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Crianças e adolescentes em psicoterapia C928 Crianças e adolescentes em psicoterapia recurso eletrônico a abordagem psicanalítica Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer Ana Celina Garcia Albornoz et al Dados eletrônicos Porto Alegre Artmed 2009 Editado também como livro impresso em 2009 ISBN 9788536319933 1 Psicoterapia da infância e da adolescência 2 Psicanálise I Castro Maria da Graça Kern II Stürmer Anie III Albornoz Ana Celina Garcia CDU 6158505326 Catalogação na publicação Renata de Souza Borges CRB101922 2009 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer e colaboradores a abordagem psicanalítica Crianças e adolescentes em psicoterapia Artmed Editora SA 2009 Capa Tatiana Sperhacke TAT Studio Ilustrações da capa iStockphotocomsaw e Thais Sperhacke Preparação do original Cristiano da Silveira Pereira Leitura final Lara Frichenbruder Kengeriski Supervisão editorial Carla Rosa Araujo Editoração eletrônica Formato Artes Gráficas Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à ARTMED EDITORA SA Av Jerônimo de Ornelas 670 Santana 90040340 Porto Alegre RS Fone 51 30277000 Fax 51 30277070 É proibida a duplicação ou reprodução deste volume no todo ou em parte sob quaisquer formas ou por quaisquer meios eletrônico mecânico gravação fotocópia distribuição na Web e outros sem permissão expressa da Editora SÃO PAULO Av Angélica 1091 Higienópolis 01227100 São Paulo SP Fone 11 36651100 Fax 11 36671333 SAC 0800 7033444 IMPRESSO NO BRASIL PRINTED IN BRAZIL Dedicado à memória da querida colega Lúcia Helena Vianna Ribeiro Pinto Muitas pessoas direta ou indiretamente contribuíram para que esta obra viesse a público e não conseguiríamos nomeálas neste espaço A elas nossa gra tidão e reconhecimento Um agradecimento especial é dirigido aos nossos pacientes e seus familia res com quem muito aprendemos que possibilitaram a realização deste livro autorizando a publicação das vinhetas clínicas Às nossas queridas colegas coautoras que com entusiasmo foram parceiras constantes de reflexões questionamentos e encontros que construíram esta pu blicação À colega Ana Cláudia Meira por partilhar com as autoras os seus conheci mentos sobre Escrita Clínica e a revisão de alguns textos Ao prezado Dr David E Zimerman nosso modelo e mestre pela confiança e disponibilidade ao prefaciar este livro Aos nossos analistas e supervisores pela continência e pelo aprendizado de vida e de profissão Aos nossos queridos familiares Ana Carolina Duprat e Marcus Vinícius Duprat Filho Elisa Eduardo Lívia e Dirceu Castro pela compreensão e paciên cia pelas horas roubadas de seu convívio À Artmed Editora pela confiança depositada em nosso trabalho possibili tando que o nosso sonho se tornasse uma realidade compartilhada Maria da Graça Kern Castro e Anie Stürmer Agradecimentos Maria da Graça Kern Castro org Psicóloga Psicoterapeuta Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Só ciafundadora docente e supervisora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Membro efetivo do Conselho Deliberativo e Fiscal da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul Professora do curso de Especialização em Psicologia Clínica da Universidade Regionais Integradas URI Santo Ângelo RS Anie Stürmer org Psicóloga Psicoterapeuta Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Diretora científica e do serviço de atendimento docente e supervisora do Instituto de Psicologia IPSI Novo Hamburgo RS Coordenadorageral do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP gestão 20032006 Docente e supervisora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Editora da revista Psicoterapia Psicanalítica 19982000 Editora das publicações do Instituto de Psicologia IPSI Novo Hamburgo RS Ana Celina Garcia Albornoz Psicóloga Psicoterapeuta Especialista em Psico logia Clínica e Jurídica pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Doutoranda em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Psicóloga da Fundação de Proteção Especial da Secretaria de Justiça e Desenvolvimento Social do Estado do Rio Grande do Sul Sóciafundadora docente e supervisora do curso de formação em Psicoterapia Psicanalítica do centro de Estudos Integrados em Psicoterapia Psicanalítica ESIPP Porto Alegre RS Docente dos cursos de Psicologia Jurídica da Clip e de Especialização em Psicopedagogia do CESUCA Faculdade Inedi Ana Cláudia Santos Meira Psicóloga Psicoterapeuta Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Mestre em Autores Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Especialista em Psicoterapia Psicanalítica pelo centro de Estudos Integrados em Psicoterapia Psicanalítica ESIPP Professora convidada do centro de Estudos Integrados em Psicoterapia Psicanalítica ESIPP Coordenadora da ênfase em Saúde Mental e Residência Integrada em Saúde do Grupo Hospitalar Conceição Psicóloga do CAPSII do Grupo Hospitalar Conceição Aurinez Rospide Schmitz Psicóloga Psicoterapeuta Especialista em Psicologia Clínica e do Trânsito pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Diretora do Exercício Profissional da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul 2007 2009 Membro efetivo do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Pesquisadoraassociada do Laboratório de Pesquisa em Bioética e Ética na Ciência do Hospital de Clínicas de Porto Alegre HCPA Clarice Kern Ruaro Psicóloga Psicoterapeuta Graduada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Membro da Comissão de publicação da revista Psicoterapia Psicanalítica Daniela Centenaro Levandowski Psicóloga Doutora e Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Professora do Programa de Pósgraduação em Psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Elisa Kern de Castro Psicóloga Doutora em Psicologia Clínica e da Saúde pela Universidade Autônoma de Madrid Mestre em Psicologia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFGRS Professora do Programa de Pósgraduação em Psicologia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Heloisa Maria Rodrigues Furtado Psicóloga Psicoterapeuta Especialista em Psicoterapia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUCSP Especialista em Psicoterapia pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Docente da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Sócia efetiva do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Iane Campos Álvares Psicóloga Psicoterapeuta Especialista em Psicoterapia pelo Núcleo de Pesquisa em Psicoterapia NEPPOA Sóciafundadora docente e supervisora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Inúbia do Prado Duarte Psicóloga Psicanalista de adultos e crianças pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Sóciafundadora docente e supervisora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Coordenadora do curso de Especialização em Psicoterapia de Crianças e Adolescentes do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Presidente do Conselho deliberativo e fiscal da Sociedade de Psicologia do Rio Grande do Sul x Autores Lisiane Alvim Saraiva Psicóloga Psicoterapeuta Graduada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Coordenadora da Comissão de Pesquisa do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia 2005 2006 Psicóloga do Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Lívia Kern de Castro Psicóloga Psicoterapeuta Graduada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Membro do Serviço de Relações com a Comunidade do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Luciana Motta Psicóloga licenciada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Especialista em Psicologia Escolar Sóciagraduada do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Maria Elisabeth Cimenti Psicóloga Psicanalista Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Membro efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA Sóciafundadora docente e supervisora do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Nádia Maria Marques Psicóloga Clínica Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Especialista em Psicoterapia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Docente da Faculdade Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul PUCRS Supervisora do Serviço de Atendimento e Pesquisa em Psicologia SAPPPUCRS Paula Von Mengden Campezatto Psicóloga Psicoterapeuta Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Sóciagraduada do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Assessora de editoração da revista Psicoterapia Psicanalítica Membro da Comissão de Pesquisa e assessora do Departamento de Clínica do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Rosa Lúcia Severino Psicóloga Psicoterapeuta graduada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Master em Psicoterapia Familiar pela Accademia de Psicoterapia della Famiglia Roma Itália Especialista em Psicoterapia de Família e Casal pelo Centro de Estudos e Pesquisa da Infância e Adolescência CEAPIA Professora convidada do Programa Pósgraduação em Psicoterapia de Família e Casal da Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Sandra Maria Mallmann da Rosa Psicóloga Psicoterapeuta de crianças e adolescentes graduada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Soraya Maria Pandolfi Kock Hack Psicóloga Mestre em Psicologia Clí nica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos UNISINOS Especialista em Autores xi Psicoterapia da Infância e Adolescência pelo Centro de Estudos e Pesquisa da Infância e Adolescência CEAPIA Especialista em Psicologia Clínica pelo Conselho Federal de Psicologia CFP Diretora administrativa e de ensino docente e su pervisora do Instituto de Psicologia IPSI Novo Hamburgo RS Valderez Figueira Timmen Psicóloga Psicoterapeuta graduada pelo Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Especialista em Psicologia Clínica e Escolar Coordenadora da Comissão Espaço Científico do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Docente no Instituto de Psicologia IPSI Novo Hamburgo RS Vera Maria Homrich Pereira de Mello Psicóloga Clínica e Psicanalista Especialista em Psicoterapia Psicanalítica do Núcleo de Estudos em Psicoterapia NEPPOA Sóciafundadora docente supervisora e coordenadora científica do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia IEPP Membro associado e Psicanalista de Crianças e Adolescentes pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA e da Associação Psicanalítica Internacional IPA Cofundadora e integrante do Núcleo de Vínculo e Transmissão Geracional da SBPdePA Coordenadora do curso de formação em Psicanálise da Infância e Adolescência do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre SBPdePA xii Autores Sumário Prefácio 15 Apresentação 21 PARTE I Psicoterapia psicanalítica com crianças e adolescentes 11111 As origens da psicoterapia de crianças e adolescentes na psicanálise 29 Anie Stürmer 22222 Condições essenciais do psicoterapeuta de crianças e adolescentes 42 Ana Cláudia Santos Meira 33333 Desenvolvimento emocional normal da criança e do adolescente 55 Elisa Kern de Castro e Daniela Centenaro Levandowski PARTE II A prática clínica com crianças e adolescentes 44444 A clínica com crianças e adolescentes o processo psicoterápico 77 Anie Stürmer e Maria da Graça Kern Castro 55555 As etapas da psicoterapia com crianças 97 Lívia Kern de Castro Paula von Mengden Campezatto Lisiane Alvim Saraiva 66666 O lugar dos pais na psicoterapia de crianças e adolescentes 116 Anie Stürmer Clarice Kern Ruaro e Lisiane Alvim Saraiva 77777 A comunicação na psicoterapia de crianças o simbolismo no brincar e no desenho 141 Inúbia do Prado Duarte 88888 Psicoterapia de adolescentes ressonâncias do especular na imagem corporal 155 Maria Elisabeth Cimenti 99999 Implicações teóricoclínicas da transgeracionalidade na compreensão de quadros da adolescência atual 162 Vera Maria Homrich Pereira de Mello 10 10 10 10 10 Formas comunicativas na psicoterapia com adolescentes 175 Maria da Graça Kern Castro e Valderez Figueira Timmen PARTE III Situações clínicas específicas 11 11 11 11 11 Psicoterapia breve de orientação psicanalítica na infância e na adolescência 195 Heloisa Maria Rodrigues Furtado e Nádia Maria Marques 12 12 12 12 12 Psicoterapia de grupo com crianças mediada por contos 216 Maria da Graça Kern Castro 13 13 13 13 13 Psicoterapia familiar nas situações de recasamento a criança o adolescente e seus pais 238 Rosa Lúcia Severino 14 14 14 14 14 Psicoterapia de crianças e adolescentes com tendência antissocial 257 Soraya Maria Pandolfi Koch Hack 15 15 15 15 15 Psicoterapia psicanalítica com crianças institucionalizadas 274 Ana Celina Garcia Albornoz 16 16 16 16 16 Psicoterapia psicanalítica com autistas 286 Maria da Graça Kern Castro e Iane Campos Álvares 17 17 17 17 17 Psicoterapia de adolescentes com tendência suicida 321 Sandra Maria Mallmann da Rosa 18 18 18 18 18 Psicoterapia com o adolescente psicótico 337 Aurinez Rospide Schmitz e Luciana Motta Índice 357 Prefácio Ao ser convidado para prefaciar o presente livro não titubeei um segundo sequer quando fiquei ciente de que as organizadoras eram Anie Stürmer e Maria da Graça Kern Castro Isso porque na década passada tive o privilégio de coordenar por um bom tempo um grupo de estudos de temas psicanalíticos entrelaçando teoria técnica e prática clínica Juntamente com as demais participantes também Maria da Graça e Anie sempre me despertaram um sentimento de pessoas sérias estudiosas inteligentes bastante motivadas e sobretudo transparecendo uma men te curiosa e aberta irradiando credibilidade Na Apresentação as organizadoras destacam algumas das ra zões que as levaram a gestar o presente livro como a possibilidade de preencher certa lacuna na literatura especializada visto que a produ ção científica brasileira sobre psicoterapia psicanalítica com as faixas etárias de crianças e adolescentes ainda é muito restrita Daí decorre uma segunda razão para a realização do livro um desejo de comparti lhar com todos os colegas interessados independentemente do grau de formação e de experiência uma integração de longas vivências clínicas com as consequentes evoluções atualizações indagações e novas re flexões Também considero altamente significativo o fato de que o livro se propõe a levar em conta de forma relevante as sucessivas transforma ções decorrentes de mudanças culturais históricas e sociais que se pro cessam através da passagem dos tempos e que repercutem direta e for temente na compreensão e no manejo nem sempre fácil no tratamento de crianças e adolescentes nas mais diversificadas situações clínicas 16 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Coerente com a impressão que destaquei no início desse prefácio quanto às pessoas das organizadoras e de algumas colaboradoras que conheço mais de perto como somente para exemplificar as psicanalistas Inúbia Duarte e Elisabeth Cimenti cabe enfatizar a atitude profissional das autoras que está destacada pelas organizadoras e sintetizada na Apresentação com as seguintes palavras nosso pensamento crítico e nossa autonomia de pensamento e estamos abertas ao desconhecido e ao novo Parabéns grande sabedoria Creio que é importante enfatizar o fato de que não obstante cada autor mantenha o seu estilo peculiar de escrita existe uma uniformi dade entre eles todos que é a presença de um propósito didático de sorte que tanto as conceituações simples cuidado não vamos confun dir a significação do vocábulo simples com o de simplório quanto as mais complexas aparecem redigidas de uma forma bastante acessível e agradável O livro está composto por três partes que em seu conjunto de 18 capítulos enfocam temas distintos separadamente mas de forma com plementar assim constituindo um resultado uniforme coerente e consis tente Desta forma seguese a própria sequência dos capítulos A origem da psicoterapia de crianças e adolescentes na psicanálise Condições essen ciais do psicoterapeuta de crianças e adolescentes e O desenvolvimento emo cional normal da criança e do adolescente que completam a Parte I ilustra um desenvolvimento histórico e de características importantes das psico terapias com crianças e adolescentes A Parte II abarca os capítulos A clínica com crianças e adolescentes o processo psicoterápico As etapas da psicoterapia com crianças O lugar dos pais na psicoterapia de crianças e adolescentes A comunicação na psicote rapia de crianças o simbolismo no brincar e no desenho Psicoterapia do adolescente ressonâncias do especular na imagem corporal Implicações teóricoclínicas da transgeracionalidade para compreensão de quadros da adolescência atual Formas comunicativas na psicoterapia com adolescentes São capítulos importantes que sobretudo enfatizam as vicissitudes coti dianas da prática clínica A Parte III que encerra o livro destaca enfaticamente situações clí nicas específicas em nove capítulos Psicoterapia breve de orientação psi canalítica na infância e adolescência Psicoterapia grupal mediada por con tos Psicoterapia familiar nas situações de recasamento a criança o adoles cente e seus pais Psicoterapia de crianças e adolescentes com tendência an Crianças e adolescentes em psicoterapia 17 tissocial Psicoterapia com crianças institucionalizadas a psicoterapia psi canalítica com crianças autistas Psicoterapia do adolescente com tendência suicida e Psicoterapia com o adolescente psicótico Como é fácil perceber o cardápio é farto e tentador Bom apetite leitor Da minha parte lamento que por razões óbvias de espaço não seria apropriado que eu fizesse o que eu gostaria ou seja tratar de forma mais detida e reflexiva cada um dos capítulos porque segundo a minha opinião todos eles sem exceção mereceriam comentários mais aprofun dados Entretanto sinto a necessidade de realçar que durante a leitura deste livro é justo atestar que por parte dos autores dos respectivos capítulos existe um sólido conhecimento de teoria e técnica dos prin cípios psicanalíticos não só os advindos dos consagrados autores clássi cos como também das modernas concepções e pesquisas contemporâ neas Essas últimas afirmativas podem ser confirmadas pela simples evi dência de que as aludidas concepções modernas perpassam claramente ao longo de toda obra Para exemplificar cabe destacar o relativamente frequente emprego e valorização das noções de vínculo resiliência alian ça terapêutica comunicação nãoverbal mãe continente estado mental de k em que predomina um desejo de não querer conhecer as verdades penosas a valorização da dinâmica de grupo entre tantas outras mais Porém faço questão de dar um destaque especial às considerações que surgem nas vinhetas clínicas acerca de aspectos importantíssimos na prá tica analítica como são os casos de uma nova concepção do significado de interpretação e a uma grande valorização muitas vezes evidentes nas entrelinhas da pessoa real do analista com os respectivos atributos bas tante inspiradas em Bion como por exemplo da capacidade negativa o cativeiro narcisista os conceitos diferenciados de privação e de depriva ção o aprender com a experiência o reconhecimento da existência de um psiquismo fetal a enorme importância da função de pensar entre tantas outras contribuições contemporâneas do mesmo quilate muito parti cularmente no tratamento de crianças e adolescentes que estejam em um alto grau de regressão Em relação ao que chamei de uma nova concepção do significado de interpretação no ato analítico basta reproduzir um parágrafo do capítulo de Anie e Maria da Graça A clínica com crianças e adolescentes fenômenos do processo psicoterápico para compreendermos melhor em que consiste essa nova significação de interpretação Atualmente há 18 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols uma tendência ao abandono das intervenções prontas tipo causa e efei to Houve uma mudança epistemológica que rejeita o pensamento linear e positivista A ciência psicoterápica atual é menos determinista e mais ligada às diversas outras possibilidades o que envolve a noção de proces sos contextos de interação e influências recíprocas O nível intrapsíquico é considerado aspecto mais amplo abarcado pelos contextos intersubjetivos e transubjetivos Relativamente à pessoa real do analista tema que gradativa mente está adquirindo o reconhecimento dos psicanalistas no que diz respeito à sua relevância notadamente em pacientes em alto grau de regressão cabe destacar alguns parágrafos Assim as mesmas autoras do capítulo acima referido para honra minha elas concordam totalmen te e transcrevem um trecho meu que consta em um dos meus livros afir mam que para ser psicoterapeuta de crianças e adolescentes devemos gos tar destas faixas etárias manter a espontaneidade e autenticidade além de ser gente como a gente um ser humano comum sujeito às mesmas grande zas e fragilidades de qualquer outra pessoa o que nos tornará mais pró ximos e empáticos com os nossos pacientes Nessa mesma linha de valorização das características pessoais do psicoterapeuta vale a pena exemplificar com um trecho que está contido no belo capítulo Psicoterapia psicanalítica com autistas de autoria de Maria da Graça Kern Castro e de Iane Campos Álvares quando se refere ao tratamento com autistas Cumpre salientar que mais importante que o conteúdo das intervenções ou possíveis interpretações é o tom e inflexão de nossa voz nossos gestos e nossa postura atenta e viva que possibilitam o estar junto e ter acesso à criança nas sessões Poderia pinçar dezenas de exemplos como os transcritos anterior mente porém o que importa neste prefácio é o fato de que em meu modo de sentir considero que o ponto mais alto deste livro consiste no uso de casos clínicos em grande parte dos capítulos que são mui to esclarecedores e muito bem sucedidos no propósito de reconhecer a maneira competente de como as autoras trabalham especialmente em casos sabidamente difíceis como pode ser os de crianças ou ado lescentes psicóticos ou autistas adictos com famílias severamente com plicadas etc Para concluir eu me sinto autorizado para fazer uma forte reco mendação do presente livro não só para todos aqueles que praticam o atendimento de crianças e de adolescentes como também para quem es Crianças e adolescentes em psicoterapia 19 teja envolvido com atividades de ensinoaprendizagem relativamente ao desenvolvimento normal eou patológico de crianças e de adolescentes Isso acontece repito especialmente pela riqueza dos diferentes e especí ficos relatos clínicos que além de terem o mérito de estabelecer uma conexão com os princípios teóricos e técnicos também possibilitam um estímulo para reflexão dos leitores um frutífero intercâmbio de ideias de experiências e de manejo clínico Ao final deste prefácio desejo agradecer às organizadoras do livro pelo privilégio de ter sido eu o convidado para prefaciar um livro tão útil e gratificante além das demonstrações de carinho em relação à minha pes soa tanto nos agradecimentos como também em algumas carinhosas referências nos próprios textos e sobretudo no trato pessoal David Zimerman O presente livro é o resultado de discussões e reflexões sobre os obstáculos as conquistas e as elaborações desenvolvidas por um grupo de psicólogas ao longo de diversos anos em seu ofício como psicotera peutas de crianças e adolescentes Diversos questionamentos nos impul sionaram à produção teóricoclínica que enriquece e retroalimenta a práxis psicoterápica Consideramos que a psicoterapia psicanalítica com crianças e ado lescentes orientada ao insight objetiva além de aliviar os sintomas tra balhar o sofrimento psíquico e obter mudança psíquica auxiliando crian ças e adolescentes a se tornarem mais livres emocionalmente expres sando e elaborando ansiedades e sentimentos Visa além disso obter modificações no mundo intrapsíquico e no repertório defensivo nas re lações intersubjetivas e sociais através do vínculo pacientepsicotera peuta e da compreensão e elaboração dos fenômenos transferenciais contratransferenciais Na nossa formação de psicoterapeutas encontramos um aparente paradoxo já que a referência teórica é a psicanálise mas a psicoterapia se realiza num foco diferente daquele e com uma técnica diversa Na psicoterapia de adultos as diferenças são mais claras contudo nas psicoterapias de crianças e adolescentes as diferenças ficam mais esmaecidas Encontramos variedade de artigos sobre psicanálise de crianças e adolescentes entretanto a produção científica brasileira sobre psicotera pia psicanalítica com essas faixas etárias é mais restrita Para que esse quadro seja revertido é necessário dividir questões e dúvidas com co legas e realizar discussões sérias e aprofundadas Apresentação 22 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A presente obra é um desejo de compartilhar com colegas e realizar trocas para que se possam construir cientificamente adaptações e sínte ses da teoria psicanalítica às práticas desenvolvidas como psicoterapeutas de crianças e de adolescentes Pensar pesquisar e escrever sobre a teoria da técnica de psicoterapia psicanalítica de crianças e adolescentes é indis pensável para que configuremos uma área específica de trabalho Os saberes estão em constante processo de construção desconstru ção e reconstrução por isso pensamos ser indispensável privilegiar espa ços para pensar o novo e as mudanças que se apresentam em nossa socie dade atual O trabalho clínico está imerso na realidade que nos circunda e sofre alterações com as mudanças culturais históricas e sociais Mudanças afetam a vida de crianças e adolescentes neste início de século XXI Em nosso país vivemos sob pressão da violência social do desemprego e da crise econômica e social crônica Isso tudo está aliado às pressões mundiais de globalização guerras e terrorismo Defrontamonos com uma realidade difícil e invasora da vida privada da população de di versas formas seja pela via prática do temor do desemprego da ansiedade referente à segurança pessoal ou perdas econômicas Aliado a esse caldo social os lares são expostos a outros tipos de invasão proporcionados pela mídia pela TV pela virtualidade com o predomínio das imagens e ícones nãoverbais sobre as cadeias representativas e simbólicas Os indivíduos são expostos a explosões de imagens repetidas à exaustão muitas em tem po real exigindo de cada pessoa um processamento e uma elaboração psíquica A perda de espaços privados e de intimidade gerados por trans formações nos papéis familiares e nas novas formas de convivência ocasio naram mudanças nas gerações mais novas As famílias sofreram transfor mações advindas de inúmeros fatos como por exemplo o trabalho femi nino fora do lar a maior independência das mulheres mudanças no exer cício da função paterna bem como o aumento do número de divórcios entre outros Hoje convivese com diversas espécies de famílias as recons tituídas as monoparentais e as homoparentais Observase por isso mui tas crianças e jovens solitários desacompanhados afetivamente de adultos que possam servir de modelo e filtro para auxiliálos a processar e a discri minar o excesso de estímulos e excitações a que são submetidos Dessa forma fantasmas internos encontram eco em uma realidade externa menos continente mais violenta e hostil em que a capacidade de pensar fica redu zida em favor das descargas e da ação rápida Até que ponto tais fatores têm influência sobre a construção de subjetividades modificando a qua lidade dos vínculos e consequentemente das famílias Crianças e adolescentes em psicoterapia 23 Sabese que as crianças e os jovens de hoje estão sobrecarregados de superestimulação e expostos a uma erotização precoce vivendo numa cultura de valores descartáveis e estressados pela crise financeira dos pais afetando o seu cotidiano Criamse na sociedade atual novas reali dades que geram a perda de contextos conhecidos que oportunizam a falta de referenciais gerando confusões e maior carga de pressões e de ansiedades Todos esses fatores ecoam sobre a clínica contemporânea Interes sadas nas repercussões dessas mudanças questionamos como elas se re fletem dentro dos nossos consultórios e nas demandas de pais crianças e jovens Observamos modificações nas queixas com que nossas crianças chegaram ao consultório Há alguns anos os motivos das consultas se prendiam mais a inibições intelectuais fobias e quadros de cunho neuró tico Atualmente temos observado que as questões se prendem a trans tornos de conduta falta de aceitação de limites hiperatividade e outros sintomas que se caracterizam por descarga na ação e no corpo Várias questões nos inquietam Quais os impactos e efeitos das mudanças culturais econômicas e sociais no pensamento clínico atual Como se apresenta hoje o sofrimento psíquico das crianças e ado lescentes Como estão sendo narradas no setting as experiências subjetivas das crianças e dos jovens da atualidade Houve modificações na forma e no conteúdo dessas narrativas Para responder a essas questões convidamos colegas com larga ex periência no trabalho psicoterápico com crianças e adolescentes que conosco compartilham das mesmas indagações que nos impulsionaram a produzir os capítulos que compõem este livro Cada um dos autores desenvolveu artigos sobre temas que os tem mobilizado e desafiado a partir de sua experiência clínica de docência ou de pesquisa Temos vértices em comum sobre o pensar psicanalítico e como profissionais dedicados à psicoterapia ressaltandose as diferenças individuais e o estilo particular interesses e indagações pessoais de cada autor que se manifestam na obra Como psicoterapeutas somos solicitados a produzir textos para re vistas e eventos científicos e muitas vezes ficamos bloqueados para escrever e dividir nossas experiências Mas é por meio da troca com 24 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols nossos colegas que o conhecimento e a ciência se solidificam e enrique cem Pensamos que a função da escrita clínica para o psicoterapeuta é muito importante pois ela é uma atividade consciente e conceitual de formulação de nossas ideias que implica um esforço racional embora saibamos que subjacente transcorram os fenômenos de ordem incons ciente que influenciarão nosso texto Escrever e produzir conhecimento corresponde então a articular pensar e ressignificar a realidade de nos so fazer clínico Nosso ofício é bastante solitário e o intercâmbio com os colegas além de uma forma vinculação conduz a novas aprendizagens e atuali zação constante Concordamos com Berry 1996 que localiza a escrita psicanalítica no centro de duas funções de certa forma opostas uma dessas funções seria a de catarse e a outra de elaboração Escrever como catarse seria uma via de descarga de emoções represadas ao lidar com nossos pacientes A outra função seria de elaboração a escrita psicanalítica teria a função de um terceiro entre paciente e psicoterapeuta criandose um espaço potencial ou terceira área em uma espécie de distanciamen to em relação à situação transferencial de proximidade intensa gerando possibilidades de elaborações Escrever sobre a experiência clínica opor tunizaria aos psicoterapeutas paradoxalmente um distanciamento e uma aproximação de seus pacientes Sabedores da importância da pesquisa e da escrita clínica para o desenvolvimento de teoria da prática psicoterápica e para o avanço cien tífico dessa área acreditamos que temos o dever de questionar proble matizar e investigar produzindo trabalhos que revelem nosso posicio namento crítico e nossa autonomia de pensamento Nossa função psicanalítica da personalidade não está plenamente estabelecida enquanto não nos tornarmos investigadores para além do já conhecido Pensar os acontecimentos ligados aos seus determinismos do passado articulálos às vicissitudes e reorganizações do presente e estar aberto ao desconhecido e ao novo nos abre as portas para aprendizagens com a experiência e compartilhar momentos de transformações em nosso fazer clínico Estar permeável às formas pelas quais problemas e situações emer gem no campo psicoterápico as suas relações entre realidades internas e externas as influências do contexto social sobre os pacientes entre ou Nicole Berry Boletim Pulsional nº 88 1996 p40 Crianças e adolescentes em psicoterapia 25 tros fatores nos conduzem a novas compreensões da teoria da técnica e do processo psicoterápico em constante construção Agradecemos a todos os colegas que contribuíram com seus artigos tornando possível esta publicação Os textos que seguem são temas que vêm sendo estudados e traba lhados pelos autores que esperamos possibilitem aos leitores momen tos de novas aberturas incitando reflexões sobre a práxis psicoterápica Maria da Graça Kern Castro e Anie Stürmer Organizadoras Os exemplos e casos clínicos apresentados neste livro são de responsabilidade de cada autor que junto aos seus pacientes eou responsáveis legais obtiveram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido para a publicação preservandose os preceitos éticos de identidade e privacidade dos mesmos psicoterapia psicanalítica com crianças e adolescentes Parte I Este capítulo apresenta um breve histórico da psicoterapia de crianças e adolescentes que nasceu de modificações técnicas baseadas na psicanálise Será feito breve resumo histórico dos principais autores e os eixos teóricos psicanalíticos que embasam a clínica psicoterápica com crianças e adoles centes começando com as pioneiras Hermine Von Hugh Hellmuth Anna Freud e Melanie Klein Após são apresentadas algumas contribuições da Psi cologia do Ego e da Psicologia das Relações Objetais cujo corpo teórico en riquece a prática da psicoterapia com crianças e adolescentes atualmente Além disso aborda o início dessa prática na América Latina AS ORIGENS Freud ao observar seu neto Ernest brincando com um carretel pen sou sobre a possibilidade de a criança elaborar suas angústias depressivas através do brinquedo Para elaborar o afastamento de sua mãe o pequenino transformava a ansiedade de separação vivida de forma passiva em algo ativo por meio de sua brincadeira Simbolicamente o carretel significava sua mãe e ele tinha o poder de colocála longe fort ou perto da dele minimizando assim sua angústia e impotência frente à separação por meio da capaci dade simbólica Esta criança não chora com a partida da mãe pelo con trário transforma essa experiência em jogo Assim Freud descreve o me nino brincando As origens da psicoterapia de crianças e de adolescentes na psicanálise Anie Stürmer 1 30 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Esse bom menino contudo tinha um hábito ocasional e perturbador de apa nhar quaisquer objetos que pudesse agarrar e atirálos longe para um canto sob a cama de maneira que procurar seus brinquedos e apanhálos quase sempre dava um bom trabalho Enquanto procedia assim emitia um longo e arrastado ooo acompanhado por expressão de interesse e satisfação O que ele fazia era segurar o carretel pelo cordão e com muita perícia arremessálo por sobre a borda de sua caminha encortinada de maneira que aquele desaparecia por entre as cortinas ao mesmo tempo que o menino proferia seu expressivo oooó Puxava então o carretel para fora da cama novamente por meio do cordão e saudava o seu reaparecimento com um alegre da ali Essa então era a brincadeira completa desaparecimento e retorno Freud 19761920 Essa observação é a pedra inaugural do entendimento do brincar infantil como elemento básico para a compreensão das ansiedades da criança Em 1909 a análise do pequeno Hans de 5 anos foi conduzida pe lo seu próprio pai supervisionado por Freud que o orientava quanto às intervenções em relação à fobia do menino Esse atendimento po de ser considerado o primeiro modelo de uma psicoterapia infantil e assim foi constatado que a interpretação era possível com uma criança Castro 2004 No ano de 1908 Hermine von HughHellmuth tornase a primeira psicanalista de crianças Ela criou e tratou psicanaliticamente seu próprio sobrinho Rudolph O menino veio a assassinála aos 18 anos asfixian doa no dia 9 de setembro de 1924 Esse assassinato ficou abafado por muitas décadas como um segredo a ser preservado Talvez esse fato tenha impedido um maior avanço da psicanálise e da psicoterapia de crianças nos primeiros anos do século XX Esse esquecimento Fendrik p 102 e o silêncio sobre esse incidente traumático poderia estar ligado ao temor sobre o futuro das crianças analisadas por seus pais ou alguém que estivesse nesse lugar e da impossibilidade de dar conta do que ocorre com transferência Fendrick 1991 Embora Hermine von HughHellmuth tenha sido pioneira ima ginase que seu trágico destino por muito tempo oculto deva ter eclipsado suas contribuições pois não legou uma sistematização do seu modo de trabalhar por meio do jogo Fendrick 1991 Ferro 1995 O desaparecimento de Hermine von HugHellmuth é contemporâneo ao início de Melanie Klein e de Anna Freud que não poderiam ignorar que a pioneira no terreno que ambas iriam disputar entre si tinha morrido assassinada por Crianças e adolescentes em psicoterapia 31 seu jovem sobrinho em cuja criação tinham sido utilizados critérios inspira dos na psicanálise Fendrick 1991 p19 Dois nomes se impõem quando se fala em atendimento psicanalítico de crianças Melanie Klein e Anna Freud A primeira pela sua apaixonada defesa da análise pura e por ter criado um novo modo de interpretação através do jogo a segunda pela sua firme convicção na necessidade de uma aliança entre psicanálise e pedagogia Melanie Klein Em 1920 Melanie Klein ouve a comunicação de Hermine von Hugh Hellmuth Sobre a técnica de análise de crianças e é convidada por Karl Abraham para trabalhar em Berlim Melanie Klein havia iniciado sua análise com Sándor Ferenczi em 1916 sendo estimulada por ele a se dedicar à psicanálise e ao atendimento de crianças apresentando em 1919 seu primeiro trabalho como membro da Sociedade Psicanalítica de Budapeste um estudo de caso O desenvolvi mento de uma criança dedicado à análise de uma criança de 5 anos A criança em questão Fritz é um menino cujos pais que são de minha fa mília habitam na minha vizinhança imediata Isso permitiu me encontrar muitas vezes e sem nenhuma restrição com a criança Além do mais como a mãe segue todas as minhas recomendações posso exercer uma grande influên cia sobre a educação de seu filho Klein 19211981 p16 Seu primeiro paciente o pequeno Fritz com sintomas de inibição in telectual na realidade veio a se saber mais tarde era seu filho Erich Klein viria a analisar posteriormente seus dois outros filhos Hans e Mellita No começo de 1924 Melanie Klein começou uma segunda análise com Karl Abraham de quem adotaria algumas ideias para desenvolver suas próprias perspectivas sobre a organização do desenvolvimento se xual Começava a questionar certos aspectos do complexo de Édipo Nes se mesmo ano Melanie Klein foi a Viena para fazer uma comunicação sobre a psicanálise de crianças e nessa ocasião confrontouse diretamen te com Anna Freud O debate estava então aberto e trataria do que de via ser a psicanálise de crianças uma forma nova e aperfeiçoada de pe dagogia posição defendida por Anna Freud ou a oportunidade de uma exploração psicanalítica do funcionamento psíquico desde o nascimento como queria Melanie Klein 32 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A análise com Abraham durou 14 meses e foi interrompida devi do a morte de Abraham em 1925 Com a morte de seu analista Melanie Klein deixou Berlim cujo meio psicanalítico aderia às ideias de Anna Freud Em 1926 a convite de Ernest Jones Klein se instalou definiti vamente em Londres Lindon 1981 Em setembro de 1927 Klein apresentou uma comunicação Os está dios precoces do conflito edipiano na qual expunha explicitamente suas discordâncias com Freud sobre a datação do complexo de Édipo sobre seus elementos constitutivos e sobre o desenvolvimento psicossexual diferenciado dos meninos e das meninas Com essas posições o conflito se ampliou As ideias de Klein suscitaram fortes oposições que tomaram uma amplitude considerável com a chegada na Inglaterra dos psicana listas expulsos pelo nazismo entre os quais Anna Freud e Edward Glover que consideravam suas ideias metapsicológicas uma heresia idêntica às de Jung e Rank Diferentemente de Anna Freud Melanie Klein conside rava o brincar infantil uma forma de expressão de conteúdos mentais inconscientes similar às associações livres dos adultos Adultos falam e associam enquanto crianças brincam e trazem à tona seus conflitos an siedades e fantasias e esse material seria suscetível de interpretação no quadro da situação transferencial Klein começou a trabalhar com crianças em 1919 e logo observou que ao brincar as crianças expressavam suas ansiedades e fantasias dan do acesso à sexualidade infantil e à agressividade em torno dessas fanta sias podia se instaurar uma relação transferencialcontratrasferencial en tre a criança e o analista Guiouse pelo método de interpretação dos sonhos de Freud dando significado ao brinquedo da criança aplicando o princípio básico da associação livre Lindon1981 Como atendeu crian ças pequenas e préverbais compreendeu a força das fantasias incons cientes primitivas da mente infantil que aparecem nas sessões através das personificações nos jogos A personificação e a distribuição de papéis no ato de brincar baseada nos mecanismos de dissociação e projeção são o lastro para as transferências Klein 19291981 Para Klein a transferência é a espinha dorsal do tratamento inclu sive a negativa que interpretava se necessário desde as primeiras ses sões Em 1923 analisou Rita com 2 anos e 9 meses e usou a caixa indi vidual pela primeira vez O setting instituído é muito semelhante ao que se utiliza ainda hoje É com esse caso que ela dá um passo definitivo no desenvolvimento da técnica do jogo passando a analisar seus pacientes em seu consultório pois até então tratava as crianças em suas casas Klein Crianças e adolescentes em psicoterapia 33 chegou à conclusão de que a transferência só poderia ser estabelecida e mantida se o consultório ou a sala de jogos fosse sentido como algo separado da vida em casa Lindon 1981 Em 1932 Klein publicou sua primeira obrasíntese de seus historiais clínicos A psicanálise de crianças na qual expunha a estrutura de seus futuros desenvolvimentos teóricos sobretudo o conceito de posição posição esqui zoparanoide e posição depressiva assim como sua concepção ampliada da pulsão de morte expressada pela inveja primária Zimerman 2001 A discordância entre Anna Freud e Melanie Klein não parava de crescer Klein defendia a ideia de que o tratamento de uma criança pode ria ser parte integrante de sua vida visto que toda a criança passava por uma neurose infantil Já Anna Freud achava que tratar era necessário apenas quando a neurose se manifestava em sintomas e restringia o trata mento de crianças apenas à expressão do malestar parental Em julho de 1942 a tensão no seio da Sociedade Britânica de Psicaná lise atingiu um ponto crítico pelas divergências quanto às questões teóricas e técnicas entre os partidários de Klein e os de Anna Freud Assim começou o período das Grandes Controvérsias inaugurado por um ataque violento de Edward Glover contra a teoria e a prática dos kleinianos Glover 1981 Os confrontos assumiram tal intensidade que em novembro de 1946 depois de intermináveis negociações marcadas principalmente pela renúncia de Edward Glover à Sociedade Britânica de Psicanálise surgiram três grupos kleinia nos annafreudianos e independentes Além disto destas controvérsias surgi ram duas escolas da psicanálise a Psicologia do Ego do qual Anna Freud foi precursora e do outro lado a Psicologia das Relações Objetais fundada pelas ideias de Melanie Klein Nesse campo de batalha entre as duas divas da psicanálise infantil está Donald Woods Winnicott que participava do middle group ou grupo independente e também trouxe contribuições originais à psicanálise infan til Não se pode negar a influência de Klein no pensamento de Winnicott sobretudo em relação à importância do mundo interno e o poder da fanta sia Ambos tratam os aspectos préedípicos da personalidade da criança Kahr1999 Enquanto Melanie Klein destaca o papel da mãe internaliza da o ponto de vista da inveja agressividade voracidade e das experiências psicóticas do bebê Winnicott prioriza a importância da relação da criança e sua mãe real ou mãe ambiente os aspectos saudáveis e a necessidade de ser amado Discorda de Klein ao não aceitar o conceito de pulsão de morte e entender a agressividade humana como reação à invasões ambientais e ao sentido do verdadeiro self Enfatiza que os conflitos ligados à perda de conti 34 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols nuidade do self são os aspectos que seriam levados para a transferência Tal como Klein Winnicott considera um ego rudimentar desde o nascimento sendo que as relações objetais iniciam a partir desse momento Toma emprestado de Klein o papel do jogo como meio de ingressar no mundo infantil mas com visão diferenciada pois para ele o brincar não é apenas pulsional enfatizando que o verdadeiro jogo é criativo e ocorre na área dos fenômenos transicionais O brincar é prazeroso e sa tisfaz e quando há elevado grau de ansiedade ou de carga pulsional o jogo é interrompido ou é usado como descarga Além disso Winnicott faz uma abordagem própria da técnica do brinquedo quando por exemplo utiliza o jogo do rabisco Squigle para se comunicar com alguns de seus pacientes Considera a psicoterapia como um espaço transicional on de a criança terá a oportunidade de desenvolver sua criatividade Anna Freud Em 1927 publicou sua obra O tratamento psicanalítico das crianças onde relata tratamentos de crianças entre 6 a 12 anos Enfatizava que os filhos estavam ligados aos pais reais e atuais e por isso não eram capazes de desenvolver neurose de transferência e tão pouco de associar livremente Sustentava que não poderia haver uma repetição enquanto a criança ainda estivesse vivenciando suas ligações originais Ferro 1995 Para ela as crian ças não teriam também motivações para se tratar e seus sofrimentos esta riam mais ligados aos sentimentos e conflitos de aprovaçãodesaprovação com seus pais reais Em função disso instituiu um período preparatório no qual criava uma aliança com o ego da criança e a induzia para aceitação da análise ao mesmo tempo que valorizava a utilização do sonho das fantasias diurnas e dos desenhos mas limitava a utilização do jogo Aliava fins educativos e pedagógicos ao tratamento Anna Freud temia a deterioração das relações da criança com seus pais se fossem analisados seus sentimentos negativos a respeito deles então tentava manter uma situação positiva As situações negativas se riam resolvidas por métodos nãoanalíticos Ferro 1995 Anna Freud criou em 1925 o Kinderseminar Seminário de Crianças que se reunia no apartamento da Berggase Depois das experiências infelizes de Hermine von HughHellmuth tratavase então de formar terapeutas capazes de aplicar os princípios da psicanálise à educação das crianças Além disso uma de suas maiores contribuições foi a criação e o de senvolvimento da Hamsptead Child Therapy Clinic em Londres Crianças e adolescentes em psicoterapia 35 Quanto a Anna Freud seu pai não hesitou em analisála por duas vezes entre 1918 e 1920 e entre 1922 e 1924 Nessa época nas décadas iniciais dos tratamentos psicanalíticos não era anômalo pais tratarem seus próprios filhos ou parentes PSICOLOGIA DO EGO Heinz Hatmann psicanalista austríaco migrou para os Estados Uni dos como muitos outros psicanalistas europeus perseguidos pelo nazis mo onde juntamente com Kris Loewenstein Rappaport e Erickson fundou a corrente psicanalítica denominada Psicologia do Ego Esses autores se fundamentaram nos últimos trabalhos de Freud e também se alicerçaram nos trabalhos de Anna Freud Zimerman 1999 Anna Freud focou principalmente nos aspectos do id e ego explo rando os efeitos da pressão pulsional no desenvolvimento do ego Segue Freud entendendo que o ego tem início corporal considerando que no início da vida há uma fase anobjetal Uma das suas principais contribui ções teórico clínicas ainda muito usada na atualidade foi a elabora ção do seu diagnóstico metapsicológico perfil desenvolvimental Ela entendia que a ênfase no ego encaminha o indivíduo para uma adapta ção à realidade Margareth Mahler por sua vez propôs uma dimensão adicional além da influência de Anna Freud quando enfatizou seus estudos dos processos de separaçãoindividuação da criança em relação à mãe Mostrou a complexidade dessa tarefa levando em conta aspectos mais primitivos concebendo um ego incipiente na fase simbiótica e que nes sa fase existiriam rudimentos de relações objetais Mahler valoriza a mãe como elemento do par simbiótico e seu papel para discriminar e diferenciar o bebê de si próprio e desenvolver uma noção de coerência de self Liekerman e Urban 2000 Elaborou fases do processo separa çãoindividuação que é base para entender os transtornos borderline Mahler 1982 TEORIA DAS RELAÇÕES OBJETAIS A perspectiva teórica das relações objetais valoriza os vínculos entre objetos Nesse modelo relacional a visão dos fenômenos é enfocada 36 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols como processos interativos entre self e objeto que levam ao surgimento de novos elementos Greemberg e Mitchell 1994 Consiste num modelo de aparelho psíquico que supõe uma relação objetal desde o início da vida A partir da relação com os objetos primá rios será internalizado um objeto colorido pelas fantasias provocadas por essas experiências Os objetos internalizados estarão portanto sujeitos às deformações operacionalizadas pela vida fantasmática da criança e não corresponderão às características dos objetos reais externos O tema das relações objetais recebeu a contribuição de vários auto res embora seja frequentemente utilizado para descrever a abordagem desenvolvida por Melanie Klein Contradizendo Freud Klein sugeriu que o bebê pode ter um ego pouco desenvolvido desde o nascimento fazendo uso de mecanismos de defesa primitivos possuindo uma capacidade rudimentar de apreen são de aspectos desde seu nascimento As fantasias primitivas do bebê emergem interferindo nas percepções e nas interações com a mãe e com seus cuidadores A partir daí a criança internalizará partes de objetos arcaicos que serão distinguidos entre bons e maus Essas primeiras relações objetais seiobebê se dão com objetos parciais posição es quizoparanoide e na medida em que houver maior integração e coesão do ego infantil a criança estabelece uma relação com objetos totais entrando na posição depressiva Klein sustenta que o mundo interno da criança é criado a partir desses processos e é a chave para a saúde men tal Liekerman e Urban 2000 No desenvolvimento desse modelo teó rico a exitosa elaboração da posição depressiva será garantia de maior saúde mental com prevalência de mecanismos neuróticos sobre psicó ticos Ferro 1995 A vida psíquica é dominada pelo jogo das fantasias inconscientes e das defesas a ela conectadas O terapeuta se torna alvo dessas fantasias e o paciente externaliza o que acontece em seu mundo interno ao projetar na atualidade da transferência Ferro 1995 A descrição da identificação projetiva descrita por Klein como me canismo para livrar a mente de angústias penosas evacuandoos para o exterior e para dentro de outro que se torna receptor do processo tor nase uma aquisição indiscutível para a psicanálise Bion mais tarde mu da esta perspectiva entendendo e ampliando a identificação projetiva como uma forma de comunicação primitiva de emoções Ferro 1995 Portanto a teoria kleiniana com alguns conceitos e desenvolvimentos originais deu ascensão à escola das relações de objeto na qual estão Crianças e adolescentes em psicoterapia 37 incluídos pensadores como Donald Winnicott Michael Balint Ronald Fairbain e Wilfred Bion Entretanto quando esses pensadores concorda ram com Klein sobre a atividade precoce do ego também ao contrário de Klein e com uma consciência das contribuições de Anna Freud enfati zaram a dependência total desse ego na ausência da sustentação externa da mãe Likierman e Urban 2000 Herbert Rosenfeld Donald Meltzer Antonino Ferro Anne Alvarez e Francis Tustin para citar alguns dos pensadores contemporâneos dentre outros também foram beber na fonte das principais linhas de desenvol vimento do trabalho de Klein ampliando alguns conceitos que vêm enri quecer ainda mais a teoria psicanalítica inaugurando o que se denomina atualmente de psicanálise vincular Zimerman 1999 AMÉRICA LATINA E BRASIL Na América Latina mais precisamente na Argentina Arminda Aberastury identificada com as ideias de Melanie Klein