiam ser uma indicação para o uso dos mesmos fármacos Os trabalhos citados não dão uma resposta das relações entre DC e depressão a não ser talvez que a depressão é dolorosa nos velhos E para quem não o é Deixa também uma sugestão drogas antide pressivas são úteis no tratamento de diferentes tipos de dor crônica haja ou não depressão concomitante TRANSTORNOS SOMATOFORMES As características essenciais deste grupo residem na existência de sintomas físicos que sugerem um dis túrbio somático donde o nome somatoforme para o qual inexistem qualquer anomalia demonstrável ou qualquer mecanismo fisiopatológico conhecido Há por outra parte argumentos demonstrativos ou forte presunção de que os sintomas estão ligados à confli tos emocionais O termo somatização tão ligado aos trans tornos acima não tem um significado específico Se gundo ele sofrimento e conflito são convertidos em queixas somáticas numa tentativa inconsciente de reduzir a tensão intrapsíquica Thorton 1998 ou como dizem Fortes e colaboradores 2002 somati zação referese à apresentação de queixas somáticas decorrentes de causas psicológicas mas atribuídas pelo paciente à uma causa orgânica O fato é que este termo que implicaria num salto do psíquico para o somático é usado frouxamente inclusive entrando para a linguagem popular perdendo o significado na medida em que maiores conhecimentos neurofisioló gicos vão explicando a gênese de vários transtornos ditos somatoformes No DSMIVR se registram cinco 05 transtor nos somatoformes 1 De somatização 2 De conversão 3 Dismórfico 4 Doloroso 5 Hiponcondria E mais dois outros transtorno somatoforme in diferenciado e transtorno somatoforme não especifi cado Neste trabalho sobre O problema da dor dare mos maior ênfase ao transtorno somatoforme doloro so permanente Fortes et al 2002 e consideraremos de forma sumária os demais transtornos TRANSTORNOS DE SOMATIZAÇÃO Caracterização os sintomas iniciam antes dos 30 anos é mais comum em mulheres e durante o cur so do transtorno os enfermos devem ter apresenta do ao menos quatro sintomas de dor dois sintomas gastrointestinais um sintoma sexual e um sintoma pseudoneurológico nenhum dos quais é explicado por exames físicos ou subsidiários Esses enfermos que caem no grupo dos pacien tesproblema ou multiqueixosos Lobato 1981 pelas Psicossomaticaindd 245 Psicossomaticaindd 245 05012010 121212 05012010 121212 246 Mello Filho Burd e cols inúmeras e variáveis queixas físicas apresentam por vezes dificuldades no diagnóstico diferencial com doenças orgânicas multissistêmicas como lupus eri tematoso hipertireoidismo esclerose múltipla por firia etc Nesse caso o acompanhante do enfermo constitui a forma mais adequada de diagnóstico Caso clínico TGB 65 anos viúva tratase desde 1974 e nesse pe ríodo em 66 visitas ambulatoriais apresentou 49 sintomas dolorosos a maioria musculoesqueléticos sintomas abdo minais dor proctalgia fugax meteorismo disúria peso no hipogástrio tremor fugaz na mão esquerda ptose ou retra ção palpebral ambas de rápida duração Nunca houve uma enfermidade definitiva Foi submeti da à múltiplos exames subsidiários e pequenas cirurgias or topédicas Nesse período ocorreram a aposentadoria e três episódios de luto mãe marido e filho único adolescente Submeteuse à psicoterapia de forma irregular mas nunca recebeu antidepressivos A melhor possibilidade diagnóstica seria a de transtorno de somatização e comorbidade com depressão e ansiedade HIPOCONDRIA Consiste na crença real pelo paciente de uma doença séria em seu organismo a despeito da nor malidade do exame físico e da tranquilização que lhe dá o médico Sensações físicas normais tais como o suor e os movimentos intestinais são erradamente interpretados e pequenos incômodos como tosse ou dores nas costas podem ser exagerados a ponto do problema tornarse incapacitante Sculy 1985 A prevalência de hipocondria num período de seis me ses numa população de clínica geral é de 4 a 6 mas pode ser tão alta como 15 Sadock e Sadock É mais comum em pessoas com mais de 60 anos São comuns a ansiedade o humor depressivo e traços de personalidade compulsiva Limitase assim à vida social e ao desempenho profissional do enfermo Na hipocondria como no transtorno de dor psicogênica o indivíduo habitualmente recusase a admitir uma causa emocional para seus sintomas Queixas de dor são comuns aparecendo em 75 dos hipocondríacos cefaleia dor facial dor to rácica e dores vagas nos membros nessa ordem são as mais encontradas Sadock e Sadock dão uma lista de enfermidades que caberiam no diagnóstico dife rencial da hipocondria AIDS endocrinopatias mias tenia gravis esclerose múltipla doenças degenerati vas do sistema nervoso lupus eritematoso sistêmico e neoplasias ocultas Transtorno de conversão O termo conversão foi introduzido por Freud que baseado no trabalho com Anna O levantou a possibilidade de que os sintomas do transtorno de conversão refletiriam conflitos inconscientes Sadock e Sadock 2005 Pelo DSMIVTR caracterizase o transtorno de conversão pela presença de um ou mais de um sinto ma de natureza neurológica por exemplo cegueira paralisia parestesia que não podem ser explicados por doença médica ou neurológica reconhecível Adi cionalmente requerse a associação de fatores psico lógicos surgidos com o início ou com a exacerbação dos sintomas O diagnóstico de conversão não é feito quando dor é a queixa exclusiva ou preponderante Hackett 1985 É provavelmente o mais comum transtorno somatoforme e predomina em mulheres Transtorno depressivo transtorno de ansiedade e o transtorno de somatização são amiúde associados ao transtorno de conversão Transtorno de dor psicogênica Neste transtorno predomina a dor em um ou mais pontos do organismo e não é plenamente expli cado por uma condição médica não psiquiátrica ou neurológica No caso de haver problema orgânico a intensidade do sintoma ultrapassa de longe o que se pode inferir dos resultados do exame físico Há óbvia relação com fatores psicológicos e essa associação pode ser evidenciada pela relação temporal entre um estímulo ambiental que está apa rentemente ligado a um conflito uma necessidade psíquica e o início ou exacerbação da dor Não constitui um grupo uniforme mas uma co leção heterogênea de indivíduos que podem ter dor lombar cefaleia dor facial atípica dor pélvica crôni ca e quaisquer outras dores É duas vezes mais frequentes em mulheres que em homens e o pico de incidência é na 4a ou 5a déca da Sua prevalência não está determinada acredita se que seja alta Sob o ponto de vista etiológico aqui como nos outros transtornos somatoformes e nas enfermida des em geral a causa sempre é multifatorial Nela intervêm fatores psicodinâmicos compor tamentais interpessoais como manipulação e ganho de vantagens nas relações interpessoais e importan tes fatores biológicos em nível de sistema nervoso central O fato de familiares de 1o grau dos pacientes com transtorno de dor apresentarem um risco au mentado de problemas de dor semelhantes sugere Psicossomaticaindd 246 Psicossomaticaindd 246 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 247 herança genética e mecanismos comportamentais estão possivelmente envolvidos nos transtornos Sa dock e Sadock Caso clínico AT 26 anos sexo masculino solteiro Veio de uma cidade do interior do RGS queixandose de dor no testí culo direito há cerca de um ano Mais ou menos na mesma época começou um relacionamento amoroso totalmente frustrante por surgirlhe ejaculação precoce O exame clínico nada revelou senão discreta dor à palpação do testículo direito Solicitamos alguns exames e prescrevemos fluoxetina 20 mgdia mais pelo efeito retar datário sobre a ejaculação Um mês depois telefonounos de sua cidade pedindo nova receita feliz da vida Passaram a dor e o distúrbio da ejaculação Considerouse este caso até o momento como um transtorno de dor psicogênica Dentro dos fatores psicodinâmicos apontados no livro de Sadock e Sadock sobre o transtorno da dor está escrito o seguinte o significado simbólico de distúrbio somático pode também estar relacionado com expiação por pecado percebido reparação de culpa ou agressão suprimida mui tos enfermos tem dor intratável porque estão convencidos de que merecem sofrer Caso clínico AH 47 anos sexo masculino agricultor seis filhos Há dois anos tem dor ocasional nos testículos que surge com a mais leve batida Fala de diminuição de libido e dificuldades de ereção A esposa doente do ovário e portadora de in continência urinária não lhe desperta desejo Tentativas de relações sexuais fora de casa têm tido pouco sucesso A avaliação feita pelo urologista nada revelou próstata sem particularidades testículos normais Uma conversa após uma avaliação urológica revelou que ele fica nervoso quando tem relações sexuais fora do lar e talvez com mais dor Na realidade sentese culpado com a atividade desleal mas se passa uma semana sem sexo fica mal da cabeça Foramlhe prescritos dieta hipocalórica e exercícios e sugerida uma avaliação dos problemas da esposa e uma conversa formal com ela Não tivemos mais notícias desse pacidente Ambos os enfermos com idades diferentes e circuns tâncias existenciais dessemelhantes tinham nos testículos a expressão de seu transtorno doloroso DOR E PSICOSES Raramente a dor aparece como sintoma único ou de apresentação nas esquizofrenias Integra geralmen te um mosaico de sintomas e se caracteriza ainda que nem sempre por aspectos delirantes frequentemente bizarros na sua qualidade e localização Assim de 100 pacientes examinados por Mesr key ibiden com dor de duração maior que três meses 76 não tinham lesões físicas e só dois eram esquizofrênicos e nove tiveram o diagnóstico de de pressão endógena Chapman encontrou dor com sintoma de apre sentação da doença em dois de 40 enfermos esqui zofrênicos Há diferença na apresentação do sintoma entre os portadores usuais de dor crônica e os esqui zofrênicos ressaltandose nestes o desinteresse pelos analgésicos A esse respeito é importante saber que a esqui zofrenia está ligada a uma sensibilidade diminuída para a dor ainda que em dadas ocasiões uma pecu liar sequência ideativa possa gerar alguma alucinação somática dolorosa Marchand e colaboradores cita dos por Merskey notaram que doenças normalmente dolorosas como infarto de miocárdio úlcera péptica perfurada fratura do fêmur ficavam obscurecidas em enfermos com psicoses orgânicas ou esquizofrênicas pela ausência dos sintomas dolorosos ou retardo no aparecimento dos mesmos Digase de passagem que Hipócrates já havia registrado num de seus aforismos essa hiposensibilidade dos doentes mentais quem tendo uma afecção dolorosa em qualquer parte do corpo sente pouco ou não sente essa dor está com o espírito doente Por isso o médico que lida com psicóticos deve estar vigilante para a presença de sinais indiretos de dor como manqueira trejeitos posições antálgicas etc Comportamento de dor suas consequências Quando alguém sente dor nós tomamos conhe cimento do fato porque o indivíduo demonstra seu sofrimento por um comportamento queixase geme lamuriase executa determinados gestos ou assume determinadas posições que visam a melhora da dor Tal conduta que é normal serve para comunicar o que está passando e pedir auxílio A exibição desse comportamento na ausência de dor é anormal e cons titui o comportamento de dor crônica No dizer de Brena e Chapman 1981 tal ati tude expressa uma resposta condicionada ou apren dida em que o indivíduo não mais necessitando de um estímulo nociceptivo responde às circunstâncias sociais ou ambientais com as quais o respectivo estí mulo esteve associado com frequência Tudo se pas sa de forma semelhante às clássicas experiências de Pavlov em que uma salivação abundante constituía Psicossomaticaindd 247 Psicossomaticaindd 247 05012010 121212 05012010 121212 248 Mello Filho Burd e cols uma resposta condicionada pelo som de um sino Os autores citados usam a expressão de síndrome de dor aprendida learned pain syndrome para desig nar o referido quadro Como aconteceria isso A nós a explicação de Fordyce 1990 parece adequada Segundo esse autor há dois tipos de comportamento em face da dor respondente e operante O comportamento res pondente é automático e instantâneo como a crian ça que põe a mão na chapa quente e logo a tira O comportamento operante é aprendido e se mantém ou extinguese conforme as reações do meio enco rajamento ou punição O exemplo é de uma criança que cai nas pedras esfola o joelho sente dor e cho ra comportamento respondente Por chorar recebe o consolo e o carinho dos pais Alguns dias depois cai na grama não se machuca e mesmo sem sentir dor chora e de novo recebe a atenção dos pais Essa criança tem no choro um comportamento operante isto é que é acompanhado de consequências positi vas reforçado positivamente e passa a ocorrer sem estímulo doloroso inicial Os reforçadores podem ser diretos ou indiretos As respostas favoráveis do meio caracterizam os re forçadores como direitos o caso de dor os cuidados do cônjuge e repouso a medicação a atenção médi ca etc Os reforçadores indiretos levam a resultados idênticos mas expressamse como evitação de situa ções ou obrigações penosas Mulheres com cistite aprendem muitas vezes a usar seus sintomas como forma de evitar relações sexuais insatisfatórias ou in desejadas O comportamento operante ocorre porque a pessoa percebe uma pista que vai indicar que con sequências reforçadoras estão por chegar ou que um resultado aversivo antecipado pode ser evitado Um terceiro tipo de reforçador é constituído pelo chamado punição de comportamento sadio Nessas circunstâncias pode acontecer que o paciente com dor tome alguma atitude que melhore o sinto ma no exercício físico por exemplo exagera cansa se a dor piora e ele passa a evitar o exercício Outras vezes os familiares por excesso de zelo reprovam a atitude sadia e ele dela abstémse O comportamento de dor não ocorre como de cisão consciente por parte da pessoa que nele se en gaja Assim esses eventos não indicam simulação dor imaginada ou alguma manifestação de doença mental Um exemplo a prescrição de medicamentos como analgésicos relaxantes musculares ou tran quilizantes por períodos maiores usando como refe rência a vinda da dor tipo se necessário ou quando necessário Lobato 1977 o que pode estabelecer um padrão de condicionamento o que faz com que o comportamento persista além do necessário Segundo Chapman e Bonica 1983 o compor tamento de dor crônica pode ser um reflexo e um símbolo de sofrimento experimentado pelo doente em outras áreas da vida tal como a perda de entes amados situações existenciais difíceis desajuste pro fissional responsabilidades sociais pesadas discórdia conjugal etc Esses problemas e outros semelhantes se acrescidos de lesão no trabalho ou doença desen cadeariam o comportamento da dor Sandra Fortes 2002 refere algumas caracterís ticas do comportamento anormal da dor queixarse repetidamente e intensamente de dor provocando pena nos que o cercam assumir posturas e expressões faciais de dor aos mínimos esforços isentarse de toda e qualquer responsabilidade incluindo atividades domésticas alegando a dor como principal razão abusar de analgésicos dependência crescente de terceiros para ativida des que seriam possíveis apesar da doença isolamento social justificandose pela dor dramatização e ampliação da resposta dolorosa valorização e busca de ser cuidado por terceiros principalmente voltado à família regressiva excessiva Hackett 1985 aponta outros traços típicos que aparecem na primeira edição desse artigo e que po dem ser encontrados na tabela 453 do excelente ar tigo de Aguiar e Caleffi NEUROSE DE COMPENSAÇÃO O que acima foi dito sobre o comportamento de dor crônica aplicase à chamada neurose de compen sação cujo reforçador direto seria um ganho econô mico e o indireto que seria a evitação do trabalho e seu efeito sobre a dor No DSM III a neurose de compensação aparece no item fatores psicológicos afetando condições físi cas APA 1986 e designa indivíduos com dor crô nica relacionada ao trabalho mas o sofrimento apre sentado parece exagerado face à lesão discernível ou tem uma duração maior que a esperada O CID 10 apresenta conceito semelhante Thorton 1998 co menta a conotação negativa da NC por dois aspectos dor ausente ou menos incapacitante do que é alegado e o ganho secundário O perfil psicossocial dos pacientes atingidos é razoavelmente típico operários que trabalham dura mente a fim de prover a família do melhor cidadãos sólidos membros dos sindicatos patriotas religiosos Psicossomaticaindd 248 Psicossomaticaindd 248 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 249 homens de família enfim Acontece então o acidente do qual resulta uma lesão trivial ou grave mas que gera uma dor incapacitante que impede o indivíduo de sustentar a família de forma como vinha fazendo Ele passa a juntarse ao grupo de pessoas inválidas e como tal permanece apesar dos esforços médicos e cuidados de reabilitação Num dado momento esgotamse a tolerância da família e do seguro social Nesse ponto entra em cena um advogado ou procurador e conforme o vulto da compensação mais um segundo profissional Se gundo Hackett a neurose de compensação pode ser suspeitada em qualquer caso em que o paciente seja representado por mais de um advogado A dor nesses pacientes tem um significado sim bólico e expressa toda a soma de frustrações que o enfermo sofreu as horas de trabalho árduo as férias não gozadas os sacrifícios feitos Receber uma com pensação é o único prêmio para tanto sofrimento O tratamento desses casos é por isso notoria mente difícil e tornase impossível se o problema le gal não for resolvido A solução favorável desperta no paciente um estado de euforia invariavelmente seguido de depressão A investigação aprofundada desse afeto traz a uma longa história de insatisfação em vários aspectos da vida casamento profissão ou qualquer outra situação de maior importância Anti depressivos podem ajudar Uma abordagem cognitivocomportamental que auxilie o enfermo a identificar os pensamentos dis torcidos os sentimentos inadequados deles depen dentes e por fim os comportamentos resultantes que influem negativamente sobre a dor e a incapacidade seria extremamente útil na recuperação Pimenta 2001 SIMULAÇÃO É a única dor que quem dela se queixa de fato não a sente é dor fingida Talvez não para os poetas que fingem de forma diferente como fala Fernando Pessoa na primeira es trofe de sua autopsicografia O poeta é um fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente Se tem dito que nada se assemelha tanto à si mulação como a histeria e nada é tão parecido com a histeria quanto à simulação Bond 1984 A simulação pode incluir a produção de doença ou o exagero elaboração ou falso relato de sintomas A questão diagnóstica fundamental para a simulação é a de que a pessoa está intencionalmente simulan do doença para um propósito definitivo obter algum ganho monetário privilégios ou evitação de um de ver desagradável Como o médico não é um leitor de mentes a intenção consciente do simulador deve ser deduzida a partir de outros comportamentos e testa gem psicológicas Ford 2002 A simulação é pouco diagnosticada amiúde devido ao temor do médico de fazer acusações fal sas Entretanto a vigilância velada tem indicado que aproximadamente 20 dos pacientes das clínicas de dor descrevem enganosamente a extensão de suas in capacidades ibidem Como regra os simuladores são encontrados em hospitais públicos e raramente se submetem a procedimentos diagnósticos dolorosos ou invasivos diferindo neste ponto dos portadores de transtornos factícios Como acima foi dito o diagnóstico nem sempre é fácil Há porém alguns dados que ajudam a revelar a situação 1 A ausência de doença orgânica pelos exames e testes usuais 2 Um comportamento normal quando o indivíduo pensa que está sozinho mas é cuidadosamente observado pelos familiares médicos ou amigos Ou sendo filmado por uma seguradora esquiando nos fins de semana 3 A análise cuidadosa do passado prémórbido pode revelar eventos semelhantes de desonestidade ou de problemas familiares difíceis especialmente financeiros 4 Ainda que fora do trabalho o enfermo não aban dona os prazeres da vida e as ofertas de serviços são usualmente recusadas O MMPI pode auxiliar no diagnóstico Segun do Sadock e Sadock 2006 a simulação pode estar associada a um transtorno de personalidade antisso cial TRATAMENTO DA DOR PSICOGÊNICA O tratamento das dores psicogênicas esbarra num primeiro obstáculo que é a incapacidade do pa ciente aceitar que em sua queixa há participação de fatores emocionais Tal situação torna difícil o encaminhamento para o psiquiatra quando essa parece ser a atitude adequada e deteriora a relação médicopaciente pois o enfermo sentese rejeitado e desprezado pela sugestão do clínico Psicossomaticaindd 249 Psicossomaticaindd 249 05012010 121212 05012010 121212 250 Mello Filho Burd e cols A solicitação de novos exames subsidiários para postergar a solução do problema ou a prescrição de algum analgésico novo ou um tranquilizante seria má medicina Parece que o correto é aceitar que o paciente tem dor que esta existe para ele mesmo que não haja uma base orgânica para explicála Uma anamnese em que de forma imperceptível o clínico vá orientan do ao lado das queixas somáticas uma busca para os aspectos pessoais do enfermo seguidos de um exame físico completo seriam os passos iniciais adequados Como diz Engel 1969 o mínimo que se pode querer é uma entrevista que permita ao enfermo fa lar de si próprio de sua família e de seus relaciona mentos tanto quanto de seus sintomas não forçando uma separação entre o que é considerado orgânico e o que é visto como psicológico ou social o que resulta em algo imensamente produtivo no esclarecimento da dor Podese nessa altura dos acontecimentos tran quilizar o paciente quanto a inexistência de uma enfermidade incurável ou muito grave Tentarseia explicar ao paciente que nenhum sintoma ou doença depende de uma causa única é sempre multifatorial e tudo o que acontece na vida da pessoa refletirseá com certeza em seu organismo e em seus sintomas Neste ponto podese informar ao enfermo que existem equipes dedicadas ao tratamento global da dor e que se poderia indicálas A regra é que o pa ciente queira continuar com o médico que o ouviu examinouo e tranquilizouo Neste caso se o clínico sentese seguro para en carregarse do tratamento ao menos iniciálo combi na com o enfermo uma nova entrevista Mas antes de encerrar a consulta e dentro do que sabe da vida e hábitos do enfermo pode dar lhe algumas sugestões Entre essas um programa de exercícios caminhada especialmente que deve ser prescrita num receituário com frequência semanal duração e extensão Outra atitude a sugerir é a de técnicas de relaxamento com ou sem períodos de meditação substituindoas por prática de ioga ou hidroginástica quando isso for mais acessível É es sencial que se enfatize a importância dessas atitudes dentro do contexto do tratamento Numa segunda entrevista mais curta farseia uma avaliação do resultado das primeiras prescri ções e dentro do possível transmitirseiam algumas ideias superficiais do âmbito da terapia cognitiva comportamental mostrandolhe como nossas cren ças e julgamentos influem naquilo que sentimos em nossa fisiologia e até em nossa conduta exterior Po deríamos sugerir que ele paciente pensasse no que foi dito e na maneira de como poderia praticar para modificar esses julgamentos modificar os hábitos errôneos e buscar um novo estilo de viver sem dor Zimerman 2006 Esse processo educativo seria útil especialmen te no chamado comportamento de dor Pimenta 2001 Logicamente o que foi exposto é uma formula ção teórica do tratamento da dor psicogênica nem sempre factível na sua totalidade mas merece ser tentada conforme as condições do médico e de seu paciente O uso de drogas especialmente antidepressi vos deveria ter uma indicação definida e por profis sionais que tivessem experiência e conhecimento de suas indicações interações medicamentosas e efeitos colaterais o mesmo pode ser dito quanto ao uso de diazepínicos TRANSTORNOS DE DOR PSICOFISIOLÓGICOS Também os conhecem como transtornos do lorosos induzidos pelo estresse Alguns tipos foram incluídos no texto de Sadock e Sadock no capítulo Fatores psicológicos afetando uma condição médica e Medicina Psicossomática Conforme Sternbach 1990 os transtornos psi cofisiológicos são mediados pelo sistema nervoso au tônomo e fibras musculares aferentes e é da resposta aos influxos nocivos ou estressantes que se iniciam as alterações associadas com dor Este autor lista as principais dores psicofisioló gicas migrânea cefaleia de tensão dores miofasciais em qualquer lugar do corpo dores no tórax de qual quer tipo úlcera péptica transtornos funcionais do intestino proctalgia colite e dores pélvicas Como se percebe a lista é grande e cobre a maioria das do res de que se queixam os enfermos em serviços de medicina geral A dor PF psicofisiológica seria para Sternbach umas das maneiras através das quais alguns indivídu os responderiam aos estresses induzidos pelas dificul dades da vida O referido autor considera que há um processo de somatização que expressaria numa via fisiológica afetos como ansiedade ressentimentos dependência raiva Haveria uma resposta ao nível de três sistemas muscular vascular e gastrointestinal Neles situa Sternbach as respostas fisiológicas do es tresse e os eventos delas resultantes Cabe registrar aqui a ideia ainda vigente de órgão de choque Sa dock 2006 em que cada um de nós tem um órgão geneticamente vulnerável e que efetivamente respon deria aos estressores ideia que possivelmente refor çaria a visão de Sternbach Psicossomaticaindd 250 Psicossomaticaindd 250 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 251 Alongamonos algo ao expormos as ideias desse autor por sua sistematização de um tipo de sofrimen to que aparece de forma isolada no capítulo das dores crônicas Alguns tipos de dores psicofisiológicas mere cem cremos algumas considerações especiais Dor lombar Pacientes com dor lombar relatam com frequên cia que a dor iniciou num momento de trauma ou estresse psicológico mas outros talvez 50 desen volveram a dor num período de meses A reação emo cional do enfermo é desproporcional com excessiva ansiedade e depressão Sadock Nem todos os doentes apresentam alterações vertebrais aos diferentes meios de investigação ou quando existem estão em desproporção com a queixa de dor John Sarno citado por Sadock pos sui algumas ideias próprias a respeito da fisiopatolo gia do problema Para ele a dor surge por espasmo dos vasos que suprem músculos nervos e tendões O vasoespasmo seria mediado pelo Sistema Nervoso Autônomo extraordinariamente sensível às mudan ças do tônus emocional estresse crônico e afetos in conscientes A isquemia e a restrição de O2 causariam dor nas áreas envolvidas O tratamento sugerido por Sarno seria a mobilização precoce e especialmente a tranquilização e exposição para o enfermo de como afetos inconscientes a raiva em particular poderiam ser substituídos pela dor Fisioterapia e manipulação teriam um papel menor Cefaleias Estudos epidemiológicos recentes apontam para a prevalência de cefaleia ao longo da vida entre 69 a 93 dos homens e 94 a 99 das mulheres Carvalho 2001 Das cefaleias primárias interessam dentro da visão psicofisiológica as cefaleias de tensão esporádi cas ou continuadas e a migrânea A prevalência indi vidual seria 80 para a cefaleia de tensão eventual de 11 para a migrânea e de 2 a 4 para uma forma crônica de cefaleia tensional As patogenias desses diferentes tipos não es tão de todo esclarecidas e fatores vasculares mus culares e localizados no sistema nervoso central es tariam participando O estresse emocional parece participar na geraçãomanutenção dos diferentes tipos justificando sua inclusão entre as dores psi cofisiológicas Fibromialgia É caracterizada por dor e rigidez dos tecidos moles tais como músculos ligamentos e tendões Há áreas localizadas mais sensíveis os chamados trigger points A maioria dos estudos tem confirmado os altos índices de depressão no correr da vida de 34 a 71 e comorbidade com cólon espasmódico migrânea fadiga crônica e transtorno do pânico Cecil Supunhase que a fibromialgia frequentemente precipitada por estresse teria como patogenia básica vasoespasmo e interferência com a perfusão de O2 nas áreas afetadas Sadock As pesquisas atuais têm fornecido um paradig ma patobiológico para entender a fibromialgia em termos de anormalidade do processamento sensorial dentro do SNC que interfere com geradores periféri cos de dor e rotas neuroendrócrinas capazes de gerar o largo espectro de sintomas do paciente O termo que é usado para a magnificação dos impulsos sensi tivos dentro do SNC toque leve desperta dor é o de sensibilização central Além disso vários estudos têm demonstrado um fluxo sanguíneo diminuído no tála mo Esse achado está de acordo com outros estados de doenças crônicas e é postulado como uma desini bição tônica da atividade do tálamo Ainda mais na fibromialgia dois neurotransmissores envolvidos na transmissão da dor substância P e fator de cresci mento dos nervos estão em níveis aumentados no liquor dos pacientes Disfunção neuroendrocrina está presente nos enfermos de fibromialgia Toda essa discussão sobre essa doença não tão comum é importante à medida que ajuda a esclare cer aspectos pouco conhecidos de vários tipos de dor crônica inclusive das ditas psicogênicas O PROBLEMA DO PLACEBO Com alguma frequência no passado o uso de uma droga dita farmacologiamentre inerte era usada com a finalidade de distinguir especialmente no caso da dor se o sintoma era real ou fingido Tal atitude era tomada como regra com aqueles pacientes in cômodos que solicitavam remédios para dores que na visão dos cuidadores não existia ou não era tão intensa Administravase então um comprimido ou uma solução que não tendo efeito terapêutico fazia passar a dor era o Placebo O significado da palavra lati na é o de eu agrado e há as expressões derivadas respostaplacebo efeito placebo bem como o opos to o Nocebo significando este último os efeitos pre Psicossomaticaindd 251 Psicossomaticaindd 251 05012010 121212 05012010 121212 252 Mello Filho Burd e cols judiciais determinados por uma droga mesmo que ela tenha sido administrada como placebo O termo efeito placebo é usado amiúde como sinônimo da expressão efeitos inespecíficos Turner 1994 Beecher Reuler 1980 começou a estudar o as sunto placebo em 1955 Num artigo clássico relatou a revisão que fizera de 15 relatos publicados sobre pacientes que apresentando diferentes problemas clí nicos desde dor pósoperatória até angor pectoris e recebendo placebo tinham alívio satisfatório de seus sintomas Mas o bom efeito não ocorria em to dos os enfermos senão numa porcentagem variável que oscilava de 25 a 58 ficando numa média de 35 Trabalhos posteriores incluindo alguns tipos de cirurgia vieram mostrar que no tratamento oferecido pelos médicos havia algo mais que o efeito específi co da droga ou da operação Havia um componente subjetivo quer do médico quer do paciente que se acrescia aos eventuais efeitos específicos e que pode ria surgir mesmo quando o remédio era inerte Dessas observações emergiu a suposição de que o placebo apresentava uma ação farmacológica até então insuspeitada e logo a ideia de que seu efeito era similar ao dos narcóticos Assim com o uso repetido e por períodos muito longos a analgesia pelo place bo tornase menos efetiva tolerância pode apare cer uma síndrome de abstinência se o remédio for subitamente interrompido Ainda mais o placebo poderia reverter par cialmente os sintomas de abstinência dos narcóticos conhecidos Poderia também estar associado com efeitos colaterais especialmente sonolência cefaleia nervosismo insônia náuseas e constipação Turner 1994 Esta autora num excelente artigo publicado num dos números da JAMA faz uma exemplar revi são do assunto e analisa as possíveis explicações so bre o efeito placebo até aquela data 1 diminuição da ansiedade 2 expectativas favoráveis do paciente e do médico 3 aprendizado o efeito benéfico teria ligação com os resultados positivos obtidos com os tratamen tos anteriores uma espécie de condicionamento 4 liberação de endorfinas no sistema nervoso cen tral mas os estudos feitos até então foram contra ditórios 5 variações espontâneas no curso da dor de forma que o tratamento e a melhora de uma agudização traria o sintoma do enfermo para a média em que a dor fosse menor Em relação a liberação de endorfinas assunto ainda não decidido o fato de uma pessoa melhorar de sua dor após o uso de placebo e a reversão do efeito com retorno da dor quando se usava naloxone antagonista dos opioides sugere que o efeito pla cebo poderia ser parcialmente devido a uma reação psicológica que causasse a liberação de opioides na turais Sauro 2005 Mas o assunto placebo não termina aí e numa revisão retirada da Wikipedia extensa e completa há outras abordagens para explicar o efeito placebo Transcreveremos sumariamente o que ali está dito sobre substrato biológico da resposta placebo Pes quisas recentes sugerem fortemente que a resposta placebo é um fenômeno psicobiológico complexo contingente com o contexto psicossocial do indivíduo e que pode caber dentro do âmbito de mecanismos neurobiológicos com formas de resposta específica diferentes de circunstância à circunstância A real existência dessas respostasplacebo for temente sugere que nós devemos ampliar nossas concepções dos limites do controle endógeno huma no Benedetti et al 2005 e nos últimos tempos pesquisadores em diferentes áreas demonstraram a presença de substratos biológicos processos neuro lógicos peculiares e correlatos neurológicos para ex plicar a respostaplacebo Pesquisadores das funções cerebrais usando tecnologia altamente diferenciada como tomografia por emissão de pósitrons PET e ressonância eletromagnética funcional fREM têm estudado o que ocorre com o efeito placebo em diver sas situações clínicas Não cremos que se esperasse este futuro bri lhante para algo que parecia tão banal em medicina clínica sabendo ainda mais que o aspecto das dro gasplacebo influi na sua resposta o que banalizaria ainda mais o mistério Assim o efeito favorável va ria diretamente com o tamanho da cápsula seu nú mero e cor Cápsulas amarelas são consideradas esti mulantes ou antidepressivas as brancas seriam vistas como analgésicas ou narcóticas injeções produzem efeito mais intenso que pílulas Turner 1994 Para finalizar os dados colhidos na literatura per mitem dizer que qualquer um de nós provavelmente responderá a um placebo e que os elementos decisivos que dão impacto à resposta são as atitudes e expecta tivas do enfermo a atitude do médico a relação médi copaciente além do aspecto físico da substância REFERÊNCIAS Aguiar RW Caleffi L Dor Crônica In Kapczinki Bases bioló gicas dos transtornos psiquiátricos Porto Alegre Artmed 2004 407418 Arteni NS Netto CA Neuroplasticidade In Kapczinki Bases biológicas dos transtornos psiquiátricos Porto Alegre Artmed 2004 7181 Psicossomaticaindd 252 Psicossomaticaindd 252 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 253 Barros N Tratamento da dor no paciente adulto com câncer Porto Alegre IMPA Artes Gráficas LTDA 1994 Benedetti F Pollo A et al Conscious expectations and uncons cious conditioning in analgesic motor and hormonal placebono cebo responses J Neurosci 23 2003 43154323 Bennett RM Fibromyalgia In Cecil Textbook of medicine Phila delphia Saunders 2004 17101712 Blumer D Heinlbronn M Chronic pain as a variant of depres sive diseases The pain prone disorder J Nerv Ment Dis 1982 381406 Bond MR Pain Edinburgh Churchill Livingstone 1984 Bonica JJ The management of pain Philadelphia Lea Febiger 1953 The management of pain Philadelphia Lea Febiger 1990 Brena SF Chapman S L The learned pain syndrome Postgradu ate Medice 69 1981 5361 Brose WG Spiegel D Neuropsychiatric aspect of pain manage ment In Synopsis of neuropsychiatry Washington Am Psychia tric Press Inc 1994 205223 Buter CJ et al Medically unexplained symptoms the biopsycho social model found wanting JR Soc Med 97219222 2004 Caldeira G Os aspectos psicológicos da dor Rio de Janeiro Ed Médica e Científica 2001 193209 Carvalho DS O mito da cefaleia psicogênica Psiquiatria na práti ca médica 341 20113 Cassen SF Stewart RS Management and care of of the dying patient In Lippwski ZJ Psychosomatic medicine New York Oxford University 1997 Cassileth PR 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filosofia São Paulo ed Loyola 1999 Magni G On the relationship between chronic pain and depres sion when there is on organic lesion Pain n31 1987121 Mercante JPP et al Depression in chronic migraine Arq Neu ropsiquiatria 632a 2005217220 Merikangas K R Stevens D E Comorbidity of migraine and psychiatric disorders Neurologic clinics 151 1997115123 Merskey H The concept of pain J Psychos Resarch nº 11 19675967 Merskey H Chronic pain and psychiatric illness In Bonica JJ The managemment of pain 1999320327 Mindus P Anxiety pain and sedation Psychiatric aspects Acta Anaesth Scand Nº 88 suppl p 712 Pavani NJP Dor no câncer parte 2 Rev Soc Bras de Cancerolo gia 13 agosto 2000 Payne R Anatomy physiology and neuropharmacology of cancer pain Med CHnics of North America n 711987153167 Pimenta CA de Mattos Dor crônica Terapia cognitivocompor tamental e o enfermeiro Rev Psiq Clin 286 2001288294 Porto N Dor torácica In Compêndio de pneumologia São Paulo BykProcienx 1981 Provenza JR et al Fibromialgia Projeto Diretrizes Rev AMRI GS 493 julhosetembro 2005202211 Rabow MW Pontilat SZ Management ofpain and other com mon symptoms In Tiemey LMJr et al Current Medical Diagno sis and Treatment 20067180 Ratking G Swarm R Tratamento da dor e cuidado paliativo In Ramaswamy G Washington anual de oncologia Rio de Janeiro Ed GuanabaraKoogan 2004492507 Reuler JB et al The chronic pain sundrome Misconceptions and management Annals of Internal medicine n 93 1980588596 Sadock BJ Sadock V Manual de farmacologia psiquiátrica Por to Alegre Artmed 2002 p 276 Comprehensive Textbook of Psychiatry Philadelphia Lip pincott Williams and Wilkins 2005 Salemo SM et al The effects of antidepressant treatment of chronic back pain A metaanalysis Arch Intem Med L62 Jan14 20021924 Saimon T et al Patients perceptions of medical explanations for somatisation disorders qualitative analysis BMJ 3181999372 376 Sapira JD Reassurance Therapy What to say to symptomatic patients with benign diseases Annals of Internal Medicine n 77 972603604 Psicossomaticaindd 253 Psicossomaticaindd 253 05012010 121212 05012010 121212 254 Mello Filho Burd e cols Sauro MD Endogenous opiates and the placebo effect a meta analytic review J Psychosomatic research 53 2005115120 Scully JH Somatoform disorders In Scully Psychiatry New York Harval 1985 Sims A Sintomas da mente Porto Alegre Artmed 2001 Singh MK Patel J Galagh RM Chronic pain syndomes Me dicine from Webb MO October 26 2005 Sriram TG et aI Controlled Study of alexythimic charaters in patients com psychogenic pain disorder Psychoter Psychosom no 47 1117 Stembach RA Psychophysiologic Pain syndromes In Bonica JJ Management of pain 1990287298 StrainJJ The Problem of Pain In Psychological care ofmedically ill New York Appleton Century Croft 1975 Tasker RR Deafferentation In Wall PD Melzak R Pain Edin burgh Churchill Livingstone 1984 Tumer JA et al The importance of placebo Effects in pain treat ment and research JAMA 271201994 16091614 Twycross RG Lack S Therapeutics in terminal cancer London Pitman 1984 Walker E et al Relationship of chronic pelvic pain to psychia tric diagnoses and childhood sexual abuse Am J Psychiatry 145119887580 Wikipedia The free encyclopedia Placebo 31p Zanonato JJ Dor crônica e depressão Trabalho de conclusão do curso de Psiquiatria Faculdade de Medicina de Porto Alegre URGS Zborowski M Cultural components in response to pain J Soc Issues n 8 19521630 Zimerman DE Psicanálise em perguntas e respostas verdades e mitos Porto Alegre Artmed 2005 Psicossomaticaindd 254 Psicossomaticaindd 254 05012010 121212 05012010 121212 Entendese por imagem a representação de um objeto pelo desenho pintura escultura ou por quais quer outros recursos Compreendese por esquema a síntese sinopse ou resumo de algo que é objeto de estudos Por modelo o objeto a ser reproduzido por imitação e postura a posição do corpo com referên cia ao aspecto físico e à sua atitude Neste relatório embora tais dados semânticos sejam fundamentais e discriminatórios utilizaremos os termos esquema corporal modelo postural figura ção do corpo etc como sinônimos e na mesma linha da origem e das variações da palavra imagem Cer tos autores como Head 1920 e Shilder 1950 em alguns trabalhos mostram precisão e descriminação nos termos utilizados em outros revelam sinonímias de confusão Head 1920 propõe a palavra esquema para todas as mudanças de posturas antes de entra rem na consciência mas não tarda em utilizar apa rentes antônimos com o mesmo significado quando refere que as sensações térmicas dos músculos e seus invólucros vísceras etc conferem pela percepção a unidade do corpo que é chamada de esquema do corpo modelo postural do corpo ou imagem corpo ral Shilder 1950 relata que quando uma perna é amputada aparece fantasma o indivíduo ainda sente a perna e tem nítida impressão que ela continua ali Também pode esquecer sua perda e cair Esse fantas ma essa imagem animada da perna é a expressão do esquema do corpo O autor à semelhança desse fragmento repete várias palavras com o mesmo sig nificado de imagem corporal Não há o propósito neste relatório de indagar da anatomia da fisiologia e dos mecanismos cere brais que configuram a base da imagem do corpo mas as noções de como a vida psíquica estruturaliza o corpo Este trabalho procura investigar não apenas o exterior mas o interior do corpo sem assegurar se existem imagens no plano inconsciente ou se lida mos apenas com as disposições conscientes É claro que nos processos mentais ocorrem permeabilidades dessas estruturas com mudanças propiciando cresci mento e desenvolvimento do mesmo modo que emo ções e ações se interligam com a imagem do corpo CONCEITO A imagem do corpo estruturalizase em nossa mente no contato do indivíduo consigo mesmo e com o mundo que o rodeia Sob o primado do incons ciente entram em sua formação contribuições anatô micas fisiológicas neurológicas sociológicas etc A imagem corporal não é mera sensação ou ima ginação É a figuração do corpo em nossa mente Os órgãos dos sentidos entram na imagem do corpo como contribuições anatômicas e fisológicas Os organa sensuum são produtos diferenciados do ectoder ma que se dispõem na periferia do corpo tendo por função colocar o homem em sua relação com o mundo externo Por meio deles conhecemos a propriedade fí sica dos corpos e percebemos em cada momento da vida as múltiplas qualidades fixas ou mutáveis úteis ou nocivas do ambiente em que vivemos Pelas numerosas noções fomecidas os sentidos constituem fonte importante de nossas ideias com considerável influência sobre os atos psíquicos São agentes de proteção sentinela avançada aos diversos perigos que nos ameaçam permitindo reações quer voluntárias quer reflexas As impressões produzidas nas superfícies sen soriais dos estímulos externos são transportadas ao cérebro que as recebe e elabora transformandoas em sensações especiais visuais auditivas olfativas gustativas e táteis Do ponto de vista morfofisiológico cada órgão dos sentidos se compõe de três partes a parte periférica destinada a receber impressões dos agentes estimulantes constituindo o apare lho de recepção b parte central situada no eixo cerebrospinal com função de perceber impressões produzidas sobre 18 IMAGEM CORPORAL Helládio Francisco Capisano Psicossomaticaindd 255 Psicossomaticaindd 255 05012010 121212 05012010 121212 256 Mello Filho Burd e cols a parte periférica elaborandoas constituindo o aparelho de percepção c parte intermediária que serve de união das duas partes anteriores destinandose a transmitir im pressões do aparelho de recepção ao aparelho de percepção Em seu resultado final a imagem do corpo é unidade passível de transformação onde todos os sentidos entram em colaboração A influência da esfera visual na imagem do corpo é mostrada por Shilder 1950 ao relatar observação de quando se está de pé numa escada rolante parti cularmente cheia de gente temse impressão de subir no plano inclinado Quando a escada se movimenta os pés não se encontram em ângulo reto em relação às pernas mas dobramse em ângulo correspondente à inclinação da escada A impressão pode provocar sensações desagradáveis junto às articulações Dissi pase essa ilusão com o olhar orientado para os pés agora observados em posição normal Nossa relação com o solo e com a gravidade constitui fator importante nos mecanismos de movi mento e na percepção da imagem É nossa visão global que delineia o nosso corpo em relação à situação do mundo externo Quando se move o pé a ilusão desaparece A experiência mostra que a percepção de nosso corpo não supera a percep ção do mundo externo Pouco sabemos sobre nosso corpo quando parado Aprendemos sobre ele através de movimentos e de contatos com o mundo externo Quando se provoca dor por meio de alfinetadas as picadas se tornam mais nítidas quando a atenção está voltada para o objeto e não para a sensação As sim o esquema do corpo é ora determinado pela fi gura visual ora pela sensação tátil Do ponto de vista sociológico Muraro 1984 estudando mulheres de diferentes classes sob a ima gem do corpo esclarece que a mulher de recursos aceita o seu corpo quando bonito rejeitandoo quan do feio A mulher do campo interessase pelo seu cor po quando está gorda forte e apta para o trabalho e produção A mulher da colheita de cana gosta do corpo porque foi Deus quem o deu não possuindo qualquer modelo para se identificar enquanto que a mulher operária voltada as telenovelas supõe o seu corpo muito sexy Sobre sua imagem do corpo depois de terem filhos as mulheres assim se expressam a mulher de recursos controla o seu corpo com dieta massagens e cirurgia plástica a mulher do campo la menta que seu corpo afinase como vela e a operária julgao bonito como as atrizes de TV O corpo sentido como prazer no que respeita ao orgasmo Muraro ibidem apurou a mulher de recursos afirma ter orgasmo ser favorável em 90 a relações sexuais antes do casamento e a favor do adultério com busca de prazeres fora do casamen to mas não o rompendo porque se apoia no sistema financeiro A mulher camponesa exterioriza comple ta ausência de prazer com sexo ligado a procriação e medo de engravidar sendo vedado totalmente o adultério face às pesadas sanções sociais e a mulher operária finge orgasmo para segurar o marido não se interessando pelo adultério por não poder prescindir do salário do esposo a fim de preservar sua precária estabilidade econômica A mulher de recursos cuida de seu corpo dei xando os filhos com uma babá ou governanta a mu lher operária embora interessada pouco se entretem com o corpo vai para o trabalho ficando a guarda de seus filhos com mãe tia e filhos mais velhos a mu lher camponesa nem se lembra de seu corpo deixa os filhos sozinhos e vai trabalhar no campo Muraro ibidem continuando suas pesquisas na mulher do Rio de Janeiro com maiores recursos na mulher operária de São Paulo e na mulher camponesa de Pernambuco registra que mulheres entre 12 e 16 anos utilizam o corpo como fonte de prazer de modo inconsequente Os abortos praticados por adolescentes de recursos se efetuam sem sanções e sem sentimen tos de culpa conscientes os praticados por operárias o são por pressão econômica e entre as camponesas a prática é proibida por ser pecado mortal Nos anos 1960 diz a socióloga Muraro ibi dem a mulher interessouse pela sua independência financeira e sexual nos anos 1970 hipervalorizou o orgasmo e nos anos 1980 interessouse pelo equilí brio A autora insiste em mostrar que a mulher tem interesse em sua imagem corporal na dependência de sua situação econômica Esses dados mostram como a mulher modificou nesses últimos 20 anos o investimento de sua energia libídica Nos anos 1960 aplicouse para sua indepen dência nos anos 1970 imitando aquele homem que desvincula afeto do corpo valorizou exageradamente o orgasmo e nos anos 1980 investe de forma mais equilibrada sua energia libídica tanto em si como em seu parceiro A estrutura final do modelo do corpo depende da situação global Ela decorre de síntese cuja ope ração reúne representações de várias procedências umas com as outras resumindo todas as diferenças em um só conhecimento o corpo Não há dúvida que o conhecimento que sintetiza diferenças produz confusão Mas a síntese que junta os elementos reúneos de certa maneira para confe rirlhes conteúdo Não se trata de soma de elementos irregulares mas processo total que possui forma Síntese geral é simples obra de imaginação as sinala Kant 1965 ou seja função cega ainda que Psicossomaticaindd 256 Psicossomaticaindd 256 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 257 indispensável sem a qual não teríamos conhecimen to de coisa alguma função de que raras vezes temos consciência É a primeira coisa a que devemos dedicar a nossa atenção quando queremos julgar a origem de nossos conhecimentos A sintese pura é conceito intelectual fundada com principio da unidade sintética a priori A imagem do nosso corpo não se estabelece a priori mas à custa de nossa percepção que vai regis trando modelos de postura que se modificam cons tantemente a partir de manifestações emocionais que por seu turno dependem da mobilização das zonas erógenas Em cada momento cada atitude emocional confere determinado modelo postural O esquema do corpo é dinâmico obedecendo ora a correntes cons trutivas da vida ora a correntes destrutivas em contí nuo movimento de autoconstrução e autodestruição Justificase esse conceito a partir dos instintos de vida e morte base das percepções influindo na consecu ção da estrutura do modelo do corpo Graças a nossas emoções e a nossa sensibili dade podemos conhecer os objetos e consequen temente o corpo As impressões de nossos sentidos oferecem motivos para desenvolver toda nossa facul dade de conhecer e de constituir experiências Toda experiência contém dois elementos distintos o obje to para o conhecimento procedente da fonte interna da intuição e o pensamento o qual motivado pelo primeiro produz o conceito A percepção total só é possível quando conseguimos manusear o objeto O conhecimento e a percepção decorrem de processo ativo É difícil diferenciar os distúrbios de percepção O indivíduo pode não perceber seu próprio corpo mas preserva a capacidade de perceber os objetos Os movimentos dirigidos a nosso corpo são psicológica e fisiologicamente diferentes dos movimentos referidos aos objetos PLANO DE EXPOSIÇÃO A exposição do tema obedecerá ao plano se guinte 1 Desenvolvimento da imagem corporal 2 Construção da imagem corporal 3 Alguns desvios da imagem corporal 4 lmagem corporal do neurótico 5 Imagem corporal do psicótico 6 Conclusões 7 Resumo Os dados propostos para o tema guiamse pelo empirismo e o material clínico em parte é do autor e em parte extraído da literatura Desenvolvimento da imagem corporal Para entender o desenvolvimento da imagem corporal de um criança devemos acompanhar as sensações percepções e reações motoras reveladas por seus desenhos Há neles dados justapostos sem relações sintéticas em que uma perna está próxima de um braço um olho na parte alta da cabeça um ouvido no meio da face etc por ações sensoriais mo toras incompletas As crianças desenham figuras humanas refletin do a imagem mental que possuem de nosso corpocom projeções de formas isoladas e desconexas Usam o controle motor dos membros a experiência visual e tátil na construção do eu corporal segundo necessida des de suas personalidades O exame desses desenhos nos dá ideia de que os modelos do corpo resultam da capacidade criati va gestáltica do psiquismo da criança que traduz desenvolvimento desde o estado embrionário até certo amadurecimento E possível que cada traço tra duza impulso algo específico para cada movimento Associamse outros riscos até a configuração final da imagem do corpo alcançada a partir de motivações internas Kanner e Shilder 1930 discordam que a ima gem corporal possa ser alcançada de modo passivo partindo do mundo interno e na dependência dos di ferentes estágios de desenvolvimento Julgam inade quada qualquer tentativa de basear a psicologia da ação em representações de movimento Presumese que o modelo postural presente em nossa mente guarde traçados originais da infância Dirseia que o desenho do fantasma feito por ampu tado é pequenino como retorno à imagem infantil A nossa vida psíquica confere mudanças con tínuas de imagens ora deformandoas ora agigan tandoas ora diminuindoas como pequeninos seres levando a número infinito de imagens corporais Se mudamos de modo contínuo o nosso psiquismo tam bém alteramos os nossos modelos do corpo Como estamos acostumados a ter um corpo in teiro é possível supor que uma pessoa amputada rea tive as percepções emocionais infantis Bettelheim citado por Shilder 1950 relata sobre um paciente que sentia o braço direito guardado em algum lugar e que oportunamente lhe seria devolvido A não per cepção decorre de diferentes atitudes emocionais em diferentes situações penosas de vida que exigem adaptações sucessivas extremamente difíceis O pro gressivo e lento contato com o mundo externo após frustrações muito dolorosas oferece sensações regu ladoras razoáveis Podese supor que o indivíduo ao obter a im pressão de seu próprio corpo o faça como se fora Psicossomaticaindd 257 Psicossomaticaindd 257 05012010 121212 05012010 121212 258 Mello Filho Burd e cols observador externo que olha a pessoa de frente Será que representamos o nosso corpo do mesmo modo que vemos um objeto externo A nossa imagem feita de olhos abertos ou fechados é sempre vaga defei tuosa e incompleta Com os olhos fechados conse guimos ver nosso corpo com o olho psíquico que se encontra em qualquer lugar de nossa economia Esse olho psíquico veria nosso corpo por fora ou por dentro e funcionaria somente quando a pessoa se encontra com os olhos fechados Nosso corpo parece ser mais percebido quando estamos em movimento porque as sensações são co lhidas na realidade nas relações com os objetos Com a experiência visual a criança ao estabe lecer relações com o mundo contribui sem dúvida para a formação da imagem corporal É evidente que outros recursos inclusive todos os outros sentidos cooperam para a figuração corporal A energia de vida as ações e as determinações sensomotoras sob influência de impulsos internos levam a criança em processo ativo e contínuo de desenvolvimento a con figurar em desenhos seu esquema corporal Este não revela à luz de nossa observação grande capacidade de síntese Os pormenores se justapõem uns aos ou tros A incapacidade sintética possivelmente ocorre por conta em parte dos recursos motores e senso riais ainda não integrados À medida que a criança evolui na idade a li nha reta vai surgindo e se reafirmando Assimetrias e deformações são predominantemente observáveis em desenhos de crianças abaixo de 5 anos Imagens incompletas falta de mãos e pés aparecem às ve zes até aos 10 anos Preocupações com pormenores e cores surgem depois dessa idade Aos 12 a assimetria começa a desaparecer coincidindo com a preocupa ção de impressionar favoravelmente os adultos com interesse objetivo do que desenha de si mesma O movimento das imagens é contínuo observá vel tanto em crianças de 5 como em homens de 50 anos A criança traça suas linhas despreocupadamen te parecendo que o movimento é consequentemente a ação e que elas se conduzem de modo a unificar partes do corpo passíveis de transformações Se antes desenha cabeça tronco e membros separados entre si evidenciando debilidade nas conexões logo depois arguta e penetrante indaga se deve desenhar seu cor po por dentro ou por fora Põese a transpor no papel a confecção de sua figura por dentro que toma tanto vigor que faz desaparecer em criança de 5 anos os contornos externos Tudo como se nos indicasse sua capacidade de também verse por dentro As ditorções vão diminuindo com o avanço da idade Pernas braços mãos e pés de início muito grandes vão não só se modelando como ganhando proporções mais adequadas Nossas observações se referem a crianças sem distúrbios de sensibilidade sem alterações da função vestibular sem encefalites epilepsias psicoses into xicações etc Nos desenhos ocorreriam mutações de ideias in conscientes permitindo inserção de códigos interpre tativos O material em desenhos permitiria o conheci mento da representatividade psíquica em sua forma distúrbios funções e em seu próprio desenvolvimen to Tanto o desenho como o relato verbal expressam produtos de percepção com viabilidade interpretati va na dependência dos créditos a eles conferidos O que importa é a procura da significação do caráter do processo que emana do paciente que exercita ativi dade simbolizante Construção da imagem corporal O corpo pode ser considerado em sua constru ção como unidade destacandose massa pesada com orifícios cavidades e protuberâncias desenvolvidas em superfície e contorno Dentro dessa unidade desenvolvemse sensações que podem ser compreen FIGURA 181 Psicossomaticaindd 258 Psicossomaticaindd 258 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 259 didas em quatro níveis diferentes interligados O pri meiro seria fisiológico medular simpático e periféri co O segundo ligado às atividades focais do cérebro O terceiro diz respeito às atividades orgânicas gerais relacionadas à região cortical O quarto nível seriam os processos que ocorrem na esfera psíquica com in fluências contínuas no soma Estes diferentes níveis em interação psicofisiológica contínua interferem no modelo postural do corpo caracterizando nossa vida Embora considerese que existam mais níveis como três níveis somente na função cortical devese ressaltar que as atividades do nosso organismo são primariamente psíquicas A vida emocional goza de importância básica na construção do modelo postu ral do corpo Basta dizer que o contorno da imagem corporal é conferido pelo bom desenvolvimento dos níveis afetivo e libidinal A massa pesada pode se tornar espumosa ou es buracada surgir frouxa e depois tensa A cavidade dos órgãos sexuais femininos como buracos e o ór gão sexual masculino de frouxo a tenso duro como madeira Uma parte do corpo pode simbolizar outra O falo representado pelo nariz ou por qualquer par te protuberante Fossas nasais boca ouvidos vagina e ânus integram o grupo dos orifícios É sabido que nas manifestações hipocondríacas a troca simbóli ca entre os órgãos provocam sensações que atraem atenções constantes dos pacientes porque os órgãos intensamente erotizados simbolizam genitais O hi pocondríaco assume atitudes despertando interesse das pessoas pelos seus órgãos quando então elabora imagens de seu corpo Do ponto de vista psicanalítico a imagem cor poral é construída através da interação entre o ego e o id em interjogo contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais Há no indivíduo da infância até a idade adul ta interesse pelo próprio corpo No início da vida a criança revela atenção em si própria concentrando a libido em partes do corpo com significação erógena particular É para a boca que a libido narcisicamente se volta Poderseia dizer que a imagem corporal co meça a se desenhar na boca porque há um núcleo da imagem corporal na zona oral A cabeça os braços as mãos o tronco as pernas e os pés cresceriam a partir desse núcleo Existiria desenvolvimento primário que começa na zona oral e um refinamento secundário segundo Bernfeld 1929 que diferencia o ego corpo ral do mundo externo Na criança em que a fantasia do ego corporal é tão grande a mão tem que ser eli minada e na criança onde é excessivamente pequena os dedos dos pés devem ser acrescentados A criança ao tentar satisfações próprias põese em contato com o mundo externo tentando incorpo rála através da boca A libido ao se concentrar na boca também o faz para o objeto do mundo externo A imagem corporal inicial menos a boca é percebida simultaneamente da mesma forma como o é o objeto externo Nosso corpo existe desde o início de nossa vida como parte do mundo externo em experiên cias de íntima conexão É provável que as frontei ras entre o mundo externo e o mundo interno em nível primitivo não sejam claramente definidas O corpo imaginado como estrutura mais compac ta poderia ser projetado no mundo externo e este como estrutura mais frouxa introjetado pelo corpo Seriam expe riências ativas com partes aceitas e par tes rejeitadas Esse intercâmbio contínuo e perma nente com zona intermediária de indiferenciação conduziria experiências cujas origens não poderiam ser atribuídas inteiramente nem ao corpo nem ao mundo externo A imagem do corpo seria construída progressivamente na procura de partes que se en caixam no todo em níveis e camadas distintas em experiências contínuas O indivíduo estaria sempre voltado para o mundo externo na expectativa de aquisição de novos dados para construção de sua imagem corporal através de erros e acertos guiados pela experiência O fluxo da encrgia libidinal por ser dinâmico da boca atinge o ânus podendo também mudar a imagem do corpo porque agora a concentração libi dinal se faz no extremo oposto do aparelho digestivo Em seguida os genitais fonte de prazer especial e as sensações uretrais completam a imagem configuran doa É vidente que o erotismo muscular é cutâneo com sensações provenientes da pele e tem significa do para o delineamento da superfície do corpo Os orifícios do corpo auditivos nasais aber tura dos olhos boca ânus meato urinário e orifício vulvar através dos quais nos colocamos em contato com o mundo ao permitirem trocas essenciais ar sons alimentos fezes urina e produtos sexuais constituem zonas sensoriais e eróticas de grande im portância nas diferentes funções de nossa vida bem como pontos referenciais do modelo postural Exis tem linhas de energia que conectam esses diferentes orifícios zonas de predomínio erógeno com acúmulo maior de libido neste ou naquele orifício de acordo com as tendências psicossexuais do indivíduo Ao se fazer referências anatômicas a esses orifícios e ao se dar ênfase às tendências psicossexuais aproximase o corpo da mente pois essas aberturas do soma são sede de fantasias psíquicas Os olhos registram as alterações do mundo ex terno para conservação da vida e ao mesmo tempo vislumbram os objetos de amor denominados encan tos Seriam órgãos com dupla função a serviço de dois tipos de instintos Os olhos constituem parte enfati Psicossomaticaindd 259 Psicossomaticaindd 259 05012010 121212 05012010 121212 260 Mello Filho Burd e cols zada de imagem corporal pois através deles ocorre a penetração no mundo externo Os orifícios constituem as zonas mais sensíveis do corpo com sua psicologia específica Os órgãos portadores dessas aberturas levam o indivíduo a ter contato com o mundo externo e com isso se procede a descoberta do corpo O ser humano chega ao conhecimento de seu próprio corpo através de impressões colhidas pelos órgãos dos sentidos particularmente impressões tá teis e visuais vinculadas à dinâmica psíquica Os genitais fontes de contínuas sensações e es timulações levam o indivíduo a se colocar com fre quência em contato com eles A pele pelo registro de inúmeras sensações provoca a necessidade do contato das mãos sobre ela Não há dúvida de que as mãos deslizando sobre o corpo permitem estabelecer os seus contornos Quando o indivíduo é vítima de dores a mão procura a região dolorida que ganha maior erogenei dade transformandose em novo centro libidinal A estrutura da distribuição da energia libídica se mo difica pois o centro de atenção do indivíduo se volta para aparte do corpo atingida Os movimentos contí nuos das mãos registram as diferenças entre as partes do corpo que podem ou não serem vistas É evidente que nossa própria atividade manual não é suficiente para construir a imagem do corpo Percebemos nosso corpo muito mais em movimento e no contato com os objetos do que em repouso A imagem corporal provavelmente não existe per se é parte do mundo externo e por essa razão é estrutura mais ou menos vaga Nunca é estática Tem sempre tendências à ruptura Com as alterações fisio lógicas habituais e com as mudanças do fluxo libidi nal face aos desvios das situações de vida podese inferir da contínua modificação da imagem corporal Não há imagem corporal sem personalidade pois ambas mantêm relação intima e específica A imagem corporal não se modifica apenas pela matu ração dor doença e mutilação mas também por toda insatisfação que está ligada ao distúrbio libidinal A personalidade humana atravessa situações das mais diversas na vida tornandose imperiosas as mudan ças e adaptações Tudo isso se reflete na construção da imagem do corpo É utópico manterse o esquema FIGURA 182 FIGURA 183 Psicossomaticaindd 260 Psicossomaticaindd 260 05012010 121212 05012010 121212 Psicossomática hoje 261 corporal dentro de certos limites ou expandilo pois a movimentação é continua na dependência de cor rentes anabólicas e catabólicas de vida Nem todas as pessoas possuem certa unidade emocional da imagem do corpo Particularizese por um individuo procurando incorporar imagem de ou tra pessoa que admira Talvez obtenha certa unidade quando se desenvolvem relações objetais totais e par ticularmente quando o complexo de Édipo é alcan çado Mudanças bruscas da imagem corporal podem ser observadas no tratamento analítico de pacientes hipocondríacos Em fantasma adquirem os órgãos genitais do analista em evidente ruptura da estrutu ra libidinal como acontece nas psicoses como vere mos mais adiante Os sadomasoquistas e os melancólicos quase dissolvem a estrutura libidinal e com isso mudam profundamente a imagem corporal A situação libidi nal da forma final ao modelo postural porque as di ferentes condições de vida levamna a alterarse com muita frequência Em clínica médica ou cirúrgica consciente ou inconscientemente o corpo é tratado como objeto externo O paciente além de se imaginar como tal deseja também que seu corpo seja cuidado como algo de fora Há enfermos com imagens corporais fora dos contornos clássicos Um obsessivo ao transformar o seu conteúdo mental em alucinações descreve que seus intestinos transpondo as janelas da casa se pro tejam na rua na ameaça de serem estraçalhados por uma locomotiva Tais condições patológicas serão abordadas mais adiante O interesse observado pelo corpo de outra pes soa sobretudo quando existe anomalia contribui para a configuração postural Vida social rica em ima gens corporais proporciona soma de posturas cujo resultado constitui a imagem final do corpo Embora o indivíduo admita sua independência sua postura corporal é resultante das imagens das pessoas com as quais se relaciona Há relação nítida entre imagem corporal e zo nas erogenas A nudez a vergonha a timidez e o en rubescimento nos encontros sociais onde se cruzam corpos testemunham a ligação erógena Os olhares das pessoas entre si permitem troca de imagens e como resultado terseia a existência da imagem so cial do corpo A moda feminina quando lançada ten ta conferir singularidade a uma mulher tornandoa diferente das outras Não tarda muito a moda entra em evidência e as mulheres somando se igualam A vida social proporciona imitação e consequente identificação de imagens corporais Nossa própria imagem corporal não é possível sem as imagens cor porais dos outros Não sabemos com pormenores como se desen volve a imagem corporal Admitimos um desenvolvi mento interno uma maturação em todas as áreas da vida psíquica em conexão com experiências de vida Podese supor que traços específicos da configuração postural dependem de atitudes emocionais repetidas Não se podem afastar funções determinadas pela ana tomia e fisiologia Mas seria oportuno adiantar que o mundo psíquico é tão preponderante que determina quais as partes anatômicas ou funções psicológicas que devem ser utilizadas Corpo é expressão do ego de uma personalidade A imagem corporal não é sempre a mesma E lábil mutável e incompleta Depende do uso que fa zemos dela de nosso pensamento de nossas percep ções e das relações objetais Não devemos esquecer que é necessária a ativi dade cortical para que ocorra a imagem postural O cortex e necessário para integração final dos diferen tes processos que conduzem a construção da imagem do corpo Ele condensa um sem número de impres sões impulsos sensações memoria pensamento etc Alguns desvios da imagem corporal Entendese como desvio da imagem corporal a não coincidência com o corpo Na criação da realida de poderseia perceber certa tensão com significa do de algo de dentro Tal tensão exigiria objeto para aplacála quando então terseia algo de fora O corpo poderia constituirse das duas coisas simultaneamen te mas no fundo é algo diferente face às sensações táteis e dados sensoriais Com isso transformase em algo diferente do mundo A soma das representações psíquicas do corpo e dos seus órgãos constitui a ima gem do corpo e esta pode não coincidir com o corpo objetivamente considerado Podemos diferenciar dois grupos de fenômenos a grupo ligado à aparência externa do corpo b grupo relativo à parte interna Aparência externa do corpo Um jovem de 27 anos sentiase muito bem quando suas calças estavam passadas e com os vin cos bem visíveis e em linha Tinha preocupação ob sessiva em conservar em perfeita ordem essa parte de sua vestimenta que lhe conferia bemestar físico Quando não se sentia bem com seu corpo atribuíao a alguma parte da calça que estava amassada sobre tudo junto aos vincos As calças inconscientemente Psicossomaticaindd 261 Psicossomaticaindd 261 05012010 121213 05012010 121213 262 Mello Filho Burd e cols como partes do corpo entravam na constituição da imagem corporal Não se trata do corpo real Tal ima gem pode desenvolver grande importância no proces so da formação do ego O indivíduo pode excluir do seu corpo certos órgãos como incluir em sua imagem corporal anéis penduricalhos e até um automóvel Os objetos referidos encontram suas representações intrapsíquicas porque recebem um montante especí fico de energia libídica Os órgãos excluídos também têm representações intrapsíquicas pois sem estas não seriam aleijados do corpo Um homem de 38 anos passou inopinadamente a usar chapéus Não podia sair à rua sem eles A cabeça deveria ser protegida e amparada O chapéu mantinha sob pressão a calota craniana impedindo a saída da massa encefálica Quando na rua era surpreendindo por ventos desesperavase mantendo o chapéu fir memente com as mãos Sua imagem corporal havia se modificado O chapéu fazia parte dela quando saía à rua A cabeça ficara carregada de intensa libido Uma senhora de 45 anos muito gorda rebelde a tratamentos dizia que seu marido deveria aceitá la como era Não seguia tratamento algum para a obesidade porque seu corpo de certo modo não lhe pertencia não era inteiramente seu Se era gorda a responsabilidade não lhe cabia O sentimento cor poral normal desaparece da consciência permanece oculto sob intensa contracatexia Não significa que toda energia libídica tenha sido retirada do corpo Uma jovem de 23 anos somente saía à rua quan do calçava sapatos de cor cinza Quando por razões múltiplas utilizava calçados de outra cor estranhava o seu andar escorregando e tropeçando seguidamen te Perdera o pai grande admirador da cor cinza mas rígido na disciplina e castrador Na rua a paciente sentiase livre quando pisava sobre o cinzento duro inflexível e castigador do pai A paciente acusava diminuição das sensações dos membros inferiores e certa estranheza em seus pés modificando sua imagem corporal Um parecer neurológico mostra prejuízo nas sensações tácteis e não sensações internas de sensibilidade profunda As experiências de algo estranho ao andar podem su gerir tipo específico de defesa dirigida contra os pró prios sentimentos Um homem de 42 anos tornavase silencioso evitando falar à noite Sua voz era estranha tonitro ante e cavernosa Tremia ao ouvila parecendo de outra pessoa que não conseguia ver Seus ouvidos ti veram grande significação erótica Em criança sua babá se encarregava da higiene de seu pavilhão audi tivo proporcionandolhe muito prazer o que em certa oportunidade foi proibido por sua mãe que julgou in decorosa a atitude da moça O órgão auditivo expres sa conjunto especifico da vida emocional desse ho mem modificando sua percepção do mundo externo e consequentemente alterando a postura corporal Uma moça de 25 anos teme olhar no espelho Quando o faz não consegue reconhecer sua pessoa Observa no espelho como expectadora outra pes soa Tal modificação ocorre tanto no mundo externo como no seu ego que é primariamente algo corporal A imagem é o núcleo do ego assegura Trench 1935 Talvez uma experiência infantil acarretasse debilida de do ego e fraqueza em sua imagem corporal Peque nina brincava com a avó com espelho Este coloca do em sua frente permitia observar sua imagem e depois quando retirado sua avó punhase de frente exibindo cara de monstros Um moço de 28 anos muito tímido e míope decide em certa época caminhar sem óculos assegu rando ser seu vício de refração decorrente de falta de exercícios da visão Nega para si o direito de ver e o prazer da observação visual Sua decisão de não usar óculos coincide com o desejo de sua noiva usar rou pas decotadas e provocantes Através de sadomaso quismo substitui sua própria visão por autopunição de seu próprio eu Sua imagem corporal modificase pelo impedimento da observação visual que poderia ser o desejo de véla despida Temia a explosão incon trolável de sua sexualidade Da luta entre ego e ideal do ego resultaria perversão sexual expressão de im pulsos infantis severamente reprimidos e escondidos pela timidez Um homem de 30 anos fora aos 8 examinado por médico Tivera conhecimento do saco escrotal O achado clínico despertou interesse de sua mãe que pe riodicamente examinava os seus genitais apalpando os A observação do médico e o interesse da mãe leva ramno a fantasia de sofrer dos genitais com prejuízo de suas funções Detesta seu corpo particularmente os órgãos sexuais sobrecarregados de libido Procura fugir do soma interessandose pelas atividades inte lectuais e leva vida de solteirão Sua relação com a mãe na elaboração do complexo de Edipo foi carre gado de muitos conflitos Tendências profundamente sádicas em relação à genitora se desenvolveram Sua identificação com o pai muito pudica centrouse no ego ideal de características intelectuais Convidado para desenhar a imagem de seu corpo só o fazia da cintura para cima com relevo da cabeça muito gran de e desproporcional ao resto O conhecimento do corpo desse paciente se desenvolveu na base de rela cionamento com o mundo externo particularmente com sua mãe Toda ênfase genital se deslocou com intenso colorido libídico para a cabeça Desvio que deve ser registrado é aquele em que o indivíduo não ousa colocar sua libido nem no mun do externo nem no corpo despersonalizandose Tal desvio é frequentemente acompanhado de vertigens Psicossomaticaindd 262 Psicossomaticaindd 262 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 263 Registramos até o presente fragmentos de ob servações clínicas focalizando contornos externos da postura do corpo Seguemse outras observa ções mostrando como os pacientes veem o corpo por dentro Aparência interna do corpo No modelo postural do corpo não há apenas contornos e superfície Há o interior do corpo do qual se pode ter percepção de algo estar acontecendo dentro dele pelo menos em fantasia Talvez o cor po por dentro possa ser sentido como massa pesada com uma substância que o preenche Alguns autores como Shilder 1950 asseguram que somente a sen sação de massa pesada é que pode ser registrada O corpo que parece tão próximo de nós apa rentemente tão conhecido e no fundo posse muito incerta ameaçando nossa onipotência Evidentemen te o corpo não é apenas salsicha cheia de carne na expressão do marxista Bukharin citado por Kornilow 1930 Minha experiência Capisano 1978 em clínica médica e em gastrenterologia conferiramme conhe cimentos sobre o aparelho digestivo Mas a análise a que procedi ibidem de um anatomista me ensinou que importa tratar o paciente cujo aparelho digestivo se encontra representado em sua mente e não aquele que tenho em minha cabeça Um médico docente em Anatomia procurou tratamento analítico para aliviarse de intensos so frimentos derivados de enterocolopatia crônica Em análise há 2 anos fala muito de seus intestinos cujas alterações residem em nível funcional caracterizados por período de diarreia e constipação com predomi nância de prisão de ventre Faz referências a cólicas abdominais tanto na diarreia como na constipação Refere que a mãe usava supositórios quando transita va por período constipante Casado com mulher viúva de cujo consórcio an terior tem enteada de 18 anos Teve com a mulher uma filha Viveu como filho único com os pais donos de pensão em cidade do norte do país Mãe domina dora e gerente dos negócios da pensão Pai passivo e tolerante jamais censurando ou premiando o filho Na pensão onde residia habitualmente espio nava pela fechadura os casais na cama repetindo o que sempre fizera com seus pais Seu relacionamento com a mulher sempre foi considerado razoável mas com a enteada mostrou durante longo tempo desejos de ordem sexual O mais frequente em sua análise é sua apreensão pela homossexualidade Quase sempre em suas associações dá impressão de ter medo da homossexualidade dizendose homossexual sem ter experiências nesse sentido salvo quando criança com relatos pouco expressivos Tem ensaiado experiên cias práticas com homens para indagar o que é ser homossexual Tem observado conversado passeado e tudo não passa de uma nebulosa Procura mobilizar o analista para colher através de divagações teóricas informações sobre homossexualismo Vive imaginan do Imagina seu pênis entrando pelo seu ânus porque teme pênis estranho entrando dentro dele Parecia defenderse do medo de ser homossexual comigo Sempre se mostrou grande controlador de tudo e de todos bem como de todas as suas manifestações Faz referencias técnicas sobre diferentes aspectos da psicanálise que vão surgindo nas sessões pois lê Freud Melaníe Klein Winnicott Lacan e outros au tores Deseja saber qual o meu esquema referencial teórico pois não consegue descobrilo É minucioso pormenorizador e calculador com números a todo instante em sua cabeça Receia na análise saber mais do que o analista pois de repente ao vêlo desvalorizado o tratamen to poderia acabar Com sua superioridade ameaça desprezo Certa vez desejou aplicar conhecimentos psicanalíticos em seus alunos Quando o analista lhe observou que o invejava e desejava ser como ele pa ralisouse e nunca mais falou no assunto Espia a vida mas não vive Espia os livros espia a mim procurando algo que o excite Presume que eu olhe para ele sem que eu mesmo possa perceber O paciente olha e se relaciona com o seu próprio olhar Fiscaliza tudo o que sente em seu aparelho di gestivo sobretudo seu ânus pois seu descontrole pode refletirse na cabeça Não confia em sua cabeça e por essa razão confia mais em seu aparelho di gestivo talvez mais sincero que sua cabeça pois fa cilmente revela descontroles Não dorme bem pois necessita controlar os sonhos Em uma das sessões começa dizendo que na quele momento vê o seu corpo como um ovo com dois orifícios nos polos Logo depois o corpo se trans forma em geladeira com abertura na parte posterior tendo junto a esta ventilador cujo movimento forma camada de ar para conservar o que existe dentro Reproduz o tubo digestivo com boca e ânus Foge do contato com o analista entrando por uma porta e fugindo por outra É frio como geladeira e necessita do calor do analista para descongelar o que tem dentro de si Volta a descrever o tubo digestivo temendo fa lhas de controle dos esfíncteres Parece transformar a análise em exame retossigmoidoscópico Deseja que o analista entre pelo seu ânus olhe lá dentro e des cubra porque suas coisas não podem ficar dentro de si mesmo sem que tenha conhecimento delas O seu olho funciona como esfíncter que enxerga Olha tudo Psicossomaticaindd 263 Psicossomaticaindd 263 05012010 121213 05012010 121213 264 Mello Filho Burd e cols mas nada vê O esquema de seu corpo pode ser repro duzido assim Teme que os conteúdos bons fabricados pelo ego possam ser evacuados desaparecendo através do ânus Sua cabeça tem elementos estranhos e familia res sobre estrado de madeira que pode ceder e arre bentar Preciso de madeira mais sólida para aguentar pessoas em cima Onde comprar essa madeira Aqui mas o senhor é analista isso me desesperal Apanha de seu bolso papel e lápis e desenha Creio que deveriam existir pressões simultâ neas ou seja evacuação e excitação sexual ao mesmo tempo Um cheio para não esvaziar o outro Haveria evacuação completa e depois relação sexual comple ta tornando o indivíduio vazio podendo até morrer Não penso assim mas esvaziamento é morte Nas relações sexuais sempre tive atitude conti da Seriam relações sexuais frequentes Estoque não se renova pode terminar Devemse manter reservas O mesmo ocorre com os intestinos isso tudo gera an siedade Se solto fezes se falo se solto sexo há va zio e morte Isso tudo não pode acontecer ao mesmo tempo Hoje na análise reconheço soltei a fala As fezes são coisas sujas a fala é vento O sexo é bom e branco Não podem se misturar Prossegue em suas alucinações dizendo Sin tome como um globo cheio de água que vai esva ziando Mas devo ser firme compacto com esfíncteres no lugar do esvaziamento para contrapor a moleza do globo e assegurar a vida Em outra sessão o paciente volta muito angus tiado temendo a morte ou a loucura Sentese caindo em precipício e às vezes perdendose pelo ânus atra vés do qual desapareceria A sua imagem corporal pa rece ser esta mente conteúdos mentais tubo digestivo esfíncteres O analista poderia dar algo para tornar o seu ego mais forte ter estrutura mais coesa para impe dir que da mente em conexão direta com o aparelho digestivo os conteúdos mentais poderiam sair pelo ânus quando então o paciente se esvaziaria poden do morrer Certa noite acordei muito assustado depois de um sonho O meu corpo era uma bola Era só bar riga Põe em seguida a mão no abdome e com os dedos assinala sua imagem estrutura Sentimentos Indivíduos Aqui dentro sentimentos e indivíduos julgados pela estrutura podem ser aprovados e louvados ou reprovados e punidos Passa a seguir a falar sobre relações do abdo me com o aparelho genital Prisão de ventre seca diz é aquela que sobe para o abdome e agita Como não há evacuação não há relação sexual isso gera desvios sexuais A prisão de ventre intoxica quando se difunde Se há contensão do sexo este se deriva Há canal que comunica o pênis com o reto O pênis teria continuação passando através da bexiga para O reto O canal do pênis que passa em continuação pela bexiga e que vai ao reto é interrompido pelo no do umbigo Nó do umbigo Bexiga canal do pênis escroto reto Globo cheio de água Esfíncteres de controle Seu sistema de controle está enfraquecido Nes sa altura teme a análise como exame retossigmoidos cópico O analista poderia usar seus olhos entrar pelo ânus seguir pelo reto até atingir a mente retirando Psicossomaticaindd 264 Psicossomaticaindd 264 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 265 todos os seus conteúdos Teme se perder enlouquecer ou mesmo morrer Conta com grande ansiedade que preferiria um analista que fosse cirurgião porque não suportaria taquicardia respiração difícil dores no tórax e cheiro horrível e inaguentável de morte O paciente trata os sonhos como fezes evacuan doos Habitualmente não fala com o analista porque não está com ele Relata os sonhos para um analista mas não para aquele que alí está Quando tem pro blemas com a mãe imagina a solução no seu corpo através de seu pai O pênis do pai entra pelo ánus como tampão atinge a mãe que está na barriga e resolve o conflito A análise era sentida dentro de seu ritual obs sessivo em função de defesas contra fantasias de de sintegração psicótica Os sonhos a análise e as evacuações lhe pare cem similares pois começam e acabam Conta peda cinhos de sonhos em fragmentos de análise onde relata fezes em pedacinhos Lembra brincadeira de papéis dobrados onde se escrevem números e se co locam em um pote Todavia nada se sabe sobre o que está escrito Nesta altura lembrase da palavra miop sia Não sabe o seu significado mas supõe relação com a urina Depois imagina um tubo em arco no seu meio parte outro tubo em arco no abdome ligando ânus com urina Desse tubo que vai a um pote onde desembocam boca e cabeça O pote seria a cabeça Se o ânus está fechado a sujeira sai pela urina Sempre uma saída deve ser escolhida ânus ou meato urinário As palavras iriam gotejando no pote Cairiam no abdome atingindo os intestinos para filtragem Se as palavras saem pela boca há perigo de coisas fedidas e maldizentes que o analista não poderá suportar mas antes disso afastase de si mesmo pois correria o risco de usar a boca como esgoto e não como sala de visitas Na infância quando estava aprendendo a falar foi com sua mãe visitar alguns parentes Sua mãe saiu e deixouo na sala Obsessivamente não parava de falar pintobunda de acordo com a conexão mostra da no último desenho Seriam seus canais de limpeza interna Quando o analista fala não sabe se as palavras são boas ou más Elas permanecem no abdome com pletamente mortas Vai para casa No dia seguinte volta para a análise As palavras do reservatório ab dominal vão para os intestinos Onde são reanima das Em tubos especiais chegam à cabeça onde fica sabendo se são boas ou más O que não presta é de volvido pelo ânus ou pela urina mas o que é bom não sabe onde caminha O modelo esquemático de filtragem pressupõe a maneira de explicar pelo corpo os problemas da mente Mãe Barriga Ânus Pênis Em outra Oportunidade conta sonho em que estava evacuando sem sentir perdia o controle da evacuação O fígado parecia ligado por um tubo ao cérebro Surgiam esfíncteres por todo o corpo Era uma bolsa cheia de esfíncteres Dentro dela o fígado ligado à mente Que coisa horrível que pesadelos Que sonhos terríveis Preocupase com sua identidade controlada pelo ânus Se o esfíncter anal fraqueja procura criar outros senão o cérebro poderá sair da caixa crania na seguir ao fígado e deste caminhar pelos intesti nos quando então poderia morrer Sua mãe sempre preocupouse com o funciona mento dos esfíncteres Limpava o ânus do filho e de relógio em punho dizia Ontem nesta hora você fez um pouco de cocô para a mamãe e agora dê um jeito faça um pouco de cocô para o papai Tinha de arran jar outros buracos para contentála pois foi sempre menino obediente Certa noite entrou em confusão O intestino estava colocado dentro da cabeça Agitavase imen samente e não dormia O desgaste era intenso Pela manhã antes da sessão aliviouse com duas evacua ções mas chegou à análise temendo o inverso que a cabeça poderia sair pelos intestinos Mente Reto Ânus Sistema de controle Psicossomaticaindd 265 Psicossomaticaindd 265 05012010 121213 05012010 121213 266 Mello Filho Burd e cols Receia dizer a palavra fezes pois pode sentir o cheiro uma vez que não consegue abstrair seu sig nificado Não sabe simbolizar Por essa razão repete seguidamente pintobunda para desafetizar urina e fezes Assim as palavras urina e fezes perdem o chei ro e pode desse modo falar sem receio Com o seu sistema de filtragem as palavras amor ódio ciúmes inveja etc podem ser pronun ciadas sem qualquer receio pois na filtragem foram desafetizadas Com o mecanismo filtrado todas as palavras adquirem o sentido de pintobunda Mostra remanes cente infantil em que a palavra tem sentido onipo tente Assim a palavra fezes tem fezes e a palavra urina contém urina Contamina a palavra com a re presentação As sessões de análise são o toalete e a cabeça do analista é o pote É prazer para o paciente ver o analista entrar no jogo de suas fantasias Deseja manter a função mental equiparada à função digestiva Não se descuida pois as fezes po deriam ser emoções más e perigosas alcançando a cabeça e causando danos irreparáveis Procura con gelar afetos e desafetizar palavras Com esse sistema pode sair da análise e na faculdade dar aulas de ana tomia O paciente apresenta corpo fantasmático com fantasias inconscientes que se vinculam ao seu soma e que vão se estruturando umas após outras com res significações secundarias equivalentes a várias muta ções Imagem corporal do neurótico O homem considerado normal mantém a uni dade do corpo em virtude do predomínio de tendên cias construtivas A modelagem é vaga e nunca defi nitiva Segue necessidades da vida Se há ódio suas forças a destroem Se há amor suas energias recupe ram reconstroem e reorganizam o modelo do corpo Não há imagem definitiva mesmo com o concurso de todas as nossas sensações Impressões visuais audi tivas táteis etc nunca nos fornecem o conhecimen to integrado de nosso corpo mesmo com funções normais do cérebro ao qual se atribui o encargo de manter o corpo unido No homem considerado normal é possível que a angústia prejudique o modelo postural Os proble mas emocionais acarretando angústia estariam no centro da personalidade centro imaginário do ego e no sentido centrífugo atingem a periferia alterando a imagem corporal No paciente histérico o distúrbio em si simbo liza o órgão sexual conectado às relações sexuais com outras pessoas A sensação de sufocamento na garganta por prego enfiado na cabeça expressa o desejo do órgão sexual masculino As vezes a sen sação anestésica de parte do corpo traduz repressão de impulsos sexuais Em outras a hipersensibilida de dolorosa exagerada da zona do mamilo indica tendências sexuais vinculadas a grandes desejos eró ticos Em muitos pacientes há deslocamento dos ór gãos genitais para outros órgãos mudando a imagem do corpo por ocorrências na esfera psíquica Na luta contra a genitalidade o histérico simboliza às vezes a eliminação dos órgãos sexuais No paciente hipocondríaco há aumento da libi do narcísica em determinadas partes do corpo cuja estmtura funcional pode se alterar porque é genitali zada simbolizando órgãos sexuais O indivíduo se de fende contra a excessiva carga libídica do órgão doen te tentando isolálo para a seguir eliminálo como corpo estranho dentro de sua imagem corporal Essa luta é acolhida pelo seu sistema egóico que é capaz de seduzir clínicos e cirurgiões para sua extração Procura livrarse de partes do corpo eliminandoas e projetan doas no mundo externo Tais partes evacuadas como fezes tornamse perseguidoras continuando conec tadas com o corpo Tratase de projeção incompleta Talvez o órgão superlibidizado seja muito valioso para livrarse dele permanecendo como corpo estranho Para fugir do mundo externo o hipocondría co temeroso das relações objetais concentrase no funcionamento do órgão conferindolhe importância fundamental A imagem corporal do neurótico modificase na passagem da prégenitalidade para a genitalidade Quando o nível genital amadurecido é alcançado po dese supor que experimentamos nosso corpo como unidade A imagem corporal seria estruturalizada com mudanças contínuas anatômicas fisiológicas etc de que todos os sentidos participam sob primado do aparelho psíquico Ânus Meato urinário Abdome Pote Boca Cabeça Psicossomaticaindd 266 Psicossomaticaindd 266 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 267 Roserifeld 1974 descreve imagem corporal neurótica como representação mental inconsciente da pele que recobre com calor o corpo Bick 1970 e Anzieu 1974 referemse à noção integrada da pele que sustenta e contém psicologicamente o calor do pai e da mãe Rosenfeld ibidem usa particularmen te o termo estrutura e não imagem em nível neu rótico enquanto existir a noção psicológica da pele no sentido de conter a massa do corpo Não significa que quadros clínicos neuróticos não possam funcio nar como esquema corporal psicótico como acontece na leucemia na hemofilia na hipocondria etc ao nível de destrutividade Imagem corporal do psicótico A noção mais primitiva da imagem corporal seria encontrada no psicótico com a ideia de que o corpo contém líquidos ou sangue com revestimento formado por paredes arteriais ou venosas As paredes vasculares teriam como a pele funções psicológicas de contenção e revestimento do corpo Se tais pare des se rompem como na psicose há sangramento esvaziamento e perigo de morte Rosenfeld afirma que o esquema corporal do psicótico não é exclusivo dos quadros clínicos feno menológicamente psicóticos podendo ser encontra do nas enfermidades psicossomáticas e em personali dades às vezes muito bem adaptadas à realidade No psicótico desapareceria a pele e as paredes vasculares artérias ou veias se contrairiam como a palma da mão para conter o corpo Artérias e veias seriam os últimos limites de contenção conferindo a configuração final da imagem do corpo Na relação objetal infantil no ato de separação da mãe esta tira pedaços do corpo Nesta altura para evitar o esvaziamento os vazos são mobiliza dos para funcionar como órgãos de contenção As vezes a hiperatividade muscular funciona como se gunda pele A noção de esvaziamento segundo Rosenfeld deve ser concebida de relações objetais corporais como por exemplo a criança buscando com a língua o mamilo da mãe Não o encontrando o bebê teria a sensação de que sua língua cai no vazio perdendo a noção não só de seus lábios como a pele do mamilo culminando com a perda do envoltório corporal A mesma perda de superfície corporal ocorre quando o objeto real externo ao ser atacado é destruído per dendo seu próprio envoltório Dessa vivência surge a noção de artérias ou veias contendo sangue consti tuindo a noção de limite extremo da imagem corpo ral do psicótico Os vasos suprem e funcionam como pele normal devido ao estancamento da libido A origem da contenção ao nível de artérias e veias residiria nos mecanismos de defesa face à ira decorrente do fato de necessitar de objeto que não é encontrado acarretando sofrimento de grande soli dão Os pacientes esquizofrênicos parecem mostrar esvaziamento do corpo por perda de sangue Quando experimentam alguma melhoria o sangue e substituí do por elementos de outra fluidez ou ainda substân cias oleosas culminando com matéria fecal dura O paciente Juan em crise psicótica descrito por Rosenfeld 1974 refere que ao enamorarse de uma garota se entrega de tal modo a sangrarse nela Se o seu amor não é correspondido o destino é matarse sangrandose nela Tem sensação de baixa pressão fantasia de esvaziamento debilidade como se esti vesse oco por dentro o que caracterizaria o esquema corporal psicótico O paciente Juan tenta reconstruir seu esquema corporal com busca homossexual junto ao analista através de sonho em que gosta da cor dos olhos de seu médico Certo dia entrou em pânico ao tentarem extrairlhe um calo do pé Todos saberiam que se en contrava oco por dentro A vivência intolerável do oco total seria a loucura Em sua primeira relação sexual teve a sensação de sangramento durante o coito acreditando ter en louquecido a mulher durante a ejaculação Procura preencher seu corpo fugindo do vazio ao comunicar que o analista é Deus não podendo perdelo e que o diabo está posto em outras pessoas Com cinco ses sões semanais ao aproximarse das férias Juan sen tese igual ao analista através de uma anastomose com fusão dos dois corpos como defesa frente à frag mentação derrame de sangue esvaziamento e mor te Ao retornar das férias conta alucinação possuin do o corpo de uma menina A identificação feminina total inclusive os seios serviria como compensação do peito ausente do analista Rosenfeld ibidem relata doença psicossomáti ca em uma jovem de 26 anos que percebeu sua doen ça após ruptura com seu namorado Deprimida com vontade de morrer profundamente angustiada mos trando inflamação muscular e necrose das paredes mucosas dos lábios da boca e da laringe sem poder falar e se alimentar salvo com sondas e soros chega a passar até três dias em coma A perda da relação objetal causoulhe ferida afe tiva que se transformou em lesões necróticas das mu cosas com danos graves restandolhe apenas débil parede arterial que como membrana rodeia e con tém sangue no interior do corpo Em crises agudas de angústia os vasos contraídos não conseguem conter o sangue que escapa perdendose no exterior Seria este o modelo de funcionamento do esquema corpo ral psicótico Psicossomaticaindd 267 Psicossomaticaindd 267 05012010 121213 05012010 121213 268 Mello Filho Burd e cols As lesões das mucosas traduziriam segundo o autor falta de atenção ou ausência do analista No período do mênstruo não ocorria simples fluxo san guíneo mas seria hemorragia como se fora sangra mento de seu self corporal A relação analistaanalisando ou mamiloboca mostrou a toda separação induzia à fantasia de que o mami lo arranca e leva pedaços da pele de seu corpo b ataque assassino ao objeto que a abandona c sangramento através dos orifícios perfurados e da pele arrancada d confusão analistaanalisando mamiloboca pro picia ataque em espaço não diferenciado ou seja em decorrência da fusão não há limites de tal modo que atacar o mamilo equivale a atacar a própria boca Destruído o revestimento do corpo restam ape nas paredes arteriais ou venosas que contêm sangue no seu interior fazendo o perfil do esquema corporal psicótico O mundo inconsciente registra como imagem do corpo grande artéria ou veia a ponto de perfurar se Esse registro é totalmente diferente daquele ob servado tanto na Anatomia como na Histologia A fantasia em certos pacientes de ter leucemia pode segundo Rosenfeld ibidem indicar aviso de esvaziamento sanguíneo até delírio persecutório se vero com monstros e bichos que devoram o sangue Tais delírios levam pacientes a intentos suicidas cor tando veias para expulsar os objetos persecutórios que invadiram o esquema corporal psicótico Um medo genérico em relação à integridade do corpo que se pode desmembrar existe nas psicoses segundo descrição de Shilder 1950 A unidade dos instintos segundo o autor é muito ameaçada nas psi coses razão pela qual os desmembramentos ocorrem sob influência de tendências agressivas contra o mun do externo e contra si mesmo Há enorme labilidade do modelo do corpo por que a extrema necessidade emocional projeta no mundo externo partes do corpo O medo da muti lação teria por base o amor narcísico que o indiví duo tem pelo seu próprio corpo O motivo do des membramento diz Shilder ibidem é a expressão do complexo de castração ao nível do amorpróprio narcisista e especialmente na melancolia na qual as tendências sádicas são fortes e cruéis sendo comum fratura do modelo do corpo O melancólico nega a existência de quase to das as partes de seu corpo Os intestinos se foram não pode mais defecar a bexiga não existe não pode mais urinar as pernas desaparecem não pode mais andar Shilder cita paciente que se sentia perfurada distorcida destruida viva como barril vazio sendo apenas ar e pó A cabeça se transformara em ma deira e o cérebro cozido em uma sopa Ela cortara e comera não só seu próprio cérebro como outros provenientes de outras cabeças Haveria grande pre valência de impulsos sádicos e grande dissociação entre vida emocional e primitivismo dos instintos É difícil obter desses pacientes descrição que permita diferenciar entre alteração real dos sentidos e das percepções e representações relativas ao modelo do corpo Imagens e percepções baseiamse em idênticos processos e estariam ligadas ao intelecto e ao pensa mento Percepção imaginação e pensamento assegu ra Shilder são ligados entre si Os processos mentais a respeito do corpo baseiamse na atitude como um todo impulsos energia libidinal percepções intelec to pensamento etc e somente dessa maneira se po derá obter compreensão mais profunda da estrutura da imagem corporal Há nas psicoses as mais variadas percepções imaginações e bizarrias a respeito do corpo O co ração retirado não bate mais o nariz mutilado não respira mais os ouvidos atingidos não ouvem mais etc queixas que se repetem indicando transforma ções e limitações graves Claro que influências psí quicas sob domínio de fantasias as mais diversas modificam a estrutura libidinal tornando lábeis as imagens do corpo comprometidas pelos desvios da percepção da imaginação e dos processos intelec tuais O paciente melancólico muito autodestrutivo face à predominância do instinto de morte inflinge e perpetua sofrimento para si e para os outros Mas não tarda em resgatar seu ego desmembrandoo res sucitandoo como processo de construção no meio de tanta destruição Será que aceitamos o primado do inconscien te porque é extraordinariamente difícil lidar com as interações psicofisiológicas em diferentes níveis que se influenciam e se interpretam com extraordinário dinamismo Restanos a noção de que imagem corporal não é entidade rígida estabelecida mas incompleta in constante e indefinida que estamos sempre procu rando CONSIDERAÇÕES FINAIS 1 A imagem do corpo não é mera sensação ou ima ginação 2 A imagem do corpo estruturalizase na mente no contato do indivíduo consigo mesmo e com o mundo que o rodeia Psicossomaticaindd 268 Psicossomaticaindd 268 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 269 3 Sob o primado do inconsciente entram em sua formação contribuições anatômicas fisiológicas neurológicas sociológicas etc 4 A imagem do corpo é unidade passível de trans formações em que todos os sentidos entram em colaboração 5 A estrutura final do modelo do corpo depende da situação global Ela decorre de síntese cuja operação reúne representações de várias proce dencias umas com as outras resumindo todas as diferenças em um só conhecimento o corpo 6 A imagem do corpo se estabelece à custa da per cepção que vai registrando modelos de postura que se modificam constantemente a partir de manifestações emocionais que por seu turno de pendem da mobilização das zonas erógenas 7 Em cada momento cada atitude emocional con fere determinado modelo postural pois obedece ora ao instinto de vida ora ao instinto de morte 8 Podemos acompanhar as sensações percepções e reações motoras de uma criança para entender o desenvolvimento da imagem corporal que surge nos desenhos infantis 9 As crianças desenham figuras humanas refletindo a imagem mental que possuem de seu corpo com projeções de formas isoladas e desconexas Usam o controle motor dos membros a experiência vi sual e tátil na construção do eu corporal segundo necessidades de suas personalidades 10 O exame dos desenhos infantis nos da ideia de que os modelos do corpo resultam da capacidade criativa gestáltica do psiquismo da criança que traduz desenvolvimento que vai desde o estado embrionário até certo amadurecimento É possí vel que cada traço traduza impulso algo específi co para cada movimento 11 Se mudarmos de modo contínuo nosso psiquis mo também alteramos nossas imagens do corpo 12 A energia de vida as ações e as determinações sensomotoras sob influência de impulsos internos levam a criança em processo ativo e contínuo de desenvolvimento a configurar em desenhos seu esquema corporal A incapacidade sintética possi velmente corre por conta em parte dos recursos motores e sensoriais ainda não integrados 13 O corpo pode ser considerado em sua constru ção como unidade destacandose massa pesada com orifícios cavidades e protuberâncias desen volvidas em superfície e contornos 14 Do ponto de vista psicanalítico a imagem corpo ral é construída a partir da integração entre ego e id em interjogo contínuo das tendências egóicas com as tendências libidinais 15 A imagem do corpo começa a se desenhar na boca porque há um núcleo dessa imagem na zona oral A cabeça os braços as mãos o tronco as pernas e os pés cresceriam a partir desse núcleo 16 O corpo imaginado como estrutura mais compac ta poderia ser projetado no mundo externo este como estrutura mais frouxa introjetado pelo cor po 17 O fluxo de energia libidinal por ser dinâmico da boca atinge o ânus podendo também mudar a imagem do corpo porque agora a concentração libidinal se faz no extremo oposto do aparelho digestivo Em seguida os genitais fonte de pra zer especial e as sensações uretrais completam a imagem configuradoa É evidente que o erotis mo muscular é cutâneo e com as sensações pro venientes da pele tem significado para o delinea mento da superfície do corpo 18 Ao se dar ênfase às tendências psicossexuais dos orifícios anatômicos do corpo olhos boca ânus meato urinário e orifício vulvar aproximase o corpo da mente pois essas aberturas do soma são sede de fantasias psíquicas 19 Os orifícios anatômicos constituem as zonas mais sensíveis do corpo com sua psicologia específica Os órgãos portadores dessas aberturas levam o indivíduo a ter contato com o mundo externo e com isso procedese à descoberta do corpo 20 A pele registrando inúmeras sensações provoca a necessidade do contato das mãos sobre ela As mãos deslizando sobre o corpo permitem esta belecer seus contornos 21 A imagem corporal provavelmente não existe per se parte do mundo interno e externo e por essa razão é estrutura mais ou menos vaga Nunca é estática Tem sempre tendências à ruptura Com as alterações fisiológicas habituais e com as mu danças do fluxo libidinal face aos desvios das si tuações de vida podese inferir de sua contínua modificação 22 Não há imagem corporal sem personalidade pois ambas mantêm relação íntima e específica 23 A imagem corporal não se modifica apenas pela maturação dor doença e mutilação mas também por toda insatisfação que está ligada ao distúrbio libidinal 24 Em clínica médica ou cirúrgica consciente ou in conscientemente o corpo é tratado como objeto externo O paciente além de se imaginar como tal deseja também que seu corpo seja cuidado como algo de fora 25 Há relação nítida entre imagem corporal e zonas erógenas A nudez a vergonha a timidez e o en rubescimento nos encontros sociais onde se cru zam corpos testemunham a ligação erógena 26 Não sabemos como se desenvolve a imagem cor poral Admitimos desenvolvimento interno ma Psicossomaticaindd 269 Psicossomaticaindd 269 05012010 121213 05012010 121213 270 Mello Filho Burd e cols turação em todas as áreas da vida psíquica em conexão com experiências de vida Podese supor que traços da configuração postural dependem de atitudes emocionais repetidas 27 Desvios da imagem corporal podem surgir quan do não há coincidência com o corpo objetivamen te considerado 28 Na imagem corporal de paciente com enterocolo patia crônica não há contornos de superfície ex terna mas também fantasias a respeito de como o corpo é percebido por dentro 29 O homem considerado normal mantém a uni dade do corpo em virtude do predomínio de tendências construtivas A modelagem embora vaga e nunca definitiva acompanha as necessi dades da vida Às vezes o ódio parece destruir a imagem do corpo mas logo depois o amor pode reconstitruíla e reorganizála 30 A imagem corporal do neurótico reside na repre sentação mental inconsciente da pele Rosenfeld que sustenta e contém o calor da mãe e do pai 31 A imagem corporal do psicótico baseiase na ideia de que o corpo sem pele tem revestimento for mado por paredes arteriais e venosas que contêm líquidos ou sangue 32 O esquema corporal psicótico não é exclusivo dos quadros clínicos fenomenologicamente psicóti cos podendo ser encontrado nas enfermidades psicossomáticas e nas personalidades às vezes bem adaptadas à vida Rosenfeld 33 É extraordinariamente difícil lidar com as integra ções psicofisiológicas em diferentes níveis que se influenciam e se interpenetram com extraordiná rio dinamismo 34 Imagem corporal não é entidade rígida estabele cida mas incompleta inconsciente e indefinida que estamos sempre procurando REFERÊNCIAS Anzieu D Le moipeau Nouvelle Revue de Psychanalyse Paris Gallimard Sept 1974 Bemfeld S The psychology of infant New York Grune Stratton 1929 Bick E La experiencia de la piel en las relaciones de objeto tem pranas Rev de Psicanál de la Argentina Buenos Aires 1970 Capisano H Afetos na enfermidade psicossomática v 1 Associa ção Brasileira de Medicina Psicossomática II Encontro Argentino Brasileiro de Med Psicoss S Paulo 1978 Head H On dislurbances of Sensaliun wilh Special refererice to lhe pain of visceral diseases London Churchill Livingstone 1983 Studies in neurology London Churchill Livingstone 1920 Kanner L Shilder P Movements in optic images and Optic ima gination of movements J Nerv and Menlal Diseases n 72 p 489 1930 Kant E Crítica da razão pura 4 ed v 1 Biblioteca de Autores Célebres 1965 Komilow H Psychology in the light of dialectic materialism Wor cester MaSS Murchison 1930 Muraro R4 Na vivência da sexualidade o exercício do poder Rev Clín Méd Rio de Janeiro vol 2 n 10 novdez 1984 Rosenfeld D El Cuerpo en psicoanaílisis XIII Congresso Latino Americano de Psicanálise Rio de Janeiro 1974 Shilder P The image and appearance of lhe human body New York I V Press 1950 Trench P The image and appearance of lhe human body London Trubner 1950 Psicossomaticaindd 270 Psicossomaticaindd 270 05012010 121213 05012010 121213 PARTE 4 Temas específi cos Trabalhos em especialidades médicas Psicossomaticaindd 271 Psicossomaticaindd 271 05012010 121213 05012010 121213 Conceituase Pediatria como o ramo da Medici na que assiste a criança em seu crescimento e desen volvimento Esta assistência envolve continuamente aspectos curativos e preventivos O setor preventivo propriamente dito integra o capítulo da puericultura que abrange os programas de higiene mental higiene antiinfecciosa higiene alimentar e higiene do ambiente físico Notase que os programas de higiene abrangem a criança de maneira global e a consideram do ponto de vista sociopsicossomático Marcondes 1985 Observamos que quando se trata do setor de higiene mental é comum o pediatra menosprezálo quer não lhe dando importância quer encaminhando seu paciente para o psiquiatra ou psicológico Esta atitude médica desestimula as famílias a trazerem queixas de seus filhos não relacionadas com doenças manifestas na área somática como são as infecções os traumatismos as neoplasias etc Muitas vezes os pais ante a resistência médica em discutir assuntos ligados à higiene mental e à hi giene do ambiente sensu latu tornamse retraídos e evitam falar destes assuntos por considerálos inopor tunos e não pertencentes à área médica Tivemos oportunidade de ver pais que quando as mães se queixavam que os filhos choravam muito brigavam demais xingavam ou faziam birras dizer lhes coisas assim Isto nada tem a ver com a consulta Educação é outra coisa Não faça o Doutor perder tempo com coisas sem interesse Nós estamos aqui por causa da gargan ta e da febre do bebê Em outra oportunidade observamos uma famí lia que levou o filho de oito meses ao pediatra ini cialmente porque acusava febre e posteriormente broncopneumonta Após desaparecer o quadro clínico que justificou a primeira consulta o paciente teve que ser levado de volta ao consultório por mais 5 ou 6 vezes porque chorava Depois de tantas consultas exames de laborató rios e medicamentos para dormir sem qualquer res posta por parte da criança o medico disse à mãe que seu filho estava cheio de manha e que só voltasse ao consultório quando realmente ele apresentasse algu ma doença Isso foi dito após o pai que estava presente à consulta dizer que sua mulher precisava ter mais pa ciência com o filho e que ela era apavorada Sem perceber o pediatria para livrarse de uma situação incômoda com a qual não sabia lidar o cho ro da criança e a angústia da mãe fez um conluio com o pai que por sua vez precisava culpar alguém pelo comportamento do bebê em razão dos remorsos que tinha de estar sempre ausente de casa por causa da profissão de viajante A broncopneumonia foi curada porém a parte emocional da criança ficou sem qualquer assistência e o que é pior o próprio profissional de saúde semeou contradições no ambiente familiar reforçando diver gências litigiosas entre os pais responsáveis pelo am biente emocional que envolve a criança ibidem Com o decorrer do tempo tais divergências criam tensões que cronicamente persistentes atin gem o setor emocional da criança predispondoa ao comprometimento dos demais setores de sua vida Winnicott 1978 Deluqui 1985 Do quadro exposto decorre anorexia insônias mau aproveitamento escolar obstipações intestinais diarreias até baixas de resistência com infecções de repetição Ao lidar com nossos pacientes não devemos es quecer de que curar não é tratar sintomas Ao exercer a clínica pedíátrica com o fim de devolver a criança a seus padrões de saúde não devemos iatrogenizar Caso algum de nossos pacientes apresente qua dro de amigdalite devemos responder a uma série de inquirições antes de tomar qualquer medida tera pêutica Primeiramente devese confirmar o diagnóstico de maneira adequada A seguir formulamse algumas questões básicas tais como se a amigdalite é virótica ou bacteriana 19 PSICOSSOMÁTICA E PEDIATRIA Adolpho Menezes de Mello Psicossomaticaindd 273 Psicossomaticaindd 273 05012010 121213 05012010 121213 274 Mello Filho Burd e cols No primeiro caso não se usa antibiótico e se gundo nossa opinião nem mesmo antiinflamatórios por serem destituídos de valor além de inúmeras ve zes determinarem efeitos colaterais sérios Se for bacteriana que antibiótico usar Aqui devese levar em consideração não só o preço como também sua aplicação Certa vez ao diagnosticar amigdalite em um paciente e ao comunicar o fato à mãe ouvi dela o seguinte dirigindose ao filho Olha aí filho eu não te disse para não tomar sorve te Agora o Doutor vai te dar injeção É claro que a discussão a respeito do sorvete foi vencida pela criança mas a mãe não se confor mando com a derrota aproveitou a oportunidade da doença para descarregar sua raiva usandome para consolidar sua vingança Se o médico não está atento a estas questões e se a criança o desgostou durante a consulta por algum motivo inconscientemente aliarseá à mãe Com a aparência de quererem o bem dela médico e mãe vingamse dandolhe medicação injetável quan do a via oral poderia ser utilizada com igual resultado e menos agressão Precisase internar ou não As vezes internamos pacientes que passam a correr sérios riscos de infecções hospitalares graves expondose a perigos maiores do que se ficassem sem tratamento Registrase ainda o fato de que ao internar a criança muitas vezes a separamos da mãe da família e do ambiente doméstico com graves prejuízos para sua saúde lncluemse nestes prejuízos as depressões ana clíticas hospilalismos deprivação maternal Spitz 1974 até o desmame forçado que levará a criança à desnutrição após a alta porque a família privada de boas condições econômicas não lhe pode dar ali mentação adequada Mesmo que a mãe acompanhe o filho durante a internação O paciente continuará exposto às infecções hospitalares e privado de seu lar e família que em contrapartida recebem os prejuízos da ausência da mãe Do exposto concluise que verdadeira terapêu tica é aquela que zela pela criança de maneira global e está sempre dando seus passos banhada pelo espíri to preventivo característico da puericultura Fica óbvio que a criança é um ser sociopsicos somático e que este é o único modelo capaz de aten dêla adequadamente Alcântara 1945 Marcondes 1985 Tal concepção difícil de integrar o comporta mento pediátrico comum foi reconhecido no Brasil já em 1945 Alcântara 1945 quando se aceitou ser de ordem social o grande problema da criança Alcântara o grande mestre da pediatria brasi leira insiste em assinalar que ou se atende a criança de modo global ou o atendimento será destituído de valor efetivo Nossa experiência é rica de casos aparentemen te simples cuja solução só é possível se o pediatra apoiarse em bases sociopsicossomáticas Não existem duas medicinas uma sociopsicos somática outra somática Quem não exerce pediatria psicossomática sim plesmente não faz pediatria Para enriquecer com bases experimentais este conceito lembraremos inúmeros casos por nós traba lhados ao longo de 22 anos de exercício da pediatria Ana Paula era uma menina de mais ou menos 1 ano quando numa noite a visitei Havia dias que não mamava chorava quando via a mamadeira e a mãe tentava ajeitala no colo para alimentála Estava nervosa com sono agitado mas já não acusava sintomas como febre e diarreia que existiam no início do quadro Segundo a mãe a menina tivera otite média aguda tratada pelo otor rinologista que lhe lancetara o tímpano por 3 vezes em aproximadamente 12 dias Após o tratamento com paracentese antibióticos e calor no ouvido a in fecção aparentemente cedera mas sobrou o quadro que me levou à casa da paciente Pedi à mãe que colocasse a paciente no colo mas sem deitála e que embrulhasse a mamadeira com um pano além de umedecer o bico com mel Nestas condições a garota aceitou mamar sem qual quer dificuldade Ocorreu que devido às dores repetidas ao su gar Ana Paula tinha pavor de sofrer recusavase a mamar e chorava só ao ver a mamadeira Aliás choro é frequente queixa em nosso consultório Inúmeras mães que se queixavam da dor de barriga dos bebês vinham ao consultório à noite e ao chegar diziam Doutor foi entrar no carro sumiu a dor É claro que as dores de barriga do lactente são manifestações ligadas à tensão emocional dos pais e da família representando além do mais o rompi mento da adaptação existente entre mãe e bebê du rante a gestação Este quadro clínico só poderá ser corrigido se mãe e bebê se readaptarem às novas condições após o nascimento Para tanto o pai representa fator im portante na medida em que dá à mãe segurança capaz de permitir o exercício da maternagem Win nicott 1977 Em casa o choro gerava a angústia da família o que por sua vez aumentava o choro Psicossomaticaindd 274 Psicossomaticaindd 274 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 275 do bebê Quando saía do ambiente tenso a criança dormia e no consultório sequer precisava ser exa minada Flávia era uma linda garota de 8 meses quando sua mãe me pediu para vêla porque havia dias não acei tava a mamadeira chorava tornandose profunda mente irritada Fazia 30 dias que já vinha brigando para mamar mas antes passada apenas uma semana na hora da mamadeira gritava e acabava não se ali mentando Aceitava todavia comida de sal geleia de frutas na colher Houve suspeita de que a menina tivesse enjoado do leite Pedi à mãe que a trouxesse ao consultório e não esquecesse a mamadeira Ao tentar darlhe o leite diante de mim ficou claro o porque da não aceitação Muitas mães desde que o bebê nasce amamentamno segurando uma de suas mãos Com o tempo isso não é suportado pela criança A partir de 8 meses aproximadamente o bebê não gosta de muita restrição Neste caso quando a mãe a segurava para oferecer a mamadeira faziao prendendo seu corpo com uma das mãos o que irri tava profundamente a paciente Colocada sobre a mesa a criança secou a ma madeira Com a orientação de deixála sem restrição física para mamar desapareceu o problema Carolina era uma garota de 1 ano e 4 meses chorando na hora da comidinha de sal Ao observar a maneira como a mãe lhe oferecia as refeições ficou fácil entender o problema A mãe sentavase colocavaa no colo e para que não mexes se no prato abraçavaa com um dos braços obstan dolhe os movimentos Tal conduta irritava a menina que chorava e acabava por não aceitar o alimento A orientação de darlhe a comida num lugar adequado com luz sem barulho com temperatura ideal e com a menina livre para pôr a mão e fazer sujeira resolveu totalmente o problema Nossa preocupação em relação a estes casos é que as desarmonias iniciais levam a brigas intensas entre mãe e filho e destas surge falta de apetite de origem emocional que acaba por constituir enorme transtorno familiar de difícil solução Quando estas crianças são levadas ao pediatra este termina por rotulálas de anoréxicas oferecen dolhes os malditos orexígenos tão receitados Estes quadros só têm solução com base em orientações adequadas sem necessidade de qualquer remédio Há anos embora tenhamme ensinado na facul dade a usálos não me utilizo nem de remédios para cólica nem tampouco para abrir apetite Observei com o evolver do tempo uma série enorme de crianças que apresentavam o seguinte quadro Eram pacientes dentro dos dois primeiros anos de vida particularmente entre 6 e 12 meses As crian ças após internação para tratamento de patologias graves ao terem alta com suspensão da medicação injetável costumavam acordar de madrugada e ter imensa dificuldade para conciliar o sono Choravam muito O estudo destes casos mostrou algo interes sante relacionado às injeções As crianças acordavam à noite no momento das injeções Como a medicação injetável havia terminado esperavam as picadas que nunca vinham Daí o medo a angústia e o choro Ora inúmeras destas crianças tomaram remédio para dor para cólicas para se acalmarem etc sem qualquer sentido porque o problema real estava nos seus so frimentos e na dinâmica de suas emoções A este respeito tivemos oportunidade de lidar com duas crianças de 1 ano e 3 meses de idade as quais ligaram suas emoções ao meio O primeiro caso era o de uma menina que após quadro infeccioso acusou hábito de acordar por vol ta das 23 horas chorar intensamente e não dormir o resto da noite acusando sono interrompido e de pouca duração A mãe da paciente com dó da filha aplicava a injeção das 23 horas com a criança dormindo e a acalentava após a aplicação Ao suspenderse a medicação a paciente acor dava e não dormia como foi descrito O interessante é que a paciente associava o am biente do quarto com o sofrimento e só adquiriu rit mo normal de sono quando foi colocada em outro aposento No segundo caso uma menina acusava choro ao levantarse de manhã e ir à sala Apresentou este comportamento dois dias consecutivos Observando a casa na sala havia uma cortina grande separandoa de outro cômodo a qual fora retirada deixando o am biente modificado A retirada da cortina fez desapa recer o comportamento Nesta sequência de exemplos enumeraremos alguns igualmente importantes na ilustração do aten dimento global sociopsicossomático à criança Edson garoto de 1 ano foi internado para tra tamento de broncopneumonia Após curarse do qua dro infeccioso tornouse apagado diminuiu contato com o pessoal de enfermagem e começou a sugar o polegar Concomitantemente perdeu o apetite e apre sentou vômitos duas a quatro vezes ao dia A noite enquanto dormia colocava o dedo na boca A sucção desaparecia se era acariciado durante o sono Com duas semanas de evolução surgiu diarreia emagre Psicossomaticaindd 275 Psicossomaticaindd 275 05012010 121213 05012010 121213 276 Mello Filho Burd e cols cimento e desidratação Como todos os exames la boratoriais se mostrassem normais procurei a mãe e coloqueia com o menino em um quarto isolado Pedi à genitora que lhe oferecesse o seio mesmo quase sem leite e que ambos nus com roupões ficassem em intenso contato corporal Após 8 a 12 horas de contato íntimo mãefilho ofereci a Edson 30mL de leite de vaca e ele não vo mitou Como passasse bem dei alta à mãefilho para seguirem o mesmo esquema e orientação alimentar Os sintomas desapareceram e o paciente recuperou se totalmente Pela última vez vi a mesma criança aos 8 anos No Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina de Marília observamos vários bebês que após estarem curados de suas infecções acusaram quadros de tristeza apatia anorexia e até mesmo de choro ao contato com o pessoal da saúde Todo o quadro desaparecia em prazo variável de três a sete dias com a prescrição de contato corporal com a criança realizado particularmente pelos médi cos internos e residentes Este contato pode ser reali zado enconstandose a criança ao corpo passando a mão nela após deixála nua A receita seria assim Passar a mão três vezes ao dia 10 minutos cada vez É claro que ao aproximarse do bebê em sofri mento o médico precisa ser hábil e realizar lenta mente a aproximação Costumo chegar junto ao leito e falar baixinho acariciarlhe o rosto e depois termi nar com o tratamento de contato corporal A melhor pessoa para fazer isto é a mãe mas em nossos hospitais grande parte dos bebês ficam internados sozinhos Para ampliar nossos conhecimentos práticos a respeito do tratamento com contato corporal cito os seguintes casos por nós seguidos em clínica particular Mariana e Marcos são bebês de 6 e 8 meses res pectivamente e me são levados com queixas de choro intenso e dores em horários que se correspondem en tre 17h20 e 19h Em ambos os casos suas mães chegavam à casa após o trabalho às 17h Várias consultas com pediatras foram insuficien tes embora se tenham utilizado até tranquilizantes Minha receita foi suspender qualquer medica ção e pedir às mães que ao chegarem à casa isolas semse totalmente do resto da família e do mundo tomassem banho arrumassemse vestindo somente um roupão A seguir acordariam os bebês antes que eles despertassem espontaneamente e fossem retirando lhes as roupas até que ficassem nus Em seguida as mães deveriam embrulhar os bebês com o seu rou pão deitados na cama de tal sorte que as crianças pu dessem sentir os batimentos cardíacos e até mesmo os movimentos gastrintestinais de suas mães Este ritual deveria durar aproximadamente de uma a duas horas Após uma semana os problemas que motivaram tanta queixa desapareceram Aqui há algo interessante não se pode ser mais real do que o rei Isto quer dizer até o retirar a rou pa e embrulhar o nenê no roupão o médico receita Daí para a frente precisamos entender que a mãe e o bebê se acertam melhor sem palpites de terceiros A natureza mãebebê sabe bem o que faz Muitas vezes querendo ser muito importantes tentamos ensinar em demasia e atrapalhamos porque o que devem fa zer mãe e bebê na cama não posso saber pois não sou mãe Winnicott 1977 Em 1987 cuidei de um paciente do sexo mascu lino que contava na época com 10 meses Ismael após broncopneumonia fora medicado por dez dias com várias injeções de antibiótico Já no final do tratamento antimicrobiano o me nino mostravase irritado sem apetite e não conse guia dormir Quando o tratamento terminou ao contrário do que se poderia esperar os sintomas ligados ao com portamento intensificaramse Após analisar o quadro do garoto fiz a seguinte receita Mãe três vezes ao dia uma hora cada vez A mãe apesar de esclarecida assustouse com a receita e me deu certo trabalho para fazêla entender a prescrição O esquema é o mesmo citado anteriormente a mãe é colocada com seu bebê isoladamente três ve zes ao dia uma hora por vez e com grande contato corporal dentro dos moldes já descritos Uma semana após a consulta fui informado pela família de que a vida de Ismael haviase norma lizado A IMPORTÂNCIA DE CONHECER O NORMAL Grande parte dos médicos tem imensas dificul dades em lidar com o normal porque nas faculdades não tiveram contatos com pacientes normais O que é pior não foram trabalhados para atender crianças normais Não conhecendo o normal o pediatra sai da es cola com o furor de receitar Como o normal é o campo da prevenção e tam bém da iatrogenia a puericultura jamais terá sucesso Psicossomaticaindd 276 Psicossomaticaindd 276 05012010 121213 05012010 121213 Psicossomática hoje 277 e as doenças iatrogênicas terão mesmo que crescer de maneira assustadora Certa vez pedi a um residente que se sentasse ao lado de um recémnascido para ouvilo chorar O rapaz olhoume assustado pensando que fosse brin cadeira da minha parte No primeiro ano de Medicina estudamos Ana tomia Histologia Estatística etc No segundo e ter ceiro aprendemos Fisiologia Anatomia Patológica Bioquímica e assim por diante e claro que com sapos coelhos e cachorros O aluno tomará contato com seres humanos no quarto ano e desde então já com doentes Daí até o fim do curso só vai ver doentes Penso ser de muita importância durante o cur so traçar planos para que o estudante tenha contato com pessoas adultas e crianças normais Assim po deríamos descobrir bem cedo como vivem as famí lias suas dificuldades econômicas porque crianças nomiais fazem birra porque irmãos brigam que é normal chorar e o choro não precisa ser sedado como se fosse equivalente à doença etc Logicamente tendo boas noções de nossas nor malidades e da normalidade das pessoas De modo geral o pediatra receitaria menos orexígenos tran quilizantes anticonvulsivantes etc e iatrogenizaria menos Sustento que observando as famílias podería mos percebelos também como seres humanos e en tender melhor as dificuldades de nossos pacientes O pediatra muitas vezes colocase diante da fa mília como superior não permitindo que a mãe fale expondo suas ideias e temores Ao sair do consultó rio a família desnorteada fica mesmo sem aprender sua função no relacionamento com o profissional A ÓTICA DO PEDIATRA A noção que prevalece entre as pessoas é de que a criança é um ser passivo que precisa crescer para tornarse adulto e pessoa de bem O pior é que nin guém desconfia de que a infância é uma fase impor tante para que o futuro adulto seja pessoa normal De uma lado a família imagina que seus filhos preciam ser bonzinhos disciplinados com apetite de terminado pelos pais com sono que satisfaça as ne cessidades dos adultos quanto ao tempo intervalos e horários de dormir Para brincar há regras normas e o mundo que o adulto constrói para que as crianças se adaptem Construímos nossas cidades prédios etc e a criança terá que adaptarse a tudo mesmo que para isso tenha que ver televisão não fazer exercícios jogar videogame o dia todo e ir precocemente à escola Por sua vez as escolas necessitam de alunos e apresentam seus programas de educação bem condi zentes com esquemas que visam a ocupar a criança para que não nos perturbe Neste sentido lembramos que nossas escolas só têm atividade dirigida e todas que conheço não per mitem aos alunos brincarem como desejam ou seja exercer atividade de acordo com sua vontade Não nos esqueçamos de que as crianças pode riam ficar sem as escolas caso construíssemos nossas cidades pensando nelas A grande maioria de nossos filhos com ativida des livres e lugares adequados para desempenhálas seria preparada para a alfabetização sem as préesco las hoje tão difundidas É claro que as crianças que apresentam dificul dades no crescimento e desenvolvimento seriam de tectadas pelos profissionais de saúde e trabalhadas especificamente Paralelamente estamos nós pediatras ativos pensando que não nos compete discutir tais assuntos com as famílias Entendemos por formação acadêmica equivo cada que higiene mental é coisa de psiquiatria ou de psicólogo e que as dificuldades escolares de nossos pacientes não nos interessam Alguns pediatras até assumem para si o proble ma escolar de seus pacientes mas de novo sob gran de equívoco receitando piracetan ácido glutânico para melhorar a inteligência deles Por outro lado há crianças recebendo anticon vulsivantes porque trocam letras na escrita são mais agitadas apresentam disritmias assintomáticas ou porque mordem os amiguinhos durante as atividades na escola É claro que a agressividade nos primeiros anos de vida quando a criança baseia suas atitudes no processo primário Freud 1968 tem mesmo que ser maior particularmente quando trancadas em salas e permanentemente irritadas com atividades dirigidas por qualquer tipo de professora No momento há um conluio incrível que de acordo com minha observação está infelicitando a criança que provavelmente não será nenhum adulto feliz ou de bem Se de um lado os pais precisam de que elas fiquem quietas e obedientes os pediatras por outro desejam que isto ocorra porque não conhecem outra maneira de ajudar as famílias que lhes confiam os filhos Finalmente a escola faz de tudo para ter alunos também comportados e obedientes sem discutir se isso e bom ou não Para arrematar nossos governos não se preocu pam com a situação porque desejam adultos obedien tes e enquadrados em seus esquemas de mando Psicossomaticaindd 277 Psicossomaticaindd 277 05012010 121214 05012010 121214 278 Mello Filho Burd e cols Talvez seja o pediatra a única pessoa que possa mudar tal situação intercambiando conhecimentos com as escolas com as famílias e tendo a coragem de discutir os problemas das crianças como indivíduos pertencentes à família e à sociedade RELAÇÃO MÉDICOFAMÍLIACRIANÇA Poderseia discutir este item separandoo em relação pediatrafamília e pediatracriança mas não o faremos por considerar que no relacionamento pe diatracriança se inclui fatalmente a família e vice versa É interessante levar em conta a postura do pe diatra ao lidar com a criança porque influencia a fa mília reforçando condutas inadequadas préexisten tes ou desvalorizando condutas corretas abordadas no momento da orientação Precisamos de segurança em nossa atuação não apenas para que o choro e a rebeldia da criança não nos perturbem mas também pelo fato de a família tomar este modelo para futuras relações com o pa ciente Se durante o exame ou nos momentos que o antecedem sentirmos necessidade de enganar chan tagear prometer pirulitos ou inculcar medos na criança teremos oferecido à mãe modelo inadequado de se relacionar com o filho nada adiantando dizer a ela posteriormente durante as prescrições que o trate sem medos remorsos mentiras e chantagens Este quadro se agrava sobremaneira se a mãe já aplicava tais condutas erradas agora reforçadas pelo comportamento do profissional Em qualquer circunstância passase aos pais mensagem ambivalente que leva o conteúdo do que se falou e do que se fez durante a consulta Sumarizase dizendo que no caso o médico se portou como mau ou bom exemplo Objetivando a criação de ambiente favorável na rotina do consultório já no primeiro contato escla reço à família que durante a consulta me compete dizer ao paciente o que pode e o que não é permitido fazer A seguir dirijome ao paciente informandoo do seguinte Aqui não pode é perigoso mexer nas coisas que estão sobre a mesa e levar os brinquedos Fique tranquilo por que se você quiser fazer o que não pode não deixo Se o bebê por ser pequeno não puder entender tais explicações informo os adultos de que o choro e os resmungos por ventura existentes não ocasionam o mínimo incômodo Sempre adotei a seguinte conduta ao lidar com meus pacientes Preciso examinalo Você quer subir na mesa ou co loco você lá Caso a criança proteste ou chore digo Se quiser chorar espernear ou gritar não há proble mas consigo examinalo assim mesmo Caso a criança me pergunte se preciso ver a gar ganta digolhe que sim e que se sentir necessidade de chorar chore Ao mesmo tempo havendo necessidade peço à mãe que apenas me ajude a segurála sem falar nada ou tentar que o filho se cale E inadequado dizer coisas como Que feio Chorou tanto e não doeu nada Nossa Des te tamanho chorando Agora tome esse pirulito é para você Por outro lado a conduta correta mostra à famí lia que o choro é normal e não significa que precise ser medicado Ao mesmo tempo minha paciência é o espelho onde a família vai mirarse para lidar com o paciente Às vezes o pediatra mostrase muito bonzinho e aceita a rebeldia da criança que não permite anam nese e exame físico adequado Nestas situações ou se quer agradar a família ou não se tem equilíbrio inte rior suficiente para conduzir a consulta o que acaba prejudicando o paciente de alguma forma Não devemos ser grosseiros e agressivos O pe diatra precisa ter seriedade para extrair da consulta resultado satisfatório a seu paciente Aline minha paciente de 5 anos veio com sua família para consulta A mãe muito aflita pediume para entrar pri meiro Dizia ela Doutor minha filha perde o fôlego quando contraria da Se ela mexer em alguma coisa o senhor por favor não diga nada porque morro de medo Mostrando segurança pedilhe que não se pre ocupasse Ao entrarem os avós o pai e Aline dirigime à menina dizendo Aline nesta sala quem manda sou eu Aqui papai mamãe vovô e vovó não dão palpite Aqui não pode mexer nos livros nas coisas sobre a mesa não há peri go nem pode levar brinquedos o resto pode tudo Numa atitude desafiadora a menina quis mexer no relógio em cima da mesa Psicossomaticaindd 278 Psicossomaticaindd 278 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 279 De imediato segureilhe a mão dizendo Isto não é permitido combinei assim com você Se quiser chorar e perder o fôlego pode deitarse ali na almofada enquanto converso com seus pais Para surpresa de todos da família Aline não mais perturbou durante a consulta Aprendi que as crianças no decurso das consul tas não teimam nem me desobedecem porque sou claro e sincero com elas Por outro lado não tenho medo delas nem de que chorem fiquem nervosas gritem ou percam o fôlego Esta segurança precisa ser transmitida às famí lias pelo exemplo que damos ao lidar com os pacien tes durante a consulta Percebo há tempo que as crianças mais deso bedientes e agitadas no início da consulta vãose tor nando calmas e fáceis de se lidar enquanto oriento os pais até que no final se sentam e procuram fazer contato comigo pedindome algo ou querendo brin car comigo Muitas vezes o pediatra diante de certa queixa dá risadas faz deboches e críticas severas à mãe Tal conduta a deixa enveronhada humilhada e sentindo se em condições de inferioridade Além disso se outras pessoas da família estive rem presentes e forem discordantes das atitudes ma ternas poderão tomar o comportamento do pediatra como base para criticar as atitudes ou pensamentos maternos Durante uma consulta ouvi isto de uma senho ra Doutor meu marido minha sogra vão rir de mim já falei isto ao Dr X e ele riu de mim Fiquei com cara de boba mas se o senhor achar besteira não faz mal Esta senhora havia sido ridicularizada pelo pe diatra porque achava que sua filha tinha uma vagina muito grande e as fezes da menina eram esquisitas e feias Tomei a decisão de ouvila com paciência e esclarecêla em suas dificuldades Esta atitude a fez sentirse encorajada a trazer suas dúvidas dali para frente além de o restante da família ter percebido que suas queixas precisavam ser respeitadas Penso que mães como estas se sentem mais va lorizadas após as consultas e tornamse mais seguras ao lidarem com problemas de seus filhos Outro item importante no relacionamento com famílias em nosso consultório é a questão da paciên cia Tenho visto ensinar aos alunos na Faculdade uma via rápida de se fazer anamnese sem deixar o paciente realizar na sua exposição o que se conven cionou chamar de perder tempo Ensinamentos como estes devem ser discutidos minuciosamente pois o que se vê na prática é a mãe acuada pelo pediatra que por sua vez está aflito pelo excesso de trabalho Com tanta pressa é claro que o paciente não pode ser bem atendido Tenho interessante vivência de uma senhora que veio ao consultório com seu filho de 6 anos Du rante a consulta falou bastante e então combinei que voltasse outro dia para esclarecermos alguns pontos Na segunda consulta chegamos a várias conclu sões importantes em relação ao paciente mas notei que ela falou bastante de si mesma Na terceira con sulta voltou mas sem o filho e só falou de si Ficou claro e concluído entre nós que realmente ela precisava acertar alguns pontos na sua vida e que o filho foi o veículo para chegarmos a seus problemas Nestas consultas a criança foi beneficiada Por ser normal não recebeu qualquer terapêutica e ainda obteve benefícios porque quem tinha problemas era sua mãe que dali para frente poderia cuidar dos fi lhos em condições psicológicas muito melhores Durante a consulta o momento é propício para que o pediatra descubra e entenda uma série de coi sas importantes Assim observando a relação mãefilho colhem se dados úteis que depois se utilizam na orientação a ser dada à família Há pais que durante uma hora de consulta emi tem mil ordens proibitivas e nenhuma delas é obe decida Há aqueles que nada dizem aos filhos porque têm nítido medo deles ou porque são realmente dis plicentes Tais atitudes familiares são geradoras de dificuldades adaptativas das crianças em relação à escola família e sociedade sensu latu Outras vezes observamos contradições entre os diferentes membros da família incluindo a babá e até vizinhos que ao lidarem com a criança criam dificuldades para se criar uma disciplina necessária à sua vida Tenho visto adultos que durante a consulta de monstram excessivo dó em relação às frustrações dos filhos procurando evitar ínfimos sofrimentos que de modo geral são bem suportados por eles Isso tudo podemos observar no consultório Mas para tanto o pediatra necessita estar atento ser argu to sutil e ter capacidade de entender a dinâmica da família para darlhe orientação adequada Dentro desta linha de pensamento condenamos a conduta proposta várias vezes pelos pais e aceita pelo profissional de saúde de se retirar a criança da sala durante a anamnese ou depois do exame físico para que ela não os perturbe Psicossomaticaindd 279 Psicossomaticaindd 279 05012010 121214 05012010 121214 280 Mello Filho Burd e cols Em primeiro lugar como já foi exposto perdemos a oportunidade de estudar a relação pacientefamília e ainda damos aos adultos exemplo de intolerância em relação ao comportamento de seus filhos Nesta situação a conduta médica endossa a ideia familiar de que a criança não deve participar das decisões em relação a sua saúde o que nem sem pre é verdade Há oportunidades em que a criança ouve a con sulta quase não fala e sai dali com outro tipo de comportamento Em 1987 examinei uma paciente de 8 anos de idade com imensas dificuldades escolares e compor tamento depressivo A família impressionoume bastante pelos pro blemas e angústias Ficamos discutindo suas dificul dades durante duas horas A paciente nada falou durante a consulta mas se manteve muito atenta às discussões explicações e orientações em relação a seu caso Além de orientação dada indiquei psicoterapia como terapêutica para o caso Meses depois apesar de não se ter realizado o trabalho psicoterápico recebi notícias de que a pa ciente havia mudado totalmente a maneira de com portarse incluindo intensa melhora no rendimento escolar Nas condições da consulta mencionada estes fatos costumam ocorrer com relativa frequência quando tratamos de préescolar e escolares sem que sejam medicados ou submetidos a técnicas psicoterá picas mais complicadas De nenhum modo estou propondo consultas mi lagrosas mas mostrando que há consultas realmente terapêuticas e que devem ser usadas Balint admite implicitamente tais fatos quando afirma que o médico é bom medicamento e Winnicott 1984 quando descreve seus jogos de rabiscos acei ta essa afirmativa Queria que ficasse bem claro que me refiro às consultas de que participam a família e a criança Podemos afirmar que a primeira consulta em que orientamos os adultos que lidam com a criança é terapêutica não só pelo esclarecimento e aumento da segurança dos adultos mas também porque a criança apreende o que o médico fala e mostra nas suas atitu des e por isso amadurece Para que tais resultados ocorram o profissional deve ser tranquilo seguro ter bom domínio de suas emoções ser sincero ter disposição para explicar os pormenores das orientações ser paciente e admitir que a criança participando da consulta tem direito de ouvir falar discutir e de sempre ser respeitada Tenho visto famílias com ótima conduta em relação aos filhos como porem o número de infor mações que recebem sobre educação é grande ficam inseguras em relação ao que fazer com a criança quando acusa comportamento diverso Após a consulta e tendo nossa orientação como paradigma restabelecese a segurança na casa a har monia necessária instalase permitindo e auxiliando as melhoras Fica também claro que qualquer assunto que lhe diz respeito precisa ser tratado perto da criança Por menor que seja o paciente sabe o que moti vou a consulta Não adianta esconder Dois exemplos esclarecem A família de Marcelo veio ao consultório de sesperada porque seu tio muito querido estava com câncer e iria morrer Como o menino tinha grandes problemas emo cionais e físicos e também quando da morte da avó havia dado muito trabalho não sabiam o que fazer Resolvemos a dificuldade de maneira simples Chamei o garoto na presença da família e estabeleci com ele o diálogo abaixo Olha Marcelo preciso contarlhe algo que sua família não sabe resolver Seu tio X está com câncer e vai morrer O médico dele já disse É eu já desconfiava Você já sabia como Pelo jeito do pessoal lá em casa Após alguns minutos de silêncio Marcelo me perguntou se um milagre poderia salvar o tio Expliquei que não há milagres e que ele os esta va fantasiando para negar a morte da pessoa de quem gostava muito O garoto insistiu em saber se iria ou não ao se pultamento porque no de sua avó ficara nervoso e quebrara coisas durante o velório Posteriormente soube que foi ao enterro e se comportou muito bem Ao encarar a morte com naturalidade beneficia se o paciente DAssumpção 1988 Nosso segundo exemplo diz respeito a um pa ciente que foi trazido pela família e quando esta quis que ele saísse para conversar comigo resistiu Disselhe então que sua mãe se sentiria mais à vontade para falar de seus problemas longe dele mas que depois lhe contaria tudo que fosse falado O garoto respondeu que já sabia por que viera ao consultório e afirmou Minha mãe me trouxe porque eu falo como mulher Ligada a participação da criança à sua consulta precisase deixar claro que ela deve falar ao médico sobre sua doença e suas dificuldades Psicossomaticaindd 280 Psicossomaticaindd 280 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 281 A ideia de que a criança sempre deve ter o adul to como seu único intérprete está baseada no fato de comumente ser considerada numa fase da vida em que a passividade é sua característica fundamental O pediatra necessita ter em mente que seu pacien te tem sentimentos desejos próprios e conceitos sobre a vida que não podem ser proibidos de aparecer Assim como a criança não é um adulto em mi niatura longe está de ser um indivíduo que está cum prindo passivameme um estágio para depois como adulto ser igual aos que a educaram Não nos esqueçamos de que quando o bebê vê sua mão pela primeira vez chupa o dedo etc já faz um conceito do mundo Os educadores reconhecem modernamente este fato quando ao alfabetizarem percebem que o adulto tem um conceito sobre alfabetização e que a criança o tem da mesma forma Daí Emília Ferreiro proclamou que a criança não é um saco onde se vai colocando coisas Ferreiro 1986 Para realmente sermos capazes de ajudar a criança precisamos libertarnos dos preconceitos do autoritarismo precisamos aprender a lidar com nos sas próprias dificuldades internas Estas ideias são básicas Como é a família que leva o paciente e paga a consulta há tendências de o profissional agradála deixando de lado as reais ne cessidades da criança O caso abaixo elucida a questão Criança sadia foi levada à consulta como doente MAP com 11 anos foi levado ao nosso consultó rio pela senhora M sua mãe em 14686 MAP vive com seus pais e dois irmãos uma me nina de 12 para 13 anos e um menino de 7 MAP veio à consulta porque se tornou insupor tável De um ano para cá ficou irritado malcriado e bastante agressivo principalmente em relação à mãe Sua agressividade caracterizase principalmen te em responder com aspereza quando é chamado à atenção ou solicitado a colaborar nos trabalhos do mésticos Tornouse fanático por televisão come bastante e briga moderadamente com os irmãos Não os agride fisicamente a não ser dando tapas em raras oportu nidades MAP nunca apresentou problemas na escola onde é disciplinado alegre e cumpridor de suas obri gações até o momento da consulta Coincidindo com os problemas apresentados em casa também tem brigado com a mãe para fazer tare fas ou estudar em casa MAP e seus irmãos foram meus pacientes prati camente desde que nasceram e nunca apresentaram doenças graves ou internações A família tem bom poder aquisitivo pertencen do à classe médiaalta Há um mês foi levado ao neurologista Feito EEG revelouse foco irritativo em região temporal esquerda No início da consulta havia insistente pressão da mãe que representava o restante da família para que se medicasse o paciente Procuramos mostrar durante a consulta que além de medicamentos havia outras condutas tera pêuticas e que para se chegar a uma conclusão defi nitiva precisamos falar sobre a vida de MAP dentro da família O pai de MAP exatamente há um ano começara a viajar e permanecer semanas fora de casa em ou tro Estado cuidando de seus negócios Homem muito exigente cobrava da mãe responsabilidades em re lação ao que pudesse ocorrer com os filhos em sua ausência Com o afastamento do pai a senhora M que como toda a família não consegue entender o novo comportamento do menino como autoproteção pro moveu uma série de modificações na casa MAP que já trabalhava com seu tio fazendo até entregas de bicicleta na rua foi retirado do trabalho e sua bicicleta confiscada sob pretexto de perigo A senhora M não o deixou mais brincar na rua com os amigos e quando permitia que jogasse bola era sob rigoroso controle O paciente que já ia à es cola sozinho e tomava ônibus teve que passar a ir e voltar de carro com a mãe O comportamento da senhora M tornouse ab solutamente restritivo em relação aos filhos Ela ficou tão apavorada que quando estava em casa e o tele fone tocava demonstrava intenso pavor em atender pressupondo ser notícia de acidentes e mortes de fi lhos pai avós etc A menina mais velha voltou a usar chupeta ma madeira e a dormir com a mãe O caçula apresentou comportamento idêntico e ambos aceitavam o novo esquema criado na casa Segundo a senhora M os irmãos de MAP es tão muito afetivos cuidadosos deitam no colo dela e aceitam seu amor MAP entretanto está arredio não quer ser tratado como os irmãos Se alguém quer mimálo ou aconselhalo grita atira as coisas e sai de perto O próprio pai quando vem para casa relaciona se bem com o filho e já o aconselhou muito mas de nada adiantou Com o decorrer da consulta e após levantar os dados ficou claro para mim que MAP era um garoto Psicossomaticaindd 281 Psicossomaticaindd 281 05012010 121214 05012010 121214 282 Mello Filho Burd e cols normal vítima de uma família doente O comporta mento dele representa seu desejo de crescer ser ele e ao mesmo tempo libertarse Na realidade a relação paimãe é patológica e determinante do comportamento restritivo da mãe apoiada pelo pai quando aconselha o filho a com portarse bem Os dois irmãos de MAP assumiram intensa re gressão com comportamentos anormais para a idade mas aceitos como ótimos pela família atendendo a suas conveniências No contato com MAP o mesmo se mostrou ab solutamente normal o que já estava confirmado pelo seu modo de viver com os amigos e na escola Podese concluir que MAP é uma criança nor mal préadolescente que perdeu sua liberdade mas que briga por ela na tentativa de continuar a crescer No momento tenta quebrar as amarras que lhe são impostas pela autoridade exagerada e doentia do pai com a dependência e insegurança patológica da mãe Quando comparado com os pais e irmãos MAP pode ser considerado o membro sadio da família levado a uma consulta para que se comportasse como os ir mãos também doentes A família queria que MAP fosse aconselhado por mim e que também o medicasse para sedarlhe a re beldia que era bom indício de saúde Queríamos com este caso mostrar o perigo que existe de o médico tratar a criança saudável apoiando a família totalmente patológica Como este caso te mos dezenas de outros em nossa experiência Em algumas situações o pediatra assume a criança com seus problemas e trata a mãe ou a famí lia como inimigos É comum perguntarse à mãe coisas a que ela não sabe responder Esta então se informa com a em pregada ou com outra pessoa qualquer presente à consulta para dar a resposta Isso irrita o profissional que ignora dali para frente a presença materna e se dirige à outra infor mante tentando hostilizar a mãe Estas atitudes têm origem na época em que os pediatras implicavam com as madames que levavam as babás aos consultórios e estas se tornavam as in formantes Ao encontrar mães deste tipo sempre procuro incluílas na consulta valorizandoas em relação aos cuidados com os filhos Penso que com habilidade o médico consegue sensibilizar a pessoa em relação a suas funções e ela aceita as mudanças necessárias Por outro lado precisamos não nos esquecer de que modernamente nossas crianças estão em sua maio ria em creches e escolas préprimárias Temos que entender que já não estamos orien tando aquela família estruturada como antigamente em que a mãe permanecia em casa 24 horas por dia cuidando dos filhos As babás assumiram importante papel na for mação das crianças assim como as professoras e as funcionárias de creches Pareceme útil a atitude que temos tomado de aumentar nossos contatos com entidades orientan doas devidamente através de reuniões conferências grupos de mães programas de rádio colunas em jor nais etc Na sequência de condutas importantes como as que estamos discutindo é necessário que se aceite a seguinte Pouco ou quase não se dá oportunidade de a criança falar Os pais expõem seus pensamentos que muitas vezes representam desejos inconscientes de induzir o médico a trilhar certo caminho ou procuram forçar determinado diagnóstico Quando o pediatra é atento sincero com a famí lia e realmente quer beneficiar seu paciente forçoso é ouvilo A criança muitas vezes traz informações im portantes para a conduta do profissional fornecen donos dados de grande valia Além do mais quando valorizamos a criança permitindolhe participar da consulta ouvindoa também a valorizamos como ser humano o que pode servir de modelo para que os pais venham a conside rála com respeito Marcos era uma garoto de 5 anos quando veio consultarme pela primeira vez por causa de amigda lite Sua mãe muito ansiosa passou por cima de uma série de coisas importantes desprezandoas embora eu as houvesse abordado durante a consulta No meio da orientação Marcos disse Também Dr minha mãe vai me dar banho e puxa meu pipi dai eu não gosto Eu estou doente não tenho fome ela briga comi go pra comer e fala que eu preciso tomar injeção Eu não gosto de carne e ela fala que preciso comer se não eu fico fraco Meu amigo nunca come carne e eu nunca vi ele doente Este exemplo nos deixa claro que o pediatra precisa ouvir a criança porque ela tem coisas impor tantes a informar Estas queixas de Marcos negadas pela mãe permitiramnos discutir detalhadamente a questão da relação famíliacriança e enfocar dificuldades im portantes para a felicidade de ambas Sumariamente entendemos que o próprio pe diatra ao iniciar a consulta deve dizer bem claro que a criança terá liberdade para falar de suas dificulda des ligadas ou não à doença atual Psicossomaticaindd 282 Psicossomaticaindd 282 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 283 FRASES INFELIZES Alguns exemplos ligados a nossa experiência es clarecem devidamente O que pretendemos mostrar com este título Certo dia recebi para consulta uma senhora que em prantos repetia a frase Meu filho não poderia se resfriar e se resfriou Quando pedi para que se explicasse ouvia dizer que o Dr X tratou do seu filho com broncop neumonia e ao sair do hospital ouviu a frase que ela tanto repetia Olha mãe muito cuidado o nenê não pode pegar res friado Ao falar assim o médico realmente passou para a mãe a responsabilidade de evitar os resfriados como se ela tivesse em suas mãos tais meios A onipotência do profissional incitouo a orde nar e a mãe em nível ainda onipotente assumiu a responsabilidade Quando o resfriado apareceu ela se sentiu culpada daí o desespero Se ao invés desta ordem a orientação fosse me nos onipotente nada disso teria ocorrido Por exemplo Olha mamãe o bebê está curado A senhora vai para a casa com ele e qualquer coisa que houver me informe para que eu possa ajudála de perto Neste exemplo juntaramse onipotência e su perstição porque ter broncopneumonia e resfriarse não aumenta o risco de outra pneumonia Onipotência mais superstição no caso deixa ram a mãe emocionalmente mal e insegura para cui dar do filho Estamos cansados de saber que as angústias ma ternas podem ser captadas pelo bebê prejudicandoo intensamente Ana Maria era uma garota de 10 para 11 anos absolutamente normal quanto ao peso altura e de mais dados antropométricos e vitais Em sua casa havia desde que Ana nascera enorme obsessão matema para que ela se alimentas se isso sempre leva como aconteceu com a garota a intensa anorexia de ordem emocional A garota numa consulta com seu médico ouviu deste a seguinte frase Você precisa engordar pelo menos mais cinco quilos A consideração do médico em relação ao peso da paciente não só a perturbou profundamente como deu à mãe o apoio de que ela estava precisando para alimentar sua neurose por comida É interessante que na hora de passar a orienta ção final o pediatra disse à mãe que não a agradasse ou a forçasse comer É claro que a primeira e infeliz consideração de que ela necessitava engordar pelo menos mais cinco quilos foi o fósforo riscado na pólvora Osvaldinho era um nenê de 3 meses de idade Desenvolviase dentro dos limites da normalidade mas abaixo da média Ao ser levado ao pediatra a mãe ouviu deste a seguinte expressão Precisamos fazer tudo para que esta criança se desen volva mais É claro que tal consideração deixou a família em pânico Quando cuidei deste garoto aos 2 anos de idade ele estava dentro do normal para a faixa etária no que tange a peso e altura todavia mais uma vez com anorexia de origem emocional A situação criada pela infeliz conduta do medi co criou na família grande tensão emocional portan to ambiente desfavorável para o desenvolvimento do paciente Com o escopo de enriquecer nossa discussão gostaria de mostrar duas situações terríveis que pre judicam o paciente A primeira delas já mencionada anteriormente referese à frase do pediatra que diz a mãe Olha mãe a senhora agora só traga o bebê aqui quando ele estiver doente Ora isso simplesmente autoriza tratarse as doen ças e esquecerse a puericultura Fazer pediatria assim equivale a não fazer A segunda situação eu a vivi num Congresso de Pediatria na cidade de São Paulo imaginem só Numa mesaredonda sobre anorexia colocaram um psicanalista que não conseguindo respeitar a fal ta de apetite de seus filhos na sua exposição disse que é quase impossível aos pais respeitar as crianças quando não querem comer Falar isso a pediatras que vão a um congresso em busca de experiência de algo para aprender é absurdo Minhas atividades com crianças há 24 anos incluindo meu quarto ano médico mostraram exata mente o oposto Não só consegui respeitar meus pró prios filhos como através do meu trabalho obtive excelentes resultados com pacientes quer de consul tório particular quer do hospitalescola Uma coisa é conhecer psicanálise em profundi dade outra é aplicar conhecimentos na lida diária com pacientes Psicossomaticaindd 283 Psicossomaticaindd 283 05012010 121214 05012010 121214 284 Mello Filho Burd e cols ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE SINTOMAS E QUEIXAS Somos seres históricos As doenças não nos atin gem ocasionalmente O paciente organiza sua doença bem como seus sintomas Balint 1984 Embora pareçam claras as assertivas acima não são bem compreendidas ao se fazer a consulta pediá trica de rotina As queixas chegam espelhando aspectos somáti cos ou compondo o vetor psíquico Em qualquer circunstância jamais poderemos deixar de entender que com a queixa é trazido aqui lo que se tornou insuportável Isso significa que a queixa representa o limite da capacidade da família em lidar com as situações nela sintetizadas Érica uma garota de 7 anos tem medo de ir à escola Seus pais me procuraram para que resolva o problema Diz a mãe Ou o senhor medica ou dá conselhos para que ela vá à escola porque não aguentamos mais Logo à frente o equívoco materno e familiar fica mais claro É este o único problema dela Doutor No resto está tudo ótimo Aqui não há outra conduta a não ser aquela que elucida toda a relação da paciente com a família com a escola etc Neste caso foi preciso abordar setor por setor função por função da vida de Erica para descobrirmos que a queixa materna simbolizava a infantilização da filha Esta mãe não pemitia a Erica crescer Agradava insistia e forçava para que a garota se alimentasse Para evitar que Erica se resfriasse colocava à força roupas em demasia e a fazia cobrirse com excesso de cobertores Não permitia que a filha brincasse fora de casa com amigas Nunca lhe permitiu que escolhesse roupas nem a deixava tomar banho sozinha Qual quer dificuldades que a garota apresentasse interce dia sob pretexto de não vêla nervosa A queixa é o ápice o que emerge mas o restante do iceberg muito maior está totalmente escondido Daí decorre que há dois componentes naquilo que é trazido o latente que não aparece e o emer gente que compõe o que se pode denominar de ma nifesto Numa linguagem semiológica dirseia que a queixa tem caráter sindrômico Dentro desta abordagem competenos mostrar à família o equívoco em querer analisar a queixa sem conectála a todos os setores da vida do paciente Enquadrada num esquema superprotetor a me nina persistiu infantilizada sem iniciativa insegura e consequentemente não conseguia ir à escola em bora até mantivesse desejo de fazêlo Outro caso se refere a Cristóvão cujos pais me procuraram com a queixa de que o garoto vomitava de duas a quatro vezes ao dia já havia vários meses Ao ver o paciente no consultório acheio até obeso Após intensa exploração da vida do menino descobri que por insistência da mãe o garoto apesar dos 5 anos de idade tinha horário de alimentação cujos intervalos não ultrapassavam três horas A avó materna telefonava para a casa de nosso paciente de duas a três vezes por dia para saber como ele haviase alimentado recomendando à mãe que não se descui dasse do neto Cristóvão não podia brincar porque precisava comer impreterivelmente nos horários estabelecidos Seu pai no final da entrevista confessou que não pode sair com o filho pelo mesmo motivo Notamos bem que a queixa era vômito duas a quatro vezes ao dia Isso quer dizer que o que a mãe não aguentou foram os vômitos Ao estudar esta queixa deparase com toda a gama de problemas existentes porém não notados ou valorizados pela família É óbvio que modificando toda a relação de vida da família não só desapareceu a queixa como a obe sidade a acompanhou A obesidade poderia ser um motivo de queixa não o foi porque a família não só a suportou como a incentivou Se a queixa representa aquilo com que a família não pode mais lidar o sintoma é a via final comum de todas as dificuldades da criança Deduzse pois que o sintoma é o resultado de todos os problemas da criança elaborados como tal De nada adianta sedar sintomas sem entender a di nâmica que os determina Tratar sintomas significa usar os anti sejam eles quais forem antiinflamató rio antiespasmódico antibióticos antianorexígenos orexígenos anticonvulsivantes etc Entender a dinâmica determinante de sintomas de síndromes significa ir mais profundo ao assunto adquirir compreensão dele e lidar com sua provável etiologia etiopatogenia Fica claro que para exercer a terapêutica ba seiase na dinâmica na fisiopatologia ao passo que tratar sintomas é negar estes mecanismos Em pediatria se tomamos o que foi falado em termos de funções podemos resumir o exposto no es quema seguir proposto por Alcântara De acordo com a orientação sociopsicossomáti ca estas funções pertencem a uma roda dentada que posta em movimento não mais para Psicossomaticaindd 284 Psicossomaticaindd 284 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 285 As setas com duplo sentido indicam as mútuas influências de uma função sobre a outra Vêse logo que qualquer função se conecta a todas as demais Entender e exercitar este esquema é o que Marcondes e colaboradores 1985 cognominam atendimento global à criança Há uma expressão que precisa estar sempre em nossas mentes Quem trata o órgão o sistema ou o diagnóstico não trata o paciente Há que se compreender ainda que se o sinto ma resume as dificuldades da criança pode encer rar também o ponto atual do desenvolvimento que a criança atingiu Decorre daí portanto que o sintoma pode expressar quadro patológico ou normal Fica explicitado que qualquer sintoma é a lin guagem que a criança consegue organizar e trazer para ser analisada Como exemplo de sintomas com pondo quadro de normalidade podemos citar crian ças de 18 meses a 4 anos com suas birras e teimosias os comportamentos ligados à adolescência e a falta de apetite que a criança apresenta entre 12 e 36 me ses aproximadamente No primeiro caso a criança próxima aos 18 meses inicia o que se convencionou chamar fase de resistência ou de negativismo Neste período o nenê que ao longo do primeiro ano de vida viveu intensa fase de autoconhecimento ad quire boa noção de individualidade começando a não obedecer não gostar de ser contrariado apresentando se do contra em tudo com birras muito intensas Este quadro normal na evolução do bebê as susta a família que precisa aprender como se lida com a situação sem necessidade de qualquer medicamen to Deve ficar claro que toda criança normal passa por esta fase e que a ausência deste comportamento com maior ou menor intensidade é que pode signifi car presença de patologia Obviamente nestes casos os tranquilizantes sob quaisquer pretexto estão ab solutamente contraindicados Ao aproximarse de 1 ano de idade a crian ça que comia ou mamava bastante tinha aparência mais gorducha também porque quase não fazia exer cícios Já no segundo ano de vida o interesse infantil concentrado até então na autoexploração desviase para o meio ambiente de maneira intensa Aqui o apetite diminui bastante e a criança busca explorar o meio com o fito de enriquecer seu mundo visando a conhecer o mundo exterior Ocorre temporariamen te desinteresse pela alimentação há emagrecimento por excesso de exercícios e ela se torna um pouco irriquieta e mexelona É claro que a conformação física de criança ema grecida e comendo pouco dá a impressão de algo er rado É preciso salientar que alimentandose menos e explorando mais o meio a criança gasta as reser vas de gordura acumuladas e por isto se toma mais magra Basta ter paciência que a atividade diminui naturalmente após haver equilíbrio entre desejo de conhecer e conhecimento adquirido Como já foi afirmado neste período não há ne cessidade nem de orexígenos nem de tranquilizan tes bastando tãosomente espaço e locais adequados para que os acidentes não ocorram Estas fases orientadas são autolimitadas O mesmo ocorre com o adolescente que preci sa muito mais de compreensão e paciência para que possa definir sua vida Como foi afirmado os sintomas analisados com põem uma fase do desenvolvimento da criança e são normais se correspondem a referida fase Entretanto se o sintoma birra é normal na fase de negativismo será totalmente patológico aos 8 anos de idade E óbvio que ao analisar um sintoma é preciso considerálo evolutivamente sabendo inclusive que sua normalidade varia conforme o período etário em que aparece Em nossa vivência de consultório encontramos por vezes casos em que a família é adequada o pa ciente é normal mas surgem sintomas que os levam a consultar o pediatra É o caso de um rapaz de 16 anos que se tornou desanimado e com baixo rendimento escolar A análise da vida do nosso paciente revelou que estava cansado por excesso de atividade o que passa ra totalmente despercebido por ele e pelos familiares O jovem estudava trabalhava num período no posto de gasolina com o pai frequentava ainda escola de violão e natação três vezes por semana O caso supracitado pertence ao grupo de clien tes que sendo normais e apesar de viverem com fa mília adequada acusam sintomas decorrentes do excesso de atividade A correta orientação resolve as dificuldades existentes Em outras oportunidades temos encontrado fa mílias escolas e até mesmo grupos sociais tão dese FN MA Aqui FN Função nutritiva FP Função psíquica MA Meio ambiente FI Função imunitária FP FI Psicossomaticaindd 285 Psicossomaticaindd 285 05012010 121214 05012010 121214 286 Mello Filho Burd e cols quilibrados e confusos que acabam determinando o aparecimento de problemas cujos sintomas são trazi dos aos consultórios para serem solucionados A propósito lembramos de um garoto de 8 anos de idade cuja família nos procurou porque seu rendimento escolar era ruim Roia unhas e chorava toda vez que deveria ir à missa A questão religiosa preocupava particularmente os pais que eram católi cos praticantes Após demorada consulta descobri mos que a família e o grupo religioso a que pertencia castravam em excesso as atividades das crianças A orientação dada globalmente à família incluía a não obrigatoriedade da missa Pedi que fossem à igreja e que o pai por algum tempo convidasse o garoto para jogar bola Após todas as mudanças de conduta o garoto certo dia ao voltar do futebol com o pai disselhe Pai precisamos arranjar um dia pra gente ir à missa eu e você É claro que essa criança deixando de ser coa gida apresentou melhoras importantes na escola diminuiu o nervosismo e até pôde aceitar a missa propondo ao pai arranjar um dia para que ambos fos sem à igreja Fica evidente que se há famílias que exigem muito dos filhos também existem aquelas em que a criança não recebe o mínimo de limites retardando por isso seu amadurecimento Esses pacientes são crianças grandes medrosas inseguras exploradoras dos pais e que muitas vezes expõemse a riscos de acidentes A impressão que se tem é de que tais pacientes se sentem não amados e vivem expondose a perigos com a esperança de encontrar alguém que os ame mostre este amor sob forma de limites Finalmente poderíamos citar sintomas ligados a períodos de adaptação da criança a condições es pecíficas Neste grupo há duas situações especiais A primeira já comentada referese ao bebê que deixando a vida intrauterina necessita refazer sua relação com a mãe e quando isto não é possí vel surgem choros insônias anorexias dores de barriga etc A segunda situação tem como modelo a criança que vai à escola pela primeira vez particularmen te hoje com préescolas em franca atividade Tais crianças necessitam ser preparadas e rece bidas pela escola de maneira mais adequada do que vem ocorrendo Os sintomas que surgem nestas situações não devem ser considerados como doenças da criança porém mais apropriadamente como falta de capaci dade das escolas que dirigem todo o brinquedo de seus alunos e da sociedade que constrói tudo sem pensar nos filhos e posteriormente quer adaptálos às condições estabelecidas Há pouco tempo consultei uma criança de três anos que disse à sua mãe Mãe eu não gosto da escola porque lá a gente fica cantando balançando as mãos dançando e fazendo trabalhinhos É chato mãe eu queria brincar com terra com água correr brincar com meus amiguinhos Ah mãe eu gosto da tia mas é chato As pessoas que lidam com crianças precisam co nhecer coisas básicas sobre o significado do brinque do para poder entender esta queixa pura e simples de um menino de 3 anos Não nos esqueçamos de que a reclamação do garotinho Philipe encerra muita teoria que pediatras e professores deveriam conhecer pelo menos nos seus rendimentos Klein 1969 Win nicott 1975 REFERÊNCIAS Alcântara P Causas e remédios sociais da mortalidade infatil São Paulo Revista dos Tribunais 1945 Balint M O médico seu paciente e a doença Rio de Janeiro Athe neu 1984 DAsSunpção EA Tanatologia e o doente terminal Psicograma v 9 n 2 p 26 1988 Deluqui CG Disciplina In Bresolin AMB et al coord Pe diatria em consultório São Paulo Sarvier 1985 Ferreiro E A representação da linguagem e o processo de alfa berização In Reflexões sobre alfabetização 4 ed São Paulo Cortez 1986 Freud S Proyecto de una psicologia para neurólogos In Obras completas Madrid Biblioteca Nueva 1968 Kanner L La edad In Psiquiatria infatil 4 ed Buenos Aires Siglo Veinte Klein M Fundamentos psicológicos da análise infantil In Psicanálise da criança São Paulo Mestre Jou 1969 Marcondes E coord Pediatria básica 7 ed São Paulo Sar vier 1985 Mello A M A criança tal como é Série de Palestras 1 T As crianças reagem assim São Paulo Casa do Pequeno Trabalhador 1976 A fase do negativismo ou de resistência In Comporta mento infantil Série de Palestras 3 Pontes J F integração dos sintomas nos planos somático e psico emocional In Pontes J F et al Curso de medicina Sóciopsicosso mática IBEPEGE 1987 Psicossomaticaindd 286 Psicossomaticaindd 286 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 287 Rodrigues A L Rodrigues D M introdução à história da me dicina psicossomática In Temas de medicina psicossomática São Paulo Roche 1979 Spitz R A Transtomos de carencia afectiva In El prime alio de vida del niño génesis de las primeras relaciones objetales 3ed Madrid Aguillar 1974 Winnicott D W O brincar a realidade Rio de Janeiro lmago 1975 Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil Rio de Ja neiro Imago 1984 A criança e seu mundo 4ed Rio de Janeiro Zahar 1977 Textos selecionados da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro Francisco Alves 1978 Psicossomaticaindd 287 Psicossomaticaindd 287 05012010 121214 05012010 121214 A perspectiva psicossomática em Ginecologia e em Obstetrícia nos permite observar o desdobra mento da sexualidade e da identidade feminina nos principais pontos de transição do ciclo vital da mu lher menarca início das relações sexuais gestação e parto menopausa essa perspectiva também nos per mite alcançar uma compreensão mais abrangente das disfunções doenças e perturbações do curso normal dessas etapas Essa compreensão se aprofunda ao procurarmos ampliar o campo de visão e de escuta na pesquisa do contexto existencial da mulher a busca de dados básicos de sua história pessoal vincular familiar o ambiente sócioeconômicocultural onde vive seu cotidiano a qualidade da assistência que recebe Ao nos conectarmos com as redes nas quais se insere a pessoa recolhemos subsídios para formar um diag nóstico situacional que ultrapassa as fronteiras do diagnóstico clínico e psicopatológico Dessa forma podemos avaliar melhor as possibilidades e as limi tações os recursos e as carências da assistência na busca do caminho possível de ajuda Essa leitura diagnóstica nos é possibilitada por várias vertentes do saber Destacamse a teoria psica nalítica a teoria geral de sistemas a teoria do víncu lo A modificação de algumas intervenções de cunho psicanalítico a dinâmica de grupos e algumas técni cas de terapia familiar fornecem subsídios básicos de atuação A sensibilidade a criatividade a observação cuidadosa do contexto e o respeito pelas caracterís ticas e pelas reais necessidades das pessoas que de mandam atendimento são requisitos fundamentais para que o profissional possa de fato prestar uma assistência eficaz O LUGAR DO FILHO A história de cada filho se insere de modo único e singular na existência do pai e da mãe A gestação e o nascimento mexem fundo nas matrizes vinculares da mulher e do homem e alteram significativamente os padrões interacionais com a família de origem A gestação o nascimento e o crescimento do fi lho repassam pontos importantes de nossos pais do nosso contexto de vida e de nossas história como fi lhos do relacionamento com nossas peculiaridades Quando uma mulher e um homem tornamse mãe e pai passam por uma dupla identificação em nível consciente e inconsciente fazem uma revisão do mo delo parental e do processo educacional ao qual fo ram submetidos além disso identificamse também com o bebê gestando expectativas e anseios com re lação ao próprio papel de pais e às características da criança Este aspecto da identificação com o bebê traz matizes regressivos tanto no homem quanto na mu lher refletidos na relação conjugal e com a família de origem algumas queixas de dores inespecíficas mal estar e indisposição têm origem nas necessidades regressivas de receber proteção e cuidados o lugar do filho nesses momentos é o lugar da competição quem vai receber mais atenções Para acolher bem o filho a mulher necessita sen tirse segura dentro de si mesma e contar com o apoio do contexto familiar e do contexto assistencial Se na construção da autoimagem a mulher desqualifica seu próprio corpo e passa a ter uma baixa autoestima tenderá a sentirse predominantemente ruim por dentro julgandose incapaz de fazer bons bebês esses sentimentos são dolorosamente confirmados por perdas gestacionais ou pelo nascimento de crian ças malformadas Nestes casos uma gestação subse quente virá carregada de insegurança e de ansiedade solo fértil para a manifestação de problemas psicosso máticos Esse clima de angústia frequentemente pro longase após o nascimento não raro contaminando as trocas interacionais entre mãe e recémnascido que poderá também sofrer distúrbios psicossomáticos intensificação de cólicas perturbações do sono di ficuldades de sucção choro excessivo O lugar do filho passa a ser o lugar da angústia do sentimento de não dar conta da tarefa de criálo A falta de apoio familiar e as lacunas graves do contexto assistencial também contribuem de modo significativo para o aumento da ansiedade e do sen 20 PSICOSSOMÁTICA E OBSTETRÍCIA Maria Tereza Maldonado Psicossomaticaindd 288 Psicossomaticaindd 288 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 289 timento de desamparo da mulher no ciclo grávido puerperal Inúmeros casos de distocia do trabalho de parto e de inibição da lactação são desencadea dos por um contexto assistencial inadequado ou dis torcido O abandono ou o descaso do companheiro a rejeição dos familiares nos casos de gravidez da adolescente ou da mulher solteira transmitem uma falta de chão O sentimento de desamparo da mãe deixaa num estado de confusão e de perplexidade o lugar do filho passa a ser o lugar da solidão e da sobrecarga Eventualmente mesmo em circunstâncias bas tante adversas a gestação o parto e o puerpério transcorrem sem complicações A autora já presen ciou casos de gestações no decorrer das quais ocor reram eventos traumáticos tais como a morte do ma rido ou o diagnóstico de câncer no filho mais velho No entanto apesar da óbvia tristeza pela perda estes eventos nem sempre acarretam perturbações psicos somáticas ao contrário em alguns desses casos o que se vê é que o lugar do filho é o lugar da vida e da renovação da esperança ancorada na crenca de que é possível atravessar trechos extremamente difíceis do caminho sem se dilacerar A vontade de lutar pela vida e de superar obs táculos é o que impele algumas mulheres a continuar tentando a busca do filho mesmo em circunstâncias que envolvem perigo para a própria saúde como acontece em muitos casos de gestações de risco devi do a complicações cardiológicas renais vasculares e outras Nos milhares de casos de mulheres com saúde precária devido à miséria e à carência de recursos bá sicos para uma vida digna a produção de filhos gira em tomo de muitos fatores a expectativa de que as crianças trabalhem para aumentar a renda familiar a falta de acesso a práticas anticoncepcionais eficazes a obediência a preceitos religiosos que incentivam a procriação a mentalidade machista que equaciona fertilidade com virilidade a valorização da grande família O corpo da mulher é o lugar da expressão do sofrimento mas também da produção o lugar do filho é o lugar do desalento mas também da busca de melhores condições através do próprio ato de difun dir a vida FECUNDACÃO E GESTAÇÃO Mesmo nas gestações planejadas e desejadas um certo grau de ambivalência se faz presente sob a forma de dúvidas temores insegurança mesmo nas gestações indesejadas há uma busca inconsciente do filho ou da afirmação da fertilidade como fonte de valorização pessoal Em boa parte das gestações não planejadas o desejo de ser fecundada manifesta se não somente pelas sabotagens da anticoncepção esquecer de tomar a pílula de colocar o diafragma errar nas contas da tabela etc como também por mecanismos psicossomáticos que resultam em altera ções da data da ovulação O equilíbrio hormonal e a regularidade da ovu lação são facilmente rompidos em função da ansieda de e de conflitos importantes com relação à matemi dade gerando inibições da ovulação ou até mesmo o espasmo das trompas O medo de gerar filhos forma os alicerces de inúmeros casos de infertilidade e de transtomos da fecundação tanto na mulher quanto no homem incompetência istmocervical hostilida de do muco cervical oligospermia baixa motilidade dos espermatozoides aborto de repetição O desejo frequentemente aliado ao medo pode provocar alte rações psicossomáticas de intensidade variada desde o simples atraso menstrual com as correspondentes fantasias de fecundação até as impressionantes ma nifestações da pseudociese verdadeira psicose cor poral que fabrica um bebê imaginário construindo um corpo falsamente grávido numa dramática de monstração do poder do desejo Em algumas mulheres a dificuldade de engravi dar ou de levar a gestação a termo ligase no incons ciente profundo a uma falta de holding na relação com a mãe ao não se sentir sustentada a mulher sente dificuldades de sustentar e de carregar dentro de si uma nova pessoa a sensação precoce de vazio de insatisfação e de não preenchimento de necessi dades básicas na relação primordial costuma estar presente nas fantasias de um bebê voraz sempre disposto a esvaziar as reservas da mãe Esta fanta sia costuma expressarse por meio de um aumento exagerado do apetite no decorrer da gravidez ou no período da amamentação resultando em ganho pon deral excessivo que por sua vez provoca uma série de outros problemas durante a gestação Um vínculo básico de ódio e de rejeição por sua vez pode estimular o surgimento da imagem de um bebê mau e aterrorizador que vai acabar com a saúde e com a própria vida da mãe A sensação de carregar dentro de si um ser maléfico pode se expressar não só por meio de sonhos e de fantasias mas também por sintomas tais como falta de ar do res no baixo ventre malestar generalizado falta de ânimo e extremo cansaço até mesmo nas tarefas do cotidiano O crescimento do ventre ao invés de proporcionar alegria e tranquilidade gera o terror de ver o inimigo se avolumando e muitas vezes o desejo de arrancálo lá de dentro se possível prema turamente Em graus mais intensos a imagem do bebê aterrorizador cuja existência vai trazer mais perdas e riscos do que ganhos está na raiz de alguns ca Psicossomaticaindd 289 Psicossomaticaindd 289 05012010 121214 05012010 121214 290 Mello Filho Burd e cols sos de esterilidade conjugal especialmente quando o diagnóstico não e conclusivo feitos os exames ou concluídos os tratamentos indicados a fecundação não acontece embora clinicamente não haja im pedimento algum Anos se passam o casal perde a esperança de conseguir a gravidez e decide adotar uma criança Surpreendentemente tempos depois a mulher descobre que está grávida relaxando os con troles inconscientes reduzindo o medo por meio de uma experiência predominantemente boa com a ma ternidade adotiva a constelação inicial se modifica e o filho biológico aparece Casos semelhantes podem acontecer com o homem quando a baixa fertilidade está associada ao medo da paternidade e à impressão de que não conseguiria dar conta da responsabilidade de criar um filho quando ele próprio se sente imaturo e dependente Reações de luto pela perda gestacional também podem provocar transtornos tais como amenorreia prolongada e até mesmo a retenção do corpo grávi do Num dos casos atendidos pela autora a pacien te com história de abortos de repetição e com pro blemas renais sérios sofreu uma perda gestacional aos seis meses Permaneceu exatos nove meses com amenorreia e com o abdome volumoso querendo ne gar a realidade da perda e a impossibilidade de novas tentativas Na gravidez normal graus mais intensos dessa mistura de sentimentos geram conflitos que comu mente se expressam pela via psicossomática náuseas e vômitos hipersonia intensificação da irritabilidade dores por espasmos musculares alterações do ape tite Algumas dessas manifestações também surgem no homem grávido pela questão da identificação e da inveja da capacidade feminina de abrigar a vida dentro de si As flutuações do desejo sexual são manifesta ções psicossomáticas vinculadas à imagem da mater nidade que está internalizada na mulher e no homem Para algumas mulheres a fecundidade é sentida como gloriosa e o neném dentro do ventre simboli za predominantemente o fruto do amor e da criação conjunta Essa imagem propicia a predominância do bemestar que se traduz em sensações de muita vi talidade disposição e energia para empreender tare fas e para dedicarse a interesses variados incluindo uma atividade sexual intensa com maior capacidade de gozo em contraposição a imagem internalizada de um bebê frágil dentro de um corpo pouco protetor e a predominância do matiz agressivo na relação se xual comumente geram a necessidade de resguardar o neném gerando acentuada redução do desejo se xual até o ponto da inibição orgásmica As disfunções sexuais na gestação ligamse também à predominância da visão santificada da maternidade ou à repressão das fantasias incestuo sas além da diminuição do desejo muitos homens passam a ter ejaculação precoce ou até mesmo ficam impotentes diante do corpo grávido O recolhimento narcísico que faz a gestante voltarse para dentro de si própria e identificarse com o bebê também é um fator importante na diminuição do desejo Evidentemente podem surgir problemas no convívio conjugal em decorrência de imagens dis crepantes do bebê e da maternidade por exemplo a mulher pode estar com sua capacidade de desejo e de gozo aumentada e o homem pode estar retraído e assustado com medo de machucar o bebê evitan do o contato sexual a mulher se ressente aumenta sua insegurança e consequentemente sua tensão o que pode expressarse por sintomas de irritabilidade malestar agitação e desconforto A ameaça de abor to no início da gestação com a consequente interrup ção temporária da atividade sexual pode reforçar a imagem do bebê frágil num corpo não confiável pro vocando a inibição do desejo da excitação e do or gasmo no decorrer de todo o ciclo grávidopuerperal mesmo quando medicamente já não há motivo para a suspensão da relação sexual A inibição do desejo e da capacidade de sentir prazer ocorre comumente no contexto das perdas ges tacionais por interrupção espontânea ou voluntária da gravidez A interrupção voluntária em especial mobiliza intensos sentimentos de culpa cujo casti go pode ir muito além da inibição da sexualidade até transformarse num verdadeiro calvário de dores e de sintomas tais como inflamações ovarianas enxaquecas vertigens e assim por diante Num caso atendido pela autora houve uma interrupção voluntária da gestação no segundo trimestre em função de um diagnóstico de malformação em decorrência do sentimento de culpa por se ver como assassina do filho a paciente passou a apresentar vários episódios de dores e de inflamações sendo submetida a inúmeros exames e tratamentos por diversos especialistas foco do trabalho terapêuti co inicial girou em torno desse sentimento de culpa da busca da punição e da necessidade de elaborar o luto pelo filho perdido bem como da ferida narcisica derivada do fato de gerar uma criança malformada O mês em que o bebê deveria nascer foi especialmente complicado pela ocorrência de enxaquecas e de fortes dores musculares e nevrálgicas A dialética nascimentomorte e os processos pro fundos de identificação na relação entre mãe e filha gestante podem formar a raiz de quadros psicosso máticos importantes Num dos casos atendidos pela autora uma mulher grávida de sete meses foi enca minhada pelo obstetra por não ter encontrado causas clínicas que justificassem as intensas dores articulares que lhe dificultavam até mesmo a locomoção Além Psicossomaticaindd 290 Psicossomaticaindd 290 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 291 das dores a paciente queixavase da dificuldade de se ligar ao neném da impossibilidade de alegrarse com a gestação embora tivesse sido planejada Na primei ra sessão pouco falou da gravidez passou quase o tempo todo mencionando sua angústia com relação à mãe com câncer em fase terminal cheia de dores já em cadeira de rodas sem sair de casa Falou da culpa por não ter tempo de visitar a mãe todos os dias e dedicarse a ela devido ao seu próprio malestar Queixouse também da cobrança do marido que a criticava por ser muito dependente da mãe e por não ter comprado nada para o enxoval do bebê O que se evidenciou no curso das sessões foi uma intensa ambivalência na relação com a mãe e a sensação de sempre ter sido preterida a culpa pela raiva e pela doença da mãe ficou aguçada pela pró pria situação de estar esperando um filho Na área competitiva ela ao se transformar em mãe mata a mãe ao dar a vida tira a vida Para diminuir esse sentimento de culpa e o ódio destrutivo identificase com a mãe doente cheia de dores e não consegue se ligar ao neném Ao trabalhar essa hipótese central conseguiu sair da confusão e perceber que quem esta va morrendo com dores era a mãe e não ela Ao cabo de uma semana as dores articulares desapareceram por completo dando lugar ao surgimento de sinais concretos de ligação com o neném passou a chegar às consultas mais alegre com sacolas de roupas para o bebê Este caso é uma clara demonstração da im portância da psicoterapia breve centrada na interpre tação dos focos mais relevantes como complementa ção ao atendimento médico É fundamental entender a linguagem metafóri ca do sintoma psicossomático e tentar descobrir onde predomina a falta de holding se na relação com o companheiro com a família de origem ou no contex to assistencial Na maioria dos hospitais públicos o atendimento precário massificado e impessoal não permite a construção de um relacionamento consis tente entre o médico e a paciente o sistema de rodí zio nos ambulatórios faz com que a gestante seja vista por um médico diferente a cada consulta prénatal a insegurança com relação à assistência ao parto é enorme pois a gestante não sabe de antemão em que hospital vai encontrar vaga Quando além disso ela vive um clima de instabilidade e de precariedade dos vínculos afetivos familiares temos um campo fér til para a intensificação da angústia e consequente mente das manifestações psicossomáticas O PARTO Niveis intensos de ansiedade e de medo inter ferem nitidamente na contratilidade uterina alte rando o ritmo e a força das contrações do trabalho de parto tornandoo excessivamente prolongado ou prejudicando o progresso da dilatação do colo do úte ro A falta de confiança na elasticidade do corpo a vivência da vagina como um lugar apertado e rígido frequentemente associada a quadros de dispareunia e de inibição orgásmica são fatores que intensificam as fantasias de dilaceração em decorrência do parto vaginal estas fantasias por sua vez podem provocar espasmo da musculatura perineal ou até mesmo con tribuir para o prolongamento do final da gestação inibindo o desencadeamento do trabalho de parto e gerando a necessidade de fazer cesariana A internalização das historias terríveis com re lação ao parto o medo da morte simbolizado pela passagem da vida intrauterina para a extrauterina a identificação com a imagem da mãe sofredora que padece para dar à luz são fatores que intensificam o medo e contribuem para a tendência a lutar contra as contrações ao invés de acolhêlas como um novo ritmo do corpo que se prepara para dar ao bebê a passagem para uma nova vida O clássico circuito do medotensãodor se realimenta continuamente ge rando intenso desconforto e muita angústia Os métodos tradicionais do erroneamete cha mado parto sem dor procuram descondicionar em nível cortical o medo do parto por meio de infor mações sobre o processo da dilatação e da expulsão além do treinamento em técnicas de relaxamento e de respiração para reduzir a tensão corporal permi tindo seguir o ritmo natural das contrações com isso esperase alcançar a redução ou mesmo a elimina ção da dor do parto Em contraposição ao método psicoprofilático tradicional que procura incentivar o controle do intelecto sobre as emoções há méto dos de assistência ao parto que tentam estimular um estado regressivo que ativa estruturas cerebrais mais arcaicas o cérebro emocional para que a mulher consiga aceitar mais facilmente a abertura dos esfínc teres a emissão de urina e de fezes e o relaxamento do períneo há inclusive quem recomende banhos de imersão em água quente associados a massagens suaves pouca luz e música ambiente para facilitar o curso do trabalho de parto a presença de uma par teira de confiança que atua como uma figura materna boa também contribui para tranquilizar a parturien te facilitando a travessia das contrações A atmosfera do contexto hospitalar e a quali dade do atendimento da equipe de saúde são fato res relevantes para a diminuição ou para o aumento dos distúrbios da contratilidade uterina no período da dilatação ou no período expulsivo Nos hospitais públicos o isolamento das parturientes em salas de préparto a indiferença e a falta de carinho e de as sistência eficiente o impedimento da presença do Psicossomaticaindd 291 Psicossomaticaindd 291 05012010 121214 05012010 121214 292 Mello Filho Burd e cols companheiro ou de familiares são fatores que contri buem para o sentimento de solidão de desamparo e de pânico as contrações são sentidas como dores ter ríveis trazendo um sofrimento sem fim e sem pers pectiva A mulher sentese entregue à própria sorte em meio a gritos de dor e de desespero Algumas técnicas de assistência obstétrica em especial a posição horizontal da parturiente na mesa de parto também contribuem para o aumento da in cidência das distocias do trabalho de parto dificul tando a abertura do períneo no período expulsivo o que gera a necessidade de fazer episiotomia de rotina para evitar roturas perineais Por outro lado a posição vertical como no parto de cócoras ou no uso da cadeira obstêtrica tende a facilitar o processo fisiológico da dilatação e da abertura vaginal tornan do a episiotomia desnecessária na maioria dos casos encurtando a duração do período expulsivo e da re cuperação pósparto inclusive porque elimina o uso de anestésicos O parto feito em casa assistido por parteiras ou curiosas é a realidade predominante em regiões do Brasil em que os recursos de assistência médico hospitalar são escassos ou até mesmo inexistentes A precariedade de assepsia e de meios essenciais para o atendimento de emergências e de complicações au menta assustadoramente o índice de morbidade e de mortalidade maternoinfantil no entanto em países como a Holanda e a Inglaterra o parto em casa ao preservar a intimidade doméstica e a presença da fa mília junto com a garantia de pronta remoção para o hospital em caso de necessidade diminui a incidên cia de complicações obstétricas A criação de um ambiente caseiro e acolhe dor no ambiente hospitalar tem a finalidade de dar acesso à família ao ato do nascimento de seu novo membro e de criar uma atmosfera propícia ao rela xamento e à tranquilidade emocional ao se sentir realmente amparada e bem assistida a mulher tem melhores condições de atravessar a turbulência das contrações do período de dilatação com menos an siedade menos medo e consequentemente menos dor Alguns obstetras recomendam inclusive o uso de massagens suaves de relaxamento e deixam a par turiente livre para procurar a posição mais confortá vel durante as contrações Infelizmente o que mais encontramos nos dias de hoje é uma assistência obs tétrica excessivamente rígida e medicalizada em que a postura predominante da equipe consiste em ado tar os procedimentos de rotina tricotomia lavagem intestinal analgesia e anestesia episiotomia excesso de cesá reas submetendo a mulher a uma posição de extrema passividade pouca autonomia e escassa participação Isso por sua vez aumenta ainda mais a necessidade de intervenção médica O PUERPÉRIO E A AMAMENTAÇÃO O nascimento e os primeiros contatos entre os pais e o recémnascido inauguram a percepção das diferenças entre o bebê imaginário não visto no decorrer da gestação e o bebê real tal como con cretamente percebido com suas características e pe culiaridades entregue aos cuidados da família O puerpério imediato traz enormes e rápidas transformações de ajuste a uma nova realidade em todos os níveis expelida a placenta continua a ati vidade contrátil do útero no sentido do retorno às proporções anteriores à gravidez esse retorno é fa cilitado pela ação da ocitocina também responsável pelo reflexo de liberação do colostro e do leite por sua vez o contato imediato entre mãe e bebê e o iní cio das mamadas logo após o parto estimulam o sur gimento de interações precoces cheias de matizes e de sutilezas que colocam em marcha um complexo funcionamento bioquímico através do olhar do con tato de pele do olfato e dos sons da comunicação entre mãe e filho Estudos de observação da dupla mãebebê feitos através de técnicas refinadas de mi crofilmagem e de análise computadorizada mostram a existência de uma verdadeira dança sincronizada composta de movimentos sutis e complementares do corpo da mãe e do corpo do bebê no decorrer da ma mada quando estão harmonizados um com o outro Quando há harmonia e entendimento entre a mãe e o recémnascido no ato de amamentar o lei te flui em quantidade suficiente para a demanda do bebê no decorrer dos primeiros dias o colostro vai naturalmente cedendo lugar ao leite propriamente dito e ao longo das primeiras semanas vai aconte cendo uma regulação entre a sucção da criança e a liberação do leite produzido Por outro lado quando há desarmonia e desentendimento nesse contato da mamada surgem inúmeros obstáculos de ordem psi cossomática que dificultam ou até mesmo bloqueiam a lactação inibindo a produção eou a liberação do leite Para começar pode haver uma falta de encaixe entre a boca e o mamilo por dificuldades da mãe da criança ou pela falta de incentivo do contexto as sistencial A mãe pode ter dentro de si a imagem do bebê terrível e devorador que vai atacála machucá la exaurila com essa imagem ela coloca o bebê ao seio tensa e amedrontada dificultando a preensão do mamilo o bebê por sua vez pode ficar ansioso e ten so por não se sentir pego com aconchego e isso atra palha o ritmo de sua sucção frustrado com a dificul dade de preensão chora e fica irritado a mãe sente essa dificuldade como um obstáculo incontornável e afasta o bebê do seio Está formado o quadro proble mático frequentemente agravado por atitudes desen Psicossomaticaindd 292 Psicossomaticaindd 292 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 293 corajadoras de familiares ou da equipe assistencial que não esclarece a natureza das dificuldades e não procura ajudar a dupla a encontrar um bom encaixe além disso rotinas hospitalares tais como a perma nência em berçário e o horário rígido entre as ma madas contribuem para a falha de regulação desses primórdios da lactação A consequência é que muitas mulheres já saem da maternidade com a produção de leite prejudicada e não conseguem mais amamentar ao cabo de uma ou duas semanas A construção da autoestima como mãe suficien temente boa capaz de produzir leite de boa quali dade para alimentar o filho juntamente com a au toconfiança e o desejo de conseguir amamentar são fatores importantes para o funcionamento adequado dos mecanismos psicossomáticos responsáveis pela lactação atitudes de autodesvalorização e descrença na própria capacidade como nutrir aliadas à ansieda de tensão ou aversão à amamentação criam obstácu los Considerandose que a autoconfiança da mãe de um recémnascido especialmente se for o primeiro filho ainda está em formação a atitude de crença ou de descrença das pessoas que cercam a puérpera pode influir bastante na regulação desses sutis mecanismos psicossomáticos Por esse motivo práticas assistenciais que estimulam o contato precoce entre a família e o bebê como no sistema de alojamento conjunto por parte de uma equipe afetuosa e disposta a ajudar a contornar as dificuldades iniciais conseguem resulta dos muito mais favoráveis no que se refere ao sucesso da lactação em comparação com a rotina tradicional de berçário O ritmo espontâneo das mamadas é a melhor prevenção contra o surgimento de problemas tais como ingurgitamento dos seios dor e fissuras nos mamilos mastites e assim por diante Além disso o contato mais permanente com o bebê tende a acelerar a recuperação pósparto e a atenuar o desconforto da episiotomia ou da incisão da cesariana Igualmente importantes são os grupos de au togestão por meio de informações sobre o proces so de lactação e sobre as maneiras mais eficazes de superar as dificuldades que comumente surgem no decorrer das primeiras semanas o grupo composto por mulheres que estão amamentando é coordenado por pessoas que passaram pela experiência de ama mentar os filhos oferece incentivo e suporte emocio nal que contribuem positivamente para tomar a ama mentação uma ocasião de contato gratificante entre mãe e bebê O suporte emocional o incentivo e o desejo