traduziu sua obra para o castelhano desenvolvendo a análise de crianças Entre 1948 a 1952 Arminda dirigiu no Instituto de psicanálise da APA um seminário sobre esse tema formando uma geração de analistas de crianças Em 1957 apresentou uma comunicação sobre a sucessão dos estágios durante os primeiros anos de vida definindo uma fase genital prévia anterior à fase anal no desenvolvimento libidinal que conforme ela seria início do complexo de Édipo Conforme Aberastury 1982 a fase anal se estruturaria depois da oral e fálica por consequência e como solução dos conflitos criados nessa fase Além disso focou seus estudos sobre as dificuldades de sono nos lactentes bem como os transtornos que acompanham a dentição Em seu livro Psicanálise da criança enfatiza que sua técnica teve suas raízes da técnica elaborada por Melanie Klein mas pela sua experiência permitiuse realizar uma série de modificações no tocante à forma de conduzir as entrevistas com pais e destaca as fantasias de doença e cura que a criança apresenta nas primeiras horas de jogo Sem dúvida essa é uma das suas contribuições técnicas mais originais e que levam o psico terapeuta a entender que a criança sabe que está enferma e que com preende e aceita o tratamento Aberastury 1982 p111 As ideias de Aberastury juntamente com Eduardo Kalina e Mauricio Knobel tiveram forte influência sobre a psicoterapia de crianças e adoles 38 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols centes na década de 1970 no Brasil mais especificamente no Rio de Ja neiro e Rio Grande do Sul Nesse mesmo período Dr Fábio Leite Lobo assumia a direção do Instituto de Psicanálise do Rio de Janeiro e trazia uma postura mais aber ta com atitudes pioneiras vindo a oferecer uma ampliação da práti ca psicanalítica a nãomédicos Foi nesse período que Eduardo Kalina e Arminda Aberastury desembarcavam no Rio de Janeiro a fim de oferecer um curso de teoria e clínica psicanalítica Surpresa foi que muitos profis sionais se interessaram pelo tema sendo a maioria deles psicólogos Aberastury que já se envolvia com estudos sobre a criança havia pu blicado um trabalho intitulado O mundo adolescente e desse modo iniciava uma fase de estudos sobre o tema Em se tratando de adolescentes os trabalhos sobre esse tema no Brasil tiveram desenvolvimento significativo em 1970 Ainda em plena ditadura militar e sem possibilidade de expressar suas angústias frente ao malestar social o adolescente brasileiro se sentindo sem horizontes vol tavase para as drogas alienandose do mundo real Junto a isto estavam os pais assustados e confundidos frente a esse quadro que incluía essen cialmente a drogadição e a sexualidade Em consequência disso multi plicaramse os psicoterapeutas dedicados a atender adolescentes e suas famílias Freitas 1989 Em 1971 Luis Carlos Osorio no Rio Grande do Sul e Carlos Castellar no Rio de Janeiro participaram da I Reunião Panamericana de Psiquiatria e Adolescência e do II Congresso Argentino de Psicopatologia InfantoJuvenil organizado pela ASAPPIA Associação Argentina de Psi quiatria e Psicologia da Infância e Adolescência A partir desses contatos surge a ideia de criar a APPIA Associação de Psiquiatria e Psicologia da Infância e Adolescência que foi fundada em 1972 Esta instituição tornase revolucionária não apenas por ter ampliado questões científicas mas também por ter funcionado como um espaço que incentivava e refe rendava a prática psicoterápica principalmente aos médicos e psicólogos nãopsicanalistas Freitas 1989 A influência teórica da época era basicamente a de Melanie Klein e Arminda Aberastury ambas não eram médicas nem psicólogas O trata mento de crianças era realizado por psicólogas que supervisionavam e se analisavam com psicanalistas de formação médica Houve bastante resistência das sociedades psicanalíticas filiadas à IPA em abrir sua formação para psicólogos Esse fechamento resultou que a classe excluída fosse buscar sustentação em grupos de estudos supervisão Crianças e adolescentes em psicoterapia 39 e análise com psicanalistas que os apoiavam fundando uma sociedade exclu siva para psicólogos Nesse sentido as APPIAs se constituíam de nomes con ceituados da psicologia psicanálise e psiquiatria e abriam espaço para dife rentes discussões tanto políticas quanto teóricas Freitas 1989 O ESPAÇO DA PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO PSICANALÍTICA Conforme assinalado neste capítulo sobre As origens da psicoterapia na psicanálise em toda a história da psicanálise houve cisões rupturas em virtude de diferenças teóricas ou políticas ou ainda devido às dispu tas por espaço no mercado de trabalho Aqui no Brasil mais especificamente constituiuse muito árdua a luta dos psicólogos para serem reconhecidos como capazes de exercer a função de psicoterapeutas pois essa área ficava restrita à medicina Nesse hiato que se colocou entre esta autorização foram se consti tuindo vários cursos de formação de psicólogos alguns se fortalecendo e se tornando referência no ensino da psicoterapia Em pesquisa realizada por Selister 2003 em Porto Alegre existem mais de 50 instituições de dicadas ao ensino da psicoterapia Nesta investigação descreve que a docência da psicoterapia psicanalítica é exercida essencialmente por mulheres psicólogas formadas há mais de 20 anos Com a Resolução n 142000 o Conselho Federal de Psicologia regu lamentou os cursos de formação e a prática e a experiência dos psicólogos formados em cursos de especialização não ligados ao meio universitário Conforme Castro 2004 essa resolução destaca como imprescindível para realização da psicoterapia que o psicólogo seja obrigado a se submeter a uma especialização em nível de pósgraduação a esse exercício profissional visto que a prática da psicoterapia é o produto de interação complexa entre a formação o compromisso com atualização continuada e o cliente Desta maneira a psicoterapia de orientação psicanalítica tem um espaço que vai se solidificando com o decorrer dos tempos toma como sustentação a teoria psicanalítica e os progressos desenvolvidos por seus pensadores e a partir daí constituiuse em uma técnica própria que dá conta de um campo e um fazer que é específico Duarte 2003 aponta que no início dos cursos de formação de psicólogos as disciplinas da área clínica eram ministradas por médi cos o que ofereceu uma base sólida por outro lado não favoreceu a identidade profissional do psicoterapeuta sendo que os primeiros pro 40 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols fissionais tiveram que dar um pulo semelhante ao processo de adoção Duarte 2003 p 22 Esse aspecto ainda se faz presente até hoje pois não fomos na área da Psicologia Clínica filhos de psicólogos mas sim tivemos uma origem médica Embora esses profissionais tenham tido muita disponibilidade não foram poucos os que não aceitavam os novos profissionais Duarte 2003 p22 Duarte 2003 p 23 ainda aponta que em sua longa experiência profissional se observa uma seleção natural onde sobreviverão aqueles indivíduos e grupos que se formaram a partir de uma base consistente fundada principalmente em princípios éticos Cada psicoterapeuta através do tripé formação supervisão e tratamen to pessoal se instrumentaliza e se desenvolve para a realização de uma práti ca ou ciênciaarte Castro 2004 que envolve além de atualização perma nente do estudo e teoria a intuição a empatia e a capacidade e a plasticidade do ego em se colocar junto com o outro seja sentindo brincando dese nhando ou jogando no caso de crianças ou adolescentes para depois se afastar processar e devolver para o paciente aquilo que foi vivido na sessão terapêutica em doses homeopáticas exercendo a função continente Bion Cada vez mais o psicoterapeuta de Orientação Psicanalítica necessi ta se apossar de sua identidade ciente de que sua formação estará cal cada em uma base sólida tanto ética quanto teórica e técnica Tendo esses aspectos integrados dentro de si aquele que exerce a psicoterapia certamente estará sedimentando uma técnica específica tendo como modelo pioneiras da psicanálise infantil como Anna Freud e Melanie Klein que souberam ousar e brigar pelo que acreditavam O psicotera peuta estará então auxiliando aquele que nos pede ajuda para se conhecer e se encaminhar para atingir a liberdade para vir a ser o que se é Bion Tal como nossos pacientes assim também a psicoterapia tem cami nhado em direção ao vir a ser o que realmente é ocupando um espaço singular como instrumento de ajuda para o indivíduo da sociedade atual REFERÊNCIAS ABERASTURY A Psicanálise da criança Porto Alegre Artmed 1982 BION W R Aprendiendo de la experiencia Buenos Aires Paidós 1980 BION W R Estudos Psicanalíticos Revisados Rio de Janeiro Imago 1994 CASTRO M G K Reflexões acerca da prática da psicoterapia com criança uma ponte entre passado presente e futuro Trabalho apresentado no V Congresso la tino Americano de Psicoterapia maio de 2004 Porto Alegre Crianças e adolescentes em psicoterapia 41 DUARTE I Entrelaçamentos históricos entre psicologia psicoterapia e psicanáli se no RS Revista do IEPP Psicoterapia Psicanalítica v 5 p 1125 2003 FENDRICK S Ficção das origens contribuições à história da teoria da psicanálise de crianças Porto Alegre Artmed 1991 FERRO A A técnica da psicanálise infantil a criança e o analista da relação ao campo emocional Rio de Janeiro Imago 1995 FREITAS L A Psicanálise de adolescentes um pouco da história In CASTELLAR C Ed Crise na adolescência visão psicanalítica Rio de janeiro Rocco 1989 p 915 FREUD A El psicoanalisis del niño Buenos Aires Hormé 1981 FREUD S Além do princípio do prazer In Obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1976 v 18 GLOVER E Psicanálise na Inglaterra In ALEXANDER F EISENSTEIN S GROTJAHN M Ed A história da psicanálise através de seus pioneiros uma história da psicanálise vista através das vidas e das obras dos seus mais eminen tes mestres pensadores e clínicos Rio de Janeiro Imago 1981p 599599 GREEMBERG J MITCHELL S Teoria das relações objetais na teoria psicana lítica Porto Alegre Artmed 1994 KAHR B Donald Woods Winnicott retrato y biografía Madrid Biblioteca Nueva 1999 KLEIN M Contribuições à psicanálise São Paulo Mestre Jou 1981 LIKIERMAN M URBAN E The Roots of Child and adolescent psychotherapy in psycoanalysis In LANYADO M HORNE A Ed Child adolescent psycothe rapy London Routledge 2000 p 1930 LINDON J A Melanie Klein Como ela via o inconsciente In ALEXANDERE F EISENSTEIN S GROTJAHN M A história da psicanálise através de seus pionei ros Rio de Janeiro Imago 1981 v 2 p 406418 MAHLER M O processo de separaçãoindividuação Porto Alegre Artmed 1982 SELISTER K M O Formador de psicoterapeutas psicanalíticos nas instituições de formação terapêutica em Porto Alegre 2003 Dissertação Mestrado Faculdade de Psicologia Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Ale gre 2003 WINNICOTT D W Ansiedade associada à insegurança In Da pediatria à psicanálise obras escolhidas Rio de Janeiro Imago 2000 p 163167 ZIMERMAN D Fundamentos psicanalíticos teoria técnica e clínica Porto Ale gre Artmed 1999 Vocabulário contemporâneo de psicanálise Porto Alegre Artmed 2001 Condições essenciais do psicoterapeuta de crianças e adolescentes Ana Cláudia Santos Meira 2 Como se forma um psicoterapeuta de crianças e adolescentes O que ele deve ter Como deve ser Existem condições que são peculiares a quem pretende se dedicar ao tratamento de jovens pacientes Para começar a escrever sobre um tema tão relevante e poder res ponder a essas perguntas busquei a parceria e a interlocução entrevis tando colegas que com uma disponibilidade admirável compartilharam comigo as reflexões sobre seu quehacer enquanto terapeutas de crianças e adolescentes de modo que agora podemos dizer que este capítulo foi escrito a muitas mãos Então como se forma um psicoterapeuta A maioria já deve ter ou vido falar do famoso tripé que sustenta a especialização em psicoterapia de orientação psicanalítica Temos nossa formação firmemente ancorada na soma dos efeitos que o tratamento pessoal a supervisão e a teoria operam dentro de nós em nosso aparelho mental É o que possibilita estarmos mais instrumentalizados para atender a pacientes em psicoterapia segundo os preceitos teóricos da psicanálise É então da ação desses três elementos que surgirão os atributos essenciais para tratarmos desses pacientes Proponho aqui que pensemos em outra forma que não a de um tripé com suportes paralelos e que não se cruzam Sugiro a forma de três círculos algo sobrepostos um ao outro com um campo de intersecção entre eles para representar exatamente nesse espaço central que é parte dos três e ao mesmo tempo um só o nosso mundo interno É ali que se posiciona o que de psíquico foi formado e transformado a partir da vivência de um tratamento pessoal de supervisão da clínica e de nosso Crianças e adolescentes em psicoterapia 43 empenho no estudo teórico É desse lugar que é acima de tudo da ordem do emocional que vamos saber fazer ou ter uma série de quali dades que nos permitirão o exercício efetivo da psicoterapia Agora será que podemos falar dessas qualidades que são comuns aos terapeutas de todas as faixas etárias Certamente que sim No en tanto existem atributos que devem ser inerentes aos profissionais que atendem especificamente crianças e adolescentes e peculiaridades pró prias da técnica desse atendimento Um psicoterapeuta indaga se é possível fazer esse fracionamento da prática por idade na medida em que o inconsciente que é o objeto de nossa atenção não pode ser fracionado por critérios de idade cronológica Ele localiza as diferenças em questões mais egoicas as preferências os gostos ou em questões de ordem prática disposição de tempo consul tório organização do trabalho Contudo alerta que lidamos o tempo todo com o infantil de nossos pacientes independente da idade que têm é ele o infantil que está em jogo se aquilo que importa na situação analítica é fazer circular o pulsional e a sexualidade infantil propondo a partir daí dissolver sentidos coagulados e afrouxar o recalque na neurose ou per correr os caminhos da constituição psíquica onde aquilo que não se forma possa se constituir a posteriori em pacientes mais graves Em expansão ao que esse terapeuta pontua falaremos aqui das con dições que nos habilitam a percorrer esses caminhos pelo psíquico junto a uma parcela específica dos pacientes que se distingue sem dúvida do adul to Ainda que seja certo que o inconsciente é atemporal e habita com a mes ma qualidade a mente de um menino de 5 anos um rapaz de 15 e um ho mem de 50 anos existem diferenças que conferem inegavelmente caracte rísticas diversas na dinâmica na técnica e no olhar lançado e então nos atributos que o psicoterapeuta de crianças e adolescentes deve ter Logo este capítulo oferece um mapeamento daquilo que é específico do psicoterapeuta mas também do que o atendimento às três faixas etárias comunga em termos de condições necessárias a quem a ele se dedica CARTOGRAFIA DA FORMAÇÃO Submetase a um tratamento pessoal análise ou psicoterapia É importante estar tranquilo com os seus aspectos infantis e adoles centes já que no contato com os jovens pacientes muitos conflitos fantasias e defesas serão remobilizadas Por seu conteúdo mais 44 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols primitivo e pela natureza mais arcaica das fantasias o material tra zido pode estimular ansiedades inconscientes e formar pontos ce gos Busque uma autorização pessoal através de seu tratamento que lhe indique que você está em condições de se tornar um psicote rapeuta de crianças e adolescentes Dentre outros indicadores estar em condições significa que nossos traços de caráter possibilita rão e até facilitarão o envolvimento com esses pacientes e tudo o que isso implica Faça uma formação específica que garanta um conhecimento pro fundo sobre o mundo infantil sobre os meandros do desenvolvi mento emocional e psicossexual a formação da personalidade o que é esperado para cada etapa e a psicopatologia da infância Com a Resolução nº 142000 o Conselho Federal de Psicologia regulamentou os cursos de formação a prática e a experiência dos psicólogos formados em cursos de especialização nãoligados ao meio universitário Essa resolução destaca como imprescindível para a realização da psicoterapia que o psicólogo se submeta a uma especialização em nível de pósgraduação visto que a prática da psicoterapia é o produto de interação complexa entre a forma ção o compromisso com atualização continuada e o paciente Conheça a dinâmica do processo adolescente para perceber o que está acontecendo em que momento do desenvolvimento o jovem se encontra se os sinais que está apresentando são próprios do pe ríodo para diferenciar o que é próprio dessa faixa etária e o que já se tornou psicopatológico a intensidade e a frequência dos sintomas Leia os autores clássicos Freud Melanie Klein Anna Freud Donald Winnicott Margaret Mahler mas também os contempo râneos que ampliaram as ideias pioneiras Leia muito esteja sem pre se atualizando e utilize de cada teoria aquilo que ela tem de melhor mantendo uma coerência interna Conhecer as teorias e os autores nos possibilita dar conta das diferentes demandas que por certo surgirão nos atendimentos Aprenda bem os conceitos tenha domínio das teorias de cor e sal teado e depois se esqueça deles Somente a segurança fornecida por eles é que nos permite transitar com liberdade pelo desconhe cido pelo novo Dito de outra forma internalize os conceitos de tal modo que sua prática seja espontânea e natural e que suas inter venções não sejam produto de um discurso intelectualizado Crianças e adolescentes em psicoterapia 45 Lance mão da leitura de publicações atuais pois as situações inusi tadas a que os pacientes nos expõem não estão previstas nos livros Estudamos nos livros o que normalmente ocorre mas com crianças e adolescentes costumamos ser pegos de surpresa com muita fre quência em situações que simplesmente nunca nos ensinaram o que fazer como agir ou reagir Supervisione sempre não só quando inserido em um curso formal ou quando as horas de supervisão contarem para o mínimo exigido no currículo Outrossim supervisione até o momento em que tiver segu rança de conseguir vislumbrar o que há para além de seu próprio inconsciente sem ficar cegado por conflitos ainda nãoresolvidos Disponibilizese emocional interna e temporalmente para estar de fato com as crianças e os adolescentes Precisamos gostar genuina mente deles de estar e de trabalhar com eles Tenha curiosidade respeiteos e leveos a sério Comuniquese com eles de modo a ser acessível e compreendido sem no entanto se infantilizar nem in fantilizálos porque a diferença é fundamental Adquira a capacidade de regressão semelhante à de uma mãe quando recebe seu bebê e desenvolve uma preocupação materna primária pela qual se tem empatia para se colocar no lugar do paciente que vem buscar ajuda com a condição de dependência da criança e com o desejo de independência do adolescente Estabele cer um bom vínculo e uma firme aliança terapêutica com o pacien te dá a base para que ele se sinta à vontade para expressar suas mais profundas dores Seja espontâneo ao brincar tenha disponibilidade afetiva e prazer com a atividade como sentar no chão entrar no mundo da crian ça jogar sem uma pressão externa ou formal para isso Logo será necessária uma plasticidade de ego pois temos que brincar de ver dade nos envolvermos com as atividades propostas pela criança entrando empaticamente em seu universo de fazdeconta Uma terapeuta alerta sem essa condição podemos ter um adulto ten tando se comunicar com uma criança e muitas vezes esperando que a criança se comunique como um adulto Quando nós conse guimos regredir de forma saudável podemos nos comunicar através da linguagem infantil até porque um dia já fomos criança já a criança ainda não chegou à fase adulta Produza a capacidade de regredir e de voltar ao normal várias ve zes durante uma mesma sessão Efetue uma regressão a serviço de 46 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols ego para poder se soltar física mental e emocionalmente para brincar na língua da criança sem todavia perder o funciona mento secundário do pensamento que nos possibilita compreen der e interpretar É preciso lidar com a situação de brincar e ao mesmo tempo entender e trabalhar com o paciente Vamos inter pretar brincando sugere uma terapeuta Seja criativo para buscar recursos e não apenas os verbais que pro piciem o acesso ao mundo interno do paciente O silêncio nas ses sões é fenômeno comum na adolescência e para dar conta disso é preciso tolerância porém talvez mais do que isso é preciso criati vidade para encontrar formas diversas das tradicionais para pene trar pelas brechas que o jovem não tão facilmente nos abre Apure um olhar psicanalítico voltado para a comunicação nãover bal que se dá através de toda atividade lúdica nos mínimos de talhes em cada gesto em todo movimento Trabalhe com o simbó lico e o imaginário O brincar é fundamental para que a criança comunique e simbolize seus conflitos Então compreenda o que o jogo está querendo dizer e decodifique mostrando o entendimen to a ela conforme a sua capacidade A interpretação se dá no pró prio brinquedo Compreenda as modalidades de comunicação nãoverbais parale las ao uso da palavra Algumas formas de expressão de fantasias são por vezes violentas barulhentas envolvem sujeira com tin tas argila e água trazendo aspectos bastante regressivos ao setting Uma terapeuta lembra as fantasias mais primitivas não são de natureza verbal são inicialmente corporais depois visuais e somente mais tarde serão traduzíveis em palavras Preserve a capacidade de tolerar o ataque dos pacientes e sobreviva a eles Durante a infância e a adolescência a manifestação de senti mentos hostis é mais franca do que no adulto que encontra na re pressão um apaziguamento O material trazido é muito rico mas carregado de primitivismo e agressividade que inclui muita movi mentação corporal da dupla Uma terapeuta sugere uma metáfora para isso que permitamos que os pacientes nos usem de sparring aquele saco de treinar boxe o que não significa naturalmente acei tar uma conduta atuadora ou a descarga pelo ato sem uma conten ção adequada e um trabalho interpretativo As crianças são convida das no setting a tudo desenhar falar brincar a tudo representar mas nem tudo fazer como bem define outra terapeuta Crianças e adolescentes em psicoterapia 47 Tolere os momentos de nãosaber que sem dúvida com crianças e adolescentes vivenciamos com mais frequência do que quando atendemos adultos Seja verdadeiro e honesto pois as crianças são muito perspicazes e os adolescentes se especializam em encontrar nossos pontos fracos nossos pontos cegos Tenha tranquilidade para tratar de assuntos que podem ser considerados tabus como sexo drogas homossexualidade doenças morte Prepare seu consultório para receber a demanda dos pacientes Isso quer dizer que talvez ele não possa ter tantos enfeites muito vidro ou porcelana a ponto de que o apego ou cuidado com esses objetos impeçam de permitir a expressão do mundo interno da quele que na maior parte das vezes vai explorar todas as possi bilidades do ambiente Crie um desprendimento para propiciar a ação da criança nas brincadeiras ou atender à sua demanda de movimentação dos móveis da sala para realizar algum jogo ou dramatização Seja tolerante para suportar que o consultório fique sujo ou ba gunçado durante a sessão psicoterápica Quanto mais regressivo o funcionamento psíquico da criança e do adolescente mais dis postos teremos de estar a sermos usados e explorados junto com o ambiente físico Por isso não podemos ser obsessivos demais pois teremos de botar a mão na massa às vezes simbolicamente às vezes concretamente Necessitamos pintar mexer em argila e usar a massa de modelar Tenha o mesmo desprendimento para situações como ter de limpar uma criança que urinou ou outra que defecou às vezes elas pe dem que as levemos ao banheiro outras contudo elas fazem suas necessidades no meio de nossa sala e temos de lidar com isso Precisamos discriminar o que é um ataque ao vínculo um sintoma de incontinência uma angústia excessiva assim como o que é um ataque de birra uma agitação psicomotora e uma desagregação psicótica Uma mesma ação pode estar comunicando níveis muito diferentes de funcionamento mental Avalie sua disposição física pois não podemos nos furtar de sentar no chão em cadeiras baixas jogar bola e suar muito a criança brinca pula corre joga se atira e se nos propomos a lhe oferecer um espaço de expressão temos que deixála fazer isso e ainda temos que acompanhála nesses movimentos Além disso a crian ça pode tentar nos atacar nos atirar objetos lançar uma bola com 48 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols força ou se jogar em nosso colo Pacientes mais regressivos pre cisarão ser contidos e para tudo isso necessitamos de força físi ca e saúde Distribua seus pacientes em horários que lhe sejam absolutamente confortáveis Atender somente crianças em um turno inteiro pode ser muito desgastante Atender vários adolescentes silenciosos em horários seguidos ao almoço pode exigir um esforço desnecessário Pense nisso e saiba sempre porque está decidindo por uma defi nição e não por outra em cada aspecto do setting do contrato da condução do tratamento Seja mais compreensivo e maleável ao avaliar situações da rea lidade de cada família como combinações de horários e férias sem por isso esquecer as regras técnicas que nos balizam Uma psicoterapeuta de adolescentes entrevistada para este capítulo propõe a brincadeira do elástico como uma figura de linguagem para descrever o movimento dos jovens os adolescentes vão es ticando para ver se arrebenta Assim fazem com os pais esticam até chegar quase a arrebentar Este é o nosso trabalho na clínica deixálos experimentar a área da ilusão de que tudo podem e até onde podem ir Quando estão quase rompendo o setting caindo no precipício a gente puxa evitando que eles caiam Dêse liberdade para se julgar necessário em determinadas situações ter atitudes mais ativas sem ficar imobilizado pelas regras tradicio nais que marcam o setting e o contrato terapêutico Crianças e ado lescentes são pacientes imprevisíveis É como expressa um terapeu ta sinto que quando vejo uma criança preciso lubrificar a cintura ganhar um pouco mais de jogo de cintura Necessitamos ao mesmo tempo de flexibilidade e firmeza para nos adaptar e ajustar a nossa técnica de acordo com o que nos é apresentado pela criança e pelo adolescente sem no entanto comprometer o tratamento Mantenha a mesma liberdade e flexibilidade para manejar situa ções inusitadas Lidamos com inúmeras surpresas no setting como quando uma criança não quer entrar sozinha na sala e diferente do que esperávamos ter que fazer uma consulta com a mãe junto ou trazerem amigos para a sala de espera virem com aparelhos de música com brinquedos de casa com animais de estimação entre outras manifestações no comportamento Se as tomarmos simples mente como atuação ou resistência perderemos o valor comuni cativo que elas trazem Crianças e adolescentes em psicoterapia 49 Tenha em mente que em geral os pacientes não nos falarão dire tamente de seus problemas conflitos angústias dúvidas e me dos como pequenos adultos mas estarão falando de si e de seus objetos internos quando aparentemente falarem de outras pes soas quaisquer Por isso esteja atualizado nos programas jovens e infantis pois mesmo que não possamos ou não queiramos ficar em frente à TV devemos ter conhecimento dos personagens heróis e vilões dos desenhos filmes e novelas para poder compreender o simbolismo que muitas vezes faz com que eles ocupem o cenário das sessões Preveja a participação mais direta e concreta de terceiros no set ting Assim nos envolveremos sempre com os pais e muitas vezes com os irmãos e os meioirmãos avós babás madrastas e padras tos Trabalhamos com um campo estendido conforme define uma psicoterapeuta infantil Lidar com as transferências e resistências dos pais dos familiares e da criança gera um peso adicional o que exige muito de nossa mente Conceba uma psicoterapia de crianças e adolescentes somente com a participação dos pais A medida dessa participação será ava liada e conduzida por nós mas é fundamental que estejamos inter namente dispostos para tudo o que essa presença tácita nos impõe Os pais são coparticipantes desse tratamento então precisamos firmar também com eles uma forte aliança terapêutica Lembre que existe uma história inteira a ser contada por eles e compreendida por nós Logo teremos um olhar mais individual e ao mesmo tempo um olhar mais amplo no contato com a família Ali colocamse em cena transferências e contratransferências cru zadas que demandarão nosso olhar tanto atento quanto sensível Olhamos a criança e o adolescente inseridos em seu contexto fa miliar identificando as dinâmicas relacionais que estão ocorrendo e compreendendo seu papel nessa dinâmica Conserve a capacidade de ser empático e paciente com a família que está envolvida preocupada e muitas vezes fazendo um uso inconsciente dessa criança como um sintoma Devemos saber que eles também sofrem se atrapalham No tratamento de adultos não temos contato com os pais maridos ou filhos reais já na psi coterapia com crianças e adolescentes esse contato se impõe como fundamental Com efeito a proximidade nos põe à prova enfren tamos as resistências os boicotes as manipulações dos pais que se 50 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols sentem narcisicamente feridos fracassados equivocados desafia dos desvalorizados e temos de lidar com isso Permaneça em uma posição de escuta aberta e receptiva A ava liação é um momento para conversar com os pais e com a criança e não pode parecer um inquérito ou o preenchimento de uma ficha de anamnese Identifique as encomendas é de suporte de orientação de proteção de parceria de confrontação de denún cia através do pedido de tratamento para então poder mode lar o tipo de contato que se tem com os pais poder orientálos e trabalhar quando necessário sua resistência em buscar um trata mento para si próprios Fique atento para a manutenção da neutralidade Não se posicione a favor ou contra a criança ou os pais Renuncie à idealização especialmente quando ela tem como corolário a desvalorização dos pais e evite promover ou corresponder à dissociação entre os pais e o terapeuta Resista ao impulso de ser maternal super protetor ou professoral Deixe em suspenso o afã pedagógico como define uma terapeuta pois a criança e o adolescente podem tentar incitar esse lado em nós Passe pela vivência do método de observação da relação mãebebê proposto por Esther Bick que propicia a experiência de um lugar intermediário entre a presença e a distância Na medida em que na observação conseguimos não interferir aprendemos a aceitar e a tolerar que a família encontre suas próprias soluções Assim evitamos atitudes moralistas e supergoicas com os pais e podere mos tolerar que eles escolham em que escola colocar seu filho em que médico levar em que curso matricular Não entre em compe tição com eles Aceite que quando os pais não querem não conseguem ou não permitem não vamos conseguir tratar e ajudar a todos aqueles que nos buscam Amiúde veremos um quadro de psicose ou de perversão se estruturando sem poder fazer nada Isso é extrema mente difícil mas é real Necessitamos de muita tolerância à frus tração pois lidaremos com inúmeras interferências dos pais mes mo quando temos um paciente que visivelmente está sofrendo e quer ajuda Identifique o tipo e a severidade da psicopatologia dos pais Temos pais confusos neuróticos mas também pais abusadores perversos psicopatas mães descuidadas complicadas mas também mães nar Crianças e adolescentes em psicoterapia 51 cisistas negligentes maltratantes Às vezes os pais erram porque aquilo é o máximo que conseguem reconhecem se sentem cul pados e buscam mudar Outras vezes eles erram porque simples mente não se importam não há culpa não há preocupação não existe um olhar voltado para o filho Esteja preparado para denunciar casos de abuso e maltrato O Có digo de Ética dos Psicólogos traz em seus Princípios Fundamen tais que basearemos nosso trabalho no respeito e na promoção da liberdade da dignidade da igualdade e da integridade do ser hu mano contribuindo para eliminar quaisquer formas de negligên cia discriminação exploração violência crueldade e opressão Suporte situações em que justamente quando está melhoran do o paciente ser retirado da psicoterapia pelos pais que não podem ou não querem mais pagar ou porque acham que exata mente aquilo que avaliamos como uma melhora ou evolução é uma piora Uma criança submissa que começa a se mostrar e se posicionar ou um adolescente bonzinho que começa a se rebelar desestabilizam uma dinâmica confortavelmente instalada naque la família Nossa condição de intervir junto aos pais é limitada pelo lugar que ocupam já que eles participam do tratamento mas ao mesmo tempo não são nossos pacientes e demandam um tipo específico de intervenção Trabalhe com os pais a responsabilidade pela condução que eles decidem dar para a vida de seu filho e as consequências de atos como uma interrupção até o limite que eles permitirem Porém elabore a sensação de estar de mãos atadas em situações como não poder fazer uma última sessão para se despedir pois esses pacien tes não podem vir ao consultório sozinhos É diferente tratarmos um adulto que vem por vontade e iniciativa próprias que se loco move sozinho e que nos paga ele mesmo por seu tratamento Necessitamos muita tolerância para lidar com as resistências da família em relação à melhora do filho Reflita sobre os processos de identificação e contraidentificação com os aspectos transferenciais e contratransferenciais Dialogue muito com esses fenômenos que são inerentes à clínica e saiba usálos tanto em relação à criança quanto em relação aos pais Lide com pressões das famílias e da escola para uma melhora rápida dos sintomas que trouxeram o paciente para terapia sem se deixar capturar por demandas equivocadas 52 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Leve em conta que tratar de crianças e adolescentes exige mais do que o horário de consultório Por isso precisamos de tempo para entrar em contato com a escola falar com os professores com a fonoaudióloga a nutricionista o neurologista o pediatra ou o psiquiatra que também os tratam Além desses contatos coloquese à disposição para recebêlos no consultório ou para devolver de maneira apropriada um entendimento que os instrumentalize a li dar de forma mais adequada com aquele que é objeto de nossa aten ção Não podemos habitar uma ilha quando se trata de atender a um indivíduo que ainda tem múltiplos objetos de dependência Suponha o psiquismo do paciente sempre integrado com seu corpo Muitos determinantes orgânicos ou fisiológicos podem estar envol vidos em um sintoma como enurese encoprese gagueira ou obesi dade Além disso informese sobre medicações psiquiátricas que po dem ser de grande ajuda quando bem avaliadas bem indicadas e bem acompanhadas mas também podem ser um veneno se todos esses cuidados não forem tomados Devemos reconhecer nossos limites CONSIDERAÇÕES FINAIS O percurso que traçamos para nossa carreira profissional nos reserva algumas surpresas Uma terapeuta recorda voltando ao início de minha carreira vejo que naquela época me sentia mais à vontade com crianças do que com adultos pois sentia que poderia ser mais espontânea e livre com elas Seu inconsciente seria mais permeável através do jogo e do brincar o que ainda acho que é verdadeiro Hoje vejo que o trabalho com crianças e adolescentes é muito mais complexo e difícil Essa prática nos reserva grandes surpresas inevitáveis descobertas e uma riqueza que talvez somente com ela seja possível Temos a possibi lidade de ver o desabrochar de muitas potencialidades quando diminuem os sintomas e quando mesmo com crianças muito pequenas eles reto mam a vertente saudável de suas vidas assumindo seus desejos e se res ponsabilizando por suas escolhas e atos Na intensidade do contato que se estabelece entre terapeuta e as crianças e os adolescentes que vêm a tratamento temos a possibilidade de vivenciar algumas situações ímpares e revivenciar outras situações que dor mitavam bem acomodadas no interior de nosso inconsciente Muitas vivên cias jazem bem acomodadas mas tantas outras sobrevivem malelaboradas Crianças e adolescentes em psicoterapia 53 insuficientemente trabalhadas longe dos olhos analíticos O trabalho com esses jovens pacientes todavia faz levantar nossas repressões da mesma forma que eles nos tiram da cômoda poltrona de terapeutas onde com adultos repousamos nosso saber e nosso fazer mediado pela fala As crianças e os adolescentes demandam outros níveis de comuni cação nos convidam a graus diversos de funcionamento e nos incitam a um modo de fazer muito particular Desacomodados seguimos por dois caminhos ou abandonamos a clínica dessa faixa etária ou aceitamos seu chamamento e nos lançamos nessa aventura que é passar junto deles por todos os caminhos em curva de uma prática tão rica tão viva Nas palavras de uma terapeuta trabalhar nessa clínica é estar conectado com a criança e com o adolescente que um dia fomos revivendo a magia de descobrir o mundo e a si mesmo junto com nosso paciente Através deles mantemos a flexibilidade para estarmos abertos ao novo ao imprevisto ao inusitado e às surpresas que cada sessão pode trazer conservando a capacidade de nos surpreendermos com tudo isso já que lidamos com pessoas em pleno potencial de desenvolvimento As orientações aqui apresentadas são um retrato das percepções de quase 50 terapeutas que a partir de relatos individuais sobre sua prática integraram um só texto o que de certa forma espelha também como se dá a formação de um psicoterapeuta de crianças e adolescentes passa mos por inúmeras experiências aprendemos lemos escutamos escre vemos Um dia toda essa equipagem começa a adquirir uma forma in tegrada e a fazer todo sentido dentro de nós Tornamonos psicoterapeu tas de crianças e adolescentes aos poucos e talvez nunca terminemos a nossa formação que é interna acima de tudo de modo que possivel mente sejamos para sempre um viraser Encerro esse percurso com o testemunho de uma terapeuta que dá voz às impressões de muitos daqueles que a essa atividade se entregam acredito que a experiência de psicoterapeuta nos equipa com excelência para trabalharmos melhor com adultos também A oportunidade ímpar de acompanharmos um paciente em terapia em um momento privile giado de formação e estruturação da personalidade é um diferencial Ao mesmo tempo às vezes é extremamente cansativo pois precisamos estar atentos às mais diversas formas de linguagem compreendêlas tradu zilas e tornálas inteligíveis aos pequenos Muitas vezes me pergunto até quando vou atender crianças Parece que quanto mais me questiono mais aumenta o número de encaminhamentos de crianças e mais eu vejo os pacientes melhorando tendo alta Acho que é uma paixão 54 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols REFERÊNCIAS BICK E Notas sobre a observação de bebê no treinamento psicanalítico Int J of psychoanalisis v45 1964 BICK E A experiência de pele em relações de objeto arcaicas In Int J of psychoanalisis v 49 p 484486 1964 FREUD S De la historia de una neurosis infantile In Obras completas Buenos Aires Amorrortu Editores v17 p1112 1986 FREUD S Três ensayos de teoria sexual In Obras completas Buenos Aires Amorrortu Editores v 7 p 109224 1986 FREUD A Infância normal e patológica Rio de Janeiro Guanabara Koogan 1971 FREUD A O tratamento psicanalítico de crianças Rio de Janeiro Imago 1971 KLEIN M Psicanálise da criança São Paulo Mestre Jou 1981 KLEIN M Contribuições à psicanálise São Paulo Mestre Jou 1981 KLEIN M Inveja e gratidão e outros trabalhos Rio de Janeiro Imago 1991 MALHER M O processo separação individuação Porto Alegre Artmed 1982 MALHER M As psicoses infantis e outros estudos Porto Alegre Artmed 1983 WINNICOTT D O brincar e a realidade Rio de Janeiro Imago 1975 WINNICOTT D Textos selecionados da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro Francisco Alves 1978 Resolução do Conselho Federal de Psicologia no 142000 de 20122000 Reso lução do Título de Especialista em Psicologia Resolução do Conselho Federal de Psicologia no 0021987 em vigor desde 27 082005 Código de Ética dos Psicólogos Desenvolvimento emocional normal da criança e do adolescente Elisa Kern de Castro Daniela Centenaro Levandowski 3 INTRODUÇÃO Tão importante quanto conhecer e diagnosticar os possíveis trans tornos emocionais de crianças e adolescentes é conhecer amplamente o seu desenvolvimento emocional normal Em função do seu foco de traba lho no caso o tratamento de crianças e adolescentes com algum tipo de sofrimento os psicoterapeutas frequentemente podem ter uma visão mais psicopatológica do desenvolvimento em vez de uma visão de nor malidade Contudo é importante identificar a capacidade de adaptação desses indivíduos a dificuldades e situações adversas antes de considerar um possível transtorno psicopatológico Além disso os psicoterapeutas ao considerarem o desenvolvi mento da criança e do adolescente tenderão a observálos e compreen dêlos a partir de sua perspectiva teórica de trabalho Porém na prática integrar as diferentes teorias do desenvolvimento humano não apenas é útil como recomendável pois nenhuma teoria é capaz de dar conta de todos os aspectos do desenvolvimento infantil e adolescente Concomi tantemente em virtude das pesquisas sistemáticas sobre essas fases de desenvolvimento e suas descobertas tornase necessário rever concei tos e atitudes frente a esse público Assim o presente capítulo visa apresentar brevemente alguns aspectos centrais do desenvolvimento da criança e do adolescente integrando autores clássicos com pesquisas recentes sobre o tema 56 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL NORMAL DA CRIANÇA Diversos autores em especial da teoria psicanalítica e da teoria do apego dedicaramse a estudar os primeiros anos de vida da criança como parte fundamental de seu desenvolvimento Isso porque nessa etapa se formam as primeiras relações que servem de base para o estabeleci mento das demais Bowlby 1989 Freud 1968 Klein 1991 Stern 1997 Winnicott 1993 Historicamente a ideia de desenvolvimento emocional na infância tem suas origens em Freud 1968 que se preocupou especialmente com o desenvolvimento psicossexual infantil Para Freud a formação da per sonalidade que aconteceria nos primeiros anos de vida ocorreria a partir dos impulsos biológicos inatos da criança e do conflito com as exigências da sociedade A gratificação excessiva ou reduzida recebida pela criança poderia fazer com que seu desenvolvimento ficasse fixado em alguma das fases do desenvolvimento O ponto central de sua teoria está na fase fálica que se estende entre 3 e 5 anos aproximadamente quando ocorre a conflitiva edípica em que a perda do objeto e a angústia de castração tornamse o ponto chave para o desenvolvimento da criança uma vez que disso decorre a formação do superego regras e valores morais e a aqui sição da identidade sexual Ainda durante algum tempo o desenvolvimento emocional precoce e a capacidade de se relacionar que acontecem nos primeiros meses de vida da criança foram pouco explorados pela teoria psicanalítica Para Mahler 19631982 nos primeiros meses de vida a criança está imersa nela mes ma não distingue a mãe como um ser separado e portanto não se preo cupa com a interação entre ambos Isso aconteceria somente mais tarde ao final do primeiro ano de vida correspondendo ao rompimento gradual da fase simbiótica e ao início do processo de separação e individuação con siderado de suma importância para a formação das primeiras relações ob jetais e do senso de identidade Spitz 1970 de maneira similar acre ditava que só quando a criança se tornava apta a reconhecer o rosto de sua mãe é que se anunciavam as bases formadoras da relação de objeto Por outro lado Klein 1991 apesar de haver enfatizado em sua obra o mundo de fantasia da criança sugeriu que desde o início da vida o bebê já é capaz de se relacionar com sua mãe apesar de seu ego ainda estar em um estado de nãointegração e utilizar constantemente de pro jeções e introjeções para se defender da ansiedade decorrente da divisão do objeto entre bom e mau posição esquizoparanoide Com o início da Crianças e adolescentes em psicoterapia 57 posição depressiva em que a criança se torna capaz de reconhecer que o mesmo objeto pode ser bom e mau integração do objeto objeto total surgem as tendências reparatórias que indicam um passo importante no desenvolvimento emocional infantil normal Winnicott 1993 por sua vez foi um dos primeiros psicanalistas a dar importância ao ambiente como condição necessária para o desenvol vimento da criança Para ele a presença de uma mãe suficientemente boa é a base da saúde mental da criança Com isso Winnicott se afasta da teoria freudiana no que se refere à teoria pulsional e à ideia de conflito edípico como sendo o propulsor do desenvolvimento psíquico Nesse contexto o uso do objeto transicional serve como uma área intermediária de experiência entre mãecriança e criança sozinha confortandoa em diferentes momentos de sua vida Winnicott 1978 Inicialmente como uma variante da teoria das relações objetais a teoria do apego surgiu fortemente influenciada também pela etologia e teoria dos sistemas Bowlby 1989 O conceito principal da teoria do apego é o de sistema comportamental que enfatiza a função biológica dos laços emocionais íntimos entre as pessoas e a influência dos pais para o desenvolvimento da criança A base segura é um importante conceito dessa teoria que se refere a uma disponibilidade e prontidão dos cuida dores primários para responder quando solicitados além de encorajar e prestar assistência se necessário Isso gerará na criança a capacidade de exploração do mundo e a tranquilidade ao saber que no retorno de uma separação será bemvinda confortada e nutrida física e emocionalmente pelos mesmos Bowlby 1989 Para Bowlby 1990 a ideia psicanalítica de que a manutenção dos vínculos se baseava apenas na necessidade de satisfazer impulsos da criança não se mantém Segundo esse autor e vários outros que se seguiram apoiados em resultados de pesquisas Ainsworth et al 1978 Carlson Sampson e Sroufe 2003 o bebê assim como outros animais tem uma capacidade inata para estabelecer contato com outro ser humano que vai dar origem ao apego Stern 1992 ao tentar aproximar a psicologia do desenvolvimento e a psicanálise pressupõe que o bebê muito antes do desenvolvimento da autoconsciência e da linguagem já possui algum tipo de senso do eu no sentido de uma consciência simples e da experiência direta As interações dos pais e do bebê em conjunto com os sonhos expectativas medos e lembranças da própria infância por parte dos pais vão formando o mun do representacional dos pais e do bebê Esse mundo representacional é a base da experiência subjetiva de estar com outra pessoa e se transforma 58 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols em comportamentos manifestos através dos quais o bebê consegue per ceber a vida mental dos pais Como é possível observar teóricos psicanalíticos e da teoria do ape go estão de acordo ao postular que as vivências entre mãe e bebê são cruciais para o desenvolvimento da criança e o estabelecimento de suas futuras relações de objeto É fundamental para o desenvolvimento do bebê e da criança pequena a capacidade da mãecuidador de entendêla e se comunicar com ele A criança precisa que a mãe a entenda e transmita a ela o que está acontecendo Essa capacidade de interação e de comuni cação mãebebê tem sido descrita de diferentes maneiras por vários au tores o apego Bowlby 1989 a mãe suficientemente boa Winnicott 1983 a continência materna Bion 1991 São essas interações que per mitem que a criança aprenda a se diferenciar da mãecuidador e a ter noção do seu próprio self A importância efetiva do pai como uma alternativa à relação mãe bebê e não como um mero facilitador dessa interação só começou a aparecer de forma efetiva na literatura a partir da década de 1980 A partir de então o pai começa a ser visto como uma importante figura que ajudará a criança ao mostrar o que o mundo oferece a ela a dar limites e a desenvolver sua socialização Colarusso 1992 Levandowski e Piccinini 2006 Existem predisposições universais que são compartilhadas por todas as crianças em diferentes lugares e culturas com relação ao seu desen volvimento como por exemplo a época aproximada em que a criança aprende a andar falar etc Por outro lado existem diferenças que são características particulares de uma ou de um grupo de crianças Nas últi mas décadas tem ocorrido um aumento expressivo de evidências de que os bebês estão biologicamente preparados para mudanças sociais cogni tivas e perceptuais e essas respostas preparadas têm um papel funda mental de facilitar a adaptação da criança ao ambiente Parke 2004 Há o reconhecimento crescente do papel das diferenças individuais em uma ampla variedade de características comportamentais que dão formas a estratégias de socialização dos pais Talvez o fator mais pesquisado nesse contexto tenha sido a influência do temperamento do bebêcriança no comportamento dos pais É consenso entre os pesquisadores que crianças com temperamento considerado difícil geram nos seus cuidadores situa ções de estresse com mais frequência e que por sua vez acabam utili zando mais estratégias coercitivas ao lidar com a criança em comparação a pais de crianças com temperamento considerado fácil Bosa e Piccinini Crianças e adolescentes em psicoterapia 59 1994 Ito e Guzzo 2002 Parke 2004 Essas situações consideradas con flitivas acabam interferindo nas relações pais e filhos O desenvolvimento emocional normal da criança também pressupõe certo grau de desenvolvimento cognitivo aspectos que estão relaciona dos de forma dinâmica e trabalham juntos para processar informações e executar ações Cole Martin e Dennis 2004 Ramires 2003 Por exem plo quando um bebê atinge uma nova habilidade cognitiva seus laços emocionais também se modificam já que ele assume um papel cada dia mais ativo e distinto nas suas interações Flavell et al 1999 Ramires 2003 Existem processos complexos pelos quais emoção cognição com portamento e resultados no desenvolvimento se relacionam e esses pro cessos precisam ser melhor conceitualizados e estudados Cole Martin e Dennis 2004 A partir dos 2 anos as crianças começam a se comportar de forma que sistematicamente exercitam e testam os demais Essa etapa é marca da pela crescente independência e assertividade das crianças Horne 2000 A fase anal descrita pela teoria freudiana Freud 1968 se carac teriza pelo sentido de ter controle sobre si mesmo e habilidade e alegria em dizer não Como sempre o desenvolvimento psicológico ocorre paralelamente ao desenvolvimento físico para que a criança tenha um controle eficaz dos esfíncteres sem pressão e sofrimento psíquico é ne cessário certo grau de desenvolvimento neurológico que acontece a par tir dos 24 meses em média O treinamento precoce pode ser prejudicial suscitando na criança reações emocionais negativas que geralmente es tão relacionadas à ansiedade dos pais em treinálas Nessa fase também as crianças começam a explorar o ambiente sem suas mães mas retor nando para a base segura para se certificar de que está tudo bem e sob controle Bowlby 1989 A linguagem e a capacidade para simbolizar estão em rápido e contínuo desenvolvimento Além disso é considerado normativo que os conflitos entre mães e crianças aumentem nessa fase Próximo dos 2 anos quando afastadas de suas mães as crianças expressam mais sentimentos de preocupação do que medo ou raiva e suas expressões faciais modulam também as res postas de suas mães Buss e Kiel 2004 Explicações claras e extensas das mães em episódios de conflito justificando tentando resolver e mitigan doo podem ajudar a criança a ter um entendimento emocional e moral sobre o episódio Laible e Thompson 2002 Tal discurso materno pro move o desenvolvimento emocional e é capaz de predizer um maior de senvolvimento da consciência sobre o ocorrido 60 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A noção de gênero na criança que começa a ficar evidente a partir da segunda infância acontece para a teoria psicanalítica a partir de processos de identificação ou seja a adoção de características e con dutas do genitor do mesmo sexo Papalia Olds e Feldman 2006 es pecialmente quando da ocorrência do conflito edípico Contudo atual mente têmse descoberto evidências que apontam para influências bio lógicas na formação da identidade de sexo da criança que não excluem os processos psicológicos de identificação de sexo mas ao contrário apontam que esse processo é multifatorial e muito mais complexo do que se pensava há décadas Com relação à capacidade de simbolização da criança a abordagem psicanalítica a relaciona com a percepção da criança de ser separada da mãe e a necessidade de ter uma ponte nesse lugar Horne 2000 O pen samento só existe a partir da capacidade de simbolizar que é caracte rística da espécie humana Silva Filho 2003 Nesse sentido o objeto transicional Winnicott 1978 teria a função de simbolizar a falta ma terna ou seja de quando ela não é capaz de atender a todas as neces sidades da criança Na medida em que a criança préescolar cresce au menta sua habilidade para brincar com materiais com significado genui namente simbólicos e cresce sua competência em brincar com outras pessoas Experiências precoces de um apego seguro têm um papel funda mental na promoção da segurança interna da criança o que a deixa apta a explorar o ambiente e a saber como interagir com outros de maneira segura e curiosa Os objetivos do brincar para a criança são vários lidar com a an siedade e o conflito explorar o espaço entre fantasia e realidade experi mentação social e cognitiva imaginação da vida futura Todas as crianças nessa fase em algum momento engajarseão em brincar de assumir papéis e tarefas que elas observam em seus pais e outras pessoas Essa capacidade da criança de brincar e criar gera mais tarde na adolescência e na vida adulta a capacidade de pensar de ser autônoma de tolerar frustrações etc fazendo com que não haja descargas na conduta ou no corpo através das somatizações Horne 2000 Enquanto na primeira infância o brincar é essencialmente individual a partir da segunda infân cia começa a socialização do brinquedo e a interação efetiva com outras crianças que são principalmente do mesmo sexo Papalia Ods e Feldman 2006 Assim o brincar da criança é sinal de saúde É na segunda infância também que ocorreria o complexo de Édipo já comentado anteriormente Embora teóricos psicanalíticos tenham di Crianças e adolescentes em psicoterapia 61 vergências com relação à idade de ocorrência desse acontecimento eles estão de acordo sobre a importância dele para o desenvolvimento infantil A latência ou fase escolar é caracterizada pela aquisição do autocon trole de papéis de regras e pela internalização dos mecanismos de com petência e controle Quando as crianças entram na escola outras identi ficações se tornam mais acessíveis a elas auxiliando a separação dos pais É frequente ver em crianças na fase da latência uma figura externa de autoridade se torne internalizada com um superego razoavelmente rígi do A identificação com heróis e ídolos também é característica dessa fase Uma percepção rigorosa e clara sobre o certo e o errado vai se for mando As crianças nessa fase costumam brincar com outras do mesmo sexo Clubes grupos e jogos com regras claras são importantes novas regras serão criadas Além disso elas vão criando teorias sobre o sexo e exploram isso com seus amigos longe da vista dos adultos A curiosidade sobre a sexualidade dos outros não dos membros da família também surge Horne 2000 Recentemente a abordagem do desenvolvimento normal e das capa cidades que podem ser desenvolvidas e potencializadas nas crianças vem ganhando espaço nas pesquisas A psicologia positiva ver Seligman e Csikszentmihalyi 2001 deu importantes contribuições nesse sentido desta cando aspectos facilitadores da saúde e do desenvolvimento humano Assim têm sido feitos por exemplo estudos sobre o estabelecimento de relações de amizade como fatores protetores para a aprendizagem e para a saúde mental da criança Bukowski 2001 Lisboa e Koller 2004 estratégias de enfrenta mento utilizadas por crianças para lidar com crises com adultos DellAglio 2002 e resiliência em diferentes situações adversas Castro e MorenoJimé nez 2007 Koller e Lisboa 2007 entre outros O DESENVOLVIMENTO EMOCIONAL NORMAL DO ADOLESCENTE A adolescência é um período do desenvolvimento humano que tem despertado grande interesse de profissionais de diversas áreas especial mente nos dias atuais Moura 2005 Embora existam referências à ado lescência desde a Idade Antiga com os gregos o interesse científico pelo estudo dessa fase iniciou com Granville Stanley Hall que definiu essa etapa como um período de grande tormenta e tensão em função de os jovens terem que se adaptar ao corpo em transformação e às iminentes 62 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols demandas da idade adulta Mussen et al 1995 Com o passar dos anos alguns autores continuam compartilhando essa visão da adolescência co mo um período conturbado desafiador e difícil da vida Espíndula e San tos 2004 destacando a dificuldade de ser adolescente pelas transfor mações das instituições a crise dos valores até então vigentes as ameaças que o mundo externo impõe ao jovem e sua família desemprego violên cia destruição ambiental etc as novas formas e características dos rela cionamentos e associações entre as pessoas e o influente papel da mídia e da virtualidade dentre outros aspectos Ungar 2004 Levy 2006 2007 Contudo nem sempre os adolescentes percebem essa fase e se percebem de forma negativa Assis et al 2003 TraversoYépez e Pinheiro 2005 Segundo a Organização Mundial da Saúde OMS a adolescência se estende dos 10 aos 19 anos enquanto para o Estatuto da Criança e do Adolescente dos 12 aos 18 anos Todavia atualmente não é tarefa sim ples precisar quando inicia e termina essa fase da vida Salles 2005 Villela e Doreto 2006 Embora o início da fase esteja vinculado às pri meiras manifestações da puberdade o final se encontra bem menos de marcado caracterizandose pela dissolução da problemática adolescente com o assentamento das bases afetivas e profissionais e a definição dos traços físicos e de caráter Jeammet e Corcos 20012005 De fato o que se observa hoje é mesmo um prolongamento da ado lescência Moura 2005 Salles 2005 os adolescentes têm acesso às atividades sexuais e ao conhecimento mas no plano material e afetivo permanecem dependentes dos próprios pais Jeammet e Corcos 2001 2005 Conforme Levy 2007 o aumento das exigências e das ferramen tas necessárias à inserção no mundo adulto especialmente na esfera profissional bem como a fragilidade dos vínculos afetivos que promove um retardo na constituição de uma nova família são as principais causas para esse prolongamento da fase Já a antecipação progressiva da adoles cência decorre da aceleração e estimulação ao desenvolvimento caracte rística da pósmodernidade muitas vezes gerando uma pseudomaturi dade com a exibição de comportamentos adolescentomorfos pelas crian ças no dizer de Jeammet e Corcos 2005 As mudanças biológicas da adolescência a puberdade se estendem normalmente dos 10 aos 14 anos Marcelli e Braconnier 2007 iniciando antes para as meninas em comparação aos meninos Tais mudanças físicas incluem o surto de crescimento rápido aumento de altura e peso o desenvolvimento dos pelos pubianos mudanças na voz e desenvol vimento muscular Os caracteres sexuais primários órgãos reprodutivos Crianças e adolescentes em psicoterapia 63 se desenvolvem e amadurecem e os secundários aparecem A maturação dos órgãos reprodutivos é sinalizada pela primeira menstruação nas meninas e pela produção de esperma nos meninos Todas essas mudanças físicas possuem uma sequência mais definida do que o seu momento de ocorrência Na verdade tem sido percebida uma antecipação da puberdade e do alcance da estatura adulta e matu ridade sexual ao longo do século Papalia Olds e Feldman 2006 Cabe destacar que diversos estudos brasileiros realizados com jovens de dife rentes contextos têm encontrado 12 anos como a idade média de ocor rência da menarca Castilho Saito e Barros Filho 2005 Kac Velásquez Meléndez e Valente 2003 Silva Gigante e Minten 2008 Vitalle Tomioka Juliano e Amâncio 2003 No entanto ainda não está claro qual é o verdadeiro impacto da maturação sexual precoce ou tardia sobre o desenvolvimento psicológico Papalia Olds e Feldman 2006 Além das mudanças físicas também merecem destaque as mudanças cognitivas que se processam nessa fase O surgimento de habilidades mais aprimoradas traz ao adolescente aptidão para pensar sobre situações hipotéticas e sobre conceitos abstratos Ramires 2003 o que caracteriza o estágio das operações formais cf Piaget 1976 O adolescente pode fazer relações o que lhe permite formular hipóteses testálas e reformulálas frente às evidências da realidade Além disso pode gerenciar consciente mente o próprio funcionamento mental pois consegue pensar sobre o seu próprio raciocínio Lazarus e Folkman 1983 Santana Roazzi e Dias 2006 Steinberg 2005 No entanto como a experiência desempenha um papel importante nesse avanço cognitivo nem todos atingem esse estágio de desenvolvimento Papalia Olds e Feldman 2006 Já quanto ao desenvolvimento social em decorrência da desvincula ção emocional dos pais ocorre um alargamento do mundo social com dire cionamento para o grupo de iguaispares Sprinthall e Collins 2003 Como consequência dos avanços desenvolvimentais socioemocionais e cognitivos os amigos passam a se compreender melhor formando relações mais recíprocas e íntimas Desse modo as amizades ganham em intensi dade e estabilidade passando a ser um contexto de socialização muito influente para o adolescente Cordeiro 2006 Oliva 20022004 Pereira e Garcia 2007 Tarrant 2002 Ungar 2004 baseada nas ideias de Meltzer destaca a importância do grupo de pares no desenvolvimento do adolescente não apenas no que tange à socialização como também ao seu papel como continente de ansiedades No desenvolvimento normal inicialmente se observa o 64 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols envolvimento com grupos homossexuais cujas funções principais são conter as confusões e ansiedades paranoides confrontar com grupos de pessoas de sexo oposto e rivalizar com outros grupos de pessoas do mes mo sexo Na sequência ocorre a afiliação de membros do sexo oposto ao grupo marcando a passagem para o grupo heterossexual de caracterís ticas mais depressivas Nesse grupo poderão experimentar as relações humanas como acontecem no mundo real sem a presença de adultos No que tange ao relacionamento com os pais esse sofre alterações que nem sempre são negativas Oliva 2004 Contudo na fase inicial logo após a puberdade as interações conflitivas tendem a ser mais fre quentes McGue Elkins Walden e Lacono 2005 declinando posterior mente Tais conflitos costumam se referir a questões cotidianas como horários roupas e estudos como indicou a pesquisa conduzida por SchoenFerreira AznarFarias e Silvares 2003 no contexto brasileiro Entretanto alguns autores Jeammet e Corcos 2005 Levy 2007 têm observado uma ausência de conflitos entre pais e filhos na família atual talvez pela falta de demarcação de limites e de diferenças geracionais Os filhos têm servido para o reasseguramento narcísico dos próprios pais o que dificulta o seu desenvolvimento emocional adequado pois impede o adolescente de manejar sua agressividade e de conquistar autonomia para se diferenciar do mundo adulto De qualquer modo o relacionamento com os pais continua sendo uma importante fonte de segurança e referência ao adolescente Papalia Olds e Feldman 2006 Pratta e Santos 2007a 2007b Sartor e Youniss 2002 Steinberg 2001 especialmente o relacionamento com a mãe Reichert e Wagner 2007 Wagner Falcke Silveira e Mosmann 2002 Assim é possí vel compreender a aguda perda de identidade familiar que o adolescente enfrenta ao descobrir que os pais não sabem tudo Ungar 2004 O relacionamento com irmãos sofre influências da qualidade da relação estabelecida com os pais tendo um papel importante para a au toestima e o bemestar do adolescente Noller 2005 Oliva e Arranz 2005 Em alguns casos a qualidade dessa relação pode contribuir para amenizar os efeitos danosos de condições familiares e sociais adversas East e Khoo 2005 Em geral os adolescentes se envolvem em ativida des conjuntas e passam mais tempo com seus irmãos mas também apre sentam mais conflito e rivalidade frente aos mesmos comparados a adul tos jovens Scharf Shulman e AvigadSpitz 2005 No que diz respeito especificamente ao desenvolvimento emocional diversos teóricos psicanalíticos se dedicaram ao tema Em sua clássica Crianças e adolescentes em psicoterapia 65 obra Freud 1905 abordou as transformações da puberdade indicando que a sexualidade humana se organiza em dois tempos é bifásica e é nesse momento que se conclui A pulsão sexual que até então era au toerótica passa a buscar um objeto sexual e se coloca a serviço da função reprodutora Todas as pulsões parciais cooperam para o alcance dessa nova meta sexual quando então as zonas erógenas se subordinam ao primado da zona genital Tal meta designa funções muito diferentes para cada sexo ocasionando uma separação marcante entre feminino e mas culino Embora no menino a puberdade traga um grande empuxo de li bido para a menina se caracteriza pela repressão do clitóris como zona primordial que deve ceder sua excitabilidade para a vagina A normali dade da vida sexual é garantida pela confluência das duas correntes diri gidas ao objeto e à meta sexual a afetivaterna e a sensual Nesse mo mento o indivíduo precisa lançar mão de todos os recursos disponíveis para destacar a libido dos antigos objetos de amor e buscar novos objetos impelido pelas inibições sexuais erigidas até então sendo mais impor tante a barreira do incesto Freud 1905 Concomitantemente ao desli gamento dessas figuras incestuosas se consuma uma das conquistas psí quicas mais importantes e dolorosas da puberdade o desligamento da autoridade parental que cria a oposição essencial para o progresso da cultura entre a nova e a velha geração Os autores psicanalíticos que se dedicaram ao estudo da adolescên cia posteriormente a Freud seguiram desenvolvendo essas ideias valori zando o papel das transformações da puberdade e suas repercussões psíquicas Por exemplo na década de 1970 Aberastury 1981 ressal tou como as tarefas mais importantes da adolescência a elaboração do luto pelo corpo infantil do luto pelos pais da infância e do luto pela identidade infantil aos quais se soma como decorrência o luto pela perda da bissexualidade Todos esses lutos acontecem simultanea mente impulsionados pelas primeiras transformações corporais O ado lescente deve renunciar ao corpo infantil que representa uma renúncia a todo o seu mundo infantil a fim de assumir tarefas de maior respon sabilidade social e pessoal A esse luto se soma o luto pelos pais da infância com os quais se decepciona em função da percepção de seus defeitos o que gera uma imagem mais realista e menos idealizada dos mesmos facilitando o seu desligamento Já o terceiro luto traz a neces sidade de uma nova definição de si mesmo ou de consolidação da iden tidade anterior ancorada nas mudanças corporais A partir disso o jo vem pode assumir também uma postura heterossexual atingindo a ge 66 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols nitalidade passando a ver o outro como uma pessoa necessária à sua satisfação sexual e pessoal Numa perspectiva contemporânea Levy 2006 também partilha dessa visão de lutos que envolvem a adolescência apoiado nas ideias de Donald Meltzer Para esse autor nessa fase se processaria um reordena mento simbólico que gera ansiedades de aniquilamento e impacta a estrutura narcísica do sujeito O adolescente necessita realizar um desli gamento do sistema de representações montados pelo self até então e criar um novo sistema que dê conta do novo corpo do self dos objetos e do mundo É a estranheza em relação a si mesmo e aos outros gerada pelas modificações físicas da puberdade que dispara esse processo de desconstrução e reconstrução do sistema de representações que por fim leva à emergência de uma nova subjetividade Na tentativa de aplacar as angústias decorrentes desse processo de perda das representações o jovem tanto se recolherá para o mundo interno como transitará psiquica mente entre várias comunidades e objetos para se apropriar de algum self Tais manobras defensivas têm a função de criar um sentimento de estabilidade narcísica a partir do olhar do outro que ajuda na reconstru ção de uma nova imagem própria Por sua vez Urribarri 2003 apresentou uma revisão crítica em torno dos lutos na adolescência apontando uma hipertrofiação do uso desse conceito como centro de formulações teóricoclínicas Justifica seu ponto de vista caracterizando essa fase como um período de conquistas e progressos sendo que o adolescente não perde mas se transforma e ressignifica sua história infantil Para o autor o processo de crescimento físico e emocional é também desejado pelo adolescente Aquilo que ele deixa para trás nem sempre é luto no sentido freudiano ou kleiniano do termo Essa discriminação teórica entre os conceitos de luto perder algo deixar e ressignificar fatos passados traz importantes implicações para a clínica e o manejo técnico com adolescentes Ainda enfatizando o papel das transformações da puberdade no processo adolescente Guignard 1997 aponta o trabalho de remane jamento identificatório e simbólico desse período como consequência da modificação do corpo que provoca um choque na organização anterior mente estabelecida O impacto do acesso à maturidade biológica leva a uma regressão desorganizadora da capacidade de simbolizar por reativar e mobilizar as relações do adolescente com os pais internos e seus pró prios objetos edípicos em toda sua complexidade psicopatológica A perspectiva de adquirir esse privilégio ligado à capacidade adulta genital Crianças e adolescentes em psicoterapia 67 a relação de casal adulto heterossexual e nãoincestuoso constitui uma ameaça para o adolescente biologicamente maduro diante da qual pode haver regressão em direção à sexualidade infantil atuações somatiza ções e adições para atacar tudo o que simbolize a condição humana o pertencimento a uma geração e a um sexo determinado a imagem es pecífica de seu corpo sexuado e a realidade da sua unicidade de humano Embora sem desconsiderar os aspectos físicos Blos 1994 1996 en fatizou os aspectos psíquicos ao teorizar sobre a adolescência postulando a aquisição da autonomia em relação aos pais como tarefa principal dessa fase a partir da definição de uma identidade pessoal Para esse autor embora na adolescência o complexo de Édipo seja retomado com uma nova configuração uma vez que a maturidade fisiológica do jovem propiciaria sua realização existe a necessidade de separação e diferenciação das ima gens internalizadas dos pais ou seja de decatexia das imagens interna lizadas Essa mudança na catexia libidinal faz com que o adolescente se volte para o seu grupo de pares para si mesmo por meio do engran decimento do self eou para novos objetos de amor heterossexual Nesse processo denominado segunda individuação várias instâncias psíquicas são atingidas percebese um amadurecimento do ego e modificações do superego e do ideal de ego Blos 1996 Um foco maior nos aspectos psíquicos caracteriza ainda as ideias de Kancyper 1999 que também considera a individuação tarefa central dessa fase da vida Contudo esse autor ressalta o movimento de res significação identificatório ressignificação retroativa ou a posteriori que o indivíduo deve realizar para se desvencilhar do lugar e do papel que ocupa no sistema narcisista dos progenitores e conquistar sua condição subjetiva de um ser vivo com existência própria Tratase de um trabalho de elaboração e reinscrição da própria história que para acontecer ne cessita de uma adequada agressividade que permita ao adolescente ma tar o infans para ter acesso à desidentificação das identificações que o alienam desde a infância Esse processo pode gerar sentimentos de de samparo pelo abandono da imagem idealizada e arcaica parental o que desestabiliza os sistemas narcisistas intra e intersubjetivos e ativa o luto pelos pais que envelhecem e da parte dos pais pelo bebê que cresce Em casos bemsucedidos tal processo conduz ao desligamento à discrimi nação e ao reconhecimento dos próprios limites e incompletude impul sionando o adolescente em direção à individuação Kancyper 1999 Nessa mesma direção mais recentemente Jeammet e Corcos 2005 salientaram que o adolescente se defronta com exigências internas im 68 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols postas pela puberdade e externas de caráter simbólicocultural que exercem uma pressão no seu aparelho psíquico e induzem a um trabalho de remanejamento e elaboração Enfatizaram a importância das mo dificações corporais para a resolução da questão central da fase qual seja a superação da dependência dos pais e a manutenção da identidade a partir do paradoxo continuar a ser eu mesmo e ser como o outro versus diferenciarse do outro Conforme os autores o desenvolvimento harmo nioso do mundo interno e a força do ego permitem a superação da depen dência aos objetos primários e o sentimento de continuidade Ao contrá rio a fragilidade narcísica perpertua a aproximação enquanto a depen dência desses objetos é vista como uma ameaça à própria identidade Por fim diferenciandose das ideias freudianas ao compreender as imbricações sociais das questões psíquicas em suas clássicas ideias acerca do desenvolvimento humano Erikson 1998 já na década de 1950 con siderou a adolescência um período de moratória social isto é de adia mento do comprometimento definitivo o que possibilita uma relativa liber dade para a experimentação de papéis e contribui para a renovação social Mencionou como conflito psicossocial da adolescência identidade versus confusão de identidade Para o autor somente quando possui um senso ge nuíno de identidade o adolescente pode enxergar claramente onde está o que é e o que representa estabelecendo relações de intimidade posterior mente Tal senso de identidade seria elaborado a partir do ajustamento das várias autoimagens experienciadas durante a infância e das oportunidades de papel social oferecidas para seleção e comprometimento Apesar de as ideias teóricas aqui mencionadas sobre o desenvolvi mento emocional normal do adolescente serem utilizadas como referên cia para o entendimento dessa fase é interessante ressaltar que as pesqui sas realizadas com esse públicoalvo geralmente não as levam em conta Steinberg e Lerner 2004 Por exemplo embora a construção da identi dade seja uma questãochave na adolescência para diferentes autores poucas pesquisas brasileiras foram desenvolvidas recentemente sobre o tema Balbinotti e Tétreau 2006 Coutinho et al 2005 Sarriera Silva Kabbas e López 2001 SchoenFerreira AznarFarias e Silvares 2003 A pequena ênfase na investigação de assuntos relativos à vivência normal da adolescência contraria a justificada importância do conhecimento das características normais da fase para o trabalho do psicólogo na prática clínica e em outras esferas do seu fazer Os focos de interesse dos pesquisadores brasileiros têm sido os qua dros psicopatológicos incluindo transtornos mentais diversos como abu Crianças e adolescentes em psicoterapia 69 so de substâncias transtornos alimentares depressão ansiedade bipola ridade TDAH a violência e a agressividade incluindo abuso sexual e físico negligência homicídios bullying e as temáticas ligadas à sexuali dade gravidez e parentalidade Obviamente que em função de todas as mudanças pelas quais o adolescente passa que exigem a utilização de seus recursos psíquicos bem como de características psíquicas próprias desse período da vida muitas vezes são percebidas manifestações psico patológicas Nesse sentido em decorrência da dificuldade de diferenciação da normalidade e da patologia nesse momento da vida Knobel 1981 pro pôs a já bem conhecida definição da síndrome da adolescência normal que inclui os seguintes sintomas busca de si mesmo e da identidade ten dência grupal necessidade de fantasiar e intelectualizar crises religio sas deslocalização temporal evolução sexual manifesta atitude social reivindicatória contradições sucessivas em todas as manifestações da conduta separação progressiva dos pais e constantes flutuações do hu mor e do estado de ânimo Na avaliação da psicopatologia e da normalidade na adolescência Guignard 1997 sugere considerar além dos parâmetros de organização psicossexual a evolução dos traumatismos sofridos na infância devido ao ambiente social eou familiar ao modo como as patologias transgera cionais que pesaram sobre o indivíduo vão poder se integrar em sua autonomia futura e ao impacto que vai ter a realidade externa no aspecto social econômico profissional eou acadêmico Dessa forma é de suma importância ressaltar que a adolescência não é vivida por todos os indiví duos da mesma maneira apresentando características peculiares confor me o ambiente histórico social econômico e cultural em que o adoles cente estiver inserido Levy 2007 Martins Trindade e Almeida 2003 Ozella e Aguiar 2008 Villela e Doreto 2006 CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir do que foi exposto depreendese a complexidade do estudo do desenvolvimento normal na infância e na adolescência o que reforça a importância de os psicoterapeutas complementarem sua visão clínica com conhecimentos provenientes da psicologia do desenvolvimento A atualização teórica a partir dos estudos que vêm sendo feitos nessa área oferece aos psicólogos clínicos e aos psicoterapeutas inseridos no merca 70 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols do de trabalho uma reflexão sobre a prática e as teorias que a norteiam ampliando a compreensão dos fenômenos psicológicos Acreditase que isso os auxiliará no estabelecimento de diagnósticos mais precisos a res peito das dificuldades de seus pacientes assim como de suas possibili dades e recursos tendo em vista os parâmetros da normalidade REFERÊNCIAS ABERASTURY A O adolescente e a liberdade In ABERASTURY A KNOBEL M Org Adolescência normal 10 ed Porto Alegre Artmed 1981 p 1323 AINSWORTH M D et al Patterns of attachment a psychology study of the strange situation New Jersey Erlbaum 1978 ASSIS S G et al A representação social do ser adolescente Um passo decisivo na promoção da saúde Ciência e Saúde Coletiva v 8 n 3 p 669680 2003 BALBINOTTI M A A TÉTREAU B Níveis de maturidade vocacional de alunos de 14 a 18 anos do Rio Grande do Sul Psicologia em Estudo v 11 n 3 p 551 560 2006 BION W R Aprendendo com a experiência Rio de Janeiro Imago 1991 BLOS P Adolescência uma interpretação psicanalítica São Paulo Martins Fontes 1994 Transição adolescente questões desenvolvimentais Porto Alegre Artmed 1996 BOSA C A PICCININI C A 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processo psicoterápico Anie Stürmer Maria da Graça Kern Castro 4 Escrever sobre os conceitos que são centrais no processo e na relação terapêutica na psicoterapia com crianças e adolescentes não é tarefa fácil Peculiaridades envolvem essas faixas etárias e diferenciam os tratamen tos dos de adultos Três fatores são específicos de tratamentos com crian ças e adolescentes Em primeiro lugar esses pacientes por serem legal mente menores e dependentes de suas famílias1 sofrem de forma mais aguda a participação e a interferência de terceiros pais ou responsáveis no vínculo psicoterápico O campo psicoterápico bipessoal se torna mais complexo pela ressonância das transferências paternas e maternas que se entrecruzam Isso exige maior flexibilidade do psicoterapeuta e muita atenção às questões de neutralidade e de sigilo A inclusão dos pais ou responsáveis em uma psicoterapia busca oferecer o suporte necessário à manutenção do tratamento assim como compreender ansiedades e mo dos de funcionamento de cada família Um segundo fator diferencial se prende à solicitação do tratamento No caso de crianças geralmente a busca do atendimento é realizada pelos adultos responsáveis Muitas vezes vêm mobilizados por indicações ou sugestão da escola ou de médicos Raramente as crianças pedem ajuda direta embora encontrem formas de mobilizar ansiedades e a atenção im pulsionando a família a buscar auxílio psicoterápico Atualmente cons tatamos que inúmeras crianças solicitam explicitamente aos pais a busca de psicoterapia Pensamos que essa nova postura devese ao fato de que esse tipo de tratamento passou a ser mais difundido nos meios de comunicação por meio de filmes e novelas Além disso estar em psicoterapia é algo 78 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols muito valorizado por alguns pacientes que comentam sobre essa experiên cia como algo positivo com seus amigos e colegas Assim sendo fazer psicoterapia é algo muito mais próximo à realidade das crianças atual mente do que há décadas Os adolescentes em sofrimento psíquico costumam buscar o próprio tratamento por uma iniciativa pessoal A partir da década de 1990 os jovens têm vindo espontaneamente para psicoterapia em contraste com décadas anteriores em que eram na maioria dos casos encaminhados por pais escola ou amigos Castro 2000 Os adolescentes em tratamento psicoterápico referiram ter procurado psicoterapia por motivação pessoal mas também apontaram importantes fatores como incentivo e apoio de namorado amigos e da família para a busca Os motivos da procura de psicoterapia foram variados e personalizados para cada entrevistado mas 53 dos entrevistados referiram temas ligados à depressão à tristeza eou a perdas reais A fala dos adolescentes mostrou que o fator desencadeante da busca de tratamento foram processos de perda e luto atuais que podem ter reavivado perdas anteriores Pinto et al 2001 Há ainda um terceiro fator a ser considerado que está relacionado às formas comunicativas do material das sessões2 A criança e o adolescente ainda não usam a palavra no mesmo nível que o adulto utilizando outras formas comunicativas além da expressão verbal Crianças predominan temente usam o brincar como forma de manifestar seus estados mentais Por vezes a compreensão do material lúdico se torna muito difícil tanto pelo conteúdo remetendo a níveis mais profundos das fantasias incons cientes quanto pelos modos de expressão no setting O jogo e o brincar denunciando algo desconhecido que é da ordem do inconsciente podem ser considerados narrativas com ou sem palavras que aos poucos vão organizando a experiência infantil Os adolescentes por se encontrarem às voltas com transformações no corpo e maior pressão pulsional estão envolvidos com redefinição da ima gem corporal as ressignificações identificatórias e oscilações entre atividades masturbatórias e início da vida sexual genital Por essas peculiaridades pró prias da etapa costumam além da palavra usar formas comunicativas pré e paraverbais nas sessões que podem incluir expressões lúdicas gestos movimentação e também comunicação pelo vestuário por tatuagens e outras expressões corporais Uma forma primitiva de comunicar aspectos nãorepresentados pode ser as tão comuns atuações Assim ao trabalhar com crianças e adolescentes o psicoterapeuta tem que estar muito atento ao im previsto ao fator surpresa Caron 1996 que surge nas sessões Crianças e adolescentes em psicoterapia 79 Como psicoterapeutas de crianças e de adolescentes somos fre quentemente surpreendidos por situações inusitadas que nos exigem soluções adequadas para cada momento que se apresenta Para tomar a melhor atitude ser sensato valendose da técnica de que dispomos é necessário além do gosto por trabalhar com essas faixas etárias construir uma trajetória profissional que implica o já conhecido tripé da formação um tratamento pessoal que durará anos antes e depois da formação bem como a supervisão e uma base teóricoclínica de qualidade que nos tornará instrumentalizados com esse tipo de paciente No transcurso de seu ofício cada psicoterapeuta vai aos poucos construindo um estilo próprio de trabalhar que com o passar do tempo se torna uma maneira de ser personalizada e única Através do tratamento pessoal o terapeuta entra em contato com o seu jeito de ser de funcionar possibilitando que reconheça suas reações Um melhor conhecimento de como seu mundo interno funciona contribuirá para as percepções e o entendimento dos relacionamentos e do mundo interno de seus pacientes Lanyado e Horne 2000 As regras técnicas são sempre as mesmas que regem o processo mas o terapeuta desenvolverá um estilo próprio preservando as necessárias carac terísticas da relação terapêutica que protegem o setting com um contrato e uma clara aplicação destas regras que o norteiam Etchegoyen 1987 Considerando as complexidades expostas acima no presente capí tulo abordaremos os conceitoschave que são centrais no processo tera pêutico com crianças e adolescentes a saber relação terapêutica e o de senvolvimento do vínculo os fenômenos de transferência contratrans ferência e aspectos resistenciais fenômenos que ocorrem entrelaçados fazendo parte do campo psicoterápico As ilustrações e os casos clínicos usados neste texto mostram como trabalhamos e esperamos passar aos leitores algumas das ricas experiên cias vividas nos settings mesmo tendo consciência de que algumas delas são inefáveis e extremamente difíceis de serem colocadas em palavras O campo psicoterápico Oriundo da Física o conceito de campo foi trazido para a psico logia pela teoria da Gestalt mas foi Kurt Lewin 1965 quem aprofundou uma teoria do campo total na qual propôs que o comportamento humano é derivado da totalidade de fatos coexistentes e que esses têm o caráter de um campo dinâmico no qual cada parte depende de uma interrelação 80 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols com as demais partes que configuram o todo A totalidade dos fenômenos é mais complexa e ampla do que a soma das partes Na Psicanálise o conceito de campo foi trabalhado pelo casal Ba ranger 1968 O campo psicanalítico se refere a situações em que os fatos psíquicos são compreendidos através de seus significados no contex to de relações intersubjetivas no qual o par terapêutico não pode ser visto como duas pessoas isoladas mas como uma estrutura produto dos integrantes da relação que estão envolvidos num processo dinâmico e criativo cujo funcionamento resulta da interação e dos aspectos incons cientes tanto do paciente quanto do terapeuta Nesse funcionamento emocional o setting age como uma moldura desse campo que contém o encontro de duas subjetividades Assim sendo a situação terapêutica pode ser vista como um conjunto da constituição do campo emocional de ambos com as fantasias inconscientes básicas da dupla intermediada pelo interjogo das identificações projetivas e introjetivas do par Os problemas e vantagens da compreensão da situação terapêutica devem ser colocados a partir da concepção de um campo transferencialcon tratransferencial e que o entendimento dos fatos psíquicos está relacionado ao seu sentido no contexto das relações intersubjetivas Ferro 1995 Quando se trata de psicoterapias de crianças e adolescentes o campo psicodinâmico se torna mais complexo pela presença do psicoterapeuta do paciente e dos seus pais tendo que ser levadas em conta as fantasias in conscientes dos pais Estas configuram junto com o paciente criança ou adolescente e o psicoterapeuta uma estrutura singular que poderá exer cer uma presença contínua no campo psicoterápico promovendo efeitos no paciente e no terapeuta No transcurso do processo terapêutico o psico terapeuta ressignificará sua própria criança e adolescência e seus pais em sua história pessoal Ao mesmo tempo na relação vincular do par tera pêutico o filho no seu tratamento também dá novos sentidos a situações edípicas e narcisistas não resolvidas da história individual de cada um dos seus pais e do par conjugal exercendo contínuas reestruturações que por sua vez vão reincidir na psicoterapia do filho Kancyper 2002 O caso que segue nos mostra essa situação Suzana e sua família 18 horas É o horário da sessão de Suzana Abro a porta e quem me espera é Márcia sua mãe Ela adentra a sala dizendo Hoje eu é que vim Por instantes fico atônita Deveria eu atendêla O correto não Crianças e adolescentes em psicoterapia 81 seria preservar o setting e o horário de Suzana já que as duas mantêm uma relação simbiótica e marcar outro horário para Márcia Todos esses pensamentos circulam em minha mente enquanto Márcia se ins tala na poltrona Entendo então que preciso enxergar a Márcia criança que está insegura com o afastamento da filha que aos pou cos se separa dela à medida que o tratamento progride e observo uma necessidade de reforçar a aliança terapêutica Márcia está desconfiada pois a filha tem apresentado resistências em comparecer às sessões re clama que não quer vir e isso a tem deixado muito insegura a meu respeito e em relação ao tratamento O pai tem estado distante e não vinculado ao tratamento cuja responsabilidade deixou para a esposa Neste momento trabalhamos seus anseios e dúvidas e ao mesmo tem po nos demos conta Onde está o pai Na relação das duas faltou a entrada de Paulo o pai esse não se colocou como um terceiro para estabelecer a separação entre mãe e filha No processo psicoterápico a terapeuta significa esse terceiro que irá se colocar entre a paciente e sua mãe mas será suficiente Aí entram as nuances do tratamento de crianças e adolescentes Diferentemente do tratamento de adultos Paulo o pai pode e deve ser chamado para par ticipar mais ativamente da psicoterapia de sua filha Suzana sempre que houver necessidade para o tratamento evoluir Cada um tem uma história que se intercambia com a de Suzana cada um dos pais e o casal têm fantasias sobre o tratamento de sua filha que acabam afetando o campo Dessa maneira o terapeuta atento a essas complexidades vai discrimi nando aspectos dos pais e da filha sem com isso configurar um tra tamento psicoterápico dos pais A psicoterapia com crianças e em alguns casos com adolescentes não pode ser confundida com uma psicoterapia familiar mas em inúmeras ocasiões precisamos compreender e explicitar as ansiedades e o funcio namento do grupo familiar ou crenças que muitas vezes são transgeracio nais e se atravessam na psicoterapia individual com a criança ou jovem Castro e Cimenti 2000 O que se passa no campo psicoterápico se asse melha a um quebracabeça de múltiplos encaixes no qual as mesmas peças agrupadas de uma forma original criam um cenário em que vão se criando novas compreensões A seguir serão abordados alguns fenômenos partes do quebracabeça que constituem e ocorrem no campo psicoterápico 82 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A relação terapêutica A constante relação envolvendo terapeuta e paciente está no cerne de toda psicoterapia psicanalítica A relação terapêutica é um vínculo ge nuíno e com características próprias e discriminadas dos relacionamentos comuns da vida do paciente Configurase numa relação que é singular e intransferível norteada pelos princípios teóricoclínicos que fundamen tam a prática assim como pela continência emocional do terapeuta e por sua habilidade de manter um espaço para simbolizações e o pensar a respeito do que está sendo comunicado pelo paciente no aqui e agora de cada sessão O produto é um particular encontro de mentes e emoções do par terapeuta e paciente Ferro 2000 Alguns aspectos diferenciam a relação terapêutica das demais na vida do paciente fora do consultório Em primeiro lugar não é uma rela ção natural e espontânea ela vai sendo construída no vínculo baseada num contrato com algumas normas a serem seguidas Outro aspecto é que se dá num espaço específico onde ocorrem os encontros o setting O paciente irá sempre no mesmo consultório mesmo horário nos mesmos dias criandose assim uma atmosfera de expectativa quanto ao que o espera em uma sessão O enquadre supõe então um contrato no qual são explicitadas as combinações e a formalização do vínculo terapêutico O setting representa um marco externo para o desenrolar do processo que é estruturante da psicoterapia já que supõe as normas e os papéis do paciente e os do terapeuta Implica também uma aliança de trabalho ressonância empática e sintonia entre as partes Com a criança ou com o adolescente combinase sobre a frequência e duração das sessões faltas férias e também sobre as questões de paga mento dos honorários pelos seus responsáveis legais Enfatizase a ques tão do sigilo e confidencialidade dos dados das sessões Nas psicoterapias envolvendo menores além desse contrato com o paciente é necessário o contrato com os responsáveis geralmente os pais Esses têm que se responsabilizar pela cooperação em manter as condições externas de levar buscar e cumprir horários das sessões e es tarem disponíveis sempre que necessário além de se responsabilizarem financeiramente pelos honorários O enquadre depois de configurado é um dos pilares que auxilia a tornar a relação terapêutica Importante além desse enquadre formal é o setting interno do psicoterapeuta ou seja a disponibilidade de sua mente continente para entrar em contato com outra mente e sua receptividade emocional que serão os instru Crianças e adolescentes em psicoterapia 83 mentos indispensáveis para a criação e manutenção do processo tera pêutico Um terceiro aspecto que discrimina esse vínculo em relação aos demais é que não existe a reciprocidade que encontramos em outras for mas de relacionamento Ela é assimétrica com papéis e funções dife renciadas para paciente e psicoterapeuta Este estará disponível para ou vir e interagir com a criança ou adolescente mas por outro lado a sua vida pessoal e emocional não é dividida com o paciente sendo a priva cidade do terapeuta resguardada Lanyado e Horne 2000 No entanto sabese que sempre evidenciaremos aspectos de nossa per sonalidade que estarão sendo mostrados nas maneiras de trabalhar com o paciente ou seja é impossível manter a ficção uma neutralidade total Crianças e adolescentes tendem a captar os aspectos da personalidade do terapeuta e a partir disso também poderão agir Importante é estarmos atentos ao jogo de identificações projetivas e introjetivas que moldam os fenômenos transferenciaiscontratransferenciais assim como aprimorarmos a escuta e a observação psicanalítica aliados ao desenvolvimento das habili dades técnicas do fazer psicoterápico e do pensamento clínico Aspectos da transferência e aliança terapêutica se mesclam mas não são idênticos A aliança pode ser definida pelos aspectos conscientes e inconscientes da crian ça ou do adolescente que levam à cooperação à aceitação da ajuda à supe ração de resistências e ao enfrentamento de momentos difíceis durante o processo psicoterápico A aliança terapêutica evolui com o tempo e está ba seada na ligação positiva com o psicoterapeuta e na percepção do paciente de que necessita de ajuda Mas esta nem sempre poderá estar presente no início de um tratamento Sandler 1989 Lembremos que Aberastury 1982 nos ensinou que as crianças trazem seus conflitos e sintomas nas primeiras sessões mesmo que de forma nãoverbal fenômenos que nomeou de fanta sias de doença e cura Já a aliança vai derivar de uma razoável relação objetal que é base da transferência positiva mas Klein em 1923 ao tratar Rita descobriu que a interpretação da transferência negativa já no primeiro en contro dissipou ansiedades criando a aliança com a menina Raul defendendo sua psicoterapia Raul 9 anos há dois anos em tratamento passava por período de intensas resistências Elas se manifestavam em sua casa na hora de sair para as sessões quando dizia para sua família que era muito chato o tratamento e ameaçava não ir No entanto nas sessões às quais não 84 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols faltava trazia muitos conteúdos importantes trabalhava bastante e não apresentava as queixas que eram relatadas por sua mãe em rela ção ao tratamento Começaram a surgir no seu jogo indícios de uma fantasia de que se demonstrasse gostar e se sentir ajudado pela tera peuta desagradaria a mãe Em entrevista com seus pais à qual Raul não quis estar presente mesmo convidado estes reclamam do trata mento de que não estavam satisfeitos com os resultados e pensavam tirar férias do tratamento do filho Ficou então esclarecido que as resistências de Raul estavam ligadas a um conflito de lealdade com seus pais que resistiam ao tratamento do filho Mesmo sendo manejadas as resistências semanas depois a mãe envia o pagamento e avisa decididamente que Raul não iria mais A terapeuta solicita algumas sessões para trabalhar com Raul a decisão familiar e a possível despedida Na sessão seguinte o menino diz que precisa manter seu tratamento e solicita uma sessão tripla na qual estejam presentes ele o pai e a mãe Assim feito Raul conseguiu expli car aos pais as razões pelas quais precisava ainda se tratar no que foi compreendido por eles Defendeu e lutou pela manutenção de sua psi coterapia demonstrando uma forte aliança terapêutica apesar das adversidades que tiveram que ser enfrentadas Pelo exemplo citado vemos que a existência de uma sólida aliança terapêutica entre os diversos componentes da situação terapêutica crian çaterapeuta e famíliaterapeuta é indispensável para que sejam supe rados os momentos de resistência e impasses que muitas vezes colocam em risco o prosseguimento da psicoterapia Os fenômenos transferenciais e contratransferenciais O fenômeno transferencial com crianças e adolescentes em um sentido estrito do termo é semelhante ao observado com pacientes adultos e visa repetir protótipos de relações e desejos infantis que se reatualizam no setting e no vínculo Laplanche e Pontalis 1970 É uma repetição de necessidades e desejos que não foram compreendidos e satisfeitos no passado A questão da existência da transferência nos tratamentos com crian ças foi um dos temas das famosas Controvérsias entre partidários de Anna Freud e de Melanie Klein Fendrik 1991 Anna Freud sustentava que a criança vivia conflitos com seus pais reais os quais convivia e por isso não poderia transferir toda sua neurose Assim sendo a criança tem Crianças e adolescentes em psicoterapia 85 o relacionamento ou fantasia sobre o passado fortemente ligado às pes soas concretas dos pais A disponibilidade dos objetos primários para os cuidados e educação da criança complicaria o reconhecimento do que seria a transferência Em 1946 Anna Freud reformulou sua posição pas sando a admitir a existência de neurose transferencial em alguns casos de análise de crianças Glenn 1996 Klein 1981 apontava que a capacidade de transferir existia na criança desde muito cedo e se estabelece de forma espontânea e rápida devido à permeabilidade conscienteinconsciente A criança tem vida mental ativa e desde o início da vida seu ego rudimentar é capaz de usar mecanismos primitivos para lidar com as ansiedades ligadas às pulsões de vida e de morte que são a base de sua vida de fantasia Através da ação dos mecanismos introjetivos e projetivos mesmo a criança muito pe quena já teria um passado a transferir as vivências precoces com ima gos parentais internalizadas seriam transferidas ao terapeuta mesmo a criança convivendo e sendo cuidada por seus pais no cotidiano Klein teorizou sobre as origens dos relacionamentos objetais precoces no início da vida considerando que a transferência era o eixo central do tratamen to psicanalítico com crianças Os relacionamentos objetais precoces são transferidos através da técnica do jogo simbólico que para Klein seriam semelhantes à associação livre do adulto As figuras transferidas eram deformadas e coloridas pela predominância maior ou menor de impulsos destrutivos ou libidinais Dessa forma a imagem dos pais concretos do cotidiano é transformada pelas fantasias predominantes na mente infan til A caixa individual usada pela criança no setting à qual só ela tem acesso faz parte da relação privada pacienteanalista característica da relação transferencial Klein 1991 p155 O senso da criança de quem ela é e de como outros vão reagir é muito afetado por expectativas baseadas em seu passado mas também matizado pelos relacionamentos familiares recentes O deslocamento desses padrões e dos modos da criança se relacionar com as pessoas sig nificativas de sua vida constitui o eixo da relação transferencialcontra transferencial Fantasias e imaginações do paciente sobre o terapeuta são também meios através dos quais as relações passadas e presentes são transferidas no setting Lanyado e Horne 2000 O psicoterapeuta pode ser percebido sob vértices diferentes pela criança como um objeto real com o qual interage um adulto semelhante aos seus pais Por exemplo quando trabalhamos com crianças bem pequenas em alguns momentos temos que ajudálas quando vão ao banheiro sem que isso se configure 86 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols uma gratificação O terapeuta é visto como um objeto transferencial com o qual vai repetir experiências primárias e também como um novo objeto em sua vida Nessa perspectiva o terapeuta é foco de desenvolvimentos específicos das fases libidinais em evolução Assim a criança pode perce ber seu terapeuta de formas diferentes quando alcança novos níveis de organização desenvolvimental Glenn 1996 Ângela Ganhar ou perder Conhecer e crescer Ângela 7 anos filha adotiva vem para tratamento por problemas de con duta Há três anos em tratamento nesse momento vive um conflito pois está na 1a série do ensino fundamental e se nega a se alfabetizar Refere conscien temente que não deseja aprender a ler e a escrever diz que quer continuar burra sic Ângela chega para a sessão propondo o jogo do elástico3 No jogo aparece uma grande ambivalência pois se torna evidente que ela sabe pular melhor que eu mas a cada momento em que me ultrapassa e eu começo a perder o jogo angustiase não querendo passar para outra fase Por outro lado quando eu começo a ganhar fica ansiosa Em alguns momentos o jogo se torna confuso É necessário discriminar que ela está mais adiantada em outros momentos erra e não quer admitir Aparece uma inconstância entre se dar bem me ultrapassar ou regredir para não se separar de mim Canta a música se um dia eu pudesse ver meu passado inteiro Comento então que tem coisas do passado de que ela está falando que sente que passar na minha frente significa deixar a mãe da barriga para trás deixála mal Por outro lado se eu passar na sua frente a deixarei mal então o jogo se torna uma grande confusão Aparecem aí aspectos transferenciais reeditados nesse jogo no qual Ângela se sente culpada em relação à mãe biológica que considera pobre e por conseguinte ganhar o jogo é tirar da mãe Ao mesmo tempo existe o desejo de ganhar ser forte como se ficar rica e forte implicasse em tirar algo de alguém o que gera sentimento de culpa Uma fica rica porque tira da outra Nesses momentos de intervenção responde com muita ansiedade e é necessário discriminar junto a ela o que está acon tecendo apontando que repete comigo algo do seu passado Ficam evidentes aspectos de latência Existem regras a serem cumpri das estão apresentandose defesas obsessivas e também a concomitante internalização da alfabetização Crianças e adolescentes em psicoterapia 87 Numa determinada sessão larga o jogo de elástico e se direciona para o quadro escrevendo algumas palavras Intervenho mostrando a ela sua fantasia de não poder ficar rica alfabetizarse pois imagina que estará deixando alguém pobre sentindose culpada e é o mesmo que refere quando brinca com o jogo do elástico e diz que vai ficar patinando até que eu a terapeuta a alcance Ao terminar a sessão vai até a porta e canta havia um homenzinho torto andava por um caminho torto tinha uma casa torta e aí encontrou Jesus Essa é uma resposta às interpretações construídas pela dupla nas sessões Nesse caso podemos observar como Ângela repete no setting te rapêutico a fantasia que tem em relação ao objeto interno Também traz seu conflito e sofrimento atual ligado à inibição intelectual que remota mente está ligado ao desejo de evitar contato com suas origens e adoção modulados pelos processos transferenciais e contratransferenciais Transfe rência e contratransferência são fenômenos complementares como se fos sem dois lados da mesma moeda e eles ocorrem pelo interjogo de identi ficações projetivas e introjetivas que oportunizam o acesso à mente infan til às fantasias e à história das primeiras relações objetais A contratrans ferência pode ser compreendida como um conjunto de reações inconscien tes do terapeuta à transferência do paciente No tratamento psicanalítico ela liga e principalmente vincula a dupla permitindo um trabalho conjun to Ajuda a entender certos sentimentos que são