de amamentar podem até mesmo superar dificuldades provocadas por situações de extrema tensão e pela impossibilidade do bebê sugar diretamente o seio este é o caso da amamentação à distância que acon tece quando nasce um bebê muito prematuro que permanece semanas ou até meses internado numa UTI neonatal Observamos que a entrada da mãe na UTI para olhar e tocar o bebê antes de extrair o leite com a bomba ajuda o processo de liberação em casa entrar em relaxamento pensar no bebê aplicar com pressas quentes nos seios antes da extração também favorece a saída do leite A atitude de suporte dos familiares e da equipe de saúde é obviamente fun damental para o sucesso dessa tentativa de manter a produção de leite até que o bebê consiga atingir peso e maturidade suficiente para iniciar a sucção direta do seio materno Estes mesmos fatores de suporte e de desejo de conseguir produzir leite atuam nos processos de relactação nos casos em que o bebê apresenta rea ções alérgicas aos outros tipos de leite artificial após a interrupção da amamentação é possível tentar es timular novamente os mecanismos psicossomáticos responsáveis pela produção de leite Mais ainda é possível inclusive estimular a lactação de mães ado tivas Uma das técnicas utilizadas nestes casos con siste em fazer o bebê sugar o seio da mãe adotiva enquanto recebe o leite por uma sonda nasogástrica colocada sobre o mamilo com isso estimulase a pro dução da prolactina A mãe precisa ingerir líquidos em grande quantidade e estar realmente disposta a tentar lactar com a persistência das mamadas podese alcançar a produção de leite ao cabo de uma ou duas semanas No campo das interações precoces entre mãe e recémnascido também podemos observar o surgi mento dos fenômenos psicossomáticos do lactente Em linhas gerais o funcionamento harmônico das funções vitais do bebê depende muito da sintonia e do atendimento satisfatório de suas necessidades básicas falhas importantes neste processo instalam a angústia primordial que transborda em manifesta ções várias tais como insônia do recémnascido có licas intensas dificuldades de ingerir e de digerir os alimentos alterações do ritmo respiratório perturba ção do funcionamento intestinal e assim por diante PREVENÇÃO E TRATAMENTO UM LEQUE DE POSSIBILIDADES Por meio da visão sistêmica e da abordagem multidiscilinar no âmbito institucional podemos ampliar o campo de observação aprofundar a área de entendimento e buscar a criação de modalidades mais eficazes de atendimento de acordo com o con texto em que trabalhamos e com as características da população que recebe nossa assistência Num país como o nosso com tantas diferenças regionais fazse necessária a cuidadosa observação Psicossomaticaindd 293 Psicossomaticaindd 293 05012010 121214 05012010 121214 294 Mello Filho Burd e cols das tradições costumes e crendices populares o res peito pela sabedoria do povo e o conhecimento dos modos pelos quais a comunidade costumeiramente presta assistência à grávida e à puérpera são prére quisitos básicos para a implantação de novas moda lidades assistenciais formalmente profissionais Do contrário as pessoas que atendemos não conseguirão absorver o que queremos transmitir e nem se sentirão efetivamente ajudadas Muitos programas de saúde falham em seus propósitos por não adequarem sua metodologia ou sua linguagem à realidade da popu lação que pretendem atender Além disso num país em que predominam a carência e a precariedade de recursos materiais e de pessoal de assistência o apro veitamento dos métodos já existentes dos líderes comunitários e dos profissionais leigos que atuam verdadeiramente como agentes de saúde é o meio mais eficaz de multiplicar conhecimentos e de fazer funcionar programas de natureza preventiva Por exemplo há regiões do interior do Brasil em que a parturiente dá à luz sentada num banquinho de vértebra de baleia com o companheiro apoiando a pelas costas enquanto a parteira apara o recém nascido e espera o cordão umbilical parar de pulsar para cortálo o contato entre pais e bebê se faz de imediato e a primeira mamada acontece logo em seguida Esta assistência tradicional da comunidade está perfeitamente enquadrada no que atualmente se valoriza em termos de parto vertical e de contato pre coce com o bebê introduzir formas científicas de parto horizontal com episiotomia de rotina e ampla utilização de anestésicos afastando a parteira e alie nando a família no momento do nascimento não seria exatamente um progresso de assistência aproveitar os recursos naturais da comunidade dar às parteiras maiores subsídios de assepsia e de atuação em com plicações obstétricas oferecer maiores possibilidades de remoção para o hospital nos casos de necessidade isso constituiria uma postura de maior respeito cer tamente de mais fácil aceitação pela comunidade Por melhores que possam ser nossas intenções muitas vezes verificamos com frustração e desapon tamento que nossos esforços estão sendo infrutíferos Por exemplo na maioria dos centros de atendimento para adolescentes as equipes reconhecem que a pro cura de orientação para a anticoncepção é decepcio nantemente pequena muitas chegam grávidas para acompanhamento prénatal com gestações não dese jadas e com todas as complicações sociais e familiares daí decorrentes Os serviços existem os profissionais estão disponíveis mas a populaçãoalvo não compa rece Fazse necessário refletir melhor descobrir vias de acesso criar estratégias diferentes de abordagem Nem sempre o que é bom na nossa ideia é o que as pessoas buscam ou precisam Gestação parto e amamentação são períodos de transição extremamente importantes para a mulher o casal a família a comunidade uma vez que mar cam a chegada de uma nova pessoa Os programas de prevenção primária tratam de oferecer algum tipo de assistência às pessoas que estão passando por es sas transições para que se possa trabalhar eventuais focos patogênicos e desta forma melhorar o nível de saúde da comunidade Num país como o nosso com uma enorme população precisando de atendimento por parte de um número relativamente pequeno e ir regularmente distribuído de profissionais de saúde o trabalho grupal é uma alternativa da maior impor tância a começar pela adolescência já que é alto o índice de gestações não planejadas nessa população A inclusão de pessoas que já passaram pela si tuação em questão gestação amamentação nas cimento de filho prematuro etc pode ajudar bas tante o processo de identificação e o surgimento da esperança de formular alternativas criativas para li dar com a situação nova a ser vivida O treinamen to de líderes comunitários para coordenar os grupos e a transmissão de informações no nível de enten dimento da populaçãoalvo são caminhos eficazes para multiplicar as ações de saúde e tornálas capa zes de serem efetivamente absorvidas No âmbito da prevenção primária o trabalho grupal em postos de saúde centros comunitários e ambulatórios contribui para a redução de perturbações psicossomáticas na medida em que propicia acolhimento para as ansie dades e temores naturais do ciclo grávidopuerperal e procura transmitir informações relevantes para que as pessoas possam utilizar seus próprios recursos na resolução de dificuldades que comumente surgem Tanto melhor se a isso for acoplado um trabalho inter disciplinar nos moldes de interconsultas e de grupos de reflexão para profissionais com o objetivo de repensar e de modificar as rotinas assistenciais Por exemplo instituir o sistema de alojamento conjunto ao invés da rotina rígida de berçário permitir a entrada do compa nheiro na sala de parto e assim por diante A ajuda psicoterápica a nível individual de casal ou de família é uma indicação necessária em muitos casos em que a maternidade e a paternidade ativam e trazem à tona conflitos e dificuldades importantes que não raro se manifestam por meio de problemas psicossomáticos A organização de centros de atendi mento psicoterápico destinados à população de baixa renda continua sendo de capital importância embora muito pouco tenha sido feito nesse sentido Como se pode ver o leque de possibilidades de atendimento é bastante amplo embora as condições de viabilizar projetos nesse sentido sejam ainda bas tante precárias Mas vale a pena prosseguir nas tenta tivas de realizar trabalhos pioneiros e dar continuida Psicossomaticaindd 294 Psicossomaticaindd 294 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 295 de ao que já está implantado persistindo no esforço de contribuir para a melhoria da saúde da população e na busca de melhores condições de vida para essas crianças que estão nascendo REFERÊNCIAS Bouchart A Rapoport D Origines Les Cahiers du NouveauNé 7 Paris Stock 1988 Friedman R Gradstein B Surving pregnancy loss Boston Little Bmwn 1982 Kreisler L La psychossomatique de lenfant Paris PUF 1989 Maldonado MT Psicologia da gravidez Ed Saraiva São Paulo 1997 edição atualizada Odent M Entering the World New York Plume 1984 Pinot ti JA e Sabatino JH Medicina perinatal São Paulo Unicamp 1987 Videla M Psicoprofilaxis institucional y Comunitaria Buenos Ai res Trieb 1984 Psicossomaticaindd 295 Psicossomaticaindd 295 05012010 121214 05012010 121214 Ocupome aqui do enfoque psicossomático em cancerologia Como pode ser interpretada minha passagem da cirurgia oncológica como Professor de Cirurgia da Universidade de Buenos Aires para a Psi concologia e para o cuidado psicoterápico de pacien tes com câncer A única resposta possível é a necessi dade interior de compreender A medicina organicista ensina a ler a enfermi dade do ponto de vista do médico e do laboratório A Medicina Psicossomática no caso a Psiconcologia pretende ler escutar e compreender a enfermida de a partir do paciente Um exame físico e centenas de determinações bioquímicas e radiológicas podem demonstrar que um homem está normal Uma única entrevista psi cossomática adequada pode nos mostrar que esse mesmo homem está gravemente enfermo DOS DOGMAS E MODELOS POR QUE O PSICOSSOMÁTICO PODE SER SENTIDO COMO UMA AGRESSÃO NARCÍSICA O conceito de unidade na estrutura do homem é um tema secular Séculos e séculos de concepções filosóficas psicológicas orgânicas teológicas etc têm ocupado milhares de páginas Parece que a aceitação da unidade do homem é um conceito que desperta resistências que faz nascer condutas e pensamentos racionalizados Criamos até mesmo uma definição ou modelo de ciência médica que aprioristicamente aceita apenas o orgânico Como sabem modelo é um modo de ver ou de explicar uma realidade Quando não se adapta à realidade resistindo a ser modificado não é mais um modelo mas um dogma Um dogma é uma proposição pretensamente divina que nós mesmos tornamos indiscutível Tentaremos mostrar a diferença entre um mo delo científico e um dogma Quando um modelo não corresponde a uma rea lidade desaparece sem protestos sendo substituí do por um novo modelo O dogma não se modifica com a realidade an tes pretende adaptar a realidade a si mesmo Tudo que se refere a um dogma é julgado como sendo uma verdade superior e os dogmáticos desde Platão acreditam ocupar e com frequência ocupam lugares destacados na sociedade Quando um paciente melhora ou fica cura do com um procedimento como a psicoterapia por exemplo e tivermos um modelo de doença que não aceita o psicológico embora a evolução real demons tre que ele existe temos de mudar esse modelo Por outro lado se a não aceitação do psicológico for dog ma decidese que a melhora não existe não é verda deira ou é casual Não obstante e felizmente o conceito de modelo médico científico está mudando em todo o mundo Penso em toda a linha da epistemologia atual ou ciência do conhecimento Penso em Jean Paul Sartre e Gastón Bachelard continuadores do grande Poin caré na França Benedetto Croce e Antonio Gramsci na Itália Max Scheler e Karl Jaspers na Alemanha e em especial em Karl Popper na Inglaterra um gran de filósofo das ciências da atualidade mas também um inquieto e inteligente estudioso da teoria da Me dicina Graças a eles e a muitos mais procurei estabe lecer um modelo de enfermidde O que é enfermi dade e o que é saúde O que hoje é científico Há 21 PSICOSSOMÁTICA E CÂNCER José Schávelzon É um sistema abstrato que substitui um sistema real para estudálo Fundamento de toda a ciência moderna Um dogma é um tema de doutrina Os homens resolve ram que todo dogma é incontroverso e superior à razão humana É o símbolo de uma verdade perfeita Na escola platonical já existia a corrente céptica Ou seja a dos que continuam investigando a verdade e no século II aC Sexto o Empírico classificou os conceitos em dogmáticos e cépticos No século VI o conceito de dogma foi adotado pelo cristianismo Psicossomaticaindd 296 Psicossomaticaindd 296 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 297 mudança para um modelo integrador mas por que ainda encontramos tantas resistências Por que são tão necessários reuniões e congressos de Medicina Psicossomática Por que parte dos médicos não julga necessário e útil atualizar suas concepções de saúde e de enfermidade Por que o modelo médico estrutura do com base nos estudos e na concepção mecanicis ta que teve tão grande desenvolvimento na segunda metade do século passado é ainda um dogma Por que se persiste em tal dogma Encontrei uma resposta em Freud Lembrem o valioso trabalho Uma dificuldade na psicanálise em que conta as três agressões narcísicas da huma nidade A primeira é a agressão cosmológica narcísica ou ao amorpróprio da humanidade que ocorreu quando tivemos de aceitar que não somos o centro do universo Passamos a constituir uma fração infini tesimal e sem importância de um universo difícil de conceber Isso já tinha sido mencionado várias vezes na história mas acho que o importante é que consti tuiu uma afronta narcísica a partir do momento em que Copérnico não pôde mais discutilo Algo semelhante ocorreu quando não se pôde mais discutir a partir de Darwin que nada mais so mos do que uma forma evoluída na escala animal quando dizemos animal estamos apenas nos refe rindo a um pai distante Esta foi a afronta antropoló gica Deixamos de ser a imagem dileta de Deus como nos tínhamos autodefinido Mas a terceira afronta foi e é a mais agressiva Ocorreu quando tivemos de aprender e aceitar cons cientemente a noção de que não somos os donos e senhores da consciência De que não somos mais os amos em nossa própria casa Que nossa conduta é guiada por razões frequentemente ocultas a nós mes mos Foí a afronta psicológica Desta vez o responsável foi o próprio Freud e desejo repetir o ponto de vista o que agride não foi ter descoberto o inconsciente pois ele próprio diz que foi mencionado por Spinoza Nietzsche e Schope nhauer mas o que agride para o narcisismo humano é havêlo tornado indiscutível Acredito que para quem resiste por suas pró prias razões a aceitar uma realidade tornála evi dente sempre constitui uma agressão Voltando ao que denominei de resistências quanto à aceitação psicossomática quanto à única es trutura possível do ser humano podemos encontrar aqui as causas da resistência Procurar alguma razão para sentir o psicossomático como uma agressão nar císica como uma agressão a nosso amorpróprio Se não vejamos Desde que temos registros escritos ou desenha dos da história do homem há uns 50000 anos até hoje sempre existiu o que chamo de a necessidade de crenças tranquilizadoras para o homem diante dos fatos da natureza ou diante dos acontecimentos que provocam temor e sofrimento Essa crença con siste em criar deuses e lhes atribuir o dom de dispor sobre tudo o que se passa conosco tanto mais quanto mais primitivo for o indivíduo Não só damos essa atribuição aos deuses mas lhe acrescentamos para nossa maior tranquilidade a característica de que essas decisões são incompreensíveis e inalcançáveis para nós mesmos Crer que os deuses quiseram assim ou que é uma decisão inescrutável do destino põe fora de nós longe de nosso alcance toda possibilidade de in tervenção de decisão e especialmente liberanos de toda responsabilidade individual e social Não é difícil compreender e aceitar que se a Medicina Psicossomática pretende situar o lugar onde nascem as decisões sobre os fatos transcenden tais de nossa vida em nossa própria mente e em nossa própria biografia consciente e inconsciente estamos pondo dentro de nós tudo aquilo que estava cômoda e tranquilamente do lado de fora Na saúde na enfemidade ou na morte em Psi cossomática não se frequenta o templo para rogar ou interrogar os deuses sobre seus desígnios que nós mesmos tomamos inescrutáveis Temos agora de in terrogar a nós mesmos e procurar no paciente e em seu ambiente Quando há alguma resposta na con cepção psicossomática ela está dentro de nós mes mos ou na estrutura social que nós próprios também construímos Até agora alguns fatos Porém em nossa in terpretação não é a concepção psicossomática o pôr dentro de nós a responsabilidade pelos fatos da vida da enfermidade e da morte o que constitui uma agressão narcísica uma agressão ao amorpróprio do homem E agressão quando procuramos mostrar que aquilo é evidente e verdadeiro Nem todos estão dis postos a escutar verdades iconoclastas Finalmente e como uma aventura do pensa mento talvez pudéssemos contribuir para a difusão ainda maior de uma Medicina Psicossomática ado tando atitudes não agressivas para o amorpróprio ou para os sentimentos narcísicos de nossos colegas E por fim escutem Não lhes parece ouvir como do Olimpo Hipócrates está rindo de nós O CÂNCER A PARTIR DO INDIVÍDUO COMO TOTALIDADE Chamaremos de ego ao conjunto de elementos orgânicos e psicológicos que um individuo reconhece como integrantes de sua estrutura Fenômeno físico Psicossomaticaindd 297 Psicossomaticaindd 297 05012010 121214 05012010 121214 298 Mello Filho Burd e cols e psíquico que se completa em torno dos dois anos de idade O conceito de ego é motivo de estudo por filósofos e psicólogos em toda a história do homem desde Descartes Leibnitz e Kant até Freud e os auto res mais atuais como Risieri Frondizi Para reconhecer devese passar um período de tempo e de experiências em que a criança começa por conhecer o que lhe permitirá reconhecer Isso significa que reconhecer sempre implica um conheci mento ou informação prévio No campo biológico tudo aquilo que não se in tegrou na evolução filogenética é fomecido pela mãe durante a ontogenia e através da placenta Estes produtos de reconhecimento da mãe atuam na criança como conhecimento até que esta se tome capaz de seus próprios reconhecimentos De fato as defesas imunológicas fornecidas à criança vão sendo suplantadas pelas suas próprias no final dos dois anos de idade Um reconhecimento do extemo implica necessa riamente o conhecimento anterior de si próprio Sem o sipróprio ou ego o outro é inexistente Sem essa primeira vivência a segunda não existe Dizemos então que o sistema imune reconhece o não ego Este é um excelente ponto de partida mas reconhecer significa uma releitura ou revivência da realidade de acordo com ou referente a a própria estrutura Também na área psíquica toda informação tem uma certa comparação com alguma experiência in formação ou pensamento anterior da qual pode re sultar ou não o reconhecimento e aceitação Não depende apenas do elemento ideia ou pensamento exterior mas como ele é lido pelo indivíduo Leitura significa estabelecer algum tipo de con tato ou relação específico com um não ego através de um processo Esse processo provoca a formação de um complexo único entre o leitor o sujeito o que é lido o objeto ou a circunstância e como é lido Da formação deste complexo podem resultar di versos efeitos em diferentes casos Por exemplo em imunologja a identificação do outro com o não ego é seguida por um processo que tende a sua eliminação A leitura imunológica exige portanto a referên cia a uma estrutura preestabelecida com especifici dade determinada geneticamente ou por experiência voltada ao mesmo tempo para reconhecer o não ego O não ego por definição é diferente do ego e por isso escapa da referência estrutural do ego Procuremos esclarecer a aparente contradição de que o ego não precisa utilizar uma estrutura inter na e preestabelecida para reconhecer algo que está fora do ego e por conseguinte não predeterminado Nossa hipótese é que o reconhecimento do não ego só pode ocorrer depois da estmturação do ego pois o não ego só pode ser lido em função do ego Todo elemento alheio ao ego não pode ser con siderado como não ego enquanto a estrutura mental a evolução biológica e a imunológica não tiverem reconhecido o ego Por exemplo usamos a palavra antígeno como uma marca identificatória do não ego que determina uma leitura especifica do ego necessária para o reco nhecimento do não ego O organismo por si só é competente para reco nhecer os elementos do mundo exterior com os quais pode estabelecer interações vantajosas Seu resultado é a evolução filogenética A imunocompetência é um dos produtos deste desenvolvimento que foi vantajoso para o organismo in totum Assim a evolução filogenética é um indica dor da capacidade de incorporar determinados não ego Algo semelhante pode ser aplicado ao desenvol vimento intelectual A formação de anticorpos defesas ou a ativida de das células killer ou assassinas exige uma expe riência de conhecimento do ego para depois poder reconhecer o não ego A função biológica mais favorável do sistema imune estabelecido pode ser considerada como a proteção conferida a um organismo contra elementos patogênicos ou toxinas Então parece que o sistema imune evoluiu para sua função atual através do reconhecimento do dife rente ao próprio organismo Durante seu desenvolvimento um organismo demonstra reconhecer seus componentes como ego para permitir que as diferentes populações celulares de um organismo multicelular vivam juntas e em har monia Uma forma de leitura muito específica Não obstante em qualquer momento podese desconhecer uma parte do ego considerandoo não ego e criando anticorpos contra seu próprio fígado pâncreas tireoide pele articulações ou outros Co nhecemos essa circunstância como enfermidades de autoagressão e sua relação evidente com circunstân cias estressantes vitais A sobrevivência e cooperação das diferentes populações celulares em um mesmo organismo é possível devido à complementaridade das estruturas de suas membranas celulares Essa complementa Podemos ver este fato biológico em qualquer ser unice lular por exemplo em uma ameba Sua vida depende de sua capacidade de englobar ou captar o útil alimentício ou necessário e rechaçar ou afastarse do agressivo perigoso irritante ou prejudicial Graças a isso sobrevive Psicossomaticaindd 298 Psicossomaticaindd 298 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 299 ridade permite uma relação contínua entre células diferentes O sistema imune aprendeu a identificar o não ego através deste processo de autorreconhecimento O conceito de igualdade biológica deve ser as sim compreendido pois não precisa ser igual O que é necessário é ser reconhecido e lido como ego Dois objetos são considerados iguais quando são lidos como iguais Por exemplo a molécula N é igual à molécu la N2 quando for capaz de produzir ou provocar a mesma reação da N2 com a mesma enzima Por isso devese descrever uma igualdade operatória e não necessariamente uma igualdade matemática protei ca ou conceptual Esta igualdade ou similaridade operatória é a única observada na natureza Por exemplo quando dizemos que uma substância H é semelhante à hista mina estamos expressando uma similaridade bioló gica em função das reações que e capaz de provocar e que chamamos de propriedades Durante toda a vida do indivíduo desde sua concepção toda estrutura proteica ou célula diferen te displásica ou neoplásica é lida sempre como não ego e destruída Em determinado momento a leitura se modifica e esta noção leva a procurar os motivos ou o gatilho que modificam esse reconhecimento ou leitura Esta maneira de pensar situa o problema do aparecimento do câncer em uma modificação do organismo in totum e não apenas em uma invasão agressão ou irritação extema Esta mudança de atitude para com a célula dife rente é um fato biológico Como veremos esta mudança de atitude ou de leitura se expressa em múltiplos aspectos Podemos encontrar um número infinito de ra zões possíveis e sua seleção provavelmente não es capará da ideologia de quem a selecione Por exem plo elementos carcinogenéticos no meio extemo oncogênes eou protoncogênes ação virótica falha imunológica área emocional traumas psicológicos papel das endorfinas Selye ou finalmente como pretende Lazarus 1986 dependente da atividade cognitiva cerebral e consciente Outro fato importante é que o organismo atende às necessidades ou exigências metabólicas do tumor às custas de si mesmo e até sua própria morte dife rentemente de outras enfermidades em que esque maticamente chegase à morte por razões mecânicas aparelho circulatório por transtomos metabólicos derivados do funcionamento anômalo de um órgão como o diabete o fígado o rim ou o pulmão ou o esgotamento do ego em oposição ou luta com um não ego perfeitamente reconhecido como nas infec ções ou ainda mais por um elemento que bloqueia a capacidade de reconhecimento do não ego como o vírus da AIDS permitindo assim que o indivíduo seja vítima de qualquer elemento séptico ou ainda o de senvolvimento de tumores especialmente os relacio nados com o aparelho imunológico e as áreas emo cionais do indivíduo como os linfomas não Hodgkin leucemias tumores de rim cérebro etc Em outras palavras quando se produz um blo queio ou inibição da capacidade do ego de reconhecer o não ego teremos doenças derivadas de uma inibi ção imunológica como a AIDS que por esse motivo é acompanhada de uma elevada incidência de câncer Esta capacidade do ego é evidentemente uma dependência das memórias do individuo que se in tegra com a área dos afetos pois estas não são mais do que uma memória É esta a grande via de ingresso dos fenômenos do estresse na biologia Assim concordamos com a concepção de Ma son referente à ineludível dependência do estresse humano das emoções Esta modificação da leitura do não ego pode ser interpretada como uma verdadeira resposta adapta tiva no sentido que a maioria dos autores atribui ao estresse Resposta adaptativa que assim unese à verdadeira história ou biografia do indivíduo Desse modo são determinados os padrões de conduta do organismo in totum em relação ao tu mor Ser reconhecido ou lido como ego implica sua incorporação ao ego Assim podemos compreender como são ade quadas as reações e condutas como os mecanismos de resistência às drogas citostáticas que recém esta mos começando a reconhecer O câncer assim lido deixa de ser um processo patológico para ser um fato biológico Podemos sin tetizar os conceitos anteriores aplicados particular mente ao câncer da seguinte maneira Consideramos três grupos de enfermidades 1 Processos sépticos ou infecciosos O indivíduo reconhece claramente um não ego invasor exter no alheio uma proteína heteróloga e diferente Com isso põe em marcha um complexo sistema defensivo que procura eliminar esse elemento Em Medicina ajudamos este mecanismo defensi vo estimulandoo provocando anticorpos utili zando vacinas ou antibióticos eliminando o foco séptico 2 Processos ou enfermidades de órgãos ou de fun ções A Medicina atua modificando corrigindo ou superando processos metabólicos ou mecânicos Por exemplo administramos insulina ou cardio tônicos diuréticos vasodilatadores ou psicofár macos corrigimos ou modificamos funções do Psicossomaticaindd 299 Psicossomaticaindd 299 05012010 121214 05012010 121214 300 Mello Filho Burd e cols fígado rins coração ou cérebro ou imobilizamos uma fratura Estas são doenças do ego do próprio indivíduo de estrutura homóloga e por isso não provocam fenômenos imunológicos não poden do existir vacinas e não sendo indicados os anti bióticos 3 Enfermidades dependentes de uma modificação na leitura do ego e do não ego como o câncer e as afecções de autoagressão ou autoimunes duran te a gestação ou pelo bloqueio da capacidade de leitura do não ego como a AIDS Devemos situar o câncer humano diferente mente de toda a escala zoológica como sendo um processo desenvolvido no próprio organismo a par tir de suas próprias células mas com uma estrutura funcional e proteica diferente não homóloga um não ego Desde a concepção até a morte estas célu las anormais surgem milhões de vezes durante toda a vida sendo regulamente destruídas e eliminadas Não possuem porvir genético Todo fator carcinogênico extemo provocará ou ajudará o nascimento formação ou deformação de células anormais que enquanto forem reconhecidas como não ego serão destruídas e eliminadas Enquan to forem claramente identificadas como não ego se rão rechaçadas e destruídas Para estas células não há amor alimento nem porvir genético morrendo ra pidamente Em um dado momento este processo de reconhecimento como não ego se altera modificase e o indivíduo aceita ou reconhece como integrante do ego esta célula tumoral ou diferente Essa célula não é alguma coisa nova como já vimos O novo ou dife rente é seu reconhecimento ou leitura como ego O crescimento e desenvolvimento do câncer não seria mais um processo dependente do próprio cân cer mas de como é lido ou interpretado pelo indiví duo como totalidade psicorgânica Agora pode crescer reproduzirse e cumprir sua função Integrouse ao ego Por isso não provocará reações imunológicas que o teriam destruído e eli minado há muito tempo como ocorria antes deste reconhecimento Tampouco provocará sintomatolo gia orgânica por si mesmo pelo menos durante 45 partes de sua vida Além disso este novo integrante do ego su bordinará o organismo ou este lhe cederá todo um conjunto de privilégios ou características biológicas como o amor a fome e a imortalidade Agora este tecido poderá se reproduzir sem inconvenientes amor será imortal enquanto obtiver alimento no sentido mais amplo e disporá das reservas alimen tares do organismo e das ingestas com um sentido de privilégio MITOS E A PERTURBADORA CESSÃO DE PRIVILEGIOS BIOLÓGICOS O mito é um relato ambivalente Em certa medi da referese a fatos que poderiam ter ocorrido e ao mesmo tempo possuem um aspecto fictício na forma lugar e momento em que ocorrem É outorgado a este aspecto o caráter mais importante aureolandose de fantasia a totalidade Outra característica do mito é certa permanên cia certa inamovibilidade como em resposta a uma consciência cultural Esses pressupostos culturais que chegam a ser pressupstos epistemológicos têm uma força ou constância tal que às vezes a investigação científica poderá necessitar séculos para rebatêlos O mito é tratado de forma extensa na filosofia desde Platão e Aristóteles até a atualidade Por exem plo Freud estudioso dos mitos e de sua influência em nossa cultura escreve a Einstein que toda ciência natural desemboca em um mito Os mitos não precisam ser antigos e diversas forças culturais contribuem para sua evolução Nas cem e se difundem como verdades indiscutíveis e morrem não sem antes terem sido suplantados por outros mitos ou por realidades científicas que quando não adotam o caráter de mitos são de vida cada vez mais curta Desse modo reconhecemos um verdadeiro trânsito ou passagem contínua de verdade a mito e de mito a falso que é a morte daquela ver dade inicial Sua função seria a formação de uma suposta mas firme tradição cultural Embora pareça buscar a explicação ou a justificativa de fatos perturbadores na verdade o mito e especialmente o mito cientítîco é uma resposta racionalizada de sentimentos psicos sociais e culturais profundos poderosos e inconscien tes Por isso tem capacidade para controlar a con duta o pensamento consciente e de certo modo a orientação científica A Medicina e uma ciência responsável por gran de número de mitos que agem de forma consciente ou inconsciente determinando em grande parte o tratamento e a evolução de algumas enfermidades Em especial as afecções de maior impacto emocio nal reconhecidas ao longo da história como enfermi dades sagradas cujo modelo atual é o câncer Entre outras razões porque o homem possui o sistema límbico e a área associativa frontal mais desenvolvidos Ambos são trânsito ou passagem iniludível de toda afe rência externa ou interna mesmo da cérebrocerebral O homem pode se emocionar com seus próprios pensamentos sentimentos ou imagens intemas Psicossomaticaindd 300 Psicossomaticaindd 300 05012010 121214 05012010 121214 Psicossomática hoje 301 Chamamos assim a toda uma série histórica e sequencial de afecções que ao longo dos séculos apresentam como característica serem depositárias a enfermidade e o enfermo de profundos e poderosos sentimentos individuais e sociais projeções culposas sentimento de pecado o diabo o maligno o fogo os raios e culpas culpas São assim determinados comportamentos so ciais para com o paciente e um critério de tratamento quase exclusivamente por agressão física emocional e social Os progressos da tecnologia e assistência or gânica costumam ser orientados apenas para a sobre vivência mesmo diante de agressões extremas Por tudo isso é que os êxitos de tratamento são avaliados apenas em semanas ou meses de sobrevi vência Usando uma figura literária extremada e exage rada posso dizer que a tecnologia medicocirúrgica atual e grande parte daquilo que chamamos de pro gressos no tratamento do câncer quando não comple mentados por uma assistência emocional e psicológica adequada com frequência permitem apenas que o pa ciente possa sobreviver por mais tempo no inferno Por tudo isso nada é mais oportuno do que tra tar dos mitos em uma afecção cuja característica real e simbólica é a mitose A mitose significa não somente a forma de re produção celular mas também a criação de mitos O primeiro dos mitos de que desejo tratar refe rese ao câncer como elemento externo invasor Algo alheio que o organismo não pode controlar Pelo exposto anteriormente vimos que o câncer para sêlo e para se comportar como um tumor malig no precisa ser aceito pelo organismo como um ego É integrante do individuo como estrutura psicorgâni ca élhe próprio é característico da pessoa e nestas circunstáncias de sua vida e por isso não poderá ser transplantado para outro ser humano Esta é a resposta a duas das perguntas funda mentais da cancerologia a ausência de sintoma tologia própria do tumor até etapas avançadas de sua evolução quando ocorrem sintomas por razões secundárias como infecção hemorragia obstrução compressão infiltração etc Por outro lado sua pe quena capacidade como antígeno isto é geralmente provocando muito poucos anticorpos e mecanismos defensivos A resposta a ambas é mencionada mais acima porque é lido pelo organismo como próprio como ego O segundo dos mitos a que irei me referir é o de considerar o câncer como um crescimento anárquico desordenado e tumultuado O fato de ainda não se conhecerem todas as diferenças entre a célula normal e a patológica não nos autoriza a supor anarquia ou desordem Longe de ser um crescimento anárquico de sordenado e tumultuado o tumor obedece a leis fi xas ordenadas e repetidas Comportase regular e caracteristicamente do ponto de vista histológico biológico e bioquímico sempre do mesmo modo Sua estrutura histopatológica reprodução metabo lismo capacidade migratória colonização interde pendência com o resto do organismo é semelhante em cada tipo de tumor Sua resposta às diferentes drogas e tratamentos é uniforme Por isso existe a cancerologia uma ciência onde são estudadas as características comportamentos e tratamentos de cada localização do câncer Pode ser tratado por ser sempre semelhante Quando o patologista observa o tecido tumoral pode fazer seu diagnóstico porque ele é semelhante a todos os tumores observados anteriormente Não há dúvida de que as características do tu mor são diferentes das dos tecidos normais onde se assentam mas diferente não significa anárquico nem desordenado Volto a repetir que o problema se ba seia em como é lido este tecido pelo organismo como totalidade psicorgânica Em terceiro lugar quero mencionar o tema do diagnóstico precoce Não há dúvida quanto à impor tânica geral que possui o diagnóstico precoce do cân cer para o melhor resultado do tratamento mas isso está longe de ser sempre assim pois existem muitas circunstâncias como no câncer de pulmão com deter minada histologia o câncer de esôfago fígado e vias biliares pâncreas e outros cujo diagnóstico por mais precocemente que seja feito não modifica substan cialmente o prognóstico O ponto ao qual quero chegar é o seguinte uma lesão tumoral foi inicialmente uma ou poucas célu las Se conhecemos o tempo que gastam em sua du plicação entre 12 e 70 dias e que é praticamente impossível para nossa clínica e aparelhagem atual diagnosticar um tumor antes que tenha um volume de 1cm3 e quando também sabemos qual o número de células necessário para atingir este centímetro cú bico podemos calcular que para chegar a este volume devem transcorrer entre 2 e 15 anos E esse o tempo ou idade verdadeira da história de um tumor E esse o período no qual poderemos encontrar antecedentes psicorgânicos significativos A história clínica convencional ao dizer que a enfermidade começou por exemplo quando a paciente observou um nódulo em sua mama ou quando houve uma proctorragia há uma semana ou mês apenas determina um conjunto de elementos circunstanciais por parte do paciente do médico e da tecnologia acessível em cada momento em cada lu gar e para cada profissional mas não o começo real de sua enfermidade Psicossomaticaindd 301 Psicossomaticaindd 301 05012010 121215 05012010 121215 302 Mello Filho Burd e cols Também se julga que o câncer além de ser anárquico é uma estrutura que escapou ao plano geral do organismo A realidade nos indica que é possível o cresci mento e desenvolvimento do câncer a partir de cé lulas tumorais que sempre existiram no organismo porque modificouse a atitude ou leitura do organis mo em relação a elas O que sempre foi um não ego ou estranho passou a ser considerado como ego ad quirindo além disso privilégios biológicos transcen dentais Pretender explicar este elemento chamado cân cer como sendo algo que escapou ao plano geral do organismo implica supor em primeiro lugar que conhecemos o plano geral Que nesse plano o úni co objetivo que podemos aceitar é viver e ser sadio como se a morte e a doença não pudessem também ser objetivos Em segundo lugar que nesse plano não está previsto ter um câncer e em terceiro que o ser humano é uma máquina com um funcionamento pre determinado Dentro de uma ideologia psicossomática esses três pontos são claramente míticos e dependentes daquilo que poderíamos chamar de mito principal que é a pretensão secular de uma divisão ou excisão mentecorpo AGORA TUDO É DIFERENTE O paciente com câncer apresenta todo um con junto de elementos psicossomáticos que possui gran de transcendência para ele e para sua vida de relação Além disso esses elementos devem ser conhecidos e compreendidos pelo terapeuta sem o que dificilmen te são obtidos resultados de algum valor O primeiro elemento que surge é a real diferen ciação de sua realidade para com a realidade de seu ambiente naturalmente incluído seu médico Os con ceitos de enfermidade crônica cura e morte podem diferir entre o pensado pelo paciente e sua família e o pensado pela equipe assistencial Frequentemente o que o médico apresenta em uma associação médica como êxito é olhado com total ceticismo pela família que considera que vai morrer do mesmo modo Além disso voltar à normalidade é uma con cepção e um fato completamente diferente para o médico e para o paciente A normalidade do pacien te é aquilo que o deixou doente Estas realidades encontradas deveriam ser resolvidas a favor do pa ciente no caso de uma psicoterapia adequada de vendo ser meditada previamente qualquer intenção de convencêlo ou trazêlo para nossa realidade Outro elemento a ser levado em conta é a reva lorização do elemento tempo Isso está relacionado com o sentimento de imortalidade perdido ou trans ferido para o tumor como veremos o que deve ser levado em consideração em seu tratamento No paciente neurótico poucas vezes se leva em conta o tempo Ambos paciente e terapeuta parecem dispor do tempo a seu arbítrio Qualquer tema pode rá ser visto na próxima entrevista No paciente com câncer cada entrevista pode ser a última devendose ponderar previamente a conveniência de fomentar a regressão Os tratamentos atuais do tumor são profunda mente agressivos para a parte orgânica funcional e especialmente para a fantasiada pelos meios de significação socioafetiva diante de si mesmo e dos demais o aspecto a face a voz os cabelos os órgãos sexuais etc Além de viver o luto por esta perda o paciente deve aceitar as modificações ou mudanças da ima gem e do esquema corporal Pelos deslocamentos sofridos pela libido é no tável a revalorização de afetos e como são reclassifi cadas as pessoas de seu círculo imediato de acordo com uma nova escala de valores afetivos Um elemento a ser considerado evidente em nossa cultura é a atenuação e até mesmo o desapa recimento do superego do paciente Tudo o que faz pensa e diz um integrante de nossa cultura não é pu nível nem criticável porque ele está doente Quan do se está doente julgase ter o direito de ignorar a ética Todo doente com câncer deve viver com aquilo que se denomina de a síndrome da espada de Dâmo cles ou a certeza da incerteza Há a permanente amea ça da recidiva ou da metástase ameaça que é projetada claramente a partir da realidade que o cerca Este malestar que é permanente e que exige muitos anos para ser controlado é completado pelo medo da dor do sofrimento e do isolamento Em nos so meio cabe acrescentar que todo paciente hospita lar deve encarar e suportar a estrutura assistencial O fator mais agressivo recebido por um paciente com câncer é a modificação das atitudes e comporta mentos dos próximos em relação a ele Podem chegar a um nível terrível de agressividade e representar a partir do próprio universo emocional a concretização de sentimentos históricos agressivos e sádicos muito difíceis de lidar ou de serem evitados por parte do doente Como pode se depreender desta descrição um tanto sinistra pretender que um paciente com câncer se comporte como se nada tivesse ocorrido é um critério simplista inadequado e inoperante Psicossomaticaindd 302 Psicossomaticaindd 302 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 303 Pelo que foi exposto proponho que todo psico terapeuta comece por reconhecer que agora tudo é diferente Somente assim poderá readequar o pa ciente e seus familiares CIRURGIA DO CÂNCER E PSICOSSOMÁTICA O trauma psicológico decorrente de cirurgia foi uma das vias de acesso para o reconhecimento da situação emocional dos pacientes com câncer É evidente que a cirurgia nos pacientes com câncer tem um componente emocional muito maior do que em outras afecções Esteja ou não informado o paciente é o ambiente que organiza a situação emocional e que é inescapável para o paciente Médico paciente e família podem ter visão ou expectativas diferentes e os termos utilizados são interpretados por cada um a seu modo O que o ci rurgião refere como um êxito pode ser visto com ceticismo Por exemplo para que tudo isso se vai morrer de qualquer jeito No começo insistiuse nos aspectos emocionais em diferentes ressecções e amputações Assim surgi ram os estudos referentes a mastectomia colostomia amputações esvaziamentos pélvicos etc Schável zon 1970 Já não pensamos assim Cada paciente tem uma história pessoal uma biografia e um ambiente psicos social A doença e seu tratamento representam uma marca um acréscimo a essa história Por isso não se pode separar a operação realizada e a situação atual do paciente do resto de sua biografia As respostas psicológicas são individuais pessoais O cirurgião e a cirurgia na ultralógica ou meta lógica do paciente podem ser somente um meio Quero me referir apenas a três pontos Primeiro a agressão à imagem e esquema corporal Segundo os aspectos simbólicos da cirurgia do ponto de vista do paciente Terceiro sugestões terapêuticas Primeiro ponto As diferentes estruturas orgâni cas do homem suas funções reais e seus significados socioculturais cumprem um papel básico e decisivo na integração física e psicológica São chamados de imagem e esquema corporal Ambos são represen tações psíquicas relacionadas com a organização do ego Cada órgão ou segmento do ser humano tem as sim uma conformação anatômica e uma função real e fisiológica interrelacionada com a totalidade O ser humano precisa de cada órgão ou segmento e de sua função real e além disso da atribuída pela cultura para ser considerado por si mesmo e pelos demais como ser humano A anatomia e as funções são determinadas pela evolução filogenética sendo além disso modificáveis apenas de forma muito parcial e lenta no pessoal e cultural A isso se chama de esquemas corporais Além destas estruturas e funções reais e objeti vas existe uma atribuição de funções de valores e de significados sociais dados pela cultura e portanto subordinados à ela A consciência ou reconhecimento desses valores ou funções atribuídos pela cultura a cada parte e ao todo de nossa estrutura física é denominada de imagem corporal Ambas são estruturas psíquicas que completam sua integração entre os 2 e os 4 anos de idade Por isso a agressão ressecção ou disfunção de uma parte do corpo implica um desprezo ou modificação não só real e funcional mas também sociocultural e psicoló gica para o individuo e seu ambiente A integridade da imagem e do esquema corpo ral garantem que se possa enfrentar as contingências individuais e sociais as relações com o exterior e a manutenção de um equilíbrio homeostático interno e externo Assim por exemplo a mama o estômago uma perna o esfíncter retal ou vesicular o pulmão etc integram o esquema e a imagem corporal que repito são imagens mentais Se pelo câncer ou seu tratamento for afetado ou perdido um órgão uma função ou o aspecto exterior produzse uma fratura da capacidade de adaptação físicoemocional que é temida especialmente diante das exigências socioculturais reais eou supostas Esta ruptura ou modificação traz graves trans tornos psicológicos e de desadaptação que são viven ciados como verdadeiros lutos São compreensíveis o quadro de angústia tão frequente ante a cirurgia para o câncer e a reação depressiva pósoperatória O concreto para o cance rologista é sua influência decisiva sobre a qualidade de vida e os mecanismos imunológicos e de dissemi nação tumoral Progrediuse na compreensão destes problemas Leválos em conta quando da decisão terapêutica às vezes apresenta difíceis questões no que se relacio na à qualidade de vida A Organização Europeia de Investigação e Tratamento do Câncer EORT criou em 1979 um Grupo de Estudo sobre a Qualidade de Existem duas estruturas o esquema corporal representan do a espécie e pelo qual um indivíduo reconhece o outro e a imagem corporal própria de cada um e sujeita a sua história e integração em sua cultura Ver Dolto 1984 1986 Psicossomaticaindd 303 Psicossomaticaindd 303 05012010 121215 05012010 121215 304 Mello Filho Burd e cols Vida com repercussão mundial devido a suas ativida des São realizadas muitas reuniões internacionais e suas publicações são realmente transcendentais Te mos a honra de integrar esse grupo Diante do indivíduo operado de câncer ele e os que o cercam devem se recondicinar ou readaptar ou reabilitar em sua totalidade função real esque ma ou imagem corporal à nova situação Schável zon 1969 Do ponto de vista do paciente toda alteração anatômica ou funcional contribui para diferentes sen timentos de culpa depressões reativas pensamentos ominosos ou ainda de agressão em busca de culpa dos Em síntese desadaptação Esta modificação ou desadaptação transcorre como luto no campo dos afetos Tanto no cônjuge do paciente como em seus filhos adultos podese observar uma verdadeira atuação que consiste em mostrar que não estão atuando As crianças costumam enfrentar a realidade o que as torna muitas vezes temidas provocando seu afastamento Segundo ponto Através da experiência obtida pela investigação psicodinâmica em pacientes com câncer podemos dizer que nossa cultura sente a ci rurgia do câncer como um ato simbólico um tanto místico e deísta Um verdadeiro profundo e pouco consciente sacrifício aos deuses E um sentimento an cestral e primitivo Está relacionado com a imagem do câncer Schávelzon 1978 doença sentida como diabólica que entra no corpo e o invade Oferecer e aceitar o sacrifício do órgão invadido representa uma oferenda aos deuses para obter a saúde O paciente que não é operado de seu câncer costuma sentir que não há mais nada afazer recebendo outras terapias apenas como paliativos Talvez por isso sente se a cirurgia como a principal terapia do câncer Quando depois de operado mais adiante rea parece sua doença isso é sentido como se os deuses o tivessem abandonado Sentese rechaçado encaran do os raios e as drogas destruidoras como coisas do diabo Sentese possuído pela enfermidade com portandose nesse sentido O médico e os familiares participam muito cla ramente deste simbolismo da cirurgia do câncer A cultura toma o cirurgião e a cirurgia para o câncer algo muito valorizado Terceiro ponto No tratamento deve vigir o prin cípio de realidade de que agora tudo é diferente e que tomar a iniciativa da reabilitação é muito difícil para o paciente Apesar disso é frequente ver como uma revalorização afetiva faz com que o doente tome a condução do grupo familiar para uma rea daptação Isso é observado com mais frequência na mulher do que no homem talvez como resultado dos respectivos papéis sociais em nossa cultura No luto pela alteração do esquema e imagem corporais devese obedecer àquilo que Freud aconse lha Isto é respeitar o luto desde que não seja acom panhado de uma depressão reativa e até cerca de 100 dias mantida a contenção emocional Depois uma psicoterapia adequada e eventualmente antidepres sivos A melhora é evidenciada por um reatamento e reavaliação dos afetos Para a frustração de seu sacrifício somente será eficaz uma psicoterapia muito inteligente e adequa da Contraindicamos em ambos os casos o uso ex clusivo de psicofármacos A forma intensidade e duração da resposta do paciente à cirurgia de câncer está relacionada com sua personalidade como foi preparado psicoprofilaxia e como foi conduzido e o comportamento de seus fami liares e dos profissionais de saúde Isto determina sua desadaptação afetiva e luto corporal Dar uma atenção adequada é responsabilidade do médico UM MODELO PSICOSSOMÁTICO E PSICOSSOCIAL Freud é um dos homens mais biografados da história e a psicanálise provocou direta e indireta mente a maior bibliografia do mundo A isso é preciso acrescentar uma correspondência pessoal calculada em 50000 cartas enviadas e recebidas Graças a isso podemos estabelecer comportamentos que seguiram trajetórias paralelas e coerentes entre seus trabalhos e suas doenças Ao realizar este estudo também surgiu a evidên cia de que seu entorno sua circunstância sua família e seu médico pessoal interagiam com o próprio paciente de uma forma muito evidente e significativa Por isso e porque o próprio Freud deixouse le var por essas decisões de seu entorno e com plena consciência esta história é um modelo psicossomáti co e psicossocial A evolução dessa doença durou 17 anos Foi operado 35 vezes e foi irradiado em 10 oportuni dades De acordo com a documentação que possuo inicialmente não se tratava de um câncer e seus pa tologistas os melhores do mundo naquele momento nunca disseram que era câncer durante os primeiros Revalorização significa modificar a escala de valores em que no entorno do paciente uns sobem e outros descem ou desaparecem em seus afetos Uma síntese do livro de Schávelzon Freud um paciente com câncer Editorial Paidós 1998 Psicossomaticaindd 304 Psicossomaticaindd 304 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 305 14 anos de evolução mas todos à sua volta já haviam resolvido que sim que era câncer ou que podia che gar a sêlo e que algo precisava ser feito Podemos dar outro título a este comentário Quando começa e quando termina uma his tória clínica Com o risco do sinistro SS Freud 67 anos casado 5 filhos domicilia do em Viena emigrado quando criança da Checoslo váquia Estamos em 1924 Este paciente apresentava há vários anos uma mo léstia no palato e certa manhã mostrou sua lesão para um médico amigo clínico geral que no primeiro olhar diagnosticou tratase de um câncer avançado Quem era esse médico Sua esposa estava em análise com nosso paciente e passando por um mo mento muito crítico de transferência Estava apaixo nada por Freud e convencida de que ele iria divor ciarse e de que casaria com ela Lembremos o conselho de Freud quando é preciso tratar a esposa de um amigo a amizade será perdida e é preciso estar disposto a enfrentar sua hos tilidade Mas nosso paciente não seguiu seu próprio conselho Poucos dias depois acompanhado pelo mesmo médico foi à consulta ambulatória de um hospital muito pobre e que não tinha internação com a ideia de operar esse tumor do palato direito Haviamlhe dito que seria uma pequena intervenção Procedeuse a operálo sentado em uma cadeira de cozinha Com anestesia local e utilizando cinzel e martelo foi dessecada uma parte de seu palato di reito a borda do maxilar superior e outros pedaços Dado que o sangramento não cessava o médico con cluiu a operação com um tamponamento tampou lhe a boca Quem era esse cirurgião desprestigiado em Viena Era o Dr Marcos Hayek expsicanalizando de Freud que nessa época também atendeu Kafka da mesma maneira selvagem acelerando sua triste morte O paciente ficou internado em uma maca Seu companheiro de quarto era um anão idiota com hi potireoidismo que durante a tarde salvaria sua vida ao sair aos gritos horrorizado por uma nova grande hemorragia Não havia enfermeira A campainha não funcionava O médico interno não quis levantar O próprio paciente aplicouse mais tamponamento na boca Sua família não estava ciente de nada O médi co cuja esposa estava apaixonada por Freud e que o havia acompanhado desapareceu A peça cirúrgica não foi enviada para análise As feridas não foram suturadas Estamos em 1923 e Freud acabara de escrever o EGO e o ID Modifi ca seu próprio conceito anterior sobre a estrutura da personalidade e aceita a existência de um instinto de morte Nos 17 anos seguintes seria operado e reope rado outras 35 vezes Além disso em cada uma das vezes seriam extirpadas umas crostas fatídicas e a se guir seria aplicado um creme que produzia crostas nas mucosas Seriamlhe aplicados raios e mais raios em numerosas oportunidades até que sua bochecha direita apresentou necrose 17 anos de evolução Desse momento em diante nunca mais foi ob tida uma fotografia de Freud mostrando seu perfil direito Hoje sabemos que as células displásicas apare cem no ser humano 35 ou mais anos antes do mo mento de seu reconhecimento clínico Este tipo de tumor apresentado por Freud te ria então começado entre 3 e 4 anos antes Por isso conto a vocês que nesse período anterior a partir de 1920 nosso doente sofreu a terrível agressão narcísi ca como ele mesmo denominou das trágicas mortes de sua filha preferida Sophie e de seu mais adorado netinho Heinele Ele reconheceo como a depressão mais grave da minha vida Somouse a isso a pneu monia gripal de sua esposa e a morte por câncer de seu melhor amigo von Freund Um grupo de estudo assessoria e colaboração que Freud havia mantido unido durante os últimos 15 anos estava passando por um grave período crí tico e ameaçava dissolverse Freud sentiase muito mal por tudo isso e em 1920 escreve Além do prin cípio do prazer AE181 onde comenta o poder da pulsão de repetição E antes disso A guerra de 1914 a 1918 e o pe ríodo imediato do pósguerra com frio e fome Sim o frio e a fome que passava nosso personagem recla mando por um pedaço de carne e escrevendo com os dedos gelados O presidente dos Estados Unidos Wilson solici ta uma hora para tratamento e troca com seu repre sentante seus livros por duas cestas com alimentos E antes ainda Em 1885 sonha o que posterior mente seria uma das contribuições fundamentais de sua teoria A interpretação dos sonhos Sonha com Irma uma amiga da família que havia consultado com ele dias antes e conta levoa até a janela e olho sua garganta encontro à direita uma grande mancha branca e em outro local notáveis formações em bucle semelhantes aos cornetos do nariz e que têm escaras de um branco acinzentado Freud S A EXVII2171919 O estudo do psicossocial da biografia de um paciente tem sempre o risco do sinistro tema que Freud estuda dentro da angústia Surge quando se cumpre algum pensamento sinistro por exemplo Oxalá ele morra Psicossomaticaindd 305 Psicossomaticaindd 305 05012010 121215 05012010 121215 306 Mello Filho Burd e cols Olhando a garganta vê os cornetos do nariz Sim essa é a operação que lhe fez Hajek 28 anos depois quando dessecou seu palato Que profecia perfeita em 1895 do que seria sua própria situação a partir de 1923 Muitos deta lhes deste sonho não são outra coisa que uma exata descrição do seu próprio futuro clínico a bengala o reumatismo fazerlhe a barba a enorme prótese a infecção etc Ao referir esse sonho Freud acrescenta alguns destes detalhes estão personalizados dando a entender que se referem a ele próprio Onipotência dos pensamentos Profecia au tocumprida Como ele escreveria um dia pensamen tos e sonhos capazes de modelar o futuro segundo a imagem do passado Quando G Groddeck em 1915 oito anos an tes faz traduzir para o sueco Psicopatologia da vida cotidiana obra escrita em 1901 interpreta que nes se ano Freud inconscientemente já tinha decidido morrer aos 67 anos que foi quando se submeteu à primeira operação Convidao a vir até sua clínica O Satanarium em BadenBaden para psicoanalizálo mas Freud recusa e agradece A partir de então fi caram amigos Da obra de Groddeck Freud adota o conceito de superego em seu segundo tópico sobre a estrutura da personalidade Podemos continuar voltando no tempo Este paciente nasce no dia 6 de maio de 1856 e na Igre ja de Santa Maria desse povoado de Freiberg atu al Checoslováquia seria inscrito como Sigismund Schlomo Schlomo é Salomão filho de Daniel na Bíblia onde diz E Deus disse a Daniel Nascerteá um filho Varão de paz por sua palavra Crônicas I XXII9 Prossigamos na mitologia germânica Sigis mund parece significar bochecha perfurada Assim morreria Freud 83 anos depois em 1939 devido a uma pneumonia provocada por essa perfuração re sultado tardio das repetidas e monstruosas irradia ções Sua mãe que morreu aos 94 anos chamouo durante toda sua vida de Sigi Após sua adolescência troca seu nome para Sig mund que parece significar êxito pela boca mas em 1911 publica um breve opúsculo Sobre o sentido antitético das vozes primitivas ignorando que está falando de si mesmo Quando começa e quando termina uma his tória O protocolo cirúrgico chegou às minhas mãos e minha experiência em oncologia pareceu gritarme desde dentro isto não é a evolução habitual de um câncer Aqui ocorre algo E assim começou uma busca por documentação biográfica e histopatológica que também serviu para percorrer a Europa Viena Berlim Paris Londres e Nova York constatando que se estendia um véu de segredos sobre a vida privada do nosso personagem Tentei também associar sua obra seus pensa mentos e a evolução da sua doença A anedota Você quer encontrar as biópsias originais feitas a Freud A partir de 1923 O silêncio e o olhar que seguiam a esta frase eram muito significativos Pareciame ver nas pupilas de meus interlocutores franceses ingleses alemães americanos e austríacos a figura de dois robustos en fermeiros esfregando as mãos mais um caso Já vimos o quanto podemos voltar no tempo e em uma história Vamos agora um pouco adiante Por que eu que naquela época era um cirurgião oncologista Por que ele Em 1887 a partir da sua falta de modéstia Freud escreve para sua noiva foram mil cartas em 4 anos de noivado Aos meus biógrafos essas pobres pessoas que ainda não nasceram problema deles não temos por que darlhes todo o trabalho feito já fazme rir pensar em seus erros Em 1910 publica uma das primeiras interpre tações psicanalíticas de uma biografia Leonardo da Vinci e ali diz Os biógrafos estão presos aos seus heróis de muito curiosa maneira razões pessoais de suas vidas levaramnos a isso talvez vendo em seus heróis a representação infantil do pai Então eu meu pai Será que Freud ocupouse de mim muito antes que eu dele Essa é outra histó ria a minha As Moiras eram as deusas do destino individual Como Freud amava a mitologia Minha Moira pessoal levoume até essas biópsias Estamos em 1983 e ao começar a remexer nes te tema já estavam interessados e participavam Ana Freud em Londres ainda era viva e mantivemos cor respondência a este respeito Kurt Eissler encarrega do do Museu Freud em Nova York o pessoal do Mu seu Freud em Viena e o Instituto Curie em Paris onde apareceu tendo sido arquivada mais de meio século antes a documentação histológica que nunca tinha sido revisada apesar das milhares de publicações e interpretações sobre o câncer de Freud Consegui encontrar as biópsias originais e os relatórios de seus patologistas Tudo quanto era ne cessário para poder dizer que inicialmente Freud não teve câncer Foram os 17 anos de traumatis mos e irradiações insensatas para os conheci mentos da época que lhe provocaram o câncer Que tudo foi uma projeção sinistra de seu entorno e que ele a aceitou Seus patologistas de Viena Berlim e Paris dis seram não há câncer e contudo seus médicos sua família e seus discípulos insistiam por via das dú Psicossomaticaindd 306 Psicossomaticaindd 306 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 307 vidas devemos continuar operando e irradiando Irradiaram em doses tão exageradas para os conheci mentos da época que finalmente após 12 anos essa lesão benigna transformouse agora sim em câncer Após 17 anos houve necrose e perfuração Suas bi ópsias nunca foram controladas antes de chegarem a mim E quem irradiou Freud dessa maneira O Dr Holznecht radioterapêuta que já tinha apresentado um epitelioma na mão provocado pelos raios e com metástases pulmonares e havia sido operado e am putado repetidas vezes Além disso e mais uma vez era um expaciente de Freud Pouco antes da morte deste Holznecht Schur o médico que Freud escolheu como seu médico pessoal levao para uma entrevista no hospital e diz sic ambos eram doentes de câncer que estavam por morrer Mas Freud não tinha câncer naquele mo mento ele morreu 8 anos depois e de outra doença O aspecto chamativo é que seus patologistas Viena era um dos mais avançados centros de pa tologia no mundo não fizeram o diagnóstico de câncer nem nunca justificaram os erros terapêuticos que seus amigos seus familiares e seu médico pesso al propuseram a Freud e que ele conscientemente aceitou Ana Freud escreveu em uma de suas cartas Revisar a histopatologia da doença de meu pai Fa zer uma análise da sua história clínica desses terríveis 17 anos O que vai poder o senhor aportar àquilo que já tínhamos perfeitamente resolvido e arquivado Es pero aprender isso do senhor Afortunadamente ninguém me disse Dr Schá velzon não incomode mais por favor E isso foi o que me animou a seguir em frente Há dúzias e dúzias de incidentes anedóticos in sólitos e incompreensíveis Trago para vocês apenas como exemplo uma carta Freud escreveu para Eitingon em 1931 e o consulente francês o mundialmente famoso Dr Re gaud de Paris depois de revisar as biópsias diz que se não há câncer não há razão para fazer tratamento para câncer Por isso continua Freud nada pode evi tar que eu me submeta a outra operação Jones Volume III p 173 e Schur seu médico acrescenta Prevaleceu a prova da realidade E ele operouse novamente intervenção no 30 doloroso e longo pós operatório e uma broncopneumonia O tecido extir pado foi levado para analise e o relatório diz Não se observa tumor algum Prossegue Schur seu médico pessoal Freud era um homem muito afortunado E em sua obra Em 1920 época provável do aparecimento das primeiras células dessa lesão benigna Freud modifi ca totalmente sua teoria da libido Aparece em sua obra a pulsão de morte à qual ele próprio resistia se até esse momento Expressao esse ano em Além do princípio do prazer obra tão relacionada com os fatos de sua vida Modifica sua teoria da personali dade Incorpora o EGO o ID de Grodeck e o SU PEREGO Durante seus anos de enormes sofrimentos por operações noites em vela e uma enorme prótese den tro de sua boca que tornava incompreensível o que falava com a imagem do câncer projetada por todo o seu entorno escreve Psicologia das massas 1921 e O EGO E O ID Em 1923 quando foi operado pela primeira vez apresenta tudo isto em sua autobiografia de 1924 onde diz reuni a con servação de si mesmo e a da espécie sob o conceito de Eros e contrapus a ele a pulsão de destruição ou de morte que trabalha em silêncio Sua ação con jugada e contraposta dá o quadro da vida Nesse momento ele aceita pela primeira vez a existência da pulsão de morte Em 1926 escrito a partir de sua doença e dos seus sofrimentos sem poder mais falar em público nem dar conferências precisando comer sozinho e sofrendo horrores escreve Inibição sintoma e an gústia Em 1930 já tendo sido operado 20 vezes escreve O malestar na cultura talvez uma raciona lização de uma religiosidade que sente em si mesmo mas julga perigosa Por volta de 1939 sua situação clínica já era muito crítica mas demorou sua morte até ter nas mãos um exemplar de sua obra Moisés e a reli gião monoteísta Assim escreve para Ernest Sweig e depois minha obra seguinte será em minha próxima reen carnação Temos observado isso com frequência alguns pacientes demoram ou atrasam sua morte à espera de algum acontecimento importante ou significativo para si Fritz Zorn No discurso fúnebre que Jones pronunciou per guntase e agora como será um mundo sem Freud Isto não pode ser respondido É impossível conceber o mundo atual sem Freud O último livro que esteve em suas mãos foi A pele de Onagro de Balzac no qual um dos perso nagens diz 65 anos antes da criação da psicanálise o que os homens chamam contrariedades amores ambições ou tristezas são para mim ideias que se transformam em sonhos Em vez de sofrêlas inter pretoas A palavra Tânatos não é de Freud foi introduzida por Feder em 1906 e depois por Steckel em 1912 Psicossomaticaindd 307 Psicossomaticaindd 307 05012010 121215 05012010 121215 308 Mello Filho Burd e cols Este livro trata do encolhimento da inanição e da morte Foi assim que Freud se referiu 60 anos antes à morte de seu pai A mesma coisa estava ocor rendo com ele próprio Termina aqui esta história clínica Obviamente que não O que este estudo sobre a doença de Freud nos ensinou é que uma história clínica psicossomática é inevitavelmente social que não começa com o nasci mento nem conclui com a morte quando o historiado é o paciente como pessoa OS PRIVILÉGIOS BIOLÓGICOS NO CÂNCER Quando a célula diferente ou neoplásica é re conhecida como ego adquirindo assim a possibilida de de evoluir dizemos que adquire ou o organismo lhe dá certos privilégios biológicos que transcorrem em diferentes áreas mas com um claro significado de complementação psicorgânica O primeiro a ser citado é a capacidade de se reproduzir incessantemente a que simbolicamente chamo de amor Como é uma das características do câncer do ponto de vista psicanalístico implica ele mentos a serem levados em conta no tratamento Por outro lado costumam ser claramente expressas pelo paciente uma relação um controle ou uma revisão de ódio e rechaço Além disso se manifesta uma rela ção objetal claramente narcísica ligada ao horror do incesto Também aparecem suas influências no ego sua carga e deslocamento libidinoso a partir de seu reservatório principal e de sua descarga como enfer midade neste caso como reprodução tumoral A esta que é mais uma enumeração do que uma descrição se acrescentam a relação e a frequente referência à ges tação reprodução como fantasia Chiozza 1978 Freud refere que as forças da consciência moral que levam a contrair a enfermidade pelo triunfo e não como é comum pela frustração enlaçamse in timamente com o complexo de Édipo Uma relação com o pai e a mãe Creio que assim é fácil considerar a enfermidade como um significado horripilante de um incesto que se sente realizado Como se expressa no paciente Na clínica en contramos claras manifestações na área dos afetos com revalorização de sua escala de valores e em sua expressão libidinosa bem como em uma situação de angústia Assim se integra o conjunto de elementos que descrevemos sob o título Agora tudo é dife rente Esta aquisição de um porvir biológico para o tecido tumoral é outorgada pelo organismo como to talidade ao reconhecer o câncer como um ego con ceito fundamental que tantas vezes repito porque é a base de nossa ideologia Dos dois elementos câncer e indivíduo o único que pode atribuir propriedades determinar condutas ceder privilégios ou destruir total e precocemente o outro é o indivíduo pois possui um sistema nervoso central que interpreta e coordena Tem também todos os meios subsidiários e eficazes sistema nervoso pe riférico sistema vascular hormonal neurotransmis sores e a interrelação com seu interior e seu exterior por sua vez também interpretado e metabolizado por seu sistema nervoso central Em síntese tratase de uma das perturbadoras aquisições de privilégios biológicos por parte do tu mor ao ser lido como ego pelo indivíduo Exprimese na clínica por uma revalorização de afetos com des locamentos libidinosos característicos grande parte dos quais se transfere ao tumor Isto explica as curio sas referências de cada indivíduo à maneira de sentir seu câncer Quanto a esse reconhecimento e aceitação como ego de um elemento claramente heterólogo e preva lente sobre o próprio indivíduo só conheço um outro exemplo em biologia humana que é a gestação a ni dação do ovo no endométrio A semelhança entre am bos os processos do ponto de vista psicossomático e imunológico mesmo que pareça sinistra para nossos mitos culturais é evidente na clínica psicoterápica Outro dos denominados privilégios referese às modificações metabólicas que ocorrem com o pacien te de câncer Este é um tema de transcendência na atenção médica A astenia e anorexia do paciente passam a ter destaque em todo ambiente familiar Seja qual for o valor de suas ingestas o tumor continua recebendo um fornecimento alimentar regu lar Isto é feito às expensas das ingestas e das proteí nas do organismo O ser humano normal obtém suas calorias em primeiro lugar de suas gorduras e hidra tos de carbono De forma simples posso dizer que o câncer continua recebendo seu fomecimento calórico em detrimento do paciente Se o fomecimento exte mo diminuir ele utiliza as proteínas somáticas de seu hospedeiro Quando administramos vitaminas o teci do tumoral aproveitase delas antes do paciente Sur gem importantes mudanças no paladar que nos seres humanos é um somatório de vários sentidos como o Estudase extensamente a relação entre depressão perdas e câncer Explicao Laborit Schávelzon 1980 com refe rência ao como se realiza e em Freud com referência ao porquê Acredito que atribuir caracteres ou propriedades ou ainda vontades a uma enfermidade não deu bons frutos até o momento Atribuo qualidades e características à leitura que o indivíduo faz da afecção Psicossomaticaindd 308 Psicossomaticaindd 308 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 309 do olfato o da visão o do paladar propriamente dito e da textura do alimento macio duro líquido etc de situações psíquicas circunstanciais angústia de pressão excitação etc e uma importante relação com a área associativa Este complexo sofre importantes modificações mudam os apetites e os ritmos habituais sendo fre quente a referência a sabores desconhecidos mas que são associados sabor de capim de madeira de palha etc Mas sem dúvida o mais perturbador na cessão de privilégios biológicos é a concessão da imortalida de O homem possui como que incorporada à men sagem genética e à evolução filogenética um sentido de imortaIidade apesar de que quase todos os teci dos e células do organismo vão se renovando inces santemente Assim cada célula se reproduz duas três e até seis vezes depois morrendo sendo suplantada pelas novas gerações Esta renovação contínua per mite manter a estrutura total do organismo De outro modo se a reprodução fosse mantida chegarseia a tamanhos descomunais Platão em Fédon diz que a morte só adquire significado na mente humana como cessar no ou tro Um século depois Epicuro século III aC diz nos que quando existimos a morte não existe São Tomás de Aquino séc XIII afirma que todo aquele que tiver inteligência desejará existir para sempre e Sartre acredita que a morte vem para nós do exterior transformandonos em exterio ridade Para Freud não se pode conceber a própria morte Ao tentamos fazêlo notamos que na verda de sobreviveremos como observadores No incons ciente cada um de nós está convencido de sua imor talidade Nada de pulsional instintivo em nós solicita a crença na morte e que 4 o ponto mais difícil do narcisismo é a imortalidade do ego Como vimos as células humanas normais de pois de certo número de duplicações morrem e são suplantadas por suas duplicações Este morrer e re novarse é perfeitamente equilibrado o organismo assim mantém sua estrutura As células tumorais não participam deste prin cípio biológico sendo sua reprodução praticamente infinita enquanto participarem os elementos neces sários para seu metabolismo Deste modo compor tamse como imortais Nas culturas in vivo de células humanas o com portamento é semelhante As células normais mor rem logo após um certo número de duplicações As células neoplásicas continuam indefinidamente sua reprodução Por outro lado surge no léxico do paciente o sentido da morte Assim assistimos a uma transferência do senti do da imortalidade a partir do paciente nessa parte de seu ego incorporada ou aceita como privilegiada NOTA A biografia as certidões e as fotocópias dos preparados histológicos assim como os relatórios de seus patologistas podem ser consultados em Freud um paciente com câncer do Dr José Schávelzon premiado pela Sociedade Argentina de História da Medicina Editora Paidós 1986 Bs As REFERÊNCIAS Chiozza LA El Contenido latente del horror al incesto y su rela ción con el cáncer In Ideas para la concepción psicoanalítica del câncer Barcelona Paidós 1978 Dolto F La imagen inconciente del cuerpo Barcelona Paidós 1986 Limage inconsciente du corps Paris Seuil 1984 Freud S Duelo y melancolia AE tomo XIV 1919 Schávelzon J La rehabilitación del canceroso Semana Médica n 134 p 11511969 El uso de la cirugía para el tratamiento del cáncer In Ber tola J et al Cancerologia básica Buenos Aires Eudeba 1970 La imagen del câncer In Cáncer enfoque psicológico Buenos Aires Galema 1978 Paciente con Cáncer Buenos Aires Panamericana 1986 Psicossomaticaindd 309 Psicossomaticaindd 309 05012010 121215 05012010 121215 A participação de um componente emocional ou psicodinâmico no quadro da asma brônquica é um fe nômeno marcante e bem conhecido Esse fator deve ser bem estudado por todos os profissionais da saúde que interagem com pessoas com asma pois a assistên cia psicológica a elas é tarefa de todos embora predo minantemente do médico assistente Não é necessário solicitar o auxílio de psiquiatras no tratamento dos problemas emocionais das pessoas com asma a não ser que assumam características de doença emocio nal Nesse caso cabe a atuação do especialista com as mesmas indicações que para os demais doentes O atendimento insuficiente do componente psi codinâmico dos asmáticos é o principal responsável pelas falências no tratamento durante o período in tercrítico Costa 1977 Considerando falência a não melhora da qualidade de vida esta ocorreu em cerca de 40 dos casos de duas séries diferentes de asmá ticos ambulatoriais de hospitais diferentes e em dife rentes épocas Costa 1977 SantAnna 1988 Do total de falências 48 poderiam ser incluí das no não atendimento do componente emocional incluindo neste a não percepção de melhora ansieda de persistente e até o abandono do tratamento como expressão de insuficiente relação médicopaciente Costa 1977 O componente emocional pode influir em três níveis do quadro asmático no desencadea mento das crises na persistência ou agravamento do sofrimento durante as crises ou períodos intercríticos e na resistência ao tratamento O DESENCADEAMENTO DAS CRISES Um dos mais interessantes estudos dos fatores desencadeantes das crises asmáticas é o de Williams 1958 anterior à identificação das crises desencadea das por aspirina exercício e pelos poluentes atmosfé ricos Como a real prevalência destes novos fatores permanece discutível aquele trabalho não perdeu in teiramente sua atualidade Em 487 asmáticos um fator psíquico esteve presente no desencadeamento das crises em 641 dos casos embora em apenas 33 fosse o único Jacobs e colaboradores 1966 encontraram fato res imunológicos e psicológicos associados em crises de exteriorização alérgica em 75 de seus 41 pacientes As crises asmáticas frequentemente se iniciam em situações de forte tensão emocional com diferen tes conteúdos ansiedade ódio medo As bases neu rológicas e psicodinâmicas da participação de fatores emocionais no desencadeamento das crises asmáticas estão firmemente estabelecidas A via eferente tem sua sede no hipotálamo cuja porção anterior inicia a ativação do parassimpático e a porção posterior a do simpático Ligações com centros límbicos relacionam essa via com respostas do prazer ativação do parassimpático e de dor ati vação do simpático O estimulo elétrico e a destrui ção de áreas hipotalâmicas e tuberais em animais do laboratório modificam respostas do sistema nervoso autônomo e também as imunológicas A teoria vagal do espasmo brônquico tem con firmação segura não bastassem o efeito broncodila tador da atropina e o efeito broncoconstritor que as nebulizações de metacolina têm nos asmáticos Gold e colaboradores 1972 eliminaram a res posta broncoconstritora a alergenos em cães mediante bloqueio vagal Vachon e colaboradores 1971 provo caram broncoconstrição em pessoas normais mediante a imersão em água efeito bloqueado pela atropina O simpático também poderia atuar como via eferente O estímulo da hipófise posterior aumenta a secreção de adrenalina pela medula da suprarrenal Por outro lado após infusão de adrenalina e nora drenalina marcadas com H3 a excreção de catecola minas urinárias foi menor em asmáticos do que em normais sugerindo menor disponibilidade dessas substâncias nos asmáticos Mathé e Kriapp 1976 e também Morris e colaboradores 1972 observaram a ausência de elevação de catecolaminas circulantes 22 ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS EM PACIENTES COM ASMA BRÔNQUICA Alfred Lemle Psicossomaticaindd 310 Psicossomaticaindd 310 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 311 e urinárias em asmáticos em crises provocadas por estresse Uma possível explicação seria o aumento da captação de catecolaminas pelo pulmão nos asmáti cos como ocorreu em cobaias em anafilaxia Os estudos em psicofisiologia envolvendo técni cas de sugestão também reforçam a importância do fator psíquico no desencadear das crises asmáticas Diversos autores têm demonstrado a possibilidade de desencadear crises com estímulos estressogênicos Apesar de um possível bloqueio simpático observa se aumento da frequência cardíaca e da temperatura cutânea sugerindo o desencadear de uma crise fight fight segundo Cannon Experiências de condicionamento clássico fo ram realizadas por Noelp e colaboradores 1954 ao provocarem crises de dispneia asmasímile em porquinhosdaíndia introduzidos em câmaras onde as crises haviam sido provocadas previamente com injeções de alergenos Em humanos a demonstração clássica do efeito da sugestão é de Luparello e co laboradores 1968 que obtiveram broncoespasmo definido por aumento da resistência das vias aéreas por meio de nebulizações de soro fisiológico descrito para os pacientes como contendo alergeno Em segui da reverteram o fenômeno com nebulizações de soro fisiológico descrito como possuindo substancias bron codilatadoras São experiências de reprodução difí cil mas Spector e colaboradores 1976 e Horton e colaboradores 1978 obtiveram efeitos semelhantes baseando sua sugestão em dar sabor de anis ou horte lã aos diferentes diluentes obtendo com isso reações paradoxais No estudo de Spector e colaboradores a atropina eliminou a resposta broncoespástica ATUAÇÃO NAS CRISES A atuação psieoterápica durante as crises não deve objetivar a sua reversão embora isso possa ser ocasionalmente conseguido principalmente por efei tos de sugestão Essa técnica porém é complexa e exige treinamento específico não sendo utilizada na quase totalidade das situações de atendimento emer gencial das crises asmáticas O principal objetivo da atuação psicoterápica durante as crises deve ser o combate à ansiedade e ao sofrimento Palavras de apoio e incentivo enfatizando os aspectos relativamente mais favoráveis do desen rolar da crise podem ser muito eficientes Muito im portantes porém são as comunicações e mensagens indiretas e extraverbais É importante que médicos e paramédicos se policiem para propiciar boa acolhida ao paciente em crise Devem ser eliminadas atitudes de enfado ou rejeição causadas pela repetição das crises em um mesmo paciente ou em situações de regime de plantão em hospitais pelo acúmulo de pa cientes com esse problema É indispensável propor cionar ao paciente em crise uma acomodação confor tável não o sujeitando a ambientes frios expostos pouco asseados ou repletos de outros doentes O PERÍODO INTERCRÍTICO PERSISTÊNCIA OU AGRAVAMENTO DO SOFRIMENTO A persistência das manifestações asmáticas nos períodos intercríticos é um dos grandes desafios da prática médica conduzindo a elevadas proporções de fracassos terapêuticos bem como a pesada carga vi tal e socioeconômica para o asmático e ainda grande sobrecarga econômica para a comunidade Em muitos casos há efetiva persistência dos mecanismos fisiopatológicos da asma brônquica com continuação de labilidade brônquica edema de mu cosa e secreção viscosa A asma brônquica não é uma situação simplesmente de espasticidade brônquica ocorrendo também fenômenos inflamatórios brôn quicos peribrônquicos e intersticiais pulmonares Es tes tendem a aumentar a hiperreatividade brônqui ca baixando o limiar do desencadeamento das crises que se tornam subentrantes configurando o que se chama de asma brônquica perene Em muitos outros casos porém o sofrimento do asmático continua no período intercrítico mesmo quando se consegue reduzir os fenômenos bronco pulmonares patológicos a um mínimo criando uma desproporção entre a qualidade de vida do asmático e a realidade de seu exame clínico e até com os resul tados dos exames espirográficos O entendimento dos mecanismos psicossomáti cos subjacentes a esta segunda situação e consequen temente o desenvolvimento de estratégias de aborda gem psicoterápica constituem na verdade o cerne da atuação psicossomática na asma brônquica TEORIAS PSICODINÂMICAS EM ASMA BRÔNQUICA Na década de 1960 procuravase identificar perfis ou pelo menos traços psicológicos dominan tes próprios da pessoa com asma brônquica Knapp e colaboradores 1976 produziram admirável sumário dos resultados desses estudos que segundo esses au tores se caracterizam por falta de consenso Por ou tro lado é difícil separar traços psicológicos inerentes à pessoa com asma daqueles adquiridos em respos ta ao próprio problema asmático Assim a bateria Psicossomaticaindd 311 Psicossomaticaindd 311 05012010 121215 05012010 121215 312 Mello Filho Burd e cols MPI Maudsley Personality lnventory aplicada por Franks e Leigh revelou leves traços neuróticos em asmáticos comparados com normais e psicóticos A bateria DPI Dynamic Personality lnventory aplica da por Glasburg e colaboradores revelou mais traços de oralidade dependência e ansiedade de separação em asmáticos que em controles O amplo questioná rio de Cattell aplicado por Rosenthal e colaboradores a asmáticos ambulatoriais revelou em comparação com a população em geral diversas características nos asmáticos submissividade teimosia radicalida de e tensão Os próprios autores da revisão Knapp et al 1976 aplicaram extensa bateria de testes a uma amostra numerosa de asmáticos totalizando 61 com resultados semelhantes aos de Rosenthal Dois aspec tos interessantes de seus achados merecem destaque por terem reflexos no manejo dessas pessoas havia elevado escore para dominância no questionário do Cattell e dificuldades de adaptação interpessoal na bateria CPI California Personality Involvement PERFIS PSICODINÂMICOS O estudo da personalidade da pessoa com asma e a aplicação desses dados ao relacionamento com ela têm um potencial terapêutico muito grande São fundamentais o conhecimento do relacionamento da pessoa asmática com seu problema das conexões que cria entre a asma e as outras facetas de sua vida o modo de trazer esse conjunto ao convívio com os familiares o médico amigos colegas de trabalho e a sociedade em geral A adequação desses funciona mentos tem um potencial quase comparável ao do combate ao componente orgânico em termos de mi norar o sofrimento do paciente A hipótese clássica sobre o perfil psicodinâmico do asmático é a de French e Alexander 1941 Exis tiria um padrão emocional peculiar cujo núcleo seria um conflito em torno do choro O choro seria inibido por temor ao repúdio por uma mãe percebida de modo ambivalente A mãe seria percebida simultaneamente como sedutora e rejeitadora a um tempo desejosa de aconchegar a criança e também de se afastar de suas demandas Ao mesmo tempo o pai frequentemente seria percebido como uma pessoa fraca embora em certos casos possa ser absorvido pela figura domina dora da mãe formando um conjunto Nesse contexto a crise asmática poderia ser uma crise de choro reprimido bloqueado Ao mesmo tempo a pessoa com asma introjetaria um relacio namento ambivalente amorrejeição com a figura materna ou maternapaterna Essa relação poderia ser transferida ou revivida com diferentes perso nagens inclusive e principalmente com a figura do médico Esse mecanismo estaria por trás de uma cer ta dependência comum entre as pessoas com asma Mello 1976 Uma segunda hipótese psicanalítica desenvolvida por Deutsch e advogada por outros se gundo Knapp e colaboradores 1976 se baseia na ideia de que ocorreriam padrões de expressão espe cíficos adquiridos inconscientemente Segundo essa concepção a crise asmática poderia representar uma conversão exprimindo conflitos inconscientes não resolvidos em linguagem corporal Parece que esses mecanismos devem ser consi derados mais como prevalentes do que como espe cíficos da pessoa do asmático tanto mais que entre nós a estrutura patriarcal da sociedade interfere com essas configurações Mello 1976 Contudo um dos traços mais comuns da personalidade da pessoa com asma é a dependência consequente a uma espécie de debilidade da personalidade somada à fraqueza que pode resultar da própria enfermidade ibidem RESISTÊNCIA AO TRATAMENTO Considerações terapêuticas atuação psicoterápica no período intercrítico Os fatores psicodinâmicos atuam na intercrise com consequências por vezes muito fortes mantendo ou agravando o sofrimento e podendo conduzir à re sistência ao tratamento Assim os principais objetivos da ação psicoterápica são dois redirecionar a relação da pessoa com asma com o seu problema reduzin do o sofrimento e construir uma relação médico paciente livre e madura o que combate a resistência ao tratamento Não há hierarquização ou priorização entre os dois objetivos pois as ações para atingilos se confundem Em consequência dessas ações quan do bem conduzidas pode ocorrer o redirecionamento das relações familiares e sociais da pessoa com asma com novos reflexos positivos sobre o relacionamento com a asma Não há indicação para o encaminhamento de uma pessoa com asma a um psicoterapeuta a me nos que coexistam problemas da esfera psiquiátrica neuroses psicoses distúrbios de caráter ou outros As indicações da psicoterapia especializada na asma são as mesmas que as da população em geral Redirecionamento da relação do asmático com seu problema Um motorista de táxi de 45 anos queixavase de asma moderada asma perene necessitando trata mento continuado mas sem impedir as atividades Psicossomaticaindd 312 Psicossomaticaindd 312 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 313 Iniciando um tratamento mais intenso e abrangente do que o que vinha sendo utilizado houve duplicação dos valores espirométricos mas o motorista se acha va pior No entanto cuidava pessoalmente de seus exames da busca de resultados licenças para trata mento de saúde Ao exame não exibia dispneia obje tiva nem ruídos adventícios Que significava a asma na vida do motorista Uma senhora de 72 anos tinha asma desde a infância Sua sibilância perene era audível para os interlocutores a alguns metros de distância Porém sua asma teria de ser classificada como leve pois a senhora jogava tênis durante horas por dia Qual o papel do médico na vida dessa tenista Um menino de 12 anos tinha asma desde a primeira infância Passava alguns dias com amigos numa cidade serrana e seus pais estavam em outra algo afastada Apos poucos dias o menino entrou em crise a qual não foi debelada com os medicamentos habituais Os pais foram buscálo e o trouxeram para a casa onde se encontravam na outra cidade O me nino chegou à noite com dispneia e sibilância difusa Medicado com novos remédios não melhorou e pas sou mal a noite Pela manhã havia ainda dispneia e sibilância e o menino estava cansado permanecendo em repouso Organizouse um jogo de futebol com outros rapazes e para que o menino não se sentis se excluído foi convidado O menino jogou futebol a manhã toda Talvez o menino desejasse passar os dias junto aos pais Esses casos exemplificam com clareza uma rea lidade básica na asma brônquica é frequente a falta de correlação entre a qualidade de vida e portanto a intensidade do sofrimento e a realidade do fenô meno orgânico da asma No acompanhamento de 51 asmáticos consecutivos de um ambulatório em que se realizavam os exames clínicos espirográficos e a gasometria arterial na mesma consulta verificouse que havia ausência de correlação clínicofuncional em 40 das consultas Em 4 de cada 10 consultas a avaliação do asmático sobre sua evolução em relação às consultas anteriores diferira da evolução funcio nal num sentido ou no outro Costa 1977 A ação psicoterápica consiste além do apoio su perficial em ajudar o paciente a identificar possíveis mecanismos que estejam contribuindo para tornar mais pessimista a percepção do problema De certa manei ra seria uma tarefa de diminuir a importância da asma ou talvez o melhor termo seria desmitificar a asma Ao empreender essa ação psicoterápica o médi co estará assumindo um certo risco Em certos casos o médico está bancando a asma para o seu paciente Ao fazer essa opção o médico terá de possuir firmes dados clínicos radiológicos espirográficos e hemo gasométricos arteriais que definam precisamente a situação orgânica do paciente Nesse momento al guns fatos de ordem clínica deverão ser lembrados 1 A asma brônquica evolui de três formas leve cri ses ocasionais aliviadas por medicação apenas quando necessário moderada sintomas pere nes medicação contínua crises frequentes mas com possibilidade de exercer atividades regula res e severa acentuados sintomas perenes ou crises fortes frequentes inviabilizando atividades regulares O objetivo geral do tratamento consis tiria em localizar o asmático na forma mais bran da possível fundamentalmente para permitir a realização das potencialidades da pessoa 2 A asma brônquica não complicada é condição de grande repercussão clínica mas de baixa mor bidade e mortalidade Há grande desproporção entre o acentuado distúrbio mecânico registra do pela espirografia e a ausência de insuficiência respiratória significativa no período intercrítico Mesmo em presença de sintomas e sinais nítidos pode não haver hipoxemia significativa Ao con trário do que ocorre na bronquite crônica e no enfisema pulmonar as formas não complicadas de asma que constituem a grande maioria não evoluem para a insuficiência respiratória crônica nem para o cor pulmonale crônico 3 Por outro lado é praticamente impossível pro duzir remissões permanentes ou seja erradicar completamente a tosse o chiado e os sibilos Nos so objetivo é procurar manter o paciente na for ma leve ou no máximo moderada Bases de redirecionamento da relação do asmático com sua asma A partir do que foi dito acima podemos estabe lecer os fundamentos do redirecionamento do asmá tico com o seu problema 1 A pessoa com asma se conscientiza de que seu objetivo não é o de curar a asma 2 O uso correto da medicação poderá todavia pro porcionar uma vida completa embora eventual mente com sintomas 3 A medicação correta com supervisão contínua do médico representa uma garantia quase absoluta de ausência de risco de vida Uma vez delimitados os contornos existenciais de sua asma o asmático poderá tentar identificar se sua asma desempenha papéis em sua vida Um açougueiro de 33 anos começou o trata mento de uma asma antiga com um novo médico Psicossomaticaindd 313 Psicossomaticaindd 313 05012010 121215 05012010 121215 314 Mello Filho Burd e cols Apresentavase como uma forma muito severa sem sintomas perenes intensos forçandoo a trabalhar descontinuamente para parentes As consultas eram constituídas por extenso e rico relato de sintomas e exaustiva discussão dos medicamentos Várias con sultas foram necessárias apenas para aos poucos completar a anamnese Esta revelou um rosário ri quíssimo de desajustes a nenhum dos quais o doen te aludira espontaneamente detestava a profissão principalmente o horário que o obrigava a trabalhar à noite próximo às geladeiras o que evidentemente lhe era poupado quando a asma piorava A relação com a mulher era totalmente deteriorada princi palmente porque não lograva proporcionar sustento condigno à família que era todavia obrigada a levar em conta sua grave doença A medida que o diálogo com o médico passou a girar em torno dos problemas existenciais reduziuse o rosário de queixas sobre os sintomas e a discussão sobre os medicamentos Quando o médico teve de deixar o ambulatório o paciente chegara ao ponto de esquecer de perguntar sobre sua receita limitandose o médico a dar instruções às vezes já junto à porta na saída O paciente passara também a trabalhar re gularmente embora contrafeito e não feliz Este caso ilustra bem os principais aspectos do redirecionamento da relação entre o asmático e sua asma Em nenhum momento o médico sugeriu que o asmático resumisse suas queixas e discussões so bre medicamentos redundantes e repetitivas para permitir uma consulta mais rica Mesmo quando se tornou patente que a apresentação das queixas não sua realidade era uma cortina para impedir o trato de coisas que causavam sofrimento ainda maior do que a própria asma essa interpretação não foi colo cada pelo médico O asmático contudo captou intei ramente a existência desse jogo pois sua asma nas consultas e na vida refluiu para o seu próprio leito real deixando de misturarse por exemplo com a continuidade da atividade profissional Nesse caso a atuação psicoterápica se restringiu a botar a asma no seu devido lugar reduzindo acen tuadamente a quantidade de sofrimento expressa nas consultas e provavelmente vivenciada lá fora De semiinvalido profissional o asmático passou a pro fissional normal embora persistissem manifestações asmáticas importantes e desajustes psicossociais Tra tavase de uma personalidade altamente complexa não permitindo incursões mais profundas no campo familiar e no nível subconsciente Nesse caso haveria indicações para atuação psiquiátrica especializada embora a assistência prestada no nível da interven ção clínica houvesse surtido algum efeito Em alguns casos todavia podemos avançar mais um pouco sem recorrer a auxílio especializado Veja mos o caso de uma doméstica de 55 anos tratada por pneumologistas sob supervisão psicanalítica Mello 1988 Desde a infância sentiase a preferida do pai e tinha ciúmes de uma das irmãs muito cuidada por ser doentinha O pai faleceu prematuramente e a paciente se apegou aos patrões refazendo com eles sua dependência familial Após seria crise financeira dos pais surgiu asma severa com atendimento se guido em serviços de emergência e uso permanente de corticoides Iniciado o tratamento clínico e psicoterápico supervisionado procurouse mostrar em torno de questões simples e sem interpretar o mecanismo de dependência como a paciente poderia atuar como uma pessoa mais amadurecida mais adulta Admite o autor que o terapeuta possa nesse caso ter atuado como um pai salvador pois houve melhora sensível da asma inclusive documentada pelos resultados das provas de função pulmonar Provavelmente nesse caso podese aprofundar a intervenção psicoterápica porque o clínico trabalhava com supervisão psicanalítica Essa supervisão ocorria no âmbito de uma experiência realizada pelos Servi ços de Medicina Psicossomática e de Pneumologia da 4a Cadeira de Clínica Médica da Faculdade de Me dicina da UFRJ então localizada no Hospital Escola São Francisco de Assis Mello 1988 Face à elevada proporção de asmáticos que apresentavam falhas no tratamento em termos de melhora de qualidade de vida e à demonstração de que importante proporção dessas falhas era atribuível a problemas de nature za psicológica Costa 1977 foi criado um progra ma especial objetivando suplementar o tratamento clínico habitual com um atendimento com ênfase na assistência psicodinâmica Participaram do programa clínico pneumologis tas e estudantes em estágio avançado de formação sob supervisão da Medicina Psicossomática As con sultas eram feitas regularmente nos ambulatórios de Pneumologia A psicoterapia se desenvolvia em pla nos superficiais ou profundos dispensando de forma geral enfoques interpretativos As entrevistas eram registradas e estudadas em discussões de grupo sob a forma de reuniões Balint frouxas Mello 1988 ou em supervisões individuais Foram obtidos alguns resultados excepcionais como o do último caso relatado Não só o formato do programa era correto mas também existia inten sa motivação dos terapeutas e os casos incluídos na experiência eram selecionados O exemplo seguinte complementa a ilustração Um senhor aposentado de 59 anos Mello 1976 apresentava asma perene com períodos de exacerbação e provas funcionais respiratórias mos trando acentuadas repercussões fisiopatológicas Psicossomaticaindd 314 Psicossomaticaindd 314 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 315 Intemado patentearamse vários problemas emo cionais Sua mulher o traiu com um primo ao qual agrediu violentamente e depois fugiu Considerado um empregado exemplar apesar da asma tinha no entanto crises de fúria quando criticado Dono de alguns barracos tinha as crises quando contestado pelos inquilinos Durante o tratamento pôdese mos trar a relação entre as crises de asma e de perfec cionismo O paciente conseguiu delegar a um filho a gestão de alguns negócios Pôdese reduzir a pred nisona de 15mg por dia para 5 a 75mg por dia e as visitas a serviços de prontosocorro se reduziram em 60 Posteriormente houve troca de médicos no am bulatório e o paciente reagiu ao recebimento de um novo médico com piora do quadro clínico tentativas de manipulação da medicação e tentativa de reaver o médico anterior Identificada a rejeição do novo mé dico nas reuniões de supervisão coletiva do Setor de Psicossomática o episódio foi contornado e o pacien te voltou a melhorar Redirecionando a relação asmáticomédico Essa atuação tem como objetivo reduzir a resis tência ao tratamento a qual se expressa de duas ma neiras principais não aderência à prescrição médica e abandono do tratamento A não aderência ao tratamento ocorreu em cerca de 15 de uma amostra de asmáticos ambulatoriais de um grande hospital SantAnna 1988 Tratavase no entanto de um estudo restrospectivo cabendo conferir esse dado em estudos prospectivos A litera tura é pobre em análises do fenômeno da não aderên cia à prescrição médica em asma brônquica embora seja de observação universal Alguns dos mecanismos mais frequentemente invocados são a insuficiência de recursos materiais ou condições sociais para cumprir regimes terapêuticos constando de diversas tomadas de medicamentos ao longo do dia No caso específico dos nebulímetros pode não haver condições psico motoras suficientes para o uso adequado do instru mento Contudo além dessas causas objetivas pode haver modificações voluntárias da prescrição por julgála supérflua face a melhoras observadas ou por outro lado modificações por descréditos face à ausência de melhoras O abandono do tratamento ocorreu em 98 dos casos de uma amostra ambulatorial de um gran de hospital Costa 1977 O abandono configura o grau externo de resistência à terapêutica represen tando ruptura da relação médicopaciente Sob certos aspectos a não aderência à prescrição e o abandono são expressões de um mesmo fenômeno a má rela ção médicopaciente Para melhor examinar esse fenômeno podemos desdobrálo em alguns confrontos ou momentos de relacionamento 1 Bajulações do médico pelo asmático Ocorrem com frequência no início da relação Geralmen te o asmático vem usando prescrições anteriores atacadas isto é incompletas Com a adoção de uma nova prescrição completa ocorrem melho ras imediatas e o paciente frequentemente se ex cede em elogios ao médico Além do alívio e da esperança no novo médico pode haver um com ponente de sedução do mesmo Não é impossível que essa atitude esteja impregnada do compo nente sedutor da ambivalência da relação com a figura maternopaterna amadaodiada Seja como for o comportamento do asmático pode atingir níveis inadequados que transcendem sua satisfação pela melhora obtida Cabe ao médico neutralizar esses componentes estranhos à situação o que não poderá ser feito explicitamente Isso pode ria representar uma interpretação de fundo psicana lítico potencialmente destrutiva no início da relação Cabe antes desenfatizar os elogios de maneira indire ta não participando do júbilo e não aceitando os elo gios tais como proferidos Uma boa opção é transferir os méritos para o próprio paciente mostrandolhe a importância de colaborar na medicação 2 Regateio sobre a prescrição Com o passar do tempo podemse instalar efeitos colaterais dos medicamentos além de que a rotina da prescri ção começa a pesar principalmente se ja não há sofrimento O paciente poderá mais uma vez tentar contaminar essa situação objetiva com elementos alheios a ela Poderá exagerar a inten sidade e a importância dos efeitos colaterais ou os transtornos que a medicação repetida lhe traz Essa atitude poderá ter raízes em muitos aspectos da personalidade do asmático mas poderá conter elementos de desafio ao novo médico maravilho so vamos ver como ele se sai dessa ou mes mo dentro da concepção de French e Alexander um desafio à mamãemédico Este é um primeiro momento difícil na relação médicopaciente A regra de ouro é não participar de um eventual jogo O mais importante é não mostrar decepção nem irritação e sim promover as modifi cações cabíveis no regime terapêutico explicando os motivos e sem reagir a tentativas de manipulação 3 Culpando o médico por reativação dos sinto mas Com o tempo haverá evidentemente reati Psicossomaticaindd 315 Psicossomaticaindd 315 05012010 121215 05012010 121215 316 Mello Filho Burd e cols vação das manifestações motivadas por intercor rências reduções de medicação ou pelo próprio curso da asma Embora esperadas essas pioras poderão ser utilizadas pelo paciente para assumir uma atitude de culpar o médico Este assim como não deve se associar ao júbilo do sucesso inicial não pode se deixar levar na decepção por uma regressão fugaz até porque esperada A melhor conduta é demonstrar o maior inte resse e criatividade no tratamento Cada epsódio de reativação deve ser tratado como se fosse o primeiro a anamnese e se possível o exame físico devem ser refeitos de preferência com um exame espirográfico Só ao final da reavaliação deve o médico expor sua hipótese sobre as origens do novo episódio evitando as explicações rápidas O regime terapêutico também deve ser total mente reavaliado evitandose modificações rápidas numa ou noutra medicação O importante é mostrar que o interesse do médico pelo caso não mudou man tendose o mesmo que na primeira consulta Além da reavaliação do tratamento o médico poderá quando possível introduzir novas drogas medidas fisioterá picas ou higiênicas mostrando que tem mais recursos para o tratamento É importante que o asmático per ceba que jamais se tornará um caso de rotina 4 Encaminhamento a especialistas Este é um mo mento potencialmente perigoso Talvez a atitude mais destrutiva que o médico possa adotar na re lação médicopaciente é a mais leve indicação de enfado Além da decepção natural que acomete qualquer paciente nessa situação o asmático po derá experimentar um reforço poderoso de uma vivência de rejeição remetida da conflituada rela ção com a figura maternopaterna Caso o meca nismo proposto por French e Alexander seja real mente operativo a simbologia poderá ser muito poderosa Categoricamente poderá haver muita semelhança entre uma criança que se percebe re jeitada porque chora e um asmático sentindose afastado porque sibila No entanto o manejo do asmático exige muitas vezes o concurso de imunologistas pneumologistas fisiatras A solicitação da participação desses profis sionais deverá ser feita com muita prudência para evitar a fantasia de que o médico enfadado está pas sando o caso para outro A regra de ouro é que a necessidade de ouvir um especialista seja percebida com objetividade e preci são pelo asmático Este deverá estar completamente ciente do problema específico que o especialista deve resolver Além disso deverá ficar claro à exaustão que a participação do especialista é apenas um sub sídio para complementar a avaliação e o tratamento Mesmo que a atuação do especialista seja demorada como nas dessensibilizações imunológicas a supervi são deverá ser exigida pelo médico do asmático O eventual encaminhamento a um psiquiatra ou terapeuta não foge à regra As indicações dessa especialidade são as mesmas que para a população em geral a presença de distúrbios psiquiátricos bem caracterizados O componente emocional que fre quentemente acompanha grande número de asmá ticos não deve exigir a participação do especialista cabendo ao médico atendêlo 5 Ruptura O afastamento do asmático do seu mé dico cortando a relação é ainda um evento mui to frequente tendo ocorrido em 98 dos casos de uma série ambulatorial Costa 1977 Cabe lembrar que nos ambulatórios as consultas sub sequentes são marcadas com antecedência Não é improvável que em consultórios quando a re consulta é voluntária o índice de abandono seja ainda maior Não temos muitos dados sobre os mecanismos desse abandono que na maioria das vezes ocorre sem traumas formais O paciente simplesmente dei xa de contactar o médico que só se dará conta do fato após algum tempo a não ser quando há con sultas marcadas com antecedência e que não são cumpridas como nos ambulatórios Temos consi derado que o abandono representa uma falha na relação médicopaciente tendo o percentual caído para 67 quando se instituiu um protocolo especial para o estudo das falhas no tratamento em geral e quando portanto a equipe estava especialmente motivada ibidem É possível que fatores de ordem prática como mudança de domicílio consideraões financeiras ou outras influam Embora não tenhamos elementos objetivos para avaliar quando ocorrerá o abandono cabe estar aten to para sinais de desânimo por parte do asmático principalmente quando ele está atravessando lon go período de sintomas perenes ou crises repetidas Nesses casos a reavaliação deverá ser mais formal e modificações importantes na terapêutica deverão ser estudadas REFERÊNCIAS Costa C A F Kropf G L Laks J et al Estudos das falhas no tratamento da asma brônquica a curto prazo J Pneumologia n 3 p 26 1977 Costa C A F Kropf G L Pontes E L et al Provas funcionais no tratamento da asma J Pneumologia n 3 p 24 1977 Psicossomaticaindd 316 Psicossomaticaindd 316 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 317 French T M Alexander F Psychogenic factors in brochial asth ma Psychosom Med Monogr n 4 p 2 1941 Gold W M Kessler G R Yu D Y C Role of the vagus nerves in experimental asthma in allergic dogs J Appl Physiol n 33 p 719 1972 Horton D J Suda W L Kinsman R A et al Bronchooonstric tive suggestion in asthma a role for airways hyperreactivity and emotions Am Rev Resp Dis n 177 p 1029 1978 Jacobs M A Fridman S Franklin M J et al Incidence of psychosomatic predisposing factors in allergic disorders Psychom Med n 28 p 679 1966 Luparello T I Lyons H A Bleecker FR et al Influence of Sugestiun on airways reactivity in asthma Subjects Psychosom Med n 30 p 819 1968 Mathé A A Stjarne L Birke G Altered patterns of excretion Of catecholamines during acute asthma afthcr infusion of l4 ep1nephrine and 1lnorepinephrine to asthmatic patlens and healthy Subjects In Weiss E B Scgal M S Bronchial Asthma Bostonz Little Brown 1976 Mello F J Concepção psicossomática visão atual Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1988 Mello J F Farha J Moreira M D Assistência integral ao as mático J Bras Med 11 31 p 102 1976 Morris H Dereche G Earle M R Urinary excretíon Of epine phrine and 11orepinephrine in asthma children 1 Allergy Clin Immunol n 50 p 138 1972 NoelppEschenhagen I Noelpp B New contribution to experi mental asthma Prog Allergy n 4 p 361 1954 SantAn11a N M M Lemle A Souza G R M et al Falhas no tratamento de asmático no período intercrítico J Pneumologia n 14 Supl 1 p 7 1988 Knapp P H Mathé A A Vachon L Psychosomatic uspects of bronchial asthma In Weiss E B Segal M S editores Bron chial asthma Boston Little Brown 1976 Spector 5 Luparello T J Kopetzky M T et al Response of asthmatícs to methacholine and SuggcStion Am Rev Resp Dis n 113p43 1976 Vachon L Brotman C J Knapp P H Bronchial tree response to the diving reflex Psychosom Med n 24 p 471 1971 Williams D A LewisFanníg E Rees L et al Assessment of the relatíve importance of the allergic infectíve and psychologícal fac tores 111 asthma Acra Allcrg KBK n 12 p 376395 1958 Psicossomaticaindd 317 Psicossomaticaindd 317 05012010 121215 05012010 121215 Discorrer sobre aspectos psicossomáticos hoje é tratar de um assunto talvez tão antigo quanto a pró pria humanidade As ligações entre corpo e espíri to foram e continuam sendo tema fecundo e con trovertido É como se todos concordássemos que as emoções de algum modo repercutem no corpo mas ao mesmo tempo não soubéssemos explicar o fato ou quem sabe não o aceitássemos Em se tratando de coração a questão nos pa rece mais clara ainda Não há quem deixe de perce ber seu coração acelerar ante determinadas situações emocionais Não há quem deixe de atribuir alguma representação simbólica ao coração investindoo pois de um significado ou função subjetivo Não obstante os caminhos e os modos através dos quais a emoção repercute no coração continuam discutidos e discutíveis Agora mesmo para escrevermos sobre o assun to vemonos diante desse impasse Qual o caminho a seguir Descrever os mecanismos fisiológicos ou fisiopatológicos da conexão emoçãocoração Abor dar os diversos fatores psicossociais relacionados na pesquisa com a doença cardíaca Vasculhar os mean dros intrapsíquicos à busca de processos que redun dem em alterações somáticas Ou deternos na aná lise das diversas formas de intervenção psicológica voltadas para as manifestações psicossomáticas do coração Optamos por começar perguntando por que nos parece tão evidente que as emoções repercutam no coração e ao mesmo tempo exista tanta diver gência a respeito Acreditamos que a resposta resida nas próprias características da nossa subjetividade Em primeiro lugar o fato de que sobre ela só pos samos inferir jamais observála ou manipulála dire tamente traz dificuldades para sua abordagem Por outro lado a vida psíquica constituise de um soma tório de experiências atuais e passadas percebidas e registradas de maneira peculiar pessoal que impede generalizações e obriga a singularizar cada pessoa em cada situação Por fim o campo de nossas motiva ções e interesses de nossas contradições e censuras nem sempre se limita à esfera consciente mas antes e sobretudo se estende ao inconsciente e portanto a resultante ação do psíquico sobre o corpo expressará sempre algo de muito pessoal ligado à história de vida do indivíduo e certamente marcado pelas injun ções da dinâmica inconsciente Tais fatos são os que nos parecem justificar os diferentes resultados obtidos pela pesquisa psicosso mática Mas longe de se constituir num impedimento representa um desafio para a ciência na medida em que pouco a pouco vamos conhecendo melhor os agentes e os processos que atingem e que atuam no aparelho psíquico O PAPEL DAS EMOÇÕES Talvez um ponto de contato que possamos esta belecer com a subjetividade com o mundo psíquico seja o das emoções Embora de difícil conceituação as emoções constituem uma classe de fenômenos que sentidos como internos trazem ao mesmo tempo manifestações ou sinais externos somáticos e com portamentais Assim ocorre com o amor o medo e a raiva Os estados emocionais parecem exercer função adaptativa de sobrevivência do indivíduo e da espé cie se considerarmos as teorias de Darwin 2000 e de Selye 1965 O sistema límbico é o mediador desse processo Num excelente estudo sobre as emoções Ma rino Jr 1975 descreve alguns aspectos da teoria de McLean que gostaríamos de ressaltar O sistema límbico conjunto de estruturas corticais e subcorti cais do cérebro é o responsável pela mediação do processo emocional Tal sistema constitui o segundo cérebro no dizer de McLean para quem a evolução do cérebro humano se fez a partir da superposição de um primeiro cérebro semelhante ao dos répteis e 23 ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS EM CARDIOLOGIA MECANISMOS DE SOMATIZAÇÃO E MEIOS DE REAGIR AO ESTRESSE Eugênio Paes Campos Psicossomaticaindd 318 Psicossomaticaindd 318 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 319 que representa a estrutura mais primitiva correspon dente ao tronco encefálico Sobre este primeiro de senvolveuse então um segundo cérebro semelhan te ao dos mamíferos inferiores e que desempenha papel preponderante no comportamento emocional do indivíduo o sistema límbico Acerca dele tex tualmente afirma Marino Jr Este cérebro agiria sobre as sensações emotivas de modo a dar ao animal maior liberdade de decisões em relação ao que ele faz Tem muito maior capacidade que o cérebro do réptil para aprender novos meios e so luções de problemas com base na experiência imediata Mas como o cérebro dos répteis não tem a capacidade de colocar os sentimentos em palavras Estas estruturas irão mediar todas as perturbações psicossomáticas e o comportamento emocional do animal p 17 Por fim nos mamíferos superiores surge o ter ceiro cérebro a neocórtex que adiciona o intelecto às faculdades psíquicas Ainda textualmente nos diz Marino Jr A teoria de McLean considera as emoções como infor mativas de ameaças à autopreservação e à preservação da espécie sendo o processo de erradicação dessas ameaças considerado desagradável As emoções agra dáveis ou que causam prazer são informativas da re moção dessas ameaças ou desejos satisfeitos p 17 Deduzimos até aqui que o processo emocional exerce fundamentalmente uma função expressiva ou sinalizadora das experiências que vive o animal Tal sinalização visa revelar possíveis ameaças à auto preservação e à preservação da espécie Aponta para uma dada situação que está ameaçando aquele in divíduo e implica necessariamente num processo de avaliação da situação a partir das diversas estrutu ras sensitivas percepção do indivíduo que captam as informações provindas de si mesmo e do ambiente Portanto à função expressiva ou sinalizadora da ex periência corresponde uma função interna avalia tiva dessa experiência Caberia ao sistema límbico a elaboração desse processo avaliativo Ainda pesquisando o sistema límbico McLean identifica experimentalmente áreas ou estruturas cuja estimulação provoca efeitos autônomos ou neu rovegetativos somáticos e comportamentais como respostas alimentares lamber mastigar salivar vo mitar comportamentos de procura de alimento e luta pela sobrevivência farejamento curiosidade vi sual reações de ataque ou fuga acompanhadas de vocalização adequada respostas sexuais coçagem dos genitais ereção peniana ejaculação Tal fato põe em evidência a outra função do processo emo cional a comportamental ou adaptativa que leva o indivíduo a agir de uma dada forma O objetivo da ação emocional é em última instância preservar o indivíduo e sua espécie Assim comer lutar fugir copular constituem comportamentos emocionais que permitem ao indivíduo enfrentar o meio em que vive à busca da sobrevivência Deduzimos pois que o processo emocional é ao mesmo tempo um meio de expressão ou sinali zação e de enfrentamento ou adaptação Meios esses que podem e são detectados externamente através de sinais emocionais sorrir gritar chorar gesticular empalidecer ruborizar eriçar etc e de ações emo cionais comer lutar fugir copular Subjetivamente a função primordial do proces so emocional é a avaliação das informações captadas do ambiente e do próprio indivíduo e levada pelos ór gãos sensoriais à apreciação das estruturas límbicas Avaliação que como vimos tem como objetivo final a autopreservação e preservação da espécie Tudo aqui lo que ameace tais objetivos gerará sensações emo ções desagradáveis Ao contrário tudo aquilo que contribua para a consecução desses objetivos gerará emoções prazerosas ou agradáveis Consideramos essencial descrever o trecho se guinte de Marino Jr Segundo Kubie 1953 o sistema límbico constituiria um mecanismo integrador das informações internas e externas do passado e do presente Além disso o siste ma límbico está intimamente relacionado à elaboração de atividades somáticas preciosas altamente diferencia das As estruturas límbicas atuam como um transdu cer transformando impulsos neurais de aferentes em eferentes assim impulsos aferentes são canalizados através de várias vias do sistema límbico que decidi rão se esse estímulo deverá emergir como uma resposta inespecífica ou componente de uma resposta um grito uma expressão facial um movimento súbito do corpo uma sensação de medo uma alteração circulatória ou qualquer combinação de atividades somáticas e fisioló gicas A descoberta de que estas atividades podem ser postas em funcionamento a partir dos níveis mais ele vados do sistema nervoso alocórtex e neocórtex foi uma das maiores contribuições da neurofisiologia mo derna ao pensamento psiquiátrico O sistema límbico representa um centro de convergência a uma via final comum para os impulsos mais importantes e represen tativos dos meios externos e internos A maior parte das informações que circulam através do sistema nervoso central é filtrado através destas estruturas de origem primitiva que devem arcar com pesada carga pois tem a função de proporcionar uma permanente adaptação do organismo às contínuas mudanças desafios e stress do meio ambiente p 7778 Ficaríamos certamente por aqui se estivéssemos analisando ou descrevendo o comportamento emo cional de um animal No caso do homem a aquisição do terceiro cérebro permitelhe colocar os senti Psicossomaticaindd 319 Psicossomaticaindd 319 05012010 121215 05012010 121215 320 Mello Filho Burd e cols mentos em palavras e torna o processo emocional passível de ser percebido pelo próprio indivíduo Constitui então o que alguns autores chamam de ex periência emocional Ou seja a capacidade de reco nhecer a própria experiência de se autoperceber E evidentemente a capacidade de pensar e de falar de representar psiquicamente simbolicamente a expe riência gera um mundo novo o mundo do pensa mento da fantasia da imaginação dos desejos do raciocínio e da reflexão Um mundo que passa a re presentar por si só uma outra fonte de ameaça ou de satisfação Esse mundo interno passa a ser fonte de estímulos de informações e de solicitações que o sis tema límbico deverá processar ao mesmo tempo em que passa a ser fonte de recursos de enfrentamento ou de adaptação às situações Passa a ser uma ma neira de agir Esta é a face oculta do processo emocional Aquilo que só é observável pelo próprio indivíduo e muitas vezes nem por ele mesmo Grande parte do processo avaliativo é inconsciente Os estímulos que chegam do mundo interno das fantasias e dos desejos são também em grande parte inconscien tes Como inconscientes são muitos dos mecanismos mentais de enfrentamento de adaptação ou de defe sa de que lança mão o indivíduo como parte do com portamento emocional Em síntese as emoções são de fácil visualiza ção mas de difícil conceituação Os estudos des crevem várias teorias que tentam explicálas Lent 2001 Brandão 1995 Mello Filho 1979 Trouxemos uma delas a adaptativa que se sustenta nos postula dos de Darwin enquanto função de sobrevivência na teoria do estresse de Selye e na teoria de McLean acerca do sistema límbico O complexo sistema sensorial do indivíduo leva constantemente informações ao sistema nervoso central SNC sobre o ambiente interno e externo A parte destinada ao processamento avaliação des sas informações é o sistema límbico A resultante é o estado emocional com seus componentes subje tivo sentimento corporal reações fisiológicas e comportamental ações motoras Tal estado exerce uma função comunicativa ou expressiva na me dida em que sinaliza qual emoção sente o indivíduo naquele momento ao mesmo tempo que exerce uma função adaptativa ou de enfrentamento face à si tuação que a desencadeou A área cognitiva ou da neocórtex onde são re presentados pensamentos fantasias desejos confli tos preocupações interesses atua como fonte gera dora de emoções mas também através do raciocínio da reflexão da memória de experiências já vividas atuando como elaboradora ou geradora de meios de enfrentamento As emoções constituem pois um protótipo de manifestações psicossomáticas ou biopsicossociais por envolverem tão intimamente as dimensões bioló gica psicológica e socioambiental Apesar da comple xidade dos estados emocionais cabenos ficar atentos à sua função sinalizadora o que elas querem dizer Até que ponto estão sendo usadas como meio de enfrentamento de alguma situação Qual situação Cumprenos a partir desse sinal intentar com preender melhor o que se passa no íntimo do indiví duo e ajudálo nessa busca já que muitas vezes tal dinâmica lhe é inconsciente A manifestação cardíaca funcional ou orgânica constitui muitas vezes a par te visível desse complexo processo subjetivo COMO AS EMOÇÕES REPERCUTEM NO CORAÇÃO Identificando o sistema límbico como sede das emoções e nele se incluindo o hipotálamo que coor dena as diversas funções neurovegetativas inclusive cardiovasculares encontramos o elo desse processo eminentemente psicossomático que é o emocional Regulando o sistema simpático e parassimpático compete ao hipotálamo agir sobre as diversas estru turas orgânicas estimulandoas ou inibindoas Lent 2001 Brandão 1995 Mello Filho 1979 Situações de ansiedade ou estado de tensão interna ante algo que ameaça o indivíduo estimulam através do hi potálamo a liberação de catecolaminas e corticoste roides seja por ação direta do sistema simpático seja por ação indireta sobre as suprarrenais Exaustivos estudos clínicos e experimentais têm evidenciado a correlação de situações ansiogênicas ou estressantes com a liberação de catecolaminas e corticosteroides e sua repercussão cardiovascular Eliot 1987 Loures et al 2002 Mello Filho 1979 Investigando os efeitos dessas substâncias citaremos alguns deles que de algum modo podem repercutir sobre o aparelho cardiovascular elevação da frequência cardíaca elevação da pressão arterial aumento do débito cardíaco aumento do consumo de O2 aumento da excitabilidade cardíaca lesão celular por entrada de sódio e saída de po tássio e magnésio injúria endotelial aumento da adesividade plaquetária vasoconstrição periférica retenção de sódio e água hemoconcentração aumento da coagulação sanguínea Psicossomaticaindd 320 Psicossomaticaindd 320 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 321 aumento de glicose e ácido lático aumento dos ácidos graxos e colesterol A liberação excessiva ou prolongada de cateco laminas e corticosteroides provoca arritmias hipertensão arterial aterosclerose coronária isquemia ou necrose miocárdica insuficiência cardíaca Stewart Wolf 1971 faz referência a arritmias atriais e ventriculares induzidas em gatos e macacos por estimulação límbica ou hipotalâmica Faz tam bém referência ao aparecimento de manifestações cardiovasculares detectadas em pacientes internados em unidade coronária arritmias elevação da pres são arterial dispneia e angina desencadeadas por fatores emocionais Wilhelm Raab 1971 cita uma série de experi mentos em que situações estressantes desencadeiam a liberação de catecolaminas e corticosteroides pro vocando hipoxemia miocárdica por aumento do con sumo de oxigênio e lesão celular por entrada de Na e saída de K e Mg Raab mostra que a hipoxemia mio cárdica por aumento do consumo de oxigênio devido ao aumento do inotropismo determinado pelas ca tecolaminas e os distúrbios bioquímicos da célula entrada de Na e saída de K e Mg determinados pelos corticosteroides favorecem as arritmias inicialmen te e posteriormente a lesão celular sendo a seu ver o principal mecanismo responsável pelo processo de miocardiosclerose Raab fala ainda da descarga adre nalínica antecedendo a morte súbita e cita alguns tra balhos a respeito Selye 1971 também mostra a possibilidade de necrose miocárdica metabólica sem alterações vascu lares por ação estressógena Clinicamente sabemos que muitos pacientes portadores de infarto agudo do miocárdio têm artérias coronárias normais A vasocostrição e o aumento da tensão sobre as paredes por aumento do débito cardíaco devido à li beração de catecolaminas produzem microlesão na íntima e média das arteríolas favorecendo a trombo se conforme declara Groen Julio de Mello Filho 1979 em excelente revi são sobre o assunto mostra que as pesquisas sobre estresse baseadas na detecção dos índices plasmáti cos e urinários de 17 hidroxicorticosteroides são cada vez mais numerosos e compreendem o estudo do homem e animais em situações comuns de estresse ou em condições criadas laboratorialmente estados de guerra competições esportivas exames escolares projeção de filmes confinamento choques elétricos etc Revisões mais recentes como as de Eliot e Sil tanen 1987 também enfatizam a correlação entre estresse e cardiopatia Investigações em animais têm evidenciado o aparecimento de lesões cardiovasculares quando submetidos a situações estressantes inclusive de na tureza psicossocial como confinamento ou ambiente social competitivo Henry et al 1967 Raab 1971 A esse respeito Oliveira 1982 cita a baleia assassi na tipo de baleia agressiva e maliciosa que provavel mente por aumentada liberação de catecolaminas costuma desenvolver aterosclerose de maneira mais acentuada que outros cetáceos Cita também a maior evidência de aterosclerose no gado doméstico inglês em comparação ao búfalo selvagem de Uganda cor relacionando o fato com o processo de domesticação e socialização dos primeiros Morris 1959 demonstra em pesquisa com motoristas e cobradores de ônibus em Londres como o fator responsabilidade é predisponente de corona riosclerose Friedmam 1960 constatou aumento das cate colaminas em coronarianos do chamado tipo A A participação do sistema nervoso na gênese da hipertensão arterial é tema de inúmeros traba lhos como os de Abbud 1982 Davidmann e Op sahl 1984 Harrel 1980 Julius 1981 Fitzgerald 1979 Ligth 1983 e muitos outros Desde os es tudos de Selye sabemos que o estresse eleva a PA Através da ação direta dos nervos simpáticos ou indi retamente da estimulação das suprarrenais corticos teroides e catecolaminas são liberados promovendo aumento do débito cardíaco vasoconstrição e reten ção de sódio e água Tais modificações são transitó rias havendo o retorno às condições iniciais cessada a ação do agente estressante Em determinados in divíduos os hipertensos a reação é mais intensa e prolongada levando à doença hipertensiva Mesquita e Nóbrega 2005 descrevem um novo tipo de cardiopatia que vem sendo chamada no Bra sil de síndrome do coração partido Caracterizada por uma disfunção ventricular esquerda transitória a síndrome é desencadeada por estresse emocional e físico Em suma e nos valendo do dizer de Mesquita e Nóbrega A percepção de que o estresse pode estar associado a problemas cardíacos é muito antiga e não por coin cidência o coração é considerado pelo público geral como a sede das emoções Se por um lado a grande aceleração da ciência ao longo do século XX marcou uma separação das especialidades no diagnóstico e terapêutica dos pacientes por outro tem gerado uma plêiade de evidências apontando para uma associação causal independente entre fatores como depressão iso Psicossomaticaindd 321 Psicossomaticaindd 321 05012010 121215 05012010 121215 322 Mello Filho Burd e cols lamento social e má qualidade do suporte social com o desenvolvimento e o prognóstico de doença arterial coronária O aumento do risco ocasionado por estes fa tores psicossociais é de magnitude similar ao observado com os fatores de risco convencionais como tabagismo dislipidemia e hipertensão demonstrando a importân cia da melhor compreensão desta associação Outro aspecto bem estudado é o impacto das emoções nega tivas desencadeando eventos coronarianos agudos em pessoas com doença ateroclerótica estabelecida ou com alta probabilidade de doença p 283 Mais adiante afirmam os autores Portanto é chegada a hora do cardiologista voltar a considerar na sua prática cotidiana que processos emo cionais podem participar concretamente dos complexos mecanismos envolvidos na fisiopatologia das doenças cardiovasculares p 284 Enfim se é fato inconteste a repercussão car diovascular face a situações ansiogênicas ou estres santes permanecem as dificuldades para explicar por que algumas pessoas reagem dessa forma porquanto outras não MEIOS DE REAGIR AO ESTRESSE Para Hans Selye 1965 o organismo está em constante adaptação Em outros termos em constan te tensão de adaptação Estresse é o estado de ten são de um organismo que de alguma forma se sente ameaçado em sua integridade A resposta adaptativa se faz por um conjunto de reações físicas psíquicas e comportamentais a que Selye chamou de síndro me geral de adaptação Respostas inadequadas ou excessivas constituem as chamadas doenças de adap tação Há muitos trabalhos que relacionam estresse à doen ça sendo razoável supor que todos nós quando submetidos a uma carga excessiva de agentes estres santes apresentemos sintomas ou doenças físicas A relação de causaefeito é imediata à semelhança do que descrevia Freud em relação à neurose atual Se inúmeros trabalhos ligam estresse à doen ça Holmes e Rahe 1967 Selye 1965 1971 Wolff 1971 Arthur 1981 Jalowiec e Powers 1981 a natureza dessa ligação permanece obscura As pes soas reagem diferentemente ao estresse inclusive em termos de doença Parece haver uma espécie de filtro através do qual os eventos ambientais são per cebidos pelo indivíduo Isto faria distinguir situações estressantes e situações percebidas como estressan tes Seriam estas últimas as que teriam valor psico lógico Sem dúvida parece haver correlação entre quantidade de situações estressantes e a resultante percepção desse estresse Mas parece haver um efeito moderador ou hipertrofiador que depende do próprio indivíduo em função de sua constituição história e circunstâncias O mesmo se aplica ao modo de reagir de enfrentar de se adaptar ao estresse que aparece também influenciado por circunstâncias particulares próprias do indivíduo Em estudos sobre hipertensos alguns autores enfatizam a importância desse filtro pessoal Brod 1971 comenta que a elevação da PA parece depen der da avaliação pessoal que o indivíduo faz da si tuação Myers 1981 encontrou alguma correlação entre exposição a situações estressantes sobretudo negativas avaliação subjetiva de estar em estresse e tendência a somatizar estresse com HA Aqui nos reportamos aos estudos de McLean a respeito do sistema límbico e à função avaliadora do processo emocional Para Herrmann 1976 tal função seria exercida através de programas intrapsíquicos de avaliação resultantes das primeiras experiências de vida formando mesmo o seu núcleo de personalida de a que se somariam outros fatores de natureza in terna ou externa como idade estado de saúde edu cação crenças suportes sociais intensidade e tipo das experiências atuais etc Averill Opton e Lazarus 1971 alargam a com preensão do sistema intrapsíquico de avaliação intro duzindo a ideia de coping ou enfrentamento da situação percebida como ameaçadora Na verdade o sistema de avaliação seria primário e secundário O primário avaliaria o estímulo em si e o secundário avaliaria os modos possíveis de enfrentamento do estímulo amea çante Esses dois fenômenos seriam interdependentes e sua relação deve ser conceituada em termos de cir cuitos internos de feedback influenciandose mutua mente Sobre tal sistema de avaliação atuariam como fatores básicos a estrutura psicológica do indivíduo e as normas culturais que o cercam Utilizando pois os modelos de Herrmann e de Lazarus poderseia sumariamente dizer que uma dada situação vivida pelo indivíduo sofre um proces samento que envolve sua avaliação quanto à possí vel ameaça à integridade coesão e sobrevivência do organismo e a escolha ou decisão do método para enfrentála resultando então numa dada resposta Fatores constitucionais e as primeiras experiências de vida constituindo a estrutura da personalidade do indivíduo representariam o núcleo desse sistema de avaliação a que se acrescentariam as normas e os valo res introjetados e as circunstâncias atuais e passadas Tais modelos se coadunam com o de Selye para quem o estresse se constitui numa tensão entre um agente que ameaça o organismo e a resistência a ele oferecida por esse organismo Diz que o objetivo des se estado é em última análise adaptarse à situação buscando fazêlo através da delimitação das reações à Psicossomaticaindd 322 Psicossomaticaindd 322 05012010 121215 05012010 121215 Psicossomática hoje 323 menor área suscetível de corresponder às necessidades da situação e da redução do quantum de energia des pendida Diz ainda que a preferência de um agente estressante por um determinado órgão ou tecido e a intensidade de sua resposta parece ser determinada por fatores condicionantes internos e externos As sim Selye 1965 se expressa textualmente Os fatores condicionantes internos são aqueles que se tornaram parte do corpo A hereditariedade e as expe riências pregressas deixam certos traços certas lembranças tissulares que influenciam nosso tipo de reação aos fatos E mais adiante por outro lado tudo quando age sobre nós a partir de fora pode também influenciar nossa resposta a um agente simultaneamente ativo mesmo que ele não cau se lesão permanente ao corpo A dieta que fazemos e o clima em que vivemos são fatores condicionantes ex ternos p 110 Em outro trecho Selye aduz a participação do sistema nervoso central no processo de avaliação dos agentes estressantes ao mesmo tempo em que faz re ferência a interligações do SNC com os diversos órgãos e tecidos Diz ele que tais interligações podem influen ciar a seletividade da resposta em vários pontos E afir ma É essa possibilidade de condicionamento seletivo que explica a razão por que todas as pessoas reagem diversamente ao estresse dependendo de característi cas herdadas e adquiridas p 131132 Simplificadamente assim poderíamos esque matizar o processo de avaliação Desse modo podemos então compreender que face às mesmas situações os indivíduos reagirão de forma diferente conforme seu modo peculiar de avaliar as situações o que por sua vez estará na dependência direta da história e circunstâncias de suas vidas o que é estressante para um pode não ser para outro Da mesma forma ocorre em relação ao tipo de resposta ou meio de enfrentamento adotado por cada indivíduo mesmo quando avaliam de forma idêntica uma dada situação O modo de enfrentar a situação é peculiar particular a esse indivíduo con forme sua história e circunstâncias Segundo Averill Opton e Lazarus 1971 as es tratégias de enfrentamento se resumiriam em mecanis mos de respostas do ego quando nenhuma ação direta fosse possível tendência à ação direta ou impulsos para luta ou fuga e enfrentamento sem afeto quando a avaliação da situação fosse não ameaçante Outros autores têmse preocupado com as estra tégias básicas de enfrentamento classificandoas ou abordandoas de diversas formas Felton 1984 Jalo wiec e Powers 1981 Light 1981 Melville 1981 Jalowiec e Powers elaboraram uma lista de es tratégias de enfrentamento dentre as quais destaca mos algumas 1 Olhar o problema objetivamente 2 Buscar diferentes alternativas para enfrentar a si tuação 3 Falar sobre o problema 4 Ter esperança que a coisa melhore 5 Procurar apoio com familiares e amigos 6 Agitarse fisicamente 7 Fumar beber usar drogas 8 Comer dormir 9 Adoecer fisicamente 10 Gritar agredir 11 Meditar relaxar 12 Isolarse ficar só 13 Esquecer o problema 14 Resignarse 15 Sonhar fantasiar sobre o problema 16 Rezar 17 Ficar nervoso 18 Prepararse para o pior 19 Deprimirse 20 Dedicarse ao trabalho A opção por esta ou aquela forma de enfren tamento depende como dissemos de predisposições constitucionais das primeiras experiências de vida de normas e valores introjetados e de circunstâncias atuais e passadas Situação Input Resposta Output Avaliação Percepção Enfrentamento Decisão Processamento FIGURA 231 Situação Resposta Predisposição constitucional Primeiras experiências de vida Normas e valores introjetados Circunstâncias atuais e passadas Estímulo ou situação Resposta Sistema de avaliação e enfrentamento Sistema nervoso central FIGURA 232 Sistema nervoso central no processo de avaliação dos agentes estressantes Psicossomaticaindd 323 Psicossomaticaindd 323 05012010 121215 05012010 121215 324 Mello Filho Burd e cols Se adotarmos pois os estudos de Selye como básicos para a compreensão biológica da somatiza ção acrescendolhes os estudos de Lazarus podería mos sinteticamente dizer que tal processo depende 1 Da natureza e intensidade do agente estressante 2 De uma avaliação interna do indivíduo que quan tifique e qualifique esse agente 3 De uma decisão interna quanto ao tipo de res posta a ser oferecida ou modo de enfrentar o agente estressante É nesse sentido que a vida intrapsíquica ganha importância na compreensão do fenômeno da soma tização Não é suficiente a equação agente estres santeestresseresposta inclusive somática Isso é até certo ponto verdadeiro quando vivenciamos uma quantidade grande de estímulos estressantes e a eles reagimos fisicamente bem de acordo com o que de monstra Selye Mas na grande maioria das vezes o problema é mais complexo pois trazemos dentro de nós o registro de experiências passadas que nos leva a avaliar as situações de modo peculiar e de um modo também peculiar a enfrentálas As estratégias corporais ou somáticas são as mais primitivas pois são as que se apresentam dis poníveis ao indivíduo nos seus primeiros momentos de vida Com o surgimento da vida mental através da possibilidade que adquire a criança de representar psiquicamente os objetos podendo sobre eles pensar imaginar fantasiar ou desejar instaurase um segun do nível de estratégia de enfrentamento as cogni tivas ou mentais que vão evoluindo para o pleno desenvolvimento da capacidade de abstrair e racioci nar logicamente propiciando ao indivíduo alcançar o terceiro e mais maduro nível de estratégias que chamaríamos de reflexivo Diríamos então que a forma mais elaborada de enfrentamento é a de podermos encarar a situação conscientemente e objetivamente poder sobre ela falar discutir refletir aceitandoa ou superandoa conforme suas características e os recursos à nossa disposição Quando isso não é possível seja porque o problema não é consciente seja porque não está po dendo ser pensando ou falado seja porque faltem re cursos disponíveis a tendência será a de lançar mão de outras formas de enfrentamento Mentais fantasiar racionalizar negar rezar Emocionais deprimirse agredir culpar ou cul parse chorar gritar Atitudinais isolarse exibirse brincar arriscarse Aditivas comer beber transar fumar traba lhar excessivamente Somáticas adoecer Na verdade aprendemos a lidar com as primei ras situações estressantes usando o próprio corpo pois não dispúnhamos de outros recursos e assim continuamos a fazer posteriormente sempre que por qualquer razão os outros meios de comunicação e defesa falhem A criança muito pequena detém uma capacida de muito limitada de comunicação e enfrentamento Por não falar não andar e não raciocinar ela depende quase que totalmente de alguém que cuide dela É através da mãe ou de quem exerça essa função que a criança sobrevive Por isso ela necessita de um ín timo e intenso contato com a mãe Tal como se fosse parte dela mesma E o meio biológico que a criança dispõe para se comunicar com sua mãe é o próprio corpo As respostas que a criança obtém se fazem sen tir no seu corpo através dos cuidados que a mãe lhe oferece Certamente tais experiências vão sendo re gistradas no aparelho psíquico da criança de acordo com o modo como suas necessidades foram captadas e atendidas Quando a mãe consegue captar e atender às necessidades da criança de modo pronto e adequa do o registro dessa experiência se fará cercado de to nalidade afetiva agradável e tranquilizadora Quando tal não ocorre quando um desencontro se instaura na captação comunicação ou no atendimento en frentamento de uma necessidade a criança se senti rá ameaçada seu sentimento de continuidade e até de existência fica em risco Sobrevém uma angústia a angústia de aniquilamento difícil de ser absor vida pela via psíquica constituindose portanto em ameaça biológica como diz Joyce McDougall 1983 e a criança recorrerá ao próprio corpo para expressá la e de algum modo enfrentála A angústia primitiva vivida de maneira onipo tente e alucinatória só pode ser expressada corpo ralmente As primeiras percepções da criança não têm ainda um registro psíquico superior simboli zação que lhe permita ter uma certa distância dos fatos Quem lida com psicóticos pode ter uma noção do que de um certo modo ocorre com a criança pe quena face às angústias tão primitivas O estado de desintegração desses pacientes gera enorme ansieda de e sensação de estranheza Os pensamentos ficam desconectados e ampliados e são sentidos como reais o que gera pavor ante a possibilidade vivência de se concretizarem Além disso o indivíduo fica extrema mente inquieto perde o sono e o apetite anda para um lado e para o outro fuma desesperadamente Tais reações físicas ou mentais são todavia os meios que a criança encontra para enfrentar a situa ção angustiante Através delas manterá a percepção de continuar viva de continuar existindo Por isso passará a sofisticálas organizálas estruturá las para lidar com as novas situações que surjam Psicossomaticaindd 324 Psicossomaticaindd 324 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 325 O que destacamos como essencial destas obser vações é o fato de que a mãe deixa de ser a supridora das necessidades da criança que passa a utilizar seu corpo concreto e alucinado para se bastar E aqui lo que vem do ambiente inclusive a própria mãe o seio o embalo para dormir a chupeta e o travesseiro são apenas formas de preencher tais necessidades e parecem fazer parte da própria criança Em outros termos a falta de um registro afetivo tranquilizador impede que a criança se individualize sintase íntegra coesa e autônoma tornandoa de pendente de pessoas ou coisas que a façam ter a sen sação de continuar viva mesmo que para isso tenha que alucinar ou somatizar A relação simbiótica que mantém com outras pessoas a utilização compulsiva de sintomas físicos o uso excessivo de cigarros bebidas tóxicos ativida des sexuais trabalho e diversão parecem todos ter o mesmo significado um meio de se comunicar e de se defender ante angústias inimagináveis de desinte gração ou aniquilamento É a incessante busca de si mesmo nunca completada mas sempre ansiada face ao perigo de se perder completamente Retomando a ideia inicial a expressão corpo ral constitui o primeiro o mais primitivo meio de comunicação e de defesa de que o ser humano dis põe É natural portanto que continue a utilizálo no decorrer da vida sobretudo nos momentos em que outras formas de comunicação e de defesa estejam bloqueadas ou não tenham sido aprendidas O uso constante da expressão corporal somatização pare ce depender de alguma predisposição constitucional a reagir somaticamente por certo associada ao grau de investimento afetivo oferecido pela mãe ante as reações físicas da criança só reagindo fisicamente a criança obtinha a atenção da mãe ou a própria mãe se comportava somaticamente como meio de contro lar a criança estimulandoa por identificação a agir da mesma maneira O que nos compete tanto quanto à mãe que cui da da criança é estarmos atentos à mensagem que essa expressão corporal veicula a fim de atendêla ou traduzila da maneira mais pronta e adequa da possível Obviamente nossa tarefa será mais ou menos dificultada pelo nível de estruturação que tal forma de expressão e de defesa alcançou no indi víduo Em algumas ocasiões a somatização parece de pender do excesso de estímulos ambientais estressan tes superando a capacidade de o indivíduo absorvê los psiquicamente pensando falando ou tomando atitudes O agente causal nesses casos está fora do indivíduo De qualquer modo naqueles com es trutura psicossomática a forma corporal de reagir se fará sempre de maneira mais intensa e frequente MECANISMOS DE SOMATIZAÇÃO A questão que se coloca é por que uma mani festação psíquica tornase corporal Talvez esteja aqui o cerne da medicina psicossomática O tema é desafiante porque ao mesmo tempo em que nos parecem claras as influências psíquicas sobre o cor po por outro são extremamente complexos os seus mecanismos A começar pela terminologia mais apro priada devemos usar o mesmo termo para sintomas corporais sem substrato orgânico e para alterações corporais provocadas por mecanismos psíquicos por vezes chamados distúrbios psicofisiológicos Optaremos por utilizar o mesmo termo somati zação para descrever toda e qualquer manifestação corporal provocada diretamente por fatores psíqui cos tenham ou não substrato orgânico São exemplos a dor epigástrica decorrente de uma gastrite desen cadeada por situação geradora de muita tensão e a mesma dor epigástrica para a qual não se encontre qualquer anormalidade fisiológica Ou seja as ma nifestações somáticas nem sempre configuram um quadro clínico ou diagnóstico propriamente dito fi cando no rol dos sinais ou sintomas dor dormência náusea tontura falta de ar palpitação etc Outras vezes enquadramse em diagnósticos mais definidos como asma brônquica hipertensão arterial neuro dermatite retocolite ulcerativa úlcera péptica etc Tentaremos na medida do possível descrever alguns dos principais mecanismos da somatização embora eles possam estar interligados Abordaremos os seguintes Estados emocionais incluída a depressão e rea ção ao estresse Fenômeno psicossomático ou meio primitivo de comunicação e enfrentamento Histeria Hipocondria e Identificação Comentaremos por fim algumas alterações comportamentais que trazem indiretamente con sequências físicas tal como ocorre na síndrome da desistência nos comportamentos chamados aditivos aqui incluída a personalidade tipo A e no apego a determinadas crenças ou influências culturais aqui incluída a morte vodu Estados emocionais e reação ao estresse As considerações que fizemos até aqui sobre a resposta emocional como resultante de um proces so de avaliação e enfrentamento que visa a adaptar o indivíduo ao ambiente em que vive permitemnos Psicossomaticaindd 325 Psicossomaticaindd 325 05012010 121216 05012010 121216 326 Mello Filho Burd e cols tentar uma síntese que torne mais clara a forma como entendemos essa somatização Em primeiro lugar e partindo da observação de animais constatamos neles a existência de um comportamento emocio nal que serve não só para sinalizar o tipo de reação através do rosnar eriçar os pelos balançar o rabo mas para efetivamente agir com um determinado objetivo comer lutar fugir copular Evidenciamos então a presença de dois componentes básicos do processo emocional o expressivo ou sinalizador e o comportamental ou de enfrentamento O conjun to de reações que caracteriza tal processo é essen cialmente psicossomático por envolver sensações e ações fisiológicas ou somáticas e atitudinais ou comportamentais As manifestações fisiológicas ou somáticas somatizações desse processo são portan to uma forma de falar componente expressivo e de agir componente de enfrentamento Quanto menos os mecanismos mentais ou cognitivos de falar e agir estiverem funcionando tanto mais o somático será utilizado Destaquese dentre as reações emocionais aquela descrita por Selye como estado de estresse ou síndrome geral de adaptação que se constitui num conjunto de reações psíquicas fisiológicas e compor tamentais ante qualquer agente que ameace a integri dade do indivíduo Podemos chamála de síndrome ansiosa na medida em que ela se desencadeia cada vez que o organismo se vê sob tensão Ocorre des carga adrenérgica com liberação de catecolaminas e corticosteroides que predispõe o organismo ao en frentamento A reação é inicialmente difusa na fase de alarme tornandose em seguida limitada à me nor área e ao menor dispêndio de energia possível na fase da resistência para finalmente tornarse outra vez difusa na fase de exaustão Podemos então afirmar que se a ansiedade é um estado de tensão interna ante algo que ameaça o indivíduo o estado de estresse é um estado de ansie dade ou uma síndrome ansiosa na medida em que além da sensação subjetiva de ansiedade ocorre uma série de reações de natureza fisiológica e comporta mental Neste caso de reação ao estresse o montante de situações estressantes será fator relevante Quanto maior a quantidade e intensidade dos agentes estres santes maior será a possibilidade de o indivíduo res ponder somaticamente Outro estado emocional habitualmente rico em manifestações somáticas é a depressão Seja ela uma reação depressiva face a situações de perda ou fracasso seja a depressão propriamente dita en quanto doença psiquiátrica frequentemente vem acompanhada de manifestações físicas como anore xia insônia emagrecimento cansaço dores etc Fenômeno psicossomático Estudos têm demonstrado Mahler 1977 Win nicott 1978 1982 1997 1999 Balint 1993 Bowlby 1984 que os primeiros relacionamentos do bebê com o ambiente à sua volta e primordialmente com a pes soa que diretamente cuida dela a função mãe são fundamentais para o desenvolvimento da sua perso nalidade e dos modos como avaliará e enfrentará as situações no decorrer da vida Winnicott chama de holding ao conjunto de cui dados que o ambiente sobretudo representado pela mãe oferece ao bebê nos primórdios do seu desen volvimento e que será o responsável pela estrutura ção do self ou núcleo da personalidade Esse cuidar para ser adequado deve ser amoroso e empático Segundo Winnicott um bom holding propiciará à criança um sentimento básico de confiança inicial mente depositado de maneira absoluta na mãe que posteriormente se transformará em autoconfiança permitindolhe aceitar os limites do mundo e acredi tar na possibilidade de enfrentálos Havendo falhas significativas nesse relacionamento a criança não se sente apoiada cuidada protegida e passa a lançar mão do próprio corpo para lidar com o ambiente De certo modo é como se a criança voltasse a reagir primitivamente somaticamente a qualquer situação ameaçante Ela aprende a usar o corpo como meio de comunicação e de defesa Esse parece ser o mecanismo básico do chamado fenômeno psicossomático que difere da conversão por não ter sentido simbólico ou metafórico Dizse que é um meio de comunicação mas como se fosse um grito um apelo um gesto que busca um interlo cutor Por ser um modo primitivo emocional de se comportar a reação somática é vivida pelo indiví duo como forma de lidar com o ambiente naquele momento percebido como hostil ou ameaçante Acreditamos com base na experiência clínica que grande parte das manifestações somáticas te nham como um dos seus componentes básicos essa forma primitiva de expressão e de defesa O indiví duo fala com o corpo e com ele se defende Com o corpo ele obtém atenção e cuidados com o corpo ele exprime seus desejos e fantasias com o corpo ele enfrenta as situações estressantes e provavelmente com o corpo também ele se recrimina ele também se culpa A utilização do corpo como meio de punição merece um destaque especial por sua característica dinâmica O caráter punitivo ou sofredor da mani festação somática na verdade obedeceria à lógica de lidar com as situações ambientais ou os próprios conflitos do indivíduo Seria um meio de comunica ção e enfrentamento Tal mecanismo parece frequen Psicossomaticaindd 326 Psicossomaticaindd 326 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 327 te na prática clínica sobretudo em pacientes polio perados ou politraumatizados Também em pacientes crônicos portadores de diabetes mellitus doença pulmonar obstrutiva crônica hipertensão arterial úlceras varicosas muitas vezes fica evidente a con duta mórbida autodestruidora desses pacientes Não estamos generalizando e afirmando que todos os por tadores dessas afecções exibam tal comportamento Mas as frequentes iatrogenias praticadas sobre esses pacientes e os seus frequentes deslizes em relação aos cuidados terapêuticos que deveriam tomar apon tam para uma forma inconsciente de perpetuar a do ença como forma de manter o autoflagelo Hipocondria e Identificação A hipocondria é caracterizada pela cronicidade e fixidez das queixas somáticas do paciente e pela sua inabalável convicção de que existe uma doença de natureza orgânica Usdin 1981 Embora seu meca nismo permaneça controverso destacamse todavia três aspectos pregnantes nesses pacientes a atenção excessiva dada ao corpo a sensação de ter algo ruim dentro de si e a quase absoluta intransponibilidade quanto à crença na doença orgânica Referimonos aos quadros clássicos de hipocondria já que graus discretos são frequentes na prática médica Todos nós de algum modo tivemos ou temos momentos de hipocondria Um dos possíveis mecanismos da hipocondria é o da identificação Identificarse é sentirse como o outro É tornar seu algo que é do outro Assim sentir se doente pode ser uma forma de identificarse com alguém que está ou esteve doente A esse respeito diz Julio de Mello Filho 1979 Os modelos oferecidos à criança têm grande importân cia pois se são inadequados propiciam identificações incompatíveis com o desenvolvimento emocional har mônico ditas patológicas Estas identificações patoló gicas explicam muitos traços neuróticos do caráter e podem gerar sintomas somáticos no processo de mime tizar sofrimentos e enfermidades dos modelospadrão que foram significativos Assim por exemplo uma dismenorreia pode ser consequência da identificação de uma adolescente com a mãe que apresentou este quadro por muitos anos e influenciou intimamente a filha a este respeito Ao mesmo tempo as identificações são processos importantíssimos na dinâmica das pato logias familiares como também em estados histéricos e hipocondríacos A identificação pode se fazer com um órgão doente ou com todo um ser doente mental ou fisicamente p 36 O mecanismo da identificação parecenos pois estar presente na hipocondria e ser semelhante ao da crença Definese crença como o ato pelo qual o cére bro aceita uma ideia como verdadeira Ao identificar se com alguém o indivíduo acredita ser como esse alguém É um processo primitivo de aprendizagem através do qual o indivíduo incorpora informações sem relutância Só depois ele consegue processar as informações apreendendoas de modo mais madu ro e assim podendo refletir abstrair questionar tais informações Ora o que observamos num indivíduo com manifestação hipocondríaca seja ela leve tran sitória intensa ou prolongada é a aceitação sem re lutância do fato de estar doente Ele crê efetivamente que está doente Isto acontece quando visitamos uma pessoa doente e saímos de lá com a mesma doença e acontece com o hipocondríaco propriamente dito que apesar de todas as provas em contrário conti nua se sentindo doente Num ou noutro caso pare cem estar ocorrendo identificações com alguém que está à nossa frente ou com alguém que está dentro de nós Acompanhamos um paciente hipocondríaco que nos foi encaminhado para terapia por um pneumo logista Este paciente sentiase frequentemente com falta de ar e já fizera uma série de exames inclusive radiografias broncoscopias e provas funcionais respi ratórias nada sendo encontrado de anormal Disse nos na entrevista inicial que sua falta de ar surgira dois dias após o resultado de uma coronariografia a que se submetera devido a uma dor precordial que não o abandonava Fizera uma série de eletrocardio gramas em repouso e com esforço ecocardiogramas e por fim como a dor não cessava apesar de nada anormal estar sendo encontrado digase que o pa ciente tem 32 anos de idade seus médicos optaram pela coronariografia Com o resultado normal deste exame sua dor precordial cessou como por encanto mas dois dias depois surgiu a falta de ar O pacien te era de boa formação intelectual dizianos saber racionalmente que sua dor não era orgânica mas ao mesmo tempo não conseguia acreditar nisso Por mais de uma vez perguntounos se não haveria possi bilidade de ter alguma microlesão que justificasse sua falta de ar e escapasse aos exames habituais Pesqui sando sua história prévia deparamonos com seu pai que vivia se queixando de estar doente e frequente mente passava mal Histeria Por fim duas palavras sobre a conversão Se o hipocondríaco sente estar doente o histérico expressa a doença Ele desmaia paralisa cega Arma sem pre uma cena à sua volta Exibe seu sintoma Pare ce ter uma ação mais expressiva E na verdade seus Psicossomaticaindd 327 Psicossomaticaindd 327 05012010 121216 05012010 121216 328 Mello Filho Burd e cols sintomas expressam algo falam de seus conflitos re primidos É uma forma simbólica de falar que utiliza o corpo como meio de comunicação Distinguese da forma primitiva inespecífica de expressão que alu dimos anteriormente Tratase de uma comunicação específica com uma representação simbólica defini da de um impulso que foi reprimido ao contrário da forma primitiva que fala mais de uma ameaça à pró pria existência de uma agressão narcísica ao self Comportamento e manifestações somáticas Finalmente teceremos algumas considerações sobre determinadas alterações comportamentais que trazem indiretamente consequências físicas Síndrome da desistência Um tipo de situação que destacamos capaz de gerar ou agravar doenças físicas é a chamada síndro me da desistência descrita por vários autores como Schmale e Engel 1972 e que parece representar um estado de espírito em que o indivíduo parece desistir de viver permitindo então que a doença o acometa Situações de perda familiar perda de status ou outras que deem ao indivíduo a sensação de não ter saída parecem estar na base desse estado Poderíamos aqui incluir outro tipo de situação frequentemente encontrada mas poucas vezes valo rizada na prática clínica que é o sentimento de des valia ou de baixa autoestima Na nossa experiência tal sentimento constitui um dos principais motivos da não adesão aos tratamentos prescritos o que contri bui indiretamente para a manutenção da doença Comportamentos aditivos Certos procedimentos como comer beber fu mar usar drogas manter atividade sexual ou ati vidade física de uma forma aditiva podem ser usa dos como recursos intermediários entre o corpo enquanto reações fisiológicas e o pensar e exer ceriam segundo Winnicott o papel de objetos transicionais substituindo a funçãomãe seriam os equivalentes da chupeta mamadeira atividades autoestimuladoras da criança etc Tais comporta mentos favorecem a emergência de doenças físicas ou mentais e constituem verdadeiros obstáculos ao seu tratamento Incluímos como comportamento aditivo aque le dos indivíduos descritos como portadores de perso nalidade tipo A indivíduos apressados competitivos sequiosos de sucesso e com dificuldade de revelar fraquezas e que seriam mais propensos a desen volver coronariopatia Tais indivíduos geralmente se dedicam de forma excessiva ou aditiva ao trabalho Helman 1994 Apego a determinadas crenças ou influências culturais Um exemplo marcante de influência cultural na gênese de manifestações somáticas é a chamada morte vodu descrita por Benson 1980 O vodu é um conjunto de costumes religiosos que devem ter se originado na África como uma forma de culto dos antepassados Tem sido muitas vezes cha mado de magia negra ou feitiçaria e é caracterizado por rituais que apaziguam os deuses As pessoas que praticam o vodu frequentemente acreditam nos tran ses como uma forma de se comunicar com os deuses Geralmente estas divindades são consideradas espí ritos desencarnados de indivíduos espíritos estes que exercem influências benéficas ou maléficas O vodu é praticado principalmente entre as populações nativas da África Haiti América do Sul e Índias Ocidentais enquanto que um conjunto de crenças semelhantes é encontrado na Austrália Nova Zelândia e várias ilhas do Pacífico Entre as tribos aborígenes australianas os médicos feiticeiros praticavam o ritual de apontar o osso por meio do qual um encanto mágico era jogado no espírito da vítima Tais encantos tinham como objetivo pertur bar o espírito da vítima a ponto de provocar doença e morte Já foram comprovados inúmeros relatos de mor te atribuídas ao vodu p 2728 Segundo Benson o êxito de tais rituais depende tanto do fato de a vítima estar cônscia do encanto mágico como do fato de a vítima ser de uma lealda de fortíssima em relação aos sistemas de crenças da sociedade a que pertence O mesmo autor inclui a síndrome da desistência como um dos equivalentes modernos da morte vodu e descreve vários casos Certamente podemos lembrar aqui inúmeras situações ligadas a crenças e superstições capazes de ocasionar sintomas físicos como por exemplo a crença de que a mulher menstruada não deve lavar a cabeça Minayo 1994 A escolha somática parece pois depender de uma série de fatores ou mecanismos desde os mais somáticos aos mais psíquicos Na prática mui tas vezes eles estão superpostos O importante será sempre questionar de que fala este sintoma Estará sendo usado como meio de defesa ou enfrentamen to De qual situação E caberia perguntar por que o coração Psicossomaticaindd 328 Psicossomaticaindd 328 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 329 A PREFERÊNCIA PELO CORAÇÃO Se levarmos em conta os vários mecanismos que geram somatizações ou que indiretamente pro vocam manifestações somáticas podemos procurar compreender a opção pelo coração Em primeiro lugar há que se considerar a participação do sistema cardiovascular nas situações de estresse Tal sistema é fundamental à manutenção do equilíbrio homeos tático do organismo A ele compete manter uma per fusão tecidual adequada às necessidades orgânicas estando por isso a todo momento sujeito às influên cias internas e externas aumentando diminuindo ou redistribuindo o fluxo conforme as circunstâncias Por tudo isto deduzse a profunda sensibilidade do siste ma cardiovascular a qualquer agente que possa pôr em risco a integridade do organismo ou seu equilí brio homeostático Quanto mais duradoura e intensa for a ação dos agentes estressantes mais significati va será a repercussão sobre o sistema cardiovascular Salientese que a existência de defeitos constitucio nais na estrutura desse sistema certamente o tornará mais vulnerável à ação do estresse Este fato parece ficar claro em relação à predisposição constitucional constatada em alguns hipertensos e coronarianos Se considerarmos que desde os primórdios do desenvol vimento a criança vivenciou situações de estresse e que em determinadas circunstâncias aprendeu a reagir somaticamente face às discrepâncias na rela ção mãecriança será razoável supor que em sua vida atual e na falta de outros meios mais eficazes de enfrentamento volte a lançar mão desse recurso Como meio primitivo de comunicação e enfren tamento o coração como aliás qualquer outro ór gão poderá ser usado para obter atenção ou como forma de se autoaplicar punição Neste caso quei xas funcionais ou mesmo distúrbios orgânicos oca sionados por outros fatores poderão estar a servi ço dessas causas Queremos dizer que a existência de hipertensão arterial coronariopatia ou arritmias mesmo causadas por agentes orgânicos podem es tar sendo aproveitadas para a sinalização eou en frentamento de angústias ou conflitos emocionais Ressaltese que as queixas não são intencionais ou deliberadas fingidas ou inventadas pois os me canismos descritos ocorrem de modo inconsciente Tal fato no caso de autopunição seria denuncia do pelo comportamento do indivíduo ante a doença frequentemente marcado por descuidos ou transgres sões no cumprimento das prescrições terapêuticas e por provocações a iatrogenias sobre ele praticadas pela equipe de saúde ou por seus familiares No caso de obter atenção a intensificação das queixas e uma certa dramatização acerca da doença são os indícios dessa intenção Ainda com relação à somatização como oriunda das fases mais primitivas do desenvolvimento pode mos aventar a possibilidade de um reforçamento ou investimento afetivo da mãe face a manifestações cardíacas ocorridas àquela época Tal fato ocorreria por exemplo com a existência de sopros cardíacos funcionais na infância que teriam gerado na mãe um comportamento de preocupação e expectativa e pos teriormente a atenção excessiva do indivíduo volta da para seu coração A identificação é outro dos mecanismos gerado res de somatização que podem repercutir no coração principalmente em se tratando de reações hipocon dríacas leves ou graves e que assumem maiores proporções face à importância do coração na manu tenção da vida do indivíduo Basta saber que alguém morreu e logo o hipocondríaco sente dor precordial Se ocorre doença cardíaca em algum parente signi ficativo a probabilidade de queixas hipocondríacas voltadas para o coração é grande A possibilidade de manifestações de caráter simbólico através do coração é grande face ao valor a ele atribuído como fonte de vida e sede das emoções Quer se trate de impulsos agressivos ou sexuais o co ração poderá ser a forma de o indivíduo fazer chegar à superfície tais impulsos se eles foram num dado momento reprimidos Mais dramática é a situação quando se trata da síndrome da desistência Neste caso o paciente pare ce não responder ao tratamento Os procedimentos adotados não encontram eco Não há resposta aos esforços terapêuticos Acompanhamos no decorrer da nossa experiência clínica alguns hipertensos e co ronarianos com esse quadro que evoluíram para o óbito Ainda com relação a comprometimentos secun dários poderíamos argumentar sobre os chamados comportamentos aditivos como beber fumar traba lhar excessivamente Tais comportamentos estariam a serviço de necessidades psicológicas ocorridas pela primeira vez quando do desenvolvimento do indi víduo e atualizadas ou revividas face a situações atuais da vida desse indivíduo Secundariamente eles acabariam comprometendo o coração seja pela ingestão excessiva de sal e de gordura seja pela ina lação da nicotina e do monóxido de carbono do cigar ro seja pelo abuso de álcool seja ainda pelo estresse gerado a partir do trabalho excessivo Tudo isso nos leva a afirmar quão difícil se torna às vezes ou muitas vezes afiançar qual desses me canismos estará presente num dado paciente Acre ditamos inclusive que provavelmente vários deles estarão presentes Mas é difícil deixar de considerar como fatores geradores do sintoma ou da doença ou mesmo como fatores de obstaculização ao seu trata Psicossomaticaindd 329 Psicossomaticaindd 329 05012010 121216 05012010 121216 330 Mello Filho Burd e cols mento os mecanismos psíquicos Claro está que da mesma forma é difícil afastar a hipótese de alguma hipersensibilidade ou fragilidade constitucional quan do estamos diante de alterações como a hipertensão arterial e a aterosclerose Como também havemos de considerar os fatores ambientais ou sociais ligados à alimentação ao fumo e ao álcool Não obstante a energização ou potencialização de todos esses fatores constitucionais e ambientais parece passar pelo componente psíquico seja como fonte de ava liações estressantes processadas pelo sistema nervoso central seja através da participação do sistema car diovascular na resposta ao estresse seja pelo esti mulo àqueles procedimentos aditivos que levam o indivíduo a comer demais beber e fumar demais trabalhar demais E se considerarmos os distúrbios funcionais extremamente frequentes na prática car diológica aí então os mecanismos psíquicos crescem de importância como fatores primários geradores da queixa somática que o paciente nos apresenta O PACIENTE FUNCIONAL Chamamos aqui de paciente funcional àquele que procura o cardiologista com alguma queixa re ferida ou atribuída ao coração Queixas como palpi tação falta de ar dor no peito tonteiras desmaios dentre outras Queixas essas que podem ser intensas ou leves súbitas ou constantes passageiras ou de moradas mas que não encontram qualquer substrato orgânico que as justifique Certamente tais pacientes representam cerca de 13 a 23 daqueles que demandam aos ambula tórios e serviços de emergência Lazzaro 2004 É um número muito grande para ficarem enquadrados tão somente na categoria dos que não têm nada Como não têm nada Têm algo que não estão con seguindo expressar a não ser somaticamente Algo que não chega a causar danos orgânicos mas que nem por isso deixa de ter sentido ou importância É claro que não está correndo risco de vida e daí talvez a tentativa do médico em tranquilizálos com a afirmação você não tem nada Se o distúrbio for de pouca intensidade súbito e passageiro a afirmação de que nada de maior está ocorrendo provavelmente será suficiente O que sucede na prática no entanto não é bem assim Essas queixas tendem a se repetir a se perpetuarem Muitas vezes são de grande inten sidade o que mobiliza muito os pacientes e os mé dicos A resposta habitual do médico será a de pedir exames exames e exames Será também a de receitar remédios tranquilizantes ou de ação específica sobre o aparelho cardiovascular O diagnóstico permanece o de você não tem nada ou passa a ser o de pro blema cardíaco ou isso é emocional Se houver alguma manifestação mais objetiva como taquicar dia ou extrasitolia alguma alteração inespecífica do eletrocardiograma ou do raio X a tendência será a de problema cardíaco Caso nenhuma manifestação objetiva apareça a tendência será a da causa emo cional Em ambos os casos a medicação costuma ser a mesma tranquilizantes medicamento de ação es pecífica sobre o aparelho cardiovascular Procedemos muitas vezes assim em nossa prá tica cardiológica até que inquietados pela afirmação você não tem nada começamos a nos perguntar não tem nada E passamos a colocar para os pacien tes você não tem nada de orgânico nada de cardía co propriamente dito mas você está sentindo e deve haver alguma razão para isso Habitualmente o pa ciente começava a falar de sua vida e particularmen te de alguma situação embaraçosa Percebíamos en tão que alguma coisa havia e que a queixa física era a maneira que o indivíduo estava encontrando para fa lar dela Em muitas ocasiões pudemos então reduzir a demanda de exames e de remédios com a simples abordagem do problema que angustiava o paciente Sobretudo aprendemos que era importante não ali mentar aquela queixa ao mesmo tempo em que se fazia fundamental acolhêla traduzila clarificála ou demarcála Ou seja perceber qual mecanismo de somatização estaria presente na queixa do paciente e qual o seu significado Se a queixa era hipocondríaca frequentemente vinha a afirmação meu pai morreu do coração ou fui antes visitar um parente que está doente do coração Se a queixa era uma reação ao estresse vinha o relato do fato estressante Se era um modo de punir ou de obter atenção enfim se havia algo gerando aquele sintoma essa causa muitas ve zes se tornava clara e o paciente conseguia estabele cer um nexo entre eles É importante frisar que em nenhum momento descurávamos da necessidade de uma anamnese e um exame físico bem feito e até mesmo de exames complementares se eram oportunos O procedimento atento minucioso e competente por parte do médico é de fundamental importância para estabelecer um sentimento de segurança de confiança no paciente E é o que permite resistir à repetição enfadonha de exames ou à prescrição continuada de remédios que são para esses pacientes meramente paliativos Ouvir o paciente não só sobre sua queixa físi ca mas sobre sua pessoa sua vida suas angústias é um instrumento diagnóstico e terapêutico poderoso É um terceiro ouvido como diz Grinberg 1985 É como usar um outro estetoscópio E funciona melhor que as drogas ou que os exames repetidos Funcio na melhor porque não agride o organismo Funciona melhor porque atinge trata a causa dos sintomas Psicossomaticaindd 330 Psicossomaticaindd 330 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 331 Basta para isso que o médico esteja sensível e dispos to a entrar nessa seara É claro que estamos generalizando e nos refe rindo às situações mais frequentes Eventualmente ocorrem casos de pacientes cuja problemática emo cional é mais complexa e que não melhoram Ou ca sos em que o acesso ao emocional é mais difícil por parte dos próprios pacientes que geralmente o ne gam No primeiro caso se a relação médicopaciente foi vincada em termos de segurança e confiança o médico consegue êxito parcial reduzindo a demanda de exames e remédios e consegue encaminhar o pa ciente para um tratamento psicoterápico sem se des vencilhar dele No segundo caso e aqui se incluem os hipocondríacos graves que acreditam piamente ter um problema orgânico a solicitação do pacien te por procedimentos físicos é mais intensa o que obriga o médico a não desacreditando o sintoma não estruturar a doença Queremos dizer que o mé dico deve com paciência mas com firmeza esclare cer ao paciente sobre o mecanismo dos seus sintomas e limitar a solicitação de exames e a prescrição de remédios Não deverá contudo encaminhar tais pa cientes a qualquer tratamento psicoterápico sem que antes eles reconheçam o nexo emocional dos seus sintomas O perigo que corremos sempre que um pacien te nos traz uma queixa funcional é o de estrutu rarmos uma doença Este foi o termo utilizado por Balint 1975 nas suas brilhantes observações sobre a relação médicopaciente ao se referir à demanda física que nos oferece o paciente com sua queixa e à possibilidade de confirmarmos tal queixa com nosso procedimento Se pedirmos exames prescre vermos remédios muitas vezes específicos para dis túrbios cardiovasculares e atribuirmos algum rótulo diagnóstico estamos configurando para o paciente um problema qualquer de natureza orgânica que ele assume como responsável por seus sintomas es truturando desse modo sua doença Entendemos hoje que esse proceder tem sua ra zão no fato de que se o paciente usa a via somática como meio de expressão e de defesa é porque não está podendo utilizar outros meios Retirarlhe essa forma é em princípio algo que inconscientemente o assusta Por sua vez o médico ao deixar um pouco de lado a linguagem e o procedimento físico aban dona de um certo modo um caminho conhecido e envereda por um campo que não lhe é familiar Me lhor seria evitar o desconhecido Inconscientemente médico e paciente concordam Estabelecem pois um conluio como diz Balint no sentido de manter o encontro de ambos no terreno físico Os resultados imediatos obtidos com a conduta acima geralmente são satisfatórios O paciente me lhora e o médico se sente satisfeito O seguimento desse paciente não obstante revela o contrário As queixas retornam a necessidade de novos exames e novos remédios se acentua Receitas e pedidos são re petidos ou trocados e o ciclo vicioso se estabelece É neste momento que ocorrem os encaminhamentos a outros especialistas e eventualmente até a psicólo gos ou psiquiatras Mas sem que se tenha estabeleci da uma relação de confiança e de acolhimento entre médico e paciente este se sente incompreendido e rejeitado num certo sentido está sendo mesmo com o encaminhamento e frequentemente não consegue fazer vínculo com o especialista Por isso dissemos anteriormente que é fundamental que o médico ao encaminhar seu paciente a um psicoterapeuta não se desvencilhe dele e não o encaminhe sem antes esta belecer um vínculo de confiança e um nexo entre os sintomas físicos e sua vida emocional Aliás é curioso quando pensamos na maneira como nós médicos habitualmente lidamos com o emocional Parecemos reconhecer sua existência ao mesmo tempo que a negamos Dizemos ao pacien te que ele não tem nada negando o emocional mas prescrevemos tranquilizantes reconhecendo o emocional Dizemos que seu problema é emocional reconhecendoo mas prescrevemos medicamentos com ação orgânica negandoo Tal fato pareceria uma crítica e é num certo sentido mas é sobretu do uma observação uma constatação de uma atitude ambivalente que não é só do médico Também o pa ciente utiliza uma forma ambígua ou camuflada de se expressar Ele revela algo de maneira velada Ele fala por exemplo de uma dor interna ou subjetiva através de uma dor externa ou física Ele se queixa de falta de ar quando talvez lhe falte carinho Ora se o médico tem também dificuldade de contatar com o subjetivo afinal ele é uma pessoa humana cabelhe por outro lado procurar no exercício de sua profissão o aprimoramento técnico profissional que o habilite ao exercício de um diag nóstico mais etiológico e de uma terapêutica mais abrangente e mais específica Questionamos neste sentido o diagnóstico impreciso o uso inadequado de medicamentos de ação específica e sobretudo o uso indiscriminado de tranquilizantes que longe de resolver o problema do paciente apenas o poster ga dandolhe uma aparente sensação de bemestar Como dissemos no início deste trabalho a emoção exerce uma função sinalizadora Ela aponta para uma experiência vivida pelo indivíduo Chama sua aten ção para algo que está ocorrendo ou para ocorrer Mesmo a ansiedade que é uma sensação específica de perigo iminente e muitas vezes fantasiosa é um sinal de que algo não vai bem com aquele indivíduo Pode não se tratar de um perigo real mas tratase de Psicossomaticaindd 331 Psicossomaticaindd 331 05012010 121216 05012010 121216 332 Mello Filho Burd e cols um perigo vivido como real O uso de tranquilizante não vai desfazer a estrutura que gerou tal vivência Ela vai conti nuar agindo dinamicamente mantendo a necessidade de usar o tranquilizante como forma de atenuála E o tranquilizante acabará por se tornar um problema real face à necessidade de consumilo Mais sensato e apropriado será tentar identificar a causa da ansiedade usandoa como sinal e não como vilão Aliás é semelhante a desligarse o alarme de incêndio porque faz barulho ao invés de procurar o fogo do incêndio e aí combatêlo Poderseia argumentar que a ansiedade promo ve danos ao organismo Diríamos que na verdade o que provoca danos é a avaliação que o indivíduo faz da situação e que provoca um conjunto de reações da qual a ansiedade é apenas um sinal Se não atuarmos sobre o agente ameaçador eou sobre o sistema de avaliação do indivíduo não conseguiremos deter os efeitos desse agente ou dessa avaliação É evidente que em situações de intensa ansiedade ou em mo mentos que a mesma possa colocar em risco sua vida como num infarto agudo por exemplo a utilização do tranquilizante é útil e oportuna Referimonos ao uso abusivo generalizado a toda e qualquer situação de ansiedade O paciente que não tem nada merece ter um procedimento médico mais cuidadoso e mais compe tente Suas queixas têm uma razão de ser A iden tificação dessa razão é da competência do médico considerando que a queixa é física Resultados ime diatos de melhora não autorizam afirmar que o pro blema esteja resolvido O seguimento desses pacien tes habitualmente mostra que não está A utilização dos recursos diagnósticos e terapêuticos de maneira imprecisa e indiscriminada é muitas vezes procedi mento iatrogênico e como tal deve ser evitado A simples rotulação de problema emocional ou pro blema cardíaco não atinge o âmago do problema e contribui para a estruturação da doença A corre lação dos sintomas com suas causas habitualmente trazem melhoria consistente dos sintomas ao mesmo tempo em que propicia a redução do uso de exames e remédios potencialmente iatrogênicos Fazemos tal afirmação assentados no peso da experiência clínica cardiológica corroborada agora pela experiência psicoterapêutica com pacientes funcionais O CORONARIANO A doença coronariana é uma das mais comuns afecções do mundo moderno atingindo o primeiro lugar como causa de morte em vários paises inclusi ve no nosso As pesquisas têm demonstrado a multi fatoriedade da doença sendo grande a lista dos pos síveis fatores etiológicos ou fatores de risco Gus Fishmann e Medina 2002 Ciorlia e Godoy 2005 Alguns desses fatores são mais frequentemente refe ridos predisposição genética tabagismo hipertensão arterial elevação do colesterol sérico estresse vida sedentária obesidade diabetes mellitus A ordem de importância dos diversos agentes etiológicos da doença coronariana permanece im precisa Embora se admita com razoável evidência a participação de fatores constitucionais na gênese da doença nem sempre estão presentes Por outro lado é clara a necessidade de fatores ambientais para de sencadeála Mas se fica clara a influência de fatores ambientais mais difícil se torna determinar qual ou quais deles teria maior importância Estudos como o de Marins e Campos 1988 por exemplo enfati zam como principais fatores de risco a hipercoleste mia o tabagismo e a hipertensão arterial Segundo esses autores os três fatores associados elevam em oito vezes o risco da mesma Se considerarmos que alguns países como Es tados Unidos Japão Canadá Austrália e outros têm obtido redução dos índices de coronariopatia a partir de campanhas educacionais e programas de controle visando aos fatores referidos somos levados a con cluir que de fato colesterol pressão alta e cigarros aumentam sensivelmente o risco de doença corona riana Não obstante tais dados cerca de 50 segun do Eliot 1992 dos coronarianos não apresentam os clássicos fatores de risco Quais seriam os mecanis mos causadores da doença nesses pacientes Inúmeros estudos clínicos e experimentais têm correlacionado estresse à doença coronariana Loures et al 2002 Mesquita e Nóbrega 2005 Os possíveis mecanismos fisiopatológicos já foram discutidos no início deste capítulo A incidência de agentes estres santes envolvendo a sociedade moderna tem crescido em ritmo avassalador Vivemos a época da velocida de através de um fluxo cada vez maior de bens e de informações a serem consumidos em intervalos de tempo cada vez mais curtos A quantidade de es tresse é muito grande e uma das consequências seria o aumento da incidência de certas doenças dentre elas a coronariana Poderseia afirmar que a doença vem decaindo em alguns países apesar de o estresse continuar aumentando Poderíamos argumentar que a coronariopatia certamente é uma doença multifato rial engendrada pela soma de vários fatores e que o estresse seria um deles O combate intensivo a qual quer desses fatores trará resultados positivos e mais positivos serão os resultados quanto mais fatores pu derem ser atingidos Infelizmente a ação dos agentes estressantes e em consequência de todas as medidas destinadas ao seu combate é difícil de ser avaliada quantitati Psicossomaticaindd 332 Psicossomaticaindd 332 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 333 vamente o que não impede de sobre ela buscarmos alguma forma de compreensão e ação Assim é que os estudos sobre fatores psicossociais presentes na gêne se e evolução da doença coronária já atingem grande proporção e razoável confiabilidade A começar pela chamada personalidade tipo A descrita por Friedman e Rosenman 1959 e abordada em estudos como os de Freeman e Nixon 1987 BoothKewley e Friedman 1987 Reunanem e colaboradores 1987 e muitos outros Embora persistam algumas divergências quan to a determinadas características do tipo A um nú cleo dessa personalidade parece claro são indivíduos que procuram fazer mais e mais em menos tempo Am biciosos competitivos impacientes e que necessitam aparentar ser fortes Nos estudos que mostram corre lação da personalidade tipo A com a coronariopatia a competitividade a premência de tempo a necessidade de realizar mais e mais parecem agir de algum modo favorecendo a emergência da doença Poderíamos discutir se a personalidade tipo A é uma forma estrutural ou constitucional ou antes é um modo de ser aprendido ditado por circunstân cias e hábitos sociais De fato a época em que vi vemos é a era da velocidade e das mudanças Fazer mais e mais em menos tempo parece ser uma con tingência natural dessa aceleração social como bem descreve Toffler 1972 A sobrecarga de situações estressantes é a tônica nos ambientes urbanos onde haja grandes aglomerações confinamento excesso de ruídos insegurança social esta provocada por falta de informações adequadas ou proliferação de informações ameaçadoras excesso de competição e falta de oportunidade para todos falta de partici pação nos processos decisórios falta de divisão de tarefas e responsabilidades falta de solidariedade e de relacionamentos afetivos excesso de mudanças e falta de adaptação às novas situações Estudos de Groen 1971 1975 Stewart Wolf 1971 Cobb 1976 dentre outros têm enfatizado a importância do meio social da mudança social e dos suportes psicossociais como agentes capazes de influenciar a doença coronariana O meio social competitivo aglomerado poluído apressado e de baixa coesão grupal seria o caldo de cultura ideal para o desen volvimento da doença coronariana gerando além das tensões psicossociais inerentes estresse es tímulo ao sedentarismo ao tabagismo e aos erros alimentares que acabariam contribuindo para a ex tensão e gravidade da doença Ao nosso ver a perso nalidade tipo A é resultante de um somatório onde o nível de atividade constitucional exigências de realização provindas das primeiras experiências de vida e aceleração social ditada pela velocidade das mudanças sociais da comunicação e dos transportes e da produção de bens se complementam Ambiente competitivo responsabilidade pre mência de tempo instabilidade social e migração são alguns dos fatores agentes psicossociais mais frequentemente relacionados com doença coronaria na e sua ação básica parece se fazer no sentido de instigar o indivíduo a realizar cada vez mais e mais em cada vez menos tempo Esse fazer pode dizer respeito a trabalho propriamente dito mas também a realizações sociais adaptação a novas pessoas ou novos ambientes aquisição e manutenção de bens ou de status X possibilidade de gerar os recursos neces sários necessidade de trabalhar X grau de realização no referido trabalho A incongruência entre o querer e o fazer a defasagem entre aspiração e realização é que iria consumindo internamente o indivíduo e de terminando a doença Comportamentos sociais como fumar beber ingerir certos alimentos não praticar exercícios físicos facilmente são estimulados por um tipo de viver como o que acabamos de descrever O estado interno desse indivíduo é o de expectativa de ansiedade de tensão de frustração de irritabilidade e de depressão Claro que nem sempre de forma ex plícita ou revelada Fica fácil entender que determinadas situações ou estados de espírito sejam afinal os desencadea dores da crise com que habitualmente se instala a doença coronariana angina ou infarto Se o indi víduo vive à busca de realização ou de ganhos e o faz de maneira vital não estará psicologicamente preparado para as frustrações e perdas inevitáveis que a vida oferece Se organicamente for predisposto ou se em consequência desse estilo de vida estiver muito exposto aos fatores de risco provavelmente a resultante será a doença Por isso doença ou morte de familiares conflitos conjugais perda de emprego ou de prestigio insatisfação pessoal ou profissional são habitualmente fatores desencadeantes de crises coronarianas seja pelo acúmulo de estresse seja por instalarse dentro do indivíduo aquele sentimento de desilusão de desistência ou desesperança já des crito por vários autores como Schmale e Engels por exemplo Ele se sente derrotado e não consegue absorver a perda Acreditamos que o ritmo alucinante da vida de hoje a transitoriedade das coisas das pessoas e dos valores a valorização do material e do tecnológico o individualismo crescente contribuem para o sur gimento e manutenção de algumas doenças como a hipertensão arterial e a coronariopatia ao mesmo tempo que fazem emergir transtornos afetivos como ansiedade irritabilidade depressão ou transtornos sociais como a violência e a toxicomania Em síntese os coronarianos parecem depender de fatores constitucionais ou orgânicos a que se so mam os ambientais Os agentes psicossociais embora Psicossomaticaindd 333 Psicossomaticaindd 333 05012010 121216 05012010 121216 334 Mello Filho Burd e cols de difícil delimitação objetiva exercem sua ação po tencializando ou energizando os demais Finalmente assim como é difícil quantificar os agentes estressantes é difícil quantificar as medidas destinadas a combatêlos E é indubitável o cresci mento dessas medidas ou métodos Na área especí fica da psicologia multiplicamse as terapias compor tamentais e as psicoterapias das mais variadas linhas teóricas oferecendo ao indivíduo maiores e melhores recursos para lidar com o estresse Nesse sentido a medicina psicossomática vem prestando inestimável colaboração na medida em que ampliou a compreen são dos fenômenos que ligam o corpo ao psiquismo e desenvolveu técnicas que permitem ao indivíduo traduzir sua fala somática e substituir por outras formas de enfrentamento ou adaptação a velha primitiva maneira corporal No âmbito coletivo os suportes sociais tal como descritos por Sidney Cobb constituem outra forma de ação psicossocial capaz de minimizar os efeitos do estresse Segundo Cobb 1976 suporte social é toda estrutura grupal que propicia ao in divíduo sentirse amado e valorizado cuidado e protegido e membro de uma rede de interações e comunicações que funciona de maneira franca clara e solidária Os ambientes de trabalho bairro igreja clube família e serviços de saúde podem funcionar como suportes sociais Inúmeros trabalhos enfati zam os efeitos positivos dos suportes sociais como atenuadores de doença Cobb 1976 Groen 1975 Wolf 1971 Dressler 1983 Jalowiec e Powers 1982 Sleight 1982 Streayhorn 1980 McQueen e Celentano 1982 etc Ainda no que tange à influência da coesão gru pal e social como fator protetor de infarto Stewart Wolf 1971 narra um interessante trabalho desen volvido junto a uma comunidade ítaloamericana vin da de Roseto Val Fortore província de Foggia no sul da Itália e instalada em 1882 em Roseto Pensilvânia Fezse um levantamento retrospectivo e um acompa nhamento prospectivo durante 12 anos ao mesmo tempo em que foram estudadas duas comunidades próximas Nazareth e Bangor além de um grupo de pessoas oriundas de Roseto mas morando em cen tros urbanos e suburbanos próximos a Nova York e Filadélfia Observouse que a incidência de infarto em Roseto era significativamente menor que nessas outras comunidades inclusive nas procedentes de Roseto Os demais fatores de risco tiveram mais ou menos a mesma incidência havia até um pouco mais de obesidade em Roseto e sua dieta era relativamente alta em calorias incluindo gorduras animais Pou cos homens acima de 25 anos eram solteiros e não havia homossexualidade Havia a prática de tratar os doentes mentais em casa porém o número desses doentes era pequeno Sua estrutura social estudada por sociólogos que lá conviveram durante três anos era coesa e mutuamente solidária com forte estru tura familiar e laços comunitários O interesse pelos vizinhos era grande não havendo por isso pobreza e crime A família era o centro da vida Crianças e adolescentes ligavamse primariamente aos parentes mais do que a grupos de esporte ou outros tipos de grupos Os homens eram indiscutivelmente os cabe ças de suas casas os mais velhos eram reverenciados e mantinham sua influência nas decisões familiares os problemas eram resolvidos por encontros reuniões familiares e cada pessoa assumia responsabilidades e se dispunha a fazer algum sacrifício Menos íntimos mas surpreendentemente intensos eram os laços en tre vizinhos da comunidade havia um brio cívico e muita disposição para ajuda global nos casos de ne cessidade inclusive a outras comunidades especial mente da Itália Parece a partir destes dados que o apoio emo cional oferecido pelos grupos de suporte social é fator de proteção contra o infarto agudo do miocárdio As intervenções psicoterápicas sobretudo grupais reu nindo coronarianos podem se constituir em excelen tes suportes sociais para esses pacientes Outro aspecto importante a se considerar no es tudo dos fatores psicossociais relacionados à doença coronariana é o modo pelo qual o coronariano vive a doença E esse modo que é variável de pessoa para pessoa emerge invariavelmente de um sentimento básico ameaça de perder Perder a vida os familia res o poder social ou econômico gera no indivíduo ansiedade medo culpa ou raiva conforme sua pró pria história de vida Diante de tais sentimentos o coronariano assumirá posturas características como negar a doença tornarse irritadiço e agressivo de primirse desenvolver queixas hipocondríacas ou aceitar e enfrentar sua doença É possível até que a mesma pessoa apresente em momentos diferentes posturas diferentes Ressaltese que tais sentimentos ocorrem não só com o paciente mas com seus fami liares também Por tudo isso é desafiante a tarefa de se sugerir medidas gerais de cunho psicossocial que objetivem prevenir tratar ou reabilitar um coronariano Uma forma abrangente de prevenir a doença coronariana seria 1 Ampliar o nível de conscientização do indivíduo acerca de seu modus vivendi sobretudo no que diz respeito ao estabelecimento de metas realis ticamente alcançáveis à necessidade de estabele cer prioridades de tal modo que possa fazer uma coisa de cada vez e à percepção de que certos há bitos de vida deterioram sua saúde Psicossomaticaindd 334 Psicossomaticaindd 334 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 335 2 Propiciar ao indivíduo no ambiente de casa do trabalho da escola e dos serviços de saúde su portes sociais que o façam sentirse amado e va lorizado cuidado e protegido e membro de uma rede de interações e comunicações que funcione de maneira franca e precisa Isto pode ser obtido por exemplo através de grupos de orientação e reflexão conduzidos dentro deste clima 3 Conscientizar o indivíduo acerca dos efeitos dele térios do estresse e propor métodos para reduzi lo 4 Estimulálo a ampliar seu autoconhecimento atra vés de técnicas psicoterápicas 5 Informálo sobre os fatores de risco da doença orientandoo e estimulandoo no sentido de com bater os referidos fatores bem como procurando identificar as situações que impeçam ou dificul tem a prática de hábitos comportamentais mais saudáveis No tocante ao tratamento do coronariano em suas diversas fases cabe além das medidas clínicas um adequado posicionamento do médico e da família do paciente e nesse sentido consideramos primor dial 1 A presença efetiva e afetiva do médico e da fa mília junto ao paciente Interessantes trabalhos citados por Cobb 1976 fazem menção aos re sultados obtidos no tratamento dos pacientes em unidades coronarianas e em residência mostran do que aqueles tratados em suas casas não dife riam em termos de complicações ou evolução daqueles tratados em unidades coronarianas 2 A necessidade de o médico e a família tomarem consciência dos anseios que envolvem o paciente com sua doença e desse modo compreender os mecanismos que o mesmo vem utilizando para li dar com ela 3 A necessidade de se manter o paciente adequa damente informado a respeito de sua enfermi dade dentro de uma atmosfera de expectativa otimista Vencidas as fases agudas da doença e penetran do na fase de reabilitação cabe conscientizar o pa ciente da oportunidade e da necessidade de assumir medidas preventivas bem como promover seu retor no às atividades habituais sejam pessoais profissio nais ou sociais Os recursos psicopedagógicos utilizados na pre venção no tratamento e na reabilitação do coronaria no variarão desde campanhas educativas através dos meios de divulgação ou através das escolas e locais de trabalho a grupos de orientação reflexão ou terapia desenvolvidos nas comunidades ou nas instituições de assistência médica eou psicológica A doença coronariana era tida como doença de rico Hoje as estatísticas apontam para maior inci dência da doença nas populações de mais baixo nível socioeconômico Será ela na verdade doença dos que aspiram mudar de nível Ou seria melhor cha mada de doença da velocidade e das mudanças De qualquer modo seu declínio em alguns países apon ta para a efetiva possibilidade de reverter seu rumo O ritmo alucinante de hoje não precisa necessaria mente nos dominar Basta que nos aprofundemos no conhecimento de suas consequências Segundo Arne Engstron 1971 os tantos esforços feitos no campo da pesquisa técnica podem ser feitos no campo da ciência social com o objetivo de propiciar nossa so brevivência num mundo melhor Engstron pergunta se não podemos dar à nossa ciência o rumo que pre tendemos A essa questão acrescentaríamos afinal que rumo pretendemos dar à nossa sociedade em geral e à nossa ciência em particular O HIPERTENSO O estágio atual do nosso conhecimento tem apontado a hipertensão arterial como uma doença multifatorial Ou ainda temna revelado como resul tante de um desequilíbrio no complexo conjunto de estruturas orgânicas responsáveis pela manutenção de um fluxo sanguíneo adequado às necessidades tissulares Das hipertensões arteriais 90 situamse nesse grupo Somente 10 constituemse de causas específicas de elevação arterial É interessante registrar que apesar de exausti vas pesquisas clínicas e experimentais não se encon trou ainda um denominador comum para a etiologia da hipertensão Nesse sentido Page 1982 desen volveu a teoria do mosaico que atribui à conjunção de vários fatores a regulação da pressão arterial São fatores fisiológicos que de maneira integrada se ar ticulam para o cumprimento de tão delicada tarefa Coração vasos e rins sob o comando e controle do sistema nervoso central interferem nessa regulação É importante salientar que tudo isso se deve à neces sidade que tem o organismo de manter sempre o flu xo sanguíneo adequado às suas demandas Demanda que varia de minuto a minuto e de região a região do corpo conforme influências ou solicitações internas e externas Portanto a regulação da pressão arterial é uma tarefa adaptativa Parati 2003 Este fato faz supor a importância do sistema nervoso central no processo de regulação da PA pois a ele compete não só coordenar o conjunto de órgãos Psicossomaticaindd 335 Psicossomaticaindd 335 05012010 121216 05012010 121216 336 Mello Filho Burd e cols e aparelhos que constituem o circuito fisiológico dessa regulação como processar as informações vin das do próprio organismo ou do ambiente que o cer ca com o objetivo de promover os ajustes ou adap tações necessárias A este circuito maior Hermann 1976 chamou de circuito situacional Mas afinal onde estaria localizado o defeito primário gerador da hipertensão Pesquisas Abboud 1982 Davidman e Opshal 1984 Myers 1982 têm apontado para um defeito genético da permeabilida de da membrana de algumas células como glóbulos brancos e vermelhos células tubulares renais células da musculatura lisa dos vasos e dos neurônios adre nérgicos que promoveriam maior retenção de sódio intracelular Outras pesquisas têm localizado esse defeito ge nético ora nos centros bulbares e hipotalâmicos ora nos pressoceptores no sistema nervoso simpático e suas terminações ou ainda no sistema vascular re nal Abboud 1982 Harrel 1980 Khosla et al 1979 Nakamoto et al 1984 Pesquisas mais recentes têm se voltado para o en dotélio como um dos fatores mais importantes no con trole do tônus vasomotor e em