emitidos para dentro da mente do terapeuta pelo paciente despertados pelas vivências e pelos sen timentos dele Sentimentos contratransferenciais por serem inconscientes podem indicar pontos cegos do terapeuta Nesse caso seria necessário ao terapeuta um aprofundamento em sua psicoterapia ou análise pessoal pa ra capacitálo a discriminar o que lhe pertence daquilo que é comunicação do paciente A compreensão desse processo é uma forma importante de instrumentalização do terapeuta As características particulares da relação transferencialcontratransferencial auxiliam o terapeuta a conhecer mais sobre as fantasias do paciente os relacionamentos seu funcionamento e as expectativas que teve no passado e as que tem para o futuro Gabriela a bobona da família Gabriela 7 anos foi levada à psicoterapia por queixas de sua família de que era muito parada e sem iniciativa Era considerada incom petente bobona e burra tanto pela família quanto pelos colegas No 88 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols segundo mês de tratamento passou a jogar de dona da loja Nesse jogo ela personificava uma poderosa e rica proprietária de loja que dominava a todos com seu poder dinheiro e inteligência Destinava à terapeuta diversos papéis as filhas a faxineira a vendedora e outros que a hu milhavam e desqualificavam chamandoa de burra e bobona Repetiu durante semanas esse jogo e quando era tentada qualquer compreensão desse a menina manifestava intensas crises de choro e raiva mandando a terapeuta calar a boca ou tapava os ouvidos criando forte núcleo resistencial Contratransferencialmente a terapeuta se sentiu realmente incompetente para manejar os impasses criados pelos gritos choros e violência de Gabriela A terapeuta via seus esforços de compreendêla e ajudála em seu sofrimento serem frustrados As tentativas de comunica ção verbal eram danificadas pois insuportáveis para serem escutadas naquele momento Destruilas com gritos mantinha a menina afastada do contato emocional com seu doloroso sentimento de desvalorização Ao ejetar para dentro da mente de sua terapeuta os sentimentos in toleráveis e indesejados que vivia a menina fez uso da Identificação proje tiva como forma de comunicar algo que as palavras ainda não davam con ta intenso sentimento de dor e humilhação que experimentava A partir dessa vivência de comunicação primitiva via fenômenos transferenciais e contratransferenciais e o processo pôde ser retomado Joana a caminho da integração Joana entra para a sessão e propõe o jogo de batalha naval Iniciado o jogo ela tem certa dificuldade em aceitar e entender as regras A tera peuta comenta o quanto quer aprender a brigar e o jogo da batalha serve para isso Joana reluta em continuar derrubando os barcos da terapeuta mas elimina um deles Disso resulta um contraataque e a terapeuta derruba um barco de Joana Ela fica braba e desiste do jogo Vai até o sofá e se deita por um instante muito zangada e incomodada Depois de certo tempo dirigese ao armário pega em sua caixa dois pedaços de pano solicitando ajuda para costurálos Começa a juntar os pedaços com agulha e linha A terapeuta comenta que quando Joana fica muito braba separa as coisas dentro dela mas que também tem condições de costurar aquilo que está separado Nesse caso clínico vemos em Joana a transição entre as posições esquizoparanoide para depressiva Klein 1946 quando começa a inte Crianças e adolescentes em psicoterapia 89 grar aspectos destrutivos de seu self Seus aspectos agressivos foram personificados na batalha naval que foi uma maneira de se autorizar a brigar Em seguida tem condições de costurar os pedaços de pano per sonificando um movimento interno de integração de aspectos cindidos de seu self Podemos observar anteriormente que aspectos libidinais estão se firmando no mundo interno de Joana e são expressos na sua capacidade de reparação Os movimentos de integração se manifestam por mudanças na relação transferencial personificadas pelo jogo que passa a incluir atividades como costurar juntar consertar O setting tomado pelas falações de Clara Clara 15 anos filha única se mostrou motivada a buscar ajuda pois tinha muitos conflitos com sua mãe desatenção com os estudos e preo cupação com as brigas com o namorado que era galinha Seus pais haviam se divorciado recentemente o que a deixava muito braba e triste responsabilizando a mãe pela separação Idealizava o pai e desquali ficava a mãe sofria muito com o afastamento do pai Em determinada época passou a relatar envolvimento com atividades de risco Referia sair à noite com amigos que dirigiam alcoolizados e que se expunham a perigos no trânsito Relatava episódios em que quase foram presos e de como se saíram triunfantes do perigo Contava sobre grupos de amigos que eram pichadores de prédios Dizia que os perigos e os riscos de serem pegos em flagrante a estimulavam Fazia relatos que eram verdadeiras descargas verbais eram falações que enchiam as sessões Seu discurso parecia não comunicar mas sim preencher o espaço de atos concretos com histórias grandiosas Quando convidada a discriminar o que real mente acontecia e os riscos reais a que se expunha ameaçava abandonar o tratamento atacava verbalmente sua terapeuta que ficava tomada de preocupações por sua integridade e segurança Simultaneamente a te rapeuta sentia que havia um certo exagero nos episódios relatados por Clara Ao perceber que quanto mais preocupada a terapeuta ficava mais Clara a provocava e aumentavam seus relatos que de tão grandiosos pareciam invenções Tomando contato com seus aspectos pessoais mobili zados por Clara a terapeuta se deu conta de que a paciente fazia um jogo de provocação para manter sua atenção cuidado e continência Na vida cotidiana pelos relatos de sua família estava bem com vida bastante diferente da que relatava nas sessões Suas invenções e exageros eram a 90 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols tentativa de criar um mundo interessante mas nasciam de sua necessi dade transferecial de ser olhada e de despertar o cuidado da terapeuta e dos pais Nesse caso clínico evidenciouse a forma de Clara mobilizar um no vo olhar sobre ela o novo corpo e os novos papéis As pressões da reali dade os desafios escolares mas sobretudo de seu mundo interno de suas pulsões e o temor à vida sexual que temia iniciar com o namorado galinha levavamna a se utilizar de processos de cisão Criava então uma Clara corajosa destemida e marginal Suas invenções quase delirantes por vezes puderam no transcurso da psicoterapia ser com preendidas como defesas Mas o que Clara temia e via identificações pro jetivas fazia sua terapeuta temer por ela Possivelmente toda uma gama de transformações corporais psíquicas e familiares assim como suas an siedades frente ao início de sua vida sexual Pelos exemplos apresentados percebese que os sentimentos contra transferenciais frente a situações permeadas de agressividade sofrimen tos e ou estados confusionais expressos nas sessões tanto por crianças quanto por adolescentes não só colocam à prova nossa tolerância e conti nência mas também nossa própria capacidade de trabalhar com essas faixas etárias Tomando consciência dos sentimentos provocados em nós é que poderemos compreender o sofrimento e agir terapeuticamente A criança ou adolescente ao se ver aceito e compreendido vai se sentindo contido em suas ansiedades e aos poucos se torna apto a introjetar mo delos menos persecutórios de vínculos Vai discriminando os próprios im pulsos sentimentos e pensamentos como seus sem necessitar projetálos tanto O paciente passa a perceber o terapeuta não como objeto ameaça dor mas como alguém em quem pode confiar o que paulatinamente conduz a mudanças no caráter das transferências que vão se diferencian do de formas mais deformadas para formas mais realistas de lidar com a realidade interna e externa Como consequência poderá se identificar com a capacidade de continência e de pensar do terapeuta Intervenções na atualidade como e quando interpretar O espaço psicoterápico pode ser compreendido segundo alguns mo delos da teoria psicanalítica Num nível histórico temos o modelo freu diano que prioriza a compreensão dos fenômenos da relação terapêutica em redes de relações históricas e de causas e efeitos O modelo kleiniano Crianças e adolescentes em psicoterapia 91 busca compreensão de níveis intrapsíquicos ou das fantasias inconscien tes O jogo os personagens e as narrativas nas sessões refletem aspectos da vida interna do paciente Há um terceiro modelo seguindo os con ceitos de Bion chamado relacional insaturado em que as narrativas geradas no campo são compreendidas como holografias da relação emo cional pacienteterapeuta comunicando histórias partilhadas e que exprimem afetos Ferro 2000 Interpretação é o processo de colocar sensações em palavras tornan do conhecido para o paciente as fantasias as ansiedades os conflitos as defesas e os modos de funcionamento mental que não podiam ser conhe cidos por serem inaceitáveis em função de mecanismos de repressão Esse é o modelo freudiano de tornar o inconsciente consciente Atualmente há uma tendência ao abandono das intervenções pron tas tipo causa e efeito Houve uma mudança epistemológica que rejeita o pensamento linear e positivista A ciência psicoterápica atual é menos determinista e mais ligada às diversas possibilidades o que envolve a noção de processos contextos de interação e influências recíprocas O nível intrapsíquico é considerado um aspecto mais amplo abarcado pelos contextos intersubjetivos e transsubjetivos Temos um longo processo para a construção interpretativa que in clui períodos em que o terapeuta tem a função de conter sentimentos e pensamentos projetados em si pelo paciente guardálos e processálos mentalmente até que ocorra a ocasião para devolvêlos para reintroje ção Em outras circunstâncias o terapeuta tem que tolerar o seu próprio desconhecimento do que está ocorrendo na relação terapêutica para po der só mais tarde intervir Essa experiência pode ser muito importante e necessária para o paciente visando que seu terapeuta viva e experimente o não saber e esteja em algum momento identificado com seu estado de K Bion 1980 pois muitas vezes esse é o estado mental que a criança ou o adolescente estão vivendo Tentativas prematuras de inter pretação podem fracassar A interpretação muitas vezes é resultado fi nal de um trabalho de semanas até de meses de comunicações verbais e nãoverbais entre a dupla paciente terapeuta Lanyado e Horne 2000 Hoje as narrativas da sessão seja pelas palavras pelo jogo ou pelo uso de outros mediadores são entendidas como insaturadas são abertas plenas de vários sentidos e possibilidades sem que o terapeuta entre gue uma interpretação pronta No caso das psicoterapias com crianças o jogo é visto como texto narrativo e prépartilhado pela dupla criança terapeuta não existindo sentidos prontos mas a serem descobertos ou 92 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols criados As interpretações do jogo não são dadas previamente por algum suposto simbolismo implícito mas são criadas em conjunto com a crian ça sem usar significados previamente saturados pela mente do terapeuta As sessões são como dois textos vivos que interagem continuamente entre si transformandose Ferro 2000 Este caso clínico possibilita que entendamos como uma interpreta ção fora do nível de compreensão da paciente pode ser modificada du rante a sessão e devido ao bom vínculo com a paciente essa perdoa o erro da terapeuta mostrando qual caminho seguir Interpretação saturada Maria ensina a terapeuta por qual caminho seguir Maria chega à sessão com sua mãe e se esconde na sala de espera Abro a porta pontualmente e a mãe entrega um material da escola falando sobre uma viagem de estudos A mãe diz na sala de espera olha con versem sobre isso Maria entra e pergunto sobre o que se trata Ela diz que tem uma viagem e que está com um pouco de medo de ir pois terá de dormir uma noite longe de casa e não sabe se conseguirá Deitase no sofá continua a falar mais um pouco sobre a viagem e que não quer falar de seus medos Ouçoa em silêncio fazendo algumas perguntas sobre seus sentimentos Maria se levanta da poltrona se dirige ao ar mário de jogos e pega as cartas propondo jogar pif Juntamos os dois baralhos ela separa os coringas e me dá as cartas para embaralhar Começamos a jogar e ela diz que ganhará o jogo de mim grita muito quando acha uma carta que faz par com outra Tenho que retomar as regras explicando que para ganhar o jogo tem que formar três se quências de números com naipes iguais ou três cartas de naipes dife rentes que formam a trinca Ela briga muito pois quer colocar dois naipes iguais e um diferente Faço então a relação de que ela quer juntar dois ela e a mãe por isto não quer viajar sozinha e é difícil para ela ver que as pessoas são separadas Talvez por isso tema viajar pois ela ficaria afastada da mãe não suportando ver o casal parental unido Enquanto conversamos ganho o jogo o que a deixa muito bra ba desistindo de continuar a jogar Maria corre para o sofá deitase grita comigo dizendo que não tem nada a ver o que estou dizendo Digo que para ela é muito difícil ver o pai e a mãe juntos e ela separada Maria então se levanta vai até o quadro e propõe o jogo de frases enigmáticas em que temos que fazer frases com figuras para que o outro adivinhe Nesse momento percebo Crianças e adolescentes em psicoterapia 93 que está muito difícil para Maria aceitar a interpretação que insisto em repetir Ao mesmo tempo Maria comunica que podemos falar da mes ma coisa de uma outra maneira Maria mostra o caminho Começamos então a fazer o jogo de frases enigmáticas exemplificado a seguir com o conteúdo que trabalhamos antes A MARIA FICA ZANGADA QUANDO A TERAPEUTA FALA QUE O PAI E A MÃE VÃO FICAR JUNTOS Quando verbalizo que teme se separar da mãe Maria resiste e se fecha Porém com o jogo enigmático ela ri muito quebrase a resistência e vai processando mentalmente suas ansiedades referentes ao conteúdo apontado Porém necessita fazer de uma maneira mais concreta com figuras desenhadas que refletem a interpretação construída agora 94 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols não apenas por mim mas por nós duas a quatro mãos Dessa manei ra começa a elaborar as questões simbióticas com sua mãe e a suportar a exclusão imposta pela triangulação edípica Maria resistia a quê mesmo A interpretação anterior estava saturada de significados fornecidos pela terapeuta e Maria os sentiu como invasivos o que a fez se rebelar gritando alto mandando a terapeuta ficar quieta Resistiu à forma ou ao conteúdo da interpretação Em seguida ela mesma dá o caminho sugerindo um jogo de adivinhação de frases enigmáticas indicando que as palavras ouvidas eram um enigma para ela Maria suportou o erro da terapeuta indicando um novo caminho lúdico que corrigiu a rota da sessão sendo possível diminuir a resistência que estava se estabelecendo Nesse modelo interativo que leva em conta a totalidade dos fenômenos que ocorrem no campo bipessoal foi possível retomar os processos de comunicação que estavam interrompidos CONSIDERAÇÕES FINAIS Os fenômenos descritos neste capítulo se entrelaçam e foram divi didos em tópicos para fins didáticos e para sua melhor compreensão Apontamos apenas aqueles que consideramos mais importantes saben do que o assunto não foi esgotado Apresentamos a nossa síntese pessoal baseada nos nossos estudos nos tratamentos e na construção de nossa trajetória no ofício como psicoterapeutas Como descrevemos anteriormente a criança e o adolescente por estarem em transformações físicas e psíquicas requerem de nossa mente flexibilidade e continência e um constante acesso ao nosso próprio mate rial inconsciente para dar conta dos fenômenos contratransferenciais que essas faixas etárias suscitam Salientamos novamente a necessidade de atenção às formas comunicativas na sessão que incluem além da pala vra uma profusão de material nãoverbal que pode ser expresso por meio de jogos desenhos personificações gestos postura mímica e no caso de adolescentes uma expressão corporal por meio de roupas tatua gens trajetórias e movimento no setting4 pelas quais expressam suas fan tasias e seus sentimentos que exigem do psicoterapeuta uma grande capacidade negativa e paciência para lidar com o novo e o inusitado A participação dos pais no tratamento em vez de ser vista como entrave pelo contrário é um facilitador Não podemos deixar de enfa Crianças e adolescentes em psicoterapia 95 tizar a riqueza que um bom vínculo com a família pode proporcionar para a manutenção e o progresso psíquico dos pacientes legalmente menores em psicoterapia psicanalítica Para finalizar o psicoterapeuta de crianças e adolescentes deve ter a possibilidade de analisar em seu tratamento pessoal exaustivamente os conflitos mais precoces que essas faixas etárias costumam trazer nas suas sessões e se sentir com livre acesso a esses aspectos em seu inconsciente É fundamental que o psicoterapeuta possa se abrir à voz e à expressão da criança e do adolescente valorizando as suas experiências particulares e seu sofrimento vendoos como subjetividades em construção e como su jeitos de seu próprio discurso Tornamos nossas as palavras de nosso querido mestre David Zimer man quando refere que para ser psicoterapeuta de crianças e adoles centes devemos gostar dessas faixas etárias manter a espontaneidade e autenticidade além de ser gente como a gente um ser humano comum sujeito às mesmas grandezas e fragilidades de qualquer outra pessoa o que nos tornará mais próximos e empáticos com nossos pacientes Zimer mann 2004 p459 NOTAS 1 Ver Capítulo 6 O lugar dos pais na psicoterapia de crianças e adolescentes 2 Ver Capítulo 7 A comunicação na psicoterapia de crianças e 10 Formas comu nicativas na psicoterapia com adolescentes 3 Jogo do elástico consiste em um elástico amarrado em volta das pernas de dois jogadores Um terceiro jogador fará uma série de movimentos obedecendo a etapas que só poderão ser ultrapassadas se a anterior for realizada com êxito caso erre passa a vez para outro Ganha o jogo quem finalizar todas as etapas no caso de apenas dois jogadores como no caso da sessão terapêutica se utiliza um terceiro elemento cadeira ou mesa por exemplo que servirá para amarrar o elástico 4 Ver Capítulo 10 Formas comunicativas na psicoterapia com adolescentes REFERÊNCIAS ABERASTURY A Psicanálise de crianças teoria e técnica Porto Alegre Artmed 1982 BARANGER W BARANGER M Problemas del campo psicoanalitico Buenos Aires Kargiemen 1968 BION W Aprendiendo de la experiência Buenos Aires Paidós 1980 96 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols CARON N A Reação surpresa na psicanálise de crianças In CONGRESSO LATINO AMERICANO DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES 2 São Paulo 1996 CASTRO M G K Um olhar clínico sobre a adolescência características e quei xas mais freqüentes de adolescentes em psicoterapia In CONGRESSO LATINO AMERICANO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES 4 Gramado 2000 Vicissitudes do amor e do ódio na transferência e na contratransferência In JORNADA DO INSTITUTO DE ENSINO E PESQUISA EM PSICOTERAPIA IEPP 6 Porto Alegre Anais 30 abril de 1994 p 6672 CASTRO M G K CIMENTI M E Psicoterapia infantil pensar relações e criar significados Revista do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia v 2 p 37 55 2000 ETCHEGOYEN H Fundamentos da técnica psicanalítica Porto Alegre Artmed 1987 FENDRIK S A ficção das origens Porto Alegre Artmed 1991 FERRO A A psicanálise como literatura e terapia Rio de Janeiro Imago 2000 A Técnica na psicanálise infantil Rio de Janeiro Imago 1995 GLENN J Psicanálise e psicoterapia com crianças Porto Alegre Artmed 1996 KLEIN M A História do Jogo e seu significado In Inveja e gratidão Rio de Janeiro Imago 1991 Análise Infantil In Contribuições á psicanálise São Paulo Mestre Jou 1981 Notas sobre os mecanismos esquizóides In Inveja e gratidão Rio de Janeiro Imago 1991 KANCYPER L O Campo analítico com crianças e adolescentes Revista do Ins tituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia v4 n 4 p 916 2002 LAPLANCHE J PONTALIS J B Vocabulário da psicanálise Santos Martins Fon tes 1970 LEWIN K Teoria de campo em ciência social São Paulo Pioneira 1965 LANYADO M HORNE A The handbook of child and adolescent psychoterapy psychoanalytic approaches Londres Routledge 2000 PINTO L H V MENEGAT CCASTRO M G K Adolescentes em psicoterapia a percepção de si e do tratamento Boletim IEPP n 9 abr 2001 Resumo SANDLER J A técnica da psicanálise infantil Porto Alegre Artmed 1989 ZIMERMANN D E Manual de técnica psicanalítica Porto Alegre Artmed 2004 A psicoterapia psicanalítica com qualquer faixa etária se bemsuce dida comporta três fases início do tratamento fase intermediária e de término que ocorrem depois de realizado um processo de avaliação detalhada do paciente A experiência nos mostra que essas fases não são determinadas por sua duração mas sim pelas características do vínculo terapeutapaciente que se modificam no decorrer do processo psicoterápico Porém nem sempre a psicoterapia atinge essas três fases pois podem ocorrer interrupções no transcurso do processo terapêutico devido a múltiplas causas como a satisfação da família com apenas o esbatimento dos sintomas resistências mudanças de domicílio dificuldades financeiras entre outros No caso de psicoterapia com crianças esses aspectos devem ser observados ainda mais atentamente pois além da relação paciente terapeuta envolve os pais escola médicos e outros profissionais que as acompanham Alguns aspectos do tratamento com crianças serão explorados no decorrer deste capítulo como a importância da consolidação de um bom vínculo não só entre paciente e terapeuta mas também com a família uma avaliação ampla e profunda no intuito de estabelecer uma adequada indicação terapêutica e os principais fenômenos presentes em cada etapa da psicoterapia nunca deixando de considerar que crianças são seres em pleno desenvolvimento sofrendo transformações constantes o que torna o processo psicoterápico bastante complexo Reportandonos a Anna Freud 1971 sabemos que há na criança alternâncias nos seus movimentos As etapas da psicoterapia com crianças Lívia Kern de Castro Paula von Mengden Campezatto Lisiane Alvim Saraiva 5 98 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols progressivos e regressivos que as forças pulsionais e do ego estão em constante fluxo e adaptação que surgem variadas formas de defesa e que os derivativos pulsionais ego e diretrizes de desenvolvimento evoluem em ritmos desiguais Além disso podem existir fatores internos e externos interferindo distorcendo ou desviando o crescimento psicológico infantil PERÍODO DE AVALIAÇÃO O ENCONTRO É raro que uma criança seja trazida à consulta por vontade própria por haver pedido aos pais ajuda para os seus problemas Na maioria das vezes a criança vem para tratamento em virtude de uma preocupação dos pais ou de uma recomendação da escola do pediatra por reforços legais entre outros Em geral foi observado algum comportamento preo cupante ou então sintomas que não melhoraram com a passagem do tempo como é esperado e normal no curso do desenvolvimento infantil Bernstein e Sax 1996 Copolillo 1990 Zavaschi et al 2005 Também é importante que se questione Por que a procura de atendimento nesse momento Há algo especial que motivou a busca O que ocorre não somente com a criança mas com a sua família De quem é a demanda De que modo o funcionamento dessa criança está prejudicado Por que dessa forma O que pode ser feito A partir da observação normalmente percebemos algum fator desen cadeante importante consciente ou não sendo de fundamental neces sidade conhecer a conflitiva subjacente para melhor compreender a criança em questão A avaliação é o período no qual se faz necessário compreender dados globais do paciente os quais incluem elementos do funcionamento e organização da família em termos de hábitos rotinas valores assim como elementos do funcionamento psíquico da criança no que diz respeito à fase de desenvolvimento em que se encontra mecanismos de defesas predominantes recursos egoicos fantasias e integração ou não das instân cias psíquicas Essa etapa não pode ser apenas considerada uma coleta de dados da história e do contexto da criança o que empobreceria o vínculo mas se constituir em um verdadeiro encontro com ela sua família e seus sofrimentos Já nos primeiros contatos é possível verificar inúmeras razões e motivos declarados ou não pelos quais uma criança é trazida para aten dimento Em muitas situações as crianças são encaminhadas na expectativa Crianças e adolescentes em psicoterapia 99 de que se ajustem ou se comportem da maneira que a família ou a escola deseja Entretanto pensamos que a psicoterapia psicanalítica não tem por objetivo a adaptação da criança mas sim oportunizar a essa um espaço de autoconhecimento a partir da exploração de seus potenciais A psico terapia infantil é portanto um instrumento psicológico capaz de além de buscar a remissão dos sintomas ajudar a criança a expressar melhor suas emoções e a compreendêlas ocasionando modificações no mundo intrapsíquico e interrelacional Os objetivos do tratamento portanto são semelhantes aos buscados junto a pacientes adolescentes e adultos com a diferença que com crianças tudo acontece de forma inesperada e rápida exigindo do terapeuta dinamismo e flexibilidade mental além de muita disponibilidade para movimentação física Castro e Cimenti 2000 O período de avaliação compreende um espaço de tempo necessário para se conhecer a criança e fazer um mapeamento de vários aspectos Esse período varia em cada caso embora haja uma sequência geral seme lhante que inclui entrevistas com os pais ou responsáveis juntos ou sepa rados entrevistas com a criança entrevista familiar que permite a obser vação da interação paiscriançademais membros da família e entrevistas de devolução A entrevista com a criança é denominada Hora de Jogo Diagnóstica e objetiva o conhecimento dela por meio de atividades lúdicas que incluem a utilização de brinquedos jogos e material gráfico que são dispostos sob a forma de uma caixa individual que representa o sigilo e o mundo interno da criança além de materiais coletivos isto é não exclu sivos daquele paciente Através do brincar a criança expressa seus conflitos angústias fantasias e capacidade simbólica permitindo ao terapeuta observar o nível de desenvolvimento emocional e cognitivo em que se encontra Efron et al 1995 Desde a primeira hora de jogo é possível verificar a fantasia incons ciente da criança sobre o motivo pelo qual foi levada ao tratamento bem como sua fantasia inconsciente de cura Aberastury 1978 como ilustra o exemplo a seguir Gustavo 5 anos foi levado à avaliação por apresentar comportamento agressivo com os pais separados desde antes do nascimento do menino A mãe estava constituindo nova família e o pai estava muito ausente em decorrência de uma rotina de trabalho estressante Trabalhava du rante toda a noite e estudava à tarde sem conseguir se organizar finan ceiramente para os encargos da pensão de Gustavo e para as próprias despesas 100 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Depois das entrevistas com os pais foi realizada uma hora de jogo com o paciente que optou por desenhar cuidadosamente um barco a velas onde passeava com seu pai Gustavo contou que o mar era fundo e lá havia muitos peixes e tu barões O barco furou e iriam afundar Chega então um navio com uma mulher que podia jogar uma boia Porém a boia era pequena e ali só caberiam crianças Dessa forma Gustavo revela que tanto ele quanto seu pai estavam afun dando e precisavam de ajuda A terapeuta era representada pela mulher que jogava uma boia remetendo ao pedido de ajuda do menino O psicoterapeuta ao comentar sobre os pensamentos da criança acerca do motivo de seu encaminhamento já na primeira sessão assinalando seus medos expectativas e fantasias sobre o que lhe acontecerá no decorrer da avaliação estará facilitando a aliança terapêutica Para a realização de um trabalho desse tipo é importante o psico terapeuta ter sólidos conhecimentos sobre o desenvolvimento infantil nor mal e patológico1 estando apto a diferenciar as crises vitais comuns ao desenvolvimento normal das acidentais peculiares à história de vida da própria criança sintomas decorrentes de fatores orgânicos daqueles de origem emocional entre outros Por isso há importantes recursos que podem complementar a avaliação e auxiliar em uma indicação terapêutica adequada O psicodiagnóstico e a avaliação multidisciplinar auxiliam na elaboração da hipótese diagnóstica especialmente quando há necessidade de avaliar déficits cognitivos e motores ou estabelecer diagnóstico diferen cial A aplicação de testes pode ser realizada pelo próprio psicoterapeuta se esse dominar as técnicas necessárias e se sentir confortável para tal ou por um colega especializado em psicodiagnóstico O psicodiagnóstico é um processo científico limitado no tempo e que utiliza métodos e técnicas psicológicas para descrever e compreender ao máximo a personalidade total do paciente Abrange os aspectos passados presentes diagnóstico e futuros prognósticos Cunha 2000 Efron et al 1995 É possível também que seja necessário o encaminhamento para outros profissionais caso haja suspeita da interferência de alguma condição médica geral que esteja provocando sintomas semelhantes aos de origem emocional Fernando 7 anos iniciou avaliação no final do ano escolar devido a uma importante dificuldade de aprendizagem principalmente na área da leitura Nas entrevistas iniciais com o menino e sua família a psico Crianças e adolescentes em psicoterapia 101 terapeuta percebeu inúmeros conflitos relativos a segredos familiares Esses poderiam estar interferindo diretamente na curiosidade e no desejo de descobrir coisas novas e de aprender Mesmo assim a profissional optou por recorrer à testagem psicológica na intenção de descartar possíveis déficits intelectuais neurológicos ou orgânicos O resultado do primeiro teste utilizado Teste Visuomotor de Bender apontou indícios significativos de lesão cerebral que ocasionou o encaminhamento do menino para um neuropediatra Exames médicos confirmaram o compro metimento neurológico do menino A partir disso surgiram novos dados relacionados à história de Fernando antes obscuros sendo informado que o paciente teria sofrido crises con vulsivas ainda nos primeiros meses de vida Seus efeitos somados aos conflitos emocionais familiares estavam interligados às dificuldades para aprender Dessa forma a psicoterapia e o tratamento neurológico foram iniciados simultaneamente favorecendo a diminuição do sofri mento de Fernando Em muitos casos fazse necessária uma investigação que atenda outras demandas como o atendimento combinado com profissionais de outras áreas tais como neurologistas pediatras psiquiatras infantis fonoaudiólogos psicopedagogos entre outros Um exame realizado por equipe multiprofissional ocorre sempre que se faz necessária uma ava liação mais complexa abrangente e inclusiva ou seja quando é preciso investigar e integrar dados referentes às condições médicas cognitivas sociais da criança que está sendo avaliada para chegar a uma hipótese diagnóstica e a um prognóstico mais coerente descartando possíveis dificuldades em outras esferas que não a psicológica Para tal é funda mental que o psicoterapeuta recorra a outros profissionais quando pre cisar levantar dados de natureza médica social ou escolar como ocorreu no tratamento de Deise Deise 6 anos e 5 meses foi encaminhada para tratamento psicológico pela fonoaudióloga que a acompanha há um ano por dificuldades em desenvolver a fala enurese noturna agressividade direcionada à mãe adotiva e diversos outros comportamentos característicos de crianças bem pequenas Nas primeiras sessões de avaliação Deise balbuciava como um bebê desenvolvendo uma maior comunicação verbal aos poucos e intercalava brincadeiras adequadas à faixa etária com brincadeiras de montar e cubos para crianças de 2 a 3 anos 102 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Nas entrevistas de anamnese obtevese os dados de que fora adotada aos 3 anos e de acordo com os registros trazidos à terapeuta vinha se desenvolvendo normalmente até essa idade Quando adotada por uma mãe solteira com diagnóstico de transtorno afetivo bipolar grave e his tórico de diversas internações parece ter parado de se desenvolver e voltou a utilizar bico e mamadeira além de enurese noturna na cama que dividia com a mãe Ainda durante o processo de avaliação foram necessários vários atendi mentos complementares para auxiliar na etiologia e no diagnóstico da menina que foi encaminhada na medida em que se fortalecia o vínculo terapeutapacientemãe para uma neurologista infantil e uma psiquia tra infantil as quais diagnosticaram um foco de epilepsia benigna que justificaria em parte o atraso na linguagem além de prescreverem uma dosagem baixa de Risperidol Foi realizado um psicodiagnóstico que avaliou as funções intelectivas como medianas e adequadas à faixa etá ria A professora também foi contatada no sentido de auxiliar Deise a desenvolver autonomia e se autorizar a crescer Ao final da avaliação consideramos importante estabelecer uma for mulação diagnóstica tanto do ponto de vista descritivo CID10 OMS 1993 ou DSMIVTR APA 2003 quanto dinâmico que auxiliará no pla nejamento do tratamento A formulação psicodinâmica deverá englobar uma descrição das principais defesas a apresentação dos conflitos centrais do paciente e como resultado uma apreciação do modelo de funcionamento mental predominante e das relações de objeto que estabelece Também deverá enfocar aspectos preditivos das respostas do paciente em relação à situação terapêutica prognóstico bem como seus recursos de ego e sua motivação para o tratamento Zavaschi et al 2005 O uso do Perfil Desenvolvimental proposto por Anna Freud é um recurso auxiliar bastante interessante que pode servir como guia para a organização e o detalhamento do material clínico levando a um diagnós tico que reflete múltiplos pontos de vista metapsicológicos provenientes de abordagem meticulosa e multifacetada da história do paciente e seus sintomas Silverman 1996 Freud A 1971 Tal formulação diagnóstica e indicação terapêutica será comunicada de uma forma compreensível ao paciente e seus familiares nas entrevistas de devolução que é a última etapa do período avaliativo Inicialmente são comunicados os aspectos saudáveis e posteriormente os mais com prometidos no desenvolvimento do paciente Este talvez seja o momento Crianças e adolescentes em psicoterapia 103 mais delicado do processo pois tem por objetivo discutir os achados diagnósticos com os pais de uma forma compreensível Os sentimentos de vulnerabilidade dos familiares devem sempre ser considerados pois a devolução pode ser recebida com desapontamento dúvida e até mesmo raiva explícita Os pais sonham com uma criança perfeita e com um relacionamento familiar ideal Por isso o terapeuta deve estar preparado para lidar com as manobras defensivas que possam surgir em decorrência do rompimento desse ideal narcísico parental Indicada a psicoterapia aspectos relativos ao contrato terapêutico podem ser abordados já nas entrevistas de devolução Assim se estabelecem combinações formais imprescindíveis para o curso do tratamento e para a consolidação e manutenção do setting como frequência das sessões horários honorários férias sigilo faltas e trocas de horário Tais combinações podem mobilizar resistências e ansiedades tanto no paciente e em sua família quanto no terapeuta Observamos em nossa prática por exemplo a frequente uti lização de justificativas baseadas em dificuldades financeiras reais ou não para encobrir resistências ao tratamento A esse respeito Zavaschi e cola boradores 2005 sugerem que a própria criança entregue o pagamento de seu tratamento ao psicoterapeuta pois isso a auxiliará a compreender o investimento dos pais e a seriedade do tratamento Também é fundamental antes do início da psicoterapia que se in vestigue a possibilidade de a família seguir as combinações necessárias para a manutenção do tratamento como buscar e trazer a criança nos horários marcados participar das entrevistas agendadas com os pais efe tuar o pagamento dos honorários entre outros aspectos do contrato A frequência das sessões já deve ter sido examinada no período ava liativo e está baseada numa visão global do funcionamento da criança e das possibilidades de a família manter o tratamento Normalmente tra balhase em psicoterapia psicanalítica com duas sessões semanais pois é uma frequência que possibilita proximidade e aprofundamento Em deter minados casos podese indicar a frequência de três sessões semanais se necessário Atualmente por situações externas dificuldades de levar e buscar a criança problemas econômicos entre outros também se realizam psicoterapias com uma sessão semanal Essa indicação no entanto tem que levar em conta algumas condições da criança tais como não apresentar distúrbios globais severos ser capaz de tolerar frustrações e conter ansie dades possuir relativa força egoica e defesas razoáveis para suportar uma semana entre as sessões Autores como Parsons Radford e Horne 1999 contraindicam a frequência de uma sessão semanal para crianças mais 104 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols comprometidas emocionalmente pois há maiores possibilidades de que atuem o conflito fora do setting psicoterápico dando a impressão de es tarem piores com a terapia Todavia em nossa prática percebemos que essa frequência de tratamento pode ser a única possível para determinadas famílias e pela experiência acumulada em inúmeros casos atendidos nessa modalidade alcançamos resultados positivos mesmo com crianças muito fragilizadas Cabe lembrar também que a psicoterapia nem sempre é a exclusiva indicação ao paciente que chegou à avaliação Muitas vezes os familiares é que estão apresentando dificuldades para manejar uma crise vital do desenvolvimento da criança sendo necessário auxiliálos através de outros encaminhamentos Outras vezes a demanda é dos pais que acabam se dando conta de que eles também precisam de psicoterapia O propósito da etapa avaliativa é portanto obter um entendimento aprofundado do sofrimento da criança e de seu modo de funcionamento mental a partir de uma visão ampla e global do contexto social familiar e desenvolvimental Também se deve estar atento às articulações que os sintomas que originaram o pedido de ajuda têm na fantasia tanto da criança como de sua família visando à elaboração de uma indicação te rapêutica adequada para cada caso específico FASE INICIAL A ALIANÇA Indicada a psicoterapia e contratado o tratamento a fase inicial se caracteriza principalmente pela construção de um vínculo de confiança e da aliança de trabalho Assim como na avaliação é imprescindível a cons trução de uma hipótese diagnóstica descritiva e psicodinâmica que norteará a indicação terapêutica No início do tratamento é necessário também um planejamento da psicoterapia que inclui a indicação os objetivos cons cientes e inconscientes e os recursos do paciente considerando suas necessidades e possibilidades Ianklevich 2005 É nesse período que a maioria dos abandonos de tratamento costu mam ocorrer especialmente entre a primeira e a oitava sessão Chaieb et al 2003 Isso se deve ao fato de o terapeuta possuir menos recursos para trabalhar as ambivalências desconfianças e resistências acerca do tratamento que se inicia já que nessa fase predominam emoções e ansiedades paranoides que devem ser compreendidas e trabalhadas Ianklevich 2005 Luz 2005 Crianças e adolescentes em psicoterapia 105 Juliana 9 anos apresentava agressividade baixa autoestima e brigas no lar por se mostrar dependente da mãe para as tarefas escolares Vinha de um tratamento anterior que durara pouco tempo em virtude da mudança da terapeuta para outra cidade Ao iniciar o novo tratamento Juliana mexeu em sua caixa apenas na primeira sessão mas sem muita curiosidade A única coisa que lhe chamou a atenção foi uma mãozinha de geleca que grudava em tudo Usandoa Juliana tentava atingir a terapeuta colando a mão nela Após a primeira sessão Juliana não mais tocou na caixa o que era assinalado pela terapeuta A menina ignorava tais verbalizações e seguia utilizando apenas os jogos coletivos A terapeuta compreendeu que Juliana queria muito poder grudar nela e formar uma aliança mas não podia nesse momento enfrentar os seus conflitos de dependência perda e controle Antes era preciso estabelecer um vínculo de confiança e ter alguma segurança de que não se sentiria abandonada como se sentiu com a interrupção do tratamento anterior Juliana não conseguia tocar nos conteúdos de sua caixacabeça antes que a terapeuta se apresentasse constante e como um objeto confiável A situação seguiu assim por quase cinco meses com resistências alternadas com aproximações quando Juliana recomeçou a explorar a caixa e seu conteúdo sentindose livre para investigar e explorar suas fantasias temores e sentimentos Isso só foi possível quando a paciente estava bem vinculada e já podia confiar na terapeuta Dentre os materiais lúdicos disponíveis na sala de atendimento normalmente é a criança quem escolhe o que deseja utilizar no decorrer da sessão e isso vai revelando algo sobre ela mesma O terapeuta é guiado pela criança e acompanha o jogo intervindo ou interpretando aspectos significativos do mesmo Frequentemente o paciente aceita melhor as interpretações quando essas não se referem diretamente a ele mas ao seu brincar e às personificações que cria O jogo possibilita partilhar temores e viver situações à distância no tempo e espaço deslocando ansiedades e conflitos que podem ser elaborados O campo que se cria na fase inicial precisa conter esperanças e receios aproximações e recuos na construção do trabalho psicoterápico Ianklevich 2005 A aliança tende a evoluir com o passar do tempo baseada na crescente ligação positiva com o terapeuta e na percepção consciente da necessidade de ajuda Sandler 1982 como pode ser visto no caso de Rafael 106 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Rafael 9 anos chegou à psicoterapia encaminhado pela escola com um histórico de cinco tentativas de tratamento No período de avaliação escolhia repetidamente jogos de tabuleiro Damas Ludo Moinho e voleibol Após um firme contrato com os pais com interpretações acerca da dificuldade em confiar o filho a um profissional foi iniciada a psi coterapia de Rafael Certo dia após cerca de quatro meses de tratamento propôs Vamos mudar o jogo de vôlei Agora não é mais de fazer pontos e sim vamos contar quantos toques conseguimos dar na bola sem deixar ela cair Juntos terapeuta e Rafael compreenderam que agora estavam formando uma dupla com uma tarefa comum a de segurarem juntos os problemas dele No final da primeira fase o paciente mais aliviado dos sentimentos persecutórios e mais familiarizado com o processo terapêutico deverá se aliar ao terapeuta na tarefa de identificar conflitos e buscar elabo rálos mostrandose mais preparado para receber interpretações Zavaschi et al 2005 FASE INTERMEDIÁRIA O PROCESSO ELABORATIVO A fase intermediária do processo psicoterapêutico é o período que se estende desde o momento em que se consolida a aliança terapêutica até a ocasião em que uma séria proposta de término passa a ser discutida entre paciente e terapeuta É em geral a etapa mais longa dos tratamentos que visa examinar analisar explorar e resolver os sintomas e as dificuldades emocionais do paciente O objetivo dessa etapa é a essência do tratamento Luz 2005 É possível ao terapeuta perceber a evolução para a fase intermediária quando passa a existir continuidade nos temas trazidos pelo paciente entre sessões Dessa forma a criança resgata assuntos ou brincadeiras ocorridas em momentos anteriores do tratamento Ana 7 anos foi encaminhada para tratamento por uma instituição de proteção ao menor por ter sofrido maustratos na família de origem Ela pouco brincava ou falava tendo momentos de isolamento Inicial mente passava as sessões produzindo bonecos disformes de massa de modelar solicitando a ajuda da terapeuta para colálos com muita cola e durex Eram produções sempre inacabadas e insatisfatórias para a Crianças e adolescentes em psicoterapia 107 menina que manifestava muito sofrimento Aos poucos seu brincar pas sou a ser mais rico e simbólico passando a utilizar a personificação com os bonecos que construíra e a se interessar por contos infantis e brinque dos variados que alargavam seu contato com seu mundo interno Estava em terapia havia um ano quando propôs o desenho de um cachor ro denominado Buldogue Entrou na sessão em busca desse desenho ocasião em que decidiu fazer uma Buldoga para lhe fazer companhia Nas sessões seguintes ocupouse com a construção de uma casa para residirem de tigelas para sua alimentação e por fim com o desenho cuidadoso dos filhotes do casal de cachorros Construiu o que chamou de família de cachorros felizes elaboração no início um tanto maníaca de seus traumas reais vividos tarefa que ocupou meses de sua terapia Paulatinamente a relação entre a criança e o terapeuta muda à medida que o tratamento passa para a fase intermediária A criança começa a pensar no terapeuta como uma pessoa da sua vida diária embora com papel e função bem discriminados das demais relações de sua vida A aliança terapêutica e a confiança consolidada possibilitam um clima de intimidade a partir do qual sentimentos de raiva ou aversão ao terapeuta podem também começar a emergir É comum o uso do banheiro pelas crianças bem como a vazão de impulsos corporais tais como eructações e flatulências expressando conteúdos orais e anais sádicos e agressivos Nossa função como terapeutas é buscar significados para tais atitudes rela cionandoas com os conflitos subjacentes Muitas vezes tais ações podem ser entendidas como actings em outras apenas como uma forma de expressão Essa compreensão do terapeuta se dá a partir da relação da dupla e da trama de sentimentos agressivos e amorosos que permeiam o campo psicoterápico É sempre importante apontar que a criança tem permissão de expressão simbólica para brincar desenhar ou falar sobre qualquer tema mas não pode fazer tudo pois isso coloca em risco o setting Winnicott 2000 ressalta que o fornecimento de um ambiente su ficientemente bom na fase mais primitiva capacita o bebê a começar a existir a ter experiências a constituir um ego pessoal a dominar os instintos e a se defrontar com todas as dificuldades inerentes à vida p 404 É possível fazer uma alusão com a situação terapêutica na qual o paciente só poderá ser ele mesmo e mostrar seus aspectos positivos e negativos quando se sentir seguro em um ambiente suficientemente bom em que ele possa ter expe riências que remetam às mais diversas emoções e aos estados de seu self Assim pode mostrar sua agressividade seu ódio e sua inveja pois sabe que 108 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols no espaço do setting tais aspectos serão trabalhados tolerados respeitados e integrados à sua personalidade Sem essa espontaneidade o verdadeiro self poderia ficar encoberto por um falso que reagiria aos estímulos em uma tentativa de se livrar das experiências instintivas sem vivenciálas Para o psicoterapeuta uma das tarefas mais difíceis no curso da psi coterapia é o defrontarse com o profundo sofrimento da criança Nestes momentos é necessário estar atento aos sentimentos contratransferenciais para não entrar em conluio inconsciente com o paciente evitando tocar nessas situações dolorosas O paciente também fornece ao psicoterapeuta indícios do momento propício para interpretações ou outras intervenções dirigidas a tais conflitos e dificuldades Isso pode ocorrer quando ele passa a brincar com o mesmo brinquedo repetir o mesmo material mesmo que sob diferentes formas através de postura física e olhares para o terapeuta mudanças no jogo e enriquecimento do mesmo Castro e Cimenti 2000 O jogo é uma narrativa que faz parte de um campo emocional esta belecido entre a criança e o terapeuta O brincar pode ser entendido como texto narrativo que é prépartilhado pela dupla não existindo sentidos prontos ou interpretações previamente saturadas pela mente do terapeuta A dupla deve buscar descobrir ou criar esses sentidos Ferro 1995 Quando a criança está sofrendo por uma perda real concreta por morte ou abandono ela precisa mais de continência do que de interpreta ções Também se evita interpretar quando a criança está tentando entender o que ocorre com ela Nessas situações é mais adequado deixar que ela mesma chegue ao insight no seu ritmo Castro e Cimenti 20002 Em relação a esse aspecto é importante lembrar que a elaboração não se limita à hora terapêutica é comum que a criança relate a ocorrência de insights fora da sessão Essas compreensões afetarão diretamente as relações da criança com os pais ou outras figuras significativas Na medi da em que a psicoterapia evolui podese esperar que a criança alcance insights cada vez mais genuínos e significativos com consequente alívio dos sintomas e com crescimento mental Luz 2005 passando a utilizar com mais frequência a linguagem verbal diminuindo o uso de mecanismos regressivos e de actings Zavaschi et al 2005 Mesmo com essas conquistas os riscos de interrupção não se extin guem nessa etapa intermediária As possíveis causas para a interrupção prematura incluem fatores do terapeuta do paciente e também da realida de Luz 2005 O mesmo se pode pensar para os casos de estagnação do progresso terapêutico Qualquer paralisação do processo terapêutico pode ser pensada não só a partir da interação entre a transferência do paciente Crianças e adolescentes em psicoterapia 109 e a contratransferência do terapeuta mas também sob a ótica de um fenômeno de campo produto da interação dos três elementos terapeuta paciente e pais Kancyper 2002 como aparece no caso de Maria Maria 6 anos foi levada a tratamento devido a dificuldades para con ciliar o sono A menina recusavase a dormir sozinha de modo que os pais vinham se revezando para dormir com ela à noite A psicotera peuta desde o início percebera as dificuldades sexuais do casal que estavam vinculadas ao sintoma de Maria Após alguns meses em psico terapia Maria pegou no sono em sua própria cama retirandose do quarto do casal Na semana seguinte seus pais solicitaram uma entre vista e comunicaram a interrupção do tratamento da menina utilizando como justificativa a possibilidade de anteciparem as férias As tentativas de trabalhar as resistências parentais foram infrutíferas pois esbarravam nos conflitos dos pais de Maria que precisavam do sintoma da menina para encobrir suas próprias dificuldades conjugais e pessoais3 No caso de nãointerrupção do processo psicoterapêutico a fase intermediária tornase a mais longa de todo o processo compreendendo a exploração a interpretação e a elaboração dos conflitos manifestos e latentes que originaram a busca de tratamento para a criança Em função disso no decorrer dessa fase novos conflitos poderão emergir e novas questões poderão ser foco do trabalho terapêutico FASE FINAL A DESPEDIDA A fase final do processo psicoterápico é o período que se estende desde a primeira menção séria de término do tratamento até o minuto final da última sessão combinada para o encerramento de fato Luz 2005 A ideia da finalização do tratamento pode vir do paciente dos pais do terapeuta ou ainda das três partes envolvidas quando há uma melhora visível e clara que justifique um término terapêutico Na maioria das vezes ocorre o que chamamos término combinado quando uma das partes geralmente os pais anunciam a decisão de encerrar o processo sendo combinado um período para trabalhar com criança o processo de separação e a despedida do terapeuta Términos a pedido também podem ser o final de um processo produtivo e de crescimento mesmo que em certos casos o psicoterapeuta ainda apontasse conteúdos a serem trabalhados quando 110 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols a separação pode ser vivenciada e trabalhada no campo psicoterápico sem pressa Essa etapa final tem como objetivo ajudar a criança a examinar suas condições reais para um término trabalhar as questões relativas ao luto pelo fim do relacionamento com o terapeuta identificar os ganhos conquistados e as situações que ainda merecem alguma atenção psicote rápica Luz 2005 Duarte 1989 desenvolveu a ideia de entrevista final em psico terapia infantil que seria a entrevista na qual é vivenciado