consequência como um dos fatores produtores de HA Amodeo 2003 Embora não se tenha ainda definido com exati dão o sítio primário de desregulação da pressão arte rial parece haver um distúrbio genético promovendo a hipertensão August 2004 Luft 2004 Gamba 2002 Tal fato é sugerido antes de mais nada pela incidência maior de HA em famílias de hipertensos Shapiro e Goldstein 1982 Segundo revisão feita por Herrmann e colaboradores 1976 a tendência here ditária parece estar presente em cerca de 45 a 75 de todos os pacientes Além do mais a disposição inata não parece ser suficiente para causar hipertensão já que sua incidência em gêmeos univitelinos é de 50 e em gêmeos bivitelinos da ordem de 23 Por outro lado a HA só se revela clinicamen te na maioria das vezes entre os 20 e os 40 anos de idade parecendo haver necessidade de um fator acumulativo que no decorrer dos anos torne a hi pertensão sustentada Haveria pois uma hipersen sibilidade constitucional do sistema mantenedor da pressão arterial que bombardeado constantemente por determinados fatores ambientais acabaria por sofrer alterações estruturais que sustentaria a PA ele vada essas alterações ocorreriam a nível dos presso ceptores e das anteríolas Na verdade dois fatores ambientais têm se des tacado nas pesquisas sobre HA a ingestão de sal e o estresse Determinadas comunidades que não inge rem sal não desenvolvem HA nem registram eleva ção da PA com a idade como ocorria com os índios Ianomani segundo pesquisa desenvolvida por Jairo Carvalho 1983 Muitas outras pesquisas enfatizam o papel do sal na gênese da HA Davidman e Opshal 1984 Nakamoto et al 1984 Shapiro e Goldstein 1982 Com relação ao estresse são muitas as pesqui sas em homens e animais que têm demonstrado a ele vação da PA diante de variados estímulos ambientais estressantes como podemos constatar nas excelentes revisões a respeito efetuadas por Shapiro e Goldstein 1982 e por Mann 1984 A influência do estresse na HA está de acordo com os estudos de Selye que a apontam como doença de adaptação Se a função da PA é manter um fluxo sanguíneo adequado às necessidades teciduais e se estas variam conforme as solicitações internas e ex ternas quer dizer que o organismo vive nesses mo mentos uma situação de estresse ou ameaça à sua integridade o que exige uma resposta adaptativa A elevação da pressão arterial faria parte dessa res posta Em condições fisiológicas cessada a ação do agente estressante cessaria a resposta hipertensiva Com o hipertenso observase não só uma intensidade maior da resposta hipertensiva mas também na sua duração acabando por se manterem permanente mente elevados os níveis tensionais do indivíduo Caberia então perguntar o que aumentaria a in tensidade e a duração das respostas hipertensivas A primeira condição seria a hipersensibilidade genética do sistema regulador da PA que face à presença de quantidades médias ou altas de sal eou de estresse responderia hipertensivamente A continuidade da ação desses fatores acabaria por perpetuar a HA Para alguns autores como Abboud 1982 e Harrel 1980 não haveria necessidade de qualquer predisposição orgânica bastando que houvesse uma ação intensa e continuada dos fatores ambientais sal e estresse determinando inicialmente redução da sensibilidade dos pressoceptores e posteriormente alterações na distensibilidade arterial e processo degenerativo dos próprios pressoceptores Enfocando agora os possíveis mecanismos ge radores de estresse constatamos que embora os estudos demonstrem correlação entre agentes estres santes de natureza psicossocial e HA tal correlação é variável de indivíduo para indivíduo o que corrobora a ideia de que haja por parte de cada indivíduo uma espécie de filtro seu sistema de avaliação através do qual as situações são vistas avaliadas e enfrentadas Isto implica em considerar como geradores de estres se não só as situações ou fatores ambientais mas a estrutura e os conflitos intrapsíquicos do indivíduo frutos da sua personalidade e história de vida As si tuações atuais são energizadas ou ampliadas pelo filtro ou lente que constitui o sistema de ava liação do indivíduo e através do qual ele enxerga Psicossomaticaindd 336 Psicossomaticaindd 336 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 337 sua existência De acordo com essa avaliação as cir cunstâncias atuais são julgadas como mais ou menos amea çadoras exigindo maior ou menor esforço de adaptação e ocasionando maior ou menor intensida de e duração das respostas adaptativas O mundo intrapsíquico pode portanto constituirse numa fon te de ameaças ou de tranquilização para o indivíduo face ao mundo que o rodeia Os primeiros estudos psicanalíticos sobre a HA ganharam destaque com Alexander 1948 ao des crever a personalidade hipertensiva Tais indivíduos manteriam um núcleo de hostilidade reprimida e dependência que os faria reagir hipertensivamente Subsequentes pesquisas aventaram outras hipóteses acerca de determinadas características psicológicas correlacionadas com a HA como alexitimia depres são passividade dependência e expectativas negati vas face às situações Para outros autores a HA seria decorrente da atualização de conflitos básicos da personalidade Reiser 1951 por exemplo obser vando pacientes em fase maligna ou acelerada de HA verificou que a época em que ocorrera a malig nização da HA coincidia com a acentuação do confli to básico ou nuclear desses indivíduos Pelo exposto concluímos que apesar da tentati va de se descrever uma personalidade hipertensiva ou mesmo de identificar determinadas características psicológicas que se correlacionem com a HA os re sultados não são confluentes Na verdade existiriam subgrupos de hipertensos com diferentes padrões comportamentais Tais padrões apontariam para núcleos conflitivos básicos e particulares para cada paciente A detecção de alexitimia hostilidade repri mida ansiedade etc não justificaria diretamente a HA mas revelaria a presença de um núcleo de ten são este sim desencadeante eou mantenedor dos elevados níveis de PA Tal núcleo seria estruturado a partir das primeiras experiências de vida e contendo os conflitos e as estratégias de enfrentamento básicas do indivíduo a que se somariam os conflitos atuais e os recursos de enfrentamento disponíveis Exem plificando se uma criança tem um relacionamento difícil com o pai autoritário e encontrou como meio de enfrentálo reagir somaticamente certamente em sua vida adulta e face a um chefe autoritário sua tendência será a de reagir somaticamente sobretudo se não dispor de outros recursos ao seu alcance Do ponto de vista clínico parecenos impor tante identificar o núcleo de tensão do hipertenso Tivemos ocasião de vivenciar em nossa experiência vários casos de hipertensos que obtiveram redução de suas cifras tensionais na medida em que puderam evidenciar o seu núcleo de tensão A probabilidade de falar e refletir sobre o mesmo buscando outras alternativas de enfrentamento que não a resposta hipertensiva foi suficiente para o controle tensional nesses casos Como toda doença multifatorial há de se considerar a influência relativa de cada um dos fatores que a compõem Sem dúvida em alguns pa cientes o núcleo de tensão é fator primordial Numa linha mais epidemiológica ou comporta mental a ênfase recai sobre os fatores psicossociais externos capazes de gerar estresse e HA Neste sentido Henry e colaboradores 1967 fizeram inte ressantes observações com ratos desde o nascimento em caixas com superpopulação Com o tempo surgia uma sociedade estável com ratos dominantes e seus rivais e ratos inferiores Os primeiros apresentavam os níveis tensionais mais elevados e a média dos ní veis tensionais dessa caixa era ligeiramente maior que a de outros grupos criados em caixa sem super população Ratos criados isoladamente desde o nas cimento exibiam os níveis tensionais mais baixos To davia quando colocados após algum tempo de vida dentro dessas caixas superpopulosas apresentavam elevação da PA que não desaparecia mesmo depois de serem retirados da caixa Henry e Cassel 1969 compararam investigações epidemiológicas de várias culturas e concluíram que a distribuição dos níveis tensionais dependia sobretudo de a sociedade ou grupo estudado ter uma firme tradi ção baseada numa estrutura social estável David DAtri e colaboradores 1981 estudaram prisioneiros tirados de celas individuais e colocados em dormitórios múltiplos Havia elevação da PA Se esses prisioneiros eram transferidos após curto es paço de tempo sua PA baixava Também se perma neciam mais tempo nos dormitórios a PA tendia a baixar por possível adaptação ao ambiente Carvalho e colaboradores 1984 encontraram níveis de PA maiores em grupos com maior repressão prisioneiros e soldados além da correlação positiva da HA com situações que exigem adaptação e estres se emocional subjetivo A urbanização sensulatu é tida como fator de elevação da PA na medida em que gera aglomeração pobreza crime desemprego e ruptura dos laços de coe são grupal A exposição continuada a esse ambien te urbano seria fator precipitante da HA com o decor rer da idade Groen 1971 1975 Lovely 1982 Groen faz uma excelente análise das socieda des modernas ocidentais mostrando em função das rápidas mudanças sociais ocorridas e da quebra dos valores tradicionais a ruptura dos laços grupais o aumento da competição e do individualismo e em consequência a elevação das taxas de doenças psi cossomáticas inclusive a HA Groen analisa também a influência da migração que ocasiona rompimento dos laços de origem e choques com os valores da nova sociedade onde se insere o migrante Psicossomaticaindd 337 Psicossomaticaindd 337 05012010 121216 05012010 121216 338 Mello Filho Burd e cols Outros fatores têm sido relacionados como ge radores de HA 1 nível baixo de renda e educação Sear 1982 2 desemprego Kasl e Cobb 1980 3 elevado número de horas de trabalho Ribeiro et al 1981 4 maior nível de responsabilidade Mann 1984 5 constante exposição a ruídos elevados Shapiro e Goldstein 1982 6 competitividade e interação social Baer et al 1979 Light 1981 Linden e Feuerstein 1981 Steptoe et al 1984 7 desajustes familiares Hafner 1983 8 situações de perda e separação Mello Filho 1979 Os hipertensos parecem mostrar uma quantida de maior de eventos estressantes no decorrer de suas vidas Svensson e Theorell 1983 É claro também que qualquer tipo de estresse experimental ou am biental eleva a PA mas nos hipertensos essa eleva ção é mais intensa e prolongada O contexto da urbanização favorece o aumento da quantidade de situações estressantes além de pro mover ruptura dos laços sociais que oferecem apoio e suporte ao indivíduo funcionando como moderadores ou atenuadores dos efeitos estressantes A urbanização atua também provocando mudanças de hábitos físicos e sociais que contribuem para a elevação da PA Tudo isto por sua vez dependerá ainda da pre disposição genética do indivíduo a reagir hipertensi vamente e do seu sistema pessoal de avaliar e enfren tar as situações estressantes que é pessoal e inerente à sua história de vida ocasionando na interação com o ambiente núcleos de tensão que redundam em hi pertensão Em síntese a HA parece se dever a 1 hipersensibilidade orgânica 2 núcleo de tensão intrapsíquica 3 fatores estressantes ambientais O primeiro seria predisponente o segundo energizador e o terceiro desencadeante As características da sociedade de hoje indivi dualista e competitiva aglomerada nos centros urba nos sedentária e habituada à ingestão excessiva de sal calorias e álcool fariam da hipertensão arterial uma doença da civilização Qualquer abordagem do hipertenso que deixe de lado tais considerações tende a ser limitada e de resultados duvidosos Como limi tada será aquela que não levar em conta as influên cias intrapsíquicas a partir dos conflitos ou núcleos de tensão do indivíduo ou do seu modo peculiar de avaliar e enfrentar as situações Ênfase ainda deve ser dada à ruptura dos laços grupais reduzindo a in fluência moderadora dos suportes sociais Estudos sobre a adesão dos hipertensos ao tra tamento desenvolvidos a partir da década de 1960 revelaram um elevado índice desses pacientes sem qualquer tratamento em tratamento irregular ou sem obter controle dos níveis tensionais Kass 1982 Cummings 1982 Lenfant 1984 Cerca de 50 dos hipertensos não sabiam ter pressão alta cerca de 50 dos que conheciam o diagnóstico não se tratavam e 50 dos que se tratavam não conseguiam controlar sua PA Isto resulta em apenas 8 dos hipertensos efetivamente controlados Dados mais recentes mos tram sobretudo graças aos programas de detecção e controle da hipertensão implantados em vários paí ses inclusive no Brasil uma crescente elevação des ses números seja no percentual dos que sabem ser hi pertensos até àqueles que estão com a PA controlada Todavia permanecem ainda elevados os percentuais daqueles efetivamente controlados Segundo Andra de e colaboradores 2002 dados epidemiológicos da população dos Estados Unidos mostram que apenas 27 dos hipertensos têm a pressão controlada Para Chobanian e colaboradores 2003 esse número che ga a 34 Uma série de fatores têm sido aventados como responsáveis por sua pequena adesão e abaixo rela cionamos alguns deles evolução assintomática da doença necessidade de tratamento continuado custo e efeitos colaterais dos remédios necessidade de fazer dieta desinformação em relação à doença dificuldade de obter cuidados médicos relação médicopaciente insatisfatória situações psicossociais estressantes falta de suportes sociais desmotivação baixa autoestima núcleos conflitivos não resolvidos utilização da doença com benefício ou forma de adaptação Considerando a alta incidência da doença em cerca de 10 a 20 da população adulta sua morta lidade e morbidade as doenças cardiovasculares re presentam em muitos países a maior causamortis e a pequena adesão ao tratamento registrada os Esta dos Unidos a partir de 1972 instituíram um progra ma nacional de controle e detecção da HA que após alguns anos de funcionamento revelou resultados promissores Assim o índice de acidentes vasculares cerebrais por exemplo reduziuse ao encontrado na população geral Hypertension Detection1982 O Psicossomaticaindd 338 Psicossomaticaindd 338 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 339 grau de adesão ao tratamento e de controle efetivo da PA modificouse conforme constatamos no qua dro abaixo Cummings 1982 1968 1978 Não sabiam ser hipertensos 51 20 Detectados mas não em tratamento 16 11 Em tratamento mas não controlados 24 51 Controlados 9 18 Num outro estudo Lenfant 1984 compara ramse os números obtidos em 197172 com os obti dos no período 197680 197172 197680 Sabem ser hipertensos 509 734 Tratamse 365 562 Tem a PA controlada 165 341 Desde então vêmse desenvolvendo programas de atendimento a hipertensos como estratégia para aumentar a adesão dos pacientes ao tratamento e desse modo obter efetivo controle dos níveis tensio nais e das complicações da doença A abordagem de pacientes hipertensos em grupo será objeto de outro capítulo deste livro Casos clínicos Primeiro caso clínico Uma mulher de 40 anos procuroume com queixa de dor precordial atípica Já fizera uma série de exames Uma radiografia de estômago e duodeno mostrara hérnia diafrag mática e o médico recomendoulhe procurar um cirurgião para operar Este se recusou a operála e disselhe a se nhora é uma presa fácil de médico da roça Ela ficou indig nada não aceitou o comentário e resolveu procurar um car diologista A dor era atípica Exame físico normal Disselhe que não estava encontrando qualquer evidência de proble ma orgânico mas que evidentemente havia alguma razão para sua dor Tentei averiguar a possibilidade de problemas sociais ou psicológicos que a estivessem deixando estressa da mas ela negou Disselhe então que não fizesse uso de qualquer medicação somente observasse as características da dor e após uma semana voltasse para nova consulta Ao retornar informou que a dor continuava sem grande inten sidade mas praticamente contínua de manhã à noite Após reexaminála reiterei a inexistência de problema orgânico e expliquei que situações conflitivas geradoras de tensão ha bitualmente se expressam corporalmente quase como uma forma de falar Insistiu que não havia qualquer problema com ela Disse que vivia muito bem financeiramente Seu marido era um empresário de sucesso e um ótimo marido Sem pre que saía perguntavalhe se precisava de alguma coisa e deixava dinheiro mais que suficiente para suas despesas Tratavaa muito bem presenteandoa com frequência Dis se que o marido saía muito cedo e voltava tarde geralmente muito cansado com as tantas atribuições que sua empresa proporcionava Comentei que talvez tivessem pouco tem po para conversar Ela concordou e revelou que apesar do marido tratála bem na verdade sentia falta de maior aten ção pessoal sentiase até certo ponto desvalorizada por ele que só dava atenção ao trabalho Perguntei se esse fato poderia de algum modo justificar sua dor Ela concordou alegando que não tinha como reclamar dele que trabalhava muito e não deixava faltar nada em casa Além disso eram poucas as oportunidades de efetivamente conversarem e talvez por isso o problema já se arrastava há algum tem po Percebi que naquele momento ela conseguira fazer um nexo entre seu sintoma e o fator que o gerava Sem que eu dissesse mais nada ela me perguntou se poderia trazer o marido para conversarmos juntos Embora surpreendido com aquela solicitação disselhe que sim O marido com pareceu à próxima consulta e eu lhe expus minha opinião Ele comentou que era bem provável sim porque também ele vinha se sentindo tenso e percebia que lhe faltava algo Justificouse com as responsabilidades que o trabalho lhe trazia mas afirmou que iria rever essa situação Cerca de 30 dias depois recebi um cartão postal do ca sal dizendo Estamos passeando A dor sumiu Três meses depois a paciente voltou ao consultório para contar que tiveram uma excelente conversa e que o marido reformulara seus afazeres A viagem servira para por os pingos nos iis A dor não voltara Comentários O caso ilustra o paciente funcional O uso do corpo como forma de expressão Cabenos en quanto médicos saber traduzir essa fala Ressalto a im portância de valorizar a queixa o paciente sente de fato alguma coisa e de se certificar através de atenta anamnese e exame físico da falta de elementos que justifiquem a ne cessidade de investigar um problema orgânico Segundo caso clínico Eu trabalhava como cardiologista de um hospital da rede pública Ela era enfermeira do mesmo hospital Pro curoume um dia para uma consulta pois era hipertensa e sua pressão estava sempre muito elevada Fazia uso de medicamentos em doses altas Alegava falta de tempo para se exercitar e reconhecia não seguir corretamente a dieta Embora não apresentasse ainda sinais de complicações de correntes da hipertensão frequentemente era atendida de urgência em função de crises hipertensivas Após algumas consultas esporádicas e como a pressão arterial PA não cedia propuslhe que fizéssemos uma con sulta semanal dada a facilidade que tínhamos por trabalhar no mesmo hospital embora em setores diferentes Meu objetivo disselhe era acompanhar as variações da PA mas também poder investigar com ela sobre os possíveis fatores que poderiam estar mantendo aquela pressão tão elevada Aos poucos ela foi contando sua vida Disse que fora casada mas que se separara por iniciativa dela Como não tinha recursos financeiros deixou os dois filhos com o marido Este após algum tempo mudou de residência foi morar em outro estado levou os filhos e não comunicou a ela para onde iriam A paciente perdeu completamente o Psicossomaticaindd 339 Psicossomaticaindd 339 05012010 121216 05012010 121216 340 Mello Filho Burd e cols contato com os filhos Ficou extremamente angustiada com a situação sobretudo porque se culpava de têlos abando nado Foi nessa ocasião que sua PA começou a se elevar Cada vez que falava do assunto se emocionava e fomos per cebendo como esse fato a mobilizava Apesar de se sentir bem com as conversas fico mais aliviada a PA mantinha se elevada mesmo com altas doses de medicamentos No decorrer das nossas conversas a paciente começou a dizer que precisava descobrir o paradeiro dos filhos embora não tivesse qualquer pista a respeito Iniciou verdadeira pes quisa até que afinal localizouos e por telefone falou com eles Os filhos combinaram de vir ao Rio para vêla e as sim fizeram O encontro segundo ela fora emocionante A partir desse momento a PA foi cedendo Pudemos reduzir progressivamente a medicação até que ficasse apenas com um diurético A dieta e os exercícios físicos passaram a fazer parte do esquema terapêutico Durante o tempo que permaneci acompanhando a pa ciente cerca de cinco anos a PA não voltou a se elevar de modo significativo Comentários O caso mostra como mesmo em doen ças com componente orgânico precisamos estar atentos para os diversos fatores que contribuem para sua evolução e para seu tratamento A sustentação dos níveis elevados da pressão arterial daquela paciente estava num conflito inter no não resolvido Certamente era o mesmo conflito que a impedia de seguir rigorosamente o tratamento sobretu do a prática de exercícios físicos e de uma dieta adequada Procurar investigar com o paciente os possíveis fatores que estejam obstaculizando o tratamento é tão importante ou mais em determinada circunstâncias do que realizar uma bateria de exames E é função precípua do médico a quem cabe diagnosticar e prescrever REFERÊNCIAS Abboud FM 1982 The sympathetic system in hipertension Hypertension 4 3 208225 Alexander F French TM 1948 Studies in psychosomatic medi cine Ronald Press 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par tido como a indicar que este órgão é o centro das emoções Doenças cardiovasculares são a causa principal de mortalidade em todo o mundo tanto em países desenvolvidos quanto em países pobres ou em desen volvimento São responsáveis por aproximadamente 30 das mortes No estudo InterHeart fatores psi cossociais estão entre os seis grandes fatores de risco para infarto do miocárdio junto a alterações lipídi cas hipertensão arterial tabagismo diabete e exces so de peso Alterações emocionais foram descritas em as sociação com doença arterial coronária como pre cipitantes de infarto do miocárdio crises de angina e morte súbita e como precipitantes ou agravantes de hipertensão arterial Demonstrouse que isque mia aguda do mesmo grau pode ser precipitada tanto por teste de esforço convencional quanto por estresse psicológico de duração não superior a 5 mi nutos este estresse psicológico pode ser constituí do simplesmente de um pequeno discurso no qual o paciente é solicitado a discorrer sobre um assunto pessoal que lhe cause viva emoção ou mesmo cons trangimento Estudos recentes demonstram que estas intera ções emoçõescoração têm correspondentes bioquími cos bem definidos e que são medidas principalmente pelos sistemas simpático e parassimpático além de hormônios que integram funções cerebrais cardíacas e suprarrenais O coração é inervado por ramificações do sistema simpático e parassimpático Estimulações do simpático de modo geral excitam o coração au mentando a frequência cardíaca a força da contração e a pressão arterial Estimulações do parassimpático modulam estas respostas e têm direcionalmente um sentido oposto A cirurgia cardíaca é um grande evento na vida das pessoas E por bons motivos Primeiro porque sendo de fato um procedimento complexo e não fi siológico tanto pode preservar a vida e melhorála quanto extinguila do ponto de vista individual pou co importa que a grande maioria dos pacientes se saia bem para quem opera o coração é sempre tudo ou nada Em segundo lugar essa cirurgia simbolicamen te vai mexer com o centro da vida o templo dos sentimentos Ele voltará a ser o mesmo depois Por fim a partir da operação o paciente conviverá com sinais físicos da cirurgia sendo a cicatriz no peito o mais evidente Isto o distinguirá entre os outros seres humanos muitos a têm como um estigma de vulnera bilidade enquanto para outros representa um ato de coragem De qualquer modo representa uma marca indelével de um momento decisivo que se torna pú blico Nestes últimos anos tivemos oportunidade de acompanhar um grande número de pacientes entre adultos e crianças que se submeteram a cirurgia car díaca Observamos que a maioria apresenta alto nível de ansiedade e expectativa com relação à cirurgia dando origem a fantasias e medos ligados à morte à violação interior a superstições e a inseguranças que são elementos geradores de alterações emo cionais Às vezes não levar em conta esses fatores pode prejudicar ou mesmo comprometer a evolução pósoperatória Observamos também que as manifes tações psicológicas diferem conforme a faixa etária e a cardiopatia atingindo o paciente e sua família Neste capítulo analisaremos várias facetas do impac to emocional da cirurgia cardíaca sobre os pacientes visando especificamente a caracterizar tipos de com portamento humano procurando oferecer sugestões de atitudes médicas eou psicológicas que possam orientar o tratamento 24 O IMPACTO EMOCIONAL DA CIRURGIA CARDÍACA Maria de Fátima Praça de Oliveira Protásio Lemos da Luz Psicossomaticaindd 343 Psicossomaticaindd 343 05012010 121216 05012010 121216 344 Mello Filho Burd e cols ASPECTOS PSICOLÓGICOS NA CIRURGIA DAS CARDIOPATIAS CONGÊNITAS Os problemas emocionais nas cardiopatias con gênitas remontam à fase da gestação e envolvem a conduta dos pais e demais familiares com relação à criança A expectativa da família durante o período de gravidez é muito alta A imagem que se cria da criança que vai nascer é sempre otimista Imagina se que terá olhos azuis ou pretos cabelos cacheados ou lisos que será fisicamente perfeita além de tão inteligente ou mais que as outras Quando a criança nasce os pais têm que adaptar a imagem idealizada à realidade e se ocorrer alguma malformação essa adaptação tornase mais difícil A frustração é inten sa associada à dificuldade compreensível de se lidar com o insólito problema Quando a malformação é no coração assusta muito mais devido à forte sim bologia do órgão considerado centro de vida ou de morte Nessa fase agressões mútuas entre os pais são comuns e representam a tentativa consciente ou não de diminuir o sentimento de culpa de cada um A busca de um culpado parece aliviar a dificuldade de entender o acontecido Na realidade esse sentimento de culpa é na grande maioria das vezes desprovido de fundamento A exceção corre por conta das raras ocasiões nas quais mesmo tendo ciência da proba bilidade genética de o casal ter um filho defeituoso os pais tenham decidido correr o risco e para seu infortúnio a genética tenha trabalhado contra eles Em outras situações a probabilidade de malformação é tão pequena que a culpa realmente não existe para nenhum dos pais é uma questão de absoluto acaso da natureza pelo qual ninguém pode ser culpado A rejeição é outro fato que pode ocorrer devido à atitude intrínseca dos pais baseada em uma frus tração pessoal de suas expectativas por injunções do ambiente familiar ou por pressões sociais O mais frequente é a rejeição do pai A mãe tende a aceitar melhor a criança doente como se a estreita depen dência materna durante a gestação e nas fases iniciais do crescimento se prolongasse naturalmente pela ocorrência do defeito cardíaco É frequente também que essas crianças sofram retardo no desenvolvimen to físico elas sentam e andam mais tarde Tal retardo pode ser de fato secundário ao prejuízo da função cardíaca causado pela doença básica mas também pode ser parcialmente causado pelo excesso de cuida dos por parte dos pais que proíbem a criança de exe cutar exercícios necessários ao seu desenvolvimento natural O desenvolvimento intelectual também pode ser prejudicado pois dependendo da cardiopatia ela necessita de diversas internações impedindo a frequ ência normal à escola Além disso é comum as car diopatias estarem associadas à síndrome de Down O reconhecimento desses fatos pelo médico eou psi cólogo é fundamental para o bom encaminhamento do caso O objetivo é dimensionar realisticamente o problema da criança compreender as inquietudes dos pais e orientálos para que ajam com equilíbrio sem descaso mas também sem superproteção Na hospitalização a criança fica geralmente separada dos pais o que a faz sentirse insegura e ansiosa Colaboram para isso o ambiente desconhecido a que terá de se adaptar a presença de pessoas estranhas como também os procedimentos terapêuticos ne cessários que muitas vezes são agressivos Por falta de informação adequada muitos pais escondem do filho que ele precisa ser operado Sem entender o que está se passando a criança pode imaginar que está sendo castigada por alguma coisa errada que fez A atuação do psicólogo é de grande valia nes sa fase na tentativa de diminuir a ansiedade dos pais e da criança Material lúdico como brinquedos kit médico play mobil médico pode auxiliar na amenização da fase hospitalar A informação médica dada aos pais deve ser completa e transmitida com clareza A linguagem simples simbólica às vezes é preferível a termos técnicos que não têm sentido para leigos Os pais precisam estar preparados para entender o quanto será importante a conduta deles para que o filho aceite o tratamento proposto cujos objetivos são a recuperação e felicidade da criança mas isso nem sempre é possível Outro aspecto que deve ser observado é o pósoperatório imediato na unidade de terapia intensiva UTI A UTI com seu aparato de instrumentos sons e luzes constantes presença de outros pacientes cateteres venosos ar teriais e vesicais intubação endotraqueal e procedi mentos necessariamente incômodos representa sem dúvida um ambiente gerador de grande ansiedade e medo Procurar tornar esse ambiente mais agradá vel permitindo que a criança tenha objetos de seu convívio pessoal além de brinquedos pode facilitar essa fase Admitir a entrada dos pais sempre que for necessário é conduta adotada em nosso serviço com bons resultados O reduzido tempo disponível entre a interna ção e a operação dificulta o trabalho de atuação do psicólogo diretamente com a criança O ideal seria que se fizesse o preparo da criança anteriormente à internação hospitalar e na presença dos pais A eles devem ser explicadas as principais etapas da interna ção e da operação assim como sobre a UTI para que possam transmitir essas informações ao filho Afinal a criança tem como maior referencial de proteção e segurança a presença dos pais É neles que ela acredi ta e na medida em que eles transmitirem confiança Psicossomaticaindd 344 Psicossomaticaindd 344 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 345 e tranquilidade ela não terá motivos para se sentir enganada ou abandonada no pósoperatório Quando a equipe médica não tiver a presença constante do psicólogo é recomendável que um de seus componentes converse com os pais procurando orientálos durante o período de internação Assim como a criança precisa sentirse segura com relação aos pais o mesmo ocorre com os pais em relação aos médicos que atendem seu filho ASPECTOS PSICOLÓGICOS DO PACIENTE ADULTO Indivíduos adultos são sujeitos a estresse emo cional de diversas ordens com consequências que po dem alterar profundamente sua qualidade de vida A cirurgia cardíaca é um poderoso fator estressante por diversas razões Na primeira fase de contato com o paciente procuramos saber quais as expectativas que ele tem com relação à cirurgia a que vai se submeter As entrevistas feitas demonstraram que independen temente do sexo idade condição socioeconômica ou mesmo da cardiopatia algumas preocupações ime diatas fantasias e medos estavam presentes na gran de maioria dos entrevistados Estas incluem Medo da morte Embora todos saibam que um dia vão morrer vi vese como se a morte fosse sempre um acontecimento distante Enfrentar uma situação real de possibilidade de morte pode representar um momento de angústia e insegurança Por motivos religiosos às vezes a mor te pode representar um julgamento da vida pregressa Há frequente questionamento sobre se haverá tempo para modificar erros cometidos no passado A asso ciação do dia da operação como data preestabelecida para morrer pode ocorrer por simples suposição indi vidual ou por estar ligada à morte de parente próxi mo nas mesmas circunstâncias Sentimentos de culpa arrependimento por coisas não feitas mesclados com a ansiedade de viver ocorrem nas diversas faixas etá rias A preocupação com a família passa a ter conota ções maiores e fantasias são criadas principalmente nos pacientes em torno dos 40 anos ao imaginar o desamparo em que vão deixála no caso de sua morte Embora muitos pacientes não admitam abertamente o medo de morrer este sentimento é muito comum A possibilidade da morte deve ser mencionada entre as possíveis consequências da cirurgia não para assustar o doente mas para tranquilizálo Felizmente a cirur gia cardíaca contemporânea é realizada com morta lidade muito baixa o que deve ser dito ao paciente Quando o risco é maior devese ainda mencionar que mesmo nessas circunstâncias as chances de sucesso justificam a operação Operar o coração Na maioria das vezes o paciente vê o coração na simbologia emocional que o envolve tornando mais difícil aceitálo como órgão doente e que precisa ser tratado É interessante salientar que esse medo não tem fundamento real na maioria dos casos visto que a cirurgia cardíaca pode ser feita hoje com grande se gurança e baixa mortalidade O progresso técnico re cente diminuiu a mortalidade a morbidade o tempo de internação e todo o desconforto associado ao pro cedimento como o tempo de intubação endotraqueal permanência na UTI etc Hoje operamse pessoas bem mais idosas do que há anos com grande sucesso A cirurgia cardíaca pode ser mais benigna que uma ope ração de pâncreas fígado pulmão ou certos cânceres No entanto predomina o simbolismo do coração É preciso então desmistificar esse procedimento Anestesia A anestesia geral é naturalmente mais que bem vinda ao mundo cirúrgico mas carrega um pequeno risco próprio Este risco é amplificado pela concep ção que a anestesia não oferece cura e não é doença e portanto não deveria também oferecer riscos Por outro lado acidentes cirúrgicos devidos a anestesia são amplamente divulgados na imprensa com cono tação depreciativa sobre a atuação médica Por fim o receio de não acordar mais além de saber que será manipulado sem que possa participar ou opinar con tribui para o temor do paciente Aqui também é preci so lembrar dos progressos recentes da anestesia com novos medicamentos e instrumentos que permitem mais segurança ao paciente ao mesmo tempo que di minuem o desconforto Por exemplo o uso de anesté sicos de ação mais curta que permitem a recuperação rápida da consciência e do controle respiratório e a monitorização cuidadosa de parâmetros respirató rios bem como a fisioterapia respiratória precoce que permitem reduzir substancialmente o tempo de intubação endotraqueal isso evidentemente alivia muito o desconforto decorrente da anestesia Unidade de Terapia Intensiva Nela predomina a imagem do isolamento e do desamparo como anteriormente mencionado A Psicossomaticaindd 345 Psicossomaticaindd 345 05012010 121216 05012010 121216 346 Mello Filho Burd e cols aceitação da UTI pelo paciente é facilitada quan do se explica que a UTI é o único meio de oferecer segurança suficiente no pósoperatório imediato e que a permanência lá será a mais rápida possível O período de UTI é talvez o mais difícil do processo Nele o paciente estará mais debilitado e dependen te Ele sai do sono anestésico tomando consciência gradativa de seu estado e sobretudo de si próprio Além de estar alterado em seu estado de consciência percebese amarrado ao leito ligado a sondas moni tores e drenos Este é um momento marcante vivido pelo paciente pois sente um alívio da tensão gerada pela ansiedade de enfrentar a cirurgia A vivência do processo de recuperação por vezes dolorido somado à queda de suas defesas desenvolvidas para suportar a ansiedade préoperatória pode acarretar no pós operatório quadros psicorreativos como depressão agitação e às vezes estados confusionais de origem psicossomática sobretudo em pacientes coronaria nos A depressão pode se manifestar por volta do 4º ou 5º dia de pósoperatório sendo ocasionada na maioria das vezes pelo estresse imposto pela hospita lização e rotinas de procedimentos O paciente tam bém pode ter alterações mais graves como quadros psicóticos exógenos ou mesmo psicoses relacionados à inadequada oxigenação cerebral Nesses casos há necessidade de intervenção tanto do médico quanto do psicólogo procurando trabalhar com o paciente na reorganização de suas vivências O trabalho do psicólogo junto à família enquanto o paciente está na UTI serve como ponto de referência para manter o vínculo familiar que foi quebrado quando o paciente deu entrada nessa unidade Dor A dor pósoperatória é um fato mas não deve ser superdimensionado Por exemplo hoje consegue se manter infusão venosa constante de analgésicos que são controlados pelo próprio paciente Isso dá ao doente a oportunidade de automedicação que mi tiga o sofrimento objetivamente além de oferecer ao paciente a sensação de estar com o domínio da situação Devese esclarecer que há grande variação in dividual quanto à tolerância à dor e que todos os esforços serão realizados para amenizála Devese também assegurar que a dor será passageira e que a equipe médica ficará atenta para combatêla O respeito à dor do paciente é de grande importância psicológica e deve ser cuidadosamente observado evitandose manipulações intempestivas medicações intramusculares ou venosas quando poderão ser da das por via oral etc Aumento da sensibilidade Crises de choro e períodos de profunda tristeza são comuns A operação representa uma fase de re flexão para a pessoa O período préoperatório forço samente oferece alguns dias ao paciente para pensar excetuadas naturalmente as cirurgias de emergência Muitos analisam a vida pregressa e se dão conta de situações que poderiam ter sido diferentes Alguns se entristecem porque não fizeram o que queriam outros porque gostariam de continuar fazendo o que sempre fizeram e apreciam É curioso que nes sa fase os pacientes estão abertos a todas as suges tões aceitam mudar dietas fazer exercícios tomar medicamentos deixar de fumar etc Esta disposição nem sempre se confirma quando o perigo da opera ção passou A emotividade continua muitas vezes no pósoperatório durante meses Casos de depressão exógena são comuns e o uso de antidepressivos de ação rápida é frequentemente indicado A melhor maneira de lidar com esta sensibili dade é admitila deixandoa manifestarse natural mente O doente coronariano A coronariopatia apresenta algumas caracterís ticas que contribuem para o aparecimento de alte rações psicológicas peculiares do paciente Seu iní cio é muitas vezes súbito e sendo em essência um processo metabólico crônico fará com que o paciente conviva com a doença por toda a vida embora com períodos variáveis de remissão dos sintomas O aco metimento de grupos etários progressivamente mais jovens é também outro aspecto preocupante nos úl timos anos Friedman e Rosenman 1959 classificaram os indivíduos em geral em dois grupos de compor tamento A e B Posteriormente observouse que há uma predisposição maior da doença coronária nos pacientes do grupo A e suas características dominan tes incluem competitividade exagerada necessidade constante de realizar coisas sempre no menor prazo de tempo possível e temperamento explosivo com tendência a agressividade Poderíamos citar outras características do paciente coronariano como inca pacidade de delegar aos outros autoridade e respon sabilidade controle rígido dos que o rodeiam e de si próprio incapacidade de aceitar angústia e con sequentemente racionalizar as emoções colocarse sempre em situações competitivas buscando êxito profissional eou social ficar parado descansar ou tirar férias angustia necessidade primordial de ser amado e elogiado pelos outros Os indivíduos do gru Psicossomaticaindd 346 Psicossomaticaindd 346 05012010 121216 05012010 121216 Psicossomática hoje 347 po A são geralmente perfeccionistas e as caracterís ticas aqui citadas demonstram a conduta obsessivas dessas pessoas Admitese que essas características de personalidade geram suficiente estresse emocional a ponto de contribuir para o surgimento da doença co ronária Por outro lado temse documentado que a depressão piora significativamente a evolução clínica de pacientes infartados e que essa influência é pro porcional ao grau de depressão segundo a escala de Beck No que diz respeito à cirurgia compete diferen ciar a eletiva da de urgência Na eletiva o paciente pode ser melhor preparado tanto do ponto de vis ta somático como psicológico e portanto o impacto emocional pode ser melhor absorvido Observase que a aceitação da cirurgia pelo paciente principalmente para o assintomático é muito dificil uma vez que ele não se sente doente A atuação do psicólogo é impor tante em ambos os casos procurando conscientizálo da importância da cirurgia e de seus benefícios pos teriores enfatizando que a decisão final com relação ao tratamento cirúrgico é do paciente A partir do momento em que se informa ao paciente a situação pela qual ele irá passar aumenta seu controle sobre ela e isso ajuda a diminuir a ansiedade Ressaltar os aspectos positivos da situação pode ajudar o paciente a avaliar os ganhos que terá depois de operado Isso resulta em um pósoperatório imediato menos estres sante tanto para o paciente e sua família quanto para a equipe que o assiste Quando se inicia o processo de recuperação o psicólogo deverá trabalhar o estado emocional do pa ciente para que ele possa reestruturarse e gradati vamente retomar a suas atividades Quando houver limitações apesar das cirurgias devese dar orienta ções adequadas ao paciente e sua família para evitar que ele se comporte ou seja tratado como um invá lido Dependendo das condições psicológicas dos pa cientes acompanhados no período de internação às vezes justificase a continuidade do tratamento psico lógico após alta hospitalar Preocupações a longo prazo Preocupações consideradas de longo prazo di zem respeito à qualidade de vida que os pacientes terão uma vez passada a cirurgia Estas incluem a ca pacidade para desempenhar trabalho Evidentemente isso é da maior relevância para indivíduos adultos chefes de família e líderes da comunidade Para mui tos esta última condição é tão ou mais importante que sua função familiar A volta ao trabalho natural mente é condicionada pelo estado do paciente no pré operatório e pelo resultado objetivo da cirurgia Por exemplo na cirurgia de revascularização miocárdica se o paciente for operado sem sofrer infarto e a ope ração for bemsucedida esperase recuperação física integral da função circulatória Por outro lado se o paciente for operado após infarto ou em insuficiência cardíaca a recuperação não será total No entanto ainda assim a cirurgia oferecerá vantagens Uma constatação frequente a este respeito é que muitos pacientes não comparam seu estado pósope ratório ao da doença no préoperatório e sim ao nor mal É preciso esclarecer o paciente a este respeito Determinadas limitações de qualidade de vida como por exempIo carregar peso ou praticar esportes com petitivos poderão ser necessárias no pósoperatório Prática de esportes As mesmas considerações mencionadas acima aplicamse aqui A prática de esportes deve ser indivi dualizada O importante é deixar claro que a cirurgia não é por si mesma empecilho à prática de esportes Em muitos casos como seja a correção de estenose aórtica ou de CIA a prática de esportes possível an tes da operação fica inteiramente liberada após a mesma Neste sentido o tempo em si se encarrega de demonstrar que a operação foi benéfica Isso terá grande importância também para crianças e adoles centes para os quais a prática de esportes é fonte de grande alegria Restrições alimentares e proibição do tabagismo Nos casos de cirurgias de coronárias as restri ções de gorduras e colesterol são mandatórias para o controle do processo arteriosclerótico que causa insuficiência coronária eou para controlar a obesi dade Casos especiais são representados pelos dia béticos nos quais o controle glicêmico correto é in dispensável implicando em dieta medicamentos e exercícios Para muitos pacientes estas restrições represen tam cargas emocionais consideráveis Na verdade a maior parte deles sentese tolhida em sua liberdade individual Temos notado que a informação hoje real que a progressão da doença coronária e mesmo sua regressão podem ser conseguidas no homem por me didas que reduzem os níveis de colesterol plasmático o que constitui grande incentivo para adesão dos pa cientes ao tratamento A restrição bebidas alcoólicas também é motivo constante de consultas Na grande maioria das vezes bebidas alcoólicas em quantidade moderada não são proibidas e sua liberação parcimo niosa é festejada pelos pacientes No caso específi Psicossomaticaindd 347 Psicossomaticaindd 347 05012010 121217 05012010 121217 348 Mello Filho Burd e cols co de vinho tinto existem fortes evidências de que o consumo do mesmo em quantidades moderadas é benéfico e portanto pode ser consentido A suspensão do tabagismo é classicamente uma empreitada difícil Porém a cirurgia cardíaca fun ciona como um estímulo muito forte talvez o mais forte de que se tem notícia Assim embora seja uma restrição a mais é relativamente bem aceita Uso crônico de medicamentos Em muitos casos é necessário o uso por tempo indeterminado após a cirurgia de medicamentos tais como digital diuréticos antianginosos A maioria dos pacientes não aceita isso facilmente Frequentemente contam o número de comprimidos ingeridos por dia Talvez isso os incomode tanto porque representa uma lembrança permanente de sua doença Uma maneira de lidar com o problema é observar que assim como o organismo sadio precisa de alimentos o tempo todo senão não se mantém vivo o doente operado pode precisar de remédios constantemente Outra maneira é dar uma visão positiva como ainda bem que eles existem tentando fazer com que seu uso seja incorporado à rotina de vida do pa ciente Aqui também a cirurgia quando permite a re dução de medicamentos funciona como estímulo Atividade sexual e reprodução Como é de se esperar as preocupações sobre atividades sexuais são comuns e importantes entre pacientes operados Nos homens a atividade sexual por si mesma pode ser o foco principal de preocupa ções Do ponto de vista médico quase nunca se deve proibir atividade sexual a não ser nas fases imediatas à cirurgia Quando tal atividade pode precipitar des compensação cardíaca como em insuficiência car díaca severa a própria depressão circulatória inibe a libido Em casos de angina precipitada por atividade sexual a cirurgia em geral alivia a dor e libera a ati vidade sexual Por outro lado o uso disseminado dos inibidores de fosfodiesterase como viagra e outros aumentou substancialmente a atividade sexual de pa cientes mais idosos melhorando a qualidade de vida Seu uso deve ser prescrito ressalvas contraindicações específicas Assim de modo geral a cirurgia cardíaca não é empecilho à vida sexual ativa muito ao contrário Isso é o que deve ser informado ao paciente No caso da mulher a capacidade reprodutiva deve ser aborda da A não ser em casos muito graves nada impede a gravidez e o parto normal após cirurgia cardíaca Reperações Sendo a cirurgia cardíaca uma operação compli cada dolorosa com riscos o ideal é que fosse defi nitiva Uma só e estaria tudo resolvido Infelizmente nem sempre é assim Cirurgias valvares congênitas ou coronárias eventualmente precisam ser repetidas É evidente que essa notícia tem grande impacto ne gativo nos pacientes Felizmente o número de reope rações não é tão grande em percentual Mas isso não interessa para quem vai ser reoperado para este é 100 A perspectiva que se deve oferecer é a de que sendo necessário o procedimento este pode ser re petido Mesmo que custoso ainda pode ser repetido com sucesso Não se devem ocultar do paciente possí veis reoperações Devese tentar fazêlo compreender que na luta pela recuperação da saúde mais de uma tentativa pode ser necessária Neste contexto deve se considerar que para muitos pacientes a repetição do estudo hemodinâmico é mais apavorante que a própria cirurgia Para outros a UTI amedronta mais Mas os problemas de reoperações devem ser tratados como eventos mais distantes que deverão ser enfren tados se e quando surgirem Nos doentes coronários é importante salientar que o controle da evolução da doença quando existem fatores de risco coronário como tabagismo e hipercolesterolemia depende em grande parte do próprio paciente Isso o estimula a cooperar no tratamento Integração psicólogomédico uma formulação baseada na prática A conduta dos profissionais de saúde diante de pacientes que se submetem à cirurgia cardíaca deve hoje considerar a grande disseminação dos conhe cimentos médicos na imprensa leiga e portanto o grau de informação dos pacientes Hoje praticamente tudo o que é descoberto aparece na mídia Os pró prios pacientes buscam na internet informações sobre suas doenças tratamento e mesmo o perfil dos seus médicos Isto em princípio é sadio Porém é preciso lembrar que a capacidade de filtrar separar o bom do ruim ou o verdadeiro do especulativo Além do mais o conhecimento muda rapidamente Nem sem pre promessas aparentemente bem fundamentadas se consolidam na prática Por exemplo recentemente stents coronários recobertos com medicamentos pa reciam ser uma grande solução porque diminuíam os Psicossomaticaindd 348 Psicossomaticaindd 348 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 349 índices de restenoses de lesões coronárias Bastaram poucos anos de observação e seu uso disseminado em populações do chamado mundo real para surgirem complicações até então insuspeitas e que resultaram em rápidas mudanças de conceitos Salientase isso para enfatizar a necessidade de os profissionais de saúde psicólogos e médicos estarem cientes dessas novas exigências de seus pacientes e tratálas com transparência e total honestidade Na fase hospitalar nosso trabalho MFPO tem executado sob a forma de dinâmica de grupo atendimento personalizado e no caso de crianças com orientação aos pais e a elas A eficiência do tra balho depende de algumas condições básicas noto riamente 1 Conhecimento dos problemas específicos do pa ciente e da operação a que irá se submeter O psicólogo precisa ter conhecimento adequado da cirurgia dos métodos diagnósticos e dos proce dimentos a serem empregados Tais informações técnicas o psicólogo poderá obter facilmente jun to à equipe médica 2 Devido ao curto espaço de tempo disponível de mais ou menos 10 dias de internação hospitalar procurar manter o paciente no aqui e agora da operação Isso contrasta nitidamente com a ati vidade habitual do psicólogo que tem tempo ili mitado para trabalhar os problemas crônicos dos pacientes 3 Nada disso é suficiente se não houver bom en trosamento do psicólogo com a equipe médica e de enfermagem À medida que a experiência for sendo acumulada parecenos conveniente ado tar algumas condutas até então pouco usáveis Isso incluiu a adoção de visitas regulares na UTI e orientação ao corpo de enfermagem no sentido de dar aos pacientes um tratamento mais huma no e carinhoso Em casos de pacientes crônicos na UTI permitese o uso de rádio e TV e refeições com uma pessoa da família sempre de comum acordo com a orientação médica e da enferma gem A orientação psicológica a longo prazo poderá ser necessária mas dependerá de avaliação conjunta do clínico e do psicólogo Por fim a apreciação obje tiva dos resultados desse tipo de conduta que valo riza os aspectos emocionais do cardiopata operado depende de estudos controlados Porém as respostas positivas que temos obtido apresentam tal consistên cia que sugerem ser esse procedimento justificado e que provavelmente deve ser mantido REFERÊNCIAS Aberastury A Teoria y técnica dei psicoanálisis de ninos Buenos Aires Paidós 1962 Bersier AL Bloch A Le rôle du psychiatre dans une Unité de Soins Intensifs Méd et Hyg Genebra n 34 p 160916101976 Becker RD Children in the hospital Israel Ann Psych Rei Discip v 14 n 3 p240265 Sept 1976 Cassem NH Hackett TP Psychological aspects in myocardial in farction Med Clin N AmeI n 61 p 711721 1977 Friedman M Rosenman RH Association of specific over beha vior pattern with blood and cardiovascular findings 1 Amer Med Ass n 169 p 12861296 1959 Rozanski A Blumenthal JA Davidson KW Saab PG Kubzansky L The epimiology pathophysiology and management of psycho social risk factors in cardiac practice The emerging field of beha vioral cardiology J Am Coll Cardiol n 45 p 63751 2005 Mathews KA Gump BB Harris KF Haneuy TL Bareffot JC Hostile behaviors predict cardiovascular mortality among men enrolled in the Multiple risk Factor Intervention Trial Circulation n 109 p 6670 2004 The ENRICHD Investigators Effects of treating depression and low perceived social support on clinical events after a myocardial infarction the Enhancing Recoveru in coronary Heart Disease Pa tients ENRICHD randomized trial JAMA n 289 p 28 2003 Lesperance F FrasureSmith N Theroux P Irwin M the asso ciation between major depression and levels of soluble intercellu lar adhesion molecule 1 interleukin6 and Creactive protein in patients with recent acute coronary syndromes Am J Psychiatry n 161 p 2717 2004 Kivimaki M LeinoArjas P Luukkonen R Riihimaki H Vahte ra J Kirjonen J Work stress and risk of cardiovascular morta lity prospective 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364 p 93752 2004 Psicossomaticaindd 349 Psicossomaticaindd 349 05012010 121217 05012010 121217 O PACIENTE E SUAS EXPECTATIVAS Em um determinado momento da vida o indiví duo pode precisar de um cirurgião As circunstâncias em que o evento se dá são extremamente complexas e variáveis A partir de então todo um caleidoscópio de situações se desenvolve numa relação que é na maior parte das vezes forte próxima e temporária Pacientes com níveis elevados de comprometi mento da consciência só posteriormente se dão con ta da existência e extensão de atos cirúrgicos Essa tomada de conhecimento quando ocorre se desen volve em um processo complexo de entendimento reconstrução e adaptações às novas realidades im postas pela afecção causal e pela operação No primeiro contato o que o indivíduo vê e sen te muito depende das expectativas formadas pelas experiencias prévias das informações que recebeu e das fantasias que criou Já nos primeiros diálogos de aproximação e reconhecimento é importante que o cirurgião fique atento para o significado da doen ça e do tratamento para seu cliente e pessoas que o cercam Enquanto são recolhidas informações sobre a enfermidade e o paciente vai sendo examinado a atenção deve estar voltada paralelamente para o uni verso emocional que o envolve A arte de observar sabendo que está sendo agudamente observado sem que isso perturbe seu desempenho é uma aptidão de que os médicos dispõem em quantidades variáveis e que deve ser desenvolvida O que significa para o paciente a proposta cirúr gica e o que ele espera do seu cirurgião é geralmente tarefa simples e facilmente colocada a descoberto No entanto em algumas situações isso se torna ao mes mo tempo difícil e fascinante Muita vez a doen ça ou a proposta cirúrgica sofre todo um processo paralelo de utilização consciente ou inconsciente A identifica ção destes fatos permite ao cirurgião prever contornar e entender atitudes tomadas no decurso do processo cirúrgico Embutidas na decisão de operarse pode mos encontrar formas de mobilização afetiva tipos de auto ou heteroagressão ou posturas francamente suicidas A necessidade do estado de doença pode chegar a níveis capazes de inviabilizar qualquer esforço terapêutico Esta utilização pode chegar a ser tão forte que a sua ausência obriga a valerse da operação como sucedâneo de apoio justificató rio ou reivindicatório A presença de múltiplas in cisões abdominais sendo algumas brancas isto é sem achados completamente convincentes deve fazer lembrar a possibilidade de estar ocorrendo a chamada síndrome de Münchhausen ou doença F fraudulenta Nessa entidade um comportamento psiconeurótico faz com que o paciente simule qua dros abdominais alarmantes induzindo indicações operatórias repetidas Apesar de tudo isso o cirur gião atento à atitude psicológica de seu doente deve lembrarse de uma elementar regra prática no tra to com o paciente pela qual toda queixa funcional deve ser considerada como orgânica até prova em contrário A experiência dos cirurgiões está ponti lhada de observações em que do excesso de certeza na atribuição de causa psicológica a uma queixa clí nica resultaram desastrosas consequências O padrão das relações entre o cirurgião e seu paciente é também decisivamente influenciado por fatores como experiências semelhantes vividas pelo cliente forma de encaminhamento e o impacto dos primeiros contatos com o cirurgião Na dependência de experiências prévias ele pode apresentarse inse guro da competência dedicação e seriedade do cirur gião o que torna por vezes difícil a reversão desta expectativa e a sua condução através do desafio da proposta cirúrgica Essa desconfiança pode manifes 25 O PACIENTE E SEU CIRURGIÃO Fernando Luiz Barroso Psicossomaticaindd 350 Psicossomaticaindd 350 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 351 tarse mais ou menos ostensivamente mais ou menos agressivamente e é causa frequente de um curso aci dentado no relacionamento durante a internação A firmeza e correção das atitudes iniciais são indispen sáveis na minimização dos problemas futuros Deve mos lembrar que em alguns casos a atitude agressiva e suspeitosa faz parte mais de um contexto de barga nha e possessividade do que de uma simples rejeição ou regressão A maioria entretanto parece neces sitar sobretudo uma postura solidária e atenta por parte da equipe médica e de identificar no cirurgião a competência esperada Uma das deformações mais comuns é a que procura ver o cirurgião como um ser onipotente e fantástico capaz de evitar o sofrimento e a morte Ceder à tentação de permitir o crescimento exagerado de sua própria imagem constitui um erro grave comum em profissionais despreparados técni ca afetiva e moralmente para o exercício da medi cina Por outro lado a transparência de indecisão e dúvida só é tolerada em doses muito pequenas sob pena de afetar grandemente a segurança do pacien te Em pacientes idosos é mais frequente observarse um exagero da dependência do médico gerada pela própria consciência de sua fragilidade orgânica A fi xação excessiva no cirurgião não é muito diferente da que ocorre com o médico em geral Talvez a cirurgia pela sua imagem agressiva e mágica se preste mais a este desvio da relação ideal Sua ocorrência com pacientes do sexo oposto gera situações complexas e constrangedoras que exigem equilíbrio firmeza e delicadeza por parte do profissional A existência e o grau de ansiedade e inseguran ça causadas pela expectativa de sofrimento morte mutilação e castração devem ser atentamente ob servados e investigados A criação de um clima que permita ao paciente dentro do seu próprio ritmo e força ir expondo ou deixando perceber seus temores abre espaço para que sejam esclarecidos seus proble mas e as propostas médicas na justa medida da sua capacidade e disposição de conhecêlos Ao observa dor atento fica claro em alguns pacientes quais os limites estabelecidos para o exercício da verdade A ultrapassagem desses limites só deve ocorrer por ra zões bastante consistentes Entretanto na ocorrência de eventos desfavoráveis deve ser sempre lembrado que o cirurgião não se encontra ao abrigo de críticas e cobranças A presença física do cirurgião com o tamanho das suas decisões e as fantasias construídas a seu re dor inibe parcial ou totalmente a comunicação ade quada sendo necessários toda uma atenção e traba lho voltados para que sejam criadas condições em que o paciente se permita mostrarse No desenvolvimento do processo de avaliação e condução psicológica do paciente a presença atual ou passada de anormalidades psiquiátricas ou desvios dos padrões aceitáveis da conduta ou da afetividade deve motivar uma atitude vigilante ou terapêutica sempre que possível com o concurso de profissionais especializados e experientes no trato com o doente cirúrgico Essa necessidade é maior quando a propos ta cirúrgica envolve mutilações desfiguramento ou seria impotência funcional As intervenções eletivas devem ser adiadas enquanto uma estabilidade emo cional compatível com a programação traçada não for alcançada Algumas vezes a anestesia desperta angústia maior do que a operação Em proporções va riáveis essa sensação parece ligarse à ideia de per da do controle ausência desligamento separação e morte Neste momento a visita do anestesista dando corpo a uma figura abstrata explicando entendendo e acalmando o paciente tem um enorme significado na redução da ansiedade e todas as suas consequên cias A utilização da presença e das informações pro porcionadas por outros profissionais há mais tempo envolvidos com o cliente é sempre de grande valor Esta transferência de conhecimentos e credibilidade deve sempre ser utilizada a favor da melhor condu ção do caso Assim como o primeiro contato com o seu me dico é um fator decisivo para todo o processo de rela cionamento posterior também o impacto inicial cau sado pelos demais componentes da equipe de saúde e pelo ambiente hospitalar é fundamental É usual ocorrer uma observação crítica inicial capaz de notar registrar e eventualmente ampliar toda e qualquer falha humana e material a ponto de comprometer uma proposta de tratamento já consentida Da mes ma forma o encontro de ambiente receptivo e soli dário eficiente nas providências iniciais e longe do contato com doentes graves e terminais condiciona uma atitude de cooperação nas diversas etapas do tratamento programado Até mesmo resultados abai xo da expectativa e iatrogenias são melhor entendi dos e assimilados Sob esse aspecto a medicina das instituições públicas no seu pouco entusiasmo pela conquista do paciente mais frequentemente resva la em um atendimento abaixo do desejável à pessoa doente O CIRURGIÃO SUAS PRECAUÇÕES E PROPOSTAS O exercício continuado de tomada da grandes decisões sobre a vida o sofrimento e a morte esti mula no médico o crescimento da sua onipotência Essa distorção depende muito do indivíduo que existe atrás do profissional do tipo de informação de que ele dispõe nesta área da permissividade do sistema e Psicossomaticaindd 351 Psicossomaticaindd 351 05012010 121217 05012010 121217 352 Mello Filho Burd e cols é provavelmente maior em certas especialidades O medo e a fragilidade do paciente são estímulos passi vos e ativos a essa anomalia Ela é a um tempo causa e consequência de graves erros do atendimento mé dico pessoal e institucional respondendo frequen temente por condições iatrogênicas e intervenções desnecessárias Sua atenuação e controle por certo depende de investimentos maiores na educação mé dica na elevação dos níveis de exigência sobre qua lificações humanas para o exercício da profissão em todas as frentes de trabalho Se a hipertrofia da imagem deve ser evitada sua deformação descaracterização ou apagamento constituem falhas igualmente graves A todo momen to no ato de conduzir ou esclarecer seu cliente o cirurgião usa consciente ou inconscientemente sua imagem e muitas vezes se descuida de nela fazer al guns investimentos A composição desta imagem não passa apenas pela ostentação da competência técnica e solidariedade pessoal inegavelmente as exigên cias maiores mas também pela atenção disponível apresentação pessoal linguagem etc Uma norma preliminar importante é a de que de uma maneira geral o paciente deve merecer a atenção dos primeiros momentos e não a doença Salvo nas situações de grande risco imediato as prio ridades do paciente também devem ser consideradas e não apenas as médicas Nas emergências de modo geral e principalmente no trauma a necessidade de informação a terceiros e outras providências de or dem pessoal não devem sob nenhum pretexto ser menos valorizadas Como já foi dito no primeiro contato a pessoa e sua doença são examinadas simultaneamente en quanto o médico também é agudamente observado Verdades muito traumatizantes devem ser adiadas até um melhor conhecimento da capacidade e disposição do paciente em absorvêlas e administrálas Geral mente o paciente sinaliza apontando o momento e a intensidade das verdades que deseja conhecer O cirurgião deve evitar anteciparse a estes sinais salvo quando providências maiores precisam ser tomadas e a cooperação informada tornase necessária Deve mos também sempre lembrar que o paciente lúcido é o único senhor das decisões finais tomadas sobre seu corpo e sua vida A Medicina moderna a todo momento conspi ra contra a relação médicopaciente ideal Cada vez mais o individuo é conduzido manipulado e invadi do por inúmeros representantes da equipe médica nem sempre homogênea nas atenções a sua sensibili dade e a suas emoções É importante que as pessoas lhe sejam apresentadas e seja explicada a programa ção da atenção medica que lhe vai ser dispensada A definição do responsável pela condução final do caso e dos responsáveis setoriais é uma providência mais ou menos exigida porém sempre desejável Também deve ser prestada informação sobre a sequência de eventos que vão ocorrer no pré e no pósoperatório num grau maior ou menor de detalhamento confor me o caso e a pessoa Isso é verdadeiro mesmo para pacientes mais simples e aparentemente conforma dos Muitas das reações indesejáveis do pósoperató rio são evitadas pelas informações e esclarecimentos prévios Ainda sobre as informações dadas ao pacien te cabe referir uma área delicada a das expectativas do tratamento e da operação a médio e longo prazos Deve ser cuidadosamente buscado o equilíbrio entre as razões e benefícios da intervenção proposta e os riscos e inconveniências nela embutidos A criação de uma expectativa fantasiosa buscando a mobilização ou conquista do paciente para sua proposta é muito frequentemente punida com a decepção a censura e a desconfiança permanente do paciente Atenção especial deve ser tomada com as altera ções do comportamento induzidas por drogas Qua dros de ansiedade euforia depressão ou outros fran camente psicóticos podem ser causados pelo uso ou pela supressão de inúmeros medicamentos ou tóxicos usados pelo paciente O álcool é em nosso meio in dubitavelmente a droga mais vezes responsável por quadros de supressão Ao crescer o número de indi víduos dependentes de drogas pesadas mais vezes o cirurgião vai se defrontando com o problema Entre os medicamentos tem relevo especial o corticoide capaz de causar diversos graus de euforia ansiedade depressão por supressão e psicoses maníacodepres sivas ou esquizofrenoides Drogas como diazepínicos barbitúricos anti concepcionais mais comumente e uma enorme lista eventualmente podem responder por atitudes ines peradas no indivíduo em vias de ser operado ou após sua operação DEPOIS DA OPERAÇÃO A prática correta da Medicina exige a utilização de técnicas modernas capazes de minimizar os sofri mentos que acompanham o despertar da anestesia o aguardar a cicatrização das feridas bem como supe rar as complicações A busca do conforto do paciente no pósoperatório imediato não deve ser encarada apenas como um exercício de relações humanas mas também senão sobretudo de técnica O paciente com a ansiedade e a dor sob controle apresenta evidências claras de melhor desempenho cardiovascular e respi ratório com todas as suas demais implicações A prá tica de esperar pela dor para tratála é descabida em situações em que ela está sabidamente presente e os Psicossomaticaindd 352 Psicossomaticaindd 352 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 353 inconvenientes da analgesia são pequenos A subva lorização da ansiedade e a utilização insuficiente de analgésicos são erros comuns nestas circunstâncias Sem isso fica prejudicada a cooperação do paciente na tosse voluntária nos exercícios respiratórios na redução da deglutição de ar no restabelecimento da micção espontânea e demais cuidados necessários à sua recuperação Poucas vezes ressaltada adequadamente a iden tificação de pessoas amigas e do médico assistente no despertar da anestesia tem um efeito positivo Nem sempre entretanto isso é possível Ora pela lentidão do processo de recuperação da consciência que difi culta a permanência do cirurgião ora pelas rotinas das instituições que em nome de um suposto melhor desempenho operacional valorizam menos estes as pectos Após o ato cirúrgico a palavra de tranquilida de e a informação bem dosada dadas pelo cirurgião são esperadas por todos os pacientes A atenção e a atitude solidária não são substituíveis por nenhum medicamento Um aspecto importante que deve ser sempre lembrado é a exteriorização inicial de complicações orgânicas por alterações do comportamento Isso é sobretudo frequente em pacientes idosos quando graus variáveis de disfunção cerebral se constituem na primeira manifestação de intercorrências como infecção insuficiência circulatória respiratória he pática ou renal No curso da recuperação de uma intervenção a presença do cirurgião é importante na medida em que o paciente o vê como o principal responsável e fiador pelos acontecimentos em curso Sobretudo diante de situações em que equipes multidisciplinares estão atuando é muito difícil para o enfermo entender a organização das múltiplas equipes suas atribuições e responsabilidades Sempre que possível o pacien te deve ser apresentado às novas pessoas e explica das as novas manipulações e invasões a que vai ser submetido Essa preocupação estimula a preservação da autoestima e da autodeterminação sempre muito agredidas nestas circunstâncias No momento de de cisões mais sérias ou da necessidade de providências diagnósticas ou terapêuticas maiores a presença do cirurgião é sempre esperada A aceitação maior ou menor da sua ausência muitas vezes inevitável de pende fundamentalmente da imagem de harmonia e entrosamento funcional de sua equipe Embora a alta hospitalar após uma operação cirúrgica seja essencialmente uma decisão do cirur gião responsável ela deve sempre que possível ser transformada numa decisão compartilhada pelo pa ciente O seu deslocamento do ambiente hospitalar para o ambiente doméstico por vezes traz uma sen sação de insegurança que deve ser minimizada pela transmissão da certeza de que haverá continuidade na assistência médica que vinha sendo prestada Faz se necessário um momento de discussão calma e programada em que todas as alternativas mereçam orientação adequada e sobre espaço para que o enfer mo seus acompanhantes e responsáveis apresentem suas dúvidas e temores O PACIENTE CIRÚRGICO COM DOENÇA MENTAL Se em indivíduos mentalmente normais a ro tura do bemestar somático causa ansiedade e inse gurança em diversos graus no paciente com doença mental a doença orgânica e o tratamento cirúrgico se apresentam como sobrecargas ameaçadoras à or ganização mental disponível Outras vezes a eclosão de quadros psiquiátricos representa manifestações sintomáticas de condições orgânicas subjacentes ou iatrogênicas conforme já mencionado Situações diferentes se apresentam ao cirur gião Alguns pacientes são portadores conhecidos de psicopatias e já dispõem de acompanhamento médico especializado É necessária neste momento a organização de um sistema de trabalho envolven do o médico o psicoterapeuta demais profissionais participantes do caso e os responsáveis pelo doente A orientação traçada deve ser construída em con junto e as reações observadas devem igualmente ser compartilhadas por todos O psicoterapeuta precisa de constantes esclarecimentos sobre a doença orgâ nica em curso para melhor planejar sua abordagem assim como é indispensável ao cirurgião o conheci mento do tipo de distúrbio sua evolução provável nível de cooperação esperado assim como sempre que possível quais os riscos de uma atitude auto mutiladora ou autodestrutiva Nunca é demais su blinhar a importância do acompanhamento diário dos pacientes cirúrgicos pela rapidez variedade e complexidade com que podem evoluir quadros or gânicos ou mentais Outras vezes anormalidades do comportamen to ou da afetividade são identificadas pelo cirurgião e são toleradas ou assimiladas pelo ambiente que cer ca o paciente Sabemos que essas anormalidades são prenúncios de dificuldades para a condução segura do processo terapêutico A existência no passado de tratamento psiquiátrico tem o mesmo significado Nesses casos na ausência de fatos novos que sejam grosseiramente anormais ou chocantes para os pa rentes ou responsáveis fica dificultada muitas vezes a mobilização de um psicoterapeuta O cirurgião deve estar preparado para estabelecer limites bem defini dos à sua transigência nessas circunstâncias Psicossomaticaindd 353 Psicossomaticaindd 353 05012010 121217 05012010 121217 354 Mello Filho Burd e cols O padrão usual de comportamento psíquico dian te das altemativas da doença e da terapêutica pode ser comprometido em qualquer fase do processo Muitas vezes o acompanhante ou a equipe de enfermagem ob servam alterações como pensamento confuso obser vações ilógicas alterações no humor e na afetividade alucinações auditivas ou visuais ilusões ou delírios com diversos graus de perda de contato com a reali dade e de modificações no comportamento Esses fa tos no paciente cirúrgico devem ser entendidos como uma complicação importante e até segunda avaliação como graves Atenção especial deve ser dada às altera ções que sugerem risco de danos ao próprio doente ou aos pacientes dos leitos vizinhos Já ouvimos histórias de terror causadas por um paciente que num surto psi cótico perambula pelas enfermarias à noite causando vários problemas aos demais enfermos Usualmente estes indivíduos já davam mostras de desorganização mental sem adequada atenção terapêutica e vigilância É fato notório a imprevisão crônica das nossas insti tuições para com a emergência psiquiátrica na grande maioria dos nossos hospitais gerais A possibilidade de tratarse de psicose orgânica induzida pela doença em curso ou por um dos re cursos terapêuticos em uso deve ser preliminarmente considerada investigada e se possível tratada Nem sempre é possível separála de um quadro mental pri mário que eclode precipitado pelas agressões a que a situação expõe o paciente Algumas síndromes são mais bem estudadas como aquelas que ocorrem no puerpério CTI cirurgia cardíaca mutilações e esto mas abdominais para citar apenas as mais comuns A maneira como estas entidades se apresentam segue padrões de que o cirurgião deve ter algum conheci mento No entanto não está ele preparado para fazer frente a situações mais complexas necessitando do apoio de equipes de saúde mental dentro dos hospi tais gerais integradas às demais especialidades ca pazes de desenvolver trabalhos de prevenção aten dimento interconsulta manipulação do ambiente avaliação e orientação das relações entre a equipe de saúde e os pacientes E inegável que o trabalho integrado do cirurgião com o psicoterapeuta resulta na melhor qualificação profissional de ambos Inúmeras situações não perce bidas por médicos e enfermeiras que por diversas ve zes e motivos encontramse pouco atentos à pessoa do paciente podem ser identificadas adequadamen te dimensionadas e orientadas por um grupo especia lizado atento Na medida em que essas experiências por contatos diretos ou discussões de grupo vão sen do passadas para os demais envolvidos no caso vão se criando uma linguagem e uma postura comuns A maioria dos cirurgiões não dispõe de instru ções básicas de como se comportar diante do surgi mento de uma emergência psiquiátrica na ausência de profissionais especializados Cabe a esses a atri buição de transferir conhecimentos e estabelecer cri térios para solicitação do parecer especializado Lin denmeyer e Kline 1979 definem situações em que a consulta especializada deve ser solicitada 1 Condição mental que significativamente interfere com o tratamento médico ou com procedimentos cirúrgicos 2 Pacientes com tendências suicidas ou homicidas 3 Quadros agudos psicóticos que oferecem proble mas sérios e variados aos demais pacientes e pes soal hospitalar em serviço Cabe também ao cirurgião preparar o pacien te sob sua responsabilidade para a consulta com o psicoterapeuta esclarecendo motivos reduzindo pre conceitos permitindo uma eficiente aproximação e atuação Antes da chegada do psicoterapeuta o cirurgião frequentemente tem que tomar providências terapêu ticas Cuidados iniciais de proteção ao paciente às pessoas e ao ambiente são mandatórios diante de des vios importantes do comportamento como agitação ansiedade e agressividade Deve ser empregado um mínimo de violência física no processo e ao fazêlo convém que se preparem previamente recursos hu manos capazes de desestimular a reação do paciente ou de contêlo sem machucálo Todo esforço deve ser realizado no sentido de estabelecer uma comuni cação razoavelmente lógica e firme O paciente deve ser tranquilizado de que nada o ameaça enquanto se pesquisam eventos orgânicos ou funcionais capazes de terem precipitado a crise atual Condições capazes de precipitar psicoses orgâ nicas devem ser imediatamente tratadas Devem ser avaliadas reações a drogas alterações gasometricas distúrbios hidreletrolíticos desnutrição acentuada anemia e condições que reduzem a perfusão cerebral Embora a insuficiência hepática renal e tireoidiana devam ser lembradas a causa mais frequente de psi cose orgânica no paciente hospitalizando ainda é a infecção O distúrbio mental é por vezes a primeira ou a única manifestação clínica relevante Outras condições como o uso de alucinógenos opiáceos álcool e anfetamínicos devem ser investigadas pelas consequências de seu uso e de sua supressão Pacien tes idosos são sobremaneira sensíveis a estes agentes apresentando precocemente diversos graus de disfun ção cerebral Diante de quadros ansiosos com agita ção importante e eventualmente quadros de auto ou heteroagressão podem ser empregadas drogas como diazepam iniciando com 25 mg IM ou IV e a seguir doses crescentes ou haloperidol 25 mg IM Psicossomaticaindd 354 Psicossomaticaindd 354 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 355 Quadros psicóticos funcionais podem ser inicial mente manejados com o mesmo esquema terapêuti co Em todas essas situações é mandatária a perma nente vigilância do paciente controlandose portas e janelas assim como objetos e drogas que possam ser usados como instrumentos de autoagressão A pre sença de assistência psiquiátrica deve ser imediata mente providenciada O cirurgião jovem acha fácil entender o paciente e difícil aprender a cirurgia Na medida que os anos passam a maturidade ensina que a cirurgia é certa mente muito mais fácil do que aprender a ajudar as pessoas que operamos REFERÊNCIAS Ferreira J R Barbosa H Amâncio A Problemas psicologicos em cirurgia In Controle clínico do paciente cirúrgico 3 ed Rio de Janeiro Atheneu 1969 Lindenmeyer JP Kline N S Emergencies in medical surgical Or obstetric patients who are severely ill In Schwartz G R Safar P Stone J H et al Principles and practice of emergency medicine Philadelphia Saunders 1979 p 1201 1979 Mello Filho J Concepção psicossomática da teoria à prática mé dica Tese de Coneurso à LivreDocência de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UFRJ Rio de Janeiro 1976 Musl H L Acute psychoses In Condon R E Nihus L M Manual of surgical therapeutics 6 ed Boston Little Brown 1985 Psicossomaticaindd 355 Psicossomaticaindd 355 05012010 121217 05012010 121217 A Cirurgia Plástica encerra uma finalidade trans cendente que é a tentativa da harmonização do cor po com o espírito da emoção com o racional visando a estabelecer um equilíbrio interno que permita ao paciente reencontrarse reestruturarse para que se sinta em harmonia com sua própria imagem e com o universo que o cerca A avaliação da arquitetura corporal além de envolver a análise minuciosa de cada estrutura e o equilíbrio global de seus elementos se complementa através de uma percepção lúdica do indivíduo e de seus anseios Cada raça possui seu próprio conceito de bele za que sofre mutações com as idiossincrasias e filo sofias de cada época E ainda dentro de uma mes ma raça cada ser humano tem seu próprio sentido de imagem conforme seu temperamento cultura e sensibilidade a determinar sua forma particular de perceber conceber de sentir o mundo de raciocinar e de julgar Mas que sentido de imagem seria este A ima gem por nós percebida ou a que a nossa empatia percebeu como o outro nos vê Porém qualquer que seja o tipo étnico o fator que universalisa a imagem corporal é a procura do bemestar íntimo é estar feliz com sua imagem O cirurgião sendo um escravo da forma e da anatomia muitas vezes se sente frustrado pois li dando com o ser humano o acrescentar e o tirar es tão mais sujeitos às leis do próprio corpo do que sua força criativa Além de enfrentar essas limitações de ordem anatômica o cirurgião encontrase diante de um ser que pensa que se interpreta e que escolhe seu Deus Como na análise do corpo políticosocial tam bém os estudiosos do indivíduo em seu complexo psicossomático buscam arrancar da natureza huma na alguns de seus segredos Como o pintor prepara sua tela suas tintas o escultor sua pedra devemos preparar o ser antes de nele intervirmos O corpo lú cido toma iniciativa incluise na decisão BELEZA A beleza é mais profunda que a superfície da forma Embora seja fácil reconhecêla na verdade conceituála é extremamente difícil Platão em Fedro já afirmava que só à beleza coube o privilégio de ser mais evidente e mais sen sível Considerase a beleza como a afirmação do en contro entre a alma e a natureza a afirmação da su premacia do bem aproximandose do ideal de que o belo é quase superior ao bom porque contém o bem em si mesmo A beleza como perfeição sensível nasce com a estética significando de um lado a representação sensível perfeita e de outro o prazer que acompa nha a atividade sensível O belo é o que agrada uni versalmente e sem conceitos formando como queria Kant uma trindade junto com o verdadeiro e o bem O que há de mais extraordinário e belo no com portamento humano é a sua diversidade e plurali dade estética A necessidade do belo foi sem dúvida percebida pelo primeiro homem Ao separar o dedo polegar o antropoide partiu da apreensão pura à de licadeza do gesto e a partir daí para a busca da be leza O ser humano nunca desejou ser diferente na medida em que essa diferença implicasse no distan ciamento do seu grupo Sua conceituação de beleza portanto esteve sempre mais ligada à semelhança com os seus pares Nas características pertinentes ao seu núcleo ele encontrava maior ou menor harmonia Esse sen tido de identidade dentro das diferentes etnias era mais fácil de ser conservado pois vivendo afastados uns dos outros tinham seus próprios padrões de bele za e os preservavam por falta de comparação Hoje quando os meios de comunicação promo vem a difusão da informação de maneira intensa e extensa mesmo populações assentadas nos mais er mos locais são atingidas em seus núcleos onde an 26 ASPECTOS FILOSÓFICOS E PSICOSSOCIAIS DA CIRURGIA PLÁSTICA Ivo Pitanguy Francisco Salgado Psicossomaticaindd 356 Psicossomaticaindd 356 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 357 tes eram guardados intactos seus conceitos próprios de vida E a informação porque excessiva infiltrase como um elemento de ruptura das estruturas concei tuais do grupo gerando sonhos impossíveis Tal fe nômeno cria no individuo o desejo de ser semelhante não mais ao seu próximo mais sim a este ou àquele grupo RAÇA Observandose que as chamadas diferenças ra ciais desempenham papel importante na determina ção das relações interpessoais e internacionais deve mos analisar o conceito de raça A palavra raça segundo Gobineau designa um grupo de pessoas que apresentam certo parentesco por seus caracteres físicos anatômicos ou fisiológicos ou por seus caracteres somáticos Tratase de um grupo es sencialmente natural não tendo nada em comum com as noções de povo nacionalidade língua e costumes mantendo suas origens em sua evolução histórica Evidentemente o conceito de raça não deveria ser aplicado a indivíduos em particular mas apenas a grupos populacionais Ademais ao se definir uma raça subentendese que os traços físicos considerados significativos devem ser tais que possam ser transmi tidos aos descendentes Aparentemente os caracteres considerados como índices raciais não são transmiti dos por um só gene mas pela combinação de consi derável número de genes o que dificulta ainda mais uma abordagem classificatória Os caucasianos representam juntamente com os bascos e os antigos etruscos o que resta da grande família étnica que ocupou a Europa antes do desen volvimento da grande família indoeuropeia indo iranianos armênios grecolatinos celtas germanos eslavos e bálticos Os caucasianos de modo geral têm pele clara lábios finos e nariz afilado Porém existem negros que apresentam as mesmas características labiais e nasais que os caucasianos Este fato levanos a questionar a existência de raças humanas puras Supõese que atualmente toda a população esteja muito miscigena da o que não particulariza as comunidades moder nas pois a mesma situação já era observada há mais de 2 mil anos Assim toda a pretensão à existência de grupos raciais puros é em suma incoerente Podese até mesmo considerar que no início da história da humanidade existiram linhagens puras que com o passar do tempo se fundiram produzin do as populações mistas hoje existentes Atualmente porém ao abordarmos as diferen ças étnicas referimonos a divisões gerais convencio nais Pouco se sabe a respeito da origem das raças humanas e menos ainda sobre o possível resultado de fusões raciais futuras Em nosso país Gilberto Freire acentua a na tureza interregional e transacional da formação do homem brasileiro contrastando com o caráter mono lítico de outros povos A coexistência de grupos raciais diferentes e a sua miscigenação não deveriam produzir nenhum conflito Entretanto os antagonismos existem e ge ralmente são devidos a diferenças socioeducacionais As diversidades culturais étnicas constituem um fe nômeno natural resultante das relações diretas ou indiretas entre as sociedades A atitude mais antiga e que se baseia em fundamentos psicológicos sólidos consiste em repudiar pura e simplesmente as formas culturais morais religiosas sociais e estéticas opos tas às nossas Essa atitude pode abalar a autoconfian ça e a autoestima do indivíduo inabilitandoo a uma vida social equilibrada IMAGEM CORPORAL A imagem corporal é um componente importan te em todo o complexo do mecanismo de identidade pessoal De forma simplificada a imagem que uma pessoa tem de sim mesma é formada pela interrela ção entre três informações distintas a imagem idealizada ou aquela que se deseja ter a imagem representada pela impressão de tercei ros informações externas a imagem objetiva ou o que a pessoa vê olhando e sentindo seu próprio corpo Assim a luta pelo aprimoramento da própria imagem ou a manutenção de sua integridade é uma poderosa força de motivação Existem condições em que os pacientes apresen tam o que Aguirre em 1975 classifica como dismor fofobia ou seja uma síndrome psicopatológica que frequentemente conduz o portador a procurar um cirurgião plástico solicitando solução cirúrgica para um defeito que segundo ele próprio é o responsável por toda a sua desgraça Coube a Morselli em 1886 a primeira descrição desta situação Em 1903 Janet definiu o quadro como a obsessão da vergonha do corpo que seria uma forma patológica da consciên cia do corpo É importante o conhecimento destas condições para que se possam analisar os casos que enquadra vam na faixa da normalidade ou seja os pacientes que têm uma visão real e equilibrada de si e do mun do e que desejam apenas submeterse a uma cirurgia plástica com o objetivo de elaborar ou aprimorar sua Psicossomaticaindd 357 Psicossomaticaindd 357 05012010 121217 05012010 121217 358 Mello Filho Burd e cols imagem Dessa forma estariam procurando reforçar e melhorar o conceito íntimo de sua identidade pessoal É o caso das rinoplastias mamaplastias ou abdomino plastias além de cirurgias eminentemente reparadoras que proporcionam ao indivíduo uma nova força vital levandoo a uma melhor aceitação de si próprio Tagliacozzi em 1597 Roe em 1887 e Kolles em 1911 já haviam relatado grandes alterações psi cológicas em pacientes submetidos a procedimentos cirúrgicos reparadores ou restauradores Observaram uma evidente reintegração destes pacientes com o seu mundo interior e com a sociedade Segundo Schacter em 1962 quando e se devi do a um acidente ou doença algo ocorre que destrói ou modifica qualquer parte do nosso corpo nós ne cessitamos reorganizar completamente a nossa pró pria imagem e enfim a concepção que fazemos de nós mesmos A Psicanálise exerce um papel fundamental no preparo e acompanhamento de pacientes portadores de deformidades congênitas ou adquiridas que neces sitam reestruturar ou resgatar sua imagem corporal Pick em 1948 publicou os resultados de um tra balho pioneiro que consistiu em corrigir deformidades em presidiários Sugeriu que tais cirurgias foram de grande auxílio na reabilitação de criminosos relatan do que as deformidades podem contribuir para a mar ginalização do indivíduo Masters em 1962 revelando fotografias de pessoas envolvidas em vários tipos de atos criminosos reportou a incidência significativa mente alta de alguns tipos de deformidades faciais Tornase clara a crescente importância da Ci rurgia Plástica mas é imprescindível que o cirurgião saiba distinguir os motivos que levam um paciente ao seu consultório antes de operálo Não se pode cor rer o risco de interpretações errôneas Muitas vezes o paciente transporta para uma parte do corpo co mumente a face o cerne de seus problemas emocio nais Operálo sem uma visão real do motivo de suas queixas poderá levar o paciente a eleger outra parte do corpo agravando seu quadro psíquico É aí que o cirurgião necessita da colaboração do psicólogo do psicanalista eou do psiquiatra objeti vando elaborar um parâmetro entre o que o paciente refere o que ele vê e o que sua experiência lhe en sinou A deformidade e o grupo social Segundo Eugene Meyer em 1957 para com preender a representação real da deformidade deve ser analisado atitude social e cultural atitude e reação familiares atitudes individuais e intrapsíquicas A deformidade afeta o comportamento do indi víduo e do grupo que por sua vez com o seu com portamento interfere profundamente no senso sub jetivo que o indivíduo tem da deformidade Tornase claro que é importante então avaliar de onde procede o paciente Além disso muitas vezes são produzi dos conceitos de beleza segundo a moda vigente Por outro lado enquanto pessoas de determinada cultura podem considerar as cicatrizes como uma mutilação grosseira para outras como por exemplo certas tri bos africanas elas representam sinal de status e mo tivo de grande orgulho Na história da humanidade há vários exemplos de repúdio à deformidade Em Esparta os recémnas cidos imperfeitos eram atirados num precipício Na Idade Média crianças portadoras de deformidades congênitas eram assassinadas por serem considera das filhas do demônio Meyer em 1943 estudando os povos árabes nômades observou um verdadeiro hor ror à deformidade resultando em isolamento social do indivíduo e até mesmo sua eliminação Na cultura ocidental há certos modelos de bele za dos quais de um modo ou de outro a maioria das pessoas procura se aproximar ou se enquadrar Neu mann em 1960 publicou um trabalho a respeito do elevado número de rinoplastias em Israel Os pacien tes não queriam sob hipótese alguma esconder sua origem renegar sua filiação racial e religiosa e se afas tar de seu meio social Apenas desejavam obter formas enquadráveis aos padrões de beleza da época Ser aceito pelo seu grupo e nele obter uma po sição de destaque é o objetivo da maioria das pessoas que tenta alcançar a chamada realização Para os portadores de deformidades físicas desde a infância uma adaptação social satisfatória depende muitas vezes mais do apoio e do afeto da família do que do próprio defeito MacGregor e Schaffner em 1950 relatam que a motivação dos pais e parentes frente a uma defor midade na infância pode moldar as próprias reações desta criança Se o cirurgião constatar que a motivação de uma cirurgia é primariamente conduzida por tercei ros terá uma base legítima para refutar a cirurgia ou em último caso adiála A CORRELAÇÃO ENTRE A CIRURGIA ESTÉTICA E A REPARADORA A luta constante do cirurgião no sentido de con ferir à Cirurgia Plástica merecida dignidade está re Psicossomaticaindd 358 Psicossomaticaindd 358 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 359 fletida na crescente correlação entre os aspectos esté ticos e reparadores da especialidade Basicamente a cirurgia estética objetiva melhorar a forma enquanto que a reparadora restaura a função e restaura a for ma O tratamento de uma lesão envolve implicita mente a procura de uma harmonia estética A dualidade estéticoreparadora está presente nas orelhas em abano no lábio leporino e em diver sas outras patologias Nesses casos o objetivo da ci rurgia é reparar a malformação congênita ou adquiri da proporcionando uma unidade estética Assim sendo a cirurgia estética e a cirurgia re paradora se complementam sendo difícil definir o limite entre elas Ambas almejam alcançar um equi líbrio entre a estrutura orgânica e o aspecto anímico do ser humano A FACE A face é a identificação do ser com o mundo Através dela expressamos nossas emoções Por outro lado muitos interpretam as características estruturais da face como indício da personalidade ou do caráter Os gregos antigos associavam certas feições a características da personalidade Um nariz largo in dicaria preguiça pontudo seria irrascibilidade arre dondado representaria orgulho e as narinas abertas um temperamento raivoso Olhos pequenos represen tariam uma alma pequena e a grande letargia Testa pequena seria sinal de burrice e queixo pequeno fal ta de determinação No século XVIII Johann Kasper Lavater preconi zou que certas características faciais correspondiam a traços de caráter Embora suas teorias tenham se de monstrado falsas percebemos que ainda hoje temos a tendência de julgar os outros pela fisionomia Uma universidade norteamericana fez há al guns anos um estudo com uma série de fotografias que foram mostradas a um grupo de estudantes para que avaliassem a personalidade dos retratados Duas delas eram de um mesmo homem A primei ra tirada antes de um acidente automobilístico e a outra no pósoperatório imediato Na segunda foto sua face apresentava cicatrizes Baseados na primei ra os estudantes o julgaram honesto trabalhador e provavelmente de nível universitário Já na segunda acharamno pouco confiáveis de baixo nível social e possivelmente envolvido em atividades criminosas Nos dias de hoje sendo as relações interpessoais muito efêmeras a primeira impressão física é muito importante Por hábito social arraigado os indivíduos costumam tratar os outros de maneira estereotipada de acordo com aquilo que consideram mais ou menos belo Julgar alguém pelo comportamento expressão gestos maneiras posturas e conversação terá muito mais valor do que julgar pela aparência Mas é inteiramente razoável predizer por exem plo que um garoto com orelhas proeminentes terá uma vida difícil devido ao seu desvio do normal e que este isolamento afetará sua personalidade e re tardará seu desenvolvimento principalmente numa sociedade em que há uma grande cobrança quanto à beleza e à juventude Para o cirurgião plástico a beleza tem um sen tido amplo ligado ao bemestar do indivíduo objeti vando tornar normal àquilo que não é e normal é o que não se nota O homem através dos tempos busca a juven tude e recordando Fausta a juventude se confunde com a arte e a beleza Porém a meta da cirurgia do envelhecimento facial não é a juventude eterna e o cirurgião não pode ser um Mefistófeles dando a Faus to uma poção mágica como no grande poema de Goe the O propósito da cirurgia do envelhecimento facial é permitir ao indivíduo nesta difícil transição entre a maturidade e a senilidade viver esta experiên cia de maneira ativa e em harmonia Os pacientes que aceitam com tranquilidade sua idade terão uma satis fação maior com o resultado da cirurgia A face inestética devido a defeitos congênitos ou adquiridos mesmo que superficiais impõe um sério handicap à pessoa atingida que frequentemente destrói sua felicidade e coloca em perigo sua chance de sobrevivência social e econômica O trauma de face na infância além de desfigu rar o paciente deixa graves sequelas com repercus sões estéticas funcionais e psicológicas A alteração do desenvolvimento facial leva a atrofias hipoplasias e desarmonia da face na idade adulta O aumento da violência nas grandes cidades e o maior número de acidentes de trânsito tem produ zido traumas cada vez mais graves especialmente na região facial O nariz por sua posição proeminente é uma das estruturas mais expostas a traumatismos Após o impacto podemos verificar nos indivídu os as seguintes alterações efeito imediato mudança abrupta da realidade visão irreal da deformidade fragmentação do ego necessidade de suporte psicológico eou psicote rápico Surge no indivíduo questões existenciais como por exemplo Quem serei agora Psicossomaticaindd 359 Psicossomaticaindd 359 05012010 121217 05012010 121217 360 Mello Filho Burd e cols Terei as mesmas oportunidades O paciente deve estar preparado para uma lenta consciência da possibilidade de recuperarse E nes te aspecto é fundamental a presença de uma equipe multidisciplinar composta por intensivista cirurgião plástico ortopedia psicologia psicoterapeuta e ou tras Muitas vezes é difícil a compreensão da recupe ração e do resultado final uma vez que as cicatrizes resultantes podem perpetuar os sentimentos de dor e de culpa Os admiráveis avanços da cirurgia crânioma xilofacial revolucionaram e ampliaram a Cirurgia Plástica através de metodologias inovadoras que possibilitaram a correção de várias anomalias faciais congênitas e adquiridas Por outro lado uma série de procedimentos cirúrgicos pode ser empregada de forma isolada ou combinada na modificação do contorno da face visando à harmonização dos vários segmentos faciais Mas não se altera simplesmente a face de um indivíduo pois as incisões vão além da superfície cutânea atingindo também a psique e acarretando às vezes mudanças súbitas e profundas no caráter e na personalidade Mas a questão fundamental desta mudança não se encontra apenas na reconstrução da imagem física Na realidade o retrato que cada pessoa faz de si ou seja sua autoimagem é o que constitui o verdadeiro cerne da individualidade e do seu comportamento Através da reconquista do respeito próprio e da au toconfiança o paciente promoverá o redimensiona mento do seu eu O nariz O nariz pela situação anatômica que ocupa e pelo conteúdo simbólico que recebe constitui o pon to central o verdadeiro fulcro da face Os romanos consideravam o comprimento do nariz como indicação de masculinidade e virilidade Quando observamos a anatomia nasal verificamos características similares entre o nariz e os órgãos ge nitais ambos inclusive apresentam tecido erétil A importância simbólica do nariz tem sido atri buída a diversos fatores inclusive alguns de natureza sexual Na Índia e no Egito há 3500 anos e na Ale manha durante a idade média uma pessoa acusada e condenada por adultério era punida com a amputa ção do nariz uma castração simbólica Uma aparente insatisfação quanto ao aspecto do nariz pode representar um refúgio de dificuldades ligadas ao relacionamento afetivo A excessiva impor tância atribuída a uma pequena deformidade muitas vezes sublima problemas de ordem de natureza aní mica No indivíduo bem equilibrado independente da faixa etária a correção de pequenas deformidades nasais além de melhorar a harmonia facial propor ciona ao paciente uma grande satisfação pessoal Nos mais idosos as modificações estruturais devem ser sutis sem romper a longa convivência do indivíduo com sua fisionomia A MAMA Ao longo dos séculos a mama tem sido a caracte rística principal da feminilidade O conceito de beleza em relação ao tamanho e à forma ideal mamária vem sofrendo mudanças ao longo dos tempos No final do século XX as mamas volumosas e figuras robustas foram substituídas por figuras esbeltas com mamas menores refletindo um conceito de harmonia corpo ral representado pela mulher saudável e esportista Hoje em dia entretanto verificase um aumento sig nificativo na procura por mamas volumosas através de próteses mamarias nem sempre condizentes com o contorno corporal A mulher tem uma consciência aguçada do seu corpo e consequentemente das imperfeições da mama As deformidades mamárias levam a um de sequilíbrio estético corporal e a possíveis alterações funcionais e psicológicas Portanto quando pacientes portadoras de alterações mamárias procuram o cirur gião plástico com o desejo de se submeter a uma ci rurgia não podemos interpretar o fato apenas como uma preocupação estética mas sobretudo como uma necessidade de suavizar o desconforto físico e recuperar a harmonia corporal As principais deformidades mamárias mais fre quentes são Hipomastia A correção da mama pouco desenvolvida pode representar um fator fundamental no restabeleci mento da satisfação íntima da mulher o que enfatiza o papel da mama como um órgão sensual Os avanços da cirurgia mamária levaram esses benefícios a inúmeras pacientes portadoras de hi pomastia com a inclusão de próteses cada vez mais similares com o tecido mamário e com poucas com plicações Psicossomaticaindd 360 Psicossomaticaindd 360 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 361 Hipertrofia mamária Em nosso meio a deformidade mamária mais comum é a hipertrofia mamária Normalmente a pa ciente que irá se submeter à mamaplastia redutora está preparada para este tipo de cirurgia No entanto existem casos que precisam de alguma psicoterapia coadjuvante e o cirurgião plástico deve estar apto a reconhecêlos Na indicação de uma mamaplastia redutora o cirurgião deve estar atento para o significado das mamas e da cirurgia de redução no conceito da paciente baseado nas vivências da infância e na maturidade de sua personalidade fenômeno intrapessoal o significado das mamas e da cirurgia de redução na visão dos pais marido amigos e pessoas pró ximas ou seja sob o aspecto social fenômeno interpessoal Para a criança a mama significa fonte de su primento busca do leite e posteriormente pelo processo de erotização transformase num objeto de desejo busca do seio A mama acumula portanto atenções cuidados e investimentos libidinosos Quando a paciente deseja uma mamaplastia re dutora está trazendo sua visão particular e a do mun do externo Para algumas mudar o aspecto mamário significa transformar os sentimentos negativos do mundo em que vive A sensação de ausência de um corpo normal desenvolve muitas vezes um complexo de inferioridade Hipertrofia mamária não é mais uma questão de vaidade feminina mas um sério problema de imagem corporal constituindose em uma lacuna na vida des sas mulheres Desta forma segundo Goin em 1977 o estado eufórico no pósoperatório pode às vezes ser extremo como se essas pacientes tivessem recu perado o seu eu Em nossa casuística de mamaplastia reduto ra observamos que cerca de um terço das pacientes apresentava no préoperatório conflitos psicológicos relativos à sua deformidade mamária Em 1985 realizamos uma pesquisa em 50 pa cientes que se submeteram a mamaplastia redutora no nosso Serviço de Cirurgia Plástica da 38ª Enferma ria da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro Foram selecionadas para essa pesquisa aquelas que possuíam documentação fotográfica completa e com um período de pósoperatório não inferior a um ano Não se levou em consideração a faixa etária ou a épo ca de realização da cirurgia As pacientes foram en trevistadas individualmente por um cirurgião plástico e uma psicóloga A pesquisa teve caráter explorató rio sem nenhuma hipótese préestabelecida O obje tivo foi levantar algumas suposições que ao longo das 50 entrevistas pudemos observar De uma forma geral as pacientes mostraram se satisfeitas com o resultado cirúrgico Obviamente existiram casos de desagrado tanto pelo resultado ci rúrgico cicatrizes assimetrias quanto psicológico Em muitas mulheres o efeito psicológico da ci rurgia foi decisivo Algumas relataram que não conse guiam se olhar no espelho antes de serem operadas Outras se sentiram impulsionadas para uma nova vida sexual afetiva e profissional É como se através da mudança que obtiveram com a cirurgia tivessem resgatado a autoestima para muitas perdida Até onde pudemos analisar não houve neces sariamente uma correlação entre a satisfação ou in satisfação das pacientes com o sucesso da cirurgia Desta forma podemos considerar que o resultado es taria intimamente relacionado com as expectativas fantasias e desejos de cada pessoa O que se pode dizer é que o fator psicológico é de suma importância na aceitação ou não do resultado da cirurgia Deformidade mamária pósmastectomia Na mastectomia há uma grande agressão emo cional e física causando sofrimento à mulher que se sente mutilada e incompleta Não considerando o as pecto físico mas apenas o componente psicológico a ausência de uma ou de ambas as mamas é razão suficiente para a reconstrução A reconstrução da mama pósmastectomia susci tou dúvidas e ainda continua gerando incertezas não só em função de quais pacientes devam ser subme tidas à cirurgia mas também no que diz respeito ao momento ideal para intervir Há quem sustente que a reconstrução pode mascarar a evolução da neoplasia até mesmo nos casos de prognóstico mais favorável Hoje se constata que o fato de que a paciente possa estar condenada pela neoplasia o que não implicaria necessariamente que ela deva privarse de uma gra tificação proporcionada pela reconstrução Há ainda escolas que preconizam a reconstrução mamária si multaneamente à mastectomia nos casos de lesões de menor gravidade Acreditamos que não devemos seguir regras rí gidas para indicar a cirurgia da reconstrução mamá ria Cada caso deve ser avaliado cuidadosamente se gundo suas características locais oncológicas e pelos aspectos psicológicos da paciente Psicossomaticaindd 361 Psicossomaticaindd 361 05012010 121217 05012010 121217 362 Mello Filho Burd e cols Apesar disso nem todas as mulheres se subme tem à cirurgia Algumas ficam satisfeitas com o uso de próteses externas outras já necessitam recuperar o seu contorno corporal no sentido de estar mais adap tada ao seu relacionamento interpessoal e social Para o cirurgião especialmente o plástico a neomama estaria completa quando realmente pos suidora de todos os seus detalhes desde forma até aréola e mamilo Isto ocorre de forma natural nos casos de mastectomia simples quando o complexo areolomamilar permanece no local e uma inclusão de prótese restitui o volume mamário Em casos de mastectomia mais radical há pa cientes que ficam satisfeitas com a simples inclusão de uma prótese ainda que não tenham reconstruído a aréola e o mamilo ou realizado outros procedimen tos na mama contra lateral objetivando conseguir uma simetria adequada A simples presença do volume interno preenche seus anseios e as satisfaz plenamente mesmo que o cirurgião não concorde Outras mulheres já almejam a devolução da mama perdida e jamais estariam sa tisfeitas independentemente de qualquer resultado De modo geral são pessoas que não se satisfazem com qualquer cirurgia ainda que não relacionada com a sua deformidade Dificilmente seriam capazes de aceitar a realidade e com ela conviver ou apenas adaptarse à nova situação no sentido de melhorar sua autoestima É inegável o benefício psicológico e o bemestar proporcionado pela reconstrução mamária Acredita mos que a paciente tem o direito de escolher se deseja ou não usufruir desses benefícios uma vez informada sobre a evolução de sua patologia limitações e riscos dos procedimentos cirúrgicos reconstrutores ABDOME Quando existe uma discrepância entre o esque ma corporal e a imagem corporal estabelecese um desequilíbrio que não tem como causa única a mudança de aparência mas toda a estrutura desse indivíduo O abdome como sede de sistemas orgâni cos vitais como arcabouço de sustentação à atividade reprodutora é um fragmento de nossa história corpo ral e psíquica Na mulher sua segurança e identidade estão apoiadas na capacidade de procriar e atrair Senso seu corpo sua expressão é através dele que ela se afirma como um todo Mas é durante a maternidade que a mulher se perpetua e se modifica Mas a modificação do seu esquema corporal altera todas as suas funções e relações sendo o ca ráter materno muitas vezes deturpado frente a sua decadência estéticofísica E o que foi glória tornase razão de desespero e foco de culpa Na gravidez as alterações corporais ocasionam muitas vezes um desequilíbrio no relacionamento conjugal A atração sexual masculina pode diminuir ou mesmo desaparecer pela transformação do corpo de mulher em corpo de mãe As pacientes que procuram a abdominoplastia ou outras cirurgias para melhorar o seu contorno cor poral não estão apenas preocupadas com o aspecto estético mas sobretudo com o retorno de sua ima gem de mulher feminina e atraente O ENVELHECIMENTO O envelhecimento é um mecanismo do homem que compreende vários fenômenos físicos bioquími cos psicológicos culturais e antropológicos O equilí brio entre esses vários aspectos permite ao indivíduo viver esta experiência mantendo um bom relaciona mento com o seu ego e com a sua própria imagem Mas na realidade o envelhecimento é frequentemen te vivenciado com ansiedade A pele é um dos principais componentes da personalidade Juvenal Esteves A pele é todo um órgão sexual Sézary Essas duas frases sintetizam o efeito sobre o psiquismo humano que o envelheci mento cutâneo acarreta e explicam o comportamento das pessoas diante das suas consequências A maturidade do ego é um elemento indispensá vel para que esta fase da vida seja aceita com sereni dade Shakespeare afirmou que a maturidade é tudo Na realidade maturidade significa reforçar o próprio ego tornandoo mais resistente às frustrações e às di ficuldades que o ser humano deve inevitavelmente enfrentar A felicidade do homem está portanto no equilíbrio do próprio eu e a imagem ideal que faz do mundo e o mundo real a capacidade de transportar o mundo real para o seu próprio mundo interior sem que disso derive a amputação traumática da própria imagem Este equilíbrio muitas vezes é difícil de ser al cançado pois o Homem despreparado para o árduo trabalho de fortalecimento do ego é frequentemen te obrigado a conviver com um ego frustrado pela imagem ideal que lhe é imposta pelo ambiente cultu ral e debilitado pelas experiências sociais A Cirurgia Plástica é o instrumento que pode muitas vezes ajudar o indivíduo a se harmonizar consigo próprio reencontrando um melhor equilíbrio com o seu contexto ambiental É uma especialidade que frequentemente embasa o seu êxito na relação profunda entre o cirurgião e o paciente sendo indis pensável que o médico avalie se as necessidades da Psicossomaticaindd 362 Psicossomaticaindd 362 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 363 pessoa são compatíveis com o que a cirurgia possa vir a oferecer A RELAÇÃO MÉDICOPACIENTE Na Cirurgia Plástica mais do que em qualquer ramo da Medicina estamos expostos a pacientes com os mais variados distúrbios emocionais e frequen temente com uma ideia totalmente irreal de nossas possibilidades É fundamental portanto uma análise criteriosa dos casos avaliandose cuidadosamente se a cirurgia poderá trazer benefícios reais ao paciente A maioria das pessoas hoje aceita com tranqui lidade a necessidade de correção de deformidades congênitas ou adquiridas Entretanto ainda persiste certa dúvida quanto à importância da cirurgia esté tica sendo muitas vezes conceituada como cirurgia da beleza Focalizando este tópico Aufricht com muita propriedade disse O cirurgião plástico que lida com estas pessoas sabe que elas não se submetem à cirur gia por pura vaidade A vaidade seria um desejo de exceder outras pessoas No entanto os pacientes em sua grande maioria desejam justamente o contrário Querem passar despercebidos livrandose de carac terísticas pouco atraentes Aqueles que consideram seu nariz feio nem sempre necessitam melhorálo Porém por o acharem fora de proporções acabam desenvolvendo distúrbios psicológicos que irão influenciar não só sua expressão facial como também a maneira de falar e agir O desejo frisamos não é de ultrapassar é de igualar como tão bem salientou William Mayo na sua famosa frase mans divine right to look human Os avanços nas áreas da Psicologia e Psicanálise auxiliaram os portadores de deformidades que acaba vam se isolando e por conseguinte não procuravam tratamento cirúrgico Esses mesmos profissionais os encaminhavam aos Serviços de Cirurgia Plástica Nos casos de crianças portadoras de deformi dade a psiquiatria moderna aconselha à família não chamar atenção sobre o defeito o que levaria ao agravamento do componente psicológico dificultan do o tratamento O relacionamento médicopaciente se baseia em confiança e comunicação O médico deve procurar co nhecer em profundidade a personalidade do paciente e seu desenvolvimento sociocultural É fundamental que o paciente seja informado sobre as reais possibi lidades do tratamento indicado pois muitas vezes as expectativas do paciente excedem o que a Cirurgia Plástica pode oferecer Desejar um corpo harmonioso e sadio é normal Mas frequentemente se observa indivíduos portado res de deformidades mínimas que julgam ser respon sáveis por seus insucessos afetivos ou profissionais É necessário que com humanidade e paciência o ci rurgião procure averiguar os motivos reais que trans formaram uma pequena deformidade em um grande problema Evidentemente para uma melhor avaliação de cada caso é necessário contar com o auxílio de outros profissionais psicólogo psicanalista ou psiquiatra Nos casos em que verificamos que o indivíduo exacer ba uma pequena deformidade a cirurgia traria pouco benefício Por outro lado outros pacientes também portadores de pequenas deformidades percebem que estas deformidades apesar de mínimas interferem na sua autoconfiança e no seu desenvolvimento social Nestes casos quando bem selecionados a cirurgia pode trazer grande benefício Quando o cirurgião percebe que o paciente ne cessita de orientação psiquiátrica deve ter sensibili dade ao encaminhar o tratamento pois muitas vezes o paciente e a família não só não aceitam como ficam revoltados sobretudo contra o cirurgião A importância da avaliação de pacientes com comprometimento psiquiátrico é determinar se a pro cura da cirurgia ou a percepção de sua deformidade envolve pensamentos de resultados mágicos ou ilusó rios O paciente paranóico é particularmente propen so a estas características não devendo ser operado O diagnóstico psiquiátrico no entanto não pode ser usado isoladamente como indicação ou con traindicação para a cirurgia Pacientes psicóticos ou neuróticos dependendo de todos os componentes situacionais podem se beneficiar com o tratamento cirúrgico O préoperatório É evidente que a primeira pergunta que um ci rurgião plástico deve fazer a uma pessoa que o pro cura é por quê Geralmente nos casos de deformi dades congênitas ou adquiridas a motivação estará implícita e a anamnese deverá enfocar além dos as pectos gerais do paciente seu componente funcional e psicológico Nos casos em que se evidencia um com ponente fundamentalmente estético devemos obter o máximo de dados sobre o perfil comportamental do paciente Existem certas atitudes que devem ser registra das como reveladoras de possíveis problemas pós operatórios maneira vaga e pouco precisa com que o paciente se refere ao defeito mencionado ou excessiva ini bição Psicossomaticaindd 363 Psicossomaticaindd 363 05012010 121217 05012010 121217 364 Mello Filho Burd e cols pressa excessiva em operarse com irritação quanto à rotina préoperatória negando infor mações ao cirurgião hábitos motivo da cirurgia passado clínico ou cirúrgico etc obsessão e desconfiança questionando repetidas e minuciosas vezes quanto à técnica e ao resultado segredo excessivo exigindo confidência com re cusa de documentação fotográfica e rejeição dos cuidados pósoperatórios pelos assistentes resi dentes e pessoal de enfermagem indecisão excessiva supervalorização de pequenos defeitos tocando ou exibindo constantemente a área considerada feia tentando forçar o cirurgião a concordar com a sua opinião exigência de reprodução de um modelo previa mente escolhido geralmente artistas ou pessoas famosas determinação da técnica e procedimento que de verá ser adotado ou seja exigindo fiel cumpri mento das suas ordens aspirações irreais quanto a mudanças em sua vida profissional social afetiva etc dos quais se pode esperar mesmo com resultados excelentes volta para cirurgias subsequentes Para que seja delineado o problema do paciente devese considerar de início o tipo de cirurgia desejada a idade e o sexo a história médicocirúrgica o comportamento durante a entrevista o acesso do cirurgião ao estado psicológico do pa ciente Além dos itens que normalmente existem numa boa anamnese seria de fundamental importância incluir algumas perguntas que dariam condições de avaliar o componente psicológico do paciente que procura a Cirurgia Plástica Por que deseja operarse Desde quando teve a ideia Alguém influenciou Quando decidiu operarse Existem prejuízos funcionais profissionais ou so ciais Sabe o que a cirurgia pode oferecer Conhece algum resultado de Cirurgia Plástica Fez ou está fazendo psicoterapia Antecedentes hereditários existência de doenças mentais na família Antecedentes psiquiátricos Infância convulsões sonambulismo enurese no turna terror noturno traumas desenvolvimento escolar adaptação ao meio Adolescência vida sexual nervosismo fobias e medos hábitos adaptação ao meio Internações prévias clínicas cirúrgicas Fez algum procedimento prévio toxina botulí nica preenchimento facial enxerto de gordura etc Como reagiu às internações eou cirurgias O que espera objetivamente da cirurgia Uma vez constatada a existência de distúrbio psicológico ou psiquiátrico a situação que se apresen ta fica incluída em uma das seguintes alternativas Às vezes a cirurgia plástica desencadeia proble mas psicológicos Nem toda alteração psicológica contraindica a ci rurgia Às vezes a psicoterapia prévia prepara o paciente para o melhor resultado pósoperatório O psiquiatra Gifford 1984 analisando os aspe tos emocionais do paciente de Cirurgia Plástica cha ma a atenção para a dificuldade de reconhecer não o paciente psicótico mas sim aquele caso bordeline escondido predisposto ao resultado negativo O paciente de Cirurgia Plástica contrasta com o de Psicoterapia que recorre a métodos introspec tivos É o mental versus a ação é a ênfase sobre um aspecto físico como exteriorização de problemas internos O ato operatório Nenhuma cirurgia é infalível estando a Cirurgia Plástica como qualquer outra sujeita a uma série de complicações e acidentes que independem do cirur gião e estão ligadas a anestesia infecções cicatrizes hipertróficas etc O ideal da forma ambicionada e a capacidade circulatória de um retalho por vezes se antagonizam É necessária essa compreensão entre o cirurgião plástico e o paciente para que um resultado tecnicamente bom seja apreciado pelo seu justo valor Na realidade é ao cirurgião plástico que com pete a decisão sobre o que é melhor para o pacien te pois tem uma correta formação técnica e visão aprimorada da anatomia funcional e estética Mas os conceitos de ideal de belo e de oportuno variam de pessoa para pessoa Assim o cirurgião deve saber es colher e atuar de modo a preencher aquilo que seu conhecimento lhe ensinou ser o melhor mas respei Psicossomaticaindd 364 Psicossomaticaindd 364 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 365 tando e procurando avaliar corretamente as expecta tivas as motivações e os desejos do paciente Muitas vezes percebese que a simples corre ção do defeito referido pelo paciente não trará por si só grandes benefícios Sentese a necessidade de uma complementação com outra cirurgia por exem plo rinoplastia e mentoplastia Entretanto esta in dicação paralela que não foi referida pelo paciente deve ser feita com cautela e somente após saberse exatamente o que se pretende obter com a cirurgia O especialista não deve se abster de indicar um pro cedimento associado pois a meta é a procura dos melhores e mais completos resultados possíveis No entanto estas indicações podem ser a causa de pro blemas despertando o paciente para um defeito que não sabia existir Devemse levar em conta os possíveis erros de julgamento do cirurgião principalmente na aprecia ção crítica pósoperatória Muitas vezes ele é levado a estados de supervalorização de si próprio e excessiva autoconfiança que nem sempre correspondem à sua real capacitação Isso pode bloquear o relacionamen to ideal entre o médico e o paciente refletindose em tomadas de decisão sem a devida consideração do caso É o complexo de Pigmalião no qual o cirurgião artista repete o drama do estatuário e se apaixona cegamente por sua obra É levado a uma ideia de in falibilidade deixando de tomar consciência de que a sua escultura está sendo executada num ser huma no sob seus cuidados Assim o cirurgião plástico deve ter perfeita no ção crítica do seu paciente de seu plano cirúrgico e de sua própria pessoa cabendolhe a responsabilida de bem maior do que a programação e execução do ato operatório O pósoperatório Foi John Davis o primeiro a relacionar altera ções psicológicas após cirurgias plásticas São comuns e naturais as reações transitórias de ansiedade apreensão ou depressão no pósopera tório ocorrendo na grande maioria dos pacientes É fácil entender que pessoas com deformidade de longa data ou mesmo com deformidades congênitas ou ad quiridas quando se conscientizam da cirurgia estão arriscando uma mudança em sua identidade Geralmente estas reações ocorrem por volta do terceiro dia do pósoperatório e podem ser previstas cabendo ao cirurgião plástico detectar as reações consideradas normais stress e as que requerem cuidados especiais Aí estariam situações mais raras como grave ansiedade levando à despersonalização crises de arrependimento ideias de autodestruição crises de agressividade contra o cirurgião com gran de agitação e excitabilidade Da mesma forma reações de grande euforia manifestações de gratidão exagerada sugestões eró ticas devem ser percebidas com cautela pois o que se pretende é o pósoperatório tardio ou seja a pro cura de um resultado físico e psíquico duradouro Mayer em 1964 relatou que é entre os pacientes do sexo masculino que procuram a Cirurgia Plástica que se encontra a maior incidência de pacientes es quizoides e esquizofrênicos Eles esperam resultados irreais do ato cirúrgico Muitos tiveram dificuldade de relacionamento familiar ou desejam se libertar de quaisquer fatores que os identifiquem com o pai Conflitos ou desajustes sexuais e imaturidade no relacionamento com o meio social ou profissional podem levar o paciente a almejar uma cirurgia mira culosa Nestes casos mesmo o mais brilhante resul tado cirúrgico não trará mudanças efetivas na vida do paciente Logo violentas reações de desapontamento e decepção podem ser esperadas com manifestações obsessivas de procura de perfeição fixandose em mínimas cicatrizes ou imperfeições da cirurgia Outro fator a ser considerado no pósoperatório é que alguns pacientes podem ser influenciados pelo jul gamento de outras pessoas Por exemplo um paciente com um resultado considerado ótimo poderá perder sua atitude positiva ao ouvir um comentário ou uma observação de pouco elogio quanto ao resultado Goin e colaboradores em 1976 realizaram um estudo prospectivo de 20 pacientes do sexo femini no submetidas à ritidoplastia facial revelando haver motivos secretos às vezes inconscientes que as leva ram a procurar este tipo de procedimento Nenhuma delas apresentou qualquer distúrbio tanto no pré ou pósoperatório Dessas pacientes 60 confessaram que os motivos declarados na ava liação préoperatória eram na verdade insinceros mesmo quando tinham prometido honestidade A maioria não mentiu deliberadamente mas somente se deram conta do real motivo após a cirurgia Alguns destes motivos secretos foram medo de envelhecer problemas no casamento desejo de conquistar uma melhor posição profissional Nas pacientes cuja motivação não mudou constatouse desde o início a intenção de alterar o relacionamento com outras pessoas familiares ami gos etc Um achado curioso é que o alto número de motivações secretas não interferiu na satisfação de monstrada com o resultado da cirurgia mesmo quan do se tratava de motivação não realista Por exemplo uma paciente que no fundo visava a reconquistar o marido mesmo tendo sua ambição frustrada não Psicossomaticaindd 365 Psicossomaticaindd 365 05012010 121217 05012010 121217 366 Mello Filho Burd e cols apresentou diminuição do grau de satisfação com a cirurgia No entanto os autores ressaltam que todas essas pacientes não apresentavam desvios psicológi cos sérios caso contrário poderiam ocorrer descom pensações no pósoperatório CONSIDERAÇÕES FINAIS No momento em que o Homem descobriu o mundo e a si mesmo criou o seu próprio Deus e par tiu para a busca do conhecimento Nas últimas décadas ocorreram descobertas sur preendentes principalmente no campo da biologia celular e molecular que culminaram com o mapea mento genético humano através do Projeto Genoma A compreensão de cada gene em sua complexidade confirmaria a ideia de que todo o conhecimento mé dico está nas ciências experimentais Paralelamente a este progresso surgiram ques tões bioéticas como por exemplo Como controlar o acesso às informações contidas no código genético de cada indivíduo Quem será beneficiado pelas moda lidades de diagnóstico e terapia genética Uma estimulante nova fronteira para a Cirur gia Plástica já é uma realidade em outras especiali dades cirúrgicas a criação pelo Homem de tecidos e órgãos conhecidos como neoórgãos A pesquisa genética e a manipulação de fatores do crescimento permitirão a reorganização das células formando no vos tecidos Assim órgãos complexos serão totalmen te construídos O ser humano prossegue na incessante busca da eterna juventude e da imortalidade Compreender os processos biológicos do envelhecimento é um dos grandes desafios da Ciência A Engenharia Genética poderá retardar esse processo impedindo a degrada ção celular A descoberta e a manipulação dos genes do envelhecimento representarão finalmente a reali zação do sonho de Fausto de juventude eterna O Homem ao ingressar no terceiro milênio tem a sensação que o mundo gira cada vez mais rapida mente com os incríveis avanços da tecnologia e dos meios de comunicação Mesmo assim ele está redes cobrindo a importância de resgatar a autoestima o que reflete uma profunda certeza na importância de estar em harmonia consigo mesmo e com o admirá vel mundo novo AGRADECIMENTOS À Assessora Geral Sra Luzia Ghosn que cola borou na versão inicial e novamente na conclusão do livro Psicossomática Hoje Ao Dr Francisco Salgado Professorassistente da PUC e do Instituto Carlos Chagas que realizou efi caz revisão e atualização desta nova edição Professor Ivo Pitanguy Professor Titular de Cirurgia Plástica Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e Instituto de PósGraduação Carlos Chagas Rio de Janeiro Visi ting Professor ISAPS Membro Titular da Academia Nacional de Medicina Membro Titular do Colégio Brasileiro de Cirurgiões Patrono da Sociedade Brasi leira de Cirurgia Plástica FICS FACS Membro da Academia Brasileira de Letras REFERÊNCIAS Abt V et al The impact of mastectomy on sexual selfimage and behavior J Sex Educ Marital The v 4 n 2 p 45 1978 Aguirre J O Dismorfofobia y cirugia estetica Comunicação pes soal 1975 Byhan A La civilisatin caucasiene Paris Payot1936 Burgoyne R et al Intraoperative psychological reactions in face lift patients under local anesthesia Plastic Reconstr Surg n60 p 582 1977 Carlsen L Slatt B The naked face Ontario General 1979 Cash T et al Aesthetic surgery effects of rhinoplasty on the so cial perception of patients by others Plastic Reconstr Surg n 72 p 543 1983 Cline C J Psychological aspects of breast reduction surgery In Goldwyn R M Reduction mammaplasty Boston Little Brown 1984 Freyre G Homem cultura e trópico Inst Antrop Fac Méd Univ Recife Publ 1 1962 Gallian D M C A rehumanização da medicina Psiquiatria na Prática Médica Departamento de Psiquiatria UNIFESPEPM 04 de julho de 2001 Gifford S Cosmetic surgery and personality change a review and some clinical observations In Goldwyn R M The unfavora ble result in plastic surgery Boston Little Brown 1984 Gillies H Millard D R The principles and the art of plastic sur gery Boston Little Brown 1957 Gobineau J A Ensayo sobre la desigualdad de las razas humanas Barcelona Apolo 1937 Goin M K et al Facelift operation the patients secret motiva tions and reactions in informed consents Plastic Reconstr Surg n 58 p 273 1976 The psychic consequences of a reduction mammaplasty Plastic Reconstr Surg n 59 p 273 1977 Jacobson W E et al Psychiatric evaluation of male patients seeking cosmetic surgery Plastic Reconstr Surg n 26 p 356 1960 Mac Gregor F C Shaffner B Screening patients for nasal plas tic operations Some sociologic and psychiatric considerations Pychosomat Med n 12 p 277 1950 Maltz M New faces new futures New York Richard Smith 1936 Mead M La antropologia y el mundo conteporaneo Buenos Aires Siglo Viente 1973 Meyer E Edgerton M T Pychology of certain patients seeking plastic surgery Bull Johns Hopkins Hosp v 11 n 5 1957 Psicossomaticaindd 366 Psicossomaticaindd 366 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 367 Psychiatric aspects of plastic surgery In Converse J M Reconstrutive plastic surgery v 1 1964 Millot J Biologie des races humaines Paris Armand Colin 1952 Pennisi V R Timing of breast reconstrution after mastectomy Clin Plast Surg v 6 n 1 p 31 1979 Pitanguy I Cirurgia Plástica conceito da especialidade Rev Bras Cir n 40 p 47 1960 Jaimovich C A Shvartz S Avaliação de aspectos psi cológicos e psiquiátricos em cirurgia plástica Rev Bras Cir n 66 p 115 1976 Aesthetic plastic surgery of head and body Heildelberg Springer 1981 et al Abdominoplastia algumas considerações históri cas filosóficas e psicossociais Rev Bras Cir n 72 p 380 1982 Caldeira A Aspectos filosóficos e psicológicos da cirur gia do contorno facial Anais do Simpósio Brasileiro do Contorno Facial São Paulo 1983 Quo Vadis Doctor Rev bras Cirurgia 86 257262 1983 Direito à beleza Rio de Janeiro Record 1984 et al Perspectivas filosóficas e psicossociais do contorno corporal Rev Bras Cir n 75 p 109 1985 Aprendendo com a vida São Paulo Editora Best Seller 1993 et al Iatrogenia em Cirurgia Plástica Rev bras Cirurgia v 87 no 1 3347 1997 Bioética em Cirurgia Plástica In Urban Cícero de A Bioética Clínica p378383 Revinter Rio de Janeiro 2003 Oliveira A B A Evolução da Medicina até o início do século XX São Paulo Pioneira Secretaria de Estado da Cultura 1981 Oliveira S C Psicólogo in Formação Revista Científica da Facul dade de Psicologia Universidade Metodista de São Paulo ano 4 nº 4 jandez 2000 Schacter S Singer J E Cognitive social and physiological de terminants of emotional state Psychol Rev n 69 p 379 1962 Vilain R Some considerations in surgical alteration of the femi nine silhouette Clinics Plast Surg v 2 n 3 1975 Psicossomaticaindd 367 Psicossomaticaindd 367 05012010 121217 05012010 121217 Bárbara gostava somente de pedir coisas Pedia e en gordava Por mais absurdo que pareça encontravame sem pre disposto a lhe satisfazer os caprichos Em troca de tão constante dedicação dela recebi frouxa ternura e pedidos que se renovavam continuamente Não os guardei todos de memória Preocupavame exclusiva mente em acompanhar o crescimento de seu corpo que se avolumava à medida que lhe se ampliava a ambição Se ao menos ela desviasse para mim parte do carinho que dispensava aos objetos que eu lhe dava ou não engordasse tanto pouco me teriam importado os sacri fícios que fiz para lhe contentar a mórbida mania Bárbara Os dragões e outros contos Murilo Ru bião Editora Movimento Perspectiva 1965 A obesidade e suas múltiplas facetas constituem um desafio em várias áreas do conhecimento humano na Clínica na Epidemiologia na Nutrologia na Sociolo gia na Psicologia assim como na área da terapêutica Muito se tem escrito sobre o tema e inúmeros tra balhos apareceram nas últimas décadas fazendo frente a este desafio avançando o conhecimento sobre sua complexidade Há várias categorizações sobre a obe sidade e junto com a bulimia e a anorexia constituem transtornos alimentares que têm aparecido mais fre quentemente na clínica e nos noticiários da mídia Pelo fato de a obesidade constituirse em modelo de investigação multidisciplinar daremos ao assunto um tratamento mais voltado à área profissional que lida diretamente com ele Esta escolha entretanto não pretende esgotar o assunto mas na medida do possível daremos destaque à experiência vivida fo calizando os aspectos emocionais envolvidos por esta problemática complexa no campo da clínica Circunscrever este campo implica evidentemen te dar a medida dele o que não significa desmerecer outros como o da constituição por exemplo que tem peso relevante na obesidade e portanto não pode ser esquecido Assim não iremos abordar e listar to dos os elementos envolvidos no estabelecimento da obesidade e matéria de preocupação da classe mé dica e de outros segmentos profissionais por existir vasta literatura a respeito balanços energéticos atividade física genética da obesidade alterações endócrinometabólicas neuropsiquiatria a não ser quando elementos de natureza psicológica estiverem interligados Devemos salientar que grande parte da preocu pação com a obesidade é decorrente das consequên cias que acarreta no campo médicopsicológico pela invalidação relacional e social principalmente como agravante de várias entidades clínicas nas quais cons tituise em sobrecarga aparelho circulatório apare lho respiratório locomotor Burland 1974 Wilson 1969 A prevalência da obesidade vem crescendo no mundo todo e já é assunto de saúde pública em al guns países do mundo ocidental Já existe inclusive esta preocupação com o incremento da obesidade in fantil em colégios e instituições com a chamada junk food que é excessivamente calórica A OMC utiliza o IMC índice de massa corpórea para caracterizar os graus de obesidade dividindose o peso corporal em kg pelo quadrado da altura em m² A obesidade grau I é quando se tem um IMC entre 30 a 349 kgm² Grau II é quando o IMC se situa entre 35 a 399 kg m² e grau III é quando o IMC é maior que 40 kgm² grandes obesos Tal critério é apenas classificatório para fins de discriminar procedimentos terapêuticos pois não leva em consideração compleição física na avaliação do tecido adiposo excedente Por outro lado a experiência universal da cura do obeso é ainda muito precária e a experiência bra sileira não foge a regra Êxito duradouro é a palavra chave e a ciência até hoje não deu mais consistência na obtenção de resultados terapêuticos de sucesso O fracasso e a frustração quanto aos diversos tipos de tratamentos são partilhados por todos quer no cam po clínico quer o no psicológicocomportamental É verdade que se pode obter bons resultados com al gumas técnicas e métodos porém quando se compa ram experiências e se tabulam resultados a resposta é decepcionante quanto às pretensões científicas no processo de cura Congressos e mais congressos relatam experiên cias utilizando métodos e critérios duvidosos parti 27 OBESIDADE UM DESAFIO Alexandre Kahtalian Psicossomaticaindd 368 Psicossomaticaindd 368 05012010 121217 05012010 121217 Psicossomática hoje 369 cularmente presentes em grupos hospitalares concei tuados muitas vezes particulares O empirismo que expressam salienta geralmente a ideologia de grupos profissionais sobre a concepção da obesidade e para doxalmente à semelhança do comportamento leigo mostrando as lacunas cognitivas de tal complexida de Assim é que neste campo onde a ciência dá pou cas respostas pululam aspectos mágicos e místicos a respeito do tratamento Vasta literatura de livros e revistas tipo coma e emagreça dieta da Lua etc aparelhos massageadores próteses poções injeções e agulhas milagrosas infestam o imaginário do obeso e da população em geral É o espaço da crença da fé da religiosidade Afinal qual é a diferença entre a agulha na orelha e a dieta ortodoxa que não emagre ce Yudkin 1974 Neste vasto campo movediço interdisciplinar o presente trabalho tentará iluminar os aspectos emo cionais do tema relacionados a singularidade do ato terapêutico dentro do campo da Psicologia Médica na conjuntura atual CONCEITUAÇÕES A obesidade implica abordar a fome no seu re corte psicossocial embora a fome e a sede sejam duas da mais poderosas forças motivacionais conhecidas As expressões populares como sede de vingança insaciável desejo de riqueza fulano é um pão fome de poder coma feijão e apareça mostranos como é tardia a percepção pela classe profissional dos aspectos emocionais envolvidos hoje bem mais acei ta com a abordagem interdisciplinar Na década de 1930 era usual atribuir a obe sidade aos distúrbios das glândulas endócrinas somente a partir das décadas de 1940 e 1950 que uma aproximação de natureza psicológica passou a receber maior ênfase graças aos trabalhos de Bruch 1943 Rascovsky 1950 Fenichel 1966 e outros É necessário salientar entretanto não ignoran do o lado constitucional em que proponho conceituar a obesidade como expressão sintomática de conflitos internos e externos que se realimentam como um me canismo de feedback levando ao acúmulo adiposo Perceber o distúrbio visto pela observação in tegral do paciente como conceituado pela medicina antropológica que procura evidenciar o quanto as doenças e as disfunções se inserem na biografia do indivíduo conferindo singularidade é a meu ver a que mais se aproxima da questão da obesidade Vale dizer que a quantidade de tecido adiposo conta uma história que por vezes é dramática gra ve duradoura removível ou eterna Mas sem dúvida alguma plena de frustrações Podemos dizer que a quantidade de tecido adiposo e o tempo de sua exis tência já denotam o grau de dificuldade e em nossa experiência revelam desde logo as possibilidades de êxito da tarefa assistencial Assim obesidades de lon ga duração e os chamados grandes obesos impõe limites bem estreitos de redução ponderal ao contrá rio das obesidades do tipo reacionais àquelas que se instalam a partir de crises existenciais recentes ou traumas gravidez processo de separação lutos etc Abordar a obesidade necessariamente nos leva a aprofundar a questão da ingestão calórica excessiva e dos aspectos formais do corpo A QUESTÃO DA FOME E DO APETITE Por que se tem fome Evidentemente não pode mos ignorar a necessidade do ser humano de regular o balanço energético que visa a satisfazer as necessidades fisiológicas de crescer de desenvolver de locomoverse e de realizar o trabalho biológico da máquina humana Mas nem só para isso pois a ingestão alimentar inte ressa além da Fisiologia à Psicologia à Antropologia à História à Patologia à Estética e à Culinária Por conseguinte se comer um bife com fritas ou tomar um sorvete é tão complicado para os obesos mais complicado ainda é entender a diferença do bife com fritas e do sorvete para cada um Ou seja quando é que comemos por fome ou por desejo Aqui temos que introduzir e enfatizar a diferença da noção de instintopulsão Trieb com a de instinto animal Instinkt assinalados pela obra freudiana Essa dife rença faz toda a diferença fundamental A fome dita biológica é desagradável dolorosa enfraquecedora admitindo somente comida como objeto de remoção Nesta contingência podemos dizer que o centro da fome e o centro da saciedade Mayer 1972 Anand 1974 situados no Hipotálamo são os mecanismos biológicos reguladores e preponderantes da neces sidade de produzir fome e da procura de alimentos para a saciedade Existe farta literatura a respeito desses centros e de seus mecanismos Jolliffe 1952 que não cabe detalhar aqui e que servem de base para experimentações neurofisiológicas e para a farmaco logia da fome Já o apetite procura o prazer a satis fação libidinosa implica qualidades sabores não obedece a reservas calóricas e nem a toma como re ferencial É o que no dizer de BrillatSavarin 1960 para a espécie humana é um privilégio comer sem ter fome e beber sem ter sede Já do ponto de vista do instinto animal fora do cativeiro a procura alimentar só se efetua quando Psicossomaticaindd 369 Psicossomaticaindd 369 05012010 121217 05012010 121217 370 Mello Filho Burd e cols as reservas calóricas exauridas a originam Portanto para o apetite a comida é procurada como um tran quilizante prazeroso O apetite como sugere Miller 1966 é submetido a um múltiplo controle que en volve várias partes do cérebro que operam sob estí mulos sensoriais como gosto olfato distensão abdo minal processos metabólicos e fatores psicológicos Freud no princípio do século passado já vira esta diferença entre o instinto pulsão humano e o animal mostrando que para o ser humano o objeto de gratificação do instinto é variável e que o homem nem sempre ingere comida como alimento A pulsão no final da cadeia do desejo oral é aberta em outras palavras quando a criança busca o seio da mãe não está envolvida apenas uma satisfação alimentar po rém sim existe uma significativa troca de experiên cias amorosas e frustradoras que vão ser vividas como prazerosas ou desprazerosas Formam a base psicológica da aceitação e da rejeição que em níveis psicanalíticos podem ser identificados com uma série de processos mentais complexos que não serão espe cificados aqui Hilde Bruch 1940 1961 ao lidar com crianças obesas verificou que nesta troca de experiências da interação mãefilho haveria um aprendizado que em muitos casos por ser defeituoso pode gerar uma uni formidade de resposta apaziguadora das ansiedades da criança pela alimentação repetitiva no primeiro ano de vida Exemplificando existiriam diferentes tipos de choro comunicação que é uma manifes tação extraverbal da criança dirigidos à mãe e que receberiam somente como resposta o alimento como o desconforto criado pelo frio da fralda molhada có licas etc Esta interação dos primeiros meses de vida é vivida pela região oral da criança e é através dela que vai perceber o mundo e o ambiente relacional que a cerca Tais vivências primitivas vão servir ao psiquismo infantil como modeladora de respostas fu turas que mais tarde ficam ampliadas pelas diversas interações do desenvolvimento infantil com as rela ções do seu ambiente familiar É conhecido de todos nós a experiência da criança que após ter aprendido a andar e mesmo a falar coloca na boca cada novo ou antigo objeto às vezes mastigandoo e deglutindoo Assim podemos ter distorsões desse tipo em pessoas adultas que colocam comida onde poderia se ter uma pessoa desejada por exemplo Às vezes comer tem a conotação de ato sexual frequentemen te expresso em conversas sociais como comi fulana o ou em cenas cinematográficas onde sexo e comi da se mesclam Tom Jones 9 ½ Semanas de Amor Império dos Sentidos e muitos outros Nem sempre só isso é o que se passa podese comer com raiva vorazmente mastigando torto para destruir o alimento O sentimento é o de hostilidade e principalmente para quem se ama ou teme Estamos diante da forma canibalística Freud Abraham que procura adquirir as qualidades daquilo que é devora do como força exuberância física etc As tribos que praticavam canibalismo o faziam para incorporar sua força poder bravura e resquício dessa atitude pode ser observado em rituais religiosos como por exem plo na ingestão ritualística católica da hóstia como recebimento do corpo sagrado e divino como prote ção purificadora Frequentemente se pode observar este fervor místico nos consumidores de alimentos ditos naturais e que criam teorias alimentares mui tas vezes em desacordo com a ciência e a Nutrologia invocando obtenção de curas benesses salvaguardas mágicas e grandiosas Porém não se pode negar que há crianças com maior voracidade e é notório que a satisfação dessa voracidade pode se estender por toda a vida do indi víduo Tais pessoas não sofreram a contenção dessa voracidade por ausência de boa frustração materna proporcionadas por mães ditas benevolentes prote toras Muitas vezes os profissionais ficam perplexos com pacientes que dizem não poder suportar ou re sistir a um prato saboroso uma sobremesa açucara da É no dizer do psicanalista Fenichel loc cit uma adição sem droga comparando o comer contínuo muitas vezes compulsivo a uma toxicofilia do tipo alcoolismo drogas etc Podemos simplificadamente dizer que o mun do familiar e o ambiente externo são os modeladores da experiência fantasiosa no período da incorpora ção oral da infância e que vão se reproduzir mais tarde em vida adulta Paiva 1982 O vinho de hoje a torta de nozes foram o leite da mamãe ou a sua fal ta o que entrou junto ou deixou de entrar o paraíso e o inferno É principalmente na vivência familiar que podem ser detectados múltiplos comportamentos e fantasias quanto ao significantes comer e aumentar o peso Como esquecer aquele misto quente quando se acompanhava mamãe às compras o pastel de nata da cozinheira Ou então as recusas a comer às refei ções para provocar raivas materna ou paterna IDENTIFICAÇÃO E IMAGEM CORPORAL O processo ao qual a Psicanálise deu grande sig nificação e pelo qual a criança de modo inconsciente e automático elege ideais valores exerce comporta mentos à semelhança de sua constelação familiar que admira ama teme tem no seu aspecto corporal ele mentos importantes para a compreensão do obeso O corpo e a vivência do corpo fazem na men te do obeso uma imagem corporal que pode adqui Psicossomaticaindd 370 Psicossomaticaindd 370 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 371 rir múltiplos significados Às vezes se observa a ideia de força muscular associada ao maior aumento cor poral outras vezes a de gravidez de pessoa adulta etc Existem trabalhos que demonstram nos grandes obesos que perderam grande quantidade de tecido adiposo o aparecimento de crises psicóticas e os achados de imagem corporal traduziam a ideia de te rem se esvaziados perdido força parte de si mesmos Glucksman 1969 Uma espécie de fantasmatização do que se perdeu O fato é que a imagem corporal em pacientes com dificuldades ponderais é em geral distorcida da realidade externa porque tais imagens se associam a aspectos idealizados ou patológicos que refletem dificuldades internas profundas de aceitar o próprio corpo As imagens corporais são introjetadas porque no processo de identificação com figuras representativas da constelação familiar por vezes se travam conflitos entre o que se é o que se deseja ser e o que pode ser Podemos observar de modo geral quando o paciente se identifica nos aspectos mais doentios com as figu ras de pais e parentes obesos a tarefa profissional de redução ponderal é bastante infrutífera requerendo muita vigilância Em terapia de grupo realizada por mim e pela Dra Ana Maria Saraiva pudemos verifi car que o papel da gordura corpórea indicava ser uma espécie de isolamento e de proteção quanto às ansie dades vividas Kahtalian 1977 A ideia de retirála trazia ansiedade caos pânico A perda de peso vivida como ser roubado espoliado Retirar o peso trazia implícito o aparecer de algo mais profundo temido e indesejado Constituía também uma forma de contro lar os pais Quem já lidou com pacientes obesos sabe que muitas vezes o paciente exige requer e cobra controle do médico ou profissional sobre si mesmo Quando o profissional exerce este controle passa a reclamar se autocensura e mais adiante abando nao Verificamos também que os pacientes temem a cura e é frequente que ao se aproximar a alta em pa cientes que possuem algum grau de resiliência a alta vai sendo sabotada porque o peso de alguma forma os mantinham ligados ao terapeuta Já estabelecida a obesidade o paciente passa a viver em função das dificuldades que a sobrecarga de peso lhe traz É nesta situação que vários aspec tos ligados a gordura excessiva passam a incomodar o obeso adinamia dificuldade de executar o ato se xual limitações quanto a locomoção e acomodação em lugares públicos praias atividades sociais e es portivas Sentimentos de vergonha de inferioridade e grande dificuldade na comunicação pessoal O excesso de peso constituise num aleijão em muleta que tem que se carregar para o resto da vida Serve o excesso de peso no corpo à função de localizar toda a angústia e toda sorte de dificuldades emocionais A localização somatização entretanto para muitos traz tranquilidade ou paz O indivíduo ao viver e ao aceitar internamente a obesidade e de têla como fonte de todas as desgraças de sua vida já possui as condições de exercer um controle Ele já não precisa mais pensar em dificuldades emocionais ou conflitivas e sim em controlar o peso A balança passa a ser o termômetro do contato consigo mesmo É importante frisar que a imagem corporal Schilder 1950 Lacan 1966 só se constitui no inconsciente em presença do outro é relevante conhecer este padrão para a questão terapêutica porque como disse implica em significados de ego corporal que quando olvidados trazem dissabores e incompreensão para a dupla profissionalpaciente Assim muitos tratamentos são sabotados porque a força inconsciente que faz restaurar a imagem cor poral prévia introjetada na infância é maior que a força da nova imagem recém adquirida pela perda ponderal que precisa ser incorporada na realidade psíquica destes pacientes após tratamento exitoso OBESIDADE E DOENÇA MENTAL A obesidade tem sido associada a vários tipos de psicoses e de neuroses porém é bom salientar que voracidade ganhar ou perder peso é meramente uma parte do problema a ser enfrentado No grupo das psi coses a doença maníacodepressiva DMD é a mais frequente Berblinger 1969 e é mister assinalar a exuberância de situações depressivas nos quadros de neuroses Incontestavelmente a maioria dos obesos apresentam mais traços psiconeuróticos do que a po pulação não obesa sobejamente demonstrado pelos trabalhos de Stunkard 1969 que chegou a determi nar padrões de comportamento alimentar aos quais denominou de night eaters e de binge eaters Os night eaters seriam caracterizados por anorexia matutina hiperfagia noturna insônia ha vendo ainda alguma ritmicidade na ingestão calóri ca Os binge eaters seriam pessoas que teriam atos compulsivos de comer às vezes súbitos ingerindo grande quantidade de comida seguidos de agitação e autocon denações Podem estar associados hoje ao que se denomina Bulimia transtorno alimentar mais severo e que não será especificado neste trabalho Existem outros tipos de comportamento alimentar que levam à obesidade os denominados couch pota toes que são pessoas que ficam sentadas vendo tele visão e comendo pipocas bolachas salgadinhos etc Mas o que podemos supor é que classificações como essas têm seu valor descritivo porém não nos dão uma ideia da dinâmica mental dos processos en volvidos Comer pode significar o desejo hostil de er Psicossomaticaindd 371 Psicossomaticaindd 371 05012010 121218 05012010 121218 372 Mello Filho Burd e cols radicar um inimigo a necessidade de receber amor de segurança de medo de sofrer privações de reação a perdas de separações etc Quem quer se aprofundar na relação médicopa ciente descobre que o ato de comer se liga à sexualida de no sentido dado por Freud e que o paciente ao procurar o profissional se encontra na contradição de que conscientemente deseja emagrecer Porém forças antagônicas inconscientes levamno a rejeitar qualquer tipo de proibição ou restrição que possa sig nificar um corte no seu desejo oral de incorporação da pessoa objeto amoroso amada Lidase com an siedades que pela dificuldade de discriminar tanto para o médico como para o paciente limitandose ou proibindose a comida e não o objeto amoroso sendo que ambos acabam frustrados Por vezes a necessidade de posse da pessoa amada ausente só é sentida quando o indivíduo está consigo mesmo sozinho criando ansiedades do tipo depressivo que é o que ocorre com muitos pacien tes que assaltam a geladeira que comem tarde da noite vendo televisão ou lendo Evidentemente esta procura alimentar se faz na tentativa de apaziguar e restaurar um equilíbrio precário dos aspectos narcísi cos do self fragilizado dependente e esvaziado Consequentemente não há justificativa para negar que o prazer estético entra na experiência do gourmet ou então para negar o título de artista ao que obtém sa tisfação em produzir seus souflées por delicadas e efêmeras que estas obras de arte possam ser WRD Fairbairn psicanalista inglês NARCISISMO E SELF OBJETO ALIMENTAR É interessante destacar que o tipo de alimento procurado exerce importância na questão do nível de saciedade que a experiência de saciedade do ape tite impõe Indiscutivelmente a sabedoria notória de que comida apazigua é bem antiga e é utilizada por babás companhias de aviação rituais festivos de passagem etc Todavia o que quero comunicar é que o tipo de alimento e o grau de fixação a ele é relevante para indicar as dificuldades que a tarefa terapêutica coloca como por exemplo a fixação a adocicados que denota maior dificuldade está mais primitivamente fixado à etapas do desenvolvimento emocional do que a fixação pelos salgados Na expe riência clínica é mais difícil manejar com açucara dos diferentemente dos salgados que entram mais tarde na alimentação infantil Além do que o pala dar está bastante impregnado no desenvolvimento emocional infantil Em minha experiência esta sen sibilidade dos primeiros anos de vida está associada ao gosto ao olfato ao brincar com o alimento e com a ingestão calórica excessiva na experiência da ma ternagem Tais aspectos aqui assinalados são muito pouco aprofundados pelos profissionais que em geral não investigam nas entrevistas anamnésicas os aconteci mentos precoces da instalação da obesidade Assim podemos dizer à guisa de ilustração que a ingestão de refrigerantes gaseificados e calóricos ou de cerve ja ou chope não se faz pela qualidade do doce ou do malte ou de outro cereal envolvido na fabricação Ela se faz em realidade para restaurar a ingestão gaso sa ocorrida durante a maternagem pois tais bebidas sem o gás CO² não se venderiam É portanto a pro cura de um contato em nível gasoso da experiência gratificadora da relação mãebebê Consequentemente é aqui que a gastronomia encontra seu terreno e sem dúvida alguma deixa suas marcas culturais que são transferidas de uma geração para outra naquilo que distingue o que se convencionou chamar de comida italiana libanesa japonesa francesa etc Isto é bom frisar visto que pode ser um empecilho para tratamentos dietoterá picos pois frequentemente os pacientes acabam por sabotar a rigidez e a fixidez das dietas hipocalóricas que são prescritas habitualmente PAPEL DA RELAÇÃO PROFISSIONALPACIENTE A relação profissionalpaciente é fundamental Se o médico ou outro cuidador não conseguir manter um bom contato com o paciente sem dúvida alguma pouco ou nenhum êxito terá Exemplo disto é a ronda de profissionais que cuidam da área recorrendo aos mais variados tratamentos Sabese também que o obeso tem enorme difi culdade em associar a hiperfagia ou a polifagia com situações emocionais que atravessa ou que atraves sou Tem enorme dificuldade em conectar a excessiva ingestão com situações de ansiedade depressão ou medo Kahtalian 1977 Quileli 1982 Outro fato frequente é a negação para si próprio dos atos de comer diante dos seus médicos como as pecto maníaco de defesa Outras vezes é a mentira que é de difícil abordagem Se o paciente mantém o hábito de mentir sobre idas à geladeira confeita rias fica realmente muito difícil a abordagem e ela a mentira passa a ser uma forma de controlar o pro fissional imobilizandoo o que de resto despertará raiva e descontentamento nele A agressividade nestes pacientes é muito repri mida muitas vezes manifestada como forma de en ganar o profissional fazer artes desfazer compromis sos É comum ver um profissional insatisfeito com o Psicossomaticaindd 372 Psicossomaticaindd 372 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 373 andamento do tratamento pois percebe que existem nítidas transgressões alimentares e usualmente uti lizase da bronca conseguindo bons resultados nas próximas consultas Temse a impressão que o pito funcionou porém essa intervenção tem um poten cial muito pequeno para conter tais transgressões e geralmente o paciente volta a transgredir Daí para frente o tratamento desanda e o paciente retorna a uma situação já vivida em sua vida quando a trans gressão foi necessária devido a uma necessidade si tuacional de transgredir Entendo que tais momen tos devam ser explorados deixando a agressividade oculta aparecer para que o tratamento se tornasse mais efetivo O gordo sorridente e bonachão pode es tar mascarando maniacamente uma situação interna desconfortável que desconhece psiquicamente e que nega quando apontada pelo terapeuta Queremos enfatizar que nos últimos anos Fan dino J et al 2004 Vasques F et al 2004 surgiu a possibilidade de cirurgia bariátrica com suas técni cas restritivas ou disabsortivas para os pacientes dito desafios ou seja os chamados grandes obesos A cirurgia seguindo padrões já estabelecidos pela in terdisciplinaridade implica em acompanhamento psiquiátrico e psicológico antes durante e após o ato cirúrgico O que se pretende é estabelecer pelo pro cesso cirúrgico o controle da ingestão calórica por um processo externo superegoico A seleção tem que ser rigorosa por causa de complicações póscirúrgicas São candidatos os pacientes com peso acima de 40 kgm² ou maior de 35 kgm² com quadros de dislipe demia diabete hipertensão arterial apneia do sono etc Pacientes com distúrbios psiquiátricos graves de vem ser recusados São pacientes narcísicos bastan te regredidos e a tarefa médica talvez seja deixálos com o excesso de peso pois foi o que conseguiram obter para si para ter alguma harmonia interna Numa outra vertente todos temos notícias do sucesso relatado em jornais e revistas das chamadas clínicas de emagrecimento algumas com credibilida de científica Como passo inicial são benéficas mas sem reforço sucessivo tais tratamentos tendem a fracassar Algumas utilizam recursos duvidosos ban dagem fornos injeções etc mas conseguem êxitos transitórios que ao meu ver se deve mais à relação enfermeirapaciente às consultas diárias uma vez que dietas hipocalóricas todo mundo sabe receitar desde revistas até da amiga da amiga da cozinheira O fato é que muitos pacientes procuram profissionais apesar de saberem fazer dieta porque gostariam de fazer uma verdadeira relação profissionalpaciente Neste sentido a biografia do indivíduo passa a ter um papel relevante no eclodir da obesidade É comum a obesidade iniciarse no primeiro ano de vida início da escolaridade da puberdade após casa mento gravidez menopausa cirurgia de amígdalas de útero e outros acontecimentos Quero dizer que é fundamental para uma boa relação profissionalpa ciente a compreensão global da história que permita ao profissional exercer melhor o seu papel terapêu tico Frequentemente se observa que organizações leigas homeopatas curiosos têm a força terapêutica que os profissionais de saúde abdicaram pois prefe rem se dedicar a estabelecer balanços energéticos e incrementar a lipólise tão somente PROFILAXIA E TRATAMENTO PSICOTERÁPICO DA OBESIDADE No panorama das possibilidades terapêuticas o melhor caminho para não se tornar obeso é a preven ção em todas as faixas etárias da vida Na lista dos países com mais gente gorda no mundo oito estão no Pacífico Sul graças a chamada junk food e ao sedentarismo Estados Unidos e Brasil não escapam disso já existindo campanhas de saúde a respeito É tarefa que pediatras educadores psicólogos fisiote rapeutas médicos nutricionistas que já vêm se ocu pando mas não em um nível satisfatório no terreno clínico e institucional Tarefa hercúlea que mereceria maior atenção dos setores governamentais e também programas dedicados ao esclarecimento das classes profissionais que vão lidar mais tarde com as compli cações da obesidade Entretanto estabelecida a obesidade várias for mas de psicoterapia podem ser indicadas podendo fazer parte de acompanhamento clínico ou coexistir como forma autônoma Pode ser realizada pelo mé dico ou profissional cuidador porém deverá se ha bilitar para isso procurando treinamento adequado Há grande dificuldade em se achar profissionais que queiram tratar a obesidade pela Medicina da Pessoa embora seja crescente o interesse face à introdução nos currículos das faculdades de Medicina da disci plina de Psicologia Médica Assistentes sociais psicólogos psicanalistas ar teterapeutas são profissionais indicados para outra forma de terapia a grupal além da individual Mais recentemente a abordagem pelo tratamento de fa mília tem ajudado muito na faixa etária de crianças e adolescentes Nas instituições hospitalares a forma grupoterápica é a mais indicada Alguns trabalhos promissores têm sido apresentados em congressos e publicados Paiva1982 Werneck 1979 Do ponto de vista leigo as atividades grupoterápicas realizadas pelos chamados Vigilantes do Peso ou de Comedores Compulsivos Anônimos têm sido um importante au xiliar à classe médica e da de nutrólogos no combate persistente ao desafio da obesidade Psicossomaticaindd 373 Psicossomaticaindd 373 05012010 121218 05012010 121218 374 Mello Filho Burd e cols Caso clínico UM CASO CLÍNICO M casada mãe de 3 filhos veio à consulta por indicação de seu médico clínico particular porque queria emagrecer por um processo mais rápido que consistia em submeter se a uma cirurgia bariátrica pois ouvira falar muito bem de seus resultados Tal se devia pois ganhara muitos quilos sendo considerada uma grande obesa com o acréscimo de 50 kg e com estatura de 165m que persistiam há mais de 5 anos Era bem apessoada culta trabalhava em marketing tinha 38 anos teve muito sucesso na área profissional desde que deixou a faculdade por conta de seu talento e por ser muito atraente nos seus atributos físicos Filha de família numerosa era com seu irmão mais velho considerados os mais brilhantes irmão este que se suicidou em idade adulta qual fora muito ligada Este fato criou um luto familiar que coauxiliou no seu processo depressivo instalado mais tarde quando vários fatores traumáticos aportaram na sua vida O processo depressivo junto ao aumento de peso veio progressivamente a medida que várias perdas foram se instalando em sua vida A firma que trabalhava se dissol veu perdendo um poder de bens e influencia que reper cutiram no seu status econômico pois resolvera se casar para constituir família Nas gestações ganhava mais peso que o necessário Veio depois a perda de uma casa muito querida seu único bem material que dispunha no campo por desmoronamento face ao terreno e as chuvas Nesta mesma época foi acometida por síndrome mucocutâneo uma vasculite chamada Doença de Kawasaki com conjunti vite rash cutâneo linfonodos edema gengivite e febre Tais acontecimentos levaramna ao aumento do apetite imobili dade e ganho de peso Ficou muito além do seu peso ideal perdeu a graciosidade não mais cultivou seus aspectos es téticos passou a se esconder sob roupas escuras não indo mais a praia refugiandose no novo trabalho que arranjara de função executiva e com remuneração menor Passou a não se observar ao espelho e a se expor menos no trabalho em reuniões convocadas Procurou equipe especializada composta de cirurgião clínico nutricionista e psicóloga e passou a seguir o protoco lo da equipe Ao mesmo tempo medicação antidepressiva recente e psicoterapia de base analítica A cirurgia foi bem sucedida bom pósoperatório Passou a ingerir pequenas quantidades de alimentos em geral líquidos e pastosos À medida que o tratamento prosseguia passou a ingerir ali mentos sólidos em pequenas proporções orientados pela nutricionista A perda de peso foi acontecendo e episódios de hipoglicemia e de dumping não foram frequentes A psi coterapia foi importante particularmente no sentido de ajudála a fazer o luto da barriga de gordura gravidez que foi suporte do estado de esvaziamento sentido e também para a restituição da imagem corporal anterior ao ganho de peso pois não conseguia se enxergar ao espelho com o peso adquirido A paciente conseguiu se reequilibrar foi adquirindo mais confiança narcísica e passou a lutar para atingir a restaura ção do seu posicionamento empresarial Socialmente se co locou na perspectiva de se reabastecer das perdas sofridas comprando nova residência e matriculando os filhos em bons colégios Adelgaçou retornou ao seu manequim de outrora e perdeu cerca de 45 kg Foi exitosa deixou de to mar antidepressivos mas não conseguiu eliminar certo grau de ansiedade em função de ameaça de sabotamento na in gestão calórica e pelo retorno do quadro de obesidade COMENTÁRIOS O caso de M com o sucesso obtido foi possível pois o excesso de peso foi adquirido em fase adulta pós traumas pela grande adesão ao tratamento As situações traumáti cas que a fizeram ganhar peso foram elaboradas resultado progressivo de perda de peso melhora do seu estado físico e retorno a um narcisismo sadio Tem que se levar em con sideração sempre a individualidade do atendimento a his tória da pessoa Quando tais elementos estão disponíveis podese pensar em permanência de um equilíbrio saudável na questão corporal principalmente auxiliado por medidas pedagógicas quanto a ingestão bem como o gasto calórico e para o resto da vida Isto vai implicar em controle pro fissional que deverá ser feito a cada 6 meses o que em princípio pode ser bem saudável e mais bem tolerado pelos pacientes REFERÊNCIAS Anand BK 1974 Neurological mechanism regulation appetite In Obesity Edimburgh Churchil Livingstone Berblinger KW 1960 Obesity and psychologic stress In BrillatSavarin The Phisiology of the Taste New York Bruch H 1943 Psychiatric aspects of obesity in children Am J Psychiat 99 p 732 1961 Conceptual confusion in eating disorders J Nerv Mental Dis 113 p 46 1940 Obesity in childhood Psychosomat Med n 11 Burland S Yudkin J1974 Obesity Edimburgh Churchill Li vingstone Fenichel O 1966 Teoria Psicoanalitica de las Neurosis Barcelo na Paidós Fandino J et al 2004 Cirurgia bariátrica aspectos clínicos cirurgicos e psiquiátricos Glucksman ML Hirch J 1969 The response of obesity pa tients to weight reduction Perception of body size Psychosomat Med 31 117 Jolliffe N 1952 Reduce and Stay Reduced New York Simon Schuster Kahtalian A Saraiva AM 1977 Algumas observações sobre a Obesidade em terapia de grupo I jornada de psicologia médica Rio de Janeiro Lacan J 1966 Écrits et Seminaires Paris Seuil Mayer J 1972 The ventromedial glucostatic mechanism as a component of society In Human Nutrition Springfield Charles C Thomas Miller N E 1966 The nature of appetite Food and Civilization Springfield Charles C Thomas Paiva LM 1982 Psicopatologia do excesso do apetite voracidade e período de molde III Congresso Brasileiro de Méd Psicossomá tica Rio de Janeiro Quileli CA et al 1982 Considerações sobre alguns mecanis mos psíquicos da Obesidade Bol SBPRJ Psicossomaticaindd 374 Psicossomaticaindd 374 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 375 Rascovsky A et al 1950 Basic psychic structure of the obese Int JPsychoanal 13 p 44 Schilder P 1950 The image and appearance of the human body New York International Universities Stunkard A J 1959 Eating patterns and obesity Psychiat Quart 33 p 284 Ugolev AM Kassil V G 1961 Physiology of the appetite Usp Sovr Biol 51 352368 Vasques F et al 2004 Aspectos psiquiátricos do tratamento da Obesidade Rev Psiquiatr Clin v 31 nº 4 Werneck D Gomes MB 1979 Contribuição da psicologia ao atendimento ambulatorial de obesos infantojuvenis Arq Brás End Met V 23 nº 3 Wilson NL 1959 Obesity Philadephia F A Davis Psicossomaticaindd 375 Psicossomaticaindd 375 05012010 121218 05012010 121218 DOENÇAS CRÔNICAS NOVOS RECURSOS Com o avanço da Ciência notamos uma modifi cação marcante no que tange às enfermidades chama das crônicas e terminais como a insuficiência renal e o câncer por exemplo O aparecimento de antibióticos eficazes a quimioterapia e o tratamento dialítico vêm proporcionando uma sobrevida maior aos pacientes Nos casos de insuficiência renal crônica encon tramos atualmente algumas formas terapêuticas que visam a facilitar a integração com a doença podendo assim proporcionar um sentimento de alívio além de uma melhor atuação no âmbito psicossocial O transplante se apresenta como uma alterna tiva para uma melhor qualidade de vida livrando o paciente dos tratamentos habituais como a hemodiá lise a diálise peritoneal e o CAPD Continuous Am bulatory Peritonial Dialysis que geram complexas reações por terem um prognóstico obscuro e signifi carem uma dependência contínua A Psiconefrologia tem se dedicado ao estudo e ao trabalho com pacientes que se encontram neste tipo de problema crônico com suas reações seus envolvimentos suas características peculiares seus conflitos seus medos e sua solidão O setor de Psicologia da Unidade de Transplan te Renal UTR do Hospital dos Servidores do Estado HSE do Rio de Janeiro avalia e acompanha todos os pacientes doadores e receptores familiares e colate rais que se submetem ao processo de transplante TX por meio de entrevistas individuais e encontros de gru pos realizados no ambulatório e nas enfermarias A partir de atendimentos psicoterápicos focais programados de acordo com a demanda do paciente encaminhamentos e assistência à beira de leito têm se obtido bons resultados em termos de restabeleci mento emocional dos pacientes em questão INÍCIO DO PROCESSO Quando um paciente renal crônico que fre quenta a clínica de diálise recebe a informação de que pode submeterse a um transplante passa a ter esperança idealizada de cura Encara a cirurgia como uma chance que lhe foi dada já que com o avançar da doença comprometese e debilitase física e emo cionalmente dia após dia Surge neste momento o sentimento onipotente de que poderá renascer É então encaminhado acompanhado de seu doador à Unidade de Transplante Renal para submeterse a um processo de avaliação feita por uma equipe multidis ciplinar da qual fazem parte médicos psicólogos e assistentes sociais além do corpo de enfermagem e nutricionistas que compõem o quadro DOADOR Transmitir gratuitamente a outrem É esta a definição que aparece nos dicionários para a palavra doar O doador chega à Unidade de Transplante Renal UTR desejando em princípio a melhora do recep tor com a extirpação de um órgão seu consciente de que em termos nada mudará em sua vida por saber que se vive normalmente com um só rim Os doadores são chamados de relacionados pa rentes onde se incluem familiares consanguíneos e não relacionados sem vínculo de parentesco Na prática diária detectamos que o termo gra tuitamente encontrado nos dicionários é um tanto teórico já que o doador tem sempre motivos latentes e manifestos para expressar o desejo de doar que são os objetos propulsores da realização deste ato Os candidatos falam em afetividade comisera ção altruísmo e generosidade Esta última segundo Melanie Klein ocorre quando o indivíduo se torna capaz de partilhar seus dons com os outros Isso tor na possível introjetar um mundo externo mais amis toso decorrendo daí a sensação de enriquecimento Mesmo o fato de a generosidade ser amiúde insufi cientemente apreciada não solapa necessariamente a capacidade de dar O sofrimento do doente renal crônico é inten so e o doador propõese a ajudálo A generosidade 28 TRANSPLANTES RENAIS Miriam Baron Psicossomaticaindd 376 Psicossomaticaindd 376 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 377 unida aos demais fatores encobre motivações reais e decisórias que quando frustradas podem trazer grandes insatisfações Melanie Klein afirma ainda em relação à gene rosidade Se esta sensação não está suficientemente estabelecida há necessidade de apreciação e grati dão e há ansiedades persecutórias de haverem sido empobrecidos e roubados No trabalho com doadores encontramos impor tantes fatores de motivação da oferta Alguns deles são A reparação quando o doador busca expiar al guma culpa sentindose compensado ao ajudar al guém Quando procuramos explicações sobre o dese jo de doar por sentimento de culpa encontramos a resposta nos mecanismos de defesa o mecanismo de projeção Anna Freud diz que podemos usar o mecanis mo de projeção como rendição altruísta dos nos sos impulsos instintivos em favor de outras pessoas habilitandonos a formar valiosos vínculos positivos e a consolidar nossas relações mútuas Podese também encontrar situações de fuga em que o doador ao sentirse impotente perante alguma situação que lhe ocorre incapaz de resolver seus pro blemas desviase do alvo da sua questão mirando outro objeto e satisfazendose momentaneamente Quando há conflito entre cônjuges sendo um deles acometido de insuficiência renal crônica IRC a doação feita pelo sadio pode funcionar como um processo de reconquista do doente na tentativa de tornálo potente e participante novamente receben do uma recompensa pelo seu ato Não ocorrendo po rém o esperado o doador se frustra e pode ter uma reação negativa depois da cirurgia Um exemplo de motivação frustrada é o de uma esposa de 60 anos histérica e arrependida que pen sou poder reconquistar seu marido com a doação já que a relação do casal estava deteriorada Apareceu na Unidade de Transplante mobilizando a equipe e queixandose de fortes dores e inchação no local onde se encontrava o rim que havia sido retirado Recla mou que seu marido não a gratificou rejeitandoa se xualmente Sentiuse menosprezada e desvalorizada como mulher sem recompensa pelo seu sacrifício Existem casos em que há pressão familiar isto é elegese um membro entre vários familiares a quem se impõe o papel de doador O resultado frequente mente é de complicações posteriores para o escolhi do que aceitou o papel porém não pôde suportar o fato de lhe ter sido de certo modo roubado um rim Apesar de saber o destino deste órgão e o motivo pelo qual foi levado a doar reage com agressividade de pressão impotência raiva etc Há indivíduos que desejam doar em troca de ganhos financeiros saldar dívidas máfé etc fato que é caracterizado como comércio de órgãos Como a legislação brasileira veda essa prática procuramos detectar se há este tipo de favorecimento contraindi cando o transplante Para discutir os casos de doadores não relacio nados quando aparece este ou outro tipo de motiva ção proibida grupo de risco por exemplo realizase uma reunião específica na qual uma comissão repre sentada por membros da equipe o chefe da Divisão Médica do Hospital o assistente social e o psicólogo que entrevistou o par decide aprovando ou desapro vando o transplante em questão Casos existem em que a motivação do doador é suicida Para exemplificar há o caso de um homem de aproximadamente 35 anos expresidiário que nos procurou pedindo para ser internado naquele momento a fim de doar todos os seus órgãos Aos poucos contou que saíra há 7 dias da prisão e não conseguindo empregarse sentia fome e ímpetos de roubar para sobreviver Explicamos com cautela que só podemos aceitar doadores que acompanham os re ceptores formando um par e que o que ele queria realizar era impossível Relutou a princípio e depois se foi Em um telefonema uma jovem senhora dizen dose de nível sócioeconômico alto e bemsucedida profissionalmente desejava saber a que horas po deria ser recebida na UTR para doar todos os seus órgãos Contou que estava em estado depressivo e que havia ingerido grande quantidade de tranquili zantes porém sem obter resultado Passava por uma crise emocional de difícil controle e queria morrer Tentamos acalmála esclarecendo que seu desejo era impossível de realizar Pedimos seu nome e endereço ao que desligou o aparelho Após a avaliação dos doadores pelos médicos psicólogos e assistentes sociais iniciamse os inúme ros exames preparatórios para a cirurgia O recebi mento da aprovação final significa que o doador foi considerado saudável e que é chegado o momento esperado De modo geral todos temem a cirurgia a anestesia a cicatriz a mutilação corporal a invali dez o sofrimento e a morte Há aqueles que não superam o medo entram em pânico e não se sentem capazes de ir adiante desistindo no meio da jornada Algumas vezes con seguimos minimizar a tensão dos doadores outras os ajudamos a desistir e então sentemse aliviados e agradecidos Atendemos no ambulatório uma família da qual um filho de 25 anos recémcasado era candidato a doador de sua mãe Durante o processo de ava liação mostrouse inseguro trouxe sua esposa para Psicossomaticaindd 377 Psicossomaticaindd 377 05012010 121218 05012010 121218 378 Mello Filho Burd e cols incentiválo porém não se sentia capaz de prosseguir principalmente quando soube que iria ser pai Tive mos uma participação ativa nesta delicada situação O rapaz pediu uma sessão para um encontro fami liar pois não tinha coragem de revelar a sua mãe que havia desistido e poderia ter nossa ajuda nesta questão Fomos apenas veículo de auxílio pois se for mou um setting em que ele se sentiu incentivado e pôde sozinho dar a notícia à mãe ao pai e à irmã Houve decepção revolta e choro porém aos poucos os familiares se conscientizaram de que o transplante não poderia se realizar a não ser que ambos estives sem de acordo GRUPOS TERAPÊUTICOS COM DOADORES Para dar apoio a estas pessoas que decidiram doar um pedaço de si a alguém necessitado abrindo mão de um órgão vital organizamos os Grupos Tera pêuticos com Doadores São chamados 10 doadores de cada vez e a proposta é de três encontros de lh 15min de duração em que podem trocar experiên cias refletir viver os medos as ansiedades e as fan tasias para poder enfrentar a cirurgia e o que advém dela a partir de nossos esclarecimentos Fantasias de castração são vividas ali Também relatam seus medos de morte de não acordarem da anestesia de ficarem com cicatrizes horríveis de não suportarem a dor e de ficarem com o corpo deforma do Contam seus sonhos predominando os pesadelos Amedrontados alguns não voltam para o se gundo encontro Os que comparecem têm a oportu nidade de desabafar já que dizem não ter coragem de falar sobre estes assuntos com ninguém Em um dos grupos havia um homem que se pre parava para doar para sua esposa e sentiuse tão an sioso com revelações vivenciais dos demais que rea giu com intensos tremores pelo corpo e sudorese Os participantes se assustaram O coordenador ofereceu lhe um café forte ouvindoo dizer que apesar desta reação havia sido interessante poder manifestar seu medo e ser ouvido sentindose então mais tranquilo e protegido Em outro grupo constituído em sua maioria de esposas uma jovem e atraente senhora veio aconse lharse por sentir culpa por manter uma relação ex traconjugal quando seu marido ficou impotente Pen sou em separação porém comovida com a situação buscou satisfazerse sexualmente fora do casamento Pudemos então discutir sobre o tema da impotência e suas consequências que aparece tão comumente entre os doentes renais crônicos Os membros do gru po encontravamse insatisfeitos sexualmente e espe ravam que a situação revertesse após o transplante Em um terceiro grupo quando falávamos em internação uma doadora referiuse ao medo de ficar presa incomunicável em seu quarto sem ver seu ir mão o receptor A partir deste comentário passamos a incluir no último encontro uma visita à enfermaria fazendo contato com doadores ali presentes dimi nuindo as fantasias de prisão e claustro Muitos são os doadores que nunca frequentaram ou estiveram internados em um hospital Tal fato fa vorece o aparecimento de fantasias claustrofóbicas assim como podem desenvolver angústias por estarem isolados sentindose aprisionados e solitários Durante os encontros dos grupos notamos como as pessoas se ajudam mutuamente já que têm um objetivo comum Criase um clima de confiança e solidariedade Mesmo com toda a preocupação no preparo dos doadores há desistências As razões mais comuns são incapacidade de superar temores imaturidade e insegurança Há alguns doadores que voltam à Unidade de Transplante tempos depois com queixas diversas Elaboramos um protocolo para verificar as causas mais comuns e tratálas Procuramos fazer o follow up a cada seis meses Uma das conclusões a que che gamos foi a de que quando o relacionamento com o receptor era e continua sendo comprometido o doa dor reage e cria situações conflituosas Um rapaz que doou o rim para seu primo veio nos procurar com queixa de impotência sexual pós doação Diziase infeliz deprimido sem vontade de trabalhar e sua mulher o havia abandonado Ao con versarmos descobrimos que o início da impotência se deu quando o receptor faleceu A doação havia sido por imposição familiar A morte do primo significou a perda real do rim e o doador sentiuse frágil e im potente Além do doador vivo conhecido do receptor há um doador especial sui generis que apesar dos esforços ainda é visto em pequena escala os doado res cadáveres São os pacientes que se encontram em morte encefálica nos CTIS dos hospitais No caso de não haver um doador vivo o recep tor inscrevese numa lista de candidatos a receber um rim de um doador em potencial Fazemos parte de um programa RlTX RJTransplante por meio do qual nos dirigimos às famílias desses pacientes após comprovação clínica e gráfica EEG arteriografia ce rebral e potencial evocado desse estado e pergunta mos sobre o consentimento de doação de órgãos No trabalho com estas famílias percebemos rea ções interessantes em relação à morte destes entes queridos como sentimento de culpa não aceitação da perda com fantasias de imortalidade insegurança e choque emocional Psicossomaticaindd 378 Psicossomaticaindd 378 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 379 Já outras famílias são receptivas cerca de 55 e ao doarem têm um sentimento compensatório e altruísta Há também as que são inabordáveis quando observamos uma conduta histérica e ausência de con dições para qualquer aproximação RECEPTOR Concluída a etapa de identificação e avaliação iniciamse os exames preparatórios do par doador e receptor cujos resultados definem a internação e a cirurgia Os pares devem passar pela prova cruzada Crossmatch que consiste em um exame de sangue específico para verificar a que nível se da a compati bilidade entre eles Há uma grande expectativa neste momento pois o resultado é decisivo para a realiza ção ou veto do transplante A questão da compatibilidade sanguínea costu ma suscitar dúvidas e angústias nos pacientes Bus cam respostas coerentes sobre o porquê de não te rem células idênticas correndo em seus corpos e o risco iminente de rejeição mesmo no caso de estreito grau de parentesco como entre pais e filhos e entre irmãos Há desejo de poder viver com uma parte de um ente querido dizem os pacientes Os receptores quando notificados de que não há compatibilidade se frustram pois terão de reini ciar o processo de busca de um doador A decepção é grande e desfazse a idealização em torno do trans plante e do candidato Referemse a esta fase como a da traição de seus parceiros É ainda neste período que lhes são dadas orien tações e informações sobre possíveis intercorrências no decorrer do processo O psicólogo faz um acompa nhamento de seus estados emocionais assim como o de suas famílias dandolhes subsídios para enfrentar este momento e o que virá após a cirurgia São discutidos assuntos como o medo da dor e da morte que quando compreendidos e aceitos não desaparecem porém perdem parte de sua for ça Confessam que a despeito da restrição imposta de líquidos chegam a beber água do chuveiro ao se banharem e da pia quando lavam as mãos ou estão na cozinha Fazem declarações importantes sobre o desejo de se ausentar das sessões de diálise Os que ousam se arrependem pois voltam sentindose mal e até pioram Na tentativa de reverter o quadro Alguns pacientes recorrem a cultos religiosos cirurgias espi rituais medicina alternativa dietas especiais e sim patias Em sua grande maioria queixamse da perda ou troca de papel familiar que ocupavam antes de adoecer sentindose relegados a uma posição menos importante no meio em que vivem Por outro lado há aqueles que temem mudar seu estado patológico pois obtiveram ganhos secundários com a doença Se melhorarem terão que voltar a trabalhar normal mente terão mais obrigações em casa terão ainda uma atuação mais intensa de maneira geral Quando o nefrologista informa que o transplan te é uma alternativa e não uma solução definitiva al guns pacientes reagem através de audição seletiva escutando o que lhes convém e negandose a acredi tar O médico encontrase numa posição incômoda Tenta fazer revelações de uma maneira apropriada porém muitos são os que nada querem saber sobre sua doença nem tomam parte nas decisões a respeito do tratamento Pensam que após a cirurgia poderão esquecer o hospital e toda a historia crônica de sua doença A negação onipotente corresponde a defesa psi cológica a busca de redução do sofrimento Outros entendem que há vantagens e riscos e que realmente podem ter uma melhor qualidade de vida se o enxerto rim funcionar bem Para que isso ocorra devem fazer uma boa manutenção seguindo à risca todas as prescrições da equipe multidiscipli nar Logo após a alta na enfermaria o paciente deve frequentar o ambulatório algumas vezes por semana e realizar exames para verificação da função renal Essa rotina é amenizada à medida que o período de perigo maior da rejeição que ronda seu corpo todo o tempo é afastado O psicólogo atua sistematicamente no ambula tório junto aos médicos Estes encaminham os pacien tes que continuam ansiosos e deprimidos que não se medicam corretamente e reagem com euforia exces siva após a cirurgia exagerando na alimentação com aumento de peso Neste caso por exemplo procura mos o Setor de Nutrição para realizar um trabalho em conjunto investigando as causas e combatendo as consequências para evitar que fiquem obesos REJEIÇÃO Apesar de todos os cuidados alguns não acei tam bem o novo rim e são submetidos a tratamentos na tentativa de evitar a rejeição do órgão Esses tra tamentos incluem o uso de medicamentos com múl tiplos efeitos colaterais Mesmo assim não ocorrendo resposta adequada e sendo a rejeição inevitável o pa ciente retorna à diálise deprimindose despedaçan dose e por vezes arrependendose de haver feito o transplante A volta para a hemodiálise é encarada como um processo traumático regressivo Inicialmente há rea Psicossomaticaindd 379 Psicossomaticaindd 379 05012010 121218 05012010 121218 380 Mello Filho Burd e cols ções de recusa e revolta que quando bem trabalha das dão lugar à aceitação Este fato pode ser observado no caso de M 36 anos com transplante realizado há dois anos Aguar dava os resultados de alguns exames na esperança de estar melhor após mais uma internação que visava a prolongar a sobrevida do órgão recebido Ao ser avi sada do retorno à diálise quis fugir voltar para casa e abraçar sua filha temporã com quem se refugia brin cando e esquecendo os problemas Praguejou cho rou fez acusações sentindo a doença como objeto persecutório Após o desabafo enfrentou a situação pois queria viver e temia a morte A rejeição temida por todos é encarada como um tabu e acompanha a trajetória do processo do transplante englobando os períodos pré trans e pós cirúrgico A ênfase maior é dada aos primeiros dias e meses que se seguem quando o rim começa a dar sinais de atividade Segundo palavras de um pacien te É como uma grande máquina de uma grande fábrica que está quebrada e inutilizada durante um tempo e foi reparada voltando a funcionar produzir dar lucro porém ameaçada de emperrar outra vez O desânimo ocorre quando não há sinais de fun ção renal tendo o paciente de fazer algumas sessões de diálise Tranquilizamolo explicando É como um relógio parado Tem que se dar corda para que vol te a funcionar Existem várias razões para este fato como por exemplo necrose tubular aguda NTA ou trombose arterial e podem ser solucionadas com o tempo A rejeição do rim é vista como se o individuo carregasse um fardo perpétuo fosse destinado a ser doente e não pudesse nunca melhorar sentindose culpado por isso embora não haja sustentação real para tal reação Ao lidar com pacientes transplantados somos levados a fazer uma reflexão de como os fatos con cretos do processo de transplante como a rejeição do órgão implantado têm um paralelo na esfera psi codinâmica como o sentimento de rejeição que ex perimenta o doente no contato com as pessoas mais próximas Lidar com a rejeição significa não só de frontarse com a realidade da incompatibilidade de um órgão Mais do que isso é defrontarse com uma problemática muito mais abrangente qual seja a de suportar o sentimento de ser diferente agravado às vezes por situações de abandono real Há pacientes que são realmente abandonados por seus familiares Seus maridos ou suas esposas cansamse de cuidar de dar remédios de preparar die tas alimentares das restrições de líquidos de leválos para fazer transfusões de sangue Também se cansam das suas queixas de dores musculares e ósseas do hálito desagradável hálito urêmico proveniente da elevação das taxas de ureia da astenia de não poder viajar de não conseguir relacionarse sexual mente impotência física por medicação e psíquica por insegurança de sua decadência física e psíquica como parceiro Há também queixas de que por serem hiper tensos estão constantemente com cefaleia enjôos e tonteiras Até mesmo a alta taxa de uréia causa por vezes alterações de consciência e crises de agressi vidade O paciente por sua vez sentese invadido pela solidão Retornamos a Melanie Klein Este estado de solidão interna eu acredito resulta do anseio oni presente de um estado interno perfeito inatingível Tal solidão experimentada até certo ponto por to dos brota de ansiedades Porém são excessivamente intensas na doença A solidão também faz parte da doença Ela explica que o doente tem seu ego frag mentado tornandose mais vulnerável Podemos relatar uma experiência de atendimen to a uma paciente de 35 anos de transplante recente ainda internada Fomos informados pela equipe de que estava muito deprimida apresentando suspei ta de rejeição do órgão com estado febril cólicas náuseas e astenia Desanimada conta que se sente exageradamente só Sua história familiar á rodeada de episódios de separações casouse com um homem autoritário e controlador como seu pai Tiveram dois filhos Mudara de cidade em função do trabalho do marido Não suportou ficar em um lugar estranho sentindose só e com uma péssima relação conjugal Voltou para sua cidade e adoeceu de lupo eritemato so sistêmico doença que agride imunologicamente o rim Sempre procurou trabalhar e estudar esforçan dose para melhorar seu estado geral e poder cuidar dos filhos Porém alguns anos depois iniciouse o problema renal Relata que sempre mostrouse forte como supermulher afastando a tentativa de ajuda dos familiares No momento o que mais a incomoda é o sentimento de solidão intensificado pela doença além da falta de solidariedade de seus familiares que não mais oferecem ajuda Com o acompanhamento pôde perceber que sempre quis esconder suas fragili dades físicas e emocionais afastando seus entes que ridos e agora necessitava ceder Assim foi feito Teve uma boa recuperação e logo veio a alta hospitalar Passou a alimentarse melhor voltou a ler a ter mais ânimo para cuidar da casa ajudada pelos seus fami liares a brincar com seus filhos e aos poucos a voltar à rotina de sua vida Esse tipo de paciente se sente mais aliviado quando pode ser útil de alguma maneira quando pode exercer alguma atividade que lhe dê prazer fazer planos mesmo projetar algo para os próximos dias Psicossomaticaindd 380 Psicossomaticaindd 380 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 381 REAÇÕES EMOCIONAIS DECORRENTES DO TRANSPLANTE A perspectiva de mudanças após o transplante gera insegurança e traz à tona sentimentos contra ditórios de dúvida medo da morte da dor da anes tesia das complicações clínicas dos primeiros dias e meses da presença de um órgão estranho começando a funcionar dentro de si representando um possível renascimento de não ser mais dependente de alterar seu esquema corporal e da incompatibilidade sanguí nea com o doador Em contraposição há fé e espe rança desejo de livrarse da diálise sentimentos que bem conduzidos superam os temores O receptor traz um doador vivo para ser avalia do e ao ser aprovado passa a ser também um pacien te em nossa Unidade Este doador tem características próprias um corpo e sentimentos O recebimento do rim envolve uma série de fantasias muitas vezes per secutórias variando de acordo com o tipo de relação que o receptor mantém com o doador surgindo crises de identidade no primeiro principalmente entre pa res que não mantém boa relação Tenho medo de ficar com os defeitos horríveis de minha irmã Será que vou virar mulher Terei trejeitos femini nos Vou engordar até ficar do tamanho do meu ir mão Vou perder meu senso de humor Frases desse tipo são muito frequentes Estas crises como quaisquer outras ameaçam a estabilidade emocional do receptor temeroso de so frer uma alteração de sua identidade já que tem um órgão de outro dentro de si Joyce McDougall tece comentários a respeito das reações do ser humano dizendo que todos visam aos mesmos objetivos o desejo de se manter vivo de rea lizarse nos planos pulsional e narcísico de conservar intacta a identidade assim constituída e de defenderse contra tudo o que ameaça esses propósitos A força do sujeito reside nessa continuidade e nessa monotonia Contudo é aí também que encontramos a fonte do seu sofrimento e até mesmo a causa de sua morte Podemos também encontrar crises de identi dade nos pacientes que recebem rins de doadores cadáveres Neste caso aflora o medo do desconheci do ansiedade e sentem por vezes dificuldades de aceitação do órgão podendo chegar até a um estágio regressivo profundo atuando como um bebê como no caso seguinte Recebemos para fazer este tipo de transplante uma receptora de 50 anos há três anos em progra ma de diálise Quando soube casualmente que o rim recebido era de uma criança falecida em con sequência de atropelamento entrou em processo regressivo pedindo boneca mamadeira com uma linguagem comprometida de difícil entendimento Aos poucos com a ajuda do psicólogo e de todos da equipe foi elaborando a situação Explicounos que este novo rim que a fez renascer representa a criança que levará para casa e que cuidará para que fique bem Encontramos ainda reações interessantes quando o receptor está afetivamente envolvido com o doador Os papéis que representam tendem a se mis turar e o rim implantado passa a significar continui dade podendo gerar uma relação simbiótica no par Caso clínico A seguir descreveremos um caso clínico para ilustrar o que ocorre numa relação entre mãe e filha quando a pri meira é a doadora F 36 anos solteira transplantada há dois anos foi inter nada pois não se sentiu bem ao ir ao hospital para subme terse a exame para investigação do sangue que apareceu na urina hematúria F andava com dores no peito também Foilhe dito que seu rim não funcionava bem e que deveria manter sua fístula via de acesso para a hemodiálise situada no antebraço em atividade para o caso de voltar para a diálise Porém negavase a ouvir O psicólogo foi chamado pois estava tensa irrequie ta com dores Deramlhe um tranquilizante e ela ador meceu Um tempo depois ainda sonolenta me olhou pôs suas mãos sobre as minhas Contoume que tinha medo de perder o rim Já sentia gosto de urina na boca e não tinha apetite Disse que precisava desabafar Está com 36 anos não se casou não teve filhos só casos de que sua mãe nem sabe Chegou a engravidar mas teve de abortar pois o parceiro era casado Um homem importante Era uma menina disse Desejava ser mãe F recebeu o rim de sua mãe com quem tem uma re lação de grande dependência O pai faleceu há alguns anos Era separado de sua mãe bebia muito Um sobrinho que mora com ela é tratado como filho A mãe de F tem 65 anos é aposentada e dedicase inteiramente à filha Essa mãe descreveume um episódio de internação em clínica psiquiátrica após ser abandonada pelo marido que a maltra tava No momento está assustada com a possibilidade de a filha perder o enxerto rim Sentese intensamente angus tiada presa e só e não pode ter o homem que ama pois sua filha não permite Em consequência da doação refere fortes dores nas costas e no local da cirurgia F foi liberada mais tarde Após alguns dias voltaram ao hospital e procuraram por mim F tinha tentado ingerir grande quantidade de tranqui lizantes que sua mãe lhe arrancou da boca Não satisfei ta mordeu sua fístula e desnudouse perante os vizinhos amea çando jogarse pela janela Psicossomaticaindd 381 Psicossomaticaindd 381 05012010 121218 05012010 121218 382 Mello Filho Burd e cols A mãe contou que F andava com um comportamento estranho inapetente impaciente agressiva isolada arru mando a casa obsessivamente até a madrugada incansável Comecei a acompanhála no ambulatório ao que pediu me para sua mãe participar pois não conseguia ir às con sultas sozinha F explicou como adoeceu Houve explosão de um boti jão de gás na casa do vizinho seguida de incêndio F salvou uma criança entrando e aspirando o material tóxico Desde então teve inchações e infecções urinárias de repetição Recordase da época em que desfilava em escolas de samba nos carnavais Era uma negra vistosa os seios à mos tra fotos nas revistas Era namoradeira vaidosa e alegre Trabalhou como caixa e fez muitos amigos Sua mãe a interrompe constantemente para contar fa tos de quando era diarista de como era querida pela patroa e família de quando era jovem de como dançava bem e atraía os rapazes da vizinhança Fiz alguns atendimentos com a dupla tive auxílio do psi quiatra e interconsultas com o nefrologista F queixavase de não entender suas próprias reações emocionais Sabia que não estava bem fisicamente urina va pouco mesmo com diuréticos e sofria de complicações cardíacas e urológicas Comentou num encontro a sós comigo que seu rim mexe dentro de si parece querer sair e quanto mais tensa está mais ele se mexe Tem também o local da fístula quen te e roxo nessas ocasiões As vezes pensa em devolver o órgão à mãe tirálo livrarse dele para que sua mãe não reclame mais de dor Observamos neste caso a relação mãefilha doadora receptora gerando uma rede de fatores que desencadeiam conflitos de difícil trato A mãe de F amamentoua até os 5 anos Os anos se passaram e novamente alimentoua dandolhe um rim tirandoa da diálise e oferecendolhe vida F sentese agradecida e ao mesmo tempo oprimida carregando um órgão da mãe acentuando a relação que deveria ser simbiótica e que se tornou parasitaria O conflito se dá na medida em que F quer mais autono mia porém tem sua mãe presente dentro e fora mexen do incomodando doendo perseguindo e controlando Formouse portanto uma relação em que a mãe ocu pou dois lugares o feminino e o masculino procriando pro tegendo mantendo e reprimindo O rim aparece simbolizando uma criança que é gerada pelo amor da mãe e da filha talvez como o bebê abortado O medo da rejeição do órgão é agravado pelo signifi cado de perda de abandono e até de abortamento com o sentido de conter algo proibido F tem inveja da mãe enquanto mulher enquanto pro dutora de bebês de verdade receptora do pênis paterno dando à luz e amamentando tudo isto sob a égide de uma certidão de casamento A partir do atendimento ambulatorial F começou a ver e a trabalhar todas as questões acima descritas Referiuse ao psicólogo como a um anjo bom Aos poucos passou a alimentarse a investigar as dores que sentia e a fazer exames clínicos Queria melhorar apesar de saber ter um prognóstico duvidoso Seguimos com algumas considerações a respeito dos pares que têm boa relação entre si Concluímos que são mais receptivos e elaboram melhor os efeitos da cirurgia e da internação As fantasias se transformam dando lugar a respostas positivas de reconhecimento gratidão e carinho A gratidão segundo Melanie Klein achase es treitamente vinculada à confiança em figuras boas É um dos principais derivados da capacidade de amar A satisfação forma a base da gratidão O bebê sendo alimentado fica satisfeito O receptor tem o doador como alguém que o alimenta e se saciado reco nhece e aprecia a bondade no outro e em si próprio Isso pode ser visto também no caso de recepto res de rim de doadores cadáveres Daremos o exem plo de uma senhora que se encontrava deprimida com a perda recente de seu filho e internouse muito a contragosto para receber um transplante Sua re cuperação e aceitação do órgão foi rápida e passado o período de tensão agradeceu à equipe que a fez sentirse renovada superando o estado depressivo O luto foi substituído pela esperança de vida AIDS NO TRANSPLANTADO Os receptores de TX renal são intencionalmen te imunossuprimidos em consequência da ingestão de drogas antirrejeição do enxerto Isso significa que podem desenvolver as mesmas infecções opor tunistas e doenças neoplásicas que têm sido vistas em outros pacientes como os acometidos de AIDS Por isso o efeito da infecção do HIV em receptores de TX renal é incerto Os leucócitos T que são os responsáveis pela resposta imunológica aos vírus fungos e talvez antígenos relacionados a tumor são o alvo da terapia imunossupressora e do HIV po rém a detecção do anticorpo antiHIV é diagnóstica Tem sido bem documentado o desenvolvimento de anticorpos contra HIV que receptores de enxerto re nal podem adquirir no contato sexual transfusão de sangue maioria ou via enxerto Convém esclarecer que a maior parte dos casos de contaminação ocor reu num período em que não era rotina nos hospi tais do país a pesquisa de HIV Há um cuidadoso acompanhamento na Unida de de Transplante Renal dos pacientes transplanta dos com HIV que se intensifica quando se iniciam as infecções oportunistas A observação dos pacientes vai ajudar a esclarecer os efeitos da imunossupressão no desenvolvimento da AIDS Os pacientes chegam ao Setor de Psicologia ne gando o diagnóstico de HIV Este mecanismo de defesa ocorre para que possam aceitar outro trauma em suas vidas já que se sentem pertencendo a uma Psicossomaticaindd 382 Psicossomaticaindd 382 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 383 categoria especial a de transplantados Com muita cautela e perseverança conseguimos fazélos ultra passar a fase de revolta e possibilitar a chegada a uma situação da acomodação isto é aceitação relativa da condição tão estigmatizante O TRANSPLANTE EM CRIANÇAS E ADOLESCENTES Não podemos deixar de fazer referência ao so frimento da criança que chega à Unidade com insufi ciência renal crônica e de sua família especialmente seus pais Decepcionamse ao notar a defasagem no crescimento desde a infância entrando em pânico com a aproximação da puberdade e a chegada da adolescência quando deveriam modificar todo o seu esquema corporal e apresentar sinais visíveis como o aparecimento de pêlos aumento do tama nho dos órgãos sexuais alteração na voz do menino a menarca nas meninas etc Há esperança de bons resultados depois do transplante com o equilíbrio hormonal A mãe de N descontrolouse quando soube que seu filho não seria nunca aquele homem de 185 me tro com quem tanto sonhara Chorou revoltada mes mo sabendo que ele cresceria porém devagar e só mais alguns centímetros É difícil para os pais aceitar que seu filho não terá um desenvolvimento satisfatório que sua filha não conceberá tão facilmente Esse fato trágico gera conflitos familiares intensos e dificulta a relação en tre seus membros O irmão saudável por exemplo quer mais aten ção quer ser menos requisitado para ajudar nos afa zeres domésticos e no trato para com o doente Sen tese esquecido e pode tornarse rebelde por ser mal compreendido quando clama por atenção e carinho Pode de certa maneira querer ganhar maior notorie dade e não desejar crescer também O pai por sua vez não tem também a atenção que desejo de sua esposa às voltas com o filho de ficiente Mas nem só de desentendimentos vivem as fa mílias com elementos doentes Existem pais que sa bem como distribuir atenção e afeto que discutem os problemas com todos e conseguem a partir daí maior harmonia apesar da situação traumática exis tente Muitos são os que pedem ajuda para ultrapassar os momentos de crise Muitos são também os adoles centes transplantados que têm um desenvolvimento e uma vida sexual satisfatória namorando casando e tendo filhos Vale salientar que há muitos casos com evolução feliz a despeito das limitações CONSIDERAÇÕES FINAIS Procurouse no desenvolvimento deste traba lho enfocar os efeitos emocionais dos doadores de rim dos receptores e da equipe multidisciplinar todos envolvidos no processo pré trans e pósoperatório No que se refere ao receptor percebeuse que seu restabelecimento costuma ser mais rápido quan do tem um bom relacionamento com o doador Por outro lado quanto recebe um rim doado por um mor to desnecessário lembrar o conceito contemporâneo de morte encefálica tende a princípio a encarálo como um objeto estranho e de doador desconhecido dentro de seu corpo o que pode leválo a apresentar reações psíquicas diversas e até mesmo chegar a um estágio regressivo profundo Notamos ainda que de forma geral os recepto res que antes de adoecer tiveram uma participação social e profissional ativa com gratificações e reco nhecimentos restabelecemse com menor dificulda de Voltam a seus afazeres e retomam o seu papel an terior reintegrandose após o período de adaptação póstransplante Os que não tinham projeto de vida bem arquitetado eram desinteressados improduti vos tinham o ego fragilizado e baixa autoestima com ganhos secundários na doença tendem a dificultar sua volta aproveitandose do estado patológico e das regalias adquiridas enquanto doentes A partir da análise dos dados obtidos na obser vação do doador podese notar que atitudes de pres são no sentido de fornecimento do órgão frequen temente ocasionam desistências durante o período de entrevistas e exames ocasião em que a pressão é mais intensamente pesquisada e esclarecida O doador que leva adiante o processo de trans plante via de regra apresenta após a cirurgia ele vada autoestima e um sentimento de estreita união com o receptor Este quadro pode entretanto ser in vertido quando se observam reações de frustração e depressão além do recrudescimento da sensação de castração Com o objetivo de acompanhar avaliar e ajudar a vivenciar e elaborar da melhor forma possível os processos a que esses pacientes estão submetidos é que temos desenvolvido todo um trabalho em Psico nefrologia no HSE Este tipo de trabalho exige da equipe um alto nível de tolerância à frustração O próprio fato de nos termos detido na análise das principais dificuldades com que nos deparamos evidencia que os percalços são muitos A avaliação do bom resultado do acom panhamento psicológico é relativa e talvez nem mesmo possa estar atrelada à do sucesso do trans plante Mesmo em casos de mau êxito da cirurgia devese procurar levar a bom termo a tarefa de fazer Psicossomaticaindd 383 Psicossomaticaindd 383 05012010 121218 05012010 121218 384 Mello Filho Burd e cols com que o paciente suporte e se adapte a esta reali dade e leve adiante sua vida apesar do incômodo de sua doença O transplante como processo envolve constan temente certa complexidade Várias dimensões cha mam a atenção a começar pela doença até há pouco letal e passando pela decisão da terapêutica heróica que substituirá a dependência da máquina pela espe ra angustiante de um órgão pela eleição e preparo de um doador pelas esperanças e frustrações do pacien te renal receptor e chegando até um resultado vito rioso ou fracassado Mesmo assim parece compen sadora tal atividade pois o que se busca é prolongar vidas a serem usufruídas sem sofrimento o que se faz enfrentando morte e triunfando sobre ela REFERÊNCIAS Ardid R R Psicología médica 2 ed Barcelona Espaxs 1974 Basch S H Emotional dehiscence after sucessful renal transplan tation Kidney Intemat v 17 p 388396 1980 Chiattoni H B C Camon V A A Meleti M R et al Psicotera pias alternativas v VII São Paulo Traço 1977 Cramond W A Some observations on recipients and donors in kidney homotransplantation Brit J Psychiat v 136 p 1223 1230 1967 Fellner C I Marsahall J R Kidney donors The myth of infor med consent Amer J Psychiar v 9 p 7985 1970 Freud A O Ego e os mecanismos de defesa 8 ed Rio de Janeiro Civilização Brasileira 1986 Kemph J P Renal failure artificial kidney and kidney transplant Amer J Psychiat v 122 p 12701274 1966 Psychotherapy with patients receiving kidney transplant Amer J Psychiat v 127 p 623629 1967 Klein M Inveja e gratidão Estudo das fontes do incons ciente 2 ed Rio de Janeiro Imago 1984 O sentimento de solidão Nosso mundo adulto e outros ensaios 2 ed Rio de Janeiro Imago 1975 Laplanche J Pontalis J B Vocabulário da psicanálise 10 ed São Paulo Fontes 1988 Levy N B Psychonephrology 1 New York Plenum 1983 Psychonephrology 2 Lima M G Lima A C L Pacientes renais crônicos e transplanta dos J B M v 45 p 2427 1983 Lopez M Quatro gigantes da alma Rio de Janeiro Olympio 1983 MCDougall J Em defesa de uma certa anormalidade Teoria e clíni ca psicanalítica 10 ed Pono Alegre Artes Médicas 1989 Teatros do eu Rio de Janeiro Francisco Alves 1982 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual 3 ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1983 Nordberg M When patients die handling grief in the dialysis unit Dialysis and transplantation Amer J Psychiat v 19p 164 169 1990 Osório L C et al Grupoterapia hoje Porto Alegre Artes Médicas 1986 Perestrello D A medicina da pessoa 3 ed São Paulo Ateneu 1982 Sadler A M Sadler B M Sterson E B The uniform anatomical gift act JAMA v 206 p 25012506 1968 Sierra M R Fundamentos doctrinales para una psicologia médica Barcelona Toray 1978 Siemmons R G Hennen L K The living related kidney donor Psychological reaction when the kidney fails Dialysis and Trans plantation Amer J Psychiat v 8 p 572574 1979 Sontag S Aids e suas metáforas São Paulo Companhia de Letras 1989 Spital A Spital M Kidney donation Reflextions Amer J Ne phrol v 7 p 4954 1987 Stedeford A Encarando a Morte Porto Alegre Artmed 1986 Sulaiman M A Khader A A Impact of HIV infection on dilysis and renal transplantation Transplantation ProCeedings v 21 p 197019711989 Zaidhaft S Mone e formação médica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 384 Psicossomaticaindd 384 05012010 121218 05012010 121218 Trabalhar em hospital geral implica em pensa mentos e questionamentos sobre como fazer psica nálise quando a dor física se envolve com a psíquica e como se pode organizar manter e ter resultados assertivos no cuidado com a população que se encon tra dentro da estrutura hospitalar a mercê de uma equipe responsável por sua melhora alterando sua rotina penetrando interna e externamente invadin do muitas vezes sem pedir licença As respostas vão aparecendo ao longo do tempo tomando forma com a real melhora dos pacientes tratados em contraposi ção aos que não são acompanhados Uma entre infinitas questões referese à doença como um movimento corporal a partir de que Re sultado de várias figuras que introjetou vários fatores ambientais genéticos comportamentais acúmulo de experiências e de emoções O que é possível respon der certamente corresponde a há uma história para cada um O corpo terá de se adaptar criando meca nismos que passam a ser a sua realidade Para os que adoecem de enfermidades denomi nadas crônicas e terminais há várias formas de te rapêuticas clínicas que visam a facilitar a integração com a doença podendo assim proporcionar um sen timento de alívio Podemos incluir os transplantes de órgãos e tecidos que se apresentam como tratamen tos alternativos abrindo espaço para a regeneração de células e de tecidos para uma possibilidade de reaberturas de transformação de renascimento Pro porciona aos candidatos maior sobrevida com melhor qualidade de vida e até a cura O transplante não é um procedimento simples Envolve coragem sacrifício na preparação no ato propriamente dito e depois Tratase de uma ope ração casada onde doador e receptor formam um par em uníssono em prol de um objetivo comum a melhora do paciente Nos dicionários transplantar significa arran car planta árvore de um lugar e plantar em outro substituir um órgão do corpo humano por outro fazer passar costumes instituições etc de um país para outro Um dos significados para a palavra órgão é uma parte do corpo de um ser vivo determinada a cumprir uma função vital Sabemos que quando nos sos órgãos funcionam a contento parecem até nem existir Tornase difícil aceitar que algo não cumpre sua função dentro de nós e que se nada for feito não há conserto O transplante de medula óssea é a esperança de cura para portadores de leucemias e doenças do san gue O objetivo é restabelecer a hematopoese após aplasia medular A medula óssea é um tecido localizado dentro dos ossos principalmente os da bacia É onde se ori ginam os componentes do sangue É também onde estão os glóbulos vermelhos brancos e plaquetas São os elementos fundamentais para transportar oxi gênio controlar os processos de hemorragia com as plaquetas e as defesas do organismo O paciente que necessita de um transplante de medula óssea sabe que a existência de um doa dor geneticamente compatível é imprescindível para tentar reativar o funcionamento do que está lesado dominando um mal que parece invencível Este sofre muitas transformações físicas e emocionais e muitas vezes sentese incapaz com sintomas causados por múltiplos fatores que vão desde efeitos colaterais das medicações dores físicas a sensações psicológicas de dependência e privação e de despersonalização A expectativa da compatibilidade com um doa dor gera angústia e suscita dúvidas sobre quem será seu provável salvador no seio da família O paciente vai viver com uma parte de alguém que lhe é fami liar Há no entanto uma rede estruturada pelo Mi nistério da Saúde com respaldo da Legislação para que o transplante de medula óssea entre não apa rentados transcorra a contento quando não há um parente geneticamente compatível com o portador de doenças do sangue Mais de 60 encontramse 29 TRANSPLANTES DE MEDULA ÓSSEA ENTRE DOADORES E RECEPTORES NÃO APARENTADOS AVANÇOS BIOPSICOLÓGICOS Miriam Baron Psicossomaticaindd 385 Psicossomaticaindd 385 05012010 121218 05012010 121218 386 Mello Filho Burd e cols nesta situação A população brasileira é heterogênea complexa e variada fruto de grande miscigenação Estimase que a chance de se encontrar um doador voluntário compatível é de 1 para 100000 O REDO ME Registro Nacional de Doadores de Medula Ós sea é responsável por cadastrálo através dos hemo centros de todo o país Utiliza um sistema que avalia a compatibilidade genética HLA identificando os potenciais candidatos para os pacientes inscritos no REREME Registro Nacional de Receptores de Medu la Óssea Estes dois órgãos estão em funcionamento no Instituto Nacional de Câncer INCA sob a super visão técnica do Centro de Transplantes de Medula Óssea CEMO Os pacientes preparamse para receber dentro de seu corpo um tecido de um doador voluntário o que gera diversas reações O doador por sua vez que altera sua rotina e se propõe a tentar salvar uma vida merece toda a atenção pois vai ser retirada uma parte do que é seu em favor de um desconhecido já que ao se cadastrar preen che um Termo de Consentimento comprometendose a manter o anonimato durante todo o processo O ser humano costuma fazer permutas quando se trata de ofertas Podese então doar algo sem re ceber nada em troca nem mesmo saber com quem se troca Qual o simbolismo contido em um ato no qual há um impedimento real Neste momento afloram questões éticas bem como fenômenos psicológicos que podem ocorrer antes fantasias durante expectativas e depois encontros e desencontros na vigência do anonima to do par A dificuldade de lidarmos com o invisível nos faz desistir de certos atos de evitarmos outros ou mesmo de nem experimentarmos Ao invés de ima ginar ou intuir negamos dando lugar ao medo de vivenciar algo novo desconhecido e incerto O es sencial é invisível aos olhos é a ideia de Antoine de SaintExupéry no livro O Pequeno Príncipe Como é complexo não podermos tocar apalpar Parece que o que é concreto dá menos medo porque estamos olhando supostamente controlando Por mais que não haja identificação física entre o par paira no ar uma sensação de que se estabelece um contrato não verbal um contato não no plano físico porém incons ciente entre os dois Há um sentimento de igualdade de relativa simbiose de aliança onde não é possí vel separar as partes Por isso o doador precisa estar bastante informado de corpo e coração aberto para poder ajudar no momento da transferência de sua medula óssea saudável e compatível ser introduzida no interior do seu par O que se trabalha efetivamente com o paciente na preparação para o transplante são os sentimentos mais comuns de abandono os medos da dor da mor te das mudanças extra e intracorpóreas da rejeição amparados pela esperança do sucesso do procedi mento Nos doadores voluntários encontramos senti mentos contraditórios medo de tirarem algo que é seu sem volta das perdas da castração lidando en tão com a falta relativa Por outro lado há curiosida de autoestima elevada sentindose fortalecido e re compensado pelo seu gesto de generosidade Ao ser avaliado psicoclinicamente no prétransplante tem a oportunidade de fazer uma autoavaliação observan do a importância de sua saúde física e mental entrar em contato consigo próprio num check up duplo o seu e o realizado pela equipe especializada do centro de transplante O doador não aparentado tem aparentemente mais motivos para desistir Não tem muito a perder nem mesmo conhece pessoalmente o sujeito respon sável objeto alvo a ser salvo por ele não tem víncu los afetivos diretos não é pressionado pela família ou pelos amigos É livre para decidir sobre os prós e os contras se quer estar disponível para se ausentar no trabalho por alguns dias interromper a rotina sentir incômodos pequenas dores enfrentar possíveis me dos de ser anestesiado puncionado hospitalizado remexer sua identidade da morte Estudos sobre doação de órgãos e tecidos indi cam que o TX é visto como um presente de abertura de um novo ciclo de trocas A doação de um órgão recria uma relação de parentesco simbólico entre o par doador e receptor cuja categoria mediadora é o corpo As representações sobre transplante de órgãos e tecidos dão conta de que o que se dá é vida ou seja doar significa estabelecer uma relação de reci procidade Aceitar algo de alguém é aceitar algo de sua essência Por isso não é tarefa fácil retribuir Tra tase de uma questão que ultrapassa procedimentos clínicos e cirúrgicos Os psicanalistas Leon e Rebeca Grinberg escre veram sobre a dificuldade de enfrentar mudanças e como elas são geradoras de desintegrações A capaci dade de seguir sendo o mesmo após sucessivas ocor rências de mudanças aceitando a perda dos vínculos antigos forma a base da experiência emocional da identidade enfrentando o medo da perda A dinâmi ca do transplante impõe ruptura de hábitos anterio res É necessária adaptação à nova rotina de vida A experiência no preparo planejamento e acom panhamento dos transplantes entre não aparentados revela que um percentual razoável de doadores e a maior parte dos receptores e familiares em especial de crianças desejam se conhecer A Legislação Bra sileira determina porém manter o anonimato entre ambos Psicossomaticaindd 386 Psicossomaticaindd 386 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 387 Psicólogo e assistente social são os intermediá rios no recebimento de telefonemas emails e pedi dos vindos de todo o país para que seja permitida a revelação Querem pelo menos enviar correspondên cias desenhos crianças fotos algo que pertença a ele e que chegue às mãos do outro fazendo trocas conectandose identificandoo de alguma maneira Segue partes de algumas cartas enviadas por pacien tes a seus doadores anônimos quando o transplante foi bemsucedido Eu receptor de medula óssea agradeço a Ds to dos os dias por você existir Gostaria de te conhe cer e ter a oportunidade de dizer o quanto você foi importante em minha vida A medula pegou 100 vai completar um ano Você é parte da mi nha história Oi tudo bem Eu sou o garoto que recebeu a sua medula Agora eu já faço tudo Já vou para escola já faço de tudo e não preciso mais ir para o hospital por causa dessa medula Com essa me dula eu já sou um menino normal e melhor Meu grande amigo Não tenho palavras para te dizer o quanto estou feliz por você ter aparecido na minha vida De uma mãe A sua generosidade de se colocar em nossas vidas teve um efeito de transforma ção Hoje é o seu sangue que corre nas veias do nosso filho A nossa ligação é fraterna Venho por meio desta agradecer seu coração bondoso por ter me proporcionado a oportuni dade de continuar a viver podendo compartilhar sua vida com a minha Somos irmãos por parte de Ds e agora somos irmãos de sangue Os doadores se interessam em saber se os recep tores estão vivos se houve pega do enxerto se estão bem de saúde sem rejeição ou intercorrências gra ves Percebese o quanto se sentem diferenciados por terem realizado um grande ato de bondade Alguns se aquietam e se dizem abastecidos não necessi tando da presença física do outro para completar o sentimento de paz interior por ter tido um gesto ím par e compensador seguindo sua vida normalmente Parecem ter feito um investimento que deu lucro ter realizado um desejo especial ou ter vivido a fantasia do herói anônimo Uma frase conhecida é lema de muitos Fazer o bem sem saber a quem Os pacientes com o passar do tempo e o trans plante bemsucedido sentem sua identidade reforça da e melhoram nos aspectos sóciopsicofísico Parece natural ver a cara do responsável pela sua recupe ração Após relato da dinâmica deste trabalho espera se que esteja bastante evidente a importância de cui dar em igual medida e proporção das duas partes em questão doadorreceptor respeitando sempre suas peculiaridades Podese supor no entanto que devido à ten dência de apoiarmos quem aparentemente nos pa rece mais frágil a prioridade seria nos dedicarmos ao paciente que se encontra em posição delicada de dependência total Após estudos teóricos análise de casos e prin cipalmente através da prática institucional e da com preensão dos fenômenos existentes no processo de transplante de medula óssea entre não aparentados aliado a integração entre os envolvidos neste proce dimento reunimos uma série de casos e vivenciamos variadas situações entre doadores que permitem ra tificar o descrito até o momento A seguir vale comentar o desfecho de um trans plante bemsucedido quase não realizado em função da candidata à doação tratarse de uma jovem universitária cadastrouse em campanha na universidade de 19 anos receptiva partici pante interessada cuja mãe colocouse contra não permitindo que preparássemos sua filha questionando o programa e duvidando da serie dade da equipe e do destino da medula de sua filha Foram necessárias algumas sessões para es clarecimentos e trabalho terapêutico com ambas Entendermos em meio a choro e desabafo que houve um problema sério de doença na família cujo paciente com diagnóstico de câncer veio a falecer sem a chance de tentar um transplante de medula óssea indicado para o mesmo Ao ser contatado para marcação de data para a co leta de medula o candidato reagiu ao confirmar que não conheceria seu par apesar de já lhe ter sido informado sobre a questão da confidenciali dade Tal fato tende a ocorrer próximo ao ápice do processo quando o doador efetivamente cons trói para si próprio uma figura que deseja conferir fisicamente Algumas sessões de psicoterapia são necessárias neste contexto para elaboração da situação de conflito e separação da possibilidade de uma simbiose virtual unilateral Um doador resistiu durante um tempo até com preender que realmente não lhe seria retirado um órgão sólido mas sim apenas uma quantidade de sua medula óssea o suficiente minimizando as sim ansiedade e sentimento de castração Referia muito medo de se tornar deficiente M sexo feminino casada sem filhos desejosa de ser mãe Considerase uma pessoa rígida res ponsável tranquila decidida religiosa Traba lha numa igreja com crianças carentes Durante anamnese relatou alguns sonhos ocorridos des Psicossomaticaindd 387 Psicossomaticaindd 387 05012010 121218 05012010 121218 388 Mello Filho Burd e cols de nosso primeiro contato telefônico Neles está sempre doando uma parte de si para uma criança doente salvandoa Vale ressaltar que certos doadores durante a espera para a hora da doação propriamente dita sentemse especialmente ansiosos temendo pela vida do seu receptor Este tempo varia de caso para caso No exemplo a seguir mostraremos a reação de um doador nesta fase É nítido o desejo inconsciente de não haver mais o transplante já que o paciente pode ter superado a doença Estou enviando esta mensagem pois fui procu rado por vocês aí do REDOME para fazer novo tes te de compatibilidade que foi confirmado A partir disto recebi uma carta Queria saber de vocês como anda o processo de tratamento deste paciente que sou compatível já que sei da necessidade deste trans plante para ele e das dificuldades de se encontrar um doador Há também a preocupação da minha parte em relação a este paciente claro que gostaria de ter notícias que não precisará do transplante devido a melhora clínica do mesmo inclusive estou na torcida por isso O transplante como processo envolve constan temente certa complexidade Percebemos que há um aumento substancial de doadores voluntários e que o cuidado no preparo dos mesmos quando selecio nados evita suspensão adiamentos e desistências multiplicando o número de compatibilidade entre os pares cadastrados no programa REDOMERERE ME gerando mais possibilidades mais transplantes bemsucedidos com resultados vitoriosos ajudando o paciente a reorganizar sua vida no presente e no possível futuro REFERÊNCIAS Atié KS A clínica do sujeito transplantado uma reflexão sobre os artifícios utilizados pelo paciente oncológico no enfrentamento do transplante de células tronco hematopoiéticas Baron M 1992 Transplantes Renais In Mello Filho J Psicos somática Hoje Porto Alegre Artmed Blood A Special Report Bone Marrow Transplants Using Volun teer Donors Recommendations and Requirements for a Standar dized Practice Throughout the World 1994 Update The Journal of American Society of Hematology November 1 1994 vol 84 number 9 Borges ZN 1995 A Construção Social da Doença Um Estudo das Representações Sobre o Transplante Renal In Leal O org Corpo e Significado Ensaios de Antropologia Social Porto Alegre Ed Da UFRGS Epelman Claudia L Quimioterapia em Altas Doses e Transplante de Medula Óssea Aspectos Psicológicos Acta oncológico Brás Vol 17 número 2 6769 AbrilMaio 1997 Grinberg L e Rebeca 1971 Identidade Y Cambio Buenos Ai res Ediciones Kargieman Klein M 1975 O Sentimento de Solidão Nosso Mundo Adulto e Outros Ensaios 2ª ed Rio de Janeiro Imago Lamb D Transplantes de Órgãos e Ética Ed Soc Bras De Vigi lância de Medicamentos São Paulo 2000 Mello Filho J 1983 Concepção Psicossomática Visão Atual 3ª ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro Perestrello D Trabalhos Escolhidos Psicologia Médica Psicosso mática Psicanálise Psicossomaticaindd 388 Psicossomaticaindd 388 05012010 121218 05012010 121218 O vínculo da vida com o tempo cria pares de opostos temporais como início e fim nascimento e morte começo e término A dinâmica da vida e da consciência dela nos traz um aprendizado pessoal de morte e de renascimento ao longo do seu curso e desenvolvimento Um certo ensinamento do poder da vida de superar a morte e o vínculo desta com o tempo Ao mesmo tempo a nossa tradição judaico cristã nos faz conviver com uma divindade que nos fala da graça e virtude sobrenaturais como se ela a nossa tradição fosse contra a vida A vida se torna algo desprezado em vez de celebrado e o corpo algo horrível em vez de fantástico Fraser 2004 Evoluímos nesta série temporal do nascimen to à morte atravessando estações epigeneticamente determinadas em que o nosso corpo físico começa e tem uma história na qual em seu início a identidade do individuo é mais aquela do corpo e se encaminha para um outro polo ao longo do qual o indivíduo se identifica mais com a consciência que anima o corpo A consciência de ser e de ter sido bem como a cons ciência de não ser Conhecemos o sagrado e vivemos uma participação também alegre com as tristezas do mundo Erik Erikson 1976 pontua com enorme preci são quando descreve a velhice a fase do crescimento em que a polaridade é de integridade ou desespero e o objetivo a conquista da fase é a sabedoria que você só pode encarar o não ser o término a morte o fim pelo ter sido A aquisição de uma consciência sobre o sentido e o significado da própria existência As ciências jurídicas e a justiça não consideram legal que se morra porque a vida chegou a um fim por maior que seja a noção de que a vida acaba que nascemos crescemos amadurecemos envelhecemos e morremos Morrer de velhice em todas as culturas contemporâneas é uma coisa ilegal Tem que haver uma causa mortis definida no atestado de óbito ou de outra forma haverá a necessidade de uma necrop sia para que esta causa mortis seja definida Morrer simplesmente porque a vida chegou ao fim não é pos sível do ponto de vista legal Os avanços tecnológicos não apenas trouxeram um razoável controle sobre as doenças degenera tivas prolongando a nossa longevidade bem como disponibilizaram avanços na manutenção de vida cuja utilização de forma inapropriada provocaram e conti nuam provocando movimentos sociais pró eutanásicos sobre a dignidade e o direito de morrer O custo destas futilidades uso inapropriado destas tecnologias trouxe pesquisas sobre o comportamen to de médicos e pacientes em condições de terminali dade afim de que pudessem ser criados protocolos de manutenção de vida de não iniciação de determina dos tratamentos de suspensão de tratamentos já ini ciados bem como a regulamentação legal destas con dutas Em consequência destes estudos na Holanda foi regulamentada a eutanásia em 1995 e nos Estados 30 A MORTE E O MORRER A ASSISTÊNCIA AO DOENTE TERMINAL Francisco José Trindade de Barreto O vínculo da vida com o tempo Diz o começo e o fim da nossa sorte Da vida diz do nascimento a morte Da duração de cada vão momento Mas o poeta ao refazer instantes Cria eternos cria infinitos Traz vida à sombra e da cor ao grito Transcende ao que jaz ao fio cortante Do tempo criador de finitudes Desfaz as ilusões sonhos recria Num bailado real de fantasia No compromisso sutil das atitudes Psicossomaticaindd 389 Psicossomaticaindd 389 05012010 121218 05012010 121218 390 Mello Filho Burd e cols Unidos não foram possíveis de passar os projetos de lei sobre o suicídio assistido mas se legislou advanced directive act em 1992 e o living bill que permitem ao doente escolher suas preferências de tratamento e aos médicos serem consoantes com isso em relação à prescrição de ordens médicas contra os procedimen tos de ressuscitação DNR do not ressucitate CMO comfort measures only iniciação ou suspensão de ventilação mecânica e alimentação por sonda A medicina em si vive uma época de grandes mudanças Tornouse um grande mercado no qual a eternidade é quase possível de ser comprada e a morte é quase também uma opção O aspecto de pre venção tem sido superenfatisado A doença e a saúde passaram a ser mercadorias de consumo e a seguir leis de mercado Mudou o paciente que passou a ser um consumidor um usuário e eventualmente uma pessoa que sofre A relação médicopaciente também se modificou Os reflexos disso sobre os cuidados com os pacientes terminais trouxeram duas novas espe cializações A primeira é a do especialista em cui dados paliativos Uma outra em caminho é a dos Hospitalistas uma especialização em cuidados dos doentes que necessitam de hospitalização Os hospi tais aos poucos vão se tornando facilidades somente para doentes agudos e os médicos de hospital vão se aperfeiçoando no cuidado das condições agudas Os doentes crônicos vão assumindo uma posição de mais autonomia e assistidos na web por sites governamen tais dos sistemas de saúde e assistência telemédica Houve uma grande explosão em todo o mundo nos últimos 15 anos de um novo tipo de hospital que abri ga e rege os cuidados dos doentes terminais que são os Hospices Entre outras coisas oferece a possibilida de de mortes com dignidade sem muita medicaliza ção mas com um programa sobretudo de assistência aos doentes terminais em casa Eles passaram a ser o quartel general da medicina paliativa e a liderança do movimento da boa morte Que tipo de informações estes profissionais deveriam ter quando seus doentes tornamse terminais Que tipo de formação capacita riam estes profissionais para cuidar dos seus pacien tes terminais Que tipo de cuidados Como toca ao médico a equipe de saúde a morte do outro Como ele sente a morte do seu doente Como vive isso A intensidade com que se vive depende da experiência com o que se vive Esta intimidade é diferente entre as diversas especialida des médicas De um modo geral o médico tem mais intimidade com a morte tantas mortes vê ao longo da sua carreira profissional tantos óbitos atestan do que a intensidade com que vive a morte do ou tro é mais atenuada Ao longo da carreira quando olha para trás e a cada nova vivência ele vai des cobrindo neste seu cemitério pessoal que nenhuma das mortes foi igual à outra Os cenários podiam ser os mesmos a UTI do Hospital a enfermaria a casa do doente a emergência o ambiente do trauma a catástrofe como o terremoto e uma certa coletivida de de mortes mas cada uma é única Cada uma tem uma assinatura diferente uma singularidade que se torna difícil falar de um modo geral da morte do outro mas também do sentimento de si próprio a vivencia daquela morte em si Os seus mecanismos de defesa com frequência os levam a uma extrema e quase histriônica frieza uma bela indiferença diante da morte do outro que ao espectador alheio chega a ser vista quase como um certo modelo pertinente a certas culturas médicas donde há necessidade de um melhor preparo da equipe de saúde para otimizar os cuidados de assistência ao doente terminal Os cenários também oferecem uma plasticida de ao processo bem como traçam os enredos dos protagonistas da equipe e dos doentes Nada mais desolador que o término de uma ressuscitação cár diopulmonar do doente que chega à emergência em parada cardíaca O esforço e o trabalho coordenado da equipe de ressuscitação capazes de dar a sua últi ma gota de sangue por aquela vida A guerra perdida Aquele desconhecido é deixado no campo da batalha extinta devolvido aos seus familiares também des conhecidos e já sem vida É um cenário de desolação dos mais profundos A possibilidade de retornar à vida contornar a crise biológica nos pacientes de UTI traz o sentimen to de perda confortado pela certeza da utilização do que se dispõe de tecnologia para a preservação da vida A utilização destas tecnologias de ponta nos faz conhecer situações que são piores que a morte A so brevivência em vida vegetativa de pessoas que leva vam a vida em sua inteireza A coisificação do outro A observação deste enorme repertório nos per mite classificar os pacientes terminais de conformida de com algumas característica que não simplesmente definem os grupos mas que também nos ajudam a definir o tipo de atenção e cuidado de que eles são merecedores A grande importância disto é o reco nhecimento de que algumas terminalidades são re versíveis visto que os condicionantes dela podem ser modificadas QUEM É TERMINAL 1 Pacientes verdadeiramente terminais Eles são portadores de alguma condição letal que os leva rá definitivamente à morte Sua tratabilidade com intenção de cura foi esgotada Não existem trata mentos disponíveis que permitam mudar reverter ou parar o curso da terminalidade Este largo gru Psicossomaticaindd 390 Psicossomaticaindd 390 05012010 121218 05012010 121218 Psicossomática hoje 391 po de pacientes até relativamente recente eram deixados ao léu Eram casos de grande atenção e interesse belíssimos casos quando em fase de elaboração diagnóstica apresentados nas rondas médicas mas que se tornavam desinteressantes não despertando mais a atenção da equipe médi ca quando não tinham mais expectativa de cura Este vazio e o desumano desse comportamento vêm sendo sanados nos últimos anos criandose inclusive uma nova especialidade médica para preenchimento deste espaço Pertencem a este grupo todos os cancerosos destinados aos cuida dos paliativos 2 Potencialmente terminais Todos nós somos mas por aspectos peculiares a este grupo per tencem sobretudo os doentes de UTI Eles têm este espaço especial onde se concentra uma aparelhagem sofisticada e um pessoal treinado nos segredos da manutenção da vida em situa ções complexas difíceis multisistêmicas em sua maioria pelo fato da coexistência real da possi bilidade de vencerem a tormenta São ao mesmo tempo pacientes potencialmente recuperáveis e potencialmente terminais O investimento para a sobrevivência deles é todo Tudo disponível e pos sível de ser feito será feito Às vezes até mesmo o impossível se constrói ali Contudo potencial mente terminais somos todos nós Nascemos mas já nascemos com um programa ligado à longevi dade possível de existirmos e ainda que nada de mal nos aconteça durante toda a nossa vida um dia ela vai chegar ao fim É verdade também que do ponto de vista legal isso não é possível em ne nhum rincão da terra Quem morre tem de mor rer de alguma coisa Não existe morte sem causa na forma da lei Temos ao atestar uma morte dizer da causa mortis do tempo da sua existência e a duração desta desde o seu aparecimento até o êxito letal Impossível perante a lei entender que o nascer e o morrer pertencem à vida Olhando a existência desde o seu nascimento até a sua mor te aos poucos a gente vai descobrindo que leva mos tanto tempo para morrer quanto para crescer e ser adultos Este declínio após um certo plate aux na vida adulta vai mostrando e deixando as suas marcas nas pequenas visitas que a morte nos faz As crises hipertensivas a isquemia transitó ria a lesão isquêmica com alguma sequela moto ra ou cognitiva a prostatectomia pelo câncer de próstata a mastectomia pelo câncer de mama a incontinência urinária as falhas de memória etc Enfim começamos a acumular perdas ao mes mo tempo que duramente começamos também a aprender que a vida vai perdendo o seu sentido mercantilista utilitário seu valor de troca Come çamos a aprender que somos apreciados rejeita dos detestados ou queridos pelo que somos e não pelo bem ou pelo mal que possamos fazer aos ou tros Já não podemos mais mudar os filhos que te mos os amigos o companheiro ou companheira e temos que estar quites com eles para podermos partir Eles os outros que nos são significativos também têm de ter essa oportunidade para que não fique neles uma dívida existencial difícil de ser resgatada após a nossa morte Isso nos coloca diante de um tremendo e delicado universo de trabalho com o doente terminal e nos faz con frontar a necessidade profunda Compreendêlo É de interesse lembrar a esta altura dois pontos merecedores de destaque a Que todo o processo de cura é também um processo de mudança da história da vida pes soal Muitos dos nossos clientes não querem não podem ou se sentem incapazes de mudar o rumo da sua história pessoal A morte é uma escolha Morrese por covardia b Você só pode encarar o não ser pelo fato de ter sido Erik Erikson Em outras palavras você só pode encarar morrer se você viveu A an gústia de morrer é um equivalente à angústia existencial de não ter vivido A vida de lado As escolhas convenientes A não distinção en tre um chamado e um apelo A não separação entre o essencial e o supérfluo A morte não vem como a companheira desejada a coroa é conferir a legitimidade da vida 3 Pseudoterminais e mentalmente terminais São grupos de pacientes em que o processo de terminalidade começa na mente Pseudoterminais são aqueles que interpretam de modo errôneo a sua realidade Julgamse incuráveis e se tornam incuráveis porque se pensam assim No fundo há uma antecipada impossibilidade de suportar o so frimento vindouro ou um déficit de aprendizado para lidar com o sofrimento Suas fantasias sobre sua realidade estão no mesmo patamar das coisas sagradas têm o mesmo valor de uma crença ou uma fé e não necessitam de provas Guardam nas para si Muitas vezes pelo preconceito que tem sobre os profissionais de saúde sobretudo os médicos que piedosamente assim suspei tam ocultam verdades maiores Às vezes há um profundo estoicismo pelas coisas às quais se dá à vida porque também não se oferta a morte A natureza criou mecanismos de misericórdia para aqueles que estão condenados a um sofrimento que são incapazes de suportar Certa fisiologia da morte Em um trabalho clássico da psiconeuroi munologia dos mais clássicos e contundentes o Psicossomaticaindd 391 Psicossomaticaindd 391 05012010 121218 05012010 121218 392 Mello Filho Burd e cols dos dois ratos em jaulas diferentes submetidos a choques elétricos com certa periodicidade So mente em uma das grades havia uma pedaleira que desligava a corrente e eles paravam de so frer A avaliação da resposta imune dos linfócitos transformação blástica produção de imunoglo bulinas a sobrevivência a implantação de cân cer em peritônio permaneceu normal no animal que tinha a pedaleira em sua grade Quando começa a terminalidade O quê o como e o quanto comunicar Como viver a terminalidade Questões simples e importantes e que requerem res postas honestas e bem fundamentadas ao fim da vida Kastenbaun 1981 traz uma excelente revisão sobre as definições pragmáticas de onde começa a morte em sua perspectiva psicossocial Há um mo mento em que a pessoa não está morrendo e um ou tro momento em que se instala o processo biológico que o levará à morte É contudo ao nível do pensar e sentir da comunicação interpessoal que o início do processo se define a si mesmo O momento ou os vá rios momentos em que o processo se instala podem então ser melhor discriminados 1 A morte começa no reconhecimento dos fatos 2 A morte começa quando os fatos são comuni cados O prognóstico do médico e a tomada de consciência pelo paciente ocorrem em tempos di ferentes Com frequência ocorre um intervalo de tempo razoável antes que o médico revele com clareza e precisão ao paciente sobre os achados que obteve e o real significado 3 A morte começa quando o paciente toma consciên cia ou aceita os fatos 4 A morte começa quando nada mais poderá ser feito para a preservação da vida Há quem julgue que a vivência da terminalidade começa a par tir da comunicação colocando uma carga extre mamente pesada no ato de dizer que soa como uma sentença ou uma condenação instituída por aquele que proferiu o julgamento da nossa condição de saúde Há uma competência a ser adquirida Habilidades em comunicar notícias ruins prognósticos e redefinição de esperança ao longo do tratamento A comunicação tem que ser profissional mas mantendo o equilíbrio com a compaixão e a empatia Vezes há em que não existe unanimidade em relação ao diagnóstico ao prognóstico e até mesmo ao tratamento dentre os profissionais de uma mesma equipe Como con sequência os familiares ouvem diferentes pontos de vistas dos cuidadores e com frequência isso adiciona confusão hostilidade raiva e frustração por parte deles Os preconceitos pessoais sobre a morte e o morrer interferem na nossa habili dade de uma comunicação efetiva com familia res e pacientes Estes preconceitos muitas vezes culturais levantam barreiras entre o individuo e a sua doença sua condição de terminalidade Estas barreiras constroem uma das mais frequen tes formas de indignidade ao fim da vida que é o isolamento do paciente ao morrer Não se res tringe ao isolamento dos pacientes em UTI para uso de uma tecnologia sofisticada mas ao mundo íntimo O compartilhamento dos conflitos exis tenciais das despedidas das últimas palavras do aconselhamento aos que ficam O não dito é o grande mentor deste isolamento Isso nos levou a uma exploração não verbal desta situação em que os jogos predominam e ao mesmo tempo nos livrou da condição de ser o mensageiro do fim da vida e anunciador da morte A SÍNTESE DE OPOSTOS A síntese de opostos é um trabalho não verbal realizado com desenhos É de uma extrema simpli cidade e de fácil aplicação de riqueza indescritível Com os desenhos da síntese de opostos pedimos ao paciente para fazer uma sequência de desenhos Ins truções simples Pedimos inicialmente que faça um desenho do que seja para ele o seu problema con forme ele o percebe e sente Ao acabar o primeiro desenho pedimos a ele que faça um novo desenho que represente o que seja para ele o oposto ao pro blema Por vezes alguns pacientes têm dificuldade de criar uma imagem gráfica do problema mas são capazes de desenhar o oposto ao problema quando então retornam para fazer o primeiro desenho Após a execução do segundo desenho pedimos a ele mais um desenho Um desenho que tenha o problema e o oposto Um desenho síntese A grande maioria dos pacientes oncológicos foi incapaz de fazer um dese nho síntese Ao cabo do terceiro desenho voltamos aos desenhos com o paciente Apontamos os dese nhos e indagamos o que representam um a um No primeiro desenho lembramos que havíamos solicita do que ele fizesse um desenho que representasse o que para ele era o seu problema Pedimos para ele falar sobre o desenho o que ele quis dizer e o que ele representa Sucessivamente voltamos ao segundo e ao terceiro desenho Na grande maioria das vezes com os doentes oncológicos o terceiro desenho ine xiste Comentamos sobre a falta de imagem o branco e inquirimos sobre o que representa aquele branco Do que se constitui o que o compõe Do que ele é feito A falta de imagem invariavelmente representa o mundo dos aspectos controversos que temos sobre Psicossomaticaindd 392 Psicossomaticaindd 392 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 393 o tratamento a ser estabelecido ao mesmo tempo que nos põe em contato com o mundo de valores dos pacientes permitindonos a este ponto estabelecer um contrato ético conhecendo os limites dele e os limites que impõe ao nosso desejo de ajudálo es tabelecendo o mapa da nossa caminhada juntos Os desenhos podem ser classificados em três modelos exemplificados nas Figuras 301 302 e 303 Duas outras grandes revelações vieram do trabalho com os desenhos A primeira e surpreendente REVELAÇÃO dos trabalhos com desenho é que todos os pacientes on cológicos que viviam o jogo a mentira piedosa sem exceção sabiam que tinham câncer Jogavam o jogo da proteção dos seus familiares por sabêlos incapa zes de suportar a realidade o mesmo jogo que os familiares jogavam para protegêlo o que impedia que eles vivessem o âmago dos sentimentos mais ín timos mais significativos para a qualidade do tempo que viviam A segunda e igualmente surpreendente revelação é que os pacientes tinham também os mesmos confli tos os mesmos dramas e dilemas da equipe médica sob os aspectos controversos do tratamento deles Os desenhos poderiam ser classificados em três grupos 1 Falta de síntese 2 Síntese lógica 3 Síntese mística Falta de síntese rior a doença olhando a vida de frente de cabeça erguida O terceiro desenho um não desenho uma au sência de imagem um branco constituíase das dú vidas ao seu tratamento Se a doença estivesse tão espalhada como ela poderia operar tudo Ou sofrer irradiação que possivelmente iria apenas piorar a qualidade de vida dela Se a doença não estivesse tão espalhada talvez não valesse a pena Será que ela iria suportar tanto tratamento Era diabética doente do coração com insuficiência cardíaca anginosa já ten do enfartado alguns anos antes Para que viver tan to com tanto sofrimento Estava feliz com o quanto tinha realizado na vida Talvez um filho precisasse ainda de uns conselhos pois estava se afastando dos valores espirituais e medindo a vida pelos seus valo res materiais Estava ambicioso Ela era católica e não iria se negar a um tratamento para não faltar nas suas obrigações com Deus Só não queria sofrer muito Síntese lógica Os desenhos da figura acima são de uma senho ra de 67 anos de idade diabética e hipertensa que já na primeira entrevista apresentava metástases ósseas e hepáticas de um tumor primitivo de rim O primeiro desenho é de uma representação dos pontos dolorosos no corpo com expressão no tórax e no quadrante superior esquerdo do abdome Repre senta o espalhamento da doença acima e abaixo do diafragma O oposto o segundo desenho é o de um ros to o rosto dela Sadio na condição de vida ante O problema O oposto A síntese O segundo conjunto de desenhos representa uma síntese lógica O primeiro desenho o problema é o câncer de pulmão O oposto o segundo desenho é representa tivo da saúde e o terceiro o tratamento O primeiro desenho representa o problema em que ele estava O traço é a linha da vida e aquela queda representa o abismo em que ele se encontrava A verticalidade da linha é representativa do abismo é o seu câncer de pulmão É de interesse que se diga que até aquele momento ninguém absolutamente ninguém lhe havia falado do seu diagnóstico O segundo o desenho do oposto é a linha da vida no cotidiano com seus altos e baixos O terceiro desenho representa a ameaça que o câncer traz à sua vida e o tratamento A vida cai em qualidade mas ela tem tratamento e prossegue Con tinua em um de menor qualidade suportável Gros seiramente este modelo diz da energia interior do paciente para encarar o problema Diz da tolerância à diminuição da qualidade da vida e talvez diga de um prognóstico melhor pela qualidade da energia vital O problema O oposto A síntese FIGURA 301 Falta de síntese FIGURA 302 Síntese lógica Psicossomaticaindd 393 Psicossomaticaindd 393 05012010 121219 05012010 121219 394 Mello Filho Burd e cols Síntese mística tem mais sentido Evidentemente estes limites são diferentes em diferentes pessoas e à medida que as perdas vão se acumulando tomando assento cres ce também certo tipo de esperança que eles possam deixar o mundo quando a oportunidade chegar sem bips de aparelhos eletrônicos flashes multicoloridos colchões especiais barulhos de ventiladores monito res sofisticados de mil funções que nos tiram a tran quilidade e nos separam daqueles poucos que não nos deixariam morrer sozinhos isolados O credo de resgate da medicina de alta tecnologia prevalece e na maioria das vezes vence Na década de 1990 dois extraordinários estu dos marcaram os cuidados ao fim da vida e começa ram a redefinir uma prática pelos seus resultados O primeiro deles encomendado pelo Estado na Holan da entre 1990 e 1995 consistiu numa avaliação dos procedimentos e condutas de médicos e clientes em fase terminal e trouxe como resultado a legislação sobre a eutanásia e sua implementação legal naquele país em 1995 O segundo estudo realizado nos Estados Uni dos em duas fases e que visava em última análise a dar suporte ao suicídio assistido que teria a sua le gislação elaborada começou em 1989 e foi até 1997 Era um estudo multicêntrico envolvendo mais de 9000 pacientes em estado grave Na primeira fase dita observacional foi feita uma avaliação da disponi bilização de procedimentos desejos e recusas de tra tamentos pelos pacientes solicitação aos médicos de procedimentos eutanásicos e sua distribuição por pa tologias manutenção ou iniciação de procedimentos terapêuticos injustificados pelos prognósticos ofereci dos pelos médicos e que resultavam na indignidade do morrer e na elevação dos custos Em uma segunda fase ia se verificar a influência dos conhecimentos adquiridos na primeira fase na mudança do compor tamento médico A essa altura já se havia legislado sobre o advanced directive act A comparação entre as duas fases do estudo resultou na não mudança do comportamento médico mas na consolidação do ato do governo criando a emenda do advanced directi ve act em que as pessoas que tivessem definido os seus valores e direitos previamente e tivessem seus desejos respeitados Desse modo respaldavase juri dicamente os desejos dos doentes de não serem colo cados em ventilação mecânica artificial de não serem ressuscitadas em caso de parada cárdiorespiratória de terem sonda nasoenteral para nutrição colocada O estudo em si tinha o nome de SUPPORT Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risk of Treatments 1955 Assim a partir destes estudos foi criado o con ceito vigente da boa morte do ponto de vista huma nitário e médico legal bem como foi aberto o espaço O problema O oposto A síntese É bem menos frequente Este terceiro conjunto de desenhos foi realizado por uma senhora de 53 anos de idade com um colangiocarcinoma intrahepático recém diagnosticado disseminado por todo o fígado Até aquele momento ela não tinha sido informada que tinha um câncer No primeiro desenho de uma cruz ela se diz em uma situação de vida e morte que é a forma como ela sente a sua doença Sabe que tem uma doença grave e que as pessoas não dão notícias são reticentes nas informações e ela não tem nenhu ma informação sobre a sua tratabilidade apesar de tantos exames sofisticados realizados No segundo desenho o do oposto a flor representa a vida sadia dela bela e viçosa O terceiro desenho é uma repre sentação no quanto a vida pode ressurgir da morte Um outro plano Uma nova vida Uma nova dimensão quaisquer que sejam os planos de Deus para a vida dela Até mesmo renascer permanecendo viva ven cendo esta batalha ou voltando à casa dele A MORTE NA VELHICE Muitos dos aspectos da morte na velhice são colocados em diferentes partes deste texto Mas defi nir um tópico para isto vem da necessidade de subli nhar alguns aspectos marcantes distintivos se bem que seja ilegal morrer de velhice A morte decorrente do envelhecimento em sua grande maioria e vai se dando aos bocados Os idosos são lentamente sobre pujados pelos defeitos cumulativos do seu processo de desmame da vida o que levou a William Osler 1990 a escrever que as pessoas levam tanto tempo para morrer quanto levaram para crescer A citação de uma paciente idosa do Doutor Alvarez de Chicago é quase legendária quando ela reportava a ele dizendo que a morte continua me dando pequenas mordidi nhas A cada ataque de tonturas quedas desmaios confusão mental ela se tornava mais velha mais he sitante menos confiante em sua memória com uma escrita bem menos legível e seu interesse na vida bem menor Há um somatório de perdas de diminui ção da qualidade de vida além da qual a vida não FIGURA 303 Síntese mística Psicossomaticaindd 394 Psicossomaticaindd 394 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 395 para a conceituação dos Cuidados Paliativos Rapida mente tudo ganhou forma na definição disso como especialidade ou subespecialidade sobretudo dentro da oncologia Sete domínios foram estabelecidos como pertinen tes aos cuidados paliativos de doentes ao fim da vida 1 Decisão centrada na família e no paciente 2 Comunicação dentro da equipe com o paciente e com os familiares 3 Continuidade dos cuidados 4 Suporte emocional e prático dos familiares e dos pacientes 5 Tratamento dos sintomas e medidas de conforto 6 Suporte espiritual dos pacientes e da família 7 Suporte organizacional e emocional para a equi pe Na formação e preparo da equipe que vai lidar com doentes terminais nossa atitude atual tem uma ênfase ou um interesse maior em grupos de sensi bilização como por exemplo a citação abaixo de um dos nossos protocolos de vivência sobre a termi nalidade Trabalhamos com grupos de menos de 20 pessoas e a dinâmica segue em conformidade com o tema No exemplo abaixo de uma das vivências soli citamos que cada um dos participantes ao se apresen tar apresente também a sua lista de prioridades no momento atual da vida 1 Discutir no grupo as prioridades de cada um no aqui e agora 2 Estabelecer para cada um dos participantes uma condição terminal 3 Redesenhar as prioridades neste novo agora 4 Rediscutir no grupo O tema da morte ideal de cada um no grupo 1 Como cada um gostaria de morrer 2 O que seria uma boa morte 3 Expor no grupo as ideias particulares que cada um tem sobre o que seria o seu ideal de morte Estes grupos são profundamente ricos e trazem consciência da necessidade de conhecimento sobre a própria terminalidade abre horizontes sobre a im possibilidade de decidir pelo outro como deveria ser a morte dele qual o melhor lugar para morrer quais os requisitos deste lugar como a possibilidade de tro cas entre o paciente e as pessoas queridas conforto respeito suporte emocional informação cuidado ordenado Podemos divagar sobre o como se morre hoje e onde se morre hoje e identificar alguns sub grupos de doentes terminais que tem especial possi bilidade de morrer em instituições e que necessitam de uma especial atenção posto que algumas destas formas poderiam ser evitadas ou prevenidas Refiro me aos doentes cirúrgicos Com frequência morrem em instituições nas UTIs ou de forma inesperada Os cirurgiões não apenas guardam uma pesada car ga de expectativas Eles devem chegar e resolver São extremadamente receptivos a estas expectativas e ainda se vestem dela como se eles próprios fossem a expectativa desejada Habitualmente são pragmáti cos Além da comunicação perturbada que com mui ta frequência parece uma estrada de mão única em que um fala e o outro escuta e ipsofacto o diálogo fica perturbado a metalinguagem fica também com prometida pois ele nunca sabe se o que ele disse foi o que o paciente escutou e nunca sabe se o que ele ouviu foi o que o paciente quis dizer Por mais claro que possamos ser com o outro nas nossas comunica ções é fundamental ter acesso a como isso chegou a ele Perguntar o que foi contado para ele qual a compreensão do que foi dito o que eles fazem do que foi comunicado Como eles se colocam diante do enunciado Como bate na emoção deles É fundamen tal do mesmo modo ter esclarecimentos sobre os de sejos do paciente e suas emoções Respeitar o dese jo dos pacientes de não quererem ter informações e transferirem as decisões aos seus familiares mas não fazêlo sem que isto seja um desejo expresso deles e estas razões e emoções subjacentes também tenham se tornado claras Usar questões abertas para se as senhorear da dimensão do mundo de valores deles sobretudo no que diz respeito à qualidade de vida e colocar suas fantasias sobre o que eles falam O senhora esta me dizendo que Prover informa ções simples e honestas Algumas mortes que poderiam ser evitadas são decorrentes dessas falhas Abaixo listo algumas dicas sobre a prevenção destas mortes em pacientes cirúr gicos 1 Trabalhar a barganha do tempo 2 Criar uma reserva mental de energia 3 Reconstruir a fé e a esperança 4 Acessibilidade às fantasias do paciente A barganha do tempo é a primeira manifesta ção das qualidades especiais daquele tempo em que se inseriu a necessidade cirúrgica Que qualidades compõem aquele tempo Porque a cirurgia tem de ser feita naquele tempo ou porque se está pedindo o adiamento dela Com alguma frequência há um projeto inconsciente na relação uma proposta não explicitada e o acordo na relação consciente a que foi explicitada é o aval solicitado para a proposta in consciente e que não foi explicitada Psicossomaticaindd 395 Psicossomaticaindd 395 05012010 121219 05012010 121219 396 Mello Filho Burd e cols Boa parte das vezes na realidade na sua grande maioria a cirurgia é proposta como um ato singular e único Resolutivo Quando elas complicam a reserva emocional que o cliente havia feito para tal evento vai se esgotando Os riscos de crise de confiança vão naturalmente tomando assento Eles crescem com o surgimento de novas complicações necessidades de reintervenções e o passo seguinte é o estabelecimento de um quadro depressivo de uma crise de confiança mascarada em boa parte das vezes alimentada pelos comportamentos inadequados Diante de toda uma perspectiva de processos complexos e complicados a melhor imagem para a criação de um saldo emo cional é a de uma corrida de obstáculos e não uma corrida de fundo Que uma cirurgia para uma peri tonite pode necessitar reintervenções para drenagem de abcessos às vezes punções dirigidas por imagens para o desfazimento de aderências e quadros semio clusivos sepsis insuficiência renal por drogas ou as sociada a infecção etc e essas coisas têm que caber na emoção dele que se hospitalizou apenas para tirar uma vesícula e isso seria uma cirurgia simples em dois dias no máximo ele estaria em casa de volta A reconstrução da fé faz parte do atendimento às necessidades emocionais e espirituais do paciente sejam elas de qualquer ordem afetivas medo temor sofrimento abandono cognitivas compreensão dos programas terapêuticos ou espirituais fé esperan ça amparo desamparo desesperança Este tipo de apoio tanto ajuda a evitar a morte nestes doentes ci rúrgicos evitando o burnout psicológico deles bem como possibilita a eliminação do desespero a intro dução da paz nos pacientes verdadeiramente termi nais como nos casos ilustrativos abaixo Caso clínico FJ 57 anos sexo masculino casado úlcera perfurada gastroenteroanastomose sepsis fístula enterocutânea reoperação 15 dias de hospitalização e uma semana na UTI cirúrgica Eu acho que eu não escapo dessa não é doutor Foi a questão introdutória ao tema da perda da fé A fé discutida neste contexto não é simplesmente a dimensão religiosa do indivíduo mas as suas convicções tudo o que representa a verdade sem prova Mas eu respondi para a minha própria surpresa Eu também acho Ele surpreendeuse e comentou perguntando O senhor quer dizer que eu vou morrer ao que respondi também de imediato Não senhor O que eu quero lhe dizer é que nestas duas semanas em que estamos convivendo juntos eu nunca percebi no senhor o desejo de voltar ao palco a vontade de voltar a vida Sintome como se estivesse trabalhando sozi nho neste caminho contra a sua vontade e eu não acredito nisso se não é isto o que o senhor quer Esta era a mais legítima expressão da minha percepção dele Ele começou a chorar e a falar pausadamente da tris teza da vida naquele instante do sentimento de destruição do mundo dele A realidade dele em seus diferentes ângulos que definiam o contexto em que vivia e pudemos começar a conversar sobre a doença da sua alma Ele pode ter alta poucos dias depois desta conversa e com projetos de vida retraçados É importante salientar o que foi dito em outra parte deste texto que todo processo de cura implica uma mudança na história pessoal Caso clínico RM 26 anos masculino solteiro Químico industrial Tumor de parótida direita aparentemente secundário Pri mário desconhecido Bastante anaplásico com o qual já vi nha batalhando há uns quatro anos Dois anos antes tinha tido metástases cerebrais que foram bem resolvidas com radioterapia Há cerca de seis meses antes da data em que o vimos pela primeira vez ele vinha cuidando sem muito sucesso das novas metástases que vinham surgindo sobre tudo no mediastino e abdome Contemporaneamente como comorbidade apresenta va uma tuberculose que vinha sendo bem controlada Ele estabelecia parâmetros para mim clínico geral para o seu oncologista e para os seus familiares as suas preferências em relação aos tratamentos que poderíamos oferecer Não via sentido em se tratar se não pudéssemos mudar o esque ma corporal dele sua magreza seu definhamento Segun do não acreditava no atual esquema terapêutico que aos seus olhos não vinha surtindo efeito Conseguimos definir um plano de tratamento e estamos três meses adiante con frontando o nosso fracasso quando ele aborda a futilidade de continuar se tratando Doutor nós sabemos que isto não está levando a lugar nenhum Tudo fracassou Como eu posso viver sem esperança Ajudeme Este é um ponto crucial no cuidado dos pacientes terminais Momento em que os sentimentos de amparo e desamparo esperança e desesperança se se gregam por caminhos diferentes Habitualmente a segrega ção do sentimento de amparo e esperança quando o obje tivo é a sobrevivência é conjunta As duas coisas vêm juntas Neste ponto em que se definem os cuidados paliativos é a desesperança que se segrega sozinha e não conhecemos de ordinário qual o sentimento de amparo que a acompa nha Esperança é um sentimento que dá ponto futuro cria imagens A desesperança não Voltamos ao nosso diálogo onde eu me sentia extremamente pequeno mas igualmente empático e desejoso de ajudálo Não sabia como Feche os olhos Respire lentamente Tome consciên cia de sua respiração e deixe este sentimento de desespe rança tomar conta de você Deixeo entrar com o ar que você respira E ele vai ser distribuído pelo seu corpo Não tenha medo Nada vai lhe acontecer agora Deixeo chegar à sua cabeça Veja se ele lhe traz alguma imagem Meu Psicossomaticaindd 396 Psicossomaticaindd 396 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 397 pai Ele não consegue me ver Ele não vem ao meu quarto Nisto a sua mãe que também estava no quarto interrompe Meu filho seu pai é um homem doente Já enfartou Ele pode passar mal Não podemos perdêlo também Mãe estou apenas dizendo das minhas necessidades Eu não vou ter mais saúde ser um homem forte e sadio para poder desfrutálo E eu preciso dele agora Também temo por ele Mas é o que eu preciso O destaque deste diálogo é para a desesperança que de fato não cria imagens no futuro mas aponta as imagens do presente Não cria um ponto futuro mas dá a pontuação do tempo real Por este fato quando esta necessidade ocorre negar ao doente o conhecimento da sua realidade é abandonálo A outra escuridão que este diálogo ilumina é o atendi mento da família nas suas necessidades múltiplas emocio nais e espirituais Atender ao doente terminal é atender a família Todo o participante que emita algum juízo de valor tem um assento na mesa sob os riscos de pagarmos as pe nas por esta falta O passo seguinte na condição do caso foi a entrevista com o pai no qual ele argumentava da sua necessidade de não ver a miséria física e o sofrimento do fi lho o único dentro da numerosa família que tinha que havia escolhido a mesma profissão dele que era o naturalmente eleito para sucedêlo para dar continuidade aos seus passos nas empresas da família Refletimos juntos sobre o que ele dizia O amor ao filho lhe impossibilitava cuidar da dor e do sofrimento dele Quem poderia então fazer isto cuidar da dor do filho com amor Estas reflexões o levaram de volta ao lado do filho e eles puderam se desfrutar novamente conversar ficar calados juntos sorrirem trocarem o adeus Trocaram um adeus que acredito ainda que deva perdurar hoje porque naquela altura o tempo já havia parado para o filho Poucos dias depois ao visitálo pela manhã ele me questiona sobre as modificações do tempo O que estava se passando com o tempo O tempo parecia estar paran do Ele acordava sem pressa como as 06h30min da manhã fazia tudo bem devagar Tomava o seu banho matinal fazia a higiene oral e corporal que demorava uma eternidade olhava para o relógio e eram dez para sete Ouvia música tomava uma massagem demorava outra eternidade Olha va para o relógio eram sete e trinta Fazia o seu desjejum conversava com as pessoas olhava o relógio eram oito ho ras Lia o jornal voltava a ouvir música e o tempo parecia continuar parando Filosofamos sobre o tempo Como o experimentamos com o lado direito ou esquerdo do nos so cérebro Isto diz como viveremos os nossos momentos seja de uma forma mecânica racional e lógica segundo por segundo seja de uma forma vetorial atemporal conhecen do o eterno Ele morreu naquela mesma noite dormindo um sono tranquilo sereno e calmo Simplesmente não acordou Ele passou e todos nós nos sentimos confortados Uma certa consciência de que a ve lha senhora às vezes sabe a hora que não é só na vida que ninguém chega antes na morte também Uma das mudanças mais importantes do envelhecimen to que dizem da chegada da terminalidade é a mudança pro gressiva da experiência do tempo Temos com a chegada da maturidade a possibilidade de viver melhor os nossos momentos Degustálos Tomar intimidades Os momentos são mais apreciados A terminalidade é anunciada no indiví duo que envelhece pela sensação de que o tempo parou O sentimento de que o amanhã já não traz nenhuma novida de Isso esteve bem claro e presente na maioria dos meus pacientes que explicitaram uma solicitação de eutanásia ou que anteciparam suas preferências sobre a não utilização de certos tratamentos ou procedimentos ao fim da vida Incluídos nisso a ventilação mecânica a traqueotomia e a hemodiálise Um dos momentos mais cruciais dos cuidados são os pontos de mudança quando as intenções e os objetivos dos tratamentos mudam O momento em que a recuperação não é mais possível e um novo plano deve ser criado um novo objetivo do tratamento deve ser elaborado O trata mento será paliativo os tratamentos de manutenção da vida deverão ser suspensos ou retirados Aparelhos desligados Nenhum procedimento para manter ou prolongar a vida O desgaste da doença e a morte caminham juntas de bra ços dados Discutese o fim da vida e se implementam as diretivas avançadas definidas previamente ou atualmente acordadas Desde o ano de 1990 a decisão da Surprema Corte dos Estados Unidos que atendia a atenção para os tratamentos de manutenção de vida aos que estão incapa zes de tomar as suas decisões afirma o direito do estado de ter uma evidência clara e convincente dos desejos relacio nados aos cuidados médicos dirigidos à sustentação de vida Foi criado o PSDA Patient self determination act O PSDA requer que os hospitais nursing hormes hospícios progra mas de saúde perguntem aos doentes sobre as diretivas avançadas advanced directives e incorporem estes dados nos prontuários médicos Neste tipo de documento Ame rican Family Physician 2005 uma diretiva antecipada por uma pessoa competente indica as preferências de cuidados enquanto cognitiva e fisicamente intacta Uma vontade de viver especifica as instruções relacionadas aos cuidados ali mentação por sonda ventilação mecânica cirurgias e situ ações de prolongamento da vida Ordens e circunstâncias como DNR do not ressuscitate não ressucitar CMO apenas medidas de conforto confort measures only Caso clínico FB 36 anos masculino casado sem filhos engenheiro de pesca Linfoma não Hodgkin desde os 16 anos Linfoma agressivo novamente muito agressivo nos últimos dois anos Terminal sem resposta a qualquer forma de tratamento Falência medular Duas entradas na UTI no mesmo internamento A primeira em choque séptico secundário à aplasia medular Severa mente plaquetopênico com menos de 5000 plaquetas A segunda decorrente de uma grande hemorragia cerebral intraparenquimatosa hemisférica Prefiro sair carregado do hospital no paletó de madei ra do que andando nos meus pés se perder a consciência foi a forma como ele introduziu o tema das suas preferên cias em relação aos cuidados do fim da vida entre uma ad missão na UTI e a outra A tomada de consciência quando Psicossomaticaindd 397 Psicossomaticaindd 397 05012010 121219 05012010 121219 398 Mello Filho Burd e cols da entrada no hospital o esforço para a manutenção da vigí lia e a impossibilidade de qualquer controle cognitivo sob o que estava se passando consigo quando estava entrando em estado de choque O dirigir a vida e o se perder no vazio Difícil imaginar se poderia chamar de vida a este tipo de condição Havia coisas piores que a morte e este tipo de sobrevivência era uma delas Quando do AVC hemorrágico ele estava em um quarto do hospital rapidamente entrou em coma em parada respiratória e em ventilação mecânica e foi rapidamente removido à UTI Após vêlo na UTI em morte cerebral conversamos com a família de um modo aberto sobre a condição e os cuidados a suspensão da ven tilação mecânica a não ressuscitação medidas apenas de conforto solicitando deles ao mesmo tempo um feedback sobre como tocava a cada um cada medida que poderia ser ou não tomada Conversa que não foi nem muito longa nem muito tensa apesar do grande sofrimento Naquela altura da vida dele disse a mãe quem melhor conhecia a alma dele e melhor poderia decidir por ele naquele momen to de incapacidade era eu seu médico de quase 20 anos de acompanhamento clínico Nenhum deles que o amavam tanto e o queriam tanto não o conheciam tanto para uma decisão tão isenta Que eu o fizesse e eles respeitariam To dos concordaram e concordaram novamente com a decisão de tirálo da UTI trazêlo de volta ao quarto sem nenhuma intenção de prolongar a vida Se eles suportassem Assim foi implementado Todas estas mudanças dos últimos anos amplia ram o repertório das tensões e conflitos nos cuidado res dos doentes graves sobretudo os de trauma ou cirurgia levando a um desgaste emocional e afetivo Listamos abaixo algumas Áreas motivos gerado res de tensões sobre as quais há necessidade de me lhor educar os cuidadores e a equipe de saúde numa tentativa de evitar um desgaste emocional e afetivo 1 Quando não iniciar tratamento 2 Quando suspender tratamentos iniciados 3 Reconhecimento da futilidade médica Limites da tecnologia Quando parar e como fazêlo 4 Integração do tratamento do trauma e do trata mento paliativo Mudança de um para o outro Protocolos Treinamento 5 Envolvimento da equipe e da família 6 Assegurar conforto e o não abandono Algumas dificuldades adicionais 1 Vem da inconsistência sobre como funciona esta prática idealizada e os sistemas de suporte SUS seguros de saúde Hospital Residência Eviden temente de tudo que falamos acima estamos as sumindo opções de tratamento e quem detém os direitos de escolhas E ainda que o nosso sistema de saúde ofereça excelentes opções de cuidados essas opções são viabilizadas apenas para aqueles que têm dinheiro ou são assegurados de algum seguro de saúde Os indivíduos sem dinheiro ou não assegurados têm uma assistência pobre insu ficiente ou inadequada 2 Manter um balanço entre a empatia com que en focamos o nosso paciente e o compromisso com a ética 3 O respeito e a compaixão para a diversidade cul tural do gênero e da incapacidade 4 Manter os padrões clínicos da não introdução ou da retirada das medidas de suporte 5 Os familiares ouvem diferentes pontos de vista dos cuidadores e isto leva à confusão à hostilida de à raiva e à frustração A BOA MORTE O conceito da boa morte sofreu uma profunda evolução da época de 1990 e continua apresentando modificações É interessante a edificação do que seria uma boa morte quando trabalhamos nos grupos de sensibilização A morte ideal de cada um dos partici pantes Os antagonismos surgem espontaneamente e eles se confrontam As unanimidades também O não sofrimento o controle da dor o recolhimento e o iso lamento para alguns por proteção do desfiguramen to a festa para outros uma despedida de arromba com os amigos A viagem como uma realização de algum desejo de satisfação guardado antes de sentir se invalidado e se entregar vencido à falta de ener gia dos momentos finais O lado psicopático Burlar um seguro de saúde para proteger quem fica Transar com todo mundo por vingança por ter pego AIDS Discutemse os fatores impeditivos de se tomar decisões claras as verdades as incertezas os sen timentos e as emoções a esperança a relação com a equipe de saúde os provedores os múltiplos pro vedores o respeito às diretivas dadas antecipada mente sobre os gostos e as preferências em relação ao uso de máquinas a sedação terminal as sondas para nutrição enteral os tubos de gastrostomia etc Na hora H por maior que seja a possibilidade de controle que se quer ter sobre a hora final é a res posta às nossas emoções e às da família que se cui da que são mais importantes quando se define bem os objetivos do tratamento Estes são mais impor tantes que os tratamentos específicos E que nos diz a literatura Até o início da década de 1990 a boa morte confundiase com a evitação do morrer liga da às máquinas o tinha uma conotação eutanásica Na publicação End of life care do IOM Institute of Medicine 1997 uma morte decente é livre de desconforto e sofrimento evitáveis para o paciente os familiares e os cuidadores Morte decente ou boa morte são termos semelhantes Durante a década de Psicossomaticaindd 398 Psicossomaticaindd 398 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 399 1990 o termo boa morte foi se ampliando mas já na época de 1980 ela tinha adquirido uma conota ção importante feita por O Neil quando observa o tempo de morrer A morte é boa quando ocorre num tempo apropriado o processo permite controlabili dade por quem morre os que participam da situa ção observam princípios morais básicos e o estilo da pessoa é lógico Ele vem tomando forma como um conceito separado embora relacionado à eutanásia e hoje toma abrigo no campo dos cuidados paliati vos e no domínio dos modernos hospices OS CUIDADOS PALIATIVOS Karen Kehl 2005 destaca em um excelente arti go a evolução do conceito pela revisão da literatura O conceito de boa morte é altamente individual e dinâmico da mesma forma que a morte em si não é a mesma em todas as pessoas É tão diferente como diferentes são as formas de pensála O que seja uma boa morte para um não é a mesma coisa para outra pessoa É importante contudo que o nosso cliente saiba que a forma como nós cuidadores percebemos a morte não nos fará tendenciosos de modificar os de sejos dele não nos impedirá de atender os seus últi mos desejos e as suas preferências serão perseguidas morrer dormindo ou alerta em casa no hospital no hospice não importa se a consideremos um processo ou um evento É possível contudo reconhecer ape sar desta grande variabilidade do que sejam a morte e o repertório do morrer os atributos pertinentes a uma boa morte 1 Controle Sentir que estão honrados os desejos e as escolhas que as decisões são claras com o lo cal o tempo a presença ou a ausência dos outros Aquele que faltava para que eu pudesse morrer A presença dele A espera por um evento que dirá o tempo da minha morte seja o casamento a for matura da neta algo que em minha vida e a do outro se ungissem de um significado e uma ben ção firmadas e afirmadas no ato de morrer 2 Conforto Estar confortável É também multidi mensional e inclui 1 a falta de dor ou sofrimen to 2 o tratamento dos sintomas físicos como dor falta de ar tratamento dos sintomas emocio nais e psicossociais medo ou ansiedade sintomas cognitivos como permanecer alerta O abraço o carinho o alisado o buscar uma posição e senti mentos como os de amparo ou esperança Reco nhecer que até o minuto final em que estivermos juntos podemos também sorrir confraternizar achar graça viver o que a vida permitir viver e não excluir as outras dimensões do que somos por sermos terminais podemos também falar da nossa terminalidade 3 Senso de fechamento de acabamento conclusão das coisas não findas dizer adeus O adeus é ex tremamente pertinente As pessoas ficam quites nas suas relações ajustam as contas saldam os débitos porque o débito com o morto nos acom panhará até a nossa morte É nossa tarefa identi ficar cada uma destas pessoas na intervenção que cada um deles faz Familiares os que estão em débitos que não são capazes de chegar tocar ali sar compartir às vezes com medo de desregular uma máquina um daqueles aparelhos mudar o som tecnológico e reclamam de tudo o que acon tece o que é feito ou deixado de fazer com o seu ente querido O travesseiro que faltou a hora de trocar a fralda o riso que pareceu desrespeitoso e vai por aí 4 Afirmaçãovalor da pessoa reconhecido Também multifacetada inclui dignidade a totalidade de ser uma pessoa inteira em seus aspectos físicos emocionais sociais e espirituais qualidade de vida que inclui uma vida plena Individualidade Como se morre por covardia para se manter uma imagem uma representação 5 Confiança nos provedores Isso implica em um atributo importante da boa morte Inclui boa co municação entre os provedores de cuidados com a família 6 Reconhecimento da eminência da morte Isto inclui tanto o reconhecimento da sua chegada como a sua aceitação Evidente que este atributo somente pode ser nas mortes que podem ser ante cipadas aquelas decorrentes de doenças crônicas terminais Não nas mortes súbitas Questionase se os demenciados os pacientes com Alzheimer que não podem ter consciência ipso fato não po dem aceitar se poderiam ter uma boa morte 7 Crenças e valores são honrados sobretudo impor tantes nas pessoas que podem ter desejos dife rentes da cultura dominante 8 Minimizar os desgastes O custo do morrer Ser fi nanceiramente e fisicamente independente é im portante para uma boa morte Uma das cenas mais chocantes que assisti foi a intervenção da esposa de um doente recém admitido no hospital que tentou impedir o processo de tratamento de uma parada cardíaca na enfermaria O paciente era um adulto relativamente jovem de 44 anos que havia sido admitido no hospital cerca de dois dias antes por uma dor de coluna uma fratura osteoporóti ca por afundamento de vértebra O diagnóstico havia sido feito naquele momento Ele tinha um mieloma múltiplo e a parada era por conta de uma hipercalcemia Ela levou de volta um safanão da Psicossomaticaindd 399 Psicossomaticaindd 399 05012010 121219 05012010 121219 400 Mello Filho Burd e cols residente e foi contida o marido foi ressuscitado com sucesso Difícil entender o que o gesto daque la mulher significava era um gesto de amor Ele e a mulher eram a única força de trabalho na famí lia com mais seis pessoas Sobreviviam no limite da miséria Com a doença dele não simplesmente se reduzia a força produtiva da família mas ele passava a ser um peso e a queda da sua qualidade de vida sua condição física passava a exigir mais cuidados que ele não poderia ter e iria viver uma forma de abandono involuntária que não merecia Esta era uma decisão dos dois Algo que eles já vi nham conversando mesmo sem ter um diagnósti co firmado A minha residente uma das maiores promessas que tinha passado na minha condição de educador um talento clínico a partir deste vento desistiu de fazer medicina interna e derivou para uma outra especialização fez nova residên cia em imagens fora do país e hoje é uma grande radiologista no campo da ressonância magnética e tomografia computadorizada O estudo Support mencionado em várias partes deste texto trouxe luz a esta dimensão O lado econômico como dado isolado era tão importante como a dor no grupo de doentes que solicitavam eutanásia Mesmo nos Estados Unidos 13 dos que morrem gastam o que levaram a vida para acumular em bens Isto apon ta um grande buraco no nosso sistema de saúde e ao mesmo tempo o grande espaço de crescimento que teve não apenas no surgimento dos hospices mas no seu crescimento nos últimos 15 anos no mundo todo 9 Otimização das relações O crivo da morte repas sa a vida o significante e o não significante o tempo de convivência com as pessoas significa tivas aumenta de um modo geral as comunica ções são melhoradas as ideias de reconciliação e perdão são florescentes Aprendese que o perdão é também uma moeda de duas faces e beneficia tanto ou mais a quem dá como a quem recebe 10 Apropriabilidade da morte A conveniência dela A idade e o sofrimento das pessoas que morrem o uso adequado ou inadequado da tecnologia como ventiladores mecânicos diálise os aspec tos da doença com sua natureza terminal tudo isto implica na apropriabilidade da morte Não é incomum verificar a impaciência do que está sobrevivendo com uma doença terminal após ter se dado conta disso Suas preces a Deus para que não se esqueça dele ou os reclamos que está sendo esquecido Os comentários de familiares come ele é resistente doutor não podia fazer alguma coisa para abreviar este sofrimento As solicitações de eutanásia dos pacientes com escle rose lateral amiotrófica AIDS câncer etc Publicações mais recentes sumarizam em seis os temas que constituem uma boa morte 1 Tratamento da dor e dos sintomas Os cuidados pa liativos refletem uma ampliada atualizada e mo dificada versão do CMO Comfort Measures Only Somente Medidas de Conforto Tirouse o ape nas As medidas de conforto abrangem cuidados físicos psicológicos sociais e espirituais Envolve um time multidisciplinar Os cuidados físicos que em seu início dirigiamse ao tratamento da dor tomaram corpo no tratamento dos sintomas que podem ser os mais variados A dispneia a incon tinência a constipação etc A fadiga o cansaço do doente terminal que deixa um sentimento de que a alma está saindo do corpo passaram a ter um reconhecimento e um destaque de peso vis to ser um dos sintomas que mais frequentemente estão associados às solicitações de eutanásia ou suicídio assistido à manutenção do nível de cons ciência ou à sedação terminal à confusão mental aos estados alterados de consciência a insuficiên cia cardíaca enfim tudo o que possa representar desconforto e que possa ser medicalizado Em um extremo interpretativo nossa rejeição ao morrer é trocada pelo controle do processo 2 Processo decisório claro Os pacientes e familiares desejam uma boa comunicação com os seus clíni cos e existem clínicos que são temerosos de falar sobre a morte implícita A grande maioria deseja também deixar sua marca no processo decisório e saber que a sua participação é importante e va lorizada Raros preferem o oposto e se colocam como recipientes passivos das nossas decisões confiantes de que fazemos a melhor escolha para eles sem ter que passar por este lado ingrato e até mórbido de discutir as suas preferências sobre o morrer A boa maioria dos médicos gostaria de que os pacientes tivessem preferências de trata mento claras e que estas decisões fossem tomadas antecipadamente antes da ocorrência das crises Por outro lado desafortunadamente usualmente não facilitamos esse tipo de conversa Conside rando uma cultura que denega a morte isso nos traz a ideia de que a morte é algo sobre o qual nós podemos ter algum controle e que a fantasia úl tima que este sistema de cuidados paliativos nos indulge a pensar de um modo cínico é que morrer seria algo opcional A denegação da morte tem um custo os conflitos entre os living will dos pa cientes e o dos doutores sobre os prognósticos e qualidade de vida esperada para os seus doentes Os cuidados paliativos que compõem a boa morte dizem respeito aos quantos tipos de intervenções que podemos receber Algo como um até quando Psicossomaticaindd 400 Psicossomaticaindd 400 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 401 Quanto alívio de dor nós desejamos Qual o ce nário Em casa ou no hospital Quem desejamos que esteja ao nosso lado 3 Preparação para a morte Será possível Os pa ciente e os membros da família desejam conhecer o que eles esperam e o que se espera deles Quais seriam suas reações emocionais Eles também de sejam ajuda para um planejamento prévio Como seria o morrer com insuficiência cardíaca com doença pulmonar crônica com insuficiência re nal Qual o melhor local para viver isso Alguns pensam e de fato deixam pronto até o funeral em todos os seus detalhes Os aspectos legais após a sua morte como o testamento Muitas vezes es tes pensares estão na barganha do tempo em re lação à cirurgia perigosa o temor do diagnóstico que virá já discutido em outra parte deste texto nos doentes mentalmente ou pseudoterminais etc Existe uma necessidade de maior treinamen to dos médicos para discussão desses aspectos e na verdade eles não podem ajudar seus pacien tes a menos que tenham explorado seus próprios sentimentos sobre a morte e o morrer Uma difi culdade grande e necessária de se aprender é o temor da destruição do sentimento de esperan ça Um dos grandes paradigmas a ser mantido e que dificulta o timing da discussão O delicado balanço de ter esperanças pelo melhor cura e recuperação algumas pessoas morrem em cam po de batalha lutando pelo melhor e preparar o paciente e os familiares para o que eles pensam ser o pior a morte Essa mudança também está dentro de nós e no doente como um trauma no pósoperatório complicado quando a intenção do tratamento já não vai mais ser de cura mas de medidas de conforto Como passar isso neste tipo de doente sem passar também um sentimento de abandono 4 Finitude Morreu em paz É como gostaríamos de sentir e podese dizer aos ossos entes queridos De ver em nossos pacientes por maior que tenha sido a nossa luta e por maior que tenha sido o nosso investimento na sua recuperação e na sua cura A consciência tranquila o dever cumprido O exem plo dado O último E que já tece as amarras ao nos so modo de lembrálo de cuidar da sua memória Cumprir os ritos atender as crenças religiosas 5 Contribuição para os outros Difícil enxergar por que não fica na vitrine do doente terminal Tudo passa com certa discrição com simplicidade e de uma forma espontânea O repassar da vida com os olhos da terminalidade o prisma da finitude permite uma reordenação dos valores da vida e não é mais o sucesso profissional tão pouco os ganhos monetários que se destacam na nova or dem Os erros e os acertos da vida repassam o balanço feito permite saber o que valeu a pena e o resultado disto foi a vida que ainda se tem saldo positivo É portanto muito além natural que uma via de expressão um encantado canal de comunicação se estabeleça com os que estão por perto Alguns pacientes tornamse luminosos sobre determinados temas de suas vidas as ver dades legítimas e são os que melhor podem con fortar aos que ficam As despedidas são memorá veis e simplesmente inesquecíveis Muitas vezes dirigidas a nós médicos que aprendemos a vida pelo seu avesso pelo sofrimento pelo sacrifício do tempo pessoal da nossa vida íntima Alguns conselhos opiniões não solicitadas são extrema mente oportunas num timing único em nossas vi das Tudo isso torna bastante rico este aspecto da boa morte Lições que só aprendemos diante dela É interessante lembrar que um dos significados de curar é de salvar e eventualmente reencon trarmos este script em que a morte vem como sal vação do pesadelo do que foi a vida 6 A afirmação da totalidade da pessoa O senti mento que fica cai por gravidade O de que todos nós paciente médico enfermeira assistente social fomos não unicamente o papel que de sempenhamos pelo que representamos profis sionalmente mas que representamos o que so mos como pessoa e que assim fomos todos nós quando vivemos e compartilhamos da morte do nosso outro REFERÊNCIAS End of Life care do IOM Institute of Medicine 1997 Erickson E Identidade Juventude e Crise RJ Zahar Editores 2ª ed 1976 Euthanasia in Netherlands good and bad news Euthanasia Physician Assisted Suicide and Other Medical Practices Invol ving the End of Life in the Netherlands 19901995 Vol 335 16991705 Fraser B Conversas com Joseph Campbell São Paulo Editora Ve rus 2004 JAMA 1955 SUPPORT Study to Understand Prognoses and Preferences for Outcomes and Risk of Treatments controlled trial to improve care for seriously ill hospitalized patients The study to understand prognoses and preferences for outcome and risks of treatment 274 15918 Kastenbaun RJ Death society and human experience 2 ed St Louis Mosby 1981 Kehl KA Moving towards peace An analysis of the concept of a good death American Journal of Hospice Palliative Medicine In review submitted June 2005 Marsh MC Respecting end of life treatment preferences Ameri can Family Physician vol 73 nº 7 2005 Monica Crane Marsh with within American Family Physician vol 72 nº 7 2005 respecting end of life treatment preferences Psicossomaticaindd 401 Psicossomaticaindd 401 05012010 121219 05012010 121219 PARTE 5 AIDS Psicossomaticaindd 403 Psicossomaticaindd 403 05012010 121219 05012010 121219 Como integrante de uma equipe estamos tra balhando com pacientes de AIDS desde inícios de 1985 É um trabalho feito pelo Setor de Psicologia Médica do Serviço de Psicologia Médica e Psiquiatria do Hospital Universitãrio Pedro Ernesto HUPE da UERJ Temos uma equipe que atende especificamente pacientes de AIDS chefiada por Lizete Macario Cos ta e composta por mais quatro pessoas psicólogos e psiquiatras Lizete foi a pessoa que enfrentou ini cialmente este enorme desafio que é fazer psicotera pia com esse tipo de pacientes ajudálos nesta difícil caminhada até a morte acompanhálos se eles as sim necessitarem no ambulatório na enfermaria ou mesmo eventualmente em suas casas É um trabalho conjunto com o Serviço de Doenças Infecciosas e Pa rasitarias do hospital que já atendeu até o momen to 160 pacientes com 53 óbitos Deste total nosso Setor acompanhou 48 pacientes e tivemos 15 óbitos dentro desse grupo Não atendemos diretamente es ses pacientes fazemos a supervisão e participamos da coordenação do trabalho OS ATENDIMENTOS AOS PACIENTES E À EQUIPE Lidar com pacientes de AIDS é uma tarefa que exige um grande desprendimento capaz de suportar frustrações e dor a dor no entrechoque constante en tre a vida e morte que se passa no corpo e na mente desses pacientes Esse e um dos trabalhos mais di fíceis que já acompanhamos pois nunca nos depa ramos antes com tal conjunto de situações dramáti cas do ponto de vista médico psicológico familiar e social Qualquer médico com alguma experiência em acompanhar o resultado de autópsias fica perplexo diante dos pacientes frente ao número extensão e fórmulas anômalas de infecções intercorrentes que costumam apresentar Nosso trabalho tomouse possível graças ao interesse demonstrado por Dyrce Bonfim que é o membro do staff do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitárias DIP do hospital que enfrentou mais di retamente o problema da AIDS Inclusive numa fase em que o temor ao contágio e os preconceitos em re lação à enfermidade entre a equipe médicoauxiliar eram tantos que praticamente não se contava com recursos laboratoriais mais sofisticados e os médicos se negavam a fazer biópsias autópsias e todo tipo de exames em pacientes suspeitos de AIDS Além disso os doentes eram por vezes francamente hostilizados por membros da equipe médicohospitalar ou ainda rejeitados por serem homossexuais pois este é ainda um problema presente em nosso meio a estigmati zação e o preconceito em relação ao homossexual Um exemplo disso tivemos recentemente quando um enfermeiro homossexual do staff do próprio hospital foi internado e numa manifestação de curiosidade mórbida houve uma verdadeira romaria de visitas de outros enfermeiros e funcionários em geral ocasio nando um tipo de iatropatogenia que acredito tenha contribuído para antecipar a morte do paciente Esse fato exemplifica o tipo de situações mór bidas várias que costumam ocorrer na evolução de um caso de AIDS e ao mesmo tempo nos reporta ao problema dos temores hipocondríacos que assolam os médicos e os paramédicos em relação à AIDS nes te momento A hipocondria em nossa experiência é um elemento presente em todo aquele que trabalha com a saúde de um modo geral e particularmente importante na pessoa do médico por vezes mes mo como um dos elementos básicos estruturantes de sua vida mental Assim sendo os profissionais de saúde que lidam com pacientes de AIDS podem passar por uma fase em que temem ser contagiados já que estão dominados por poderosas fantasias in conscientes decorrentes das condições particulares dessa enfermidade Esse temor era agravado pelas inúmeras dúvidas sobre as formas de contágio que acometeram a comunidade científica até recente mente quando veio a se saber mais sobre a doença Por outro lado antigas fantasias de nosso incons ciente arcaico sofreram um reforço com o advento da AIDS a intimidade entre as pessoas a sexua 31 AIDS O DOENTE O MÉDICO E O PSICOTERAPEUTA Julio de Mello Filho Psicossomaticaindd 405 Psicossomaticaindd 405 05012010 121219 05012010 121219 406 Mello Filho Burd e cols lidade sobretudo é muito perigosa e pode mesmo ser fonte de um mal que mata Em nossa rotina o paciente é inicialmente aten dido pela DIP em ambulatório ou enfermaria Feito o diagnóstico élhe sempre oferecida a possibilida de de ter um tipo especial de assistência psicológica Especial porque de um modo ou de outro ele re ceberá alguma forma de assistência psicológica pelo modo com que a equipe da DIP o atende através da orientação prestada pela Psicologia Médica Esse tipo de atenção explica porque parte dos pacientes com AIDS atendidos pela DIP permanecem vinculados ao hospital até seu desenlace E também porque cerca de 30 deles aceitam a ajuda psicoterápica ofereci da pela equipe médica no início de seus tratamentos Na literatura mundial há registro de que apenas 6 dos pacientes por ocasião do diagnóstico aceitam tal tipo de auxílio Tal é o desespero que um diagnóstico de AIDS costuma trazer que é necessário oferecer um vínculo muito especial a esses pacientes Isso inclui a possi bilidade de telefonar para o clínico ou o psiquiatra que os atenda a qualquer hora em que sentirem ne cessidade É preciso portanto que o psicoterapeuta que se propõe a ajudar tais pacientes se disponha a acompanhálos em qualquer situação clínica que se apresenta como é o caso das frequentes internações hospitalares É necessária assim muita flexibilidade de setting e de adaptação às demandas do self do pa ciente como de resto é o caso no que costumamos chamar de psicoterapia do paciente somático A grande maioria dos pacientes atendidos por nossa equipe é de homossexuais Via de regra esse tipo de pacientes por toda sua condição especial que será discutida a seguir e o que apresenta as situações psicológicas e familiares mais dramáticas o que faz com que nos sejam encaminhados em maior número que os demais pacientes Particularmente quadros histéricos ou reações depressivas desnorteiam ou irri tam os médicos levandoos ao encaminhamento Os hemofílicos são atendidos num serviço especializado que cobre toda a cidade enquanto os toxicômanos são assistidos pelo NEPAD Núcleo para o Ensino Pre venção e Assistência a Drogas vinculado à UERJ Há alguns anos um colega de nossa equipe Kenneth Camargo Júnior trabalhou diretamente com hemofílicos no Hospital Santa Catarina Naquela épo ca o grande problema psicológico desses pacientes era o estigma de uma doença hereditária que atingia apenas homens fragilizandoos na época da adoles cência através de uma artropatia condicionada por frequentes hemorragias traumáticas intraarticulares Na fase inicial deste trabalho vimos surgir os primei ros casos de AIDS naquela população passando a ser o grande fantasma desses pacientes Como a doença só ocorre em homens as mu lheres são apenas transmissoras do traço genético e vem acompanhada do estigma do receio de hemor ragias que podem ser até mesmo fatais a imagem do homem é habitualmente sentida como fraca en quanto as mulheres são vividas como fortes quase imortais Por esse motivo situações de homossexua lidade latente são comuns nestes pacientes No fun do porém as mulheres são geralmente odiadas por transmitirem um mal que nunca as atinge Por solicitação do Centro Hematológico Santa Catarina atendemos alguns hemofilicos contamina dos por AIDS Para ilustrar o drama desses pacientes e da comunidade de hemofílicos diante dessa doença relataremos um destes casos Tratase de Pedro com 9 anos que já tinha perdido dois tios maternos re centemente por AIDS Sua mãe tinha uma posição de liderança no seio de sua família e havia se empenha do muito na luta pela preservação dos irmãos Além da perda deles estava vivendo uma difícil situação conjugal pois soubera recentemente que o marido tinha uma amante Durante uma violenta discussão com o esposo apanhou seu revólver e diante dele se matou com um tiro na cabeça O sogro vizinho veio e levou Pedro e a irmã de 7 anos que estavam dor mindo para sua casa Ele contou ao neto durante o funeral que Papai do céu veio buscar sua mãe As crianças ficaram na casa deste avô pois o pai de Pedro a partir daí praticamente desapareceu de casa quase abandonando de todo os filhos Durante uma fase em que as duas famílias dis putavam a posse das crianças a família da mãe dizia que o pai a tinha matado Pedro começou a apre sentar enterorragias na decorrência de um quadro de colite ulcerativa por citomegalovírus como primeira manifestação da AIDS O agravamento das hemorra gias e a persistência deste conflito familiar levaram a equipe a internálo e a solicitar ajuda do nosso Serviço Quando Lizete foi vêlo pela primeira vez encontrouo internado junto a um primo da mesma idade também acometido por AIDS com um quadro mais clássico de pneumonia e grande acometimento do estado geral Pedro estava deprimido e mostrou de início pouco interesse no contato com ela Só falava de coisas gerais demonstrando muito receio de que viessem à baila os intensos traumas que tinha vivi do A expectativa da equipe hematológica era muito grande e o caso foi levado à reunião geral da Psico logia Médica como de resto foi feito nos primeiros pacientes de AIDS que atendemos numa necessidade de dividir nossas dúvidas e ansiedades com todo o grupo Através de jogos e desenhos estabeleceuse uma maior comunicação entre a dupla Numa sessão Pedro montou um poste de luz e depois um pequeno Psicossomaticaindd 406 Psicossomaticaindd 406 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 407 revólver e o apontou para a cabeça de Lizete Ficou a seguir muito emocionado e ela lhe disse que en tendia que ele estava revivendo o que havia aconte cido com a mãe Nesse momento Pedro começou a se queixar de fortes cólicas e precisou ser medicado Lizete permaneceu com ele porém o tema não foi re tomado As hemorragias entrementes continuavam e Pedro era mantido vivo por sucessivas transfusões de sangue A equipe permanecia intensamente mobi lizada principalmente um médico também portador de hemofilia Optouse por uma cirurgia em que foi retirada parte do intestino grosso Nessa fase foi mui to difícil fazer o acompanhamento pois os cirurgiões interrompiam as sessões a qualquer momento fazen do Lizete se sentir desanimada e posta de lado Um cirurgião disse a Pedro que ele ficaria inteiramente bom com a operação e que no dia seguinte já estaria comendo hamburger Pedro mostrava interesse em estar com Lizete porém se mantinha silencioso e retraído durante as entrevistas Numa oportunidade desenhou uma casa com cores pretas e amarelas de aparência lúgubre e com uma criança dentro Lizete lhe disse que ele estava se sentindo assim sozinho no hospital De fato apenas o avô vinha visitálo o pai prometia por telefone porém nunca apareceu Nas sessões em que se conseguia algum tipo de elaboração Pedro come çava a se queixar de cólicas e o contato era interrom pido O seu estado nitidamente se agravou quando ele tomou conhecimento da morte do primo Neste período teve um sonho em que dizia eu não quero ficar no lugar dele Depois contou a uma enfermeira que tinha sonhado com um trem que vinha buscálo Lizete permaneceu junto a ele em silêncio todos os dias enquanto seu estado geral se deteriorava en trando em coma e vindo a falecer Num dos últimos jogos que fez com Lizete ele descobriu que ela iria casar ter três filhos que moraria em Curitiba e que seria feliz porém não muito rica Este foi o presen te que Pedro deixou para Lizete Aliás os pacientes terminais costumam dar significativos presentes para esse tipo de terapeutas O mais comum preserválos de assistirem a hora de sua morte Voltaremos a este ponto adiante Atualmente estamos começando a atender ca sos de pacientes politransfundidos outros que não hemofílicos São doentes que fizeram transfusões por motivos vários e que não apresentam nenhum tipo de psicopatologia em especial sendo portanto bem diferentes do grupo dos homossexuais Também es tamos começando a atender mulheres que tiveram relações com bissexuais São mulheres que em virtu de de suas dificuldades sexuais procuram de forma inconsciente um vínculo com bissexuais geralmente sem perceber sequer que têm tal tipo de parceiro OS PACIENTES HOMOSSEXUAIS A casuística que temos estudado é portanto ba sicamente de homossexuais incluímos aqui os bisse xuais que a nosso ver constituem um tipo particular de homossexuais Como já temos quase 40 pacien tes acompanhados pretendemos fazer um trabalho sobre a questão da homossexualidade do ponto de vista psicanalítico e como um problema mais am plo psicossocial e médico É importante comentar que a questão da constituição na homossexualidade continua sendo estudada Trabalhos muito recentes de Ellis e Ames têm demonstrado várias anomalias imunológicas em homossexuais representados por fenômenos de histoincompatibilidade Essas anoma lias poderiam tornar certas partes sexuais do corpo e o cérebro insensíveis à ação de hormônios masculi nizantes durante fases do desenvolvimento Outros autores têm descrito alterações do perfil imunoló gico no homossexual predispondoos a fenômenos de imunodefi ciência antes da instalação da AIDS O próprio Roberto Gallo com toda sua autoridade mundial em relação à AIDS cita a relativamente alta incidência de sarcoma de Kaposi em homossexuais independentemente de contraírem AIDS Um primeiro aspecto que nos chama a atenção diz respeito à gravidade da estrutura psicológica des ses pacientes São pessoas quase sem exceção pro fundamente enfermas e oriundas de famílias com uma estruturação francamente patológica é impor tante frizar estes dados pois vivemos numa época em que principalmente depois que a homossexualidade foi excluída da DSMIV é quase um pecado e uma blasfêmia ousar dizer numa comunidade psiquiátrica que a homossexualidade é via de regra uma condi ção patológica Obviamente sabemos de todo o mal que o rótulo de patologia causou à psiquiatria To davia parece que necessitamos continuar a utilizálo como um conceito de utilidade abrangente pluridi mensional e nunca reducionista A dificuldade prin cipalmente para pessoas de nossa geração é conviver com a condição do homossexual sem preconceitos ou apriorismos Sabemos que como analistas temos essa possibilidade porém é sempre difícil uma equidistân cia entre a condenação inconsciente e a tolerância ex cessiva que no fundo é uma formação reativa con tra tal repúdio Em resumo é fundamental podermos nos identificar com as angústias e vissicitudes de um homossexual diante da realidade da AIDS Todavia a habitual negação do paciente deste diagnóstico pode perturbar nossa contratransferência assim como as habituais reações de associações de gay que fazem uma negação quase frontal dessa realidade e desse risco Bem recentemente a comunidade homossexual como um todo vem tentando abordar de forma realis Psicossomaticaindd 407 Psicossomaticaindd 407 05012010 121219 05012010 121219 408 Mello Filho Burd e cols ta este problema A constituição de grupos de reflexão entre homossexuais buscando pensar os múltiplos problemas vinculados à vida do homossexual parece ser um passo importante de algumas associações de homossexuais nesse sentido Quase como rotina as mães desses pacientes são simbióticas invasivas e superprotetoras São geralmente narcísicas e amam os filhos como pro longamentos assexuados de si mesmas Essas mães costumam ter uma relação francamente hostil com os pais dos pacientes e inconscientemente sempre repudiam a masculinidade o falo e seu próprio casa mento Os pais costumam ser distantes ausentes ou temidos por serem autoritários Há geralmente uma ligação incestuosa franca com as mães que faz com que os filhos passem a temer enormemente a possibi lidade de serem viris Os homossexuais que inicialmente apresenta ram AIDS em nosso meio eram de vida sexual mais promíscua frequentadores de saunas e outros redu tos gays onde mantinham relações do tipo parcial e indiferenciado Podemos compreender tal conduta como uma forma de tentar uma experiência de exci tação que alivie o tédio e a apatia que habita o cerne de um self de alguém tentar compensar deste modo através da sensação da conquista e da multiplicidade de práticas as feridas fundas que habitam sua autoes tima Vemos assim o narcisismo do homossexual que o impele na busca do igual como uma consequên cia de lesões básicas em sua autoestima na busca de uma nova identidade que nunca resolve de todo a questão das faltas básicas e os conflitos sobre os quais se estruturam suas personalidades Da mesma forma podemos entender o modo maníaco de viver e a su posta felicidade implícita na busca de uma forma gay de enfrentar a vida Assim em relação à homossexualidade pode mos dizer que a AIDS irrompeu em personalidades frágeis com traços masoquistas e tendências depres sivas Geralmente há um duplo impacto do diagnós tico sobre o paciente e sobre sua família Esta quase sempre nega a realidade da presença de um homos sexual Valese de vários subterfúgios como as rela ções frequentes do homossexual com mulheres para deixar essa dolorosa realidade como uma dúvida que vem se desmanchar diante da dura prova da presen ça da AIDS São portanto múltiplas crises vividas ao mesmo tempo intrapessoais intrafamiliares e no seio das relações do homossexual com a sua comuni dade Os membros da equipe médica então se deba tem com questões dúvidas e tensões que emergem do paciente dos parceiros amigos e familiares Tais situações de pânico e desespero são foco de múltiplas identificações projetivas sobre os elementos da equi pe exigindo permanentes reuniões de discussão para que o espaço e a função de cada um possa ser manti do ao mesmo tempo em que certas tarefas devam ser intercambiadas numa necessidade de se adaptar às demandas do paciente e de seu universo relacional O momento do diagnóstico é sempre difícil para o clínico e para o paciente A possibilidade de este fato poder provocar um profundo estado depressi vo no paciente com todas as repercussões que isso pode ter na evolução da enfermidade deve ser le vada em conta Em certos casos somente durante a psicoterapia o paciente consegue conscientizarse de todo dessa dura realidade O fato é que a presença da AIDS representa para o homossexual começar a to mar real conhecimento de todo um modo inadequa do de viver das múltiplas frustrações existenciais e da falência dos modelos com os quais vivia a se iludir como a aparente superioridade do homossexual em virtude de uma multiplicidade de práticas e de par ceiros Essa condição é mesmo apregoada como uma das vantagens do modo de viver do homossexual em relação aos heterossexuais em trabalhos escritos por sociólogos de renome que todavia por serem homos sexuais perdem a necessária isenção científica e se põem a legislar em causa própria Pessoas que passaram suas vidas usando como mecanismo básico de defesa a negação assim se comportam como seria de esperar diante do diag nóstico João é um travesti com seios de silicone in ternado atualmente no Hospital com um quadro de astenia dores generalizadas e emagrecimento com teste positivo que permanece jogado no leito e isola do de todos negandose a ser visitado embora nin guém o procure para tal Diz todavia que não tem nada que não está doente e que não vê o porquê da intemação Obviamente a questão da culpa inserida no pró prio âmago da condição do homossexual é um fardo muito pesado para esses doentes e um aspecto a ser permanentemente trabalhado no acompanhamento psicológico deles Assim a AIDS como irremediável castigo bíblico é uma vivência muito arraigada entre eles como foi o caso de Wagner bissexual que dizia que entrou na homossexualidade por ter caído nas tentações do demônio Em franco misticismo quando foi atendido por Lizete ora dizia que a enfermidade atual era a punição ora afirmava que era a salvação enviada por Jesus A forma do atendimento as temáticas abor dadas e o estabelecimento do setting variam muito conforme o estágio da enfemiidade Nos pacientes ambulatoriais as consultas psicoterápicas são se manais e de 40 minutos de duração versando sobre preocupações várias com a evolução da enfermidade sobre a vida sexual as relações com a família com o trabalho as possibilidades de uma cura futura etc Psicossomaticaindd 408 Psicossomaticaindd 408 05012010 121219 05012010 121219 Psicossomática hoje 409 Durante as internações as consultas são geralmente diárias É sempre fundamental um máximo de flexi bilidade por parte do psicoterapeuta e um exercício constante e paciente de empatia tentando compreen der e se colocar na posição do doente para poder ter um entendimento profundo de suas motivações vi cissitudes e reações A ansiedade que vivem muitos destes pacientes é avassaladora e torna a tarefa psicoterápica sem pre difícil pelas múltiplas queixas dúvidas e fantasias que trazem e que precisam depositar como um fardo sobre seus terapeutas Aluns doentes vivem perma nentemente numa situação histérica e hipocondríaca apresentando sintomas como dor de garganta dores no corpo astenia e diarreia que ameaçam ser um agravamento da enfermidade ou uma infecção inter corrente E de fato uma diarreia em um paciente com AIDS é sempre um risco de estar em presença de uma complicação de uma infestação por isospora por exemplo Deste modo o psicoterapeuta também partilha as dúvidas e angústias vividas pelo clínico que os acompanha e não poderia ser de outra forma pois o paciente é um só em seu todo psicossomático Há pacientes que só revelam importantes detalhes de sua evolução ao psiquiatra com receio de levála ao clínico que certamente diante desses fatos pediria determinados exames Aliás os exames complemen tares feitos regularmente tais como um hemograma ou as investigações sobre a resposta imunológica são motivo de enorme ansiedade e expectativa Aqui se misturam as realidades trazidas pela presença da doença e os eternos problemas que povoam a mente de pacientes em geral borderlines como a permanen te flutuação entre realidade e fantasia dor e prazer vida e morte As notícias veiculadas pela imprensa e televisão frequentemente de forma sensacionalista têm uma repercussão muito intensa sobre o estado de espírito dos pacientes Tivemos muitas provas disso no pe ríodo em que por exemplo Darcy Penteado dizia a uma emissora de televisão que a AIDS mata Cons tatamos atualmente quando este sensacionalismo e dramaticidade diminuíram que esses pacientes de modo geral estão tolerando melhor a realidade de suas doenças Um maior conhecimento sobre a enfer midade e sobre as formas de contágio também vem contribuindo para um menor grau de desespero fren te à AIDS seja por parte dos profissionais de saúde seja dos pacientes A questão de como lidar com a vida sexual é um tema fundamental neste acompanhamento E por vezes é muito difícil para o profissional de saúde lidar com situações práticas tais como a informação do parceiro por parte do paciente Um paciente contami nado por transfusão negavase a informar seu diag nóstico à companheira com medo de apavorála e continuava a ter relações sexuais sem preservativo com ela Nos homossexuais há sempre o temor de que ao dizer a verdade a um parceiro este o abando ne ou que a própria comunidade gay na qual convi ve o rejeite ao saber da realidade Francisco profes sor desquitado de meia idade predominantemente ativo negavase a usar preservativo com qualquer novo parceiro que encontrava Numa oportunidade envolveuse amorosamente com um jovem parceiro muito frágil e inexperiente diante da homossexuali dade trazendo um incômodo problema contratrans ferencial para Lizete ao partilhar dessa experiência Quando Francisco resolveu revelar o fato o parceiro em pânico o abandonou deixandoo intensamen te deprimido O trabalho psicoterápico entretanto possibilitou a este lidar melhor com o problema da verdade e numa nova relação mais estável que fez esta pôde ser comunicada de uma forma diferente ao atual parceiro mantendose a relação Outro problema quase sempre presente duran te a internação destes pacientes é a questão do rela cionamento difícil conflituoso entre o parceiro e os familiares Parceiros e família buscam não se encon trar durante as visitas ou sentemse constrangidos ou desafiados quando se defrontam Os pacientes obvia mente vivem tal situação com muita ansiedade medo e culpa agravando os conflitos intemos existentes Os membros da equipe de saúde colocamse emocional mente a favor de uma ou outra das partes de forma silenciosa ou por vezes aberta agravando as tensões Um trabalho de atendimento especial à família e aos parceiros portanto impõese Certas famílias enfrentam o agravamento da doen ça e a morte com muito mais dificuldade do que os próprios pacientes Raimundo adulto jovem teve seu diagnóstico positivo quando estava fazendo um concurso para seleção em sua carreira de profissional de Saúde Três meses depois surgiram as primeiras lesões de um sarcoma de Kaposi na face Com resig nação e coragem atendido por Cesar Queiroz Lima exintegrante de nossa equipe maquiavase para sair de casa e enfrentar o contato com os outros Acome tido por uma pneumonia foi internado e durante uma entrevista com Cesar se conscientizou da ne cessidade de uma respiração assistida pedindo que lhe colocassem um Bird ao qual ficou ligado até fa lecer Apesar da luta de Raimundo para se adaptar ao sofrimento que enfrentava que incluía até sorrir para tentar estimular os que o assistiam seus familiares se mostravam desesperados sem condição de auxiliálo precisando até serem mantidos afastados para não in fluenciálo negativamente Este foi o caso de um irmão que chorava copiosamente durante o momento da in ternação enquanto Raimundo o consolava Sua mãe Psicossomaticaindd 409 Psicossomaticaindd 409 05012010 121220 05012010 121220 410 Mello Filho Burd e cols em função do nível de ansiedade que apresentava também precisou com o agravamento do quadro ser afastada Só o pai mostrava alguma serenidade dian te da doença Um adolescente de 19 anos é internado no Hos pital Ao visitálo sua mãe o trata como um bebê dizendo Coitado do meu filho aqui sozinho neste lugar Com quem eu vou dormir na minha cama ago ra Esta cena provoca enfurecimento e revolta por parte dos residentes que atendem o paciente neces sitando uma intermediação de Lizete para que não hostilizassem essa mãe fazendoa de bode expiatório de toda a dolorosa situação vivida pelo filho Carlos de meia idade internado com uma sín drome do lobo frontal é um militante político que vi veu por muitos anos fora do país quase sem contato com a família Conhecido como líder vem perdendo progressivamente seu juízo crítico fazendo pergun tas absurdas comendo como se fosse um animal Os irmãos desgarrados vêm de súbito de várias par tes do país para assistirem perplexos o desenrolar desses fatos Lizete e Cesar passam a se reunir com eles para ajudálos a lidar com a ansiedade e deso rientação decorrentes da situação e permitirlhes dar algum tipo de apoio ao irmão diminuindo a culpa de se sentirem omissos diante da vida pregressa de Carlos e do seu adoecer O diagnóstico diferencial destes quadros é por vezes muito difícil e requer conhecimentos psiquiá tricos por parte do profissional de Psicologia Médica que atende o paciente Por outro lado a presença do psiquiatra pode se fazer necessária para interpretar dados de exames complementares ou para diagnos ticar precocemente o acometimento cerebral próprio da enfermidade Sabendose que cerca de 40 dos pacientes apresentam lesões cerebrais próprias do vírus da AIDS em suas autópsias fazse mister que estas sejam diagnosticadas em seu início e diferen ciadas de condições psíquicas outras que podem sugerir o começo de um quadro demencial apatia desinteresse distúrbios da memória estados depres sivos Desse modo a diferenciação entre um estado demencial depressivo ou regressivo pode ser difícil inclusive porque estas condições podem se apresen tar associadas Se levarmos em conta que o paciente de AIDS pode apresentar combinadamente ou não quadros próprios da doença encefalopatia lesões neurológi cas várias infecções associadas meningoencefali te por criptococos encefalopatia por toxoplasmose etc e reações psicológicas as mais diversas histé ricas psicóticas depressivas poderemos entender melhor a complexa tarefa de diagnosticarmos ade quadamente essas situações e de bem encaminhálas terapeuticamente Assim a criptococose e a toxoplas mose por exemplo são passíveis de tratamento por antibióticos ou por quimioterápicos Não só os quadros de apatia ou de depressão podem ser de difícil diagnóstico e conclusão Também as reações psicóticas agudas os quadros de agitação psicomotora ou estados confusionais colocam com plexas questões de diagnóstico diferencial e requerem um manejo especial por parte do psicoterapeuta e de toda a equipe que assiste o paciente Assim a medi cação psiquiátrica requererá um cuidado especial por estar sendo ministrada a um paciente que além de todas as tensões psicológicas a que está submetido poderá ser portador de dano cerebral orgânico O quadro demencial costuma evoluir de forma sorrateira de difícil detecção O psicoterapeuta pode percebêlo em seus primórdios se detectar precoce mente distúrbios de memória atenção ou concentra ção Dirce Bonfim clínica costuma dizer que há uma modificação da relação médicopaciente que se torna mais pobre e retraída frustrando o médico naquilo que está acostumado a obter daquele paciente Sem dúvida ela está falando da apatia e desinteresse que vão progressivamente acometendo o paciente até le válo a um estado demencial propriamente dito Em nossa experiência a presença desse estado irá interferir de modo significativo na fase final da enfermidade e na morte do paciente como veremos a seguir e está expresso no caso de Luiz que igual mente será descrito As reações psicológicas e psiquiátricas tendem a provocar intensa mobilização na equipe assistencial e podem motivar respostas iatrogênicas Temos tes temunhado por exemplo dificuldades de tolerância em médicos a comportamentos histéricos de pacien tes homossexuais Nesses casos somamse duas cau sas de rejeição e preconceito num mesmo paciente a homossexualidade e a histeria E visão médica muito comum de que histeria é algo premeditado que só cessa diante de uma reação autoritária e agressiva Por vezes se a mobilização por parte da equipe é muito intensa pode até redundar na alta do pacien te Obviamente todas estas angústias e expectativas se acentuam por parte de médicos e enfermeiros principalmente nos mais jovens menos experientes e que mais se identificam com o sofrimento do paciente aidético se o caso tomar o rumo inexorável para o agravamento e para a morte Cenas como as descritas na família de Carlos são vividas diariamente pela equipe e seria extenuan te descrevêlas ainda mais O importante é frizar a necessidade de um atendimento à família desses pa cientes e ao mesmo tempo salientar as dificuldades decorrentes do fato de o psicoterapeuta atender si multaneamente o paciente e sua família em sessões separadas pois nem sempre há tempo oportuni Psicossomaticaindd 410 Psicossomaticaindd 410 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 411 dade ou condições de fazer um encaminhando a ou tro profissional e nem o Serviço Social tem sempre possibilidades de lidar com situações tão complexas Ademais é inevitável que a família tenha contato com vários dos profissionais de saúde que atendem o paciente incluindo assistente social e o psicotera peuta Tratase sobretudo de situações de desespe ro provocando respostas que poderíamos chamar de atuação por parte da família ou da própria equipe Uma estratégia usada nas situações mais difíceis é o atendimento da família por um casal de terapeutas que desse modo auxiliamse mutuamente e ofere cem um modelo de pais harmônicos coesos e inte grados Atualmente estamos encaminhando para um atendimento em grupo de várias famílias numa estratégia de economia assistencial que se impõe à medida que a doença vem se alastrando Um papel muito importante cabe nestes casos ao enfermeiro que é o profissional que fica junto ao paciente de modo mais intimo partilhando de suas dores sofrimentos e cuidados Um fator de compli cação diz respeito ao grande número de enfermeiros masculinos que são homossexuais tal como é a realidade do nosso Hospital revelada agora através da AIDS Ao mesmo tempo por questões de status e poder dentro da equipe de saúde cabe ao enfermeiro principalmente aos menos classificados profissio nalmente os atendentes de enfermagem o papel de bode expiatório de acompanhar o paciente na hora de sua morte Marcos internado com pneumonia gritava com dores pelo corpo enquanto enfermeiras conversavam e brincavam próximas ao leito Cesar presente ficou tão angustiado com esse estado de coisas que chegou a ter uma lipotimia Depois recuperado aproximouse do paciente que pôde lhe dizereu sinto a morte correndo pelo meu corpo sinto meus membros fi cando dormentes eu vou morrer E pedia a Cesar para pegálo para aquecêlo E ele pegava aquecia cobria o paciente até ele morrer Na supervisão eu disse a Cesar Coube a você exercer o papel de mãe fonte de vida até na hora da morte e você o assu miu Em reunião com a equipe de enfermagem pôde ser abordado de forma não acusatória a atitude de negação e descaso como defesa contra o horror do contato com o processo da morte em sua evolução inexorável Infelizmente a maioria dos pacientes em nossos hospitais morrem solitários e desassistidos pela falta de preparo dos profissionais de saúde para lidar com a questão da morte Nesse sentido cabe ressaltar a consciência que a enfermagem vem adquirindo dian te dessa realidade Assim neste momento vemos os enfermeiros aceitando muito mais que os médicos a realização de grupos de reflexão sobre sua prática profissional Em relação ao presente trabalho foi de fundamental importância o funcionamento durante mais de um ano de um grupo desse tipo coordena do por Lizete prática que foi retomada mais recente mente Já em relação aos médicos só bem mais re centemente conseguimos participar de suas reuniões de discussão de casos Como podemos ver há uma integração de re cursos médicos de enfermagem e de serviço social no atendimento a esses pacientes Normalmente essas pessoas deveriam se relacionar de forma coesa e har mônica reunindose e trocando experiência de modo sistemático Em nossa prática porém isso é uma utopia De regra cada uma dessas equipes se reúne de modo isolado e três tipos de integrantes trocam informações com os demais quando se encontram no atendimento de determinado paciente Nós da Psicologia Médica como grupo fomos convidados a participar dessa experiência através da equipe médica Porém em certos momentos temos encontrado mais receptividade para o nosso trabalho por parte da enfermagem ou do serviço social Assim já nos reunimos em duas fases com a enfermagem em um trabalho de grupo de reflexão e estamos em permanente contato com o serviço social Quanto aos médicos atendemos conjuntamente casos ambulato riais ou de internação trocando ideias e experiência A equipe é heterogênea composta desde staffs de grande experiência a internos e residentes natural mente angustiados diante da tarefa de assistir a um paciente com AIDS Os últimos diante da magnitude dos problemas psicossociais presentes em certos ca sos podem defenderse com atitudes que se tomam iatrogênicas para os pacientes autoritarismo rejei ção frieza preconceito agressividade As dificuldades de entendimento e entrosamen to entre uma equipe médica e a da Psicologia Médica são múltiplas e de dupla direção Nesse sentido ape sar de preconizar há tempos em nossa supervisão que a equipe frequentasse as reuniões de discussão de casos clínicos dos médicos da DIP só muito recen temente conseguimos que isso fosse feito Por outro lado nós da Psicologia Médica nunca conseguimos que a equipe médica concordasse em fazer grupos de reflexão prática que estamos certos em muito con tribuiria para a melhoria do atendimento como um todo aos pacientes e para o próprio funcionamento da equipe em si Todavia o trabalho em comum desenvolvese e cresce se o staff da Psicologia Médica está presente Ver a este respeito o trabalho de Alicia Navarro Grupo de reflexão multiprofissional em AIDS uma estratégia em Psicologia Médica Capitulo 31 deste livro Psicossomaticaindd 411 Psicossomaticaindd 411 05012010 121220 05012010 121220 412 Mello Filho Burd e cols quando um elemento da equipe médica tem necessi dade de discutir determinada peculiaridade psicoló gica de um paciente Se é realizada uma prática do tipo interconsulta uma maior integração se desen volve entre os dois participantes Temos tido muita dificuldade em manter uma equipe fixa por parte da Psicologia Médica Por um lado o trabalho é difícil mobilizador e desgastante exigindo muita experiência por parte dos que dele participam Assim a seleção é árdua e um grande número de candidatos não têm reais condições de participar do programa de atendimento Ao mesmo tempo parte dos que se iniciam neste trabalho perce bem com o tempo que não têm condições de prosse guir seja por dificuldades de atender homossexuais seja principalmente em razão da problemática tão presente da morte Por tudo isso nossa equipe tem sido flutuante ao longo destes anos o que traz reais dificuldades a seu funcionamento como grupo uniforme e coeso A prática de supervisões regulares e contínuas entre tanto tem permitido que essas dificuldades venham sendo discutidas e que o funcionamento da equipe como um todo tenha se mantido com um razoável nível técnico e possibilidade de um bom desempenho nas crises psicológicas dos pacientes incluindose o problema da morte Todavia em nenhum trabalho de Psicologia Médica de que temos participado depara monos com tal número de desistências e abandono por parte de uma equipe como é o caso do presente trabalho com pacientes portadores de AIDS Um problema em especial reconhecido por to dos diz respeito a como lidar com os chamados por tadores sãos com os pacientes soropositivos ou do grupo 1 o clínico ao comunicar o diagnóstico de forma adequada ou inadequada abre a perspectiva de um atendimento psicoterápico Cabe ao paciente aceitar ou não essa opção com suas vantagens po rém sempre acompanhada de inevitáveis ansiedades Cresce dia a dia o número de pacientes aidéticos em análise e a proporção desses casos em nossa prá tica psicanalítica tende a aumentar cada vez mais Há múltiplas situações a considerar a esse respeito Uma delas diz respeito a pacientes em análise que ficam sobressaltados com a perspectiva de serem portado res de AIDS De um lado estão os fenômenos hipo condríacos de outro os casos dos pacientes com ris co real de terem a enfermidade Uma questão básica pela qual passam todos os pacientes deste segundo grupo é a dúvida Faço ou não faço um exame diag nóstico A pergunta que fazem os pacientes e por vezes mesmo os próprios terapeutas é Que adianta saber que estou com uma enfermidade que não tem cura Isso não pode mesmo piorar as coisas Deve ser fundamental neste sentido nossa segurança como terapeutas sobre a certeza de que a enfermi dade pode não ter cura porém sempre há um trata mento e é melhor passar por ele apesar dos incon venientes e das iatropatogenias que possa propiciar Tal é o caso do AZT e de outras drogas antivirais que estão sendo utilizadas neste momento Além da ação medicamentosa da substância que pode ser mesmo questionada em certos casos joga um importante papel o fato de o paciente sentir que ha algo a ser fei to bem como o clima de apoio e holding proporciona do pela equipe durante as internações para aplicação do medicamento Parece oportuno lembrar que a questão do diagnóstico está inserida numa questão maior que interessa sobretudo a nós profissionais de saúde mental ou seja a questão da verdade de como se conscientizar e lidar com as verdades próprias de nossa condição de humanos E recordar que cada uma dessas questões é de particular elaboração de desdobramento de um microprocesso dentro do pro cesso geral de um desenvolvimento analítico Nesse processo há uma permanente dialética entre por um lado nosso respeito à pessoa do paciente suas buscas e suas verdades seu Self suas opções e por outro nossa posição como profissionais de saúde sabedo res dos riscos de uma enfermidade para o paciente e também para os outros como forma de contágio Feito o diagnóstico deparase com o proble ma de como ajudar o paciente em uma caminhada existencial na qual ele poderá se defrontrar com a evolução inexorável da doença Esta é outra encru zilhada dialética na qual precisamos nos posicionar frente a esses pacientes Por um lado mostrarlhes que a doen ça não irá fatalmente atingilos por outro poder ajudálos a reconhecer a presença da enfermi dade quando ela surgir Portanto um exercício per manente de lidar com paradoxos como o é em última instância toda prática psicoterapica e a própria vida conforme nos mostra tão bem Donald Winnicott Nos casos mais avançados da doença frente à imposição de modificações técnicas e de setting cabe perguntar se continuamos dentro de um processo psi canalítico ou se nos situamos numa psicoterapia de condição especial O ATENDIMENTO GRUPAL Diante da demanda cada vez maior de casos do grupo 1 optamos por iniciar um atendimento grupal Esta experiência vem nos trazendo grandes ensina mentos Seria muito extenso discutir se este é um grupo analítico ou não Todo o nosso trabalho é obviamente um trabalho de referencial analítico de psicanálise Psicossomaticaindd 412 Psicossomaticaindd 412 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 413 aplicada Porém chamaríamos esse grupo em prin cípio de grupo de reflexão Reflexão feita conjuga damente pelos coordenadores e pelo grupo sobre os fatos que se passam na dinâmica grupal e no jogo das relações e transferências múltiplas Portanto basea do numa compreensão analítica do contexto grupal Esse grupo vem se reunindo semanalmente há três anos tendo de início Cesar e Lizete como coterapeu tas Esta estratégia do casal tem sido muito vanta josa terapeuticamente e ao mesmo tempo fonte de muito dados a serem pensados O grupo se iniciou com quatro pacientes três homossexuais e um bissexual Os homossexuais pre dominantemente passivos traziam histórias de vida impressionantes Um deles foi iniciado na homosse xualidade por um tio que o levou a frequentar pros tíbulos de homossexuais Outro teve a sua primeira relação sexual com um caseiro de uma das múltiplas casas em que viveu com sua mãe O bissexual é um bailarino muito narcísico e com defesas predominan temente maníacas O primeiro grande conflito do grupo foi homos sexualidade x bissexualidade O bissexual de inicio tentou tripudiar sobre os outros apresentandose como capaz de fazer amor a qualquer preço e por tanto superior a eles vistos como pobres bichas O conflito ativo x passivo nunca de todo resolvido pelos homossexuais embora tentem habitualmente negálo ou dissimulálo apresentavase com toda sua nitidez Os homossexuais por sua vez reagiram mostrando que o bissexual no fundo era um ser em cima do muro indefinido enquanto eles pelo me nos se afirmavam como verdadeiros homossexuais Tal colocação atingiu em cheio a questão da indife renciação do bissexual de tal forma que em meio a uma enorme angústia e a vários actingins e acting outs ele abandonou o grupo Este cresceu para oito participantes todos homossexuais e logo surgiu outra antinomia a questão homos sexualidade x morte Ou seja o grupo passou a falar tão somente da homossexualidade para evitar enfrentar o temor real da fragilidade corporal e da morte Da mesma forma o comportamento hipersexual frequente des ses pacientes é uma maneira de se defender entre outras razões desta angústia básica fundamental De vários modos o grupo tem reagido diante dos paisterapeutas De início Lizete entrou em férias e de imediato o grupo também se cindiu dos qua tro passaram a vir habitualmente apenas dois Cons tituido o casal pôdese testemunhar uma série de in teressantes reações diante dele Durante o Natal por exemplo o grupo deu um creme de barbear de pre sente ao Cesar e uma pequena boneca a Lizete Esse gesto foi visto junto com outros emergentes como expressão do desejo de ter um pai realmente máscu lo porém uma mãe criança frágil e assexuada em face dos ciúmes incestuosos e do peso representado pela força de suas mães diante dos seus pais e deles mesmos Por outro lado os pacientes praticamente só falavam de temas sexuais dirigindose diretamente a Cesar tentando corrigir a omissão dos país reais a este respeito e evidenciando mais uma vez a neces sidade da exclusão sexual da figura materna A certa altura o grupo pôde mesmo expressar que se tives sem tido pais como Cesar e Lizete não seriam homos sexuais e não teriam adquirido AIDS Essa afirmação com todo conteúdo de idealização e racionalização que apresenta encerra entretanto à luz da experiên cia que estamos tendo com tais pacientes um fundo de realidade Ao mesmo tempo os pacientes o que é mais importante estão podendo questionar suas vidas e suas aparentes opções Estão conseguindo perceber ao lado da instabilidade dos parceiros toda uma ins tabilidade de vida de empregos de relações outras de sentimentos Como no caso dos pacientes atendi dos individualmente estão começando a abandonar vidas e relações promíscuas a buscar ter os mesmos parceiros a colocar a questão do afeto do amor aci ma dos prazeres tão somente da sexualidade Esta é aliás uma questão muito importante para nós he terossexuais ao tratarmos de homossexuais Poder admitir dentro desta complexidade de afetos e sen timentos que estão presentes no que se pode chamar de amor neste continuum que vai de um amor ba sicamente narcísico a um amor mais genuinamente objetal que o homossexual possa como os demais se res humanos também amar O que vemos habitual mente é que as relações afetivas e sexuais entre os homossexuais estão eivadas de aspectos simbióticos de relações de poder e submissão de rivalidade ciú me e agressividade de aspectos afinal consequentes de uma sexualidade que Freud chamou de perversa em oposição a uma sexualidade sadia genital Este termo com todas as conotações que possui vem a ser todavia um estigma a mais para o homossexual E a partir de Freud sabemos cada vez mais da parti cipação da pregenitalidade na sexualidade genital e das dificuldades de muitos heterossexuais em ter uma vida que se possa chamar de normal ou pelo menos saudável Do mesmo modo penso que devemos ter nossas mentes e espíritos abertos para admitir o que poderia ser a normalidade dentro da homossexuali dade ou seja a melhor possibilidade adaptativa em termos de realização sexual e de vida afetiva num in divíduo homossexual Esse é um tema que pode tra zer dificuldades para a questão da rigidez de nossos superegos Nos pacientes que estão sendo acompanhados individualmente ou em grupo podemos constatar Psicossomaticaindd 413 Psicossomaticaindd 413 05012010 121220 05012010 121220 414 Mello Filho Burd e cols mudanças de comportamento tornandose homosse xuais menos compulsivos e mantendo relações não somente parciais e indiscriminadas Mudanças que se devem a uma personalidade em crescimento e a uma elaboração psíquica e não apenas a soluções adapta tivas em relação à convivência com a AIDS risco de transmissão ou de exacerbação da infecção Mesmo nos bissexuais a questão de uma pos sível modificação da orientação da sexualidade não tem sido questionada pelos pacientes nem por nós Foise o tempo em que os homossexuais procuravam analistas ou psicoterapeutas para tentar a busca de uma solução heterossexual Estes pacientes são de finitivamente homossexuais não tiveram inclusive a real possibilidade de outra forma de realização se xual como diz muito bem Joyce MacDougall A pró pria bissexualidade quando existe parece ser apenas uma questão a mais dentro da problemática geral da homossexualidade Do grupo atual apenas um paciente pertence ao estágio III por apresentar uma mononucleose crôni ca recidivante A presença desse paciente tem sido di fícil para os outros como difícil será a instalação mais cedo ou mais tarde de infecções oportunísticas nos demais Como também costuma ser difícil para um paciente ambulatorial comparecer a uma consulta e encontrar na sala de espera outro doente numa fase mais avançada da enfermidade É ainda mais difícil para outros durante uma internação assistir um vi zinho de leito morrer de AIDS Esta é aliás uma for ma de iatrogenia inevitavelmente presente em qual quer instituição de saúde Pretendemos todavia dar consciência a esses pacientes de suas possibilidades de viver de adoecer e de morrer para que possam talvez adiar suas mortes ou pelos menos se preparar melhor para elas A MULHER COM AIDS Em praticamente todas as estatísticas sobre a doença as mulheres vêm aparecendo em números progressivamente maiores configurando um proble ma de saúde pública junto com a questão dos bebês aidéticos filhos de mães contaminadas Há aquelas que já constituem um grupo de risco as prostitutas outras que também foram contaminadas por homens homossexuais ou drogadictos Tambêm estão den tro desse grupo as que contraíram a doença por trans fusão de sangue O comportamento desses grupos constuma ser muito diferente pois enquanto as mulheres de ho mossexuais e drogadictos costumam ter ligações tu multuadas e uma situação de conflito frente a um companheiro que as infectou as mulheres que con traíram a doença por transfusão não costumam ter tais tipos de conflitos Podem sentirse vítimas do destino de más condições de saúde pública porém o lado mau não está dentro de suas casas As mulheres com AIDS depois dos toxicôma nos são o grupo que mais oferece problemas num atendimento psicoterápico Têm dificuldades de se conscientizar da doença e temem muito ver a fragi lidade ou a deterioração dos seus casamentos São muito feridas por terem sido contaminadas pelos maridos traídas Outras já tinham sido contaminadas e estavam separadas quando souberam da realidade de serem portadoras da doença criandose também uma situação difícil pessoal e familiarmente Via de regra essas pacientes negam as evidên cias de que são casadas com um bissexual e como no caso da família dos homossexuais só admitem esta realidade quando estes adquirem a AIDS ou quando são finalmente infectadas por eles Então precisam defrontarse com várias duras realidades ao mesmo tempo meu marido e homossexual tem AIDS eu também tenho AIDS etc Beatriz é uma mulher de 40 anos obesa que se apresentava vestida de forma grotesca parecia uma Wilza Carla de óculos gigantes no dizer de sua psi coterapeuta tentando se mostrar bem e exuberante porém conseguindo ser apenas chocante e brutal Teve um primeiro casamento do qual tem uma filha de 22 anos porém se separou do esposo porque ele não me dava afeto Teve então um companheiro com quem vive até hoje e com quem tem um filho de 20 anos Conheceu esse companheiro quando estava fazendo um festival de terapias alternativas ioga terapias corporais etc Diz que gostava muito do corpo dele e que ele era muito bom para ela foi o grande amor de sua vida Hoje estão separados geograficamente porem ainda se encontram Mas ele está acabado pela AlDS Enquanto ele tem uma forma mais avançada da doença ela está ainda nos primórdios Beatriz deve ter um enorme conflito com esse companheiro e consigo mesma embora não o deixasse aparecer durante as três sessões de psico Obviamente sabemos que os bissexuais podem ter uma forma de viver familiar e socialmente bem distante do ho mossexual Todavia baseados sempre na experiência clíni ca entendemos que a problemática básica desses pacientes é a homossexualidade Por terem encontrado soluções diferentes do homossexual comum podem os bissexuais ter uma história de vida aparentemente muito diversa dos assumidos e ter mesmo sua condição de homossexuais relegada a um plano secundário e supostamente ocasional A frequente contaminação por AIDS dessas pessoas mostra entretanto que a realidade é outra Psicossomaticaindd 414 Psicossomaticaindd 414 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 415 terapia a que compareceu Como se pode perceber ela abusa de negações e de defesas maníacas o que é frequente neste tipo de estrutura principalmente diante de um problema como a AIDS Diz que ele se contaminou porque era doador de sangue de agu lha em agulha Porem na realidade ela parece estar inconscientemente falando de como um toxicômano se contamina com AIDS isto é literalmente de agu lha em agulha A paciente chorou muito quando falou sobre isto sobre todos os planos que fizeram Agora ela está contaminada e ele quase morrendo Após a ter ceira consulta na qual mais se expôs disse que vol taria porém não mais apareceu A psicoterapeuta sentiu desde o primeiro momento que a relação era frouxa Uma situação não tão difícil psicopatologica mente é a de Joana uma mulher de 35 anos que es teve em psicoterapia com Lizete durante quase dois anos Natural da Baixada Fluminense era filha mais velha com um irmão epilético e uma trágica história de vida Foi criada por uma tia e sempre se sentiu feia e pequenininha Fez um casamento apático e como não conse guisse engravidar o marido arranjou outra Tornou se manicura veio para Zona Sul do Rio de Janeiro e começou a trabalhar num salão de beleza Saía de vez em quando com um dos cabeleireiros com quem mantinha um namoro eventual e ficou gostando dele Tiveram relações sexuais umas seis vezes durante quatro anos Quando soube que um amigo dele tinha morrido de AIDS pediu para fazer exame Constatou se que Joana é soro positivo não tendo apresentado sintomas da doença no tempo em que se tratou neste hospital Durante a psicoterapia revelaramse sobremo do mecanismos de formação reativa para encobrir a intensa raiva e decepção que sentia do namorado Ao invés desses sentimentos surgia piedade e preocupa ção para que ele se tratasse Joana vivia situações de intensa humilhação Estava sempre atrás dele que fingia que não a re conhecia Mandavalhe então cartas recados Ele chegou a deixar o emprego no salão fugindo dela A paciente contava tudo isso na psicoterapia e chorava Eu só quero o bem dele que ele se trate Mas pode acontecer tudo a ele Deixava assim antever a raiva e a ambivalência escondidas na relação Joana falou no salão que era soropositivo per deu o emprego Podemos ver esta como mais uma das manifestações do seu masoquismo exuberante nas duas relações afetivas principalmente na forma como perdeu o casamento ou no modo como buscava desesperadamente o amante Na psicoterapia foram trabalhados de modo focal o masoquismo e a baixa autoestima correlatos principalmente na relação atual e aflitiva com o exnamorado Numa oportuni dade trouxe fotos de mulheres quase nuas tomando banhos de sol que sugeriram ligações homossexuais à terapeuta Isso não foi trabalhado porém era dito a ela que o cabeleireiro representava todo seu lado feminino exuberante que ela não se permitia exibir por em prática Parecia haver em Joana um temor muito grande da sexualidade masculina e de ter filhos consubstan ciados na forma como terminou seu casamento Já os homossexuais são menos perigosos e mais permi tidos e ela faz a trajetória típica das mulheres que escolhem este tipo de homens híbridos Assim no ambulatório da Psicologia Médica conheceu homos sexuais do grupo terapêutico citado neste trabalho e logo se ligou a eles tomandose mesmo amiga de alguns USUÁRIOS DE DROGAS UM PROBLEMA MUITO ESPECIAL Este é o grupo que mais vem crescendo propor cionalmente nas estatísticas sobre AIDS É um dos grupos menos representado em nossa estatística já que estes pacientes são normalmente drenados pelo Hospital para o Núcleo para o Ensino Prevenção e Assistência a Drogas do Estado do Rio de Janeiro NE PAD Porém atendemos os casos internados antes de serem encaminhados ao Núcleo e estamos elaboran do um trabalho em comum entre os dois centros pois há necessidade de que também prestemos assistência em virtude do grande aumento destes casos em nosso meio São normalmente os pacientes que mais pro blemas trazem em uma internação Via de regra são muito onipotentes por trás do medo e da fragilidade e rebeldes podendo mesmo se tornar sociopatas A perícia em mentir como meio ao mesmo tempo de ob ter a droga e de esconder que a usam é parte de uma escalada que os leva à convivência com a marginali dade ou mesmo ao ingresso nesta condição Os trafi cantes estão sempre atrás dos dependentes e os obri gam a traficar principalmente se não têm dinheiro É o que poderíamos chamar de o circuito da droga Como é fácil de deduzir esses pacientes usam abusivamente de mecanismos de negação e são os mais difíceis de se envolver numa psicoterapia Habi tualmente iniciam e interrompem um sem número de vezes Lutam muito para não se acercar da realidade da presença da AIDS e se mantêm continuamente vol tados para sua condição de drogadictos isto é para a possibilidade dia após dia do consumo da droga Obviamente casos iniciais menos graves têm ainda Psicossomaticaindd 415 Psicossomaticaindd 415 05012010 121220 05012010 121220 416 Mello Filho Burd e cols outra psicopatologia e outro comportamento Porém o usuário de drogas que adquiriu AIDS é aquele que já está no estágio endovenoso da aplicação da droga que não mais se cuida e usa seringas não esterilizadas ou as que são utilizadas para diluir a droga num pool de sangue de viciados Como podemos deduzir são pacientes muito carentes ansiosos e propensos à atuação lembran do algo os homossexuais compulsivos referidos neste capítulo como os primeiros pacientes que adquiriram AlDS Enquanto os homossexuais têm sua doença vinculada à sua identidade à sexualidade e muitas vezes a uma figura amorosa parceiro identificável no toxicômano a doença tem um caráter impessoal é apenas um acidente ocorrido no uso da droga não recordável ou sequer identificável Tudo isso talvez explique porque o homossexual aceita mais a psico terapia falar de sentimentos refletir pensar que o drogadicto Este via de regra não consegue incorpo rar a AIDS ao seu universo referencial a não ser que a doença seja muito avançada e então já não há mais nada a fazer Estes pacientes que por vezes são também ho mossexuais criam vários problemas que frequente mente irritam médicos e enfermeiros Um paciente por exemplo pede licença para sair e receber seu pa gamento Seu médico assistente constata que foi uma manobra utilizada para que pudesse ir ao encontro da droga enganandoo Por outro lado pacientes drogadictos graves ou que já estão no nível da sociopatia começam a ad quirir AIDS e criar uma serie de complicações a mais em suas vidas já turbulentas Ou para a sociedade na qual convivem Deste modo por exemplo pacientes homens com facilidade e sem culpa irão contaminar mulheres ou outros homens se homossexuais prin cipalmente através das relações promíscuas que fre quentemente ocorrem com pessoas tão regredidas C é uma paciente adulta jovem drogadicta e delinquente que já se envolveu em conflitos armados em várias ocasiões Esteve alguns anos em psicote rapia no Serviço de Psiquiatria do Hospital sendo seu caso supervisionado pela Psicologia Médica Teve dois episódios de endocardite bacteriana Costumava vir armada para as consultas Há um ano tornouse soropositivo para AIDS Tem sido então por várias ve zes encaminhada para nosso atendimento especiali zado Numa das vezes compareceu um tia de C para dizer que ela havia fugido de casa Contou que C tinha entrado numa seita e que passou muito tempo sem usar drogas Acha que sua sobrinha aqui no Hos pital não vai deixar de usar drogas traduzindo sua confiança na seita e sua descrença em nosso tipo de atendimento Este caso ao mesmo tempo que nos dá esperan ças quanto ao atendimento de uma paciente deste tipo pois se não fosse a boa ligação com sua psicotera peuta C já não estaria nem viva tal o seu envolvimen to com a marginalidade mostra nossas limitações principalmente diante da presença agora da AIDS De início há uma droga que pode ser abandonada agora não há uma doença a ser descartada E isso ocorre no background já tão comprometido do toxicômano in vadindo sua vida pessoal familiar seu trabalho suas relações pessoais sua sexualidade etc A princípio não havia saúde mental mas a saú de física estava apenas relativamente comprometida Agora esta está irremediavelmente comprometida e a saúde mental ainda mais baqueada para poder for talecêla E os profissionais de saúde por uma série de razões não são percebidos como confiáveis para desempenhar um ou outro papel O PACIENTE TERMINAL E A MORTE As fantasias que fazemos sobre nossa própria morte estão inevitavelmente presentes no acompa nhamento destes pacientes Incluise aqui a ideia da morte e de todo o sofrimento ligado a ela Jorge um enfermeiro do grupo II assistiu um paciente ser in tubado antes de morrer e hipocondriacamente ficou apavorado de ter de passar pelo mesmo sofrimento Este e um temordefesa invarialvelmente apresentado diante da perspectiva da morte Fantasiamos por vá rias razões uma forma de sofrer e de morrer entre outras razões para termos a sensação onipotente de controlar ou pelo menos conhecer o terrível inimigo e a hora mais temida A emenda é sempre pior que o soneto sempre sofremos antecipadamente com tais fantasias que nunca se realizarão pelo menos na for ma e nos detalhes que costumamos elaborar Poder renunciar a confecção psíquica destas fantasias ou pelo menos atenuar sua força conseguir admitir que a morte é um momento sobre o qual jamais teremos controle é uma das metas mais importantes na te rapia de um paciente somático e ao mesmo tempo uma das conquistas mais difíceis como postura de um ser humano diante da morte Como se pode deduzir de tudo que foi dito até aqui muitas condições diferentes e múltiplas enfer midades podem coexistir por trás do rótulo diagnósti co da AIDS O caso de Luiz que foi um dos primeiros pacientes acompanhados por Lizete ilustranos sobre alguns desses problemas Ela o atendeu durante dez meses o contato se iniciou quando ele foi internado no Hospital Pedro Hernesto devido a uma pneumo nia Luiz se comparava à personagem do livro e do filme Looking for Mr Goodbar que durante o dia era Psicossomaticaindd 416 Psicossomaticaindd 416 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 417 professora e levava uma vida aparentemente normal porém à noite tinha uma vida inteiramente desre grada com álcool tóxicos e ligações com parceiros sádicos e violentos terminando assassinada por um deles Durante alguns anos Luiz frequentou saunas e relacionouse de múltiplas formas com parceiros vá rios até que na época em que surgiram os sintomas já como numa espécie de premonição do que viria a se passar depois tentou se adaptar a um único par ceiro e a ter uma vida menos desestruturada Era os tensivamente o filho preferido da mãe que mantinha um vínculo simbiótico com ele diante de uma única irmã um ano mais velha casada O pai alcoolista violento sempre foi distante e temido por Luiz Nada foi dito a este sobre a doença de Luiz pela mãe e pela irmã para não abatêlo pois estava velho e enfra quecido A mãe ao saber da enfermidade do filho ficou profundamente deprimida e fez três tentativas de suicídio Não visitou o filho durante as interna ções não ia à casa dele em seus períodos de licença e saiu de sua própria casa quando Luiz foi residir lá no período final de sua enfermidade Durante a interna ção de Luiz o pai não apareceu o que o deixou muito ressentido Meses depois o próprio pai é internado num quadro de cirrose hepática descompensada e Luiz num revide resolve não visitálo Quando se dispôs a vêlo em virtude do trabalho realizado com sua psicoterapeuta já o encontrou em coma e incons ciente no dia seguinte veio a falecer Uma semana após a morte do pai Luiz começou a apresentar um quadro de sarcoma de Kaposi que em poucos meses se generalizou de forma nunca vista pelo staff da DIP impedindoo de se locomover e quase até de ver Mor reu em caquexia com um agravamento progressivo de seu estado geral Luiz já havia se submetido a uma psicoterapia de base analítica durante alguns anos Ao iniciar seu relacionamento com Lizete dizia de forma intelec tualizada que precisava solucionar um complexo de Édipo mal resolvido Tentava assim evitar se defrontar com a realidade cruel de sua enfermida de que foi todavia apresentandose de forma cada vez mais nítida por último através do sarcoma de Kaposi herdeiro do luto patológico que se seguiu à morte do pai Aos poucos Luiz foi se ligando mais a Lizete passando a falar sobre a revolta causada pela doença sobre o sofrimento decorrente do uso dos medicamentos das biópsias e de outros exames inva sivos e finalmente sobre a morte que se aproximava Numa ocasião Lizete o encontrou cambaleante no corredor de uma enfermaria e o amparou Ambos se emocionaram e ela sentiu que este foi um momento importante na relação Depois durante uma sessão de muitos silêncios ele disse que ela estava fazendo aquilo que sua mãe deveria fazer por ele A seguir chorou muito e ela ficou emocionada num silêncio a dois Por vezes ele dormia durante o atendimen to e numa dessas oportunidades teve um sonho em que via seus sapatos pendurados na parede Passou a solicitar mais contatos físicos com ela a propósito de mudar sua posição no leito A princípio falava da morte de modo indireto depois dizendo que sei que está cada vez mais próximo para finalmente conse guir dizer Lizete eu vou morrer Ela comentou na supervisão que ora ficava em silêncio procurando abraçálo com meu conforto ora lhe dizia que en tendia o que estava sentindo A morte de Luiz foi cal ma e ele nos dias finais não mais requereu a presença de sua psicoterapeuta Desde o início do atendimento Luiz tinha um mesmo parceiro que veio a ser uma das pessoas mais importantes nesta fase de sua vida Com muita dedi cação ele o acompanhou em todas as suas crises as sumindo seus cuidados mesmo como uma mãe Tro cava até fraldas descartáveis que Luiz precisou usar tal foi a intensidade da diarreia que o acometeu no final de sua doença Neste processo foi de importân cia que o companheiro após saber ser soropositivo também tivesse um acompanhamento realizado por outro psicoterapeuta Há muitos anos vimos nos interessando pelo trabalho com pacientes terminais de início atenden doos pessoalmente depois através de supervisões Esta forma de atendimento se desenvolveu mui to nos últimos anos com a divulgação e difusão das ideias de Elizabeth KüblerRoss pioneira neste tipo de trabalho Entre varias contribuições ela sintetizou o estudo das fases por que passaria um doente final uma fase inicial de revolta um período de tentativa de encontrar uma saída com o médico durante a qual poderia tentar todo tipo de barganha uma fase de depressão e desistência por não ter encontrado uma solução uma fase final na qual finalmente haveria uma aceitação da morte Tal sistematização nos parece muito útil no atendimento a qualquer paciente terminal Descreve fases e fenômenos que ocorrem com esses doentes excluídos os casos agudos em que não há tempo de estruturar defesas estratégias ou de expressar certos sentimentos Essas fases todavia em nossa experiên cia se sucedem as mais das vezes fora da sequência mencionada Assim a barganha pode ser tentada em outro momento ou a fase de revolta pode manifes tarse no período final Do mesmo modo quadros depressivos podem surgir em qualquer das fases Por outro lado só alguns poucos casos conseguem atingir a etapa de aceitação segundo pudemos observar Pa cientes religiosos costumam com maior frequência atingir esse estado O que está em concordância com trabalhos de Ikemi notável pesquisador de Psicosso Psicossomaticaindd 417 Psicossomaticaindd 417 05012010 121220 05012010 121220 418 Mello Filho Burd e cols mática no Japão que descreveu recentemente cinco casos de cura espontânea de câncer em que o fator mais chamativo eram situações de grande apego à religião ou mesmo episódios recentes de conversão religiosa No paciente com AIDS estas fases se diluem imbricamse e se modificam ainda mais São pacien tes que vêm geralmente de crises múltiplas diarreias pneumonias meningites durante as quais já viveram as etapas de um paciente terminal pois houve perigo real de morte ou o forte pressentimento dela as mais das vezes A história natural da doença também predispõe a sentimentos de revolta ao uso de técni cas de barganha ou ao surgimento de crises depres sivas várias principalmente se tivermos em conta que entre os casos mais numerosos estão pacientes ho mossexuais drogadictos prostitutas ou hemofílicos Ao acompanhar os primeiros casos de AIDS sempre nos surpreendia a qualidade das mortes Ape sar da evolução tumultuada de suas doenças os pa cientes morriam sem a dramaticidade que se costuma ver em outros casos Isso provocou muitas dúvidas e reflexões Seria o tipo de atendimento prestado pela psicoterapeuta Lizete em sua forma de enfrentar o problema da morte Atingiriam estes pacientes a fase de aceitação descrita por KüblerRoss que já havía mos presenciado em outros casos Seria decorrente do esgotamento produzido por uma longa enfermi dade e portanto um misto de resignação e depres são Por que estes pacientes não davam os presentes finais que eu me habituara a ver em outros pacientes terminais Estas dúvidas foram sendo respondidas quando tomamos conhecimento dos primeiros relatos de en cefalopatia nestes pacientes De fato só através da li teratura médica foi possível para nossa equipe poder interpretar melhor o que a princípio parecia ser uma apatia e um desinteresse depressivo ou mesmo um quadro mental decorrente do estado geral do pacien te Só a autópsia ou as tomografias permitiram con firmar esse tipo de acometimento que é frequente mente difícil de diferenciar das condições citadas De fato a maioria desses pacientes morre sem apresentar alterações da consciência ou do juízo crítico que fa çam suspeitar clinicamente de um quadro demencial Porém na decorrência dessa apatia que se instala aos poucos há uma diminuição progressiva dos vínculos emocionais como acreditamos que aconteceu no fi nal com Luiz Como já comentamos isso levou Dirce Bonfim a dizer que o clínico sente com uma certa tristeza que a força da relação médicopaciente a partir de um certo momento já não é a mesma E ca pricho do destino em consequência disso o paciente aidético tão injustiçado pela vida tão marcado pela severidade e atrocidade de sua doença graças a essa lesão neurológica num significativo número de ca sos morre em paz Para ilustrar com mais um caso as inúmeras di ficuldades e vicissitudes do atendimento psicoterápi co a esses pacientes quando nas etapas finais vamos falar de Sérgio que foi atendido durante mais de um ano no Hospital Pedro Ernesto por Rejane Aze vedo psicóloga de nossa equipe Homossexual com inúmeros conflitos familiares na decorrência princi palmente de ter sido um filho francamente preferido pela mãe mostrouse durante quase todo o período do atendimento muito ansioso por vezes deprimi do principalmente diante do quadro progressivo da doença Suas reações tinham frequentemente um co lorido histérico o que trazia muitas dificuldades para o relacionamento dos profissionais da equipe de saú de com ele Tudo isso se transformou em sua segunda inter nação quando apresentou um quadro de meningite por criptococos Desde então seu comportamento modificouse muito em decorrência dessa infecção apresentando ainda uma profunda magreza levan doo a caquexia e quadro demencial Surgiu incon tinência de esfíncteres paraplegia dos membros inferiores e fases de desorientação alternadas com momentos de lucidez Configuravase assim o quadro de um paciente entrando na fase final a cujo respeito escreveu Rejane Afastado da família e numa total dependência do hos pital o paciente restringese ao leito da enfermaria onde não tem mais forças e coordenação motora sufi cientes para pequenos movimentos como por exemplo mudar de posição na cama e alimentarse sem o auxílio de outrem Sua forma de se fazer vivo e presente nos momen tos em que está acordado dáse através do olhar que acompanha todos os movimentos e acontecimentos da enfermaria ou através dos seus constantes e inúmeros pedidos à enfermagem para que o troque da posição ao leito lhe dê algum alimento ou lhe faça a higiene Tal Percebemos este fato pela primeira vez quando um pa ciente renal disse à sua terapeuta uma residente Dr não deixe de não vir me visitar amanhã Ela percebeu o ato falho ou a comunicação ambígua e foi dormir intrigada com o fato No dia seguinte acordou assustada e observou que o relógio marcava oito e meia às oito em ponto ela sempre o atendia Quando chegou ao hospital soube que ele havia falecido exatamente às oito Desde então tenho observado que os pacientes terminais muitas vezes como forma derradeira de preservar alguém por quem se sentem tão ajudados escolhem horas de morrer em que este alguém não esteja presente Ou expressam essa gratidão através de presentes derradeiros como no caso do pequeno hemofílico Psicossomaticaindd 418 Psicossomaticaindd 418 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 419 estado incomoda profundamente as enfermeiras que se sentem irritadas e sobrecarregadas por considera rem que este tipo de trabalho deveria ficar mais a cargo da família ou de uma casa de repouso especializada Minha intervenção neste período vem se tornando cada vez mais peculiar pois à medida que o paciente e suas capacidades de entendimento diminuem meu trabalho tem se moldado às suas necessidades e pos sibilidades Inicialmeme quando seu estado de saúde ainda permitia uma conversa de 20 a 30 minutos conversá vamos da sua profunda tristeza pelo gradativo afasta mento familiar em momento tão difícil como este Com o passar dos dias o paciente passou a falar cada vez menos correspondendo a uma grande neces sidade de não falar mais da dor da solidão ou do seu próprio estado Assim ele apenas me requisitava para cuidados como trocálo de posição ajudálo na alimen tação etc Sérgio passou a sempre me pedir ajuda para comer alguma coisa ou a fazer algo mais por si Num desses dias chegou a me perguntar Isso aqui é uma sessão ou uma enfermagem Respondi como uma pergunta O que é para você E ele disse você é minha psicóloga Esta resposta para mim soou como uma confirma ção de que neste período terminal ninguém melhor do que o próprio paciente para servir de bússola para indi car a melhor forma de ajudálo devendo ser respeitado em suas defesas e possibilidades Muito teríamos a discutir em relação a este com plexo problema da psicoterapia do paciente terminal Desde questionar o termo em si vêlo como possível fonte de iatropatogenia ou estudar a posição de cada elemento da equipe de saúde ou dos vizinhos do leito ou dos familiares como outros terapeutas do paciente terminal Gostaríamos apenas de transmitir a sensação que fica após uma experiência deste tipo para aqueles que dela partilharam É sempre uma sensação de que valeu a pena de que a morte apesar de ter che gado foi mais uma experiência de vida que encerrou algo de belo e digno mesmo dentro de sua aparente injustiça É que talvez pudéssemos alcançar a máxima de Sócrates O importante não é evitar a morte é evi tar que ela seja um acontecimento injusto Vida e morte coexistem e se continuam numa permanente dialética como está na dualidade pulsio nal de Freud Há várias formas de morrer como há vários modos de viver Muitas vezes para suportar o morrer o homem precisa voltar ao nascer Esta é tal vez a missão maior do psicoterapeuta que ousa parti cipar destes momentos tão dificeis em que coexistem o viver e o desaparecer proporcionar um permanen te vínculo simbiótico que reproduza a unidade dual a fusão euoutro os primórdios da vida a sensação do sem fim da quietude uterina Isso é feito através de um olhar de um silêncio compartilhado da palavra adequada que acolhe e abraça do gotaagota dos lí quidos e soros que representam quase concretamente a ligação fluida umbelical Certos pacientes só atin gem esse estágio através do contato corporal numa comunhãofusão de corpos também concreta Isso é realizado através de uma comunhão de mentes que nos permita penetrar nos abismos psíquicos onde se aloja o fantasma da morte dentro de cada um de nós E destas profundezas do existir que iremos retirar a sapiência a lucidez e o senso de realidade que irão nos ajudar neste trabalho Apresentamse assim a nós na medida em que aprendemos mais sobre esta doença fatos sempre novos por vezes alentadores por vezes paradoxais Sem negar a gravidade intrínseca da AIDS mesmo antes da perspectiva de uma cura da infecção talvez se possa portanto pensar que ela não é lobo final da espécie humana a besta do Apocalipse como tam bém não o foram a tuberculose a lepra e o câncer E reflexão final não teria sido talvez necessária uma doença como a AIDS para que as pessoas pos sam de fato tomar consciência de múltiplas verdades sobre a sexualidade humana sobre a questão das prá ticas de saúde como o problema das transfusões sobre a realidade dos tóxicos e sobre o problema das viroses que de várias formas vem extirpando parte da nossa existência POSTSCRIPTUM Este comentário se impõe pois a doença AIDS descrita em detalhes no presente capítulo modificou se de uma enfermidade praticamente mortal a pes te gay para a evolução de uma doença crônica com patível com a vida desde a introdução da influente terapia com antirretrovirais a partir de meados de 1996 Obviamente esta não é a solução definitiva de cura para a AIDS mas colocou estes casos numa si tuação semelhante ao diabete e a hipertensão arterial isto é doenças que se submetidas a uma terapêutica adequada podem ter uma razoável sobrevida Então a realidade agora é diferentemente outra nada de sarcoma de Karposi de graves infecções in tercorrentes de acometimentos orgânicos neuropsi quiátricos de quadros demenciais como forma inicial de apresentação do mal Mas nem tudo são flores O diagnóstico surge geralmente durante uma pesquisa de diagnóstico la boratorial um checkup um exame prénupcial um exame prégravídico quando aparece a bomba um HIV positivo e tudo que se segue à trágica revelação exame do cônjuge dos filhos etc Ou o paciente já sabia que era portador de AIDS e estava mentindo ou foi pego desprevenido com o Psicossomaticaindd 419 Psicossomaticaindd 419 05012010 121220 05012010 121220 420 Mello Filho Burd e cols teste positivo De qualquer forma está desencadeada uma situação de crise Uma doença incurável trans mitida geralmente por via sexual Assim uma boa parte da consulta é gasta nas fa ses iniciais para desarmar o paciente de que apesar de todas as suas defesas psicológicas ele tem AIDS mas essa é uma enfermidade tratável principalmente se fo rem seguidas as manobras terapêuticas indicadas Apesar destas palavras tranquilizadoras há pa cientes que não entram em tratamento alegando que se a AIDS é coisa do demônio o tratamento deve ser espiritual As iatrogenias ocasionadas pela medicação ou pelo autoritarismo do médico também dificultam o bom seguimento do tratamento principalmente se há lipodistrofia que confirma a presença da doença para o seu meio As consultas clínicas quase se singem quan do o acompanhamento é tranquilo a averiguar se há sintomas e se a medicação está sendo tomada corre tamente Contudo muitos pacientes rebeldes ativos ou passivos costumam tomar apenas parte da me dicação na crença de que isso diminui paraefeitos ou intoxicações principalmente na fase inicial ou nas formas graves de terem de tomar 30 comprimidos ao dia Isso mobiliza muitos pacientes hipocondríacos ou narcísicos que não admitem que doenças os acome tam e confundem número de comprimidos ingeridos com a gravidade da doença O fato é que hoje em dia com o progresso far macológico as drogas se tornaram mais potentes o que diminui em muito o número delas a ser ingerido ou se combinando mais de uma substância numa só pílula Então esse problema já foi superado porém surgiu outro mais desagradável É o que se chama de lipodistrofia o grande temor dos pacientes atualmen te A gordura por ação dos medicamentos migra para a região da nuca e do abdome Os braços e pernas ficam finos assim como a face diminuindo as boche chas O paciente fica com um aspecto característico denunciando que está se tratando de AIDS Têm sido feitas cirurgias plásticas principal mente de face com poucos resultados Assim a adesão ao tratamento tratandose de uma doença crônica sujeita a recidivas e recaídas é um fator importantíssimo daí a indicação cabal das terapias de grupo onde os pacientes juntos podem abordar estes problemas e fazer identificações positi vas e terapêuticas Porém vários problemas continuam embora mais atenuados conforme os grupos de risco Os ho mossexuais que já foram mesmo identificados como os grandes disseminadores da doença modificaram muito esta condição nas últimas décadas Usaram mesmo a crise e os debates sobre AIDS para serem vistos como pessoas comuns apenas com uma opção sexual diferente Negaram o caráter narcísico já apontado por Freud a instabilidade de suas liga ções afetivas o masoquismo e até a extrema cruelda de de certos crimes homossexuais Beneficiaramse muito dos amplos debates ge rados na sociedade sobre a tema envolvendo a já fa mosa exclusão no DSMIV do mundo das patologias mentais e conseguiram com que quase todas as críti cas feitas ao universo gay fossem apenas consideradas meros preconceitos Também aderiram maciçamente aos preservativos conseguindo deste modo atenuar a epidemia gay Já entre as mulheres o número de casos po sitivos vem aumentando dia a dia São geralmente ligações com bissexuais que escondem sua condição de base infectandoas Daí podemos considerar os bissexuais mais patológicos que os homos porque nem conseguem fazer uma escolha de gênero Porém hoje com um maior conhecimento da doença já se sabe que nem todas as mulheres são contaminadas por homo ou bissexuais Uma parte delas foi contami nada por heterossexuais que por circunstâncias várias adquiriram AIDS Um drama maior ainda é a contaminação do feto pela mãe gerando intensa culpa na genitora mesmo quando não sabia ser portadora do mal As famílias dos pacientes se constituem um pro blema a parte pois se os apoiam e consolam duran te as crises podem rejeitálos e mesmo hostilizálos principalmente se são homossexuais ou drogaditos O grupo dos transfundidos praticamente desa pareceu com um controle eficiente do Ministério da Saúde sobre os bancos de sangue Felizmente pois era uma fonte importante de contaminação em nosso meio A trágica e comovente experiência vivida por Virginia Fontenelle e equipe relatada neste livro é um testemunho eloquente dessa situação As prostitutas assustadas com a morte de algu mas delas há tempos atrás e influenciadas pelas cam panhas maciças Antiaids deixaram de ser há muito um grupo de risco demonstrando um notável espí rito de classe O mais grave grupo de risco continua a ser o dos drogaditos que além dessa grave psicopatolo gia passam a conviver com a AIDS São geralmente estruturas mentais gravíssimas borderlines esquizo afetivos antissociais que respondem mal às técnicas psicoterápicas e psiquiátricas comuns casos indica dos para uma psicanálise winnicottiana moderna conjugada com medicação mas são tratamentos ca ríssimos pois envolvem além da psicanálise grupos e fármacos recursos dispendiosos internações hospi talares e terapia familiar As técnicas grupais coadju vantes têm aí também uma indicação Psicossomaticaindd 420 Psicossomaticaindd 420 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 421 Com os novos movimentos e tendências da so ciedade os perfis da AIDS também vão se modifican do Assim com o início da vida sexual cada vez mais precoce vão aparecendo casos de AIDS em adoles centes No outro extremo entre os idosos com uma vida sexual cada vez mais livre com um número cada vez maior de divorciados e descasados uma pequena epidemia de AIDS vai se instalando aos poucos O uso de Viagra Levitra e Cialis estimula muito a sexualida de do homem idoso A abordagem atual da AIDS deve ser feita por profissionais de clínica médica tarimbados em lida rem com problemas familiares e psicossociais o ideal seria um médico do Programa de Saúde da Fa mília Lá ele poderá atender uma paciente em crise frente ao diagnóstico da AIDS Por vezes este está em franca depressão e terá que ser medicado Um profis sional de saúde mental poderá ser convocado depen dendo da gravidade do caso Se for um casal de vida monogâmica estará instalada uma crise quem con taminou quem Quem mentiu Geralmente a chance de o homem contaminar a mulher é muito maior já foi de 16 x 1 mas hoje a chance das mulheres casa das se envolverem em aventuras extraconjugais com a experiência acumulada pelas equipes de saúde se considera 1 x 1 Se o casal já estava em crise anterior mente é conveniente convocar um terapeuta de ca sal Ou de família se a crise envolver os cônjuges e demais componentes da família nuclear O ideal é que o tratamento as AIDS seja conduzido por uma equipe de saúde onde estejam representados no mí nimo um médico clínico um psiquiatra um psicólo go e um assistente social Vencidas as crises inicialis o paciente en tra no tratamento da doença crônica propriamente dita ficando a parte clínica a cargo deste mesmo médico e a parte psicoterápica a ser feita individualmente ou em grupo preferencialmente segundo o modelo proposto pela psicóloga Lia da Silveira no Capítulo 35 Caso clínico João um homem de 45 anos professor universitário foime trazido ao consultório por sua esposa devido a atri tos conjugais Ele queria ter relações com ela sem o pre servativo porém ela se negava pois ele já havia tido um casamento anterior cuja mulher havia morrido de AIDS Ele alegava que ela havia adquirido AIDS numa transfusão de sangue e que não passara a doença para ele Alegava que tinha feito um HIV que foi negativo porém não estava com o exame no momento Ela tinha outras queixas dele trabalhava muito e prati camente não dava atenção a ela nem as duas filhas do casal Propus uma psicoterapia de casal porém exigi antes que ambos fizessem testes HIV Western Blot Os testes foram positivos e o tratamento iniciado vi sando uma adequação psicossexual do casal Também foi realizada terapia antirretroviral Ele tinha um CD4 baixo o que indicava doença ativa embora sem sintomas Logo percebi em João traços hipomaníacos tendência à negação um certo superficialismo de conduta frequente uso de racionalização A esposa funcionava mais como mãe o lado consciente do casal Resolvidos os conflitos mais imediatos João permane ceu comigo em psicoterapia individual Contoume então entre idas e vindas que sempre se sentiu atraído por traves tis e que a noite em Copacabana costumava lhes dar carona para que lhe fizessem felácio ou coito anal Indagado sobre se fora passivo alguma vez admitiu com muita relutância que por duas ou três vezes O caso João se esclarecia au grand complet Ele era bissexual e com seus traços maníacos negava para todos sua real condição Contaminou sua exmulher e inventou a farsa da trans fusão de sangue João teve contudo um fim trágico Um de seus maiores sonhos era passar um inverno em Paris O período em que ele escolheu para viajar era contudo particularmente frio E assim o fez apesar das contraindicações minhas e de seu clínico assistente Lá contraiu uma pneumonia dupla e vol tou às pressas para o Brasil para morrer entre os seus Suponho que nem a medicação ele deve ter tomado du rante a viagem No seu sentir maníaco aquela viagem era a vida a cura Paris e no entanto mantinha escondida trai çoeiramente a própria morte REFERÊNCIAS Balint M La falta básica Buenos Aires Paidós 1982 Costa L M Mello Filho J Assistência psicológica ao paciente com AIDS Informação Psiquiátrica v 6 n 2 p 41 1987 Costa L M Lima C O Mello Filho J Grupoterapia com pacien tes HIV positivos Gradiva v 42 n 5 Set 1988 Costa L M Mello Filho J Atendimento psicoterápico em um caso de AIDS Informação Psiquiátrica v 7 n 1 p 20 1988 Cooney T G Wand T T AIDS e outros problemas médicos no ho mossexualismo masculino Rio de Janeiro Interlivros 1987 Faerchtein L Homossexualidade masculina J Bras Psiquiatria v 31 n 3 p 1511982 Figueiroa L O diagnóstico de homossexualidadez modifica ções ocorridas no novo código J Bras Psiquiatria v 31 n 1 p 191982 Fiuza H AIDS a doença do medo Radis p 51 out 1987 Freud S Três ensaios sobre a sexualidade Rio de Janeiro Imago 1986 Gleiser J K K Gleiser R Psychologicalinfluencesinimmumty implications for AIDS Am Psychol n 43 p 892 1988 Holand 1 C Tross S The psychosocial and neuropsychiatric sequelae of the acquired immune deficience syndrome related di sorders Ann Int Medicine n 103 p 710 1985 Isay R A A homossexualidade em homens homossexuais e hete rossexuais algumas distinções e implicações para o tratamento Psicossomaticaindd 421 Psicossomaticaindd 421 05012010 121220 05012010 121220 422 Mello Filho Burd e cols In Fogel G I Lane F M Liebert R S Psicologia Masculina Porto Alegre Artes Médicas 1989 Kohut H A restauração do self Rio de Janeiro Imago 1990 J A análise do self Rio de Janeiro Imago 1989 KüblerROSS E Sobre a morte e o morrer São Paulo Martins Fontes 1981 Leite o S Homossexualidade masculina lateralidade cere bral imunologia e AIDS Instituto de Psicologia da UFRJ dati lografado Liebert R S A história da homossexualidade masculina da Gré cia Antiga até a Renascença implicações para a teoria psicanalíti ca In Fogel G L Lane F M Liebert R S Psicologia Masculina Porto Alegre Artmed 1989 Mamior J A inversão sexual Rio de Janeiro Imago 1983 Mello Filho J Gomers C P Assistência psicológica ao paciente teminal IV Congresso Brasileiro de Medicina Psicossomática UERJ Rio de Janeiro 1984 Mello Filho J Costa L M O fantasma da AIDS no hospital geral Semana de Aniversário do HUPE agosto 1986 A experiência com pacientes de AIDS num hospital de ensi no Boletim do Departamento de Pesquisas da Sociedade Brasilei ra de Psicanálise Rio de Janeiro setembro 1989 O ser e o viver uma visão da obra de Winnicott Porto Alegre Artmed 1989 McDougall J Em defesa de uma certa anormalidade Porto Ale gre Artmed 1987 Nicholls S F Psychosocial reaetions of persons with the acquired immunodeficiency syndrome Annals of Internal Medicine n 103 p7651985 Oliveira Neto M X O paciente homossexual HIV positivo AIDS e a morte J Bras Psiquiatria v 39 n 5 p 244 1990 Oversey L Homosexualidad en el hombre y en la mujer Buenos Aires Paidós 1967 Queiroz A O Mello Filho J O médico diante do doente crônico e da morte J Bras Medicina v 31 n 15 1976 Silva Jr G M N Mello Filho J O estudante de medicina e o paciente terminal Informação Psiquiatrica v 4 n 85 1984 Solomon G F Psychoneuroimmunologic approaches research on AIDS Ann Acad Science n 496 p 628 1987 Stedford A Encarando a morte Porto Alegre Artmed 1986 Stoller R J The transexual experiment London Hogart 1975 Temochock L Psychoimmunology and AIDS In Bridge P P Psychologieal neuropsychiatric and substance abuse aspects of AIDS New York Haven 1988 Psicossomaticaindd 422 Psicossomaticaindd 422 05012010 121220 05012010 121220 Este trabalho é fruto de nossa experiência de dois anos como coordenador da equipe de Saúde Mental do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ que presta assistência a pacientes com síndrome da imunodeficiência adquirida Os primeiros casos de AIDS internados no Hos pital ocorreram no início de 1985 Naquela ocasião o Serviço de Psicologia Medica e Saúde Mental co meçou a ser solicitado a prestar atendimento a es ses pacientes Quando iniciamos nossa participação ainda pouco familiarizados com os problemas refe rentes à AIDS às vezes ficávamos perplexos não só pela grande variabilidade dos sintomas psicológicos e psiquiátricos que observávamos como também pelas amplas consequências médicas sociais familiares epidemiológicas e éticas além das tensões que fre quentemente estavam presentes quando cuidávamos de pacientes em estágio terminal Pela complexidade do atendimento sentimos uma particular dificulda de no exercício da nossa tarefa assistencial ficando flagrante uma tendência a evitála sobretudo pelo medo do contágio Verificamos também que vários outros profissionais de reconhecida competência re agiam como se não tivessem qualquer informação científica a respeito da AIDS O fato de a grande maioria desses pacientes pertencerem aos chamados grupos de risco como homossexuais travestis e usu ários de drogas endovenosas certamente dificultava mais ainda a relação entre equipe de saúdepaciente Embora tais atitudes tenham diminuído acentuada mente o problema permanece na ordem do dia em extensão social e somente será solucionado grada tivamente através de um amplo trabalho que consi ga vencer preconceitos em relação a esses pacientes Ainda com referência a essa situa ção verificamos que ela também se traduz em outra dificuldade na clínica particular o problema da subnotificação Alguns mé dicos atendendo a apelos da família e dos próprios pacientes sensibilizamse pela dramaticidade da si tuação não notificando casos que acompanham às autoridades sanitárias O paciente alvo de discrimi nação social tende a isolarse e às vezes demovêlo desta posição tornase um desafio ao médico que o trata sendo necessário estimulálo para que volte a participar socialmente seja no trabalho na família nas relações afetivas que mantinha antes Citaremos como exemplo o caso de um jovem que foi infectado através de transfusão de sangue durante uma cirurgia de urgência devido a um aci dente de motocicleta Queixavase muito de ter sido abandonado pelos amigos e ao mesmo tempo man tinhase isolado Repetia quase compulsivamente a forma como havia adquirido a infecção Não suporta va a ideia de por equívoco ser incluído no grupo de pacientes homossexuais era casado e tinha um filho Neste caso podemos perceber tanto o sofrimento do paciente por sentirse discriminado por amigos pa rentes etc como também pelo preconceito que ele próprio demonstrava em relação aos homossexuais Esse paciente foi muito beneficiado pela psicoterapia conseguindo retornar a suas atividades anteriores mais ajustado com sua realidade Quanto a nós profissionais de sáude devemos estar suficientemente preparados para lidar com os pacientes e seus familiares da forma mais acolhedora possível independentemente do grupo de risco a que pertencem Devemos tentar superar possíveis dificul dades para nos aproximarmos dos pacientes de difícil 32 AIDS ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS Amaury Queiroz Agradeço pela inestimável participação dos membros da equipe não só através do trabalho assistencial como também pelo diálogo enriquecedor expresso meus agradecimentos a Alécia Navarro de Souza psicanalista Professora da Disciplina de Psicologia Médica e atual Coordenadora da equipe a Maurício de Assis Tostes psiquiatra do Instituto de Psiquiatria da UFRJ lotado em nosso Serviço e às psicólogas Gisela Cardoso Câmara e Marlene Zornitta ambas lotadas no Centro de Referência em AIDS do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da UFRJ Psicossomaticaindd 423 Psicossomaticaindd 423 05012010 121220 05012010 121220 424 Mello Filho Burd e cols manejo e tentar elaborar possíveis resíduos precon ceituosos em nós mesmos O fato é que estamos diante de uma grave epi demia não tanto pelo número de pessoas que até agora morreram de AIDS mas porque temese pelo futuro quando se examinam os dados de expansão da doença Através de informações da Divisão de Doen ças Sexualmente Transmissíveis DSTAIDS do Mi nistério da Saúde podemos verificar na Tabela 321 o número de casos de AIDS segundo categoria de transmissão e sexo entre 1980 e 1990 ALGUMAS REPERCUSSÕES SOCIOPOLÍTICAS A epidemia de AIDS no Brasil e no mundo tem suscitado uma grande mobilização não só dos go vernantes e profissionais de saúde mas também da população em geral e principalmente de lideranças que emergiram sobretudo dos chamados grupos de risco e tenderam a se instituir em organizações não governamentais de solidariedade e defesa dos direi tos de pacientes HIV positivos ou com AIDS Essas organizações não governamentais constituem sem dúvida um fato sociopolítico novo da mais alta im portância Algumas delas além de apoiar ou criticar as campanhas de esclarecimento público também exercem fiscalização no trabalho hospitalar acres centando um fato inusitado ao exercício da medicina contemporânea No caso do Brasil devido à grande discrimina ção que se seguiu à divulgação do problema AIDS muitos hospitais tanto da rede pública como parti cular começaram a recusar intemação a estes pacien tes O Governo Federal viuse obrigado a intervir e começou a incentivar e promover convênios interins titucionais através do Ministério da Saúde INAMPS Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde Hospi tais Universitários e Centros de Pesquisa principal mente no eixo RioSão Paulo Foram criados Centros de Referência Nacional em AIDS com os objetivos de assistência pesquisa e treinamento de profissionais de saúde Em julho de 1987 o Hospital Universitário Cle mentino Fraga Filho HUCFF passou a constituir um desses Centros de Referência no Rio de Janeiro A par tir de então aumentou significativamente o número de internações e também a procura de atendimento ambulatorial pois o hospital passou a contar com 15 leitos para internações e com uma equipe especializa da ligada ao Serviço de Doenças Infecciosas e Parasi tárias para viabilizar o programa SIDAAIDS Inicialmente houve uma tendência a psiquiatri zar o atendimento a esses pacientes Por acreditarse serem muito complicados emocionalmente deveriam ser inevitavelmente assistidos por psicólogos psi quiatras ou psicanalistas A correlação sexualidademorte também condu zia à ideia de que a abordagem de problemas sexuais os primeiros casos referiamse a homossexuais pertencia à esfera dos profissionais de saúde mental Entretanto o que ficava evidente era a dificuldade dos médicos de lidar na relação médicopaciente com o tema sexualidade tão natural e de interesse geral mas repleto de tabus Sem dúvida as reper cussões poderiam abalar seriamente as conquistas de liberdade sexual adquirida nas últimas décadas e poderiam dar margem a que grupos reacionários viessem a utilizar aspectos relacionados com as for mas de contágio em discursos moralizadores e nor matizadores do comportamento sexual Felizmente os médicos em geral e as autorida des sanitárias não se deixaram envolver por essa po sição impregnada de preconceitos embora possamos observar ainda hoje a existência de uma certa timidez no lidar com o desafiante problema da produção de material publicitário para campanhas públicas volta das à prevenção da doença O fato é que nem mesmo as organizações religiosas sectárias puderam perma necer omissas diante dessa grave epidemia PARTIÇIPAÇÃO DOS PROFISSIONAIS DA SAÚDE MENTAL Os trabalhos de psicanálise aplicada à medici na entre nós são desenvolvidos por profissionais de TABELA 321 Número acumulado e percentual de casos de AIDS Segundo categoria de exposição e sexo Brasil 19801990 Categoria de exposição condição do Masculino Feminino Razão Total paciente Nº Nº MF Nº Sexual 7752 69 353 30 221 8105 65 Homossexual 4583 41 4583 4583 37 Bissexual 2167 19 2167 2167 17 Heterossexual 1002 9 353 30 31 1355 11 Sangdinea 2272 20 654 55 31 2926 24 Usuário de 1580 14 395 33 41 1975 16 drogas EV Hemofílico 313 3 313 313 3 Receptor de 379 3 259 22 11 638 5 Sangue comp Perinatal 109 9 102 9 11 211 2 Detinidaoutra 1089 10 74 6 151 1163 9 Total 11222 90 1183 10 91 12405 100 Psicossomaticaindd 424 Psicossomaticaindd 424 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 425 saúde mental principalmente psicanalistas que dedi cam parte de sua jornada exercendo atividades em hospitais universitários ou hospitais da rede assisten cial oficial Ao participar da equipe de saúde ou do ensino médico introduzem noções advindas tanto da teoria como da prática psicanalítica e psiquiátri ca enriquecendo conceitos diagnósticos ao valorizar aspectos emocionais envolvidos no processo clínico bem como ajudando na compreensão de problemas relativos à dinâmica da relação médicopaciente A contribuição dos profissionais de saúde men tal referese à tarefa assistencial mas relacionase também com o treinamento de pessoal partindose do princípio de que são profissionais suficientemente preparados para lidar com os mais dolorosos dramas íntimos do ser humano A opção feita em nosso Serviço foi a de partici par ativamente da equipe de saúde Por isso sentimos a necessidade de nos organizar para fazer face àquela demanda A equipe foi gradativamente aumentando e na medida em que se ampliava nossa experiência ficava evidente também a necessidade de sistematizar nosso trabalho para que ele se tomasse mais eficaz SISTEMATIZAÇÃO ASSISTENCIAL Atendimento individual Fazemos o atendimento individual obedecendo aos seguintes princípios gerais 1 quando solicitado por um médico da equipe clíni ca que conclui por esta necessidade 2 quando o paciente expressa o desejo de ser aten dido por um profissional da equipe de saúde mental 3 nas entrevistas sempre asseguramos privacidade e sigilo para possibilitar que o paciente se per mita falar particularidades de sua vida e de seus problemas 4 o terapeuta terá que lidar com os valores e o esti lo de vida que o paciente escolheu para si próprio devendo manterse numa posição de neutralida de sem introduzir qualquer julgamento de valor O objetivo básico é a realização de terapia de apoio visando restabelecer o estado de ânimo do pa ciente seu vínculo com a equipe de saúde e a espe rança quanto às suas possibilidades terapêuticas A terapia focal é uma consequência natural e se impõe principalmente quando os pacientes estão vivendo situações conflituais agudas relacionadas com dife rentes momentos evolutivos da doença Por exemplo por ocasião da revelação da soropositividade do sur gimento dos primeiros sintomas de AIDS ou em mo mentos em que se torna necessária internação hospi talar devido ao agravamento da doença Atendimento à família A terapia individual pode mostrarse insuficien te e exigir ajuda à família sendo em alguns casos de fundamental importância Recentemente tivemos um paciente que obteve alta e a família ficou omissa Era filho de um casal separado há muitos anos Nenhuma das partes queria assumir a responsabilidade do paciente até que o as sunto foi levado à reunião da equipe por iniciativa da assistente social que estava orientando o caso Dias após a obtenção da alta ele simulou uma paralisia na perna direita e dizia têla adquirido após uma in jeção intramuscular administrada durante a interna ção hospitalar Tentava com essa atitude permanecer internado evidentemente devido a grandes conflitos familiares Dessa reunião saíram sugestões que sem dúvida ajudaram em muito a solução do caso Cabe na entrevista com a família dar apoio psicológico como também tirar dúvidas a respeito da doença dar esclarecimentos quanto ao contágio e reforçar a importância de sua participação ativa na aceitação da continuidade do tratamento Frequen temente as famílias sentemse inseguras quando os pacientes recebem alta não só porque exigirão mui to em cuidados especiais e grande dedicação como também terem dúvidas sobre se conseguirão vaga para uma nova internação hospitalar em períodos de agravamento O Serviço Social desenvolve um importante tra balho junto às famílias possibilitando que muitas de las antes refratárias terminem se comprometendo a cuidar de seus pacientes Este atendimento estendese também aos parceiros ou amigos dos pacientes não só através de entrevistas individuais como também de reuniões grupais que são realizadas no hospital sob coordenação das assistentes sociais O TRABALHO COM A EQUIPE DE SAÚDE Interconsulta Acontece em geral como uma sequência natural às respostas aos pedidos de parecer Sempre procu ramos discutir com os membros da equipe as possí veis dificuldades que estão em jogo determinando alguma crise no atendimento É uma abordagem de safiadora para os profissionais envolvidos neste tra balho de vez que geralmente rompemse os limites Psicossomaticaindd 425 Psicossomaticaindd 425 05012010 121220 05012010 121220 426 Mello Filho Burd e cols assistenciais formais ampliandose para discussões de problemas que tanto podem pertencer à área ins titucional como também decorrentes de dificuldades da relação equipepaciente Com relativa frequência ocorrem discussões psicodinâmicas com um ou mais membros da equipe com a finalidade de se compreender as causas das tensões geradas na assistência sobretudo a pacientes considerados difíceis Uma reflexão mais profunda pode favorecer mudanças de atitudes que sem uma razoável elaboração tendem a permanecer estereoti padas na relação equipe de saúdepaciente Grupo de reflexão Quando da implantação do Centro de Referên cia propusemos à equipe de saúde reuniões sema nais abertas a médicos enfermeiros auxiliares de enfermagem assistentes sociais nutricionistas e den tistas visando ampliar a comunicação entre os vários profissionais Este grupo inicialmente programado para durar seis meses permaneceu funcionando por um ano e mostrouse como uma experiência muito enriquecedora para todos os que dela participaram Este grupo que foi denominado GREM Grupo de Reflexão da Equipe Multiprofissional reuniase se manalmente numa sala anexa à enfermaria com dura ção de uma hora e meia Os problemas trazidos pelos componentes do grupo eram discutidos com a máxima franqueza proporcionando um bom nível de troca de opiniões entre os vários membros da própria equipe em relação a pacientes cujo código de valores e com portamento eram novidade para grande parte da equi pe que assim familiarizavase e aprendia a respeito de drogas pacientes homossexuais bissexuais travestis e usuários de drogas muitos dos quais organizamse em verdadeiras subculturas no meio em que vivem Os profissionais que trabalham com estes pacientes não podem desconhecer a realidade do underground Em nossa opinião essas reuniões possibilitaram que o profissional principalmente aqueles menos ex perientes conseguisse adequar sua conduta frente a situações tão difíceis e atingir mais rapidamente o ponto de equilíbrio necessário a uma boa relação de saúde paciente Como resultado dessas reuniões observamos uma melhor compreensão dos casos em estudo dan do oportunidade à equipe de ter uma visão mais glo bal do paciente também do ponto de vista psicológi co e social As frustrações frequentes no lidar com uma alta incidência de morte fazemse acompanhar muitas vezes de desânimo e sentimentos de impotência Tra tar de pacientes com uma doença considerada até o presente momento incurável conflita com a postura de alguns profissionais que são movidos pelo desejo de sempre obter a cura completa A elaboração para ultrapassar esse principio e poder sentirse útil e va lorizar seu trabalho ainda que somente diminuindo o sofrimento dos pacientes é algo que demanda uma boa dose de renúncia da onipotência que a miúde nu trimos como parte de nossa idealização profissional Parece que as reflexões surgidas no grupo a respeito dos limites a que estavam submetidos ajudavam bas tante o encaminhamento dessa difícil tarefa É possível que ao darmos conta de nossos limi tes e de tantas mortes a nosso redor tivéssemos que lidar inevitavelmente com ideias relacionadas com o limite máximo que é representado pela nossa pró pria morte Entretanto esta e outras elucubrações pa recem estar limitadas por defesas intelectuais Freud 1974 em seu trabalho Reflexões para os tempos de guerra e morte afirma Qual perguntamos é a atitude de nosso inconscien te para com os problemas da morte A resposta deve ser quase exatamente a mesma do homem primevo Nesse ponto como em muitos outros o homem das épocas préhistóricas sobrevive inalterado em nosso in consciente Nosso inconsciente portanto não crê em sua própria morte comportase como se fosse imortal O que chamamos de nosso inconsciente as camadas mais profundas de nossas mentes compostas de impul sos instintuais desconhece o que é negação nele as contradições coincidem Por esse motivo não conhece sua própria morte pois a isso só podemos dar um con teúdo negativo Assim não existe nada de instintual em nós que reaja a uma crença na morte Talvez inclusive isso seja o segredo do heroísmo Conviver tão proximamente e cotidianamen te com a realidade da morte obriga os membros da equipe de saúde a mobilizar as defesas protetoras do ego mas com certa frequência sentemse ansiosos e tristes denunciando momentos críticos em relação ao próprio trabalho Para termos ideia da extensão do problema enfrentado pela equipe clínica basta citar alguns dados nos 15 leitos do Centro de Referência do HUCFF UFRJ de 15 de julho de 1987 até 30 de setembro de 1988 foram internados 226 pacientes e morreram durante este mesmo período 146 Se in cluirmos os pacientes desde 1985 teremos o total de 329 internações com 206 óbitos Embora o grupo de reflexão não pretendesse ser terapêutico ao estimular a coesão e a solidarieda de grupal na verdade diminuía o nível de ansiedade e promovia a saúde mental da própria equipe Por outro lado possibilitava a seus membros o desenvol vimento das potencialidades de cada um e o aper feiçoamento da capacidade de comunicação com os pacientes e seus familiares Psicossomaticaindd 426 Psicossomaticaindd 426 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 427 DEMANDA JUNTO AOS PROFISSIONAIS DE SAÚDE MENTAL Através de um estudo estatístico realizado en tre julho de 1987 data do início do Programa SIDA AIDS e janeiro de 1989 por Gisela Cardoso Câmara Maurício Tostes e Marlene Zomitta componentes de nossa equipe foram levantados os dados que mencio naremos a seguir dos 439 pacientes registrados no período 124 deles correspondendo a 28 do total foram atendidos pelos profissionais de saúde mental As solicitações mais frequentes foram relacionadas como ansiedade do paciente ajuda do médico na comunicação do diagnóstico ao paciente realização de diagnóstico diferencial entre quadros clínicos psi quiátricos reacionais e psicoorgânicos Atualmente observamos