o término do tratamento por parte da criança não sendo necessariamente a última sessão A autora considera que essa entrevista final ocorre quando a criança pode compreender que deixará de fazer psicoterapia e irá se separar do terapeuta quando há uma concordância entre os pais o terapeuta e a própria criança de que ela está bem e poderá seguir sua evolução sozinha A autora aponta semelhanças entre a primeira entrevista de tratamento e a entrevista final Na primeira a criança expõe suas fantasias de doença e de cura e na última ela parece reviver de modo sintético todo o processo psicoterápico desde o motivo de busca até o momento da despedida Esse é um período em que se mesclam trocas transferenciaiscontra transferenciais relacionadas às questões da realidade externa ante ao fato de brevemente não existir mais o vínculo pacienteterapeuta nos moldes em que até então aconteceu Interpretações transferenciais relativas à perda e ao luto pelo término são muito úteis para auxiliar o paciente a se despedir de seu terapeuta O tratamento de Ana já durava quatro anos e meio quando paciente terapeuta e responsáveis legais concordaram com o término O encerra mento então foi combinado para seis meses depois tempo razoável para trabalhar o processo de separação com essa menina que havia sofrido abandonos Em uma das sessões seguintes Ana chega ao consultório da psicoterapeuta carregando duas folhas nas quais havia dois desenhos muito parecidos cada um com um carro andando em uma estrada Obser vando atentamente viase que os carros andavam em direções opostas Terapeuta Ana que desenhos são esses que trouxeste Ana Um carro indo para cada lado Terapeuta Estão se distanciando então Ana Esse está indo para a tua casa e esse indo embora Não sei se vão se encontrar mas quando se cruzaram pela estrada se abanaram e disseram Oi tudo bem Crianças e adolescentes em psicoterapia 111 Terapeuta Então são carros que se conhecem que estão se distanciando como nós que estamos nos despedindo eu indo para minha casa e tu indo para longe de mim Ana É acho que é bem assim Já falei para minha professora que ano que vem não virei mais aqui nas terçasfeiras Um tempo combinado para o término possibilita rever etapas e examinar conquistas obtidas ao longo de todo o processo bem como ana lisar objetivos que não puderam ser atingidos total ou parcialmente É uma etapa de balanços e de elaboração da separação Diante disso percebese que términos fora do timing podem acarretar riscos para um bom fechamento do processo seja por serem prematuros ou postergados Luz 2005 Quando ocorrem precocemente é possível que o luto não seja elaborado suficientemente podendo envolver ansie dades tanto do paciente quanto do terapeuta em lidar com a separação Da mesma forma tratamentos prolongados além do necessário também podem refletir dificuldades de separação da dupla ou da família de assumir agora sem a ajuda do terapeuta a responsabilidade pela criança e seguir lidando com as dificuldades que possam vir a surgir no curso do desen volvimento Além disso tais términos podem denunciar dificuldades con tratransferenciais por parte do terapeuta Os critérios para se decidir um término relacionamse aos objetivos terapêuticos e à mudança psíquica alcançada pela criança em três espaços como sugere Bianchedi 1990 espaço intrasubjetivo ligado às pulsões seus derivativos e fantasias espaço intersubjetivo que envolve as relações objetais e espaços vinculares e um espaço transubjetivo que responde pelo espaço social e cultural Em diversos casos há um retorno dos sintomas ou até uma piora em resposta à possibilidade de término iminente o que pode ou não ser considerado resistência Esse possível retorno dos sintomas pode ocorrer devido ao fato de ainda haver um trabalho de elaboração por fazer ou apenas sinalizar uma reação à eminência de separação da dupla Nem sempre é fácil portanto diferenciar entre o que ficou por fazer e o que é uma recapitulação do passado O término do tratamento psicoterápico de uma criança é uma vitória para ela e também para o terapeuta em que se mesclam uma gama de sentimentos como pesar pela separação e a satisfação pelas conquistas alcançadas Cada terapeuta tem seus próprios critérios para alta embasados nas experiências profissionais e na síntese individual resultantes da for 112 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols mação e do tratamento pessoal Castro 1989 Entre inúmeras listagens de critérios de alta privilegiamos a de Kernberg 1995 que sugere alguns indicadores por parte da criança Apresenta uma ideia mais realista do terapeuta e de suas funções demonstrando bom relacionamento com ele sendo desfeitos os vínculos transferenciais Passa a trazer mais material referente à vida cotidiana dandose conta da perspectiva de tempo e apresentando planos futuros Demonstra mudança na qualidade das suas comunicações havendo aumento de verbalizações Demonstra sentimentos ambivalentes com relação ao término como tristeza e pesar acompanhados de satisfação com seus ganhos Apresenta comportamentos sublimatórios desenvolvendo novos interesses e criatividade Usa defesas mais flexíveis e evoluídas Obtém insights tornandose mais reflexiva na busca de entendi mento acerca das causas dos fenômenos que observa em si e na realidade externa Retoma o curso de seu desenvolvimento sem tantas barreiras e sofri mentos O final de um processo psicoterápico implica também na perda da onipotência É claro que não foram trabalhados todos os aspectos e conflitos da criança por isso o término pode ser considerado uma etapa que fica em aberto com o reconhecimento de que circunstâncias futuras podem produzir novos problemas e que um outro período de trabalho pode se tornar necessário Castro e Cimenti 2000 Sendo o término programado de comum acordo entre paciente e terapeuta propõese que a data da última sessão também seja acordada entre ambos Luz 2005 Ainda que essa data seja definitivamente fixada em alguns casos pode ser indicada uma redução da frequência das sessões no decorrer desse processo de término o que algumas vezes pode ser sugerido pela própria criança Em relação a esse aspecto é importante ressaltar a inadequação de con cretizar o término em período imediatamente antes ou após as férias pois mascara os processos de separação e elaboração de lutos que ficam negados A elaboração da separação é apenas o ponto de partida para que o paciente possa seguir sozinho e com mais autonomia a sua caminhada desfrutando das conquistas obtidas no decorrer do processo Além disso Crianças e adolescentes em psicoterapia 113 a vivência de uma boa experiência psicoterápica na infância mantém as portas sempre abertas para que um novo processo possa ser iniciado em outro momento de vida caso seja necessário CONSIDERAÇÕES FINAIS O processo psicoterápico com crianças abrange a avaliação e as três etapas de tratamento inicial intermediária e final sendo que essas etapas se caracterizam pela forma e pelos conteúdos pelos quais a psicoterapia transcorre Uma peculiaridade do tratamento nessa faixa etária consiste no fato do trabalho criativo envolver não apenas o paciente e o terapeuta mas também os pais e em alguns casos outros familiares a escola e demais profissionais que porventura acompanham o caso o que contribui para aumentar a complexidade do processo Ainda que o terapeuta deva estar atento a todas as partes envolvidas o cerne do trabalho terapêutico e o principal veículo para mudanças psí quicas é a relação psicoterápica estabelecida com a criança e a compreensão dos fenômenos transferenciais e contratransferenciais Terapeuta e criança se conhecem constituem uma aliança de trabalho e um vínculo único e diferenciado dos demais a fim de explorar os sintomas e tentar resolver as dificuldades emocionais A receptividade emocional do psicoterapeuta e sua habilidade para criar um espaço psicoterápico continente que acolha a espontaneidade o brincar as fantasias nãodomesticadas e o pensar sobre as experiências emocionais que brotam nas sessões via relação transferencialcontra transferencial é imprescindível para a realização de uma psicoterapia Por isso é fundamental que o terapeuta de crianças esteja conectado com o seu mundo interno e com seus próprios aspectos infantis para ser receptivo com o rico e multifacetado mundo interno da criança NOTAS 1 Ver Capítulo 3 Desenvolvimento emocional normal da criança e do adoles cente 2 Ver Capítulo 5 A clínica com crianças e adolescentes o processo psicoterápico 3 Ver Capítulo 6 O lugar dos pais na psicoterapia de crianças e adolescentes 114 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols REFERÊNCIAS ABERASTURY A Teoria y tecnica del psicoanalisis de niños Buenos Aires Paidós 1978 AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION APA DSMIVTR Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais 4 ed rev Porto Alegre Artmed 2003 BERNSTEIN I SAX A Indicações e contraindicações para análise de crianças In GLENN J Org Psicanálise e psicoterapia de crianças Porto Alegre Artmed 1996 p 4771 BIANCHEDI E Mudança psíquica o devir de uma indagação Revista Brasileira de Psicanálise v 24 n 3 p 361375 1990 CASTRO M G K Término e critérios de alta em psicoterapia infantil In DUARTE I A prática da psicoterapia infantil Porto Alegre Artmed 1989 p 5171 CASTRO M G K CIMENTI M E Psicoterapia infantil pensar relações e criar significados Revista do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia v 2 n 2 p 3755 2000 CHAIEB A et al Sentimentos e sofrimentos do psicoterapeuta frente ao abandono por seus pacientes Revista do Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia v 5 n 5 p 170188 2003 COPPOLILLO H Psicoterapia psicodinâmica de crianças Porto Alegre Artmed 1990 CUNHA J A PsicodiagnósticoV Porto Alegre Artmed 2000 DUARTE I A entrevista final em psicoterapia infantil In DUARTE I A prática da psicoterapia infantil Porto Alegre Artmed 1989 p 4250 EFRON A M et al A hora de jogo diagnóstica In OCAMPO M L S ARZENO M E G PICCOLO E G Org O processo psicodiagnóstico e as técnicas projetivas São Paulo Martins Fontes 1995 p 169191 FERRO A A técnica na psicanálise infantil Rio de Janeiro Imago 1995 FREUD A Um perfil metapsicológico da criança In Infância normal e patológica Rio de Janeiro Zahar 1971 p 123129 GLENN J Uma visão geral da técnica analítica de crianças In GLENN J Org Psicanálise e psicoterapia de crianças Porto Alegre Artmed 1996 p 720 IANKLEVICH E Planejamento In EIZIRIK C L AGUIAR R A SCHESTATSKY S S Org Psicoterapia de orientação psicanalítica 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 206218 KANCYPER L O campo analítico com crianças e adolescentes Psicoterapia psicanalítica v 4 n 4 p 916 2002 KEIDANN C E DAL ZOT J S Avaliação In EIZIRIK C L AGUIAR R A SCHESTATSKY S S Org Psicoterapia de orientação psicanalítica 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 193205 KERNBERG P Transtornos da personalidade em crianças e adolescentes Porto Alegre Artmed 1995 Crianças e adolescentes em psicoterapia 115 LUZ A B Fases da psicoterapia In EIZIRIK C L AGUIAR R A SCHESTATSKY S S Org Psicoterapia de orientação psicanalítica 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 254267 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE OMS CID 10 Classificação internacional de doenças Porto Alegre Artmed 1993 PARSONS M RADFORD P HORNE A Traditional models and their contempo rary use nonintensive psychotherapy and assessment In LANYADO M HORNE A Org The handbook of child adolescent psychotherapy psychoanalytic ap proaches London Routledge 1999 p 215232 SANDLER J Técnica da psicanálise infantil Porto Alegre Artmed 1982 SILVERMAN M A O Perfil Desenvolvimental In GLENN J Org Psicanálise e psicoterapia de crianças Porto Alegre Artmed 1996 p 7282 WINNICOTT D W A Preocupação Materna Primária In Da pediatria à psicanálise obras escolhidas Rio de Janeiro Imago 2000 p 399405 ZAVASCHI M L S et al Abordagem psicodinâmica na infância In EIZIRIK C L AGUIAR R A SCHESTATSKY S S Org Psicoterapia de orientação psicanalítica 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 717737 O lugar dos pais na psicoterapia de crianças e adolescentes Anie Stürmer Clarice Kern Ruaro Lisiane Alvim Saraiva 6 Na maior parte dos tratamentos de crianças e adolescentes o contato inicial com o terapeuta é realizado pelos pais ou responsáveis Principal mente no caso de crianças a busca não se dá de forma espontânea mas sim em decorrência de comportamentos desadaptativos ou crises desen volvimentais que trazem preocupações aos pais à escola e ao pediatra Os psicoterapeutas que trabalham com essas faixas etárias muitas vezes se veem frente a questões inescapáveis relacionadas com a presença dos pais nos tratamento dos filhos deixando transparecer a singularidade própria da psicoterapia de orientação psicanalítica O lugar ocupado pela família é extremamente relevante na psicoterapia de menores Desde o primeiro contato telefônico a prática da psicoterapia se mostra indissociável da entrada de muitos discursos fantasias ansiedades e conflitos e a partici pação dos pais ou responsáveis é fundamental para a consolidação manu tenção e término do processo psicoterápico Este capítulo abordará a importância da participação dos pais ou res ponsáveis desde o início até o final do processo da psicoterapia A percepção de que um filho precisa de atendimento psicoterápico pode gerar desconforto e culpa nos pais Ao fazer contato com um psicoterapeuta levando seu filho para atendimento os pais demonstram que muitas etapas anteriores foram vencidas principalmente a do reconhecimento de que algum tipo de ajuda se faz necessária Assim o sentimento de ambivalência está subjacente à che gada dos pais e do paciente como em qualquer início de tratamento pois existe a demanda o desejo de entender e resolver a conflitiva mas por outro lado simultaneamente há o temor e a resistência de sair do status quo Crianças e adolescentes em psicoterapia 117 Algumas peculiaridades também podem intervir na relação paisres ponsáveispsicoterapeuta como a patologia da criança ou da família por exemplo Pais de pacientes autistas ou psicóticos exigirão do psicotera peuta grande habilidade de manejo pois precisam se sentir apoiados para levar a psicoterapia adiante sendo para tal auxiliados em suas dúvidas e angústias através de contatos mais seguidos com o terapeuta A INSERÇÃO DOS PAIS NO PROCESSO PSICOTERÁPICO ASPECTOS LEGAIS A participação dos genitores ou responsável legal no tratamento de menores de idade é tema disposto no artigo 8º do Código de Ética Pro fissional do Psicólogo 2005 Esse artigo regula a obrigatoriedade de o profissional obter autorização de pelo menos um dos pais ou responsáveis para a realização de atendimento sistemático de criança adolescente ou interdito Dessa forma conforme a legislação vigente esse contato se faz imprescindível visando proteger os interesses do menor e do próprio psi coterapeuta Independentemente de como essa participação será traba lhada tecnicamente ou de qual forma os pais serão inseridos no percurso da psicoterapia de seus filhos existe o compromisso legal de contatálos e na sua ausência o profissional comunicará o fato às autoridades compe tentes conforme o 1 parágrafo do mesmo artigo O fato de o paciente ser dependente de um adulto geralmente um familiar faz com que o contrato de tratamento implique o envolvimento de pais criança e terapeuta visto que são os primeiros que têm a incum bência de trazer o filho para as sessões pagar pelos honorários do profis sional ou seja participar efetivamente da psicoterapia da criança O papel dos adultos no decorrer do tratamento portanto não se dá apenas no nível do mundo fantasmático fatores de realidade se fazem igualmente presentes Nesse ponto cabe questionar como será a entrada e qual a participação destes na psicoterapia da criança ou adolescente Que espa ço terão para colocar suas preocupações dúvidas e ansiedades Como diferenciar suas demandas das trazidas pelo paciente em questão ABORDAGEM HISTÓRICA E TÉCNICA DE DIFERENTES AUTORES Todas essas reflexões se fazem presentes desde os primórdios do tratamento psicanalítico com crianças e jovens Diferentes entendimentos 118 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols e perspectivas teóricas dentro da linha psicanalítica seguem em contínuo aprimoramento e expansão na forma de inserção dos pais culminando inclusive em controversos posicionamentos a abordagem kleiniana é diferente da visão da Escola Francesa por exemplo que por sua vez terão influência direta sobre a técnica empregada O caso que pode ser considerado o primeiro tratamento psicanalítico realizado com uma criança foi o clássico Pequeno Hans de 1909 Nesta ocasião Freud 1976 atuou como supervisor do pai do menino este sim desempenhando o papel de analista do próprio filho Freud nunca tratou uma criança diretamente mas esse caso tem um inegável valor histórico pois permitiu que os impulsos e desejos sexuais infantis fossem vislumbra dos diretamente corroborando seu recém publicado Três ensaios sobre a teoria da sexualidade de 1905 Klein pioneira da psicanálise infantil tinha uma visão bem própria em relação à participação dos pais reais no tratamento de crianças visto que para ela os pais que tinham relevância eram os fantasiados perten centes à realidade psíquica do paciente Entendia que avistar os pais frequentemente dependeria de cada caso em particular e confessava que muitas vezes achou melhor limitar esses encontros a fim de evitar atritos com a mãe Klein 1981 p 117 Dessa forma o conflito era per cebido prioritariamente como advindo do mundo interno da criança e de suas imagos parentais internalizadas sendo pouco enfatizado o caráter relacional e intersubjetivo Zornig 2001 Klein 1981 afirmava que para uma análise infantil alcançar suces so era necessário estabelecer uma relação de confiança com os pais só assim o analista estaria em condições de obter informações úteis sobre o comportamento da criança fora das sessões Para a autora os pais esta riam incluídos no campo de análise pois a criança depende deles mas eles não estão sendo analisados Essa relação teria peculiaridades por to car de perto nas dificuldades e no sentimento de culpa dos pais que ao recorrer ao tratamento para o filho estariam admitindo sua responsa bilidade sobre a doença da criança Além disso compreendia que a mãe nutriria ciúmes da relação confidencial desenvolvida pelo paciente e o analista Klein acreditava que esse ciúme se derivava da rivalidade da mãe com sua própria imago materna como uma mãe interna inflexível que exigiria a restituição dos filhos que lhe haviam roubado A análise de crianças era por ela entendida como sendo parecida com a de pacientes adultos pois utilizava a transferência desde as primeiras sessões para acessar os substratos mais profundos do psiquismo infantil Crianças e adolescentes em psicoterapia 119 remetendo às primeiras relações objetais e às suas fantasias inconscientes Zavaschi et al 2005 Klein 1932 se abstinha de interferir na educação das crianças a menos que observasse erros crassos no tocante ao manejo dos pais Com preendia que dessa intervenção só poderia advir novos entraves à aná lise provocando efeitos desfavoráveis na atitude dos pais com seu filho p113 Reiterava que a relação que estabelecia com os pais de seus pe quenos pacientes era com o objetivo de lograr que auxiliem nosso tra balho de forma passiva devem se abster tanto quanto possível de qual quer interferência quer fazendo perguntas que incitem a criança a falar da análise em casa quer alimentando as resistências que ela possa abri gar p114 Quando a criança era dominada por resistências os pais deveriam auxiliar para que comparecesse às sessões Assim a ambivalência dos pais à análise do filho estaria sempre per meando todo o tratamento A situação se tornava mais favorável quando a análise chegava ao término ou em etapas mais avançadas pois o desa parecimento ou a redução da neurose tem excelente efeito sobre os pais Klein 1981 p 116 Além disso sob essa perspectiva é muitas vezes difícil o reconhecimento da melhora do paciente pois a terapia seria pre ventiva e por conseguinte não percebida pelos genitores A doença não afetaria a vida cotidiana da criança tal como a enfermidade neurótica afeta a do adulto por exemplo Anna Freud 1964 por sua vez valorizava os vínculos com os pais reais mas destinava a esses o lugar de educadores imprimindo um cará ter pedagógico ao tratamento Sua abordagem terapêutica recaía predo minantemente na análise das defesas egoicas e das competências alcança das em cada estágio do desenvolvimento ponderando que a meta do ana lista seria manter a boa vontade do paciente para trabalhar em conjunto Para tal em determinados momentos o analista poderia sugerir que as crianças brincassem um pouco na sessão interrompendo o trabalho analí tico a fim de não pressionálas demais e manter sua ansiedade em um nível que elas pudessem suportar Sandler 1990 Nos comentários realizados no livro Técnica da psicanálise infantil em parceria com Sandler 1990 Anna Freud enfatizou diversas vezes a importância da existência de uma fase preparatória à terapia para auxi liar e atrair a atenção da criança para o conflito interno despertando sua hostilidade frente à parte patológica a fim de consolidar a aliança de tra tamento Acreditava que uma relação afetiva imediata poderia não desen volver necessariamente uma aliança adequada mas poderia ser útil ao 120 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols trabalho terapêutico A cooperação da criança com o terapeuta deveria surgir de seu desejo em comunicar suas ansiedades Caso isso não ocor resse seria sinal de que a criança estaria relutante em entrar em tratamento o que não era percebido por Anna Freud como resistência A relutância poderia existir devido à existência de segredos na família conflitos de leal dade ou poderia estar também manifestando a ambivalência inconsciente de um dos pais ou de ambos sobre seu tratamento Sandler 1990 Em dissertação de mestrado que teve por objetivo realizar uma revisão crítica sobre o lugar dos pais na história da psicanálise infantil Atié 1999 examinou a posição de diversos autores inclusive Anna Freud no que tange essa questão Referiu que Anna Freud percebia as dificuldades enfrentados pelo analista ao lidar com a dependência da criança em relação aos pais mencionando que o início a continuidade e a conclusão do tratamento só poderiam ocorrer caso fosse possível confiar na compreensão dos genitores Propôs que a autoridade do terapeuta deveria ser sentida pelo paciente como sobressalente à autoridade dos pais O terapeuta portanto deveria se colocar no lugar do EgoIdeal da criança no decorrer de sua análise Os pais por sua vez aceitariam ou não essa posição do analista conformandose com os pedidos dele e dividindo o trabalho analítico e educacional ou se opondo e utilizando a criança como objeto de disputa A fim de evitar a segunda hipótese Anna Freud buscava investigar se os pais possuíam o que chamara de compreensão analítica ou seja se conseguiam concordar e entender as diretrizes e ações pedagógicas que seriam propostas pelo psicanalista no decorrer do tratamento da criança Atié 1999 A dependência da criança em relação aos pais embora limitasse o trabalho do analista trazia também aspectos positivos na medida em que possibilitava ao terapeuta orientálos a implementar modificações no mun do externo da criança Assim os contatos com os pais do paciente eram percebidos como extremamente importantes por Anna Freud pois esses seriam foco de orientação e acompanhamento no decorrer do tratamento da criança A intervenção ocorria seguindo critérios pedagógicos e não a partir de um trabalho com as fantasias inconscientes dos pais Atié 1999 Anna Freud também entendia que o fato de a criança não estabelecer transferência seria um empecilho à análise infantil posto que ainda se encontrava sob influência dos pais reais sem condições portanto de atualizar tais relações no contexto da análise na relação com o terapeuta Zavaschi et al 2005 Considerava por conseguinte as crianças muito frágeis para se submeterem à análise atendeu crianças a partir da latên cia não acreditando que elas pudessem desenvolver a transferência e Crianças e adolescentes em psicoterapia 121 associar livremente em função de sua imaturidade psíquica entendendo que a abordagem psicanalítica deveria vir associada portanto a uma ação educativa Patella 2004 Para a Escola Francesa na qual se destacam as contribuições de Dolto e Manonni ambas influenciadas pela teoria de Lacan é sustentada a posição de que a neurose dos pais possui um papel fundamental no sintoma da criança colocando a dimensão simbólica do sintoma infantil como ocultando questões parentais ou seja o sintoma infantil teria a fun ção de esconder a mentira do adulto Traz para o primeiro plano a po sição que a criança ocupa nos fantasmas desejos e discurso dos pais ficando ela fixada em um determinado lugar em virtude dos desejos e das fantasias deles Conforme o entendimento dos autores da Escola Francesa a criança procura se identificar com o que suspeita ser o desejo materno sujeitandose a preencher o que falta na mãe dessa forma evitando a an gústia de castração Assim pode acabar se alienando no desejo do outro e estabelecendo relações narcísicas e simbióticas O sintoma da criança depende não só da articulação imaginária inconsciente estabelecida com os pais mas da articulação entre o lugar proposto por eles e a construção da neurose infantil Além disso é per meada pela produção de fantasias e do desenrolar do processo edípico Zornig 2001 A criança tem suas singularidades e não é apenas um re flexo ou espelho dos pais Nesse sentido as intervenções clínicas podem tomar duas direções a questão familiar sendo o sintoma da criança enten dido como um deslocamento do acontecido na sexualidade dos pais ou uma intervenção que se interessa pelo desejo do sujeito e constituirá uma prática de subjetivação promovendo um espaço de escuta para a criança ser ouvida com seus desejos e discurso próprio O sintoma não fica reduzi do às demandas parentais Ao psicoterapeuta cabe então intervir como elemento separador deslocando a demanda dos pais do sintoma da crian ça singularizando suas narrativas Zornig 2001 Há ainda um fator que diferencia a psicoterapia com crianças e jovens que se dá em função de uma amarração entre o paciente e as demandas exteriores a ele O terapeuta não pode perder de vista a entrada de todos esses fatores na transferência e que nas entrevistas os pais e a criança se entre laçam em um campo transferencial único O desaparecimento do sintoma na criança provoca efeito sobre os pais e viceversa Kupfer 1994 A partir dessas considerações entendemos que as diferentes linhas psicanalíticas construíram posições peculiares em relação à participação dos pais na psicoterapia de crianças e adolescentes elaboradas a partir de 122 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols suas próprias experiências e observações Concordamos que é imprescin dível a participação dos genitores ou responsáveis em todo o processo psicoterápico seja com crianças ou adolescentes Deixar os pais à parte do tratamento apenas suscitará fantasias e resistências que poderão criar im passes terapêuticos a respeito da terapia Manter encontros periódicos com os pais auxilia a diminuição das fantasias persecutórias bem como ao se aproximar da história familiar entendendo sua dinâmica faz com que venham à tona segredos ou aspectos ocultos que vão se evidenciando na medida em que é construída uma relação de confiança Estar atento às manifestações resistenciais dos pais ajudará a prevenir abandonos e forta lecerá a relação com o terapeuta Ter um olhar para a criança em separado dos pais também em nosso entendimento é imprescindível a criança tem uma vida mental própria mesmo que atravessada pelas projeções e pela subjetividade dos seus pais É necessário ouvir as diferentes demandas para retirar a criança de uma determinada função na estrutura familiar pois demonstra por meio do sintoma a própria subjetividade e deve ser ouvida como sujeito de pró prio discurso A tarefa do psicoterapeuta será a de auxiliar na discriminação e sepa ração desses aspectos através de contatos que não configurem um setting de tratamento pessoal mas sim com o intuito de conter ansiedades esta belecer e desamarrar questões e fantasmas da história de cada família que possam estar impedindo o desenvolvimento sadio do pequeno paciente ou do adolescente ASPECTOS TRANSGERACIONAIS Para compreender a constituição psíquica do sujeito é básico incluir o aspecto transgeracional e sua articulação entre o intrapsíquico e o inter subjetivo É possível pensar na articulação fundamental entre o intersub jetivo representado pela família e pelo social e o intrapsíquico na consti tuição do sujeito Kaës 1998 p 55 O ser humano já nasce inserido em uma cultura que o antecede Na mente dos seus progenitores ou cuidadores já se fazem inscritos e vibran tes os valores as histórias transgeracionais os mitos familiares e os proje tos identificatórios Lisondo 2004 A transmissão geracional então po de ser efetivada de forma positiva vindo pela palavra em um elo que faz parte da constituição do sujeito desde o seu início Há também formas de Crianças e adolescentes em psicoterapia 123 transmissão pelo negativo resultantes do nãodito nãonomeável mas que se repetem por gerações amarrando o sujeito a algo que ele não tem acesso Situações traumáticas não representadas nem nomeadas podem emergir em gerações seguintes como fantasmas Assim o nãosimbolizado se repete até se fazer ouvir de alguma forma Vitória 8 anos veio a tratamento trazida por sua mãe por apresentar aftas recorrentes na boca e estar com problemas de rendimento escolar Ao se inteirar da história familiar a terapeuta soube de diversos episó dios que envolviam perdas e lutos em sua família Rosa mãe de Vitória perdeu seu pai na infância sua mãe casou novamente e teve duas filhas deste relacionamento Aos 18 anos Rosa perdeu sua irmã de 8 anos vítima de um atropelamento Em seguida soube que estava grávida Seu namorado pai de Vitória assumiu a paternidade mas não convi veu com Vitória pois constituiu outra família e a vê poucas vezes Rosa morou um tempo com a menina na casa da mãe mas acabou entre gando a filha para a avó criar e foi morar com outro companheiro Um ano antes da busca de terapia morre o companheiro da avó que Vitória chamava de avô Logo a terapeuta observou os vários lutos na família e a falta de espaço para elaborálos Esses lutos apareciam nas fantasias trazidas no jogo da menina como no exemplo a seguir Vitória trazia conteúdos de que o pátio de sua casa estava contaminado com um vírus e tinha de ser desinfectado com o perigo de que todos os animais da casa morressem Em sua caixa individual reservou um espaço onde colocou objetos confeccionados por ela com massinha de modelar em miniatura na cor preta faziam parte da casinha e tinham que ficar na caixa guardados em um cantinho A terapeuta entendeu que Vitória tinha um cantinho onde jaziam objetos mortos os quais tinha de carregar em seu mundo interno Esse conteúdo ficou contido na mente do terapeuta à espera do momento propício para ser devolvido para a menina pois interpretálo naquele momento seria saturar a mente da criança Esse entendimento possibilitou que a terapeuta trabalhasse com sua mãe nas sessões reservadas a ela A terapeuta ao atender a mãe abriu um espaço para que repensasse seus lutos e suas culpas buscando novas formas de lidar com a menina auxiliando a entender o porquê de sua dificuldade em assumir sua filha e estabelecendo a possibilidade de falar sobre suas perdas trazendo para a consciência os lutos que permeavam 124 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols a vida dessa família e que Vitória veio tamponar Através das aftas Vitória mostrava em seu corpo o choro nãochorado da família as dores e a raiva que ficavam expressados no sintoma da paciente Sua mãe não se sentia autorizada a assumir o papel de mãe sentiuse obrigada a entregar a filha para a avó no lugar da irmã que havia falecido tragicamente Vitória por sua vez se sentia com um cemité rio o cantinho reservado em sua caixa em seu mundo interno sem espaço psíquico para ser O tratamento tinha como foco fazer com que Vitória pudesse expressar seus sentimentos sem ter que somatizar como fazia através das aftas Esse luto ao ser endereçado para tratamento através do sintoma de Vitória permite a expressão e ressignificação do nãodito nãochorado e nãoelaborado pela família Além disso a falha na triangulação que se repete desde as gerações anteriores a figura masculina ausente ou distante também é um aspecto transgeracional como se houvesse uma ausência de figura mas culina na mente das mulheres da família que acabam por descartar os homens após engravidarem A substituição do pai pela mãe na situação triangular edípica é disfuncional e leva à patologia pois há tendência a anular pelo terceiro vértice do triângulo Para isso pode haver a insuficiência do papel paterno ou ausente ou não referido no psiquismo materno Nessas condições a entrada de um terceiro no caso o psicoterapeuta formaria a outra ponta do triângulo oportunizado a diferenciação e dessimbiotização Se essa é impossibilitada ninguém entra e há certo triunfo Mazzarella 2006 Nesse caso mãe e filha formariam uma dupla fechada que prescinde da entrada do terceiro seja pai ou psicoterapeuta obstaculizando a integra ção dos papéis paterno e materno no psiquismo da criança Outro objetivo da terapeuta a partir dessas constatações seria o de chamar o pai para participar do processo de tratamento da filha com en trevistas periódicas Dessa maneira a terapeuta se coloca como outro mo delo trazendo à tona a possibilidade de desamarrar os fantasmas trans geracionais dessa família Os objetos transgeracionais exercem uma demanda de desinvesti mento da vida comum como se houvesse uma fidelidade aos mortos A estruturação familiar fica comprometida com a família transgeracional que exige sacrifício É como se houvesse uma dívida com os antepassados O fantasma apareceria na criança pelas lacunas percebidas daquilo que não é dito pelos pais Pereira 2005 Crianças e adolescentes em psicoterapia 125 No exemplo acima o trauma vivido como impensável pela mãe e avó faz com que a geração seguinte desenvolva sintomas como por exem plo as aftas que condensam o nãodito e nãopensado pela família O fantasma designa algo que está no psiquismo como herança de um trauma de um luto patológico que não pode ser elaborado na cadeia ge racional A vivência do trauma com todas as suas vicissitudes ficará encrip tada pairando como uma alma penada A escuta do terapeuta voltada ao que não é dito favorecerá a elaboração e a metabolização desses conteúdos cindidos desenvolvendo a possibilidade de pensar e de desenvolver vida psí quica própria para essas gerações encarceradas Pereira 2005 p 109 MANEJO TÉCNICO E POSTURA TERAPÊUTICA A multiplicidade transferencial Iancarelli Filho 1996 é característi ca do tratamento com crianças e adolescentes colocando o terapeuta em uma posição de contínua atenção Além das transferências bipessoais com o paciente há entrecruzamento de transferências oriundas tanto da mãe quanto do pai o que torna mais complexo o campo transferencial Ouvir as queixas e preocupações dos pais não apenas se presta para que se tente entender o que se passa na família e na criança em questão mas também abre a possibilidade de identificar qual a demanda da criança e qual a demanda de seus pais quais são as fantasias e expectativas o que esperam da psicoterapia e se possuem condições para efetivála Outras questões merecem atenção qual é a posição que o filho ocupa no equilíbrio psíquico dos pais da sua família como um todo Possuem estes capacidade para suportar e manter o processo psicoterápico do filho Reinoso 2002 Devese lembrar que as modificações efetuadas pelo tratamento na criança trazem reflexos na subjetividade dos pais na dinâmica familiar e na determinação de lugares já instituídos Tais mu danças podem comprometer a homeostase familiar ou a estrutura do casal refletindose nos cruzamentos das transferências que ocorrem no campo Isso não poderá ser desconsiderado pelo terapeuta pois poderá provocar atuações e contraatuações Rosemberg 2002 O trabalho com os pais ao longo do tratamento pode seguir de várias formas inclusive com sessões que reúnam a família inteira conforme a especificidade de cada caso Isso exige do terapeuta uma postura mais flexível fazendose valer de soluções abertas e criativas já que modalidades variáveis de inclusão de pais e demais familiares podem se mostrar bené 126 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols ficas em muitos casos A presença dos pais oferece uma ótima oportunidade de observar como cada família interage quais são os mecanismos defensi vos predominantes se existem aspectos dissociados e identificados proje tivamente de uns membros nos outros quais os papéis existentes e se há mobilidade entre eles O psicoterapeuta dessa forma poderá reconhecer tais situações a fim de ao longo do tratamento manejálas e trabalhálas com o paciente e os familiares envolvidos Zimerman 2004 Há alguns anos rapidamente se encaminhava os pais para sua pró pria psicoterapia ou tratamento de casal Hoje essa visão mudou Não ter pressa em remeter os pais para um processo psicoterápico individual próprio caso seja indicado é uma cautela necessária pois fazer uma apressada transposição entre o encontro com os pais de carne e osso e a sintomatologia da criança é estabelecer uma visão simplista do caso Mazzarella 2006 p 25 O terapeuta deve sempre considerar e trabalhar em dois níveis o primeiro seria o trabalho psicoterápico com a criança ou adolescente pro priamente dito pois mesmo que questões da neurose parental eou das tramas transgeracionais estejam presentes o paciente tem um mundo in terno próprio passível de inúmeros conflitos e de intenso sofrimento Castro e Cimenti 2000 Isso significa um trabalho na posição subjetiva do paciente frente ao desejo de seus pais de quem deverá se separar Siquier e Salzberg 2002 O segundo plano seria dar lugar para a participação dos pais consi derando o papel que a criança ocupa naquela família e todo o contexto envolvido através de um suporte terapêutico estando disponível para que os pais tragam suas ansiedades e que possa respaldálos na delicada tarefa de manter um filho em tratamento Castro e Cimenti 2000 É par te da competência terapêutica auxiliálos a compreender suas fantasias a respeito da criança e das mudanças que o tratamento poderá ocasionar para que as suportem e as aceitem Siquier e Salzberg 2002 É impossível excluir os pais da psicoterapia assim como reconhecer que seu discurso funciona como uma matriz simbólica fundamental para a constituição psíquica da criança O inconsciente infantil não é um sim ples reflexo do inconsciente parental Zornig 2001 Uma psicoterapia de acordo com as singularidades de cada caso incluirá um trabalho rea lizado com a criança com o seu psiquismo que é único pessoal e distinto dos demais acrescido de uma escuta que reconheça a importância fun damental que seus pais têm na estruturação psíquica nos cuidados e na educação da criança Crianças e adolescentes em psicoterapia 127 Adriana 4 anos veio a tratamento por apresentar dependência excessiva da mãe não conseguir se adaptar à escola maternal ter manias e não brincar com crianças de sua idade Além disso interagia pouco com o pai Nas primeiras sessões a mãe entrou na sala com a paciente nas demais sessões Adriana era inconstante às vezes entrava bem em outras chora va e não queria se separar da mãe Quando entrava sozinha os conteúdos da sessão eram de grande agressividade em outros momentos temia que algo muito grave acontecesse com a mãe se ficassem afastadas Mostrava que sua atitude simbiótica era decorrente também de sua agressividade que a fazia não se desgrudar dela e dos temores de que as fantasias agres sivas se tornassem realidade caso se separassem A figura paterna era ausente O pai comparecia às sessões para o casal mas referia reiteradamente que Adriana não gostava dele e que pre feria a mãe a ele Assim se eximia do relacionamento com a filha man tendose afastado afetivamente dos temas relativos a ela No primeiro ano de tratamento foram trabalhadas as fantasias agressi vas de Adriana seus temores em relação a crescer e se independizar da mãe No ano seguinte ao iniciar o período letivo Adriana não demonstrou as dificuldades anteriores ingressando na escola sem problemas aceitan do a separação da mãe O desaparecimento do sintoma fez com que os pais decidissem encerrar o tratamento Em um plano consciente esta vam considerando que a remissão dos sintomas era suficiente A tera peuta entendeu junto a eles que interromper o processo seria precoce mesmo que o sintoma tivesse sido esbatido Os esforços da terapeuta foram em vão não conseguindo dissuadir os pais de sua decisão Foram combinadas então algumas sessões para finalizar o tratamento sendo esclarecido aos pais que se tratava de uma interrupção decidida apenas por eles Nas sessões de despedida Adriana fez um desenho dizendo que havia três gramas a serem regadas e o jardineiro só havia regado uma as outras duas não haviam crescido Adriana se referia aos seus pais que se sentiam deixados de lado não regados pelo jardineiro terapeuta Em sua última sessão Adriana trouxe o conteúdo de um filme no qual a personagem havia caído dentro de um poço e não con seguia ser salva No dia seguinte a mãe liga querendo retomar o tratamento e concor dando que o processo não estava finalizado pois Adriana havia comen tado com ela sobre o filme A mãe refere que lembrou das conversas com a terapeuta e entendia que Adriana estava dando um recado para eles 128 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Foi combinada então nova sessão com os pais que a partir daí foram regados mais de perto realizouse um novo contrato em que a tera peuta tinha encontros periódicos com cada genitor em separado e tam bém com a dupla O pai começou a participar mais ativamente do tratamento trazendo a filha para as sessões Nas sessões individuais com os pais foram enfocados aspectos pessoais de cada um deles que interferiam em seu relacionamen to com Adriana como por exemplo os sentimentos da mãe quando a terapeuta funcionava como terceiro que a separava da filha Nas ses sões com o pai o foco era entender sua dificuldade em assumir seu papel paterno e o que em sua história impedia que isso acontecesse Essas ses sões não configuravam um tratamento pessoal mas sim um acompanha mento para auxiliar no desenvolvimento da psicoterapia de Adriana Es se tratamento foi levado a termo e só finalizado quando terapeuta pais e paciente acordaram sobre o momento apropriado O término do tratamento portanto só pode ser compreendido atra vés de uma decisão conjunta das partes envolvidas pacienteterapeuta e pais a criança tem o direito de manifestar se deseja e está apta para o término o terapeuta de acordo com seus critérios teóricoclínicos obser var se o paciente apresenta sinais de integração psíquica e crescimento emocional e finalmente os pais avaliarem quando se sentem satisfeitos com o tratamento realizado Como já salientado a busca de tratamento para um filho expõe seus pais a uma delicada situação de vulnerabilidade narcísica É nossa tarefa também auxiliálos a tolerar as dores e culpas causadas por essa ferida A realização de entrevistas periódicas com os pais pode auxiliálos a perceber seu grau de tolerância com o sofrimento do filho e com o seu próprio e o ritmo que cada família suporta frente às mudanças da criança Siquier e Salzberg 2002 É importante que o terapeuta considere a longa trajetória que ocor reu antes que os pais ou responsáveis chegassem ao seu consultório sendo esse muitas vezes a última opção o último recurso buscado para aliviar o sofrimento da criançaadolescente ou mesmo de seus pais O primeiro encontro com o terapeuta é sempre permeado por angústia e culpa para os pais variando na intensidade Por mais que a decisão de procurar uma psicoterapia tenha sido pensada e amadurecida as situações e os fatos que envolvem e mobilizam maior ansiedade geralmente serão evitados nas primeiras entrevistas pois geram desconforto e são muito dolorosos para serem mencionados logo no início Crianças e adolescentes em psicoterapia 129 Os pais devem ser ouvidos com toda atenção e acolhimento necessários para que se sintam à vontade para contar sobre os motivos da busca de aten dimento para o filho O terapeuta deve ter a sensibilidade de não conduzir as entrevistas como interrogatórios pois dessa forma poderá contribuir para as resistências e ansiedades parecendo mais um investigador formulando um inquérito acerca das condutas da família Atitudes e posturas compreen sivas e empáticas por parte do terapeuta auxiliam no estabelecimento de uma confiança inicial que possibilita maior conforto aos paisresponsáveis para que falem de temas delicados mas fundamentais para a compreensão da situação atual Muitas vezes o paciente para o qual se busca atendimento é apenas o depositário de uma patologia mais séria que engloba a família A doença da família emerge graças ao sintoma de seu expoente mais indefeso e simultaneamente mais sadio Conduzindo a entrevista fami liar da forma como se conduz uma entrevista de grupo o terapeuta po derá perceber o conjunto das comunicações como o produto de uma men te grupal avaliando a dinâmica da família em questão Nesse sentido é comum que a família por vezes tente projetar em um membro apenas toda sua patologia Ferro 1995 Negligenciar ou não abordar as possíveis dificuldades dos pais rela cionadas com a busca de tratamento para um filho pode levar a um incremento das resistências ocasionando muitas vezes interrupções precoces e abandonos repentinos Em alguns casos o término pode se dar ainda na fase da avaliação não oportunizando ao terapeuta sequer a possibilidade de abordar as angústias subjacentes por serem dema siado intensas Com o decorrer do tratamento uma maior flexibilidade da organiza ção defensiva e uma consequente elaboração de conflitos do paciente tende a ocorrer Isso pode acarretar em um reposicionamento de angústias advin das da família que antes estavam concentradas no paciente e depois retor nam ao grupo familiar Tal movimento pode promover mudanças e desaco modações Se as modificações do filho forem sentidas como demasiado ameaçadoras para os pais e para a configuração familiar vigente e tal as pecto não for trabalhado o progresso dificilmente se dará seja pela inter rupção do tratamento ou por uma estagnação deste Os pais de Marina 12 anos vieram em busca de tratamento para a filha A queixa principal era a sua dificuldade de dormir sozinha em seu quarto além de apresentar terror noturno Marina sofria muito com seus sintomas 130 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Nas entrevistas iniciais com os pais informaram que a menina sempre dividira a cama com a mãe já que o pai viajava muito e quando estava em casa costumava trabalhar no turno da noite Com a aposentadoria do pai e a volta dele para casa as dificuldades de separação da dupla mãefilha ficaram mais evidentes Após algumas sessões de avaliação com Marina e seus pais a terapeu ta indicou que a menina permanecesse em psicoterapia assim como salientou que entrevistas sistemáticas com os pais também seriam necessárias Nas primeiras sessões com os pais após o contrato tera pêutico a terapeuta começou a questionar sobre a presença da meni na no quarto deles e como seria para o casal caso ela viesse a dormir sozinha Nessa mesma sessão a mãe apontou as dificuldades finan ceiras da família e optou por interromper o tratamento tendo o apoio do pai Ambos se recusaram a realizar a sessão de despedida igno rando que a paciente já estava vinculada Esse caso clínico evidencia o quanto os sintomas da menina enco briam questões parentais e protegiam os pais de se encontrar Após muitos anos de distanciamento estavam se vendo juntos na mesma cama Ao perceberem que a psicoterapia da filha poderia trazer à tona a conflitiva do casal sentiramse tão mobilizados e assustados que ime diatamente interromperam o tratamento de Marina Talvez a aborda gem da terapeuta tenha sido muito direta e esse casal necessitasse de maior tempo acolhimento e paciência para que se desenvolvesse uma aliança terapêutica que sustentasse suas ansiedades e os fizesse com preender o processo de mudanças que a remissão dos sintomas da filha traria à dinâmica familiar Observamos nesse exemplo a intrincação dos sintomas de Marina uma púbere às voltas com a eclosão das pressões pulsionais e a confi guração de seus pais com problemas de sexualidade necessitando têla na cama do casal O sofrimento da filha seu desejo de crescer e se individuar ficaram eclipsados pela problemática parental As questões financeiras e de pagamento se prestam para resistências que podem impedir a conti nuidade da psicoterapia No caso acima a impossibilidade de discutir quais as dificuldades financeiras ou de fazer algum tipo de recontrato era resistencial e se mostrou potente para impedir que a problemática de Ma rina e de sua família fosse tocada A questão dos honorários é complexa e pode ser campo para atua ções Alguns pais dizem se sentirem humilhados se é proposta uma Crianças e adolescentes em psicoterapia 131 adequação dos valores aos seus recursos ou se na impossibilidade dis so encaminhamos o filho para instituições de confiança que realizam bons tratamentos psicoterápicos As ambivalências frente ao sofrimento do filho somadas às possibilidades de mudanças percebidas servem de base para usar o pagamento como resistência Em outros casos surgem queixas da frieza e inacessibilidade do terapeuta frente às questões de ordem prática e financeira quando são apontados recursos reais da fa mília sentem que lhes é pedido demais Embora as limitações finan ceiras estejam presentes inclusive como um sintoma a impossibilidade de manter o tratamento de um filho pode estar relacionada com a ma nutenção de um sistema familiar que aponta para repetição de histórias parentais e transgeracionais Mazzarella 2006 Auxiliar os pais a superar dificuldades empatizando com a dor e culpa que o tratamento da criança pode lhes causar costuma ser uma forma de reforçar a aliança de trabalho com eles e assim evitar entraves posteriores e boicotes ao prosseguimento da psicoterapia Se o trabalho com os pais no contexto de avaliar de onde provêm e o porquê do surgi mento de resistências é desconsiderado a continuidade do tratamento poderá ficar ameaçada surgindo manifestações como atrasos faltas e pro blemas relacionados com o pagamento Todavia no tratamento de crian ças e adolescentes o manejo de tais aspectos se torna mais complexo visto que geralmente são os pais ou responsáveis os produtores dessas atuações e é sobre esses que as intervenções do psicoterapeuta devem recair Rosemberg 2002 Entretanto ainda que o terapeuta perceba a necessidade de trabalhar algumas questões para poder dar continuidade ao tratamento é preciso que saiba respeitar a decisão dos pais demonstrando a importância do tratamento mas também compreendendo que talvez eles ainda não este jam prontos para abordar temas delicados que causariam desorganização no grupo familiar OS ADOLESCENTES E SEUS PAIS No caso de adolescentes existem variações na técnica pois depen dendo da idade e maturidade do jovem poderá comparecer sozinho à sessão ou muitas vezes marcar a primeira consulta por livre e espontânea vontade Nestas situações o terapeuta acolherá o paciente mas em algum momento deverá entrar em contato com os pais para firmar contrato e 132 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols estabelecer a relação inicial com os mesmos Dependerá da vontade do adolescente comparecer junto aos pais nessas sessões A partir da década de 1990 observouse uma modificação na de manda para psicoterapia por parte do adolescente que tem procurado ajuda por sua vontade própria As queixas até meados da década de 1980 giravam em torno de desadaptações escolares depressão por in definição profissional problemas de relacionamento familiar e conflitos de autoridade em relação à família A partir da década de 1990 cede ram lugar a atuações problemas com imagem corporal sexualidade ba nalizada ansiedades em relação ao futuro profissional conflitos fami liares e em relação à separação dos pais Essas queixas se referem mais a aspectos internos