que a solicitação de ajuda do clínico para a comunicação do diagnóstico ao paciente bastante frequente no início do Progra ma SIDAAIDS hoje praticamente inexiste Parece que essa mudança está diretamente relacionada com uma maior experiência e amadurecimento da equipe no lidar com situações emocionalmente delicadas e angustiantes A consulta inicial é de fundamental importân cia para o estabelecimento do clima de confiança necessário para que o paciente possa receber o diag nóstico e a orientação médica O diálogo sincero e acolhedor deverá ser a base para um bom relacio namento médicopaciente Estabelecido um diálogo adequado o clínico poderá trabalhar os temores do paciente e darlhe alguma esperança Cada vez fica mais claro para a nossa equipe que o médico deve colocar o paciente a par dos resultados dos examas e falar sinceramente dos recursos de que dispõe para ajudálo Essa conduta contrasta com a tendência cultural predominante entre nós e defendida por muitos médicos que tendem a esconder o diagnósti co de doenças consideradas incuráveis apoiandose na suposição de que agindo assim poderiam dimi nuir o sofrimento do paciente o qual a priori não estaria preparado para receber tal notícia Entretan to no caso da AIDS essa conduta pode trazer gra ves prejuízos ao paciente à comunidade e à relação médicopaciente por impedir o cuidadoso trabalho para obter do paciente o compromisso de contribuir para a não disseminação da doença Porém o mo mento adequado para a comunicação do diagnósti co deve ser cuidadosamente avaliado pelo médico assistente O diagnóstico de sorologia HIV positiva ou de AIDS coloca uma incerteza quanto ao futuro do pa ciente e mobiliza com frequência bastante ansiedade No caso da AIDS a ansiedade ou angústia provém de um perigo real O paciente ao ter conhecimento de seu diagnóstico com frequencia utiliza intensamente mecanismos de defesa protetores do ego em espe cial o de negação Entretanto sempre há um regis tro ainda que inconsciente da situação que enfrenta Quando falamos em ansiedade ou angústia estamos considerando desde sintomas de opressão torácica precordial até manifestações de inquietação moto ra e frequentemente insônia Pode manifestarse tam bém através de sentimento definidos como medo revolta agressividade impaciência etc Os acréscimos da ansiedade podem deverse não só a conflitos e ameaças sediadas no mundo interno como também a dificuldades com o mundo externo tendo como base por exemplo perda de parceiros e amigos perda de trabalho abandono da família ameaça de transfiguração física e temor à morte Leon Grinberg 1978 em seu livro Culpa y Depresión faz referência ao luto pelas partes perdi das do self no qual o indivíduo deve enfrentar como verdades dolorosas e angustiantes o problema do en velhecimento e da morte Toma como paradigma o que ocorre na denominada crise da meia idade O luto pelas partes perdidas do self que se estende ao corpo dá lugar a diferentes atitudes que configuram o processo de elaboração A base das fantasias estão conectadas com crises da identidade e com o profun do temor a mudanças No caso da AIDS isso ocorre de forma catastrófica principalmente em pacientes com sérios transtornos narcísicos da personalidade A tentativa de elaboração é um processo doloroso e frequentemente carregado de culpas persecutórias O agravamento da doença e as repercussões físicas como o emagrecimento palidez da pele queda dos cabelos lesões dermatológicas etc que são bastante transfigurantes podem vir acompanhadas de trans tornos da identidade e sentimentos de despersona lização NOSOGRAFIA PSICOLÓGICA PSIQUIÁTRICA Além do quadro clínico de ansiedade aguda os acréscimos de ansiedade ou angústia podem de terminar a eclosão de reações psicológicas eou psi quiátricas que na Classificação Internacional de Doen ças CID9 estão catalogadas no tópico 308 como Reação Aguda ao Estresse e no 309 como Rea ção de Ajustamento As mais comuns em relação à AIDS são as seguintes reação depressiva breve ou prolongada reação com distúrbios predominantes de conduta e reação com distúrbios mistos das emo ções e da conduta As que relacionamos a seguir fo ram assim denominadas para dar ênfase aos sintomas predominantes observados quando do atendimento aos pacientes em crise Psicossomaticaindd 427 Psicossomaticaindd 427 05012010 121220 05012010 121220 428 Mello Filho Burd e cols Reações depressivas As mais frequentes são as reações depressivas O paciente apresenta intensa tristeza autoestima baixa pessimismo vivência de perda e abandono frequen temente sentindose sem qualquer esperança É neste momento que a relação clínicopaciente será da maior importância pois é o clínico que está em condições de desenvolverlhe algumas esperan ças e procurar aliar o paciente ao tratamento Esses pacientes muitas vezes apresentam intensos senti mentos de culpa autorecriminação desânimo e in sônia Nessas situações são mais frequentes as ideias suicidas passando a ser necessária a intervenção de um profissional de saúde mental para atendimento especializado As ideias suicidas tendem a desapare cer quando é assegurado aos pacientes apoio social e atendimento médico adequado Frequentemente ao sentiremse aceitos e compreendidos aliamse ao plano de tratamento proposto e passam a colaborar com a equipe médica Entretanto em alguns casos mais graves tal situação tende a permanecer exigin do dos membros da equipe grande dedicação Mesmo assim alguns suicídios são inevitáveis As reações de pressivas devem ser cuidadosamente acompanhadas em suas manifestações Quando além da apatia que comumente faz parte da evolução da AIDS constata mos distúrbios de memórias de fixação diminuição da concentração da atenção e de outras funções cognitivas estamos diante do quadro clínico denomi nado complexo demencial da AIDS que representa o acometimento direto do sistema nervoso central pelo HIV Existe na literatura registro de casos de AIDS cujo quadro clínico iniciouse com sintomas demenciais Reações paranoides Alguns pacientes de AIDS exteriorizam intensos sentimentos persecutórios sentindose alvo de mal dições azares castigos etc e justificando a pergun ta que comumente fazem a si próprios Por que eu Por que isso aconteceu comigo Um paciente após receber telefonema de um exparceiro sexual que lhe revelou estar com AIDS fi cou muito temeroso e ameaçado com aquela notícia Alguns dias mais tarde resolveu fazer o teste para pesquisa de anticorpos HIV pois estava muito ator mentado pela dúvida Quando soube que o resultado fora positivo e após sua confirmação apresentou cri se de ansiedade aguda seguida de insônia deambu lação pelas ruas e procura de vários amigos diante dos quais sentiase confuso e não conseguia falar de seus temores Posteriormente foi tomado por inten sos sentimentos persccutórios achando que queriam matálo Foi internado num hospital de emergência psiquiátrica da rede pública mas ao saberem que era HIV positivo o colocaram em isolamento pos sivelmente dificultanto ainda mais sua atuação Ao ser transferido para nosso hospital estava medica do com neurolépticos e outros psicofármacos Neste novo ambiente mantidas as mesmas doses dos me dicamentos pelo acolhimento que recebeu sentiuse encorajado a revelar seus problemas Sua reação psi cológica paranoide cedeu em poucos dias passando a tratarse ambulatoriamente após a alta Reações maniformes Estes pacientes tendem a negar a realidade e podem adotar uma atitude arrogante ou de desprezo e indiferença com relação à sua enfermidade e aos cuidados médicos Estas reações podem ser trabalha das dentro da própria relação clínicopaciente Entre tanto com certa frequência somente a intervenção psiquiátrica consegue reverter esse quadro Reações histeriformes Observamos não só manifestações dissociativas e conversivas como também raras vezes estados cre pusculares sendo também necessária a intervenção do psiquiatra Devemos estar atentos para a possibilidade dos sintomas mentais virem acompanhados de síndromes neurológicas apontando para quadros clínicos psico orgânicos ou organocerebrais que ocorrem em cerca de 30 dos pacientes e são relacionados com encefa lopatias lesões focais ou infecções oportunistas tais como meningite criptocócica toxoplasmose cerebral Com o desenvolvimento de exames complementares cada vez mais sofisticados e resultados de necrop sias admitese que a incidência de quadros organo cerebrais tendem a aumentar nas estatísticas Esses quadros expressamse por sintomas confusooníricos delirium havendo comprometimento do nível de consciência Outras vezes parecem quadros psicóti cos atípicos em geral de breve duração Embora exi jam a intervenção psiquiátrica a melhora sintomato lógica advém com a resolução das lesões situadas no sistema nervoso central Pelo que foi exposto podemos verificar a impor tância do diagnóstico diferencial entre manifestações emocionais psiquiátricas e organocerebrais para a es colha adequada da conduta a ser seguida Por outro lado não podemos minimizar a importância da histó ria pregressa pois cada paciente possui sua particula ridade em termos de personalidade e endogenicidade Psicossomaticaindd 428 Psicossomaticaindd 428 05012010 121220 05012010 121220 Psicossomática hoje 429 psiquiátrica antes de ser atingido pela AIDS Devemos assinalar que em qualquer grupamento humano po demos encontrar pessoas psicopatas tanto entre os toxicômanos e homossexuaisbissexuais como na po pulação em geral e em qualquer classe social O termo psicopata não se refere ao psicótico ao louco e sim ao indivíduo com distúrbio de caráter personalidade psi copática Essas pessoas por não desenvolverem uma consciência ética adequada nem um superego sufi ciente tendem a atitudes delinquentes e antissociais Ao não respeitar o outro nem desenvolver sentimentos de culpa frequentemente não se comprometem com as orientações médicopreventivas podendo provocar problemas muito sérios do ponto de vista epidemioló gico Às vezes surgem situações que exigem delicados debates em torno dos limites dos direitos e deveres da pessoa infectada pelo HIV Em qualquer fase da evolução e do encami nhamento do tratamento poderá ser necessário o uso de ansiolíticos neurolépticos hipnóticos anti depressivos etc Cabe ao clínico liderar a assistência aos pacientes e mobilizar os recursos disponíveis na instituição conforme as necessidades forem surgin do Os clínicos frequentemente estão em melhores condições para dar esperança aos pacientes A cada momento descobrese um novo medicamento e a esperança deve ser mantida até mesmo por ser uma possibilidade real embora não a curto prazo Não podemos deixar de assinalar que do ponto de vista da história da Medicina nunca uma doença nova e ameaçadora como é a AIDS foi tão rapidamen te identificada e descrita em detalhes em seus aspec tos etiológicos fisiopatológicos e formas de contágio As esperanças continuam voltadas para os pesquisa dores que lutam por conseguir recursos imunológi cos quimioterápicos antibióticos ou progressos no campo da engenharia genética que possam deter o avanço da doença O TRABALHO COM O PACIENTE TERMINAL Na maioria das vezes o acompanhamento se gue sem que o paciente sinta necessidade de falar ex plicitamente da morte Sentese confortado quando um profissional da equipe de saúde tenta restabele cer seu estado de ânimo dandolhe apoio principal mente quando observa melhora de algum sintoma incômodo ou ameaçador Outros falam abertamente da morte dos seus temores quando estão sofrendo muito pedem que a morte aconteça rapidamente O importante é que o dialogo seja estabelecido e man tido Frente à experiência da proximidade da morte muitas vezes os pacientes contam com os profissio nais de saúde Por vezes a comunicação não se dá de forma verbal mas sim extraverbal de maneira que gestos e olhares são trocados quando inclusive o paciente busca saber se o profissional é ou não capaz de lidar com os sentimentos de desespero horror da morte revolta etc que eventualmente inundam seu mundo interno São muito ávidos mas também des confiados e percebem quando alguém está com medo de se aproximar Os profissionais que trabalham mais próximos desses pacientes sabem a importância de ser rompida a barreira do medo Às vezes um simples contato físico como por exemplo um aperto de mão pode ser muito significativo principalmente quando há sinceridade naquele gesto Alguns deles sentemse muito humilhados por estarem numa situação de extrema dependência e Comumente regridem para poder suportar a realida de na qual se encontram Quando as esperanças diminuem é comum sur gir a fé com muita intensidade buscando conforto em religiões e seitas Isso é expressado não só pelo paciente como também pela família que frequente mente recorre a curandeiros quando observa que a Medicina tem limites Com relação à religião não há qualquer interfe rência da equipe desde que não prejudique o trata mento instituído ou coloque o paciente em risco Em nosso hospital numa reunião com representantes de várias religiões e seitas com a colaboração do ARA Apoio Religioso Frente à AIDS organização não governamental ecumênica que presta assistência re ligiosa e apoio aos doentes ficou estabelecido que o paciente só seria visitado por um sacerdote ou agente religioso de sua escolha quando ele solicitasse não sendo permitida a entrada para atos de proselitismo Antes desse acordo alguns religiosos na pressupo sição de que levariam alívio e conforto na verdade invadiam a privacidade e a liberdade de escolha de les às vezes ocasionando verdadeiras crises de exas peração É comum que no estágio terminal os pacientes entrem em estado de coma para alívio deles pró prios Os doentes e seus familiares enfrentam grandes dificuldades na fase terminal da doença Uma das principais tarefas da equipe de saúde é compartilhar esses momentos auxiliandoos a lidar com situações de grande sofrimento da melhor forma possível Esses pacientes devem preferentemente estar ligados a uma instituição mas o fato é que alguns procuram ajuda psicoterápica particular sobretudo devido a estarem HIV positivos sem terem desenvol vido ainda sintomas de AIDS O psicoterapeuta deve posicionar com clareza de que forma poderá contri buir com o seu trabalho e só deve comprometerse Psicossomaticaindd 429 Psicossomaticaindd 429 05012010 121220 05012010 121220 430 Mello Filho Burd e cols se estiver disposto a acompanhálos em possíveis cir cunstâncias especiais Alguns colegas que estiveram ou estão acompa nhando doentes com AIDS foram obrigados a aban donar os habituais preceitos técnicos e de setting para atendêlos em situações de crise em sucessivas internações hospitalares ou em suas residências quando não podiam mais se locomover Assim o compromisso do psicoterapeuta deve incluir a ideia de acompanhálos até a morte não só pelo dever éti co como também humanitário Finalmente cumpre dizer que a AIDS não é apenas um problema médico e sim desafio à socie dade em geral Todos devem estar informados e com prometidos não só com a prevenção como também com a aceitação da pessoa atingida pela doença Isso passa por um trabalho de alargamento social junto às famílias às empresas às escolas às organizações religiosas etc devendo abranger todas as camadas sociais Os pacientes rejeitados podem representar potencialmente uma ameaça à própria sociedade pois são os que menos se comprometem com o dever de evitar a propagação da infecção REFERÊNCIAS Cardoso G et al Request for intervention of mental health workers in AIDS Fith Internacional Conference on AIDS Montreal 1989 Costa L P M et al AIDS grupoterapia com pacientes HIV posi tivos Gracliva p 59 agoset 1988 Costa L M Mello Filho J Assistência psicológica ao paciente com AIDS Inf Psiquiát v 6 n 27 p 41 1987 Dickens B M Legal rights and duties in the AIDS epidemic Science v 239 n 5 p 580585 Feb 1988 Fenton T W AIDSrelated psychiatric disordes Br J Psychiatry n 151 p 579588 1987 Fineberg H V Education to preverit AIDS prospects and obsta cles Science v 239 n 5 p 592596 Feb 1988 Freud S Sobre o narcisismo uma introdução 1914 Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud v XlV Rio de Janeiro Imago 1974 Reflexões para os tempos de guerra e de morte 1915 Luto e melancolia 1917 v XIX Grinberg L Culpa y depresión Buenos Aires Paidós 1978 Gerbert B Maquire B Badner V et al Why fear persistsz heal th care professionals and AIDS JAMA v 260 n 23 Dec 1988 Galvão J A Lima D B Mello Filho J et al Aspectos psicosso ciais do paciente com AIDS JBM v 59 n 3 1990 Lomax G L Sandlerl Psychotherapy and eonsultation with persons with AIDS Psych Annals v 18 n 4 p 253259 Apr 1988 Maj M Psychiatric aspects of HIV1 infection and AIDS Psychol Medicine v 20 p 547563 1990 Mello Filho J Comentário ao trabalho The social psychology of AIDS Boletim Científico da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro n 9 1989 Experiências com pacientes de AIDS num hospital de en sino Boletim do Departamento de Pesquisas da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro Set 1989 Navia B A Jordari B D Price R W The AIDS dementia com plex l clinical feactures Annals of Neurology v 19 n 6 June 1986 Price R W The required immune deficiency Syndrome dementia complex as the presentirig or sole manifestation of hum an immunodeficiency virus infection Archives of Neurology n 44 p 6569 1987 Parker R Adquired immunodefiency syndrome in urban Brazil Med Antrop Ouart v 1 n 2 June 1987 Perry S Jacobseri P Neuropsychiatric manifestation of AIDS Spectmm disorders Hosp Comm Psychiatry v 37 n 2 Feb 1986 Piot P Plummer F A Mhalu F S et al AIDS an international perspective Science v 239 n 5 p 573579 Feb 1988 Price R W et al The hrain in AIDS central nervous system HIV 1 infection and AIDS demeritia complex Science v 239 n 5 p 586592 Feb 1988 Queiroz A O Mello Filho J O médico diante do doente crônico e da morte JBM p 1521 ago 1976 Souza A R N A reflexão do saber sobre a impotência SIDA AIDS uma experiência em psicologia médica Dissertação de Mes traclo lnstituto de Psiquiatria UFRJ 1988 Tostes M A Psychiatric emergeucies in HIV disease and AIDS Sixth International Conference ou AIDS San Francisco 1990 Aspectos psiquiátricos da infecção pelo vírus da imunode ficiência humana do tipo I Dissertaçao de Mestrado lristituto de Psiquiatria UFRJ 1990 World Health Organization Report of the consultation on the neu ropsychiatric aspects of HIV infection Geneva March 1988 Wolcott D L Psychosocial aspects of adquired immune defi ciency Syndrome and the primary care physician Annals of Aller gy v 57 Aug 1986 Zaidhaft S Morte e formação médica Rio de Janeiro Francisco Alves 1990 Psicossomaticaindd 430 Psicossomaticaindd 430 05012010 121220 05012010 121220 Nossa proposta neste capítulo é descrever a ex periência da equipe de saúde mental que presta assis tência aos pacientes com HIVAIDS em acompanha mento clínico no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho HUCFF da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ que teve início em 1985 O capí tulo foi revisado em vários aspectos da obra dando destaque às modificações que ocorreram com a intro dução da terapia antirretroviral altamente potente Desde o início da epidemia da AIDS as manifes tações psicológicas e psiquiátricas relacionadas à in fecção pelo HIV têm sido objeto de enorme interesse para os profissionais de saúde mental Esse interesse surgiu em função de duas razões predominantes por um lado o impacto psicológico do diagnóstico e da evolução da doença e por outro o tropismo do vírus pelo sistema nervoso central Malbergier 1999 Des te modo psicólogos e psiquiatras se viram envolvidos na assistência aos pacientes com HIVAIDS desde que os primeiros casos começaram a ser atendidos nos serviços de saúde no Brasil A assistência em saú de mental aos pacientes infectados pelo HIV sofreu uma enorme transformação ao longo destes mais de 20 anos de epidemia Paralelamente à introdução da terapia antirretroviral altamente potente HAART Highly Active Antiretroviral Therapy a epidemia de AIDS foi sofrendo a partir da década de 1990 uma forte mudança em seu perfil epidemiológico no Bra sil Passamos a observar uma heterossexualização da doença com uma consequente feminilização da mes ma uma interiorização da AIDS para regiões do país antes não atingidas e um avanço da epidemia entre indivíduos de baixa renda Brasil Ministério da Saú de 2001 A introdução da terapia antirretroviral al tamente potente disponibilizada no Brasil a partir de 1997 na rede pública de saúde Lei Federal no 9313 de 1996 tornou possível a interrupção da progres são da infecção pelo HIV a recuperação da imunidade e a reversão da imunossupressão Palella 1998 com importantes repercussões na área de saúde mental que serão analisadas neste artigo O COMEÇO DA ASSISTÊNCIA Antes mesmo da implantação do Programa de AIDS do HUCFFUFRJ o Serviço de Psicologia Mé dica e Saúde Mental começou a ser solicitado para prestar assistência psicológicapsiquiátrica aos pa cientes com AIDS quando estes eram internados Na quela época 1985 ainda pouco familiarizados com todas as questões envolvidas no atendimento relacio nado ao paciente com essa doença ficávamos bastan te perplexos com a grande variabilidade de sintomas que observávamos na esfera mental assim como as diferentes repercussões que a AIDS trazia no nível so cial familiar ético e epidemiológico Queiroz et al 1991 Dentro da equipe de saúde eram inúmeras as situações novas e de alguma maneira desconcertan tes como lidar com grupos marginalizados e temas relacionados diretamente à morte à sexualidade e ao abuso de drogas Quando o Programa de AIDS do HUCFFUFRJ estava sendo implantado em 1987 foi solicitado por parte do Serviço de Doenças Infecciosas e Parasitá rias que profissionais da área de saúde mental fizes sem parte da equipe que prestaria assistência direta a esses pacientes A inclusão destes profissionais se fez necessária pela complexidade de situações que a doen ça suscitava A doença rompia com o modelo tra dicional de cura até então predominante na área de doenças infecciosas mobilizando intensamente não só as pessoas diretamente afetadas como os próprios profissionais de saúde em termos dos limites de sua 33 ASPECTOS PSICOSSOMÁTICOS E SOCIAIS DA AIDS 20 ANOS DE EXPERIÊNCIA Amaury Queiroz Gisela Cardoso Marlene Zornitta Maurício Tostes Psicossomaticaindd 431 Psicossomaticaindd 431 05012010 121220 05012010 121220 432 Mello Filho Burd e cols atuação clínica Na medida em que não havia uma cura para AIDS nem a perspectiva de um tratamen to eficaz os profissionais das áreas psicossociais se viam muito mais solicitados para participar da rotina assistencial Os profissionais de saúde mental começaram a atuar em função das seguintes situações Alta morbidade e mortalidade da AIDS não havia um tratamento específico para a doença somente a possibilidade de tratamento das infecções opor tunistas eou outras enfermidades Grande frequência de quadros mentais reações de ajustamento quadros depressivos manifestações psicológicas diversas negação do diagnóstico actingout e quadros psicoorgânicos desencade ados por diferentes infecções do sistema nervoso central neurotoxoplasmose cerebral e meningite criptocócica por exemplo ou pela própria ação do vírus no cérebro quadros de demência pelo HIV Importante impacto social doença nova de evo lução relativamente rápida atingindo pessoas de uma faixa etária jovem principalmente dos grupos homossexuais ou de usuários de drogas endovenosas o que aumentava o grau de discri minação e estigmatização desses grupos mais for temente atingidos pela doença Forte impacto nos profissionais de saúde medo de contaminação intenso sofrimento físico e psíquico dos pacientes com HIV contato próxi mo e frequente com a morte e o morrer falta de formação e de experiência profissional em lidar com temas relacionados à vida sexual do pacien te Mello Filho 1992 Estas questões geravam fortes sentimentos ambivalentes relacionados com os pacientes com HIV já que faziam parte dos desafios impostos pela prática clínica mobi lizando intensamente vivências de impotência e onipotência eram os profissionais que haviam tido a coragem de enfrentar uma doença nova contagiosa e com alto estigma social Devido a estas peculiaridades dois psicólogos e um psiquiatra foram inseridos na equipe do Progra ma de AIDS desde sua criação Além disso durante os dois primeiros anos de atuação 19871989 dois psiquiatras com formação psicanalítica vinculados à disciplina de Psicologia Médica da Faculdade de Me dicina da UFRJ coordenaram um grupo de reflexão semanal com a equipe multidisciplinar O objetivo do grupo era o de promover a integração do trabalho entre os diferentes profissionais de saúde e ajudar no manejo das reações emocionais suscitadas na assis tência aos pacientes com HIVAIDS através da pos sibilidade de compartilhar as experiências as frus trações e as angústias Embora o grupo de reflexão não pretendesse ser terapêutico diminuía o nível de ansiedade e estimulava a coesão grupal Queiroz et al 1991 DEMANDAS MAIS FREQUENTES NA ERA PRÉHAART As mais frequentes demandas aos profissio nais de saúde mental por parte da equipe assisten cial durante os primeiros anos foram Cardoso et al 1989 1 Quadros ansiosos agudos diante da ameaça real de adoecer e de morrer principalmente na hora de receber o resultado do diagnóstico ou na 1ª in ternação devido a conflitos sediados no mundo interno do paciente sentimentos de culpa estig ma da doença e dificuldades e temores ligados ao mundo externo como por exemplo a rejeição da família ou a discriminação no trabalho 2 Dificuldades dos médicos em comunicar o diag nóstico ao paciente devido ao estigma associado à doença e a repercussão no paciente e em sua família 3 Auxílio no diagnóstico diferencial dos quadros mentais reações emocionais à doença eou ao tratamento quadros psicóticos orgânicos distúr bios cognitivos associados ao HIV e quadros de pressivos de variável intensidade entre outros É importante destacar que nos primeiros anos da epidemia de HIVAIDS havia uma diferença ex pressiva entre o paciente HIV positivo assintomático e o paciente já doente A fase assintomática se caracte rizava por um período de grande expectativa princi palmente em relação ao aparecimento dos primeiros sintomas Qualquer gripe febre ou emagrecimento frequentemente era interpretado pelo paciente como manifestação da doença Era extremamente difícil manter o mesmo nível de interesse pelas atividades ligadas ao trabalho às pessoas ao meio circundante de um modo geral porque grande parte da atenção estava logicamente voltada para si mesmo e para sua sobrevivência Na fase sintomática novas dificuldades surgiam pois a doença se tornava evidente para o pa ciente mudanças corporais restrições físicas como para os outros A vida social e profissional restringia se consideravelmente As manifestações depressivas se tornavam mais presentes sendo comum a apre sentação de intensa tristeza sentimentos de perda e de desvalorização desânimo e pessimismo Muitas vezes essas manifestações vinham acompanhadas de Psicossomaticaindd 432 Psicossomaticaindd 432 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 433 fortes sentimentos de culpa e de autorrecriminação Atendemos nessa época vários pacientes que haviam optado por morar no Rio de Janeiro pois sendo um grande centro urbano poderiam assumir sua opção sexual sem desconfiança da família Ao adoecerem as mesmas tomavam conhecimento da AIDS e da op ção homossexual sendo essa situação extremamente constrangedora para a maioria Era importante mos trar para o paciente que a manifestação da doença AIDS não representava um declínio inexorável e que podia haver uma estabilização da doença Contudo as perspectivas terapêuticas naquele momento eram bastante limitadas Os objetivos do trabalho psicoterápico se cen travam em 1 Tentar auxiliar os pacientes e suas famílias em lidar com a angústia diante de perspectivas tão limitadas de vida principalmente àquelas relacio nadas a um futuro incerto e a uma morte inexorá vel 2 Procurar apoiar o paciente e sua família a se reor ganizarem buscando alternativas viáveis dentro da nova condição de vida 3 Ajudar a manter a esperança e a capacidade de luta 4 Acompanhar o paciente e sua família nas fases mais avançadas da doença Era a intensidade das reações emocionais ou dos mecanismos psicológicos utilizados o que iria deter minar uma melhor avaliação e posterior acompanha mento psicológicopsiquiátrico do paciente Dentro de determinados parâmetros considerávamos abso lutamente previsível que o paciente pudesse apresen tar reações ansiosas eou depressivas viesse a negar a doença ou projetar a culpa ou a responsabilidade sobre outros Quando isso ocorria as situações nor malmente exigiam uma intervenção imediata As in tervenções psicológicas eou psiquiátricas variavam desde uma breve abordagem em um momento mais agudo como suporte ao trabalho do médico assisten te esclarecendo orientando reforçando o que era por ele falado até abordagens de natureza psico dinâmicas psicoterapias focais e de apoio sempre avaliando a pertinência ou não do uso de medicações psiquiátricas conforme o tipo e a gravidade dos sin tomas Observávamos nos pacientes com HIV uma in tensa vulnerabilidade emocional talvez pela ameaça constante do sofrimento físico e psíquico A intervenção do profissional de saúde mental obedecia aos seguintes princípios 1 quando solicitado por um membro da equipe as sistencial 2 quando o próprio paciente expressava o desejo de ser atendido O trabalho de interconsulta com a equipe assis tencial acontecia como um desdobramento natural às respostas aos pedidos de parecer A equipe de saúde mental procurava sempre discutir em conjunto os ca sos com os diferentes membros da equipe médicos residentes staff equipe de enfermagem e serviço so cial de forma a tentar identificar não só questões relacionadas ao paciente propriamente dito como também dificuldades da relação médicopaciente ou equipepaciente Queiroz et al 1991 Queiroz et al 1992 Ao longo dos primeiros anos de trabalho a equi pe passou por diferentes fases de maior e menor en tusiasmo Vários profissionais se queixavam do des gaste em lidar com situações tão frustrantes do ponto de vista terapêutico e da proximidade com os doentes terminais Relatos de que não estariam preparados para lidar com este tipo de situações eram bastan te frequentes Apesar do investimento do Programa Nacional de DSTAIDS do Ministério da Saúde em cursos de treinamento para médicos enfermeiros psicólogos assistentes sociais em campanhas de prevenção da doença em estímulo às parcerias com entidades da sociedade civil os profissionais de saú de do hospital se sentiam muitas vezes desestimula dos e impotentes Podemos dizer que muitos de nós vivemos um período de desgaste burnout devido principalmente à falta de perspectivas curativas e à precária qualidade de vida que observávamos nos pa cientes com HIVAIDS Como consequência alguns colegas mudaram de especialidade ou saíram do se tor e outros verbalizavam o desejo de mudar Em 1996 com o surgimento da terapia antirre troviral altamente potente HAART novas perspec tivas começaram a surgir no horizonte A partir de 1997 esse tratamento foi disponibilizado pela rede pública de saúde brasileira A INTRODUÇÃO DA TERAPIA ANTIRRETROVIRAL ALTAMENTE POTENTE NO BRASIL Com a introdução da terapia antirretroviral altamente potente uma importante diminuição na morbimortalidade da doença foi rapidamente ob servada e uma melhor qualidade de vida tornouse possível entre os pacientes com HIVAIDS no Brasil A infecção pelo HIV passou a ser vista como uma doen ça de caráter evolutivo crônico sendo potencial mente controlável Vitória 2000 Embora isso este ja relacionado com outros fatores como a melhoria Psicossomaticaindd 433 Psicossomaticaindd 433 05012010 121221 05012010 121221 434 Mello Filho Burd e cols dos cuidados clínicos e a evolução epidemiológica da doen ça o papel da terapia antirretroviral combinada foi fundamental nesse novo cenário terapêutico Vi tória 2000 Este novo tratamento trouxe uma gran de esperança mas junto com ela novos desafios para todos a adesão ao tratamento A adesão ao tratamento é um tema complexo tanto para os pacientes quanto para os profissionais de saúde devido aos múltiplos fatores envolvidos relacionados ao paciente e seu entorno à doença e ao tratamento assim como a qualidade do serviço de saúde No Brasil todas as pessoas infectadas pelo HIV têm por lei acesso livre e gratuito ao uso da terapia antirretroviral Brasil PNDSTAIDSMS 2004 Em junho de 2005 estimavase que 166000 pacientes com HIV estivessem tomando antirretrovirais Che quer 2005 Podemos afirmar que com a introdução da tera pia antirretroviral altamente potente começamos a observar uma atitude de maior aceitação da doença o que consequentemente auxiliava na adesão terapêu tica e a uma melhora na qualidade de vida Tostes et al 2004 Essa melhora na qualidade de vida parece estar relacionada também ao fato de o governo brasi leiro defender o direito ao tratamento dos pacientes com HIVAIDS possibilitando um reconhecimento do seu valor para a sociedade Galvão 2002 Alguns estudos sobre a adesão passaram a ser conduzidos em nosso país Nemes e colaboradores 2004 e May e colaboradores 2003 demonstraram que a adesão ao tratamento em nosso meio pode ser comparável com a dos países mais desenvolvidos principalmente pela distribuição gratuita e univer sal dos medicamentos assim como pela qualidade da assistência Contudo podemos identificar alguns desafios relacionados à não adesão ao tratamento no Brasil o baixo nível educacional Nemes et al 2004 May et al 2003 e falta de renda pessoal Nemes et al 2004 Poderíamos acrescentar a partir de dois estudos conduzidos em nossa instituição outras particulari dades 1 Diferenças na forma de adesão entre homens e mulheres em estudo qualitativo por nós reali zado observamos diferenças expressivas entre homens e mulheres Cardoso e Arruda 2003 Entre as mulheres pudemos observar falta de percepção de risco para aquisição do HIV uma maior preocupação voltada para o bemestar de maridofilhos do que em relação a elas mesmas percepção de um suporte social frágil por parte do meio onde estavam inseridas 2 Comorbidade de sintomas psiquiátricos associa dos à qualidade de vida de mulheres com HIV AIDS Vários estudos sinalizam que os distúrbios psiquiátricos não tratados depressão abuso de substâncias psicoativas interferem não só na adesão ao tratamento como na não utilização das medidas preventivas Hader et al 2001 Treis man et al 2001 Cournos et al 2005 Tostes 2006 O impacto dos sintomas mentais na piora da qualidade de vida dos pacientes com HIV é ex pressivo podendo levar a dificuldades de adesão ao tratamento ARV Tostes et al 2004 Dubé et al 2005 Moraes et al 2006 Quais seriam então as características do traba lho dos profissionais de saúde mental a partir destas mudanças introduzidas a partir do uso dos antirretro virais altamente potentes Consideramos que o impacto da utilização da terapia HAART é extremamente positivo do ponto de vista da saúde mental dos pacientes principalmen te para aqueles que conseguem aderir ao esquema terapêutico Os pacientes que aderem ao tratamen to conseguem adaptarse a sua nova condição a de ser soropositivo Ter HIV passa a ser parte integran te da constituição de uma nova identidade Cardoso e Arruda 2005 Observamos nesses pacientes uma nova perspectiva de viver uma vida mais saudável mais longa e com mais qualidade podendo manter se ativos trabalhando estudando e relacionandose afetivamente Para os pacientes que não aderem ou oscilam em sua adesão o diagnóstico de HIV ainda tende a ser algo que mobiliza intensamente Aparece como uma situação a qual não conseguem tolerar e adap tarse Os profissionais de saúde mental precisam levar em consideração os seguintes aspectos no manejo do paciente com HIVAIDS a partir da era HAART 1 A AIDS como uma doença crônica principalmen te no que se refere ao impacto do diagnóstico e às possibilidades de reorganização da vida quotidia na 2 A adesão ao tratamento a complexidade e a adaptação aos esquemas terapêuticos e os efei tos adversos das drogas a curto médio e longo prazo 3 O manejo das relações afetivas comunicação do diagnóstico aos novos parceirosas revitalização da vida sexual a possibilidade de gravidez 4 Os grupos mais vulneráveis à doença população pobre com menor grau de suporteapoio familiar e social baixo nível educacional pacientes com Psicossomaticaindd 434 Psicossomaticaindd 434 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 435 transtornos mentais ou com história de abuso de álcool eou drogas Nos últimos anos temos observado uma mu dança no perfil dos pacientes hospitalizados Ao mesmo tempo em que se internam pacientes que desconhecem sua condição tomando contato com a mesma durante a própria internação em função de terem adoecido como nos primeiros tempos da AIDS fase préHAART também observamos pacien tes que se internam porque não conseguiram aderir ao tratamento antirretroviral sendo esse o motivo mais comum Entre os indivíduos que se internam com AIDS podemos identificar uma maior precarie dade dos vínculos sociofamiliares e uma maior vul nerabilidade mental que parecem estar associadas a uma menor adesão ao tratamento Observamos que o deslocamento da epidemia de AIDS para populações mais vulneráveis da sociedade também acontece em outros países como nos Estados Unidos por exemplo Treisman et al 2001 Outro dado que merece destaque é o aumen to da transmissão do HIV entre a população de faixa etária mais avançada Boletim Epidemiológico AIDS 2006 Este é um fenômeno que vem ocorrendo em todo o mundo devido à melhoria na expectativa e na qualidade de vida um maior controle na prevenção de doenças comuns à terceira idade juntamente com a reposição hormonal em ambos os sexos o advento das pílulas efetivas para o tratamento da disfunção erétil e próteses penianas entre outros O comporta mento de risco predominante neste grupo são as re lações sexuais heterossexuais BrasilPNDSTAIDS MS 2004 Os profissionais de saúde de um modo geral não investigam a vida sexual dos idosos sendo que a in fecção pelo HIV muitas vezes só é detectada nas fases mais avançadas da doença Além disso os transtornos cognitivos e a demência associada a AIDS podem ser confundidos com a Demência tipo Alzheimer e mesmo sintomas precoces do HIV como fadiga perda de me mória falta de ar insônia e perda de peso podem ser confundidas com queixas próprias do envelhecimento As coinfecções com outras doenças podem também acarretar um diagnóstico tardio e apressar a progres são da AIDS assim como as interações medicamento sas e os antirretrovirais podem dificultar a adesão ao tratamento Os profissionais de saúde mental podem colaborar seja na detecção mais precoce desses qua dros seja na abordagem terapêutica Dentro desse novo contexto da AIDS ganharam relevância a utilização de grupos de suporte psicos social tanto no ambulatório quanto no hospitaldia voltados para grupos específicos ou homogêneos pacientes adolescentes soropositivos casais soropo sitivos ou sorodiscordantes os grupos de educação em saúde com o objetivo de promover a adesão ao tratamento o trabalho em conjunto com professores de educação física para os pacientes com lipodistrofia corporal a utilização de material educativo impresso criado pela própria equipe ou por ONGs como a re vista Saber Viver por exemplo Além das mudanças relatadas no perfil dos pacientes e nas estratégias de intervenção junto ao paciente podemos identificar algumas diferenças no modo de relação dos psicólogos e psiquiatras com a equipe assistencial Nossa relação com a equipe clíni ca foi passando de um modelo de interconsulta e de resposta a pedidos de parecer para um modelo mais integrado ou de ligação Observamos que a equipe de saúde mental que presta assistência aos pacientes portadores de HIVAIDS é parte integrante da equipe clínica através de sua presença direta no dia a dia das enfermarias no encaminhamento ágil para o ambu latório e na discussão rotineira dos casos clínicos CONSIDERAÇÕES FINAIS No início da assistência aos pacientes infecta dos pelo HIVAIDS nosso grande desafio enquanto profissionais da área de saúde mental foi lidar com a temática da morte e o processo de morrer jun to ao paciente à sua família e à equipe de saúde mesmo quando não restava qualquer esperança O medo do contágio as vivências de discriminação e o estigma da doença por estar diretamente vinculada à sexualidade estavam também permanentemente presentes Mais de duas décadas se passaram sendo que atualmente estamos lidando com uma doença que apesar de grave tem um tratamento eficaz e permite uma qualidade de vida bastante adequada para aqueles que conseguem adaptarse ao mesmo Outras questões começaram a surgir como a feminili zação da doença o impacto nas camadas com menor escolaridade e suporte social assim como a expan são para grupos como idosos e adolescentes Brasil 2006 São inúmeras as situações com as quais nos defrontamos no momento atual e múltiplas as estra tégias às quais precisamos recorrer Nossos maiores desafios no momento se relacionam à abordagem dos pacientes com dificuldades de adesão ao tratamento e com um suporte social mais frágil O trabalho integrado com a equipe assistencial foi sendo construído ao longo dos anos tendo hoje a equipe de saúde mental um papel ativo na condução do tratamento do paciente e sendo parte integrante da equipe assistencial como um todo Psicossomaticaindd 435 Psicossomaticaindd 435 05012010 121221 05012010 121221 436 Mello Filho Burd e cols Dentro do processo que vivenciamos gostaría mos de destacar o pioneirismo de alguns centros uni versitários que abraçaram a causa da AIDS desde o início da epidemia Foi a partir do comprometimento dessas Instituições que o Governo Federal começou a tomar suas primeiras providências nos diversos níveis de assistência Num segundo momento através dos chamados naquela ocasião Centros de Referência em AIDS iniciouse um investimento importante no treinamento de profissionais da área de saúde envol vendo Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde com o objetivo de através de cursos estruturados por equipes interdisciplinares formar agentes multiplica dores que levavam o que aprendiam para suas Insti tuições de origem Por outro lado algumas ONGs pioneiras per sonalidades dos meios intelectuais e artísticos e da imprensa em geral uniramse em uma eficiente cam panha contra a discriminação e pelos direitos dos doentes de AIDS que sem dúvida não só pressiona ram e criticaram mas também apoiaram bastante o Ministério da Saúde em suas campanhas públicas de prevenção Queremos destacar ainda a importância das várias equipes de saúde que atuaram e continuam atuando na assistência aos portadores de HIVAIDS de forma integrada sempre abertos a aprender jun tamente com os pacientes a enfrentar suas dificulda des seus medos e os preconceitos que ainda existem ligados à doença embora em menor escala Neste momento podemos evocar uma frase de Betinho um dos grandes líderes das campanhas de esclarecimento público quando disse a medicina ja mais será a mesma depois da AIDS CASOS CLÍNICOS Achamos muito importante como finalização deste artigo apresentarmos alguns resumos extrai dos de casos clínicos por nós atendidos na assistência a pacientes portadores de HIVAIDS Caso clínico MAS 35 anos solteira comerciária licenciada 2º grau completo tem dois irmãos mais novos mora com os pais M foi encaminhada para avaliação por estar muito depri mida e sem estímulo para prosseguir seu tratamento Não compareceu às últimas consultas e interrompeu o uso dos medicamentos nos últimos três meses M apresentase muito tensa e irritável Dizia sentirse muito revoltada com tudo e com todos Queixavase que sua vida se modificara totalmente com a doença e que seu corpo não era mais o mesmo Sentia que suas pernas estavam mais finas e seu abdome muito proeminente Desde que soube estar HIV isolouse das pessoas conhecidas e sua vida social se limitava ao contato com os familiares Relutou muito antes de acei tar o encaminhamento para uma consulta com a psicóloga da equipe M denota grande dificuldade para enfrentar a doença Um dos focos de seu tratamento será lhe auxiliar a conviver melhor com as vicissitudes que a doença e seu tratamento trazem Caso clínico JVS 64 anos engenheiro viúvo autônomo heteros sexual mora com uma irmã Sabe ser HIV há cinco anos Apesar de ter informações sobre HIVAIDS não praticava sexo seguro na maioria das ocasiões Sentiase sem motiva ção para a vida mas segundo disse sempre tinha sido assim Não conseguia dar sequência em nada do que planejava fa zer Queixase de cansaço e interrogou se tal fato pode ria estar relacionado aos ARV Já procurou diversos tipos de tratamentos na área de saúde mental aparentemente sem sucesso Tinha alguns amigos e parecia ser querido por eles Sua médica receava que viesse a se suicidar Um dos maiores desafios no atendimento de um paciente como J é persuadilo a adotar medidas para evitar a disseminação da doença Deve ser avaliado se existe um quadro depressivo subjacente e se ele pode beneficiarse com tratamento es pecífico Os motivos dos insucessos em seus tratamentos anteriores devem ser cuidadosamente avaliados Devemos também destacar a faixa etária do paciente que cada vez mais vem crescendo em importância na epidemia Caso clínico VL 18 anos estudante tem uma irmã mais nova mora com os pais V foi trazida para atendimento devi do aos conflitos com seus pais e tratamento irregular Sua mãe informou que ela própria é HIV e soube que estava contaminada quando grávida de V durante o tratamento prénatal Relatou ainda que o relacionamento conjugal era muito conflituoso devido ao fato do marido ser alcoolista e muito agressivo com ela e as filhas As filhas por sua vez tiveram grande dificuldade de aceitar limites V apesar de ser uma jovem bastante inteligente e gostar muito de ler com frequência deixava de ir a escola Relatou também que V tem grande dificuldade de usar os medicamentos antirre trovirais principalmente nos fins de semana quando ten de a beber muito A mãe de V parecia muito desanimada e impotente para lidar com os problemas em sua família V por sua vez parecia muito contrariada de comparecer a uma consulta com um psiquiatra alegando não ser louca Muitas vezes nos deparamos com demandas de vários tipos num determinado atendimento como esse de contaminação vertical Talvez num primeiro momento tenhamos que nos Psicossomaticaindd 436 Psicossomaticaindd 436 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 437 aproximar dessa família e avaliar cuidadosamente a melhor estratégia para abordála Caso clínico RLA 34 anos casada há 10 anos ensino fundamen tal um filho com 8 anos marido comerciário autônoma R cerca de três semanas antes da consulta vinha se mos trando mais irritável e com dificuldade de dormir Relatara 15 dias antes estar ouvindo vozes que lhe davam ordens Iniciou na ocasião tratamento com psiquiatra tendo obtido uma melhora parcial dos sintomas Já conseguia dormir um pouco melhor e as vozes diminuíram Parecia ainda muito assustada Em uma das ocasiões a voz lhe disse para matar seu filho e a si mesma Mostrouse apática durante a entre vista Só falava quando solicitada Seus familiares disseram que ela nunca se comportara daquela forma A colega que a acompanhava informou que ela se submeteu a exames para investigação de sífilis e HIV e sua sorologia para o HIV re velouse positiva Sua irmã informou que um exnamorado dela faleceu com AIDS em 2002 mas na ocasião ela prefe riu não fazer o teste Desde ontem vem se queixando de dormências e dificuldade de movimentar o braço e a perna esquerda além de apresentar um quadro de mudança do comportamento somadas a outras queixas clínicas Em um caso como este os sintomas neurológicos devem ser in vestigados com urgência já que podem estar associados a complicações relacionadas ao HIV Caso clínico MBS 25 anos ensino fundamental incompleto de sempregado fazia alguns biscates quando se sentia bem vi via com a mãe que trabalhava como diarista e mais quatro irmãos mais novos não conheceu o pai Já estivera diversas vezes internado devido à esquizofrenia paranoide Não se guia tratamento ambulatorial Queixavase que os remédios psiquiátricos lhe tiravam a potência Sabia ser HIV há pelo menos dois anos referindo que a médica do posto de saúde disselhe que ainda não estava na hora de tomar os remédios contra o vírus Disse que não gostava de usar camisinha Foi encaminhado para atendimento porque foi visto tendo relações com outro paciente durante à noite na enfermaria de psiquiatria pela segunda vez nessa semana Esse caso nos mostra o desafio que representa a aborda gem da AIDS e de outras doenças sexualmente transmissí veis entre os pacientes com transtornos mentais graves que demandam estratégias adaptadas para sua realidade Caso clínico MD 33 anos solteira secretária ensino fundamental católica vive com os pais Encaminhada para atendimento por se recusar a submeterse ao teste sorológico para o HIV Um exnamorado comunicoulhe que está infectado pelo HIV Diz que prefere morrer a ter AIDS Teme que nin guém lhe aceite se estiver contaminada Relata que nunca poderá revelar a nenhum pretendente sua condição de soropositiva afirmando que será rejeitada caso venha a se confirmar que foi contaminada Receia que não conseguirá mais se entregar a ninguém só pela dúvida de estar ou não contaminada Diz que sua vida só tem problemas Acha que não suportará a ideia de ter AIDS Comenta Prefiro não saber de nada pelo menos vivo melhor Muitos pacientes chegam para atendimento com concepções muito errôneas sobre a doença e seu tratamento Muitas vezes associam AIDS a morte apesar de todos os avanços nessa área Uma boa estratégia em um caso como esse é começar abordan do as concepções que a paciente tem da doença Outro as pecto que parece estar presente nesse caso é que a AIDS vem se somar a condições muitas vezes já desfavoráveis de vida e que já requeririam algum tipo de abordagem psiquiá trica ou psicológica REFERÊNCIAS Brasil Boletim Epidemiológico AIDSDST Janeiro a Junho de 2006 Data de Publicação 211106 Descrição ano III nº 01 01ª à 26ª semanas epidemiológicas janeiro a julho de 2006 wwwaidsgovbr Brasil Ministério da Saúde AIDS II relatório de implementação e avaliaçãodezembro de 1998 a maio de 2001 Brasília Coorde nação Nacional de DSTAIDS 2001 Brasil Ministério da Saúde Recomendações para tratamento An tirretroviral em adultos e adolescentes com infecção pelo HIV www aidsgovbr 2004 Brasil PNDSTAIDSMS Pesquisa de Conhecimentos Atitudes e Práticas na População Brasileira Comportamento da População de 60 anos e mais sexualmente ativa nos últimos 6 meses maio 2004 Cardoso GCP Tostes MA Zornitta M Souza ARN Queiroz AO Requests for Intervention of Mental Health Workers in AIDS 5th International Conference on AIDS Montreal Junho 1989 Cardoso G Arruda A As representações sociais da soropositi vidade entre as mulheres e a adesão ao tratamento Cadernos de Saúde Coletiva NESCUFRJ Vol XI n2 juldez 2003 Chequer P Apresentação Access to Treatment and Preven tion 3rd IAS Conference on HIV Pathogenesis and Treatment 25072005 Rio de Janeiro Brazil acessado online aidsgov br Cournos F McKinnon K Wainberg M What can mental health interventions contribute to the global struggle against HIVAIDS World Psychiatry 43 October 2005 Dubé e cols Neuropsychiatric manifestations of HIV infection and AIDS J Psychiatry Neuroscience 30423746 2005 Hader SL Smith DK Moore JS Holmberg SD HIV Infection in Women in the United States JAMA 2059 March 2001 Galvão J Access to antiretroviral drugs in Brazil Published onli ne http imagethelancetcom November 5 2002 Malbergier A Transtornos psiquiátricos em indivíduos infectados pelo HIV revisão da literatura Jornal Brasileiro de Psiquiatria 648253262 Junho 1999 May SB Cardoso GCP Costa ER Barroso PF High Adherence Rates to Antiretrovirals in a ResourcePoor Setting The 2nd IAS Psicossomaticaindd 437 Psicossomaticaindd 437 05012010 121221 05012010 121221 438 Mello Filho Burd e cols Conference on HIV Pathogenesis and Treatment Abstract Book p 5394 Paris France 1316 July 2003 Mello Filho J AIDS o doente o médico e o psicoterapeuta Psi cossomática Hoje 299309 Porto Alegre Artes Médicas 1992 Moraes MJ Oliveira AC Tostes MA AIDS e Psiquiatria 373 394 In Prática Psiquiátrica no Hospital Geral Ed Neury Botega 2ª Edição ArtMed Editora Porto Alegre 2006 Nemes MIB Carvalho HB Souza MFM Antiretroviral therapy adherence in Brasil AIDS London London v 18 p S 15S 20 2004 Palella FJ Delaney KM Moorman MO et al Declining morbidity and mortality with advanced human immunodeficiency virus in fection New England Journal of Medicine3381385360 1998 Queiroz AO Souza ARN Tostes MA Cardoso G Zornitta M Contribuições do Serviço de Psicologia Médica e Saúde Mental ao Programa SIDAAIDS Revista Acadêmica 31 janmar 1991 Queiroz AO AIDS aspectos psicossomáticos Psicossomática Hoje 313319 Porto Alegre Artes Médicas março 1992 Tostes MA Chalub M Botega NJ The quality of life of HIV infected women is associated with psychiatric morbidity AIDS CARE vol16 n2 177186 February 2004 Tostes MA Aspectos Psiquiátricos da Infecção pelo HIVAIDS Programa de Educação Continuada da Associação Brasileira de Psiquiatria wwwabpbrasilorgbr 2006 Treisman GJ Angelino AF Hutton HE Psychiatric Issues in the Management of Patients With HIV Infection JAMA 28622 De cember 2001 Vitória MAA Adesão ao Tratamento Antirretroviral Manual de Assistência Psiquiátrica em HIVAIDS Ministério da Saúde Bra sília 2000 Psicossomaticaindd 438 Psicossomaticaindd 438 05012010 121221 05012010 121221 Este trabalho analisa a questão da contribuição que a Psicanálise pode dar no campo dinâmico da re lação profissionais de saúdepaciente num contexto institucional qual seja um hospital geral A pesquisa foi realizada no Hospital Universitá rio Clementino Fraga Filho UFRJ que em 1987 foi uma das quatro primeiras instituições a serem cre denciadas como Centro de Referência Nacional para SIDAAIDS O Serviço de Doenças Infecciosas e Para sitárias DIP desse hospital coordena um programa direcionado para assistência treinamento e pesquisa em AIDS e antes mesmo de sua implantação solicitou a participação do Serviço de Psicologia Médica para um trabalho multidisciplinar O Serviço de Psicologia Médica estabeleceu sua participação principalmente através de interconsultas de assistência psiquiátrica e psicoterápica a pacientes quando necessária e da formação de um grupo multiprofissional Esse grupo multiprofissional foi constituído por médicos enfer meiros assistentes sociais nutricionistas psicólogos membros da equipe de saúde responsável pelo tra tamento de pacientes com AIDS e coordenado por dois psicanalistas Os dados obtidos baseiamse na experiência desse grupo cujos elementos estão todos vinculados à mesma instituição e que durante um ano reuniuse semanalmente visando à reflexão da prática clínica Restringemse portanto estritamente ao campo da Psicologia Médica que em sua prática não tem lei tos não tem doentes mas sim demandas referidas a vicissitudes limitações e ansiedades da relação assis tencial profissionais de saúdepaciente Há cerca de 10 anos trabalhando no Serviço de Psicologia Médica de um hospital geral Hospital Universitário Clementino Fraga Filho identifica mos logo de início como excepcional a demanda do Serviço de DIP A AIDS com seus significados exi gindo uma demanda excepcional de serviços da DIP rompe com o rotineiro funcionamento assistencial e cria uma oportunidade privilegiada para a prática de Psicologia Médica A própria formação de um grupo prática bem menos habitual do que os recursos de interconsulta e assistência direta psiquiátrica ou psicoterápica quan do necessária já de per si é uma resposta expressiva à excepcionalidade da demanda O grupo proposto e coordenado pelo Prof Amaury Queiroz e pela autora está referenciado prin cipalmente nas propostas de Michael Balint e Isaac Luchina e também nas contribuições de Danilo Peres trello e Julio de Mello Filho Consoante esses autores o plano de trabalho proposto se volta para a função psicoterápica diferenciada na relação profissionais de saúdepaciente o que se apoia na compreensão dinâ mica da dimensão transferênciacontratransferência Em relação à experiência de Balint com grupos de médicos generalistas a proposta se diferencia por constituir um grupo multiprofissional e sem a exigên cia de formação psicoterápica para os seus membros Há também uma diferença entre essa experiên cia que se refere a uma equipe de saúde préformada e a de Luchina cujos grupos multidisciplinares são constituídos por profissionais de diferentes catego rias necessariamente pertencentes a equipes diver sas não podendo portanto ter um objetivo de inte gração através da prática do grupo Outra diferença é que todos os participantes inclusive os coordenado res pertencem a uma mesma instituição E ainda o grupo está referido a profissionais que prestam assis tência a pacientes de uma única patologia AIDS Essas diferenças marcam uma originalidade nes ta experiência que valoriza uma estratégia na inves tigação das funções psicoterápicas diferenciadas dos diversos profissionais na integração de profissionais de saúde mental em uma equipe de saúde num hos pital geral nos momentos de integração conseguida nesta equipe de saúde e nas repercussões possíveis na rede de relações dos profissionais de um hospital geral Esta prática de grupo se apoia em conceitos psicanalíticos que permeiam todas as experiências de grupos no campo da Psicologia Médica partindo 34 GRUPO DE REFLEXÃO MULTIPROFISSIONAL EM AIDS UMA ESTRATÉGIA EM PSICOLOGIA MÉDICA Alícia Navarro Dias de Souza Psicossomaticaindd 439 Psicossomaticaindd 439 05012010 121221 05012010 121221 440 Mello Filho Burd e cols desse parâmetro geral para se constituir em função de uma demanda específica numa experiência par ticular Este grupo é portanto um grupo experimental e nesse sentido resolveuse chamálo de Grupo de Reflexão Multiprofissional A pesquisa partiu basicamente de uma dupla pergunta que ansiedades estariam sendo antecipadas ou já experimentadas pelos profissionais de saúde que prestam assistência a pacientes com AIDS Uma vez que essas ansiedades chegaram a originar uma demanda excepcional aos profissionais de Psicologia Médica que resposta a Psicologia Médica poderia dar a essa demanda Criouse assim mais uma oportuni dade privilegiada pela intensidade da demanda de reflexão sobre a prática da Psicologia Médica Em termos metodológicos escolheuse realizar a observação participante neste grupo de reflexão multiprofissional por considerar que essa experiência compartilhada a reflexão que pôde se dar no aqui a agora do grupo a fala deste grupo constitui uma expressão de um processo vivo onde observador e observados são diferenciados pelas categorias con ceituais que informam a sua participação neste con texto multidisciplinar O encontro entre observador e observados leva ambos à produção de significações numa estrutura de relações o grupo cuja exis tência é uma tentativa de resposta às demandas de seus participantes A produção de significações que se dá no grupo é portanto o que está se constituindo e constitui o objeto da pesquisa Num segundo mo mento ao realizar a leitura interpretativa das falas do grupo registradas expandese a reflexão possível sobre as associações produzidas na livre discussão do grupo Valemonos neste momento sobretudo da contribuição de Bion em dinâmica de grupo Esta leitura interpretativa não é única e o registro do ma terial produzido pelo grupo é oferecido de forma a possibilitar com maior rigor a produção de conheci mentos a todos que venham a interpretálo Voltemos agora à nossa primeira pergunta so bre as ansiedades vivenciadas pelos profissionais de saúde na sua relação com pacientes com AIDS A experiência central desse grupo é a vivência de impotência terapêutica de limite de conhecimen to que aproxima os vários profissionais de saúde e estes dos pacientes com AIDS Na leitura interpretativa da discussão livre dos grupos pôdese evidenciar como a AIDS por suas re percussões na dimensão psicossocial determina uma maior intensidade conflitiva na relação profissionais de saúdepaciente Já na anamnese um primeiro momento especial na relação médicopaciente colocase a investigação da sexualidade em associação à morte A investigação da sexualidade antes do surgimento da AIDS com ex ceção dos casos em que se supunha uma patologia venérea em geral não era realizada sendo conside rada não raro invasão da intimidade do paciente dita até desnecessária A comunicação do diagnóstico de AIDS ao pa ciente compulsória pelo aspecto preventivo não possibilita que o profissional de saúde em especial o médico preservese deste momento difícil da relação em que estão colocados a ameaça de morte para o paciente e a impotência terapêutica do profissional o que não pode evitar a problemática de culpa na relação médicopaciente A necessidade de participação do paciente no controle preventivo da AIDS cria mais uma exigência na relação assistencial confrontando toda a equipe de saúde com a sua responsabilidade social Na segunda reunião do grupo de reflexão uma médica nos diz Há uma tendência a esquecer a história prévia da pes soa Entra internase e o médico faz o que quer com o paciente Não é sem conflito que os profissionais de saúde podem se aproximar do paciente enquanto sujeito dono de uma biografia alguém que participa ativa mente dos processos diagnóstico terapêutico e pre ventivo na relação assistencial o que implica a fun ção psicoterápica dessa relação Em certos momentos os profissionais de saúde ao se recusarem a sofrer o impacto da demanda trans ferencial bem mais exigente nos pacientes com AIDS dirigem essa demanda ao psiquiatra ou ao psicólogo racionalizando que a estes cabe por formação toda a compreensão da dimensão psicossocial Por vezes defensivamente o grupo sugere me didas administrativas para evitar a consideração da singularidade da situação clínica da dimensão trans ferencial contratransferencial na relação profissionais de saúdepaciente da intersubjetividade não regula mentável Neste sentido o seguinte fragmento retira do da quinta reunião do grupo é exemplar Psicóloga o pai do paciente trouxe parece coisas de macumba para pôr no soro que ele dizia que podiam salvar o filho Enfermeiro Ele quis pôr uma garrafada no soro Psicóloga Mas ao mesmo tempo estava o terno dentro do armário Enfermeiro Estavam querendo que ele morresse e não morresse ao mesmo tempo Médico Eu sou até a favor de ter isso escrito para a prevenção dessas situações E proibi do trazer substâncias alimentos etc Psicossomaticaindd 440 Psicossomaticaindd 440 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 441 Enfermeiro Podese aproveitar e colocar brigas conflitos familiares Coordenador Calma nome do enfermeiro Isso não se resolve com normas o grupo ri No entanto em uma dinâmica conflitiva perma nente o grupo mostra como é capaz por exemplo de compartilhar a ambivalência em relação à morte pró xima de um determinado paciente cuja história de relação com a equipe é relembrada está viva como estão vivos estes últimos momentos difíceis quando ainda é possível no dizer do grupo dar alguma coisa na relação clínica entre paciente e profissionais e na relação entre profissionais no grupo Outro aspecto que se pode retirar na dinâmica deste grupo referese à agressividade e à culpa quan do os profissionais se sentem confrontados com a im potência terapêutica Na terceira reunião do grupo isso aparece claramente quando um médico diz A doença é multissistêmica e as drogas que a gente usa não são muito tóxicas Nós mesmos é que estamos fa zendo biópsia pósóbito de pulmão fígado para tentar fazer diagnóstico A culpa ao se fazer diagnóstico não só de in fecção pelo HIV como de doenças indicativas de AIDS transparece frequentemente no grupo também em associação à impotência terapêutica expressando o conflito entre a capacidade terapêutica possível e a desejada onipotentemente Isso pode ser evidenciado no seguinte fragmento do grupo quando falam dois médicos Médico 1 Eu acho que para alguns doentes fica di fícil só ser portador A maioria acha que o teste é positivo não adianta é AIDS Médico 2 Porque nós jogamos a própria dúvida porque na própria pessoa que deveria dar a segurança a ele que seria o médi co ele encontra justamente a interroga ção Eu acho que a única coisa que da para nós acentuarmos no ambulatório como existe a dúvida é de se apegar na dúvida no seu lado positivo e não no seu lado negativo Se é que isso é algu ma coisa Centrado no tema do encontro fatal inicial mente colocado em termos de enunciar o diagnóstico como equivalente a condenar à morte passa o grupo a descrever o encontro dos pacientes com seus parcei ros deslocando no manifesto o conflito da relação médicopaciente para a relação pacienteparceiro Ao examinar como estão mantendo a relação apesar de um saber que é positivo e o outro é negativo um determinado paciente é o primeiro a ser apresentado e o que mais mobiliza o grupo As defesas maníacas de negação da ameaça de morte são relatadas no pa ciente e vividas pelo grupo Médico 3 ele nos falou que ia colocar um anún cio no jornal Paciente aidético procura moça aidética para relacionamento se xual Médico 2 isso é que é saber viver E na fala dos médicos que se pode notar que na assimetria da relação médicopaciente a AIDS intensifica conflitos O médico não detém um saber onipotente a certeza e o seu desejo de têlo é fre quentemente visto como desejo do paciente sendo esta superposição de desejos uma questão central na relação médicopaciente O médico ao se conhecer vivendo o desconhecimento a dúvida perguntase se o seu conhecimento é alguma coisa Destacaremos um outro momento igualmente conflitivo no processo clínico quando se dá a pas sagem do estágio de infecção pelo HIV para AIDS propriamente O médico se apega na possibilidade de tratamento das infecções oportunísticas e processos neoplásicos mas esse tratamento não salvará a vida do paciente nem livrará o médico de sua angústia A culpa vivida pelos médicos é claramente expressa Médico 4 Falei com ele não sei se é criticável ou não nos seguintes termos nome do paciente agora a gente descobriu algu ma coisa em você e que agora eu falei abertamente ele estava rotulado teori camente como AIDS mas que o objetivo seria tratar O diagnosticar segue o sopro da morte e da im potência terapêutica O grupo desta vez defendese buscando localizar a falha em alguém O médico da internação que não estava presente neste grupo te ria falhado Falhou no diagnóstico HIV assintomá tico Com aquela esplenomegalia Falhou na tera pêutica a endocardite mal tratada ou tratada por um tempo insuficiente ou um germe resistente não sei Falhou na relação médicopaciente Médico 4 Não foi colocada a possibilidade dele estar agora fazendo qualquer coisa oportunística Isso foi falha uma visão muito otimista Médico 5 nome do paciente desconfiava de alguma coisa ele indagava Psicossomaticaindd 441 Psicossomaticaindd 441 05012010 121221 05012010 121221 442 Mello Filho Burd e cols Médico 4 Ele explorou a equipe inteira Ele estava mentalizando a ideia de que ele já estava numa fase mais avançada e isso não foi trabalhado e de repente o carrasco do ambulatório não sei Eu tinha uma boa relação médicopaciente com ele Outro aspecto que se ressalta no grupo está re ferido à associação da impotência ao prazer do desa fio e do controle da própria ameaça de morte que os profissionais de saúde vivem no risco da contamina ção A declaração de um dos membros do grupo Eu sou do grupo de arrisco nos dá a medida dessa vivência maníaca de desafio A discriminação e o isolamento de que são alvo não só os pacientes com AIDS mas também os pro fissionais que os assistem ficam aparentes no grupo quando ocorre uma crise institucional no caso uma greve Tornase evidente então a tendência a negar a gravidade e o potencial destrutivo da doença que só são lembrados na medida em que se reconhece que a doença ameaça os próprios profissionais de saúde experimentando o grupo uma ansiedade intensa que associa morte à loucura Identificase o profissional no discurso livre do grupo com o paciente discrimi nado possuidor da morte contagiosa e podendo ser alvo de outros estigmas associados à AIDS como por exemplo a homossexualidade É o que encontramos na fala de um dos médicos São colegas diferentes e todos fazem a mesma brin cadeira Telefonam lá para casa Alô Dr tudo bem Aqui quem está falando é um paciente seu aidético Quando você saca você começa a brincar Meu par ceiro A relação do grupo com respeito à instituição hospitalar como um todo é claramente ambivalente O grupo deseja um reconhecimento e essa demanda de um reconhecimento institucional é particularmen te intensificada pela AIDS num conflito entre prestí gio institucional e impotência terapêutica O grupo aponta a pesquisa o prestígio acadêmico a coesão grupal como necessários para alcançar o reconheci mento desejado num hospital que é universitário O lidar com os escolhidos da peste do século o confrontarse frequentemente com o limite de seu conhecimento propicia ao grupo um momento parti cularmente rico Um paciente em tratamento ambu latorial se encontra na enfermaria auxiliando outros pacientes como representante de um grupo de ajuda a pacientes com AIDS organizado pela sociedade Um médico pede que ele se retire da enfermaria di zendo que há algum equívoco Uma nutricionista tenta retirar esse paciente com AIDS do refeitório do hospital enquanto uma assistente social lhe dá o direito a uma refeição no hospital pelo seu intenso trabalho como representante do grupo referido Num primeiro momento portanto ele sai da enfer maria sai do refeitório e se despede da assisten te social dizendo eu não quero trazer problemas Num segundo momento ele entra pela porta do gru po através da fala das assistentes sociais Os precon ceitos são problematizados as atitudes refletidas e o conflito tem lugar para alguma elaboração Mais de uma reunião do grupo foi necessária Chamase o médico que o retirou da enfermaria chamase o médico assistente que o trata a nutricionista está presente e a assistente social enfim quase toda a equipe de saúde está representada O grupo de reflexão como está proposto para uma prática institucional cria um espaço multiprofis sional e multidisciplinar que mantendo a liderança do médico clínico na equipe de saúde possibilita a maior integração dessa equipe É para essa integra ção que o profissional de Psicologia Médica pode contribuir focalizando a relação profissionais da saúdepaciente mantendo a livre discussão do grupo de modo a limitar efetivamente a ilusão narcísica do poder médico que pretenderia dirigir toda a ação de saúde em termos de prescrições e proscrições A fo calização que a Psicologia Médica pode dar à relação profissionais de saúdepaciente valoriza a função psi coterápica que se pode realizar em qualquer relação interpessoal mas que adquire uma especificidade na discussão do grupo quando os diferentes profissio nais podem definir os limites dos seus respectivos sa beres A psicoterapia desde o uso da palavra de con solo quando é uma simples psicoterapia de apoio até o valor da interpretação passando pelo uso crite rioso dos efeitos da sugestão podese distribuir pelos diferentes profissionais da equipe de saúde dando um máximo de valor terapêutico à relação equipe de saúdepaciente É assim que a AIDS em um espaço social mostranos o impacto de um doença que além dos problemas epidemiológicos de sua disseminação nos traz a dimensão conflitiva com implicações no trata mento individual Neste conflito em termos psicos sociais podemos facilmente mostrar a oposição en tre individual e coletivo quando a coletividade que discrimina é a mesma que tem de criar as condições para o atendimento terapêutico A AIDS referida à morte transmissível cria especificamente uma solici tação para se considerar essa dimensão psicossocial que coloca um desafio para o conhecimento médico tocando numa dimensão existencial como nos diz o sociólogo e cientista político vítima da AIDS Herbert de Souza 1988 Psicossomaticaindd 442 Psicossomaticaindd 442 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 443 Para mim a medicina hoje tem que tratar da vida e da morte Um bom médico é o sujeito que sabe cuidar da minha saúde e da minha morte Que seja capaz de me dar as duas coisas uma boa saúde e uma boa morte Isso está fora do pensamento médico É esta palavra de Herbert de Souza que nos mostra mais claramente como a AIDS é um desafio que se coloca além do modelo médico restrito im pondo às instituições a consideração da dimensão social maior onde a doença incide A resposta insti tucional que cria equipes multidisciplinares atende à complexidade maior da problemática psicossocial onde se inserem os pacientes A resposta da institui ção em que foi realizada a pesquisa de criar um gru po de reflexão multiprofissional talvez tenha alguma originalidade ao preservar o conhecimento médico dandolhe maior extensão ao instigar uma equipe de saúde a considerar as limitações de sua prática ha bitual e convencional ao mesmo tempo possibilitan do o levantamento de questões que chegam a tocar numa dimensão existencial implicando a ética do atendimento médico A experiência com este grupo de reflexão que foi denominado muito propriamente por um de seus integrantes como o grupo de arrisco representou uma contribuição para o estudo e a elaboração não só da intensidade conflitiva na tarefa assistencial a pacientes com AIDS como das relações conflitivas entre os diferentes profissionais que integram a equi pe de saúde Ampliando o espaço institucional em que a Psicologia Médica pode se inserir ela deu sua contribuição à melhora no atendimento hospitalar ao considerar a produção de significações em uma estra tégia interpretativa grupo de reflexão que possi bilita maior integração nas trocas simbólicas de um grupo multiprofissional REFERÊNCIAS Balint M O médico seu paciente e a doença Rio de Janeiro Athe neu 1975 Bion W R Experiências com grupos os fundamentos da psicote rapia de grupo 2 ed Rio de Janeiro ImagoSão Paulo Ed da Universidade de São Paulo 1975 Bleger J Temas de Psicologia entrevista e grupos 2ed São Paulo Martins Fontes 1985 Carrara S Moraes C Um vírus só não faz doença Cad IMS v 1 n 1 p 96123 marabr 1987 Conates T J et al Psychosocial research is essential to unders tanding and treating AIDS Am Psychol v 39 n 11p 1309 1314 Nov 1984 Dellarossa A Grupos de retlexión entrenamiento institucional de coordinadores y terapeutas de grupos Buenos Aires Paidós 1979 Freud S Psicologia de grupo e a análise do Ego In Além do princípio de prazer Psicologia de grupo e outros trabalhos Rio de Janeiro Imago 1976 Edição Standart Brasileira das Obras Psicológicas Completas v 18 Holland J C Tross S The psychosocial and neuropsychiatric se quelae of the acquired immunodeficiency syndrome and related disorders Ann Intern Med v 103 n 5 p 760766 Nov 1985 Lapassade G Grupos organizações e instituições Rio de Janeiro Francisco Alves 1977 Luchina L et al El grupo Balint hacía un modelo clinico situacio nal Buenos Aires Paidós 1982 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual 2ed Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1979 Osorio L C et al Grupoterapia hoje Porto Alegre Artmed 1986 Paine L ed AIDS Psychiatric and Psychosocial Perspectives London Croom Helm 1988 Perestrello D A medicina da pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1974 Souza A A reflexão do saber sobre a impotência SIDAI AIDS uma experiência em psicologia médica Rio de Janeiro 1988 Tese de mestrado Insiitutd de Psiquiatria UFRJ Souza H de A AIDS porque é mortal criminalizou o sangue Tema v 6 n 10 p 14 jun 1988 Reunião Análise e Difusão sobre Saúde de RADIS Projeto desenvolvido pela Escola Nacio nal de Saúde Pública e pelo Centro de Informações para Saúde Fundação Oswaldo Cruz Psicossomaticaindd 443 Psicossomaticaindd 443 05012010 121221 05012010 121221 A AMEAÇA Na década de 1980 a AIDS chegou trazendo perplexidade e sentimento de impotência frente à evolução da doença às perdas quase que imediatas das pessoas que a contraíam e o desconhecimento do manejo por parte dos profissionais que se expres sava no medo da contaminação ao tratar Isto fica muito flagrante no capítulo AIDS o doente o mé dico e psicoterapeuta de autoria do professor Julio de Mello na primeira edição do livro Psicossomática Hoje onde narra que nos idos de 1985 que lidar com pacientes de AIDS é uma tarefa que exige um grande desprendimento capaz de suportar frustrações e dor a dor no entrechoque constante entre a vida e a morte que se passa no corpo e nas mentes destes pacientes Aquele era um momento da epidemia de extremo preconceito temor de contágio poucos recursos te rapêuticos e grupos de risco O tempo passou a AIDS já não é circunscri ta a grupos de risco as pessoas soropositivas não morrem tão precocemente os profissionais domi nam grande conhecimento sobre como lidar com a doença há um grande arsenal terapêutico de exa mes e medicamentos para serem usados mas ain da vivemos assombrados com a AIDS Por tratarse de uma doença sexualmente transmissível de forte estigma com consequências emocionais e corporais importantes Por não existir um medicamento que erradique o vírus pela necessidade de um trata mento com monitoramento contínuo que tem fortes efeitos colaterais e uma necessidade de alta adesão terapêutica Diante do múltiplo desafio tanto do controle da epidemia quanto do tratamento das pessoas que vivem com HIVAIDS entendemos ser verdadeira mente necessário que os pacientes sejam incluídos nos planos terapêuticos para que assumam o cuidado consigo e também com os outros pois se tratando de uma doença cujo contágio se dá na interação é ne cessário que sejam ativos no autocuidado e tornemse agentes das ações que barram o curso da epidemia Nessa linha de pensamento é oportuna a construção de espaços nas unidades de saúde que a eles possibi lite trazer o contexto e o impacto do diagnóstico eou adoecimento em suas vidas Espaços terapêuticos e formas de cuidar que não trabalhem somente com a lógica da doença adesão medicamentosa ou medidas imediatistas que criam expectativas no paciente soropositivo para além do que é possível em termos de assistência e perspecti va de cura neste momento da epidemia Espaços de encontro onde se possa falar e escutar para produ zir sentido sobre a experiência de conviver com uma doen ça transmissível crônica e estigmatizante que requer cuidado contínuo e permanente Para lidar com a magnitude desse problema em 3 de julho de 1996 o Departamento de Medicina Integral Familiar e Comunitária do Hospital Univer sitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro HUPEUERJ em parceria com a Dis ciplina de Psicologia Médica e o Serviço Social frente ao cuidado dos pacientes atendidos por seus profis sionais avaliou ser necessário ampliar seus conceitos e práticas de saúde Para tal planejou e implementou uma estratégia complementar ao atendimento indi vidual dos pacientes soropositivos criando o grupo terapêutico COM VIDA O COM VIDA é um grupo de informação refle xão e suporte E desde a sua criação compartilhar experiências e trocar informações são objetivos que visam reforçar a solidariedade e estimular o senti mento de responsabilidade individual e coletiva dos envolvidos na questão do HIVAIDS Este grupo que inicialmente começou funcionando com periodicida de quinzenal e hoje acontece por duas vezes na se mana é coordenado por uma equipe multidisciplinar que inclui médicos psicólogos assistentes sociais nutricionista e enfermeira Ao longo de seus 12 anos o COM VIDA funcio na como um grupo aberto aos pacientes atendidos no Hospital Universitário Pedro Ernesto HUPEUERJ 35 GRUPO COM VIDA A ADESÃO À VIDA FRENTE À AMEAÇA DE MORTE Lia Silveira Psicossomaticaindd 444 Psicossomaticaindd 444 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 445 e há 4 anos a cada primeira semana do mês abriu se para os pacientes e profissionais de outras unida des de saúde Desde 2003 recebe também de for ma ordenada e sistemática alunos da graduação de Medicina e de pósgraduação de diferentes áreas da saúde A necessidade da participação e entrada dos alunos foi uma proposta discutida pelos diferentes integrantes do grupo como uma ação para a melhoria da formação o que resulta em atenção de qualidade a esses próprios pacientes uma vez que estamos em um hospital de ensino Neste espaço grupal discutese a adaptação ao diagnóstico difundemse informações necessárias para o entendimento de situações de adoecimento e risco disponibilizase suporte emocional promove se reflexão sobre condições de saúde adesão aos medicamentos e prevenção aos agravos refletese so bre a importância da participação do paciente no cui dado à saúde reforçase a relação médicopaciente estimulase a participação institucional problemati zase sobre políticas e modelos de atenção à saúde preconceitos deveres e direitos entre outros Tudo isso acontece por meio de diálogos e dinâmicas que possibilitam falar escutar sentir indagar Esse movimento contínuo e solidário faz do Grupo COM VIDA um ambiente de holding que fun ciona como rede de suporte e de motivação para o tratamento pelo compartilhar de dificuldades e busca de alternativas para superálas Ambiente de construção de vínculos acolhida respeito à diferen ça e de reforço da autoestima onde se busca esti mular a pessoa a encontrar recursos para lidar com as questões do adoecer da doença e dos seus efeitos sobre a vida Caso clínico Meu nome é Jaime tenho 45 anos e estou no Gru po COM VIDA desde 2001 Para mim o grupo significa aprendizado ajudar as pessoas significa tudo para mim Não tenho outras palavras para expressar quando tive o diagnóstico eu achava que ia morrer logo Quando cheguei aqui vi pessoas convivendo com o vírus há anos e vi que não era bem como eu pensava A contagem de sobrevida das pessoas já me deu uma força Hoje eu já me imagino com 60 anos Comecei meu tratamento em outro hospital mas não fiquei satisfeito e consegui uma transferência para cá Cos tumo participar do grupo as segundas e quartas mas de vez em quando fico algumas semanas sem vir Mas sempre volto porque isso aqui me ocupa é melhor do que ficar em casa pensando besteira Acabo aprendendo com outras pessoas tenho informação sobre outras doenças aprendi a lidar com as atitudes das pessoas sendo elas soropositivas ou não Hoje em dia quando não concordo com alguma coisa me coloco no lugar da pessoa para ver se agiria igual Porque antes de saber que era soropositivo eu também ti nha preconceito e me afastava Todos acham que o HIV está bem distante mas ele está muito próximo Tão próximo que a gente não o enxerga Eu era informado trabalhava em unidade de saúde mas achava que só quem pegava era garota de programa e homossexual achava que olhando para a pessoa poderia saber se ela tinha AIDS ou não Hoje em dia vejo que não é nada disso O PERCURSO Ao longo desses 12 anos percorremos diversas etapas Inicialmente trabalhamos nossa capacitação profissional para compor a equipe de coordenação que denominamos facilitadores Discutimos e apren demos sobre teorias de grupo trabalho em equipe modelos de atenção princípios da integralidade concepções pedagógicas que respaldam ações de educação em saúde Apoiamonos em autores como PichonRiviere Bleger Julio de Mello Filho Zimer man Madel Luz Ricardo Donato Leonardo Boff Paulo Freire entre outros Nosso processo de trabalho desde então conta com um espaço de supervisão onde inicialmente pac tuamos os objetivos da atividade discutimos a busca pelo espaço físico a institucionalização da prática grupal formas de divulgação entre os outros profis sionais e os usuários Discutimos sobre a insegurança desencadeada pelos imprevistos deste tipo de prática dúvidas de condução falta de reconhecimento insti tucional perdas de pacientes No início a incerteza sobre a efetividade dessa proposta o medo do preconceito a necessidade de estabelecimento de confiança mútua entre profissio nais e usuários eram temas recorrentes nas super visões e nas conversas dos profissionais da equipe Concomitante a isso nas reuniões do grupo o inte resse dos pacientes era por informação de como so breviver à doença continuar no anonimato conhecer e garantir direitos a disponibilidade dos ainda novos e desconhecidos medicamentos e seus efeitos cola terais como lidar com o preconceito falas sempre perpassadas pelo medo do preconceito e pela ameaça da morte Com o tempo a apropriação da técnica a insti tucionalização do projeto a vinculação dos pacientes ao grupo o reconhecimento do trabalho no HUPE e para além dele da equipe de facilitadores até então muito unida e solidária passou a ter divergências que Os depoimentos apresentados neste artigo foram colhidos em entrevista individual com pacientes que participam do Grupo COM VIDA em maio de 2006 Psicossomaticaindd 445 Psicossomaticaindd 445 05012010 121221 05012010 121221 446 Mello Filho Burd e cols resultavam em conflitos e se expressava na condução do grupo e nos créditos sobre a autoria do trabalho Neste momento foi de extrema importância a inter venção do coordenador da então Disciplina de Me dicina Integral mediando as discussões com os pro fissionais de modo a redirecionar o foco para o mais primordial da proposta o cuidado aos pacientes Este foi um momento de vulnerabilidade e de sestruturação da equipe de profissionais que em muito se assemelhava à forma como os pacientes che gavam e ainda chegam ao Grupo COM VIDA após receberem o diagnóstico de soropositividade para o HIV Vivemos situações de conflitos de rupturas de perdas de profissionais de sofrimento e tensões que colocaram o grupo em risco Foram importantes também nesse momento as supervisões onde as intervenções do supervisor clarificaram movimentos inconscientes provocaram reflexões que sustentaram o objetivo maior que era permanecer cuidando dos pacientes em detrimento do nosso narcisismo dos facilitadores Perdemos importantes integrantes de nossa equipe inicial outros chegaram e enquanto nos re organizávamos os pacientes estavam em movimento de busca para melhor conhecer o tratamento as no vas medicações os exames de CD4 e carga viral po líticas públicas que legitimavam direitos e benefícios Tinhamse apropriado de algo que era primordial em nossa proposta desde o início interagir serem ativos não paralisar frente à ameaça de morte A ADESÃO À VIDA Com o passar do tempo as pessoas e os temas trabalhados no e pelo Grupo COM VIDA sofreram transformações do foco individual e de ameaça da morte para a preocupação com o coletivo e com a vida da negação da doença para a difícil negociação dos cuidados com a transmissão o desconhecimento para esclarecimentos sobre medidas de prevenção o re conhecimento de preconceitos próprios a cons cientização sobre necessidade de parceria na relação médicopaciente a necessidade da busca pela adesão terapêutica difícil porém necessária Ao longo desses 12 anos temos sempre durante as reuniões do grupo uma população contínua e outra flutuante que torna o trabalho dinâmico e sempre re novado Temos por semana em média 15 pacientes por encontro A frequência se divide em pacientes que são assíduos e participam desde as reuniões iniciais há 12 anos e pacientes recém diagnosticados que chegam a cada dia e que após se estabilizar vêm de forma ir regular Há também aqueles pacientes que participam de forma pontual A característica dessa frequência se por um lado sinaliza o quanto o cuidado ao paciente portador do HIV evoluiu ao mesmo tempo sinaliza o quanto a epidemia permanece ativa Desde o seu início o supervisor deste trabalho é o profissional da Psicologia Médica Professor Luiz Fernando Chazan Caso clínico Estou no grupo desde 2000 quando tive o diagnóstico a médica comentou do grupo No começo eu não queria vir porque achava que ia ver gente morrendo Não tinha noção de que eles estavam bem e fiquei com medo de vir Mas a médica falou que não era assim aí eu vim Na segunda vez eu vi uma pessoa que estava internada aí fiquei um pouco chocado Até hoje a gente fica meio assustado mas eu con segui separar as coisas Eu não tenho uma palavra que possa definir o que o grupo significa pra mim A gente faz um esforço para manter isso aqui porque às vezes dá vontade de largar tudo Mas a cada dia aparecem pessoas novas que nós podemos ajudar dar o nosso exemplo o que nos dá força Porque se nós que já estamos no grupo há mais tempo pararmos de vir o grupo acaba E assim como foi importante para mim chegar aqui também vai ser para outras pessoas O diagnóstico é uma pancada Então nós temos que estar aqui para poder mos receber as pessoas dar uma força É fundamental a gente multiplicar a informação Na consulta não dá tempo de falar tudo que a gente quer e às vezes a gente esque ce de perguntar alguma coisa na consulta e pergunta aqui Também me incomoda demorar na consulta enquanto tem um monte de gente esperando Mariano empresário solteiro 43 anos Os que participam de forma regular desenvolve ram uma compreensão mais clara do que é ser soro positivo e do compromisso com o seu tratamento têm uma atitude crítica perante a sociedade o sistema de saúde e a Instituição na qual se tratam Costumam ter um número baixo de interocorrências com relação a agravos à saúde e de forma recorrente suas falas trazem o valor do Grupo COM VIDA como espaço de segurança da informação como fator de ampliação da consciência e da solidariedade como dispositivo de fortalecimento da resiliência Alguns desses pa Naquela ocasião o coordenador da Disciplina de Medicina Integral atualmente Departamento de Medicina Integral Familiar e Comunitária era o Professor Michael Deveza Médico que desde 2003 atua como um dos facilitadores do Grupo COM VIDA Psicossomaticaindd 446 Psicossomaticaindd 446 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 447 cientes hoje atuam como multiplicadores de informa ção em nossa própria instituição em consultas con juntas para acolher quem chega recém diagnosticado nos ambulatórios visitando pacientes internados nas enfermarias do hospital participando de atividades educativas ou inseridos em outros grupos e em outras instituições de saúde Hoje com o advento da terapia antirretroviral cada vez mais consolidada a expectativa de vida au mentada a AIDS com status de doença crônica além das questões apresentadas acima há uma que é re corrente e aparece sob diferentes formas no grupo a adesão à vida Estar aderido à vida significa ser participante ativo do processo de cuidado tendo como perspecti va de vida um projeto de felicidade Faz parte do pro cesso de adesão à vida questionar a necessidade da fidelidade e continuidade do tratamento que traz a pessoa portadora do vírus HIV à unidade de cuidado e à saúde com frequência discutir a tomada rigorosa de medicamentos que têm efeitos colaterais que vão desde a náusea que fragiliza até a lipodistrofia que denuncia no corpo a soropositividade sobre a qual se quer confidencialidade entrar em contato com a ameaça de adoecimento a cada baixa no CD4 ou su bida da carga viral O paciente aderido à vida compara a vida atual com a de antes do diagnóstico e a valoriza vive a experiência da convivência com o HIV como opor tunidade de crescimento e de mudança de valores e atitudes Ser aderido à vida é estar em movimento e buscar resposta para o questionamento será que vale a pena continuar que nos momentos difíceis de falência terapêutica frustração afetiva perda de trabalho ou de companheiros insiste em ocupar o espaço mental É não paralisar ao viver situações de preconceito em ambientes que deveriam ser amisto sos e fraternos como a família e o trabalho é ampliar a consciência para a necessidade do uso do preserva tivo mesmo com parceiro de igual sorologia em uma sociedade que tem como lema toda forma de amor vale à pena e é também viver o desafio continuado de incluir o preservativo na relação sexual sem in terromper o prazer e sem perder a confiança no e do parceiro O Grupo COM VIDA é um espaço de cuidado que acolhe a pessoa soropositiva e fomenta a adesão à vida Como profissional de psicologia integrante da equipe de facilitadores do Grupo COM VIDA nes ses 12 anos pude perceber questões que eram tra zidas com sofrimento pelo risco e ameaça de morte iminente e que foram se transformando e tornaram se ameaças que podem vulnerabilizar a pessoa que vive com HIVAIDS tornandose ameaça à sua vida Ameaça a não sentir alegria não ter esperança e vi ver com serenidade a consciência da invulnerabili dade porque nos dizeres da coordenadora uma das idealizadoras e pessoa de referência que personifica o cuidado para pacientes e profissionais do Grupo COM VIDA a médica Denise Herdy o importante é ser feliz Este é hoje o desafio com que nos deparamos Nós coordenadores e pacientes do Grupo COM VIDA viver e ser feliz REFERÊNCIAS Bleger J Temas de Psicologia entrevista e grupos São Paulo Mar tins Fontes 1998 Boff L Opinião Saber Cuidar ética do humano compaixão pela terra Petrópolis RJ Vozes 1999 Camargo Jr KR As muitas vozes da integralidade In Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde Org Pinheiro R e Mattos RA Rio de Janeiro IMS UERJ ABRASCO 2001 Chazan LF Grupos homogêneos interdisciplinares In Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pacientes somáticos Org Mello Filho J Porto Alegre Artes Médicas 2000 Deveza M Saúde para todos médicos para o ano 2000 Disser tação de Mestrado Rio de Janeiro IMSUERJ 1978 Folkes SH et al Psicoterapia de grupo São Paulo IBRASA 1972 Freire P Pedagogia do Oprimido Rio de Janeiro São Paulo Paz e Terra 1979 Pedagogia da Autonomia Saberes Necessários à Prática Educativa São Paulo Paz e Terra 1996 Grinberg L Langer M Rodrigué E Psicoterapia de grupo Rio de Janeiro Forense 1971 Júnior JFO Grupoterapia Teoria e Prática São Paulo SPAG CAMP 1997 Kaplan H E Sadock BJ Compêndio de Psiquiatria Porto Ale gre Artes Médicas 1993 Luz MT Políticas de Descentralização e Cidadania novas práti cas de saúde no Brasil atual In Os Sentidos da Integralidade na atenção e no cuidado à saúde Org Pinheiro R E Mattos RA Rio de Janeiro IMS UERJ ABRASCO 2001 Mello Filho J Psicossomática HojePorto Alegre Artes Médicas 1992 Prefácio In Grupoterapia Teoria e Prática Org Júnior JFO São Paulo SPAGCAMP 1997 Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pacientes so máticos Porto Alegre Artes Médicas 2000 Peguin RC Concepção operativa de grupos In Grupoterapia Te oria e Prática Org Júnior JFO São Paulo SPAGCAMP 1997 PichonRivière E O processo grupal São Paulo Martins Fontes 1982 Rezende ALM Saúde dialética do pensar e do fazer São Paulo Cortez 1989 Rodrigues RD A crise da medicina prática e saber alguns aspec tos Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro IMSUERJ 1979 Rovere MR Planificacion Estrategica de Recursos Humanos en Salud terceira version Programa de Desarrollo de Recursos Hu manos de Salud OPAS 1992 Psicossomaticaindd 447 Psicossomaticaindd 447 05012010 121221 05012010 121221 448 Mello Filho Burd e cols Santos DF Vivendo com HIVAIDS cuidado tratamento e ade são na experiência do grupo Com Vida Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro IMSUERJ 2001 Smek ELM Oliveira NLS Educação em Saúde e Concepções de Sujeito In A Saúde nas Palavras e nos Gestos Reflexões da Rede Educação Popular e Saúde Org Vasconcelos EM São Pau lo Hucitec 2001 Schön DA Educando o Profissional Reflexivo um novo design para o ensino e a aprendizagemPorto Alegre Artes Médicas Sul 2000 Vasconcelos EM Educação popular e a atenção à saúde da famí lia São Paulo Hucitec 2001 Zimerman DE Fundamentos básicos das grupoterapias Porto Alegre Artes Médicas 1993 Zimerman DE Ozório LC Como Trabalhamos com Grupos Porto Alegre Artes Médicas Sul 1997 Psicossomaticaindd 448 Psicossomaticaindd 448 05012010 121221 05012010 121221 Este trabalho é resultado da experiência de uma equipe de psicólogas durante o período de três anos numa instituição que atende exclusivamente a pacientes hemofílicos Após a avaliação das necessi dades da instituição e de seus pacientes foi possível organizar alguns tipos de atendimento baseados nos modelos psicossomáticos ASPECTOS CLÍNICOS DA HEMOFILIA A hemofilia é uma doença crônica e se caracte riza por uma deficiência genética no cromossomo X que tem como efeito a carência de proteínas funda mentais para o processo de coagulação do sangue O hemofílico transmite a suas filhas o gene com tal característica hereditária e estas portadoras o transmitirão ou não a seus descendentes diretos con forme a combinação cromossômica No caso de filhos homens que recebam essa carga genética a doença será manifesta o mesmo não acontecendo com as fi lhas que continuarão sendo portadoras pois um dos cromossomos X compensa a deficiência do outro Um casal em que ambos possuam a deficiência genética tem a probabilidade de vir a ter filhas nas quais a doença será manifesta Existe um grande número de casos em que não se tem conhecimento de antecedentes familiares o que pode ser explicado porque a doença tenha per manecido latente durante várias gerações de porta doras do gene ou por mutação genética Manifestações clínicas são frequentes e se carac terizam principalmente por hemorragias cerebrais e intraarticulares deformantes que dificultam a mar cha e podem levar à invalidez total Pequenos trau matismos ou cortes podem provocar sangramentos prolongados tornandose até mesmo fatais se não tratados a tempo Um número determinado de fatores é necessá rio para a coagulação sanguínea e sua carência vai causar os diversos tipos de hemofilia classificada de acordo com a proteína ausente no sangue e com a porcentagem que este possui de fatores de coagula ção Pode ser grave leve e moderada Os sintomas variam frequentemente de acordo com a classifica ção A descoberta do concentrado do fator ausente no sangue dos hemoffiicos através da crioprecipita ção centrifugação do sangue humano sob o frio foi a redenção desses pacientes possibilitando retirar o fator coagulante denominado CRIO para salvar vi das e possibilitar um tratamento Infelizmente a evolução no tratamento coinci de com o aparecimento do vírus da AIDS e por serem os preparados do sangue produto de muitas doações até 1984 sem controle o vírus foi transmitido em grande escala UMA GRANDE FAMÍLIA É importante que discutamos alguns aspectos institucionais devido às transformações ocorridas com a introdução de aidéticos em um local que trata va apenas de pacientes hemofílicos e que como ou tras instituições semelhantes teve que se adaptar à nova condição Consideremos então dois momentos antes e depois da AIDS Antes da AIDS o atendimento ao paciente he mofílico voltavase apenas para os problemas hemor rágicos e suas consequências além do tratamento profilático Esse trabalho envolvia profissionais das áreas de hematologia odontologia ortopedia fisio terapia e enfermagem A instituição em que trabalhamos possui um al bergue criado com o intuito de receber pacientes que 36 HEMOFILIA E AIDS Virgínia Fontenelle Eksterman Ana Cristina M Procaci Lisandre F Oliveira Marcia Pinto Fontenelle Mello Patrícia Corina Rocha Psicossomaticaindd 449 Psicossomaticaindd 449 05012010 121221 05012010 121221 450 Mello Filho Burd e cols residam em locais afastados principalmente outros municípios ou Estados como também aqueles que se encontrem em dificuldades físicas ou financeiras de se deslocar para um acampamento regular Esses muitas vezes requer sessões diárias de fisioterapia além de sucessivas aplicações do CRIO Essas entidades de assistência a pacientes he mofílicos tinham um funcionamento harmônico até que começaram a surgir repetidos quadros de infec ção tornandose muitos deles fatais A princípio não se tinha confirmação de um diagnóstico até que se chegasse à síndrome da imunodeficiência adquirida A partir de então todas as instituições tiveram que se adaptar às novas circunstâncias Os pacientes que eram atendidos como hemofí licos passíveis de tratamento e melhora de qualidade de vida ao serem contaminados pelo vírus passaram a necessitar de outros cuidados clínicos Ocorreu en tão nesses locais a necessidade de reformulações no atendimento O trabalho com o paciente hemofílico antes do surgimento da AIDS deixava os funcionários gratifi cados As equipes principalmente a enfermagem se achavam orgulhosas e responsáveis pelo alívio que proporcionavam através da terapêutica Predomina va um sentimento em que todos se viam como uma família dada a frequência com que se encontravam e a confiança que os pacientes e seus familiares neles depositavam Alguns funcionários chegavam mesmo a frequentar residências e festas acompanhando o crescimento dos meninos que era como se referiam a eles Para se compreender o momento atual é ne cessário que se fale desse anterior dos sentimentos de satisfação orgulho e confiança que predomina vam A RUPTURA O ANTES E O DEPOIS A partir do instante em que se começa a tomar consciência da vulnerabilidade dos pacientes inicia se um processo de desorganização da equipe que também se torna vulnerável frente à nova ameaça e às perdas O sentimento de responsabilidade é agora deslocado para a nova doença É no relato de algumas pessoas da enfermagem que percebemos a angústia do hoje frente aos pa cientes e à experiência do passado que era de satisfa ção pela pronta recuperação Todos os portadores de hemofilia tiveram as mesmas possibilidades de contaminação o CRIO ou as transfusões de sangue em algum momento fize ramse necessários para aliviar uma dor ou mesmo salvar suas vidas O CRIO a partir do momento de sua descober ta passa a ser a solução para a prevenção e tratamen to dos episódios hemorrágicos e também um veículo para uma possível contaminação por necessitar de um grande número de doadores pool de 2000 doa dores para 50 frascos de CRIO o que torna difícil seu controle A instituição reproduz o modelo que foi viven ciado na relação maternoinfantil a mãe o contami nou com hemofilia e a instituição com AIDS Os pacientes vivem uma dualidade o CRIO cura e os faz adoecer ao aparecerem os primeiros sintomas têm que recorrer ao mesmo local que res ponsabilizam por sua contaminação Um novo jogo acusatório surge necessitando de novas elaborações A relação com a instituição como a relação com a mãe tornase ambivalente a mãe faz adoecer e cuida de sua pessoa a instituição cura e faz adoecer o hemofílico Pela extrema dependência que essas pessoas têm dos outros mãe insituição doadores acabam aceitando passivamente a situação Os funcionários vivenciavam também os senti mentos em forma de culpa acusação e luto por terem participado da prescrição e aplicação do CRIO nos pacientes contaminados Tornouse difícil para mui tos suportar a situação havendo pedidos de demissão e de transferência Os pacientes que já carregavam a bagagem de uma doença crônica grave como a hemofilia pas saram a carregar uma bomba de efeito retardado vista dessa maneira pelas enfermeiras médicos e pacientes a AIDS com sua característica de doença desintegradora da pessoa física e mental Nosso trabalho se inicia com o contato direto com os membros da equipe e seus pacientes sem nos atermos a técnicas ou teorias visando a compreen der os aspectos biopsicossociais para assim definir as necessidades surgidas com as intensas mudanças verificadas em função da contaminação de pacientes pelo vírus De início reunimos os funcionários dos vários setores para discutir o que representavam essas mu danças Os grupos tiveram duração de alguns meses e nos revelaram o medo de contaminação e o luto pelas perdas As pessoas diretamente ligadas aos cuidados com o paciente viviam momentos de grande ansiedade vis to que aqueles que consideravam como irmãos e filhos adoeciam e morriam por sintomas vários independen te de sua dedicação e cuidados O relato de um grupo de enfermeiras mostra que a angústia era grande ao se depararem com a desintegração dos pacientes infec tados e as possibilidades de serem também contami nadas provocando um afastamento físico agora a enfermagem tem que usar luvas e capotes Psicossomaticaindd 450 Psicossomaticaindd 450 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 451 Enfermeira 1 antes era resolver a dor da hemorra gia tomavam o CRIO e saíam bem Agora internamse ficam mal e mor rem Enfermeira 2 antes eram rapidamente resolvidos os problemas agora é um tal de in ternar ter alta e internar até que eles ficam sem condições de sobreviver Enfermeira 3 eu não quero mais me ligar a ne nhum sofro como se fossem meus filhos Enfermeira 4 eu não me ligo mais brinco trato mas procuro não me envolver fico fria Outra situação semelhante foi trazi da num grupo que se realizou após uma semana em que faleceram qua tro pacientes Enfermeira 1 quando fiz faculdade pensava em cuidar dos pacientes e vêlos melho rar agora só faço tamponar e em pacotar Às vezes penso que trabalho num necrotério Enfermeira 2 chorei quando soube da morte de Z deixeio melhor no fim do plantão e quando voltei estava morto Enfermeira 1 aqui existe o antes e o depois Antes éramos unidos uma grande família Enfermeira 2 durante 15 anos acompanhamos estas pessoas agora estão morren do chora Compreendemos as mudanças e a angústia fren te a uma nova realidade Quando iniciamos não pudemos deixar de con siderar só os problemas de uma doença como hemo filia porque a grande maioria dos pacientes estava contaminada e muitos já apresentavam sintomas ou morriam de infecções diversas A AIDS é uma realidade como a hemofilia e há que conviver com a ideia de morte Morte difícil de situar dentro da pessoa fica fora no medo do CRIO ela morte está nos outros O PACIENTE MINHA MÃE QUERIA TER FILHOS HOMENS E EU SOU HEMOFÍLICO Nossos primeiros contatos com os pacientes fo ram através de grupos experimentais que se realiza vam semanalmente e cujos componentes eram enca minhados pelas equipes Os grupos conduzidos por duas psicólogas eram formados no seu início por pacientes que esta vam acessíveis sem relação de idade ou de situação clínica Esses em sua grande maioria eram provenien tes de famílias de baixo poder aquisitivo com pou co acesso a informações e muitos residindo distante principalmente em outros municípios carentes de infraestrutura A maior parte dessas famílias ignora va a razão de repetidas mortes de figuras masculinas durante várias gerações Faltava o conhecimento so bre hemofilia Um paciente proveniente do interior relatou num dos grupos iniciais que eram em sua cidade ninguém sabia nada sobre hemofilia inclusi ve sua mãe que teve 15 filhos homens perdendo 14 desses O paciente diz que sofreu muito durante sua infância e adolescência só sendo diagnosticada a en fermidade quando esta já havia provocado sequelas irreversíveis O indivíduo hemofílico está a todo momento de frontandose com os desafios inerentes a sua doença Esses pacientes por serem portadores dessa deficiên cia que pelas sucessivas hemorragias intraarticulares os leva muitas vezes a deformidades dos membros têm a relação com o corpo prejudicada Desde muito pequenos é mostrada sua fragilidade física e na re lação com seus pais aprendem que seus movimentos têm que ser controlados para não se ferirem Alguns dos pacientes que atendemos apresenta vam deformidades articulares que prejudicavam seus movimentos Nesses observamos uma gravidade maior na relação com sua autoimagem Sentiamse lesados por sua condição de serem hemofílicos e pe las restrições físicas e sociais que lhes eram impostas Acreditamos que esses fatos influenciavam todo o curso natural de desenvolvimento físico e emocional Percebiamse diferentes à medida que eram impedi dos de uma série de atividades comuns à sua faixa etária as quais podiam causar dor física e danos cor porais M 14 anos tenho raiva quando me chamam de Zico Como hemofílico sou discrimina do pelos colegas preferia não ter as duas pernas a ser hemofílico Não gosto que minha mãe diga no colégio que sou hemofílico J 12 anos fico com raiva de minha irmã quando brigamos e ela diz que não vai me ba ter porque eu não aguento Os limites necessários à sua preservação pas sam a ser vivenciados como privação O sentimento de liberdade física inerente ao ser humano transfor mase em impotência e dependência reforçadas pe los cuidados das pessoas que os rodeiam que acabam cerceando sua conduta Ocorrem dificuldades esco Psicossomaticaindd 451 Psicossomaticaindd 451 05012010 121221 05012010 121221 452 Mello Filho Burd e cols lares por conta das repetidas faltas ao colégio de correntes dos episódios hemorrágicos extremamente dolorosos Essas crianças vão até a vida adulta com difi culdade na área afetiva Sua sexualidade também é comprometida Nascem com o estigma é na relação sexual dos pais que se contaminam com hemofilia As deformações e sua fragilidade física por con ta de sua doença causam uma baixa autoestima O sentimento de ser diferente não ser homem e sim hemofílico já é sinalizado desde a meninice e vai se agravando na adolescência e na vida adulta Aspectos homossexuais são evidenciados em al guns casos Em suas histórias aparece o sentimento de abandono onde a falta da figura paterna é co mum associada a uma relação intensa com a mãe que tenta compensar a doença A transmissão da hemofilia também limita seus relacionamentos sexuais e afetivos Poucos elementos da sexualidade foram inves tigados pois nosso trabalho não tinha esse objetivo como principal e sim a pessoa do hemofílico como um todo Concluímos que devido aos aspectos menciona dos de não se aceitarem e se sentirem indivíduos à parte passam a ter atitude de negação e ocultação da hemofilia por pensarem que assim serão aceitos nos grupos empregos e relacionamentos amorosos Ocorrem grandes dificuldades de integração social sentemse pessoas hemofílicas diferenciadas vivendo à margem Nos primeiros contatos quando nossos grupos eram mais de coleta de dados e um espaço de fala e escuta registramos o que segue Z 20 anos hoje em dia não me preocupo com pro blemas com o joelho sei que vai e vol ta já acostumei No início ficava com medo de não poder mais andar Acho que às vezes a pessoa está tão desliga da do problema que se machuca e nem percebeu sente a dor e não sabe como foi F 18 anos acho que quanto mais a pessoa fica pensando no problema é pior Procuro esquecer que tenho problema se ficar pensando nisso acabo não podendo fa zer nada Z faço coisas que as pessoas dizem que não posso fazer O hemofílico sabe que não pode fazer muitas coisas porque os outros estão sempre avisando mesmo assim faz Terapeuta Vocês estão preocupados em saber se nós vamos entendêlos Tantas limita ções Tantas dores F As pessoas não sabem direito o que é hemofilia Ficam perguntando se vamos morrer não dão emprego mesmo que o hemofílico seja bom profissional vão escolher o que não é hemofílico Z estão sempre proibindo nossos movi mentos até os que podemos fazer Terapeuta Vocês precisam provar que são pessoas iguais a todos B 14 anos vi uma propaganda na televisão onde o hemofílico mostrava que poderia san grar até fazendo a barba O hemofíli co pode ferirse até com o espinho da rosa Z uma mulher nunca vai gostar de alguém hemofílico vai escolher alguém que tenha saúde seja fisicamente perfeito e tenha emprego Terapeuta Vocês falam do cuidado que temos que ter com vocês para que não sejam feri dos ainda mais Compreendemos que a comunicação girava em torno da fragilidade sentida em relação ao corpo desde a infância e as queixas com os limites que lhes são impostos O comportamento geral do paciente hemofílico é de se adaptar ao tratamento às repetidas transfu sões ou crioterapia Seu corpo é entregue à institui ção é a submissão por questão de sobrevivência Em grupos com crianças e adolescentes obser vamos que sua passividade era representada em de senhos e também verbalizada como a identificação com Cristo em seu calvário eles são como Cristo têm que entregar os braços para a CruzCRIO Alguns se rebelam e se colocam em situações de risco negando a doença e as frustrações pelas li mitações H 12 anos me sinto mais calmo porque tenho al guém para conversar e que me explica as coisas às vezes tenho raiva de meus pais eles não me compreendem mas cuidam de mim esta semana apertei o pescoço do cachorro B 14 anos sinto raiva de meus pais Liguei para meu pai e reclamei que ele não vem me visitar H tenho raiva de minha irmã que me im pede de brincar B as pessoas não sabem o que é hemofi lia sinto que meus colegas me discrimi Psicossomaticaindd 452 Psicossomaticaindd 452 05012010 121221 05012010 121221 Psicossomática hoje 453 nam Outro dia ficaram me perturban do com a história de que eu sangraria até a morte me cortei de propósito e mostrei que não era bem assim hemo filia pra mim é nos joelhos gostaria de esconder que sou hemofílico mas o jo elho não deixa H eu jogo bola quando tenho vontade B Gostaria que descobrissem a cura da he mofilia Nosso objetivo era compreender a psicodinâmi ca do funcionamento mental do paciente hemofílico suas relações familiares institucionais e com a pró pria doença Tentávamos não rotular essas pessoas pois percebíamos que sua identidade já era compro metida Elas se colocavam sempre como hemofílicas não se sentindo homens pessoas Dependiam do san gue dos outros para serem inteiros Junto a outros pa cientes hemofílicos a fusão da pessoa com a doença era reforçada não havia eu havia um eu hemofílico Ser hemofílico é viver apartado dos normais isso era expresso nos relatos das crianças adolescentes e até adultos com hemofilia Em nossos encontros ouvíamos suas histórias que nos revelavam sentimentos vividos desde a mais tenra infância Vivenciamos juntos suas limitações ressentimentos e reivindicações por serem doentes diferenciados pela carência de fator Tentaremos a seguir caracterizar a situação aci ma com um grupo de 8 adolescentes na faixa etária entre 12 e 15 anos Ao iniciarmos o grupo era rotina anotar os no mes dos elementos novos que estavam presentes Nesse grupo havia um jovem de 15 anos não he mofílico que acompanhava um irmão menor Ao per guntamos seu nome um dos componentes G diz imediatamente ele não é hemofílico antes de o rapaz se identificar No início do grupo os garotos se organizaram em torno da mesa voltados para um painel com figu ras desenhadas do Pato Donald Minnie e outros H hoje está mais cheio de gente após algum tempo Tem algo de errado Terapeuta Algo de errado H Não estou conseguindo fazer o dese nho N Eu vou copiar o desenho pode co piar Terapeuta Pode N Está tudo torto Olha só Enquanto isso o acompanhante copiava um dese nho que todos admiravam G pedelhe que faça um desenho H Ele desenha bem trabalha em madei ra faz muitas coisas Terapeuta Ele não é hemofílico H Minha mãe queria ter filhos homens Terapeuta Você não se sente homem H Eu sou hemofílico RELAÇÃO FAMILIAR Com referência às mães atendidas observamos que com o nascimento e a confirmação da doença é como se houvesse uma concretização da fantasia de levar dentro de si algo estragado e destruído Muitas mães mesmo não havendo casos na fa mília sentemse responsáveis pela doença do filho Passam a vivenciar inconscientemente uma culpa experimentando também ambivalências aceitação e rejeição com relação à criança A família se estrutura em torno de conflitos que dificultam a relação entre seus membros Nas que ob servamos muitas vezes a reação do pai era de omis são ou até de abandono do lar reforçando na mãe o sentimento de culpa B 29 anos mãe de dois filhos hemofílicos de 4 e 5 anos diagnóstico de hemofilia quando o filho mais velho tinha pouco mais de 1 ano e o segundo filho já havia nascido Fez o teste confirmando a doença Quando o marido soube que os filhos eram hemofílicos começou a acusála dizendo que ela não se tratara quando devia Começou a se impa cientar com as crianças acusandoas de estarem podres por dentro como a mãe vindo a abandonar a família quando foi diagnosticada AIDS em am bos os filhos Quando o diagnóstico é precoce a relação mãe bebê fica mais vulnerável porque até os cuidados maternos poderiam machucálo provocando hema tomas P mãe de um paciente de 5 anos conta que vá rias vezes ao levantálo do berço quando bebê no tava a formação de manchas roxas no local onde o segurara Em outros relatos aparecem fatos semelhantes como também o surgimento de hematomas nos joe lhos cotovelos e pés ao engatinhar e sangramentos nasais ou de gengivas na época do rompimento dos dentes Observamos vários tipos de conduta reacional A mãe que tendo um filho lesado tenta ter outros sãos com o objetivo de provar a si mesma que é ca paz de gerar filhos bons já que vê seu filho doente como algo mau Nessas mães há uma atitude ambi valente de superproteção ao filho doente em detri mento dos outros vivendo para esse filho Muitas Psicossomaticaindd 453 Psicossomaticaindd 453 05012010 121221 05012010 121221 454 Mello Filho Burd e cols vezes o sentimento de impotência levava as famílias a entregar seus filhos à instituição por se sentirem incapazes de cuidar deles já que outros poderiam fazêlo melhor A 32 anos teve dois filhos homens não tendo conhecimento de casos de hemofilia na família até ser diagnosticada a doença no primeiro filho Mesmo assim resolveu de comum acordo com o marido ter uma segunda criança pois achava que poderia ser uma menina e que devido ao problema do primei ro filho algo poderia lhe acontecer Quando nasceu o segundo menino a reação imediata do marido foi de abandonálo no hospital pela possibilidade de ser portador da deficiência que foi confirmada posterior mente Alguns pais tentavam dar a seus filhos todas as compensações por se sentirem responsáveis por sua doença No discurso dos pacientes era comum a exalta ção da figura materna e um grande medo de perdêla era verbalizado compulsivamente deixando implícitas suas fantasias destrutivas SINAL VERDE PARA O INFERNO Durante algum tempo tentamos ver os pacien tes apenas como portadores de hemofilia porém de paramonos com a impossibilidade de separar hemo filia de AIDS Os pacientes nos revelavam que apesar desses sentimentos era muito difícil tomar conhecimento das probabilidades reais de estarem ou não contami nados Isso não era vivido só por eles os médicos também tinham dificuldade de comunicarlhes o re sultado de seus exames Os pacientes tentavam resolver em nossos en contros as questões referentes à contaminação Mui tas dúvidas eram trazidas sobre a qualidade atual do tratamento e o medo do diagnóstico aparecia com frequência Diriam que a vida do hemofílico era uma constante luta e agora um desafio maior T 20 anos a senhora viu o programa que falava so bre hemofilia e AIDS J 23 anos esse tema me incomoda Agora ser he mofílico é dizer que somos de um grupo de risco W 18 anos todos os lugares só falam sobre isso R 25 anos já sabia de tudo que iam dizer e resolvi dormir cedo para não me atormentar AIDS para o hemofílico é o sinal verde para o inferno T acabou a esperança que havia no CRIO agora ele significa AIDS A todo instante o medo de serem discriminados e abandonados era tema em nossos encontros S 25 anos as pessoas quando descobrem que so mos hemofílicos se afastam F 14 anos gostaria que houvesse mais informa ções sobre as doenças como a AIDS acho que se as pessoas souberem que sou portador do vírus irão se afastar de mim H 15 anos já escutei comentário de colegas na es cola dizendo para se afastarem de mim porque sou hemofílico logo tenho AIDS C 23 anos além do preconceito social agora até os médicos e hospitais estão discriminan do ESTAR ALI Percebemos a necessidade de se sentirem com preendidos e aceitos enquanto hemofílicos e prová veis portadores do vírus e que esse seria um dos as pectos mais importantes a serem trabalhados Víamos aí uma permissão para vivenciarmos com eles os sen timentos de medo discriminação e luto experimen tados com a ameaça do vírus da AIDS já que podería mos ser também contaminadas pelas representações de seus afetos Compreendemos após algum tempo que para o paciente e sua família a AIDS representava a reedi ção da hemofilia tal a intensidade da fusão O adoe cer e conviver com a hemofilia era revivido quando se sentiam contaminados pela AIDS Todas as expe riências primitivas de abandono rejeição limitações físicas e afetivas são reacendidas Após alguns meses modificamos a organiza ção do atendimento numa tentativa de sistematizar melhor o trabalho Os atendimentos passaram a ser em vários locais na enfermaria num consultório na própria instituição ambulatório e na casaalbergue Nossa preocupação principal era estar ali disponí veis para ouvir e acompanhar No ambulatório tínhamos como objetivo apro veitar o atendimento médico ao paciente para incluir nossa consulta pois achávamos importante que hou vesse um contato com cada um Sentíamosnos apreensivas quanto a qualidade e validade desses atendimentos pois alguns compa reciam apenas uma vez A maioria dos casos que nos eram encaminhados expressava a angústia do paciente e a do médico de lidarem com a nova situação Após a descoberta de que o vírus estava vinculado ao CRIO muitos abandonaram a rotina de tratamento só apa Psicossomaticaindd 454 Psicossomaticaindd 454 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 455 recendo quando a situação era muito grave Algumas vezes o médico encaminhava o paciente para nosso setor quando ele relutava em aceitar o tratamento ambos tinham dificuldade de entrar em contato com o diagnóstico Em outras ocasiões éramos solicitadas quando havia ameaça de suicídio Recebíamos na maioria das vezes o paciente deprimido e desesperado não aceitando mais os cui dados médicos O diagnóstico era vivido como uma sentença de morte para esses pacientes que acompa nhavam o adoecer e a desintegração dos amigos Ao contemplálos sentiam seu destino determinado Os familiares também relutavam em frequentar a instituição Nosso trabalho de apoio aos membros da família visava a diminuir a ansiedade frente à si tuação de perda iminente e tentávamos ajudálos a ficar junto ao paciente Acreditamos que a situação já vivenciada por essas pessoas com a doença de base era um fator agravante impedindo uma aproxima ção por envolver sentimentos de culpa e ansiedade persecutória desde os primórdios da relação Atendíamos principalmente mães cujos filhos se encontravam internados na enfermaria pela dispo nibilidade e grau de angústia em que elas se encon travam Os cuidados que essas mães tinham com os fi lhos que antes eram só hemofílicos agora com o ad vento da AIDS são reforçados As mães sentiamse responsáveis pela doença primeira e agora também pela contaminação e morte O sentimento de culpa é agravado e vivido muito mais intensamente Algu mas mães voltavamse exclusivamente para esse filho doen te abandonando todas as suas outras atividades e também a família R 35 anos tinha três filhos sendo o mais novo J 10 anos portador de hemofilia e com vários casos da deficiência registrados na família J estava inte mado na enfermaria com um quadro avançado de in fecção no SNC apresentando hemiplegia e afasia R encontravase internada juntamente com o filho há mais de 30 dias durante os quais permanecia quase ininterruptamente a sua cabeceira Sentiase muito culpada pelo abandono de seus dois outros filhos de 15 e 12 anos Relatava que eles cobravam sua pre sença principalmente o mais novo que estaria co meçando a apresentar dificuldades escolares Falava também do quanto era intenso o sofrimento na en fermaria R não conseguia afastarse do filho mesmo tendo uma pessoa da família com quem segundo a mãe ele ficava tranquilo Dizia em seu relato sou eu quem tenho que ficar com ele eu é que sou a mãe dele eu é que tenho que sofrer com ele Esse comportamento era comum Muitas mães pediam para serem atendidas na própria enfermaria pela dificuldade de se separarem do filho Em outros casos mães sentiam dificuldade de acompanhar o filho doente e até mesmo de visitálo com frequência deixandoo abandonado na enfer maria Ver o filho emagrecido e consumido era dolo roso para essa mãe Ela revive a culpa por têlo feito doente e não suporta ver sua morte F 38 anos teve 8 filhos sendo 6 homens dos quais 4 faleceram bebês Sobreviveram o mais velho e C 11 anos portador de hemofilia F não conseguiu assistir o filho quando nos pe ríodos de intemação fazendo visitas rápidas e esporá dicas e reafirmando que não suportava vêlo sofrendo tanto Dizia eu não suporto vêlo morrendo as pessoas não entendem e ficam me cobrando Em sua primeira entrevista F demonstrava vi sivelmente seu sentimento de culpa por tantos filhos falecidos Num momento de grande ansiedade rela tou eu não tive culpa por meus filhos serem he mofílicos e terem morrido eu não sabia dessa doen ça Se soubesse não teria tido tantos filhos perdia um tentava outro Também era comum encontrar o leito da criança repleto de presentes não condizentes com a realidade econômica da família Compreendíamos que representavam não só uma compensação mas também uma forma de a mãe apaziguar sua própria culpa Em alguns momentos esposas de pacientes pro curavam nosso setor em busca de apoio por terem conhecímento do diagnóstico do marido e de possi bilidades de contaminação sobretudo as que haviam sido informadas do resultado soropositivo de seus próprios exames Atendimento a casal era raro em função do clima acusatório existente A ANGÚSTIA DO VIR A MORRER Nossa equipe vivenciou um dos momentos mais difíceis em nossa trajetória na instituição ao transpor a porta da enfermaria Sabíamos que esse local havia sido criado com a finalidade de atender à demanda que emergia fren te à nova realidade passando a ter a representação da morte A necessidade de internação era vivencia da pelo paciente como a confirmação da AIDS Certa vez um paciente comparou a enfermidade a Alcatraz quando disse é difícil entrar Ficou claro seu ato fa lho e sua alusão inconsciente à fantasia que faziam de que aquele que é internado não tem mais retorno Perguntávamos a nós mesmos que fazer naquele espaço de 20 leitos muito próximos que revelava a cada paciente a situação ao lado e que fazia com que juntos vivessem todas as situações de emergência que ocorriam a sua volta Psicossomaticaindd 455 Psicossomaticaindd 455 05012010 121222 05012010 121222 456 Mello Filho Burd e cols Em determinado momento quando duas psicó logas estavam atendendo dois pacientes individual mente na enfermaria ocorreu uma emergência V 40 anos havia feito uma cirurgia de amputação do membro inferior esquerdo até a altura da coxa Quando estava sendo atendido a enfermeira pede licença para fazer o curativo diário O paciente ao ser manipulado tem uma hemorragia grave e às pressas ocorre o atendimento de emergência A te rapeuta permanece no local e pelo olhar do paciente é percebido como é importante que a psicóloga possa estar presente naquele momento Nada é possível di zer mas tudo é dito através do olhar Não foi fácil vivermos aqueles momentos O so frimento que nos causavam era muito intenso mas a necessidade dos pacientes era maior e nos fazia do minar o pânico e o medo de sermos contaminados pela AIDS para dar a eles mais afeto A cada instante nos questionávamos sobre o que dizer para o paciente internado na enfermaria que vivenciava sentimentos de luto e perda dos com panheiros e sofria a mesma desintegração do corpo que caracteriza o estigma da AIDS A angústia do vir a morrer ou estar morrendo sobrepõese a do como morrer Era a permanente convivência com a morte que estava no paciente nos exames na internação e na medicação Há que se evadir do frasco negro Fujizon medicação que vinha envolvida em plástico preto e que era um dos últimos recursos tentados À medida que o tempo passava envolvíamosnos cada vez mais com o trabalho e percebíamos que para aquela pessoa deitada no leito o mais importante era saber que estávamos ali partilhando até do silêncio silêncio que se nos infiltrava e provocava sentimentos de impotência e inutilidade Percebemos que estáva mos juntos no silêncio ou no discurso para aplacar os sentimentos de solidão e abandono que nesse momen to eram vivenciados mais intensamente L 16 anos que fora acompanhado por uma psi cóloga da equipe desde suas primeiras internações já em seus últimos dias de vida que expirava visivel mente às vezes parecia não perceber a psicóloga que chegava próximo a seu leito e trocava algumas pala vras com sua mãe ou simplesmente ali permanecia por algum tempo durante o qual L praticamente não se manifestava No momento em que a terapeuta co municava que iria se retirar L lamentava e solicitava que permanecesse mais um pouco A necessidade de um isolamento por parte de alguns pacientes se mostrava através de seu silêncio Em várias situações repetiuse o fato de eles silen ciarem poucos momentos antes de morrer como se nos dissessem que nada mais tinham a falar só o silêncio fala Z 28 anos internado na enfermaria em seu último encontro com a psicóloga tentava sintonizar sem conseguir seu rádio e após algum tempo diz Não adianta ele não quer mais falar B 11 anos deitado em seu leito pede à psicólo ga que o cubra A terapeuta atende a seu pedido e se despede Ao chegar à porta ele solicita que retome e quando ela se aproxima ele diz Tia cobre até a minha boca por favor Em ambos os casos os pacientes permaneceram calados até seu momento final que ocorreu num cur to espaço de tempo A PSICOLA A CASA DO HEMOFICO Ao iniciamos o trabalho com os pacientes que vi viam na casaalbergue sentíamosnos como observado ras e recreadoras Resolvemos utilizar material como lápis papel cola etc com as seguintes finalidades 1 permitir nossa aproximação dos pacientes de for ma menos ameaçadora pois era assim que nos sentíamos 2 aplacar nossa ansiedade ante a possibilidade de encontrar em alguns dias a mesa vazia 3 facilitar a relação pacienteterapeuta Os dias em que não compareciam eram vazios a acreditáva mos que eles estavam nos testando O material que nos traziam nesses primeiros momentos eram desenhos representados por minús culos corações flores casinhas sobre finas palafitas bonecos com os membros superiores ou inferiores atrofiados As figuras eram vazias apresentando só o contorno Os bonecos feitos com argila eram peque nos e frágeis e quebravamse ao serem manuseados O silêncio predominava no grupo e a comunicação se dava praticamente através dos trabalhos Compre endíamos O quanto essa fragilidade e o vazio repre sentavam seus próprios sentimentos e a percepção de si mesmos Esse período foi longo e com o tempo as faltas foram se espaçando e os testes pelos quais pas sávamos iam mudando Durante alguns meses os pacientes foram aten didos no refeitório Porém ocorreu por acaso uma mudança para uma sala mais reservada onde se sen tiram mais à vontade Solicitaram então que os en contros passassem a se realizar ali A mudança facilitou o relacionamento com os pacientes que passaram a se revelar mais permitin do maior intimidade Alguns tinham hemorragias outros traziam se ringas usadas brincando com elas à mesa Traziam Psicossomaticaindd 456 Psicossomaticaindd 456 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 457 concretamente suas representações do que era hemo filia e AIDS Sentíamos a ameaça que pairava sobre nós e os pacientes quando as seringas e as hemorragias tra ziam o sangue contaminado Não desconhecíamos os riscos reais tendo muitas vezes que estipular limites para eles dar explicações sobre os cuidados que de veriam ter e lidar com os nossos próprios medos e fantasias Percebíamos que o paciente nos mostrava como era perigoso se ligar a ele como esse afetoAIDS era arriscado Vivíamos o drama juntos e muitas vezes o paciente era medicado diante de nós Trabalhávamos dentro de nossos limites ou não suportaríamos dar continuidade à nossa relação e ao mesmo tempo éramos cautelosas com os sentimentos dos pacientes ao falarmos dos riscos de contaminação A proporção que o vínculo terapêutico ia se consolidando os pacientes crianças e adolescentes começaram a se colocar verbalmente contando e de senhando histórias assustadoras de monstros que os aterrorizavam de morcegos que muitas vezes vinham representados por figuras de vampiros de superhe róis e finalmente de caveiras As caveiras e os morcegos são os vilões de uma história de terror e representam a ameaça de morte ou de final trágico É com os superheróis que eles nos solicitam a força para combater o inimigo hemo filia AIDS e morte Em determinados momentos os desenhos re presentavam árvores chorando e pedindo SOS para que não deixassem a natureza morrer vitimada pela poluição Outras vezes caricaturas nos transmitiam uma ideia de desintegrações coincidindo com a mor te de algum colega Nos desenhos os pacientes falam de suas vivên cias internas do medo e das perdas Mais do que isso do sofrimento que é morrer de AIDS de como são di fíceis o emagrecimento a queda dos cabelos e como são dolorosas as transformações em seus corpos que já vêm se modificando ao longo de suas vidas por conta da hemofilia Através dos desenhos do discurso e dramati zações com forma e cores diferentes juntos vimos muitas vezes a morte se anunciar B 5 anos paciente de repetidas entradas na enfermaria com toxoplasmose albergado na casa certa vez estava com as duas psicólogas na sala de atendimento Pediunos permissão para fechar a por ta a chave fechar as janelas e apagar a luz Executou essas ações rapidamente e assim ficamos no escuro B diz então está vendo alguma coisa Quando traziam situações muito ameaçadoras como que para suavizar o grupo seguinte falava do belo do luminoso de alegrias e esperança de vida em desenhos de estrela sol e figuras da Disney Falavam de algo que cintilava no céu Compreendíamos também que nos mostravam a outra face da morte o que se tornou possível por es tarmos juntos Eram crianças eram jovens também tinham direito ao sonho e à vida A interrupção do trabalho se deu após três anos em consequência de questões institucionais Era difí cil para esses pacientes lidarem com os sentimentos de abandono e perda Devido a isso a separação foi trabalhada durante três meses Foi um momento difícil tanto para os pacientes quanto para a equipe composta de quatro psicólogas e uma supervisora Tivemos a oportunidade de atender entre am bulatório casaalbergue e enfermaria cerca de 200 pacientes e familiares CONSIDERAÇÕES FINAIS Como relatamos de início o trabalho se deu numa instituição que atende exclusivamente a pa cientes hemofílicos em sua grande maioria de bai xo poder aquisitivo É uma amostragem específica e nossas conclusões são baseadas nesta experiência Descrevêla foi muito difícil por termos de reviver momentos dramáticos e dolorosos Observamos durante a evolução do nosso tra balho que o processo de adoecer de AIDS revivia todo o processo da hemofilia O hemofílico antes da contaminação do vírus da AIDS já convivia com uma deficiência crônica Já precocemente lhe são impostos limites que ao longo de seu crescimento o fazem sentirse inca pacitado e não dono de si próprio Sentese à parte até dentro da própria família Seu corpo é compro metido com as repetidas intervenções que sofre por conta da carência de fator A fantasia é de um corpo vazio preenchido pelo sangue de outros seu eu é hemofílico não se sente pessoa A partir do momento em que toma consciência de pertencer a um grupo de risco passa a viver um estar contaminado pelo vírus É a comunidade em identificação onde todos são iguais e têm inscrito o mesmo passado presente e futuro A AIDS reedita a dor as limitações as ameaças as perdas o isolamen to e a morte Com a evolução de nosso trabalho fomos perce bendo as semelhanças e as diferenças existentes en tre ser hemofílico apenas e sêlo com AIDS Descobri mos muito mais semelhanças que diferenças A nova Psicossomaticaindd 457 Psicossomaticaindd 457 05012010 121222 05012010 121222 458 Mello Filho Burd e cols doença vem selar todas as deficiências e dificuldades existentes na vida do paciente A ameaça de morte que sempre esteve presente na vida do hemofílico toma uma forma mais concreta Mergulhamos juntas buscando os significados de ser hemofílico de ter AIDS Muita angústia em cada contato com estes seres com sua humanidade comprometida desde a infância dependentes do san gue de outros não podendo ter existência própria A mesma dependência que os tomou portadores do vírus da AIDS Sofremos juntos buscando integrálos dentro de uma realidade impossível Lidamos o tempo inteiro com nossa onipotência descobrimos a dor as perdas e nossas limitações de pacientespsicólogas dentro de um universo de absurdos Como conviver com a morte sem ver a própria No ambulatório enfermaria e casa do hemofico como era designada pelos adolescentes partilha mos e acreditamos que nossa presença psicola como por vezes nos chamaram era conforto porto ouvido e colo Fomos juntas ao fundo do poço partilhando do silêncio frente ao irremediável e buscando juntas a esperança de mais um dia e de menos sofrimento dandonos como companhia nessa jornada Somos muito gratas à instituição aos pacientes e a seus familiares por nos terem permitido essa vi vência POSTSCRIPTUM Virgínia Fontenelle O ano foi 1988 O Centro de Medicina Psicos somática me designou junto com quatro psicólogas para dar suporte a uma Instituição que tratava de he mofílicos a pedido de seu Diretor No capítulo temos o relato do que foi desenvol vido em aproximadamente três anos Ao me reportar a este período pareceume que não estava muito claro o fato de termos trabalhado a Instituição como um todo trabalho que envolveu médicos enfermeiros técnicos e até pessoas que de tinham ofícios mais simples O sentimento presente era de desolação e luto ao se colocarem como responsáveis pela contamina ção e desenvolvimento da doença E mesmo que já houvesse certo controle sobre as doações e preparo do CRIO muitos foram contaminados desenvolve ram a doença e estavam morrendo O Diretor da Instituição disse certa vez É o Titanic e o iceberg a AIDS Neste período a morte era constante Com o advento de novas tecnologias o hemofí lico voltou a poder ver o tratamento como uma pos sibilidade de uma melhor qualidade de vida e não o pesadelo que aconteceu há 20 anos REFERÊNCIAS Aberastury A et al Adolescencia Buenos Aires Kargieman 1971 Kreisler L Fain M Soulé M A criança e seu corpo Psicosso mática da primeira infância Rio de Janeiro Zahar 1981 Mannoni M A criança sua doença e outros Rio de Janeiro Zahar 1971 KühlerRoss E AIDS o desaûo tînal São Paulo Best Seller 1988 Sobre a morte e o morrer São Paulo Martins Fontes 1987 Mello Filho J Concepção psicossomática visão atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1979 Osório L C et al Grupoterapia hoje Porto Alegre Artes Médi cas 1986 Perestrello D A Medicina da pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1982 Rivière P O Processo grupal São Paulo Martins Fontes 1986 Psicossomaticaindd 458 Psicossomaticaindd 458 05012010 121222 05012010 121222 PARTE 6 Trabalhos originais Psicossomaticaindd 459 Psicossomaticaindd 459 05012010 121222 05012010 121222 O MITO DA FÊNIX O medo da morte e a impotente rendição do homem ante a inexorabilidade da sua condição es tabelecem no individuo o reforço das fantasias de suporte à negação promordial sua finitude Tornase necessário que o indivíduo não morra busque a juventude eterna se isso falha parte para a ressurreição de uma nova vida ainda que sob novas formas ou em outras épocas Até que vencido pela realidade descubra que sua angústia só se aplaca quando encontra o resgate de sua história pessoal da consciência de sua identidade e que a ideia de sua continuidade passado presente e a ideia sobre si mesmo pode atrevêlo ao projeto de um futuro e à aceitação da morte como uma completação A história do pensamento do Homem ao longo dos séculos está povoada de fantasias de ressurrei ção Desde as deusas da fertilização adoradas pelo mistério da gravidez e da fertilidade dos solos pelas marés aos adoradores do Sol sempre ressurgente aos ritos de sacrifícios canibalísticos e de fecundação do solo com o sangue e os genitais das vítimas para o alcance da ressurreição aos mitos criogênicos atuais o Homem persegue o renascer e tenta transformar a morte num novo começo de si mesmo Das descobertas arqueológicas ainda protohis tóricas de tumbas contendo utensílios da vida diária dos registros da Antiguidade préclássica sobre a vida após a morte mostrase o Homem preocupado com a ressurreição a transmigração e a transmutação da alma Assim nos ensinam os Vedas em que a luta de Vishnu contra Siva busca a paz interior e a conquista de uma vida melhor após a morte assim registram os egípcios desde o período prédinástico no seu culto da morte Foi entre os egípcios de seitas de adorado res do Sol que surgiu o mito da Fênix ave fantástica que após a morte renascia das cinzas e posteriormen te como símbolo representava o deus Osíris além de ser o emblema dos que regressavam de viagens longas decorava monumentos erigidos por monar cas do Egito que voltaram vitoriosos ao pais Exis tem também registros sobre a Fênix na China cujo mito parece ter surgido ali cerca de 4000 anos aC no ciclo dos imperadores celestes Na Creta antiga a miscigenação cultural das influências persas chi nesas e egípcias fez migrar a ave fantástica através dos gregos à nossa civilização Existem também des crições detalhadas da Fênix no livro II da História de Heródoto na História Natural de Plínio e nos escritos do romano Manillo O pássaro é retratado como se melhante à águia com pescoço e asas douradas com penacho rubro e que de 570 em 570 anos morre e de seus ossos nasce o embrião da nova Fênix que en volve os restos mortais em incenso e canela e voa até Pancail a cidade do Sol onde deposita seus despojos e retorna para mais meio milênio de vida Morrer dormir talvez sonhar despindo a mor talha perecivel do corpo como recita Shakespeare Na impossibilidade de derrotar a morte o Ho mem a ela se alia como meio de alcançar o sonho da ressurreição O encontro dos mitos e a cosmovisão da regênesis Sob a ótica da nossa compreensão Narciso e Fê nix se completam Quando Liríope ninfa das águas engravida de Narciso indesejado filho esta o amaldiçoa antes do agouro de Tirésias aquele que só viveria enquanto não se conhecesse Depois ele é amaldiçoado com esta mesma profecia pela ninfa Eco cujo amor desprezou Quando se vê refletido no lago entra em pro funda depressão e desistindo de comer e de beber tenta anoreticamente destruir não sua vida mas a imagem que vislumbrou Porém e este ponto é fun damental não busca a morte pois voltando à água líquido amniótico ou as forças primitivas do incons ciente tenta uma nova chance renascendo das pró prias águas e se encantando em flor 37 REGÊNESIS O MITO DA FÊNIX EM PSICOSSOMÁTICA Samuel Hulak George Lederman Psicossomaticaindd 461 Psicossomaticaindd 461 05012010 121222 05012010 121222 462 Mello Filho Burd e cols O encontro dos mitos e a observação clínica dos autores lhes permitem a introdução do conceito da Regênesis como a fantasia da busca da regeneração cuja intensidade é tão fortemente desejada que pode mobilizar as ordens destrutivas do organismo permi tindo a produção de doenças psicossomáticas severas com intenção letal mas visando à construção de um novo ser A procura da regeneração parece ser um tactis mo universal Desde as Supernovas que se formam a partir da energia resultante da morte de estrelas até em nível microcósmico no âmbito da vida celular podemos observar esse fenômeno Os mais recentes estudos sobre Genética e Imunologia têm sido feitos a partir das teorias sobre recombinação somática No cromossomo a informação genética não viria pronta acabada resultaria de múltiplas tentativas de acerto com eliminação de erros até que a combinação correta se estabelecesse O alfabeto da vida único e o mesmo na sua mistura de letras se vê combinado e recom binado sucessivamente até serem escritas as palavras certas Assim as células se diferenciam e se especia lizam assim são maturados os linfócitos B e escritos os anticorpos assim são compreendidos os papéis dos protooncogenes e dos oncogenes e assim se processa a vida num contínuo destruir de ordens perversas com volta ao caos da indiferenciação e reaproveitamento do material genético para uma nova chance à vida presidida portanto pela égide de Eros CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS A partir da discussão de casos clínicos acompa nhados nos últimos cinco anos observam os autores que certos pacientes apresentam por sua patologia peculiar suas histórias clínicas e pelo decurso tera pêutico características comuns que genericamente configuram o seguinte perfil inaceitação do próprio esquema corporal com a fantasia de não habitarem o próprio corpo fantasia de serem outra pessoa que nunca conhe ceram e de estarem carregando uma falsa exis tência que lhes foi imposta falta de criatividade e presença de discurso repro dutivo por exemplo citação de provérbios etc existência de somatizações severas com risco le tal apesar de paradoxalmente desejarem o tra tamento e a vida sentimentos de distanciamento físico do corpo da mãe por exemplo não me lembro de minha mãe terme posto no colo história de mães superprotetoras mas pouco afe tuosas história de terem sido gerados indesejadamente ou por acidente Nestes pacientes a existência de uma patologia muito destrutiva compreensível em patologia narcí sica se contrapunha ao intenso desejo de viver de se cuidarem terapeuticamente e de virem a ser final mente uma nova pessoa O presente trabalho refletindo as conclusões a que até o momento chegaram os autores visa a ofe recer uma tentativa de compreensão psicodinâmica e de abordagem terapêutica desses pacientes Os casos estudados e discutidos fizeram e fazem parte da clientela privada de cada um dos autores Es ses pacientes apresentam uma peculiaridade que lhes é comum mesmo com patologias graves em que desde o suicídio psíquico da negação de si mesmo que pode conduzir à despersonalização psicótica aos quadros de somatizações severas doenças autoimu nes tais como doença de Wegener lupo artrite reuma toide infertilidade por anticorpos tumores malignos da mama e da tireoide e dois casos de anorexia ner vosa que poderiam levar ao óbito esses pacientes no decorrer do tratamento transmitiam claramente seu desejo de viver Diziam frequentemente Eu não quero morrer desejo ser outra pessoa ou Eu quero é matar esta pessoa que odeio dentro de mim Entre tanto a anamnese desses pacientes também apresen tava outra similitude foram filhos de mães secas de afeto pouco amorosas insuficientes na compreensão de suas necessidades e que mesmo quando se desve lavam em cuidados o faziam como governantas ou babás e não como mães substituíam a maternagem pela governança Foram ademais crianças tímidas retraídas certinhas e bem comportadas uma das pacientes relembra com muito ódio os vestidinhos brancos de babados e os cachinhos bem cuidados nos cabelos e de como tinha de se comportar para não se desarrumar Poucos apresentaram somatizações importantes na infância Um dos pacientes teve asma brônquica dos 2 aos 15 anos e posteriormente rini te e cistite recorrentes que o acompanham até os 34 anos de idade outro provoca mutilações na pele des de os 5 anos e outro reabre uma lesão eczematosa surgida aos 8 anos toda vez que tenta se libertar da mãe Fora essas exceções as somatizações e os distúr bios de conduta eclodiram na adolescência Em todos os casos a relação ambivalente com a mãe é intensa Mesmo numa das pacientes que foi abandonada pela mãe quando tinha menos de 2 anos de idade ao lado de um ódio profundo persiste a melancólica cobran ça pelo débito irreparável Costuma essa paciente hoje com 32 anos ainda passar disfarçadamente de carro pelo prédio onde mora a mãe ou telefonar para ela desligando após o primeiro alô recentemente Psicossomaticaindd 462 Psicossomaticaindd 462 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 463 no meio de uma sessão essa paciente sob intenso choro convulso com um misto de ódio dor e pro funda tristeza esmurrando seu próprio peito grita va Estou sentindo uma dor muito grande a maior dor que existe a dor de saber que perdi o que nunca tive A compreensão diagnóstica dos autores sobre esses pacientes foi e continua sendo a de que eles apresentam uma patologia narcísica e têm um falso self Cabe agora uma breve digressão para facilitar a exposição posterior Referimonos à sumarização de dois conceitos de Winnicott de importância para a conpreensão deste trabalho os conceitos de espaço potencial e de falso self Existe uma área entre a mãe e seu bebê que representa um espaço que Winnicott denominou de potencial Segundo esse autor nesse parêntese da existência humana ocorrem fenômenos e experiên cias transicionais indispensáveis à sadia individuação da pessoa A mãe suficientemente boa que é capaz de compreender o filho lactente e de tolerar sua indi viduação também é capaz de distinguir entre sozi nhez solidão e abandono permitindo que a criança fique sozinha sem se sentir nem abandonada nem solitária e possa preencher essa sozinhez com con solos substitutivos da ausênciapresença da mãe que por ela vela mas não abafa A comunicação verbal e subverbal os afagos a demonstração de amor o atendimento e o entendimento na hora e na dose cer ta a chupeta os primeiros brinquedos vão substituir a mãe diminuir a angústia da separação e permitir que nesse espaço subjetivo transformado em labo ratório do ser a criança construa seus primeiros sím bolos as primeiras distinções entre o eu e o não eu as vivências de objetos internos e externos e o que nos parece muito importante a vivência da existência de um outro espaço determinando a fronteira mãe bebê que é o espaço potencial Esse espaço à me dida que se preenche e se alarga num crescimento sem fronteiras possibilita o exercício do universo que abrigará a criatividade a liberdade a capacidade de fantasiar e de amar Essa mãe suficientemente boa também reforça o ego ainda débil do filho alimentando sua onipo tência permitindo que a criança desenvolva um self próprio e verdadeiro A mãe que falha em satisfazer essas necessidades psicológicas básicas do bebê subs titui as necessidades da criança pela manifestação de seus próprios desejos dando início à construção de um falso self que se submete a aceitar um nãoeu e não consegue diferenciar aquilo que lhe seja próprio Entretanto depreendem os autores através de suas observações que merecem distinção duas condições clínicas de falso self que para efeito de melhor expo sição passam doravante a ser denominadas de falso self suposto e falso self imposto ambas como subdi visões do conceito genérico de falso self A noção de pertinência e territorialidade é fundamental para a compreensão dessas duas condições A identidade humana passa pela capacidade global e integrada de reconhecimento do espaço do indivíduo seu conteúdo e seu continente pessoal e da relação dele com o mundo passa pela aptidão de reconhecer o que lhe é e o que não lhe é pertinente e nessa consciência a distinção do que mesmo não lhe sendo próprio poderá vir a sêlo por adoção de acordo com a sua necessidade por exemplo na in corporação de proteínas dos alimentos ou na incorpo ração psíquica de objetos externos os quais aceita e passam a ser seus A mãe que não deseja ou não tolera a individua ção do seu filho colaba o espaço potencial nestes casos não ocorre um estado fusional mas um colaba mento e é neste estreito limite que e sem adoção por parte da criança as necessidades e desejos da mãe são impostos Forçada a uma identificação sem iden tidade a criança ou assume a personagem que lhe é oferecida ou pelo medo de ser desamada e destruí da sucumbe e se submete Ocorre portanto não a aceitação e sim a submissão a um papel que passará a desempenhar Alguns indivíduos conseguem ir se equilibrando na vida com a assunção desse desempe nho que supostamente demonstram aceitar outros não vivem essa condição com ódio e revolta contra pondose a uma falsa pessoa que lhes foi imposta e contra a qual reagem com o mesmo rancor que têm pela mãe Enquanto o falso self suposto corresponde ao indivíduo que sacrificou sua pessoa em favor de uma personagem alguém que buscou a identidade mas permaneceu na identificação mimeticamente imitando e investindo numa personagem através da qual se comunica com o mundo referencial o falso self imposto vive a tragédia de não ser ele mesmo por não lhe terem permitido a construção do seu self e a dor dessa inaceitação com o aturdimento de não sa ber como elaborar essa reparação Não só os conflitos não resolvidos da mãe mas também outras variáveis já existentes na préhistória da criança determinam um papel uma expectativa e a inexorável imposição de ter que ser aquele que sua família nuclear precisou que fosse instrumentando uma mãe suficientemente boa para tal mister Existem famílias ou indivíduos que por atendimento de suas necessidades psicóti cas carecem forrar por antecipação o berço de um self imposto Há os que precisam de um salvador há os que necessitam de um unificador que venha para juntar separações ou negociar contendas outros desejam se agarrar a reparadores que venham para substituir mortos importantes cujos lutos nunca fo Psicossomaticaindd 463 Psicossomaticaindd 463 05012010 121222 05012010 121222 464 Mello Filho Burd e cols ram elaborados e existem os continuadores que nascem para tentar realizar egos idealizados cujas frustrações nunca foram suportadas Estes selves impostos verdadeiros Dibuks incor porados são instrumentados Já entram em cena com script e personagens compostos O colabamento do seu espaço potencial não permite a realização da in dividuação enquanto pouco a pouco eficazmente lhes são transmitidas as instruções de como se espe ra que eles sejam São mães que cuidam vigiam e atendem como mordomos competentes e sem afeto cuidam mas não abastecem de amor a pessoa de seus filhos aos quais exibem a imago da sua personagem substituem a função especular pela projeção do ob jeto imposto Resta a criança a psicótica relação com um objeto fora de seu universo Ao indivíduo com fragilidade egóica genética sobrará o caminho do autismo ou da psicose e aos de melhor condição de defesa a estratégia de tolerar o jogo até o desenca deamento posterior das dramáticas batalhas para a rejeição do implante e as tentativas de conquistar sua própria identidade Chamamos também a atenção para as diferenças clínicas marcantes entre as duas situações descritas O falso self suposto necessita manter esta situação pe los ganhos secundários dela advindos sente sua pessoa tão fragilizada que o escudo da personagem mesmo frustrando na obtenção do afeto real de autoestima e respeito próprio promove a proteção requerida e o brilho ilusório do sucesso em suas relações circun dantes Já o imposto por sua vez luta com desespero para rejeitar o implante impertinente da criatura que não escolheu ser mesmo que tenha que ordenar a suas forças biológicas de destruição para ferir o corpo que sente como não sendo seu No primeiro caso do self suposto o indivíduo não se permite abrir mão da defe sa e no segundo caso o indivíduo luta para ser outra pessoa a pessoa dele que talvez nunca tenha conhe cido No falso self suposto as somatizações são de me nor monta e a busca de ajuda especializada não se faz ou quando ocorre o tratamento será abandonado ou sabotado sedutoramente o falso self imposto por sua vez deseja ser ajudado e é mais frequentemente alvo de somatizações graves através das quais tenta expul sar o objeto mau imposto ainda que nesta destruição tente voltar ao caos com a fantasia de regeneração de outra pessoa Como Freud já ensinou que nas situações de in diferenciamento Eros e Tânatos se confundem pare cenos que tal fusão deve ser vista como a expressão mais forte de energia geradora e numa situação que permite seja entendida a dialética da vida e do pró prio gênesis que surgiu do caos Destacamos entretanto que os autores não consideram esta busca de uma nova pessoa nem como uma idealização do ego nem como a procura de soluções através da morte numa tentativa de re gressão fusional Na Regênesis o caminho nos parece ser outro o indivíduo busca realocar a libido de volta para o id a fim de obter chance de outra tentativa para renascer Existe o sacrifício do ego para a recom binação que resulte num novo self CONSIDERAÇÕES TÉCNICAS Entendem os autores que há necessidade de modificações na abordagem técnica no tratamento de pacientes com patologias narcísicas Considerando que o objetivo do tratamento desses pacientes é conseguir ajudálos a encontrar um verdadeiro self pensam constituir o setting como espaço potencial onde se daria o resgate de uma re lação didática suficientemente boa para tal fim Jul gam ser de grande importância o cuidado para que esse setting não se constitua numa reprodução do frustrante espaço colabado que não permite o direito à indivi duação Propõem para tal mister que tati camente seria ruinosa a utilização de interpretações precoces Sugerem sejam utilizadas nestas situações inicialmente as técnicas de clarificação e de eco para posteriormente com o paciente egoicamente mais reforçado suportar confrontações que ajudariam seu processo de reconhecimento do eu e do não eu para só conseguirem absorver então o material interpre tado Os autores centram as modificações técnicas no terapeutae na relação Cabe ao terapeuta com esses pacientes aceitar durante algum tempo a admira ção e a idealização de seu paciente interpretações precoces dessa transferência poderiam ocasionar en traves ao processo terapêutico O terapeuta constitui para o paciente um objeto transacional do qual ele paciente precisará utilizarse à medida que construir seu próprio self para poder um dia separarse no seu processo de individuação Observam os autores que frequentemente esses pacientes tendem a discor dar com veemência das interpretações dadas pelo terapeuta e não aceitálas Essas atitudes nem sempre traduzem resistência ao tratamento mas sim fazem parte das necessidades desses pacientes de se dife renciarem dos seus terapeutas objetivando suas indi vidualidades Na experiência dos autores tornase de extrema importância que o terapeuta se dê conta de sua contratransferência pois no início do tratamento esses pacientes se sentem colabados com o terapeuta numa relação selfobjeto Isso pode despertar por ve zes sentimentos de angústia inquietação e irritação nos terapeutas este estado de fusão pode promover vivências primitivas de sua própria infância ocasio Psicossomaticaindd 464 Psicossomaticaindd 464 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 465 nando interpretações que obstaculizariam o desen volvimento do tratamento Pelo exposto seria recomendada para estas pa tologias a abordagem terapêutica através de psicote rapia de base analítica ou de análise que possibilite na sua fase inicial aceitar transferência especulares e idealizadoras CONSIDERAÇÕES FINAIS Apresentam os autores como resultado de suas observações clínicas e estudos entre si mantidos nos últimos anos as seguintes conclusões parece que certos pacientes portadores de patologias narcísicas agem com um tipo peculiar de falso self que deno minam de falso self imposto e que se diferencia do conceito genérico de falso self descrito por Winnicott Para efeito de distinção propõem que os falsos selves se classifiquem como supostos e impostos e estabele çam diferenças clínicas e psicodinâmicas entre eles Sustentam também que uma das característi cas mais marcantes do falso self imposto é a sua ten dência para somatizações severas buscando êxito letal como forma de em suas fantasias renascerem com o direito a um verdadeiro self propõem ainda que nestes casos os mecanismos de autodestruição mobilizariam as ordens tanáticas do organismo via imune apoiados na compreensão da recombinação somática e das atuais teorias sobre doenças autoimu nes Neste caso Tânatos seria um mero instrumento de Eros e certas condições mórbidas seriam compre endidas como um apelo à vida e ao direito de viver Chamam esse mecanismo de Regênesis Sugerem a releitura do mito de Narciso como complementação do mito da Fênix e uma modifica ção técnica na abordagem destes casos que consisti ria em terapias que possibilitem a aceitação de trans ferências especulares e idealizadoras Finalmente deixam o tema em aberto para fu turos estudos REFERÊNCIAS Bacal H A British objetcs relations theorics and self psychology Some criticai reflection In J Psychoanal Toronto v 68 n 81 1987 Bona C A Edit Molecular basis of the immune response Annals of the New York Academy of Sciences New York v 546 1968 Davis M Wallbridge D Limite e espaço Rio de Janeiro lmago 1982 Doin C Reflexões sobre o espelho Bol Cient Soc Psicanal do Rio de Janeiro n 16p 137 1985 Will D História da civilização 2 ed tomos 12 Rio de Janeiro Record 1973 Enciclopedia universal ilustrada v 23 Madrid Europeo americana 1924 Etchegoyen H R Fundamentos da técnica psicanalitica Porto Ale gre Artmed 1982 Freud S Sobre o narcisismo uma introdução Edição Standard Brasileira v 14 Rio de Janeiro Imago 1976 A dinâmica da transferência Construções em análise Além do princípio do prazer Green A Sobre a loucura pessoal Rio de Janeiro Imago 1988 Honigsztejn H identificação e identidade na moderna psicologia do self Rev Bras Psicanal São Paulo v 19 p 377 1985 Kohut H Análise do self Rio de Janeiro Imago 1988 A restauração do self Rio de Janeiro Imago 1988 Selfe narcisismo Rio de Janeiro Zahar 1984 Como cura el anälysis Buenos Aires Paidós 1986 Leão L C Identificação e suas vicissitudes conforme observada na adolescência Rev Bras Psicanal São Paulo n 21 p 1571987 Mahler M O processo de separaçãoindividuação Porto Alegre Artmed 1982 MacDougall J Teatros do eu Rio de Janeiro Francisco Alves 1984 Mello Filho J O ser e o viver Porto Alegre Artmed 1989 Miros Barcelona Labor 1976 Paiva L M Archaizdisease of the ego Concepts and psychoana litical treatme of narcisistic and psychotic States Divergence of technique In Psychosomatic psychiatry v 2 São Paulo Garatuja 1990 Prado M P A Narcisismo e estados de entranhamento Rio de Janeiro lmago 1988 Sauberman P R Minha experiência com pacientes ditos narcísi cos Rev Bras Psicanal São Paulo v 18 p 319 1984 Segre C D Problemas encontrados na análise de EstruturaS narci sicas Relat Oficial da Mesa do 10 Congresso Bras de Psicanálise Spitz R O primeiro ano de vida 4 ed São Paulo Martins Fontes 1987 Stolorow R D Lachmann F Psicanálise da parada do desenvolvi mento Rio de Janeiro lmago 1983 Vilete E P O mal da lua um estudo sobre as fronteiras do Self Bol Cient da Soc Psicanal do Rio de Janeiro n 314 p5567 1989 O corpo relicário do Self perdido 11 Congresso Brasilei ro de Psicanálise 1987 Winnioott D O ambiente e os processos de maturação Porto Ale gre Artmed 1983 T El ninó y El mundo externo Buenos Aires Hormé 1965 Psicossomaticaindd 465 Psicossomaticaindd 465 05012010 121222 05012010 121222 466 Mello Filho Burd e cols ANEXO Samuel Hulak Dedico este adendo ao saudoso amigo George Lederman coautor de Regênesis que deste meca nismo não precisará pois que eterno na memória de todos que o amam O prematuro falecimento do Dr Lederman apesar da interrupção temporária das nos sas observações não tem impedido o prosseguimento dos trabalhos que venho dedicando ao estudo de ca sos sob a ótica do Regênesis Como acréscimo atualizante a este capítulo apresento um resumo ilustrativo de caso clínico co mentado A escolha de Renata devese a universali dade de sua história e sua característica condição de falso self imposto com somatização grave Quando atendi Renata como a chamarei a par tir de agora pela primeira vez ela contava com 35 anos de idade esguia alta e loura trazia nas feições aquilinas um penetrante olhar suplicante de socorro Deume a impressão que procurava com desespero algo perdido em um onde desconhecido Somente mais tarde entendi que ela buscava o que nunca acha ra Renata esforçavase a encontrar a pessoa dela e para isso teria que ser renata Até então não havia consultado psiquiatras ou outros da área psi Veio encaminhada por um onco logista que a diagnosticara um câncer ductal na sua mama esquerda Renata fora os cuidados com pediatras não era de ir a médicos salvo quando frequentava irregular mente desde os 14 anos uma ginecologista que a en caminhou ao oncologista Este último indicara uma mastectomia radical apesar de não existir aparente mente nas varreduras realizadas evidências de me tástases Na nossa entrevista inicial estava com três meses de pósoperada Trazia ao lado de um enorme envelope com exames a desculpa de não ter marcado antes nossa consulta conforme sugerido tanto pela ginecologista quanto pelo oncologista devido à so brecarga de afazeres acumulados pelas providências decorrentes da doença e da cirurgia Dr Não sei mais que dizer Nunca me consultei com psiquiatras nem psicólogos A senhora me falou que veio por indicação de dois médicos trouxe os exames e relatou alguns dados so bre sua doença que acha de falar sobre sua pessoa Resumirei a história de Renata obtida em várias sessões que foram interrompidas pela série de seis quimioterapias as quais se submeteu O pai de Renata é um imigrante sem família no Brasil veio pobre e aqui se tornou um bemsucedido comerciante Austero rígido e seco afetivamente ca sou com uma jovem 15 anos mais moça que ele e herdeira de um abastado conterrâneo estabelecido no Recife A mãe de Renata tem atualmente 53 anos casou aos 17 anos poucos meses antes da morte do pai e entrou em depressão da qual não mais saiu até agora Aconselhados por amigos estimularam uma gravidez que resultou em aborto espontâneo O agra vamento da depressão da mãe de Renata serviu para o ansioso intento de nova gestação para curar a de pressão e gerar um herdeiro Foi assim neste contex to que nasceu Renata filha única de um pai severo que sempre foi por ela percebido como inquestioná vel chefe e uma mãe imobilizada pela depressão Desde criança Renata cuidou a exemplo do que ainda faz da mãe o pai sem esconder a decep ção pelo casamento e ausência de herdeiro homem atribuiu para nossa paciente o papel de cuidadora da mãe enquanto se dedicava a sua vida empresarial e de relacionamentos extraconjugais A mãe de Renata abandonara os estudos quando casou nunca exerceu atividade profissional e as domésticas eram realiza das por um entourage de empregadas imatura in fantilizada nunca conseguiu desempenhar papel de mãe e sim de filha de Renata Renata foi uma criança sadia suas idas ao pe diatra foram mais consultas ditadas pela praxe e pelos calendários de vacinações Não tinha talvez autori zação de ficar doente exceto quando teve a menarca tormentosa aos 10 anos desde então é vitimada por dolorosa TPM com enxaqueca e fortes cólicas ovaria nas Sua insípida adolescência foi coroa da por exce lente desempenho escolar e pobre vida de relaciona mentos interpessoais Renata é solteira e ainda virgem Formouse em administração nunca exerceu atividade profissional e sua vida social limitase a eventuais saí das com a mãe algumas de caráter social com os pais e com duas amigas de colégio com as quais ainda mantém contato Um ano antes do diagnóstico do tumor o pai de Renata teve um infarto do miocárdio e foi revas cularizado com três pontes de safena A doença e as limitações do pai mudaram o panorama doméstico da família e da paciente O tumor quando descoberto tinha seis centí metros dependendo do tipo de células e portanto da velocidade mitótica poderia se calcular que o tu mor já estava com cerca de três a quatro anos de de senvolvimento Segundo nossa experiência clínica a indiferença à percepção da nodulação mamária faz parte de todo um conluio de indiferenças O descaso à presença do nódulo se soma ao relaxamento de pro cura de tratamento e a indiferença de identidade pes soal O câncer pode ser visto como sintoma de uma doença caracterizada pelo distúrbio de identidade pelo não reconhecimento do que é próprio do indi Psicossomaticaindd 466 Psicossomaticaindd 466 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 467 víduo Mimnãomim Assim operam os oncoge nes que abremfecham a ordem de destruir células nãomim A grande maioria dos tumores não ocorre com ou por imunodeficiência e sim por imunoindife rença por um descuido de reconhecimento do que é próprio da pessoa Renata quando com 32 anos descobriu através da ginecologista que suas queixas e exames eram su gestivos de uma perimenopausa durante a terapia pôde examinar os ódios acumulados pela vida nega da que teve pela revolta contra o self imposto e pelo aturdimento de um ego angustiado em busca de um self perdido tão bem espelhado pelo primeiro olhar de Renata quando nos conhecemos A ambivalência dela entre morrer e tentar ser renata atinge o auge quando vê o pai em decadência e fantasia a morte dele e o fim de sua escravidão Renata continua em psicoterapia apesar de ain da se submeter a varreduras atualmente anuais o câncer não produziu metástases seus pais continuam vivos e a vida da paciente não mudou muito Tenho procurado ajudála a se desfazer dos papéis que lhe foram impostos e sempre que possível recheando os buracos esvaziados com as pertinências descober tas ela e eu temos sofrido juntos as batalhas de uma guerra cuja conclusão desconhecemos Uma coisa entretanto sabemos ela e eu estamos em busca de Renata ela mesma e quando sofre ela me diz Dói mas não faz mal pois sinto que esta dor é mi nha só minha Psicossomaticaindd 467 Psicossomaticaindd 467 05012010 121222 05012010 121222 DESORDENS FICTÍCIAS Os pacientes com desordens fictícias Existe uma interessante categoria de pacientes que procura os ambulatórios médicos e os hospitais trazendo um distúrbio mental de difícil diagnóstico e ainda mais difícil tratamento Tratase de pessoas que fabricam conscientemente sintomas físicos ou que fingem têlos com a intenção única de iludir os médicos levandoos a pensar que estão realmente doentes e assim obter atenção médica Ao contrário de pacientes somatizadores nos quais a produção de sintomas não é voluntária e de pessoas simula doras cuja produção de doenças visa a compensa ções financeiras obtenção de licenças médicas etc os pacientes com desordem fictícia se caracterizam pela necessidade psicológica de assumir o papel de doente OS RECURSOS UTILIZADOS Os recursos que utilizam para alcançar sua meta são variados e extremados podendo ser agrupados em autoindução de infecções produção de feridas crônicas automedicação e simulação de doenças Autoindução de infecções O objetivo é se infectar voluntariamente inje tando no corpo substâncias ou objetos contaminados de modo a produzir abscessos e quadros infecciosos variados Reich 1983 relata o caso de um rapaz de 15 anos que contaminava a urina introduzindo fezes na bexiga através de uma sonda isso levou os médicos a vários procedimentos diagnósticos que culminaram em cirurgia exploratória na tentativa de encontrar a explicação para sua infecção urinária persistente Produção de feridas crônicas Pacientes deste tipo aparecem com certa frequên cia em consultórios de dermatologistas apresentando lesões cutâneas de misteriosa etiologia que levantam a suspeita de serem artificialmente provocadas esse tipo de paciente também pode impedir a cicatriza ção de feridas e ulcerações colocando substâncias irritativas sobre a pele retirando crostas cicatriciais ou escarificando as lesões Através da cronificação de lesões dermatológicas esses pacientes ganham acesso a clínicas e ambulatórios especializados Automedicação É um tipo de recurso no qual as pessoas fazem uso proposital de determinadas substâncias capazes de gerar alterações no organismo como hemorragias de sequilíbrios metabólicos e hormonais hipotensões e até mesmo comas Um paciente atendido por nós frequen tador assíduo de CTIs em diversas cidades do Estado do Rio de Janeiro garantia suas admissões criando estados de coma de natureza obscura mesmo internado en trava em coma sem que os médicos chegassem a uma conclusão diagnóstica de seu caso finalmente foi des coberto que ele trazia escondidos entre seus pertences barbitúricos que ingeria com a finalidade de provocar alterações de seu estado de consciência Neste grupo de pacientes é comum encontrar profissionais da área biomédica que conhecem os efeitos de drogas medicamentosas e têm fácil acesso às mesmas Simulação de doenças Tratase de pessoas que mentem sobre seus da dos pessoais e seus sintomas construindo quadros clínicos fictícios e induzindo os médicos a suspeitar de doenças para as quais uma hospitalização se torna 38 DESORDENS FICTÍCIAS Therezinha Lucy Monteiro Penna Psicossomaticaindd 468 Psicossomaticaindd 468 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 469 necessária No começo é comum essas pessoas apre sentarem uma alteração orgânica ou laboratorial não necessariamente patológica que serve como sal voconduto para a entrada no sistema de saúde Daí em diante argutos observadores do meio hospitalar aprendem novos sintomas que vão progressivamente se sofisticando abrindo as portas para novas inter nações Não raro ostentam cicatrizes de cirurgias e dissecções venosas que sinalizam perigogravidade para os médicos J M S de 32 anos deu entrada na Emergên cia do Hospital dos Servidores do Estado com queixas compatíveis com infarto agudo do miocárdio apre sentava uma cicatriz de cineangiocoronariografia no braço O ECG mostrava alterações do segmento ST e da onda T em parede anterior Como as dores se intensificaram foi removido para o CTI e após dois dias transferido para a enfermaria de cardiologia Lá devido à informação de que aguardava vaga em São Paulo para cirurgia de revascularização os médicos continuaram os exames e o mantiveram em observa ção Nisto foi reconhecido por um plantonista que o havia tratado em outro hospital com as mesmas quei xas e que rastreou sua passagem por mais 11 hos pitais nos quais assim que ficava comprovado que não havia nenhuma patologia orgânica verdadeira o paciente solicitava a alta Eventualmente alguns pacientes são desmas carados e confrontados com sua simulação podendo admitila ou não Quando a admitem e se engajam num tratamento psicoterápico transparecem por de trás do desejo de obter atenção e gratificações ligadas aos cuidados médicos alterações graves de personali dade borderline estados depressivos preocupações hipocondríacas e comportamento passivoagressivo Os casos mais graves dentro das desordens fictí cias recebem uma denominação especial síndrome de Münchausen Esses pacientes merecem um estudo mais detalhado primeiro por serem passíveis de adoe cer verdadeiramente e até mesmo morrer em conse quência de complicações advindas de suas infindáveis permanências em hospitais por exemplo infecções hospitalares e segundo devido a frequência com que passam despercebidos e sem diagnóstico onerando os serviços médicos com suas internações fúteis O nome de Münchausen foi dado a esses pa cientes por Asher 1951 em referência ao Barão Karl Friedrich von Münchhausen cujas peregrinações incessantes e historias fantásticas de difícil credibi lidade foram narradas em um livro escrito em 1785 por Rudolf Raspe Assim como o barão esses pacien tes também são peregrinos viajando de hospital em hospital contando suas histórias fantásticas sobre doenças e inventando sintomas com que captam a atenção dos médicos exibindo a arte de verdadeiros mágicos ilusionistas Objetivando sempre a internação hospitalar não hesitam em recorrer a recursos extremos e bizarros como enfiar agulha nos seios reabrir feridas cirúr gicas recentes e provocar abscessos injetando fezes sob a pele Sua busca de atenção médica é compulsi va e infatigável Maur descreve um paciente que aos 52 anos de idade já havia obtido 423 hospitalizações médicas documentadas A insistência com que produzem sintomas mais e mais elaborados ou variados leva os médicos a apro fundar a pesquisa de seu quadro clínico requisitando paralelamente mais e mais exames progressivamen te mais e mais sofisticados Após a primeira hospita lização as seguintes são mais fáceis de obter pois o fato de já haver sido hospitalizado funciona como um indicador de gravidade Quando os Münchausen são desmascarados quando perdem credibilidade ou sentem que seus sintomas não mais são valorizados ficam aborreci dos e hostis Mudam então para outro médico ou tro serviço outro hospital e até mesmo outra cidade reiniciando sua jornada de enganos e mentiras A C P padeiro de 54 anos durante os quatro anos em que frequentou nosso hospital obteve internações clínicas e cirúrgicas em seis serviços diferentes fre quentando concomitantemente vários ambulatórios de outros hospitais Suas queixas oscilavam tanto eram cardiológicas como neurológicas vasculares proctológicas ou otorrinolaringológicas dependendo da credibilidade que mantinha ou perdia diante de diferentes médicos Estes exímios impostores apresentam algumas outras características que podem auxiliar na elucida ção de seu diagnóstico 1 Pseudologia fantástica A necessidade incontrolá vel e patológica de mentir os leva a inventar his tórias de vida mirabolantes onde aparecem enal tecidos como figura de destaque 2 Sofisticação médica A frequência contínua e pro longada nos hospitais acrescida de sua psicopa tologia peculiar facultalhes o aprendizado de termos médicos e um conhecimento relativamen te sofisticado sobre doenças o que lhes permite referir sintomas coerentes com determinadas pa tologias médicas S M atraente mulher de 34 anos buscou internação pela terceira vez apre sentando uma nova queixa paralisia da perna Suas queixas e os achados neurológicos de anes tesia e paralisia eram coerentes até que um dia Psicossomaticaindd 469 Psicossomaticaindd 469 05012010 121222 05012010 121222 470 Mello Filho Burd e cols após ser examinada como de hábito em decúbi to dorsal o médico lhe solicitou que deitasse de bruços repetindo o exame neurológico obteve a mesma resposta de anestesia e paralisia só que desta vez na perna E É que ao trocar de decúbito a paciente enganouse de perna 3 Estilo patológico de vida Frequentar hospitais é o sentido de suas vidas Se necessário for viajam para outras cidades em busca de novos estabele cimentos médicos Isso inviabiliza uma atividade profissional estável 4 Pedidos de medicação analgésica Existem relatos desses pacientes solicitando com frequência me dicação para dor contendo opiáceos 5 Hospitalizações tumultuadas Mudanças abrup tas de comportamento podem surgir quando não recebem a atenção desejada passando então de dóceis e passivos a hostis e indisciplinados PSICODINÂMICA Uma vez descrito o quadro de Münchausen apresentase a questão intrigante que mecanismos inconscientes levariam uma pessoa a adotar tal dis torção de procedimento Qual a expressão simbólica desta estranha patologia O acesso ao mundo psíquico destes pacientes tem sido precário devido à própria essência da de sordem fictícia mentir e iludir o médico No en tanto algumas postulações básicas logo ressaltam privação afetiva eou rejeição por parte dos pais nos primeiros anos de vida sentimentos de desvalori zação e inferioridade defesas mal estruturadas e primitivas contra sentimentos de agressividade in capacidade de desenvolver relações objetais satisfa tórias Na literatura científica desde que este quadro foi descrito pela primeira vez em 1893 por Meige várias formulações psicopatológicas surgiram Para Kaplan 1980 existe nas desordens fictícias uma compulsão de repetição na qual o paciente repete o conflito básico de desejo de amor e aceitação versus a antecipação da frustração desse desejo Usa o fac símile de uma doença verdadeira para recriar a inte ração original com suas figuras primitivas colocan do o médico como fonte potencial do amor desejado e nunca obtido Manipula o médico para que este supra transferencialmente sua necessidade latente de dependência ao mesmo tempo em que através da atuação transforma o médico em figura frustran te e rejeitadora Já Menninger analisa o aspecto autodestruti vo e mutilador do comportamento destes pacientes vendoo como ato de suicídio parcial em que são agredidos os pais rejeitadores internalizados Através de suas mentiras essas pessoas manipulam o médico para que este pratique sobre elas manobras técnicas e diagnósticas agressivas de puncionar cortar introdu zir sondas provocar dor etc às quais se submetem sem queixas Isso sugere uma dinâmica sadomaso quista inconsciente em que ficam projetados senti mentos de raiva e de culpa Esse aspecto de culpa inconsciente é retomado por Todd que vê na submissão às intervenções médi cas desencadeadas a partir do próprio paciente uma tentativa masoquista de apaziguamento de culpa Como muitos destes indivíduos têm em sua in fância uma história de doença acrescida da privação emocional podese ver em seu comportamento bi zarro uma tentativa de controlar a ansiedade latente advinda do medo e do sofrimento que sentiram em criança Ao assumir ativamente o papel de doen te e reviver repetidamente a experiência dolorosa repri mida no contexto de hospitalizações múltiplas ad quirem na fantasia um controle e domínio mágico sobre as doenças em geral Spiro 1968 Quanto às necessidades de dependência o ambiente hospitalar oferecelhes a oportunidade de satisfação parcial ao serem alimentados banhados cuidados e protegidos do mundo exterior Um último ponto a ser focalizado diz respeito à impostura sendo impostores eles se defendem da ansiedade gerada por sentimentos de inferioridade fraqueza e inadequação sentemse mais espertos do que os profisSionais a quem enganam e assim se va lorizam perversamente DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL Desordens somatoformes Os somatizadores mesmo os que apresentam conversão histérica não produzem sintomas propo sitalmente nem têm compulsão a iludir os médicos como também não fazem da busca hospitalar um esti lo de vida Na hipocondria existe uma supervaloriza ção de sintomas banais e de sensações corpóreas cor riqueiras o hipocondríaco procura o médico numa tentativa de diminuir a ansiedade e o medo que tem de doenças Simulação Os simuladores produzem sintomas consciente mente visando ganhos concretos facilmente identifi cáveis como obtenção de licenças médicas para fal tar ao trabalho aposentadorias indevidas evasão do Serviço Militar benefícios fraudulentos etc Psicossomaticaindd 470 Psicossomaticaindd 470 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 471 Distúrbios graves de personalidade Nos casos de distúrbios graves de personalida de como a histriônica a antissocial e as borderline não existe um estilo de vida centrado na busca de hospitalizações repetidas nem o aspecto compulsivo da produção de sintomas Psicose Aparecem alucinações delírios e pensamentos delirantes de conteúdo somatoforme TRATAMENTO A compulsão em obter gratificação emocional através de um comportamento mentiroso e o modus operandi da mentira não admitida tornam evidente a razão pela qual esses pacientes não são usuários de consultórios e instituições de saúde mental Ao abordar esses doentes percebemos uma im possibilidade de estabelecer um vínculo interpessoal É até possível que nos narrem fatos de suas vidas mas falta uma afetividade verdadeira em seus rela tos O psicoterapeuta para eles é apenas mais um médico a ser enganado Não admitem que mentem e não demonstram interesse em dominar seus impulsos autodestrutivos e maladaptativos Os raros casos relatados de êxito terapêutico fo ram com pacientes institucionalizados para a aplica ção de técnicas de terapia comportamental Todavia podemos auxiliar estes pacientes intra táveis agindo junto à equipe hospitalar e à família À medida que o médico fica alertado sobre a etiologia psiquiátrica evitase que continuem sendo realizados procedimentos diagnósticos inúteis Ao ficar esclare cido o caráter compulsivo da doença diminuem as reações de raiva e hostilidade da equipe de saúde para com o paciente que advém da percepção de ter sido enganada e usada Quando a família pode ser localizada tornase possível alertála para a natureza psicológica dos sintomas tentando mobilizála para deter os impulsos patológicos do enfermo Assim agindo auxiliamos profissionas e fa miliares a não se tornarem cúmplices inocentes da perpetuação do drama desses infelizes peregrinos da mentira REFERÊNCIAS Aduan R P Fauci A Si Dale D C et al Factitious fever and self induced infectionz a report of 32 cases and review of literature Ann Intern Med n 90 p 230242 1979 Altman N Ilypocondriasis In Strain Jl Grosman S Psycho logical Care of lhe medically ill New York AppletOnCentury Crofts 1979 Asher Rl Munchausens syndrome Lancet n 1 p 339341 l951 Diagnosric and statistical manual of mental disurders 3 cd rev New York Amcrican Psychiatric Association 1987 Hamclsky M W Truth 1S Stranger than factiticus N Engl Med n 307 p 436437 1982 Hyler S E Sussman N Chronic factíticus disorders with physi cal Symptoms The Munchausen Syndmme Psych Clin North Amer v 41 2 p 365377 Aug 1981 Ireland P Sapira 1 D Templetøn B MunchauSenS Syndmmc revicw and report of an additional case Am J Mcd rn 43 p 579592 1967 Pallis C A Bamji A A Macllroy was here Or was he Br Med J n 1 p 973975 1979 Reich P Gottfríed L A Factitious dísorders in a teaching hospi tal Ann Intcm Med n 99 p 240247 1983 Shapim E Psychcdinamics Of bOrder1inc patients Amer J PsyCh n 135 p 13051309 1978 Sneddon 1 Sneddon J Selfinflicted injury a followup Study of 43 patients Br Mcd J n 3 p 527530 1975 Spim A Chmnic factitious illness Arch Gen Psych n 18 p 569574 1968 Sussman N Hyler S Factiticus disordcrs 1n Kaplan M Frecd man A Saddock B Cnmprehensivc lextbook of psychialry Bal timorer Williams and Wilkins 1980 Psicossomaticaindd 471 Psicossomaticaindd 471 05012010 121222 05012010 121222 Durante muitos anos compartilhando das ideias e ideais psicossomáticos onde o ser humano é visto de maneira individualizada cheguei a temer o futuro desta filosofia ao me deparar com uma prática médi ca voltada para o organicismo e distante do homem Homem que pela essência e pelo viver determina a necessidade do outro da compreensão da solidarie dade e do amor Homem que ao vislumbrarse inte riormente tenta buscar a perfeição e o acerto Como entender que estes mesmos homens po deriam agir com descaso despreocupação e até mes mo desprezo com seus semelhantes Após muitos anos de exercício profissional numa instituição pública voltada ao atendimento de emer gência pude entender que muito além da vontade da ética e do humanismo encontrase a dignidade de um profissional esquecido e negligenciado pela socie dade e pelos responsáveis pela saúde Durante anos cobrei uma atitude mais humani zada da equipe de saúde sem perceber que não se pode oferecer o bem sem dele também se beneficiar Critiquei arduamente muitos colegas não en tendendo o distanciamento e a frieza com os pacien tes Não via a distância e frieza com que os pacien tes os encaravam Aprendi a analisar a simbiose necessária a um bom relacionamento médicopaciente Aprendi a per ceber que antes dos conceitos humanistas existem verdades institucionais sociais e profissionais que de vem ser computadas sem o que estaremos no mundo do teórico e da fantasia Infelizmente a verdade é que médicos e pacien tes envoltos por uma instituição perversa distan ciamse a cada dia e ao invés de um lugarcomum agridemse e deterioram suas relações Assim nossa avaliação do setor de atendimento de emergência e do doente de emergência será basea da nesta triste realidade Idealizado para o atendimento de pacientes agudamente doentes o setor de emergência nos hos pitais públicos do Brasil temse caracterizado por um aglomerado de pessoas carentes num local inadequa do ao mínimo necessário e tendo à frente uma equipe cansada desmotivada e muitas vezes despreparada Dominado por médicos jovens entusiastas da medicina intervencionista porém ainda imaturos para os percalços da profissão para os riscos do in sucesso e a decepção das perdas tornamse presas fáceis da angústia e da ansiedade Nos livros clássicos e até nos seriados de TV orgulhosos da sensação de salvadores emocionamo nos com o quanto um bom médicosocorrista sente se valorizado ao reanimar um paciente em parada cardiorespiratória Quantas vezes sonhamos com o momento de gratidão do doente e seus familiares pelo atendimen to correto e honesto A instituição misturavase conosco éramos in separáveis vestíamos a camisa de nosso hospital orgulhávamonos dele Infelizmente o momento é outro os pronto socorros PSs de nossos hospitais tornaramse ver dadeiras arenas onde a equipe de saúde não mais se preocupa com a excelência do atendimento e sim com o alívio de suas tensões e o expirar de suas horas de plantão Bode expiatório de um sistema de saúde falido tem a imprensa leiga feito referência constante ao mau atendimento do prontosocorro no Brasil Médicos negligentes hospitais carentes e um povo desprezado parece traduzirse no assunto pre ferido de nossos informantes Esquecemse do essen cial continuam na parte visível do iceberg Em nossas universidades apenas iniciamse os cursos de Emergências Médicas especialidade em pleno desenvolvimento em todo o mundo e não nos é ensinado como lidar com a agressividade com a desconfiança e temores do paciente agudo e seus acompanhantes Ensinam a diagnosticar e a medicar mas esquecem de mostrar a realidade e ao nos depa rarmos com a mesma iniciase o processo de desa mor e de decepção com a tão sonhada Medicina 39 O MÉDICO O PACIENTE E O ATENDIMENTO DE EMERGÊNCIA NO BRASIL José Galvão Alves Psicossomaticaindd 472 Psicossomaticaindd 472 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 473 A falta de gaze a maca quebrada o equipamen to radiográfico que não funciona o péssimo salário da equipe de saúde não podem ser atribuídos ao mé dico No momento o médico no PS assemelhase a um guerreiro sem arma Como humanizar Como transmitir e ensinar aos mais jovens Por que tanto se sabe e tão pouco se muda Por que expor uma classe tão essencial à sociedade a crí ticas tão perversas Por quê É preciso que se descubra o papel real do médi co e da equipe de saúde na sociedade Não basta a constatação da existência da falta de material e de maus profissionais é fundamental o investimento na formação humanística onde a técni ca e a ética se unam para o bemestar social É o momento de idealizarmos uma realidade e buscála arduamente A prática médica no PS ne cessita acima de tudo de liderança éticocientífica e de organização institucional Médicos que respeitem o saber o humanismo e os locais condizentes com a rea lização de uma boa prática profissional O setor de emergência dentre outras qualida des deve ter um ambiente tranquilo com materiais de fácil acesso equipes preparadas técnica e emo cionalmente para o convívio com o doente grave com famílias aflitas e mesmo com a morte por vezes prematura É necessário pois um clima de solidarie dade respeito e amizade entre os plantonistas Isso ameniza o alto grau de tensão demonstra seriedade e atrai o respeito e admiração dos que sofrem A Medicina lida com o povo suas dores seus medos e angústias apenas um médico bom pode transformarse num bom médico A relação médicopaciente nos hospitais públicos e especialmente no setor de prontosocorro tem como característica principal o anonimato médico e paciente encontramse pela primeira vez e na imensa maioria das vezes não sabem sequer os seus nomes É pois a instituição o grande referencial ou quando muito a equipe de plantão Assim referese o paciente Fui atendido pela equipe de Segundafeira do Hospital Estadual Carlos Chagas RJ Esta falta de identidade tem permitido uma con duta menos comprometida do profissional de saúde e tem também diluído os eventuais ganhos e acertos do mesmo Num momento de urgência tenso e temeroso pelo que se passa o doente geralmente se depara com os desconhecidos médico e hospital e sentese profundamente impotente ou mesmo em alguns ca sos perseguido e reage muitas vezes com grande agressividade O simples ato de estender as mãos cumprimen tar o paciente recomendar que se assente e identifi cálo nominalmente já traz consigo uma melhor aco lhida quebrando muitas vezes o gelo e o anseio de ser mal atendido Embora o tempo para o atendimento seja por demais escasso nada nos impede de utilizálo com educação e cortesia Mais do que nos queixarmos da falta de condições o doente entenderá e a nós se uni rá caso o atendamos com o cuidado o respeito e a cordialidade que merecem os agudamente enfermos Outra preocupação constante é a de valorizar mos o sofrimento da pessoa que nos procura e não apenas a doença que consideramos mais ou menos grave Exemplificando um paciente politraumatiza do costuma obter apoio de toda equipe o contrário se dando com os portadores de distúrbios agudos da esfera emocional Embora consiga entender que na primeira situa ção o risco de vida possa conduzir a maior preocupa ção não me parece oportuno o descaso e a desvalia destinados ao doente psicológico Se seu conflito in terior é tão grande que o impede de exteriorizálo sob a forma consciente a somatização deve ser vista como uma expressão de imensa dor da alma e ser encarada com o respeito e o carinho tão terapêutico àqueles que sofrem É pois conhecido o papel do mé dico no alívio do sofrimento visto que a cura talvez esteja distante de suas possibilidades Recordome da indignação expressa na face de um médico quando percebeu que sua paciente não estava realmente hemiplégica e que era apenas uma histeria de conversão Revoltado sentindose enganado forçavaa a levantarse e caminhar com ameaças e gritos também de histeria Sobroulhe ciên cia mas faltoulhe equilíbrio O equilíbrio necessário para atender a gama de situações clínicas de prontosocorro se adquire com o tempo a dedicação o respeito e a arte de unir ciên cia e humanismo Infelizmente desconheço em nosso país um treinamento que coloque como também es sencial a assistência à emoção e a busca da harmonia do homem que sofre Os concursos para médicos plantonistas abordam a psiquiatria mas esquecemse da psicologia da antro pologia da sociologia e da interdisciplinaridade O exame clínico deve ser rápido porém cuida doso adequandose às queixas principais O doente geralmente percebe da seriedade profissional mes mo desconhecendo o seu grau real de domínio cien tífico Condeno radicalmente aqueles que se aprovei tam da ignorância do nosso povo para divertirse em momento tão sério Recordome de um médico que ao examinar uma senhora idosa colocou o estetoscó Psicossomaticaindd 473 Psicossomaticaindd 473 05012010 121222 05012010 121222 474 Mello Filho Burd e cols pio sobre sua cabeça e pediulhe que repetisse inúme ras vezes trinta e três provocando risos nos mais jo vens que o acompanhavam Acredito ter se realizado como humorista mas jamais como médico A maneira como ouvimos a anamnese o inte resse em conhecer o mínimo daquela pessoa bem como o exame detalhado e atento são mais convin centes das boas intenções do médico do que qualquer discurso A maneira respeitosa ao despir uma mulher para examinar seu tórax o palpar suave de um abdome doloroso a calma em recostar um ancião hemiplégi co a consulta cuidadosa de um dispneico são tão ou mais terapêuticos que drogas e bisturis Uma parcela significativa do sucesso de um médicosocorrista res pousa em sua atitude humanista São fundamentais a astúcia a rapidez de racio cínio o conhecimento científico mas estes não invali dam a preservação de uma boa relação humana É pois o setor de emergência um local estres sante para a equipe de saúde onde o insperado cons titui rotina e apenas o bem atender pode recompen sar tal angústia O clima festivo e de piadas que caracterizam muitos de nossos prontossocorros esconde a an gústia a apreensão e os sentimentos de medo que costumam envolver os estudantes e médicos menos experientes Os politraumatizados os baleados os suicidas os alcoolistas os histéricos transformam este am biente num clima de alta tensão necessitando muitas vezes de brincadeiras para descontrair Não as conde no apenas recomendo que se respeite a presença do paciente e não se perca gratuitamente sua confiança Não se justifica uma atitude de deboche com um travesti um bêbado ou uma prostituta Estes já são alvos de desrespeito de nossa sociedade precon ceituosa e o médico deve absterse de tal julgamen to não lhe cabe no exercício da profissão Buscam nos médicos o apoio e a compreensão Depreendese pois como devemos investir no preparo psicológico do médicoplantonista Urge uma nova atitude um investimento pro fundo no Setor de Emergências local de grandes per das moral ética e humana e onde a violência urba na e as tragédias já são por demais dolorosas SITUAÇÕES CLÍNICAS Piti Os distúrbios neurovegetativos de origem emo cional vulgarmente denominados piti são uma das mais comuns situações clínicas observadas no pronto socorro Tratase de um paciente que mobiliza muito a equipe de saúde Treinados e preparados para de pararemse com as mais variadas patologias orgâni cas o acadêmico e principalmente o médico reagem agressivamente quando se defrontam com problemas psicossomáticos Sentemse como que ludibriados pelos pacien tes e na imensa maioria das vezes agridem física e moralmente tais pacientes Ao comportarse agressivamente o médico mos tra sua dificuldade em lidar com as emoções e gera um sentimento de desprezo e desvalia no paciente Constitui este um dos mais sérios problemas da classe médica no momento Não se recupera o respeito com o desrespeito Não se realiza com atos destrutivos e perversos O homossexual Há alguns anos o travesti quando procurava o setor de emergência era recebido com piadas pro vocações risos e deboches mas sempre resignado reagia com um certo ar de superioridade e acabava bem atendido A partir de 1981 com o surgimento da síndrome de imunodeficiência adquirida SIDA a receptividade ao homossexual tornouse um pro blema de Saúde Pública Médicos e enfermeiros des preparados e ignorando os reais meios de contami nação do HIV vírus da imunodeficiência humana negavamse a atender esse tipo de paciente e com isto provocavam situações extremamente drásticas no prontosocorro Há poucos meses em visita a um dos maiores hospitais de emergência deste país presenciei um homossexual com seus punhos cortados gritando Ve nham me pegar eu tenho AIDS Embora estivesse se esvaindo em sangue apenas os policias procuravam convencêlo a ser atendido Tão perigoso quanto ou até pior do que a AIDS é o desconhecimento e o despreparo da equipe de saúde em lidar com tais situações Jamais poderemos ter total domínio dos riscos de contaminações físicas de um médico o que se poderia é tentar impedir de contaminarmos nossas mentes com atos de descaso e desamor O bandido Uma das situações mais dramáticas a ser vivida em um prontosocorro é o atendimento a um pacien te trazido por policiais Na maioria das vezes ele foi ferido durante uma troca de tiros com as autoridades e estas revoltadas e temerosas muitas vezes suge Psicossomaticaindd 474 Psicossomaticaindd 474 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 475 rem ou mesmo solicitam que abreviemos a vida do marginal No início de minha carreira encontreime em tal situação por várias vezes e confesso que em algumas tive vontade de ser o juízo final Neste momento cabe ressaltar o papel terapêutico do mé dico não se permitindo envolver ou ser envolvido em situações alheias à prática médica Ele deve agir portanto com profissionalismo não identificando a quem salva Lembrome perfeitamente de um maníaco se xual que foi levado ao PS do Hospital Carlos Chagas após ter sido espancado por vizinhos em razão de ter estuprado uma criança excepcional de 4 anos de idade A equipe médica se revoltou alguns queriam fazer justiça pelas próprias mãos O alcoolista Existem basicamente dois tipos de alcoolistas frequentadores do PS O primeiro é aquele que busca o socorro médico em razão de uma doença orgânica ou em função de um acidente o outro é atendido em função dos efeitos psíquicos do etilismo Na primeira situação existe uma tentativa de negação do alcoolismo buscandose inúmeras expli cações para aquela situação clínica São adequada mente tratados pela equipe de saúde e até despertam um certo sentimento de pesar Já os do segundo grupo geralmente são levados ao PS em situações de coma ou précoma alcoólico ou em agitação psicomotora ou numa crise de agres sividade Para estes pacientes gostaria de chamar a atenção pois geralmente são tratados de forma agressiva e muitas vezes interpretados como psicopa tas e encaminhados a hospitais psiquiátricos Alguns trabalhos têm demonstrado que cerca de 50 dos pa cientes psiquiátricos internados nos serviços públicos são na realidade alcoolistas Deixálos cair da maca amarrar seus punhos e mãos até ferílos não resolve a revolta social que há em cada um de nós Devemos internálo no Hospital Geral medicá lo estarmos atentos a suas carências nutricionais e então após ganharmos sua confiança encaminhálos a grupos especializados em alcoolismo e a Associação de Alcoólicos Anônimos AAA O toxicômano Estes pacientes despertam um sentimento de rejeição da equipe médica Geralmente estão em es tado de alucinação agitados