contrastando com as queixas de décadas anteriores o que fazia com que o núcleo familiar e escolar indicasse tratamento Ribeiro Pinto 2002 Esta mudança se deve a vários fatores como a maior democratização da psicoterapia antes voltada para uma reduzida elite que podia pagar honorários muito caros Atualmente existe uma maior acessibilidade ao tratamento psicoterápico com várias instituições dedicadas à formação de psicoterapeutas que oferecem bons serviços de atendimento aberto à co munidade Além disso a mídia através de entrevistas programas sobre saúde em rádio e TV popularizou a psicoterapia e informa sobre como e onde buscar esse tipo de auxílio Castro 2000 Todas essas mudanças estimulam os adolescentes de hoje a bus carem ajuda espontaneamente Cabe ao psicoterapeuta acolher esse pa ciente em um primeiro momento sem esquecer que sendo ele menor de idade e dependente os pais deverão ser comunicados e contatados para formalização do contrato e estabelecimento do setting Ribeiro Pinto 2002 Em função do sigilo e a fim de construir uma relação de confiança é importante que o paciente saiba desses encontros e seja convidado a par ticipar ficando para ele a decisão de comparecer junto aos pais ou não Existem casos em que o adolescente prefere não comparecer nas sessões destinadas aos pais o que será respeitado Caso contrário podemos incor rer no risco de fomentar fantasias de conluio entre pais e terapeuta que podem contaminar a confiança que o adolescente depositou no trata mento e em seu terapeuta O pai de Pedro 17 anos ligou para marcar consulta Explicou que estava preocupado com o filho que o percebia angustiado com algumas Crianças e adolescentes em psicoterapia 133 situações A terapeuta disse ao pai que marcaria uma consulta primei ramente com Pedro a fim de ouvilo e depois quando fosse necessário marcaria uma sessão com os pais Em suas consultas Pedro mostrou estar passando por uma crise em função do término do ensino médio e estar se preparando para as provas de vestibular Encontravase con fuso e angustiado tendo que escolher sua profissão mas ainda que rendo aproveitar sua adolescência não se sentindo em condições de assumir responsabilidades que a nova etapa exigiria Além disso seus pais eram divorciados e havia dificuldades de relacionamento princi palmente com a mãe A terapeuta acolheu a queixa de Pedro combinando um período de avaliação Contratou com Pedro que realizaria entrevistas com ambos os pais em separado e ele ficaria livre para comparecer às sessões com os genitores Pedro concordou que a terapeuta avistasse os pais e preferiu não participar desses encontros Nas sessões com os pais esses foram ouvidos a respeito de seu relacionamento com Pedro foram levantados dados da história familiar e realizadas combinações para o contrato de avaliação Após foi indicada a necessidade de psicoterapia em vista do momento de crise que o jovem estava enfrentando além de uma crise situacional evidenciando uma necessidade de fortalecer aspectos inter nos de Pedro para seguir em frente Foram realizadas então sessões conjuntas com Pedro e cada um dos pais a fim de contratar a psicote rapia propriamente dita Nesse caso observadas as diferenças entre o tratamento de crian ças e adolescentes foram acolhidas as necessidades tanto do paciente quanto dos pais Embora o pai tivesse entrado em contato para marcação da consulta a terapeuta privilegiou a primeira consulta com Pedro Dessa maneira evitou sentimentos persecutórios que poderiam ser suscitados se tivesse conversado com os pais em primeiro lugar Esses foram ouvidos no seu tempo participando também do processo mas de uma outra maneira Observar o tratamento do filho adolescente à distância é uma forma de respeitar o crescimento dele aceitando e viabilizando sua progressiva separação Para que isso aconteça os pais precisam confiar no terapeuta estabelecendo uma aliança terapêutica que possibilite que o caso seja bem encaminhado e evolua com tranquilidade 134 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A ESCUTA DE PAIS DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES COM TRANSTORNOS INVASIVOS DO DESENVOLVIMENTO SINDRÔMICOS E PSICÓTICOS Em casos mais graves como por exemplo na psicoterapia com crianças psicóticas autistas ou sindrômicas os contatos com os pais se tornam indispensáveis Tendem também a ser mais frequentes devido ao grau de continência e apoio de que necessitam para se sentirem acolhidos e possam manter o filho em tratamento geralmente muito longo Sobre um filho sempre recaem as demandas narcísicas de seus pais visto que ao se transformarem em pai e mãe incrementam sua sensação de potência O filho devolve esse investimento e se estabelece um sistema de trocas afetivas O que ocorre com os pais quando percebem que seu filho não reage aos seus estímulos carinho não reage ao seu olhar Como ficam os pais nas situações onde há dificuldades de trocas afetivas Geralmente peregrinam por médicos psiquiatras psicólogos até terem a confirmação diagnóstica Isso é um golpe esmagador já que esse filho real é uma distorção quase completa do filho sonhado ou ima ginado A tristeza que advém de diagnósticos severos como o de trans tornos invasivos do desenvolvimento ou de outros quadros psicóticos pode interferir ainda mais nas trocas interativas e nos vínculos com a criança devido a sentimentos de pesar frustração desalento e culpa Há um pesado trabalho de luto a ser elaborado pela perda do filho per feito idealizado Além disso surgem outras questões de ordem externa Como e onde buscar tratamento Terão condições econômicas de man ter os tratamentos indicados João 10 anos chegou a tratamento encaminhado pela escola que es tava detectando dificuldades de relacionamento do menino devido a uma importante síndrome que esse apresentava e prejudicava sua fala e crescimento físico Ele era fechado não conseguia se relacionar bem com os colegas de classe estando sempre só Nas primeiras entrevistas com os pais esses estavam muito preocupados em explicar sobre a síndrome de João mostrando tudo que sabiam so bre a doença para a terapeuta e fazendo questão de comentar que mes mo sendo portador de tal síndrome era uma criança adorável e normal pela qual a terapeuta se apaixonaria A primeira entrevista foi toda a respeito da doença de João sendo necessário aos pais deixar claro que teriam feito todo o possível para buscar os melhores tratamentos para o Crianças e adolescentes em psicoterapia 135 filho Afirmavam para a terapeuta serem bons pais e estavam fazendo o possível para reparar o fato de terem um filho com uma síndrome A terapeuta foi acolhendo esses pais que também precisavam de um espaço no qual pudessem falar sobre suas angústias culpas e cansaços Percebia também o quão oneroso era emocionalmente e por vezes financeiramente sustentar uma criança que precisava de uma atenção especial e uma série de tratamentos médicos concomitantes A terapeuta percebeu que o simples pensamento de que estavam exaustos gerava culpa e os fazia reagir de maneira reativa às suas intervenções A terapeuta então teve que com muita calma e paciência mostrar que entendia também seu sentimento e imaginava o quanto era difícil criar e sustentar uma situação tão complexa sendo que era justo e natural que ficassem cansados em determinados momentos Com essa atitude empática os pais foram se sentindo cada vez mais acolhidos e respei tados em seus sentimentos Confiaram na terapeuta Contam com ela em diversos outros momentos como suporte emocional e a tem como aliada para prosseguimento da psicoterapia Adriano 2 anos e 11 meses foi encaminhado para avaliação psicoló gica pela escola maternal por apresentar condutas esquisitas falar pouco e ser muito destrutivo Seus pais pessoas de bom nível cultural consideravam o filho muito inteligente e culpavam a escola de não saber lidar e de ser insensível com seu filho Chegaram a ameaçar a escola de que fariam denúncia de maustratos ao menino Ao mesmo tempo em que negavam as evidentes dificuldades da criança apontadas pela escola relatavam suas preo cupações com o filho por apresentar instabilidade agitação e fraca ca pacidade de atenção Adriano não atendia ordens ou limites não tinha noção de perigo e apresentava linguagem pouco desenvolvida Fazia uso de medicação psiquiátrica recomendada pelo pediatra da qual não sabiam sequer a indicação ou nome Foi difícil a realização da avaliação pois os pais nunca encontravam horários O pai se mostrou mais disponível e trouxe o menino na maio ria das sessões tendo uma postura mais cuidadosa com ele A mãe era evasiva e introspectiva pouco participava e não considerava importan tes os sintomas do filho desqualificando as pontuações do pai e consi derando problemas de manejo da babá e da escola Usava de total nega ção dos sintomas e se dizia sobrecarregada com as manhas e manias do menino Realizada avaliação foi observado que as áreas mais preju 136 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols dicadas eram as ligadas à capacidade de vinculação Havia dificuldade de olhar de atenção e dispersividade Sua linguagem era muito pobre com ecolalias e conduta desorganizada impulsiva e sem filtro menta lizado Apresentava rendimento abaixo de sua idade cronológica es tando em um nível de funcionamento ao redor de 21 meses possivel mente decorrente de suas funções egoicas desorganizadas além das in terferências maturativas e afetivoemocionais Constatouse a presença de um transtorno invasivo do desenvolvimento de características psicó ticas com hipótese diagnóstica de quadros F 849 e F 70 CID10 Realizadas entrevistas com os pais foram indicados avaliação psiquiá trica para rever uso da medicação e atendimento psicoterápico para a criança aliado ao acompanhamento para seus pais Foi salientado que o prognóstico seria favorável se realizados os atendimentos sugeridos o mais breve possível Os pais ficaram muito abalados e tristes mas ainda negavam as reais dificuldades de Adriano e naquela ocasião não aceitaram a indicação terapêutica Meses depois telefonaram dizendo que o filho estava me lhor e que haviam buscado tratamento com outro profissional O impacto de ter um filho diagnosticado com perturbações severas é muito doloroso e coloca a família em um turbilhão de emoções surpresa decepção pesar raiva e depressão Em muitos casos é necessário um tem po para assimilar e elaborar internamente o choque de diagnósticos gra ves O psicoterapeuta tem que ser sensível com a dor dos pais e tolerar suas dúvidas e questionamentos Por algumas décadas houve uma falta de sensibilidade com pais tão sofridos como por exemplo os preconceitos que se criaram com as mães de crianças autistas Foram elas acusadas de serem mães freezer e geradoras da patologia do filho Desde Kanner 1943 pais intelectualizados e mães geladeiras foram por muitos anos relacionados às causas do autismo psi cogênico Essa posição marcou em uma determinada época os profissionais da área da saúde e educação que manifestavam certa atitude crítica em relação às crianças portadoras de síndromes psicóticas e autísticas Observações de vínculos entre mãe e bebê autista sugerem que há uma dificuldade no bebê de olhar a mãe ou de retribuir seu olhar Isso pode gerar uma decepção na mãe que de forma nãoconsciente diminui os investimentos e estimulações ao seu bebê aumentando as dificuldades na interação e comunicação da dupla A amamentação momento de re lação intensa de afeição e carinho passa a valer apenas para a satisfação Crianças e adolescentes em psicoterapia 137 da necessidade de nutrição da criança As mães sofrem com a irres ponsividade do filho ainda mais quando não são auxiliadas por seus com panheiros pedindo que lhe ofereçam apoio na maternagem Crianças autistas impõem seus padrões particulares através do uso de formas e de objetos que as alienam do contato com o outro desviandoas do estranho e assustador nãoEu Tustin 1990 p107 Como que reco lhendo suas antenas psicológicas se refugiam em um mundo enigmático e particular com uma falta de empatia com o contato humano Seus modos idiossincráticos de ser as tornam crianças extremamente difíceis de lidar mesmo quando seus pais funcionam de maneira adequada É muito im portante que isso esteja presente na mente dos psicoterapeutas para que não continuem perpetuando um erro ao culpabilizar os pais pela doença do filho Observamos que nos relatos dos pais surgem acontecimentos ligados a perdas que repercutem na vida familiar e nas relações com o filho além da referência frequente a depressões na mãe após o nascimento A criança autista por exemplo exige muitos cuidados da mãe Os ri tuais as crises de birra a ausência de noção de perigo as reações exage radas aos estímulos sensoriais como som e luz e o isolamento social levam as mães a abandonarem suas atividades pessoais passando a viver no coti diano dos filhos Uma pesquisa realizada com 14 mães de crianças autistas apontou que elas viviam num grande estresse sem que o ambiente se preo cupasse com sua situação pois toda atenção estava sendo dirigida às crian ças A grande maioria havia deixado suas profissões para se dedicar ao filho autista fechandose para outras vivências sociais Monteiro 2008 Atualmente se sabe que não há estruturas de pais de psicóticos mas podem ser encontradas algumas particularidades na organização fan tasmática inconsciente do pai e da mãe ligados a fortes componentes préedípicos que preponderam nas relações do casal com a realidade Tanto o pai quanto a mãe possuem uma história préedípica composta de mitos familiares e com fantasmas transgeracionais que influenciará na organização psíquica desse novo indivíduo Rocha 1997 Tustin 1990 aponta que aprendeu com os pacientes psicóticos sobre a importância da autoridade paterna e sobre o desastre que resulta se a auto ridade do pai que regula a impulsividade não é reconhecida já que é o investimento pulsional do pai em relação ao filho a garantia de sua inclusão na cultura humana no mundo da linguagem e na cadeia transgeracional Essas considerações se tornam importantes para que o psicoterapeu ta mantenha um papel de tolerância empatia e compreensão com os sofri mentos dos pais para que tenha uma escuta continente e possibilite pro 138 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols cessos de discriminação em algumas circunstâncias bastante caóticas nes sas famílias Dentro das possibilidades de cada caso quando o processo psicoterápico da criança estiver consolidado e houver oportunidades é salutar que pai e mãe sejam encaminhados para uma psicoterapia pessoal ou terapia familiar a par de manterem os encontros com o terapeuta do filho sempre que necessário CONSIDERAÇÕES FINAIS Para finalizar reiteramos que a presença de pais na psicoterapia de crianças e adolescentes é crucial Os genitores são responsáveis pela manutenção formal do processo arcando com as responsabilidades advin das do pagamento transporte e horários das sessões Entretanto além de tais aspectos formais estabelecem vínculos com o terapeuta de seu filho pois estão emocionalmente envolvidos com o trabalho realizado e impli cados nas mudanças e desestabilizações geradas a partir do processo psi coterápico Dependendo das características da família e da natureza da dificuldade emocional da criança ou adolescente os pais necessitarão maior ou menor continência por parte do terapeuta Este por sua vez deve sempre considerar que não há como tratar de um filho sem esta belecer uma relação sólida e de confiança com a família Neste capítulo procuramos articular nossa prática psicoterápica com as lições recebidas dos pioneiros da psicanálise gigantes sobre os ombros de quem hoje podemos avistar muito mais longe e que nos facilitaram pensar e sermos criativos em nossa prática clínica REFERÊNCIAS ATIÉ F O lugar dos pais na psicanálise de crianças 1999 Dissertação Mestrado Departamento de Psicologia Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio Janeiro 1999 Disponível em http661021104scholarhlptBRlrq cacheKCxULrXhu6QJwwwsbprjorgbrfridapdfannafreudepapeldos pais napsicoterapia Acesso em 20 jan 2008 BLEICHMAR S Do discurso parental à especificidade sintomática na psicanálise de crianças In ROSEMBERG A M Org O lugar dos pais na psicanálise de crianças São Paulo Escuta 2002 p 133165 CASTRO M G O olhar clínico sobre a adolescência CONGRESSO LATINO AME RICANO DE PSICANÁLISE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES 4 Gramado 2000 Crianças e adolescentes em psicoterapia 139 CASTRO M G CIMENTI M E Psicoterapia infantil pensar relações e criar significados Revista do IEPP n 2 p 3755 2000 CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA CFP Código de ética profissional do psi cólogo Brasília DF 2005 Resolução CFP n 01005 FERRO A A técnica na psicanálise infantil Rio de Janeiro Imago 1995 FREUD A The psychoanalytical treatment of children New York Schocken Books 1964 FREUD S Análise de uma fobia em um menino de cinco anos In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1976 v 10 p 13154 IANCARELLI FILHO J Psicanálise e psicoterapia com crianças e adolescentes Revista Brasileira de Psicanálise v 30 p 121132 1996 KAËS R Os dispositivos psicanalíticos e as incidências da geração In EIGUER A et al A transmissão do psiquismo entre gerações enfoque em terapia familiar psicanalítica São Paulo Unimarco 1998 p 519 KANNER L Autistic disturbances of affective contact Nervous Child v 2 n 3 p 217250 1943 KLEIN M Psicanálise da criança Rio de Janeiro Mestre Jou 1981 KUPFER M C Pais melhor não têlos In ROSEMBERG A M Org O lugar dos pais na psicanálise de crianças São Paulo Escuta 2002 p 113132 LISONDO A Na cultura do vazio patologias do vazio Revista Brasileira de Psicanálise v 38 n 2 p 335358 2004 MAZZARELLA T I Fazerse herdeiro transmissão psíquica entre gerações São Paulo Escuta 2006 MONTEIRO C Vivencias maternas na realidade de ter um filho autista Uma compreensão pela enfermagem Revista Brasileira de Enfermagem Brasília v61 no3 2008 PATELLA L Contratransferência da análise de crianças e adolescentes 2004 Dissertação Mestrado em Psicologia Departamento de Psicologia Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Rio Janeiro 2004 Disponível em httptesesufrjbripmlucianapatellapdf Acesso em 21 jan 2008 PEREIRA D Fantasma geracional possessão ou retorno do não recalcado In TRACHTENBERG A et al Transgeracionalidade de escravo a herdeiro um des tino entre gerações São Paulo Casa do Psicólogo 2005 p 93110 REINOSO G Prefácio In ROSEMBERG A M Org O lugar dos pais na psica nálise de crianças São Paulo Escuta 2002 p 1120 RIBEIRO PINTO L H V Adolescentes em psicoterapia percepção de si e do trata mento Porto Alegre Comissão de Pesquisa do IEPPPOA 2002 Nãopublicado ROCHA P Org Autismos São Paulo Escuta 1997 ROSEMBERG A M Introdução In Rosemberg A M Org O lugar dos pais na psicanálise de crianças São Paulo Escuta 2002 p 2326 SANDLER J Técnica da psicanálise infantil Porto Alegre Artmed 1990 140 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols SIQUIER M L SALZBERG B A difícil articulação paisfilhos na psicanálise com crianças In ROSEMBERG A M Org O lugar dos pais na psicanálise de crian ças São Paulo Escuta 2002 p 79111 TUSTIN F Autismo e psicose infantil Rio de Janeiro Imago 1990 ZAVASCHI M L S et al Abordagem psicodinâmica na infância In In EIZIRIK C L AGUIAR R A SCHESTATSKY S S Org Psicoterapia de orientação psica nalítica 2 ed Porto Alegre Artmed 2005 p 717737 ZIMERMAN D Psicanálise com Crianças In ZIMERMAN D Manual de técnica psicanalítica uma revisão Porto Alegre Artmed 2004 p 347356 ZORNIG S Da criançasintoma dos pais ao sintoma da criança Psicologia Clí nica Rio de Janeiro v 13 n 2 p 119130 2001 A comunicação na psicoterapia de crianças o simbolismo no brincar e no desenho Inúbia do Prado Duarte 7 Por que ocorre a escolha deste ou daquele brinquedo e não daquele outro em uma sessão psicoterápica Por que hoje este jogo ficou esquecido e aquele que nem era percebido está ocupando todo o nosso tempo E este desenho com estes traçados e colorido com estas cores por que foi realizado tão rápido e logo atirado no lixo enquanto aquele feito com todo esmero a régua e esquadro está guardado na pasta e é visto e exa minado em silêncio com cuidado e delicadeza Crianças diferentes ou a mesma criança em situações diversas falam através de desenhos do brincar e do jogar com todo seu corpo Em gestos expressões faciais olhares ruídos escolhas de objetos espaços e tempos o processo de comunicação vai ocorrendo Mas o que acontece intra psiquicamente durante esse processo de comunicação Como entender a linguagem nãoverbal eou préverbal O brincar é semelhante ao sonhar Ambos dependem de uma adequada repressão para que haja simbolismo Sem este não há o brincar propria mente dito Tal como nos sonhos através da atividade lúdica há a revelação de fantasias e pela forma como são executadas mostram como funciona o indivíduo que sonha e brinca Assim o brincar é uma linguagem através da qual aquele que brinca nos conta o que está ocorrendo em seu mundo interno ao mesmo tempo em que revela seu modo de ser No entanto diferente do trabalho do sonho que ocorre em dois tempos distintos um tempo de sonhar e após um tempo de lembrar e relatar o sonhado no brincar os dois momen tos acontecem concomitantemente No sentido temporal o indivíduo 142 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols brincando já está expressando o que naquele momento está sendo produzido em sua associação lúdica Podemos tecer um paralelo entre o sonhar a livre associação de ideias e o brincar Todos eles apresentam em seu funcionamento uma regressão e uma progressão evolutiva maturativa simultâneas Regressão porque propicia um maior contato com conteúdos mais primitivos que podem revelar os pri mórdios do conflito ao mesmo tempo em que mostram a capacidade egoica de poder regredir sem o perigo de sucumbir à esse movimento regressivo A progressão evolutiva propicia transformações e amadurecimento pela própria experiência onírica e lúdica ao fazer o discurso característico do associar livre mente A livre associação de ideias análoga ao sonho e ao brincar está asso ciada à regressão às restrições sensomotoras à redução da censura e da direção racional do pensamento O brincar também pode ser relacionado com a redução da censura e da direção racional do pensamento mas não sofre as restrições sensomotoras pois essas estão a serviço da efetivação da atividade lúdica Portanto há uma grande diferença entre o sonhar e o brincar a mobilidade que serve de descarga não é suprimida ao brincar pelo contrário é excitada e o juízo da realidade serve de garantia do poder entrar e do sair do mundo de fantasia Ao brincar a criança interage com um cenário e ajuda a construílo com sua participação ativa Takatori 2007 Diversas crianças não conseguem brincar com receio de entrar e ficar nesse mundo irreal sendo esse um dos critérios mais válidos para avaliar a saúde mental infantil Exemplo desse funcionamento há em abundância na literatura psicanalítica e em nossos consultórios muito semelhante a pessoas que não conseguem conciliar o sono porque temem sonhar ou evitam situações prazerosas por temerem uma total desorganização egoica com a invasão das pulsões amorosas e agressivas O brincar equivale à linguagem verbal ao símbolo que ao mesmo tempo mostra revela e esconde resistindo ou seja ao resistir mostra escondendo Essa dupla capacidade é idêntica à observada no uso da palavra onde o símbolo não é a coisa em si representaa ao mesmo tempo em que realiza o desejo da pulsão disfarçao permitindo sua realização sentindo como se não o tivesse realizado Uma menina brinca fazendo de conta que é uma bruxa muito malvada que pega criancinhas Escolhe um boneco pequeno para atirar em um enorme caldeirão com água fervendo servindo após como sopa Outra criança é uma princesa que é salva da bruxa má por um belo rei que chega na hora em que seria atirada em um poço profundo e escuro O rei a leva ao palácio colocaa em sua própria cama onde ficam dormindo dormindo dormindo Nesses dois exemplos em dramatizações lúdicas as duas meninas realizam seus Crianças e adolescentes em psicoterapia 143 desejos a primeira ao se transformar em bruxa malvada pode se ver livre de seu irmão menor e a segunda pode ficar com seu reipai que a salva da mãebruxa Ambas podem brincar sem correr o risco de qualquer acusação externa ou superegoica pois estavam fazendo de conta Como linguagem em um sentido amplo o brincar abrange a comu nicação nãoverbal e a préverbal e pode então ser o equivalente à me táfora em um estágio primitivo no qual ainda as palavras não são capazes de substituir as ideias e o pensamento se manifesta de modo quase que concreto materializado na ação lúdica com a utilização de todo corpo O jogo1 brincar foi definido pelo historiador holandês Huizinga como Ação livre sentida como fictícia e situada fora da vida comum capaz de absorver totalmente o jogador ação despojada de qualquer interesse mate rial e de qualquer utilidade que se realiza num tempo e num espaço estrita mente definidos desenvolvese com ordem segundo regras estabelecidas e suscita na vida relações de grupo que saborosamente se rodeiam de misté rio ou que acentuam mediante o disfarce o quão estranhos são ao mundo habitual J Huizinga citado por Lebovici e Diatkine 1985 p 14 O brinquedo livre é aquele escolhido pela criança de acordo com sua motivação momentânea Muitas vezes o mundo infantil do brincar é in vadido por atividades ditas lúdicas mas que possuem objetivos pedagó gicos O que a criança chama de brinquedo se caracteriza exatamente por ser destituído de objetivos expressos e determinados Assim o brincar está ligado à constituição subjetiva Ele nos indica como acontece o desen volvimento e nos aponta não só para os avanços e progressos mas também para as inibições as dificuldades e as patologias Baleeiro 2007 Há alguns anos2 pergunteime qual seria a diferença entre crianças que brincavam de modo espontâneo das que brincavam de modo estereotipado pensando que pudesse haver diferenças quanto aos conflitos intrapsíquicos e graus de severidade do superego No entanto constatei que nesses aspec tos não havia diferenças significativas mas sim quanto ao modo como o ego enfrentava as ansiedades Nas crianças que brincavam de modo estereo tipado havia uma maior intensidade na rigidez de suas defesas Os dois grupos de crianças diferiram na maneira como o ego enfrentava os conflitos manejava as ansiedades e deixavase controlar pelo superego N de R Huizinga J Homo udens o jogo como elemento da cultura São Paulo Perspectiva 2008 144 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Durante essa pesquisa surgiram diversas formas de comportamento lúdico que formaram quatro categorias assim especificadas 1 Brincar espontâneo grande criatividade e riqueza de expressão no conteúdo dramatizado e verbalizado evidente evolução no curso do brincar e participação com envolvimento afetivo da criança 2 Brincar de construção concentração e silêncio repetição de cenas de maneira compulsiva criatividade limitada relacionada ao es paço progressão na armação do material interesse intelectual sem haver envolvimento afetivo ou entusiasmo e ausência de mo vimentos que dão ideia de vida 3 Brincar estereotipado limitação construção sem dar vida ou movi mento aos objetos lúdicos participação fraca ou ausente pouca conotação afetiva escasso envolvimento pobreza de conteúdo falta de dramatização e de vida e repetição compulsiva de atitudes 4 Ausência do brincar rejeição negação do brincar não olhar para os brinquedos É importante enfatizar uma diferença essencial em psicoterapia com crianças a resistência aparece nas transformações decorrentes da simbolização no curso do brincar espontâneo ou seja enquanto houver o brincar propria mente dito no entanto a resistência não leva à interrupção do ato lúdico Tanto a inibição no jogo da criança doente como a capacidade da criança sadia através do brincar resolver seus conflitos sem ajuda externa despertavam nosso interesse Essa pesquisa permitiu observar em que elas se diferenciavam A diferença entre a saúde e a patologia foi detectada quanto à capacidade de simbolizar de conservar essa capacidade e poder brincar livremente mesmo em situações adversas ambientais Enfatizamos nossa concordância com alguns autores em especial na função do brincar com Melanie Klein Milner Isaacs Segal e Winnicott Melanie Klein 1969 ao ressaltar a importância do jogo espontâneo de imaginação e ao explicar o uso dos símbolos de cada criança estando em conexão com suas emoções e ansiedades particulares e com sua situação total O simbolismo permite à criança alterar o alvomãe e transferir a outros objetos seus interesses fantasias ansiedades e sentimentos de culpa Milner 1991 que ressalta o fato de que a criança não conhece a existência dos limites mas descobreos através do jogo de forma gradual e continua e como a arte vincula o mundo da irrealidade subjetiva com a realidade objetiva fundindo harmoniosamente os bordes mas sem confundilos A criança se torna capaz de admitir ilusões sobre o que está Crianças e adolescentes em psicoterapia 145 vendo e fazendo acontecer enquanto brinca desde que se sinta segura dentro do espaçotempo do setting terapêutico Permitese experimentar simbolicamente situações verdadeiras de fazdeconta Aqui saliento a importância da capacidade de ilusão na formação simbólica Milner 1991 e a possibilidade de transferir interesses ini cialmente dirigidos ao objeto original Diz essa autora em um dos trechos mais claros na compreensão da origem do porquê da necessidade do simbolismo via conflito que Ernest Jones e Melanie Klein em particular seguindo formulações de Freud escrevem a respeito dessa transferência de interesse como sendo devida ao conflito com forças proibitivas em relação ao objeto original assim como também à perda real do objeto original Jones em seu estudo A Teoria do Simbolismo enfatiza os aspectos dessa proibição que têm a ver com as forças que mantêm a sociedade unida como um todo Melanie Klein em vários de seus trabalhos também descreve um aspecto dessa proibição que mantém o indivíduo integrado como um todo Klein sustenta que o modo pelo qual ocorre nossa agressão con tra nossos próprios objetos originais nos deixa aterrorizados pela possibilidade de retaliação assim transferimos nosso interesse para substitutos menos atacados e portanto menos aterrorizantes Milner 1991 p 89 Isaacs 1974 p94 ao falar da natureza e função da fantasia incons ciente afirma que as primeiras fantasias surgem de impulsos orgânicos e estão entrelaçadas com as sensações corporais e os afetos Expressam primitivamente uma realidade interna e subjetiva quando desde o começo se enlaçam com uma verdadeira experiência por limitada e estreita que seja da realidade objetiva Essa afirmação é importante à compreensão das atividades lúdicas que sempre estão entrelaçadas com fatos do meio ambiente e do mundo interno e que necessitam de objetos para sua realização Muitos fenô menos psíquicos são inerentes a esse iceberg que é o brincar fantasia simbolismo relações de objeto já produtos das transformações dos con flitos entre pulsões de vida e de morte das defesas frente às ansiedades primitivas do interjogo entre mundo interno e ambiente da dinâmica intrapsíquica no entrelaçamento idsuperegoideal de egoego ideal na luta entre narcisismo e necessidade de objeto enfim em todos os aspectos que compõem a vida mental humana Duarte 2004 Assim deve ser considerado o inconsciente contido nos fenômenos psíquicos de resis tência transferênciacontratransferência que facilitam e dificultam sua expressão no campo psicoterápico Segal 1993 p 49 fez uma diferença entre dois tipos de formação de símbolos e de função simbólica Em um deles que chamei de equação 146 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols simbólica e que subjaz ao pensamento concreto esquizofrênico o símbolo está tão equacionado ao objeto simbolizado que os dois são sentidos como sendo idênticos Um violino é um pênis tocar violino é se masturbar e por tanto não é algo para ser feito em público No segundo caso o do simbolismo verdadeiro ou representação simbólica o símbolo representa o objeto mas não é inteiramente equacionado a ele Essa distinção é importante porque além de ser um elemento de diagnóstico psicopatológico que determina a intervenção terapêutica adequada é um critério evolutivo Em pessoas por exemplo com ca racterísticas acentuadas de funcionamento psicossomático a equação sim bólica é mais evidente muito semelhante a crianças pequenas quando ainda estão sob o predomínio do pensamento concreto Winnicott 1994 pode sintetizar importantes ideias com as quais concordamos quando ele afirma que a criança 1 tem prazer em todas as experiências de brincadeira física e emocional 2 aprecia concluir que seus impulsos agressivos podem ser expressos sem o retorno da violência do meio para ela 3 brinca para dominar angústias controlar ideias e impulsos que conduzem à angustia Afirma ainda que 4 as perso nalidades infantis evoluem através de suas próprias brincadeiras e das invenções lúdicas feitas por outras crianças e por adultos 5 a brincadeira favorece uma organização para o início de relações emocionais propiciando o desenvolvimento de contatos sociais 6 a brincadeira o uso de formas e artes e a prática religiosa tendem por métodos diversos mas aliados à unificação e integração geral da personalidade e servem de elo entre a relação do indivíduo com a realidade interior e entre o indivíduo e a rea lidade externa ou compartilhada e 7 tal como os sonhos servem à au torrevelação e comunicação com o inconsciente Uma das maiores contribuições à técnica psicanalítica de Winnicott 1994 foi introduzir o jogo dos rabiscos3 para proceder em uma consulta terapêutica com crianças Geralmente era realizado na entrevista inicial como forma básica de estabelecer uma comunicação mais livre O jogo começava com um rabisco feito pelo terapeuta sobre um pedaço de papel em branco Após a criança era estimulada a partir desse rabisco inicial a fazer outro traço Seguiase novo traço do psicoterapeuta e assim sucessivamente Daí resultavam desenhos significativos e a relação entre terapeuta e paciente era facilitada tornandose mais próxima Ao completar o desenho a criança expressava sua experiência de ser e o modo como experiencia a totalidade de si mesma Mazzolini 2007 Para Winnicott o método visava a três finalidade básicas 1 a de um instrumento diagnós Crianças e adolescentes em psicoterapia 147 tico 2 a de facilitar a comunicação interacional 3 a de funcionar como um recurso terapêutico com o mesmo valor que os sonhos repre sentam como via de acesso ao inconsciente O jogo do rabisco foi adquirindo significados que caracterizam uma abordagem psicoterápica vincular servindo também como estímulo à criatividade do terapeuta principalmente com pacientes de difícil acesso que necessitam de outras estratégias e intervenções diferenciadas Diego um menino de 4 anos e 6 meses que fez psicoterapia durante quatro anos aproximadamente cujo motivo de consulta havia sido perturbações do sono crises asmáticas e crises de agressividade com descontrole e ataques físicos dirigidos às pessoas mais próximas utilizou o recurso da comunicação pelos desenhos praticamente durante todo o seu tratamento A relação terapêutica foi intensa durante todo o tratamento A transferência negativa predominou e contratransferencialmente me exigia cobrava me colocando em prova constante Os sentimentos de desconfiança agressiva de Diego despertavam muitas vezes a dúvida se realmente a terapia o estaria ajudando Esse menino lutava heroica mente para manter a cisão que o protegia de se enfrentar com aspectos ameaçadores relacionados a uma situação edípica inicial primitiva Resistia a toda e qualquer interpretação que procurasse trazer algum sentido a suas brincadeiras ou a seus desenhos Seguidamente Diego desenhava nos dois lados de uma mesma folha de papel ofício branco Usava um lado logo em seguida virava a folha produzindo outro desenho no verso Quando lhe era mostrada a relação entre os dois desenhos associando os conteúdos de ambos ele se negava a aceitar e reagia ou com indiferença ou com muita raiva Muitas vezes amassava ou rasgava a folha e jogavaa no lixo de onde o terapeuta tirava alisavaa e guardava Fazendo uma analogia com a fotografia seus desenhos revelavam as imagens em negativo tal qual existiam em sua mente Eram projetadas para fora mas não eram sentidas como suas não fazendo nenhuma conexão com seus sentimentos e fantasias as interpretações eram sentidas como fabricadas ou inventadas pelo terapeuta No entanto esse tinha a favor da evolução do tratamento a inteligência de Diego pois ele não conseguia negar quando era por demais evidente as coincidências dos dois lados da mesma folha ao levantála contra a luz Os dois conteúdos desenhados se uniam como se fossem um único desenho 148 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols em uma das faces da folha e eralhe praticamente impossível negar a relação entre eles Assim pouco a pouco Diego foi tendo a experiência de ir juntando suas partes cindidas não sem crises de raiva durante as quais ele amassava as folhas desenhadas Sua produção gráfica revelou a evolução sofrida lenta rumo à definição de identidade tendo como pano de fundo a intensa vivência da con flitiva edípica primitiva Os fenômenos da simbolização no pensar no brincar e na apren dizagem estão interligados tendo em comum seus inícios origina dos e determinados pelo tipo de relação de objeto Assim temos grafica mente Sujeito da fala O BRINCAR Sujeito da escuta Mãe Pai Bebê Falta do Objeto SIMBOLIZAÇÃO BrinquedoLinguagem MÃE BEBÊ Objetosituação transicional MÃE BEBÊ fusão Relação Figura 71 Da mãe à cultura via simbolismo Crianças e adolescentes em psicoterapia 149 Essa figura Duarte 2004 ilustra a compreensão dos fenômenos psíquicos que ocorrem no caminho entre o ponto inicial da comunicação fusional entre mãe e seu bebê o estabelecimento da relação objetal Nesse caminho são essenciais os processos de identificação introjetiva e projetiva recíproca entreno par a capacidade de deslocamento e condensação e o surgimento dos objetos e das situações transicionais que se superpõem à capacidade de sentir e suportar temporariamente a falta de objeto condição necessária para o surgimento do simbolismo Atingindo esse estágio evo lutivo a criança já é capaz de se comunicar por meio de sinais inicialmente através de seu corpo e de movimentos préverbais A linguagem metafórica vai surgindo paulatinamente concomitante à capacidade lúdica até atingir um determinado grau onde é possível haver a capacidade de abstração que prescinde a expressão corporal e se torna possível a leitura e a escrita essencial ao registro da história e da Cultura A criança pequena se comunica primariamente pelo movimento e pelo brincar Na fase da latência ela pode alternar entre comunicação por meio da fala e do desenho às vezes verdadeira associação livre e a co municação mediante o jogo e o comportamento Uma perturbação da simbolização pode levar também a formas de brincar que impedem o aprender com a experiência e a liberdade de variar o brincar Aspectos característicos foram observados na estrutura e fun cionamento do jogo de Varetas Duarte 1989 No início um jogador atira as varetas formando um nó enredado que aos poucos e com cuidado cada jogador deve ir desenredando A cada movimento há o perigo de mexer em outra vareta que não é a que se deseja retirar Acontecendo isso o jogador perde a sua vez e o outro seu adversário continua a tarefa de ir desmanchando aquele enredo Esse jogo por vezes é escolhido pelos pacientes infantis e adolescentes na fase inicial de seus tratamentos podendo indicar o estabelecimento da aliança e do contrato terapêutico No entanto pode ter diferentes significados dependendo do momento e da situação na qual se encontra o par pacienteterapeuta e dos fenômenos que estão ocorrendo no campo psicoterápico O jogo de Dominó Duarte 2004 se desenvolve por identificação idêntica espelhada O seu início se dá pelo jogador que tiver a peça dupla seis ou zero e a essa primeira peça não se apresenta nenhuma outra possi bilidade de se acoplar alguma outra peça se não for de modo idêntico por ambos os lados Esse entendimento inicial facilita sua utilização como linguagem na clínica psicoterápica No entanto para descobrir seus signi ficados simbólicos é necessário conhecer a história da criança ou ado 150 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols lescente que está jogando aspectos de sua vivência familiar e escolar levando em conta os fenômenos transferenciais na relação terapêutica O jogo de Dominó pode ser entendido como o protótipo da antítese do que seria a representação lúdica de uma associação de ideias pela sua rigidez de regras Seus jogadores devem seguir linhas de identificações que permitam a continuidade do jogo Somente pode haver evolução se o jogador tiver entre as suas peças uma que seja igual a que está em uma das pontas da armação das peças sobre a mesa Se não possuir deve com prar do monte ou perde sua vez de jogar e precisa aguardar até que outra peça seja colocada idêntica a alguma que ele possua Ao brincar a criança realiza algo com seu comportamento e a partir disso outros elementos são levados à ação revelando outros conteúdos que não estavam presentes no início daquele ato naquele brincar Eles têm uma tendência para começar a ressoar com coisas que já foram ditas de uma maneira retroativa ou às vezes simultaneamente com afirmações que ainda serão feitas que ainda não são pensamentos mas são geradores potenciais de temas que permitirão que se observe novas conexões com o que já foi expresso Na atividade lúdica há uma diminuição do uso da linguagem verbal com o predomínio da ação comunicação nãoverbal e préverbal A lingua gem é usada com menor repressão Sendo assim o acesso ao inconsciente é mais direto com menos barreiras Talvez esse aspecto facilite o contato do terapeuta com material inconsciente otimizando o tempo de tratamento na infância Quando uma criança nos convida a brincar ou convidanos a ver o que faz enquanto brinca está tentando comunicar conteúdos que são inacessíveis enquanto ela criança não é acompanhada pelo terapeuta A presença continente e de reverie existentes no campo psicoterápico permite que seja criada uma condição de confiança e segurança capazes de servir de suporte para vivências ansiogênicas decorrentes de intensos conflitos endopsíquicos Além disso a presença mental de alguém com quem a criança possa brincar permite que o jogo seja transformador de angústias Felice 2003 Quando um brinquedo ou um jogo é repetido diversas vezes du rante longo tempo exige ser visto sob diversos ângulos e entendido por todos os lados E quando surge no campo psicoterápico indica não ter sido esgotada nossa compreensão de seus aspectos simbólicos Para compreender o jogo devemos investigar o significado de cada símbolo tendo em conta todos os mecanismos e formas de representação sem perder jamais a relação de cada fator com a situação total daquele Crianças e adolescentes em psicoterapia 151 que brinca Assim o mesmo brinquedo ou um mesmo jogo adquire dis tintas significações de acordo com o contexto global que o produziu A criança proporciona tantas associações aos elementos separados do jogo como os adultos aos elementos separados do sonho Em síntese o jogo e o brincar 1 proporcionam alívio e prazer porque descarregam fantasias masturbatórias e porque suprimem o gasto ener gético da repressão liberando a fantasia 2 obedecem à compulsão à repetição transformando as experiências sofridas passivamente em ativas dominando ansiedades 3 proporcionam alívio da pressão superegoica através da personificação O fator de alívio provém da projeção ao mundo do jogo dos primitivos objetos superegoicos que não sendo exteriorizados provocariam perseguição interna ansiedade e sintomatologia 4 a ini bição do brincar obedece aos intensos sentimentos de culpa produto da pressão do superego primitivo exigente sobre o ego A interpretação per mite restaurar o prazer do brincar pela resolução dessas ansiedades e a liberação da energia antes ocupada em manter a repressão 5 o jogo é uma sublimação Simbolização sublimação e reparação são três conceitos interrelacionados que estão na base da atividade egoica que sustenta o jogo O jogo como a linguagem favorece a formação de símbolos e a sublimação sendo ele próprio resultado de uma das primeiras sublimações tendo relação com a posição depressiva e capacidade de reparação O jogo proporciona diagnósticos de saúde e doença nas crianças Em crianças normais o jogo mostra um melhor equilíbrio entre fantasia e realidade Tem maior capacidade para modificar a realidade ou se não conseguem toleram melhor a frustração Na personificação as imagens se aproximam mais aos objetos reais Nas crianças neuróticas existe um compromisso com a realidade Apresentam grande inibição de fantasias por sentimentos de culpa e o resultado disso é a inibição do jogo e da aprendizagem Nas com tendências paranoicas a relação com a realidade está subordinada às vívidas elaborações da fantasia o equilíbrio entre ambas se inclina para o lado da irrealidade Crianças psicóticas executam ações monótonas A realização de desejos associada a essas ações é a negação da realidade e uma inibição da fantasia O elemento lúdico fun ciona continuamente para dar sustentação a uma realidade paradoxal em que as coisas podem ser reais e irreais ao mesmo tempo O desenvolvimento simbólico e emocional que uma criança alcança na psicoterapia marca toda sua vida mesmo que seus conteúdos se repri mam sejam esquecidos ou se ressignifiquem Seu efeito no desenvolvi mento posterior se conserva e transcende os resultados imediatos que 152 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols podem ter o tratamento Por esse motivo as inibições do brincar na criança devem ser entendidas como indicador de extrema gravidade já que implica que seu aparelho psíquico está sofrendo severas limitações Em um tra tamento chegar ao verdadeiro brincar garante um funcionamento mental ótimo desde o ponto de vista da saúde física e mental NOTAS 1 Jogar e brincar muitas vezes são sinônimos mas há uma diferença que desejo assinalar o jogar aqui implica em uma atividade lúdica com regras espe cíficas combinadas e aceitas entre as pessoas que jogam 2 Na dissertação de mestrado PUCRS76 Relação entre formas de brinquedo infantil e respostas ao CATA realizamos uma pesquisa sobre a relação entre as formas de brinquedo infantil espontâneo e estereotipado e as respostas ao CATA em 60 crianças de 4 anos e um mês a 5 anos e 11 meses 3 Em inglês squiggle game REFERÊNCIAS ABERASTURY A El niño y sus juegos Buenos Aires Paidós 1968 Psicoanálisis de niños Revista de Psicoanálisis APA v 50 n 2 p 267 286 1993 Teoria y técnica del psicoanalisis del niños Buenos Aires Paidós 1972 ALVAREZ A Companhia viva psicoterapia psicanalítica com crianças autistas borderline carentes e maltratadas Porto Alegre Artmed 1994 ARFOUILLOUX J A entrevista com a criança a abordagem da criança através do diálogo do brinquedo e do desenho Rio de Janeiro Zahar 1976 BALEEIRO M C Brincar aquém e além do carretel Cogito v 8 p 1519 2007 BION W O aprender com a experiência Rio de Janeiro Imago 1991 BOLLAS C El uso de asociación libre por el psicoanalista In Ser un personaje psicoanálisis y experiencia del símismo Buenos Aires Paidós 1994 CAPER R O brincar a experimentação e a criatividade Livro Anual de Psicanálise v 12 1996 CHATEAU J Psicología de los juegos Infantiles Buenos Aires Kapelusz 1958 DUARTE I Estudo preparatório à pesquisa Freud através de metáforas Trabalho anual do 1º ano de seminários Teoria I Instituto de Psicanálise da SPPA 1991 Nãopublicado Formas do brincar uma revisita à dissertação de mestrado 25 anos depois 2004 Nãopublicado Crianças e adolescentes em psicoterapia 153 Brincar de verdade um estudo da atividade lúdica na práxis psicanalítica Trabalho de Membro Efetivo da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre SPPA janeiro de 2005 apresentado também no Congresso Internacional da IPA Rio de janeiro julho de 2005 Não publicado Infância In A prática da psicoterapia infantil Porto Alegre Artmed 1989 p 78121 O sentido do discurso um estudo do uso da metáfora na comunicação em psicoterapia e em psicanálise Revista do Iepp Instituto de Ensino e Pesquisa em Psicoterapia v 6 n 6 p 139149 2004 FELICE E M O lugar do brincar na psicanálise de crianças Psicologia Teoria e Prática v 5 n 1 p 7179 jun 2003 FERRO A A técnica na psicanálise infantil da criança e o analista da relação ao campo emocional Rio de Janeiro Imago 1995 GARMA A El pensar amplio de los sueños In Nuevas aportaciones as psicoanálisis de los sueños Buenos Aires Paidós 1970 GREEN A A intuição do negativo em o Brincar e a Realidade Livro Anual de Psicanálise v 13 p 239251 1997 A mente primordial e o trabalho do negativo Livro Anual de Psicanálise v 14 p 133148 2000 GRINBERG L Prácticas psicoanalíticas comparadas en niños y adolescentes Buenos Aires Paidós 1977 GUIGNARD F O infantil ao vivo reflexões sobre a situação analítica Rio de Janeiro Imago 1997 ISAACS S Naturaleza y función de la fantasía In KLEIN M et al Desarrollos en psicoanálisis Buenos Aires Hormé 1974 p 71114 JONES E Simbolismo funcional In La teoria del simbolismo Buenos Aires Letra Viva 1980 p 4180 KLEIN M Psicanálise da criança São Paulo Mestre Jou 1969 KLEIN F DEBRAY R Psicoterapia analítica de criança abordagens psicoterápicas dos estados neuróticos e psicóticos de criança Rio de Janeiro Zahar 1976 LEBOVICI S et al Problemas de la interpretación en psicoánalisis de niños Barcelona Gedisa 1981 LEBOVICI S DIAKINE R Significado e função do brinquedo na criança Porto Alegre Artmed 1985 LIBERMAN D et al Simiótica y psicoanálisis de niños Buenos Aires Amorrortu 1984 LORENZER A Crítica del concepto psicoanalítico de símbolo Buenos Aires Amorrortu 1970 MAZZOLINI B M Rabiscando para ser do si mesmo para o papel Imaginario v 13 n 14 p 493509 jun 2007 MELTZER D O processo psicanalítico da criança ao adulto Rio de Janeiro Imago 1971 154 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols MILNER M O papel da ilusão na formação simbólica In A loucura suprimida do homem são Rio de Janeiro Imago 1991 p 89116 PARSONS M A lógica do brincar em psicanálise Livro Anual de Psicanálise v 15 p 89102 2001 QUINODOZ J Transições em estruturas psíquicas à luz da teoria do caos determinístico Livro Anual de Psicanálise v 13 p 153171 1997 ROZA E A obra de Hanna Segal uma abordagem kleiniana à prática clínica Rio de Janeiro Imago 1982 Quando brincar é dizer a experiência psicanalítica na infância Rio de Janeiro Contra Capa 1999 SEGAL H Sonho fantasia e arte Rio de Janeiro Imago 1993 SPILLIUS E B Ed Melanie Klein hoje desenvolvimentos da teoria e da técnica Rio de Janeiro Imago 1990 SPITZ R No y Sí sobre la genesis de la comunicacion humana Buenos Aires HorméPaidós 1966 STEINER C Los niños y sus sueños Libro Anual de Psicoanálisis v 9 p 209221 1993 TAKATORI M et al O lúdico no atendimento de crianças com deficiência uma reflexão sobre a produção cultural na infância Estilos da Clínica v 12 n 23 p 90107 dez 2007 TIZÓN J Juego y proceso psicoanalítico una reflexión sobre la comunicación la acción y la simbolización Revista de Psicoanálisis p 155182 1993 Número Especial Internacional WINNICOTT D O jogo do rabisco In WINNICOTT C SHEPERD R DAVIS M Org Explorações psicanalíticas D W Winnicott Porto Alegre Artmed 1994 D A criança e seu mundo Rio de Janeiro Zahar 1975 p 161182 Clinica psicoanalitica infantil Buenos Aires Paidós 1971 El proceso de maduracion in el niño estúdios para uma teoria del desarrollo emocional Barcelona Laia 1975 O brincar e a realidade Rio de Janeiro Imago 1975 ZIMERMAN D Fundamentos psicanalíticos teoria técnica e clínica uma abordagem didática Porto Alegre Artmed 1999 Vocabulário contemporâneo de psicanálise Porto Alegre Artmed 2001 Psicoterapia de adolescentes ressonâncias do especular na imagem corporal Maria Elisabeth Cimenti 8 Neste capítulo desenvolvemos brevemente o conceito de complexo de Édipo em Lacan enfocando principalmente o estádio do espelho Pre tendese demonstrar como esse estádio é reavivado nos adolescentes graças às ressignificações que sua imagem corporal é obrigada a fazer devido às mudanças corporais importantes que experimenta Considero a questão do olhar e da imago especular como fundamentais para a ela boração desse período servindo de apoio para a remodelação da