verborreicos e exigindo tratamento especial A maneira mais adequada de lidar com eles é procurar angariar sua confiança pe netrando de uma maneira positiva no seu mundo de fantasia Interrogações do porquê usam drogas e conse lhos formais são por demais superficiais para encon trar respostas A capacidade de ouvir a paciência no relacio namento com estes pacientes e quando necessário a sedação constituem conduta mais adequada Não devemos permitir a intervenção de poli ciais a não ser em casos extremos de agitação psi comotora Quem busca um hospital espera encontrar um médico e não um repressor O politraumatizado Considerando que na cidade do Rio de Janeiro a principal causa de óbito entre 5 e 45 anos é a violên cia podemos entender a importância da abordagem deste paciente no PS Originários da via pública trazidos por desco nhecidos e pegos subitamente por uma situação de doença aguda são os politraumatizados o exemplo maior da importância de um bom sistema de atendi mento de emergência Desde o socorro extrahospita lar o transporte de ambulância a equipe e o hospital todos são novos e ameaçadores Há de se entender como deve ser difícil passar de repente de um estado de saúde plena a um risco de vida iminente Pelo exposto devemos dedicar um tratamento médico e psicológico todo especial ao politraumatiza do e também aos seus familiares São momentos de muitas ansiedades onde per das e ressentimentos se misturam profundamente São situações dramáticas que por vezes envolvem o uso abusivo de drogas eou álcool descortinando graves problemas pessoais e familiares São culpas pelo carro emprestado pelo papo es quecido pela orientação afrouxada São momentos de silêncio profundo e crença imensurável O traumatismo craniencefálico a perda de um braço a cirurgia de urgência são situações tão alar mantes que o médicosocorrista habituado com o PS terá que viver diariamente mas deverá entender que cada paciente e cada família geralmente as vive uma única vez Pais desesperados amargando culpas a implo rar por milagres são situações dramáticas para equi pe médica e familiares Não existe consolo mas a mão sobre os ombros o olhar solidário e as atitudes objetivas transmitem segurança e respeito Psicossomaticaindd 475 Psicossomaticaindd 475 05012010 121222 05012010 121222 476 Mello Filho Burd e cols O velho Um dos momentos mais difíceis na vida do ido so é a sensação de perda súbita da saúde e a preocu pação em não se tornar um peso para seus familia res Exemplo maior constitui a angústia em não mais poder executar suas necessidades básicas sozinho Existem dois tipos de velho o trambolho e o relíquia Este último é preservado e amado por seus familiares que ao menor sinal de doença o levam ao médico ou ao hospital e permanecem atentos a sua evolução participando efetivamente de sua melhora No entanto o que temos observado mais frequente mente no PS é o velho trambolho aquele que a fa mília quer se livrar e o interna ou abandona na sala de emergência aparecendo somente dias depois Embora já com idade avançada eles percebem a rejeição de seus familiares e frequentemente entre gamse à doença ou mesmo à morte Os médicos na imensa maioria das vezes de positam sobre os idosos a insatisfação com seus fa miliares e assim aumentam o sentimento de rejeição e desprezo com os velhos Temos presenciado cenas dramáticas no PS quando pacientes idosos são ali depositados sem ao menos serem adequadamente identificados Situação difícil e que traduz o nosso grave problema social São nestes momentos que po demos aquilatar o valor do trabalho desenvolvido por uma assistente social no PS A criança Ao contrário dos velhos as crianças frequente mente são trazidas ao PS por familiares preocupados ansiosos por um bom atendimento mas muitas ve zes culpandose por não terem tomado as devidas providências em tempo hábil Este temor os leva a ser por vezes muito duros e agressivos com a equipe de saúde O médico experiente há de entender tal situa ção e ao invés de reagir às agressões passa a dedicar se ao atendimento da criança e a dispensarlhe todas as atenções A meu ver constitui a única maneira de silenciar os familiares e adequálos à realidade Envolverse na discussão mostrando aos pais ou acompanhantes que a criança demorou a ser trazida ao hospital só tumultua e agrava a difícil relação Momento delicado é o da criança com crise con vulsiva e que na maioria das vezes se deve a estados de hipertermia Medicála tranquilizar os familiares e orientálos para uma investigação posterior consti tui uma preocupação médica e social Por outro lado devemos considerar sempre a relação com a criança doente e suas fantasias e me dos de estar num hospital com pessoas tão estranhas ao seu mundo Devemos tratálas com respeito e dignidade mas jamais darlhes o sentido de piedade e desvalia São momentos em que o médico pode contribuir po sitivamente para o crescimento psicossocial de uma criança ou adolescente É também no contato com a criança que po demos criar uma imagem mais verdadeira e boa da equipe de saúde O suicida A equipe médica costuma reagir muito mal aos pacientes suicidas e na maioria das vezes os agride perguntandolhes por que não procuraram métodos mais eficazes Alguns chegam a sugerir maneiras mais adequadas de morrer como por exemplo Pule embaixo de um trem Salte do décimo andar Não tome apenas cinco comprimidos mas umas duas caixas de sedativos Espero que a tristeza e a melancolia do paciente sejam capazes de despertar uma atitude de solidarie dade com aquele que não suporte a própria dor O paciente clínico O paciente com patologias clínicas constitui a maioria dos atendimentos de PS no Brasil Emergên cias hipertensivas crise asmática acidente vascular cerebral doenças infecciosas e tantas outras devem ser tratadas adequadamente e os pacientes sempre orientados para buscarem nos ambulatórios a conti nuidade de sua terapêutica Em função da grave crise no atendimento médicoambulatorial no nosso país muitas vezes os doentes buscam o setor de emergência como forma de serem mais rapidamente atendidos Este fato gera um acúmulo de pacientes neste setor o que é extremamente deletério à rotina assistencial prejudicando os profissionais da área de saúde e os doentes Gostaria de chamar a atenção para esta que é uma conduta dos pacientes em função do erro do sis tema e não pode ser vista pelo médico como forma de agredilos Em relação a este assunto cabe ressaltar que excepcionalmente a equipe de saúde prestativa é conscientemente agredida pelo paciente Psicossomaticaindd 476 Psicossomaticaindd 476 05012010 121222 05012010 121222 Psicossomática hoje 477 Transfusão sanguínea Problema bastante comum atualmente é o medo que assola nossa sociedade de ter a necessidade de submeterse a uma transfusão sanguínea Compreensível dado o risco de doenças adqui ridas em nosso meio por sangue contaminado Não bastasse o risco conhecido de adquirirmos malária hepatites sífilis surge a síndrome da imunodefi ciência adquirida AIDS que assombra ainda mais ao leigo Além das campanhas de prevenção e esclareci mento da população devemos estar atentos à origem do sangue a ser transfundido e usar grande rigor na indicação do mesmo A hemotransfusão tem indicações absolutas a serem respeitadas e o sangue hoje aparentemente isento de risco pode conter o risco de amanhã Nas décadas de 1970 e 1980 muitos adquiri ram HIV e Vírus C através de transfusões sanguíne as administradas nos melhores e maiores centros do mundo Não sabíamos da existência dessas viroses e desta forma não tínhamos marcadores sorológicos para identificálas Logo transfusão sanguínea só em caso de extrema necessidade O estudante estagiário no PS Durante muitos anos temos convivido com o estudante em treinamento no PS e infelizmente os problemas se cronificaram dado o descaso dos res ponsáveis pela saúde pública em nosso país Ainda hoje estudantes recémingressos nas faculdades de Medicina são sacrificados nos plantões tendo que as sumir saídas de ambulância horários noturnos e até mesmo auxílio a grandes cirurgias O despreparo técnico e emocional destes jovens acadêmicos são por vezes responsáveis por situações extremamente graves e tumultuantes no PS Uma saída de ambulância pode colocar o aca dêmico em contato com a morte com a violência dos pedestres com sérios acidentes automobilísticos o que certamente seria angustiante até para um médi co experiente É o PS um dos mais importantes locais de treina mento de um jovem médico ou enfermeiro onde eles terão contato com inúmeras situações clínicas e com a realidade porém o aprendizado deve vir através de uma prática correta e feita por quem já a executa O jovem médico necessita da mão experiente do cirurgião das ideias afetivas do pediatra e das histó rias reconfortantes dos clínicos Um hospital de emergência deve ter a lideran ça da experiência e o dinamismo bem conduzido do jovem unindose conhecimento e vitalidade profis sionais Gostaria de ressaltar que médicos com expe riência em atendimento de emergência são fontes de grande segurança pois aqui se encontra a maior es cola a academia da prática onde a teoria emerge do bem assistir Psicossomaticaindd 477 Psicossomaticaindd 477 05012010 121223 05012010 121223 PARTE 7 Tratamento Psicossomaticaindd 479 Psicossomaticaindd 479 05012010 121223 05012010 121223 DELIMITANDO O CAMPO A ação de mecanismos psicológicos sobre os pacientes que sofrem de transtornos somáticos ou orgânicos exige de início uma caracterização de ob jetivos Incluise ou não o fenômeno somático mani festação ou doença propriamente dita como ponto principal a ser atingido pela psicoterapia Face a esta questão vemonos diante de duas grandes possibilidades de atenção psicológica aos pacientes orgânicos Na primeira a atenção fazse necessária para minimizar os efeitos de determinada manifestação somática sobre o sujeito Teríamos todo o campo da reabilitação readaptação ao trabalho retomo à vida à família ao uso afetivo e sexual do corpo reestruturação da imagem corporal enfim a procura de um novo equilíbrio emocional principal mente narcísico na busca da cicatrização das feridas abertas no sujeito pela doença orgânica por aciden tes ou por procedimentos médicos comprometedores como os cirúrgicos Neste campo muitos são os exemplos e tam bém diversas são as metas psicoterápicas A guisa de ilustração enumeramos algumas psicoprofilaxia cirúrgica atenção às famílias de crianças em pré e pósoperatório grupos operativos de enfermaria psi coterapia breve do paciente intemado psicoterapia do paciente gravemente enfermo terminal e grupos homogêneos de pacientes de mulheres mastectomi zadas por exemplo Na segunda o próprio fenômeno somático está incluído na psicoterapia Tratase do atendimento a pessoas com determinadas manifestações corporais as chamadas doenças psicossomáticas nas quais se admite uma correlação de tal forma íntima entre a vida emocional determinados acontecimentos vitais e a manifestação somática que tornase possível per mitir um acesso por via psicológica a sua própria es sência estruturante Por via psicológica não entendemos apenas o acesso ao sujeito através da palavra mas também e muitas vezes principalmente a comunicação ínti ma sem palavras que uma relação humana intensa e próxima como a psicoterápica pode admitir Neste texto trataremos desta segunda possibi lidade Tentaremos marcar sempre amparados con ceitualmente pela psicanálise a diferença entre os fe nômenos corporais histéricos que se estruturam por uma via simbólica e podem ser decodificados pela palavra das manifestações psicossomáticas e propor alternativas técnicas para uma possível psicoterapia que as atinja VIA SIMBÓLICA E VIA BIOLÓGICA Certas manifestações corporais admitem uma leitura Expressam um discurso Tomam presente através do sintoma uma ausência necessária para a manutenção do equilíbrio psíquico do sujeito evi tando a irrupção da angústia Deixam porém um rastro deixam pegadas que sendo seguidas por um interlocutor privilegiado como o psicanalista for mam um sentido claro que evidenciado ao sujeito o liberta do sintoma Esta via de formação de sinto mas no corpo este salto do psíquico ao somático como nos diz Freud dáse primordialmente através do processo de recalcamento que em seu terceiro momento o retomo do recalcado exterioriza de ma neira deformada determinada representação que apesar de manterse inconsciente pode ser denota da por seu derivado consciente A relação entre a representação recalcada e o produto consciente o sintoma por exemplo é uma relação simbólica E a via de expressão desta determinada representação é a simbólica que tanto inquietou os neurologistas do fim do século passado por não encontrarem lesões orgânicas nervosas que a justificassem Portanto não é uma via anatômica biológica de formação de sintomas As manifestações que assim se formam são as manifestações neuróticas histéricas e fazem parte do corpo neurótico como nos conceituou Joyce McDougall 1983 Enumeramos algumas de suas características 40 PSICOTERAPIA PSICANALÍTICA DO PACIENTE SOMÁTICO Otelo Corrêa dos Santos Filho Psicossomaticaindd 481 Psicossomaticaindd 481 05012010 121223 05012010 121223 482 Mello Filho Burd e cols 1 Já mencionada não se encontra uma explica ção física anatômica biológica para o sintoma Uma paralisia por exemplo não supõe uma lesão nervosa que a justifique anatomicamente 2 Expressa representações que não podem ser cons cientes devido ao afeto angústia que produzi riam Isso dáse através do recalcamento da por ção ideativa da representação 3 Expressa um discurso no sintoma neurótico his térico o corpo fala narra uma história signifi cante que pode ser lida e ouvida 4 Admite uma relação dupla com a representação Uma relação plástica concreta e outra abstrata conceitual 5 Relacionase com a vida e a história sexual do su jeito Articula um aspecto da pulsão sexual 6 Expressa uma determinada identificação com um objeto ou com parte dele Nesta identificação pode estar implícita a ideia de um destino to talmente desconhecido sob o ponto de vista da consciência do sujeito 7 Expressa uma comunicação desconhecida do su jeito O sintoma neurótico dirigese a alguém Admite além das questões por que e para que também a pergunta para quem 8 Relacionase essencial e constitutivamente com algo que a psicanálise conceitua como o incons ciente como um lugar dentro de uma tópica que o prórpio sintoma neurótico denuncia e funda 9 Incluise numa perspectiva metapsicológica di nâmica ou seja como solução para conflitos de forças que se opõem no interior do psiquismo do sujeito 10 Pode ser pensado em termos da segunda tópica idegosuperego como resultado de interações e conflitos 11 Como expressa um discurso simbólico tem como précondição a existência de um sujeito primei ramente constituído como tal e com uma capa cidade simbólica suficiente para que assim uma história possa se expressar Isso quer dizer que psicogeneticamente estamos lidando com uma criança que fala e que se inclui numa perspecti va edípica em que a diferenciação euoutro e a constituição dos limites egóicos e corporais e o sentimento de identidade está estabelecida 12 Pode ser revertido através da palavra Este fato relacionase intimamente ao conceito de inter pretação psicanalítica e aos efeitos da associação livre e da interpretação sobre o sintoma neuróti co 13 Relacionase com a transferência ou seja a his tória ou cena contida nas representações recal cadas se atualiza na relação com o terapeuta e através desta atualização se denuncia ao próprio terapeuta dandolhe um essencial instrumento de trabalho No tempo se inclui no fenômeno conceituado por Freud como neurose de transfe rência 14 Relacionase a um discurso típico o histérico que é elemento diagnóstico desde Freud 1973 no Caso Dora diferencial do discurso do doente neurológico sifilítico ou seja orgânico Tratase de um discurso povoado de equívocos contradi ções atos falhos evidenciadores da neurose E as manifestações psicossomáticas Podemos reduzilas à histeria Creio que não E é interessante notar que mesmo em autores como Alexander que buscavam uma teoria que desse um caráter específico a cada doença psicossomática não havia claramente uma proposta de decodificação interpretativa de um conflito e sim de modificação de uma relação com o ambiente e com as pessoas e acontecimentos signifi cativos Em quase todos os autores está presente na ma nifestação psicossomática um acontecimento uma cena da realidade um fato uma mudança nas rela ções com as pessoas eou com o ambiente mais que uma representação ou cena imaginária ou fantasia por assim dizer Na vida biológica o próprio funcionamento hu moral e nervoso autônomo impõese ao sujeito sem expectativa ou pedido de decodificação Diz Joyce McDougall op cit a esse respeito Essa explosão no corpo que não é uma comunicação neurótica nem uma restituição psicótica tem uma função de ato de descarga que provoca um curtocircuito no trabalho psíquico A afirmação curtocircuito no trabalho psíqui co é sutilmente esclarecedora A formação de sin tomas neuróticos implica a existência como no so nho de um trabalho psíquico trabalho esse que seguindo a primeira tópica freudiana é possível pela mediação préconsciente Essa mediação ao articular representações de palavra possibilita a existência de um sintoma possivel de ser decifrado simbolicamente e interpretado em seu sentido oculto O curtocir cuito implica dizer que justamente este trabalho é impossível Assim segundo MacDougall o fenômeno psicossomático surge onde não pode surgir o traba lho psíquico a elaboração e formação portanto de sintomas mentais Há certa unanimidade em diversos autores fran ceses com cujas propostas nos identificamos quanto à questão da oposição via biológica X via simbólica no estudo dos fenômenos psicossomáticos Também se vê um caminho de conceituação teórica que par te da observação empírica de pessoas com doenças somáticas e de pacientes que no decorrer de suas Psicossomaticaindd 482 Psicossomaticaindd 482 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomatica hoje 483 andlises evidenciam sintomas somaticos O conceito pela representacdo significante o fendmeno psicos de pacientes somatizantes descrito pelos autores somatico com seu cardter de descarga de ato nos franceses nao é mera criacdo tedrica mas muito pelo sugere uma relacdo econémica Nessa relacao impor contrario uma tentativa de solucdo para dificulda ta a quantidade como no conceito de neurose atual des especiais no manejo psicoterapico e psicanalitico descrito por Freud e citado por McDougall no traba dessas pessoas e a busca de uma articulacdo com os lho ja referido Os proprios tedricos do estresse como conceitos da psicanalise Selye 1965 propdem para doenca psicossomatica Ainda nesta direcao clinica teoria diznos um modelo de acumulo de humores no interior do or McDougall op cit Descobrimos nestes casos uma ganismo dados por uma secrecéo ininterrupta e ina caréncia na elaboracao psiquica e uma falha na sim dequada que acaba por desenvolver a doenca eou bolizacdo as quais sao compensadas por um agir de os sintomas A teoria corrente da etiologia da ulcera carater compulsério procurando desta forma reduzir péptica admite uma hipersecrecdo de acido cloridri a intensidade da dor psiquica pelo caminho mais cur co que conseguindo por seu carater continuo rom to Todo atosintoma ocupa um lugar de um sonho per a barreira mucosa duodenal termina por criar o nunca sonhado de um drama em potencial Ora 0 processo ulceroso Essa hipersecrecdo imediatamente drama sombrio do soma delirante é uma historia nos faz pensar em fome caréncia voracidade fase sem palavras A expressdo psicossomatica é o hori oral insatisfacdo e vai por ai Mas por outro lado o zonte derradeiro desses atos que tomam o lugar do que vemos é uma palavra um significante uma arti imaginario e da capacidade de sentir tratase da re culagaéo simbolica uma interpretacao nao conseguir gressdo mais profunda e primaria do ser dar conta da interrupcao da secrecao de acido clori Vaise tracando um marco diferencial importan drico embora as vezes um ato concreto como uma tissimo entre o paciente somatizante e o neurdtico internacdo hospitalar por exemplo possa como por ou psicdtico Esse marco diz respeito a utilizagaéo ou magia fazéla desaparecer a impossibilidade de utilizacao da capacidade simbo Outro achado muito importante nas manifesta lica E possivel que algumas manifestacdes somaticas 0es psicossomaticas é sua correlagéo temporal com admitam uma analogia com processos identificatd determinados acontecimentos e datas Os aconteci rios eou comunicativos mas sao exemplos isolados mentos se referem ou a uma perda real como a mor e nao a regra e mesmo assim nao se revertem com te de um ente querido ou a situacdes equivalentes a conscientizacao do processo Um exemplo deste como mudangas migracgdes desemprego divoércio caso seria dado por alguém que tem um descolamen separacdes de casa crises vitais etc As datas ou to de retina diante de um acontecimento existencial sao datas de significacao universal como Natal Ano dificil de ser aceito como se pudesse haver um dis Novo ou especificas como o dia de aniversario ou curso do tipo nao quero ver isso ou aquilo embutido ainda uma data que marca repetidamente uma situ na afeccdo ocular Outro exemplo o de um pai que acao traumatica ocorrida anteriormente alguns anos apos um acidente que cegou seu filho Esse achado reforca a ideia do fenédmeno psi desenvolveu um cancer ocular em um olho Pode cossomatico como surgido de uma impossibilidade se falar em auténtico processo identificatério Uma de acercamento emocional a situagdes de perda e a questao dificil dor que estas implicariam Tal consideragéo apoia Voltando a direcao clinica teoria recebemos McDougall em sua afirmacao de que o corpo bioldgi nos consult6rios de psicanalise e nos ambulatérios de co reage frente 4 ameaca de dor psiquica como se es psicoterapia ou de psicossomatica pacientes com tivesse diante de um perigo fisico Apoia suas convic uma demanda de tratamento mal definida que em ces na indiferenciacdo corpopsique e portanto dor geral nao buscaram ajuda psicoterapica de maneira fisicador psiquica existente no bebé Diz McDougall espontanea mas foram orientados por um clinico ou op cit Por outro lado é certo que o lactente nao pediatra ou especialista cuidadoso e nos quais em faz a menor distincao entre dor fisica e afetiva Por grande proporcaéo encontramse caracteristicas co lhe faltar capacidade de representar simbolicamente muns diferentes da caracterizacdo do paciente men suas vivéncias o bebé nao pode pensar o proprio cor tal seja neurotico ou psicotico po e as sensacgdes que dele emanam nem reconhecer A observacao desses pacientes nas entrevistas e os proprios sentimentos dolorosos como seus na psicoterapica sugere como nos diz McDougall op Dito de outra forma a impossibilidade precoce cit uma caréncia na elaboracao psiquica uma falha de inclusaéo da dor psiquica numa cadeia simbdlica na simbolizacdo e uma nogao de atosintoma Seguin nomeadora e articuladora que a tornaria possivel de do essa linha de pensamento nao poderiamos deixar ser vivenciada cria uma desintegracao potencial na de observar que enquanto o fendmeno neurético nos unidade psicossomatica Esta ao verse ameacada faz pensar em uma relacao de qualidade mediada por uma perda por exemplo propicia 0 surgimento 484 Mello Filho Burd e cols no corpo da manifestação de descargaato que são os sintomas psicossomáticos Propusemos no capitulo Histeria hipocondria e fenômeno psicossomático a relação do conceito de supressão Unterdrückung emitido por Freud em 1915 com esta impossibilida de de vivenciar afetos de perda ou equivalente e a eclosão do fato somático Vigorosa fonte de reflexão e desenvolvimento do estudo do fenômeno psicossomático o Instituto de Psicossomática de Paris dirigido por Pierre Marty tem produzido inúmeros trabalhos sobre a psicologia do paciente somático o processo de somatização e a psicoterapia do paciente somático Duas noções den tre as muitas que este grupo propõe em seus traba lhos nos são extremamente úteis na compreensão da via biológica e no possível acesso à psicoterapia das pessoas que a utilizam A primeira a noção de pensa mento operatório que se caracteriza por uma pobreza da vida da fantasia da vida imaginativa do devaneio e por uma particular ligação com a realidade onde o sujeito é realista concreto e até seus sonhos são repetições da realidade Este conceito envolve um ou tro a segunda noção de funcionamento insuficiente do préconsciente Pierre Marty relaciona o proces so de somatização à primeira tópica freudiana e as neuroses à segunda a insuficiência do préconsciente é responsabilizada pela concretude do pensamento operatório em oposição à riqueza associativa que a capacidade simbólica plena possibilita Também o relaciona a falhas de defesas organiza das em torno do caráter e do comportamento Quando a relação real com o mundo dada pelo comportamento sofre um traumatismo importante a falha ou má for mação do préconsciente anuncia sua presença através do sintoma somático Cito de Marty sua descrição das possibilidades de organização do processo de somati zação Eu considero atualmente como principais for mas dos processos de somatização a a inadaptação de respostas somáticas às excita ções do inconsciente pela intermediação de uma inibição ou de uma supressão prolongada de re presentações de diversas ordens b as más formações do préconsciente nas neuroses de comportamento c as falhas póstraumáticas do ego e do précons ciente nas neuroses de caráter d as regressões psicossomáticas Devese notar que o termo regressão implica mecanismos biológicos capazes de conter processo de desorganização O fenômeno somático surge não como a própria desorganização mas como uma ten tativa através de sistemas de fixação de dar conta dela Christophe Dejours aprofunda questões ligadas às somatizações e ao pensamento operatório e cons trói a hipótese da terceira tópica apoiado na ideia de uma dupla clivagem do sujeito na qual por um lado se desenvolveria uma relação mediada pelo re calcamento e pelo préconsciente e por outra uma relação entre o inconsciente primitivo contido pela própria consciência e pelo pensamento lógico conceitual Diz Dejours 1988 sobre os pacientes psicos somáticos Até um certo ponto nos mostram um funcionamento préconsciente Mas somente até um certo ponto pois sua vida mental parece às vezes muito acanhada entre um inconsciente e um préconsciente muito pobres quando se consegue percebêlos através dos retomos do recalcado Somos levados a admitir portanto que face ao inconsciente primitivo opõese um sistema que pode contêlo de maneira eficaz A observação clínica mostra que esses pacientes se mantêm graças a comportamentos e um modo de pensamento corretamente articulados à realidade Esse modo de pensamento é um modo eficiente realista que não tem nada a ver com o pro cesso secundário que reina no préconsciente carac terizado pelo que se chama associações Trata se portanto de um pensamento lógico resultado de uma aprendizagem Tratase de uma interpreta ção da realidade mas lógica fornecida do exterior aprendida e não uma interpretação fantasmática pelo sujeito Para uma sintetização dessa sequência argu mentativa ligada à via biológica poderíamos enume rar suas principais características que nos nortearão nos aspectos técnicos da psicoterapia 1 Admite uma diferença da manifestação histérica na medida em que no fenômeno somático não se consegue pelos mesmos meios de acesso sonhos atos falhos associação livre construir e decodifi car um discurso que não só determine mas consti tua simbolicamente o sintoma 2 A via biológica admite uma história mas esta his tória é ligada a vivências traumáticas cujo protó tipo é a perda do objeto ou algo que imaginaria mente lhe corresponda 3 É uma via anatômica ou seja se houve uma pa ralisia por exemplo encontrase também o seu substrato fisiopatológico 4 Relacionase intimamente com as noções de re tenção descarga ato fazendonos encarála sob o ponto de vista metapsicológico econômico mais que dinâmico 5 Tem como correlato no assim chamado paciente somatizante o pensamento operatório e a apren dizagem como meios de ligação e controle das Psicossomaticaindd 484 Psicossomaticaindd 484 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 485 possíveis desorganizações internas e externas no lugar da articulação associativa simbólica 6 É possível de ser pensada como curtocircuito como processos imediato de descarga semelhan te ao ato devido à insuficiência mediadora do préconsciente 7 Como consequência é melhor equacionada na primeira tópica enquanto os procesos neuróticos o são pela segunda tópica 8 Relacionase à supressão Unterdrückung e à cli vagem do ego 9 É desencadeada por um acontecimento da ordem da perda ou equivalente 10 Esta perda não é relacionada pelo sujeito ao fenô meno somático e em geral é minimizada e bem tolerada 11 É uma via estabelecida precocemente genetica mente antes do advento da palavra como orga nizador simbólico ou seja se estabelece em um período préverbal relacionandose à diferencia ção euoutro à organização do sentimento de ser e de existir Pode ser pensada como uma via que protege anacronicamente o sujeito de angústias dessa época portanto angústias de aniquilamen to ou psicóticas 12 Constituise sobre falhas nas relações primordiais notadamente com a mãe ou substituto PSICOTERAPIA DO PACIENTE SOMÁTICO A Psicoterapia psicanalítica e a Psicanálise en quanto método terapêutico organizamse tecnica mente em torno de quatro pontos básicos entrevistas preliminares diagnóstico e indicação contrato set ting e sessões propriamente ditas com a associação livre como regra fundamental para o analisando e a atenção flutuante uniforme para o analista Feita a indicação é realizado um contrato verbal no qual se determina o número de sessões semanais 3 a 5 geral mente e se estipulam os horários 45 a 50 minutos e a forma de pagálos O ambiente deve ser tranquilo relativamente isolado de estímulos externos Há um divã à disposição do analisando sugerindo quando não dito explicitamente a posição deitada O analista sentase atrás do analisando que em geral não deve vêlo Comunicase a regra fundamental associação livre ou de alguma forma através de intervenções conduzse o cliente a ela Esperase o desenvolvimn to de um processo a neurose de transferência cujo manejo e solução representam a própria solução da demanda analítica Muito simplificadamente eis uma síntese de análisetipo E com os pacientes psicossomáticos Co mecemos pelas entrevistas preliminares e o contrato Os pacientes somáticos raramente procuram a aná lise espontaneamente Quase sempre são derivados por médicos que os atendem clínica ou cirurgicamen te Exceção deve ser feita a pessoas que buscam ajuda não pela doença somática em si mas por uma eclosão de sintomas de outra ordem em geral angústias liga das à falência do sentimento de integração de iden tidade que surgem em seguida a um acontecimento traumático Descobrese na entrevista tratarse de al guém que sofre de transtomos psicossomáticos Mas ainda assim vêse nesses pacientes não uma busca de subjetivação mas uma desesperada necessidade de uma relação humana próxima de função imaginária que consiga minimizar a intensidade das angústias e das ameaças de desintegração Mas voltemos ao paciente psicossomático e a sua entrevista através de dois pequenos exemplos típicos Heloísa profissional liberal bemsucedida chega ao consultório dizendo ter sido encaminhada pelo Dr Fulano cirurgião que a operou Traz seus úl timos exames e uma série de radiografias para que as examinemos Diz Dr Fulano acha que eu preciso de análise E o Sr Outro exemplo Paulo engenheiro de uma estatal chega ao consultório dizendo ter sido encaminhado pelo clínico que o trata de úlcera duo denal há 4 anos Após dizer isso silencia Pergunto sobre sua vida sua história e dizme estar tudo bem É casado é feliz com a mulher e um filho e está bem no trabalho apesar de acharse excessivamente exi gente Perguntando muito mas muito mesmo con seguimos descobrir que quando o processo ulceroso iniciou Paulo havia recém se formado começara o seu primeiro emprego recém havia se casado e um acidente havia acontecido com o irmão O que há de singular nessas entrevistas Inicial mente a demanda que é fornecida por um outro e é aceita ou aprendida pelo paciente funciona como se fosse uma receita ou pedido de exame complemen tar Heloísa trazme suas radiografias Paulo sua indi cação clínica Há um pedido inicial de algo concreto objetivo algo que possa ser aprendido ensinado e não desvendado descoberto Não há podemos dizer o que descobrir e sim o que cobrir fazendo um jogo de palavras Também notamos uma dissociação abso luta entre o acontecimento traumático e os sintomas corporais E aí reside nossa tarefa primeira a recons tituição histórica a cronológica e a integração en tre datas acontecimentos e eclosões somáticas isso pode dar ao paciente uma primeira consciência da relação de seus sintomas com algo maior de caráter existencial e ajudar a criar um sentido inicial e uma noção da razão de ser do tratamento Mas esta é uma construção cuidadosa arrancada a sacarolhas pelo terapeuta que dá a medida do lugar por onde va mos caminhar e do ativo trabalho do psicanalista Se Psicossomaticaindd 485 Psicossomaticaindd 485 05012010 121223 05012010 121223 486 Mello Filho Burd e cols o analista fica em silêncio esperando o sentido bro tar das associações livres tem uma amarga surpresa Não brota sentido Há também o silêncio formase um clima de incompreensão de surpresa decepção e comumente interrompese o tratamento Admitida essa presença viva falante questionadora e ativa do analista como algo necessário é fácil imaginar que esta psicoterapia deve ser conduzida face a face e não com o paciente na posição deitada A visão perma nente do analista de suas expressões de uma presen ça física concreta permite uma relação pessoal que reputamos fundamental O paciente psicossomático não está em Tebas à beira de um oráculo à espera de uma decifração Ele está em busca de uma relação hu mana interpessoal que possa ajudálo a constituirse mais plenamente como sujeito e quem sabe um dia possa até desejar buscar um oráculo Pierre Marty ci tando Catherine Parat diz a esse respeito a regra fundamental não é editada como uma regra o tera peuta está na necessidade de verbalizar de propor assuntos de colocar questões e de responder às do paciente de abrir vias caminhos lá onde o paciente não as pode construir O laço positivo sustenta esta relação por elementos de identificação sublinhados e fornecidos A idealização frequente repetida por um longo tempo e manejada com delicadeza pode servir à elaboração de introjetos muito úteis A in terpretação quando é necessária é mais explicativa que lapidar Partindose da ideia da impossibilidade de vi venciar plenamente estados afetivos e da ameaça que estes representam para o sujeito o estabelecimento de uma relação coloquial e viva com o analista é não só objetivo buscado como secretamente festejado Assim as manifestações transferências são bem vindas e devem ser vividas e não interpretadas A in terpretação quando houver deve tratar de promover uma maior aproximação do paciente a estas vivências que surgem mesmo muito idealizadas Ainda sobre a interpretação psicanalítica clássi ca penso que além de equivocada técnica e teorica mente é vivida como invasão ou sugestão e como fe rida narcísica Marty diz a respeito algo interessante Uma interpretação terá toda a chance de produzir uma dupla ferida narcísica ao mostrar ao paciente a estranheza do terapeuta de uma parte e a insuficiên cia do seu próprio pensar de outra Nos pacientes neuróticos a interpretação sim bólica tem o sutil efeito de desvelar um sentido ocul to pela semelhança de uma metáfora enquanto no paciente somatizante ela terá mero efeito de analo gia Exemplificamos se a uma pessoa neurótica que passa uma sessão de braços cruzados ao interpretar se essa expressão corporal é possível que surjam as sociações do tipo é verdade ando meio parado na vida de braços cruzados como você me apontou No paciente somatizante a mesma interpretação tal vez provocasse algo como Estou cansado tive ontem uma dor no braço assim está mais confortável o que para o neurótico é um campo lúdico associati vo metafórico para o somatizante é um campo da analogia pura assim como num dicionário de sinô nimos Ou seja devem ser evitadas as interpretações simbólicas que não encontrarão eco ou serão vi vidas como invasão ou algo engraçado podendo ao cabo de algum tempo o paciente até aprender a for mulálas e nos surpreender com essa aprendizagem Mas certamente estará aprendendo psicanálise e não sendo psicanalisado Não havendo um funciona mento suficiente do préconsciente não haverá cam po para a eficácia dessas interpretações Como o fenômeno somático se estabelece numa fase préverbal é fácil imaginar com que fragilidade pessoal estaremos lidando na análise destes pacien tes Assemelhamse muito aos chamados pacientes narcísicos embora no caso destes sejamos frequente mente alertados sobre nossos equívocos e falhas atra vés das mágoas ressentimentos silêncios ou mesmo crises de fúria narcísica Nos pacientes somáticos muitas vezes os sinto mas somáticos substituem estas manifestações dei xandonos bastante atônitos e impotentes Citamos dois pequenos exemplos já publicados em trabalho anterior Santos Filho 1987 mas bastante esclare cedores O primeiro de Antônia 46 anos solteira Sofria de doença de Crohn uma doença intestinal de natureza imunológica razão pela qual já havia sido operada uma vez Certa feita em seu segundo ano de tratamento falávamos sobre os homens em sua vida e sobre um namorado com quem estava sain do Discorria sobre suas dificuldades em aproximarse sexualmente desse homem o que sugeria algo de natureza histérica Interpretamos essa situação como decorrente de uma relação com um pai analista idea lizado que a aprisionava impedindo a aproximação com outro homem e criando uma área de proibição pulsional Vinhamos há tempo falando sobre seu pai realmente idealizado e proibidor Concordou e saiu com o namorado No dia seguinte ligavame de um hospital onde estava intemada com crise intesti nal séria que quase lhe valeu outra cirurgia O que aconteceu Antônia tomou emprestada minha supos ta genitalidade acreditou que queríamos que ela ti vesse relações sexuais com o namorado e realmente quería mos vemos hoje o que seria uma vitória para nós dois e partiu para a ação Após o encontro a crise e a internação Alguém poderia lembrar reação tera pêutica negativa por intensos sentimentos de culpabi lidade Talvez mas o principal o que não reconhece Psicossomaticaindd 486 Psicossomaticaindd 486 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 487 mos na ocasião foi o caráter da aproximação de nós e do namorado O que Antônia realmente precisava era que re conhecêssemos sua enorme necessidade de aproxi marse de alguém e sua imensa dificuldade face às ameaças de fusão e separação Falamos a uma mu lher quando a demanda era que cuidássemos de um bebê Não nos demos conta de como éramos nós e o namorado vitais para ela naquele momento Como essa outras crises aconteceram Mais tarde pudemos estabelecer algumas correlações e descobrimos que não se pode adiantar esse processo O segundo exemplo Paula uma mulher de 40 anos asmática Procurounos após uma psicoterapia em que havia se apaixonado pelo médico criando uma situação de aparente impasse Noutra psicote rapia anterior também havia se apaixonado pelo te rapeuta tendo ambos resolvido terminar a terapia e ficado amigos Essas duas paixões muito intensas já dizem das necessidades de Paula Numa ocasião no início do tratamento tentava relacionar uma piora no quadro asmático à ansiedade de separação surgi da por ocasião de uma briga conjugal Nessa mesma época Paula contou várias experiências extracon jugais todas com homens casados em sua maioria médicos Preocupados contratransferencialmente com o seu casamento tentamos buscar correlações inconscientes que motivassem a busca de relações com homens casados e nos afastamos um pouco do cuidado de nossa relação No dia seguinte à sessão em questão Paula internase num Pronto Socor ro com uma crise séria de asma Na sessão seguin te dizme que tomou tantos remédios para a crise e usou tanto por conta própria um vaporizador broncodilatador que seu médico disse que mais uma bombada poderia têla matado Mesmo concre tamente matado Só então compreendemos que di zia ser a nossa relação tão importante para ela como uma questão de vida ou morte Só se estivesse muito gravemente enferma ou mesmo à morte seríamos capazes de entender suas necessidades e nos aproxi mar mais dela de seu sofrimento de suas crises do risco de vida que corria em vez de ficarmos preocu pados com seu casamento Essa compreensão trouxe grande alívio e sensação de encontro entre nós Esses exemplos mostram a delicadeza e a sutileza que es tes pacientes exigem de nós E o que é mais curioso é que aparentemente operatoriamente entendem nossas falhas aceitam nossos erros e equívocos exa tamente da mesma maneira que atravessariam uma situação de perda Tudo bem Sem sentimentos sem afetos com entendimento e compreensão maduros e racionais Momentos ou dias depois a doença so mática eclode podendo colocar em risco a relação analítica pelo perigo de reações contratransferen ciais tais como interpretações devido à impotên cia e ameaça narcísica do analista Estas psicoterapias exigem tempo paciência e muito do analista como pessoa Os pacientes rela cionamse mais com as disposições verdadeiras in teriores do analista do que com as palavras que diz embora muitas vezes as palavras possam ter efeito sugestivo temporariamente aliviador Como o que se busca é a construção se possível de uma possibili dade elaborativa esta se contituirá às custas de um vínculo intenso e duradouro e o que é muito impor tante contínuo e confiável Estes pacientes frequen temente por serem tão compreensivos e racionais são justamente aqueles que em momentos de dificul dades nossas tenderíamos a deixar de atender um dia ou trocar uma hora ou atrasar Tudo será aceito mas há o risco de quebrar a única possibilidade que eles têm de saída a relação real com o analista du radoura e confiável Será através do préconsciente do analista que se orgariizará a capacidade simbólica do analisando somatizante Isso requer um trabalho lento e cuida doso no qual a intuição e os afetos do analista serão melhor bússola do que sua inteligente capacidade in terpretativa o que requer uma mudança na atitude habitual neutra e passiva Duas palavras finais uma sobre o setting e outra sobre o tratamento de crianças Esses pacientes pare cem muitas vezes desconhecer a noção de setting o que nos desnorteia frequentemente Trazem exames são capazes de trazer um amigo para a sessão foto grafias objetos dar presentes enfim não tratam o setting com o respeito com que os neuróticos costu mam tratálo principalmente aqueles que já conhe cem psicanálise por informação O setting deve ser a pessoa do analista e só Em momentos de maior en contro são capazes de comportarse como crianças sentar no chão e brincar com algo em vez de falar dis so tentando refazer um vínculo perdido Os limites e contornos vão se constituindo aos poucos enquanto se organizam também outras funções do pensamento e o processo criativo Sobre as crianças tudo que aqui foi dito é vá lido para a psicoterapia das crianças com algumas diferenças Essas diferenças dizem respeito ao uso dos brin quedos e dos desenhos e esculturas de massa como objetos intermediários Nessas psicoterapias deve ser buscada a possibilidade de brincar desenhar e jogar como encontro do objeto intermediário Às vezes Remetemos o leitor aos trabalhos de D W Winnicott sobre psicoterapia infantil Por exemplo O ambiente e os proces sos de maturação Porto Alegre Artes Gráficas 1990 Psicossomaticaindd 487 Psicossomaticaindd 487 05012010 121223 05012010 121223 488 Mello Filho Burd e cols o próprio corpo do analista pode envolverse nesse processo No mais teremos a chance invulgar de ver ali aos nossos olhos desenvolverse o processo de criação simbólica e o que é também muito impor tante com um caráter preventivo já que reside no tratamento da criança com fenômenos psicossomáti cos a possibilidade de prevenção e profilaxia de serios acidentes corporais na idade adulta PSICOTERAPIA DO PACIENTE SOMÁTICO NO AMBULATÓRIO DAS INSTITUIÇÕES O ambulatório institucional admite algumas di ferenças do consultório privado em sua prática psico terápica com consequência sobre a atuação do psi coterapeuta Embora algumas vezes negada é importante que se situe a relação instituiçãoprofissional de saú de como elemento diferenciador muitas vezes contri buindo para o estabelecimento de uma prática bem diversa da prática privada Os baixos salários as más condições de trabalho o desprestígio da categoria mé dica são fatores que em nossa realidade institucional brasileira com diferenças regionais é claro afetam de forma negativa o trabalho ambulatorial podendo contribuir de forma consciente ou inconsciente para a constituição de identificações dos profissionais com a instituição que são sempre se não forem ardua mente discutidas e refletidas iatrogênicas Descreveremos as características principais da psicoterapia em um ambulatório de pacientes somá ticos tentando evidenciar algumas tipicidades dessa prática Em termos teóricos e clínicos são válidas to das as afirmações anteriores deste capítulo Sobre a seleção de pacientes Tentamos nos últimos sete anos estabelecer critérios de seleção para a admissão de pacientes em psicoterapia em um ambulatório que não está liga do nem a um serviço de psiquiatria nem a um setor de psicoterapia Corremos em várias direções teóri cas em nossas reuniões de discussão de casos clínicos semanais buscando encontrar um amparo que jus tificasse este ou aquele critério de seleção Ao cabo de muita busca definimos o critério sintomático como o melhor em oposição a um critério diagnóstico es trutural nosológico muito mais complexo difícil e frequentemente equivocado Em outras palavras admitimos como elemento suficiente e necessário para a seleção a existência de um sintoma corporal de uma queixa somática qual quer que seja O diagnóstico e a orientação psicoterápica sur girão no decorrer da própria psicoterapia Achamos ser o melhor critério por razões várias Inicialmen te esta é uma área do conhecimento psicanalítico psicológico e médico ainda insuficientemente estuda da sujeita a modificações e novas descobertas que a consolidem Por outro lado os psicoterapeutas não apresentam uma homogeneidade de conhecimento amparandose em diversas correntes teóricas algu mas delas opostas em relação ao fenômeno somático para a realização de seu trabalho Demanda e deman dará muita discussão clínica e teórica a construção de uma homogeneidade conceitual e de princípios técni cos claros que sejam pouco refutáveis em relação ao paciente psicossomático Outra razão deste critério é a busca do alívio sintomático tão presente nas psicoterapias institucio nais como elemento muitas vezes chave e fundamen tal Para a instituição tão articulada ao saber médico e aos poderes públicos importa mais a remissão dos sintomas o que é garantia de sucesso para o psicote rapeuta além do benefício inequívoco ao paciente A seleção é realizada através de entrevistas que podem ser feitas especificamente por um ou alguns dos profissionais do serviço criandose um setor de triagem e seleção ou pelo próprio profissional que atenderá o paciente É importante que haja um espaço para discussão destas triagens com todos os elementos envolvidos na tarefa O ideal é a reunião clínica com frequência semanal ou quinzenal em que em sistema de rodí zio sejam apresentados e discutidos os casos clínicos envolvendo a seleção a indicação e a evolução da psicoterapia Quando existirem estagiários ou uma diferença muito grande de experiência e conhecimento entre os profissionais do ambulatório as entrevistas de se leção deverão ser feitas pelos psicoterapeutas mais experientes que também deverão dar supervisão aos menos experientes e aos estagiários Características da psicoterapia Os pacientes atendidos no ambulatório de Psi cossomática raramente assim como no consultório particular procuram espontaneamente a psicote rapia São ou egressos do hospital de referência ou vêm indicados por médicos das diversas clínicas do Ambulatório do Serviço de Medicina Psicossomática do Hospital Central do IASERJ Psicossomaticaindd 488 Psicossomaticaindd 488 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 489 ambulatório geral Atualmente também vêm indica dos por outros profissionais de saúde da instituição como assistentes sociais enfermeiras e nutricionistas Essa característica reforça a necessidade da articula ção entre o ambulatório e as práticas de Psicologia Médica e Medicina Psicossomática do hospital geral como a interconsulta os grupos Balint e os trabalhos psicoterápicos de enfermaria É fácil supor que se a demanda psicoterápica do paciente psicossomático é construída pelo profissional de saúde e na maior parte das vezes pelo médico que o atende fazse fun damental que uma boa relação interprofissional seja construída precocemente e não tardiamente após em geral longos períodos de fracasso terapêutico e ou iatrogenias diversas Citamos dois exemplos para ilustrar a necessidade de uma relação permanente entre os profissionais do ambulatório e as diversas clínicas do hospital geral O primeiro de D Florinda 50 anos atendida inicialmente na enfermaria e em seguida no ambulatório O profissional do serviço foi chamado à enfermaria por uma residente que estava preocupada pois D Florinda seria reoperada pela se gunda vez em 15 dias por vômitos pósoperatórios O diagnóstico era de gastrite biliar grave após cirur gia de úlcera duodenal que persistia depois de uma segunda cirurgia realizada para minimizar as causas mecânicas da gastrite Com a residente colhemos a seguinte história D Florinda sofria há nove anos de úlcera duodenal resistente ao tratamento clínico resistência essa que levou à indicação cirúrgica Foi operada e no pósoperatório imediato surgiram vômi tos incoercíveis o que levou ao diagnóstico de obstru ção mecânica e gastrite por suco biliar Foi novamen te operada e no pósoperatório imediato de novo os vômitos e a gastrite Desesperada a residente colheu sua história pessoal e descobriu que há nove anos no início dos sintomas digestivos de úlcera duodenal Florinda havia perdido por morte súbita seu marido e seu pai com um intervalo de um mês Foi iniciada uma psicoterapia e Florinda não necessitou ser reo perada com um resultado muito bom em termos da elaboração deste luto duplo congelado digamos as sim em termos sintomáticos O segundo exemplo é o de Maria Lícia já extensamente estudado em traba lho anterior Santos Filho 1986 que com uma dor vulvar histérica iniciada após a morte de seu marido por insuficiência cardíaca agudizada pelo esforço de uma relação sexual em que sentiu dor percorreu por dois anos diversos ambulatórios e hospitais de nossa cidade sendo submetida a seis exames ginecológi cos um exame proctológico com retossigmoidosco pia um exame contrastado do trato urinário urogra fia excretora seis citoscopias uma flebografia um clister opaco radiografias da coluna vertebral uma laparotomia exploradora dois bloqueios de coluna e 24 bloqueios anestésicos suprapubianos Após sua entrada no Setor de Emergência foi chamado um profissional do serviço que a entrevistou indicou e realizou uma psicoterapia de cerca de um ano com excelentes resultados Esses exemplos dão conta da importância da correta divulgação entre os médicos das possibilidades do trabalho psicoterápico Após as entrevistas de seleção são indicados para psicoterapia os casos de neurose e os pacientes somatizantes Os pacientes psicóticos são encaminha dos ao ambulatório de psiquiatria exceto aqueles em que o diagnóstico só for feito no decorrer da psicote rapia quando então se prossegue com ela Em nos so ambulatório após diversas experiências optamos por um mínimo de uma sessão semanal com duração mínima de 30 minutos e embora tenhamos convic ção do caráter arbitrário dessa frequência ela tem se mostrado suficiente na maioria dos casos No início pensamos em limitar o tempo da psicoterapia em seis meses mas a própria prática tratou de derrubar esse limite deixando a psicoterapia seguir seu próprio cur so Não temos uma avaliação estatística mas a grosso modo a grande maioria dos pacientes pertence aos diagnósticos de neurose e de doenças universalmente aceitas como psicossomáticas como úlcera retocoli te asma coronariopatia e hipertensão Há um grau de abandono de tratamento relativamente grande maior do que na clínica privada Não temos uma ex plicação satisfatória para esse fato crendo deverse a uma causalidade multifatorial O modelo psicoterápico é a psicanálise e a psi coterapia psicanalítica tal como ela é praticada no consultório não se utilizando das noções de foco por exemplo o que diferenciaria mais a técnica Uma observação pessoal dá conta da proximidade como vimos nos exemplos anteriores entre o desencadea mento de sintomas somáticos após situações de perda e o aparecimento de sintomas neuróticos relacionados à não elaboração do luto Embora por caminhos dife rentes apresentam uma certa semelhança causal con tida na tríade perda impossibilidade do luto sinto ma corporal Logo algumas psicoterapias seguem um caminho de reencontro do trabalho do luto Como lidase com uma camada menos favoreci da da população menos intelectualizada e mais pri mitiva vemos com maior frequência manifestações histéricas bastante ruidosas nas quais as interpreta ções adequadas são relativamente eficazes por haver um mínimo de racionalizações intelectualizadas No mais respeitandose os critérios de número de sessões e tempo delas as psicoterapias ambula toriais institucionais seguem os mesmos parâmetros técnicos e teóricos da psicoterapia psicanalítica de consultório o que aliás pensamos ser fundamental como marco norteador do comportamento dos pro Psicossomaticaindd 489 Psicossomaticaindd 489 05012010 121223 05012010 121223 490 Mello Filho Burd e cols fissionais em termos do manejo do contrato e das si tuações de férias e ausências às sessões Assim penso que cada profissional deve ter plena consciência dos efeitos nocivos da mediação da instituição devendo assumir diretamente com seus pacientes a responsa bilidade por remarcações desmarcações férias or ganização dos horários etc tal como o faz no con sultório Quando há estagiários é importantíssima a reflexão conjunta sobre este modelo de atendimento e sua diferença do modelo alunofaculdade Há frequentemente a tendência a identificar a tarefa como universitária tal como aulas ou trabalhos escritos o que pode conduzir a atitudes iatrogênicas Também deve ser levado em conta o período do es tágio que condicionará naturalmente a psicoterapia a ser breve e de tempo limitado o do estágio Sistematizando as características principais da psicoterapia psicanalítica do paciente somático no ambulatório das instituições podem ser enumeradas 1 São práticas onde há a mediação em vários níveis desde o mais concreto ao imaginário da institui ção Esta mediação deve ser levada em conta em todos os aspectos da psicoterapia notadamente no contrato e no seu cumprimento 2 Modelase na psicoterapia psicanalítica de con sultório e em última instância na psicanálise enquanto prática clínica psicoterápica maior por excelência 3 Tem características formais como número de sessões e tempo de duração manejáveis segindo critérios mínimos adequados à situação institu cional para atender simultaneamente às neces sidades singulares de cada paciente e à demanda numérica de clientes evitando filas e esperas pro longadas Também depende da relação número de psicoterapeutasprocura do ambulatório 4 Modelase enquanto técnica e tática nos pres supostos teóricoclínicos referentes aos pacientes somáticos exigindo uma atitude ativa empática e pouco interpretativa do terapeuta como já des crito anteriormente neste texto 5 Exige do grupo que a pratica uma reflexão cons tante através de reuniões de discussão de casos clínicos semanais em que devem ser discutidos sistematicamente os casos desde a seleção até a evolução 6 É uma prática que deve estar articulada a outras de Psicologia Médica principalmente ligadas ao hos pital e ao ambulatório geral Nas atividades de en fermaria podemse conseguir encaminhamentos logo após a alta hospitalar o que evita iatrogenias e reinternações Nas atividades de ambulatório interconsultas por exemplo podese conseguir evitar o conluio no anonimato tão comum nos pacientes psicossomáticos bem como cronifica ções e complicações orgânicas mais graves 7 Finalmente representa uma prática do futuro em especial quando se trata de crianças residindo aí uma esperança de minimização de algumas doen ças orgânicas posteriores Isso por si só justifica um forte investimento institucional nesta área da prática assistencial e um compromisso maior dos psicanalistas e instituições psicanalíticas envolvi dos com as questões mais amplas de saúde REFERÊNCIAS Dejours C O corpo entre biologia e psicanálise Porto Alegre Artmed 1988 Freud S Fragmento de un caso de histeria In Obras completas Buenos Aires Amorrortu 1973 McDougall I Três corpos três cabeças In Em defesa de certa anormalidade Porto Alegre Artmed 1983 Santos Filho oCIatrogenia e relação médicopaciente Recife Revista de Psicossomática n 1986 Psicanálise de pessoas com estmturas psicossomáticas Algumas ideias Boletim da Soc Psican Rio de Jan1987 Selye H Le Stress de la vie Paris Gallimard 1965 Psicossomaticaindd 490 Psicossomaticaindd 490 05012010 121223 05012010 121223 As psicoterapias em instituições médicas para pacientes hospitalizados ou ambulatoriais têm como objetivo proporcionar auxílio àqueles pacientes que não estejam conseguindo lidar com o impacto da realidade de sua doença eou com o estresse pro vocado pelas vivências e reações ao âmbito médico hospitalar A resolução favorável do ponto de vista emocional ou o adoecimento psicológico resultante da experiência de estar enfermo dependerá de forças homeostáticas entre a estrutura emocional recursos adaptativos e a realidade externa Na interconsultoria a demanda para um aten dimento psicológico não parte do paciente é oriunda de um membro de outro Setor ou Serviço que não o de Psicologia Médica e o terapeuta designado para fazer o atendimento não é escolhido pelo paciente Portanto a especificidade desta forma de psicotera pia tornase óbvia assim como a necessidade de mo dificações nas técnicas desse atendimento Por ser o local de atendimento dentro de uma enfermaria ou de um ambulatório é importante que o terapeuta possua uma visão sistêmica o paciente no seu aqui e agora inserido no contexto hospita lar e sob a ação de vetores complexos tais como ser obrigado a conviver em um ambiente inusitado cer cado por pessoas desconhecidas ter que se submeter a rotinas estranhas precisar confiar o corpo para ser manuseado por pessoas não familiares não ter priva cidade nem autonomia etc O primeiro passo ao atender a um pedido de consultoria deve ser o de comunicar ao paciente o motivo pelo qual foi requisitada uma avaliação psi cológica ou um atendimento psicoterápico É impor tante transmitir que embora a avaliação seja neces sária por ter sido requisitada NÃO É MANDATÓRIO que ele aceite a proposta psicoterápica ele pode não desejar um atendimento psicológico ou pode não concordar com a razão exposta para o atendimento Como tudo o mais a que o paciente se submete no decurso de sua hospitalização são obrigatórios os procedimentos as coletas de material os exames a alimentação os horários etc mas o simples fato de lhe ser permitido fazer uma escolha já favorece a for mação de um vínculo positivo com o terapeuta evita a aceitação apenas educada da presença do terapeuta e é uma forma de respeito à privacidade e individua lidade da pessoa A permissão portanto para recusar a psicoterapia é igual à permissão para fazer uma es colha A possibilidade de poder optar introduz as sim um elemento salutar de resgate de sensações de poder e de controle que na maioria destes pacientes encontramse abaladas em decorrência da doença e de seus desdobramentos A elucidação para o paciente sobre o propósito do atendimento tem também uma importância fun damental que é transmitir a compreensão de que o atendimento psicológico vai além de um simples vim aqui conversar com você Pode ser bastante adver so um terapeuta referirse a seu trabalho como uma conversa isso dificulta ao paciente a percepção de uma ação profissional especializada e de uma meta de trabalhoatendimento e além do mais conduz a divagações pouco produtivas Vemos horas preciosas serem gastas em atendimentos onde um terapeuta menos experiente pode ficar controlado pelo pa ciente conversando sobre amenidades sem nenhum efeito terapêutico verdadeiro Empatia apenas com o sofrimento do paciente tem efeito fugaz e pode ser fornecido por profissionais de profissões diversas ao seu redor assim como por amigos e familiares É importante avaliar sucintamente a capacidade cognitiva do paciente quadros discretos e não de tectados de comprometimento cognitivo delirium e demência são mais frequentes do que se imagina em pacientes hospitalizados podendo levar a cognições e comportamentos mal adaptativos que por sua vez exigirão intervenções psicológicas específicas e ade quadas ao déficit cognitivo em questão além do uso de medicação psicotrópica apropriada Em uma entrevista inicial pode acontecer que o psicoterapeuta conclua que não há indicação para um atendimento psicológico O ideal nesta situação é além de anotar esta observação na papeleta do paciente que se fale pessoalmente com quem soli citou o parecer Se houver necessidade de mais de um contato com o paciente para esclarecer melhor a 41 PSICOTERAPIA EM INSTITUIÇÕES MÉDICAS Therezinha Lucy Monteiro Penna Psicossomaticaindd 491 Psicossomaticaindd 491 05012010 121223 05012010 121223 492 Mello Filho Burd e cols procedência ou não da solicitação de atendimento o mesmo deverá ser devidamente informado Uma grande maioria dos pacientes tem condi ções de tolerar os traumas de uma cirurgia de pro cedimentos diagnósticos de tratamentos descon fortáveis ou dolorosos etc sem precisar da ajuda profissional de um psicólogo ou de um psiquiatra Daí a necessidade de se avaliar se o pedido de aten dimento psicológico solicitado pelo médico não enco bre na realidade uma dificuldade na relação médico paciente ou dificuldades do médico na comunicação com o paciente a respeito de temas potencialmente ameaçadores e aflitivos Nem sempre o paciente reconhece a necessida de de ser ajudado psicologicamente seja devido a fatores culturais seja devido a fatores emocionais Sua atenção e preocupação estão voltadas para seu corpo para as transformações ou deteriorações que possam estar ocorrendo neste corpo para as conse quências reais ou fantasiosas da doença assim como para as ações terapêuticas praticadas sobre seu corpo Isto pode dificultar o acesso aos aspectos psicológicos da situação em curso e também à formação de uma aliança necessária para a realização de uma terapia psicológica Por outro lado a aquiescência do paciente em falar com o terapeuta não implica necessariamente numa possibilidade de engajamento em uma psicote rapia Para pacientes sem exposição anterior à psico logia é comum achar que aquilo que o terapeuta vai fazer é apenas conversar com ele e não que isso seja um tratamento psicológico Não compreendem que não basta falar sobre seus problemas e angústias sem paralelamente ter um olhar para dentro de si mesmos Despertar a curiosidade do paciente para conhecer a si mesmo para refletir sobre suas ques tões é o primeiro passo para um trabalho a dois uma parceria sem a qual nenhuma transformação emocional cognitiva ou comportamental poderá ser alcançada No tocante ao terapeuta um erro grave no aten dimento a esse tipo de pacientes é a pressuposição de que qualquer ajuda verbal é benéfica isto não tem base científica e denota uma autocracia onipotente por parte do terapeuta O conjunto desses fatores aponta para a difi culdade de se conseguir alcançar uma compreensão psicodinâmica rápida e não superficial do paciente essencial para permitir uma formulação do problema ou queixa que o mesmo apresenta em relação à ges talt do momento atual Como fazer A forma de se resolver esta dificuldade é através de uma atuação mais ativa por parte do terapeuta com um planejamento de abordagens que facilitem a obtenção de dados relevantes para o atendimen to Lemgruber 1984 Essa atividade se traduz na colocação de perguntas objetivas e pertinentes para o paciente sobre assuntos específicos ao caso além de uma escuta A sensibilidade e a experiência do profissional são fundamentais para o encadeamento dessas perguntas de modo a não ser dada uma cono tação de um interrogatório ou de um questionário Uma escuta de atenção flutuante que busca as sociações inconscientes na fala do paciente é menos eficaz do que uma escuta atenta ao que não é dito paralela à colocação de perguntas que endereçam questões ligadas ao pedido de parecer e também às alterações psicológicas mais comuns em pacientes nestas situações Ao solicitarmos que o paciente nos relate a sua história sobre a doença que o acomete coletamos in formações sobre o que ele sabe sobre o que não sabe o que omite o que teme o que imagina para o futuro como lida com a situação e até mesmo sobre como as pessoas significativas de sua vida interagem com as modificações causadas pelo seu adoecer Também indagar sobre experiências pregressas com doenças com médicos e com hospitalizações é útil pois forne ce dados importantes para esclarecer questões atuais Finalmente precisamos saber se o paciente tem ou já teve eficácia para lidar com situações de estresse de um modo geral Buscar entender o que motivou a solicitação do parecer psicológico ou do atendimento é essencial pois nem sempre o que consta no pedido do parecer é compatível com o que elucidamos ao estar com o paciente Além de dados estas perguntas também po dem nos alertar sobre certos mecanismos emocionais específicos que são os da representação simbólica que a doença tem para a pessoa punição Perda de controle Injúria narcísica Medo de dependência a terceiros e que podem estar na gênese de seu sofri mento emocional atual não sendo no entanto cons cientes para o paciente Strain 1975 Saber de antemão quais são as alterações psico lógicas mais comuns em pessoas com determinadas patologias clínicas ou cirúrgicas nos auxilia a estar atentos à ocorrência das mesmas O medo da morte por exemplo é quase sempre universal assim como o são certos temores ligados à sensação de deterioração do corpo Ao contrário do que possa parecer pergun tas não são uma forma intrusiva de interação e sim um interesse sincero em compreender os anseios e temores de quem necessita de uma ajuda para se com preender melhor portanto ajudam a formar um vínculo positivo com o paciente E também não impe dem que o paciente ao respondêlas amplie sua fala para assuntos paralelos que no momento o estejam Psicossomaticaindd 492 Psicossomaticaindd 492 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 493 preocupando ou afligindo Podese até mesmo dizer que funcionam como um facilitador para que o doen te se sinta mais à vontade com um profissional que perceba demonstrar empenho em compreender suas preocupações e desventuras Além do mais este tipo de planejamento de abordagens e busca de informações facilita e acelera o atendimento psicoterápico sem prejudicar a espon taneidade ou a livre associação do paciente proces sos do inconsciente auxiliando o terapeuta a esco lher um foco de trabalho mais premente e vital A colheita de informações serve também para nos dar uma ideia a respeito da capacidade que o doente tem para lidar com o momento em que se encontra seja a existência de uma doença crônica que o leve a man ter visitas regulares a um ambulatório seja o acome timento de uma doença grave que o tenha levado a uma hospitalização Aliviar a dor emocional não deve ser o único objetivo de um atendimento psicológico isso será de efeito efêmero se não for acompanhado de interven ções que auxiliem o doente a por em ação recursos próprios para buscar soluções melhores no enfrenta mento a uma situação indesejável como a de uma doença física Em uma terapia com pessoas portadoras de doen ças graves ou crônicas uma boa adaptação e efi cácia para lidar com as limitações perdas e sofrimen tos impostos pela doença implica na diferença entre uma vida mais ou menos feliz ou uma melhor ou pior qualidade de vida na vigência da enfermidade A resolução favorável do ponto de vista emocional ou o adoecimento psicológico resultante da experiência de estar enfermo depende de forças homeostáticas entre a estrutura emocional recursos adaptativos e a realidade externa Adaptação e eficácia são conceitos que me dem a capacidade de se obter a melhor resposta possí vel diante de um estressor levandose em consideração as limitações da pessoa e da situação Anteriormente estigmatizados pela psicanálise atualmente são con ceitos considerados valiosos devido à gama de estudos que comprovam sua importância no papel que desem penham para a capacitação de um indivíduo diante de adversidades e dificuldades Schein et al 2003 A adaptação de uma maneira geral depende de recursos interpessoais apoio familiar e social vín culos de confiança com médicos e cuidadores e de recursos intrapessoais autoconfiança flexibilidade temperamento tolerância à frustração e vulnerabi lidade ao estresse A capacidade de adaptação tem influência sobre a recuperação a tolerância à dor e ao desconforto físico sobre a aceitação de próteses e ostomias sobre o abuso de analgésicos ansiolíticos e bebidas alcoólicas e sobre a forma de lidar com a perda de determinadas funções como visão audição marcha etc Portanto influi na qualidade de sobrevi da do ser humano Outros conceitos importantes são o de resiliên cia em oposição ao conceito de vulnerabilidade que é a capacidade de uma pessoa para adaptarse a eventos negativos sem que isso lhe cause maiores danos e o conceito de coping lidar com Estas ca racterísticas psicológicas são essenciais para a avalia ção do potencial de um indivíduo no enfrentamento a eventos adversos e indesejáveis A resiliência do pa ciente acrescida de sua forma de lidar com a doen ça coping determinam a capacidade de resolução ou seja o potencial que uma pessoa possui para agir positivamente nos desdobramentos emocionais e comportamentais de seu sofrimento Toda modificação do funcionamento corporal ou da imagem corporal exige uma adaptação a esse novo não desejado nem buscado Esta aceitação forçada gera uma gama de possibilidades emocio nais tais como desespero raiva medo irritação e angústia que em grande parte não são relatados a terceiros estas emoções vêm à tona mascaradas de impaciência intolerância rabugice comportamen tos de dependência etc A estrutura emocional de um indivíduo não é passível de ser mudada em curto prazo ainda mais quando a realidade externa desfavorável está sujeita a fatores fora de seu controle No caso de pacientes hos pitalizados isto é ainda mais óbvio Portanto uma psi coterapia tem o propósito de instrumentalizálo para lidar da melhor maneira possível com sua situação atual e quando possível para utilizar a oportunida de no sentido de obter ganhos psicológicos em outras áreas de sua vida É justamente entendendo onde re sidem as fraquezas e as forças emocionais e cogniti vas do paciente e suas capacitações para resolver suas questões que um terapeuta terá a oportunidade de agir junto ao paciente estimulando aquilo que for positivo e levandoo a compreender onde residem suas vulne rabilidades e o porquê delas Watson e Greer sd Obviamente a busca de informações sobre o psi quismo dos pacientes corre paralelamente a uma es cuta não estruturada atenta e empática para além do que está sendo relatado para a forma como é dito e para o que é evitado de ser dito Tem também o ob jetivo de ajudar o terapeuta a determinar uma ques tão central prioritária a ser trabalhada com o paciente e quando possível um foco psicodinâmico de traba lho Entendese como foco a questão central esco lhida entre os demais relatos abrangentes feitos pelo paciente a respeito de seus problemas e sentimentos que possa ser compreendida como resultante do im pacto da realidade atual sobre conflitos emocionais inconscientes seria como uma ativação de conflitos Psicossomaticaindd 493 Psicossomaticaindd 493 05012010 121223 05012010 121223 494 Mello Filho Burd e cols psicológicos latentes anteriores às vivências de estar com uma enfermidade Ou seja seriam as queixas relatadas pelo paciente sobre o processo da doença moldadas pelo somatório de registros mnêmicos do passado Segundo Strain 1975 estas questões es tariam na ordem de conflitos gerados durante a in fância tais como medo de separação de abandono de punição de estar nas mãos de estranhos medo de danos ao corpo e necessidades de dependência É através do trabalho com um foco psicodinâmi co que o atendimento pode ter um efeito transforma dor e não meramente um efeito paliativo transitório Para esse tipo de abordagem psicoterápica é fundamental um outro conceito que é o de meta te rapêutica O trabalho com o paciente desde seu início deve ter um ou mais propósitos definidos através da avaliação do foco qual o fator que se sobressai dentre tudo o que ouvimos e observamos no relato e atitudes do paciente e que poderia ser trazido à tona com o objetivo de tornar o paciente consciente das conse quências negativas que isso lhe gera e que levam a uma limitação de sua capacitação para conviver com a realidade presente É possível diminuir a sua vulnerabilidade aos estressores Aumentar sua tolerância à frustração Desmistificar alguns medos ou percepções distorci das Melhorar sua capacidade de lidar com a reali dade atual Auxiliálo a maximizar sua rede de apoio familiar e social Ajudálo a alcançar uma adaptação ativa e competente Estas são metas ambiciosas porém possíveis de serem atingidas Irão depender por um lado das limi tações psicológicas de cada paciente da magnitude de perdas sofridas por ele e da adversidade de sua situação e por outro lado da habilidade e experiên cia do terapeuta Um planejamento de abordagens também faci lita a obtenção de uma eficácia terapêutica em um espaço mais curto de tempo tempo este sujeito a fa tores fora do controle do terapeuta e do próprio pa ciente como uma alta hospitalar um agravamento do estado clínico uma transferência para outra uni dade etc Na área médica o conceito de eficácia de proce dimentos é de fácil comprovação o que já não ocor re com as terapias psicológicas nas quais a aferição de eficácia é avaliada subjetivamente pelo terapeuta e pelo paciente com followups raros e precários do ponto de vista metodológico Uma melhora momen tânea do malestar emocional pode ser considerada eficaz para aquele momento mas se não promover uma mudança na estrutura psicológica do paciente uma permanência será que poderá ser considerada como realmente eficaz ou meramente paliativa Entramos aí na conceituação do que define uma psicoterapia versus intervenções de efeito psicológi co benéfico conceituação esta que também pode ser compreendida como modificar o conflito gerador do problema ou atenuar o problema contido no confli to Na psicoterapia dinâmica breve de tempo limita do almejase obter uma compreensão psicodinâmi ca do conflito psicológico reprimido e inconsciente usandose técnicas de planejamento foco e atividade do terapeuta Quando bemsucedida esta forma de trabalho leva a uma reestruturação novas conexões interneurais de processos mentais que se reflete so bre a percepção de si mesmo e de outras pessoas significativas para o paciente e consequentemente geram uma melhora da autoestima acompanhada de uma diminuição dos entraves interpessoais Portanto a meta do trabalho não se restringe apenas a uma autocompreensão e sim almeja alcan çar uma melhor adequação do paciente à sua doença e ao hospital com efeitos resultantes sobre a sua qua lidade de vida e sobre seus possíveis entraves inter pessoais Podese dizer que um efeito bônus disto é que melhorando esses fatores emocionais pode ocorrer paralelamente uma melhoria da sensação de bemestar físico em alguns pacientes As intervenções de efeito psicoterápico benéfico trabalham com o consciente havendo quem as con sidere intervenções paliativas Constam de interven ções de esclarecimento de informação de sugestões de correção de distorções cognitivas de fantasias no civas e de medos irracionais visam a dar estímulo a facilitar a expressão de emoções reprimidas a res taurar a autoestima etc São mais afeitas às terapias cognitivas e a atendimentos de aconselhamento A opção por uma ou outra forma de atendimento dependerá de fatores variados como condições pro pícias do paciente período disponível para realizar um tratamento psicológico e a formação teórica do terapeuta Muitas vezes o que é possível num atendi mento psicológico é um aconselhamento eu diria até que o mais comum são intervenções de esclarecimen to de ventilação de afetos e de sugestões Fletcher 1980 Seja uma ou outra forma que se escolha ou que se possa fazer a capacidade do terapeuta de for necer ao paciente uma sensação de holding é funda mental para o bom desfecho do atendimento Como tanto um tipo de intervenção como outro fazem parte das terapias consignadas como terapias breves isso nos traz para a questão de tempo No Brasil não temos o costume de trabalhar com o conceito de tempo limite ou número prédeter minado de consultas mantendose com frequência o atendimento por períodos prolongados que se esten dem enquanto o paciente permanecer internado ou desejoso de comparecer ao ambulatório Talvez por Psicossomaticaindd 494 Psicossomaticaindd 494 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 495 não haver um costume de se definir a forma de tera pia que está sendo empregada e nem a determinação de uma meta de trabalho deixase fluir o tempo Uma das consequências desse tempo não limitado é a expansão das questões a serem trabalhadas para áreas não relacionadas à demanda central da terapia isso pode levar a um reforço de defesas emocionais encobridoras dos conflitos mais pontuais que estão gerando as dificuldades atuais do paciente e o seu sofrimento emocional e consequentemente podem levar a um resultado terapêutico apenas cosmético transitório e pouco consistente Quando o tempo que se tem para trabalhar com o paciente é indeterminado isso afeta também a questão da resolutividade não há premência em se alcançar objetivos É até possível que nem se cogite de um objetivometa presumindo que isso engessa ria o paciente dentro de um molde prédeterminado pela pessoa do terapeuta Ou que uma meta signifi caria um desejo do terapeuta o que não deveria ser imposto ao paciente No entanto as metas supõem uma preocupação com a eficácia do atendimento respeitando as limitações da pessoa e supõem que o tempo dedicado ao trabalho com o paciente tem uma importância efetiva e transformadora Além do mais um tempo sem limites favorece a tendência a acreditar que estar junto ouvir ou desabafar é em si terapêutico e suficiente É in discutível que quando as pessoas podem falar de suas angústias e medos e podem sentir que estão sendo ouvidas com respeito e acolhimento isso é bom e faz bem porém isso não é psicoterapia e não tem efeito duradouro nem transformador podendo ser feito por outras pessoas empáticas que trabalham na enferma ria pessoas sem qualificação psicológica ou por um familiar ou um amigo e até mesmo por um paciente do leito vizinho Como sabemos a compaixão em si só não basta embora alivie momentaneamente o so frimento Outra consequência de se trabalhar sem o con ceito de tempo limite é a sobrecarga de trabalho que isso gera levando à necessidade de se manter um corpo de terapeutas grande o suficiente para aten der a todas as solicitações ou ao uso de estagiários e alunos sem a possibilidade correspondente de um número adequado de supervisores para a demanda gerada A Psicologia Hospitalar alcançou nas últimas décadas uma posição de vanguarda dentro das insti tuições e é inconteste o espaço de valorização alcan çado pela especialidade O desafio que está à frente é firmar esta posi ção em um mundo de economia de mercados onde a alocação de recursos financeiros é determinada por avaliações de produtividade relação custobenefício e aferição através de hardcore data comprovação mensurável de resultados Nesse mundo novo nossas intervenções irão precisar de protocolos ou de instrumentos de avalia ção que meçam resultados tangíveis de eficácia em uma área onde a subjetividade é o objeto e o instru mento de nossa observação Será um desafio que antes terá de derrubar cer tos conceitos e preconceitos arraigados e que preci sará introduzir metas novas ao trabalho como adap tação coping e resolutividade Caso clínico Paciente de 71 anos divorciada aposentada econo micamente independente apresentou uma recorrência de câncer de língua para a qual já havia se operado anos atrás e posteriormente a uma intervenção para a retirada de gân glios cervicais metastáticos O acesso cirúrgico para esta cirurgia atual implicava em retirada de parte da mandíbula de metade da língua de uma traqueotomia de longa permanência e de enxertos para recompor as partes excisadas Tudo isso levaria a um período de recuperação longo e sem garantias de sucesso cirúrgico total Apesar de tudo isso a paciente desejava submeterse à cirurgia uma vez que se não o fizesse era certo que o tumor continuaria a se alastrar e a morte seria inevitável A família da paciente por razões diversas era contrária à cirurgia e fazia pressão contínua sobre a paciente a esse respeito Esta no entanto adequadamente informada pela equipe médica de todo o procedimento médico cirúrgico e dos riscos decorrentes consciente do que a aguardava insistia em desejar se operar gerando um clima de desaven ças e discussões com os familiares que acabava incidindo de forma negativa no estado emocional da paciente A psiquiatra foi acionada pela equipe médica para fazer um atendimento à paciente e a seus familiares separada mente com o objetivo de ajudar a resolver o impasse No atendimento ficou claro que a razão que a pa ciente citava para desejar a cirurgia querer continuar vivendo para poder proteger seus filhos ambos com mais de 40 anos e independentes era uma racionalização de seus conflitos emocionais inconscientes em torno de separação Na história de vida da paciente esta relatou que seu pai separouse de sua mãe quando ela tinha 2 anos e foi morar em outra cidade deixando de ver a filha Posteriormente a mãe voltou a se casar e teve outros filhos A paciente en tão precocemente assumiu a tarefa de cuidar dos irmãos menores e com isso foi amadurecida para desempenhar o papel de adulta Obviamente perdeu a fase de criança e assumiu o papel de cuidadora A psicoterapeuta que tinha um prazo muito curto pou cos dias para atender à paciente antes da cirurgia optou por não interpretar a esta altura a motivação inconsciente da decisão da paciente de desejar se operar conflitos em Psicossomaticaindd 495 Psicossomaticaindd 495 05012010 121223 05012010 121223 496 Mello Filho Burd e cols torno de separação e abandono necessidade para sua au toestima de ser cuidadora e trabalhou no sentido de um reforço de ego que permitisse à mesma obter um estado emocional sem conflitos e confiante de que sua escolha seja por que motivos fossem seria respeitada e que a decisão cabia a ela inteiramente e seria respeitada pelos familiares Com isso houve uma significativa redução dos níveis de an siedade da paciente No período pósoperatório a paciente arrependeuse da decisão tomada devido às dificuldades decorrentes da intervenção cirúrgica e à descoberta de nova metástase Passou a encarar um possível desfecho de morte não mais com o temor da separação e sim como um alívio para seus sofrimentos e limitações REFERÊNCIAS Angerami VA et al E a Psicologia Entrou No Hospital Ed Pio neira São Paulo 1998 Armstrong D What do patients want Brit Med J vol 303 Au gust 3 1991 pg 62327 Botega N Serviços de Saúde Mental no Hospital Geral Papirus Campinas 1995 Cordioli VC Psicoterapia de apoio Em Psicoterapias Aborda gens Atuais Porto Alegre Artes Médicas 1998 Druss RG The Psychology of Illness American Psychiatric Press Washington DC 1995 Fletcher C Listening and talking to patients Brit Med J vol 281 Oct 11 1980 Goldberg D Bridges K DuncanJones P Grayson D Detec ting anxiety and depression in general medical settings Brit Med J vol 297 Oct 8 1988 pg 897899 Lemgruber V Psicoterapia breve A técnica focal Porto Alegre Artes Médicas 1984 Maguire P Barriers to the psychological care of the dying British Med J vol 291 Dec 14 1985 pg 171113 Miguel Filho EC et al Interconsulta Psiquiátrica no Brasil Astú rias São Paulo 1990 Schatzberg AF Anxiety and Adjustment Disorder a treatment approach Journal of Clinical Psychiatry p51S 20 1990 Schein LA Bernard HS Spitz HI Muskin PR Psychosocial Tre atment for Medical Conditions BrunnerRoutlegde New York 2003 Strain JJ Psychological Care of the Medically III AppletonCen turyCroft New York 1975 Strauss DM Muskin PR Maladaptive Denial of Physical Illness The American J Of Psychiatry v31 p 426433 1990 Watson M Greer S Personality and Coping In JC Holland ed PsychoOncology p 9109 Oxford University Press New York Weissman AD Coping with Illness p2534 In Cassem NH Han dbook of General Hospital Psychiatry Mosby Saint Louis 1997 Psicossomaticaindd 496 Psicossomaticaindd 496 05012010 121223 05012010 121223 Nosso interesse pela Psicologia nasceu da prá tica médica Inúmeras vezes nos deparávamos com situações de angústia e conflito permeando as mani festações clínicas dos pacientes Intrigavanos sobre tudo a utilização do sintoma físico como forma de expressar tais angústias e conflitos Como cardiologis ta frequentemente lidávamos com pessoas portado ras de queixa somática que não apresentavam quais quer indícios de doença orgânica Invariavelmente a pessoa falava de si de sua vida e de seus conflitos Ali parecia estar o nexo Alguns não relatavam ou não aceitavam qualquer vinculação de seus sintomas com sua vida emocional Outros até exibiam altera ções orgânicas como os hipertensos e coronarianos Mas também nestes frequentemente a oscilação dos sintomas parecia estar na dependência de situações emocionais Atualmente trabalhando no campo da psicote rapia reencontramos aqueles pacientes vendoos agora de outro ângulo O presente trabalho tem como objetivo discutir a inserção do paciente somático num grupo psicoterapêutico Tomamos como base nossa experiência de grupoterapia desenvolvida num am bulatório do INAMPS em duas frentes como psico terapeuta de grupo de base analítica e como coor denador de grupo de hipertensos que fazem parte de um programa específico de atendimento a portadores dessa patologia implantado nesse ambulatório Pretendemos mais do que afirmar conclusões levantar considerações sobre tal vivência Discutir à luz dos conceitos psicanalíticos sobretudo dos con ceitos de Winnicott como uma abordagem grupal pode de algum modo auxiliar o paciente somático a lidar com suas queixas numa área que lhe é em princípio desconhecida a área psíquica Pretendemos de antemão distinguir dois tipos de pacientes os que reconhecem e os que não reco nhecem nexo entre seus sintomas físicos e sua vida emocional A partir daí distinguir duas formas de abordagem grupal aquela que tem como objetivo a vida intrapsíquica do paciente sua história de vida e seus conflitos atuais e passados e aquela que tem como objetivo a própria manifestação ou doença física embora buscando nela os aspectos subjetivos O PACIENTE SOMÁTICO Paciente somático é aquele que descreve ou apresenta uma alteração de sua estrutura anatômica ou de funções fisiológicas Queixase do corpo atra vés de dor dormência cansaço náuseas vômitos dispneia edemas etc A origem dos sintomas depen de de agentes de natureza diversa agentes orgâni cos psíquicos ou sociais Se a origem dos sintomas é psíquica dizemos que o paciente apresenta uma somatização Na prática médica frequentemente encontra mos pessoas que trazem queixas físicas sem que se evidencie qualquer anomalia orgânica Dizem as estatísticas que de um a dois terços dos pacientes que procuram ambulatórios médicos ou serviços de emergência encontramse nessa categoria Lazzaro e Ávila 2004 Afinal o que têm De que padecem Parece que as razões psicológicas ocupam lugar de destaque São manifestações hipocondríacas histéri cas ou genericamente somatizações remetemos o leitor ao capítulo sobre aspectos psicossomáticos em cardiologia Mesmo aqueles que tenham como origem dos seus sintomas agentes orgânicos podem ter razões psicológicas influenciando seu estado físico seja agravando o curso da doença seja obstaculizando o tratamento A própria relação com a doença o sentirse doente é um estado subjetivo e vivenciado por cada um de forma diversa Ao falar em sentirse doente fazemos uma distinção com estar doente Estar doente seria constatar a existência de uma lesão ou disfunção evidenciável pelos meios habituais de diagnóstico Sentirse doente seria queixarse de algo sem que qualquer lesão ou disfunção seja evidencia da Paradoxalmente algumas pessoas estão doentes sem se sentirem doentes enquanto outras se sentem doentes sem estarem doentes Há os que supervalori 42 O PACIENTE SOMÁTICO NO GRUPO TERAPÊUTICO Eugenio Paes Campos Psicossomaticaindd 497 Psicossomaticaindd 497 05012010 121223 05012010 121223 498 Mello Filho Burd e cols zam a doença e sentemse mais doentes do que estão e há os que a minimizam e deixam de tomar os cuida dos necessários Este é o caso de muitos hipertensos como veremos adiante Concluímos que todo paciente somático tem de alguma forma um comprometimento psíquico de maior ou menor relevância merecendo pois uma abordagem psicológica E aqui cabe esclarecer o tipo de abordagem psicológica a que nos referimos Se o componente psíquico é predominante e se o paciente tem consciência da influência dos fatores emocionais talvez o mais indicado ao lado do acompanhamento médico propriamente dito seja encaminhálo a uma psicoterapia Quando o componente orgânico preva lece e o emocional age como desencadeante ou agra vante o melhor será uma abordagem psicológica de apoio ou suporte focada na queixa física Poderíamos denominála psicoterapia do paciente somático Este é o caso dos hipertensos PSICOTERAPIA DO PACIENTE SOMÁTICO A abordagem de pacientes somáticos em grupos parece remontar a 1905 com Pratt tisiologista aten dendo tuberculosos Mello Filho 2000a A técnica grupal era então altamente sugestiva e reforçadora incluindo aulas ou conferências destaque aos pacien tes mais interessados e melhorados que tinham direi to a se sentar nos primeiros lugares aconselhamen tos e mensagens de esperança na cura Pratt reunia cerca de 20 a 50 pacientes O advento da psicanálise e o estudo da histeria de conversão abriram caminho para a compreensão de fenômenos somáticos cuja gênese estaria na dinâ mica inconsciente inaugurando técnicas mais persua sivas ou de compreensão como a de livre associação ou livre conversação em se tratando de grupo Trabalhos mais recentes como os de Winnicott 1982 1997 1999 enfatizam a importância da rela ção mãecriança uma relação grupal em suas fases mais precoces destacandose o holding ou conjun to de cuidados ou sustentação que a mãe oferece à criança propiciando a ampliação desses conceitos às técnicas grupais e ao entendimento dos processos de somatização O incremento da psicoterapia analítica de gru po levou algumas pessoas a tentar reunir pacientes somáticos dentro de uma perspectiva psicanalítica Num painel de discussão sobre problemas de psicote rapia realizado no decurso do 11º Congresso Europeu de Medicina Psicossomática em Heidelberg 1977 o tema central da discussão foi a possibilidade de se abordar psicoterapicamente mais especificamente com orientação psicanalítica pacientes psicossomá ticos Embora a opinião geral fosse a de que alguma forma de psicoterapia possa ajudar tais pacientes questionouse o tipo de terapia mais adequada A abordagem dos pacientes psicossomáticos es barra em princípio na motivação para o tratamen to A demanda se faz habitualmente para cuidados médicos antes que para cuidados psicológicos O sofrimento físico exige intervenção que alivie pron tamente o paciente e somente com a percepção de que drogas e outros recursos objetivos não são sufi cientes é que ele se dispõe a aceitar outras formas de tratamento como o psicológico Se considerarmos ainda que a somatização pode ser vista como uma forma distorcida de comunicação e defesa utilizada pela criança nos primeiros anos de vida não é fácil de ser abandonada pela pessoa Talvez por essas razões Sifneos que desenvolveu o conceito de ale xitimia ou dificuldade de expressar sentimentos por palavras publicou trabalho citado por AppelSavitz 1977 contraindicando a terapia psicodinâmica em pacientes psicossomáticos e sugerindo técnicas que reduzissem a ansiedade Ford e Long 1977 descrevem sua experiência com um grupo de pacientes psicossomáticos Os gru pos eram de 8 a 12 pessoas Haviam três ou quatro sessões de entrevista individual para remetêlos ao grupo Era dito que o grupo se compunha de pessoas com problemas físicos e emocionais e nenhuma pro messa de melhoria física se fazia Os cuidados pelo médico clínico eram estimulados a continuar O tera peuta evitava usar interpretações de conflitos infantis e tão somente estimulava a expressão de afetos o que já não era fácil Sentimentos de raiva habitualmente eram negados e se mobilizados o paciente tendia a faltar Os conflitos sexuais eram em geral evitados só aparecendo após longo tempo de atendimento ou em encontros com membros do mesmo sexo Os autores observaram que a maioria dos pacientes rejeitava a associação de conflitos emocionais com suas queixas Sentiamse em geral maltratados pelo médico e pela família Buscavam frequentemente soluções mágicas para seus problemas Faltavam muito às sessões O aumento de entrevistas iniciais individuais de três ou quatro para 10 melhorava a aderência Alguns pacientes pareciam usar os resultados negativos da psicoterapia como prova de que seus problemas não eram psicológicos Ford e Long concluíram que é pre ciso ser bastante condescendente com esses pacien tes facilitando gradativamente a expressão de afetos e o desmonte de defesas somáticas Isso implica mui tas vezes trabalho prolongado por períodos de três ou quatro anos Roberts 1977 relata as observações com dois grupos heterogêneos de pacientes psicossomáticos du rante quatro anos Os grupos eram abertos em tor Psicossomaticaindd 498 Psicossomaticaindd 498 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 499 no de oito pacientes Havia uma sessão de entrevista inicial e as reuniões eram semanais com uma hora e meia de duração A seleção objetivava ser o paciente psicossomático manifestar desejo e possibilidade de se tratar em grupo não ter evidência de psicose ter entre 20 e 50 anos não ser marcadamente esquizoide ou paranoide A técnica foi a psicanalítica com uso de interpretações sobretudo grupais O grupo pare ceu manter uma expectativa irrealista onipotente em relação ao terapeuta Quando este interpretava tal si tuação havia tendência a se formarem subgrupos de pendentes Os pacientes evitavam situações de perda ou desconforto não verbalizando por exemplo senti mentos com a entrada ou saída de algum membro O terapeuta frequentemente tinha sonolência e sensação de inutilidade que atribuía à negação de sentimentos e pouca coesividade por par parte do grupo Havia gran de incidência de abandono cerca de 75 após um ano de tratamento para 40 observado nos outros grupos Constatavase forte relação entre as situações de vida dos pacientes e seu estado físico Essas pessoas mostravam muita dificuldade em transformar seus pa péis de pacientes somáticos em pacientes psicológicos Roberts face a esses resultados propôs 1 O terapeuta tornarse mais ativo 2 Reduzir as interpretações 3 Utilizar métodos que envolvam ação como o psi codrama e técnicas de encontro 4 Formar grupos homogêneos observação seme lhante a esse respeito é feita por Cabral 1981 Não obstante todas essas dificuldades a psico terapia parece ocupar algum lugar no tratamento dos pacientes psicossomáticos Conte e Karasu 1981 fi zeram revisão de 18 estudos controlados sobre psico terapia a pacientes psicossomáticos considerando 13 desses estudos adequados e dentre eles 8 mostrando resultados positivos com a psicoterapia Tudo isso leva a supor que a psicoterapia tem alguma eficácia no tratamento de pacientes psicos somáticos A questão portanto é a da técnica mais efetiva para tal abordagem À semelhança do que faz Dewald 1981 descrevendo as técnicas psicoterápi cas num continuum desde as diretivas ou de apoio às de insight também os pacientes psicossomáticos se situam num continuum que vai desde aqueles que embora apresentando manifestações físicas con seguem correlacionálas à sua vida emocional até aqueles que não fazem qualquer nexo entre soma e psique Os últimos seriam os verdadeiramente alexi tímicos incapazes de expressar sentimentos por pala vras atuando corporalmente suas emoções Nossa experiência tem mostrado que grande nú mero de pacientes psicossomáticos consegue perceber o nexo dos seus sintomas com sua vida emocional constituindose pois em pacientes neuróticos que utilizam a via somática como forma de comunicação e defesa Outros todavia ou não percebem tal corre lação ou simplesmente não se dispõem a investigála de forma mais direta Estes é óbvio não aceitam ser encaminhados à psicoterapia Alguns não obstante chegam a entrevistarse com o psicoterapeuta mas não aderem ao tratamento Recentemente recebemos uma paciente encaminhada por um ginecologista Apresentava corrimento vaginal e desconforto pél vico que o médico atribuiu a distúrbios emocionais De fato sua história era de maus tratos na infância passada com muita dificuldade de ordem material e rejeição por parte dos pais dois casamentos as censão profissional acentuada e surgimento de um amante A paciente me disse que viera tão somente por insistência do seu médico mas estava convencida de que sua situação não podia ser mudada e queria apenas livrarse dos sintomas físicos Eu aventei que os sintomas talvez estivessem ligados a essa situação e questionei a impossibilidade de mudança Propus uma segunda entrevista que a paciente aceitou mas à qual não compareceu Outra paciente procuroume por insistência do seu cardiologista É hipertensa há cerca de quatro anos não conhecendo as possíveis causas Contou que há quatro anos sofreu um estupro por parte de um colega de faculdade que habitualmen te lhe dava carona Desde então vem tendo dificulda de de relacionamento sexual com seu marido a quem na época contou o episódio Comentei que talvez esse fato tivesse ligação com a hipertensão Ela no entanto parecia resistir à ideia Mesmo assim veio a mais duas ou três entrevistas e depois não voltou mais Quando ao contrário o paciente nos procura aceitando o nexo de seus sintomas físicos com suas situações de vida e dispondose a investigálo seu engajamento na psicoterapia se faz com relativa faci lidade Ou com as dificuldades habitualmente encon tradas em quaisquer outras pessoas Assim aconteceu com uma paciente encaminhada por um clínico de vido à úlcera péptica e hipertensão arterial Contou me que estava se separando do marido e admitia que seus sintomas tinham a ver com essa situação Aceitou imediatamente a sugestão de ingressar na psicoterapia O tipo de psicoterapia oferecido a um paciente somático depende em grande parte da sua possibili dade ou disposição em reconhecer e investigar o nexo de seus sintomas físicos com sua vida emocional Quanto menos motivada estiver a pessoa ao psicoló gico mais ativa deverá ser a postura do terapeuta e de mais recursos objetivos deverá ele ou a equipe de saúde lançar mão no trato com essa pessoa É o que ocorre por exemplo com os grupos homogêneos de Psicossomaticaindd 499 Psicossomaticaindd 499 05012010 121223 05012010 121223 500 Mello Filho Burd e cols pacientes somáticos formados a partir de um progra ma integrado de atendimento a determinadas patolo gias como a hipertensão arterial OS GRUPOS DE HIPERTENSOS Os grupos de hipertensos começaram a proli ferar na década de 1970 nos Estados Unidos atra vés de um programa nacional de detecção e controle da hipertensão arterial Hypertension Detection and Followup Program 1982 face aos elevados índices de morbidade e mortalidade que a doença apresen tava e ao elevado número de pessoas atingidas na proporção de 10 a 20 da população adulta Bus cavase com esse programa aumentar a aderência dos pacientes ao tratamento e o efetivo controle dos seus níveis tensionais Melhoria da relação médico paciente acesso aos medicamentos maior grau de informação sobre a doença aquisição de técnicas de relaxamento ou biofeedback para controle da pressão arterial PA faziam parte do referido programa Para muitos autores como Egan 1983 Man driota 1980 Enlund 2001 MarinReyes 2001 Sarquis e colaboradores 1998 Jardim Monego e Reis 2004 tais medidas não são suficientes para alcançar os objetivos desejados pois se faz mister modificar hábitos de vida e elaborar situações psicos sociais que contribuam para a manutenção e para o agravamento da doença A utilização da via somática como meio de expressão da vida psíquica pressupõe uma dificuldade em abordar o paciente por tal ângulo Nesse sentido tornase essencial a adoção de atitudes e técnicas que facilitem a expressão de sentimentos e a reflexão sobre circunstâncias de vida atuais ou pas sadas que possam estar de algum modo interagindo com a doença A reunião de pessoas portadoras da mesma doença parece cumprir esse papel pois propi cia a troca de experiências comuns e funciona como suporte para os membros do grupo Em outros termos fazse necessário oferecer a esses pacientes um clima de acolhimento suporte ou apoio que lhes permita pensar sobre a doença ex pressar sentimentos que em torno dela estejam ocor rendo conscientizarse da correlação ou nexo entre sua doença e sua vida Gaus Klingenburg e Kohle 1983 comentam que os hipertensos habitualmente não são motivados para abordagens psicoterapêuticas propriamente di tas mas que necessitam e se beneficiam de medidas integradas que levem em conta além do atendimento clínico habitual técnicas de relaxamento e grupos de orientação e reflexão Também Mitchell 1981 reco menda o tratamento integrado enfatizando a neces sidade que a equipe de saúde trabalhe coesamente Democker e Zimpfer 1981 após selecionar 15 estudos sobre técnicas grupais aplicadas a pacientes somáticos concluíram que a intervenção do terapeu ta nesses casos deve visar a 1 Facilitar a expressão de sentimentos 2 Promover adaptação às novas condições geradas pela doença 3 Promover reforço da autoimagem 4 Oferecer apoio e atenção 5 Veicular informações adequadas 6 Estimular a recuperação física e emocional 7 Facilitar a comunicação médicopaciente Alguns autores Mello Filho 2000b Campos 2000 observam ainda que a troca de experiências entre os membros do grupo identificados pela condi ção comum que é a doença exerce considerável efei to terapêutico sobre eles Baseados nessas observações é que implantamos o Programa de Atendimento Integrado ao Hiperten so no Posto de Assistência Médica PAM do INAMPS em Teresópolis RJ e que a seguir descrevemos O referido programa contava com uma equipe multidisciplinar composta por quatro médicos dois psicólogos um nutricionista e uma enfermeira Aos médicos competia encaminhar os pacientes ao pro grama bem como assistilos tecnicamente participar das reuniões de grupo e atender aos pacientes após as reuniões Para isso eram reunidos em cada gru po os pacientes de um mesmo médico Desse modo garantiase o acesso à consulta sempre pelo mesmo médico evitando ainda que entrassem em filas ou es perassem muito tempo pelo atendimento O controle das marcações para as reuniões de grupo a verificação da PA antes de cada reunião e o contato com aqueles que estavam faltando às consul tas eou reuniões era feito pela enfermeira que fica va também à disposição do paciente diariamente pela manhã para controle da PA sempre que os mesmos solicitassem ou para eventuais orientações O nutricionista comparecia às reuniões de gru po sobretudo quando o tema era dieta e ficava à disposição dos pacientes ou dos seus familiares que necessitassem de orientação sobre a dieta O controle e distribuição dos remédios aos pa cientes eram feitos pela enfermeira Tal distribuição era feita somente nos dias de reunião mediante re ceita do médico e em quantidade suficiente para 30 dias que é o prazo entre cada reunião Os pacientes que não estavam no programa re cebiam o atendimento médico convencional ofereci do pelo posto que era feito mediante a distribuição de fichas ao início do dia em número limitado para cada médico sendo atendidos os primeiros a receberem Psicossomaticaindd 500 Psicossomaticaindd 500 05012010 121223 05012010 121223 Psicossomática hoje 501 essas fichas Cada paciente possuía um prontuário do arquivo geral do posto onde eram registrados os dados de cada consulta Os médicos orientavam quanto ao tempo médio em que deviam voltar à con sulta Não havia controle sobre a regularidade das mesmas As instruções sobre a natureza da doença cuidados gerais a serem observados como dieta exercícios etc eram dados pelo médico que também se incumbia de verificar e registrar a PA Os grupos chamados de suporte eram forma dos por 10 a 12 pacientes todos do mesmo médi co Se alguém fosse excluído do programa o que só ocorria depois de várias tentativas sem êxito para que retornasse outra pessoa era admitida mantendose portanto o limite de 12 pacientes por grupo Chega mos a manter 10 grupos funcionando Não havia tempo estabelecido para a participa ção de cada paciente sendolhes proposto que fre quentassem regularmente as reuniões com o intuito de garantir a continuidade do seu tratamento Na primeira reunião de apresentação expú nhamos a estrutura e os objetivos do programa enfa tizávamos a importância da presença de todos e fazía mos um debate sobre o que vem a ser pressão alta Esclarecíamos também que cada um deveria antes do início das reuniões medir sua PA e saber em que nível estava de tal modo que pudéssemos discutir em grupo as oscilações registradas essa verificação da PA era feita pela enfermeira antes de cada reunião Nas reuniões subsequentes propúnhamos um tema a cada dia dieta uso de remédios atividade física e HA tensão emocional e HA solicitando que falas sem sobre ele e estimulando a discussão Evitávamos dar aula sobre os assuntos Nossa intervenção ia se fazendo no sentido de retificar clarificar ou esclare cer o que estivesse sendo debatido Após essas primeiras reuniões não propúnha mos mais qualquer tema e sim perguntávamos aos pacientes sobre o que íamos conversar ou ainda procurávamos saber em que nível estava sua PA e daí iniciávamos a discussão O clima da reunião era o de informar e refletir O foco era sempre a doença hipertensiva e sobre ela conversávamos re fletíamos esclarecíamos Nossa postura era ativa animando o grupo a falar das suas experiências em relação à doen ça sintomas fatores que a influen ciavam meios de tratamento Evitávamos conteú dos pessoais que não tivessem a ver com a doença evitávamos qualquer tipo de interpretação e não estimulávamos a relação transferencial Procuráva mos criar um clima de suporte ou holding dentro do grupo estimulandoos ao tratamento e facilitando a expressão de sentimentos Relatamos a seguir duas reuniões em que atua mos como coordenadores Na primeira haviam seis mulheres e três homens com idades variando de 26 a 65 anos Este grupo já funcionava há cerca de três anos C Bom dia Como é que estão passando Maria No mês passado eu quase fiquei inter nada Tive uma gripe forte Botei até sangue pela boca Senti muita falta de ar A médica queria me internar mas eu disse que não Pedi que ela recei tasse os remédios que eu tomaria em casa Então ela me deixou em observa ção fez injeção na veia e nebulização e à noite meus filhos me levaram Agora eu estou melhor mas a pressão foi a 21 C Agora a senhora está melhor Maria Estou a pressão está em 15 Só estou sentindo dor no ombro Já tive que fa zer infiltração uma vez C Parece que o fato de ter ido ao hospital fez subir sua pressão Maria É O grupo ficou em silêncio alguns ins tantes C Bem e vocês como estão Ana Minha pressão está em 16 Eu estou bem Só estou sentindo muito frio A manhã estava muito fria mesmo Lúcia Minha pressão está em 15 mas eu te nho me sentido insatisfeita Não tenho vontade de fazer nada Não acho graça nas coisas e não sei por que estou assim Tenho dormido pouco Eu não queria me sentir assim C Como está seu apetite Lúcia Está ruim Não tenho vontade de comer Acho que estou com depressão C Há alguém com depressão na sua famí lia Lúcia Várias pessoas Minha filha minha irmã Eu mesma já me senti assim outras ve zes O senhor lembra doutor daquela vez em que eu só chorava Médico É verdade C Estará havendo alguma coisa que justi fique isso Lúcia Não Está tudo bem É por isso que eu não entendo Médico Da outra vez eu prescrevi Tofranil e ela melhorou C Bem talvez tenha que usar algum re médio O doutor Fulano vai avaliar isso O importante é que essa depressão vem mas vai embora Psicossomaticaindd 501 Psicossomaticaindd 501 05012010 121224 05012010 121224 502 Mello Filho Burd e cols Ana Minha filha também está com depres são Ela foi ao médico e a pressão dela estava alta Ele pediu uns exames Médico É bom que ela se cuide logo porque quanto mais cedo controlar a pressão melhor C E parece que a depressão pode estar li gada à pressão alta Ana Minha pressão está 18 x 10 C Será que essa pressão alta tem a haver com a depressão Ana Não sei Tiago A senhora está tomando os remédios Ana Estou Eu tenho comprado os remédios Durante um certo período estivemos sem os remédios para distribuir Médico Mas é preciso também termos os ou tros cuidados com a dieta os exercícios os problemas para tentar usar menos remédio Júlia Eu tenho modificado muito a comida lá de casa Com nossas reuniões eu apren di muita coisa e como todo mundo lá tem pressão alta a gente já diminuiu muito o sal Lúcia Lá em casa é diferente porque só eu tenho pressão alta Mas eu não tenho possibilidade de fazer comida para cada um Então eu mando que eles ponham sal e faço tudo sem sal Maria Lá em casa todo mundo tem pressão alta Minha mãe morreu de derrame Nós já nos acostumamos a comer com pouco sal e a pressão está melhorando Lúcia A minha hoje está em 15 Todos ficam em silêncio C E a de vocês como anda Voltandome para os homens que esta vam juntos haviam três Tiago A minha está em 13x10 C Está boa Pedro A minha está 13 x 9 C Está melhor ainda Acho que vamos fazer um campeonato entre os grupos para ver quem fica com a pressão mais baixa Todo riem Lúcia Hoje tem bastante gente no grupo Só faltaram duas Maria Eu só faltei na reunião de aniversário Assim mesmo porque quebrei a perna Todo ano comemoramos o funciona mento do programa reunindo a equipe e todos os grupos C Aquela reunião foi ótima em todos os sentidos conseguimos sensibilizar o doutorChefe da Divisão Médica do INAMPS que inclusive nos autorizou a ampliar o programa para outros postos os remédios também já chegaram Convidamos para essa reunião de ani versário o chefe da Divisão Médica com intuito de sensibilizálo em relação ao programa que enfrentava na época al gumas dificuldades como a falta de re médios Tínhamos por hábito informar aos pacientes sobre as questões de orga nização do programa Lúcia E isso é bom porque os remédios es tão tão caros mesmo assim está todo mundo com a pressão boa Rosa Menos eu e aquela senhora Rita Engraçado que minha pressão um dia desses veio a 14 mas hoje está nova mente em 20 C O que a senhora acha que aconteceu Rita Não sei Acho que é por causa da colu na Estive com Dr que me deu uns remédios para coluna e para os nervos Uma vez ele receitou massagens para a coluna e eu melhorei Mas agora voltou a doer C E o que está havendo com seus nervos Rita É que eles repuxam Minha perna fica encolhida e eu não posso andar Isso já me aconteceu há 20 anos e precisei ficar internada C Como estava sua vida naquela ocasião Rita Péssima C Péssima em que sentido Rita Falta de dinheiro Não tinha dinheiro nem para comer C Era só falta de dinheiro Rita Minha filha tinha dado acidentalmente um tiro nela mesmo Nós éramos ca seiros e ela pegou o revólver e atirou Ficou entre a vida e a morte Foi um sufoco Logo em seguida minha sogra morreu Quando a gente estava no ve lório meus parentes que iam para lá sofreram um acidente de carro Eu fui ajudar Fiquei com a roupa toda suja de sangue eu sou assim na hora eu não senti nada Cuidei da minha filha aju dei aquelas pessoasmas depois fiquei doente A perna repuxou Eu não podia andar Fiquei internada A pressão foi lá em cima Psicossomaticaindd 502 Psicossomaticaindd 502 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 503 C A senhora acumula as tensões e depois reage com seu corpo a pressão subin do a perna repuxando Rita É Eu acumulo mesmo C E agora está havendo alguma coisa que lembre aquela época Rita Nãonãosó estou preocupada com minha filhaaquela que tem problema de cabeça a senhora viu como ela está acabada não é Rosa É Ela parece bem nervosa Rita Eu fico preocupada com ela Preocupo me com todo mundo Tem uma vizinha que também está com problema de ner vos e de cabeça e eu dou muito apoio a ela Infelizmente num lugar pequeno as pessoas comentam que está maluca Por isso eu nem falo nada Só estou fa lando aqui no grupo porque aqui a gen te pode falar à vontade C E é importante que a senhora possa falar porque já vimos como a senhora tende a acumular as coisas e aí o seu corpo é que fala pela pressão pela perna Além disso a questão que a senhora levanta acerca da doença mental ou nervosa im pede que muitas vezes a gente consiga falar dos nossos problemas com receio de sermos chamados de malucos Mas lembrese de que o simples fato de uma pessoa estar se tratando já significa que ela não está tão mal assim Pior é quem não busca se tratar João Isso que a senhora está falando tem muito a ver Em 1972 um médico me disse que eu só tinha seis meses de vida Aí resolvi fazer de tudo que eu tinha di reito Já que eu ia morrer e as pessoas corriam de mim o problema era na verdade alcoolismo saí aí pela vida Viajei bebi muita cachaça Levava três meses para ver a família Médico O colega naturalmente queria sensibili zar você a se tratar Mas pelo jeito o tiro saiu pela culatra João Ele foi dizer que eu ia morrer aí eu achei que não valia a pena fazer nada Só em 1983 é que eu resolvi voltar a ver como estava eu não tinha morrido até então e aí o senhor me disse que eu estava com a pressão muito alta 25 e resolvi me tratar Depois então que en trei para o grupo com os conselhos que vocês nos dão eu deixei de lado muitas extravagâncias e agora a pressão está em 13 Ele parou de beber e voltou a conviver com a família Ana Você se voltou para a vida João Eu não sei Eu achei que se não tinha morrido estava na hora de me cuidar Ou achou um ambiente cuidador Médico Você deve ter encontrado um sentido para a vida mas você me fez lembrar de um caso que eu atendi e que a pessoa estava com câncer de esôfago Chamei a família e comuniquei o fato Como ele tinha também tuberculose pulmonar resolvi tratar primeiro a tuberculose Seis meses depois ele estava curado do câncer Na verdade a lesão esofagiana era também tuberculose e o laudo da biópsia naturalmente viera errado Esse paciente deve estar dizendo que o médi co deu seis meses de vida para ele e no entanto ele está vivo até hoje é muito difícil a tarefa médica Você quase se matou porque o médico foi dizer que você só tinha seis meses de vida C Bem o que importa é que você deu a volta por cima e hoje está aí lutando pela vida vamos ficar por aqui A reunião que transcrevemos a seguir evidencia um dos momentos em que precisamos interpretar o que o grupo quer dizer O programa atravessava algumas dificuldades de organização como falta de remédios transferência e férias de médicos Os pa cientes ressentiamse disso mas tinham dificuldades em expor seus sentimentos Vejamos a reunião Havia cinco mulheres e um homem O grupo se reunia há quase dois anos C Bom dia Algumas pessoas respondem ao cum primento mas logo ficam em silêncio Laura Está todo mundo desanimado hoje C É Por que será Antônio É o frio Todos riem concordando ficamos em silêncio Rute Sobre o que nós vamos falar hoje dou tor Eugenio C Não sei vocês é que sabem Tereza Bem vamos resolver sobre o que vamos falar Médico Seu exame já está comigo depois a se nhora passa lá para pegar O médico dirigiase à Rute Psicossomaticaindd 503 Psicossomaticaindd 503 05012010 121224 05012010 121224 504 Mello Filho Burd e cols Rute O quilo está a 180 referiase à glice mia C Está caro hein Tereza O meu está mais caro ainda está a 220 Rute Eu acho que é do frio lá perto de casa tem uma vizinha que está com o açúcar alto e o lugar lá é muito frio Antônio Hoje quando eu saí de casa estava mui to frio Eu peguei o ônibus das 545 Laura Mas é muito cedo seu Antônio Antônio O outro passa às 715 e não dá tempo Eu moro em Venda Nova Vocês sabem onde é Dalva Eu sei Já morei por aquelas bandas Eu morei em Vargem Grande Agora eu moro aqui no Perpétuo Desde os 15 anos que eu me mudei Todos ficam em silêncio C É mas vocês continuam sem saber o porquê do desânimo Rute Hoje está faltando muita gente Tereza Eu venho sempre Só faltei das últimas vezes porque estava internada Fiquei com uma raiva daquela doutora Ela não foi sincera comigo Disseme que eu ia fazer só um curativo e quando vi já estava anestesiada e ela me cortou Ainda por cima me disse para ir para casa porque não tinha vaga Que raiva que eu fiquei Isso não se faz Além de me enganar não teve nenhuma consi deração comigo Fiquei naquela maca até de noite O Dr passou por mim e nem me olhou O senhor não acha que está errado Ele devia ter me visto Não podia ter me deixado largada daquele jeito Rute Tem um vizinho meu que sofreu um aci dente e machucou o pé Foi internado e lá ele pegou uma infecção hospitalar Ficou entre a vida e a morte Aí a famí lia tirouo do hospital e agora ele está melhorando Aquele hospital não está cuidando bem da higiene Tereza Eu estava tão chateada que resolvi pe dir alta por conta própria Acho que foi vingança A doutora não queria que eu fosse embora mas eu disse que ia de qualquer maneira Ela disse que eu teria que assinar um termo e eu disse que assinava qualquer coisa Agora estou fa zendo os curativos mas os pontos estão sendo rejeitados De vez em quando sai um ponto Médico A senhora não devia estar fazendo os curativos Deve procurar um serviço médico para fazer esses curativos Tereza Eu vou procurar o Hospital das Clínicas Novo silêncio C Bem vocês estão trazendo reclamações do serviço médico é a médica que não tratou bem que deixou vocês sozinhos o hospital sem higiene será que vocês têm alguma reclamação a fazer de nós aqui do programa Rute Eu não está tudo bem Antônio Eu também não Não vim da outra vez porque estava chovendo muito Depois eu vim aqui mas o Dr estava de fé rias C O Dr deixou vocês sozinhos O grupo fica em silêncio Rute Eu tenho sentido muita dor no ombro Não sei se ainda é da gripe porque eu fiquei muito gripada Tem uma vizinha que pegou até pneumonia Teve que to mar uma porção de remédios C Nós estávamos falando de reclama ções Os remédios também andaram faltando Rute Eu não tenho o que reclamar com tudo isso eu continuo vindo mas está faltando muita gente hoje Tereza Falta aquele casal Médico Falta aquela que tem medo de tirar a pressão Tem também aquela senhora que quebrou a perna e aquela que morreu no momento ao todo somos 10 Tereza Morreu de derrame não foi Laura Não Morreu de câncer Tereza Não estou lembrando bem dela Rute Era uma que era muito brincalhona Eu tenho uma vizinha que está querendo entrar no grupo Seria bom que ela vies se Talvez animasse mais o grupo Será que não tem vaga pra ela Médico Tem que falar com Dona Íris que é a enfermeira do programa C Aliás este grupo é o mesmo já há bas tante tempo só tem a Dalva que en trou agora Antônio Tem uma aquela magrinha de óculos que eu encontrei na rua e ela disse que não vem mais Ela queria uma receita especial para a perícia e o Drnão deu Então ela disse que não vem mais Tereza É a Joana A Dalva entrou no lugar dela Ela foi procurar o Dr Psicossomaticaindd 504 Psicossomaticaindd 504 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 505 Rute Então tem interesse político nisso Tereza Eu não quero me meter acho que é por causa da perícia C Vejam então que há duas questões aqui em primeiro lugar o fato dela ter saído sem conversar conosco sem reclamar aqui no grupo como é importante que vocês possam reclamar da gente afinal nós temos falhas e vocês precisam se sentir à vontade para apontálas Do contrário acabam saindo do programa e isso em princípio não é bom Por outro lado há a questão da perícia Eu tenho observado que fica um dilema baixar a pressão no programa e ter a pressão alta na hora da perícia Isso acaba atrapa lhando o tratamento Tereza Eu acho que nós devíamos levar daqui um comprovante que estamos nos tra tando Médico Olha você deu uma excelente ideia um comprovante que estão se tratando re gularmente e isso garantiria o benefício mesmo que a pressão estivesse normal estaria normal exatamente porque vo cês estão se tratando C Nós podemos conversar com os médicos da perícia a respeito bem ficamos por aqui Os médicos da perícia por constata rem em alguns pacientes normaliza ção da PA cortavam o benefício e mui tos não tinham outra fonte de renda O assunto já havia sido trazido mas não encontráramos ainda uma solução Em síntese nossa postura à frente do grupo de hipertensos é ativa e apoiadora No início da sessão propomos um tema ou perguntas sobre os valores de sua pressão arterial No decorrer da mesma procura mos estimulálos ao tratamento e ao efetivo controle dos níveis tensionais evitando silêncios prolongados que possam gerar ansiedade maior no grupo e pres tando esclarecimentos acerca da doença Por outro lado assumimos postura reflexiva ao questionarmos sobre as possíveis causas de elevação da pressão arte rial buscando correlacionála com as situações vivi das pelo paciente Nosso objetivo nesse momento é conscientizálos acerca dos fatos que interferem com a doença e como ela vem sendo usada como meio de comunicação e enfrentamento Procuramos facilitar a expressão de sentimentos estimulando um clima acolhedor a tais manifestações Procuramos ainda favorecer a troca de experiência entre os membros do grupo A evitação de interpretações transferenciais e do aprofundamento de questões pessoais mantendo a verbalização do grupo em torno do foco a doen ça hipertensiva tem um efeito protetor àqueles que não se sentem preparados ou dispostos a investir em seu mundo mais íntimo Em momentos especiais como na segunda reunião que descrevemos em que o grupo não conseguia produzir ou agir operativa mente face a sentimentos não expressados em rela ção ao programa e à equipe procuramos de algum modo propiciar a emergência de temas que eles sin tam como mais difíceis de serem abordados como por exemplo reclamar do nosso atendimento Eventualmente surgem situações que exigem atenção especial Assim aconteceu com Manoela que era hipertensa há cerca de 15 anos e foi encaminhada ao programa há três anos porque sua PA era perma nentemente muito alta Era frequentadora assídua do grupo Viúva duas vezes vivia com o terceiro marido e com uma filha solteira que não se relacionava bem com o padrasto Após um ano de grupo um de seus filhos de 21 anos foi assassinado A paciente se de primiu bastante e o grupo tentou ajudála Seu deses pero era grande propusemos atendêla individual mente uma vez por semana além do grupo Ela veio quatro vezes Começamos a ver que a perda do filho havia reativado outras perdas como as dos maridos anteriores que não estavam suficientemente elabo radas Sugerimos psicoterapia Mas ela que àquela altura já se sentia melhor alegando dificuldades de tempo pediu para continuar vindo somente ao gru po Este fato aliás mostra bem o nível de reconheci mento do psicológico e da disposição em investigálo Manoela vinha regularmente ao grupo de hiperten sos Chegava a aceitar uma ajuda individual numa situação de crise Mas tão logo melhorava pedia para suspender os atendimentos A correlação psi cossomática parecia até existir Ela admitia que seus problemas emocionais elevavam a PA mas não se dis punha a investigálos de maneira mais aprofundada E sem dúvida o grupo de hipertensos não aprofunda o exame dos conflitos do indivíduo Não devassa sua intimidade o que faz no grupo psicanalítico Este aspecto parecenos ser o divisor principal no que tange à psicoterapia do paciente somático Quando o objetivo do paciente é investigar seu mun do intrapsíquico dizemos que sobre ele fazemos psi coterapia Mas quando seu objetivo é tratar a doença física da qual padece a que tipo de intervenção psi cológica estamos procedendo O grupo de hipertensos nós o vemos não no sentido de grupo psicoterapêutico propriamente dito cujo foco é a vida do paciente mas como grupo de suporte cujo foco é a doença Tal distinção não é nítida na medida em que esses processos se con Psicossomaticaindd 505 Psicossomaticaindd 505 05012010 121224 05012010 121224 506 Mello Filho Burd e cols fundem mas delimita diferenças técnicas essenciais como a evitação da transferência para o terapeuta ou a abordagem de problemas pessoais que não tenham a ver diretamente com a hipertensão Ao mesmo tem po visualizamos nesse tipo de grupo um efeito tera pêutico ou psicoterapêutico claro enquanto suporte social na medida em que os pacientes estão reunidos em torno de um problema comum a HA e sustenta dos por uma equipe que os apoia Tal suporte parece se assemelhar àquele ofe recido pela mãe à criança nas fases precoces do seu desenvolvimento Na verdade os cuidados médicos tendo em vista seus procedimentos físicos como examinar prescrever remédios internar fazer cirur gia parecem identificarse melhor com os cuidados maternos amamentar dar banho botar para dor mir etc A necessidade de intervir imediatamente e concretamente revive com maior nitidez a relação mãecriança Os grupos homogêneos de preferência com a presença do médico com a postura ativa do coordenador apoiando informando esclarecendo também se aproximam desse modelo A linguagem é objetiva O foco é a doença física A transferência predominante é para um objeto que cuida objeto mãe O efeito mais nitidamente observado é sobre a autoestima O paciente se sente cuidado valorizado amado protegido E sentirse melhor consigo mesmo sentirse mais apoiado e ter consciência mais ampla do que consigo acontece empresta ao indivíduo for ça para buscar outras alternativas de enfrentamen to e adaptação à vida do que aquela propiciada pela doença Diríamos então que para os pacientes somáticos insensíveis à dimensão psíquica incapazes de corre lacionar seus sintomas físicos às vivências emocionais que as determinam ou influenciam o setting dos grupos homogêneos é melhor indicado A dinâmica desses grupos não obstante transcende a mera sen sibilização alcançando efeitos psicoterápicos sensu latu através da elevação da autoestima e da promo ção de um sentido maior de personalização que tor na o paciente mais sujeito de si mesmo Analisando nossa experiência em dois anos de funcionamento e comparando as curvas de pressão dos pacientes do programa com aqueles em atendi mento convencional verificamos controle efetivo da PA em 632 dos pacientes contra 428 daqueles atendidos no mesmo PAM mas fora do programa Campos e Leite 1981 Tais resultados correspon dem aos obtidos em outros trabalhos e apontam para a eficácia de um programa integrado e continuado de atendimento ao hipertenso O êxito desses programas parece estar no aten dimento aos vários fatores que dificultam a aderência dos pacientes desde a garantia de acesso ao médico e aos remédios passando pela orientação e conscienti zação acerca da doença até a promoção de um clima que aumente a motivação do paciente ao seu trata mento Aliás dentre as várias razões de não aderência a desmotivação do paciente parecenos ser uma das principais Desmotivação decorrente da sua configu ração psíquica interna que coloca a resposta hiper tensiva como meio de expressão ou de defesa não devendo pois ser abolida ou abandonada Des motivação porque não encontra o paciente em seu ambiente suportes sociais capazes de se constituírem em alternativa para seu habitual meio de enfrenta mento Por isso acreditamos ser fundamental que o programa funcione com uma equipe interessada e coesa disposta a se relacionar de modo mais próxi mo mais afetivo e comunicativo entre si e com os pacientes Quando isso ocorre o paciente encontra razões para aderir porque se sente protegido aco lhido e estimulado a conhecerse e a buscar outras formas de lidar com seu mundo A equipe funciona como suporte social Mas não só a equipe Também as reuniões de grupo na medida em que instituem um clima de solidariedade e franqueza entre seus mem bros Tal ambiente suportivo e informativo parece elevar a autoestima do paciente ampliar sua faixa de conscientização acerca da doença fortalecendoo no combate à mesma O atendimento agendado pelo médico a exis tência de uma sala própria do programa o contato em caso de faltas a possibilidade de controlarem a qualquer momento sua PA a realização de uma ana mnese detalhada e particularizada a garantia de continuidade no tratamento o conhecimento de seus atuais níveis de pressão e a possibilidade de discuti los em grupo todos esses são fatores que aumentam no paciente o sentimento de estar sendo cuidado va lorizado e estimado A distribuição de remédios é fator econômico importante para a aderência e para o efetivo controle dos níveis tensionais embora seja também um fator de desvirtuamento do programa se os pacientes a ele são mandados ou a ele se filiam com essa única fina lidade Por isso consideramos fundamental condicio narmos sua distribuição à presença às reuniões e à consulta médica Tais são os fatores terapêuticos presentes nos programas integrados e continuados de atendimento ao hipertenso e que parecem justificar sua implanta ção e ampliação quando comparamos seus resultados aos obtidos a partir do atendimento convencional Obviamente uma boa relação médicopaciente exercida através de consultas com tempo suficiente para se prestarem as devidas informações sobre a doen ça e para se discutirem aspectos relacionados à vida do paciente certamente é capaz de obter resul Psicossomaticaindd 506 Psicossomaticaindd 506 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 507 tados semelhantes aos dos programas de atendimen to ao hipertenso Sobretudo se o paciente não se de fronta com dificuldades financeiras que lhe reduzam o acesso aos remédios e ao próprio médico Infeliz mente em nosso meio não é esta a realidade para o contingente maior de hipertensos que buscam ou nem buscam os serviços médicos Daí a importância de se incrementarem tais programas principalmente no âmbito das Institui ções Públicas como forma eficiente e abrangente de se tratar uma afecção eminentemente psicossociosso mática como a hipertensão arterial CONSIDERAÇÕES FINAIS A morbidade e a mortalidade da doença hiper tensiva e a pequena aderência dos hipertensos ao tra tamento motivou a criação do Programa Nacional de Detecção e Controle da Hipertensão Arterial nos Estados Unidos Estudos comparativos Moser 1983 Yosefi et al 2003 de pacientes do programa com outros atendidos convencionalmente apontam favo ravelmente para o primeiro seja em termos de ade rência seja em termos de efetivo controle da pres são arterial Dentre os procedimentos do programa incluemse os grupos de hipertensos Isso quer dizer que a aceitação por esse tipo de grupo é grande Sou za 2004 Poderseia argumentar é certo que as outras medidas estimulam a aderência e dentre elas a dis tribuição de remédios Mallion e Schmitt 2001 Mas a verdade é que os pacientes participam e se bene ficiam do grupo E isso ocorre a nosso ver porque a dinâmica do grupo também favorece a aderência a frequência mensal das reuniões a presença do médi co as trocas de experiências comuns o nível de infor mação e discussão o clima favorável à expressão de sentimentos ao mesmo tempo protegido de invasões maiores à intimidade da pessoa E sobretudo a oportunidade de se discuti rem os problemas que possam estar sustentando a PA elevada ou desmotivando o paciente a se tratar Destaquese a importância das mudanças do estilo de vida exercícios dieta manejo do estresse que não acontecem tão somente porque o paciente recebe in formações a respeito As mudanças do estilo de vida demandam tempo e espaço apropriado para serem elaboradas e passam necessariamente por uma re visão crítica sobre as circunstâncias atuais de vida do paciente A técnica dos grupos de hipertensos em alguns aspectos parece semelhante à de Pratt em 1905 E se considerarmos os estudos apresentados em 1977 em Heidelberg verificamos que suas conclusões ca minharam muito nesse sentido O paciente somático não está motivado a abordagens subjetivas O mérito de Pratt foi ter intuído que não obstante estar lidan do com uma doença física algo mais influía no resul tado de sua terapêutica física e que algo podia ser feito para lidar com essa variável Sem dúvida a psicanálise avançou no conhe cimento psicossomático diríamos mesmo que ela se estruturou a partir de pacientes psicossomáticos os histéricos A teoria da sexualidade emergiu em grande parte da compreensão do que ocorria com a manifestação histérica Foi através dessa percepção que Freud chegou aos impulsos reprimidos no in consciente e à necessidade desses impulsos se reali zarem de qualquer maneira obedecendo ao princípio do prazer A porta de entrada somática permitiu vis lumbrar o interior do edifício psíquico e a psicanálise tornouse uma teoria e uma técnica da subjetividade Subjetividade que atinge o somático e que atemoriza o sujeito Permanecer no somático é de algum modo realizar o psíquico sem se dar conta dele É como sair sem abrir a porta Tudo se resumiria a essa altura em abrir aces so ao intrapsíquico e a somatização estaria resolvida Não está Primeiro porque queiramos ou não a do ença física tem outras vertentes além da psicológica Ela é o resultado de uma interação de fatores orgâ nicos sociais ambientais e psíquicos Até um certo ponto a doença física se cura ou se detém sem a intervenção psicológica Constatamos isso por exem plo em relação a alguns hipertensos Como constata mos que hipertensos submetidos a anos de psicotera pia continuam hipertensos Em segundo lugar o próprio mecanismo psíquico da somatização não parece estar restringido à histe ria de conversão Dentro da psicanálise os estudos de Winnicott 1978 1982 1997 1999 Kohut 1984 e outros evidenciaram a importância da relação primá ria mãecriança e abriram a compreensão de formas narcísicas de expressão somática Kohut chega a dizer que ao Homem Culpado do complexo de Édipo se contrapõe o Homem Trágico do self em desespero As angústias da fase primitiva situamse além do princípio do prazer como diz Kohut A somatização aqui é vista como um limiar psicobiológico do ser ante angústias inimagináveis ou não representáveis psiqui camente bem próximas do conceito de estresse tal como descrito por Selye Reagir somaticamente é vital para o indivíduo Usando a analogia anterior diríamos que o sujeito teme abrir a porta nem tanto pelo que possa encontrar lá dentro mas pelo fato de que abrir a porta pode significar ruir o edifício Talvez por isso as técnicas suportivas ou apoia doras funcionem como escoras Aqui nos parece existir uma marcada diferença na utilização dessas Psicossomaticaindd 507 Psicossomaticaindd 507 05012010 121224 05012010 121224 508 Mello Filho Burd e cols técnicas Funcionar como escora significa criar um ambiente de holding que empreste ao indivíduo a possibilidade de reintegrar seu self de sentirse mais coeso e firme consigo mesmo De elevar sua autoes tima e autoconfiança E isso é diferente de funcionar como muleta que consiste habitualmente em manter a passividade do indivíduo oferecendolhes substitu tivos ilusórios como conselhos ou placebos Do mesmo modo traduzir a fala somática é um pouco diferente de interpretar o significado simbóli co de um conteúdo reprimido expressado somatica mente A primeira é mais primitiva e indiferenciada Referese mais ao sentimento do que ao conflito Ex pressa mais o trágico do que o culpado Novamente lançando mão de Kohut diríamos que tais processos ou fases estão interligados e in terdependem podendo mesmo se confundir Assim diz Kohut que o relacionamento entre o foco do de senvolvimento de impulsos instintivos objetais o complexo de Édipo e o foco do desenvolvimento no terreno narcísico a fase de formação do self ficará mais claro se compararmos duas formaspadrão de psicopatologia a psicopatologia edípica e aquela pro veniente de perturbações narcísicas algumas vezes uma ocultada pela outra Resumindo queremos dizer que lidar psico logicamente com o paciente somático implica levar em consideração aspectos não psíquicos orgânicos ambientais sociais e aspectos psíquicos de origem diversa no mínimo representados pelo modelo edi piano e pelo modelo narcísico Isso dificulta a ava liação dos resultados decorrentes dessa intervenção psicológica mas justifica a nosso ver a utilização de técnicas suportivas e empáticas que fogem ao padrão clássico da técnica psicanalítica neutra e in terpretativa Por outro lado a postura clássica continua útil principalmente nos momentos em que lidamos com os conteúdos reprimidos Como dissemos os grupos homogêneos não conseguem por si acesso à intimi dade do paciente e em consequência à emergência das fantasias e do lado proibido Na verdade cabe ao paciente dar o tom da estratégia a ser utilizada Se ele reconhece o nexo de seus sintomas com suas situações de vida e se dispõe a investigálo tal tarefa parece ser melhor exercida através das técnicas interpretativas Em caso contrá rio devemos ser mais suportivos e apoiadores sen do que em qualquer circunstância a fala somática deve ser sempre traduzida ora como meio primiti vo de expressão e de defesa uma forma narcísica ora como meio simbólico de expressar impulsos re primidos forma edipiana REFERÊNCIAS Appel Savitz R Silverman D Bennet MI 1977 Group psychotherapy of patients with somatic illnesses and alexithymia Psychother Psychosom v28 n 14 p 323329 Cabral RJ et al 1981 The psychotherapeutic value of a more ho mogeneous group composition IntJSocPsychiatry 27 1 436 Campos EP Leite ISC 1981 Fatores terapêuticos de um progra ma continuado e integrado de atendimento ao hipertenso Folha Médica 101 1 914 Campos EP 2000 Grupos de suporte In Mello Fº J e cols Gru po e Corpo Artmed Porto Alegre 11º Congresso Europeu de Medicina Psicossomática 1977 Psychotherapeutic problems with psychosomatic patients Psycho ther Psychosom v28 n 14 p 361375 Conte H R Karasu TB 1981 Psychotherapy for medically ill patients review and critique of controlled studies Psychosoma tics v 22 n 4 p 285315 Democker JD Zimpfer DG 1981 Group approaches to psycho social intervention in medical care a synthesis Int J Group Psychotherapy 31 2 247260 Dewald P 1981 Psicoterapia uma abordagem dinâmica Artes Médicas Porto Alegre Egan KJ et al 1983 The impact of psychological distress on the control of hypertension J Human Stress v 9 n 4 p 410 Enlund H et al 2001 Patientperceived problems compliance and the outcome of hypertension treatment Pharmacy World Science 23 2 6064 Ford CV Long KD 1977 Group psychotherapy of somatizing patients Psychother Psychosom v 28 n 14 p294304 Gaus E Klingenburg M Kohle K 1983 Psychosomatic aspects un the treatment of hypertension patients possibilities for an Psychother Psychosom 33 5360 Hypertension Detection and follow up program 1982 Fiveyear findings of the hypertension detection and followup program Jama 247 5 6338 Jardim PCBV Monego ET Reis MAC 2004 A abordagem não medicamentosa do paciente com hipertensão arterial In Pierin AMG Hipertensão Arterial Manole São Paulo Kohut H 1984 Self e narcisismo Zahar Rio de Janeiro Lazzaro CDS Ávila LA 2004 Somatização na prática médica Arq Cienc Saúde 11 2 25 Mallion JM Schmitt D 2001 Patient compliance in the treat ment of arterial hypertension J Hypertens 19 12 22812283 Mandriotta R Bunkers B Wilcox ME 1980 Nutrition inter vention strategies in the multiple risk factor intervention trial MRFIT J Of the American Dietetic Association 77 13840 MarinReyes F RodriguezMorán M 2001 Apoyo familiar em el apego al tratamiento de la hipertensión arterial esencial Salud Pública de México 43 4 33639 Mello Fº J 2000 a Histórico e evolução da psicoterapia de gru po In Mello Fº J e cols Grupo e Corpo Artmed Porto Alegre Mello Fº J 2000 b Grupos no hospital geral ambulatório e servi ços especializados In Mello Fº J e cols Grupo e Corpo Artmed Porto Alegre Moser M 1983 A decade of progress in the management of hypertension Hypertension 5 6 808 13 Roberts JP 1977 The problem of group psychotherapy for psychomatic patients Psychother Psychosom 28 14 30515 Psicossomaticaindd 508 Psicossomaticaindd 508 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 509 Sarquis LMM et al 1998 A adesão ao tratamento na hipertensão arterial análise da produção científica Ver Esc Enf USP 32 4 33553 Souza ALL 2004 Educando a pessoa hipertensa In Pierin AMG Hipertensão Arterial Manole São Paulo Winnicott DW 1978 Da pediatria à psicanálise Francisco Alves Rio de Janeiro Winnicott DW 1982 O ambiente e os processos de maturação Artes Médicas Porto Alegre Winnicott DW 1997 A família e o desenvolvimento individual 2ª ed Martins Fontes São Paulo Winnicott DW 1999 Os bebês e suaS mães 2ª ed Martins Fon tes São Paulo Yosefi C et al 2003 The Ashkelon Hypertension Detection and Control Program AHDC Program a community approach to re ducing cardiovascular mortality Preventive Medicine37571576 Psicossomaticaindd 509 Psicossomaticaindd 509 05012010 121224 05012010 121224 Este capítulo tem o propósito de mostrar como os novos conhecimentos provindos da neurociência cognitiva evolutiva são capazes de clarear mais um pouco os enigmas da relação corpomente na interfa ce com a psicanálise e a medicina psicossomática no encontro das ciências naturais e humanas O conceito de psicossomática ou medicina psi cossomática conjunto de conhecimentos e práticas dirigidos à relação corpomente passou por uma longa evolução histórica Mello Filho 1979 1992 até se tornar uma disciplina de pensamento e ação estreitamente associada à psicanálise Vejamos um trecho dessa história lá pelos idos de 1950 quando ocorriam expressivas vitórias do pensamento psicológico sobre a concepção estrita mente organicista um declarado reconhecimento da participação de fatores emocionais na etiologia e manutenção de determinadas doenças como a bron quite asmática a colite ulcerativa as colagenoses No entanto ao considerar a influência das emoções sobre o corpo os ditos fatores psicogênicos a so matização de conteúdos afetivos esta abordagem quase sempre tomava ainda a psique e o soma como entidades essencialmente distintas era mais psico somática do que psicossomática Afinal como entender as relações do que cha mamos corpo com o que denominamos mente Não são mesmo coisas diferentes conforme as re gistram as nossas vivências diretas o senso comum e as entenderam notáveis pensadores em todas as épocas Tentaremos examinar de perto e da maneira mais simples possível uma série de conceitos filo sóficos e científicos que superados os temores ini ciais podem se tornar instrumentos bastante úteis ao nosso trabalho diário como terapeutas de di versas áreas Doin 2003 Para tanto convido os leitores a me acompanharem numa longa viagem panorâmica sobre várias questões interligadas que embora se entrecruzem a cada passo serão exami nadas em tópicos separados a bem da clareza da exposição Um dos marcos da minha formação profissional se firmou no convívio com Danilo Perestrello a quem dedico este trabalho Foi no seu Serviço de Medicina Psicossomática na Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro que comecei a me interessar pela nature za holística biopsicossocial do ser humano Lá apren di que Freud ao longo de toda a sua obra perseguiu o ideal de compreender a interrelação corpomente e que seus sucessores têm levado adiante a procura ALGUNS CONCEITOS FUNDAMENTAIS A psicanálise a partir da noção freudiana da vida mental inconsciente e suas influências sobre todas as atividades humanas cresceu e se aperfeiçoou sob a égide da interdisciplinaridade da transdisciplinari dade dos intercâmbios com as mais diferentes áreas do saber e do fazer A psicossomática é herdeira de todo esse acervo cultural Parece mesmo impossível excluir dos horizontes da psicanálise qualquer fonte de conhecimentos As noções interdisciplinares em sua totalidade tornamse indispensáveis mas ainda insuficientes quando pretendemos entender os fenô menos humanos o que é bem compreensível dadas as peculiaridades e complexidades do ser humano em suas múltiplas faces e manifestações somadas a todas as flutuações e incertezas dos conhecimentos e linguagens através da inevitável participação de vie ses individuais Em nome da democracia das teorias do plu ralismo de ideias todas as hipóteses merecem ao me nos uma primeira acolhida No entanto fazem parte do progresso epistemológico em nossa área a obser vância de determinados critérios básicos como a fun damentação empírica das teorias hipotéticodeduti vas verificáveis pelos testes de realidade e eficácia pela convergência de conhecimentos de várias pro cedências por sua inserção no conjunto das teorias e postulados vigentes Com este intuito destacaremos a interface psicanálisepsicossomáticaneurociência cognitiva evolutiva 43 PSICOSSOMÁTICA E NEUROCIÊNCIA Carlos Doin O ser humano é essencialmente indiviso apesar das contradições Psicossomaticaindd 510 Psicossomaticaindd 510 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 511 Dois conceitos filosóficos ajudarão a esclarecer nossas ideias ontologia e epistemologia Ontologia resumidamente é o estudo da realidade em termos muito gerais procura responder à pergunta O que existe na realidade mais objetiva A raiz grega da palavra ontos ser existente também pode significar indivíduo em oposição a espécie grupo na compo sição de certos termos como ontogênese origem do indivíduo e filogênese origem da espécie Epistemologia é o estudo do conhecimento em termos muito gerais O que podemos saber sobre a realidade mais objetiva e por que meios É preciso reconhecer que todos os nossos conhe cimentos são falhos falibilistas que em princípio estão sujeitos a revisão complementação ou substi tuição em favor de outros achados e de teorias mais adequadas à cobertura dos fenômenos a realidade como nos aparece Nossos conhecimentos favoritos com toda sua aparência de saber definitivo devem ser tomados como heurísticos e provisórios isto é como programas de pesquisa instrumentos de desco berta e verificação de erros e acertos como hipóteses de trabalho úteis enquanto o forem Mesmo assim é indispensável que cada pensador cada terapeuta es colha aquelas teorias que no momento lhe pareçam as melhores e nelas faça fé mas sem dogmatismo Que seu saber seja imortal enquanto dure posto que é chama e chama cedo ou tarde se apaga Status científico da psicanálise Desde seu início a psicanálise vem se consti tuindo como uma disciplina de duas faces um saber e um fazer do entre é ciência natural e é ciência hu mana Segundo o ponto de vista predominante o ser humano se compreende no encontro de vertentes a fisicoquímica a biológica somatopsíquica a antro posociológicocultural Freud começou pretendendo fundamentar sua disciplina como ciência natural baseada na inter relação cérebromente com o rigor positivista da época como se vê no seu Projeto de uma psicolo gia científica 19501895 cuja meta consistia em buscar explicações causais genéricas para os fenôme nos Este plano não foi muito adiante por causa da pobreza dos conhecimentos neurológicos de então e das mudanças que já se operavam na conceituação de epistemologia Embora Freud nunca tivesse abandonado total mente seu sonho de explicações naturalistas Esboço de psicanálise 19401938 e esperasse sua realiza ção no futuro das ciências passou a se dedicar quase inteiramente ao campo das ciências humanas herme nêuticas e históricosocioculturais onde se privilegia compreender as motivações dos fenômenos humanos particulares relativos a pessoas individuais descobrir a intencionalidade dos conteúdos mentais em contex tos singulares os significados os símbolos os níveis de linguagem os valores as intenções os afetos as sensações as emoções os sentimentos enfim tudo aquilo que é próprio da vida mental intrasubjetiva intersubjetiva e relacional dos seres humanos a se espraiar pela cultura e pela história Hoje em dia a corrente ontológicoepistemo lógica mais promissora procura obter os conceitos se aproximam e se afastam visões abrangentes in cludentes sobre sistemas de continuum abertos a ino vações em que vigoram relações de oposição com posição dialética e complementaridade a concepção funcional integradora que reconhece a teoria do caos a possibilidade de mudanças aleatórias a dinâmica interligada dos princípios de ordem desordem e inte ração autoorganização conservadorismo e criativi dade regularidade e saltos qualitativos propriedades emergentes supervenientes nos sistemas complexos como seria o surgimento do psiquismo na imensa rede conectiva dos circuitos neuronais do cérebro Estudos recentes especialmente de neurociên cia abrem novas perspectivas para questões antigas De modo bem simplificado entendese que sistemas com um potencial bastante grande de conexões entre seus componentes podem pelo fenômeno conhecido em matemática como a lei dos grandes números pro porcionar condições à emergência de propriedades surpreendentemente novas Assim aconteceria com o sistema nervoso humano pelo número astronomi camente gigantesco de conexões possíveis entre as complexas tramas das redes neuronais a urdidura de sinapses entre axônios e dendritos imersos no tecido glial também dotado de funções conectivas Cálculos mais moderados supõem que as interligações possí veis seriam em torno de 10 elevado à potência 15 ou seja um seguido de 15 zeros isto é um trilhão nú mero que se escreve mas não se imagina Outros fa lam em 10 elevado a 27 possibilidades na ordem de trilhões de trilhões Um potencial de tamanha gran deza não encontraria similar em nenhum outro setor do cosmos Dele emergiria uma dimensão nova a do psiquismo portanto o somatopsiquismo O avanço das ciências vem derrubando a pre tensão humana de sermos seres ímpares na natureza sem similares Somos únicos sim no grau de evo lução da vida As teorias evolutivas concebem uma linha filogenética contínua entre o que é humano e o não humano e aquilo que parecia exclusividade nossa precisa ser rediscutido Apanágio do Homo sa piens talvez seja apenas a sofisticação de característi cas e atributos iniciados em outras espécies animais O id freudiano inconsciente encontraria assim a sua Psicossomaticaindd 511 Psicossomaticaindd 511 05012010 121224 05012010 121224 512 Mello Filho Burd e cols animalidade comprovada também o psiquismo consciente e inconsciente ego e o superego parecem fundarse na mesma linha da filogênese Mas o nosso psiquismo além de ter prováveis origens nas espécies subhumanas talvez nem tenha garantida sua exclusividade para sempre Os pesqui sadores da inteligência artificial acreditam que num futuro não muito remoto a tecnologia conseguirá talvez empregando diretamente material de cérebros humanos criar redes neurais de igual complexidade capazes que sediar fenômenos mentais semelhan tes aos nossos quem sabe até mais ricos de poten cialidades Quem viver verá E se essa hipótese se concretizar preparemse os futuros psicanalistas e psicossomatistas para ajudar os humanos de mode lo tradicional a lidar com as novas realidades e a se entender com os possíveis biônicos ou androides que a ficção científica já vislumbra Para encerrar este tópico repitamos que é im portante compreender o confronto entre dicotomias e processos em continuum Os pensadores sempre tiveram dificuldade em verificar junções entre fenô menos e conceitos aparentemente antagônicos como corpo e mente normal e patológico congênito e ad quirido Dizse que é muito mais fácil estabelecer di cotomias do que sistemas em continuum por conta de algumas características da nossa anatomofisiologia a natureza nos dotou de dois hemisférios cerebrais que são de certo modo dois cérebros que precisam funcionar em conjunto e nem sempre conseguem também nos proveu de dois olhos dois ouvidos duas mãos duas pernas enfim duas metades corporais a mandar mensagens diferentes para o córtex cerebral encarregado de conjugálas de modo a serem capta das como um todo Isso ocorre graças a uma central integradora das informações provenientes de várias áreas do córtex cerebral a fim de produzir represen tações sensoriais unitárias precursoras de vivências somatopsíquicas São processos múltiplos cujo equi líbrio dinâmico e instável oscila entre graus variados de sucesso e fracasso eis porque a dita normalidade e a denominada patologia são vizinhas tão próximas ou melhor também pendulam entre dois extremos Esta noção está inserida num instrumento jei toso que Freud nos legou as séries complementares Utilizado inicialmente para explicar a etiologia das neuroses na junção do congênito com o adquirido esse instrumento demonstrou sua enorme valia para se entender a distribuição de inúmeros outros fenô menos num continuum expresso pela curva de Gauss aquela em forma de sino ou u invertido Para este momento do nosso raciocínio podemos dizer que os casos totalmente normais e os totalmente patológi cos situamse nas pontas da curva como casoslimite raríssimos alguns inexistentes fora do plano teórico Todos os outros se distribuem em pontos intermediá rios da sequência contínua CORPO E MENTE A questão central da psicossomática o enigma da relação corpomente vem sendo debatido através dos milenares percursos das religiões das filosofias e das ciências As hipóteses explicativas variam em ampla ex tensão desde as que supõem duas entidades dife rentes intercomunicantes ou não dualismo com ou sem interacionismo até as que consideram corpo e mente como uma entidade única monismo de nature za cujas características são também essencialmente iguais apenas observadas e descritas de duas manei ras diferentes monismo de atributos ou alternati vamente cujas propriedades são de fato diferentes as ditas corporais e as denominadas mentais dualis mo de atributos No século V aC Hipócrates considerado o Pai da Medicina já dava como certo que todos os proces sos mentais emanam do cérebro Iniciava assim a corrente monista que prevalece atualmente no pen samento de filósofos e cientistas No século IV aC Platão um dos expoentes da filosofia ocidental defen deu o dualismo conceituando uma alma imaterial e imortal distinta do corpo material e perecível Para o dualismo portanto haveria no ser humano duas es sências distintas o espírito e a matéria ou a mente e o corpo mais especificamente o cérebro Há dualistas que acreditam no interacionismo isto é que o corpo e a mente se interrelacionam de algum modo e se in fluenciam reciprocamente Outros porém supõem que a influência é unilateral de mão única ou do corpo sobre a mente ou da mente sobre o corpo E finalmen te dualistas extremados julgam que corpo e mente en tidades tão diversas não se relacionam entre si Para o monismo radical haveria apenas uma en tidade e a outra seria mera propriedade da primeira Entre os monistas dessa categoria distinguemse dois grupos os materialistas e os espiritualistas ou idealis tas Os materialistas dão inteira prioridade ao cérebro e encaram a mente como consequência da atividade cerebral Já os idealistas no outro polo consideram a matéria como inexistente e o que parece material não passaria de criação mental uma maneira de per ceber as coisas Na prática em cada um desses grupos se encon tram várias posições intermédias nuances conceituais em que as fronteiras esquemáticas se esmaecem e os opostos chegam a se superpor O dualismo corpo e mente com interacionismo en tre as partes entrou no terreno científico propriamen Psicossomaticaindd 512 Psicossomaticaindd 512 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 513 te dito pelo prestígio de Descartes no século XVII res extensa et res cogitans mas continua forte em nossos tempos através por exemplo dos brilhantes neuro cientistas Popper e Eccles No campo religioso o cria cionismo sobrenaturalista e a dicotomia radical sepa rando corpo e alma constituem dogmas há milênios atualmente revestemse de poderosas motivações políticas Para se contrapor às teorias naturalistas do evolucionismo neodarwiniano o velho dualismo se repaginou como smart design ou desenho inteligente do universo não muito diferente dos clássicos desíg nios divinos preestabelecidos para o cosmos Curiosamente os avanços da neurociência po dem ser equivocadamente tomados como confirma ções do dualismo clássico A complexidade conecti va das redes neuronais mencionada anteriormente além de outras propriedades encefálicas como plasticidade redundância alternância e suplência funções neuronais múltiplas seletivas antagôni cas eou complementares criam condições únicas sem paralelo em qualquer outro sistema conhecido O psiquismo que daí emerge adquire características especialíssimas a ponto de simularem qualidades ex tracorpóreas imateriais desvinculadas do encéfalo o qual porém continua sendo a condição inarredável de sua existência A figura que neste ponto me ocorre é a de uma bailarina dotada de extrema leveza graça e expressividade nos volteios esvoaçantes que mal parece precisar da materialidade do seu corpo nem do chão que lhe dá apoio É bem provável que uma visão composta unicis tadualista vá acabar prevalecendo a que considera corpo e mente como um continuum uma totalidade referida a níveis e características diferentes unicismo de natureza com dualismo de atributos ou proprie dades como se diz em linguagem técnica com o re conhecimento de vivências individuais referidas ora ao corpo ora à mente e em outros momentos a um todo unitário corpomente Esta visão abrangente é a que mais condiz com a concepção psicossomatista Resumindo para os terapeutas sem maiores so fisticações teóricas pode bastar a noção de que corpo e mente quer sejam uma única entidade ontológica essencial quer sejam duas interagem permanente mente como uma unidade funcional Realmente fica difícil pensar em um corpo radi calmente distinto de uma mente quando se considera o conjunto estrutural e funcional composto pelas vias neuromentais ascendentes e descendentes de mão dupla trazendo e levando mensagens informações neuroeletroquímicas e comandos a partir do corpo da musculatura lisa e estriada esqueleto vísceras pele sensório passando pelo sistema nervoso perifé rico e profundo medula tronco cerebral diencéfalo cerebelo núcleos da base cerebral córtex cerebral até o córtex préfrontal e as centrais neuromentais onde se originam as funções psíquicas consideradas superiores e o apogeu da evolução humana Devese lembrar sempre que cronologicamente na evolução das espécies animais o corpo começou a funcionar antes da mente dando condições neuro lógicas para a instalação do psiquismo que interagiu desde o início com seu substrato somático Desde aí corpo e mente se tornaram um todo funcionante no sentido da vida da sobrevivência do indivíduo bem como da perpetuação da espécie a que ele pertence adaptado ao seu meio ambiente físico biológico re lacional Voltaremos a essas noções evolutivas mais adiante A unidade funcional somatopsíquica ou psi cossomática se expressa através de manifestações e vivências mais ou menos corporais ou mais ou me nos mentais Algumas patologias começam ou são percebidas inicialmente na vertente corporal e outras na psíquica Por exemplo há muito se conhecem as manifestações psicológicas dos tumores do cérebro depois foram constatadas as alterações bioquímicas e biomoleculares das doenças diagnosticadas como psiquiátricas Hoje é sabido que o estresse crônico além dos sofrimentos psíquicos bem conhecidos an gústia depressão fadiga mental etc leva a altera ções anatomofisiológicas do sistema nervoso central das vísceras do sistema imunitário enfim de diver sos setores do corpomente embora as exterioriza ções possam ser mais emocionais ou mais orgânicas conforme o caso Talvez a prioridade que damos a uma ou outra vertente do psicossoma seja apenas resultado de nos sas maneiras de ver pensar e falar Não é universal a visão do ser humano como composto de corpo e de mente distintos em algumas culturas não aparece tal dicotomia Ela está porém arraigada na cultura oci dental no senso comum na linguagem nas corren tes de pensamento e provavelmente assim se manterá por muito tempo mesmo que venha a se reconhecer equivocada Numa situação semelhante continuamos a pensar e a falar em nascer e pôr do sol mesmo que a realidade astronômica seja do conhecimento geral há mais de 400 anos NEUROCIÊNCIA PSICOLOGIA COGNITIVA EVOLUÇÃODESENVOLVIMENTO Vejamos melhor estes conceitos Freud teria hoje bases mais sólidas para fundamentar seu projeto científico com a utilização da imensa quantidade de conhecimentos novos colhidos nos campos das neu rociências e da psicologia cognitiva com ênfase na evolução das espécies filogênese e no desenvolvi Psicossomaticaindd 513 Psicossomaticaindd 513 05012010 121224 05012010 121224 514 Mello Filho Burd e cols mento de cada indivíduo ontogênese Descobertas que nos chegam quase diariamente permitem uma compreensão sempre mais apurada acerca dos cons tituintes do ser humano conjunto de corpo e mente integrados rico de afetos sensações sentimentos e de ideias e criações Cada somatopsiquismo indivi dual está intimamente vinculado à dinâmica das suas relações interpessoais em contextos socioculturais e históricos diferenciados Damásio 1994 1999 Kan del 1999 2006 Neurociência Costumase usar a expressão neurociência ou neurociências no plural para englobar diversas dis ciplinas dedicadas a diferentes aspectos do sistema nervoso desde suas grandes estruturas e funções até a biologia molecular e a bioquímica das células Aí se alinham a neuroanatomia a neurofisiologia a neu ropsicologia a neurologia clínica entre outras Ao lado de aperfeiçoamentos dos exames complemen tares mais antigos destacamse agora as técnicas de obtenção de neuroimagens encefálicas neuroima geamento brain imaging techniques principalmen te através da tomografia com emissão de pósitrons PET e da ressonância magnética funcional FMRI Elas proporcionam uma observação bastante sensível do funcionamento ao vivo das estruturas do encéfa lo correlacionável com os fenômenos mentais con comitantes o que propicia argumentos de peso a favor das teorias de integração corpomente Ainda não é uma filmagem do pensamento mas a tecnolo gia já provê uma imagem da integração neurológica psicológica em pleno funcionamento em tempo real Lent 2001 Ciência ou psicologia cognitiva Ocupase dos dispositivos que a mente utiliza para processar informações de todo tipo fisicoquími cas somatopsíquicas ambientais provindas do corpo e da própria mente do mundo interno e do mundo externo com o fim de produzir representações e co nhecimentos afetivocognitivos memórias pensa mentos reações diversas e determinar respostas e condutas mais ou menos adequadas aos interesses vitais básicos Só me ocuparei neste trabalho com aspectos da neurociência e da ciência cognitiva que ensejam aproximações com conceitos e métodos da psicaná lise e afins confirmações complementações ou di vergências no tocante a suas teorias e técnicas As chances de diálogo que aí se abrem exigem condições rigorosas critério e prudência para se efetivarem em termos válidos sem radicalismos nem rejeições apriorísticas nem aceitação prematura e simplista das novidades que têm acontecido Devese reconhecer a diversidade de opiniões entre os psicanalistas psicoterapeutas psicossomatis tas psiquiatras sobre a importância dessas contribui ções e posicionarse individualmente diante delas Deixo de lado neste texto as correntes que se opõem radicalmente à psicanálise como a que em prega com exclusividade a vertente orgânica dos fe nômenos mentais e indica tratamentos medicamen tosos para todos os males psíquicos Embora a neurociência e a psicologia cognitiva tenham se desenvolvido como disciplinas autônomas são tantas as suas superposições que existe forte in clinação a considerálas em conjunto Kandel 1999 Damasio 1999 Podemos assim utilizar as enormes vantagens dos avanços interdisciplinares e valorizar por exemplo o curiosíssimo fenômeno que Kandel 1999 chamou de insight biológico observase em laboratório pela técnica de neuroimagens que algu mas modificações de certos circuitos neuronais são acompanhadas ao mesmo tempo por transforma ções psíquicas instantâneas e pela vivência prazerosa de entendimento súbito descoberta iluminada esta lo ou clique Ah finalmente entendi Agora caiu a ficha Nem todos os insights porém são enfeixados de modo tão explícito a maior parte resulta da soma de modificações gradativas inconscientes como é o caso de certos sintomas que de repente se descobre deixaram de existir mesmo sem terem sido muito diretamente trabalhados Evolução filogenética e desenvolvimento ontogenético A visão neurocientífica cognitiva que mais nos interessa inclui ainda a dimensão evolutiva que con tinua sendo a melhor maneira de explicar o apareci mento e perpetuação dos seres vivos segundo uma tradição de conhecimentos e teorias naturalistas em oposição aos sobrenaturalistas sistematizados por Charles Darwin na segunda metade do século XIX tendo como pontos básicos a seleção natural a neces sidade imperiosa de adaptação ao meio ambiente a luta pela vida a sobrevivência dos mais aptos na pre servação individual e da espécie a evolução em senti do amplo A teoria evolucionista atual também cha mada neodarwinismo evolucionismo moderno síntese evolutiva moderna que inclui os avanços da genética fundada por Mendel a hereditariedade baseada nos genes e suas mutações e todos os progressos científi Psicossomaticaindd 514 Psicossomaticaindd 514 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 515 cos posteriores a Darwin continua sendo o conjunto teórico mais abrangente e adequado à cobertura e ex plicação dos fenômenos apesar das críticas que tem recebido O sistema nervoso e o psiquismo que surge dele constituem um elo importante na cadeia evolutiva Pensase atualmente que toda a vida psíquica inclu sive a vivência de um eu individualizado vem evo luindo há uns 3 bilhões de anos a partir de seres vi vos extremamente primitivos unicelulares estes são dotados de uma membrana biológica seletiva capaz de individualizálos em relação ao meio externo com o qual continuaram mantendo trocas de substâncias a serviço de seu meio interno tendente a um equi líbrio homeostase dentro de uma faixa regular de flutuações Nesta formulação os primórdios da vida psíquica se iniciam nas primeiras experiências de unidade e continuidade daquilo que se passa dentro de um mesmo organismo no equilíbrio de sistemas integrados biológicos e relacionais Vai se formando um todo que possui forte tendência a se conservar regenerar reorganizar e restaurar a se modificar e evoluir somatopsiquicamente numa faixa mais ou menos regular e constante de desempenhos registra dos maiormente como úteis e bons para a perpetua ção da vida Por outro lado agem forças antagônicas no sentido da destruição As mudanças foram se fazendo gradualmente mas também através de saltos qualitativos mais ou menos esporádicos Geralmente um nível estrutural não é eliminado pelo que dele emerge mas continua a interagir com ele após sofrer transformações maio res ou menores Sobre o conjunto da evolução biológica se assen tou portanto o psiquismo que também se transfor mou ao longo da filogênese até atingir as culminân cias da neuromente humana E no desenvolvimento de cada pessoa as estruturas neuromentais passam por modificações propícias ao crescimento e sofistica ção funcional desde o início da vida intrauterina até a velhice enquanto a saúde predominar Ao que tudo indica existem programações filo e ontogenéticas para dar certo no melhor sentido evo lutivo para a vida integração somatopsíquica saú de primazia da genitalidade verdadeiro self senso de justiça e solidariedade As utopias e o senso de religiosidade talvez também façam parte de uma pro gramação filogenética a préconcepção de um ser melhor de uma vida melhor o que em metáforas místicas poderia denominarse um anjo nos cha mando adiante de nós um deus a posteriori a nos puxar para a frente Doin 2003 2005 De acordo com os determinismos vitais tendem a continuar se repetindo aqueles funcionamentos que deram bons resultados graças à agregação de uma quota de prazer cada vez que eles se realizam Assim nos diversos setores organizacionais desde o tronco cerebral até o neocórtex desde os níveis somáticos mais primitivos até os psicológicos mais refinados os dispositivos de recompensa vão acompanhando e estimulando todos os estágios evolutivos A partir dos primórdios sensoriais somestésicos e ambientais vão surgindo novas sensações emoções sentimentos afetos lato sensu No ser humano ainda mais abrese o acesso à capacidade de simbolização pensamento e linguagem em linhas ascendentes de especialização e aprimoramento afetivocognitivo enfim à plenitu de da vida psíquica com seus valores criativos éticos e estéticos a fomentar realizações em todos os âmbi tos culturais artísticos religiosos filosóficos Como vemos tende a se conservar e desenvolver aquilo que se mostrou de alguma maneira útil e prazeroso A normalidade se caracteriza pelo funciona mento integrado de todos os níveis neuromentais e relacionais individuais e interpessoais dentro de uma determinada faixa de oscilações É claro que este modelo nem sempre ou raramente se cumpre por inteiro dando margem a todo tipo de distorção e anomalia até se configurarem os quadros patológicos propriamente ditos Desde logo é preciso enfatizar que os determi nismos gerais não excluem o contingente individual genotípico e fenotípico na efetivação dos traços pes soais Não é só excetuando as funções vitais indis pensáveis como respiração circulação do sangue nutrição metabolismo termorregulação regidas principalmente pelo tronco cerebral a parte mais antiga do encéfalo herança filogenética dos répteis e ressalvando ao menos por enquanto algumas ca racterísticas vitalícias como o sexo genético a cor da pele e dos olhos bem como alguns casos extremos de patologia genética para a grande maioria das disposições pessoais não há précondicionamento ge nético absoluto incontornável na realização de uma vida Por isso é preferível falar em tendências mais ou menos fortes para tal ou qual traço corporal ou de personalidade Nosso fenótipo resulta da intera ção do genótipo com o meio ambiente físico biológi co humano com as experiências da história pessoal Nesse sentido com as devidas restrições vale o dito Genética não é destino O bichogente é o que nasce menos programado com maior e mais longa dependência dos seus mas também é o que tem mais chance de aprender e incluir experiências existenciais em seu funcionamento tanto orgânico quanto psíquico e comportamental O corpo o cérebro e a mente de uma pessoa vão se moldando desde o início por e para seu mun do físico biológico e humano para este entorno em particular para o seu habitat com aquela mãe e não Psicossomaticaindd 515 Psicossomaticaindd 515 05012010 121224 05012010 121224 516 Mello Filho Burd e cols outra com aquela família com aqueles conviventes naquela cultura naquela história com seus sistemas simbólicos de ideais e valores éticos estéticos em butidos em seu idioma Cada bebê nasce com poten cialidades genéticas biológicas únicas para a cons tituição de um eu inédito singular mas é também herdeiro de milhares de gerações préhumanas e hu manas A partir de incontáveis determinações ances trais e circunstanciais a notável capacidade humana de adaptarse sobreviver crescer e se modificar vai se realizando com alguma liberdade presa ainda a valores limites e imposições de várias ordens Have rá sempre uma luta entre obedecer e transgredir tais determinações E a própria tendência humana a con trariar programações ancestrais romper barreiras desprezar impossíveis parece que é também deter minada pela evolução Segundo Gabbard 2000 o convívio com os pais e familiares molda o próprio cérebro cria pa drões de funcionamento interpessoal que se armaze nam na memória de procedimentos inconsciente e tendem a se repetir nos relacionamentos futuros Há fases críticas de melhor chance para o desenvol vimento neuromental do cérebro janelas de oportu nidade de tempo limitado para determinadas aqui sições cognitivas Ao que parece a consciência psicológica indivi dual resulta da percepção do conjunto de percepções que ocorrem dentro de um mesmo organismo soma topsíquico singular do mesmo self ou eu individual O que vem dar força à antiga noção do eu ímpar como sujeito das experiências vivenciais pessoais consecu tivas no tempo no espaço e nas diversas situações dotado também da capacidade de autorreflexão e au torreferência da faculdade de saber que sabe o que sabe que sente o que sente A aquisição da consciência psíquica e do self constituem ganhos da evolução biológica por pro porcionarem recursos mais criativos e eficazes na so lução de problemas existenciais velhos ou novos Nos primórdios da vida a mãe é o principal fa tor externo na expressão fenotípica do genoma da criança isto é de quais disposições genéticas vão se efetivar como traços característicos do novo ser Ela funciona como cérebro acoplado especialmente como córtex cerebral anexo como o ego auxiliar da conceituação psicanalítica até que as estruturas e as funções correspondentes amadureçam na criança robustecendo sua crescente autonomia neuromental Mais ainda a mãe ou quem exerça a função relacio nal primária serve de modelo biopsíquico compor tamental e cultural para as organizações equivalen tes do bebê O pequeno ser individual se forma e se transforma em função da mãe adaptase ao mundo que principia sendo ela tende a alinharse ao que ela sente e pensa sobre tudo e sobre cada pessoa e o que é mais importante ao que ela sente pensa e espera em relação a ele As experiências vividas com a mãe e depois com os outros ficam registradas nos circuitos neuronaismentais isto é influenciam em grau maior ou menor e mais ou menos definitiva mente a constituição das estruturas neurológicas e psicológicas da criança seu modo de ser e funcionar amarse ou odiarse de encarar a vida as pessoas o mundo de maneira mais otimista ou mais pessimista amorosa ou raivosa construtiva ou destrutiva Um lembrete quando dizemos que certas áreas encefálicas estão mais envolvidas com determinadas atividades neuromentais por exemplo que a amíg dala da base do cérebro e todo o sistema límbico são extremamente relevantes para a vida emocional já na maternagem primária ou que o hipocampo é estreitamente ligado ao aprendizado e à memória não pretendemos declarar que sejam localizações únicas dessas funções como até já se pensou As áreas referidas são apenas parteschave de uma ca deia conectiva extensíssima afinal do corpomente inteiro De modo semelhante quando descrevemos uma rede ferroviária destacamos algumas estações centrais mais importantes para as quais convergem vários outros ramais e das quais partem trens infor mações e ordens para os outros setores da rede Uma estação isolada do conjunto se tornaria inoperante Outros motivos de cautela se impõem Os neu rocientistas não conseguem distinguir na totalidade dos casos patológicos quais traços neuromentais são primários ou secundários Há variações individuais muitas em função do sexo biológico e do gênero se xual adotado da língua materna e das características ambientais e socioculturais da criação e convívio Ponderando tudo isso registremos uma hipóte se recente Blakeslee e Blakeslee 2007 sobre a cor relação corpomente enfeixada no encéfalo através de três estruturas que reúnem informações soma topsíquicas e as remetem para uma central a insula frontal componente do córtex cerebral de ambos os hemisférios mas a direita é que centralizaria afinal a conexão corpomente as sensações e as emoções que são fundamentais às vivências somatopsíquicas aos desenvolvimentos de todo o psiquismo e das re lações interpessoais e socioculturais Nela se fundem as sensações físicas conscientes e as emoções psí quicas conscientes Certas técnicas de neuroimagens mostram que os neurônios desta área se ativam ele troquimicamente enquanto a pessoa padece uma dor física ou um sofrimento psíquico como a dor e a in dignação de ser rejeitado maltratado injustiçado As três estações subcentrais que alimentam diretamente de informações o córtex insular são a Psicossomaticaindd 516 Psicossomaticaindd 516 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 517 amígdala que correlaciona emoções às experiên cias pessoas e coisas o córtex orbitofrontal área importante para a autodisciplina e o estabelecimento de planos e prioridades de ação levando em conta a probabilidade de obter recompensas ou punições e o córtex cingulado anterior que monitora os compor tamentos procurando equívocos corrigindo e evitan do erros avalia o contexto planeja e executa ações que tenham significação emocional e motivacional esta área é também encarregada de mapear o corpo todo Curiosamente descobriuse que nesta mesma área em que se organiza o autoconhecimento o co nhecimento da unidade somatopsíquica que caracte riza o ser individual centralizase também a empa tia a percepção possível do que se passa na pessoa somatopsíquica do outro corroborando a afirmação corrente de que conhecer a si mesmo e ao semelhan te são capacidades complementares E ainda mais as mesmas áreas e funções são decisivas na constituição do senso éticomoral Para a questão da liberdade de escolha a neuro ciência está propondo alguns avanços talvez nossas decisões sejam tomadas inconscientemente cabendo à mente consciente obedecêlas ou não de acordo com critérios pessoais Daí a frase de um neurocien tista Gazzaniga Os cérebros são automáticos mas as pessoas são livres com as devidas restrições Conforme informam a sociobiologia e a psicolo gia evolutiva animal algumas características conside radas até bem pouco como exclusivas do ser humano e resultantes do convívio sociocultural o senso de responsabilidade justiça punição e recompensa e de solidariedade ao lado da propensão a fazer arranjos políticos e diplomáticos maliciosos como alternati va para os meios físicos violentos encontram seus primórdios nos primatas superiores principalmente nos chimpanzés e bonobos Talvez possamos falar em elementos éticos préhumanos Tendo em vista as vantagens adaptativas e evolutivas dessas aquisições com toda a probabilidade elas dependem de alguma forma de transmissão genética NEURÔNIOSESPELHO Na última década do século XX aconteceu um evento capaz de abrir possibilidades incríveis ao des vendamento da unidade somatopsíquica a desco berta dos neurôniosespelho que se considera com razão a maior conquista neurocientífica dos últimos tempos Os autores da descoberta Giacomo Rizzolatti e colaboradores 2006 neurocientistas italianos re lembram seu achado da seguinte forma João obser va Maria pegar uma flor Maria sorri para João e este adivinha que ela lhe dará de presente a flor Uns 10 anos atrás a maior parte dos neurocientistas atribuiria o entendimento das intenções dela a um processo de raciocínio dedutivo mais ou menos com plexo Operações deste tipo ainda são necessárias par ticularmente quando o comportamento de alguém é difícil de decifrar e nos obriga a parar para pensar Mas a facilidade e a rapidez com que costumamos entender ações corriqueiras como a de Maria suge rem um procedimento neuromental muito mais sim ples e direto No começo dos anos de 1990 nosso grupo de pesquisa na Universidade de Parma Itália des cobriu a resposta de forma quase acidental em um tipo de neurônio do cérebro de macacos que dispa ra no momento em que o animal desempenha ações motoras direcionadas dependentes de outras células corticais encarregadas do comando motor como pegar uma fruta por exemplo O que nos surpreen deu foi o fato de esses neurônios também dispararem quando o animal simplesmente observava alguém fazer a mesma coisa Como esse novo subconjunto de células reflete no cérebro do observador os atos realizados por outro indivíduo demos a eles o nome de neurôniosespelho Logo em seguida se descobriu nos seres huma nos a existência de neurônios semelhantes com fun ções análogas e mais aperfeiçoadas localizados em diversas partes cerebrais especialmente em áreas de associação do córtex como na área prémotora do lobo frontal inclusive na área de Broca ligada à pro dução da fala e em vários outros setores do córtex parietal e temporal A captação dos procedimentos do outro não é apenas visual mas também auditiva graças aos neu rôniosespelho audiovisuais A seguir funções impor tantes como a empatia a percepção da dor alheia e outras formas de comunicação sutil foram sendo relacionadas a certas áreas cerebrais É até mesmo possível levantar a hipótese de que o cérebro inteiro funcione como um sistemaespelho Com tais recursos ensaiamos ou imitamos men talmente toda a ação observada o que é capaz de servir para obter a partir de um nível préreflexivo protossimbólico préverbal uma compreensão signi ficativa do comportamento de outra pessoa suas sen sações emoções e sentimentos suas intenções o que pretende dizer e até muitas vezes o que pretende esconder apesar de todas as distorções introduzidas pela mente do próprio receptor Rizzolatti e colaboradores 2006 verificaram imediatamente as enormes implicações da descober ta a começar pelas vantagens vitais e sociais de uma Psicossomaticaindd 517 Psicossomaticaindd 517 05012010 121224 05012010 121224 518 Mello Filho Burd e cols captação pronta e profunda do que se passa na men te do outro o que constitui um avanço notável no entendimento de como funcionam nossos cérebros mentes individuais e em conjunto A descoberta do sistemaespelho respalda cientificamente uma afir mação da filosofia fenomenológica para compreen der profundamente uma vivência do outro a pessoa tem de passar por uma experiência semelhante den tro de si mesma O primeiro sistema de comunicação entre os pais e a criança o mais direto e imediato não é ver bal mas sensorial e sensóriomotor visualauditivo motor Dele brotam os processos identificatórios a partir do aprender por imitação imitar para conhe cer imitar para ser Ou seja os sistemasespelho e os mecanismos de imitação ligados a eles fazem parte da dinâmica dos processos de aprendizado comuni cação e identidade Bebês humanos e macaquinhos aprendem des de cedo a imitar gestos simples como mostrar a língua A capacidade de criar padrõesespelho pare ce inata com uma diferença talvez decisiva ela se aperfeiçoa rapidamente nos humanos dando a eles uma vantagem evolutiva de adaptação ao meio que os distingue a priori dos outros primatas Nesse caso contrariando uma expressão corrente na linguagem comum macaco de imitação seria mais justo dizer humano de imitação Enfatizando a relação somatopsíquica Scalzone 2005 assinala Quando estes neurônios se tornam ativos o sistema motor ressoa com a ação do agente observado e eles os neurôniosespelho respondem automaticamente uma espécie de simulação ou di gamos de imitação pois ela envolve um processo não intencional automático do qual o próprio não tem conhecimento A passagem do funcionamento do neurônioespelho para os processos imitativos isto é de um fenômeno somático para um fenômeno psíquico de uma atividade neurológica para uma atividade psicológica é um exemplo de processo de transforma ção dentro de um continuum somatopsíquico Como mostram as neuroimagens basta imagi nar um gesto para que as áreas cerebrais correspon dentes ao ato se ativem como se o ato estivesse sendo praticado Quando relembramos uma cena o córtex visual se ativa como se estivéssemos vendo a cena na realidade Há portanto uma ligação estrutural e funcional entre as áreas cerebrais do pensamento e a áreas dos movimentos corporais entre as simulações mentais e a execução motora dos atos imaginados entre o automatismo e a conscientização nova evi dência do continuum corpomente Quanto à psicanálise e às psicoterapias afins os achados neurocientíficos recentes oferecem maiores chances de se encontrar o correlato anatomofisioló gico de vários fenômenos há muito conhecidos em nossa prática clínica e na teorização dela decorren te Compartilhar emoções e sentimentos com outros de modo direto não consciente não verbal enseja vivências intersubjetivas de ligação estreitíssima até de indiferenciação pessoal mas também podem abrir caminho para formas mais elaboradas de relaciona mento interpessoal em que se reforcem reciproca mente a individualidade singular do sujeito e a alte ridade da pessoa do outro o eu e o não eu Winnicott 1965 a distinção entre o que está na mente do su jeito e o que está do lado de fora na mente do outro no mundo exterior Sentir a dor do outro ser com o outro ser o ou tro são capacidades que dependem em grande parte do sistema neuropsíquico especular e alimentam uma gama de vivências desde as de fusão simbiótica até as de união íntima empática sem perda dos limites individuais propiciando a intercomunicação normal na vida comum Uma disfunção do sistemaespelho parece ocor rer nos déficits de empatia da compreensão direta das emoções do outro como acontece com as crianças autistas psicopatas e talvez alguns casos borderline Temse conjeturado que disfunções empáticas simila res existam em graus variados em pessoas bem mais próximas da normalidade como nas mães nos fami liares e nos terapeutas não empáticos pelo menos de modo parcial e seletivo isto é um embotamento da sensibilidade com relação a determinadas crianças ou pacientes conforme sejam ou não bastante queridos causem bemestar ou desconforto Não é demais detalhar os sistemas especulares ligados aos neurôniosespelho encontram uma gran de semelhança com algumas conceituações de notá veis psicanalistas como a função especular materna e familiar apontada por Winnicott 1967 essencial à constituição da identidade da criança De início as expressões da face materna retratam ativamente a imagem do filho e nela o bebê vai se encontrando e reconhecendo desenvolvendo seu verdadeiroself sua identidade mais autêntica Em caso de defeito gra ve da função especular formase um falsoself uma adaptação forçada às imposições da mãe e do meio Utilizando o referencial de Melanie Klein po deríamos dizer os neurôniosespelho fornecem um substrato neurofisiológico às identificações introjeti vas que são componentes importantes da identida de normal quando devidamente assimiladas caso contrário elas continuarão como objetos estranhos parasitando o ego da pessoa E também das identifi cações projetivas a atribuição de conteúdos próprios a outrem Outras noções psicanalíticas também podem ser referendadas pelos aportes neurocientíficos como a Psicossomaticaindd 518 Psicossomaticaindd 518 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 519 de função alfa conceituada por Bion a de apego at tachment estudada por Bowlby a primitividade da simbiose primária que vai dando lugar ao processo de separaçãoindividualização como observou Mahler Finalmente e cautelosamente é preciso deixar bem claro que graças aos avanços espetaculares das neurociências temos conseguido no máximo aprimorar nossos conhecimentos sobre as condições biológicas que possibilitam o surgimento do mundo mental Continuamos ainda à espera de algum enfo que capaz de lançar maior claridade sobre a natureza do misterioso salto qualitativo entre o nível somático e o psíquico entre os fenômenos neurológicos e os psicológicos conscientes O que determina por exem plo que a associação simultânea em áreas especiali zadas do córtex cerebral das informações sensoriais oriundas de diversos órgãos e processadas em dife rentes setores do cérebro dê origem a uma vivência subjetiva integrada digamos a imagem mental afeti vocognitiva de uma rosa vermelha perfumada Nesta pergunta estão embutidos dois problemas até agora hermeticamente desafiadores o da interli gação binding das informações veiculadas pelos di versos circuitos neuronais e o das vivências subjetivas daí resultantes qualia Ou seja o âmago da rela ção corpomente ainda guarda seus enigmas muitos enigmas Eles se desvendarão algum dia década ou século CONCLUSÕES PROVISÓRIAS SOBRE A INTERFACE NEUROCIÊNCIA COGNITO EVOLUTIVA E PSICANÁLISEPSICOSSOMÁTICA Por tudo o que vimos até aqui parece inegável que a interface com a neurociência cognitiva evolu tiva prodigaliza recursos infindos ao enriquecimento teórico e clínico da psicanálise propriamente dita bem como de suas aplicações nas psicoterapias ditas dinâmicas e de todas as especialidades terapêuticas médicas e paramédicas que consideram como essen cial a vertente psicossomática da condição humana Assim sendo alguns pontos da interface merecem um destaque final Doin 2003 a Ganhos teóricos Os progressos da neurociência possibilitam robustecer algumas teorias e refe renciais psicanalíticospsicossomáticos e também debilitar outros A compreensão holística do ser humano como organização integrada em seus di versos níveis estruturais funcionais e relacionais interativos depõe contra as teorias reducionistas simplistas que privilegiam radicalmente um as pecto o corporal ou o psíquico o consciente ou o inconsciente o atual ou o arcaico o individual ou o social o intrapsíquico ou o interpessoal o simbólico ou o protossimbólico o verbal ou o não verbal minimizando ou excluindo os outros São inúmeras as aproximações ou equivalências encontradas entre os conhecimentos psicanalíticos consagrados e o que vem se descobrindo na vizinhan ça como por exemplo os conceitos de instintos e pulsões Eros e Tânatos motivações para a vida e para a morte vicissitudes dos instintos o princípio do prazerdesprazer articulado com o da realidade os mecanismos de defesa recompensa e punição as vivências mais ou menos estabelecidas de um eu con tínuo e persistente através do tempo do espaço e de situações diferenciadas dotado de razoável autoesti ma senso de honra e dignidade de alegria de viver os múltiplos níveis não excludentes de comunicação a importância da história pessoal do psiquismo pri mitivo e da relação mãebebê e de sua reedição nas relações terapêuticas além de outros pontos mencio nados no texto b Desenvolvimento individual psiquismo primitivo maternagem primária e meio facilitador Por seu enfoque evolutivo a neurociência demonstra a relevância fundadora da maternagem primária e do ambiente humano inicial sobre o modo de ser viver e pensar de cada pessoa o que vem corrobo rar as observações clínicas de inúmeros psicana listas como Bowlby Winnicott Bion Kohut Mah ler que compreenderam desde logo a importância dos desdobramentos do psiquismo primitivo e da relação primária nos distúrbios patológicos e na abordagem terapêutica de suas consequências Winnicott 1965 acentuou bastante o peso da maternagem primária e do meio facilitador ou adver so na formação individual em estreita consonância com a visão neurocientífica atual Grande parte do futuro da pessoa se decide nes sa fase donde se deduz a importância da assistên cia emocional social e pedagógica a ser prestada às mães durante a gestação e os primeiros tempos da criança Também os outros membros da família e to dos aqueles que convivem com o novo ser precisam ser conscientizados de suas responsabilidades em re lação a ele c Aplicações terapêuticas À semelhança das rela ções primeiras com a mãe e o meio a qualidade da relação pacienteterapeuta constitui fator deci sivo no desenvolvimento do processo terapêutico e de seus resultados ela depende muitíssimo do preparo pessoal e técnico do terapeuta de sua ca pacidade de ligarse afetivamente efetivamente Psicossomaticaindd 519 Psicossomaticaindd 519 05012010 121224 05012010 121224 520 Mello Filho Burd e cols ao seu enfermo e ficar atento a tudo o que se pas sa com ele a todas as suas comunicações através dos múltiplos canais conscientes e inconscientes verbais paraverbais extraverbais gestuais so matopsíquicos e comportamentais Penso que a neurociência cognitiva ao demons trar tão cabalmente a integralidade do funcionamen to somatopsicorrelacional não dá respaldo a visões reducionistas do ser humano vale dizer a nenhuma compreensão parcial mutiladora do todo da pessoa unitária essencialmente indivisa que procura ajuda para seus problemas de saúde mesmo que partindo desta visão abrangente a ação terapêutica focalize um setor mais que outros por escolha estratégica Damásio 1999 declara falsa a separação en tre doenças neurológicas e doenças psiquiátricas en tre patologia orgânica e patologia mental uma vez que todas elas se originam da mesma somatopsique Apenas descritiva e operacionalmente podemos dife rençar as doenças neurológicas em que predominam alterações encefálicas grosseiras e as psicológicas em que tais alterações são mais discretas ou mais funcionais mais histológicas que macroanatômicas O mesmo pode ser pensado em relação a todos os setores do organismo O reconhecimento fundamentado da integração de todos os níveis do corpomente levam a psicanáli se a revalorizar as funções conscientes neocorticais préfrontais o controle da mente a força de vontade sem nunca deixar de fora a dinâmica do inconscien te ponto de partida de Freud nem a ênfase que ele acertadamente deu à história pessoal à persistência dos conflitos dos pontos de fixação nem aos déficits do desenvolvimento e as incontáveis expansões ob servacionais e conceituais realizadas por milhares de estudiosos que vieram depois Graças a essa visão psicossomática holística in tegradora e generalizante as psicoterapias de base psicanalítica têm se mostrado mais eficazes profun das e duradouras que as rivais que não podem con tudo ser descartadas de antemão Muitas delas têm indicação por seu alcance focal imediato como é o caso da psicoterapia cognitivocomportamental que se dedica de preferência a assinalar a inadequação e a irracionalidade de determinadas condutas e a per suadir o paciente a modificálas Com sua visão integradora do ser humano a psicanálise padrão bem como as psicoterapias de base psicanalítica podem utilizar melhor os mesmos recursos técnicos ao lhe agregarem a dimensão in consciente na qual se inserem as raízes dos deter minismos vitais promotores da vida e da saúde mas também as motivações patológicas derivadas de am biguidades e conflitos destrutivos As reativações nos contextos terapêuticos de padrões interativos arcaicos as chamadas trans ferências podem ser desastrosas ou se tornar úteis quando acolhidas adequadamente precioso recurso terapêutico introduzido por Freud e praticado siste maticamente pelos psicanalistas A psicanálise e as terapias afins ao valorizarem mais que as outras a dinâmica do inconsciente e da relação terapêutica têm se mostrado insuperáveis na obtenção de mudanças estruturais profundas não apenas sintomáticas ou focais que se conservam nos circuitos neuromentais da memória implícita incons ciente Criamse desse modo novos padrões afetivo cognitivos e comportamentais que tendem a suplan tar gradativamente os funcionamentos anacrônicos Nas palavras de Gabbard 2000 O conhecimento atual das interações entre a biologia e a psicologia torna possível considerar uma abordagem verdadei ramente integrada para o tratamento E apresenta exemplos de melhoras clínicas vinculadas a modifica ções cerebrais documentadas empiricamente através de neuroimagens A abordagem psicanalítica é capaz como ne nhuma outra de fazer frente aos padrões traumato fílicos oriundos de traumas psicossomáticos sofridos em qualquer época da vida e que tendem a se reativar todos os momentos em que ocorrerem agressões iguais ou semelhantes Em muitos desses casos é evidente e desconcertante a busca inconsciente do trauma a pro cura do pior o que dificulta enormemente o convívio familiar e o trabalho terapêutico Doin 2005 É o que acontece por exemplo com pacientes que nasceram de gestações difíceis não desejadas que sobreviveram a tentativas de abortamento ou que sofreram principalmente na infância e adoles cência agressões de todo tipo inclusive sexuais ou foram gravemente lesados pela violência familiar ou social cometida em pequena ou grande escala Adap tamse a tal habitat passam a necessitar dele e pro curam reproduzilo em todas as relações inclusive terapêuticas São como as flores do pântano que não conseguem viver fora dele Acreditar que é possível mudar constitui desafio para paciente e terapeuta É quase como ensinar peixe a viver fora dágua ou mudar de religião de time de futebol Entendese portanto o desconsolo de um jovem imbuído das intenções mais altruístas ao se deparar com a sabotagem sistemática dos seus empenhos por parte do doente que tanto deseja ajudar Todos co nhecemos as propensões traumatofílicas que impe lem o paciente a conduzirse de modos irracionais absurdos mortíferos apesar da crítica consciente que ele próprio é capaz de fazer Doin 2005 Graças à psicanálise podemos assegurar que acima de todo o vasto acervo de preceitos e recomen Psicossomaticaindd 520 Psicossomaticaindd 520 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 521 dações técnicas ressaltase como indispensável o bom entrosamento terapeutapaciente Seja qual for o método empregado a qualidade favorável da rela ção humana especial que se estabelece avulta como condição primordial de sucesso Ela própria é um fator curativo considerável o potencial terapêutico inerente a todas as relações humanas em que o amor predomina com suas múltiplas faces sendo que o res peito pelo outro se sobressai o desejo de promover o melhor para ambos os participantes Uma assimetria precisa no entanto ser aceita pelo menos no início do tratamento o terapeuta deve ser capaz de dar amorrespeito sem esperar retribui ção imediata grandeza própria das mães e familiares e terapeutas suficientemente normais em relação a suas crianças e pacientes Amor é agente de vida e construção terapêutica eis uma verdade estabeleci da nem sempre bem lembrada e utilizada É claro que a disposição favorável do terapeuta sofre assédios constantes alguns extremamente di fíceis de suportar Entre eles nunca é demais men cionar a absurda repetição de funcionamentos trau matofílicos deletérios que são mantidos por ainda parecerem lucrativos mesmo insubstituíveis como mantenedores da sobrevivência como garantia de vida de relacionamentos de valor de poder e prazer Doin 2005 Um entendimento esclarecido acerca da reni tência e nociva funcionalidade homeostática e es truturante de determinadas patologias graves pode nos tornar mais compreensivos e pacientes menos críticos moralistas e ambiciosos mais eficientes pes soalmente melhores mais maduros mais capazes de investir esperança pelo tempo necessário sem o sen timento de impotência e derrota desespero e raiva e de confiar sempre mais nos recursos saneadores das relações terapêuticas bem constituídas É possível conservar um otimismo razoável quanto a mudanças profundas a longo ou longuís simo prazo quando se confia na capacidade de ambos de aproveitar os recursos biológicos psicos somáticos por ventura remanescentes de contar com a relativa plasticidade inerente às estruturas e fun ções somatopsíquicas em suma quando o terapeuta mantém acesa a fé nas forças da vida REFERÊNCIAS BLAKESLEE S BLAKESLEE M 2007 Where mind and body meet Scientific American vol 18 n 4 agostosetembro 2007 DAMASIO A 1994 Descartess Error Nova York Putnam Trad O erro de Descartes São Paulo Companhia das Letras 1996 DAMASIO A 1999 The feeling of what happens Nova York Harcourt Brace Trad O mistério da consciência São Paulo Com panhia das Letras 2000 DOIN C 2003 Psicanálise e neurociência uma questão de in teresse prático Rev Bras Psicanál 37 23 547571 19º Con gresso Brasileiro de Psicanálise Recife DOIN C 2005 O ego busca seu trauma paradoxos da trauma tofilia Texto utilizado em conferência no 44 Congresso Interna cional de Psicanálise da International Psychoanalytical Associa tion Rio de Janeiro 2005 FREUD S 1940 a 1938 An outline of psychoanalysis S E 23 FREUD S 1950 b 1895 A project for a scientific psychology S E 1 GABBARD GO 2000 A neurobiologically informed perspecti ve on psychotherapy Br J Psychiatry 17711722 KANDEL E 1999 Biology and the future of psychoanalysis a new intellectual framework for psychiatry revisited Am J Psychiatry l56 4 505524 KANDEL E 2006 In search of memory Nova York e Londres W W Norton Company LENT R 2001 Cem bilhões de neurônios Conceitos fundamen tais de neurociência São Paulo Editora Atheneu MELLO FILHO J l979 Concepção Psicossomática Visão Atual Rio de Janeiro Edições Tempo Brasileiro MELLO FILHO J l992 Psicossomática hoje Porto Alegre Art med Editora RIZZOLATTI G FOGASSI L GALLESE V 2006 Espelhos na mente Scientific American Brasil ano 5 n 55 dez 2006 44 51 SCALZONE F 2005 Notes for a dialogue between psychoa nalysis and neuroscience Int J Psychoanal 86 140523 WINNICOTT D W 1965 The maturational processes and the facilitating environment Londres The Hogarth Press 1976 WINNICOTT D W 1967 Mirrorrole of mother and family in child development Playing and reality Londres Tavistock 1971 Psicossomaticaindd 521 Psicossomaticaindd 521 05012010 121224 05012010 121224 Os indivíduos as pessoas interagem entre si e com o mundo que as contém É nessa totalidade que existe a interrelação que chamamos de relaciona mento O que são indivíduos Unidades com corpo e espírito formando uma nova unidade a dos huma nos sujeitos às leis que regem a sua singularidade e sujeitos a outras leis que emanam da pluralidade Os relacionamentos ocorrem no espaço e no tempo entre espíritos almas mentes manifestadas por cor pos obedecendo a complexas regras que muito bem conhecemos mas que resistem quando nos propomos a nomeálas Como Santo Agostinho em relação ao tempo Se me perguntam o que é o tempo eu sei quando me pedem para dizer o que é o tempo eu já não sei É esse o terreno da psicossomática essa uni dade do humano tão separada quanto unida que só podemos nomear juntando duas entidades unidade diádica que resiste a qualquer linguagem que não contenha uma síntese de duas instâncias A interação entre duas pessoas é muito mais que uma relação entre duas mentescorpos unidade in dissolúvel para a qual sequer temos linguagem única A relação entre duas pessoas é influída e influi no espaçotempo no meio cuja análise esbarra na au sência de linguagem que a expresse separadamente espaço que está sempre ligado ao presente passado futuro ou eternidade em nossa percepção Por esta razão somos obrigados a versar o rela cionamento entre limites que podem ser infinitamen te ampliados Há apenas maior probabilidade das relações obedecerem aos parâmetros aqui expostos a profundidade nas interações pessoais seguramen te apresentará facetas imprevisíveis O entendimento entre indivíduos é tarefa a ser desenvolvida continua mente aqui não mais que uma base limitada que es peramos possa ser o ponto de partida para a relação entre o médico e o cliente entre o terapeuta e o clien te O terapeuta é o médico ou o psicólogo e hoje os numerosos profissionais da saúde já os clientes são os enfermos os molestos os doentes as pessoas que estão sem firmeza suportando um peso ou sentindo dores A consulta é a base da relação médicopaciente Classicamente ela permite a realização do ato mé dico pelo qual o profissional ouve as queixas do cliente toma sua história pessoal analisa os sinto mas pesquisa os sinais faz o diagnóstico confirmao pedindo exames complementares e estabelece a con duta terapêutica Hoje a consulta pode ser dirigida à prevenção não mais que uma verificação da nor malidade ou não das doenças mas sim dos riscos de adoecer no futuro O médico deve situarse e situar também o clien te no espaçotempo O êxito do ato médico ao contrário do que pretendem aqueles que louvam a ascensão da tecno logia impessoal depende na prática da comunica ção estabelecida durante a consulta Tratamos aqui em primeiro lugar dos elemen tos envolvidos e da dinâmica do encontro que preten de cuidar da saúde das pessoas o médico o cliente a instituição e a atitude clínica Em segundo lugar das formas típicas usuais da comunicação interpessoal regulada pela mol dagem que os indivíduos recebem através dos pro cessos de formação educacional acrescido no caso dos profissionais de saúde pelo preparo profis sional Em terceiro lugar abordaremos as chamadas formas terapêuticas Para lapidarmos o ato médi co e assumirmos a necessária atitude clínica funda mental ao exercício do atendimento dos clientes no consultório no ambulatório nos hospitais e ainda no manejo dos procedimentos técnicos devemos enten der as razões lógicas e emocionais que permitem o uso dessas chamadas formas terapêuticas Para tal é necessário fundamentalmente modificarse como pessoa assumindo a tarefa profissional de cuidar de outras pessoas considerandoas tão importantes como nós mesmos Finalmente faremos algumas reflexões sobre o que é e poderá ser a psicossomática no mundo atual computadorizado de comunicação instantânea visto 44 RELAÇÃO MÉDICOCLIENTE Paulo Canella Psicossomaticaindd 522 Psicossomaticaindd 522 05012010 121224 05012010 121224 Psicossomática hoje 523 como uma rede e em luta com suas nuances de domi nação e submissão AS BASES Durante uma consulta médico e cliente têm em relação um ao outro expectativas desejos esperan ças exigências Esse vínculo entre os dois adequada mente construído resulta em ação terapêutica eficaz que promove saúde inadequadamente construído é fonte de dificuldades para o médico e para a pessoa atendida Esse encontro é normatizado obedece a um conjunto de regras estabelecidas pelo sistema que de vem ser tacitamente obedecidas por médicos e clien tes a instituição A norma é a relação vertical com uma domina ção implícita determinada pelas circunstâncias pais e filhos patrão e empregado onde o poder está previamente determinado como pertencente a um dos elementos A instituição domina o médico e ele tem ascendência sobre a cliente para que a saúde se produza é necessário uma democracia das razões a aceitação de que todos têm o direito de ter seus valo res e que as diferenças não significam necessariamen te uma diferença entre as pessoas Não nos relacionamos da mesma forma com pessoas diferentes não somos o mesmo médico para todas as clientes não procedemos da mesma maneira no consultório e no hospital Há normas hospitalares há responsabilidades diluídas há rotinas préestabe lecidas É profundamente inocente acreditar que o médico atende igualmente todos os seus clientes A relação estabelecida pelo profissional com a cliente particular é diferente da que ele tem com a cliente de convênio e essa é diversa daquela que a instituição permite que ele tenha com a previdenciária Só tendo consciência dessa realidade o médico pode desen volver a atitude clínica relacionandose através das formas terapêuticas de comunicação É necessário captar sentimentos reassegurar colocar limites au toexprimirse e solucionar conflitos em conjunto Como profissional liberal o médico deve aten der de acordo com a ética e a deontologia médica sendo policiado pelos Conselhos Estaduais e Fede ral de Medicina como assalariado o médico obede ce às regras da instituição que o contrata sem perder o vínculo com a profissão liberal que escolheu A cada dia médicos e clientes veem o encontro pessoal que permite a orientação adequada mais e mais regulamentado pelos intermediários que domi nam a instituição O consultório particular ainda permite que o cliente escolha livremente o profissional que o vai tratar assim como este o aceita com a mesma liberda de estabelecendo os dois um contrato de prestação de serviços pelo qual o cliente é assistido e o médi co receberá seus honorários No entanto essa forma espontânea de vínculo vem sendo inexoravelmente alterada Nos consultórios os convênios determinam os médicos a serem consultados o valor dos serviços prestados os auxiliares que devem fazer os exames complementares e as casas de saúde nas quais as clientes devem ser internadas Nos Hospitais Públicos e da Previdência a constituição de Equipes de aten dimento que diluem as responsabilidades pessoais e as normas hospitalares a serem obedecidas por clien tes e profissionais dificultam o vínculo pessoal neces sário a uma ação terapêutica adequada Não cabe provar que o modelo atual é pior que os existentes antes ele faz parte da evolução dos indi víduos no espaçotempo o modelo médico atual tem como base o consumo e o lucro máximo com as ações de saúde Esse modelo poderia ser considerado polui dor do espaçotempo É difícil julgar a maior parte das pessoas adaptase a esta forma talvez perversa mas capaz de equilibrarse pelo menos no momento com o meio que os agride Nossa intenção é examinar alguns dos fenôme nos que compõem as bases do relacionamento médi copaciente o médico como medicamento a consulta como encontro pessoal e o cliente diante do médico e a instituição que normatiza às vezes muito mal o encontro que médicos e clientes têm na consulta O MÉDICO A pessoa do médico diz Balint pode ser um medicamento poderoso e eficaz que causa impacto significativo na construção do vínculo e até mesmo na própria ação do remédio prescrito Mas por vezes é fonte de agravamento da doença O médico como pessoa com ou sem intenção entra no relaciona mento com suas características pessoais suas neces sidades seus valores suas dificuldades e impregnado pela ideologia que o toma Médicos dominadores e prepotentes têm clien tes submissos e obedientes médicos bonzinhos podem atrair clientes que os desrespeitam Dificul dades existenciais podem até mesmo fazer com que o médico passe a utilizar os clientes como medica mento para si próprio quando a profissão se torna a única razão de viver os clientes podem funcionar como antidepressivos ou ansiolíticos constituin dose na única fonte de valorização de preservação de autoestima de fuga para evitar o confronto com situações internas angustiantes ou difíceis de en frentar Psicossomaticaindd 523 Psicossomaticaindd 523 05012010 121224 05012010 121224 524 Mello Filho Burd e cols A formação especializada e os anos de prática clínica refinam a sensibilidade para perceber minú cias e sutilezas de sinais e de sintomas que levam a diagnósticos e a indicações terapêuticas Dois proble mas ocorrem com o manejo do chamado olho clíni co ele é colocado a serviço da ilusão de onipotência jamais me engano dou conta de tudo ou ele é desvalorizado é quando o médico esquece que tem olhos mãos ouvidos e uma cabeça que raciocina e se deixa levar pela tecnologia pedindo exames com plementares supérfluos receitando remédios sem especificidade fazendo encaminhamentos apressa dos porque ele se subestima como instrumento de trabalho e deixa de explorar satisfatoriamente seus próprios recursos de atendimento e de atuação Da mesma forma que um medicamento a atua ção do médico pode fazer bem ou provocar efeitos colaterais A confluência dessas possibilidades forma a encruzilhada o médico como agente de saúde ou como fonte de dificuldades O profissional que atua somente como bom técnico deixa de utilizar boa par te do seu potencial terapêutico a sua dimensão hu mana O colocarse como pessoa que trata de pessoas é que constitui o algo mais da ação do médico como agente de saúde Há situações em que o médico com seu domínio da tecnologia funciona como agente de ajuda mas emocionalmente atua como fonte de di ficuldades A possibilidade do médico proceder como agen te de saúde fica bastante limitada no âmbito da as sistência institucional o sistema de atendimento na maioria de nossos hospitais públicos é inadequado porque não oferece condições mínimas para fazerse boa medicina nos poucos minutos de consulta não se pode olhar o paciente tecnicamente bem mas é pos sível estabelecer com ele um vínculo significativo A CONSULTA MÉDICA A consulta médica como encontro pessoal caracterizase pela existência de múltiplos e diferen tes vínculos podese dizer que o vínculo do médi co com cada cliente é único singular uma vez que cada interação entre duas pessoas forma um todo com características peculiares Um relacionamento é produto das pessoas que compõem o vínculo Na relação médicocliente esta noção é o fundamento da corresponsabilidade o que implica fundamental mente saber que a função do médico é expor com honestidade e clareza os fatos os prós e os contras os riscos e as consequências ou as razões de uma in dicação terapêutica além de acompanhar o processo de decisão do cliente ajudandoo a pesar alternativas e levantando questionamentos O vínculo médicocliente é assimétrico o médi co é um profissional e tem competência para fazer o diagnóstico e indicar a terapêutica adequada É claro que ele só fará isso adequadamente quando atender o cliente como uma pessoa A noção de corresponsa bilidade implica reconhecer que médico e cliente de vem compor um vínculo humanamente simétrico É inteiramente desnecessário que o médico como pes soa coloquese hierarquicamente em plano superior diminuindo e enfraquecendo o cliente com a finalida de de preservar sua superioridade técnica Qualquer contato interpessoal significativo acarreta ativação de muitos sentimentos que for mam o campo dinâmico da relação Entre os vários fenômenos existentes neste campo a transferência e a contratransferência merecem destaque devido à influência que exercem na conduta tanto do clien te quanto do médico Podemos definir transferência como o conjunto de sentimentos e reações mobiliza dos no cliente não exatamente pela pessoa real do médico mas pelas distorções perceptuais do clien te que determinam a maneira pela qual este vê o médico Estas distorções são derivadas de antigas percepções e padrões estereotipados de reação que o cliente desenvolveu em sua vida no relacionamen to com pessoas significativas Quanto mais intensa a rea ção transferencial maior a distorção perceptual que a pessoa faz No vínculo médicocliente o médico pode ser indevidamente visto como hostil rejeitador censurador crítico ou sedutor muitas vezes sem que sua conduta real justifique a intensidade da reação É como se o cliente colocasse no médico a revivência de seus fantasmas Podemos da mesma forma definir contratrans ferência como o conjunto de sentimentos e reações mobilizados no médico não exatamente pela pessoa real da cliente mas pelas distorções perceptuais do médico que determinam a maneira pela qual este vê o cliente Estas distorções também derivam de percepções e padrões estereotipados que o médico desenvolveu em sua vida no relacionamento com pessoas significativas Um médico muito autoritário e prepotente não consegue tolerar a menor manifestação de insatisfa ção dúvida ou desacordo de suas clientes porque se sente pessoalmente atacado desprestigiado e ofendi do reage a isso sendo duro e hostil com os clientes insubordinados o que com frequência resulta em rupturas do vínculo ou ainda pior na imposição de práticas terapêuticas corretas ou às vezes des necessárias Evidentemente as reações transferenciais e contratransferenciais muito intensas repetidas ou es tereotipadas estão estreitamente vinculadas a carac terísticas problemáticas pessoais ou pontos cegos Psicossomaticaindd 524 Psicossomaticaindd 524 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 525 que todos temos em maior ou menor grau e que se refletem não só no vínculo médicocliente mas em qualquer outro relacionamento significativo Examinamos a transferência e a contratransfe rência isoladamente para demonstrar didaticamen te a importância desses fenômenos no campo clíni co No entanto o que ocorre na realidade é uma complementação sutil de reações transferenciais e contratransferenciais que se traduzem em jogos in terpessoais onde médico e cliente se engancham empacam ou colocam para o outro situações de becosemsaída Parece simples e lógica a forma com que o mé dico deve conduzirse no entanto saber que deve ser assim não significa que assim deva ocorrer Reconhe cer mente e corpo da cliente como uma unidade que age perceber as influências que a cliente recebe e in terar tudo isso consigo mesmo conhecendose como se conhece a pessoa com que se relaciona é tarefa que exige exaustivo treinamento e desenvolvimento adequado da capacidade de percepção e análise O CLIENTE Na prática clínica com frequência o motivo explícito que leva o cliente à consulta nem sempre é o motivo real ou pelo menos o mais importan te Necessário se torna aprender a estar atento para decodificar e no momento oportuno responder aos motivos implícitos Essa capacidade é um fator importante no bom atendimento O motivo explícito é muitas vezes o cartão de apresentação que justifica a consulta mas en cobre ansiedades e preocupações mais importantes Há clientes que chegam à consulta com uma queixa muito vaga e imprecisa é um malestar generaliza do são umas dores Algumas pessoas exprimem através de queixa imprecisa a sensação subjacente de estarem passando por um período existencial difí cil Entramos aqui no complexo terreno de entender o sintoma como linguagem o que expressa o sinto ma Que função exerce na existência dessa pessoa Como a pessoa organiza aspectos de seu modo de ser de atuar e de viver em torno de seus sintomas A possibilidade de entender o sintoma como lingua gem que fala não só de doenças como até da pró pria situação existencial do cliente só existe quando se faz no dizer de Perestrello a medicina da pes soa Quando se perde essa perspectiva há o risco de nos tornarmos um mero pesquisador de sintomas ou pior um caçador de doenças há ocasiões em que o médico acaba organizando uma doença para o cliente e desta forma perde a pessoa de vista Isto pode resultar em uma ação iatropatogênica tanto nos casos em que o raciocínio médico cria doenças inexistentes quanto nas situações em que por mane jo inadequado o cliente passa a estruturar aspectos fundamentais de sua própria identidade em torno de uma suposta doença No adulto maduro o nível racional a logici dade do pensar e a adequação das condutas predomi nam mas os níveis infantis sempre estão subjacentes e muitas vezes interferem ativamente na conduta E no mínimo provocam o fenômeno que agora vamos analisar o duplo registro Uma cliente pode enten der logicamente as razões pelas quais o ginecologista indicou uma cirurgia no entanto sente tanto medo que passa a negar essa realidade fazendo de conta que nada de grave está acontecendo e que não há problema algum em adiar indefinidamente a opera ção Quando esses sentimentos irracionais são mui to intensos transparecem na conduta Por exemplo o cliente trata o médico com frieza ou hostilidade ou abertamente o acusa de mau atendimento O duplo registro pode não somente interferir significativamente na conduta como também provo car inúmeros malentendidos na comunicação uma vez que nunca podemos de fato saber como aquilo que transmitimos será recebido ou registrado pelo outro Mesmo as consultas de saúde a hoje chama da prevenção primária prénatal consultas perió dicas preventivas revisões evocam algum grau de ansiedade ou de apreensão às vezes muito significa tivas A medicina preventiva atual tem bases eviden tes na hipocondria e na paranoia quero ver se está tudo bem ou será que eu estou doente Quando o motivo da consulta apresenta sintomas evidentes e referese à doença ou à suspeita de que algo não anda bem a apreensão a tensão e a ansiedade se intensificam Em quaisquer desses casos em graus variados de intensidade o cliente relacionase com o médico não só em termos de vêlo como pessoa falível e limi tada embora tecnicamente competente mas também o reveste de poderes e atributos mágicos vendoo como fonte de apoio proteção segurança capaz de solucionar seus problemas ou de curálo aqui natu ralmente nos referimos ao fenômeno da idealização Idealização é diferente de confiança de admiração e de respeito que permitem que a cliente perceba o médico como gente com limitações e falibilidade Os problemas surgem quando a idealização chega a ní veis tão altos que a cliente passa a endeusar o médico e achálo o melhor do mundo e intensificase quan do o grau de idealização se engancha com a ilusão de onipotência e o narcisismo do médico que fica tão glorificado a ponto de não conseguir enxergar a dinâmica subjacente a esse fenômeno que enco Psicossomaticaindd 525 Psicossomaticaindd 525 05012010 121225 05012010 121225 526 Mello Filho Burd e cols bre vivências importantes tais como superexigência hostilidade depressão e sobretudo a fragilização do vínculo A idealização intensa quase sempre transforma o relacionamento num balão de gás que pode furar e murchar ao toque de um simples alfinete Basicamen te isso acontece porque se o médico é visto como mágico e onipotente o cliente tem o direito de ser superexigente e de criar altas expectativas Inevita velmente mais cedo ou mais tarde haverá frustra ções decepções ressentimentos ou até mesmo franca hostilidade ATITUDE CLÍNICA E INSTITUIÇÃO Atitude clínica poderia ser definida como a capacidade de ver ouvir captar e sintonizar com o cliente a partir de perspectivas dele Para tal é fun damental que quem o atenda possa perceber que em bora pareça lógico proporcionar ao cliente aquilo que achamos o melhor para si é necessário lembrar que o cliente é outra pessoa com outra educação outros valores não deseja necessariamente a mesma coisa que desejamos para nós A atitude clínica na instituição nos obriga a considerar as condições de vida do cliente o meio em que vive as relações familiares e suas crenças e convicções É a partir desses conhecimentos que nos encontramos realmente com o cliente durante a con sulta A instituição é a síntese da ideologia prevalente que tenta normatizar a relação dos indivíduos com o espaçotempo No passado o médico exercia funções aceitas como liberais e ainda hoje obedece aos có digos de ética presta o juramento hipocrático e tem deveres milenares com os clientes mas para ganhar a vida está inevitavelmente vinculado à instituição E a instituição funciona em concordância com o sis tema socioeconômicopolítico que a determina e não com os códigos da profissão médica A organização das instituições da rede previden ciária considera prioritário dar assistência a grandes setores da população o que leva à massificação da assistência médica O que importa são os números as estatísticas é que impressionam Inegavelmente isso proporciona assistência a um número grande de pessoas mas a organização burocrática deficiente o custo operacional elevado o grande número de clien tes e proporcionalmente o pequeno número de pro fissionais empregados acabam resultando em atendi mento insatisfatório do qual reclamam com razão médico e cliente O médico reclama da instituição porque não dispõe de condições razoáveis de trabalho e porque não recebe remuneração adequada Isso faz com que muitas vezes sobrevenha a sensação de impotência do nada posso fazer não tem jeito mesmo inten sificada pela baixa motivação pelo trabalho Esse es tado de coisa obviamente resulta em paralisação e impede o médico de buscar o que pode e deve fazer mesmo em condições adversas O descontentamento do médico e do cliente com a instituição repercutem inevitavelmente no re lacionamento Se às vezes médico e cliente são alia dos é mais comum o cliente desentenderse com o médico porque o vê como legítimo representante da instituição e o médico reclama do cliente porque o vê como fruto da precária condição de trabalho que lhe é oferecida O médico fica então imprensado pe las exigências da instituição dominado por ela e pela cliente que tem o direito de ser atendida porque é descontada pela previdência A dominação a pressão o achatamento e o rigor hierárquico formam a tônica do funcionamento da instituição Esse clima transparece de modo mais ou menos evidente pode ser atenuado mas está sempre presente O médico é autoritário com o cliente assim como a instituição é autoritária com ele O médico pode dominar oprimir e achatar o cliente da mesma maneira em que é dominado oprimido e achatado pela instituição Os conflitos decorrentes dessa situa ção são resolvidos com prepotência e autoritarismo ou o cliente se submete ou deixa de ser atendido Convém também lembrar que a direção do hos pital é posto de confiança do sistema mas não do corpo clínico salvo raras exceções Tal situação faz com que a direção tenha de prestar contas ao esta blishment secundariamente e dependendo do inte resse e das características pessoais do diretor vem o esforço de entrosar a chefia com o corpo clínico Assim como o corpo clínico não tem direito nem de escolher seu diretor cargo o mais das ve zes político nem de influir significativamente nas orientações médicas e administrativas quase sem pre determinadas por interesses comerciais o clien te tampouco tem direito de escolher o médico que o atenderá e muito menos as condições desse atendi mento Portanto assim como a cliente precisa sub meterse para receber atendimento da instituição também o médico precisa submeterse para manter seu emprego mesmo em condições insatisfatórias Obviamente essa submissão forçada gera ressenti mento resistência comumente expressos pelas ten tativas de sabotar o trabalho atender de má von tade e até agir aumentando desnecessariamente os gastos hospitalares O mau atendimento se agrava com o fenômeno da diluição da responsabilidade em parte derivado de necessidades técnicas encaminhar o cliente para setores especializados e em parte derivado do pro Psicossomaticaindd 526 Psicossomaticaindd 526 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 527 blema da comunicação deficiente e de falta de inte gração entre os diversos setores O problema do mau atendimento conta ainda com outro fator agravante uma espécie de filoso fia implícita no atendimento ambulatorial que pres siona o médico no sentido de fazer apenas o mínimo indispensável nas consultas Em suma o código vi gente diz que só permite o atendimento impessoal e padronizado onde as fichas burocráticas e os núme ros têm precedência sobre as pessoas Isso faz com que o médico atenda em primeiro lugar a instituição depois a equipe de trabalho e por último o cliente A iatropatogenia do atendimento na instituição prendese a outros fatores tais como pouco tempo de consulta e sistema de rodízios e plantões onde nada garante que ao voltar o cliente será atendido pelo mesmo médico No atendimento fragmentado fica difícil ver o cliente como um todo o que impos sibilita o cuidado adequado da principal etiologia das doenças que levam os clientes aos ambulatórios os fatores emocionais componentes primários ou se cundários de toda e qualquer patologia O raciocínio diagnóstico conduzse em geral como se o fator emocional e o fator orgânico fossem duas entidades distintas e mutuamente exclusivas Digase de passagem que até mesmo o termo psicos somático por ser uma palavra composta sugere mais a superposição do que propriamente a indissociá vel interação dos dois aspectos O problema do mau atendimento na instituição é complexo O uso adequado e consistente das formas terapêuticas de comunicação que versaremos adian te nem de longe resolve as dificuldades mas é sem dúvida capaz de atenuar algumas delas Por exem plo colocar o cliente a par dos problemas de atendi mento que o médico enfrenta em consequência das normas e das características da instituição restrição de exames laboratoriais uso obrigatório de determi nados medicamentos disponíveis número de pessoas a serem atendidas e assim por diante sempre deco dificando as dificuldades Isso não significa necessa riamente lançar o cliente contra a instituição mas sobretudo formar com ele uma aliança de trabalho para que se procure oferecer o melhor atendimento possível dentro das condições precárias impostas pelo sistema Se esta é a situação habitual de nossas institui ções isso não quer dizer que elas têm necessariamen te que atuar dificultando a atitude clínica Instituições podem ser facilitadoras de atendimento adequado e para tal tornase necessário reverter o processo de dominação submissão que domina o relacionamen to entre médicocliente e instituição Nos dias atuais está estabelecida uma institui ção tão ou mais impositiva de normas que interferem drástica e perigosamente na relação entre médico e clientes O seguro saúde os seguradores impõem médicos limitam atendimentos impedem exames e paga inadequadamente aos profissionais Os seguros saúde funcionam como intermediários no pagamento de honorários médicos impondo valores para consul tas e para procedimentos algo curiosamente aceito pelos conselhos de medicina apesar do preceito ético de que não deve haver intermediários na cobrança de honorários aos clientes A maior parte dos entraves acima discutidos quanto aos serviços previdenciários se aplica perfeitamente à dominação que os segura dores exercem sobre médicos e clientes e a resultante dinâmica perversa da relação entre eles AS FORMAS TÍPICAS As formas típicas de comunicação utilizadas nos relacionamentos interpessoais são frequentemen te defensivas e capazes de produzir dúvidas e impasses emocionais Diz Bird Num único momento o diálogo cotidiano precisa informar e desorientar esclarecer e tornar obscuro revelar e esconder A conversa franca não passa de um mito Nos negócios na vida política e profissional e mesmo nas relações pessoais a sobre vivência e a convivência dependem da capacidade de expormos ambiguidade confusão e dissimulação de oferecer uma mistura de fatos e fantasias de permitir uma deturpação inconsciente mas decisiva da verda de Esse modo de falar autodefensivo no qual somos todos hábeis é aprendido antes de aprender o alfabe to Normal e necessário ele nos capacita para viver numa sociedade complexa A relação vertical entre médicos e clientes está neste contexto Didaticamente há uma enumeração do que é chamado de formas típicas de comunicação Or dens e ameaças Ignorar problemas Lições de moral Contradições Sugestões e conselhos Crítica Persua são Elogios Negar percepções Interrogar Consolar Dar falso apoio Impessoalidade no diálogo As formas típicas falham agravando impasses quando estão presentes mesmo que contidas emo ções fortes como medo dúvida desconfiança raiva desprezo insegurança É possível usar formas de relacionamento nas quais o terapeuta desenvolve a necessária empatia para a obtenção de uma real cola boração na tarefa esperada quando médico e equipe médica agem em busca da cura ou do equilíbrio emo cional em especial quando a pessoa está ameaçada pelas doenças e relacionase verticalmente com um profissional de saúde que detêm um saber ao qual o cliente tem que se submeter A empatia pode ser definida como a capacida de de se colocar emocionalmente no lugar do outro Psicossomaticaindd 527 Psicossomaticaindd 527 05012010 121225 05012010 121225 528 Mello Filho Burd e cols Sempre que utilizamos as formas típicas de comu nicação ou não há empatia ou ela surge como fa chada para disfarçar o uso da imposição na conduta terapêutica Voltaremos ao assunto adiante As descrições que se seguem são de forma re ducionista o que ocorre de positivo e negativo ainda com frequência em um universo em que a comunica ção entre pessoas evoluem vertiginosamente diante das mudanças produzidas pela tecnologia dos encon tros Celulares emails conferências on line e a inter net com a possibilidade da quase instantaniedade e universalidade do comunicarse ORDENS E AMEAÇAS Quando está estruturado em nível adultoadul to onde a tônica é a colaboração e a corresponsabi lidade o médico consegue fazer prescrições expor fatos e orientar o tratamento sem percalços O re lacionamento se faz adequado não apenas no nível da comunicação verbal como também no nível não verbal há coerência entre as palavras o tom de voz a expressão facial e a qualidade do olhar Por outro lado quando o relacionamento se estrutura com uma forte ascendência do médico como na relação adul tocriança as consequências são bastante diferentes o médico pode ser visto como um pai crítico con trolador e autoritário As coisas dão certo quando o cliente comportase como criança dócil obedien te e submissa no entanto muitas vezes o cliente se conduz como criança rebelde desafiadora que tenta trapacear e ludibriar o médico Alguns médicos argumentam que com deter minados clientes ou certas circunstâncias ordens e ameaças dão certo Ordens incisivas ameaças de danos funcionam às vezes produzem os efeitos que se deseja e podemos dizer que em determina das circunstâncias o médico precisa receitar um remédio que funciona para eliminar sintomas ou curar uma doença no entanto provoca inúmeros efeitos colaterais indesejáveis ou até mesmo noci vos É sempre possível obter comportamentos ade quados e prescrever medicação com equivalente efi cácia porém com a vantagem de provocar menores efeitos colaterais Da mesma forma em termos de comunicação ordens e ameaças podem ser com frequência evita das ou substituídas por outras formas de comunica ção não iatropatogênicas A atitude autoritária mesmo com o uso de pa lavras educadas e voz suave se revela por pistas não verbais das mensagens que enviamos e isso têm um impacto importante Veicular uma atitude autoritária controladora e rígida não verbalmente embora utili zando palavras em nível adulto tem consequências erísticas há uma reação de disputa Autoritarismo é atitude captada e registrada pelo cliente que reage e pode não dar a devida im portância ao que o médico diz ou prescreve LIÇÕES DE MORAL As lições de moral consistem em fazer julga mentos ou juízos de valor a respeito de condutas do cliente que se chocam com nossos valores ou modo de pensar Quase sempre essa mensagem traz implícita crítica desaprovação ou ironia estruturandose um vínculo do tipo papai censuradorfilho repreendido É evidente que as pessoas com maior tendên cia a utilizar esta forma de comunicação são as que acham que seu modo de pensar e de atuar é o úni co correto vem daí a necessidade de criticar ou de tentar converter os desviantes Quando podemos legitimamente olhar a vida e as pessoas a partir de uma perspectiva mais ampla o certo e o errado o bom e o mau passam a ser conceitos elásticos fica mais fácil aceitar e conviver com pessoas que são e que pensam diferente de nós Essa forma de comunicação é particularmente iatropatogênica quando utilizada com pessoas em momentos de maior vulnerabilidade emocional ou de estruturação de novos aspectos de sua definição pessoal como acontece nos períodos de transição existencial SUGESTÕES E CONSELHOS Sugestões e conselhos costumam ser inoperan tes não levam em conta o contexto mais amplo onde se insere a situação e tampouco consideram a existência de núcleos emocionais ou de condições de vida que impedem a pessoa de colocar em prática a sugestão Quase sempre a pessoa sabe sobre o que precisa fazer mas simplesmente não consegue por causa de emoções intensas tais como medo tensão ou ansiedade A atitude de oferecer e examinar junto com a cliente alternativas ideias informações é diferente da atitude implícita nas sugestões e nos conselhos Quando nos sentimos muito tentados a sugerir e a aconselhar frequentemente estamos assumindo uma carga indevida de responsabilidade já quando o mé dico está trabalhando em nível de corresponsabilida de com o cliente não só se esforça por entender o que se passa com ele como também assume a postu ra de colaborar e não assumindo uma posição de so lucionador é o cliente que decidirá se a alternativa Psicossomaticaindd 528 Psicossomaticaindd 528 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 529 ideia ou esclarecimento oferecido fazem sentido para ele e se podem ser colocados em prática Implícito em tudo isso está a atitude de respeitar a individualidade do cliente Vale também ressaltar que quando damos sugestões ou conselhos em geral respondemos ao cliente a partir de nossa ótica sem entender o ponto de vista da pessoa PERSUASÃO O uso de argumentos lógicos e racionais com o objetivo de convencer a pessoa a concordar com o que indicamos para ela é uma mensagem amplamen te utilizada em todos os tipos de relacionamento in terpessoal além de ser a mola mestra da propaganda na tentativa de ativar os mecanismos motivacionais que influem na conduta Costuma ser altamente efi caz no sentido de favorecer modificações de conduta e de influenciar no processo decisório No entanto a persuasão só é eficaz quando a pessoa pode no mo mento funcionar em nível lógicoracional Há circunstâncias em que o processo de pensa mento lógico se encontra inibido pela ação de fortes emoções bloqueadoras tais como medo preocupa ção culpa São situações de manejo particularmente difícil mesmo quando se faz a atuação combinada nos níveis racionais e emocionais Persuadir falha quando da existência de conflito em nível emocio nal entre a necessidade de modificar uma conduta e a relutância de fazêlo porque persistir na conduta traz gratificações muito relevantes O aspecto grati ficante predomina e por vezes somente consequên cias graves reais podem anular essa predominância provocando a modificação da conduta NEGAR PERCEPÇÕES Há modos diversos de negar percepções o mé dico que nega a percepção do cliente o cliente que nega a percepção do médico e o cliente ou o médico que nega sua própria percepção Negar a percepção do cliente surge especialmen te em situações emocionalmente difíceis para o médi co como por exemplo quando o cliente dá a enten der que sabe estar com uma doença grave negar a percepção do cliente destinase na verdade a aliviar a ansiedade do médico Há casos em que o cliente percebe claramente a situação de gravidade em que se encontra mas vê suas percepções enfaticamente negadas pelo médico e pelos familiares e sofre com isso porque se vê sozinho sem ninguém para ouvilo e entendêlo Elizabeth Ross em sua extensa experi ência de atendimento a pessoas próximas da morte relata que apenas 2 desses pacientes recusaramse a conversar abertamente sobre sua situação Uma das formas mais desastrosas e mais fre quentes de negar a percepção acontece nas compli cações pósoperatórias É a não percepção de um quadro clínico típico ligado a complicações que en volve claramente um erro médico Quem opera corre evidentemente riscos no entanto a ilusão de oni potência pode provocar a negação da percepção de um quadro típico de hemorragia intraperitoneal O médico fica bloqueado pois se vê na iminência de ser obrigado a admitir sua própria falha Esse despreparo do médico leva frequentemente a situações graves e até mesmo irreparáveis CONSOLAR E OFERECER FALSO APOIO Há momentos do vínculo médicocliente que mobilizam muita emoção ansiedade tristeza e so frimento Comumente recorremos ao falso apoio quando temos medo de nos emocionarmos demais Tencionamos aliviar o sofrimento do outro mas no fundo buscamos aliviar a nossa própria ansiedade uma vez que sutilmente induzimos ao fechamento e ao bloqueio da liberdade de expressão cortando a disponibilidade da pessoa desabafar ser ouvida e entendida Nas entrelinhas o que o falso apoio co munica é por favor pare de se sentir tão mal porque isso não me deixa à vontade Às vezes o consolar baseiase numa noção errônea de que se abafarmos a expressão dos sentimentos eles desaparecerão como por encanto Ao contrário quando se cria o espaço de disponibilidade que permite à pessoa mergulhar na vivência de dor e de perda estamos efetivamente ajudandoa a digerir a situação de dificuldade que facilitará num segundo momento olhar para outro lado e se voltar para novas facetas do real e da vida É interessante observar que na medida em que evitamos oferecer falso apoio a própria pessoa chega à conclusão de que a situação em que se encontra é difícil porém tem saída O verdadeiro apoio portan to consiste em estar disponível e encarar abertamen te com a pessoa sua situação sem negar percepções minimizando o problema Muitas vezes temos consciência da ineficácia do falso apoio mas o utilizamos para bloquear a expres são da pessoa a fim de nos livrarmos dela quando não estamos dispostos a ouvila Este é um motivo co mum no atendimento apressado da consulta na ins tituição principalmente porque as queixas do cliente que frequenta esses ambulatórios estão ligadas em sua base a uma situação socioeconômica diante da qual o médico nada pode fazer Psicossomaticaindd 529 Psicossomaticaindd 529 05012010 121225 05012010 121225 530 Mello Filho Burd e cols IGNORAR O PROBLEMA DO PACIENTE O fugir e o evitar o problema do cliente pode ligarse à dificuldade de delimitar nossas possibilida des de atuação e nosso medo de dizer não sei ou não me sinto capaz de ajudálo o que abala muito a ilusão de onipotência ao invés de ouvir atentamente o que o cliente tem a dizer e começar a trabalhar o processo terapêutico mesmo quando for necessário um encaminhamento Muitas vezes ignoramos problemas quando dis pomos de pouco tempo ou não estamos com vontade de atender o cliente Frequentemente isso conduz a respostas de tapeação ou de tapar o sol com a pe neira esse problema de não sentir prazer passa com o tempo não se preocupe que obviamente em nada ajudam Nessa situação o cliente sentese cortado e sem liberdade de expressar o que lhe é mais relevante surge então bloqueios e fechamento no vínculo Ignorar o problema em outro aspecto envolve o mesmo tipo de dificuldades que motivam o uso do falso apoio e do negar percepções a nossa necessida de de evitar nossa ansiedade tristeza ou sofrimento Por isso tantas vezes damos um diagnóstico de doen ça grave comunicamos um fato doloroso ou indica mos um tratamento desagradável de maneira brusca e seca para em seguida cortarmos o contato Talvez seja desnecessário frisar que esta forma de comunicação inadequada é uma das mais usadas nos hospitais e nos ambulatórios das instituições o que chega a ser cruel MENSAGENS CONTRADITÓRIAS As mensagens contraditórias provocam graus elevados de confusão dificuldade de discriminação dúvida e ansiedade Uma mensagem contraditória definese em linhas gerais pela presença simultânea de informações discrepantes A contradição pode ser entre o aspecto verbal e o não verbal da mensagem como a expressão facial discordante das palavras cara de irritado e palavras falsamente gentis Na instituição a diluição da responsabilidade a falta de entrosamento entre os médicos que prestam assistência e a falta de uma eficiente coordenação que integre o trabalho da equipe aumentam enorme mente a incidência de mensagens contraditórias o que deixa o cliente dividido confuso sem saber em que e em quem acreditar O doente crônico com doença fatal ou em esta do terminal está quase permanentemente exposto a mensagens contraditórias não só do médico que não quer lidar com emoções dolorosas como também por parte das pessoas que o cercam CRITICAR E RIDICULARIZAR A crítica estimula ressentimento e fechamento do vínculo por atingir a autoestima e a autoimagem da pessoa especialmente quando ela atravessa fases de transição e se encontra emocionalmente mais vul nerável Às vezes criticamos ou ridicularizamos na espe rança de fazer com que o cliente se encha de brios e modifique sua conduta Sem dúvida essas mensa gens por vezes funcionam tal como medidas drásti cas último recurso para tentar alterar uma conduta inadequada mas como vimos ao falar sobre ordens e ameaças o criticar apresenta vários efeitos colaterais indesejáveis mesmo quando resulta em modificação de conduta O resultado mais típico é o aumento de ressentimento e a interferência negativa na autoima gem o que não raro resulta em persistência da con duta inadequada por resistência ou por mobilização dos núcleos infantis A crítica pode conter a hostilidade ou o despre zo que sentimos pelo cliente por algum motivo Po demos perceber esse componente da mensagem de crítica quando vivenciamos a situação na pele ou seja quando o cliente nos critica ou nos ridiculariza às vezes sob o disfarce da ironia ou da brincadeira No âmbito hospitalar são comuns as críticas to talmente desarrazoadas feitas pelo médico que igno ra as condições do cliente a quem atende ELOGIOS Elogiar falsamente esconde a intenção subja cente de manipulação com a finalidade de conseguir que o cliente faça o que queremos O elogio cria uma expectativa aprisionante que nem sempre é possível cumprir Isso é especialmente verdadeiro nas situa ções de intensa mobilização emocional que resulta em bloqueio da conduta adequada Por vezes o elogio é dito com tom de crítica ou depreciação sendo portanto registrado como tal O cliente diz ao médico que está com medo de algum procedimento o médico responde mas você que é uma pessoa tão culta e inteligente com medo de uma simples biópsia Claramente o elogio neste caso veicula uma mensagem de censura e de reprovação O elogio como manipulação cobrança e exigên cia pode ser mais agudamente percebido pelo médico quando é o cliente que lhe envia este tipo de mensa gem me aconselharam a mudar de médico mas eu só confio mesmo no senhor O elogio costuma ser ineficaz também nas situa ções em que o cliente se desvaloriza ou se deprecia Isso ocorre com frequência no tocante à apreciação Psicossomaticaindd 530 Psicossomaticaindd 530 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 531 da própria estética em períodos mais vulneráveis tais como climatério e gravidez em ambos o ide al estético cultural mulher jovem esbelta silhueta delgada não está sendo alcançado Para muitas mu lheres a realidade do corpo que envelhece ou do cor po grávido traz sensações de baixa autoestima de preciação e desvalorização Quando o médico tenta consolála com um elogio este pode ser registrado como está dizendo isso para ser amável ou para me consolar ou é falsidade O elogio pertinente é fortemente reassegurador Quase sempre no correcorre do ambulatório não sobra tempo para elogios merecidos O médico nem sequer se lembra dele Se por um lado evitase os males do elogio mal colocado ou mal intencionado por outro lado perdese também a oportunidade de uma autoexpressão que sem dúvida será muito im portante para pacientes já tão maltratados e pouco gratificados por suas condições socioeconômicas FAZER PERGUNTAS Fazer perguntas é um meio bastante eficaz tan to para bloquear quanto para abrir canais de comu nicação A disparidade de efeitos está estreitamente vinculada à atitude com que se fazem as perguntas No modelo clássico de anamnese predomina a bus ca de sinais sintomas e doenças a história clínica não comporta a história da pessoa Muitas vezes o médico encara as informações que não se encaixam no seu esquema de pesquisa como dados supérfluos irrelevantes que constituem pura perda de tempo A anamnese neste contexto é totalmente dirigida pelo médico e consiste numa série de perguntas objetivas o que se obtém são respostas igualmente objetivas e lacônicas A resultante é uma anamnese puramente técnica onde não se capta uma imagem significativa da pessoa e tampouco se consegue vislumbrar a situa ção existencial que tantas vezes permite compreender o que se passa de emocional em nível diagnóstico No atendimento ambulatorial o pouco tempo de consulta obriga o médico a dirigir a anamnese É uma forma de se obter o maior número de dados no menor tempo possível Algumas vezes parece ser mais eficiente aproveitar o tempo para pesquisar uma determinada área mesmo em detrimento de outras e se necessário marcar nova consulta Quando o enfoque passa da busca de doenças ou de sintomas para a busca da pessoa haverá certamente uma mu dança na condução da anamnese Basicamente essa mudança resulta em maior habilidade de ver e de ou vir a pessoa e em maior capacidade de integrar os dados fornecidos espontaneamente na explicitação da queixa do motivo da consulta ou na descrição da sintomatologia com a necessidade de fazer pergun tas específicas relacionadas com as áreas em que é preciso pesquisar com maior minúcia Perguntar pode ajudar a detectar pontos obscu ros é guia eficaz para delinear onde é preciso atuar e para reduzir resistências emocionais mais evidentes ou para esclarecer e corrigir eventuais distorções de informação Fazer perguntas é útil também para acompa nhar a pessoa no sentido de ajudála num processo decisório basicamente o perguntar neste contexto consiste em ajudar a pessoa a pesar prós e contras a questionar uma decisão impulsiva ou impensada e a examinar outras alternativas que não vislumbrasse até então Por fim é importante mencionar que fazer perguntas com atitude clínica é uma maneira de de monstrar interesse pela situação da pessoa que esta mos atendendo ATENDER DE MODO IMPESSOAL E TÉCNICO A atitude fria impessoal e puramente técnica no atendimento é obviamente contrária à atitude clínica não nos permitimos por razões várias entrar em con tato com a pessoa do cliente mas o encaramos como um objeto e nos conduzimos tal como as máquinas os instrumentos e os aparelhos que utilizamos Nes se modo de atender evidentemente o potencial de ação psicoterapêutica do médico fica extremamente limitado Não devemos ser como as máquinas é óbvio no entanto é preciso não esquecer que as máquinas são muitas vezes necessárias ao diagnóstico Fundamen tal não nos deixarmos substituir por elas mas sim integrálas num atendimento humano Atender de modo impessoal acarreta bloqueio ou fechamento dos canais de comunicação Na medi da em que não se cria o espaço de disponibilidade a cliente sentese constrangido pouco à vontade e sem liberdade de expressar o que de mais significativo se passa com ele Isso empobrece a qualidade da assis tência vista em termos globais no máximo conse guese ser um técnico competente mas não um bom profissional Esta é a situação rotineira nos ambulató rios Não devemos esquecer que o pouco tempo pode dificultar mas não impedir o bom atendimento A formação do médico na universidade em parte contribui para a cristalização dessa atitude no atendi mento ênfase excessiva é dada ao estudo dos quadros patológicos à terapêutica às técnicas de exame e ao manejo de aparelhos sofisticados a especialização a nível de pósgraduação preocupase em aprofundar o conhecimento numa área específica do saber Psicossomaticaindd 531 Psicossomaticaindd 531 05012010 121225 05012010 121225 532 Mello Filho Burd e cols A formação deformação profissional do médi co não é o único fator responsável pela atitude im pessoal e iatropatogênica do atendimento O médico se vê com alguma frequência diante de pessoas em situações existenciais muito difíceis e dolorosas lida com clientes em estado terminal assiste pessoas que morrem Em todas essas situações o impacto emocio nal do médico é intenso Alguns de nós por medo de emoções dolorosas acabamos criando uma carapaça defensiva que embota a sensibilidade e anestesia o sentir Este é o outro motivo que resulta em atendi mento frio e impessoal Quando anestesiamos ou em botamos nossa sensibilidade e atendemos de modo frio impessoal e puramente técnico uma parte im portante do nosso ser gente está esquecida Afinal vivenciar momentos de ansiedade e de sofrimentos faz parte do preço a pagar quando se escolhe entrar na vida ao invés de simplesmente passar por ela AS FORMAS TERAPÊUTICAS As formas terapêuticas possibilitam ao médico ampliar seu potencial de ação como agente de saúde na medida em que abre os canais de comunicação aprofundando o diálogo de pessoa a pessoa Não são meramente maneiras diferentes de usar palavras ou instrumentos eficazes para manipular pacientes Sua utilização adequada depende fundamentalmente do respeito por nós mesmos e pela pessoa que atende mos da capacidade de sintonizar e da preocupação de prestar assistência à pessoa como um todo visto em sua situação existencial A base da comunicação adequada é a empatia O termo vem do grego empatheia e pathos paixão afeição sensação sofrimento afecção doença pas sivo a mesma raiz etimológica de simpatia antipa tia patologia A empatia permite nos colocarmos na posição do outro sentir o que se sentiria caso estivés semos na situação ou circunstâncias experimentadas por outra pessoa e assim sintonizar e cooperar com a pessoa doente independente da verticalidade téc nica do relacionamento É fundamental ao terapeuta diante do cliente entender seu sentir suas emoções diante da doença e da vida Tratase portanto de uma aprendizagem bastante profunda E aprender significa de algum modo transformarse aprender a olhar a partir de outras perspectivas ter coragem para renovarse e recriarse Tentando uma classificação simplista as princi pais formas terapêuticas são reflexão de sentimen tos focalizar em pistas não verbais autoexpressão colocar limites produzir o confronto resolução con junta de impasses orientação antecipatória e reasse guramento REFLEXÃO DE SENTIMENTOS A reflexão de sentimentos é a forma básica o principal vínculo de transmissão da atitude clínica depende da capacidade do terapeuta sintonizar com o cliente entendêlo e responder a ele de acordo com sua óptica e não apenas de acordo com a dele É preciso distinguir dois níveis na comunica ção do cliente o nível da mensagem manifesta a fachada o que é dito pelas palavras e o nível da mensagem latente o que está nas entrelinhas os sentimentos subjacentes às palavras frequentemen te expressos através de pistas não verbais Às vezes somos capazes de captar e entender o nível latente mas raramente respondemos diretamente a ele na imensa maioria das situações respondemos apenas ao nível manifesto da mensagem que o cliente nos envia tal como ocorre nas formas típicas A reflexão do sentimento consiste em entrar em sintonia com o cliente e responder explicitamente ao nível latente da mensagem que ele nos envia Em outras palavras consiste em dizer explicitamente ao cliente o que captamos dos seus sentimentos subja centes àquilo que nos comunica Quando há um núcleo emocional intensamente ativado medo tristeza irritação etc é inoperante referirse somente ao nível manifesto da mensagem tornase imprescindível responder ao nível latente decodificálo e explicitálo para que os sentimen tos subjacentes possam ser manejados tratase pri meiro de cuidar do terreno emocional para depois plantar a argumentação racional O mecanismo básico da reflexão de sentimentos consiste em traduzir decodificar e explicitar os níveis latentes da mensagem do outro É importante e imprescindível manter a postura de aprendizagem de si e do outro Um dos requisitos necessários ao uso da reflexão de sentimentos é a pos sibilidade de ouvir e pesquisar o que a pessoa sente sem criticála ou menosprezála por ser emocional é que os sentimentos assustam tanto os nossos como os dos nossos clientes Nossa educação tende a provocar uma verda deira fobia do sentir os sentimentos são divididos em bons alegria carinho satisfação e maus raiva desprezo irritação ciúme inveja para algumas pes soas a expressão e até mesmo a própria percepção dos maus sentimentos fica proibida para outras é mais fácil expressar irritação e raiva enquanto que ternura e carinho ficam abafados De qualquer for ma quanto maior a dificuldade de lidar com nossos sentimentos maior a dificuldade de lidar com os sentimentos dos outros No vínculo médicocliente a tendência será evitar falar e impedir que o clien te fale sobre o que sente o médico adota a postura Psicossomaticaindd 532 Psicossomaticaindd 532 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 533 fria impessoal e distante do atendimento técnico sem criar o espaço de disponibilidade ou então tentar abrir a possibilidade de diálogo para logo em seguida fechála com mensagens de crítica ameaça ou falso apoio É evidente que nessas situações o uso da reflexão de sentimentos tornase impossível É claro que há momentos em que em resposta à reflexão de sentimentos a pessoa se abre chora a ponto de soluçar ou se expressa de modo mais com pleto Isso não quer dizer que a pessoa piorou mas que simplesmente encontrou um espaço onde se sen te com liberdade e confiança para desabafar Comu mente o efeito é de alívio dos sentimentos dolorosos ou difíceis após serem livremente expressos compre endidos e respeitados Em síntese podemos dizer que o uso adequa do e sistemático da reflexão de sentimentos tem os seguintes efeitos gerais a pessoa sentese compreen dida e respeitada frequentemente aliviada de senti mentos dolorosos ou difíceis à medida que encontra maior espaço de disponibilidade e solidifica o vínculo de confiança e possibilita maior liberdade de expres são a reflexão de sentimentos também facilita a au topercepção do cliente pois ao decodificar as mensa gens latentes clareia áreas anteriormente obscuras dessa forma atinge e facilita a elaboração de núcleos emocionais responsáveis por inúmeras condutas de bloqueio ou de resistência e pode ajudar a pessoa a digerir situações difíceis porém inevitáveis FOCALIZAÇÃO EM PISTAS NÃO VERBAIS Quando estamos em contato com alguém co municamonos não só com as palavras mas também com inúmeras pistas não verbais tais como tom tim bre modulação da voz expressão facial postura cor pórea gestos maneira de colocar as mãos modo de andar sentar vestirse qualidade do olhar e do sor riso e assim por diante É importante ressaltar que exercemos maior controle sobre os elementos verbais da comunicação podemos pensar de antemão no que vamos dizer ou escolher as palavras com cuida do mas por outro lado conseguimos exercer pouco ou nenhum controle sobre os elementos não verbais Involuntariamente podemos enrubescer quando al guém aborda um assunto que nos constrange não conseguimos controlar o tremor da voz ou das mãos quando ficamos muito ansiosos dificilmente conse guimos evitar olhar o relógio ou tamborilar os dedos quando estamos com pressa Em suma o conjunto de pistas não verbais transmite uma impressão por vezes bastante nítida de como está a pessoa Prestar atenção às pistas não verbais especial mente quando estão em discrepância com o que é dito pelas palavras constitui um valioso instrumen to para entender e captar o que verdadeiramente se passa com o cliente da mesma forma utilizar essa percepção constitui importante recurso de atuação É preciso sobretudo não esquecer que o cliente é tam bém capaz de perceber pistas não verbais na comu nicação do médico é uma ilusão pensar não deixei que ele percebesse minha preocupação O treinamento da sensibilidade para melhor perceber as pistas não verbais pode ser feito no coti diano Quando observamos atentamente o comporta mento não verbal das pessoas pelas quais passamos ou com as quais interagimos em várias situações um universo de descobertas se abre diante de nós Existem várias estratégias ou maneiras de lidar com as pistas não verbais que percebemos na cliente a saber 1 Simplesmente perceber registrar e arquivar Nem sempre é desejável explicitar o que cap tamos Como vimos ao falar sobre reflexão de sentimentos é preciso escolher com cuidado o momento adequado para explicitar algo que cap tamos o momento em que o cliente está pronto para ouvir e assimilar o que dizemos Por isso muitas vezes é necessário arquivar a percepção de pistas não verbais até surgir a hora propícia de explicitar 2 Perceber não explicitar e modificar a própria con duta Há ocasiões em que o que percebemos das entrelinhas obriganos a introduzir modificações em nossa conduta para tentar alterar determina dos aspectos do vínculo 3 Perceber e apontar para o cliente Em muitas situa ções é útil apontar explicitamente para o cliente uma pista não verbal mais evidente para que se trabalhe algum aspecto relevante Perceber e apontar a pista não verbal é um pro cedimento bastante útil principalmente quando há discrepância entre a palavra e o expresso não verbalmente Nestes casos a atuação assume a forma de confronto ressaltase o contraste para que o próprio cliente ligue os fios e perceba com maior clareza o que se passa com ele 4 Perceber apontar e decodificar o significado Nes ta possibilidade de atuação o procedimento é idêntico ao da reflexão de sentimentos podese considerar a palavra como mensagem manifesta e a pista não verbal como mensagem latente a ser decodificada e explicitada Essa atuação tal como ocorre com a reflexão de sentimentos é útil quan do temos necessidade de atuar nos sentimentos e pressupõe como vimos ao falar sobre a reflexão de sentimentos a atitude de estar disponível para a pessoa sem fugir dos sentimentos Novamen Psicossomaticaindd 533 Psicossomaticaindd 533 05012010 121225 05012010 121225 534 Mello Filho Burd e cols te o medo de sentir pode impedir ou restringir o diálogo Por exemplo o choro do cliente é uma das pistas não verbais mais expressivas e mobili zastes Para muitos de nós não é nada fácil ficar diante de uma pessoa que está chorando apressa damente podemos tentar acalmála darlhe um sedativo fazer alguma coisa para que a pessoa pare de chorar o mais depressa possível porque não conseguimos suportar nossa própria angús tia Na maioria das vezes o choro do cliente pede uma atitude de disponibilidade de silêncio res peitoso e de espera para que possa emergir o que há de mais significativo Ao ficar atento para a linguagem do choro conseguimos melhor enten der decodificar e ajudar AUTOEXPRESSÃO A autoexpressão pode ser definida em termos simples como reflexão de nossos sentimentos Essa definição mostra claramente que autoexpressão e reflexão de sentimentos são na realidade as duas faces da moeda O uso combinado dessas formas de comunicação abre significativamente o campo do re lacionamento Em alguns momentos do vínculo com o cliente criamse situações de impasse discrepância entre a expectativa do cliente e a atuação do médico ou en tre a expectativa do médico e a atuação do cliente resistência e recusa do cliente em aceitar prescrições terapêuticas clima de tensão irritação ou hostilida de em que ambos sentem algo estranho pairando no ar condutas inadequadas do cliente que incomodam o médico atrasos persistentes faltas às consultas sem justificativa ou o fazem atender de má vontade Com frequência quando não se abre o jogo para discutir a dificuldade a situação de impasse tornase crônica e insustentável devido ao acúmulo de irritação e res sentimento capazes de provocar ruptura do vínculo A autoexpressão que consiste em explicitar nossos sentimentos pode ser uma via de acesso útil na re solução de impasses Em geral é empregada após a reflexão de sentimentos quando esta não é suficiente para favorecer modificações de conduta do cliente Convém deixar claro que autoexpressão não é sinônimo de dar bronca nem de fazer grosseria Podemos ser delicados e firmes colocando educada mente nosso ponto de vista ou expressando nossas necessidades Todos nós temos valores e pontos de vistas pessoais Devemos ser suficientemente flexíveis para entender que outras pessoas pensem e atuem de modo diferente mas há determinados valores tão importantes para nós que apesar de entender que o outro seja diferente não podemos modificar nosso proceder habitual para atender o pedido da pessoa caso contrário violentamonos A autoexpressão como qualquer outra forma te rapêutica de comunicação corre riscos de utilização inadequada uma delas é usála como disfarce para críticas ou julgamentos Por exemplo eu acho que a senhora está sendo inconsequente e irresponsável O eu acho não garante a autoexpressão a qualidade da mensagem depende muito do tom subjacente No exemplo o tom é claramente de crítica e julgamento Em termos de comunicação o lobo disfarçado em pele de cordeiro é facilmente descoberto A autoexpressão não deve ser utilizada para de sabafar com o cliente em tom de confidência ou de conversa de comadre Ela facilita o aprofundamen to da comunicação em nível de pessoa a pessoa mas é importante ter em mente que estamos atendendo o cliente que a consulta é para ele e não para nós Por isso o critério básico de utilização da autoexpressão é ajudar a resolver pontos de impasse do vínculo ou aju dar o cliente a esclarecer aspectos de seus jogos in terpessoais e não para fazer com que o cliente resolva ou sequer compartilhe problemas pessoais do médico Outro risco referese ao registro que o cliente faz da autoexpressão do médico Em geral quando predomina o nível adultoadulto no relacionamento a autoexpressão é bem proveitosa facilitando o tra balho em corresponsabilidade mas quando predomi na o nível infantil no cliente ela pode ser distorcida mente registrada como bronca ou ser sentida como triunfo do cliente por ter atingido o ponto fraco do médico A autoexpressão pode levar ao corte do vínculo o que não deve ser temido pois ele ocorre quando a tarefa clínica tornase impossível LIMITES Colocar limites implica essencialmente em ex plicitar as características e a estruturação de situa ções de atendimento e delimitar áreas de atuação em termos do que pode e do que não pode ser feito Clareza concisão e firmeza são facetas bási cas dos limites Evitamos a omissão de informações importantes e sobretudo a ambiguidade na estru turação do atendimento Inúmeros problemas do relacionamento devemse à ambiguidade com que são colocadas as condições de trabalho do médico Explicitar claramente o que podemos e o que não po demos fazer é fundamental para que o cliente saiba exatamente com o que pode contar Em primeiro lu gar tratase de evitar malentendidos e não alimentar expectativas falsas ou irreais que inevitavelmente acarretam frustração decepção e ressentimento Psicossomaticaindd 534 Psicossomaticaindd 534 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 535 Há muitas situações em que o cliente deseja transferir toda a responsabilidade de solucionar pro blemas para o médico o que o senhor acha o que o senhor sugere Mas não há solução mágica não temos condições de opinar sobre a melhor decisão O que podemos fazer é ajudar a pensar e a pesar os prós e os contras das diferentes alternativas Delimitar o campo de atuação tem a ver tam bém com a determinação de nossos limites pessoais ou seja respeitar nossas dificuldades Tratase de res peitar os limites pessoais para determinar o que se pode e o que não se pode fazer Evidentemente isso implica aceitar que não é possível fazer tudo nem resolver todas as situações Na maioria das modalidades de psicoterapia o contrato de trabalho é explicitado para delimitar o contexto de atuação com clareza evitandose ambi guidades Essa explicitação não é feita apenas para proteger os interesses do profissional mas sobretu do por uma questão de respeito à cliente e de prote ção ao relacionamento Isso aumenta a segurança por meio da demarcação do terreno do trabalho Obviamente o terreno da consulta médica é di ferente as consultas são marcadas esporadicamente uma consulta por ano no caso da prevenção o mé dico desmarca as consultas do dia para atender a um chamado de emergência ou fazer um parto o médi co necessita de mais tempo com uma cliente e acaba atrasando Além disso há uma tradição das pessoas que possibilitam condutas do tipo faltar à consulta sem desmarcar previamente porque não vai ter que pagar chegar com atrasos porque os médicos não se importam eles são os primeiros a se atrasarem não se preocupar com o término da consulta porque ficase quanto tempo for necessário e assim por diante É importante enfatizar que embora existam razões objetivas que dificultem a estruturação do contexto de atendimento é perfeitamente possível em outros aspectos construir uma estruturação em termos de limites O mesmo se aplica no contexto da instituição É necessário que o cliente saiba quanto tempo dispõe para as consultas ou quando deverá voltar Deve ser também alertada para as dificuldades do pouco tem po de consulta do longo tempo de espera da falta de privacidade e das exigências burocráticas do atendi mento Colocar limites adequadamente veicula so bretudo a atitude de proteção do relacionamento e de respeito por nós e pela pessoa que atendemos CONFRONTO A função essencial do confronto é colocar em evidência aspectos contrastantes ou contraditórios das mensagens do cliente para que este possa per ceberse de modo mais claro Há várias maneiras de fazer confronto a focalização em pistas não verbais é quase sempre utilizada à guisa de confronto à me dida que aponta discrepâncias entre elementos ver bais e não verbais da mensagem da mesma forma o confronto pode consistir em apontar discrepâncias entre duas mensagens verbais ou entre o que é dito e o que é feito A atitude característica do confronto é portan to apontar as contradições da mensagem do cliente para ajudálo a perceber o que está se passando com ele evidentemente não implica atitudes de crítica do tipo te peguei em flagrante A evidência da contradição faz com que o con fronto frequentemente tenha um impacto bastante significativo como forma de comunicação É claro que a sensibilidade e a intuição são importantes na determinação do momento mais propício para a to mada de consciência das sabotagens ao tratamento ou da paralisação da conduta que eventualmente acarreta mudança de comportamento Neste sentido o confronto pode atuar como solicitação de trabalho em corresponsabilidade O confronto pode ser feito também através de perguntas com o intuito de ques tionar decisões impulsivas ou desmanchar ideias fixas e predeterminadas ajudando a pessoa a considerar outras alternativas ou facetas de uma situação Há ainda a produção de confronto entre pessoas que estão em dissintonia mas tem o objeto claro de se entenderem como cônjuges pais e filhos amigos etc tratase aqui de sugerir uma conversa franca uma troca de ideias desde que haja preparo para que não se produza uma contenda mas sim uma resolu ção conjunta de impasse Tratase de simplesmente contribuir para a ampliação de perspectivas dos pro cessos decisórios porém com a atitude de respeito pela autonomia da pessoa e pelo seu direito de resol ver o que irá fazer da própria vida RESOLUÇÃO CONJUNTA DE IMPASSES Médico e cliente são obviamente pessoas dife rentes com pontos de vista ou necessidades diversas entre outras coisas isso implica inevitabilidade de momentos de impasse no vínculo onde necessidades e vontades de ambos se encontram em oposição No manejo autoritário o poder fica concentrado nas mãos do médico é ele quem dá as cartas toma decisões e as impõe ao cliente que supostamente tem de aceitálas e submeterse mesmo a contragosto Evi dentemente é essa a característica do modelo tradi cional onde o médico não tem que dar satisfações de sua conduta Esse é o manejo que predomina nas Psicossomaticaindd 535 Psicossomaticaindd 535 05012010 121225 05012010 121225 536 Mello Filho Burd e cols instituições e que vigora no estabelecimento das ro tinas hospitalares e das normas administrativas Este proceder afeta igualmente a relação clienteinstitui ção e médicoinstituição Ambos cliente e médico têm que se submeter Quando se rompe a defesa do conformismo essa submissão gera revolta ressenti mento e hostilidade É esta a dinâmica subjacente a inúmeras condutas de rebeldia insubordinação e sa botagem Muitas das imposições são apenas aparen temente baseadas em argumentações lógicas que na realidade não resistem a um exame mais cuidadoso Há situações de emergência em que o médico simplesmente tem que ditar ordens sem perguntar ao paciente o que acha pensa ou quer outras vezes o desejo do cliente é impossível de ser satisfeito por que há contraindicações de ordem técnica a atitu de com que se emprega o manejo autoritário nestas circunstâncias difere substancialmente da atitude au toritária crônica porque se trata de saber pela com petência técnica o que corresponde às reais necessi dades do cliente embora não seja possível satisfazer seu desejo No manejo permissivo as características bási cas são a carência de limites a excessiva renúncia aos próprios direitos a tendência exagerada a abrir mão do atendimento das próprias necessidades para atender as dos outros numa atitude submissa ou servil Quando essa situação predomina no vínculo médicocliente não está circunscrito apenas a este setor mas corresponde à característica da pessoa do médico que sente dificuldade de dizer que não con corda e precisa ser bonzinho desprendido e dedi cado A dinâmica subjacente a esta conduta em geral prendese ao medo de não ser aceito No campo do vínculo médicocliente isso transparece no medo de perder clientes Na relação médicoinstituição a permissividade aparece geralmente associada à necessidade de sobre vivência O profissional de saúde muitas vezes se vê forçado a abrir mão de direitos básicos e submeterse a uma carga horária injusta ganhar salário indigno que nem de longe corresponde ao investimento de tempo esforço e dinheiro que aplicou em sua forma ção A situação certamente vai influir no vínculo com os clientes O aspecto fundamental do manejo por resolu ção conjunta é o respeito pelas próprias necessidades e pelas necessidades do outro Nos momentos de im passe tentar elaborar uma solução que leve ambas as partes em consideração É claro que em muitas circunstâncias este manejo ideal é utópico mas de qualquer forma é a postura inerente à atitude clíni ca e ao uso das formas terapêuticas de comunicação O manejo por resolução conjunta pressupõe trabalho em corresponsabilidade em nível adultoadulto onde o poder fica compartilhado Dar ao cliente a oportunidade de opinar ex pressar ou escolher o que quer sempre que possível obviamente desde que não haja impedimentos de or dem técnica e desde que a escolha do cliente não se choque frontalmente com a filosofia de trabalho do médico Em outras circunstâncias é possível que médi co e cliente possam abrir mão de algumas necessida des para que um acordo seja feito Como o objetivo é tentar atender às necessidades de ambas as partes a resolução conjunta é um manejo essencialmente criativo a solução a ser encontrada é específica para aquela situação ou para aquele momento do vínculo ou para aquelas pessoas envolvidas Em síntese a postura básica da resolução con junta também implícita na utilização das demais formas terapêuticas de comunicação é ver o relacio namento médicocliente como humanamente simé trico embora tecnicamente assimétrico Com isso vem a abertura para elaborar mais adequadamente o problema de dominação e de submissão implícito no jogo do autoritarismo e da permissividade ORIENTAÇÃO ANTECIPATÓRIA A orientação antecipatória consiste em descre ver para o cliente o panorama geral de uma situação a ser enfrentada Destacamse dois pontos fundamentais na orien tação antecipatória dar informações e lidar com o impacto emocional por elas provocado Por esse mo tivo o uso da orientação antecipatória vinculase intimamente à postura característica da reflexão de sentimentos Isso tem repercussões importantes in clusive na maneira de dar informações estas devem ser veiculadas em termos simples concretos o menos técnico e intelectualizado possível A orientação antecipatória não significa dar uma aula brilhante ou uma demonstração de sabedoria e conhecimento para que o cliente fique bem impres sionado Portanto para que as informações sejam de fato úteis e possam ser absorvidas pelo cliente é necessário que o médico esteja em sintonia com ele para saber do que o cliente precisa ter conhecimento que lacunas ou distorções de informação apresenta e que impacto emocional as informações provocam se contribuíram para que o cliente ficasse mais assusta do ansioso deprimido preocupado Evidentemente a reflexão de sentimentos e suas variantes são de ex trema utilidade para lidar com a mobilização evocada pela orientação antecipatória Psicossomaticaindd 536 Psicossomaticaindd 536 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 537 As informações da orientação antecipatória precisam ser vinculadas com a postura de realismo otimista ou seja apresentar os fatos sem falsear a realidade porém apresentando possibilidades de saí das melhoras curas recursos de que a pessoa possa dispor ou maneiras que a própria pessoa possa em pregar para lidar com a situação a ser enfrentada O uso consistente da orientação antecipatória pode prevenir o surgimento de muitos problemas de relacionamento tanto no vínculo médicocliente quanto no vínculo clienteinstituição Tratase de esclarecer previamente as condições de trabalho ou de atendimento que à guisa de limites demarcam o terreno de forma que a pessoa saiba de antemão com o que poderá contar Isso evita a criação de fal sas expectativas e consequentemente de inevitáveis frustrações a elas vinculadas É interessante notar que a maioria das pessoas busca espontaneamente orientação antecipatória por meio de leituras de livros e revistas ou por conversas com pessoas conhecidas que enfrentaram situação idêntica Com isso a pessoa consegue digerir em par te o medo do desconhecido e tomar as providências possíveis para lidar com a situação de realidade Na turalmente sempre há diferença entre saber e passar concretamente pela experiência sobretudo porque a vivência real é pessoal e subjetiva Hoje a busca de informações na internet ser ve perfeitamente para obter informações mas ter a informação sem saber como manejála pode ser de sastroso quando paralelamente falte a orientação do profissional Outro efeito singular da orientação antecipatória é ativar os mecanismos adaptativos da personalidade para que a pessoa possa melhor enfrentar a situação de tensão ou de dificuldade nestes casos ela atua como vacina emocional prevenindo o surgimento de difi culdades Neste contexto a orientação antecipatória ajuda a pessoa a digerir emocionalmente a situação a ser enfrentada Para isso é necessário ativar o que se chama de ansiedade antecipatória Ressaltese aqui que nem sempre se deve tentar reduzir ou muito menos eliminar as ansiedades do cliente Em primeiro lugar isso é impossível porque há situações que inevi tavelmente geram apreensão e ansiedade em segundo lugar não seria desejável a ansiedade antecipatória tem papel importante no funcionamento emocional É portanto um mecanismo motivacional para que a pessoa concretize ações necessárias Obviamente a ansiedade antecipatória é substancialmente diferente do pânico este é paralisante enquanto aquela é gera dora de ações adaptativas Essencialmente o que a utilização combinada de orientação antecipatória e reflexão de sentimentos se propõe é reduzir o excesso de ansiedade basica mente derivado do medo do desconhecido REASSEGURAMENTO O reasseguramento é uma forma terapêutica de comunicação cujo propósito principal é aliviar ansie dades ou temores do cliente quando possível e sem recorrer ao falso apoio às promessas onipotentes à mentira ou à omissão de informações relevantes Tratase essencialmente de manejar com facetas da realidade dando oportunidade de livre expressão de sentimentos Obviamente como acontece com a orientação antecipatória a utilização do reassegu ramento está também intimamente vinculada à ca pacidade de sintonizar típica da reflexão de senti mentos Muitas vezes e até mesmo sem se dar conta o médico faz reasseguramento eficaz de várias manei ras quando genuinamente apresenta atitude de dis ponibilidade quando realiza ações concretas que de monstram real interesse pelo cliente quando oferece informações pertinentes O reasseguramento aqui se faz como um algo mais além de dizer simplesmen te tudo bem Enfatizese que nem sempre o reasseguramen to consiste em dar boas notícias quando há algum problema obviamente o nível de angústia aumenta principalmente enquanto não se sabe o que está acon tecendo De certa forma a angústia de incerteza se reduz quando se descobre o que e porque aconteceu As informações corretivas podem atuar como reasseguramento Neste contexto como na orienta ção antecipatória a informação não é para ser veicu lada como uma aula sofisticada mas de modo sim ples claro e conciso para melhor absorção em nível emocional A diferença fundamental entre o falso apoio e o reasseguramento é a atitude frente aos sentimentos mobilizados na pessoa no falso apoio evitase en carar os sentimentos a informação é dada de modo rápido e apressado na tentativa de abafar ou supri mir a ansiedade ou a depressão Evidentemente nes sas circunstâncias não há solo adequado para que as informações sejam absorvidas ou levadas a sério Já no reasseguramento dáse espaço suficiente para a expressão dos sentimentos então compreendidos e compartilhados para que depois haja lugar para a informação O efeito mais comum do reasseguramento é o alívio de ansiedades temores e dúvidas após serem livremente expressos e reconhecidos Há situações de realidade que objetivamente lançam dúvidas ou Psicossomaticaindd 537 Psicossomaticaindd 537 05012010 121225 05012010 121225 538 Mello Filho Burd e cols envolvem prognóstico duvidoso que fatalmente pro vocam ansiedade tanto no cliente quanto no médico Ansiedades mais profundas e abrangentes não po dem ser aliviadas pelo reasseguramento ou porque estão profundamente arraigadas ou porque existem inevitavelmente em todas as pessoas Por exemplo o temor frente ao parto ou a uma cirurgia maior é impossível de ser eliminado Por fim vale ressaltar que a própria vida oferece inúmeras oportunidades de reasseguramento ALGUNS EXEMPLOS DE DIÁLOGOS E SITUAÇÕES As situações apresentadas aqui sob a forma de alguns diálogos e falas pretendem dar uma ideia ao leitor das diferenças no uso das formas adequadas ou inadequadas na comunicação entre profissionais de saúde e clientes Entendemos o relacionamen to de uma maneira ampla como ocorrendo entre o terapeuta e o doente posto que hoje esse processo ocorre de forma diluída e plural no qual os sintomas são preponderantes sobre as pessoas e o profissional é apenas uma parte da equipe de saúde Os exemplos tocam nas situações mais comuns para um aprofun damento do tema leia o livro Recursos de relaciona mento para profissionais de saúde de Maldonado e Canella 2003 Transferências Uma gestante sentese tensa e assustada a cada consulta prénatal porque teme levar uma bronca do médico ou por acharse gorda por se alimentar inadequadamente ou por fazer alguma outra coisa que não deve O obstetra como pessoa real não é censurador nem ameaçador e em verdade tam pouco ela está se conduzindo mal não obstante a reação transferencial dessa cliente é marcada pela vi são do médico como uma figura paterna assustadora que a qualquer momento vai censurála e colocála de castigo O explícito e o implícito O motivo explícito encobre ansiedades e preo cupações mais importantes como no caso de J que foi ao ginecologista porque achava que estava com corrimento Este a examinou percebendoa mui to ansiosa Ainda na mesa de exame a adolescente não conteve sua angústia Doutor na verdade vim aqui porque ontem transei com meu namorado pela primeira vez foi difícil e quero saber se ainda sou virgem Ordens ameaças lições de moral O senhor vai precisar fazer exercícios físicos diá rios controlar a alimentação parar de fumar e de tomar bebidas alcoólicas para não correr tanto risco de ter outro ataque cardíaco A senhora já sabe que fumar especialmente na gravidez é contraindicado porque aumenta muito a probabilidade de nascer um bebê prematuro de bai xo peso Seu filho está com dificuldades de coordenação motora fina por isso o trabalho de psicomotricidade é indispensável caso contrário tenderá a apresentar problemas na classe de alfabetização A senhora está proibida de fumar na gravi dez Muitos clientes comportamse como crianças re beldes que tentam ludibriar as ordens Doutor juro que não sei porque engordei tanto este mês não comi nada Pois é engravidou não é E agora Vai querer fazer aborto não é Por que não tomou pílula Será que você vai poder assumir a responsabilidade Tem gente que acha um crime a mãe não que rer amamentar o filho você é pobre não pode com prar leite seu filho vai mamar o quê Não vai crescer direito e quem é que vai ser a culpada Pessoas que utilizam muito esta forma de comu nicação são as que acham que seu próprio modo de pensar e de atuar é o único correto Mensagens contraditórias Veio um doutor que me disse que eu ia tomar o remédio X para baixar a pressão dois dias depois veio outro e mandou parar de tomar o remédio Y por que era perigoso para o neném Eu já não entendo mais nada Agora a atendente vem com o remédio eu finjo que engulo e quando ela vira as costas eu cuspo tudo fora Criticar e elogiar Quando uma mulher no climatério diz que se acha feia velha fora de forma e o profissional ten ta consolála com um elogio Que nada a senhora está muito moça está ótima com um corpo excelen te de fazer inveja a muita gente jovem este pode ser registrado de várias maneiras Está dizendo isso Psicossomaticaindd 538 Psicossomaticaindd 538 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 539 para ser amável ou para me consolar ou é falsida de ou quem sabe está até com segundas intenções Quando uma mulher grávida expressase em termos de eu me sinto um lixo um monstro com o corpo deformado está precisando mais de ser entendida em sua ótica e no temor que está subjacente tenho medo que meu corpo não volte ao lugar ou me res sinto porque meu marido quase não me procura se xualmente do que de um elogio à guisa de persua são a estética da grávida é maravilhosa porque não há nada mais bonito do que a maternidade e você é uma gestante linda O elogio à pessoa como um todo como vimos tende a criar uma expectativa aprisionante e por isso frequentemente tem efeitos nocivos Reflexão de sentimentos Tratase de referirse ao nível latente a partir da mensagem que o cliente manifesta é necessário decodificála e explicitála para que os sentimentos subjacentes possam ser manejados Primeiro cuidar do terreno emocional para depois usar a argumen tação racional A reflexão de sentimentos é a forma mais importante para uma comunicação adequada no relacionamento Mensagem manifesta Eu quero cesárea não que ro nem ouvir falar em parto normal Mensagem latente Morro de medo de sentir dor fico apavorada Médico Cesárea é boa só quando necessária o parto normal quando possível é melhor para a mãe e para a criança persuasão Mensagem manifesta Eu quero cesariana Mensagem latente Ouvi falar que parto normal dói muito fico apavorada Médico A ideia de parto normal te apavora não é reflexão de sentimentos O marido de uma cliente reagiu com muita hos tilidade à indicação de cirurgia feita pelo médico após as consultas e os exames complementares dizendo que os médicos de hoje só querem saber de pedir exames e operar O médico percebeu que atrás da fachada de irritação parecia haver medo e susto e então falou É estou vendo que minha a indicação o deixou irritado mas de qualquer forma acho que lá no fundo você está com medo O homem parou de agredir o médico a face expressando um misto de tristeza e preocupação Tive uma irmã que mor reu em consequência de uma complicação quando foi operada O médico prosseguiu Então fica claro seu medo de que o mesmo aconteça com sua mulher O homem respondeu Não é fácil doutor A gente sabe que uma situação não tem nada a ver com a outra mas assim mesmo vem a lembrança e o medo O médico continuou a refletir sentimentos ao mesmo tempo que reafirmou sua indicação Entendo que você fique com medo de que a cirurgia de sua mulher complique mas na situação em que ela está no mo mento a indicação é absolutamente necessária Vêse mais uma vez que o mecanismo básico da reflexão de sentimentos consiste em traduzir decodificar e explicitar os níveis latentes da mensagem do outro Uma mulher em início de gravidez não deseja da procurou o médico no ambulatório informando que achava que abortara porque sangrava abundan temente e tinha expelido uma bola O médico perce beu que a voz da cliente demonstrava alívio No en tanto no exame clínico constatouse que a bola era um coágulo e que não tinha havido aborto A cliente retrucou Quer dizer que ainda tem coisa dentro de mim não é O obstetra em vez de perguntar como estava sentindo o fato de ainda estar grávida respon deu com uma falsa atribuição É acho que você está contente por descobrir que não foi um aborto Ime diatamente a cliente mostrouse irritada e acabou dizendo que nenhum médico prestava Vejamos os vários níveis de sentimentos desde os mais periféricos até os mais profundos e obscuros das mensagens latentes Na comunicação profissio nalcliente estes diferentes níveis podem vir a ser explicitados gradualmente no decorrer da conversa como ilustramos nos diálogos abaixo Mensagem manifesta Gostaria de amamentar mas tenho medo de que meus seios fiquem flácidos Níveis de mensagens latentes Muita gente já me dis se isso A estética dos seios é impor tante para mim Se eu amamentar talvez não consiga sentir prazer erótico nos seios Acho que meu marido vai me evitar sexualmente se eu ama mentar que nem agora na gra videz Tenho medo de ficar presa e acabar sendo escrava do bebê Será que eu teria leite suficien te para alimentar meu filho Psicossomaticaindd 539 Psicossomaticaindd 539 05012010 121225 05012010 121225 540 Mello Filho Burd e cols Acho que me sentiria explora da pelo bebê como se ele fos se tirar tudo de mim Tenho vergonha de amamen tar sinto aflição só de pensar Se imaginamos o seguinte diálogo Cliente Gostaria de amamentar mas tenho medo de que meus seios fiquem fláci dos Estou até pensando em secar o leite para começar direto com mamadeira Médico Na verdade o que você quer dizer é que tem medo de se transformar em es crava do seu filho Cliente De jeito nenhum o que o senhor está dizendo não faz sentido para mim pre tendo cuidar do bebê e me dedicar a educálo mas não quero amamentar Vemos que estamos diante de uma situação de intervenção prematura e apressada cujo efeito típico é provocar resistência ofensa irritação indignação raiva sensação de não estar sendo compreendida e fechamento do diálogo Por outro lado se os níveis latentes forem focalizados de acordo com o ritmo espontâneo da pessoa tornase possível inclusive fazer a mescla de reflexão de sentimentos com a cor reção das distorções de informação como veremos no diálogo seguinte Cliente Gostaria de amamentar mas tenho medo de que meus seios fiquem fláci dos Estou até pensando em secar o leite para começar direto com mamadeira Médico A estética dos seios é muito importante para você não é Cliente Sem dúvida E várias amigas minhas me disseram que amamentar provoca flacidez Médico Na verdade as coisas não são bem as sim A eventual flacidez dos seios não se deve exatamente à amamentação mas à estrutura constitucional do tecido Se uma mulher tem tecido firme poderá amamentar por muito tempo sem que haja flacidez se uma mulher tiver ten dência constitucional à flacidez os seios ficarão caídos mesmo que não amamen te Cliente É mesmo Eu não sabia disso Mas mesmo assim ainda fico em dúvida se vou amamentar Surgiram tantas difi culdades entre eu e meu marido agora na gravidez você sabe Médico Você se refere às dificuldades sexuais Cliente É Médico Você tem medo de que seu marido con tinue evitandoa sexualmente caso deci da amamentar Cliente É isso mesmo Depois a gente nunca sabe como vão ficar as coisas Se a gen te por exemplo quiser sair para ir a um cinema não vai poder Médico Aí aparece outro medo que é o de ficar prisioneira do bebê não é Cliente É mas eu até sei que se pode dar um jeito Já me ensinaram uma maneira de tirar leite com bomba e guardálo na ge ladeira É esquisito mas também tenho a sensação de que o bebê estaria tirando tudo de mim e quando imagino o ne ném mamando me dá até aflição Médico Desde que começamos essa conversa surgiram muitos sentimentos a respeito de amamentar o bebê É importante que você possa pensar em tudo isso para real mente decidir o que quer fazer Cliente É consegui perceber algumas coisas que ainda não tinha visto claramente Já vi que não estou preocupada só com a estética Vou pensar no que conversa mos e tornar a decidir É evidente que esse diálogo é um exemplo di dático nem sempre as coisas se encadeiam com fa cilidade É necessário tempo perspicácia e princi palmente uma mudança interior no profissional que se traduza por disponibilidade em seu trabalho Não devemos esquecer também que nos dias de hoje fe lizmente reduziramse bastante as resistências à ama mentação A persuasão assim como a sugestão é inope rante porque focaliza somente o nível racional e tan gencia o nível emocional que nesses casos é mais re levante Em termos de atuação a implicação óbvia é que em primeiro lugar é preciso preparar o terreno focalizando o nível emocional como na reflexão de sentimentos e situandose na ótica da pessoa para num segundo momento atuar no nível racional utili zando a persuasão Podemos exemplificar este esque ma geral de atuação no diálogo que se segue Médica Você está com um mioma e o único meio de evitar que as hemorragias conti nuem é operar e tirar o útero comunicar o diagnóstico indicar a terapêutica Cliente Mas doutora quer dizer que vou ficar sem útero Preciso mesmo fazer essa operação Psicossomaticaindd 540 Psicossomaticaindd 540 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 541 Médica Entendo Você não esperava que fosse necessário operar reflexão de senti mentos Cliente Por mais que a gente desconfie quando chega o momento a gente leva um cho que Além do mais duas amigas minhas que fizeram essa operação disseram que depois ficaram frias Médica A senhora tem medo de que a operação atrapalhe sua atividade sexual refle xão de sentimentos Cliente Claro doutora E isso não acontece Médica O bom funcionamento sexual da mu lher não depende do útero Os ovários vão ficar São eles que vão manter os hormônios e o bom funcionamento do organismo Na verdade o sexo não de pende diretamente dessas coisas O fato de que algumas mulheres se sintam frias depois que tiram o útero está mais ligado às emoções Elas pensam que o útero é o responsável pela feminilidade e sem ele se sentem menos mulheres Mas na realidade a cirurgia não altera a capacidade de sentir prazer e no seu caso ela é absolutamente necessária por causa do mioma persuasão Uma mulher recém operada queixase de que muitas coisas em sua vida e no relacionamento com o marido modificaramse depois que os filhos saíram de casa A enfermeira sintoniza corretamente ao di zer É de fato tenho percebido que você está triste A mulher fica com os olhos cheios dágua e responde que realmente está se sentindo assim Rapidamente em resposta à sua própria ansiedade a enfermeira retruca mas casamento é assim mesmo depois de certo tempo esfria tudo quem sabe você aproveita outras oportunidades e consegue afastar essas preo cupações Dessa maneira novamente fechou o diá logo a cliente disse é e começou a tratar de um assunto irrelevante Negar percepções consolar e oferecer falso apoio A necessidade de negar a percepção do cliente surge especialmente em situações emocionalmente difíceis para o profissional Doutor pelo seu jeito e o de todo mundo lá em casa eu sei que estou com câncer Pode falar no assunto Pare de pensar dessa maneira Que nada é um pro bleminha que precisa ser tratado não é tão grave A resposta destinase na verdade a aliviar a an siedade do médico mais do que ajudar o cliente Não fique tão arrasada vocês são jovens e saudá veis logo poderão ter outro filho É grave mas conformese a vida é assim mesmo Nas entrelinhas o que o falso apoio comunica é por favor pare de se sentir tão mal porque isso não me deixa à vontade Autoexpressão Médica Tem um problema que me preocupa Sempre achei você com uma certa difi culdade para fazer os exames que peço Isso está alongando a pesquisa Na ver dade estou me sentindo desestimulada É como se estivesse trabalhando sozi nha sem sua ajuda Cliente É você tem razão Várias vezes já foi falado aqui o meu problema de não saber exatamente por que estou me tratando É lógico que pensando bem você se sinta chateada porque eu não colaboro Médica Pois é acho importante examinar os dois lados da questão ver suas dificul dades e as minhas também porque tudo isso afeta nosso trabalho Nem sempre as coisas são tão simples como nes te diálogo Colocar limites Gostaria de conversar com você sobre algumas coisas a respeito do meu modo de trabalhar Como já sabe atendo com hora marcada e a consulta é de meia hora quando por algum motivo precisar des marcar por favor faça com antecedência para que outra pessoa possa ocupar a hora quanto aos tele fonemas só atendo na mesma hora em casos de ur gência para não interromper as consultas se não for urgente a secretária anotará seu nome e eu telefona rei no intervalo ou no final das consultas o dê uma passadinha no consultório a qualquer hora sempre acaba atrapalhando o andamento das consultas Confronto O confronto pode consistir em apontar contradi ções entre duas mensagens verbais Psicossomaticaindd 541 Psicossomaticaindd 541 05012010 121225 05012010 121225 542 Mello Filho Burd e cols Quando lhe perguntei como estava você respondeu tudo bem e em seguida começou a falar de muitas coisas que não vão bem Você diz que está com vontade de emagrecer mas estou percebendo que não está tendo o cuidado de manter a dieta prescrita Vocês têm queixas mútuas por que não discutir os impasses Aqui o confronto é provocado pelo profissional que dele não participa Induz apenas a resolução con junta de impasses Orientação antecipatória Em vez de não vai doer nada dizer vai doer só um pouquinho e logo depois vai passar Reasseguramento Abre a possibilidade de novas perspectivas da realidade como ilustra a conversa entre a enfermeira e a mãe de um prematuro Mãe Ai ele ainda está tão miudinho dá uma pena de ver esse sofrimento todo Enfermeira É não é fácil ver o neném assim Ele ainda está com pouco peso é verdade mas houve um pequeno aumento com relação à semana passada e isso é um bom sinal Mãe Mas ainda precisa aumentar muito ain da Enfermeira Sim mas o neném não ganha peso de repente Além do mais a infecção tam bém está melhorando e ele está com um pouco menos de oxigênio RELAÇÃO MÉDICOCLIENTE E PSICOSSOMÁTICA A medicina psicossomática nada mais é do que o exercício integral da arte de curar pois considera simultaneamente o corpo e o espírito a relação di reta entre soma e psique A psicossomática nasceu epistemologicamente com Hipócrates Prova disso é a mitologia que relata o mito de Asclépio o deus da medicina Asclépio foi filho de Apolo com Coronis a mais bela das mortais daqueles tempos O deus a amou e possuiua resultando daí uma gravidez No entan to Coronis temia que o deus imortal a desprezasse quando ela ficasse velha como sempre a mulher te mia a velhice a perda dos seus encantos e de seu poder de sedução e assim desprezou o deus do sol e da sabedoria entregandose mesmo grávida a Isquis um camponês de sua terra natal Apolo foi avisado da traição por uma gralha que naqueles tempos era branca como a neve Furioso o deus fez com que a gralha se tornasse preta como o seu luto pela perda da amada que o traía e após matar Isquis pediu a sua irmã Ártemis que com suas flechas eliminasse Coronis Quando a infeliz estava na pira para ser in cinerada o deus resolveu salvar seu filho a que deu o nome de Asclépio retirandoo do corpo inanimado de Coronis através do umbigo Isso é por uma ce sariana umbilical e o levou para o centauro Quirão para que o educasse Foi com Quirão um preceptor universal de conhecimentos que Asclépio aprendeu a arte da Medicina Apolo o deus do sol era tido como orientador das pulsões humanas para a consciência era a divin dade do gnothi sauton conhecete a ti mesmo do medèn ágan nada em demasia e o guardião da sa bedoria Um dos epítetos de Apolo era akesios o que cura e o deus pontificava no abaton santuário de Epidauro onde a cura total do corpo só era conse guida quando antes se curava a mente só havia cura pela metanoia pela transformação dos sentimentos Centro espiritual e cultural o santuário de Epidauro possuía um Odeon para a música um ginásio para exercícios e um Estádio para os esportes Teatro e Biblioteca tudo voltado para a harmonia cujo valor tranquilizante para o corpo e a alma estava a serviço da cura O principal método terapêutico era a noote rapia uma purificação física e psíquica do humano como um todo O doente banhavase e submetiase a enkoimesis ação de deitarse e dormir no templo e seus sonhos eram considerados a manifestação do di vino a hierofania pela qual o deus tocava o organis mo doente com dores enfermo sem firmeza ou molesto levando peso e os sonhos eram interpreta dos pelos sacerdotes que prescreviam as medidas des tinadas à cura Era a mântica por incubação Asclépio era o deus que presidia as curas em Epidauro A ideia de uma mente sã em um corpo são mens sana in cor pore sano difundida por Juvenal prevalecia ainda no século II da nossa era quando já instalada a medicina hipocrática empregavamse as hervas e os purgantes além da higiene da dietética e da cirurgia Embora a relação estreita entre mente e corpo já existisse nos préhistóricos cerimoniais religiosos e possa ser intuída no código de Hamurabi nos papi ros egípcios no Talmud e na Bíblia uma estruturação mais elaborada da psicossomática já estava presente nas origens mitológicas da medicina Na realidade Psicossomaticaindd 542 Psicossomaticaindd 542 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 543 das pessoas a separação mente e corpo instaurada como inevitável pela cartesiana filosofia do sujeito é um artefato talvez determinado pela dificuldade de uma linguagem capaz de integrar a realidade de sua mitológica e indissolúvel união Depois que Descartes aventou a hipótese de se paração entre mente e corpo para chegar ao penso logo existo cogito ergo sum e logo retornou a indis solúvel reunião do corpo com o espírito como a do piloto com o seu navio o mundo jamais abandonou o pensar em duas instâncias A palavra psicossomática no entanto surgiu quando Heinroth em 1918 procurava estudar as re lações entre mente e corpo criando também a ex pressão somatopsíquica Psicossomática portanto é uma palavra dupla é uma reunião de dois princípios diversos uma uni dade de dois elementos morte e vida masculino e feminino mente e corpo é termo que contem uma díade disjuntiva como as pilhas elétricas com sua unidade constituída por dois polos o positivo e o ne gativo inseparáveis sob pena de deixar de ser o que é Cientificamente há formas metodológicas diversas para estudar o psíquico e o físico e tentativas de estu dar em conjunto as duas tendências O materialismo onde tudo se explicaria pela fisiologia o mentalismo aceitando que é o psíquico que faz a fisiologia e o dualismo separando em instâncias obedientes a re gras e mecanismos diversos que interagem no fisioló gico e psicológico É através da crença da fé que as verificações científicas renovam ad eternum ad infinitum os mo tivos para um pio acreditar em cada uma das formas de explicar a verdade dessa inseparável díade que é corpo e mente Foi com a medicina psicossomática que a psi canálise se introduziu na medicina geral ou especia lizada Em especial nos serviços hospitalares diante da demanda de tratamento psicológico em indivíduos acometidos por doenças crônicas ou agudas A neces sidade de cuidar integralmente das pessoas teve um longo caminho para se impor Assinalese Groddeck 18661934 amigo de Freud que tratava no sanatório de BadenBaden os casos de doenças para as quais a medicina não tinha solução cuidando do orgânico tinha como aforismo natura sanat medicus curat a natureza cura o médi co trata Alexander 18911964 húngaro que ten do estudado na Alemanha e migrado para os EEUU fundando o Chicago Institute for Psicanalisis estudou a úlcera gástrica em suas vertentes orgânica e psí quica considerandoa uma moléstia psicossomática Marie Langer 19101987 nasceu em Viena e mili tou na Argentina onde fundou com Angel Garma Celes Cárcamo e PichonRivière a Sociedade Argen tina de Psicanálise Marie Langrer tinha uma concep ção unitária do corpo biológico e do corpo psíquico fundada na psicossomática Alexander Mitscherlich 19081982 alemão médico psicanalista fundou a revista Psiche foi diretor da clínica psicossomática de Heidelberg em 1950 Mitscherlich postulava a li gação entre o ser e o soma teve laços estreitos com a escola filosófica de Frankfurt Citemos ainda Karen Horney 18851950 Helenne Deutsch 18841982 Melanie Klein 18821960 E Salerno na Argentina e Helene Michelwolfrong na França ambos a partir dos anos de 1950 Entre nós assinalese como cul tores da medicina psicossomática Marcondes Peres trello Capisano Mello Filho entre outros Nos dias de hoje há inúmeras circunstancias que exigem uma constante adaptação das formas terapêuticas de comunicação para um exercício verdadeiramente psicossomático do atendimento às pessoas A globalização e a instantaneidade no âm bito da comunicação mudam temporalmente e estru turalmente as formas de relacionamento que acima versamos O latim dos intelectuais e dos cientistas dos séculos XVII e XVIII que tornava incompreensível a linguagem da medicina e dos médicos para os cha mados leigos e em especial para os pacientes foi abandonado mas a incompreensão se manteve pela adoção de uma linguagem técnica Em nossa época os médicos dificilmente têm vocabulário idêntico e menos ainda a mesma linguagem dos seus clientes Entre outros podemos citar alguns fatores que estão na gênese da distância entre médicos e clien tes Apesar das dificuldades com a linguagem hoje os pacientes suplementam através da Internet em si tes a eles dirigidos a informação obtida de seus mé dicos e buscam muitas vezes uma segunda opinião virtual que confirme ou não a opinião profissional recebida Certamente as informações obtidas dificil mente poderão ser corretamente interpretadas A multiplicação dos exames privilegiando a ideia de que o ser é uma máquina e que a medicina teria por missão restabelecer seu desempenho reduziu o papel terapêutico do encontro médicopaciente Na instituição a atividade voltouse para o exame das papeletas tirando o significado da visita ao leito A tecnologia e a especialização exige uma numerosa equipe de atendimento sem o cuidado de ter um médico que faça a integração que assuma o cliente e com ele se relacione Há uma diluição da responsabilidade e a relação desliza do médico para a instituição O médico passa a ser apenas um repre sentante dessa instituição médica surgindo um re lacionamento entre cliente e instituição Desaparece a relação médicodoente Tampouco existe relação Psicossomaticaindd 543 Psicossomaticaindd 543 05012010 121225 05012010 121225 544 Mello Filho Burd e cols médicodoença Existe apenas uma relação institui ção médicadoença Em outras palavras a relação médico representante da instituição médica com o poder de arauto da ciência médica estabelece uma desigualdade de direito O discurso do cliente é de antemão desacredita do pelo sofrimento e o angustia o que lhe enfraque ce a razão o que lhe tira a capacidade de raciocinar corretamente O doente é tido como incapaz O con sentimento para se tratar é do doente mas o doente não é senão um incapacitado pela doença A prescrição muitas vezes aparece como forma de poder tanto prescrever repouso dieta higiene mudanças de hábitos como indicar a hospitaliza ção as intervenções cirúrgicas e os medicamentos mais que prerrogativas da profissão surgem como instrumento disfarçado de dominação O poder da substância do farmacon difundido pelo científi co assume por uma forma de fé o poder mágico da droga Psicotrópicos passam a ser o refúgio para os fracassos da medicina intoxicam e aliviam os sinto mas da doen ça não têm compromissos com a cura O remédio não é dispensado mesmo quando se sabe que a cura ocorrerá pela evolução natural da enfer midade Confiança e credulidade é o que se exige do pa ciente em relação ao médico Mas é o feiticeiro que vive da credulidade enquanto o médico se baseia na confiança e confiar é fazer uma escolha e não ter um sentimento pio O médico é crédulo quando crê que o doente confia nele confiança e desconfiança fazem parte da relação médicocliente e por isso é impor tante relacionarse com igualdade A questão dos honorários é das mais graves pois é através dos honorários que se firma o compro misso do médico com o cliente O compromisso passa a ser do intermediário e é possível prescindirse da autoexpressão e da colocação de limites REFERÊNCIAS Andrea Caprara A Franco ALS A Relação PacienteMédico Balint E Norell JS Seis Minutos para o Paciente S Paulo Ma nole 1976 Balint M O Médico o Paciente e a Doença Rio de Janeiro Athe neu 1967 Becker E A Negação da Morte Rio de Janeiro Nova Fronteira 1973 Bellotti E O Descondicionamento da Mulher Petrópolis Vozes 1975 Bensaid N A Consulta Médica Rio de Janeiro Interciência 1977 Bird B Conversando com o Paciente S Paulo Manole 1975 Bleger J Temas de Psicologia B Aires Nueva Visión 1971 Brandão J S Mitologia Grega Vol III e III Ed Vozes Petró polis 1994 Canella P Alterações psicossomáticas no puerpério Femina 86891980 Canella P Esmeraldite em Halbe H Tratado de Ginecologia cap 4 pp 46 49 São Paulo ed Rocca 2000 Canella P Hospital para Pobres Assistência Médica a uma Subes pécie de Homosapiens Médico Moderno 268 1983 Canella P Vitiello N Tratado de Reprodução Humana Rio de Janeiro ed Cultura Médica 1997 Canella P Ginecologia Geriátrica Relacionamento Médicocliente Femina 7272281 1979 Canella P et al Relação Médicocliente em Casos de Quimioterapia Antineoplásica Rev Bras Ginecol Obstet 333 1981 Caprara A Franco A LS A Relação pacientemédico para uma humanização da prática médica Cad Saúde Pública Rio de Ja neiro 153647654 julset 1999 Clavreul J A Ordem Médica Poder e Impotência do Discurso Mé dico São Paulo Ed Brasiliensse 1983 Costa JF Ordem Médica e Norma Familiar Rio de Janeiro Edi ções Graal 1979 Descartes R Meditações In Os Pensadores São Paulo Nova Cultural 1993 Ferrari H Luchina I Luchina N Asistencia Institucional Bue nos Aires Nueva Visión 1979 Ferrari H Luchina I Luchina N La Interconsulta Médico Psicoló gica en el Marco Hospitalario Buenos Aires Nueva Visión 1971 Figlioulo R Queiroz A Mello Filho J Problemas da Relação Médicopaciente no Ambulatório e no Hospital J Bras Med Maio 1976 Focault M Doença Mental E Psicologia Rio De Janeiro Ed Tempo Brasileiro 1975 Fuertes M Lopez Sanchez F Aproximaciones al Estudio de la Sexualidad Salamanca Amaru Ediciones 1997 Gadamer H G Dove si Nasconde la Salute Milano Raffaelo Cor tina Editore 1994 Japiassu H A Interdisciplinaridade e a Patologia do Saber Rio de Janeiro Imago 1976 Langer M Maternidad y Sexo Buenos Aires Paidós 1964 Laplanche D Tamen P Vocabulário de Psicanálise Martins Fon tes São Paulo 2000 Maldonado MT O Médico e a Cliente Próxima da Morte Femina 6 12 1978 Maldonado MT Psicologia da Gravidez Parto e Puerpério São Paulo ed Saraiva 1996 Maldonado MT Algumas Reflexões Sobre o Relacionamento Médi cocliente em Casos de Câncer Femina 54 1977 Maldonado MT O Significado do Pagamento honorários na Re lação Médicocliente Femina 5 7 1977 Maldonado MT Canella P A Relação MédicoCliente em Gineco logia e Obstetrícia São Paulo ed Rocca 1988 esgotado Maldonado MT Canella P Recursos de Relacionamento Para Profissionais de Saúde Rio de Janeiro Reichmann Affonso Edi tores 2003 Maldonado MT Curi Hallal R El grupo de reflexión acerca de la tarea asistencial en una unidad de obstetricia Anais do III En Psicossomaticaindd 544 Psicossomaticaindd 544 05012010 121225 05012010 121225 Psicossomática hoje 545 cuentro ArgentinoBrasileño de Medicina Psicosomática Buenos Aires setembro de 1981 Maldonado MT Nahoum JC Dickstein J Nós Estamos Grávi dos São Paulo ed Saraiva 1997 Martins C Relação MédicoPaciente Porto Alegre Artmed 1979 Mello Filho J Concepção Psicossomática Visão Atual Rio de Ja neiro Tempo Brasileiro 1979 Mello Filho J et al Psicossomática Hoje Porto Alegre Artes Me dicas 1992 Moreira AM Teoria a Prática da Relação MédicoPaciente Belo Horizonte Interlivros 1979 Perestrello D A Medicina da Pessoa Rio de Janeiro Atheneu 1982 PichonRiviere E O Processo Grupal São Paulo Livraria Martins Fontes 1983 Ribeiro da Silva MG Prática Médica Dominação a Submissão Rio de Janeiro Zahar 1976 Ross E K On Children and Death Nova Iorque Collier Books 1983 Ross E K Sobre a Morte e o Morrer São Paulo Edart 1969 Ross EK Morte Estágio Final da Evolução Rio de Janeiro Re cord 1975 Roudinesco E Plon M Dicionário de Psicanálise Jorge Zahar ed Rio de Janeiro 1998 Saussure F Curso de Linguística Geral São Paulo Ed Cultrix sem data Winnicott D O Ambiente e os Processos de Maturação Porto Ale gre Artmed 1983 httppsicopatologiabrtripodcompsicossomaticahtm httpwwwmedicinacomplementarcombrestrategiapsicosso maticaasp wwwscielobrpdfpev11n1v11n1a05pdf Psicossomaticaindd 545 Psicossomaticaindd 545 05012010 121225 05012010 121225 O paciente somatizador é um dos pacientes mais difíceis da prática diária dos profissionais de saúde O diagnóstico a classificação nosológica do seu quadro clínico e seu tratamento representam um permanen te desafio Fortes et al 2005 Tófoli 2004 2006a 2006b Na verdade a extensão desse desafio é muito mais ampla Ignorando a separação entre o físico e o psíquico tão cara ao modelo biomédico tradicio nal eminentemente cartesiano esse paciente traz um profundo desconforto para a maioria dos profis sionais que não se sentindo habilitados a transitar nessa interface entre o somático e o emocional ten dem a ignorálo ou até mesmo rejeitálo Vistos como pacientesproblema recebem diversas alcunhas piti peripaque poliqueixosos e são tratados não ape nas inadequadamente mas muitas vezes de forma agressiva e desrespeitosa São considerados utiliza dores inadequados do tempo dos profissionais pois pela ótica do modelo anatomoclínico tradicional que embasa as práticas em saúde não são considerados verdadeiros doentes Fortes et al2005 Tófoli 2004 2006a 2006b Taylor 1984 embora estejam entre os pacientes que mais consomem serviços de saúde podendo evoluir de forma crônica com prognóstico reservado grande comprometimento funcional e alto custo assistencial Taylor 1984 Smith et al 1986 1995 Mas quem é esse paciente o somatizador O que significa somatizacão Será que estamos diante de um processo patológico específico Como entende mos hoje esse processo denominado somatizacão A definição de somatizacão tem se modificado profundamente nos últimos 30 anos e ainda não há um consenso sobre sua caracterização o que dificulta em muito as pesquisas sobre esse fenômeno e seus mecanismos Na verdade é importante falarmos em um fenômeno de somatização pois se trata de um processo onde diversos fatores e mecanismos intera gem para o surgimento de queixas físicas trazidas aos profissionais como sintomas e que não apresentam alterações anatomopatológicas que as justifiquem É um fenômeno extremamente abrangente e perpassa desde as formas culturalmente aceitas de manifesta ção de sofrimento emocional até mecanismos psico patológicos ainda não totalmente conhecidos levando a quadros clínicos crônicos e com alto comprometi mento funcional e social desses pacientes Para melhor entender esse processo e seus meca nismos nosso capítulo será dividido em três partes Definição através do estudo das definições histó ricas do processo de somatização delimitaremos o que hoje é descrito como sintomas somáticos sem explicação médica SEM o nosso objeto de estudo Gênese após relatarmos os diversos fatores asso ciados ao surgimento de queixas somáticas sem explicação médica nos aprofundaremos na dis cussão dos principais fatores associados à presen ça dessas queixas Alterações fisiopatológicas um breve relato sobre as alterações funcionais associadas à presença de somatizações crônicas e graves DEFINIÇÃO O ESTADO DA ARTE DA NOSSA COMPREENSÃO DO QUE E SOMATIZAÇÃO HOJE O primeiro grande desafio reside na própria de finição do que é somatização Inicialmente cunhado por Stekel na primeira metade do século XX o termo somatização tem sido usado desde então de forma muito variada e impre cisa um dos principais motivos de existirem tantas formas diferentes de entender esse processo Assim sendo como se pode indagar O que é a somatizacão Quando está presente o fenômeno da somatiza cão 45 SOMATIZAÇÃO HOJE Sandra Lucia Correia Lima Fortes Luis Fernando Farah Tófoli Cristina Moriz de Aragão Baptista Psicossomaticaindd 546 Psicossomaticaindd 546 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 547 a A Somatização foi originalmente e para muitos ainda o é considerada um mecanismo de in terferência da mente no corpo Nessa visão o termo somatizacão está associado à Medicina Psicossomática que desde a primeira metade do século XX Mello Filho 1994a b sinalizou a in teração entre sofrimento emocional e o adoeci mento físico como sendo muito mais íntima do que fazia crer o modelo biomédico dominante naquele momento Alexander 1950 na primeira metade do século XX estudou as doenças classi camente definidas como as doenças psicossomá ticas em que essa interação seria especialmente forte como por exemplo a doença coronariana ou a úlcera péptica Ainda hoje muitos profissio nais consideram essas patologias como forma de somatização11 Devese destacar porém que nos casos dessas doenças existem lesões alterações anatomoclínicas bem conhecidas o que distingue esses pacientes da queles que na atualidade considerados somatizado res nos quais essas alterações não são verificadas Com a evolução histórica e transformação dos modelos de compreensão do processo de saúde e do ença incluindo a superação das teorias etiológicas li neares e unicausais e a própria visão cartesiana em si Engel 1980 o conceito de doenças psicossomáticas no sentido daquelas onde haveria um componente emocional na determinação da doença é superado O atual nível de desenvolvimento de nossos conhe cimentos demonstra que considerando os modelos multicausais e integrais que atualmente norteiam as pesquisas em saúde todas as doenças de uma forma ou de outra em maior ou menor grau são também determinadas pelos aspectos psicológicos e sociais envolvidos na sua evolução Assim sendo dentro de um modelo integral não haveria doença que não fos se psicossomática Brasil e Furlanetto 1997 Ao se universalizar a utilização dessa nova concepção o conceito de doença psicossomática perde seu senti do específico e se torna obsoleto Hoje se considera que toda doença é biopsicosocial A partir dessa cons tatação e da mudança de modelo o termo somati zação perde seu caráter genérico de influência da mente sobre o corpo e adquire uma especificidade Passamos então a falar de sintomas físicos onde não se verificam mecanismos anatomopatológicos que os justifiquem adequadamente b Porém as queixas somáticas sem substrato anato mopatológico a pedra fundamental do moderno conceito de somatizacão são universais sendo muito frequentes em todas as pessoas Estudos demonstram que a grande maioria das pessoas apresenta alguma queixa física anormal no prazo de uma semana Kellner e Sheffield 1973 mas em geral elas não procuram os médicos ou qual quer outro tipo de cuidado A explicação que é construída para essa sensação somática anormal é fundamental na determinação da forma como esse indivíduo irá lidar com ela Esse padrão explicativo denominado Padrão de Atribuição Kirmayer Young e Robbins 1994 Kirmayer e Ro bbins 1991 Garcia Campos e PerezEcheverria 1996 é fundamental na determinação de bus car ou não tratamento médico Perante qualquer nova sensação somática anormal um indivíduo pode considerála como tendo uma de três dis tintas origens construindo três distintos padrões explicativos Uma origem nas coisas da vida definido com um padrão normalizador Considerar que alguma coisa da rotina normal causou aquela sensação anômala uma noite maldormida causando cansaço comer na rua causando desconforto estomacal o colchão causando dor nas costas Uma origem somática definido como padrão somatizador considerase que o sintoma físi co está sendo causado por alguma alteração orgânica que é considerada como digna de ser objeto de investigação e cuidado e en tendido como representativo de uma doença Nesses mesmos sintomas anteriormente cita dos teríamos como explicação uma anemia para a astenia uma infecção intestinal para a queixa dispéptica ou uma patologia de coluna para a dor lombar Uma origem psicológica definindo um pa drão psicologizador onde o sofrimento emo cional é a origem do sintoma Assim sendo esses mesmos sintomas seriam então explica dos como depressão sendo a causa da fadiga ansiedade a origem da dor de estomago ou dor lombar pela tensão Essas diferentes explicações levam necessa riamente a diferentes comportamentos de doente e às distintas condutas de busca de cuidado para esse sofrimento Se uma sensação física anormal é inter pretada como indicativa de doença física isso levará a procura de atendimento médico É importante re lembrar que numa parte significativa das pessoas que procuram as unidades de saúde com queixas somáti cas inexplicáveis e nenhum tipo de transtorno asso ciado sejam eles físicos ou psíquicos é detectado c Existe também um grupo significativo de pacien tes onde é muito grande a presença de queixas Psicossomaticaindd 547 Psicossomaticaindd 547 05012010 121226 05012010 121226 548 Mello Filho Burd e cols somáticas SEM que são os portadores de quadros ansiosos depressivos ou simplesmente pacientes que estejam submetidos a situações de estresse Exatamente pela compreensão abrangente que dispomos hoje podemos entender que o corpo so fre quando a mente sofre Uma parte significativa das queixas somáticas inespecíficas apresentadas por pacientes em consultas médicas são queixas físicas relacionadas a transtornos mentais comuns TMC principalmente transtornos ansiosos e de pressivos altamente prevalentes em unidades ge rais de saúde Fortes 2004 e não podem ser con sideradas como patológicas em si pois são parte inseparável de processos de sofrimento psíquico onde a existência de alterações físicas é parte ine rente ao processo e totalmente compreensível já que não existe uma separação mentecorpo A pergunta fundamental nesses casos é porque as pessoas apresentam queixas físicas prioritariamen te nas consultas médicas quando seu sofrimento é emocional É importante lembrar que na maior parte das vezes essas queixas somáticas inexplicáveis estão fortemente associadas à pre sença concomitante de queixas psicológicas For tes 2004 Ring et al 2005 Salman 2004 esses pacientes reconhecem a associação dessas queixas com problemas de ordem emocional e se sentem particularmente gratificados quando os profissionais demonstrando interesse abertura e capacidade de escuta Salmon 2000 2005 Sal mon et al 2006 Ring et al 2004 Dorwick et al 2004 permitem que esses problemas sejam veiculados nas consultas Tornase necessário entendermos que as quei xas médicas inexplicáveis estão relacionadas à busca de cuidado sendo esse comportamento determina do não só pelos fatores individuais do pacientes tal como o padrão de atribuição já citado mas princi palmente nos seus determinantes culturais familia res e sociais incluindose entre eles o próprio sistema de saúde e seus profissionais Ou seja essas queixas somáticas inexplicáveis estão muito mais relaciona das à forma como o paciente apresenta seu sofrimen to para o profissional do que se constituem como doença específica Os conceitos de illness e disease originados da Antropologia Médica explicam bem esse processo Formulado por Eisenberg 1977 e utilizado por Hel mam 2005 em particular esse conceito distingue doença disease ou disfunções que ocorrem no or ganismo de adoecimento illness ou a experiência subjetiva da doença e suas repercussões nas relações sociais Considerase que o profissional tem uma con cepção do processo de adoecimento definido como disease doença que é fundamentalmente centra do nas alterações anatomopatológicas presentes nes te processo Essa doença é o foco de sua atenção e de suas intervenções Porém o paciente tem outra concepção e vivência desse mesmo processo que é de finido como illness aqui traduzido como adoecimen to e que envolve não só suas representações pessoais e suas reações emocionais em relação ao que sente mas também aos de seu grupo social incluindo a for ma como o seu sofrimento é reconhecido como legí timo podendo ainda ser visto como uma resposta adaptativa tanto psicológica como cultural A dife rença entre os dois conceitos resume grande parte das dificuldades nas relações médicopaciente Enquanto o primeiro se refere ao processo fisiopatológico que o modelo biomédico reconhece como o problema a ser tratado e que embasa a prática médica tradicional o segundo engloba o complexo processo do adoecer envolvendo aspectos relacionados à subjetividade do sujeito que adoece às concepções sociais e culturais relacionadas ao papel de doente e à determinação da saúde e da doença Superar essa diferença é funda mental para que se estabeleça um vínculo terapêutico realmente eficaz Afinal mesmo que a tradição médi ca ainda siga infelizmente se referindo aos pacientes como o fígado do leito 10 nosso objeto de cuidado é a pessoa que adoeceu e não sua doença A forma como o sofrimento causa primeira da busca de cuidado e é reconhecido validado e ampa rado é parte integrante do processo do adoecer As queixas físicas em geral são mais reconhecidas como legítimas tanto pelos familiares quanto pelos profis sionais de saúde enquanto queixas psicológicas não encontram o mesmo grau de aceitação Assim sendo podemos considerar que a somati zacão é uma forma de comunicação do sofrimento de nossos pacientes ou seja somatizacão é uma forma de illness d Por fim resta a pergunta fundamental de nosso capítulo a somatizacão nunca será fenômeno pa tológico em si Como então explicar os transtornos definidos após a terceira edição do manual diag nóstico e estatístico da American Psychiatric As sociation DSMIIInas categorias dos transtornos somatoformes e dos transtornos dissociativoscon versivos Ou seja em que circunstâncias a somati zação pode ser considerado um processo patológi co específico uma doença um tipo de disease Dentro de uma perspectiva histórica o termo somatização passa a partir da DSMIII 1980 que Psicossomaticaindd 548 Psicossomaticaindd 548 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 549 reestrutura a classificação nosológica psiquiátrica a se referir a um grupo de transtornos mentais trans tornos somatoformes e dissociativos que tem como sintoma central a presença de queixas somáticas inexplicáveis de caráter crônico com grande com prometimento funcional e social associadas a uma dificuldade de perceber sua relação com sofrimento emocional e muitas vezes acompanhada de ganhos secundários no processo do adoecer Dentre eles des tacase como seu principal subtipo o transtorno de somatização Presente em uma parcela pequena de pacientes sendo considerado equivalente a dita Sín drome de Briquet esse transtorno tem um curso crô nico e comprometimento funcional grave trazendo uma perspectiva completamente diferente da soma tização frequente e proporcionalmente mais branda que se apresenta na Atenção Primária a saúde por exemplo Mas é interessante destacar que desde o ano de 1980 quando a neurose histérica foi retirada das classificações nenhuma das classificações posteriores DSMIIIR 1987 DSMIV1994 CID101993 CID 10AP 1998 chegou a um consenso sobre o diag nóstico adequado desses pacientes Devido a essa inadequação das classificações as atuais categorias nosológicas da CID10 e DSMIV relacionadas à so matizacão crônica transtornos somatoformes e dis sociativos não tem contribuído para maiores escla recimentos desses quadros Hoje mais do que nunca com o eminente ad vento de novas versões das classificações psiquiátri cas DSMV e CID11 onde a própria permanência da categoria nosológica dos transtornos somatofor mes incluindo o transtorno de somatização se encon tra ameaçada a discussão sobre se existe ou não um processo psicopatológico específico que caracterize esses pacientes somatizadores crônicos é fundamen tal e tem sido tema de diversos artigos e encontros Sharpe e Carson 2001 Mayou et al 2005 Entre os problemas citados envolvendo essas ca tegorias diagnósticas e a caracterização dos pacientes somatizadores crônicos nas categorias dos transtor nos dissociativos e somatoformes os estudos mun diais têm verificado que A categoria nosológica que é o modelo dentre os transtornos somatoformes o transtorno de soma tizacão é uma categoria raramente encontrada As categorias mais comumente encontradas são as categorias residuais transtornos somatoforme in diferenciado ou maldefinidas transtorno da dor somatoforme Fortes 2004 Isaack et al 1995 Assim sendo com qual o conceito de somatiza cão iremos trabalhar A definição de somatização que iremos utilizar se baseia em Lipowsky 1988 Consideramos que o termo somatização se refere à presença de sintomas físicos sem explicação médica estes sintomas não apresentam substrato anato moclínico conhecido que os justifiquem verificase que estão associados a sofrimento emocional e até mesmo a transtornos mentais mas muitas vezes essa associação não é reconhe cida pelo paciente e levam a busca de tratamento médico com uma demanda de cuidado para sua solução Com toda a polêmica envolvendo o fenômeno da somatizacão tem havido uma tendência na litera tura científica sobre somatização pela utilização da definição presente na CID10AP atenção primária para se referir aos pacientes somatizadores Nesta eles são nomeados como portadores de sintomas físi cos inexplicáveis em inglês MUS medically unex plained symptoms Historicamente tem havido uma ênfase no sintoma físico SEM explicação médica como ponto nuclear para a identificação da presença de somatização Esse é o sintoma central ao redor do qual se organizam as classificações Assim sendo a ausência de lesões anatomoclínicas que justifiquem as queixas é o indicador utilizado pelo médico para a classificação de um paciente como portador de soma tização Porem podemos questionar que Como considerar como necessariamente patológi co esse fenômeno se queixas físicas sem explicação médica estão normalmente presentes no dia a dia das pessoas Assim sendo apresentar queixas somáticas sem substrato anatomopatológico pode ser considerado um processo normal Onde esta nesse caso o processo patológico a doença Se queixas somáticas são parte inerente dos transtornos mentais comuns geralmente quadros ansiosos ou depressivos quando eles devem ser considerados como justificativa para que outra categoria nosológica indicativa de outro proces so psicopatológico específico deva ser considera da na sua classificação Além dessas dificuldades inerentes a caracteri zação desses pacientes como portadores de um pro cesso patológico específico há outras dificuldades a considerar quando um sintoma é considerado sem explicação médica o que isso pode significar Pode ser um exame mal feito onde é o sintoma é inexplicável porque o paciente não foi adequada mente atendido e tratado Psicossomaticaindd 549 Psicossomaticaindd 549 05012010 121226 05012010 121226 550 Mello Filho Burd e cols Pode ser uma dificuldade na relação médicopa ciente em que o médico e o paciente não conse guem chegar a uma explicação em comum para aquele sintoma Essa dificuldade pode ser causada pela relação pelo sistema de saúde por diferenças culturais entre as duas partes dessa relação Pode ser que esses sintomas mesmo sendo físicos possam ser causados por transtornos mentais e aí o termo explicação médica se refere mais dire tamente a fato de que a visão biomédica não con segue elaborar essa junção físicomental por ser embasada em um modelo científico cartesiano E finalmente podem esses sintomas em alguma circunstância ser causados por mecanismos pato lógicos específicos que ainda não conhecemos de forma adequada É fundamental esclarecer que existe um ponto central em nossa compreensão do fenômeno de so matização Consideramos que o núcleo central do conceito de somatização enquanto fenômeno patológico não esta relacionado apenas à presença de sintomas físi cos medicamente inexplicáveis mas no padrão expli cativo que esses pacientes apresentam3841 para estes sintomas e que se relaciona a um padrão de busca de atendimento médico para essas queixas poden do ou não evoluir para um comportamento anormal de doente Ou seja os sintomas físicos inexplicáveis representam um padrão de adoecimento uma forma de illness Referemse antes de tudo á forma como o paciente percebe suas alterações corporais e busca ser cuidado alterações essas que estão relacionadas à presença de sofrimento emocional e até mesmo a um transtorno mental Porem os autores que vem se dedicando ao estu do desses pacientes desde a década de 1980 concor dam que estes não se trata de um grupo uniforme de pacientes existindo subgrupos distintos dentre eles Essa constatação reforça a idéia de que o processo de somatizacão ocorre de forma contínua na popu lação Henningsen et al 2005 e que se relaciona as distintas formas como o sofrimento emocional incluindo os transtornos mentais propriamente dito é apresentado nas consultas médicas Consideramos a partir desses autores Kirmayer 2004 Goldberg 1992 GarciaCampayo 1998 que existem as seguin tes formas de apresentação do sofrimento emocional na busca de cuidado Pacientes psicologizadores aqueles que apresen tam queixas psicológicas na consulta geralmente associados a diagnóstico mais rápido do proble ma por parte dos profissionais Pacientes somatizadores aqueles que apresentam queixas somáticas nas consultas para as quais não se verifica a presença de doenças físicas que as justifiquem adequadamente São divididos em dois principais subgrupos Os opcionais ou de apresentação geralmente agudos muitas vezes sem transtornos psiqui átricos associados ou com transtornos ansio sos ou depressivos reativos ou de inicio recen te e curta duração Facilmente reconhecem a origem psíquica de suas queixas quando o so frimento emocional é abordado na consulta têm pouca adesão ao papel de doente com praticamente nenhum ganho secundário esta belecido e pequeno comprometimento social e funcional Os verdadeiros embora também seja alta a prevalência de transtornos ansiosos e depres sivos nesses pacientes geralmente ocorrem em comorbidade com transtornos somato formes e dissociativos CID 10 e DSMIV ou nas síndromes ditas funcionais Sharpe 2001 Brasil et al 2005 que incluem a fi bromialgia colon irritável e fadiga crônica alem de outras Esses pacientes apresentam grande resistência a admitir uma correlação entre suas queixas e seu sofrimento psíquico e demonstram uma grande adesão ao papel de doente Essa negação dos problemas emo cionais que estão associados às queixas físicas se manifesta também através de uma ausên cia de queixas psicológicas Apesar de muitas vezes esses pacientes apresentarem sintomas compatíveis com transtornos mentais eles ne gam veementemente a presença de qualquer queixa no âmbito psicológico Esses pacientes representam o oposto dos pacientes psicolo gizadores Nos somatizadores verdadeiros as queixas somáticas inespecíficas se apresentam com um caráter opositivo às queixas psicoló gicas esses pacientes dificilmente aceitam a existência de uma associação entre as queixas físicas e o sofrimento emocional Esse é um padrão característico desses pacientes identi ficado desde os estudos clássicos sobre soma tização realizados ainda sob a ótica da Psica nálise e da Psicossomática McDougall 1983 Marty e de Múzan 1973 1994 Tófoli et al 2007 Além disso apresentam curso crônico com grande comprometimento funcional so cial e laborativo Assim sendo uma segunda forma de diferenciar esses subgrupos pode ser pelo seu curso prognóstico e evolução onde eles podem didaticamente ser divi didos em somatizadores agudos e crônicos com as seguintes características Psicossomaticaindd 550 Psicossomaticaindd 550 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 551 Características Somatizadores agudos Somatizadores crônicos Sintomas médicos inexplicáveis Recentes Crônicos Percepção do sofrimento psíquico Identificado pelo paciente Negado pelo paciente Associação com transtornos mentais Muitas vezes apenas existe um grau de Alta comorbidade com transtornos sofrimento psíquico sem caracterização ansiosos e depressivos porem sintomas específica de um transtorno mental não correspondem ao quadro clínico embora também possa ser uma forma dessas síndromes Presença de de apresentação de transtornos Transtornos dissociativos somatoformes ansiosos e depressivos ou de síndromes funcionais Relação com o profissional clínico Na consulta demonstra que sofrimento Não refere sofrimento emocional e emocional esta presente mas isso reforça inúmeras vezes como é única costuma ser ignorado Presença de a sua doença queixas psicológicas associadas Papel de doente Sem apresentar adesão ao Aderido ao papel de doente papel de doente Historia familiar Família atua como fonte de um padrão Historia familiar de reforço e valorização cultural de comunicação de sofrimento excessiva da doença como fonte de através de queixas físicas atenção e carinho Ausência de atenção em situações normais Historia de abuso sexual e violência física Geralmente ausente Geralmente presente Reação da família ao adoecer Em geral apoio e carinho Irritação abandono e ignorância das queixas físicas Para melhor organizar nossa compreensão desses quadros sintomáticos podemos caracterizálos não ape nas pela presença de queixas somáticas medicamente inexplicáveis mas também segundo seu padrão de atri buição seu curso e grau de comprometimento funcio nal e social Na Figura 451 correlacionamos essa divi são com as atuais categorias nosológicas englobando os distintos tipos de transtornos que nossos pacientes po dem apresentar sem nos deter nos detalhes envolven do essas classificações cujas controvérsias já citamos e podem ser acompanhadas na literatura GÊNESE Na busca de entender o fenômeno da somatiza cão sua gênese e sua evolução alguns fatores foram identificados como estando a ele associado desempe nhando papel importante na definição de seu curso agudo ou crônico e de sua gravidade comprometi mento funcional Embora diferentes entre si os sub tipos de somatizadores compartilham esses fatores de risco que se referem a três áreas Tófoli et al 2007 Fatores individuais Sexo femino Comportamento anormal de adoecimento adesão ao papel de doente com ganhos se cundários Amplificação de sensações somáticas Atribuição somática de sensações físicas anor mais Autoconceito de pessoa fraca e incapaz Dificuldade de elaboração verbal do sofrimen to psíquico Transtornos mentais comuns ansiedadede pressão História pessoal de adoecimento físico em es pecial na infância História pessoal de abuso físico e sexual em especial na infância Fatores familiares coletivos História familiar de doenças graves com ga nho de atenção diferenciada por esse motivo História familiar de somatizaçãotranstornos mentais comuns Atribuição somática de sensações físicas anor mais pelo grupo familiar e social Estruturas sociais que favorecem situações de submissão e desempoderamento Culturas latinoamericanas Fatores ligados aos serviços de saúde Condutas excessivamente centradas no adoe cimento físico Falta de manejo terapêutico para queixas físi cas inexplicáveis Diálogo médico sem sensibilidade psicosocial Psicossomaticaindd 551 Psicossomaticaindd 551 05012010 121226 05012010 121226 552 Mello Filho Burd e cols FIGURA 451 Diagrama de classificação das apresentações dos sintomas físicos sem explicação médica segundo dois eixos curso incapacitação e atribuição etiológica ATRIBUIÇÃO PSICOLÓGICA CRONICIDADE INCAPACITAÇÃO ATRIBUIÇÃO SOMÁTICA CURSO AGUDO AUTOLIMITADO Transtornos ansiosos e depressivos agudos com sin tomas físicos proeminentes Reação ao estresse e trans tornos de ajustamento Transtornos conversivos e dissociativos agudos e com estressores bem delimitados Queixas somáticas ineplicá veis agudas e inespecíficas Transtornos ansiosos e transtornos depressivos crônicos com sintomas físicos proeminentes Transtornos conversivos e dissociativos crônicos e com estressores mal definidos Transtornos somatoformes clássicos Síndromes funcionais Sistema de saúde pouco organizado com vín culos com o paciente frouxos ou inexistentes Perante essa amplitude de fatores como anali sar a determinação da somatização frequente e até de certa forma normal quais seriam os fatores as sociados à cronificação e a instalação de transtornos somatoformes dissociativos ou de alguma das sín dromes funcionais Dentro dessa visão destacamos os seguintes fa tores como desempenhando papel fundamental nesse processo FATORES FAMILIARES E COLETIVOS O papel da cultura Um dos pontos controversos acerca do proces so de somatização referese à possível determinação cultural sobre a forma de apresentação de transtor nos mentais em unidades gerais de saúde Em estudo sobre neurastenia Kleinman 1986 observou que na cultura chinesa pacientes com transtornos mentais apresentam queixas físicas em vez de psicológicas Outros estudos monstram que em culturas onde re presentações e modelos de compreensão do processo de adoecer fogem ao cartesiano com marcante divi são entre mente e corpo a presença de queixas somá ticas sem justificativa médica é bastante alta Estudo realizado nos Estados Unidos na década de 1980 sobre prevalência e incidência de transtor nos mentais é exemplo das variações culturais em um mesmo ambiente Nas populações estudadas pre valeciam de transtornos de somatização e somatiza ção abrangente em populações de origem hispânica Escobar 1978 Escobar et al1987 Um estudo multicêntrico sobre problemas psicológicos em uni dades gerais de saúde realizado pela OMS em 15 centros em diversas partes do mundo Üstun e Sar torius 1995 revelou maiores índices de Transtornos de Somatização em populações latino americanas Kleinman 1981 cita um estudo feito em Hong Kong onde os autores afirmam que para a maioria Psicossomaticaindd 552 Psicossomaticaindd 552 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 553 da classe trabalhadora chinesa que usa formas mais concretas de expressão a conceptualização a nível psí quico parece ser por demais abstrata p53 A soma tização enquanto escolha de queixas físicas como forma de manifestar sofrimento é a expressão pre dominante em sociedades não ocidentais Kleinman 1981 Em estudo anterior assinala que na cultura chinesa a harmonia das relações sociais e a manifes tação de sentimentos individuais e autocêntricos são desestimulados Em relação aos padrões de linguagem e suas ex pressões disponíveis para transmissão das emoções verificouse a existência de termos linguísticos que fazem uma ponte entre o somático e o psíquico re ferindose às emoções por meio de seus componentes físicos treme de medo meu coração não aguenta tanta emoção etc Algumas línguas são altamente eficazes na transmissão de sofrimento e ultrapassam a visão cartesiana da sociedade ocidental que separa mente e corpo A transmissão da subjetividade asso ciase a aspectos religiosos num discurso distante da perspectiva ocidental atéia psicológica médica e mo derna Duarte 1986 estudou essa questão em seu li vro sobre o nervoso demonstrando que o sofrimento psíquico é incorporado por categorias não psicológi cas que constituem a dimensão físicomoral Estamos diante de formas distintas de comunicação oriundas da supremacia do individual presente no discurso subjetivo psicológico em detrimento do coletivo cuja valorização é mais evidente entre as classes popula res Nesses grupos o discurso é centrado no concreto e no corporal no externo e no detalhe Esta diferença foi verificada em pesquisas realizadas no Brasil base adas nos estudos de Dumont 1985 que revelaram a presença de diferentes conceitos de indivíduo entre as distintas classes sociais Em estudo comparativo entre a sociedade indiana e a sociedade moderna ocidental Dumont 1985 demonstrou a existência de uma es trutura dita holista em que impera uma ordem base ada na transcendência Papéis sociais são fortemente estabelecidos com vínculos hierárquicos onde o eu não tem valor especial mas é definido a partir de sua relação com o outro e referido a uma totalidade que dá sentido ao indivíduo e o define como pessoa Nas sociedades modernas individualistas materialistas e psiológicas o indivíduo é o centro do mundo Da Mata 1978 infere que na sociedade brasileira coexistem duas concepções de indivíduo e as caracterizou como pessoa versus indivíduo Segundo Duarte 1985 p 135 essa diferença apresentase no universo das classes trabalhadoras urbanas cuja cultura é fundamentalmente hierár quica e holística em oposição e talvez em boa parte por oposição à ideologia individualista que axia a ver são letrada e ideal da cultura moderna p135 Na verdade para essa população o corpo faz parte de uma rede de representações que não é con siderada de forma estanque como ocorre em outras classes sociais mais apegadas a concepções cartesia nas Se o que importa é o corpo para viver e sobre viver nele estará a expressão do sofrimento São pessoas que possuem uma forma de comunicação e uma concepção do mundo e de pessoa que se distin gue grandemente daquela do profissional de saúde Duarte 1986 A família As características e o funcionamento do sistema familiar de origem irão determinar a interpretação das experiências somáticas e o comportamento de busca de ajuda e utilização de serviços médicos Pes quisas têm demonstrado que a tendência a somatizar desenvolvese nos primeiros anos de vida a partir de experiências no ambiente familiar Schicchitano et al 1996 Craig et al 1993 1999 Stuart e Noyes 1999 Noyes e Stuart 2002 Waldinger et al 2006 Minuchin et al 1978 Ciechanowski ei at 2002 Lipowski 1998 já havia assinalado que os sintomas apresentados por crianças somatizadoras são seme lhantes aos apresentados por um outro membro da família Adultos somatizadores costumam preocupar se com os mesmos sintomas físicos que seus pais du rante a infância No campo da teoria sistêmica da família obser vouse que famílias em situação de grande estresse tendem a identificar um dos membros como fraco reforçando seu comportamento de doente o que desvia o foco de atenção alivia a ansiedade mini miza o conflito e permite encontrar algum equilíbrio ServanSchreiber et al 2000 A instabilidade do INDIVÍDUO livre com direito a um espaço próprio igual a todos os outros tem escolhas que são vistas como seus direitos fundamentais tem emoções particu lares a consciência é indivi dual a amizade é básica no relacionamento escolhas faz as regras do mun do onde vive PESSOA presa a totalidade social a qual se vincula de modo necessário complementar aos outros não tem escolha a consciência é social isto é a totalidade tem precedência a amizade é residual e juridicamente definida recebe as regras do mundo onde vive Psicossomaticaindd 553 Psicossomaticaindd 553 05012010 121226 05012010 121226 554 Mello Filho Burd e cols sistema familiar quer pela ausência de coesão por disputas conjugais ou pela vulnerabilidade de suas fronteiras emocionais impede a criança de desen volver mecanismos saudáveis de adaptação Adultos com alto índice de sintomas somáticos em geral cres ceram em famílias disfuncionais que respondiam de forma estereotipada às necessidades de mudança e impediam a emergência de comportamentos alterna tivos mais adequados O comportamento somatizador crônico tem sido também associado a padrões familiares de negli gência indiferença e abuso Em estudo longitudinal Craig e colaboradores 1993 1999 relacionaram a somatização à falta de cuidados parentais e observa ram que pacientes somatizadores apresentavam um histórico de doenças físicas na infância além de do enças crônicas em seus pais Os autores ressaltam que nenhum fator isoladamente pode explicar a presença da somatização porém a relação temporal entre es ses fatores sugere que o adoecimento funciona para a criança como fonte de atenção e cuidados dos pais Efetuase assim o aprendizado de um padrão de res posta somática em vez de emocional para atrair cui dados ou desarmar comportamentos hostis por parte dos membros da família Os trabalhos de Craig e cola boradores 19931999 exploram a trajetória entre as experiências infantis e o comportamento somatizador adulto lançando uma nova luz sobre a ainda obscura relação entre mente e corpo vivência familiar e pro dução de sintomas Terre e Ghiselli 1997examinaram fatores do funcionamento familiar inerentes ao ambiente de ori gem de crianças adolescentes e jovens adultos soma tizadores e observaram que vários deles aumentam a probabiliidade da apresentação de queixas somáticas como ausência de uma estrutura adequada de apoio e falta de cuidados e de condutas previsíveis respon deriam pelo aumento do risco de queixas somáticas entre jovens em distintas etapas do desenvolvimento dificultando a adaptação psicológica prejudicando a autoestima a autorregulação e criando problemas de comportamento Vínculo e sua importância na construção da identidade de somatizador crônico O comportamento somatizador na vida adulta resulta portanto da evolução de estratégias para lidar com as dificuldades da vida Minuchin 1978 Simon et al 1999 que embora inicialmente fossem adaptativas se tornam inadequadas e problemáticas para o indivíduo adulto e suas interações no meio social Do ponto de vista individual o somatizador pode assumir o papel de doente para obter alívio de pressões e expectativas interpessoais e receber aten ção Barsky apud ServanSchreiber et al 2000 afir ma que não existe pílula que cure nem cirurgia que extirpe a necessidade de ser doente Stuart e Noyes 1999 sugerem a existência de dois principais modelos para explicar a etiologia da somatização No primeiro entendese que a criança exposta a modelos de comportamento de doente du rante a infância assume mais tarde um comportamen to similar diante de situações estressantes O segun do modelo descreve o comportamento somatizador como uma distorção na manifestação de perturbação em resposta ao estresse ambiental O comportamento de doente suscita uma resposta por cuidados por par te dos outros desviando a atenção de outras áreas de conflito Em ambos os casos verificamse uma mobi lização familiar em torno daquele que se queixa que obtêm assim atenção e cuidado reforçando a identi dade e o comportamento anormal de doente asso ciado a ganhos secundários e à manipulação do am biente O comportamento anormal de doente como veremos a seguir Villano 1998 Gureje et al 2004 é uma das características marcantes de somatizado res crônicos São muitas vezes mais doentes até do que pacientes portadores de patologias mais graves A somatização inserese num quadro conceitual que explora o impacto das experiências infantis de apego sobre o comportamento interpessoal e o de senvolvimento de um modo de perceber sintomas e comportarse em relação à saúde A teoria de Bowlby sobre apego e somatização segundo Ciechanowski e colaboradores 2002 propõem a existência de um laço entre bebê e cuidador que garante a proteção e a sobrevivência da criança Se a criança recebe res postas inconsistentes pode desenvolver estratégia adaptativa amplificando a reação emocional Esses padrões tornamse modelos cognitivos ou modelos de funcionamento interno de resposta interpessoal que persistem durante a vida Em 1991 Bartholomew e Horowitz apud Wal dinger et al 200660 publicaram um estudo com base no trabalho de Bowlby apresentando um sistema de classificação que inclui quatro estilos de apego prin cipais um estilo seguro e três estilos de apego inseguro desengajado preocupado e temeroso O apego segu ro redundaria em independência e perspectiva positiva de si e dos outros O estilo de apego desprendido dismis sing tem como consequência adultos autossuficientes Nos indivíduos com estilo de apego preocupado que re ceberam cuidados inconsistentes imagem negativa de si como pessoa assim com tendência à dependência em relação aos outros Em contraste indivíduos com um estilo de apego temeroso recordam experiências de rejeição e consequente imagem negativa de si e dos outros ânsia por contato e temor de rejeição Psicossomaticaindd 554 Psicossomaticaindd 554 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 555 Para Stuart e Noyes 1999 2002 esquemas in ternalizados de apego são a ponte de ligação entre situações traumáticas da infância e o desenvolvimen to de uma preocupação somática na vida adulta Para os autores experiências adversas de relacionamento na infância favorecem modelos de apego inseguro ge rando vulnerabilidade à somatização em adultos FORMAS DE INTERAÇÃO DISPONÍVEIS COM O SISTEMA DE SAÚDE O sistema de saúde enquanto gerador de somatizacão A organização dos sistemas de saúde influen cia tanto o encontro clínico modificando as formas através das quais a relação médicopaciente se dá quanto à organização dos serviços de saúde Como veremos a maneira pela qual a interação entre mé dicos e pacientes se dá pode influenciar a geração de sintomas físicos inexplicáveis nos pacientes A evidência mais impactante de que a organi zação dos serviços de saúde é também uma variável nessa equação que está representada em sua totali dade na Figura 452 provém de dados de um estudo multicêntrico internacional realizado pela OMS com o objetivo principal de conhecer as estimativas de prevalência de transtornos mentais em unidades ge rais de saúde na década de 1990 contando inclusive com um centro brasileiro no Rio de Janeiro Nele as 17 unidades de saúde estudadas foram divididas em dois tipos a depender de características de seu fun cionamento As unidades que tendiam a manter um médico pessoal para cada paciente a ter um segui mento coordenado a usar prontuários e a manter um sistema de agendamento foram classificadas como de tipo A As que tendiam a não ter uma organização desse tipo entre eles a unidade brasileira foram classificados como de tipo B Os pacientes entrevista dos nas clínicas de tipo B apresentavam uma chance significativamente mais alta de se queixarem de três ou mais sintomas físicos sem explicação médica con trolando para idade e sexo além de também apresen tarem um risco significativamente maior de apresen tarem quadros somáticos de transtorno depressivo Kirmayer 1984a b Kirmayer e Looper 2006 Gask e Usherwood 2002 Isso nos faz levantar algumas questões Sabe mos pelos livrostexto psiquiátricos que os pacientes somatizadores têm a tendência a trocar de médico doctorshopping Será possível pelo menos na so matização leve que aconteça justamente o inverso ou seja que a troca exagerada de médicos leve ao estabelecimento de sintomas inexplicáveis Poderá ser que as diferenças encontradas nas taxas de soma tização nas diferentes culturas sejam ao menos em parte causadas por diferenças de funcionamento dos sistemas de saúde Qual a influência dos sistemas de saúde e sua organização na geração dos rótulos di vergentes através dos quais as diferentes especialida des médicas reconhecem pacientes com os mesmos sintomas inexplicáveis Tais questionamentos ainda sem resposta le vam à necessidade do delineamento de uma agen da futura de investigação para o elucidamento desta questão A nosso ver num país como o Brasil que dispõe de sistemas de atenção à saúde que diferem conforme o poder aquisitivo do seu usuário SUS x segurosaúde tal tema se coloca ao mesmo tempo como uma demanda a ser esclarecida e um espaço fértil para pesquisas Para o momento basta colocar a reflexão des tinada especialmente a gestores e gerentes dos servi ços de saúde como organizar o cuidado de forma a minimizar a morbidade por sintomas físicos inexpli cáveis Acreditamos que elas estejam no sentido da organização de um sistema de saúde pautado pela integralidade e humanização à saúde O poder somatizador da consulta médica A relação médicopaciente desempenha impor tante papel na forma de como os pacientes apresen tam seu sofrimento e sua relação com o surgimento das queixas somáticas inexplicáveis tem sido estuda da por Kirmayer 1984a b 2006 e por autores in gleses em especial Gask 2002 Dowrick 2005 e Salmon 2005 entre outros Inúmeros trabalhos têm FIGURA 452 Mapa conceitual sobre possíveis vias de influência da orga nização do sistema de saúde na gênese eou manutenção de sintomas físicos inexplicáveis indicadas através das setas em destaque mais espessas Sistema de saúde Cultura Relação médi copaciente Serviços de saúde Sintomas físicos inexplicáveis Psicossomaticaindd 555 Psicossomaticaindd 555 05012010 121226 05012010 121226 556 Mello Filho Burd e cols sido por eles publicados e deles podemos destacar os seguintes aspectos Ao contrario do que se considera empiricamente os pacientes com queixas médicas inexplicáveis apresentavam durante a consulta varias pistas de seu sofrimento psicosociais mas os médicos não as acolhiam e respondiam oferecendo inter venções médicas tradicionais medicações exa mes e encaminhamentos que não tinham sido originalmente solicitadas pelos pacientes Na realidade pacientes com queixas somáticas inexplicáveis buscavam mais suporte emocional de seus médicos do que os outros pacientes e os profissionais respondiam com intervenções somá ticas Ao estudarem as diferenças entre médicos que aceitavam ou não ser treinados para abordar pa cientes com MUS foi verificado que a falta de confiança em suas próprias habilidades em abor dar psicologicamente seus pacientes era uma di ferença fundamental entre os dois grupos Para que modelos explicativos em comum entre médicos e pacientes sejam construídos é neces sário que estes façam sentido para ambos os en volvidos em especial quando envolve explicações normalizadoras de sintomas somáticos inespecífi cos Tranquilizações genéricas exames comple mentares negativos e explicações físicas simplistas não se revelaram eficientes mas sim explicações que envolvessem mecanismos que respondessem as preocupações dos pacientes em geral ligando aspectos físicos e emocionais Assim sendo há fortes indicações que a somati zacão do sofrimento emocional é um fenômeno construído na relação médicopaciente muito mais do que uma alteração básica presente no paciente como tem sido considerado tradicional mente até os dias de hoje Na realidade brasileira também podemos desta car alguns aspectos da prática médica que con tribuem para a gênese e manutenção das quei xas somáticas inexplicáveis tais como os modelos diferentes de compreensão do processo de saúde e doença como se entende o papel do médico na resolução dos problemas e sintomas trazidos pelos pacientes incluindo a legitimação da iden tidade de doente desses pacientes e o princípio da exclusão como base da formação médica na abordagem tradicional dos problemas psicosso ciais trazidos pelos pacientes Helman 2005 aponta que para que uma boa relação médicopaciente seja estabelecida é necessá rio que os dois participantes consigam construir um modelo explicativo comum do processo de doença que se esta abordando Esse é o primeiro problema Enquanto os médicos são formados dentro de uma perspectiva cartesiana estrita onde só existe doença quando se verifica uma lesão anatomopatológica os doentes são autoridades na percepção de suas altera ções corporais e esperam dos profissionais que eles tenham compreensão e explicações para essas alte rações que são as queixas somáticas inexplicáveis Os médicos tendem a referir que não há nada e reagir como se esses sintomas fossem invenções ou mentiras dos pacientes que obviamente se sentem desacredi tados e até agredidos ao perceberem esta avaliação Instalase aqui um conflito fundamental para compre ensão da evolução desses sintomas Sem conseguir que suas alterações corporais sejam devidamente ex plicadas os pacientes reassumem sua peregrinação em busca de um médico que os entenda reforçando o comportamento somatizador Estabelecese um cabo de guerra entre médicos e paciente que inviabiliza a aliança terapêutica o médico dizendo que o paciente não tem nada garantido em seu saber técnico e nos exames o paciente com o conhecimento e o saber de seus sintomas e consciente de que algo está errado consigo mesmo atesta a ineficiência do médico no processo de solucionar esse mal estar Apenas exis tem perdedores nesse conflito Ring et al 2005 Hel man 2005 Outro aspecto importante de problema é que os médicos acreditam que eles devem propor soluções para todos os problemas que seus pacientes trazem e que os pacientes esperam isso deles Assim tendem a evitar abordar problemas psicossociais pois não se sentem aptos a solucionálos pelos seus pacientes Na verdade estudos Ring et al 2005 Helman 2005 demonstram que antes de tudo os pacientes querem compreensão apoio e atenção especialmente quan do conflitos emocionais estão presentes Essa diferença de visão se perpetua com o en tendimento dos profissionais de que para que um sintoma seja entendido como sendo uma somatiza ção toda e qualquer possível causa orgânica deve ser afastada antes Isso reflete uma dificuldade do profissional de lidar diretamente com o sofrimento emocional e os transtornos mentais presentes nestes pacientes que ficam relevados a um segundo plano Tendem a não querer entender que a problemática psicosocial dos seus pacientes também é objeto de seu cuidado o que reforça que as queixas emocionais diretas não sejam adequadamente escutadas e trata das E aumenta a solicitação de exames e pareceres reforçando o padrão somatizador de entendimento dos sintomas Psicossomaticaindd 556 Psicossomaticaindd 556 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 557 Para completar o médico é fundamental para que estes pacientes se sintam autorizados como le gitimamente doentes Essa legitimação e toda a plê iade de ganhos associados familiares socioculturais e até financeiros dependem de que esse profissional endosse essa identificação fato que geralmente es tabelece conflitos importantes na relação médicopa ciente No caso das síndromes funcionais esse aspec to é particularmente importante A presença de um rótulo um diagnóstico e fundamental pois justifica uma série de mudanças de posicionamento social e familiar que acompanham o papel de doente Cho et al 2008 Podemos citar uma síndrome funcional muito em discussão atualmente que é a síndrome do Golfo até hoje pouco esclarecida em sua definição e caracterização mas ponto de honra para dezenas de militares americanos que estiveram no campo de batalha da primeira guerra do Iraque Também a sín drome da fadiga crônica tem sido objeto de batalhas entre pacientes profissionais seguradoras e institui ções médicas na busca de definir a existência e o re conhecimento de uma doença autorizando uma nova identidade para seus portadoresPilowski 1997 FATORES INDIVIDUAIS Do ponto de vista individual dois fatores tem se destacado pela sua associação com a cronificação dos quadros de somatização Comportamento anormal de doente Um importante aspecto relacionado ao desen volvimento de somatizações crônicas é a presença de comportamento anormal de doença conforme for mulado por Pilowsky 1997 Esse autor se baseia na definição de Parson apud Pilowsky 1977 de um papel de doente referindo se as formas consideradas normais como os pacien tes lidam com suas doenças seguindo determinados padrões culturais A sociedade ocidental através da cultura e da família e até mesmo da legislação tam bém constrói esse padrão socialmente aceito visando o fortalecimento do paciente para sua melhor recu peração e que tem as seguintes características Aceitar a posição de doente como indesejável Reconhecer seu compromisso com a melhora Procurar apoio técnico serviços de saúde ade quado para sua melhora Ser considerado como isento de responsabilidade pelo mal que o está acometendo Ser considerado merecedor de ser cuidado Ser liberado das obrigações sociais normais Mas esse comportamento pode também adqui rir feições patológicas com uma adesão a excessiva a esse papel de doente com ganhos secundários Nesse caso observase o que é chamado de comportamento anormal de doente caracterizado por u ma regressão excessiva com vivências de incapacidade solicitações de ser isento de responsabilidades e por uma adesão as queixas físicas que seriam as justificativas para o comportamento de doente apresentado Esse ganho secundário pode estar associado com a resolução de problemas familiares ou profissionais através do fato de se estar doente Pode buscar inclusive compen sações financeiras diretas sob a forma de benefícios previdenciários ou litígios trabalhistas Em geral é um fator grave de cronificação e baixa resposta ao trata mento Um exemplo interessante nesse sentido é o da síndrome da fadiga crônica onde estudos demonstra ram que entre diferenças entre as pacientes com esses sintomas no Brasil e no Reino Unido destacandose o grau de comprometimento funcional e a presença de beneficio previdenciário Pilowski 1997 Por outro lado há que se lembrar que a classificação deste com portamento como anormal é feito por teóricos que são profissionais de saúde É importante recordar que o paciente segue padrões determinados social e indi vidualmente e que eles não têm consciência de que do ponto de vista etnocêntrico do sistema de saúde esteja agindo de forma errada VIVÊNCIAS TRAUMÁTICAS E VERBALIZAÇÃO DO SOFRIMENTO EMOCIONAL Varias pesquisas demonstram a associação da presença de queixas SEM com historias de vitimiza ção por violência física severa ou abuso sexual em especial se a violência se acompanha de uma ausên cia de reconhecimento de denuncias acerca dessa violência por exemplo em crianças vitimas de vio lência Fatores como maus tratos falta de cuidados ou negligência são considerados precursores impor tantes de uma ampla variedade de sintomas para os quais não existem explicações médicas De acordo com Waldinger e colaboradores 2006 apesar de grande número de pesquisas terem examinado espe cialmente casos de abuso físico e sexual recentemen te observouse que situações de abuso emocional e negligência estão também associadas à somatização Muitos somatizadores cresceram em ambientes fa miliares frios distantes sem apoio e caracterizados por abuso emocional crônico e maus tratos físicos Psicossomaticaindd 557 Psicossomaticaindd 557 05012010 121226 05012010 121226 558 Mello Filho Burd e cols não sendo necessariamente o abuso sexual um pré requisito para o surgimento da somatização Brown Scrag Trimble 2005 Essa associação de vivencias de desempoderamento com processos crônicos de soma tização é particularmente frequente e norteia alguns aspectos das intervenções terapêuticas Ela pode fazer uma ponte entre as explicações psicanalíticas tradicionalmente relacionadas para as somatizações crônicas a partir do conceito de alexi timia sem palavras para as emoções onde esta se ria provocada por uma incapacidade de verbalização do sofrimento emocional Mcdougall 1983 Marty e De Múzan 1994 Tófoli et al 2007 De fato a im possibilidade de verbalizar insatisfação e outros sen timentos negativos se associa a presença de queixas somáticas inexplicáveis embora se relacione muito mais intensamente com questões sociais pacientes vitimas de perseguição política ou crianças abusadas sexualmente de reconhecimento e legitimação dessa insatisfação do que de uma incapacidade individual tal como o déficit simbólico proposto no conceito de alexitimia do paciente SOMATIZAÇÃO ILLNESS mas também DISEA SE A questão das alterações funcionais cerebrais nas somatizações crônicas Recapitulando consideramos que as queixas somáticas inexplicáveis são uma forma de apresen tação de sofrimento emocional incluindo transtor nos mentais ou seja uma forma de manifestação de um processo de adoecimento uma forma de illness Essa enfermidade ou adoecimento pode ser refor çado pelo sistema de saúde e seus profissionais e em alguns casos pode evoluir de forma crônica Nesses casos costumam estar associadas a um comportamen to anormal de doente e a grave comprometimento funcional com alto grau de incapacidade pessoal familiar e social São pacientes graves e de difícil tra tamento Nesses casos crônicos tem sido pesquisada a pos sível existência de mecanismos fisiopatológicos fun cionais específicos sem alterações anatomoclínicas pelos quais essas somatizações crônicas se perpetuam e que podem representar um processo especifico de doença ou seja uma forma de disease Essa é hoje uma das grandes perguntas para aqueles que pesquisam somatização E a resposta ain da esta longe de ser alcançada No processo de am pliação do conhecimento sobre as síndromes funcio nais em separado ou dentro da perspectiva de uma entidade patológica única alguns avanços no conhe cimento desses pacientes foram obtidos e algumas novas evidências têm sido verificadas principalmen te em termos de estudos de neuroimagem Gostarí amos de fechar o capitulo apresentando a discussão sobre os possíveis mecanismos envolvidos nos casos de somatização crônica Não existe um consenso no meio cientifico sobre esses processos e nem mesmo se serão os mesmos para todas as síndromes funcio nais ou para os transtornos somatoformes de dor ou para os quadros envolvendo sintomas conversivos e dissociações histéricas Mas representam o que hoje se pesquisa em termos de pacientes somatizadores crônicos Não podem no entanto serem ainda defi nidos como marcadores biológicos devido à sua baixa confiabilidade Iremos nos deter em estudar como exemplo as alterações encontradas em casos de fibromialgia enquanto exemplo de uma síndrome funcional fre quentemente associada a somatizações crônicas UM EXEMPLO ESTUDANDO FIBROMIALGIA Na fibromialgia como na maioria das síndromes funcionais não se detecta uma lesão específica Mas já se conhecem alterações fisiopatológicas em fun ções e mecanismos neuroquímicos presentes nesses quadros embora não necessariamente exclusivos dessa patologia e que parecem envolver alterações neuroquímicas e processos de hipersensibilização neuronal Diversos autores têm apontado Waitzkin et al 1997 Roelefs 2005 Claws 2001 De Gucht e Maes 2006 Gur et al 2004 Brown 2004 alguns aspectos relativos aos mecanismos fisiopatológicos presentes na fibromialgia Amplificação somática O comportamento soma tizador crônico no adulto está estreitamente vin culado aos processos de amplificação somática e catastrofização das sensações somáticas anormais que são frequentes em todas as pessoas Apresen tam uma preocupação em relação às funções do corpo e a sua integridade física como uma forma de elaboração das sensações somáticas muitas vezes normais que por acaso venham a apresen tar Como já vimos agressões físicas o não aten dimento de necessidades básicas ou negligência produzem indivíduos adultos apreensivos com seus próprios corpos e saúde escrutinandose in cessantemente em busca de sintomas anormais que possam representar ameaça a sua integridade física e sobrevivência Psicossomaticaindd 558 Psicossomaticaindd 558 05012010 121226 05012010 121226 Psicossomática hoje 559 Hipersensibilização Essa alteração de regiões do sistema nervosos acompanhase de anormalida des no sistema aferente envolvido no processa mento dos estímulos sensoriais envolvendo uma amplificação da percepção de estímulos patológi cos No caso da fibromialgia parece haver uma diminuição na atividade descendente inibitória córticoespinhal uma maior concentração de substância P no líquor alterações nos níveis de serotonina e noradrenalina e uma hipersensibili dade aos estímulos álgidos Essa hipersensibiliza ção que pode ser a vários tipos de estímulos e diferente em cada uma das síndromes funcionais até agora tem sido considerado o mecanismo pa tológicos central nessas doenças Alteração da atividade do eixo hipotálamo hipofisárioOs resultados de estudos sobre alte rações no funcionamento do eixo hipotálamo hipofisário em pacientes com fibromialgia têm sido contraditórios Mas verificaramse alterações nos níveis de cortisol em diversos estudo Brown 2004 Sharpe e Wessely 2005 que se associam à presença de depressão alterações do sono e fadi ga nesses pacientes Okifuji 2003 Estresse crônico A presença de estressores que agem como desencadeantes é fator importante no surgimento dos quadros de somatização Es ses estressores podem ser de vários tipos físicos imunológicos emocionais ou químicos e envol vem o comprometimento da homeostase natural do organismo Esses fatores estressores tem sido fonte de confusão pois se verifica que esses pa cientes tendem a valorizar estressores somáticos em detrimento a estressores de origem emocio nal muitas vezes de muito maior intensidade Esse processo com a valorização do sofrimento orgânico foi o ocorrido nos primórdios dos es tudos sobre síndrome da fadiga crônica em que infecções virais muitas vezes nem confirmadas por exames posteriormente eram valorizadas e associadas ao início dos sintomas Autoimagem de pessoa fraca e incapaz Vários autores têm apontado a importância da forma como os pacientes lidam com fatores estressantes principalmente crônicos na etiologia das síndro mes funcionais Apresentando sintomas que são muito frequentes na população geral esses pa cientes parecem se distinguirem exatamente pela forma como lidam com problemas e dificuldades da vida sentindose incapazes de lutar e supe rar as dificuldades muitas vezes mais corriqueiras da vida Aqueles que apresentam mecanismos de enfrentamento passivos ou evitativos tendem a apresentar piores evoluções e prognósticos mais reservados Maior confiança em si e posturas mais proativas estão associadas a melhor resposta a tratamento e menor comprometimento da fun cionalidade e e qualidade de vida Brown 2004 Sharpe e Wessely 2005Merskey e Mai 2005 Exposição anterior a estressores7985 tornando es ses indivíduos mais suscetíveis de desenvolvimen to da doença As alterações envolvidas nesse pro cesso estão associadas à resposta do organismo a estresses crônicos porém algumas das caracterís ticas desse processo devem ser bem compreendi das para que possamos entender os mecanismos deste processo a O estresse crônico representa uma agressão para a qual estamos menos bem preparados ao que parece somos mais aptos a enfrentar feras do que engarrafamentos b O estressor terá tanto maior impacto negativo quanto mais forte for sua associação com uma sensação impossibilidade de superação não havendo escapatória nem fonte de suporte para enfrentálo c Estressores precoces na vida têm um impacto permanente e profundo na resposta biológi ca ao estresse que será instalada ao longo da vida Esse mecanismo pode explicar a associa ção existente entre transtornos somatoformes e síndromes funcionais e relatos de abuso fí sicos e sexuais na infância Clauws 2001 De Gucht e Maes 2006 Gur et al 2004 Brown 2004 Sharpe e Wessely 2005 Merskey e Mai 2005 Esses são alguns dos processos que se sabe hoje estarem envolvidos nas somatizações crônicas Pou co ainda se conhece de seu desenvolvimento E não muito mais sobre como tratar e transformar essa re alidade CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo da última década apoiado no desen volvimento de exames complementares de sofisticada tecnologia o conhecimento sobre o funcionamento cerebral avançou muito permitindo entender e ali viar o sofrimento mental de muitos pacientes O mo delo biomédico base tradicional da Medicina ate o século XX em muito contribuiu para esses avanços Por outro lado o impacto das doenças crônicas na saúde nesse terceiro milênio despertou a percep ção para a importância dos aspectos psicossociais no Psicossomaticaindd 559 Psicossomaticaindd 559 05012010 121226 05012010 121226 560 Mello Filho Burd e cols processo de adoecimento ampliando a prática clíni ca que hoje considera os hábitos as relações e os eventos de vida de seus pacientes como parte inte grante de sua ação terapêutica Nesse encontro ressurge a questão da soma tização E se coloca a grande pergunta atual nesse campo o que representam as queixas somáticas sem explicação médica E como podemos ajudar esses pa cientes Se puderem ser superadas as dualidades mente corpo se o espaço clínico terapêutico puder incluir o Cuidar do sofrimento psíquico se o apoio e o empo deramento de nossos pacientes que mais se conside ram incapazes doentes e abandonados forem parte habitual do Cuidado se os problemas familiares e sociais de nossos pacientes incluindo o abuso a vio lência e a miséria forem considerados objetivos das intervenções das equipes de saúde talvez os pacien tes poliqueixosos também se transformem Deixarão com certeza de serem enquadrados como os pacien tes mais rejeitados pelos médicos Superadas as divi sões sendo cuidados superarão suas dores e retoma rão uma vida produtiva E muito nos terão ensinado sobre como o sofrimento da mente marca o corpo REFERÊNCIAS Alexander F Psychosomatic Medicine New York Norton 1950 AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION DSMIVTR Manual Estatístico de Diagnóstico de Transtornos Mentais 4a Ed Rev Porto Alegre Artes Médicas 2002 Barsky A J Borus J F Functional Somatic Syndromes Ann Intern Med V130 N11 Jun 1 P 91021 1999 Brasil M A Furlanetto LM A Atual Nosologia Psiquiátrica e a sua Adequação ao Hospital Geral 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Mar113190200 Salmon P Voiced but Unheard Agendas Qualitative Analysis of the Psychosocial Cues that Patients with Unexplained Symptoms Pre sent to General Practioners Br J Gen Pract 2004 545001716 Salmon P Humphris GM Ring A Davies JC Dowrick CF Why do Primary Care Physicians Propose Medical Care to Patients with Medically Nunexplained Symptoms A New Method of Se quence Analysis to Test Theories of Patients Pressure Psychosom Med 2006 Jul Aug6845 Salmon P Ring A Dowrick CF Humphris GM What do Ge neral Practice Patients want when hey Present Medically Unex plained Symptoms and why do Their Doctors Feel Pressurized J Psychosom Res 20095 Oct 59425560 Discussion 2612 Schicchitano J Lovell P Pearce R Marley J Pilowsky I Ill ness Behaviour And Somatization In General Practice Journal Of Psychosomatic Research 1996 413 247254 ServanSchreiber D Randall Kolb N Tabas G Somatizing Pa tients Part I Practical Diagnosis In American Family Physician 2000 Vol 61No 4 15 Fevereiro Sharpe M Wessely S 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Psychosomatics Feb 1999 403443 Taylor PE The Boring Patient Can J Psychiatry 29217 2221984 Terre L Ghiselli W A Developmental Perspective On Family Risk Factors In Somatization Journal Of Psychosomatic Research Vol 42 No2Pp197 208 1997C Tófoli L F Investigação Categorial e Dimensional sobre Sintomas Físicos e Síndromes Somatoformes na População Geral 2004 201 P Tese Doutorado Faculdade de Medicina Universidade de São Paulo São Paulo Tófoli LF Somatização In Benseñor IM Tibério IC Bernik M Marcuz F Dórea EL Lotufo PA Orgs Medicina em Ambula tório 1ª Ed São Paulo Sarvier 2006 P 888897 Tófoli LF Transtornos Somatoformes Síndromes Funcionais e Sintomas Físicos sem Explicação Médica In Lopes AC Amato Neto Vicente Org Tratado de Clínica Médica 1ª Ed São Pau lo Roca 2006 V 2 P 25042512 Tófoli LF Fortes S Gonçalves D Chazan LF Ballester D Somatização e sintomas físicos inexplicáveis para o médico de família e comunidade In Eno Dias de Castro Filho Maria Inez Padula Anderson Org Programa de Atualização em Medicina de Família e Comunidade 1 ed Porto Alegre Artmed 2007 v 2 p956 Üstun TB Sartorius N Mental Illness in General Health Care an International Study John Wiley Sons 1995 Chichesser En gland Villano La Problemas Psicológicos E Morbidade Psiquiátrica Em Serviços De Saúde NãoPsiquiátricos O Ambulatório De Clínica Geral Tese De Doutorado São Paulo Unifesp 1998 Waitzkin H Mangaña H The Black Box In Somatization Unex plained Physical Symptoms Culture And Narratives Of Trauma Soc Sci Med Vol45No6Pp8118251997 Waldinger R J Schulz MS Barsky AJ Ahern D K Mapping The Road From Childhood Trauma To Adult Somatization The Role Of Attachment In Psychosomatic Medicine 2006 68129135 Psicossomaticaindd 562 Psicossomaticaindd 562 05012010 121226 05012010 121226 Como podemos observar na epígrafe o reco nhecimento de que problemas afetivos interferem no desenvolvimento das crianças e são responsáveis por diversas patologias e mesmo por suas mortes é anti go e consolidado A pergunta que se impõe é esta situação foi acompanhada por medidas preventivas e de modifi cação das ações do meio ambiente que responde por cuidar dos bebês Mais de 240 anos depois do texto da epígrafe uma autora como Estela V Welldon 2006 pergunta Por que se deseja ter um filho Escreve em seu ar tigo que a maternidade pode muitas vezes ser usa da inconscientemente como veículo para motivações perversas A mulher sabe inconscientemente que ao se tornar mãe terá total e completo controle do novo ser que estará à sua mercê p 100 Diante desse cenário ainda vigente na contem poraneidade cremos que um século das contribuições pioneiras de Freud acrescidas ao longo do tempo com as de seus seguidores nos forneceram um vasto esto que de conhecimentos dos processos afetivos fisioló gicos e hoje também neurofisiológicos que ocorrem durante o desenvolvimento desde os seus primórdios Por isso acreditamos que muito ainda há a ser feito em benefício de um desenvolvimento psicossomático integrado desde a infância Os pediatras especialmente aqueles que se de dicam ao trabalho em salas de parto são os primeiros profissionais a terem a oportunidade de cuidar do ser humano frágil e desamparado ao nascer Em sua contribuição inicial à psicossomática com o texto A mente e sua relação com o psiquesoma 1949 2000 Winnicott define alguns pontos im portantes O psiquesoma ou psicossoma como foi recentemente traduzido seria o mais perto desde o início da existência do ser humano original É um conceito complexo e desafiador pois concebe um in divíduo total e tira a importância de uma hierarquia ou precedência ou antagonismo entre físico e mental Winnicott diz Eis aqui um corpo sendo que a psique e o soma não devem ser distinguidos um do outro a não ser quanto à direção a partir da qual estivermos olhando É possível olhar para o desenvolvimento do corpo ou da mente p 333 Podemos ver em seu texto a importância que concede ao meioambiente perfeito para que haja um desenvolvimento saudável do psicossoma até que a mente possa acontecer como resposta do bebê às fa lhas gradativas da mãe Winnicott entende o ambiente do útero como bom e o nascimento como uma perturbação excessiva à con tinuidade idem p 337 provavelmente referindose à quebra da homeostasia da existência fetal Os momen tos iniciais do psicossoma são afetados duradouramente nos casos em que ocorra quebra excessiva levando a uma situação que ele chamou de catalogação Esta foi entendida como uma lembrança inconsciente de reação a um trauma o nascimento e Winnicott postula que o ser humano é capaz de recordar tudo o que lhe aconte ce tanto em nível físico quanto emocional Analisando estes conceitos Abram 2000 diz que se a experiência do nascimento for súbita será traumática será arma zenada porém não poderá ser processada A memória está localizada em alguma parte do corpo mas não é integrada como experiência p 191192 Nos anos de 1960 e 1970 o obstetra francês Frédérick Leboyer trouxe importantes contribuições referentes à importância da realização de um tipo de nascimento que minimizasse as descontinuidades Preconizava o corte tardio do cordão umbilical e su geria que deixasse o bebê se reencontrar com sua mãe 46 INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA INTERSUBJETIVIDADE E APORTES CONTEMPORÂNEOS Sérgio A Belmont No orfanato as crianças ficam tristes e muitas morrem de tristeza Diário de um bispo espanhol datado de 1760 Psicossomaticaindd 563 Psicossomaticaindd 563 05012010 121227 05012010 121227 564 Mello Filho Burd e cols depois de nascer Estas singelas e profundas suges tões permitiriam na prática que se evitasse as cita das descontinuidades bruscas e a fundação de uma das angústias fundamentais do ser humano ligada à obrigação de respirar para receber oxigênio e sobre viver No parto com corte tardio alguns minutos o bebê poderia ter mantida a homeostasia anterior continuando a receber oxigênio e nutrientes pelo cor dão e ingressando no mundo de diferenças e descon tinuidades de modo suave Além disso trouxe outros importantes conhecimentos trazidos de suas observa ções realizadas na Índia Entre elas a importância do shantala que ao enfatizar a integração propiciada pelo manuseio amoroso do corpo do bebê pode ser equacionado à importância que Winnicott atribuiu ao holding e handling Os cuidados pósnatais serão essenciais na integração psicossomática e nas funda ções de espaço e tempo Leboyer 1998 p 17 dizia poeticamente a esse respeito Fora dentro Eis o mundo dividido em dois Dentro a fome Fora o leite Nasceu O espaço Infelizmente com muitas outras excelentes ideias seus conceitos não puderam ser mantidos e integrados à evolução científica e às necessidades contemporâneas de adaptação ao ritmo frenético da vida Atualmente quase não encontramos suas ideias nas práticas e técnicas ligadas ao nascimento e cui dados pósnatais É útil lembrar o quanto o trabalho dos neonatologistas e obstetras informados a respeito dessas noções pode ter papel fundamental no encon tro do bebê com os primeiros cuidadores Começamos nosso texto com conceitos de Win nicott pediatra e teórico das relações objetais en tre outras razões porque muitas de suas formulações teóricas trazem a marca multifacetada paradoxal e não reducionista que define o campo epistemológico das ciências na pósmodernidade Outras seriam suas contribuições a respeito das questões psicossomáti cas onde se destaca a interação entre os aspectos cons titucionais individuais e a definitiva importância da in fluência das ações e omissões do meioambiente sobre o sujeito nascente que alcançam a contemporaneidade A título de uma importante comparação e exten são discutiremos também algumas ideias da Escola Francesa de Psicossomática muito ligada em seu iní cio a Pierre Marty e coincide operacionalmente com a fundação do Hospital de la PoternedesPeupliers em 1978 onde funciona o IPSO Sua presença é de vida entre outros fatores como a enorme e justifica da influência que adquiriu na esfera da cena psicos somática mundial pela extensão e profundidade de discussão de seu material clínico Os aportes contemporâneos propostos no título terão a ver neste texto com as contribuições atuais trazidas pelas neurociências permitindo no entendi mento deste autor a possibilidade de comprovação empírica e integração conceitual de várias teorias psi codinâmicas ligadas aos fenômenos psicossomáticos e sua compreensão A infância será entendida aqui não como lat infantia período da vida no ser humano que vai desde o nascimento até a adolescência meni nice Dic Michaelis 1998 e sim como a etapa do desenvolvimento primitivo compreendido entre o nascimento e o início da capacidade para o uso da linguagem falada usualmente entre o primeiro e segundo anos de vida do bebê A acepção é pro veniente do termo latino infansantis que não fala infantil encontrada no Dicionário Etimológico de Cunha 1982 p 434 Essa distinção extrapola de muito as questões semânticas entranhandose com os aportes teóricos que serão discutidos pois nossa intenção é enfatizar o fato do sujeito humano durante os meses iniciais de sua vida não ter recursos verbais expressivos de seus estados corporais de desagrado de dor de fome ou de frio que mais tarde poderão ser evidenciados como angústia e ansiedade De modo análogo é de modo físico que satisfação e bemestar aconchego e pacífico existir fisiológico em repouso são vividos sendo posteriormente entendidos e sentidos como alegria paz ou felicidade Também é importante acentuar que a citada fase do desenvolvimento que alguns autores acreditam ser mais fisiológica do que psicológica impõe mais do que qualquer outra a participação e interferência do meioambiente representado por aqueles que têm o bebê sob seus cuidados Em sua visão premonitória e demiúrgica usando este termo em ilação ao senti do platônico original aqui se referindo ao universo dos fenômenos emocionais Winnicott disse que Não existe tal coisa com um bebê afirmando em sua maneira provocadora que a existência do ser humano em seus primórdios estava definitivamente condicionada pela presença e os atos de uma pessoa cuidadora Sempre que pensamos em um bebê nós o visualizamos com alguém ao lado sendo a vida hu mana fora de um contexto relacional e intersubjeti vo em realidade uma abstração teórica Existe uma situação de enlace entre a depen dência absoluta inicial dos bebês e a necessidade im periosa de que para que sua fisiologia matriz da psicologia futura seja mantida no registro do equi líbrio e homeostasia silenciosos o meioambiente possa perceber suas expressões corporalafetivas Psicossomaticaindd 564 Psicossomaticaindd 564 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 565 atendendoas de maneira suficiente para aquele bebê em particular Winnicott definiu esta situação inicial a ser otimistamente preservada como going on being ex pressão complexa que pode ser entendida como ir sendo significando que o bebê para que possa se desenvolver de maneira integrada precisa ser visto por alguém antes de ter a capacidade de se ver Foi dentro dessa compreensão da complexidade inter subjetiva dos primórdios da vida que Winnicott cons truiu em grande medida seu corpus teórico e Julio de Mello Filho 1989 espalhou seu pensamento no Brasil com o seminal O Ser e o Viver uma visão da obra de Winnicott A Psicossomática vai ser entendida neste texto como a interação atualizada de suas três fases defi nidas Mello Introdução 1992 como a inicial ou psicanalítica b intermediária ou behaviorista c atual ou multidisciplinar A atualização proposta diz respeito como já foi citado às contribuições contemporâneas trazidas pelas pesquisas e descobertas em neurociências que evidenciaram uma nova possibilidade de integração entre campos anteriormente antagônicos e reducio nistas A situação vigente ao longo da maior parte do século XX quando uma visão pontual e não inte grada determinou que a psicologia comportamental e a psicanálise a psiquiatria e a neurologia sujeito e meioambiente e sujeito natureza fossem estuda dos por disciplinas separadas e sobretudo não co municantes que resultou em grande prejuízo para a compreensão dos fenômenos afetivos emocionais e mentais As próprias dicotomias corpomente sujei tonatureza sujeitosociedade e cérebromente têm sido transformadas e superadas em grande medida com as contribuições atuais das neurociências Há muito pouco tempo seria quase impossível encontrar um livrotexto intitulado A Neurociência da Psicoterapia construindo e reconstruindo o cérebro hu mano Cozolino 2002 onde o editor diz que o autor demonstra com clareza como a arquitetura do cére bro se relaciona com os problemas paixões e aspira ções dos seres humanos Em outro texto intitulado O self sináptico como nosso cérebro se torna quem nós somos Le Doux 2002 o autor diz que o quebra cabeça de como natureza e meioambiente nutrição educação moldam quem nós somos fica simplificado pela constatação de que as sinapses são a chave para a operação de ambosp 5 Destes dois textos entre centenas podese ver um amplo movimento de articulação entre processos mentaiscerebrais anteriormente separados não ape nas em sua compreensão mas também nos campos que os estudavam ficando evidente que um novo e fascinante espaço transdisciplinar está em desenvol vimento acelerado Este capítulo tem a intenção de chamar a aten ção para este cenário como já dito impensável até a bem pouco tempo Anteriormente alguns autores brasileiros produ ziram trabalhos muito importantes tratando de arti cular psicanálise e neurociências Lembro apenas para falar do Rio de Janeiro de Carlos Doin da SBPRJ e Vitor Manuel de Andrade da SPRJ Apesar da excelên cia de seus textos e da sua característica premonitória do quadro atual para o qual muito contribuíram creio que permaneceram mais como iniciativas isoladas até recentemente Agora parecendo ser um reflexo nas Sociedades de Psicanálise do reconhecimento de que houve um salto epistemológico irreversível abrindo um amplo espaço transdisciplinar abrangendo neuro ciências e psicoterapias e outras disciplinas começa uma organização institucional de grupos de estudo e comissões de pesquisa das relações entre a psicanáli se e as neurociências No Rio de Janeiro está sendo criado um curso pioneiro de pósgraduação na Santa Casa de MisericórdiaRJ intitulado NeuroPsicotera pia Enfoque AfetivoRelacional Alguém imaginaria esta situação há 10 anos O curso citado tem o subtítulo de Afeto e Rela ção o processo de transformação do self e tem em seu corpo docente psicanalista psicólogos doutores em neurociências psiquiatras e neuropsiquiatra O mosaico dos profissionais envolvidos mostra a com plexidade do campo em estudo e a compreensão da necessidade imperiosa do diálogo inter e transdisci plinar Atendendo a estes princípios uma publicação de ampla pesquisa do National Academy of Sciences Institute of Medicine 2000 realizada nos Estados Unidos durante dois anos e meio envolvendo 17 es pecialistas de diferentes áreas reunidos em comitê de avaliação e integração das ciências atuais a respeito do desenvolvimento na infância precoce definiu os seguintes princípios centrais do desenvolvimento 1 O desenvolvimento humano é moldado por uma interação dinâmica e contínua entre biologia e experiência 2 A cultura influencia todos os aspectos do desen volvimento humano e é refletida em crenças so bre cuidados infantis e em práticas destinadas a promover uma adaptação saudável 3 O desenvolvimento da autorregulação é uma viga mestra do desenvolvimento inicial da infância que além do mais atravessa todos os domínios do comportamento Psicossomaticaindd 565 Psicossomaticaindd 565 05012010 121227 05012010 121227 566 Mello Filho Burd e cols 4 As crianças são participantes ativos de seu pró prio desenvolvimento refletindo o impulso hu mano intrínseco de explorar e dominar seu meio ambiente 5 As relações humanas e os efeitos de relações so bre outros relacionamentos são os blocos que constroem um desenvolvimento sadio 6 A ampla escala de diferenças individuais entre crianças muito pequenas frequentemente torna difícil distinguir variações normais e atrasos ma turacionais de desordens transitórias e deficiên cias permanentes 7 O desenvolvimento de crianças evolui ao longo de caminhos individuais cujas trajetórias são carac terizadas por continuidades e descontinuidades bem como por uma série de transições significa tivas 8 O desenvolvimento humano é moldado pelo in terjogo permanente entre fontes de vulnerabili dade e de resiliência 9 O timing das experiências precoces conta porém com mais frequência do que o contrário a crian ça em desenvolvimento se mantém vulnerável a riscos e aberta a influências protetoras desde os anos iniciais de suas vidas até a idade adulta 10 O curso do desenvolvimento pode ser alterado na infância precoce através de intervenções efetivas que alteram o equilíbrio entre risco e proteção mudando deste modo as chances em favor de resultados mais adaptativos Creio podermos dizer que este eixo conceitual que os autores definiram como central para uma compreensão atual do desenvolvimento primitivo hu mano nos traz à mente inúmeras teorias e autores psicanalíticos ao longo de 100 anos de produção teó rica e exercício clínico nesse campo O fato que avulta e que procuro enfatizar é que longe de representar uma temida morte da psicaná lise o quadro atual das ciências do desenvolvimento vem a confirmar os princípios centrais definidos por gerações de psicanalistas desde Freud até hoje O ho mem é um ser da natureza possuidor de uma mar ca biológica individual e chega ao mundo trazendo um conjunto de circuitos de adaptação e coping que entretanto só vai poder se organizar e receber o sof tware de experiências e aprendizado se for recebido e cuidado dentro de um ethos humano A psicanálise que sempre buscou teorias expli cativas dos vários aspectos do desenvolvimento tem hoje a oportunidade ímpar pelos aportes trazidos na contemporaneidade pelas ciências de dar o recheio de empirismo investigativo com o qual seu fundador sonhou desde o Projeto O momento é de integrar e caminhar O último mas não menos importante aspecto dos aportes contemporâneos diz respeito às enormes transformações que a família nuclear vem sofrendo nas últimas décadas Em lugar do modelo de família patriarcal vigente por séculos que serviu de moldura para muitas das formulações e modelos teóricos das relações psicológicas entre seus membros temos hoje em dia famílias sem a presença do pai outras forma das pela união de filhos de vários casamentos vivendo juntos filhos de casais homo e heterossexuais conce bidos por inseminação artificial anônima ou adoção e outras questões como a clonagem que abrem um largo mosaico de problemas não existentes até a bem pouco tempo Este novo quadro trazido pela contem poraneidade guarda nichos que ainda esperam por elaboração teórica e legislação apropriada WINNICOTT INFÂNCIA E PSICOSSOMÁTICA Donald Winnicott como já foi dito foi pediatra antes de ser psicanalista permanecendo em conta to diário com bebês crianças e suas famílias durante toda sua vida profissional Sua longa experiência re sultou em conceitos e sugestões clínicas que ajuda ram a transformar a prática pediátrica e são extrema mente valiosos e atuais ainda hoje Este capítulo reúne um conjunto de seus concei tos básicos sobre o desenvolvimento emocional pri mitivo privilegiando os ligados à teoria das questões psicossomáticas Em outro ponto chamei este eixo conceitual de princípios básicos ou fundamentais analogamente ao proposto por Laplanche e Pontalis 1973 ao referir se ao local e perfil da metapsicologia Freudiana como textos que são mais básicos no sentido de desen volverem ou exporem as hipóteses que dão suporte ou substância à psicologia psicanalítica seus princí pios Prinzipien ou conceitos fundamentais Grun dbegrieff Creio que podemos incluir nesse sentido temas estudados por Winnicott dentre os quais seleciona mos os seguintes preocupação materna primária a mente e sua relação com o psicossoma going on being privação deprivação delinquência espelhamento holding e handling e mãe suficientemente boa A preocupação de Winnicott com a importância das mães no cuidado e desenvolvimento dos bebês já pode ser vista de modo individualizado no con ceito 1949 de mãe devotada comum Este termo nasceu de uma conversa espontânea apud Abram Psicossomaticaindd 566 Psicossomaticaindd 566 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 567 2000 entre Winnicott e a produtora da BBC Isa Ben zie onde buscavam nome para um conjunto de pales tras que ele faria pelo rádio para mães sobre aquilo que elas fazem melhor e o fazem bem simplesmente porque cada uma delas é devotada a uma tarefa ou seja cuidar de um bebê Isa disse Esplêndido A Mãe Devotada Comum A importância dessa devoção está ligada à iden tificação inconsciente da mãe com seu bebê e o desen volvimento dessa ideia o levou a escrever em 1956 o texto Preocupação Materna Primária considerado pela autora citada e por muitos outros admiradores e estudiosos de Winnicott como seu texto definiti vo sobre o assunto De minha parte eu considero o conceito como o motor que põe em movimento a maioria das outras formulações teóricas relativas às relações mãebebê primitivas sendo importante no tar sua peculiaridade dinâmica de funcionar tanto nos processos de integração quanto nos de não inte gração quando falha Nesse texto 1956 2000 Winnicott dialoga com outros autores como Anna Freud e Margatet Mahler e dele destaco o trecho onde diz A Srta Freud afirma que o relacionamento com a mãe embora seja o primeiro com outro ser humano não é o primeiro com um ambiente Precedeo uma fase anterior na qual não o mundo objetivo mas as necessidades corporais sua satisfação ou frustração de sempenham o papel principal p 400 meu itálico Ele faz uma definição desse estado tão impor tante para a vida do bebê humano em seus momentos iniciais nos quais avulta em importância o fato de que ele não pode expressar suas necessidades corpo rais mais simples ou prementes de outra maneira que não seja corporal o que determina a importância da presença atenção e devoção de alguém a seu lado Chega a definir o estado de preocupação materna primária como uma condição psiquiátrica não fosse pela presença da gravidez e diz que as mulheres nes sa condição devem alcançar esse estado de sensibili dade exacerbada quase uma doença e recuperarse dele Diz que A mãe que desenvolve esse estado ao qual chamei de preocupação materna primária fornece um contexto para que a constituição da criança comece a se mani festar para que as tendências ao desenvolvimento co mecem a se desdobrar e para que o bebê comece a ex perimentar momentos espontâneos e se torne dono das sensações correspondentes a essa etapa inicial da vida Tentei descrever tais ideias dizendo que se a mãe proporciona uma adaptação às necessidades do bebê a linha da vida da criança é perturbada muito pouco por reações à intrusão Naturalmente são as reações às intrusões o que conta não as intrusões em si mesmas A falha materna provoca fases de reação à intrusão e as reações interrompem o continuar a ser do bebê O excesso de reações não provoca frustração mas uma ameaça de aniquilamento p 403 Lembremos que um texto citado por mim antes dizia que o desenvolvimento humano é moldado por uma interação dinâmica e contínua entre biologia e experiência relações aprendizado e que a cultura influencia todos os aspectos do desenvolvimento sendo a aquisição