imagem do corpo adolescente O adolescente é um sujeito discrepante por natureza Seu corpo ocupa o lugar de um outro que não domina e sua mente está associada à imagem de um corpo perdido que o futuro vai tratar de distanciar cada vez mais dele e que apesar de saber disso não deseja abrir mão de sua posse Possui um corpo alienado de sua mente que cresceu de forma abrupta e que ainda se sustenta com a imago que tem de seu corpo infantil Essa mudança física cria um hiato que se abre em vários níveis constituindo o seu próprio corpo em um estranho lugar onde suas ex periências mais íntimas se processam mas que mesmo assim não deixa de ser um estranho unheimlich Tornase urgente para ele um reordena mento do eu exigindo um processo difícil em que revive experiências precoces ligadas à identificação Para se compreender melhor essa vivência adolescente tornase in teressante rever alguns conceitos consagrados da psicanálise revisitados por Lacan 1996 Diferentemente de Freud esse autor enfatiza o com plexo de Édipo como algo que se desenrola desde o início da vida mental 156 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols humana processandose em três tempos que seriam muito mais lógicos do que cronológicos podendo ser dinamicamente revividos com intensidade em outras etapas do desenvolvimento tais como o citado período O complexo de Édipo para Lacan teria início então no narcisismo primário da criança quando justamente vive o sentimento de ser sua majestade o bebê que Freud identifica tão bem em seu artigo de 1914 Nesse florescer do narcisismo o bebê que na verdade reedita e espelha o narcisismo dos pais vivencia o que Lacan chama de estádio do espelho Segundo o autor esse estádio ocorre a partir da descoberta que o filhote humano faz de sua imagem corporal em um espelho plano Ali se des cortina para ele uma gestalt reconhecida pela mãe como sendo dele que é perfeita e que seria a matriz sobre a qual o eu viria a ser constituindose como um sujeito no futuro Antes disso o ser humano teria apenas uma imago mítica de corpo despedaçado podendo reaparecer nos sonhos ou em momentos muito regressivos da análise Mas podemos supor que na puberdade etapa inicial da adolescência pela própria desproporção física característica do crescimento sentimentos de despedaçamento se fazem presentes e se expressam de inúmeras formas O novo corpo não é harmonioso como o da imago especular É comum nessa fase do desen volvimento jovens tanto do sexo masculino quanto feminino não se ex porem com trajes de banho mesmo na praia ainda que faça um forte calor porque rechaçam uma parte de seu corpo Por outro lado costu mamos dizer que o adolescente fica desengonçado por um período Tais manifestações acompanhadas de expressões de onipotência típicas do narcisismo especular demonstram como essas etapas muito primitivas se fazem sentir O estádio do espelho 1996 possibilita a formação de uma imago de corpo unificada que embora seja constitutiva da futura estrutura mental do eu aliena o indivíduo na medida em que é descoberta lá fora no espelho e não no próprio corpo do sujeito Nesse estádio ainda não existe um sujeito mas alguém assujeitado que depende do desejo de sua mãe e de uma imago que é encontrada fora dele no espelho A partir daí o sujeito começa a se estruturar estruturar o seu eu e a se reconhecer inicialmente como o falo da mãe aquele que a completa e a preenche no seu desejo formando com ela uma totalidade narcísica Ele é o objeto de desejo da mãe e esse sentimento sustenta a sua imago corporal assim como a sua unidade especular imaginária Tais fanta sias muitas vezes dominam o funcionamento do sujeito mesmo quan Crianças e adolescentes em psicoterapia 157 do ele já atingiu outros estados mais avançados de evolução na qual o simbólico já se constituiu a partir da entrada do pai na relação entre a mãe e seu rebento Como ficaria então na fantasia do adolescente ainda ligado à ima go especular sustentada pelo desejo da mãe quando o corpo real modi fica o seu estatuto conforme afirma Rassial 1999 ao se constituir em um corpo adulto Quando o corpo do adolescente sofre modificações que consequên cias advêm em seu psiquismo Aí se abre um complexo jogo identifi catório no qual o olhar tal como no estádio de formação da imago espe cular é fundamental O sujeito é intimado a realizar um reordenamento profundo no seu eu um reordenamento do seu imaginário Lacan 1996 se pergunta sobre o que seria o eu Diz O eu o que é que ép126 E responde essa questão afirmando que o eu não se trata de instâncias homogêneas Umas são realidades outras são imagens funções imaginárias O próprio eu é uma delasp126 Tratase então de imagos de si virtuais ou reais na qual a pessoa se experimenta e na medida do que lhe é possível simboliza E esse eu se rearticula na ado lescência gerando circunvoluções importantes na relação consigo mesmo e com o outro na qual a sua imago de corpo se refaz O adolescente torna a se ver às voltas com a questão do olhar e do espelho mas agora experimenta algumas particularidades Ao se olhar no espelho vê sua imagem contaminada pela imago de corpo infantil perfeito que construiu no estádio do espelho impregnada pelo desejo de sua mãe e pelo júbilo próprio da descoberta de si Busca no espelho ainda a sua imago infantil da criança perfeita cujos pais eram vistos igualmente como majestades Dáse o predomínio do imaginário sobre o real Se essa imago representa um protótipo imaginário de completude na qual encontrou uma possibilidade de conquistar um sentimento de ser alguém e que alimentou o seu narcisismo infantil como simples mente se desfazer dela Ao se ver no espelho essa imago está colada ao que vê Ela está lá mesmo que seu corpo real tenha se transformado em um outro corpo Por outro lado o corpo adolescente transformado é visto por outros adolescentes e outros adultos de acordo com o que ele é no real Desperta no outro o desejo e aciona o imaginário desse Rassial 1999 assinala a importância e os efeitos que isso tem sobre o jovem pois se abre para ele uma nova relação com o seu próprio corpo Aí se descortina a alameda da sedução e do fetiche que o corpo se transforma tanto para o menino 158 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols quanto para a menina Eles se olham se admiram e redescobrem o uni verso de atração que constitui o seu corpo para o outro Abrese para ele um novo universo não a partir do que vê ao se olhar no espelho mas no SER visto Estabelecese uma diferença importante entre se olhar e ser visto Ao se olhar vê sua imagem contaminada pelo corpo infantil se confrontando com o seu corpo real atual ao ser visto capta no olhar do outro a imagem de um corpo adulto que é seu Através então do olhar de outro sujeito sobre o seu corpo criase a possibilidade de reapropria ção de uma imago do eu Reafirma um sentimento de ser alguém que estava perdido em meio à confusão própria à discrepância do corpo ado lescente O ser visto passa a ressignificar o corpo do adolescente como um corpo adulto É visto pelo outro com um corpo adulto que desperta de sejos sexuais adultos e a partir de então joga com isso dentro de todo o paradoxo que existe e acompanha o adolescente Seguidamente vemos desfilar uma mulher estupenda com curvas espetaculares aparentemente alheias aos olhares que desperta mas provocando justamente o que vai lhe reassegurar que valeu a pena ter crescido e que por isso pode abrir mão de seu corpo infantil E mais se formos falar com essa mulher des cobrimos uma menina assustada com o que é capaz de provocar no outro embora arrebatada pelo fascínio que desperta no outro Iniciase um jogo de reflexos de proporções calculáveis de acordo com a estrutura narcísica alcançada na construção da imago especular precoce e de acordo com o ideal de ego que construiu aquele ou aquela adolescente E mais esse jogo reflexivo irá reposicionar o próprio ideal de ego do sujeito É muito comum ouvirmos um adolescente dizer que está com a aparência terrível por causa de uma espinha e isso se torna motivo de grande infelicidade para ele quando isso anos depois não lhe causará maiores transtornos uma vez que tenha reposicionado os seus valores em ideais intelectuais ou de outra ordem Tudo isso redefine o sentimento de Ser É claro que essa resolução na subjetividade do sujeito poderá ter muitas versões e aí surgem as patologias tão comuns na adolescência liga das à reconstrução de imagem tal como as anorexias Olívia uma jovem de 13 anos mantinhase com o peso de sua infância Embora sua altura já fosse de 170 m pesava 45 kg Lamentava o quanto estava gorda e restringia sua alimentação a uma salada verde sem tempero nas refeições e duas maçãs apesar de frequentar acade mia diariamente Quando era confrontada com essas questões mostra vase muito irritada sentindose perseguida e ameaçada alegando que Crianças e adolescentes em psicoterapia 159 as pessoas não consideravam o quanto ela ficava horrorosa se engor dava por causa de suas ancas desproporcionais e sua barriga A anorexia se caracteriza por uma restrição alimentar geralmente severa mas a restrição não se dá porque o paciente não tem fome e sim porque tem medo de engordar Segundo Aulagnier 1988 a psique con segue erogeneizar inclusive estados de necessidade e desse modo po derá se transformar em nada p79 o alimento da anorética Muitas vezes a magreza e desnutrição nesses quadros chegam a ser alarmantes mas ainda assim a paciente prossegue obstinada em seu desejo de res tringir sua alimentação porque se vê bem assim e algumas vezes ainda se empenha em uma atividade física exaustiva para perder mais peso Acompanha esse quadro regularmente o aparecimento de amenorreia secundária e constipação por falta de ingestão alimentar O medo de engordar poderá se expressar ainda como preocupação por uma parte específica do corpo como o abdômen coxas culotes pernas ou rosto remetendo essa fixação à primeira imago de corpo despedaçado Por tanto intensos temores a respeito da comida e do aumento de peso hipe ratividade e disciplina no controle da fome são características próprias da anorexia mas tudo isso decorre na verdade em função da distorção de imagem própria desse tipo de patologia Segundo Dolto 1986 a anorexia é uma patologia da imagem do corpo Remonta ao momento em que a menina tem acesso ao saber re lacionado à sua pertinência sexual e ao investimento narcísico de se tornar mulher como sua mãe que fará frente a um homem como seu pai cujo valor será atribuído conforme esse é valorizado pela mãe Para a autora a menina que nessa fase estivesse convencida de seu valor como pessoa enquanto filha dessa mulher e desse homem dificilmente desen volveria uma anorexia Salienta que a anorexia surgirá geralmente em torno da puberdade ou um pouco depois quando começa a menstruar os seios crescem e todo o desenvolvimento puberal remete à percepção de sua fecundidade e de sua sexualidade ou seja está chegando a idade adulta e isso lhe causa horror Utiliza engordar para designar a gravidez perigosa para uma jovem cujo desejo é seduzir Mas Dolto 1986 assinala que ela quer seduzir principalmente a si mesma no espelho a si mesma através de seu próprio olhar borrando completamente as novas formas femininas de seu corpo É comum jovens no início da puberdade quando se dá o aparecimento dos seios tentarem disfarçálos vestindo roupas amplas Mas por que isso é tão forte nas anoréxicas Por que uma jovem 160 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols preferiria ficar presa a si mesma a esse jogo de sedução narcisista Por que não quer abrir mão de sua imago de corpo infantil e fazer frente à sua adultez O que deseja evitar Nesses casos há um desligamento que chega ao desprezo da imago que poderia ser captada ao ser vista pelo outro o ser visto se apaga frente ao se olhar A adolescente com esse tipo de patologia ao se olhar no espe lho se vê diferente da imagem que é vista pelo outro Ocorre uma ruptura entre essas duas imagens que impede a reconstituição de uma imago de corpo unificada saudável Mas como se dá tal ruptura Ela é interna ou externa Há na subjetividade algum grau de percepção de tal ruptura Olívia a jovem de nosso exemplo acima acreditava que o seu corpo de menina era o que lhe dava garantias de aceitação e tudo que amea çasse essa imagem era sentido por ela como assustador Recusava a ideia de ter uma sexualidade de sentir desejo e poder despertar desejo a não ser o de ter seu corpo muito magro Reconhecia às vezes que poderia estar um pouco magra mas só a ideia de engordar já lhe despertava pa vor Afirmava não se sentir mais ela caso isso acontecesse Aulagnier 1988 enfatiza que muito antes do estádio do espelho há desde a origem da atividade psíquica um fenômeno de especularização no qual toda atividade se apresenta à psique como um reflexo Seria como uma força que engendra toda imagem de coisa como representação de si mesma como um reflexo que contempla a própria criação Nesse momen to a psique vê o mundo como um fragmento de sua superfície especular em que ela vislumbra o seu próprio reflexo A partir daí o pulsional irá se apoiar no vetor sensorial que se apresentará como fonte original de pra zer Essa vivência de prazer se constituirá em condição necessária para a catexização da atividade de representação quando se dá a percepção da falta do objeto Aqui para a autora se dá o início da atividade pictórica o que a atividade psíquica contempla e catexiza no pictograma é o re flexo de si mesma que lhe assegura que entre o psíquico e o espaço do exterior à psique existe uma relação de identidade e de especularização recíprocas p52 E no meu ponto de vista essa é a experiência interna que permite à jovem anoréxica ignorar a imagem que lhe é dada pelo outro e seguir se descrevendo e se comportando como se gorda fosse de modo a catexizar o próprio estado de necessidade Assim se torna possível uma ruptura exterior graças a um soldamento subjetivo do interior com o exterior E por mais discrepante que nos possa parecer na verdade essa postura interna poderá ser muito útil para permitir a sobrevivência da imago de Crianças e adolescentes em psicoterapia 161 corpo infantil perfeita e dos pais majestades da criança pequena que se veem profundamente ameaçados com a chegada da adolescência O adolescente já descobriu que seu pai não pagou o aluguel ou foi injusto com o seu irmão Os efeitos do real já se fizeram sentir sobre o imagi nário mas foram renegados para manter a segurança de uma redoma narcísica Em caso contrário se descortinaria um conflito geracional ine vitável nessa etapa no qual o diferente se instituiu mais marcadamente a partir do próprio corpo O corpo adolescente se constitui portanto em palco de aconteci mentos profundos da psique humana reeditando antigos textos em novas roupagens novas interpretações e assim projetando a reconstrução de um eu mais centrado na própria subjetividade quando tudo corre bem REFERÊNCIAS AULAGNIER P C La violencia de la interpretación del pictograma al enunciado Buenos Aires Amorrortu 1988 DOLTO F La imagem incosciente del cuerpo Buenos Aires Paidós 1986 FREUD S Sobre o narcisismo uma introdução In Edição standard brasi leira das obras completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1994 v 14 p 85119 LACAN J Os escritos técnicos de Freud 19531954 In O seminário Rio de Janeiro J Zahar 1996 Livro 1 As formações do inconsciente In O seminário Rio de Janeiro J Zahar 1996 Livro 5 RASSIAL JJ O adolescente e o psicanalista Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 Implicações teóricoclínicas da transgeracionalidade na compreensão de quadros da adolescência atual Vera Maria Homrich Pereira de Mello 9 Em que o adolescente é diferente hoje Será que não são similares os processos de constituição de uma subjetividade pelo adolescente ao longo de várias gerações Sim e não É inegável pensarmos que há influências do meio na constituição dessa subjetividade Nesse sentido a psicanálise abordando o tema da transgeracionalidade ou seja transmissão psíquica entre gera ções tem trazido contribuições importantes Embora a matériaprima do psiquismo como nos é ensinado pela metapsicologia freudiana seja a pulsão esta é inscrita no discurso psíquico mediatizada pela ação do ou tro Esse outro adquire várias dimensões desde a da imagem especular Freud 1974 Lacan 1949 Winnicott 1956 ou da função portapalavra Aulagnier 1997 como também diz Birman 2006 por meio dos opera dores sociais e políticos que incidem sobre as pulsões mediando os registros da imagem e da linguagem modulando e precipitando os efeitos desses na construção do psiquismo Sabemos que a adolescência é crono logicamente mais extensa é comum vermos jovens com 25 anos morando com os pais fora do mercado de trabalho sem muitas perspectivas de uma vida adulta Ao mesmo tempo a sociedade proclama que o bom é ser jovem que aí reside a felicidade e contemplando essa ideia são bus cadas fórmulas para postergar o envelhecimento Há um ufanismo de que esse é o lugar ideal Na sociedade pósmoderna há um grande afluxo de informações onde a instantaneidade é a tônica o imperativo é a diver sidade fazendo com que provoque no sujeito uma sensação que oscila entre o pertencimento e o estranhamento Crianças e adolescentes em psicoterapia 163 Pareceme importante também abordarmos a existência de um grande paradoxo que observamos na nossa cultura pois ao mesmo tempo em que há um prolongamento da adolescência uma maior dificuldade em sair da casa dos pais em se inserir no mercado de trabalho dificuldades portanto em assumir um papel adulto há concomitantemente uma pressão por maturi dade e autonomia A cultura do êxito do tenha sucesso não contempla o ter medo o ficar inseguro o precisar de ajuda Mondrzak 2007 Vivemos em um tempo de desconstrução do abandono das utopias da Modernidade Líquida como diz Bauman Foise o tempo em que se sabia o que era esperado Por um lado isso é extremante rico mas por outro provoca o temor de não sabermos quem somos uma sensação de perdermos a identidade Poderíamos pensar que esse estado da sociedade muito se aproxima do estado adolescente Neste sentido como está o adolescente na sociedade atual já que em nível interno há toda uma busca premida pela necessidade de se constituir como um sujeito adulto Pensamos que nesse processo se daria um momento de diferenciação em que tanto em nível interno pulsional quanto externo do meio dos objetos se constrói um movimento de ra tificar questionar consolidar requestionar ou modificar mais ou menos radicalmente as modalidades anteriores do processo de subjetivação opor tunizandose a partir daí a condição do sujeito ter um pensamento próprio uma autonomia em relação às próprias ideias bem como a apropriação de seu corpo sexuado fazendo com que na vida adulta as capacidades de produzir e gerar possam ocorrer de diversas formas Cahn 1999 Esse movimento que implica abalar modalidades anteriores do processo de subjetivação impõe ao adolescente uma encruzilhada em que ou terá de lidar com incertezas acarretando angústia ou terá que perpetuar modelos anteriores anulando toda uma condição criativa do próprio momento Lembramonos de Meltzer 1993 ao falar do processo adolescente quando pontua que o mesmo se move em três mundos durante o processo de desen volvimento de sua estrutura interna o mundo dos adultos o mundo infantil no âmbito familiar e o mundo de seus pares Nesse sentido destaca a impor tância do grupo como forma de compartilhar com seus iguais as dores e dissabores que o abalar verdades históricas pode provocar Anteriormente na puberdade se daria uma ruptura da estrutura da latência ancorada por um severo e obsessivo splitting do self e dos objetos emergindo as confusões típicas das etapas préedípicas bommau adultocriança feminino mas culino O grupo de pares teria como função não somente a socialização mas a possibilidade de conter essas confusões que são intensificadas pela apari 164 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols ção dos caracteres sexuais secundários Dessa forma nos grupos sempre existe o nerd o desligado o irreverente o contestador o sedutor o tímido enfim personagens que representam partes do sujeito que ficam projeta das e contidas por cada elemento do grupo fazendo com que o grupo tenha uma importância fundamental pois ele tem uma identidade própria tarefa que nesse momento individualmente ainda está em construção para o adolescente Podemos encontrar também outras formas de agrupamentos e de identidade grupal tais como comunidades no orkut ou defensores de algumas causa ou até em casos extremos grupos ligados a seitas A frase de Kestenberger 1984 tudo se prepara na infância mas tudo é jogado na adolescência encontra sintonia na forma como penso o processo adolescente em que para ingressar com reais condições nele é fundamental observarmos como se deu a passagem pela infância e pela latência ou seja a forma como se deu a complexa rede de conflitos que o sujeito vivencia na sua evolução Nesse sentido a neurose infantil seria para Ungar 2004 um primeiro organizador diferenciando nesse mo mento as crianças que conseguiriam armar uma neurose infantil cons truindo uma latência de outras que não conseguiram fazêlo acarre tando uma detenção no desenvolvimento um quadro psicótico ou ainda um quadro de pseudomaturidade Ungar 2006 Ressalta a autora que esse processo de latência precisa ser desmontado na adolescência opor tunizando novas transformações para atingir a subjetividade adulta Atualmente na clínica percebemos um maior encurtamento no pe ríodo de latência bem como uma menor delimitação quanto às suas ca racterísticas Observamos meninos e meninas de 8 ou 9 anos com ques tões típicas da adolescência como preocupação em relação ao corpo se são atraentes para o sexo oposto se vão conseguir ficar com alguém nas festinhas do grupo de amigos Talvez como uma radiografia do que ocorre a nível social a cultura do prazer instantâneo a necessidade de gratifi cação rápida sem postergação possamos pensar que no nível psíquico há uma similaridade de processos Pereira de Mello 1999 O período de latência pode ser considerado um períodochave para o desenvolvimento da personalidade já que é uma fase onde se dá o pro cesso pleno de simbolização com o exercício de todas as capacidades intelectual motora emocional etc ocorrendo um verdadeiro traba lho na medida em que é realizado um esforço para a organização dife renciação complexidade e ampliação do aparato psíquico possibilitan do dessa forma um melhor trâmite do pulsional Urribarri 1999 Crianças e adolescentes em psicoterapia 165 À medida que se consolida o processo de simbolização durante a latência a adolescência passa a se restabelecer na integração dos aspec tos orais anais e fálicos estabelecendo uma genitalidade possibilitando um ego mais integrado mais forte e um superego menos severo Funda mental observarmos que a existência de perturbações prévias ou trans tornos durante a latência poderão travar ou alterar os processos do tra balho de latência acarretando um grau variado de patologização ao pro cesso adolescente Urribarri 2003 Observase que a dificuldade em estruturar uma latência denuncia ria falhas no estabelecimento da repressão secundária assim como na utilização de várias defesas típicas dessa fase Nessa linha de pensamento Meltzer 1979 aponta que há jovens que não tolerando o distúrbio central da adolescência que consiste na confusão de identidade regridem a um estado de latência de forma muito estruturada sendo difícil a percepção deste movimento a não ser no transcurso do processo analítico Dessa forma o que mobiliza esse tipo de funcionamento é a busca da utilização de mecanismos que anteriormente possibilitavam uma paz ao enfrentar o sofrimento edípico e que nesse momento da adolescência quando ocorre um novo embate no terreno da sexualidade são novamente utilizados Aqui lançamos uma questão que nos tem inquietado e que pensamos ser importante para refletir e que diz respeito à grande exposição que nossas crianças têm recebido principalmente da mídia em horários diur nos onde são apresentadas cenas de forte apelo sexual bem como temá ticas de violência e drogas típicas do universo adulto Birman 2006 pontua que essas experiências confrontam as crianças radicalmente com a quase ausência dos limites de forma que a frouxidão dos interditos se destaca aqui como uma problemática fundamental na constituição psí quica Até que ponto o psiquismo dessas crianças consegue metabolizar esse quantum de excitação Retomamos Freud 1974 que disse haver um quantum de angústia que pode ser metabolizado ou pensado Dessa forma o indivíduo subme tido até certo grau de estímulo teria condições de responder com um fluxo de representação próprio e elaborar essa situação No entanto se o quantum de excitação supera o limite de tolerância psíquica o aparelho se desorganiza não havendo uma metabolização desse quantum de ener gia e se dando uma ruptura do pensável podendo provocar sérias pato logias Bion 1998 nos contemplou com Teoria do pensamento e do conhe cimento cujas ideias centrais apontam que se existe uma experiência 166 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols emocional e ela não é processada para formar representações simbólicas que possam ser utilizadas para o sonhar e o pensar será necessário eva cuálas pondo para fora o excesso de estímulos que sobrecarrega a men te Entre as vias utilizadas para essa evacuação encontrase o próprio corpo nas perturbações psicossomáticas Observamos com maior incidência na infância quadros como enxaquecas gastrites úlceras etc a conduta nas atuações contemplamos um incremento de situações onde o limite não é observado seja nas agressões utilização de drogas iniciação sexual precoce etc as percepções e o pensamento nos delírios e nas alucinações e ainda conforme o mesmo autor o comportamento grupal Os quadros patológicos atuais são escritos na literatura psicanalítica como sendo marcados com mais intensidade por um predomínio do vivido sobre o pensado Jeammet e Corços 2005 Observamos com maior ênfase a incidência das patologias das condutas agidas como ano rexia bulimia seguida de vômitos práticas toxicomaníacas atos suicidas e mais recentemente automutilações Essas patologias exigem de nós alterações em relação ao enquadre e à conceitualização teórica fazendo com que haja um deslocamento em que passa a ser necessário nos cen trarmos nas verdadeiras relações de objetos bem como nas relações nar císicas de objeto em vez da análise dos conflitos ligados à repressão abordagem esta típica no campo das neuroses Essas patologias graves em que muitas vezes o risco à vida do ado lescente é significativo colocam em evidência uma falha no processo de simbolização denunciando a ineficácia dos mecanismos utilizados na repressão dos aspectos pulsionais o que provavelmente já poderia estar sendo denunciado nas dificuldades tanto de construção como de descons trução do processo de latência que tanto se observa na clínica atual Claro está que essas questões remetem às relações precoces com o objeto materno bem como com as rupturas que se deram na construção desse aparelho psíquico acarretando falhas no processo simbólico Usando o modelo digestivo Bion 1962 faz uma ampliação da geo grafia dos espaços mentais valorizando o fato de que no processo de es tabelecimento de dentro e fora tornase fundamental a capacidade de a mãe poder conter as identificações projetivas de seu bebê que teriam a função de comunicar estados mentais No seu entender essas identificações projetivas seriam metabolizadas mediante a ação da função alfa materna passando a ser nomeadas e internalizadas com algum significado Nesse sentido a mãe teria a função de filtrar e transformar os elementos proto Crianças e adolescentes em psicoterapia 167 mentais em um elemento capaz de constituir um pensamento No entanto por vezes esse processo apresenta dificuldades e nos deparamos com várias patologias em que a tônica é a falha no processo de representação Sabemos que algumas situações traumáticas provocam tanta violên cia e desamparo que ficam impossibilitadas de serem traduzidas e pas sam a ocupar um lugar na mente funcionando como um corpo estranho estabelecendo uma topografia própria que Meltzer 1998 denominaria de protomental Nesse momento detemonos em um aspecto que tem atraído a aten ção que é a realização cada vez mais frequente da utilização da pele em tatuagens piercings body art chegando à utilização de artefatos sob a pele O que estaria significando esta busca intensa de tatuagens colo cação de piercings nos olhos língua genitais Muitas vezes se observa no adolescente marcado pela tatuagem uma tentativa de redimensionar a imagem do corpo com o qual nasceu diferenciandoo e se apropriando dele estabelecendo uma identidade diferente dos pais Nesse sentido o uso de tatuagens e piercings tão co muns na comunidade adolescente atual pode estar significando uma ten tativa do jovem em se apropriar do seu corpo diferenciandoo deixan dolhe marcas Por outro lado é importante observar a necessidade tão presente de deixar marcas externas que poderiam estar significando em alguns casos a ausência de registros internos que configurem uma subje tividade uma sensação de ser único Na prática clínica com adolescentes detectase com frequência for mas de condutas aditivas denunciando antecedentes de carência ou de distorções afetivas graves demonstrando frágeis capacidades de repre sentação e de elaboração Jeammet e Corços 2005 Observase ainda nesses quadros intensa impulsividade uma angústia de pânico desperso nalizante por vezes um risco de desorganização psíquica ou até mesmo somática Nesse sentido é comum ouvirmos desses pacientes frases do tipo Eu só me acalmo quando eu me corto expressando que por meio da dor sentida na pele há uma tentativa de encontrar um continente uma representação diante de uma angústia impossível de ser colocada em palavras Percebese nessas situações com clareza a pele funcionando como o envelope do corpo assim como a consciência tende a envelopar o aparelho psíquico Anzieu 1998 O bebê adquire a percepção da pele como superfície por meio do contato da pele de seu corpo com o corpo da mãe e da forma tranquilizadora que esta se coloca diante de suas angús tias Como consequência desse processo constituise a noção de um limi 168 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols te entre o exterior e o interior bem como a confiança necessária para o controle de seus orifícios estabelecendose assim uma confiança na in tegridade de seu envelope psíquico Sendo assim já nos primórdios da vida do sujeito vão surgindo formas de lidar com angústias muito primi tivas tais como de esvaziamento e de fragmentação Esses registros são reativados no momento de intensa turbulência como é a adolescência em que questões como dependência separação alteridade são novamente colocadas em xeque acrescidas então com o reencontro com as questões edípicas em que fica colocada em cena a necessidade da desidealização parental requisito básico para o ingresso na brecha geracional bem co mo no papel de adulto Na clínica são percebidas situações em que esse envelope psíqui co quando ameaçado desencadeia sentimentos de angústia em que a tônica não é de fragmentação mas de escoamento e de esvaziamento Anzieu 1998 Lembrome aqui de um filme Aos treze da diretora Catherine Hardwicke que retrata com clareza essa questão que estou levantando em relação a angústia de escoamento e fragmentação sen tida por uma adolescente que busca ser contida por meio de cortes no corpo como tentativa de reencontrar um continente nem que seja pela dor provocada na pele Recordome nesse momento de uma paciente que dizia ao se referir aos momentos em que se cortava que dessa dor eu cuido fazendo menção ao fato de que a dor psíquica seria muito maior e intolerável Ao pensarmos na família nuclear da modernidade essa era consti tuída pelas figuras do pai mãe e filhos e tinha como característica uma clara demarcação entre o poder paterno e materno Enquanto à figura paterna cabia a governabilidade do espaço público a figura materna se ocupava do espaço privado envolvendose com a prole Dessa forma fi cando sob sua responsabilidade os cuidados relativos à saúde à educação e à qualidade de vida da família Atualmente o panorama se mostra diferente diante da entrada da mulher no mercado de trabalho houve uma revolução nesse cenário fa zendo que a mulher passasse a ter projetos próprios não só mais exclusi vos ao âmbito familiar demarcando uma nova configuração nesse estabe lecimento de papéis tanto materno quanto paterno Por vezes essas alte rações provocam uma turbulência tal que provoca nos pais sentimentos de perda e de impotência dificultando o processo que é primordial para o adolescente que é o confrontamento e a desidealização das figuras pa rentais para o estabelecimento de sua subjetividade Crianças e adolescentes em psicoterapia 169 Gostaria de trazer uma questão que me parece extremamente im portante nesse momento de construção de subjetividade que vive o ado lescente e que consiste nas influências que a história de seus antepas sados podem exercer nesse campo A questão da transmissão psíquica entre gerações da transgeracionalidade fala de aspectos que são repeti dos por gerações subsequentes na tentativa de encontrar uma possibili dade de elaboração Embora a questão da transmissão psíquica entre gerações seja um tema presente também na obra de Freud tanto em Totem e tabu 1913 Introdução ao narcisismo 1914 bem como em Luto e melancolia 1917 foi a partir da clínica com pacientes sobreviventes ou descendentes do holocausto que chegavam aos consultórios que os psicanalistas passaram a dar uma nova atenção a essas questões Foi sendo percebido que os segredos os traumas as violências vividas quando não faladas eram transmitidas em bloco para a geração seguinte Revisitando o texto de Freud Totem e Tabu 1913 percebemos que por meio da teoria da horda primeva e do comportamento dos povos pri mitivos o autor aborda o aspecto da origem dos preceitos morais da reli gião sustentando a existência de disposições psíquicas através das gera ções Em Introdução ao Narcisismo 1914 Freud demarca que o sujeito é o elo de uma cadeia de transmissão sendo beneficiário e herdeiro da mesma Portanto poderia ser considerado um trabalho psíquico de transmissão o processo onde o resultado é uma série de ligações psíquicas entre aparelhos psíquicos bem como da forma como se dão as transformações operadas por essas ligações Ao mesmo tempo esse olhar para a transmissão aponta para as falhas na mesma demarcando a existência de criptas da formação de fantasmas enfim de um nãotrabalho de transmissão impedindo um processo de historização do sujeito Entendo como sendo de vital importância o tema da transmissão psíqui ca entre gerações na medida em que toma como vértice a constituição do psiquismo do sujeito sendo este resultante de um processo em que interagem vários elementos enfatizando a submissão do sujeito aos conjuntos dos quais ele procede seja a família o grupo as instituições ou a massa Kaës 2001 Dessa forma o enfoque dado à questão da transmissão psíquica entre gerações é a formação do inconsciente e dos efeitos na subjetividade que produzidos na intersubjetividade dela derivam Volto a enfatizar o quanto o olhar para essas questões na psicanálise e na psicoterapia de orientação analítica de crianças e adolescentes é de fundamental relevância pois esse período demarca uma possibilidade de uma reorganização psíquica 170 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Sendo assim o vértice de minha abordagem é nas dificuldades da transmissão ou seja quando ela se dá sem possibilidade de transforma ção sem a existência de espaços psíquicos entre os sujeitos muitas vezes procurando encobrir segredos faltas aspectos nãosimbolizados sendo utilizados mecanismos como encriptação forclusão ou rejeição Isso faz com que um sujeito se constitua tendo no seu inconsciente partes das formações inconscientes de um outro que vem habitálo e perseguilo como um fantasma Kaës 2001 Relembrando Freud em 1913 em Totem e tabu nada do que foi retido poderá permanecer totalmente inacessível à geração seguinte ou para aquela que se segue deixará marcas que pelos menos em sintomas manterão a ligação das gerações entre si num sofrimento cujo significado lhes será desconhecido Esse olhar sobre os efeitos da transmissão psíquica faz que tenhamos outra visão como psicoterapeutas de crianças e de ado lescentes no que tange à construção da subjetividade dessa criança ou ado lescente necessitando estarmos atentos a aspectos que possam estar nega tivados pelas gerações precedentes e que buscam representação por meio de um sintoma que possa estar sendo apresentado pelo paciente Poderíamos nos questionar a respeito de como esse processo ocorre e para tanto é importante nos conectarmos com o estado de desamparo em que um bebê nasce e do quanto ele depende do casal parental para sobrevivência Desde o período intrauterino várias mensagens são en caminhadas à criança pelos pais e essa vai buscando dar sentido às mes mas No entanto há aspectos que ficarão à espera de sentido fazendo com que a criança possa mantêlos e constituir inclusões como se lançar incessantemente em busca de sentido Entretanto há casos em que sendo a herança negativa demasiadamente invasiva para um psiquismo que es tá se fundando demarca que esta criança passe a se tornar um continen te do negativo onde ela ficará identificada ao impensável ao irrepre sentável alienada no transgeracional Essa condição de dependência desse novo ser deflagra um estado de solidariedade ao casal parental e que pode ser a base para esse padrão em que o sujeito passa a ser portador de uma herança negativa Fica soli dário ao se fazer cargo de algo que é insuportável ao aparelho psíquico das gerações precedentes e que segundo Faimberg 2001 é regulado pela lógica narcísica em que o discurso primordial consiste em tudo que merece ser amado sou eu ainda que venha de você filho e o que reco nheço como vindo de você filho eu odeio além disso atribuirei a você tudo o que não aceito em mim você o filho será meu nãoego Nessa Crianças e adolescentes em psicoterapia 171 lógica narcísica há duas funções a primeira fase a do amor narcísico seria caracterizada pela função de apropriação e a segunda a do ódio narcísico seria denominada de função de intrusão Faimberg 2001a Nesse padrão de relação não há espaço para que se constitua uma ver dadeira subjetividade para esse novo ser não há condições para que a criança desenvolva a sua identidade livre do poder alienante do narcisis mo dos pais Os pais não funcionam como um escudo protetor ao con trário a identidade do sujeito é determinada pelo que é rejeitado na história dos pais uma identidade colocada sob o sinal da negação por tanto uma identidade negativa A criança deixa de ter a oportunidade de ser herdeira e se torna escrava de um segredo familiar de uma amnésia de um nãodito Este é considerado o contrato psicótico fundador do autismo e das psicoses Granjon 2001 Embora possa ser surpreen dente não são os acontecimentos mais dolorosos os que têm maior poder de alienação mas sim os que tenham tomado para os pais a condição de nãoelaborados sendo os afetos por eles suscitados intoleráveis ao psi quismo de um dos progenitores passando a ser despejados no filho sem nenhuma possibilidade de metabolização Essa função alienante provoca na criança uma clivagem que é a mola propulsora para a sensação de estranheza sensação esta que denuncia a presença de uma organização estranha ao ego pois faz jus à história de um outro que é portador de uma história que em parte não é sua O conceito de telescopagem das gerações que tem como imagem plástica para exemplificar esse fenô meno as matrioskas bonecas russas que se encaixam umas dentro das outras aponta para o aspecto da identificação alienante que condensa pelo menos três gerações em que uma geração é cativa da história de seus antecessores Faimberg 2001a Outro aspecto que me parece importante salientar nesses processos é a existência da ideia de um tempo circular no qual não há a diferença geracional a alternância de gerações e por conseguinte da passagem do tempo Esse movimento pode ser verificado na clínica por meio da contratransferênciatransferência pois essas identificações alienantes são inicialmente inaudíveis e é somente por meio da contratransferência que elas começam a expressar sua voz Para tanto é fundamental a postura do terapeuta que deve poder conter a angústia do não saber e mais de não saber que não sabe Poderíamos pensar que na relação transferencial a presença desses pais internos regulados pela ótica narcísica em que apropriação e intrusão cheio demais e vazio são fenômenos visíveis teremos consequências clínicas importantes sendo necessárias abordagens técnicas diferenciadas em 172 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols que a interpretação psicanalítica deve buscar a presença que a fala constitui para designar a ausência Lembrome de uma situação que bus ca ilustrar esse processo tratase de uma adolescente que chamarei de Bruna que veio buscar atendimento por ter se envolvido em um acidente automobilístico no qual morreu uma amiga sua No primeiro contato com Bruna chamoume a atenção o quadro depressivo que apresentava a forte culpa que sentia diante daquela fatalidade mas me marcou in tensamente a acusação implícita contínua que os pais faziam à filha de que ela era uma homicida Contratransferencialmente sentia que havia algo de peso que não estava sendo relatado Busquei então falar com os pais tratando de examinar o que poderia estar sendo omitido e sur preendemente a mãe me relata um fato mantido em sigilo até então fato que há muitos anos envolverase em um acidente provocando a morte de um adolescente que lhe desencadeou várias mudanças em sua vida e o qual ela nunca conseguiu elaborar jamais se perdoando Portanto o acidente da filha marcou o tempo circular fazendo que Bruna fosse con denada a expiar uma culpa que não era originalmente sua Nessas situações é extremamente importante que o psicoterapeuta se coloque em uma posição de escutar e de ser surpreendido pelo desco nhecido similar ao conceito de capacidade negativa de Bion 1998 mas que pressupõe não só tolerar o que não sabe mas também a condição de conter algo que ainda não tem representação para o paciente Na clínica com crianças e adolescentes talvez seja no tecido associa tivo que a contratransferência nos oportuniza estabelecer uma possibili dade de elo algo que a família não pode falar e quem sabe através do sintoma no qual houve uma busca de encontrar um continente na es perança de que a partir daí possa surgir uma possibilidade de represen tação para algo que antes era impensável Finalizando penso que a psicoterapia de orientação psicanalítica com adolescentes impõe ao terapeuta que se movimente com mais in tensidade em relação aos próprios aspectos primitivos e infantis à me dida que toca na própria adolescência do psicoterapeuta A beleza e a arte do trabalho com adolescentes talvez possa ser pensada pelas carac terísticas da própria etapa a disposição à mudanças a riqueza de pos sibilidades a coragem em desbravar novos horizontes a rebeldia que faz com que se questione tudo bem como a genuína gratidão ao se sentir compreendido Crianças e adolescentes em psicoterapia 173 REFERÊNCIAS ANZIEU D O eupele 2 ed Rio de Janeiro Casa do Psicólogo 2000 AULAGNIER P C La violência de la interpretacion Buenos Aires Amorrortu 1997 BION W Aprendiendo de la Experiência Buenos Aires Paidós 1966 Uma teoria sobre o processo de pensar In Estudos psicanalíticos revisados Rio de Janeiro Imago1998 BIRMAN J Tatuando o desamparo a juventude na atualidade In CARDOSO M R Org Adolescentes São Paulo Escuta 2006 CAHN R O adolescente na psicanálise a aventura da subjetivação Rio de Janei ro Companhia de Freud 1999 FAIMBERG H Escuta da telescopagem das gerações pertinência psicanalítica do conceito In KAËS R et al Transmissão da vida psíquica entre gerações São Pau lo Casa do Psicólogo 2001a Gerações malentendido e verdades históricas In SOCIEDADE DE PSI COLOGIA DO RIO GRANDE DO SUL Criação humana Porto Alegre 2001b FRANCH N P Alguns desafios da Psicanálise de Adolescentes na atualidade Re vista da Sociedade Brasileira de Psicanálise de Porto Alegre v8 n1 p 155 2006 FREUD S Luto e melancolia In Edição standard brasileira das obras com pletas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1974 v 14 Sobre o narcisismo uma introdução In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1974 v 14 Totem e tabu In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1974 v 13 Três ensaios sobre a teoria da sexualidade In Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1996 v 7 GRANJON E A Elaboração do tempo genealógico In CORREA O Os avatares da transmissão psíquica geracional São Paulo Escuta 2001 HERZOG R SALZTRAGER R O sentido da revolta do adolescente na contempo raneidade In CARDOSO M Org Adolescentes São Paulo Escuta 2006 JEAMMET P CORÇOS M Novas problemáticas da adolescência evolução e manejo da dependência São Paulo Casa do Psicólogo 2005 KAËS R Introdução o sujeito da herança In KAËS Ret al Transmissão da vida psíquica entre gerações São Paulo Casa do Psicólogo 2001 MELTZER D Adolescentes Buenos Aires Spatia 1993 MONDRZAK V S Adolescentes pseudopseudomaduros um estudo da clínica psicanalítica da atualidade Revista Brasileira de Psicanálise v 41 n 2 2007 PEREIRA de MELLO V M H Um olhar clínico sobre a latência Revista da OCAL 2000 SARNOFF C A Estratégias psicoterapêuticas no anos de latência Porto Alegre Artmed 1995 TRACHTENBERG A et al Transgeracionalidade de escravo a herdeiro um destino entre gerações São Paulo Casa do Psicólogo 2005 174 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols UNGAR V A neurose infantil como um organizador do desenvolvimento Revista Brasileira de Psicoterapia Porto Alegre 2004 La tarea clínica con adolescentes hoy In HORSTEIN M C R Comp Adolescencias trayectorias turbulentas Buenos Aires Paidós 2006 URRIBARRI R A importância da latência na estruturação do psiquismo adulto In SIMPÓSIO DE PSICANÁLISE DA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA 5 Registrado em vídeo pela Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre 2003 Descorrendo el velo Sobre el trabajo de la latencia Revista de Psicoaná lisis Buenos Aires v 56 n 1 p 134168 1999 WINNICOTT D W Preocupação materna primária In Textos selecionados da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro F Alves 1978 Formas comunicativas na psicoterapia com adolescentes Maria da Graça Kern Castro Valderez Figueira Timmen 10 Enfrentamos vários desafios em nossa prática clínica com adolescen tes pois nos defrontamos com um sujeito em um momento especial de seu desenvolvimento o qual está imerso num mundo repleto de transfor mações movimento intensidade e ação Necessitamos acolher suas ansie dades e perplexidades decorrentes dessas manifestações compreendêlas e traduzilas inicialmente para nosso próprio mundo interno e depois para o paciente em um processo de transformações empreendidas em conjunto no vínculo e no campo terapêutico Bion 1980 Deparamonos com va riadas contradições nesse processo o paciente deve estabelecer uma ligação conosco num momento em que busca sua autonomia e indepen dização ao mesmo tempo em que luta com aspectos de sua passividade e dependência A psicoterapia oferece ao jovem um espaço para reflexão num momento em que o agir se impõe ao pensar utilizando o corpo e a sexualidade como o palco para expressão dos seus conflitos internos A busca da sua identidade a possibilidade do início da vida sexual genital e a ressignificação de suas identificações infantis objetivos dessa fase evolu tiva são o cerne do tratamento psicoterápico e ao mesmo tempo em que são desejadas também são temidas A adolescência é caracterizada por alternâncias de movimentos pro gressivos e regressivos na busca da construção da identidade a qual se apoia nas primeiras relações objetais internalizadas nos vínculos e no suporte com a realidade externa sustentada pelo ambiente familiar e so cial O setting psicoterápico se oferece como um espaço para encenar esse mosaico de tendências opostas e conflitantes É um desafio manter nossa 176 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols capacidade de pensar e de conter as projeções e as atuações enquanto elas não podem ser simbolizadas e transformadas em pensamentos e palavras pelo jovem paciente Abordaremos neste capítulo com o apoio dos casos clínicos algu mas formas comunicativas que permeiam as sessões com adolescentes enfatizando o uso da identificação projetiva como modo de comunicação nãoverbal utilizado pelos pacientes Sabendose que a ação é caracterís tica central na adolescência precisamos dialogar com essa forma de co municação mantendo a atitude de continência e de respeito A ação se apresenta intercalada com manifestações narcísicas silêncios espaços vazios que podem originar contraidentificações geradoras de interven ção com características semelhantes à ação É necessário que esteja mos atentos aos nossos sentimentos contratransferenciais para não con traatuar mas sim agir em parceria com o adolescente e realizar um con junto de transformações que partindo de expressões concretas deverão seguir rumo ao simbólico O PROCESSO ADOLESCENTE O CORPO E A SEXUALIDADE A sexualidade humana tem uma longa história iniciada com a primei ra sucção oral e demais experiências prégenitais sobre as quais a geni talidade nascente vem se colocar A emergência pulsional adolescente a irrupção da sexualidade reabre suas brechas reaviva seus conflitos e é momento ímpar para a compreensão da dupla função da sexualidade Esta é o conceito articulador entre o psíquico e o somático e como metáfora da condição humana tornase um momento também em que todas as feridas e fragilidades ficam expostas O corpo agora remete à sexualidade e ao desejo A apropriação desse corpo sexuado resultará na elaboração da revivência do complexo de Édipo Com a emergência do pulsional agres sivo e libidinal não havendo uma boa resolução edípica pode haver ina dequação e desesperança no acesso à posição sexuada e ao ideal e conquis ta do objeto sexual Freud 1997 Dias 2000 Mondrzak 2007 O processo adolescente é vivenciado como um segundo nascimento e como uma reedição da problemática edípica a qual gera fenômenos de ressignificação dos acontecimentos da infância A imagem do próprio cor po que se torna desconhecido e fonte de desejos constitui o primeiro lugar de modificações identificatórias e simbolizantes do jovem Nos processos da adolescência a elaboração do luto pela perda do corpo papel e iden Crianças e adolescentes em psicoterapia 177 tidade infantil e a integração de um corpo sexuado genitalmente cons tituem fonte para significativas elaborações Quando isso não ocorre tais vivências são expelidas do aparelho mental sob três formas de expressão 1 pelo corpo via doenças psicossomáticas distúrbios alimentares agres sões ao corpo 2 via conduta nas atuações nas vivências grupais e 3 na mente via delírios e alucinações Essas formas de expressão se superpõem e podem oscilar da normalidade à patologia Blos 1996 Knobel 1981 Guignard 1997 O setting com adolescentes é atravessado por movimentos e ações e se configura como um espaço relacional e como um lugar onde possam ser acolhidos os ritmos o antes o atual e o depois para que vagarosa mente possam ser conectados passado presente e futuro em um pro cesso de transformações na busca da construção da historicidade do ado lescente Mondello 1996 O jovem tem uma ânsia por locomoção por ir em frente e por andar atrás de anseios que se manifestam pelo gosto por danças arre batadas pelos esportes audazes e pela velocidade que lhes oferecem uma sensação de onipotência Toda essa movimentação é figurada nas sessões de modo que é comum adolescentes chegarem com seus iPods para que escutemos suas músicas prediletas ou nos mostrem os novos passos da dança da moda ou ainda que tragam amigos e namorados até a sala de espera para que os conheçamos de forma concreta Erikson 1976 Ungar 2006 Mondrzak 2007 MARIANA E AS ALEGRES EXPERIMENTAÇÕES ADOLESCENTES Mariana é uma adolescente que no exercício de sua sexualidade encontra vários meninos nas festas ficando com eles de modo aleatório Necessita encontrálos e beijar muito Ainda é uma proximidade fluída bastante comum aos 14 anos pois está numa fase de curiosidade sobre o sexo oposto e de alegres experimentações Meltzer 1994 Mariana