da autorregulação uma viga mes tra desse trajeto inicial dana infância que além do mais atravessa todos os domínios do comporta mento Dentro da visão atual da compreensão das re lações iniciais dos bebês com seus meioambientes aqueles são entendidos como participantes ativos de seu próprio desenvolvimento refletindo o impulso humano intrínseco de explorar e dominar o mundo sendo as relações e os efeitos de relações sobre ou tros relacionamentos os blocos que constroem um desenvolvimento sadio p 3 Podemos observar que os autores atuais também falam de interações desde o princípio do desenvolvi mento podendo ser entendido que os efeitos delas sobre outras futuras mostram a importância inicial da presença e das ações ou omissões definidas por Winnicott Em seu texto de 1956 2000 ele já se preocupava em definir um lugar e um papel para o bebê em seu desenvolvimento ao dizer que O bebê apresenta uma constituição tendências inatas ao de senvolvimento motilidade e sensibilidade instintos eles próprios engajados na tendência ao desenvolvi mento p 402 Mais adiante ele conclui que de acordo com essa tese os fatores constitucionais terão mais proba bilidade de se manifestar na normalidade quando o ambiente da primeira fase for adaptativo p 404 A ponte entre a visão transdisciplinar e multi profissional atual do desenvolvimento e aquela pro posta por Winnicott fica evidente sendo importante destacar o papel da mãe nesse cenário inicial uma vez que é ela a primeira presença humana constante jun to ao bebê sendo seus atos gestos ações e omissões fundamentais para a constituição do sujeito humano assim como para a sua integração psicossomática As relações entre os bebês e seus cuidadores são sempre expressas por gestos atos e ações e me diadas na normalidade pela visão implicando per cepção Sempre foi muito importante em termos psicológicos a questão de ver e ser visto e particu larmente em termos winnicottianos a capacidade Psicossomaticaindd 567 Psicossomaticaindd 567 05012010 121227 05012010 121227 568 Mello Filho Burd e cols da mãe suficientemente boa de ver o bebê em sua rea lidade própria de modo a permitir que ele pos sa se ver refletido em seus olhos Visão ação movi mento e percepção formam um conjunto dinâmico essencial em termos da dinâmica de espelhamento e auto e hetero visão A ESCOLA FRANCESA DE PSICOSSOMÁTICA ALGUNS AUTORES E CONCEITOS Léon Kreisler 1999 um dos expoentes desse grupo juntamente com o já citado Pierre Marty M de MUsan e outros no texto referido traça alguns princípios e fundamentos epistemológicos e clínicos representativos de seu pensamento e atuação Diz que a psicossomática encontrou o que chama de re conhecimento oficial em um estudo epidemiológico realizado no INSERM coordenado por M Choquet 1982 Foram aceitas como afecções psicossomáticas de crianças pequenas não apenas o mericismo a ano rexia e a insônia mas incluídas também a asma e as afecções respiratórias altas e baixas e enfatizada sua característica de iteratividade Kreisler faz uma distinção clara do psicosso mático ligandoo a patologias verdadeiramente or gânicas e contrastandoo vivamente com fenômenos histéricos ou hipocondríacos Ele lembra que o histé rico fala por meio de seu corpo e o paciente somático sofre com seu corpo O corpo é para o primeiro um instrumento de linguagem para o segundo é uma vítima p 14 Continua definindo o pensamento do IPSO ao dizer Uma das ideias centrais das concepções contempo râneas repousa na relação entre o equilíbrio somáti co e os fundamentos psicoafetivos da personalidade Uma formulação básica poderia ser enunciada da se guinte forma uma constituição afetiva plena equi librada e estável ocupa um local essencial entre as defesas que se opõem às desordens psicossomáticas Essa afirmação não é gratuita Provém de observa ções concretas inspiradas em concepções psicana líticas que vêm sendo aprofundadas há um quarto de século p 15 Propondo evidenciar as relações entre os de senvolvimentos sintomáticos vias comportamental e psíquica pensa em estruturas vulneráveis desta cando por sua importância para seu estudo e nossa revisão aqui a síndrome do comportamento vazio da criança pequena Diz ainda que estes estados quan do mais graves determinam situações de não orga nização que vão ao encontro de carências afetivas severas Postula que os quadros depressivos desempe nham um importante papel como desencadeadores de desorganizações psicossomáticas chamandoos em particular de depressões frias Os autores que compõem o IPSO dizem que se os lactentes puderem trazer alguma contribuição aos conhecimentos psicossomáticos isso se deverá às hi póteses levantadas a respeito da gênese da mentali zação e dos processos representacionais Asseveram que é uma característica das patologias psicossomáti cas que o olhar seja dirigido tanto na reflexão sobre as faltas quanto nas terapêuticas propostas para as faltas as falhas os vazios de pensamento afetivo e quando se trata do bebê para as modalidades inte rativas geradoras de buracos relacionais ou de distor ções causadoras de falhas objetais p 27 Postulam que durante os primeiros meses de vida do bebê a interação entre os parceiros da díade é o lugar funcional do equilíbrio mental do lactente e de suas disfunções e dizem em conti nuação que a partir dos seis meses embora ainda prevaleça o funcionamento interativo emergem in dícios de um primeiro funcionamento mental autô nomo e de disfunções psíquicas próprias do bebê idem p 362 Acentuam que um dos elementos de perigo na psicossomática da criança pode ser o fato de seu es tudo ser um campo partilhado por múltiplas disci plinas cada uma delas orientando e influenciando o olhar dos profissionais que as exercem Alertam para a eventualidade perigosa de as teorias não se mate rializarem em ações positivas interpondose entre os profissionais e a criança e até mesmo despedaçan doa No capítulo dedicado às consultas terapêuti cas na psicossomática do bebê dizem que entram por fim em discussão os fatores externos familiares e sociais Winnicott já sublinhara a importância das causas externas cuja intensidade e continuidade as coloca fora do alcance da CT exigindo o recurso a outras soluções p 364 MATERIAL CLÍNICO DA ESCOLA FRANCESA A análise de alguns dos casos clínicos de crian ças pequenas trazidos por Kreisler nos mostrará o modo de entender a estruturação dos fenômenos psi cossomáticos seu tratamento e o lugar que aquilo que definiram como fatores externos ocupa em sua visão teórica e prática clínica Os bebês relatados em parte do material clíni co eram muito pequenos e todos apresentavam pa tologias extremamente graves Um deles chamada Claude tinha 8 meses e meio e foi internada por um Psicossomaticaindd 568 Psicossomaticaindd 568 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 569 quadro de mericismo que a levou à beira da morte Em sua história destacase o fato de ter sido cuida da nos primeiros meses de vida por diferentes pesso as pois a mãe se aborrecia por ver sua filha ajudada por outros e os substituía O autor acredita que tal fato impediu o estabelecimento de relações estáveis com os objetos iniciais fato também destacado por Winnicott em sua importância no desenvolvimento primitivo Kreisler acha que a situação relatada pro vocou dificuldades de introjeção duradoura e dis túrbios de noção de tempo e de espaço Foi obser vado que ela não olhava para a mãe ao ser colocada em seu colo tentava fisgar olhares das pessoas ao redor e apresentava grande exacerbação motora O autor diz que a bebê tinha um comportamento de enganche instantâneo e fugidio às coisas e às pes soas todos eles objetos intercambiáveis englobados em relação anônima inclusive pai e mãe Winnicott diria que a maternagem instável inicial poderia ser a causa de tal reação em submissão da neném ao meioambiente O quadro de mericismo é descrito como um vô mito particular que aparece durante o segundo se mestre e é acompanhado por ruminação Parte do ali mento é mantido na boca para a ruminação e depois deglutido outra vez O potencial de letalidade deste quadro é grande devido à perda de peso e desidra tação Martine outra neném com o mesmo quadro acima tinha pais jovens que segundo o autor dese jaram intensamente a filha Diz que ela teve desen volvimento normal até o aparecimento dos vômitos Kreisler considera que ela era apática e tinha uma tristeza que ele considerou desconcertante acre ditando que seu comportamento considerado como depressivo não era causado pela desnutrição aguda pois a antecedia Em relação ao meioambiente onde crescia re lata que os contatos com a mãe aconteciam apenas durante as refeições e cuidados corporais e que o res tante do tempo ela ficava só em seu berço Quando começou a chupar o dedo aos 8 meses e meio foi impedida de fazêlo com alguma violência pois man tiveram seus braços amarrados Outro fato de seu treinamento inicial era a submissão a rotinas rígidas chegando perto de um quadro obsessivo que depois de um certo tempo foi substituído por uma atitude incoerente pois a mãe passou a caminhar com a ne ném no colo durante todo o dia Logo depois teve um breakdown depressivo Kreisler lembra em seu texto o estudo clássico de Spitz 1945 introduzindo o termo depressão anaclítica e ligando seu aparecimento às relações iniciais com a mãe e à ocorrência de rupturas do vín culo Tais estudos continuaram e Kreisler descreveu 1981 a partir de avaliações de quadros psicosso máticos de lactentes alguns aspectos essenciais da depressão precoce a saber 1 atonia tímica 2 inércia motora 3 pobreza de comunicação interativa e 4 vulnerabilidade psicossomática Diz em seu texto que a depressão do lactente é uma desordem tímica de evolução aguda ou subaguda cujo principal determinante é uma ruptura prolongada do vínculo materno e o componente mental essencial uma atonia afetiva que priva o bebê de suas apetências vitais Quase no fim de suas reflexões diz que o me ricismo e outras formas de vômito na infância têm grande potencial de letalidade sendo o resultado fa tal provavelmente classificado sob a rubrica de morte por causa desconhecida na infância Mélanie e Julienne as pacientes a quem se refe ria no texto citado chegaram ao êxito letal depois de vários meses de internação em diferentes hospitais inclusive o psiquiátrico Haviam falecido em decor rência de uma mesma doença num intervalo de menos de um ano e meio a primeira quatro meses após o nascimento da segunda de uma síndro me associando anorexia e vômitosp 250 Julienne nasceu em 1977 normalmente mas sua mãe teve intensas cólicas nefríticas durante a gravidez e uma forte depressão puerperal que se prolongou Foram detectados em sua história clínica dois episódios supostamente depressivos um aos 17 anos e o segundo logo após o nascimento da primeira filha Mélanie foi concebida durante a evolução da doença de Julienne e nasceu a termo com três quilos Foi amamentada ao seio por pouco tempo e depois recebeu suplemento lácteo A partir do quarto mês começou a comer de tudo e seu peso e tamanho eram normais Os problemas alimentares começaram aos 9 meses quando a mãe voltou a trabalhar e ela fi cou sob os cuidados da mesma tiaavó que cuidara de Julienne Por ser estritamente vegetariana e visivel mente perturbada a senhora talvez tenha tentado forçar a neném a aceitar uma dieta vegetariana O que para nós ficou evidente em todas as situa ções relatadas é que sua gravidade clínica foi sempre coincidente com intensos distúrbios emocionais dos cuidadores Tais problemas expressos em gestos e rotinas alterados inconstância seriam em termos de conceituação winnicottiana considerados como alte rações graves do going on being infantil Tais respos tas patológicas seriam as formas que os bebês possu íam naquele ponto de seus desenvolvimentos para evidenciar as falhas e imposições ambientais Psicossomaticaindd 569 Psicossomaticaindd 569 05012010 121227 05012010 121227 570 Mello Filho Burd e cols Um bebê de sete ou oito meses ainda não fala Não pode se defender de agressões por falta ou ex cesso falando ou se afastando Por esse motivo acre ditamos que o foco de compreensão de tais quadros assim como as estratégias de atuação clínica devem estar focados um pouco além do atendimento e tenta tiva de solução das crises que motivam os atendimen tos de tais situações Um trabalho recente de Samuel Hulak 2007 propondo uma classificação das somatizações faz uma distinção entre suas diferentes apresentações cunhando os termos alexitimia e pseudoalexitimias não só como forma de compreensão e de abordagem em medicina psicossomática como também para re curso orientador de escolha terapêutica pertinente e adequada a cada condição somatizante De seu texto destaco que a alexitimia vera foi por ele colocada em gráfico que ilustra seu texto como marginal ao eixo progressivo de gravidade Como marginal entendi que ele atribui à alexitimia um eixo próprio e destaco mais um trecho onde ele nos lembra que trabalhos sobre o desenvolvimento infantil Mah ler Spitz Anna Freud Klein Kohut e destacadamente Winnicott lançaram uma nova compreensão sobre a importância da relação mãebebê e dos trágicos des tinos que traumas arcaicos poderiam determinar em uma criatura frágil sem defesas sofisticadas para ela borar conflitos complexos e ainda portadora de um discurso sem palavras Nascemos alexitímicos e carecemos de uma mãe que ponha palavras nomes nas nossas emoções A ausência ou a insuficiência de uma mãe que afetualize erogenize o discurso do bebê em uma relação empática poderá contri buir para a construção de um novo alexitímico meu negrito Aplicando estes princípios aos quadros apresen tados por Kreisler no texto citado creio que podemos dizer que não tenha havido tempo para a construção de um novo alexitímico Muitos pacientes chegaram ao centro especializado em atendimento psicossomá tico depois de uma longa peregrinação vindo alguns inclusive de outro país Em termos da violência dos traumas relatados podemos dizer que tenha sido máxima incidindo sobre bebês ainda sem os recur sos defensivos das palavras passando por diferentes settings terapêuticos e durando um largo período de tempo Kreisler diz que essas circunstâncias e estrutu ras patológicas inquietantes podem retroceder des de que o essencial seja feito a tempo meu grifo Qual seria o prazo útil de intervenção para que o resgate da criança fosse feito a tempo de salvar sua vida Nos casos descritos anteriormente Desorgani zação depressiva letal O destino de duas irmãs ape sar dos profissionais que descrevem os quadros serem grandes experts em psicossomática infantil e terem feito os atendimentos no hospital que é referência mundial para tais casos as pacientes morreram Kreisler faz uma pergunta inquietante e propõe uma dramática conclusão Mas essa relação mãebebê não estaria fissurada como que trespassada por um buraco num vínculo com uma mãe presenteausente Falha primária que poderia muito bem ser a razão profunda e essencial da evolução irremediável p 261 Diante de tão graves situações parece residir na prevenção ou caso se consiga salvar os bebês numa incisiva modificação ambiental póscrise em segui mento terapêutico a solução para tais problemas Se tal não ocorrer como nos quadros relatados é possí vel que os bebês acabem morrendo física ou emocio nalmente sobrevivendo como os novos alexitímicos referidos antes NEUROCIÊNCIAS PONTES COM A PSICOTERAPIA E A PSICOSSOMÁTICA Em termos atuais a presença e os gestos das pessoas que constituem o meioambiente inicial dos bebês adquiriram importância ainda maior do que a já definida pelas diferentes escolas psicológicas do desenvolvimento Isso se dá porque as neurociências com o es tabelecimento de teorias como a da imitação Melt zoff e Prinz 2002 descobriram em pesquisas com macacos Rizzolatti et al 1998 áreas de neurônios que descarregam durante movimentos de mão e são localizados na parte rostral do córtex ventral pré motor Segundo Fogassi e Galese 2002 p 14 eses neurônios foram identificados e chamados de F5 a partir de técnicas de impregnação com citocromo oxi dase É muito importante lembrar que além de fun ções puramente motoras das quais se ocupa a maior parte dos neurônios da área F5 esta contém duas outras classes de neurônios visuomotores Ambas não se distinguem dos apenas motores neste aspecto embora sejam diferentes em suas características de percepção visual Fogassi e Galese 2002 idem dizem que A primeira categoria é constituída por neurônios que respondem à apresentação de objetos de tamanho e forma particulares Com frequência o tamanho ou a forma dos objetos efetivos ao provocarem o disparo da descarga dos neurônios é congruente com o tipo especí fico de ação que eles codificam Rizzolatti et al 1988 Murata et al 1977 Estes neurônios foram chamados Psicossomaticaindd 570 Psicossomaticaindd 570 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 571 de canônicos Rizzolatti e Fadiga1998 Rizzolatti et al 2000 O segundo tipo é composto por neurônios que descarregam quando os macacos observam uma ação executada por outro indivíduo da mesma espé cie e então executam uma ação igual ou semelhante Estes neurônios visualmotores foram chamados de espelho Galese et al 1996 Rizzolatti et al 1996a Estas descobertas têm importância pois foram estendidas do campo da pesquisa com animais ao do desenvolvimento primitivo dos seres humanos Foi evidenciada uma ampla rede de estruturas neuronais que servem de base neurofisiológica ao desenvolvimento da linguagem memória reconheci mento de ações e sua repetição ou imitação chegan do os autores até a hipotetizar sua participação em temas complexos como o reconhecimento da alteri dade e a transmissão cultural O campo é marcada mente dialógico aumentando em muito a dinâmica das citadas relações primitivas Fica claro que o meio ambiente inicial ao exercer modulações que podem ser entendidas como mediações resolutivas das ne cessidades particulares de cada bebê permite atenção focal e sustentada a tarefas não rela cionadas com a sobrevivência física Um calmo mundo interno pode ser construído e revisitado de tempos em tempos servindo de base para um pensamento priva do sem relação com a solução de problemas externos Estes momentos calmos fornecem o espaço para a ima ginação e a criatividade e são especialmente importan tes para a construção e consolidação do self Winnicott 1958 Ele sugeriu também que o ego e o sentido do self são consolidados durante períodos de quietude 1962 Períodos de calma são possíveis quando a criança se sente a salvo e protegida não reagindo a imposições ou demandas do meio ambiente ou às necessidades físicas ou emocionais Em termos psicológicos uma necessida de menor de atenção ao meio ambiente como Winni cott sugeriu pode ser um prérequisito para a ativação parietal relacionada à consolidação do self Cozolino 2002 p 143147 Os quadros resultantes de falhas e omissões ou instabilidade nos cuidados primitivos com os bebês seriam estados de não integração psicossomática com eventos patológicos nessa área quadros psicóti cos ou borderlines condutas antissociais e delinquên cia e o falso self e depressão entre outros eviden ciando diferentes graus de impactos sobre o cérebro É consenso atual que os traumas severos ocorridos no período inicial provocam resultados graves devas tadores mesmo e de difícil tratamento Tem ficado evidente que os traumas mais primitivos ocorrem por meio dos pais e cuidadores primários e como inter ferem na construção e interação do cérebro causam profundas e duradouras lesões em redes neurais es senciais É importante ressaltar que o conceito de trauma que estamos estudando é mais amplo do que alguns manuais diagnósticos sugerem e incluem falta de atenção e carinho instabilidade emocional depres são violência física e emocional dos cuidadores pri mários ou mesmo traumas sutis como distancia mento afetivo ou a colocação do bebê fora do centro de atenção inicial nos primeiros momentos de seu desenvolvimento A relação entre depressão materna durante o primeiro ano de vida de bebês e posterior apareci mento neles de alterações de neurotransmissores com desregulação fisiológica e de comportamento tem sido demonstrada Alterações de norepinefrina cortisol ativação maior do lobo frontal direito baixo tônus vagal e ritmo cardíaco acelerado foram encon tradas nesses casos Field 1997 Field et al 1998 apud Cozolino Em relação à tendência antissocial que Win nicott ligava à deprivação à ou perda de uma boa experiência precoce resultando em mentira furto impulsividade e agressividade se levarmos em conta os conceitos sobre trauma citados antes fica claro o forte impacto que têm sobre as crianças e as altera ções neurofisiológicas que também causam Uma das áreas afetadas poderia ser segundo pensa o Dr Allan Schore da Faculdade de Medicina da UCLA o córtex órbitofrontal que ele vê muito implicado tanto na ca pacidade de ligação do infante quanto na regulação de suas emoções A falta de desenvolvimento dessas capacidades por falhas da mãe ou cuidador primário pode resultar em violência impulsiva Essa região está localizada acima das órbitas logo abaixo da superfície e entre os dois hemisférios e devido a sua localização anatômica especial recebe tanto estímulos sensoriais afe rentes visão tato som odor vindos do meio ambiente quanto informações viscerais vindas de dentro do corpo de modo que experiências interpessoais são associadas a estados emocionais apud Karr e Wiley idem p 37 Donald Winnicott atribuía à tendência antisso cial um valor positivo um sinal de esperança pois acreditava que a criança nessa condição tentava chamar a atenção das pessoas de seu meioambiente para a perda que havia sofrido buscando através de nova provisão ambiental a restauração do equilíbrio perdido Levando em conta os aspectos neurofisiológicos citados faço a hipótese de que traduzindo a ideia de Winnicott em termos atuais teria havido uma boa interação inicial levando a um desenvolvimento in tegrador do córtex órbitofrontal alterado de modo súbito pela deprivação afetiva Os autores citados acima dizem que essa é a área do cérebro responsável Psicossomaticaindd 571 Psicossomaticaindd 571 05012010 121227 05012010 121227 572 Mello Filho Burd e cols pelas ligações entre a deprivação sensual e emocional e os sintomas físicos resultantes sempre que um bebê para de ganhar peso de crescer e parece perder o inte resse em viver Karr e Wiley idem ibidem Como eles estão se referindo a um bebê reite ramos que os meios de expressão são exclusivamente corporais e fisiológicos por lhe faltar desenvolvimen to motor e cognitivo que lhe possibilite mostrar atra vés de atos ou palavras as perdas sofridas Seu corpo faz uma tentativa de comunicação com o meio am biente que se puder enxergar o que está por trás dos sintomas físicos consegue mudar o rumo da situação e impedir que o bebê venha até a morrer Com o continuar do desenvolvimento a partir da deprivação sugiro que passarão a conviver duas formas de registro no sistema de intermediação bebê meioambiente localizado no córtex órbitofrontal Uma da experiência de integração e acolhimento e outra de não integração provocando talvez uma al ternância de funcionamento ou a tentativa de fugir dos sinais fisiológicos de ameaça e crise Em termos da psicologia Winnicottiana a espe rança a que ele se refere quando fala da tendência antissocial pode estar vinculada aos laços iniciais de natureza positiva resultantes do encontro do bebê com o meioambiente cuidador O comportamento ligado à tendência antissocial talvez signifique uma tentativa desesperada de agenciar o meio ambiente através de expressões afetivomotoras comportamen tais e verbais agora já possíveis Duas possibilidades de resposta podem ser pen sadas na primeira e melhor hipótese o meioam biente inicial representado pela mãe ou cuidador primário percebe a crise instalada e modifica sua forma de atuar voltando a ser provedor de atendimen to às necessidades promovendo desse modo apazi guamento e integração retorno ao going on being Mesmo nesse caso permanecerão as marcas da ex periência de desencontro e ameaça que tem dupla face uma voltada para novos encontros e outra representando o disparar de neurotransmissores ligados à situação de crise com as alterações fisioló gicas associadas na outra hipótese o meio ambiente persiste em sua incapacidade de perceber as neces sidades afetivofi siológicas agravando o estado de crise e obrigando a criança a tentar um desesperado acordo com ele submetendose e abrindo mão de suas necessidades situação que representa o fal so self definido por Winnicott Em outro cenário a criança traumatizada por sucessivas deprivações pode evoluir para uma desestruturação duradoura chegando à delinquência ou a um desespero com co res de ameaça constante que poderia ser associado ao medo do colapso Winnicott 1963 1974 si tuação trágica que coloca no futuro um desastre já ocorrido no passado e pode terminar com a morte por suicídio ou por agravamento da não integração psicossomática Lembremos Winnicott 1963 1974 a esse res peito Uma questão colocase aqui por que o paciente conti nua atormentado por isto que faz parte do passado A resposta é que a experiência original da agonia primi tiva não pode pertencer ao passado a menos que o ego primeiramente adquira suas próprias experiências no tempo presente e um controle onipotente aceitando a função de suporte de ego auxiliar da mãe analistaO propósito deste estudo é atentar para a possibilidade de que o colapso já tenha se dado próximo ao princípio da vida do indivíduo Nesse caso a única forma de o paciente lembrarse é vivenciar este algo do passado pela primeira vez no presente ou seja na transferên cia Esse algo que é do passado e do futuro transforma se em uma questão do aqui e agora de tal forma que o paciente a experimenta como se fosse pela primeira vez apud Abram p 336 acréscimo meus Podemos ver o quanto temas discutidos ampla mente por Winnicott como o holding e o handling antecipavam os conceitos atuais sobre a interação precoce descobertos pelas neurociências Ele enfa tizou sempre a importância fundamental de que os atos realizados com o bebê levassem em conta suas peculiaridades e necessidades não as dos pais ou cui dadores Ao destacar a importância de considerar a sensibilidade da pele a acuidade auditiva e visual e a susceptibilidade às variações de cada um desses as pectos Winnicott propôs uma interação efetiva entre o psicossoma inicial o bebê e sua fisiologia e o meio ambiente que resultaria em integração psicossomáti ca e desenvolvimento emocional em seu sentido mais amplo quando fosse bem feita Hoje com os aportes das neurociências já re latados o domínio das relações iniciais extrapola para um espaço ampliado O ser humano submetido a gestos atos contatos corporais expressões faciais e vocais e outras modalidades de integração interpes soal também possui circuitos voltados para perceber imitar e espelhar sendo as marcas resultantes dessas interações muito mais dinâmicas Prinz e Meltzoff 2002 2003 dizem Não podemos mais manter uma distinção rígida entre os domínios de percepção e ação pela qual vivemos confortavelmente desde os tempos de DescartesO tempo de estudar a imitação parece ter chegado Ela nos informa sobre percepção controle motor os meca nismos subjacentes ao acoplamento percepçãoação e relações selfoutro Durante a próxima década ela pro mete se tornar um caso modelar de pesquisa interdis ciplinar sobre relações entre cérebro e comportamento Psicossomaticaindd 572 Psicossomaticaindd 572 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 573 e iluminar ao mesmo tempo questões cognitivas e tam bém as voltadas para a compreensão da intersubjetivi dade O que vem ficando mais claro com os aportes trazidos pelas neurociências desvendando os meca nismos neurofisiológicos subjacentes aos sentimen tos emoções e afetos é que a importância da pre sença humana junto ao bebê desde o seu nascimento assim como os cuidados dispensados a ele tornou se mais visível e complexa pelo descobrimento dos circuitos e estruturas préexistentes prewired nele Esse conjunto que era anteriormente denominado de maneira inespecífica de constituição fator es sencial para o encontro ou tentativa de encontro com o sujeito original e sua posterior interação saudável ou não com o meio ambiente deu mais visibilidade e consistência ao que anteriormente ficava no terreno da teoria Entendemos que a psicossomática seja o estudo das ligações e interações entre o bebê como evento único do ponto de vista biológico dotado de estru tura genética específica com capacidades incapaci dades e mecanismos de adaptação coping próprios resistência resiliência e vulnerabilidades também específicas Este conjunto vai se encontrar com o meio ambiente também específico onde começa sua vida Desse encontro poderá resultar integração psi cossomática ou não Mesmo potenciais genéticos par ticulares podem ser ativados ou não dependendo do maior ou menor nível de estresse que ocorra durante a gestação Ressaltese que o meio ambiente a que nos refe rimos é de natureza complexa incluindo o universo afetivo e emocional da família as condições socio culturais particulares que a circundam assim como o meio ecológico em que vive Todos estes vetores terão importância no desenho do resultado entre o bebê e todos estes elementos podem e devem ser an tecipados ao prénatal e às relações entre a grávida e seu feto Belmont 2006 Psicossomática e ecologia humana devem ser pensadas antes que o bebê en xergue a luz pela primeira vez KarrMorse e Wiley 1997 dizem As causas de violência são altamente complexas e mul tifacetadas mas um corpo de conhecimento científico vem se acumulando e demonstra que maus tratos du rante os nove meses de desenvolvimento fetal e os 24 meses depois do nascimento com frequência levam a crianças e adultos violentos Os venenos que vêm se acumulando na comunidade humana a partir de maus tratos com os bebês são apenas em parte aqueles já co nhecidos drogas álcool e tabaco Os últimos 30 anos trouxeramnos evidências de toxinas mais sutis mas não menos lesivas ao desenvolvimento primitivo de be bês e crianças estresse crônico e negligência que afe tam o desenvolvimento do cérebro do feto ou do bebê abuso precoce e negligência afetam duradouramente um aprendizado focal depressão crônica dos pais ne gligência ou falta dos estímulos necessários para um desenvolvimento cerebral normal perda prematura de relações primárias ou cortes nos cuidados com os be bês Todos esses são os precursores de uma epidemia crescente de violência que agora aparece na infância e na adolescência p 15 Vejamos o que o pensamento premonitório de Winnicott 1956 nos permite ver a esse respeito na exegese do texto de Abram cf Existe um ponto no desenvolvimento emocional em que o bebê necessita conciliar as raízes pulsionais da motilidade com as da libido Nesse ponto a mãe torna se fundamental para o bebê porque nesse estágio o ego do bebê ainda é bastante frágil para que possa conduzir a tarefa de integração Este é o chamado período da perda original p 51 A autora cita Winnicott Na base da tendência antissocial encontrase uma boa experiência precoce que foi perdida É uma carac terística essencial que o bebê tenha podido atingir a capacidade de perceber que a causa do desastre encontrase em uma falha ambiental Ter o conhe cimento correto de que a causa da depressão ou desin tegração é externa e não interna é responsável pela distorção da personalidade e pelo anseio de buscar a cura através de nova provisão ambiental Um grande número de compulsões antissociais surge e é tratado nos estágios iniciais com algum sucesso pelos pais Antisocial Tendency p 313 É exatamente este último aspecto o que sofreu maiores alterações nas últimas décadas pelas mu danças sociais e culturais que transformaram o perfil tradicional da família assim como os papéis de seus membros Mesmo nos Estados Unidos país com re cursos econômicos infinitamente superiores aos nos sos os autores e as entidades que tratam do tema da violência e da infância como o Fundo de Defesa das Crianças que publica um livro anual intitulado O Estado das Crianças da América 1996 1997 de monstram a seguinte situação apud KarrMorse e Wiley Um bebê nasce de mãe adolescente a cada minuto A taxa de mortalidade de bebês americanos abai xo da idade de um ano é maior do que a de qual quer outra nação ocidental industrializada bebês afroamericanos têm o dobro da possibilidade de morrerem durante o primeiro ano de vida em re lação aos bebês brancos Psicossomaticaindd 573 Psicossomaticaindd 573 05012010 121227 05012010 121227 574 Mello Filho Burd e cols Dos préescolares 25 vivem abaixo da linha da pobreza Uma em cada quatro das crianças abrigadas em cinco Estados pesquisados entrou nos locais de abrigo antes de seu primeiro aniversário Recém nascidos formam a maior parte desses infantes Uma em cada três vítimas de abuso físico é um bebê com menos de 12 meses Cada dia pelo me nos um bebê morre por abuso ou negligência nas mãos de seus cuidadores Três de cada quatro das crianças assassinadas nos 26 países mais industrializados somados eram Americanas Os mesmos autores citados acima acreditam que o período da infância e toddlerhood coincidente com o começo cambaleante da marcha ereta é uma época de grande complexidade durante a qual os po tenciais para um desenvolvimento saudável podem ser aumentados diminuídos ou até mesmo perdidos Acham que pelo interjogo entre o cérebro em desenvolvimento e o meioambiente durante os nove meses de gestação e os dois primeiros anos após o nascimento o núcleo central da habilidade do sujeito para pensar sentir e se relacionar com os outros é formado Maus tratos a um bebê podem levar à perda permanente ou à lesão de fatoreschave de proteção tais como inteligência confiança e empatia que permitem que muitas crian ças sobrevivam e até mesmo superem circunstâncias fa miliares desfavoráveis e traumas posteriores p 15 O relato dramático dessas questões pode ser imaginado em relação aos países da América Lati na onde os problemas econômicos e sociais são in finitamente mais graves e seu significado para uma compreensão atual dos temas ligados à psicossomá tica e ao desenvolvimento saudável pode e deve ser reiterado Em 1949 em A mente e sua relação com o psicos soma Winnicott já dizia que A mente não existe enquanto entidade no esquema in dividual das coisas sempre que o esquema corporal ou psicossoma desse indivíduo tenha evoluído satisfatoria mente desde os estágios mais primitivos O desen volvimento inicial do indivíduo implica um continuar a ser para que ocorra o desenvolvimento saudável do psicossoma inicial é necessário um ambiente perfeito No início o bom ambiente psicológico é na verdade físico com a criança ainda no útero ou sendo cui dada de um modo geral De acordo com esta teoria em todo desenvolvimento individual a mente tem uma raiz talvez sua raiz mais importante na necessidade que o indivíduo tem no cerne mesmo de seu eu de um ambiente perfeito a continuidade do ser necessária ao psicossoma em desenvolvimento é perturbada pelas reações às intrusões ambientais ou seja às falhas do ambiente em relação à adaptação ativa p 332346 Sabemos que essas ideias de Winnicott sobre as relações iniciais entre os bebês e suas mães ou cuida dores primários foram o ponto de partida para suas primeiras elaborações psicológicas nos distúrbios fí sicos da infância Seus trabalhos sobre transtornos alimentares nos anos de 1930 e 1940 já mostram a participação ativa do meioambiente no desenrolar dos quadros Posteriormente ele ampliou sua com preensão sobre a importância dessas interferências nas elaborações sobre o falsoself e as condutas an tissociais entre outros construindo uma teoria de relação a partir da clínica na qual a sintaxe é predo minantemente psicológica Podemos perceber entre tanto o quanto a sua visão era dialógica e complexa ao discutir essas ideias Exemplos clínicos de um período imediatamen te posterior 1942 mostram essa evolução como no caso de Ellen que segundo seu relato era uma crian ça normal física intelectual e emocionalmente até 1 ano quando sua mãe abandonou o marido e a levou junto Depois disso ela passou a ter encontros espo rádicos com ele até os 6 anos quando ele a levou embora de volta para Londres Ela ficou calada e não reclamou O pai se divorciou e casou com outra mu lher com quem Ellen se dava bem As queixas em relação a ela eram de que era artificial sendo im possível alcançarse uma base sincera com ela p 134 Trouxeramna à consulta por ter feito um furto na escola tendo sido a ausência de vergonha o que chamou a atenção de Winnicott Em termos de teoria winnicottianna teríamos que lidar neste caso com os seguintes fatores a o humor da mãe verdadeira era pouco confiável b houve uma separação brusca da menina de seu pai quando ele foi abandonado pela mulher sem aviso e sem discussão do caso c encontros esporádicos com o pai durante cinco anos configurando relacionamento instável d a menina foi separada da mãe biológica também de maneira abrupta em episódio que hoje em dia talvez fosse notificado como rapto Esse conjunto de experiências pode ser entendi do como deprivações sucessivas respondendo direta mente pela artificialidade dificuldade de alcançar se uma base sincera furto e ausência de vergonha que a menina desenvolveu em continuação Os princípios relacionais estabelecidos por ele e outros psicanalistas ligados às teorias das relações objetais e implicados na gênese de distúrbios afetivos e emocionais diversos são hoje em dia ratificados e Psicossomaticaindd 574 Psicossomaticaindd 574 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 575 passam a ter uma base fisiológica empiricamente de terminada O que podemos dizer é que as neurociên cias estão nos ajudando a entender como as relações interpessoais iniciais influem na modelagem e cons trução do cérebro e de suas funções e mais ainda por estarem sendo descobertos mecanismos de remo delação ou reconstituição cerebral a importância da ação psicoterápica vem sendo reafirmada As ligações entre neurologia e psicologia já ha viam sido esboçadas por Freud com seus trabalhos ini ciais mas perderam energia durante décadas e hoje nos permitem sonhar com um trabalho integrado Um dos autores dessa fascinante nova área Co zolino 2002 XVI diz Cursos sobre farmacologia e neurobiologia são agora comuns em muitos Institutos de Psicanálise o treinamento em psicoterapia inclui crescentemente atenção à neurobiologia subjacente ao desenvolvimento psicológico e às relações pais bebês e doenças mentais As ideias de Donald Winnicott têm a nosso ver uma extraordinária importância neste cenário pois ele definiu a importância da mãe e do meioambiente na constituição do ser humano em seu nascimento ressaltou o valor de serem atendidas as capacidades e as dificuldades de cada bebê enfatizou que a eficácia e a estabilidade dessas ações são fundamentais para o estabelecimento de um sujeito verdadeiro capaz de fidelidade a si mesmo e por consequência de pos sibilidade de aceitação e reconhecimento do outro dentro de uma moldura de fundamentos psicossomá ticos Até mesmo sua visão inovadora a respeito da capacidade para estar só 1958 diferenciandoa de retraimento e solidão encontra hoje em dia amparo nas neurociências CLÍNICA PSICOSSOMÁTICA INFANTIL COM UM OLHAR WINNICOTTIANO Vejo no desenvolvimento das teorias psicanalí ticas sobre o desenvolvimento e integração humanos mais integração e continuidade do que confrontos excludentes Desde a criação freudiana de uma teoria complexa marcada como lócus onde se encontram o biológico pulsional o social e o históricocultural a técnica psicanalítica e sua aplicação ao homem con creto da clínica foram sofrendo mudanças que cami nham no sentido das relações primitivas Klein Mahler Bowlby Kohut e Winnicott entre muitos outros autores trouxeram os bebês ao centro da cena analítica ampliando o espectro de possibi lidades terapêuticas da psicanálise No aspecto da compreensão e tratamento dos quadros psicossomá ticos os autores do IPSO fizeram não apenas uma formulação e delimitação conceitual mas criaram o espaço real que permite o seu atendimento Marty Lebovici Fain Kreisler e outros alargaram o campo da atenção aos bebês a partir da criação por Pierre Marty em 1978 do Hospital de La PoternedesPeu pliers o primeiro dedicado exclusivamente à medi cina psicossomáticaKreisler idem p 20 Percebendo que os problemas afetando o desen volvimento humano deveriam ser enfrentados e tra tados desde o início autores como Bertrand Cramer e Francisco PalácioEspasa trabalhando em Genebra formularam de maneira mais organizada o conceito de consultas terapêuticas que já havia sido descrito por Winnicott em 1942 Cramer e PalácioEspasa definiram as terapias conjuntas breves como um tratamento setorial de conflito entre mãe e bebê através de uma redistri buição das projeções parentais e de uma diminuição das interações patogênicas a elas ligadas afetando si multaneamente os investimentos que a criança pode fazer1993 No esquema de CT proposto por eles as tera pias devem ser postas em ação apenas nos casos em que seja determinado um foco principal passível de ser desfeito pela interpretação da patologia relacional e que esta não seja um distúrbio profundo do apego Nas consultas o bebê tem que estar presente junto com a mãe e o terapeuta As consultas são em média 6 e podem variar entre 4 e 12 na frequência de uma por semana Um ponto muito importante é que o início do tratamento é feito pelo encaminhamento do bebê devido a um sintoma que a mãe percebe no filho apud Pereira E 1999 Kreisler cf diz que A psicopatologia da primeira idade contém singulari dades e a idade confere a essa patologia uma pri meira orientação No primeiro período a interação entre os parceiros da díade é o lugar funcional do equi líbrio mental do lactente e de suas disfunções O princi pal objetivo terapêutico e seus instrumentos voltamse para os fenômenos de interação Continua dizendo que o exame psiquiátrico do lactente é feito dentro de uma relação triangular que inclui paiscriançaobservador Sua finalidade é ava liar 1 a patologia do lactente 2 a mãe que evidentemente contém o estatuto paterno 3 a interação mãefilho Kreisler L Cramer B Les bases cliniques de la psychiatrie du nourisson La psychiatrie de lenfant 1981 XXIV 1 Psicossomaticaindd 575 Psicossomaticaindd 575 05012010 121227 05012010 121227 576 Mello Filho Burd e cols 4 O pai a constelação familiar sua estrutura indivi dual e social e a economia de seu funcionamen to ibidem p 363 Podemos observar que os autores citados acima ampliam o espaço da relação mãebebê incluindo o ambiente no qual ela se insere assim como as re lações outras que ali acontecem Esta visão vem ao encontro de ideias winnicottianas a respeito do am biente que pode ser facilitador do desenvolvimento primitivo do bebê ou não Em alguns casos a relação mãebebê acontece em ambientes que chamo de famílias tóxicas Estas são caracterizadas por transtornos transgeracionais como ódio e agressividades não reconhecidos inca pacidade para expressão de sentimentos e de afetos depreciação das funções maternas preconceitos em relação às funções paternas que incluam delicadeza e cuidados com a mulher e o filho pobreza intelectual e afetiva violência física e sexual idealização não rea lística do bebê imaginado Stern 1998 e uso de drogas pela mãe durante a gravidez e no pósparto imediato Nestes casos a relação mãebebê vai estar afetada por múltiplos vetores obrigando a que os dispositivos usuais sejam modificados e ampliados incluindo tratamento de familiares do pai e mesmo a adoção de medidas judiciais Casos difíceis como os dos autores do IPSO ci tados pacientes Melanie e Julienne que chegaram ao êxito letal mostravam graves alterações trangera cionais A tiaavó que cuidou de ambas era visivel mente perturbada nas palavras do autor e sua mãe havia sofrido cólicas nefríticas durante a gravidez e teve depressão puerperal Quero enfatizar uma vez mais que nos casos nos quais o ambiente apresente as características tó xicas já descritas e mesmo nas falhas de interação mãebebê menos profundas o atendimento deve es tar voltado para uma mudança ambiental Seja no caso de mudança da mãe ambiente ou do ambiente maior onde a mãe e seu bebê vivem O material clínico pessoal que apresento agora tenta demonstrar o que pode ser entendido como um olhar winnicottiano dos transtornos psicossomáticos na infância e seu tratamento Um neném do sexo feminino de 1 ano e 2 me ses a quem darei o nome de Clara começou a apre sentar de maneira repentina um quadro de intensa ansiedade aumento acentuado da psicomotricidade insônia severa e recusa em se alimentar A avó ma terna a trouxe à entrevista dizendo que ela sempre tinha sido um bebê calmo tendo se alimentado ex clusivamente ao seio pela mãe até os 6 meses com apetite e sono normais Nunca havia se separado da mãe até poucos dias antes da instalação do quadro quando ela viajou para a Europa junto com o marido para um congresso de sua profissão Deveria ficar 12 dias fora Já na primeira noite Clara não pôde dor mir pois diariamente ficava junto da mãe até pegar no sono Foi levada a seu pediatra que fez um exame completo e nada encontrando fisicamente prescre veu um tranquilizante benzodiazepínico que piorou o quadro inicial de maneira evidente Ao observar a neném percebia muito inquieta no colo da avó virandose em várias direções e não fixando olhar em nós Pegueia no colo e ela se vira va ora fixando os olhos na avó ora olhando para um ponto no infinito localizado na parede O olhar me pareceu triste e sem vida e sua situação me desper tou sentimentos intensos de compaixão e forte preo cupação Pensando em termos winnicottianos ima ginei que ela estivesse vivendo uma deprivação pois o bom e estreito relacionamento que havia mantido com a mãe até então havia sido rompido de maneira brusca Podia imaginar uma alteração aguda do going on being com alterações de temporalidade e do ritmo circadiano Tentando me colocar empaticamente em seu lugar pensei que talvez ouvindo a voz da mãe pelo telefone ela se acalmasse Sugeri isso à avó e liga mos naquele mesmo instante para a mãe que estava aguardando o resultado de nosso encontro Pedilhe que falasse com a filha e ao ouvir a voz conhecida ela parou de se movimentar no mesmo instante fi xou o olhar no telefone e relaxou todo o tônus mus cular até então quase rígido Ficou ouvindo durante mais de 10 minutos e sugeri que naquele dia e até a mãe voltar as duas ficassem em contato telefônico no máximo de três em três horas Suspendi o tran quilizante pelo efeito paradoxal que havia provo cado mas principalmente por achar que a resposta psicossomática à deprivação estava sendo alterada por seu uso O quadro foi diminuindo de modo rá pido e dentro de três dias quando a mãe voltou antecipando a viagem já encontrou a filha em seu estado normal Destaco nesse quadro a importância tanto da estreita relação entre as duas quanto das consequên cias imediatas da interrupção de seu contato por um tempo superior ao que ela tinha capacidade de supor tar naquele ponto de seu desenvolvimento É impor tante também o fato de a mãe haver interrompido sua viagem privilegiando o bemestar da filha e podendo entender e aceitar que sua presença fosse essencial para o equilíbrio da criança Esse fato ratifica o sig nificado da mudança do meioambiente para que se consiga a regressão do quadro psicossomático Depois de retornar ao convívio com Clara eu as vi em duas consultas conjuntas A neném continuava calma sem problemas de sono ou de alimentação Psicossomaticaindd 576 Psicossomaticaindd 576 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 577 Eventualmente recebo notícias de Clara e sei que ela está se desenvolvendo normalmente No segundo caso dois irmãos um menino de 2 anos e sua irmã de 3 aos quais darei os nomes de Roberto e Marta estavam sendo levados no mínimo três vezes por semana à consulta com seu pediatra Ele não encontrava patologias específicas apenas distúrbios respiratórios indeterminados inapetência vômitos e transtornos do sono Por isso resolveu pe dir minha avaliação A mãe compareceu sozinha e disse ser muito nervosa com mania de doenças e que tinha medo de que os filhos morressem o que a perseguia cons tantemente Quando lhe disse que seus filhos não apresenta vam doenças graves e sim disfuncionalidades como coriza febre baixa e perda do apetite ela disse para meu espanto que só se sentia tranquila quando os levava ao pediatra e ele não encontrava nada Dis se que assim se sentia calma como se estivesse se antecipando ao destino e salvando os filhos Contou também que na infância havia passado por situação semelhante com sua mãe Quando eu lhe sugeri que talvez seus filhos estivessem reagindo com alterações funcionais em resposta à sua necessidade de se acal mar ao leválos ao médico reagiu com incompreen são e alguma hostilidade Perguntou se eu a estava achando louca por inventar doenças para os filhos Mesmo assim aceitou começar a ser atendida psico terapicamente e depois de alguns meses pôde esta belecer laços entre sua história infantil e sua atitude com os filhos Notese que mais uma vez a inter venção foi voltada para uma tentativa de alteração das condições emocionais da cuidadora que em sua angústia hipocondríaca e de antecipação onipotente impunha aos dois filhos sua patologia Podemos dizer que a reação dos dois filhos fosse o que Winnicott en tendia como submissão falso self e que eu seguindo conceitos das neurociên cias referidos antes proponho chamar neste caso de alterações psicossomáticas do self por ação estressora do meioambiente A propos ta terapêutica ficou voltada para o atendimento às questões ambientais mais do que para uma atenção direta às crianças naquele momento O terceiro e último caso faz parte de uma si tuação clínica supervisionada por mim Uma colega atendeu uma grávida a quem chamaremos Ângela que era filha de uma mulher da rua e havia sido ado tada quando ainda era bebê O pai adotivo que nunca a registrou formalmente mantinha relações sexuais com a cunhada e assim que a menina ficou mens truada passou a manter relações com ela também Nem ela nem a tia adotiva tinham coragem de falar nada pois ele era extremamente violento e dizia que se sua irmã havia sido estuprada pelo pai ele podia sem qualquer problema fazer sexo com ela que nem era sua filha de verdade Essa situação permaneceu até os 19 anos quando conheceu o marido e foi mo rar em outra cidade O atendimento foi solicitado porque começou a ter medo do nascimento da filha achando que seu marido pudesse fazer com ela o mesmo que seu pai lhe fizera A gravidez começou a apresentar proble mas pois passaram a ocorrer uma angústia desespe radora e dores pelo corpo principalmente na região pélvica diagnostica pelo clínico como fibromialgia A angústia segundo relato da paciente aumentava quando pensava e tinha a certeza de que o marido faria com a filha aquilo que fizeram com ela ou quan do já no sexto mês de gravidez ao entrar numa loja ou numa farmácia não sentia vontade de comprar nada para o bebê O feto passou a ter sua motilidade aumentada mas a gravidez chegou a termo uma vez que a terapeuta conseguiu uma ótima relação com a cliente interpretando seu quadro como resultante das situações traumáticas que havia vivido Creio que possamos levantar a hipótese de que essa gravidez seria uma das muitas que terminam em abortos es pontâneos sem causas físicas comprováveis Antes mesmo do nascimento foi discutido por várias sessões o desejo persistente da paciente de co locar o berço do bebê no quarto do casal apesar de haver um para o bebê Após o nascimento e depois de um breve perío do de encantamento com o bebê voltou a ansiedade a amamentação ficou difícil o que não era bem expli cado e os fantasmas do medo de que o marido vio lentasse a filha reapareceram Ressaltese que o ho mem em questão é uma pessoa tranquila carinhoso tanto com a esposa quanto com sua filha A paciente sempre levou o bebê às consultas e meses depois quando a mãe começou a sentirse ansiosa a tera peuta observou que ela continuava calma e bastante curiosa engatinhando pela sala tocando os objetos Sempre que sua mãe falava de temas que a angus tiavam havia uma sintonia entre as duas pois a neném parecia intranquila e procurava se aproximar da mãe Quando voltou ao trabalho de doméstica na casa da família em cuja empresa seu marido trabalhava ocorreu o seguinte episódio O filho adolescente a respeito de quem o marido da paciente já a havia aler tado pois o achava esquisito uma tarde pediu para ficar tomando conta da neném Como estiveram em silêncio por algum tempo a paciente foi até o quarto verificar e o rapaz estava com a calça abaixada e com o pênis de fora empurrando a cabeça do bebê A mãe deu um berro e o adolescente se recompôs Apesar de a terapeuta ter mostrado de modo claro a seme lhança da situação atual com as ocorridas na história Psicossomaticaindd 577 Psicossomaticaindd 577 05012010 121227 05012010 121227 578 Mello Filho Burd e cols da paciente ela só a muito custo conseguiu enten der o significado da situação e pretendia nem contar ao marido o que havia ocorrido Decidiram não falar nada com os patrões com medo de perderem o em prego tendo sido feita uma entrevista conjunta dos dois com a terapeuta Ficou decidido que ela ficaria no trabalho mas vigiaria a filha impedindo que ela ficasse só com o adolescente Desse episódio podemos observar o quanto as experiências traumáticas de natureza sexual ou não têm uma força e permanência intensas e se não fo rem tratadas e modificadas permanecem como fan tasmas transgeracionais afetando bebês e crianças sem relação direta com o trauma original Mais uma vez podemos observar que a preser vação da integridade psicossomática do bebê só foi possível com a modificação da estrutura psicológica masoquista da mãe que a estava levando a colocar sua filha em risco A paciente continuou em tratamento durante um ano e três meses depois do parto tendo havido importante remissão dos sintomas A alta se deu de maneira normal e a paciente saiu do emprego de do méstica e trabalha atualmente como secretária em outro local CONSIDERAÇÕES FINAIS Donald Winnicott com seus trabalhos iniciais nos anos de 1930 quando ainda não havia completa do sua formação psicanalítica provocou uma profun da transformação no entendimento do adoecer infan til Ele introduziu a importância de serem olhados os aspectos emocionais envolvidos as relações familia res e estabeleceu pontes entre esses diversos vetores desenhando uma visão intersubjetiva das relações humanas e da integração psicossomática que trans formou a prática pediátrica de maneira duradoura Como ponto de partida desta tentativa de con clusão lembramos a singela colocação de Winnicott de que os bebês não nascem com 2 ou 3 anos e que as questões que os afligem em seus desenvolvimentos ocorrem desde o nascimento ou mesmo antes dele Outrossim ressalto que a discussão sobre as raízes dos eventos psicossomáticos feita aqui está circuns crita aos primeiros meses de vida em período ante rior à aquisição da linguagem falada É de um bebê que possui apenas seu corpo e sua fisiologia como meio de expressão de quem falamos Em nosso recorte a essa questão ligandoa às da infância saudável e aos problemas psicossomáti cos acreditamos firmemente que os bebês nasçam orientados para a vida e para o encontro com al guém que a viabilize como qualquer animal Nessa dimensão todos os mamíferos representariam com seu nascimento a expressão concreta do instinto de vida conforme postulado por Freud em oposição ao instinto de morte Cada nascimento seria uma nova oportunidade de usufruir os dons da vida as capacidades de cada espécie e de cada ser vivo em particular No caso dos homens os únicos a terem desenvolvido a percepção da morte e por oposição o sentido e importância da vida o nascimento de um bebê deveria ser mais do que uma imposição instinti va aprisionadora e irremediável Deveria representar uma escolha que envolvesse sempre afinidade amor liberdade e compartilhamento Em O Uso de um Objeto no Contexto de Moisés e o Monoteísmo Winnicott faz um dos raros comen tários sobre a pulsão de morte pela qual diz nunca ter morrido de amores e diz que ficaria muito feliz se pudesse aliviar Freud do ônus de carregála nos ombros por toda a eternidade p 242 É importante destacar que Winnicott faz nesse texto uma ligação explícita ao papel do pai no de senvolvimento infantil vendoo como um exemplo para integração do infante logo após a sua unifica ção Dessa forma podemos ver que o pai pode ser o primeiro vislumbre dado pela criança em direção à integração e à totalidade pessoal A pulsão de morte está nessa visão a serviço do desenvolvimento e da integração uma vez que faz parte do estabelecimento de diversos limites sendo desse modo instrumento da vida em plenitude psi cossomática e intersubjetiva A visão de um hipotético impulso para mor rer é entendida aqui e creio na maior parte da teorização de Winnicott como uma reação lesão por agravamento ou ativação de potencialidades pa tológicas ou submissão a graves falhas privações e deprivações provocadas por um meioambiente não empático ou doente e hostil ao recémnascido que o empurra inevitavelmente em certos casos para a morte Creio que poderíamos falar nesses casos mais de uma impulsão para a morte do que em uma pulsão de morte As recentes pesquisas e evidências trazidas pe las neurociências dizem que Cozolino 2002 idem Até recentemente eram realizadas cirurgias sem anes tesia em infantes porque sua falta de resposta de pro testo era mal interpretada como sendo devida a in sensibilidade à dor Menos de 25 de circuncisões em recémnascidos usam alguma forma de analgesia ape sar das evidências fisiológicas de que eles estão sofren do stress e dor durante os procedimentos p 266 Vemos que mesmo um ato de inclusão cultural como é o da circuncisão para os judeus feito por pais amorosos e desejosos de doar a seus filhos uma rica Psicossomaticaindd 578 Psicossomaticaindd 578 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 579 herança cultural pode ser toldado pela dor e deixar marcas O que pensar então das cicatrizes deixadas pelas ações devastadoras de abuso sexual falta de carinho e maustratos e negligência com crianças e bebês Vimos ao longo do texto que em todos os ca sos de distúrbios psicossomáticos e doenças relata das houve uma clara relação com abusos de diversos graus violando o mais importante aspecto da relação dos pais com seus bebês que é o da proteção Kramer Richards 2006 diz em seu artigo Com preendendo a mãe abusiva no qual analisa a vida e a obra da poetisa americana Anne Sexton que em seu sentido mais importante o abuso infantil pode ser definido como um fracasso da proteção Continua a discussão dos poemas da autora cita da ganhadora do prêmio Pulitzer de 1967 e também do prêmio Shelley Memorial da Sociedade Americana de Poesia analisando as questões ligadas às perver sões quando estas atingem os filhos O aspecto essencial da perversão é a agressiva deshu manização do objetoEscrever sobre as filhas foi nesse caso um aspecto importante do abuso Seus sentimen tos refletem os do abusador quando ela era uma meni na O ponto central deste trabalho não é discutir se o abuso sexual infantil é característico dos artistas O ponto central deste trabalho não é se os pais artistas são menos protetores de seus filhos do que os pais que não o são O centro deste trabalho é que os pais artistas podem nos mostrar as formas pelas quais os que não são artistas são motivados a abusar Os artistas podem articular o que necessitamos acerca do que nossos pa cientes não artistas estão sofrendo p 257 Em outro momento de seu texto a autora diz que de modo claro os dramas e ofensas sofridas por Sexton são repetidos com suas filhas e afirma que uma mãe tão ferida com tantas cicatrizes volta seu dano sobre suas filhas e cria uma outra geração de mães que a menos que recebam ajuda e apoio também abusarão de suas crianças p 255 Uma pergunta se impõe a título de encerramen to deste capítulo O que pode ser feito por nós para prevenir que tão dramáticos e devastadores eventos continuem a ocorrer ainda hoje No Encontro Latinoamericano sobre o Pensa mento de Winnicott realizado em 2006 em Buenos Aires apresentei o trabalho Projeto Criação uso de teoria Winnicottiana no prénatal de adolescentes Este foi pensado em razão das descobertas atuais que demonstram claramente que diversas situações es tressoras durante a gravidez causam danos que vão alterar significativamente as possibilidades de inte ração mãebebê e seu desenvolvimento e integração posteriores No texto propus o uso dos conhecimentos psicanalíticos e de psicologia do desenvolvimento acumulados desde que os textos pioneiros de Freud inauguraram a psicanálise somados em uma visão transdisciplinar àqueles trazidos pela sociologia po lítica economia direito e neurociências Apesar des ta moldura a proposta é singela em sua execução O trabalho é para ser feito por equipe multiprofis sional composta por psicanalista e psiquiatra psicó loga assistente social fisioterapeuta acadêmico de enfermagem e estagiário de direito atuando na vara de família atendendo grupos formados por até 10 grávidas de 12 a 21 anos durante toda a gestação e até o segundo ano de vida dos bebês O singelo a que me referi antes diz respeito à maneira simples e carinhosa com que elas serão ouvidas em conversas a respeito de suas necessidades alegrias e medos co tidianos Haverá um máximo de quatro grupos sendo três submetidos ao prénatal comum somado ao atendimento psicoterápico em grupo e individual sempre que a equipe detecte alguma situação social ou emocional que requeira atenção específica Dentro de um cuidar com visão multiprofissional problemas como desemprego dos pais uso de drogas prisão ou violência excessiva podem ser atendidos de modo direto e otimistamente solucionados As grávidas serão provenientes de grupamentos socioeconômicos menos favorecidos encaminhadas por ONGs igre jas ou programas públicos de atendimento médico familiar O outro grupo que servirá de controle não receberá a atenção psicoterápica proposta apenas o prénatal regular e para que não haja um senti do de orfandade frente aos outros três deverá vir de outra comunidade ou serviço Nossa ideia é fazer uma avaliação qualitativa e quantitativa levando em conta parâmetros de incidência de problemas fetais como circulares de cordão motilidade exacerbada baixo peso defeitos congênitos prématuridade ao nascer etc Esses dados serão contextualizados com a história emocional de cada uma das grávidas em atendimento buscando correlações Faz parte do pro jeto a realização de três ultrassonografias no tercei ro sexto e nono meses de gestação Um ponto específico do Projeto Criação é o uso de fantoches criados por mim aos quais dei nomes como o seio falante a mãe má a avó sabetudo o marido rapper e a madrasta bruxa entre outros Minha intenção foi usar com as adolescentes muitas bem jovens e com traços ainda fortes de pensamento infantil com aspectos mágicos atuantes os conceitos de Winnicott 1971 sobre a importância do brincar na construção de uma realidade mais rica e criativa A ideia contida no projeto é usar os temas deba tidos naquele texto na intenção de agenciar as ado Psicossomaticaindd 579 Psicossomaticaindd 579 05012010 121227 05012010 121227 580 Mello Filho Burd e cols lescentes pelo brincar e nessa interação participar em alguma medida do que Stern chama da criação do bebê da fantasia da grávida que vai ter que se confrontar com o da realidade após o nascimento Em esquetes e encenações conjuntas feitas com a equipe muitos temas de difícil abordagem como a aparência do bebê desemprego e violência dos ma ridos namorados e ficantes ou as intromissões da avó sabetudo que pode estar dizendo algo como Você ainda pensa em sexo mas na minha época ser mãe era ter a Virgem como modelo podem ser discutidos e enfrentados Outros ligados à própria juventude das adolescentes e o luto de seu corpo e preocupações com mudanças físicas podem ser dis cutidas pelo seio falante ou a barriga com estrias mas ainda sexy A ideia é que o humor seja muito im portante para lidar com temas tão difíceis que ficam mais fáceis de serem ouvidos e modificados com um sorriso nos lábios Se acreditamos que seja principalmente sobre o meioambiente que as intervenções terapêuticas de vem ser feitas nossa intenção com o Projeto Criação é antecipar ao prénatal o conceito de ambiente fa cilitador e mãe suficientemente boa de Winnicott criando um meioambiente prénatal facilitador O colega Samuel Hulak comunicação pessoal disse que se formos realmente buscar as origens das questões psicossomáticas devemos pensar em um amor imunológico que permite a nidação do óvulo fecundado e sua evolução como ovo Nossa visão sobre as questões de psicossomática na infância abraça esta ideia e a estende ao cenário onde acontece o encontro entre este homem e esta jo vem ou mulher que irá engravidar Todo esforço deve ser feito para que ele aconteça dentro de um clima de amor e desejo liberdade de escolha e amor pelo bebê ainda não nascido que não deveria vir para servir a outro objetivo que não o de existir Nossas crianças hoje e no futuro merecem a chance de simplesmen te viver com amor e saúde pois como disse David Chamberlain um dos fundadores da Associação para a Psicologia e Saúde Pré e Perinatal existem evidên cias de um tipo de memória rudimentar armazenada em nível sensorial durante os últimos meses de ges tação Cientistas como Allan Schore e Joseph LeDoux nos lembram que desde que os bebês não têm nem razão nem memó ria explícita e desde que a maioria de nós não possui memórias conscientes anteriores aos 2 anos de idade pode parecer que esse período tenha pouca influência em nosso funcionamento presente Schore diz que por que o córtex órbitofrontal é a única que se projeta dire tamente ao hipotálamo e aos centros autonômicos loca lizados profundamente no cérebro ele age como centro de controle ao mesmo tempo sobre os sistemas sim páticos e parassimpáticos que geram os componentes corporais das emoções Diz ainda que o período crítico para o desenvolvimento desse sistema coincide com o período extensamente investigado por pesquisadores das ligações primitivas A ligação do bebê com a mãe cria a fonte a partir da qual os circuitos de processa mento emocional das relações é implantado LeDoux lembra que a amígdala junto com o hipocampo no sis tema límbico podem explicar o que os analistas vêm dizendo há décadas eventos no início de nossas vidas em particular os marcados por fortes emoções podem ficar e permanecerem durante toda nossa vida Karr Morse e Wiley p 1945 O going on being de Winnicott não é apenas um conceito teórico ligado à atenção e à dedicação individualizadas a que todos os bebês deveriam ter direito ao nascerem É uma realidade imperiosa para um desenvolvimento integrado em termos humanos e psicossomáticos Em Pediatria e Neurose na Infância Winnicott mostra as diversas formas algumas singelas como levar a criança de férias ou comprar um cachorro capazes de ajudar a criança a enfrentar suas dificul dades iniciais Vemos que ele usa nesse texto a ideia impor tante de prevenção da doença psicológica quando tentamos dar o que é necessário nos estágios iniciais da infância e termina o capítulo dizendo Neste ponto serei dogmático e pessoal Passei minha vida profissional com um pé na pediatria e outro na psi canálise Gostaria de assinalar como ponto central de minha contribuição que mais cedo ou mais tarde será reconhecido que a ciência subjacente à pediatria psicológica já existe na forma da psicologia dinâmica ou seja na psicologia dos processos conscientes e in conscientes derivada de Freud A psicanálise tanto como ciência quanto tendo em vista a formação que pode oferecer merece coexistir com a fisiologia Peço aqui e agora o respeito das ciências físicas pela psicanálise e o peço especialmente aos que não gostam dela Não gostar da psicanálise não é argumento contra ela p 422423 A luta pela integração científica e clínica que Winnicott prescreve no texto acima continua até hoje assim como as resistências contra ela impedindo que a existência humana possa começar com uma infân cia pacífica e integrada psicossomaticamente Podemos ver na literatura especializada im prensa e literatura geral e poética que a falta dessa integração resulta nos dramas e infelicidades que cor rem de geração em geração e é nossa obrigação tentar minorar Psicossomaticaindd 580 Psicossomaticaindd 580 05012010 121227 05012010 121227 Psicossomática hoje 581 REFERÊNCIAS Abram J 2000 A Linguagem de Winnicott dicionário das pala vras e expressões utilizadas por Donald Winnicott Revinter Rio de Janeiro 2000 Belmont S A 2006 Projeto Criação Uso de teoria Winnicot tiana no pré e perinatal de adolescentes Apresentação em mesa redonda no Encontro latinoamericano sobre o Pensamento de Winnicott B Aires dezembro de 2006 Cozolino L 2002 The Neuroscience of Psychoterapy building and rebuilding the human brain WW Norton Company NYork London 2002 Cramer B PalacioEspasa F 1993 Técnicas psicoterápicas mãe bebê apud Pereira E Técnicas psicoterápicas mãebebê estudos clínicos e técnicos 1993 A Psicológica 1999 vol 17 número 2 pg 360362 Lisboa Freud S 19201922 Além do Princípio do Prazer Psicologia de Grupo e Outros TrabalhosImago Rio de Janeiro 76 Hulak S 2007 Alexitimia e pseudoalexitimias texto recebido por Email Recife 2007 KarrMorse R Wiley M 1997 Ghosts from the Nursery The Atlantic Monthly Press N York 1997 Kreisler L 1999 A Nova Criança da desordem Psicossomática Casa do Psicólogo São Paulo 1999 Leboyer F 1979 Nascer Sorrindo Editora Brasiliense 1979 1998 Shantala uma arte tradicional massagem para bebêsGround Editora sétima edição1998 São Paulo LeDoux J 2002 Synaptic Self how our brains become what we are Penguin Books NY Meltzoff A N Prinz W eds 2002 2003 The Imitative Mind Development Evolution and Brain Bases Cambridge University Press 2002 Mello Filho J 1992 Psicossomática Hoje Artes Médicas Porto Alegre 1992 1995 O ser e o viver uma visão da obra de Winnicott primeira impressão revista Artes Médicas Porto Alegre RS Richards A K 2006 Comprendiendo A La Madre Abusiva in La maternidad y sus vicisitudes hoy ed por Zelaya C Talledo J Dupuy E 2006 Lima Perú Shonkoff J Phillips D eds 2000 From Neurons to Neighbou rhoods The Science of Early Child Development National Rese arch Council USA 2000 Stamenov M Gallese V 2002 Mirror Neurons and The Evolu tion of Brain and Language Jon Benjamins Publishing Company Amsterdam Philadelphia 2000 Stern D Stern NB 1998 The Birth of a Mother how the motherhood experience changes you forever Basic Books NY 1998 pg3241 Welldon Estela V 2006 Por Qué Se Desea Tener un niño in La maternidad y sus vicisitudes hoy ed por Zelaya C Talledo J Dupuy E 2006 Lima Perú Winnicott W D 1936 O Apetite e os problemas Emocionais in Da Pediatria à Psicanálise 19582000 Imago Rio de Janeiro 2000 p91 1948 A Reparação Relativa à Defesa Organizada da Mãe contra a Depressão idem p 156 1945 Desenvolvimento Emocional Primitivo idem p 218 1949 Memórias do Nascimento Trauma do Nascimento e Ansiedade idem p254 1949 A mente e sua relação com o Psicossoma idem p227 1956 Preocupação Materna Primária idem 1956 Pediatria e Neurose na Infância idem pp 417 423 1971 O Brincar a Realidade Imago 1975 Rio de janeiro Psicossomaticaindd 581 Psicossomaticaindd 581 05012010 121228 05012010 121228 O primeiro caso de diabete foi constatado no Egito em 1500 aC como uma doença desconhecida Diabete em grego quer dizer sifão devido aos sintomas da doen ça que provoca sede intensa e grande quantidade de urina O termo diabete foi usado pela primeira vez em 250 aC por Apolônio e Memphis Só adquire a termi nologia mellitus que no latim quer dizer mel no sé culo I dC Logo a patologia passa a ser chamada de uri na doce Gama 2002 citado por Marcelino 2005 Entre 1986 e 1988 com o apoio do Ministério da Saúde e do CNPq realizouse um censo nacional sobre a prevalência do diabete no Brasil Este estu do mostrou uma prevalência de 76 na população entre 30 e 69 anos Um dado importante foi de que quase 50 dessas pessoas não conheciam o diag nóstico Para mostrar como a doença é minimizada na sua importância iremos apresentar dados de uma pesquisa recente Um grupo de discussões foi realizado para ve rificar qual seria a percepção dos participantes a res peito da gravidade das principais doenças Em uma escala de 1 a 10 foi pedido aos participantes desse grupo para classificar a gravidade de vários proble mas de saúde incluindo câncer doenças do coração e diabete O câncer e as doenças cardíacas foram clas sificadas como 9 e 10 e o diabete só ficou em 4 e 5 na escala Larry Hausner diretor da ADA Associação Americana de Diabete que comandou as discussões disse que havia pouco conhecimento dos participan tes sobre tudo relacionado ao diabete DM O con senso geral parece ser existem remédios veja como as pessoas parecem estar bem com diabete ou nunca ouvi falar de ninguém que morreu de diabete diziam as pessoas do grupo wwwportaldiabetescombr 2008 Mas o diabete é tudo menos uma doença insig nificante e a discrepância entre a percepção e a reali dade é particularmente preocupante numa época em que o número de diabéticos está aumentando bem como dos que apresentam intolerância à glicose e dos prédiabéticos Sem dúvida o DM é tratável e um leque de medicamentos e de ferramentas de monitoramento melhorou incrivelmente a qualidade dos cuidados aos pacientes Mas manter a doença sob controle exige constante vigilância e cuidados dispendiosos Focados na sua doença e com acesso à assistência médica regular os pacientes têm uma boa chance de mantêla controlada e com uma boa qualidade de vida O diabetes mellitus segundo vários autores Graça Burd e Mello Filho 2000 Grünspun 1980 Anjos 1982 Ajuriaguerra 1976 Joode 1976 e Debray 1994 citados por Marcelino 2005 é uma doença psicossomática ou seja que sofre influência de fatores psicossociais em sua etiologia O DM é uma doença multifatorial e a medicina sozinha não conse gue dar conta de ajudar no controle da doença para que não haja complicações Silva 1994 citado por Marcelino et al 2005 afirma que doença psicossomática é qualquer alte ração somática física decorrente de sofrimentos psíquicos diferentemente da somatopsíquica que é qualquer alteração psíquica decorrente de sofrimento físico por exemplo os efeitos psíquicos sofridos pelo indivíduo que possui uma enfermidade crônica ou uma debilidade física Sendo assim o diabetes melli tus pode ser tanto uma doença psicossomática quanto somatopsíquica Segundo definição de Mello Filho 2008 A do ença psicossomática é qualquer doença do corpo isto é física que se inicia ou se potencializa pela ação de fatores psicossociais no seu desencadeamento evolu ção e agravamento O diabetes mellitus é uma doença psicossomática porque ela se inicia frequentemente numa fase de estresse emocional e sofre a influência de fatores ou de distúrbios somáticos na sua evolu ção Como doença orgânica influencia o psiquismo daqueles que a apresentam O diabetes mellitus não é apenas uma doença mas um grupo de distúrbios metabólicos Muito já se descobriu desde 1500 aC quando um antigo texto egípcio relacionava remédios para várias patologias inclusive para uma que era considerada misteriosa 47 DIABETES MELLITUS UMA VISÃO PSICOSSOMÁTICA Miriam Burd Psicossomaticaindd 582 Psicossomaticaindd 582 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 583 e na qual as formigas eram atraídas pela urina dos doentes A ciência muito já avançou desde que os douto res canadenses Banting e Best em 1921 descobriram a insulina A tecnologia se aperfeiçoou e já se dis põe de bombas infusoras de insulina que podem ser programadas e acopladas ao corpo do paciente e mo dernos aparelhos para medição da glicose no sangue que de longe se parecem ao primeiro glicosímetro patenteado em 1968 que pesava quase um quilo Não existe diabete emocional um mito que ain da hoje faz parte do imaginário das pessoas O estres se emocional por qualquer motivo não é o causador de diabete mas quem é portador pode fazêlo evoluir mais rápido vivendo sob o mesmo Algumas vezes os pacientes que desconheciam que eram diabéticos des cobrem a elevação da taxa durante um evento emo cional fazendo essa relação causaefeito Alguns indi víduos que apresentavam diabete leve assintomático podem descobrir a doença nessas situações Entretan to variações emocionais podem alterar o controle do diabete naqueles indivíduos portadores da doença O estresse libera hormônios que aumentam a glicose e muitas vezes reagimos a ele comendo ou bebendo mais ou nos exercitando menos O que sabemos é que o diabete pode causar mu danças no comportamento A autoestima ou o equi líbrio das emoções podem ser afetados pela presença da doença que muitas vezes causa surpresas ao por tador É necessário um acompanhamento do pacien te por uma equipe de saúde multidisciplinar médi co enfermeiro psicólogo nutricionista odontólogo educador físico etc para tratar essa doença crônica que interfere sobre todos os aspectos da vida Para Jeammet Reynaud e Consoli Os suces sos da medicina na atualidade ressaltam o papel dos fatores patogênicos ligados ao meio ambiente na saúde e a importância da prevenção das doenças Considerar o órgão doente é necessário mas não suficiente Devese levar em conta os parâ metros ligados à personalidade do doente inserido no ambiente O desempenho ou o resultado de qualquer pes soa ao enfrentar problemas de risco à saúde é mui to menos determinado pelo fator vivenciado e muito mais relacionado às fontes de recursos disponíveis para se buscar um apoio nesses momentos Há indi cadores pessoais como a percepção do risco o nível de informação o envolvimento emocional as habi lidades cognitivas a maturação e outras dimensões do desenvolvimento que modificam a percepção da situação e risco vivenciados Há também indicadores globais como pobreza desagregação familiar exposi ção à violência etc As pesquisas demonstram que o diabete está muito relacionado com o estado emocional dos seus portadores e que o acompanhamento psicológico é de suma importância para que o paciente e sua família possam elaborar os aspectos emocionais da doença e assim minimizar os sofrimentos psíquicos O psicólogo deve estar sempre presente nas equipes de saúde e o seu trabalho poderá ser realizado com o indivíduo por tador o grupo de pacientes e com a equipe de saúde Esse capítulo pretende dar uma visão geral das várias facetas dos vários diabete Os indivíduos são diferentes entre si bem como o são os portadores de diabetes mellitus Tudo vai depender de como se de ram as suas experiências anteriores à doença como foi a sua abertura de como a família e os amigos rea giram frente ao diagnóstico de como soube que era diabético da relação que consegue estabelecer com os profissionais que o tratam etc Na primeira parte privilegiaremos o diabete tipo 1 através de um caso clínico de um adolescente que des cobre a doença com uma complicação aguda a cetoa cidose diabética A segunda parte irá enfocar o diabete tipo 2 através de um caso clínico de paciente diabético já com complicação crônica a retinopatia diabética A terceira parte abordará o diabete tipo 2 no idoso e o tra balho de grupo Acreditamos que dessa forma também possamos dar uma visão geral das diversas formas de atendimento no hospital geral em consulta conjunta e em grupo de apoio psicológico e no consultório priva do em terapia de apoio psicológico O diabete e os diabéticos são diferentes mas todos os seus portadores enfrentam as mesmas vi cissitudes e dificuldades Tudo vai depender dos re cursos internos do portador Entre sentirse escravo da doença e aceitar a doença e o seu tratamento como fazendo parte da sua nova vida há um longo caminho a percorrer Com certeza aceitando que a doença é psicossomática todos os envolvidos percor rerão esse caminho com mais facilidade PRIMEIRA PARTE Caso clínico evolutivo Da cetoacidose à alta hospitalar Marcos adolescente 15 anos abertura aguda do DM1 Através de um caso clínico que vai ser desen volvido abaixo procuraremos descrever e explicar O presente caso clínico foi apresentado em parte na primeira mesa do Simpósio A Equipe Multidisciplinar no tratamento do Diabetes Mellitus da Sociedade Brasileira de Diabetes RJ 16 de agosto de 2008 Psicossomaticaindd 583 Psicossomaticaindd 583 05012010 121228 05012010 121228 584 Mello Filho Burd e cols o trabalho da psicologia nos diversos setores de um hospital geral e de emergência No Setor de Emergência Marcos foi admitido no Setor de Emergência A avalia ção do paciente revelou dor abdominal generalizada encontravase letárgico com sede intensa pele extre mamente seca e tinha hálito cetônico O diagnóstico médico foi de cetoacidose diabética primodescom pensação desidratação intensa e encaminhamento para o CTI O profissional psi uma psicóloga que integrava a equipe do Setor de Emergência também atendeu o adolescente e sua família Estavam muito ansiosos in seguros e com medo do diagnóstico e prognóstico Este estado emocional se intensificou quando soube ram da necessidade de encaminhamento para o centro de tratamento intensivo Já tinham alguma ideia sobre o diabete porque o avô paterno de 70 anos de idade era diabético tipo 2 há alguns anos Esse foi o primeiro contato da psicóloga com Mar cos e sua família Boa tarde meu nome é Miriam e sou a psicó loga do setor Seu nome é Marcos não é E vocês são seus pais Foi bom também encontrar o Dr Álvaro que está passando para vocês o diagnóstico e a necessidade de encaminhamento para o CTI Vim até vocês porque procuro acompanhar de perto todos os pacientes que abrem o quadro de diabete Nesse momento vocês devem estar ansiosos com toda essa crise e precisan do de ajuda psicológica É comum e normal que vocês estejam dessa forma preocupados e com medo prin cipalmente ao ouvir as palavras Diabete tipo 1 e CTI não é Doutor Álvaro é importante que o senhor possa ajudálos nesse momento dando algumas explicações sobre o que vai acontecer de agora em diante Essas explicações rápidas podem diminuir a ansiedade dessa família e facilitar as providências que estão por vir A família se coloca através das palavras da mãe Isso mesmo embora o avô paterno tenha diabe te do tipo 2 ele nunca veio parar numa emergência e não precisou ficar num CTI Ele é idoso tem 70 anos e ficou diabético há dois anos Mas o Marcos é tão jovem vai tão bem no colégio é bom aluno e joga futebol mui to bem Como isso veio a acontecer com ele Dr Álvaro responde O que aconteceu com ele é que pelo o que vocês relataram dos sintomas como emagrecimento sede e fome intensa e urinando muito nisso já está ocorrendo aumento de açúcar há alguns dias O quadro de saúde do Marcos se agravou muito a glicemia está muito alta e ele já está com cetoacidose Não podemos mais per der tempo porque tudo pode se agravar mais O CTI é para pacientes que precisam de cuidados intensivos e possam ser tratados com maior rapidez e eficácia A equipe é grande muito competente e vai tratar do Mar cos muito bem É uma questão de poucos dias e vocês poderão vêlo nos horários de visita e saber notícias sempre que telefonarem A Dra Miriam também faz parte da equipe de lá e continuará atendendo o Marcos e vocês Vou estar acompanhando de perto Marcos o que você tem é diabete tipo 1 seu pâncreas não está fabricando insulina é necessário ministrar insulina através de injeções Marcos também se coloca Isso que eu tenho é igual à doença do meu avô Estou me sentindo tão mal e estou com medo Já perdi colégio prova e o jogo de futebol O senhor disse que estou diabético O que mais eu vou perder Tenho um colega do clube que toma insulina no banheiro Ele me disse que toma injeção todos os dias Vou ter de fazer isso Eu peguei do meu amigo A psicóloga pede ao Dr Álvaro para dar mais uma resposta E acrescenta Precisamos ser breves para começar o tratamen to logo Dr Álvaro o Marcos e sua família têm medo porque a doença abriu de uma forma aguda esse e ou tros sentimentos passam pela cabeça de qualquer um que não entende porque aconteceu isso com eles As informações também fazem parte do tratamento O im portante é saber agora que o tratamento já começou e vai continuar no CTI Estaremos lá para continuar a ajudálos Fiquem calmos e Marcos colabore As per guntas vão ser respondidas aos poucos Dr Álvaro encerra a consultaconjunta A Dra Miriam resumiu muito bem para mim e para vocês esses sentimentos e as perguntas são nor mais e irão sendo respondidas em etapas Confiem e vamos ter de leválo já A Psicologia Médica no Setor de Emergência Trabalhando com medos mitos e os mecanis mos de defesa frente ao adoecimento Quando a doença o DM1 abre de forma abrup ta como uma crise aguda o paciente pode sofrer um impacto diante da doença grave e ser levado a um hospital com uma complicação a cetoacidose Com o impacto vem o medo da morte e alguns mecanismos de defesa são acionados para proteger o portador e no caso sendo um adolescente também a sua família que veio trazêlo Eis alguns dos mais importantes Por parte do paciente ansiedade medo diante do desconhecido dúvidas o que eu tenho o que vai aconte cer comigo o que eu fiz de errado para onde vão me levar minha família vai poder ficar comigo vou demorar a ficar bom há perigo de morte inconsciente ou não Por parte da família ansiedade e dúvidas o que o meu filho tem o que vão fazer com ele para onde será levado o que fizemos de errado há perigo de morte ele vai ficar bom em quanto tempo Psicossomaticaindd 584 Psicossomaticaindd 584 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 585 Por todos os envolvidos impacto diante do diagnóstico expresso por dúvidas mitos e preocupações será que en tendemos bem o que nos explicaram o que é diabete tipo 1 ele vai ter de tomar insu lina o que ele comeu para ficar assim quem tem diabete fica cego amputa o pé ele vai ter de fazer dieta a vida toda tem cura o que eu fiz por merecer estou sendo punido O trabalho da Psicologia Médica se deve pau tar em acolher o paciente e sua família no sentido de au mentar a autoconfiança e a autoestima deles ajudar no sentido de manter a integralidade biop sicossocial dos envolvidos condição decisiva para favorecer os cuidados com a doença ajudar na coesão da equipe de saúde da unidade esclarecer os mecanismos de defesa que estão sendo usados no momento de crise aguda aos en volvidos no processo ajudar a encontrar os recursos psicológicos e am bientais a fim de viabilizar o aumento de coping conjunto de estratégias utilizadas para as pessoas se adaptarem a circunstâncias adversas favorecer as estratégias de enfrentamento para lidar com o estresse do momento de crise e com a doença encontrar os recursos necessários para o adven to de resiliência capacidade de recuperação dos mecanismos de adaptação após algum dano do paciente e demais envolvidos O acolhimento do paciente e de sua família Apresentação do diagnóstico e prognóstico Acolher o paciente e sua família é fornecer o holding suporte necessário para que ele não se en tregue à eclosão da doença e sua instalação cons trua um sentido próprio para ela e possa receber o diagnóstico e prognóstico do médico bem como as outras informações que estão e estarão sendo forne cidas pela equipe Para um adolescente isso signifi ca mais ainda uma ferida ao seu narcisismo no seu sentimento de onipotência e imortalidade levando a uma vivência de fragilidade e dependência em rela ção aos outros Há o impacto do diagnóstico de uma doença crônica o DM1 no início pode haver o mecanismo de defesa a negação que protege o paciente e sua família através de algumas racionalizações que po dem ser usadas O diagnóstico pode estar errado meu filho vai ficar bom tudo isso vai passar logo vou sair daqui A negação é a principal defesa da fase aguda da doença A esse mecanismo citado pode se seguir o da regressão onde o paciente se deixa cuidar de forma passiva havendo um afrouxamento de funções e ati tudes mais adultas e deixando aflorar aspectos mais infantis e dependentes Esses mecanismos de defesa podem ser bem vindos no início ou abertura da doença mais adian te no entanto não devem ser estimulados eles serão prejudiciais para o autocuidado e aceitação por parte do paciente da doença crônica Admitido no CTI a equipe médica realizará Hidratação e correção gradual da hiperglicemia outros procedimentos A Psicologia Médica no CTI Acolhimento do paciente na CTI onde ele será monitorado e medicado o psicólogo é um mem bro da equipe de um CTI É esperado que o paciente regrida para se deixar cuidar o tratamento é bastante invasivo e inten sivo o ambiente é estressante há necessidade de melhorar as relações das pessoas que estão envol vidas Se o paciente confiar e colaborar com a equipe de saúde a ansiedade será menor e os procedimen tos sentidos como menos dolorosos As dúvidas quanto à sua doença continuarão exis tindo numa unidade intensiva o estado grave da saúde do paciente o impedirá de absorver todas as informações recebidas ele se volta para si mes mo num mundo seu onde o que importa é o seu corpo enfermo As vivências de morte e de desamparo deverão ser acolhidas pela equipe a ansiedade deverá ser contida às vezes medicada o estresse é intenso e o paciente poderá apresentar reações depres sivas à medida que a negação diminui e ele vai tomando consciência de sua doença esse quadro pode muitas vezes diminuir quando o médico der um nome à doença e introduzir um significado para aquilo que atinge o doente Observação Outros procedimentos serão pos síveis de acordo com o estado de saúde grave le tárgico com acentuada melhora etc do paciente Psicossomaticaindd 585 Psicossomaticaindd 585 05012010 121228 05012010 121228 586 Mello Filho Burd e cols a família deverá ser atendida individualmente ou em grupo de familiares do CTI Moncada Leite D 2000 2007 Marcos na medida em que houve melhora do quadro clínico começa a se mostrar ansioso no CTI A enfermagem pede ajuda da psicóloga da equipe Dra Miriam pede que ela a acompanhe para uma consultaconjunta A equipe já está acostumada com esse tipo de intervenções Pergunta a psicóloga Olá Marcos como está essa manhã A Dra Sonia me pediu que viesse até o seu leito para atendêlo Pedi a ela que me acompanhasse Em que podemos ajudá lo Marcos responde Bom dia Estou me sentindo bem melhor mas é muito difícil para mim Neste lugar só tem pacien tes graves que estão dormindo A equipe corre de um lado para o outro À noite passada quando ia começar a dormir soou uma campainha e os enfermeiros come çaram a fazer uma porção de coisas com o doente do meu lado Fiquei nervoso e acordado a noite toda Fi quei com medo de que ele morresse Quando vou poder sair daqui A psicóloga se coloca Dra Sonia você estava certa quando me pediu para atendermos o Marcos O adolescente quando fica um pouco melhor de saúde se torna impaciente e an sioso para sair O CTI é um lugar muito estressante por que os procedimentos precisam ser rápidos e eficientes Quase sempre acontecem eventos como esse da noite passada É um correcorre geral e a maioria dos pacien tes é adulto ou idoso grave e sedada Como podemos ajudar o Marcos A enfermeira responde Vejo Marcos que sua alta daqui não deve demo rar você está melhor e paciente melhor reclama e pede para sair Peço a você que entenda que num CTI os apa relhos às vezes disparam precisamos ser rápidos Isso quer dizer que um paciente precisa mais de nós do que os outros Tente se acalmar logo o médico vai passar a visita e ver como você está Eis que entra o Dr Álvaro nos vê e vem ao nosso encontro Olá Marcos já li seu prontuário e a evolução está conforme o esperado Logo você vai poder sair daqui Pela presença da psicóloga e da enfermeira posso pres supor que você está sendo atendido por elas Em que posso também ajudar A psicóloga responde Dr Álvaro nós acabamos de dizer o mesmo que o senhor falou agora A ansiedade do Marcos é normal no caso de já estar apresentando melhoras A palavra do médico tem um peso muito grande sobre o paciente responder algumas dúvidas e conversar com o Marcos sobre o que está acontecendo com ele é muito impor tante É assim que se estabelece uma boa relação médi copaciente e melhora por parte do paciente a compre ensão da situação e a sua adesão ao tratamento Marcos você quer me fazer alguma pergunta ou fazer algum pedido pergunta o médico Dr Álvaro o que eu tenho é diabete como do meu avô e do meu amigo do clube pergunta Marcos O Dr Álvaro responde O que você tem é igual ao diabete de seu amigo Você disse que ele toma insulina todo dia É do tipo 1 Do seu avô é do tipo 2 Pode ser que mais tarde ele também precise tomar insulina A Dra Sonia pode me ajudar nesse ponto A enfermeira se coloca Dr Álvaro Marcos o seu pâncreas já não está fabricando toda a insulina de que você precisa Agora você a está recebendo por infusão contínua de insulina regular endovenosa em bomba de infusão mais tarde isso vai ser realizado sob a forma de injeção exógena de fora e você e sua família vão aprender a fazer isso A psicóloga se coloca Então Marcos sua principal dúvida foi respon dida Você está mais seguro agora O principal agora é confiar na equipe de saúde do CTI nos chamar quando precisar e se deixar cuidar Esses sentimentos são nor mais na sua situação e os demais profissionais sabem que esse tipo de consultaconjunta à beira do leito é importante para deixar o paciente mais tranquilo e co laborativo Dr Álvaro complementa A vinda da psicóloga para a equipe nos ajudou a entender a parte psicológica de nossos pacientes Quando ela não está presente às vezes me arrisco e faço um pouco o trabalho dela A enfermeira completa O trabalho em equipe facilitou nosso trabalho dá para ver o resultado desse nosso encontro hoje com o Marcos Podemos sair daqui certos de que o Marcos vai ficar mais tranquilo no tempo que lhe resta no CTI A psicóloga resume Obrigado aos colegas e a você Marcos Podem nos solicitar mais vezes Você deve estar querendo falar um pouco comigo sobre o que está precisando enfren tar e as mudanças que serão necessárias Pois bem O médico e a enfermeira pedem licença e se afas tam Marcos está bem e concorda em conversar com a psicóloga Acabada a sessão de apoio psicológico os dados da consultaconjunta e o atendimento individual são pas sados sucintamente para o prontuário do paciente É colocada também uma prescrição O paciente Marcos está na fase da adolescência e passou por uma crise aguda As consultasconjuntas da equipe podem ser solicitadas por qualquer profissional do CTI sempre que forem necessárias Elas ajudam a acelerar o processo de alta Após dois dias Marcos se apresenta ainda ema grecido Demonstrase amedrontado entristecido e ansioso mas bastante colaborativo com o tratamen to Está corado hidratado os vômitos cederam e a diurese normalizouse A cetonemia está negativa Psicossomaticaindd 586 Psicossomaticaindd 586 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 587 Não refere dores e não apresenta tosse Iniciou insu lina subcutânea e alimentação via oral Encaminhado para Unidade de Internação Enfermagem O trabalho da enfermagem do CTI foi focalizado na monitorização da glicemia e insulinização Reco nhecer e tratar a hipoglicemia são muito importantes Foram realizadas as orientações de alta Nutrição A nutrição procurou avaliar o paciente e inseri lo nos conceitos do plano alimentar Foram realiza das as orientações de alta A psicologia na unidade de internação Nem sempre no hospital geral há uma enferma ria especializada em adolescentes dos 12 anos até os 19 anos incompletos Quando houver o trabalho poderá ser realizado de forma a deixar o adolescente junto com seus pares e com uma equipe especializada nessa faixa etária para atendêlos Esse é o melhor momento para promover uma terapia breve focal com o paciente esses encontros do paciente com o profissional psi terão como objetivo preparar o paciente para sua vida como portador de doença crônica o DM1 fora da instituição médica as emoções e sentimentos poderão vir à tona e o pro cesso de luto poderá começar a ser iniciado perda da saúde perfeita limites colocados pela doença inter nação etc Neste período as informações a respeito do auto cuidado serão fornecidas pela enfermagem a aprendi zagem da monitoração e automedicação do paciente o nutricionista também ajudará o paciente e sua fa mília a escolher os alimentos e a sua quantidade o profissional psi pode e deve estar também envolvido nesses encontros outros profissionais da equipe pode rão também contribuir como o educador físico É também nesse momento que se pode preparar o paciente e sua família para o encaminhamento ao Ambulatório de Diabete os mecanismos de defesa nesse momento e nos que se seguirem poderão ser a revolta e a barganha quando poderei comer doce não vou ficar bom não suporto mais tomar tanta injeção e picar o dedo não poderei ir ao colégio não poderei comer na cantina de lá eu não aguento mais tanto teste essa doença é uma droga eu quero ir à micareta com meus amigos se não deixar eu vou comer doce até eu ficar doente mesmo eu faço tudo tão bem feito só hoje me deixa comer um docinho eu sou um óti mo filho me deixa ficar sem tomar insulina à noite doutor meu açúcar está bom eu posso me considerar curado e deixar de tomar insulina etc Orientações de alta e encaminhamento ao ambulatório Após uma semana quando do retorno ao ambulatório Marcos e a sua família ainda estão inseguros e sem compreender a variação glicêmica Ele refere desejo de consumir doce e outros alimentos A apli cação de insulina está sendo realizada pela mãe e ele se apresenta resistente à monitoração testes de uri na ou de sangue para avaliar o grau de glicemia A pedido do educador físico da escola a família solicita atestado para o adolescente não participar das aulas de educação física o professor tem receio de deixar Marcos fazer a aula e passar mal O endocrinologista Dr Luiz Paulo recebe Marcos e sua mãe a Sra Virgínia Bom dia Como está indo Marcos Já se passa ram alguns dias depois que você deixou a unidade de internação e foi para casa Você e sua mãe tiveram al guma dificuldade Dona Virgínia se adianta ao Marcos e responde Doutor essa semana foi muito difícil para mim O Marcos quer comer doce e não entendeu ainda que não posso deixar Ele está revoltado com a doença e só me pergunta quando vai ficar bom Meu marido vai trabalhar bem cedo e não consegue colaborar comigo Não sei se vou aguentar isso muito tempo O Marcos precisa ajudar no tratamento precisa aprender a fazer pelo menos o teste Além dele ainda tenho duas filhas menores que necessitam de mim Dr Luís Paulo tenta responder sem ser interrom pido Marcos vejo que vamos ter inicialmente um pou co de trabalho mas logo você e sua mãe vão aprender a fazer a rotina sem se estressarem Doces Marcos O aluno deve ser monitorado antes durante e depois da aula de educação física Se necessário deve fazer um lanche mais reforçado para não ter hipoglicemia uma baixa de açúcar no sangue e passar mal Os exercícios físicos são muito necessários para o paciente diabético Psicossomaticaindd 587 Psicossomaticaindd 587 05012010 121228 05012010 121228 588 Mello Filho Burd e cols você não vai poder comer Quando a glicemia estiver bem controlada existem doces diet Mas isso vai ser visto com a nutricionista Você e sua mãe vão passar por ela A psicóloga que já conhece os dois se coloca Marcos e Dona Virgínia já me conhecem Du rante os dias de internação no hospital estive acompa nhando e atendendoos nas unidades Marcos está na adolescência e ficou diabético Essa revolta é normal na fase em que está Ele e a mãe estão inseguros Tirar sangue do dedo colocar no aparelho medir a glicemia aplicar a injeção de insulina isso tudo é muito novo para eles fazerem sozinhos Ainda tem o estresse por que passaram no hospital e na semana que ficaram em casa tendo que continuar o tratamento sozinhos Dona Virgínia logo o Marcos vai começar a aprender tudo isso e ajudála se ajudando É claro que com a sua su pervisão Marcos se coloca de forma ansiosa e um pouco agressiva Doutora Miriam a senhora já me conhece um pouco Já conversamos outras vezes Muita gente con versou comigo Pediram para eu ficar calmo colaborar que tudo se resolveria Nada se resolveu Eu continuo com diabete não fiquei bom minha mãe fica o tem po todo atrás de mim ainda não fui ao colégio e já o professor de Educação Física quer um atestado médico Estou nervoso e revoltado o professor no colégio está com receio do que possa acontecer comigo na aula Dr Luís Paulo intervem Marcos tudo o que você falou está correto Pela minha experiência com meus pacientes adolescentes a maioria deles fica como você está Mas com o tempo começam a entender e colaboram Dra Miriam completa Marcos e Dona Virgínia o diabete veio para ficar não tem cura mas tem controle através do tratamento bem realizado A sua revolta é típica da adolescência e vai ser colocada em outras questões a serem negociadas com a sua família querer sair com os amigos ir à bala da etc No tratamento do diabete você não vai poder se rebelar É isso ou isso Aprender a se cuidar vai lhe dar responsabilidades mas também vai lhe dar maior liberdade de ação sua mãe vai confiar mais em você e deixálo ir ao baile aos passeios com os amigos etc Marcos enfim se rende e se acalma Quem vai me ensinar a fazer os testes Quero logo aprender isso e tudo mais E o atestado médico quem vai ajudar meu professor Quero continuar a pra ticar esportes Dr Luís Paulo responde Vou encaminhálos para a enfermeira Ela pode ir até a sua escola e conversar com o seu professor no seu colégio Dra Miriam pode acompanhálos até a en fermagem A consulta conjunta com a enfermagem se seguiu após o término da consulta com o médico A psicóloga con tinuou fazendo a ponte entre os profissionais da equipe multidisciplinar o paciente e sua família A psicologia médica no ambulatório Acolher o paciente e sua família nesse momen to a doença se torna crônica e possui características próprias O objetivo inicial é trabalhar as dificuldades emo cionais do paciente e de sua família relacionados ao DM1 e sua adesão ao tratamento dificuldades com a dieta monitorização e autocuidados a fase da adolescência em que se encontra o pa ciente também tem características próprias como a rebeldia o sentimento de onipotência e imorta lidade etc Essas características podem prejudicar ou não a adesão do paciente ao tratamento As entrevistas individuais servirão neste mo mento para triagem psicológica junto ao paciente e sua família e para o levantamento da teoria etiológica para a abertura da doença Para isso podese usar uma entrevista semiestruturada e uma pergunta como Houve algum evento muito estressante pouco antes da abertura da doença Os envolvidos são levados a procurar um sentido para a doença relatando incidentes estressantes eou traumáticos antes da abertura da doença Os mais comuns são a perda de um parente ou de uma relação afetiva importante a mudança de casa a migração da terra natal as mudanças no status econômico eou social etc Verificamse também as condições de coping e de resiliência dos envolvidos Serão depois priorizadas as consultas conjuntas do paciente com os demais profissionais da equipe de saúde onde o profissional psi junto ao médico ou outro profissional o atende Esse trabalho visa a prevenção de problemas médicopsicoló gico nutricionalpsicológico etc na adesão ao tratamento e o controle estrito do DM1 monitori zação e automedicação dieta e exercícios físicos na educação para o diabete para toda a vida etc Graça Burd Mello Filho 2000 2007 As psicoterapias de apoio individual e de grupo também fazem parte do trabalho no Ambulatório Grupos de Sala de Espera Grupos de Apoio para Adolescentes Grupo de Apoio a Familiares Grupos de Educação para o Diabete Grupos Lúdicos dra matizações vivências etc Esses grupos devem funcionar com equipe multiprofissional Idem Observações A equipe de psicólogos pode ser formada de vá rios profissionais ou apenas um profissional da Psicossomaticaindd 588 Psicossomaticaindd 588 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 589 equipe do Ambulatório de Diabete onde atuará nas diversas unidades O importante é manter a coesão do tratamento com uma filosofia comum de trabalho e encontros frequentes para discussão dos casos clínicos Os registros no prontuário do paciente deverão ser realizados de forma concisa e objetiva sempre no intuito de fornecer informa ções à equipe de saúde As prescrições por parte do profissional da Psicologia Médica são cabíveis e necessárias As consultas no Ambulatório deverão ser reali zadas no início semanalmente depois quinze nalmente até se conseguir a aprendizagem dos envolvidos quanto aos procedimentos necessários e haja a criação de um vínculo positivo primei ramente com a instituição médica depois com os profissionais da equipe do Ambulatório Con seguido isso as consultas serão espaçadas para uma em cada três meses Essas consultas abran gerão o médico o psicólogo o nutricionista e o enfermeiro A cada ano serão realizadas consul tas mais amplas onde serão revisados todos os conteú dos passados nas consultas iniciais como numa aprendizagem continuada As visitas às escolas para educação para os diabe te quando necessárias eou solicitadas são rea lizadas geralmente pela assistência social o ele mento designado pela enfermagem e o educador físico se o Ambulatório possuir um Os exercícios físicos desde que monitorados devem fazer sem pre parte do tratamento do paciente diabético O adolescente e as condutas de risco A personalidade falso self e o diabete A adolescência é um momento crítico para o controle do diabete Segundo Burd 2004 p 314 Burlar a dieta não querer fazer os exames são algu mas das transgressões ao tratamento e características de uma atuação permanente ou transitória de falso self A adolescência é a fase de contestação dos valores vigentes e das normas familiares da busca de independência em relação aos pais do reaflorar da sexualidade da vinculação a grupos e do gosto pelo risco baseado no sentimento de imortalidade idem De acordo com as identificações que faça com o grupo que escolha o jovem poderá reafirmar ou não um verdadeiro self Rosine Debray 1995 p 78 considera que os jovens ao atacar os aspectos do tratamento expri mem suas reações de oposição e se abstém de pôr em questão a própria existência da doença que os afe ta sem que esta de certo modo não deixe dúvidas Tais condutas descritas comumente como gosto pelo risco os adolescentes se utilizam da sintomatologia somática como veículo de seus conflitos do momento bem como de seu desconforto interior Na adolescência o jovem será cobrado pela sua participação no tratamento pela família e pela equipe médica Há a chance de se manter ainda em postura passiva e dependente dos pais e ao mesmo tempo em que pode burlar a dieta às escondidas Um fenômeno já estudado desde a década de 1980 é o denominado diabulimia e cujo termo foi criado em 2005 para uma desordem alimentar es pecífica em adolescentes e adultos jovens diabéticos tipo 1 O paciente manipula a dose da insulina com o objetivo de manter ou perder peso Quando as inje ções de insulina são suspensas o nível de açúcar fica alto e os sintomas são de início as de hiperglicemia boca seca vontade de urinar perda de peso e po dem chegar ao quadro mais grave de cetoacidose dia bética O transtorno é mais encontrado em pacientes do sexo feminino e essas condutas se constituem em verdadeiras atividades bulímicas similares aos vômi tos induzidos exercícios físicos em excesso etc pra ticados pelas pacientes não diabéticas A omissão de insulina é considerada um comportamento de risco Para Aguiar 2000 p 19 apud Mello Filho 1983a essas inúmeras transgressões ao tratamento representam por um lado um desafio do adolescente à doença e um teste para sua pretensa indestrutibi lidade e por outro podem se constituir em autên ticas tentativas de suicídio Em termos de falso self considerase que o suicídio pode significar a última defesa contra o domínio total do falso self seria uma tentativa de evitar o aniquilamento do self verdadei ro recorrendo à destruição do self total Winnicott 1990 Pode também ocorrer o contrário quando en contramos o paciente muito cordato e bonzinho que aceita todas as formas de tratamento sem discutir ou se rebelar Esse comportamento também pode ser uti lizado pelo paciente falso self Ele aceita passivamen te o que lhe se apresenta O atendimento especial à escola e à família Segundo o trabalho de pesquisa wwwportal diabetescombr 2008 de um Laboratório Farmacêu tico e da Sociedade Internacional para o Diabete Pe diátrico e do Adolescente Ispad cerca de 90 das crianças diabéticas do mundo frequentam colégios Psicossomaticaindd 589 Psicossomaticaindd 589 05012010 121228 05012010 121228 590 Mello Filho Burd e cols onde não há enfermaria para ajudar a controlar sua doença e o tratamento O secretáriogeral da Ispad o cientista Thomas Danne aponta que a falta de apoio faz com que os alunos diabéticos possam correr riscos graves que ameaçam a vida A pesquisa também aponta que os alunos com diabete abandonam os estudos antes dos que não têm a doença fato de que 6 em cada 10 crianças não seguem o tratamento nem os controles adequa dos quando estão no colégio e de que 40 faltam à aula pelo menos uma vez ao mês Outro aspecto fundamental da pesquisa referida é que há necessi dade de sensibilizar o sistema educacional para que as crianças diabéticas não se sintam incomodadas ou isoladas na aula já que um terço delas assegura que a doença limita sua vida social e as relações com seus companheiros Perante essa situação tanto os pacientes como alguns professores e pais da pesquisa reivindicaram uma melhor educação para os docentes para apren derem como reagir quando o aluno tem um proble ma ou sobretudo quando as crianças são pequenas e não sabem aplicar bem o tratamento A escola e a família precisam estar preparadas para lidar com o diabete do aluno ou do filho Mu nidas de informações básicas a respeito da afecção e com um mínimo de recursos para eventualidades extraordinárias poderão oferecer rapidamente os primeiros socorros As situações agudas deverão ser raras se o trata mento estiver sendo bem conduzido e a glicemia sob controle Saber o que é a doença e o que fazer dá se gurança e diminui o estresse que pode acompanhar eventos agudos e inesperados Essas informações dão clareza no que se refe re aos limites que devem ser impostos ao paciente as atividades que a ele serão permitidas e cobradas minimizando assim os ganhos primários e secundá rios à doença levando a um efetivo desenvolvimento físicopsicológico sem maiores transtornos evitando a superproteção ansiosa ou o seu contrário a negli gência de possível gravidade do evento O diabete não se mostra quando controlado mas apresenta limites e possibilidades para o pacien te Se é uma criança ela pode e deve brincar estudar fazer exercícios físicos e praticar esportes ter prazer nas coisas que pode fazer e se relacionar com muitas pessoas principalmente outras crianças no seu am biente e fora dele Se for um adolescente ele pode e deve fazer as aulas de educação física desde que monitoradas estudar fazer pesquisas participar nor malmente dos intervalos das aulas das brincadeiras enfim participar efetivamente do ambiente escolar e de convívio social Durante nosso trabalho em unidades públicas de educação e saúde os pacientes crônicos foram bem absorvidos por elas as intercorrências bem ad ministradas e superadas casos de hipoglicemia ne cessitam ser atendidos rapidamente porque podem perder a consciência Evitar o constrangimento do aluno na escola é uma medida muito importante O aluno diabético vai necessitar picar o dedo obter uma gota de sangue para fazer o teste de glicemia e depois aplicar a injeção de insulina Um local próprio e designado pela direção da escola deve ser colocado ao seu dispor O preconceito também deve ser enfo cado entre os alunos e professores as informações a respeito da afecção nestes casos podem ajudar mui to a desmistificálo Com o advento cada vez maior de pacientes crônicos essas informações e rápidos treinamentos se fazem cada vez mais necessários e precisam ser encarados como uma rotina atual nas vidas familiar e escolar Isso já acontece nas escolas inclusivas onde qualquer necessidade especial do aluno não é moti vo para sua exclusão ou não inclusão do ambiente escolar O que é importante frizar é que a escola não substitui a família as duas são muito importantes para a criança e o adolescente complementandose Diante disso recomendamos que o aluno com doença somática e crônica deve ser acolhido pelo colégio através de seus profissio nais professores coordenadores psicólogos supervisores pedagógicos etc com atitudes de suporte holding Fora de uma crise aguda o aluno deve ser considerado um aluno como ou tro qualquer o aluno ao ingressar no colégio deve ser atendi do bem como a família preventivamente pelo coordenador do turno procurando adaptálo às condições do colégio escadas rampas distân cias enfermaria bebedouros colocação numa turma adequada etc fazendo uma anamnese da doença para conhecer os fatos mais importantes da sua história clínica que tipo de doença tem restrições limites poderá fazer exercícios físicos telefones importantes a quem chamar em caso de eventos agudos nome do médico do plano de saúde do hospital de referência etc devido à complexidade do diabetes mellitus tipo 1 o colégio deve se informar com a família com o médico sobre que tipo de eventos agudos podem acontecer e o que fazer nos casos de emergência treinamento de algumas pessoas para um rápido atendimento etc os professores e os funcionários que lidam dire tamente com o aluno devem ser informados dos Psicossomaticaindd 590 Psicossomaticaindd 590 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 591 comportamentos a serem tomados no dia a dia e em caso de eventos agudos bem como serem treinados para identificálos rapidamente o orientador educacional eou psicólogo escolar devem ter noção dos mecanismos de defesa frente ao adoecimento para estabelecer um bom rapport com o aluno eou sua família e atendê los visando formar vínculos positivos e escolher as melhores estratégias pedagógicas para atendê lo na instituição escolar não se pretende fazer atendimento clínico e terapia Qualquer que seja a idade do diabético seu cuidado efetivo requer um envolvimento familiar Quando ocorre com crianças pequenas os pais assu mem toda a responsabilidade do tratamento Com o tempo a criança vai adquirindo condições de desem penhar um papel mais ativo Isso depende mais da autonomia da criança da sua maturidade do que a idade cronológica Na adolescência a ajuda da famí lia se faz necessária para a obtenção dos materiais necessários para o autocuidado e manter a vigilância sob a forma de verificações periódicas Na idade adulta o diabético deve ser capaz de ter responsabilidade e fazer seu tratamento A família deve de longe cooperar principalmente com a dieta Muitos pacientes reclamam da família que ostensiva mente comem muitos doces e ingerem uma dieta des regrada A visita ao nutricionista do familiar acom panhando o membro enfermo ajuda a reestruturar a dieta do paciente e de toda a família ajudando a todos Muitas vezes a partir da doença a família co meça a se alimentar de uma forma mais harmoniosa e saudável e melhora a qualidade dietética de todos Uma pesquisa Revista da SBD 2008 p4 rea lizada na Universidade Nova de Lisboa em Portugal sobre o estado civil do paciente diabético foi reali zada pelo Dr JM Boavida et al Chegaram à con clusão de que as pessoas casadas controlam melhor o valor da glicemia do que as solteiras e estas têm um risco cinco vezes maior do que os casados de não controlarem bem o diabete O apoio familiar é muito importante na adesão ao tratamento e o apoio do cônjuge se revela fundamental na maioria dos casos Na presença de complicações crônicas e idade avançada do paciente diabético a família entra como um verdadeiro suporte para possibilitar o tratamento de seu membro Há pacientes que burlam o tratamen to às escondidas ou abertamente Os familiares de vem entender e saber lidar de forma compreensiva mas não negligente as escapulidas e as transgressões do paciente Repreender apenas não reverte esse pro cesso de burla A família deve funcionar como conti nente na ajuda de um tratamento que é muito longo Quando a patologia se instala e a dificuldade da família está prejudicando o paciente no tratamento do diabete restanos ainda a ajuda do profissional psi através de psicoterapia breve e focal e os grupos de apoio psicológico aos familiares Estes devem fazer parte da oferta no tratamento ambulatorial e funcio nar com a ajuda da equipe multidisciplinar SEGUNDA PARTE O Diabetes Mellitus tipo 2 Caso clínico evolutivo Humberto 50 anos DM2 com retinopatia diabética Para o fotógrafo cego Eugen Bavcar A escuridão pode ser uma iluminação Do momento que não se vê percebese de outra maneira traçando nova fronteira entre o visível e o invisível Através do caso clínico de Humberto 50 anos de idade com mais de 10 anos com diabete e atendido em consultório particular em Psicoterapia de Apoio Psicológico as vinhetas da terapia vão ser entremea das com os achados dos estudos relativos ao DM tipo 2 no adulto com complicação crônica Humberto é solteiro e mora com uma irmã mais nova de um total de sete irmãos vivos e um falecido O pa ciente vem encaminhado pela médica psiquiatra da clí nica onde atendo Após começar a perder a acuidade visual do segundo olho ele se apresenta com depressão reativa Em uso de medicamentos antidepressivos há algumas semanas é encaminhado para sessões de psi coterapia Além de diabético Humberto é hipertenso e faz uso de antihipertensivos e antidiabéticos orais Tem sobrepeso e se encontra inativo fisicamente Muito abatido e ainda deprimido conta que perdeu 80 da acuidade visual do primeiro olho há quatro anos e do segundo olho começou a perder nos últimos seis meses Perguntado se a retinopatia era causada pelo diabete e pela hipertensão não soube responder Tinha poucas informações sobre as duas doenças de base cuidava se mal não possuía endocrinologista e cardiologista de As Unidades Hospitalares públicas e as Associações de Pacientes Diabéticos geralmente quando solicitadas fazem esse tipo de treinamento Sugerimos para aprofundamento do tema a leitura dos capítulos da autora nos livros Doença e Família Grupo e Corpo Psicoterapia de grupo com pacientes somáticos e A Criança e o Diabetes Uma Visão Psicossomática Psicossomaticaindd 591 Psicossomaticaindd 591 05012010 121228 05012010 121228 592 Mello Filho Burd e cols referência Com o endocrinologista que o acompanhara nos últimos meses não conseguiu fazer um bom víncu lo A referência dele era o centro oftálmico onde vários médicos já o haviam atendido em diversas ocasiões Alguns pacientes aprendem a controlar o dia bete ficam um tempo em boas condições de saúde e acham que já sabem se tratar sozinhos não precisan do mais do endocrinologista O diabete controlado não dói não se mostra Outros adiam o início do tra tamento porque é feriado é fim de semana vão pas sar as férias longe de casa e quando percebem já se passaram meses e anos Os sintomas não são visíveis e o paciente acredita que poderá resolver a questão a qualquer momento Malerbi maio 2008 p 23 diz que há três ti pos de pacientes diabéticos os que aprendem a se cuidar adequadamente e o fazem incorporan do o tratamento do diabete às suas rotinas diárias sem enfrentarem maiores problemas os que acham que sabem o que devem fazer quando de fato não sabem como muita coisa na vida aqueles que sabem de fato o que precisa ser feito mas não aplicam esse conhecimento às suas vidas é a diferença entre saber e fazer O paciente se encontrava em licença médica no traba lho e esperava ser aposentado por doença Contou que sempre cuidou dos outros dos pais e do irmão fale cidos dos irmãos dos sobrinhos órfãos Agora estava sendo cuidado por eles principalmente pela irmã caçu la que morava consigo Ficava a maior parte do tempo dentro de casa no seu quarto dormindo e sua prin cipal atividade era tentar ver TV bem de perto Para vir às sessões dependia dos irmãos mais velhos que o traziam de carro A retinopatia diabética é uma manifestação ocu lar do diabete e uma das principais causas de ceguei ra O aumento dos níveis de açúcar no sangue glice mia que caracteriza o diabete causa alterações nos pequenos vasos sanguíneos da retina no interior do olho Os vasos alterados deixam sair líquido e san gue para a retina reduzindo a visão Inicialmente não há sintomas daí a importância dos diabéticos vigia rem a sua visão através de exames médicos oculares regulares A retinopatia diabética é tratada mediante foto coagulação realizada com raios laser mas o ideal é que o doente controle os níveis de açúcar no sangue desde as fases iniciais da doença Segundo Caditz 1992 a retinopatia diabéti ca é uma condição frequentemente instável que faz com que as pessoas alternem entre o sentimento de que o problema se estabilizou e o sentimento de que está por ocorrer um agravamento e que estão prestes a perder a visão Esse sentimento de incerteza com binado com a falta de conhecimentos sobre os objeti vos dos tratamentos se traduzem num impacto bru tal dessa complicação crônica na vida dos pacientes Muitas vezes é mais difícil para o paciente lidar com a incerteza com a dúvida acerca do agravamento do que com a presença da complicação crônica Humberto vivia entre os sentimentos de ficar comple tamente cego e o de ainda ter um tempo enxergando mal Recusouse o tempo todo da terapia a procurar um serviço de reabilitação para deficientes visuais O meca nismo de defesa que ele vinha usando era a regressão e passou a depender pelo menos no início dos irmãos para tudo eles o levavam a todos os lugares faziam sua comida antes o paciente gostava muito de cozinhar iam ao banco administravam o seu dinheiro etc Per maneceu dependente por muito tempo À terapia vinha porque lhe disseram que era necessário que gostava da terapeuta era uma oportunidade para sair de casa vir no táxi do irmão etc Vinha quinzenalmente porque dependia desse irmão para trazêlo Das doenças de base o paciente quase nada sa bia Ele não tinha o hábito de fazer tratamento crô nico com especialistas medicamentos monitoração etc Repetia as receitas dos medicamentos prescritos por longo prazo sem retorno periódico ao médico Foilhe difícil aceitar que a perda da visão se dera por retinopatia diabética e que a pressão alta só contri buiu para o seu agravamento Estudos comprovaram que o controle intensivo da pressão arterial diminui o risco de evolução e gra vidade da retinopatia O controle glicêmico precoce protege a visão de pacientes diabéticos e o retardo no tratamento do paciente com risco de cegueira pela retinopatia por mais de dois anos pode levar à perda irreversível da visão Diretrizes SBD 2007 p 106 A depressão de Humberto mesmo medicada melhora va lentamente O paciente acordava às 9 horas da ma nhã para tomar seus medicamentos e voltava a dormir até a hora do almoço ou mais tarde Almoçava e vol tava a dormir até o final da tarde Sem sono varava a madrugada acordado Não atendia aos telefonemas dos amigos que tanto prezava Às vezes faziao de forma lacônica e sequer se desculpava Não saía à rua porque não queria que os vizinhos soubessem da sua situação de quase cego Na sessão procuro puxar o assunto da dificuldade dele de acordar do acordar Da dificuldade que Humberto tinha de viver ainda com a acuidade visual que lhe restava Aquela espera pela possibilidade da ce gueira total lhe tolia os movimentos não lhe dava o di reito de viver a vida de colorir o despertar e viver cada dia com um mínimo de prazer e sentido de viver Acredito que essa clarificação mudou algo na evolu ção da terapia Humberto já estava vindo bem barbea do com uma roupa que me parecia nova apesar de Psicossomaticaindd 592 Psicossomaticaindd 592 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 593 ainda portar óculos escuros Disseme que duas vezes por semana estava indo sozinho à padaria da esquina para tomar café da manhã Era um hábito antigo do qual gostava e lhe dava prazer Na terapia de apoio usamos mais as clarifica ções e assinalamentos No início o paciente somático necessita falar muito da doença e da complicação E há uma preocupação do terapeuta de incentivar à conscientização da doença e da complicação mas procurando dar um acolhimento às suas aflições Po derá haver momentos de catarse Exaurido esse tema a terapia de suporte ou apoio pode caminhar para um trabalho mais aprofundado de maior conheci mento e reflexão Na sessão seguinte o paciente começou me falando de sua vontade de voltar a cantar nos coros da igreja da Universidade etc Dizia que a sua voz era muito bonita de meio barítono Muitas vezes tinha solado peças im portantes Agora porém não conseguia ler a partitura a letra como fazer Para Kastrup 2007 A perda da visão exi ge um estar sempre reinventando atualizando outras virtualidades da atenção e da percepção Retirados de boa parte dos compromissos da vida prática encon tram um tempo solto Os processos de criação funcio nam neste caso como outro tipo de compensação Não mais como busca de caminhos indiretos para che gar ao mesmo fim mas para trilhar outros caminhos Algumas das transformações cognitivas da de ficiência visual adquirida está diretamente relaciona da à redução da eficiência de habilidades e hábitos anteriores ou seja de comportamentos caracteriza dos pelo automatismo como verter água num copo colocar pasta na escova de dente ou caminhar pela rua O comportamento automático é um comporta mento sem atenção Sua utilidade na vida prática é justamente liberar a atenção para outras atividades A perda da visão quando se instala produz uma re dução das ações automáticas e um aumento da parti cipação da atenção nas mais simples tarefas da vida cotidiana idem Humberto nos conta que a mãe morreu de problemas pulmonares e diabete Fala da morte do irmão por ou tro motivo e dos dois sobrinhos órfãos filhos desse irmão que vivem em outro Estado com a mãe e a avó O paciente me diz Esses meninos são a minha ra zão de viver precisam da minha ajuda financeira Digo a ele que o dinheiro era importante mas a presença dele era muito mais importante para eles Eles faziam questão de aceitar o convite para passar as fé rias da escola na casa dele iam ao seu quarto acordá lo conversavam conseguiam que ele saísse do quarto e descesse para almoçar na sala Ele me diz que gosta de ficar na cama de olhos fechados mesmo acordado Digo a ele que essa é a forma que ele arranjou de não saber se está cego ou se pode ainda enxergar do olho melhor Humberto concorda e diz que veio pensando em sair da terapia mas que agora não pensa mais assim estava gostando da sessão achava interessante e válido estar comigo conversando Passados 15 dias Humberto sobe as escadas até meu consultório com desenvoltura e sem os óculos es curos Logo após sentarse digo que ele me pareceu melhor Assinalo que sem óculos seus olhos não tinham nenhum defeito aparente Ninguém perceberia que era deficiente visual O paciente respondeume que não sabia disso Os óculos ajudavam quanto à grande luminosidade da rua à tarde Fala da consulta que teve com a psiquiatra e as mudanças realizadas por ela nos horários dos remé dios Visavam que ele tivesse menos sono durante o dia Disseme que fora ao teatro à igreja que frequentara e à casa da irmã que mora na zona sul da cidade Disse me entusiasmado que sonhara e queria falar de um sonho Digo a ele que esses 15 dias passaram para ele com muitas situações prazerosas e eu estava muito feliz por ele Que era importante falarmos da crença que se tem de que se não se é perfeito restanos ser um fracas so Ele tinha ido ao teatro mesmo sem enxergar tudo da peça fora ao culto da igreja e assumiu para os amigos que estava perdendo a visão que tinha ido visitar a irmã que mora distante dele e sentirase feliz por ter ido Ele fica emocionado e me diz que já estava come çando a aceitar a dificuldade visual e esperava que pu desse através dos tratamentos manter o que ainda lhe restava Nem sempre a terapia caminhou tão bem al gumas vezes muitas sessões se transcorriam sem muita novidade e minha contratransferência estava me atrapalhando Como não via grandes melhoras parecia que também ficara cega a melhoras minúscu las Trocava informações com a psiquiatra e ela me incentivava a continuar Cheguei a falar que iria dar alta ao paciente pois não via sentido insistir A crença da perfeição tinha me tomado Procurava trabalhar comigo mesma esses sen timentos de derrota Tomeime de grande coragem para suportar os silêncios do paciente da falta de in sigts das recaídas A partir desse momento comecei a perceber que tudo isso fazia parte do processo Eu estava ansiosa com a falta de grandes melhoras e no fundo me culpava Reconhecer a transferência do paciente é tão importante quanto perceber a nossa contratransferência a do terapeuta Após três anos de terapia o paciente começou a dar sinais de grandes melhoras O diabete e a hiper Psicossomaticaindd 593 Psicossomaticaindd 593 05012010 121228 05012010 121228 594 Mello Filho Burd e cols tensão estavam bem controlados as sessões de foto coagulações mantiveram o quadro estável da retino patia O paciente perdera algum peso e caminhava pelo bairro todos os dias Humberto tinha feito várias viagens para lugares próximos e já havia começado a cantar no coro de um grande amigo Começava a depender cada vez menos dos irmãos para se locomo ver Permitia que os amigos também o ajudassem Decidimos que era hora de aumentar os inter valos entre sessões de 2121 dias de mês em mês uma a cada dois meses O paciente vinha sempre trazendo novos progressos Acertamos sua alta de forma compartilhada e deixamos abertas as portas para um retorno caso necessitasse A terapia de apoio ou de suporte a pacientes somáticos principalmente com doenças crônicas já com complicações é muito importante Não tenho informação sobre qual complicação do diabete é a mais dolorosa do paciente suportar Acredito que cada um tem mais medo de uma em detrimento da outra Cada paciente nos fala de uma em particular Não gostaria de amputar a perna nos diz Antônio Já para Maria o insuportável seria ficar em diáli se na máquina esperar por um rim de um doador Para Pedro que já precisou fazer uma cirurgia de revascularização miocárdica o pior seria ficar cego O apoio psicológico os ajuda a suportar a doença sem complicações as que possam vir podem ficar para um próximo momento Ao lado da psicotera pia os centros de reeducação são muito importan tes porque levam o paciente a aprender atividades substitutas para as que perderam ou irão perder em breve Aprender a usar a bengala ler em braile com certeza ajudarão muito o deficiente visual diabético colocar uma prótese de perna e treinar os movimen tos com ela certamente vai minorar o sofrimento do diabético amputado TERCEIRA PARTE O DM2 no idoso Psicoterapia de grupo com pacientes somáticos Se a abertura do diabete se dá na maturidade ou na velhice eou coincide com a aposentadoria a doença pode ser vivida como esperada e aceita ou não se considerar a possibilidade de mudanças ven do a perspectiva de morte como inevitável O diabete pode ser confundido com o próprio envelhecimen to bem como as complicações da doença Burd M 2004 p 315 Para Lerário apud Burd 2004 a prevalência e a incidência do DM na terceira idade são elevadas Os idosos com diabete necessitam de maior assistência de saúde visita mais frequente aos médicos e ambu latórios e apresentam uma maior dificuldade para o desempenho de exercícios físicos necessitando com maior frequência de cuidados de uma outra pessoa para sobrevivência idem p 315 Para um paciente mais velho que se torna dia bético ou é portador da doença há muito tempo as limitações que lhe são impostas são dolorosas e sua resistência é grande A pessoa mais velha tem menos tolerância e flexibilidade Os hábitos e o estilo de vida já estão enraizados e os comportamentos são difíceis de serem mudados O controle glicêmico ideal é a principal meta no tratamento do diabete no adulto e no idoso para viver livre das complicações crônicas Segundo Mello Filho 1983 abrjun p 180 ressalta que a equipe de saúde deve estar atenta à fan tasia dos idosos quanto a ficarem impotentes sexual mente bem como de apresentarem outros quadros mórbidos AVC demências depressão seja pela idade seja pelo diabete Devem fazer a diferenciação entre os verdadeiros casos de impotência daqueles de ordem psicológica relacionados exatamente com o temor exagerado de adquirir esta condição Nove pacientes e a esposa de um deles fizeram parte de um Grupo de Apoio Psicológico durante um ano em ses sões quinzenais de 90 minutos cada em cocoordenação de duas psicólogas Eram todos pacientes do Ambulató rio de Diabete e Metabologia do HUPEUERJ com idade entre 68 e 76 anos e todos com DM2 Havia um livro de registros onde se colocava as presenças os temas desen volvidos e observações pertinentes Antes de iniciarmos o grupo um dos cocoordenadores era escolhido para fa zer os registros Desses registros feitos pinçamos alguns trechos para ilustrar o presente trabalho Os pacientes foram encaminhados pelos médicos do ambulatório gostaram e se beneficiaram muito do trabalho em grupo e compareciam assiduamente às ses sões Alguns pacientes já conheciam bem as psicólogas antes de começar o grupo homogêneo As sessões transcorreram numa sala do Ambula tório de Psiquiatria do HUPE Os participantes passa ram antes por uma entrevista com as duas coordena doras onde receberam informações sobre o objetivo do grupo Falar a respeito do diabete tipo 2 na vida do porta dor suas dificuldades no controle e no tratamento da doença Os grupos de terapia nos settings médicos come çam com as preocupações principais dos pacientes Agradeço à Psicóloga Márcia Rebelo Maia que cocoorde nou o grupo homogêneo de pacientes com DM2 idosos Psicossomaticaindd 594 Psicossomaticaindd 594 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 595 o manejo direto e o impacto de suas doenças Vino gradov e Yalom 1992 p 189 Reduzem o medo a ansiedade e o isolamento relativos a uma situação particular através do desenvolvimento do manejo e novas estratégias para o comportamento Neste grupo há uma composição homogênea consistindo de membros unidos por sua luta contra um problema comum E era constituído de pacientes diabéticos tipo 2 e na terceira idade Quanto ao gêne ro era um grupo misto Os limites não são muito rígidos os cônjuges amigos e outros membros da família podem ser in cluídos regular ou intermitentemente A doença é uma questão familiar a partir da qual encorajamse as mudanças de estilo de vida ou outros padrões de hábitos em família e procurase livrar o familiar da fantasia comum de que são culpados pela doença O terapeuta usa similaridades entre os membros para favorecer um senso de universalidade e coesão As terapeutas começam o grupo se apresentando Mi riam e Márcia e pedindo para os pacientes se apre sentarem Há um paciente novo que veio pela primeira vez ao grupo Alcino já conhece alguns integrantes do Ambulatório e diz Já conheço alguns de vocês da sala de espera do ambulatório Só soube do grupo agora por isso estou chegando depois dele ter começado Aliás eu sou novo também no Rio de Janeiro vim da minha terra natal no nordeste e lá é muito diferente daqui Elvira diz que conheceu o nordeste que já faz mui to tempo Valdir retruca Você lá já era diabético Seus pais também eram diabéticos Alcino diz que não sabe se era e se seus pais eram Só veio a saber aqui no mês passado numa consulta no ambulatório Ia fazer uma cirurgia e descobriram o diabete no précirúrgico Dra Miriam se coloca Acho que cada um poderia dizer rapidamente como souberam que eram diabéticos Cada um tem uma história diferente para contar No diabete tipo 2 às vezes leva tempo para se descobrir e quando vem o diagnóstico vocês já apresentam alguma complicação Maria da Glória diz que quer ser a primeira porque deverá sair mais cedo do grupo vai para Copacabana fazer testes de glicemia na praia Eu ajudo a fazer diagnóstico de muitas pessoas a Associação Carioca de Diabete vai às praças às praias e a outros lugares fazer os testes Já vi cada coisa tem gente que não acredita no teste e a glicemia estava 180 Nós o acalmamos explicamos que tem gente que não sente nada outros já sentem sede fome vontade de urinar a toda hora Precisa diagnosticar de início Francisco diz que já está tomando insulina e já fez cirurgia no coração apesar de se cuidar muito bem Nesses 20 anos que tenho diabete fiz dieta e venho ao médico toda a vez que ele marca Ele me disse que tenho muitos anos de diabete e preciso da insulina além dos remédios para baixar o açúcar Tive medo de que in sulina viciasse e que eu estivesse no fim da linha Alcino preocupado se coloca Fim da linha quer dizer que quando se toma in sulina é o fim Dra Márcia aparteia Há um mito entre os pacientes que insulina é fim de linha que estão graves e têm pouco tempo de vida Atualmente a insulina está sendo usada em conjunto com os antidiabéticos orais que vocês já tomam A insu lina é um hormônio que as pessoas fabricam Não é o fim da linha é mais um tratamento que está dando certo Nair esposa de José diz que o marido não toma insulina mas se precisar vai fazêlo Sempre diz a ele que todos os tratamentos que forem realizados no Am bulatório ele deve fazer José então complementa Fui cozinheiro a minha vida toda acostumeime a cozinhar para 150 pessoas por dia Tinha até nutri cionista lá onde trabalhava aprendi a comer direito mas agora é a Nair quem cozinha ela faz a minha dieta perfeita Dra Miriam confirma Estamos vendo que o senhor José e Dona Nair estão sempre juntos no hospital Até no grupo precisam estar juntos Parecenos que um completa o outro José é cozinheiro de grandes grupos Nair cozinha em casa a dieta do marido Dra Márcia completa Vocês tocaram num assunto muito importante a dieta Sem ela remédio nenhum faz efeito É como o nosso casal aqui o José e a Nair Ana se coloca muito emocionada Tive que amputar a perna direita porque não fazia a dieta bem feita Comia todos os dias à tarde um pedaço grande de cuscuz escondido da minha fa mília O vendedor Jorge só recebia uma vez por mês Ele chegava ao portão eu ia até ele e comia o doce no jardim Sei agora e tarde demais que a dieta é muito importante Fernando completa Pois eu não ligo a mínima para doce mas o sal me faz muita falta Sem ele fico me sentindo muito fra co Eu sou hipertenso Dra Miriam diz Lembra Fernando de que eu estava com o senhor e o médico na consulta Ele disse que o senhor era hi pertenso e o sal era um veneno O senhor disse que se sentia fraco e eu lhe disse brincando que o sal deveria ser transformado em sol o sol bem tomado deixa as pessoas mais alegres e dispostas E sair com um sol lin do e caminhar também é um dos pilares do tratamento do diabete Dra Márcia encerra a sessão Chegamos no grupo aos grandes pilares do tra tamento do diabete a medicação remédios orais e in jeções de insulina quando necessárias a dieta bem feita os exercícios físicos como a caminhada estando bem disposto e feliz para aproveitar esse sol lindo do Rio de Janeiro claro que com protetor solar e até as 10 horas ou após as 4 da tarde O estado emocional do Psicossomaticaindd 595 Psicossomaticaindd 595 05012010 121228 05012010 121228 596 Mello Filho Burd e cols paciente é fundamental Estressado ninguém aproveita a natureza e só pensa na doença e seus problemas Nessa sessão vimos que o assunto primordial para o grupo de pacientes era a doença e seu tra tamento Essa sessão aconteceu no primeiro mês de funcionamento do grupo Ao final de 12 meses o gru po estava assim Os pacientes chegam cumprimentamse afetuosamen te ou já chegam juntos em pares da sala de espera Não é preciso que as terapeutas comecem o grupo os pacientes já sabem a rotina de funcionamento e já vão falando Liguei para dona Mariana como você me pediu Ela já tinha faltado a sessão passada Perguntei o que estava acontecendo e que o grupo estava sentindo a falta dela Ela me disse que teve hipoglicemia e ficou com receio de vir e passar mal no ônibus diz Maria da Glória para a terapeuta 1 Elvira se coloca E aí não veio hoje também Assim atrapalha o grupo e a ela mesma Faltar ao grupo só em último caso ninguém me deixa mentir depois do grupo nós estamos recebendo elogios da equipe do ambulatório e melhoramos muito o nosso controle do diabete Dra Miriam se coloca Ligar para o paciente faltoso e se preocupar com ele é muito importante Obrigado Maria da Gloria pelo favor Já sabemos que o problema já está sendo re solvido dona Mariana deverá vir no nosso próximo en contro Essa força que vocês se dão é que faz esse grupo coeso forte e determinado Um ajuda o outro quando fraqueja quando adoece Dona Mariana é pipoqueira nas portas de escolas e já nos disse que quando tem hipo tem dificuldade até de ingerir açúcar para elevar a glicemia no sangue Não dá para ser radical com o diabete o açúcar que faz mal quando se está com hiper faz bem quando na hipo é tudo uma questão de bom senso Alcino diz então Quando se tem algum problema ou estamos tristes preocupados também podemos ter dificuldades de controlar o diabete Ontem lembrei da minha terra da minha gente e fiquei triste Deu um dó de cortar o coração Mas hoje vim assim mesmo todos vocês me ajudam a suportar a falta que meu Nordeste faz Saio daqui mais forte menos deprimido pronto para seguir a vida Estou guardando um dinheirinho para viajar para lá no Natal Dra Márcia se coloca Quando o grupo começou vocês falavam muito da doença das dificuldades com o diabete Esse era o objetivo principal colocado no início por nós Mas vo cês avançaram Vocês falam da vida pessoal dos sen timentos de como o grupo ajuda também na vida de vocês Isso é um avanço um ajuda o outro com a sua verdade e o seu exemplo Se esforçar para vir ao grupo é sinal de que ele é importante para vocês e para nós terapeutas também Aprendemos muito com vocês E a tristeza do Alcino da terra natal dele também é a tristeza do término do ano e da nossa passagem pelo diabete Francisco intervem Quer dizer que o grupo acabou A terapeuta 2 responde O nosso tempo no ambulatório de diabete é de um ano Aí vêm as férias de verão e o grupo voltará ano que vem com uma nova dupla de coordenadores vocês vão gostar da troca Francisco fala de novo Lembra de que lhes falei que tinha um sonho de passar mal de hipoglicemia perto de uma barraca de caldo de cana O meu sonho agora é que vocês conti nuem conosco É pedir muito Valdir se coloca Aí é romper os limites do curso de especialização delas como não podemos fazer com o nosso tratamen to Elas deixaram bem claro no início que seria assim Também sabemos que o tratamento do diabete impõe regras e limites Francisco então retruca Posso pedir o número de telefone de vocês e o dia do nascimento Vou ligar todo ano nessa data para vocês Nair completa Vamos passar uma lista com os nossos telefones e dia dos aniversários Vamos nos comunicar sempre Dra Miriam se coloca O processo do luto pelo término do ano e da for mação desse grupo poderá ser ajudado pela troca de telefones entre nós Não esqueçam que a Dona Ana a paciente que amputou a perna deixou de vir ao grupo porque não havia como se locomover sem ajuda da fa mília peçam o telefone dela também e liguem O grupo pode funcionar ajudando Dona Ana mesmo sem ela vir Ligar e saber notícias e levar notícias a ela também fun ciona positivamente Maria da Glória anuncia a festinha do fim do ano desembrulha um bolo salgado e apanha uma garrafa de refrigerante diet e os copos Nós pensamos em tudo é preciso haver festa para comemorar nossas melhoras Se não podemos co mer açúcar podemos comer e beber com moderação o que trouxemos Queria saber quem inventou que é preciso doces para comemorar a alegria Vamos pessoal à festa Francisco ligou para a terapeuta 1 durante muitos anos no aniversário dela Dava os parabéns e contava alguma coisa sobre a vida dele Os pacientes Para Júlio de Mello Filho 2002 p 202 O empobreci mento progressivo da vida rural e a ambição de viver na grande cidade promovem uma permanente corrente migra tória chegando ao litoral passam a enfrentar dificulda des e após poucas semanas ou mesmo depois de um ano começam a apresentar sintomas funcionais variados podemos chamar de síndrome de desenraizamento ou síndrome psicossomática de desadaptação Psicossomaticaindd 596 Psicossomaticaindd 596 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 597 entenderam que mudanças de hábitos de todo não são negativas O diabete impõe limites e o trabalho no hospital universitário também Há regras que não podem e não devem ser burladas Fizemos uma listagem dos principais temas dis cutidos nesse grupo Vamos dividir segundo alguns critérios e apresentar algumas frases de pacientes nos grupos 1 Dificuldades com a instituição médica univer sitária esperar muito na sala de espera pela con sulta as mudanças constantes na equipe esperar muito tempo no laboratório para tirar o exame de sangue pré e pós prandial as consultas são rápidas a marcação das consultas é com grande intervalo Trago minha colação merenda para o hospital fico muito tempo esperando Tem gente que fica impaciente na sala de espera do ambulatório eu saio de perto ou fico calado mas isso não me faz bem Comecei a tomar insulina depois que fui participante da pesquisa daquela médica fui cobaia de pesquisa O Grupo de Sala de Espera nos ajuda a esperar pela consulta e falamos e ouvimos coisas muito interessantes Sempre achei que aqui no hospital público tudo era de graça agora sei que pagamos impostos muito altos eu também ajudo a manter o hospital funcionando e outras questões 2 Dificuldades com a doença mitos fantasias crenças tabus adesão ao tratamento Fiquei de primido quando soube que era diabético Tenho medo de ter hipo O diabete é uma tragédia não consigo aceitar A insulina vicia Estou tomando chá da planta folha de insulina se não melhorar acho que não piora Se vou a um churrasco não resisto e caio de boca O diabete é para sempre Se descobre por acaso Meu diabete é emocional A minha mãe é velha ela é diabética há 30 anos ela está socada em casa só quer cama Gostaria de tomar um remédio quando fico irritada Não há diabético que não fuja da dieta todos são mentirosos A fome me acompanha sempre como fazer dieta O dia bete não dói destrói Ficar magra e diabética não vale a pena o aspecto do rosto fica horrível não quero mais ficar com açúcar tão alto A di ficuldade de ser diabética é a boquinha nervosa O diabete é uma doença negra pega tudo todo o corpo A insulina é a última etapa do diabete depois é aguardar a morte ou é o fim de linha e outras 3 Dificuldades com faixa etária Ficar velho é muito ruim Ficar velho e diabético é pior ain da Quando se tem muita idade e muito tempo de diabete as complicações aparecem não tem jeito Tenho mais medo de ficar cego e velho ainda por cima Pois eu tenho mais medo de ir para a máquina Conheço um diabético que teve de tirar a perna depois de um erro médico isso deve ser horrível O chá dançante da última sextafeira foi ótimo dançar é muito bom para o idoso faz bem para cabeça e para o corpo Ser velho é ser um estorvo para a família Vou ter de me aplicar a insulina eu não enxergo bem os tracinhos da seringa Ainda bem que fiquei dia bética aos 70 anos já estava velha mesmo Ser velho não é igual a ser um trapo um traste eu tenho meu valor eu me gosto e outras 4 Dificuldades com a família superproteção x negligência impaciência falta de apoio Minha família não gosta de me ver doente Se eu co mer às escondidas o que não posso minha famí lia grita comigo Meu irmão ficou diabético por praga minha O meu diabete não me emagrece o meu marido é magro de ruim come tudo e não engorda e não é diabético A minha família não colabora no último domingo minha nora fez três sobremesas e colocou na mesa dá para resistir assim Minha esposa senta para ver TV com a caixa de bombons no colo dá para fingir que não é comigo Meu marido na Páscoa me deu um ovo de chocolate não diet será que ele ainda não se tocou que sou diabética Quando meu mari do me deixou levou minha pressão alta e minha úlcera agora ninguém me segura e outras 5 Dificuldades no grupo de apoio Tive muita di ficuldade em falar pela primeira vez no grupo Às vezes começamos no grupo brincando isso é uma forma de nos preparar para falar coisas mais duras Hoje ainda não se falou nada de novo estamos batendo na mesma tecla É preciso se impor respeitar é uma coisa obedecer é outra sou o raspo do tacho eu questiono mesmo Vim para dizer que não vinha ao grupo preciso ajudar a presidente da Associação Carioca de Diabete tô indo fui Hoje não quero falar da doença minhas dores da alma estão maiores do que dos furúnculos nas minhas costas Agora no fim do ano vejo uma luz no fim do túnel Acho que o Sr Fulano é muito triste por detrás dessa alegria toda Somos pessoas que sempre cuidamos das outras pessoas aqui no grupo permitimos que vocês as psicólogas cuidassem de nós No co meço não tinha fé no grupo psicologia não trata o diabete pensava agora sei o quanto foi impor tante para mim Depois de se ter alguma com plicação do diabete fica impossível vir ao grupo Veja a senhora fulana amputada da perna direita como vai subir no ônibus e as escadas daqui e outras Psicossomaticaindd 597 Psicossomaticaindd 597 05012010 121228 05012010 121228 598 Mello Filho Burd e cols 6 Relação médicopaciente Não gosto de tirar dú vidas na consulta tenho receio de atrapalhar o mé dico Agora estou gostando mais do médico que está me atendendo ele me deixa falar está sempre sem pressa Meu médico me disse que meu diabe te não é emocional como não Quando fico depri mido meu açúcar fica alto Tenho medo de que o médico me repreenda por causa do meu açúcar alto O médico Dr Sicrano vai se aposentar e ago ra como vamos ficar sem ele e outras 7 O achismo Doutor eu já sei me cuidar Por muito tempo eu não me cuidei direito Por mui to tempo achei que sabia me cuidar sozinho Por muito tempo fingi que era não diabético Tudo que me ensinam eu faço para baixar o açú car Minha vizinha me deu uma dica muito boa vocês querem saber qual é Tudo tem o lado bom o lado ruim no diabete o bom e o ruim eu tiro de letra Pra que vir ao médico de três em três meses basta vir uma vez por ano e repetir a receita e outras 8 Questões religiosas e culturais A igreja hoje acha que pode curar tudo Tem diabético que vai à igreja e se diz curado isso não é verdade o diabete não tem cura Fazer uma novena pe dir ao santo de devoção fazer promessa ajuda se fica mais calmo Meu médico me disse Toma chá de pata de vaca mas não esquece da insuli na e outras 9 O estresse Acho muito estressante cuidar da mi nha doença É todo dia a mesma coisa O estres se dificulta o controle da glicemia mas como não ficar estressado Se explodir meu estresse vai di minuir mas vou ser chamado de velho ignorante Perder a calma a linha é horrível somos antes de tudo humanos mas pagamos o preço e outras 10 Outros assuntos a relação com o trabalho e a perda a aposentadoria a relação com o dinheiro e a falta dele a sexualidade na velhice a dificul dade de viver a vida ter de vir ao hospital quase semanalmente a falta de atividades para os ido sos e outros CONSIDERAÇÕES Quando acabei de escrever o presente capítulo admireime de ter ainda tanto material inédito para brindar aos leitores Fiquei feliz também ao abordar o diabetes mellitus de uma forma totalmente diferente do que tinha já feito Explorei a prática sempre pen sando na teoria mas a prática nesse momento foi a tônica do capítulo era a minha prioridade Fui aos livros onde escrevíamos sobre os grupos e me inspi rei nas colocações dos pacientes Aprendi muito com eles Eles mereciam um espaço privilegiado Ao dividir o capítulo em três partes o adolescen te o adulto maduro o idoso todos diabéticos acredito que consegui mostrar o quanto psicossomático é o dia betes mellitus e o quanto o tipo 1 e o tipo 2 se diferem e se aproximam diante da visão da psicossomática Todos os pacientes lutam com os pilares da doen ça e de seu tratamento os medicamentos orais ou injetáveis a dieta e o exercício físico O emocio nal não poderia ficar de fora e conseguimos incluilos como o quarto pilar da mesma forma que para man ter uma cadeira em pé precisamos das quatro pernas como aos três mosqueteiros precisou se juntar um quarto cavaleiro Todos esses ingredientes trabalham juntos para a receita dar certo o controle da glicemia Nem pou co açúcar mas também não muito e chegar ao equi líbrio é tão difícil de ser alcançado no controle e no tratamento do DM Se o açúcar é um símbolo de ter nura e carinho da mãe ao seu filho ele também não pode ficar doce demais porque adoece Só se fica diabético quando existe predisposição genética sem a herança ninguém fica doce E essa herança é diferente para os dois tipos de diabete e é maior no tipo 2 Mas não adianta culpar só nossos ancestrais ajudamos a nossa genética nos tornando obesos e ociosos Na pósmodernidade não temos muito tempo para fazer a comida descobrimos as semiprontas aposentamos o fogão e elevamos ao primeiro plano o microondas Fomos além discamos o número de telefones e o entregador nos traz em casa o fastfood rápido de pedir mais rápido de consumir E as por ções se agigantam Mas não adianta culpar só as co midas rápidas se não conseguimos dizer não a elas Depois de comer sentamos no sofá e através do controle remoto ligamos a TV o computador os ga mes E lá fora está uma tarde linda nos chamando para caminhar gastar energias Mas não adianta cul par os jogos modernos ou a internet temos a nossa parcela nessa história Como nos fazer levantar da cadeira e gastar as nossas calorias O diabete segundo o Consenso de 2007 da So ciedade Brasileira de Diabete tornouse uma epide mia de diabetes mellitus DM e está em curso o nú mero de adultos diabéticos no mundo está crescendo muito e se estima que no ano de 2030 possa chegar a 300 milhões Dados alarmantes e que crescem em espiral O que fazer para mudar este presságio Será que só se informar a respeito vai nos livrar dele Mudar hábitos melhorar o nosso estilo de vida Mas hábitos são muito difíceis de mudar uma vez enraizados colocamonos no piloto automático e a Psicossomaticaindd 598 Psicossomaticaindd 598 05012010 121228 05012010 121228 Psicossomática hoje 599 vida segue sem pensarmos sem reagirmos sem ques tionarmos Mudar a forma de consumo Mas se a oferta e a demanda movem o mundo O diabete pela sua natureza crônica a gravi dade de suas complicações e os meios necessários e custosos para controlálas tornam esta uma doença muito onerosa para os indivíduos acometidos suas famílias e para o sistema de saúde Além do problema econômico há os custos intangíveis como a dor a ansiedade a inconveniência e a perda da qualidade de vida O custo social é cinco vezes maior do que os custos diretos Alguns indivíduos acometidos se tor nam incapazes de continuar trabalhando ou em de corrência de complicações crônicas ou porque ficam com alguma limitação no seu desempenho laboral e de produtividade E aí a demanda aumenta agora de medicamentos de produtos ligths e diets de acesso à saúde regular etc A prevenção efetiva significa mais atenção à saú de um sistema de qualidade mais rápido e eficiente Isso pode ser feito ainda na prevenção de reduzir ou retardar a abertura da doença a prevenção primária ou de tratar suas complicações agudas e crônicas a prevenção secundária A primária então é melhor Por que não fazemos acontecer Mas não dá para culpar só o sistema de saúde Para Hipócrates 460 aC É mais importante conhecer a pessoa que tem a doen ça do que conhecer a doença e a pessoa que tem fé nos médicos digo na equipe isso pode ajudar na cura Para Michel Balint Toda a doença é também um veículo de um pedido de amor e atenção E o médico é o primeiro remédio a ser dado ao pacientedigo o psicólogo a nutricionista a enfermeira etc Para Helládio Capisano Qualquer tipo de tratamento poderá ser puramente sintomático se o seu objetivo não for a reorganização da vida E digo porque o paciente não muda Reorganizar a vida e mudar hábitos tem tudo a ver com o diabete Mudar a dieta deixar o sedenta rismo deixar de se estressar apreciar a vida E por que isso não acontece Para Julio de Mello Filho O diabetes mellitus é uma doença psicossomática por que se inicia frequentemente numa fase de estresse emocional e sofre a influência de fatores ou de distúr bios somáticos na sua evolução 2008 E a visão psicossomática Como tratar Através do holding suporte e do handling ma nejo sendo continentes como nos disse Donald Win nicott A doença é crônica mas tem tratamento e con trole Cabe à equipe multidisciplinar ajudar o pa ciente e sua família através de uma boa relação à aceitação de sua doença O tratamento e o controle do diabete passam então a ser os objetivos a serem alcançados e uma forma de cura Mas de que autor me apropriei esse parágrafo É meu com algum coautor Isso já não me importa muito se levei informa ção esperança e motivos para os leitores e pacientes tentarem alcançar essa forma de cura As doenças crônicas estão aumentando muito e iremos cada dia mais com viver como pacientes ou como profissionais de saúde com o diabete ou outra doença qualquer Aceitar ser paciente é preciso alcançar a aceita ção da doença crônica é imprescindível Espero ter ajudado de alguma forma para isso REFERÊNCIAS Aguiar J M Uma visão sobre o falso self no paciente diabético Monografia de final de curso de especialização em Psicologia Mé dica Faculdade de Ciências Médicas da UERJ 2000 Burd M Diabetes e Família Capítulo18 In Doença e Família Mello Filho J Burd M São Paulo Casa do Psicólogo 2004 Caditz J An educationsupportgroup program for visually impai red people with diabetes Journal of Visual Impairment Blindess 1992 861 8183 Diretrizes da Sociedade Brasileira de Diabetes 2007 Debray R O Equilíbrio Psicossomático e um estudo sobre diabéti cos SP Casa do Psicólogo 1995 Graça L A Burd M Mello Filho J Grupos com Diabéticos Ca pítulo 13 In Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pacien tes Somáticos Mello Filho J Organizador PA ArtMed 2000 pp213232 Relançamento 2007 Ed Casa do Psicólogo Jeammet P Reinaud M Consoli S Manual de Psicologia Médi ca São Paulo Ed MassonAtheneu Kastrup V A invenção na ponta dos dedos a reversão da atenção em pessoas com deficiência visual Psicol rev Belo Horizonte v13 n1 Belo Horizonte jun 2007 Malerbi F Revista da SDB Diabetes RJ Volume 15 número 03maio 2008 pp23 Marcelino D B et al Artigo Reflexões sobre o Diabetes Tipo 1 e sua Relação com o Emocional Revista Psicologia Reflexão e Críti ca 2005 18 1 pp 7277 Mello Filho J Concepção psicossomática Visão Atual São Paulo Casa do Psicólogo 2002 Comunicação pessoal RJ 2008 Psicossomaticaindd 599 Psicossomaticaindd 599 05012010 121229 05012010 121229 600 Mello Filho Burd e cols Aspectos psicológicos do diabetes mellitus parte 1 In méd HCUERJ Curso sobre Diabetes Mellitus 22 174180 abrjun1983 Moncada Leite DP Grupos em uma Unidade de Terapia Intensiva Capítulo 27 In Grupo e Corpo Psicoterapia de Grupo com Pa cientes Somáticos Mello Filho J Organizador PA ArtMed 2000 pp 413423 Relançamento 2007 Ed Casa do Psicólogo Vinagradov S Yalom I D Manual de psicoterapia de Grupo PA Artes Médicas 1992 Winnicott D O Ambiente e os processos de Maturação Estudos sobre a teoria do Desenvolvimento Emocional Porto Alegre Artes Médicas 1990 wwwportaldiabetescombr 2008 OUTROS TRABALHOS DA AUTORA SOBRE DIABETES MELLITUS Burd Miriam 1996 A Família e a Doença Crônica na Infância o Diabetes Mellitus Tipo 1 Atendimento Psicológico Grupal aos Familiares de Crianças Diabéticas Monografia de Curso de Espe cialização em Psicologia Médica Faculdade de Ciências Médicas da Univ do Estado do Rio de Janeiro 130 pág Burd M 2000 Experiência de Trabalho Multidisciplinar em Diabetes no Hospital Universitário Pedro Ernesto Revista da Associação de Medicina Psicossomática Rio de Janeiro Ver ABMP vol4 nov pág2932 Burd M Maia MR 2002 Grupos de Sala de Espera com Pacientes Diabéticos Revista Diabetes Clínica vol 6 nº 2 Rio de Janeiro pág129134 Teixeira A L M Burd M Eisenstein E 2006 Diabetes Juvenil Relato de Caso Artigo da Revista Adolescência e Saúde NESA Núcleo de Estudos da Saúde do Adolescente vol3 nº 2 abr Burd M 2007 O Adolescente e a Experiência do Adoecer o Diabetes Mellitus Publicado na Revista Adolescência e Saúde NESAHUPEUERJ em Jan vol3 nº1 Burd M 2007 A Criança e o Diabetes Uma Visão Psicossomá tica Rio de Janeiro gráfica Trena Psicossomaticaindd 600 Psicossomaticaindd 600 05012010 121229 05012010 121229 Atualmente muito se tem discutido no Brasil sobre como produzir estratégias na formação que provoquem mudanças objetivas dos profissionais de saúde de forma a prestar uma atenção integral e hu manizada aos pacientes Feuerwerker 2002 Neste contexto têm sido alvo de discussões os diferentes cenários de aprendizagem modos de inserção na prática concepções pedagógicas metodologias de ensino processos avaliativos que contemplem conhe cimentos habilidades e atitudes Ribeiro 2004 en fim uma mescla de aspectos da formação que conju gados instrumentalizem o profissional para atuar em sintonia com as necessidades e demandas de saúde da população É nesta perspectiva que apresentamos este capí tulo uma prática de ensino em serviço denominada ConsultaConjunta originária da Interconsulta que visa a integrar pessoas e saberes no cotidiano dos ser viços de saúde objetivando sensibilizar mobilizar e capacitar para mudar concepções práticas e relações a fim de proporcionar cuidado integral à saúde BREVE HISTÓRICO A Interconsulta é uma ação de saúde interpro fissional e interdisciplinar que tem o objetivo integrar e promover a troca de saberes de diferentes atores que atuam nos serviços de saúde visando ao apri moramento da tarefa assistencial Fazse por meio de pedido de parecer discussão de caso e consulta conjunta A consultaconjunta como o nome indica reú ne na mesma cena profissionais de diferentes cate gorias o paciente e se necessário a família deste A ação se faz a partir da solicitação de um dos pro fissionais para complementar eou elucidar aspectos da situação de cuidado em andamento que fujam ao entendimento do solicitante ao traçar uma conduta terapêutica Este capítulo focalizará a parceria entre o médico solicitante e o profissional psi psicólogo psiquiatra solicitado junto ao paciente A consultaconjunta nasceu de forma prática de acordo com o relato de seu criador o professor Julio de Mello Filho Em meados de 1997 era eu um professor de Psicolo gia Médica do então Hospital Universitário Clementino Fraga Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro HUCFFUFRJ quando um interno de medicina me procurou pedindo que atendesse a uma paciente com um quadro de asma brônquica refratária ao approach médico que estava sendo utilizado Eu então lhe pro pus como costumo fazer nestes casos Podemos ver a paciente juntos ao que ele concordou Fizemos então uma entrevista a três na qual es tabeleci contato com uma paciente branca solteira de meiaidade ansiosa com um quadro de asma refratário ao tratamento médico habitual com brocodilatadores e corticoides O fato de conhecer bem a doença do ponto de vista clínico foi importante para o interno poder valorizar meu enfoque segundo depreendi de sua conduta Logo percebi que a exacerbação da doença da paciente esta va ligada a uma condição de luto não resolvido pelo fato do filho único ter ido morar e trabalhar numa cida de distante com poucas possibilidades de se visitarem Propus então um enfoque de duas consultas semanais num total de oito durante as quais abordamos seu caso com a presença do interno Ele era interessado em questões psicológicas e concordou em participar da ex O conceito de Interconsulta foi divulgado por Ferrari Luchina e Luchina 1980 Os autores advogam o emprego desta técnica para substituir a prática de respostas a pedidos de parecer em um Hospital de Psiquiatria ou Geral Segundo os autores a técnica da interconsulta dinamiza a prática individual de resposta de pareceres transformandoa num momento interativo de discussão dos elementos envolvi dos no atendimento O emprego desta técnica fertilizou e renovou o trabalho de Psiquiatria num Hospital Geral conhecido também como Ligação 48 CONSULTACONJUNTA UMA ESTRATÉGIA DE ATENÇÃO INTEGRAL À SAÚDE Julio de Mello Filho Lia Márcia Cruz da Silveira Miriam Burd Psicossomaticaindd 601 Psicossomaticaindd 601 05012010 121229 05012010 121229 602 Mello Filho Burd e cols periência de psicoterapia breve durante a qual dirigia perguntas e muitas escassas opiniões pois se tratava obviamente de um novo campo de trabalho para ele De minha parte permitime opinar sobre a medicação da paciente de forma não intrusiva Tentava assim manter a perspectiva de uma conduta realmente con junta A psicoterapia evoluiu como muitas outras em se melhantes condições de um luto patológico que eu já chamei de luto corporal para um luto mais normal prescindindo das reações de estresse que mantinham o processo de somatização funcionando sendo o pulmão o órgão de expressão de todo o sofrimento vivido pela paciente porém não conscientizado As etapas do luto pôde se queixar do objeto pôde aceitar a distância deste pôde perdoar o objeto foram vividas e então as metas da terapia breve foram cumpridas Pôdese trabalhar a alta da paciente que ficou sendo atendida pelo interno quinzenalmente por se tratar de uma con dição crônica e sujeita a agravamentos Durante toda a experiência terapêutica vivida con juntamente eu esclarecia detalhes da psicodinâmica da paciente da técnica que estava sendo empregada e o interno me informava de sua evolução clínicome dicamentosa Após a alta da paciente ele passou a frequentar o Grupo Balint que eu mantinha naquele hospital de modo interessado Eventualmente ele me informava sobre o estado da paciente que evoluiu bem durante o período que estive no Hospital do Fundão até me transladar para o Hospital Pedro Ernesto onde estou até hoje No HUCFFUFRJ desenvolvemos esta experiência com outros casos e então repetimos no Hospital Univer sitário Pedro Ernesto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro HUPEUERJ inicialmente com alunos do terceiro ano do curso médico Com estes que iniciavam seus primeiros contatos com pacientes participávamos da leitura da anamnese de modo conjunto como tam bém de um diagnóstico e de uma planificação terapêu tica O interesse maior nesta situação é a elaboração de uma anamnese que integra aspectos subjetivos e objeti vos que envolvem o adoecer já que o aluno desta série ainda está pouco amadurecido academicamente para participar de outros itens de uma observação clínica Percebemos na prática que uma importante área de aplicação da consultaconjunta é o trabalho ambu latorial nas unidades clínicas onde a Psicologia Médica estiver representada Ali estão presentes basicamen te internos e residentes que realizam seu trabalho de diagnóstico e tratamento de pessoas em atendimento Mesmo que já tenham tomado contato com conceitos de Psicologia Médica eles se sentem inseguros diante dos problemas psicológicos apresentados pelos pacien tes presentes em cerca de 70 dos casos segundo vá rias estatísticas atuais Então nos perguntam Quer ver este caso para mim Ao que respondemos Podemos ver juntos E deste modo sem fragmentar a relação do internore sidente com o paciente fazemos uma abordagem con jugada sempre com o cuidado de que nossas opiniões tenham valências livres para que os primeiros possam interagir conosco Deste modo cumprimos de forma prática as eta pas de uma anamnese psicossomática e de um diagnós tico psicológico ou psiquiátrico se for o caso sempre a quatro mãos Se não houver tempo ou condições para uma consulta mais integral respondemos questões for muladas pelos colegas sempre cuidando para que se questionem também Um dos pontos essenciais da consultaconjunta é que cada um dos participantes aprenda com o outro sobre as técnicas de abordagem utilizadas reconhe cendo os recursos terapêuticos presentes numa relação favorável à produção de saúde Deste modo o clínico aprenderá com o profissional psi e este aprenderá mais sobre aspectos clínicos das enfermidades em questão O trabalho de consultaconjunta se desenvolveu mais nos Serviços de Diabete e Metabologia Nefrologia e Reumatologia onde sou JMF supervisor da Psico logia Médica e cresceu sobremaneira no Serviço de Diabete por conta da interação com a Dra Edna Ferrei ra da Cunha responsável pelo atendimento clínico às crianças deste serviço APRESENTAÇÃO DE EXEMPLOS DE CONSULTAS CONJUNTAS No Ambulatório de Diabete e Metabologia do Hospital Universitário Pedro Ernesto HUPEUERJ as consultasconjuntas ocorrem com frequência A presença do profissional psi durante a consulta do pa ciente e sua família faz uma dupla com o médico ou o nutricionista o enfermeiro o assistente social e outros A população que acorre ao nosso serviço é na sua maioria de classe popular e de baixa renda As intervenções são integradas e os papéis de todos os profissionais se complementam É um recurso muito importante quando se atende pacientes com doença crônica que sistematicamente precisam comparecer às consultas Esses pacientes podem ser ouvidos e medicados A troca entre os profissionais numa con sultaconjunta é muito rica o médico é sensibilizado pelas emoções vividas de seus pacientes adotando postura mais compreensiva e menos impositiva Tais consultas privilegiam os aspectos clínicos e psicológicos do paciente diabético e de seus acom panhantes O trabalho se iniciou em maio de 1995 solicitado pela pediatra que atendia as crianças dia béticas Burd Mello Filho Graça 1997 A partir de 1997 essa prática se estendeu a todo atendimento no ambulatório Grupo Balint ou grupo de reflexão sobre a tarefa médica no dizer de Luchina são coordenados por um profissional da área psi e destinados a clínicos eou especialistas cen trados na discussão de casos com abordagem de aspectos pessoais familiares e institucionais Mello Filho 2003 Psicossomaticaindd 602 Psicossomaticaindd 602 05012010 121229 05012010 121229 Psicossomática hoje 603 Quando a doença acomete as crianças Burd e Graça 2007 o profissional psi as convida a se dese nharem e a desenharem sua família a falarem sobre o paciente a doença o tratamento e as repercussões no ambiente familiar enquanto o pediatra examina a criança e conversa com a sua família O psicólogo presente à consulta observa a crian ça em três níveis na sua doença no seu desenvol vimento psicossocial incluindo a relação com a fa mília e na relação com o médico Esses dados são recolhidos a partir da observação de como a criança família relacionase com o médico e a doença por meio de desenhos livres feitos pela criança e da fala da família Já se nota com o decorrer do tempo e o exer cício de sua prática que o paciente e sua família consegue expor seus sofrimentos e aspectos corres pondentes no lidar com a doença e seu tratamento Os pacientes que antes evitavam fazêlo porque acreditavam estar incomodando o médico ou não davam importância como fato relevante para a con sulta hoje se sentem encorajados e com isso alivia dos pela boa acolhida demonstrada pelo médico que os ouve O médico ou outro profissional de saúde já começa a dar valor a esses comportamentos e às informações que recebe dos pacientes e de seus acompanhantes Na sua formação médica isso não é privilegiado e quando precisam depararse na sua prática com tais fatos não sabem como fazêlo A postura ativa do paciente e sua família no tratamento também é notada o que favorece toma rem para si as rédeas do controle da doença Possíveis transgressões do tratamento também podem ser fala das assim como a tristeza a depressão a raiva ou a revolta podem ser externadas na consultaconjunta sendo mais bem acolhidas pelo profissional de saúde e entendidas no seu contexto Podemos ilustrar essa técnica com alguns casos clínicos extraídos da nossa prática no Ambulatório de Diabete e Metabologia HUPEUERJ CASO CLÍNICO SHAYANE DM1 12 ANOS Participantes a adolescente o staff médico a mãe a psicóloga e a residente da nutrição Resumo do caso A adolescente recebeu o diagnóstico da doença no dia de seu aniversário Apresentou sempre muitas dúvidas com relação à dieta a ser realizada para o tra tamento do DM1 Diz não ter ficado com raiva com relação ao diagnóstico Hoje na consulta médica Shayane fala da von tade de comer doce e do fato de não querer tomar mais injeções de insulina A paciente está com a avó internada em decorrência de complicações crônicas do DM2 pelo fato de não ter tratado a doença de for ma adequada e não ter tido um bom controle da gli cemia A paciente evita falar o que pensa da internação da avó mas ao mesmo tempo fala da importância do tratamento bem feito e do fato de não querer ficar como ela Em relação à insulina diz nunca ter ficado sem usála e da raiva por não poder comer mais doce A paciente mostra um discurso ambíguo relacionado à dieta tendo como fator principal a raiva pelo trata mento apresentar restrições alimentares A residente de nutrição foi solicitada pelo médi co do staff do Ambulatório Foi realizado um atendi mento em conjunto que visava tirar as dúvidas sobre o que Shayane poderia e não poderia comer quando fosse a uma festa de aniversário Ela estava evitan do sair porque não sabia o que comer neste tipo de evento Shayane não conhecia o médico que a estava atendendo naquela consulta O médico inicia a consulta falando que a pacien te não poderia comer doce Mostrouse impositivo Shayane você não pode comer doces em hipótese nenhuma O médico precisou durante a consulta medir a glicemia da paciente e a adolescente ficou extrema mente nervosa seu rosto começou a ter movimentos involuntários ficando pálida O resultado do teste es tava dentro dos padrões normais A mãe explica que é sempre assim a filha fica muito nervosa com medo de a glicemia estar alta A reação da paciente de nervosismo e palidez não foi percebida pelo médico A psicóloga então sinaliza esse fato para o médi co e nesse momento o médico olha para a paciente e diz que ela não precisava ter ficado nervosa Em relação aos pés da paciente o médico falou em tom de ordem que ela não podia andar descalça de forma nenhuma Neste momento a psicóloga pergunta se ela sabia o motivo disso Ela responde que não sabia o porquê Quando o médico percebeu que a paciente não sabia olhou para a psicóloga e explicou à paciente Nas consultasconjuntas 1 e 2 a psicóloga do Curso de Especialização em Psicologia Médica era Renata Abreu Mangia Souza biênio 20042006 supervisionada pelo Professor Julio de Mello Filho Psicossomaticaindd 603 Psicossomaticaindd 603 05012010 121229 05012010 121229 604 Mello Filho Burd e cols qual era o motivo Podese perceber a partir desse fato que médico teve uma reação diferenciada da inicial Mostrouse mais atencioso com as questões e dúvidas da paciente como quanto às explicações para conduzir o tratamento de forma correta O médico a partir desse momento passou a olhar antes para a psicóloga quando necessitava falar à paciente Discussão do caso Não é raro a eclosão do diabete acontecer no dia do aniversário do paciente Essa data é muito espera da e valorizada pelas crianças e adolescentes e é um momento cercado de grande estresse O tema dessa consulta era a necessidade de fa zer dieta para o bom controle da glicemia e tratamen to do DM1 o que comer o que não comer numa festa de aniversário não poder comer mais doces e a raiva que a paciente sentia dessas proibições A dieta em geral é considerada pelos pacientes a pior e mais difícil parte do tratamento O medo de Shayane de a sua glicemia estar alta deviase às suas transgressões e burlas à dieta Essas burlas devem ter sido feitas comendo doces o que de forma impositi va o médico proibiu Em casa com a mãe isso também acontecia e pareceu ser sinal de que a adolescente não conseguia seguir as normas da nutricionista Resolvera não ir mais às festas de aniversários para evitar ficar tenta da e ingerir principalmente alimentos com açúcar branco Culturalmente estamos acostumados a comer salgadinhos e doces durante essas festas e não apre ciamos o melhor delas as brincadeiras a música a dança as conversas com os amigos o clima de festa a alegria O médico começou a consulta de forma muito impositiva e rígida Usou as expressões não pode em hipótese nenhuma de maneira alguma Enquanto isso examinava o sangue da paciente e seus pés sem per ceber sua palidez e nervosismo Foi necessária a intervenção da psicóloga para que o médico fosse menos iatrogênico Passou a res ponder às solicitações de Shayane e explicou o por quê de não andar descalça pois poderia ferir os pés e ter uma cicatrização prejudicada pelo diabete mal controlado Apesar disso o problema inicial que era fazer dieta corretamente e não comer doces ficou em se gundo plano na consulta A raiva da paciente tam bém O médico sentindose culpado responde à pa ciente olhando antes para a psicóloga Percebeu que estava sendo agressivo e passa a ser mais continente explicando com calma sobre as dúvidas que iam sur gindo na consulta A psicóloga teve uma atitude pedagógica ao fa zer o assinalamento Dr Fulano Shayane está pálida devido ao nervosismo que a acompanha sempre aqui e em casa com a mãe ao medir a glicemia e esta vir a se mostrar alta A glicemia se mostrou normal e é necessário di zer à paciente o quão importante é medir a glicemia para corrigir uma possível hiperglicemia O controle do diabetes mellitus pode ser alterado também devido aos problemas emocionais e ao gran de estresse que acompanha os sentimentos de culpa do paciente por burlar a dieta ou andar com o pé descalço ou por ter raiva por não poder come doce ou quando se defronta com um médico desconhecido e autoritário CASO CLÍNICO WILSON ADOLESCENTE 13 ANOS DM1 Participantes a mãe o adolescente a médica e a psicóloga Resumo do caso A consulta se inicia com a médica pedindo ao adolescente para ver o seu mapa de glicemias capila res diárias O paciente não trouxe e responde que o esqueceu em casa A mãe diz nesse momento que o filho compra doce na rua e escondido dela Ela por estar muito ansiosa se antecipava e respondia às perguntas for muladas ao filho Ao Wilson restava ficava calado A médica mede no momento da consulta a gli cemia capilar de Wilson e afere o valor de 250mg É um valor muito alto e indica hiperglicemia Neste momento a psicóloga tenta direcionar as perguntas feitas pela médica para o paciente res ponder e dessa forma facilitar uma interação médico paciente e a participação mais ativa deste Solicita que a médica ouvisse o que o paciente tinha a dizer a respeito de tudo o que se tinha falado O paciente começou a chorar de cabeça baixa não conseguindo se expressar de outra forma nesse momento da consulta A psicóloga nota claramente uma mudança do olhar da médica sobre a conduta do paciente Ela percebeu que existia uma grande dificuldade do pa ciente em lidar com as questões relativas à doença Não era apenas uma questão de burlar a dieta sim plesmente tratavase de aspectos mais complexos Psicossomaticaindd 604 Psicossomaticaindd 604 05012010 121229 05012010 121229 Psicossomática hoje 605 que incluíam a aceitação ou não da doença e de ser portador Conclusão do caso A dieta é um dos pilares do tratamento do DM1 e a mais difícil de ser alcançada de forma totalmente satisfatória O adolescente burla a dieta e come doce escondido da mãe A médica por sua vez constata durante a consulta uma hiperglimecia e deve ter li gado ao fato do esquecimento do diário de glicemia diárias de Wilson Provavelmente haveriam outros registros de hiperglicemia A mãe do adolescente durante a consulta se mostra ansiosa e preocupada não deixa o filho falar e fala no seu lugar A psicóloga direciona a consulta para que a mé dica faça suas perguntas para o paciente e dessa for ma impeça que a mãe responda por ele Isso estava tirandolhe a possibilidade de perguntar falar e res ponder durante a consulta Wilson acuado e também muito nervoso não contém o choro convulso que o impede de falar Neste momento um novo olhar da médica faz com que ela veja e compreenda que por detrás da burla à dieta está a grande dificuldade do adoles cente de se aceitar diabético e assim poder colaborar com o tratamento proposto Pequenos assinalamentos do profissional psi po dem mudar todo o rumo do encaminhamento da con sulta de forma a privilegiar as dificuldades emocionais do paciente da fase da adolescência à qual ele passa e em que a revolta e a rebeldia características da fase também se estendem à doença e ao ser doente Nesta consultaconjunta a psicóloga também tentou trazer o adolescente para uma participação mais ativa no tratamento visto que o DM1 é uma característica dele e deve ser encarado por ele e pela médica como uma chance de tornar o momento da consulta uma oportunidade de estreitar essa relação de confiança onde tudo se pode dizer um para o ou tro e de forma a consolidar os vínculos positivos ne cessários nessa parceria CASO CLÍNICO FRANCISCO O menino de 8 anos diabético tipo 1 vem à consulta médica acompanhado da mãe e da irmãzi nha um bebê de 4 meses É o filho mais velho tem ainda dois irmãos menores de 6 e 3 anos Partici pam também o médico residente em Endocrinolo gia Dr Álvaro e a psicóloga Miriam da Psicologia Médica Vamos apresentar esse caso descrevendo mais detalhadamente a consultaconjunta e reproduzindo os diálogos O médico pede a ajuda da psicóloga que se en contra presente no Ambulatório O paciente Francisco já é diabético há alguns anos e tem na prescrição da dieta e conseguir seguila a sua maior dificuldade para controlar o diabetes mellitus tipo 1 A situação do meu encontro com essas pessoas se dá da seguinte forma Todos estão sentados Francisco de olhos baixos o médico a mãe com uma bebezinha ao colo linda e risonha Chego e pergunto o que estava acontecendo e em que poderia ajudálos O médico diz que sistema ticamente Francisco não faz a dieta prescrita e que o controle da doença está muito prejudicado Dirijome ao menino ele já me conhece há mui to tempo e de outros momentos como este e per gunto O que está acontecendo com você e qual a dificuldade com a dieta A mãe começa a sorrir de uma forma encabu lada e diz que a situação em casa está complicada a bebezinha nasceu há poucos meses está amamentan doa e cuidando dela o tempo todo Os outros meninos menores também estão sendo amamentados ao seio para que parem de gritar ou de brigarem Francisco por ser o mais velho está sem a atenção direta dela no controle da sua doença Com isso o menino burla a dieta porque para ele é o mais difícil de ser seguido Dr Álvaro se coloca Francisco a sua glicemia está alta e tem es tado alta há muito tempo antes de a sua irmãzinha nascer Eu não sei mais o que fazer com você Dirijome ao menino e à mãe começo a conver sar sobre comida e faço algumas perguntas O que ele gosta de comer quando ele come mais do que deve Sobre a dieta sobre as restrições sobre a quantidade o que ele gosta de comer do que não gosta As respostas são monossilábicas Faço outras perguntas para quebrar o silêncio que se instala Dona Margarida o que a senhora faz quan do ele come além do permitido ou fora das prescri ções Ela responde que briga repreendeo e o deixa de castigo Pergunto ao Francisco O que sua mãe faz Ele responde que ela briga e se coloca timida mente mais encolhido e de cabeça baixa Neste momento começo a perceber que é dessa forma que o menino se chega à mãe consegue sua atenção porque os outros irmãozinhos gritam ber ram e exigem o seio dela Psicossomaticaindd 605 Psicossomaticaindd 605 05012010 121229 05012010 121229 606 Mello Filho Burd e cols Falo para todos que deve ser essa a forma que Francisco tem de se chegar à mamãe consegue dessa forma a sua atenção Dessa forma deixo claro com palavras aquilo que de psicológico está subja cente ao fato burlar a dieta prescrita e obter aten ção da mãe Dr Álvaro continua Francisco o que você achou do que a psicólo ga falou agora Ela está com a razão Francisco se encolhe mais e não responde O si lêncio toma conta da consulta Continuo a conversar com eles pergunto sobre o bebê menina que no momento está fartamente mamando ao seio da mãe e esta embevecida olha para ela gordinha e sadia Digo a Francisco Eu percebo você com dificuldades de fi car mais perto da mamãe e conseguir receber dela também a atenção de que necessita Francisco você ainda é pequeno para controlar sozinho uma doença como o diabete Continuo dizendo que podemos achar uma so lução para que alguns momentos do dia mãe e filho possam ficar juntos e apenas os dois Assim ele po deria abrir mão da burla à dieta para se chegar à mamãe e obter o seu olhar e atenção Penso rapidamente em algo a propor e sugiro a ida à feira ou ao hortifruti para que os dois possam escolher e comprar as verduras os legumes e as fru tas que ele poderá comer Digo Seriam momentos a dois e com a finalidade de comprar alimentos gostosos para a sua dieta O importante é deixar os irmãozinhos neste momento em casa com alguém que possa ficar com eles talvez o pai o avô ou algum outro parente Francisco passa a sorrir levanta a face e seus olhos brilham O médico fica espantado com a minha pequena intervenção Dr Álvaro conclui Estou percebendo que a psicóloga acertou em cheio Não pensei nesta possibilidade mas gostei No hortifruti vocês vão poder escolher alimentos e aproveitar para ficarem a sós Seria então importante pedir uma ajuda ao nutricionista para saber o que você pode comer e em que quantidade Não é só ir e comprar É ir saber comprar e saber comer Concluo que às vezes é preciso prescrever ações bem diferentes das usuais do modelo médico cartesiano Digo Dr Álvaro espero que dessa vez tenhamos as melhoras que estão sendo necessárias Terminamos nossa conversa fechando alguns pontos para que a intervenção possa ser o prescrito irem à feira e comprar os alimentos para a dieta e que esta possa ser seguida O médico contudo ainda não tem a certeza que vá dar certo Ele diz ao Francisco Se não der certo o controle do diabete vai piorar ainda mais A psicóloga propôs algo relativa mente fácil de cumprir Digo a ele Dr Álvaro fazer dieta é muito mais do que reduzir ou escolher a comida a ajuda ao menino é ele poder ficar também perto da mãe e depois em consequência a dieta poderá ser seguida Falo também diretamente com a mãe É importante que a senhora se divida nas atenções aos diferentes filhos o seio é só para a be bezinha Sua menina é muito linda Dona Margarida Veio depois de três filhos homens Vejo que a senhora está muito feliz mas aos poucos o bebê também vai precisar cada vez menos da senhora sobrando mais tempo para si mesma É importante que não dê mais o seio para os outros dois filhos isso não é bom nem para eles nem para a senhora A mãe se coloca Dr Álvaro Doutora vou tentar tudo que estiver ao meu alcance para ajudar o Francisco e os outros Não conto com a ajuda do pai deles Só meu sogro me ajuda Ele poderá ficar com os mais novos para irmos à feira É mais perto e tem tudo fresqui nho E aí Francisco ainda não ouvimos sua voz disse o médico Você vai fazer isso e melhorar sua dieta Disso depende o controle da sua glicemia e de sua saúde Francisco faz um sinal afirmativo com a cabeça Notase que mesmo mudo se comunica pela lingua gem não verbal Está feliz Burd 2007 A INTEGRAÇÃO DE PESSOAS E SABERES A consultaconjunta é uma ação de saúde que tem como característica unir o viés assistencial ao pe dagógico na medida em que integra pessoas e saberes na aprendizagem em serviço Tem por objetivo apri morar a tarefa assistencial no que diz respeito à qua lificação profissional e surge da necessidade viva de dar respostas resolutivas durante a dinâmica ágil da assistência à saúde Atualmente a consultaconjunta vem sendo exercitada nos Ambulatórios do Hospital Universitário Pedro Ernesto da Universidade do Rio de Janeiro com o propósito de capacitar médicos e psicólogos para a prática do cuidado integral à saúde e realizada pelos alunosprofissionais do Curso de Es Psicossomaticaindd 606 Psicossomaticaindd 606 05012010 121229 05012010 121229 Psicossomática hoje 607 pecialização em Psicologia Médica FCMUERJ sob a supervisão do staff do Serviço Este recurso de capacitação profissional em ser viço tem objetivos comuns e específicos referentes aos diferentes atores envolvidos Entre os objetivos comuns podemos citar Levar o profissional a compreender e identificar os diferentes aspectos envolvidos no processo saúdedoença Ampliar o repertório de recursos dos profissionais para lidar com os diferentes fatores que envolvem situações de adoecimento Favorecer a percepção do sofrimento e a identi ficação dos recursos do paciente para lidar com a doença estimulandoo a participar do trata mento Romper com a fragmentação e com a concentra ção da informação sobre o paciente Favorecer a integração teoria e prática buscando transformar a conduta dos profissionais envol vidos Possibilitar aos profissionais envolvidos entender a atuação clínica e terapêutica de seu colega am pliando a consciência para seus limites e possibi lidades Capacitar para interagir com o outro e para o tra balho em equipe incentivando práticas que aliem qualidade de atenção resolutividade das ações e que proporcionem a educação permanente entre os profissionais Promover uma prática integradora visando à in terdisciplinaridade instituindo o cuidado como eixo estruturante na prática em saúde Possibilitar o suporte mútuo entre profissionais frente a uma prática complexa e repleta de dú vidas e ansiedade para que possam exercêla de forma resolutiva e eficaz Com relação aos objetivos específicos da consul taconjunta no que se refere aos profissionais envolvi dos médicos e profissionais psi podemos destacar No que diz respeito aos médicos Ampliar a compreensão do processo saúdedoen ça para além do modelo biologicista em prol de uma medicina mais humana que leve em conta a unidade somatopsíquica do paciente Capacitar o médico a dar suporte psicológico a seus pacientes e a reconhecer o seu limite de atuação favorecendo um encaminhamento ade quado ao especialista em saúde mental quando necessário Compreender a importância da psicoterapia da prática médica assim como o seu papel terapêu tico junto ao paciente Instrumentalizar o médico para ver além do sin toma No que se refere ao profissional psi Promover a compreensão da interação corpo mente num contexto biopsicossocial Favorecer uma abordagem psicoterápica ágil fo cal e criativa adequada ao tempo e ao setting onde a consulta se desenrola Levar o profissional psi a atuar na consultacon junta como facilitador da comunicação por meio da compreensão da dinâmica da relação médico paciente Auxiliar no diagnóstico e na prescrição de condu tas terapêuticas adequadas ao estilo de vida do paciente Trabalhos conjuntos entretanto não têm sido uma prática comum em virtude da estruturação dis ciplinar compartimentalizada no que diz respeito aos conteúdos e da valorização de ações predominante mente individuais durante a formação na área de saú de Neste sentido no exercício da consultaconjunta temos encontrado dificuldades de diferentes ordens entre as quais podemos citar Junto aos médicos Desconhecimento teórico e prático uma vez que o trabalho integrado não é contemplado nos cur rículos da maioria das escolas médicas Desconhecimento eou incompreensão do mode lo de atenção biopsicossocial posto que o modelo de atenção à saúde tem sido calcado predomi nantemente na compreensão biologicista Dificuldade de compartilhar com um profissional de outra especialidade pela hegemonia do saber médico nos serviços de saúde Desconhecimento da função do profissional psi porque a prática deste profissional é recente nas unidades de atenção à saúde Excesso de demanda de trabalho por questões que vão desde o ordenamento da porta de entrada do sistema de saúde ou até mesmo pelo paradigma predominantemente curativo que tem norteado as ações em saúde Junto ao profissional psi Desconhecimento desta prática pois são poucas as unidades de saúde que utilizam esta metodolo gia de ensino em serviço Psicossomaticaindd 607 Psicossomaticaindd 607 05012010 121229 05012010 121229 608 Mello Filho Burd e cols Equívoco de compreensão na sua formação pro fissional que facilita a identificação com o pacien te e propicia uma aliança contra o médico Desconhecimento da biomedicina ou dos meca nismos biológicos das doenças que direcionam a compreensão do processo saúdedoença com excessiva ênfase na subjetividade em detrimento das demais dimensões que compõem o homem Exclusão ou pouca valorização dos determinantes sociais na etiologia das doenças Excesso de interpretação subjetiva dos dados da realidade fatos concretos Para viabilizar a prática da consultaconjunta têmse utilizado algumas estratégias para identificar e diluir pontos de resistência fomentar parcerias e integrar os profissionais discussão multidisciplinar de casos clínicos aproximação por temas afins nas discussões se minários e oficinas encaminhamentos em que a devolução ou respos ta de parecer ou da conduta traçada se faz de forma presencial incentivo à produção conjunta para participação em eventos artigos e pesquisas A atuação compartilhada se desdobra em pro dução conjunta sob diferentes formatos novas consultas em parceria para clarificação diagnóstica assunção do atendimento por um dos profissio nais envolvidos após discussão do caso sem a presença do paciente encaminhamentos mais precisos para especiali dades eou locais que desenvolvam terapêuticas requeridas pela situação em questão trabalhos de grupo com pacientes sob a coorde nação conjunta dos profissionais Todo processo é construído com e para o pa ciente eou família promovendo a aproximação e o diálogo valorizando a parceria e fortalecendo a au tonomia na busca do cuidado CONSIDERAÇÕES FINAIS Este é um recurso metodológico que temos uti lizado para quebrar as barreiras das dificuldades do trabalho conjunto para promover a compreensão in tegral do processo saúdedoença e facilitar a interlo cução entre profissionais visando a produzir novas configurações de saberes que favoreçam uma abor dagem resolutiva das reais necessidades de saúde da população É um procedimento que pode se tornar útil para qualquer profissional envolvido na relação doente doençameioambiente A prática da consultaconjunta potencializa o cuidado e os momentos dos profissionais ao propiciar que solidariamente partilhem problemas reflitam sobre eles e busquem soluções evitando a prática impessoal e a reprodução padronizada Este tipo de atuação torna o cuidado mais extenso e mais intenso e possibilita a construção de movimentos conjuntos viabilizando a mudança dos profissionais e das práti cas de saúde REFERÊNCIAS Burd M A Criança e o Diabetes Uma Visão Psicossomática Rio de Janeiro Gráfica Trena 2007 Burd M Graça LA Grupos com Diabéticos In Grupo e Corpo Psicoterapia com Pacientes Somáticos Capítulo 13 Porto Ale gre Ed Artmed 2000 São Paulo Ed Casa do Psicólogo 2007 relançamento Burd M Mello FJ Graça LA ConsultaConjunta uma forma de aprender e atuar a partir de uma dupla Tema Livre Congresso de Medicina Psicossomática Penedo Rio de Janeiro 1997 Ferrari H Luchina I Luchina N La interconsulta medicopsi cológica em el marco hospitalario Buenos Aires Nueva Vision 1980 Feuerwerker LCM Estratégias para a mudança da formação dos profissionais de saúde Caderno CE 2002 24 1124 Mello Filho J Cruz da Silveira LM Consulta Conjunta uma Es tratégia de Capacitação para Atenção Integral à Saúde Artigo da Revista Brasileira de Educação Médica ABEM Rio de Janeiro v29 nº 2 maioago 2005 Mello FJ Isaac Luchina e a Interconsulta MédicoPsicológica In Rodrigues Branco RFG A relação com o paciente Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2003 Ribeiro ECO Educação Permanente em Saúde In Marins JJN Rego S Lambert JB Araújo JGC Orgs Educação Médica em Transformação instrumentos para a construção de novas realida des São Paulo HucitecABEM 2004 Psicossomaticaindd 608 Psicossomaticaindd 608 05012010 121229 05012010 121229 ÍNDICE A AIDS aspectos psicossomáticos e sociais 431435 atendimento aos pacientes e a equipe 406407 atendimento grupal 412414 grupo de reflexão multiprofissional 439443 mulher com 414415 paciente terminal e a morte 416419 429430 pacientes homossexuais 407412 trabalho com equipes de saúde 425429 usuários de drogas 415416 Atitude médica 8081 Alexitimia pensamento operatório e 158165 Asma brônquica desencadeamento de crises 311312 pacientes com 311316 perfis psicodinâmicos 312313 resistência ao tratamento 312316 B Burnout conceito de 137138 contexto social e de trabalho no 141145 fontes de 138140 relacionamentos com pessoas e 140141 síndrome de 135150 Brasil atendimento de emergência no 472477 situações clínicas 474477 C Cardiologia e psicossomática aspectos psicossomáticos 318340 coronariano 332335 hipertenso 335339 meios de reagir ao estresse 322329 papel das emoções 318320 preferência pelo coração 329332 Câncer e psicossomática cirurgia de 303304 como totalidade 297 dogmas e modelos 296297 mitos 300302 modelo psicossomático e psicossocial 304308 privilégios biológicos 308309 Cirurgia cardíaca aspectos psicológicos 344345 no adulto 345349 impacto emocional 343349 Cirurgia plástica aspectos filosóficos e psicossociais 356366 correlação cirurgia estética e reparadora 358359 D Doenças alérgicas 178 infecciosas 181185 neoplásicas 185 Doente terminal assistência ao doente terminal 389400 boa morte 398399 cuidados paliativos 399 morte e morrer 389400 morte na velhice 394398 síntese dos opostos Dor classificação da 237239 crônica 239241 244245 depressão e 244245 neurofisiologia da 236237 no paciente com câncer 241243 problema da 235252 psicogênicas 243244 246247 psicose 247249 E Estresse e trabalho cultura empresarial 120128 dimensão interativa 131133 estresse e doença de adaptação 117119 mecanismo de formação do sintoma 115117 modelo de intervenção128129 perspectiva psicossocial em psicossomática 111133 tratamento estatístico 130131 Estudante adolescência 62 expectativas e ansiedades 6264 Psicossomaticaindd 609 Psicossomaticaindd 609 05012010 121229 05012010 121229 610 Índice relação com os professores 64Fenômenos psicossomáticos tentativa de aproximação psicanalítica 154156 F Fictícias desordens 368371 tratamento 371 G Grupo Balint 214222 estudantes de medicina com 216222 o homem e a obra 214216 com vida 444447 H Hemofilia aspectos clínicos 449 e AIDS 449458 Hipocondria 246 Histeria e hipocondria fenômeno psicossomático 153157 I Identidade cientista 8889 homem e Deus 8788 iniciação contradições e crises médica 8183 8789 mundo de relações 87 ser adulto 88 sociedades médicas 89 Interconsulta aspectos conceituais 225226 aspectos históricos 223224 desenvolvimento no Brasil 224225 estruturação e organização dos serviços de 229230 formação em 230231 natureza dos pedidos 226 no hospital geral 226229 M Medicinapaciente estudante 6264 paciente 5862 relação estudante paciente 6467 Medicina e a morte estudante de 7278 Médico atitude médica 8081 atributos do 8385 cliente relação 522544 identidade médica 8183 formação psicológica do 8086 Michael Balint reflexões sobre 214222 N Neurociência conceitos fundamentais 510512 corpo e mente 512513 neurônioespelho 517 519 psicologia cognitiva evoluçãodesenvolvimento 513517 Neurótico imagem corporal do 266267 O Obesidade doença mental 371372 identificação e imagem corporal 370371 narcisimo e self objeto alimentar 372 relação profissionalpaciente 372 Obstetrícia e psicossomática 289295 lugar do filho 289291 parto 291292 prevenção e tratamento 293295 puerpério e amamentação 292293 P Paciente aspectos sociais culturais e econômicos 5859 cirurgião e 350355 crônico e terminal 7375 deveres e perdas 6162 direitos e ganhos 6061 estar doente 5960 Psicoimunologia Sistema da vida de relação Psicossomática afeto na 158165 conceito de 2930 diálogo entre a psicanálise e a medicina 93105 infância e 563580 olhar winnicotianno 575578 no Brasil 3031 3946 pediatria e 273286 psicanálise e 102105 psicanálise e psicanalista 9899 psicanalista e a medicina 102 Psicologia médica curso de 5152 ensino de 4957 grupo de reflexão 5254 história da pessoa 5556 R Regênesis considerações teóricas 462467 mito da Fênix 461462 S Somático grupo terapêutico para paciente 488506 psicoterapia psicanalítica do paciente 481489 delimitando o campo 481 T Transplantes AIDS no tranplantado 382383 doador 376377 de medula óssea 385388 em crianças e adolescentes 383 Psicossomaticaindd 610 Psicossomaticaindd 610 05012010 121229 05012010 121229 Índice 611 grupos terapêuticos com doadores 378379 reações emocionais 381 receptor 379 renais 376382 rejeição 380 Transtornos de dor psicofisiológicos de conversão 246 de somatização 245246 somatoformes 245 V Via biológica 481485 simbólica 481485 Psicossomaticaindd 611 Psicossomaticaindd 611 05012010 121229 05012010 121229