revela nas roupas rasgadas a maioria de cor preta e na admiração por Kurt Cobain o momento de transição e de elaborações depressivas mas com suporte psíquico e familiar que a auxiliam a conter e a simbolizar esse momento Mariana solicita o tratamento porque se sente solitária incompreendida pelos pais a quem chama de antiquados e reacionários Sua família estranha as mudanças de conduta de Mariana que há um ano era uma jovem meiga e calma Aliouse a um grupo cujos temas de 178 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols conversa são política filosofia e questões sociais querem reformular o mundo como apontam seus pais FLÁVIO SUA INIBIÇÃO SOCIAL E SEXO COMO DESCARGA Flávio tem 19 anos e diferente de Mariana não consegue se apro ximar socialmente das garotas Somente ao final das festas após ter be bido sentese encorajado para um encontro furtivo com o intuito de transar realizando uma descarga pulsional Além dessa conduta em relação às garotas muitas vezes se envolve em brigas rouba o carro do pai para fazer pegas ou rachas com os amigos colocandose em risco Ambos estão em psicoterapia Mariana no início de sua adoles cência chama a atenção sobre si com suas roupas chocantes Quer ser olhada está curiosa quer também descobrir e reinventar sua própria identidade Nas sessões faz relatos verbais expressivos emocionados e reflete sobre suas vivências mas também usa a comunicação nãoverbal caminhando pela sala exibindo novidades um excêntrico corte de cabelo uma nova cor ou uma roupa exótica suscitando na terapeuta in quietude confusão e estranhamento A regressão narcísica gerada na puberdade faz com que a pulsão escópica seja acentuada e ser olhado tornase importante para que seja confirmado pelo outro família amigos ou o próprio psicoterapeuta que o estatuto de seu corpo se modificou Rassial 1999 Nesse exercício de es pecularidade em que o olhar alheio confirmará ou não sua fantasia de cas tração e de integridade corporal e psíquica Mariana se oferece em primei ro lugar ao olhar do objeto materno e transferencialmente à sua psicote rapeuta A função terapêutica nesses casos é menos de interpretação e mais de receptividade e desenvolvimento de sua capacidade discriminató ria sendo construído com a paciente o entendimento de que quer ser olha da desejada e aceita nos seus processos de transformação e crescimento Mariana precisa fazer testes consigo mesma e com os demais a fim de definir aspectos identificatórios para realizar a passagem Meltzer 1998 visando reorganizar sua identidade e mais tarde ingressar nas relações amadurecidas e de intimidade adulta Flávio estando cronologicamente no processo de adolescência final denuncia por meio de seus comportamentos suas fixações infantis e a precariedade de sua capacidade egoica Ele viveu situações traumáticas no convívio com um pai extremamente agressivo e uma relação simbióti Crianças e adolescentes em psicoterapia 179 ca e idealizada com a mãe Na revivência de seu conflito edípico Flávio se identificava com as agressões de seu pai e percebia o sexo como descarga violenta Uma saída bemsucedida do reviver edípico adolescente leva ao encontro com o desejo sexuado mas a contrapartida da não resolução edípica torna o corpo e a sexualidade presos ao real e concreto com relações de tudo ou nada Dias 2000 Desse modo Flávio temia não ser aceito pelas garotas isolandose daquelas valorizadas usando as que desqualificava tratandoas apenas como um corpo a mais Os aspectos traumáticos de suas relações familiares envolvendo sexualidade não conseguiram representação e eram manifestados em condutas violentas Flávio na sua passagem adolescente foi deixado para trás permanecendo fixado em etapas prégenitais tornandose incapaz de se socializar e de elaborar seus conflitos excluindose pela promiscuidade e pela adição ao álcool e às drogas Meltzer 1998 Contratransferencialmente nas sessões a terapeuta ficava tomada por preocupações e receio pela sua integridade tendo em vista suas atua ções sendo impelida a ter um cuidado que transcendia as funções tera pêuticas desejos de telefonar para saber se ele estava bem por exem plo Os processos projetivos do paciente invadiam a mente dela influen ciando seu processo de pensar Tomando contato com sua excessiva ansie dade em relação a Flávio a terapeuta percebeu que esse era o modo dele lhe comunicar o intenso sofrimento Nesses casos o terapeuta terá a fun ção primordial de conter as identificações projetivas do paciente dis ponibilizando sua mente e o setting como continente capaz de transfor mar a carga projetiva aguardando o momento em que o paciente tenha condições de escutar e de reintrojetar o material expelido nos actings No transcurso da psicoterapia Flávio lentamente pôde construir repre sentações que contiveram o seu sofrimento com menores riscos de atua ções perigosas Pelos exemplos citados vemos que a adolescência é momento de intensas transformações nas relações do sujeito 1 seu corpo 2 laços libidinais e agressivos com a família e 3 com a sociedade O corpo apri sionado nos seus aspectos concretos e não simbolizados apresentando falhas no seu revestimento narcísico pode ser uma arena para descargas sexuais eou autoagressivas que podem gerar ainda mais sofrimento Co mo forma de lidar com o novo e o estranho corpo e as novas reorgani zações de espaçotempo a ação se impõe em detrimento do pensar sendo a impulsividade e a instabilidade características dessa etapa vital A per cepção do impacto das mudanças intrapsíquicas as modificações exter 180 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols nas em seu corpo as alterações no papel e nas exigências sociais e a to mada de conhecimento do tempo irreversível levam o jovem à busca de novos vínculos consigo mesmo e com os demais num processo de ela boração das perdas infantis que poderão leválo a usufruir os ganhos advindos de seu crescimento MILENA E SUAS INSCRIÇÕES Milena 17 anos está em psicoterapia há seis meses Foi abando nada por sua mãe com 1 mês de vida vivendo em um abrigo para menores até os 18 meses quando foi adotada Seus pais a criaram com muitos cuidados e alguma superproteção rendendose às suas exigên cias e frequentemente se submetendo aos seus caprichos Referiam que ela sempre foi desconfiada tendia ao isolamento e apresentou di ficuldades com aprendizagem Na adolescência mostrouse uma jovem rebelde agressiva e relapsa em seus estudos o que desencadeava brigas recriminações no lar Queixavase dos pais dizendo que eram chatos implicantes não a compreendiam nem a olhavam para ver se estava alegre ou triste Revoltavase com sua aparência gordinha e então ga nhou uma cirurgia para redução de seios e lipoaspiração que a deixa ram esbelta Logo engordou muito e passou a se envolver em condutas de risco Seu grupo de amigos eram pessoas marginais nas suas pa lavras que se envolviam em atividades grupais perigosas havendo oca siões em que a polícia foi chamada a intervir Nas sessões chegava com frequência trazendo comida um bombom um sorvete batatas fritas refrigerante usando algum tempo das sessões para se alimentar Ficava sem falar distante e predominantemente mantinha transferência hos til negando que precisasse ajuda e odiando sua terapeuta Contratrans ferencialmente mobilizava muitas preocupações pelas possibilidades de riscos em que se envolvia Um dia apareceu com piercing nas so brancelhas no nariz na língua e tatuagens nos ombros braços e nas costas com desenhos de dragões dinossauros animais alados e primi tivos Tal fato surpreendeu e chocou seus pais que não esperavam tal conduta As figuras tatuadas causaram forte impacto também em sua terapeuta que passou a questionar com Milena o motivo daquelas es colhas A partir desse fato criouse uma área de interesse sobre as es colhas das imagens tatuadas e a jovem passou a usar suas sessões para questionar e pensar sobre si seu corpo e sua história Crianças e adolescentes em psicoterapia 181 O que Milena comunicava com seu corpo Sua dor e desamparo o temor de ser novamente abandonada por isso tinha que se abastecer de muita comida O uso das tatuagens e piercings foi uma radical comunica ção corporal inscrevendo com dor na sua pele toda uma gama de formas préhistóricas e primitivas que precisariam ser olhadas e compreendidas A teoria do O eu pele Anzieu 1989 auxiliou a compreensão do sofrimento de Milena fixações masoquistas e exposição ao risco são co muns em pessoas que apresentam fantasias de corpo esfolado e de ruptu ra de fusão com corpo materno quando a parceria simbiótica foi brusca mente interrompida antes da diferenciação selfobjeto Podemos pensar que Milena sentiu a separação precoce da mãe como rompimento da membrana simbiótica entre ambas e como descolamento da pele em comum o que a levou a buscar perfurações e marcas na pele As tatua gens seriam uma forma narrativa encontrada por ela para informar acer ca de lapsos na constituição dos seus envelopes psíquicos e dos processos de pensar e simbolizar responsáveis por suas dificuldades Ao criar envelopes de sofrimento Anzieu 1989 p125 a fantasia de pele arrancada teria reavivado em Milena sua raiva aos objetos mas de forma masoquista voltavase para si própria Dolorosamente tentava recuperar seu O eu pele e algum sentido de coesão de seu self e de apropriação do si mesmo O jovem marca seu corpo como uma forma desesperada de adquirir visibilidade para ser singularizado e identificado Birman 2006 Ao se transformar em marcas feitas artificialmente na pele essas lesões auto provocadas podem ser um modo possível de alguns jovens narrarrem his tórias de vazios lacunas e vivências irrepresentáveis que os levam a serem olhados de outro modo pelas suas famílias Por intermédio do processo transferencialcontratransferencial Milena ao exibir suas costas braços e pescoço tatuados provocou em sua terapeuta uma nova visão sobre ela acionando uma gama de sentimentos e preo cupações com os riscos a que se expunha de forma muito radical Por meio das tatuagens em Milena concretizouse no campo psicoterápico a troca de outros olhares sobre si de seus paisterapeuta e emergiram as suas fantasias de abandono de despedaçamento de dor e de vulnerabilidade Terapeuta e paciente ao decifrarem em conjunto os desenhos na sua pele abriram portas ao fantasiar e imaginar sobre aquelas formas e cores Fenômenos semelhantes ocorrem no caso Eduardo nas páginas seguintes 182 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Milena pôde se interrogar sobre suas origens sua préhistória e sua adoção tema que era tabu para seus pais Trabalhando o significado das tatuagens Milena viu sob outros vértices as suas relações consigo mesma com o grupo de amigos e com sua família Reações como as descritas têm o papel da ação comunicativa visando estimular a função alfa do terapeuta colocandoo em ação em um interesse particular em com preender tal atitude Quando se dão ações comunicativas sobrevém uma interação positiva entre o paciente e o terapeuta que conduz à evolução progressiva do processo terapêutico Barugel e Sola 2001 Vagarosa mente passando a usar sua capacidade de colocar em palavras seus sofri mentos deixou de usar seu corpo para encenar as suas perdas e rupturas precoces que puderam tomar novos significados por meio da linguagem verbal no transcurso da sua terapia ATUAÇÕES AÇÕES COMUNICATIVAS E ENACTMENT COMO FORMAS DE COMUNICAÇÃO O mundo adolescente é permeado por urgências e seu ego pres sionado pela força pulsional não quer adiar gratificações Ao mesmo tempo apresenta outras condutas de caráter aparentemente paradoxais quando se põe a refletir e a pensar sobre o mundo a reformular a so ciedade entre outras questões que passam a ocupar sua mente Na rea lidade não há paradoxo Ocorre que com o incremento das pulsões e dos afetos o uso da intelectualização e sua recentemente adquirida capaci dade de usar o pensamento lógico formal servem de defesa contra os perigos internos Todas essas circunstâncias de transformações mobili dades e surpresas exigem de nós psicoterapeutas de adolescentes certa elasticidade e tolerância alguma dose de bom humor e gosto pela novi dade e desafio discriminandonos como adultos que têm que zelar pela sua função psicanalítica Pela pressão instintiva de um lado pelas pressões externas de outro é necessário que o adolescente efetue um remanejamento das relações dos mundos interno e externo o que causa ansiedades nem sempre tole radas pelo ego que delas necessita se defender Ocorre uma série de trans formações nas relações inconscientes do jovem com seus objetos internos especialmente com os que constituem o superego No processo adoles cente o reconhecimento da própria solidão da individuação e da alteri dade a perspectiva da capacidade genital adulta e a consciência das re Crianças e adolescentes em psicoterapia 183 lações de incerteza levam às tentações regressivas pelas ameaças e ansie dades depressivas que despertam pertencer a um determinado sexo e a uma determinada geração A defesa pode ser um retorno a posições mais regressivas como a prégenitalidade as somatizações e as atuações de pendendo dos pontos de fixação que determinam o alcance dos movi mentos regressivos como exemplificado nos diferentes casos descritos Tais estados mentais são comunicados no setting e nas fantasias do campo psicoterápico bipessoal por meio do uso de identificações projetivas já que geralmente foram vivências emocionais brutas e não mediadas pelo pensamento verbal que buscarão outras vias de expressão Algumas vi vências são apresentadas no setting quando ainda não podem ser re presentadas simbolicamente A apresentação é uma repetição daquilo que é impossível de ser posto em palavras mas que é mostrado concre tamente de alguma forma seja através da conduta por somatizações ou na vivência grupal como se o paciente estivesse na busca ansiosa de uma futura representação possível Mazzarella 2006 Na adolescência o acting out é tão específico da fase como é o jogo na infância ou como a comunicação direta na linguagem na maturidade Blos 1996 p171 As atuações podem variar nas suas formas indo de expressões mais brandas até as mais excessivas que expõem a riscos Nos casos em que há uma predisposição maior para atuação ela está ligada a dois aspectos 1 o uso intenso de mecanismos projetivos que deixam o sujeito na dependência do mundo externo e 2 a existência de traumas precoces irrepresentáveis que buscam uma forma de expressão direta sem participação simbólica O acting agiria como um mecanismo redutor de tensões mobilizando uma sensibilização visual e uma tendência a dramatizar uma crença no poder mágico da ação e uma distorção nos processos simbólicos que envolvem o pensamento verbal Existem algumas diferenças conceituais entre acting e as ações comu nicativas Os actings são expressões de ansiedades ou conflitos incons cientes através do comportamento geralmente impulsivo sob forma auto ou heteroagressiva tendo que ser compreendido em relação à situação transferencial e contratransferencial No acting a capacidade de pensar se perde e se esvazia em um movimento regressivo que vai direto ao ato A passagem ao ato desperta geralmente no terapeuta malestar desespe rança e cansaço conduzindoo ao nãoentendimento ao nãopensar e à tendência à contraatuação Já as ações comunicativas estão destinadas a transmitir algo a uma mente que está disponível a tolerar o impacto e ao pensar acerca do material recebido São manifestações transferenciais 184 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols como dramatizações no mundo externo seguidas por uma experiência emocional a caminho da simbolização Para isso é necessária a presença de um terapeuta que se mostre disponível e ofereça sua mente como con tinente para o material trazido nãoverbalmente pelo paciente Barugel e Sola 2001 Na descrição do tratamento de Milena podemos observar a manifestação de ações comunicativas Ao inscrever as tatuagens em sua pele comunicou seus estados mentais e carências afetivas buscando com o auxílio disponibilidade e continência do terapeuta compreen dêlas e decodificálas o que levou a progressos e enriquecimento no pro cesso psicoterápico Gus 2004 2007 percebe uma estreita relação entre os conceitos de acting e enactment considerando que ambos são fenômenos clínicos com plementares que apontam na direção de afetos primitivos e perigosos que são projetados e encenados no setting Conceitualmente enactment se liga à interface entre o que é expresso e o que não é expresso entre o que é esquecido e aquilo que pressiona no campo para ser revivido entre realidade e fantasia e entre o psiquismo de uma pessoa e o psiquismo de duas da dupla terapeuta e paciente Gus 2004 p47 Caso os enact ments não sejam percebidos pelo terapeuta eles podem acionar atuações O conceito de enactment está relacionado a experiências transferen ciaiscontratransferenciais envolvendo a dupla paciente e terapeuta e ações mútuas que ocorrem na relação terapêutica de forma inconsciente O par não tem consciência do que está ocorrendo A diferença com o acting é que neste o terapeuta não se inclui participando somente como observa dor No enactment existe a contribuição do terapeuta sujeito às suas pró prias transferências pontos cegos sendo levado pela relação a exercer pa péis ou funções dos quais não se apercebe Enactments podem gerar im passes terapêuticos se não forem entendidos e trabalhados pela dupla mas podem se tornar recurso produtivo ao processo psicoterápico alargando o circuito simbólico se o terapeuta percebêlos e readquirir sua capacidade de pensar e não se deixar envolver Cassorla 2003 e 2007 EDUARDO OS ACIDENTES E AS PELES PENDURADAS Eduardo faz a tratamento por apresentar condutas de risco e uso de drogas É um rapaz de 21 anos que entre os 12 e 17 anos esteve envol vido em cirurgias reparatórias para remoção de profundas cicatrizes dei xadas por um grave acidente doméstico provocado por ele Inicia o tra Crianças e adolescentes em psicoterapia 185 tamento e após dois meses apresenta intensa regressão deixando de frequentar a escola e o trabalho Culmina com um impasse terapêutico grave que faz com que se ausente das sessões por três meses Nesse perío do mantevese o espaço de escuta para seus pais oferecendolhes con tinência para dar suporte às dificuldades com Eduardo e aguardandose o seu retorno Após três meses voltou ao tratamento saindo de casa somente para ir às sessões psicoterápicas Eduardo regrediu colocan dose como um bebê recluso que necessitava de cuidados Inicialmente negava a dependência e a necessidade de ser ajudado depois buscou a terapeuta desconfiado com dúvidas sobre se ela o compreenderia e se o auxiliaria em suas angústias seu vazio e desamparo Sua família sempre valorizou o trabalho e a parte econômica em detrimento das relações afetivas e da convivência Muito ligados ao exter no ao fazer e ao trabalho eram pouco conectados com as necessidades afetivas de seus filhos No início de sua vida Eduardo ficou aos cuidados de uma babá e sua mãe se mostrava solícita aos cuidados corporais negligenciando as trocas afetivas Seu pai era isolado e pouco se envolvia com o filho Sua família o exigia em demasia para tarefas não compatíveis para uma criança Aos 11 anos trabalhava na pequena empresa da fa mília sendo despreparado física e emocionalmente para as tarefas que lhe eram destinadas Acabou por se sobreadaptar a elas saindose relati vamente bem como era do desejo de seus pais mas a custa de suas pró prias necessidades emocionais Eduardo agora um jovem usa as atuações destrutivas como forma préverbal de comunicar uma série de traumas vivenciados e de lidar com experiências frustrantes e não assimiladas simbolicamente Agir antes do pensar muitas vezes está relacionado à desorganização temporal típica da fase quando há um incremento pulsional com momentos reveladores de predominância do princípio do prazer em detrimento do princípio de reali dade Nesse caso porém seus actings não eram apenas uma forma típica de comunicação adolescente mas implicavam riscos para integridade do jovem além de ser uma forma de chamar atenção para o seu intenso sofri mento Eram também uma forma de repetir compulsivamente experiên cias emocionais que não puderam ser transformadas psiquicamente O processo psicoterápico com pacientes regressivos como Eduardo exigem do psicoterapeuta flexibilidade e bom contato com seus sentimen tos contratransferenciais a fim de dar conta da descarga de experiências emocionais cruas não disponíveis para o pensamento verbal que costu mam inundar o setting O traumático retorna em ação O irrepresentável 186 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols que fica como corpo estranho enquistado no psiquismo insiste em apa recer via compulsão à repetição Tolerar as fases de isolamento de Eduardo e as transferências negati vas não as entendendo apenas como movimentos resistenciais e estar disponível para um trabalho de acolhimento de suas identificações proje tivas massivas que faziam sua terapeuta temer e se angustiar pela sua integridade física foi de suma importância enquanto ele minimizava os riscos a que se expunha e os quais ridicularizava em sua psicoterapia O espaço de acolhimento aos seus pais como forma de manter alguma espé cie de vínculo com Eduardo quando colocou em cena a internação casei ra foi também importante fator para manutenção do seu tratamento As interrupções e isolamentos de Eduardo envolviam períodos de tempo de três meses com idas e vindas durante o primeiro ano de sua psico terapia O que isso comunicava de seu mundo interno e de suas vivências precoces Essa ação objetivava comunicar seu vazio e envolver o terapeuta na compreensão dessa atitude e também testar ou avaliar a condição de rêverie de sua terapeutamãe Nesse período os actings do paciente suscita vam na terapeuta além de desejo de compreensão cansaço desesperança e receio que o vínculo arduamente construído não se mantivesse No período de três meses em que não compareceu às sessões foi possível reconstruir fragmentos de história dos traumas vividos na infân cia inicial relativas ao afastamento da mãe e do pai O investimento maior da família era ligado às tarefas de construir uma posição econô mica de segurança A mãe de Eduardo discorreu sobre suas dificuldades para maternálo sentindo que seu tempo seria mais bem empregado retornando logo ao trabalho já que isso a preocupava muito Não o ama mentou e antes do terceiro mês de vida de Eduardo voltou ao trabalho encarregando babás dos cuidados de seu filho Supõese então que as dificuldades de vinculação com seu bebê dificultaram a internalização de um objeto bom e cuidador que poderia ter sido a base de um ego seguro para Eduardo Klein 1981 A falta de paciência e de continência dessa mãe com os cuidados diários os choros e as ansiedades do filho impossi bilitaramna de funcionar como matriz identificatória para seu filho aprender a pensar Bion 1980 Essas vivências precoces ainda em um nível protomental se não transformadas pelo aparelho mental do objeto cuidador geram desamparo e ficam intraduzíveis Meltzer 1990 aponta que esse nível protomental fica cindido na personalidade formando um claustrum que exercerá forte influência no caráter ocasionando ansie dades impensáveis e sentimentos catastróficos Seus pais narraram uma Crianças e adolescentes em psicoterapia 187 série de condutas autodestrutivas ao longo da infância de Eduardo e que em sua óptica eram apenas coisas de menino malandro não as discri minando como um pedido de socorro para ser olhado e cuidado Confi gurouse a história de uma criança deixada a si mesma rodeada de con forto material num vazio de afetos e de abandono físico e psíquico Voltando à sua psicoterapia Eduardo retomou os estudos e o tra balho porém utilizava seu salário para aquisição de drogas Sabemos que o adolescente atuador e usuário de drogas tem o sentido de realidade vago e fragmentado vivendo num mundo de fantasias especialmente quando se isolam ou se retraem Sem serem psicóticos delirantes vivem a realidade interna como mais verdadeira que as relações com o mundo externo manifestando pobreza egoica e fraco controle sobre sua impulsi vidade Afastamse e atacam os vínculos com outros quando não sentem seus desejos atendidos buscando na droga aquilo que a realidade não fornece Na relação transferencial Eduardo se apresentava muito descon fiado aguardando para ver como a terapeuta reagiria Falava pouco de si e não aceitava qualquer intervenção relacionada às suas dificuldades Nas sessões ficava inquieto circulava pela sala e fazia uso frequente do banhei ro por vezes desejava encerrar a sessão antes do horário combinado Mostravase frágil necessitando de ajuda e logo depois se apresentava onipotente autossuficiente menosprezando a terapeuta e o tratamento O manejo técnico dos actings exigiu vigilância e atenção já que as interrupções as faltas os ataques ao contrato e ao vínculo colocaram em risco o prosseguimento da psicoterapia Compreendemos também que outra função do acting além de comunicar estados mentais de sofrimento e caos seria o de negação A função da atuação é a desmentida pela ação a mágica da ação e dos gestos aparece com grande clareza o adolescente tem a necessidade de negar seu abandono por meio da ação para afirmar exageradamente sua independência da mãe arcaica onipo tente para contraaplacar o impulso regressivo à passividade recusando sua dependência da própria realidade Blos 1996 p 174 Eduardo se envolvia frequentemente em acidentes quando saía das festas e chegava em casa com as peles penduradas Tal como nesse caso entendemos que patologias tão comuns na adolescência atual anorexia bulimia somatizações graves agressões ao corpo tatuagens exageradas body transformation entre outros são a expressão do corpo nãosimbo lizado e tomado como real e concreto sendo utilizado para narrar para encenar pensamentos e histórias que a mente ainda não sabe contar Para descarregar sofrimentos e riscos de fragmentação atuam concretamente 188 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols através do corpo em um ferimento ou uma marca física em lugar da representação de uma perda ou sofrimento psíquico Dias 2000 O cor po é tomado como uma coisa entre outras coisas ficando um corpo casca esvaziado de significados algo estranho que seria indiferente machucar ou destruir onde a dor física impede de sofrer a dor psíquica Na ausência da representação psíquica a única realidade é o vazio e o adolescente aferrase à falta Ser autodestrutivo seria a única forma de ser No processo de busca de autonomia e de sua identidade a violência comporta uma dimensão de domínio sobre o outro para instaurar um processo de separação Por meio de atos violentos alguns jovens como Eduardo tentam inverter o processo e transformar passividade em ativi dade originando a formação de um estranho compromisso entre o dese jo de marcar uma diferença e o desejo de uma aproximação extrema com o outro Em sua infância sofreu invasões de seu self com exigências de sobreadaptação que não consideraram os seus limites e suas necessida des afetivas Parece que os espaços internos e externos privados e públi cos em sua família não eram bem delimitados Supomos que Eduardo apresentou dificuldades para construir um espaço continente intrapsí quico com formação de limites dentrofora Os traumas precoces mode laram sua organização interna gerando um jovem vulnerável que com a chegada à adolescência não pode usar seus potenciais positivos recor rendo a condutas de autossabotagem Jeammet e Corços 2005 Importante em casos de jovens com muita fragilidade egoica é estarmos atentos à articulação entre os fatores internos e externos e observar cuidadosamente o peso da realidade externa na economia psí quica do adolescente Dependerão da natureza do encontro do adoles cente com o mundo circundante e com as pessoas no seu entorno as possibilidades de um maior potencial para saúde no sentido de organi zar o ego e enfrentar as dificuldades ou para psicopatologia quando o encontro com a realidade externa desorganiza estruturas do aparelho psíquico fechando uma imagem negativa e uma organização patológica que pode ser forma de buscar nova identidade O processo adolescente corresponde à criação de um sistema de re presentações que dê conta de um novo estatuto identificatório ligado ao corpo identidade lutos emergência das pulsões Levy 2006 refere que mais do que a busca de identidade o adolescente se vê frente à busca de subjetivação o que gera um intenso trabalho mental E acrescenta que o sentimento de estranheza em relação a si e aos demais a sua volta pro voca angústias de aniquilamento e de morte Na reconstrução desse sis Crianças e adolescentes em psicoterapia 189 tema de representações irá se delineando a adolescência com maiores ou menores incidências traumáticas Essa reconstrução passa eminente mente pelo corpo Se a capacidade de simbolização se mantém veremos esses sentimentos de estranheza e de despedaçamento representados em algumas condutas passageiras excêntricas e comuns nessa etapa vital ou nas roupas rasgadas cabelos pintados como no caso de Mariana Não mantendo o estatuto simbólico o corpo será vivenciado como estranho e indiferente sobre o qual serão possibilitadas agressões e mutilações co mo nos casos de Milena Eduardo e Flávio As mudanças corporais ocor ridas na adolescência radicalizam o problema do conhecer sobre si O corpo é a fundação da própria existência e um corpo que se pensa e uma mente que se descobre e se reconhece naquele corpo é um corpo pensado por si Busato 1996 p143 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os fragmentos clínicos apresentados ilustraram algumas formas co municativas nãoverbais utilizadas pelos adolescentes que vão do normal ao patológico dependendo de aspectos intrapsíquicos e de realidade exter na contextualizados em cada história de vida com suas especificidades O uso maior ou menor do corpo em movimentação concreta no set ting a fala usada como descarga os actings apontam para conteúdos pri mitivos e não mentalizados Além de nos indicarem acerca de experiên cias protomentais a serem significadas não podemos esquecer que são as formas possíveis que o adolescente elege para fazer ingressar no setting tais vivências Constituem uma forma de narrativa aquém das palavras passando mensagens por códigos corporais e de conduta muito mais pró prios para serem olhados e percebidos de forma sensorial Nosso papel é decodificar esses ideogramas e figurações mediante nosso aparelho psí quico Com nossa compreensão psicodinâmica temos que estar habilita dos técnica e pessoalmente a compreender as identificações projetivas que são jogadas em nossa mente nos seus diversos significados captando suas comunicações grosseiras ou mais sutis Elas são a plataforma através das quais são lançados no campo psicoterápico aquilo que ainda não tem palavras o que ainda está excluído da apropriação subjetiva do paciente de aspectos de sua história Concordamos com Quinodoz 2003 quan do diz que é uma arte acolher e lidar com identificações projetivas com preendendoas de forma que se estabeleça um bom vínculo e um processo 190 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols de comunicação que leve ao insight e à mudança psíquica Da mesma forma o uso da contraidentificação projetiva pode ser um instrumento valioso se tomarmos consciência da carga de projeções despejadas em nossa mente e as utilizarmos para estabelecer empatia e contatar com o sofrimento de nossos pacientes Suportar a carga projetiva e se contra identificar com ela se constitui uma forma de regressão parcial Pesta lozzi 2005 o que nos permite estar sintonizados com os estados mentais do paciente A comunicação do adolescente é variada e multifacetada daí termos que contar com nossa própria capacidade de sonhar e devanear sofrimentos traumas e anseios do paciente O processo psicoterápico com adolescentes é difícil rico fluido e complexo mas traz muitas gratificações As formas de expressão pouco simbólicas para as quais somos convocados a discriminar e a descobrir sentidos nos colocam em situações de incerteza inconsistência e de si tuações de não saber que marcam o processo transferencialcontra transferencial em muitas etapas da psicoterapia Isso seguramente demanda que tenhamos uma boa dose de capacidade negativa além de uma agilidade mental bastante adolescente para a qual talvez seja conveniente não ter demasiado esquecida a nossa própria adolescência Leivi sd p 15 As explosões do corpo a ruptura das idealizações e dos mitos fami liares e a ressignificação identificatória marcam nossa viagem psicoterá pica em conjunto rumo ao autoconhecimento e ao crescimento psíquico dos nossos jovens pacientes Actings ações comunicativas e enactments mesmo tendo funções narrativas apontam para falhas nos processos simbólicos e precisam ser transpostos para esfera das representações Nossa clínica envolve a cura pela palavra daí a necessidade de que os adolescentes no setting possam comunicar o que pensam e sentem através da linguagem verbal O poder das palavras como veículo para a mudança psíquica é um dos elementos mais integrativos que podemos oferecer aos pacientes Os símbolos ver bais têm o poder de organizar e conter sensações e sentimentos condu zindo à construção de uma nova ordem de coisas que poderão ser com preendidas e transformadas Ogden1996 O tratamento psicoterápico com adolescentes não deixa de ser uma ventura e uma aventura pelas possibilidades de elaborações e de con quistas ao se realizar a passagem do corpo à palavra do concreto ao simbólico com a consequente apropriação da sua história O entusias mo juvenil a esperança e as alegres experimentações não podem ser Crianças e adolescentes em psicoterapia 191 desperdiçadas Nunca devemos esquecer que a adolescência é a etapa com maior potencial de criatividade e renovação para toda a sociedade pois inclui o novo e o pulsar da vida que cada nova geração traz consigo REFERÊNCIAS ABERASTURY A KNOBEL M Org Adolescência normal Porto Alegre Artmed 1981 ANZIEU D O eu pele São Paulo Casa do psicólogo 1989 BARUGEL N SOLA B M La accion comunicativa Revista de Psicoanálisis APdeBA Buenos Aires v 23 n 2 2001 BLOS P Transição adolescente Porto Alegre Artmed 1996 BION W Aprendiendo de la experiência Buenos Aires Paidós 1980 BUSATTO C O corpo ponte entre o estar aí e o narrarse In FERRARI A Adolescência o segundo desafio São Paulo Casa do Psicólogo 1996 p 142160 BIRMAN J Tatuando o desamparo In CARDOSO M R Org Adolescente São Paulo Escuta 2006 p 2443 CASSORLA R M S Do baluarte ao enactment o nãosonho no teatro da análise Revista Brasileira de Psicanálise v 41 n 3 p 5168 set 2007 Procedimentos colocação em cena da dupla enactment e validação clínica em psicoterapia psicanalítica e psicanálise Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul v 25 n 3 p 426435 setdez 2003 CASTRO M G K TIMMEN V F Tatuagens histórias à flor da pele Revista do IEPP Psicoterapia Psicanalítica Porto Alegre v 7 n 7 2005 DIAS S A inquietante estranheza do corpo e o diagnóstico na adolescência Psicologia USP São Paulo v 11 n 1 2000 ERICKSON E Identidade juventude e crise Rio de Janeiro Zahar 1976 FERRO A A técnica na psicanálise infantil a criança e o analista da relação ao campo emocional Rio de Janeiro Imago 1995 FREUD S Três ensaios sobre a teoria da sexualidade In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1997 v 7 p 51120 GUIGNARD F O infantil ao vivo reflexões sobre a situação analítica Rio de Janeiro Imago 1997 GUS M Acting enactment e a realidade psíquica em cena no tratamento analítico das estruturas borderline Revista Brasileira de Psicanálise v 41 n 2 p 4553 jun 2007 O acting e o enactment realidade psíquica em cena Revista do IEPP Psicoterapia Psicanalítica Porto Alegre v 6 n 6 p 4657 2004 JEAMMET F CORÇOS M Novas problemáticas da adolescência evolução e manejo da dependência São Paulo Casa do Psicólogo 2005 192 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols KLEIN M O significado das primeiras situações de angústia no desenvolvimento do ego In KLEIN M Psicanálise da criança São Paulo Mestre Jou 1981 KANCYPER L Confrontação de gerações estudo psicanalítico São Paulo Casa do Psicólogo 1999 KNOBEL M A síndrome da adolescência normal In ABERASTURY A KNOBEL M Org Adolescência normal 10 ed Porto Alegre Artmed 1981 p 2459 LEIVI M B Historizacion actualidad y accion em la adolescência Mimeografado LEVY R Adolescência o reordenamento simbólico o olhar e o equilíbrio narcísico Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre v 13 n 2 p 233245 Porto Alegre 2006 MAZZARELLAT Fazerse herdeiro a transmissão psíquica entre gerações São Paulo Escuta 2006 MELTZER D El Claustrum y la adolescência In Claustrum una investigación sobre los fenómenos claustrofóbicos Buenos Aires Spatia 1994 p 148151 Metapsicologia ampliada Buenos Aires Spatia 1990 MELTZER D HARRIS H Adolescents Buenos Aires Spatia 1998 MONDELLO M L Estar no vazio espaço sem tempo In FERRARI A Adolescência o segundo desafio São Paulo Casa do Psicólogo 1996 p 119141 MONDRZAK V S Adolescentes pseudopseudomaduros um estudo da clínica psicanalítica da atualidade Revista Brasileira de Psicanálise v 41 n 2 2007 QUINODOZ D A Contraidentificação projetiva é um instrumento precioso Revista Brasileira de Psicoterapia Porto Alegre v 5 n 2 p 149164 2003 PESTALOZZI J O Simbólico e o concreto adolescentes psicóticos em psicoterapia psicanalítica Livro Anual de Psicanálise v 19 p 269288 2005 RASSIAL JJ O adolescente e o psicanalista Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 UNGAR V La tarea clínica con adolescentes hoy In HORSTEIN M C R Comp Adolescencias trayectorias turbulentas Buenos Aires Paidós 2006 situações clínicas específi cas Parte III situações clínicas específicas Psicoterapia breve de orientação psicanalítica na infância e na adolescência Heloisa Maria Rodrigues Furtado Nádia Maria Marques 11 INTRODUÇÃO O termo breve no título deste capítulo supõe uma questão sempre presente na vida humana o tempo A referência ao sentido da palavra tempo não é casual Nosso objetivo é apresentar ideias sobre o que se conhece como psicoterapia breve Como entendemos o breve em um tratamento psicológico Por que o uso do termo Certamente há uma ligação com a duração do tratamento mas sua compreensão no contexto das psicoterapias vai muito além de seu significado semântico É preciso esclarecer logo de início que o uso do termo psicoterapia breve no desen rolar deste capítulo diz respeito à abordagem focal planejada e de obje tivos limitados Optamos por manter o emprego do termo psicoterapia breve por ser essa a forma que a grande maioria dos autores de orien tação psicanalítica se refere à abordagem em questão A questão do tempo sua definição e significado é tema de diversos campos do conhecimento Pode ser abordada por diferentes vértices e está presente em toda e qualquer tentativa para compreender o que é relativo ao humano Vivemos em um período de tempo linear como vivemos em um espaço físico e nossa consciência disso é alcançada gradativamente à medida que vamos nos discriminando do objeto sim biótico primordial e percebendo a existência de uma realidade externa a nós Nosso sentido de tempo como nosso desenvolvimento emocional estará sempre ligado às nossas experiências relativas ao intervalo de tempo entre nossas privações infantis e a satisfação das mesmas 196 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Molnos 1995 Desse modo nossa representação temporal está es treitamente vinculada à representação da realidade objetiva A criança constrói conceitos na relação com seu cuidador Sua construção da noção de tempo também será dessa forma alicerçada o que vale afirmar então que o tempo real é um construto mental e cultural Sabemos que essa noção do tempo linear cronológico absoluto e fixo não é a única que vivenciamos uma vez que a vivência subjetiva do tempo por simples experiências do dia a dia nos mostra a sua inegável relatividade Para um período de tempo ser experimentado como longo ou curto concorrem vários fatores nosso estado emocional fase do ciclo vital em que nos encontramos poderíamos acrescentar ainda nossa con dição física e mental de um modo geral Além da prisão ao tempo linear no mundo moderno nos vemos às voltas com outra realidade a aceleração dos acontecimentos Além de cada um de nós viver a experiência subjetiva do passar do tempo conforme nossa vivência pessoal os próprios fatos objetivos ganham outro significado pela velocidade com que ocorrem O avanço tecnoló gico a rapidez dos meios de comunicação a quase simultaneidade entre um acontecimento e o conhecimento do mesmo acaba por nos colocar numa expectativa de logo conhecer tudo resolver tudo des frutar tudo Paradoxalmente essas mesmas mudanças nos impedem de aprofundar o conhecimento de buscar soluções mais adequadas de vi ver intensamente as experiências que se nos apresentam Há uma cul tura da velocidade da pressa que parece atingir o campo da psico terapia Isso transposto para uma situação de psicoterapia levanos a proble matizar a duração de um tratamento psicológico Se o tempo real é um aspecto a considerar quando uma pessoa busca ajuda profissional como conciliálo com o tempo interno do sujeito a vivência subjetiva da pes soa Se há uma aceleração no campo dos conhecimentos das comunica ções o ritmo da vida emocional seria da mesma forma mais acelerado Em psicoterapia precisamos considerar a necessidade de lidar com ambos os enfoques da temporalidade o linear e o cíclico além de tra balhar em um campo relacional onde a temporalidade não existe fenô menos transferenciais e contratransferenciais e com a inexistência da temporalidade no inconsciente Lembramos que a abordagem psicoterápica breve aqui apresentada está fundada nas concepções da teoria psicanalítica entre elas o conceito Crianças e adolescentes em psicoterapia 197 básico de inconsciente cuja noção e caracterização excluem toda ideia de temporalidade linear não admitindo pois uma sequência cronológica da experiência subjetiva De modo coerente a psicoterapia longa ou curta de orientação psicanalítica trabalhará com o tempo subjetivamente vi vido Esse é o tempo na psicanálise independente da duração do trabalho terapêutico Levando em conta a relatividade do tempo a mudança dos tempos e dos dramas e das ansiedades dos pacientes a ampliação e o aprofun damento dos conhecimentos teóricos e técnicos da psicanálise pergunta monos com que recursos no seu sentido mais amplo podemos nós psicoterapeutas atender aos anseios dos pacientes que nos procuram Certamente a delimitação do tempo de tratamento exigirá mudanças de enquadre e modificará as relações terapeutapaciente mas são justa mente essas mudanças que historicamente foram sendo sistematizadas com base nos pressupostos da psicanálise original É com esse alicerce que abordamos o que hoje é reconhecido como psicoterapia breve psicanalítica Partindo dessa muito ampla concepção de tempo e cientes de que o tempo considerado em si mesmo transcende em muito os objetivos desse trabalho deparamosnos com a complexidade que se nos apresenta ao tentarmos situar a questão temporal na psicoterapia psicanalítica independentemente das circunstâncias da indicação ou da faixa etária em que ela acontece Tudo que foi dito até agora sobre a relatividade do tempo e sobre a vivência subjetiva da passagem do tempo terá importância nas consi derações a seguir Entramos num terreno complexo e minado de aspectos altamente variáveis para chegarmos a uma conclusão sobre duração de uma psicoterapia Diversos fatores terão que ser levados em conta oriun dos do paciente do terapeuta das circunstâncias nas quais foi ou é reali zado o tratamento de suas finalidades do local onde ele é realizado e outros aspectos certamente imprevisíveis Num breve recorrido da histó ria da psicoterapia breve tentamos contextualizando a abordagem bre ve entender sua evolução e sua prática atual A duração de uma psicoterapia é uma das questões cruciais do pro cesso Sabemos que os objetivos de uma psicoterapia apontam claramen te para o alcance de um desejável grau de autonomia e independência o qual supõe a elaboração da nossa condição de finitude e da necessidade de enfrentamento de perdas James Mann 1978 citado por Parry Roth e Kerr 2007 vê o limite de tempo como uma metáfora para a finitude do próprio tempo para o indivíduo para o autor lidar com o limite temporal 198 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols evoca a realidade da perda e da morte e propicia importante experiência de amadurecimento As terapias de tempo limitado lidam com as frustrações e decepções dadas por esse limite tanto para pacientes quanto para terapeutas As terapias baseadas em teorias psicodinâmicas dão mais ênfase a esse aspecto e ao valor terapêutico do término fixo Parry Roth e Kerr 2007 Os autores mencionados ainda citam Malan 1976 e Ryle e Kerr 2002 para quem as terapias breves têm em comum além de um limite de tem po um foco e a característica de atividade do terapeuta e por isso talvez essa modalidade terapêutica devesse ser chamada de terapia intensiva em comparação às de longa duração melhor caracterizadas como extensivas O termo breve nos traz motivo para discussão Na tradição do traba lho psicanalítico sabemos que o tempo cronológico usualmente exi gido para desmontar defesas vencer resistências e chegar ao material inconsciente é necessariamente longo Sabemos também que a noção de profundidade em psicoterapia tão relacionada com a psicoterapia psi canalítica e de longa duração pode ser vista sob a perspectiva da origem do material profundo porque primitivo ou sob a perspectiva da força das defesas do paciente profundo porque o paciente resiste em liberálo Dessa forma o tempo para os objetivos de uma psicoterapia serem alcan çados mostrase relativo pois o próprio tempo cronológico é relativo Portanto não podemos entender Psicoterapia breve como um tipo de tratamento que se caracteriza por sua brevidade A psicoterapia dinâmica breve tem uma história tão antiga quanto a própria psicanálise Knobel 1986 lembra que alguns autores concordam que a maioria dos casos clínicos de Freud não eram mais do que expe riências de psicoterapia breve e afirma que a própria psicoterapia aparece como uma natural e lógica consequência da psicanálise Para Molnos 1995 podese argumentar inclusive que a psicanálise clássica desen volveuse gradativamente a partir de uma forma de psicoterapia breve Essa afirmativa não nos parecerá estranha se considerarmos que os pri meiros tratamentos psicanalíticos realizados por Freud foram de duração muito curta São fartamente conhecidos os casos de Bruno Walter tratado em seis sessões em 1906 e de Gustav Mahler em quatro sessões em 1908 O caso infantil do Pequeno Hans publicado em 1909 também pode ser considerado um tratamento breve Muitos autores estudiosos da psicote rapia breve os usam como exemplos Gebara 2003 Hegenberg 2004 Lowenkron 2006 Crianças e adolescentes em psicoterapia 199 PSICOTERAPIA BREVE DE FREUD À ATUALIDADE Desde os primeiros escritos sobre a técnica psicanalítica a questão da duração do tratamento está presente Os primeiros tratamentos realizados por Freud duravam apenas alguns meses ele estava empenhado em buscar curas rápidas e preocupado em comprovar a eficácia de sua técnica Ao mesmo tempo o aprofundamento de questões teóricas e o estudo dos con ceitos metapsicológicos foram mostrando a necessidade de prolongar as terapias pois a compreensão da estrutura caracteriológica das resistências demandava um tempo maior para alcançar esses objetivos Em 1918 na conferência Linhas de progresso na terapia psicanalítica proferida no Congresso Psicanalítico Internacional Budapeste Freud propõe uma psicoterapia de base psicanalítica para responder à neces sidade assistencial da população prevendo e recomendando adapta ções da técnica à realidade socioeconômica e cultural da população Poderíamos dizer como Gebara 2003 que essa manifestação de Freud gerou o interesse de alguns profissionais em buscar soluções mais ade quadas para a maior aplicabilidade da técnica psicanalítica a um maior número de pessoas a pessoas com condições socioeconômicas mais difí ceis eou a outras situações especiais A partir de então o progresso das psicoterapias breves ocorreu de modo descontínuo mas sem dúvida foram os avanços dos estudos psica nalíticos que permitiram o seu desenvolvimento Knobel 1986 Seu processo evolutivo pode ser dividido em três fases o estágio psicanalítico representado pelas tentativas de Freud Ferenczi e Rank de modificarem a técnica psicanalítica no sentido de agilizar a melhora dos sintomas dos pacientes sem a modificação dos objetivos da análise clássica o estágio intermediário no qual autores como Alexander e French procuraram definir de forma mais clara as diferenças entre a técnica da psicanálise e a técnica da psicoterapia breve e o estágio psicodinâmico breve situado a partir da década de 1950 quando os objetivos e a estratégia desta técnica se delinearam de forma mais precisa Yoshida 1990 Este último estágio tem como representantes Malan Sifneos Mann Davanloo entre outros Eles destacaram o valor social da psicoterapia breve uma vez que esta trouxe benefícios a um número maior de pessoas as quais pelas mais variadas razões não podiam se submeter a processos terapêuticos pro longados Demonstraram ainda que a pessoa possui na sua estrutura psíquica potencial para entender seus conflitos e usar seus recursos para superálos ou amenizálos conseguindo adquirir uma estabilidade de ego 200 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols que favoreça um processo evolutivo mais saudável capaz de desfrutar de relacionamentos interpessoais de forma gratificante sendo social e pro fissionalmente produtiva sem submissões neuróticas ou rebeldias maso quistas conquistando ao mesmo tempo um lugar respeitado em sua comunidade No entanto é fundamental deixar claro que a psicoterapia breve não surgiu com finalidade exclusiva de eliminar sintomas atender a maior demanda e muito menos para atender a um desejo do paciente Embora a psicoterapia breve possa em uma boa medida preencher esses objetivos podemos dizer que todos esses aspectos em conjunto colaboraram para o seu desenvolvimento nas últimas décadas Sem dúvida a necessidade de dar conta de uma demanda social maior hospitais e centros de saúde e a falta de recursos econômicos de um considerável contingente da po pulação que tem indicação de atendimento psicológico levaram os pro fissionais da área da saúde mental a refletir sobre possíveis adaptações da técnica psicanalítica clássica Assim como houve modificações da técnica original da psicanálise para tratar psicóticos e grupos por exemplo houve estudos que mostravam o quanto em determinadas circunstân cias muitas pessoas poderiam se beneficiar com essa abordagem Além da constatação da limitação de tempo e dinheiro de um número signifi cativo de pessoas para se submeterem à psicanálise a própria falta de motivação de pacientes para um tratamento prolongado também foi es tímulo ao desenvolvimento da psicoterapia breve Juntese a isso o advento da terapia cognitivocomportamental tipicamente de curta du ração o desenvolvimento da terapia medicamentosa e ainda outra ra zão que é a maior facilidade de utilizar e validar dados para pesquisa que a psicoterapia breve proporciona Com relação ao trabalho com crianças foi Arminda Aberastury a psicanalista pioneira no desenvolvimento das psicoterapias destinadas a crianças e adolescentes na América Latina Aberastury 1972 relacionou a indicação de atendimentos com objetivos e tempo limitados com situa ções de eminência de cirurgia presença de sintomas agudos e isolados que pudessem ser focalizados recusa ansiosa a se submeter a tratamento médico ou odontológico início de doença mental no paciente ou em fa miliar próximo e situações de crises familiares com mensagens contra ditórias ou enganosas como separação de pais nascimento de irmãos adoção viagens recasamento de pais entre outros Arminda Aberastury introduziu pressupostos novos à teoria da técnica e cumprindo a função Crianças e adolescentes em psicoterapia 201 social da psicanálise atendeu situações de crise que transcendiam os limites oferecidos pelo tratamento psicanalítico clássico Como registramos acima a concepção da abordagem psicoterápica breve apresentada neste capítulo está alicerçada nos pressupostos da psi canálise como teoria método e técnica Freud 19231976 e entendida como a articulação entre a teoria psicanalítica e um procedimento deter minado O breve recorrido feito sobre os caminhos da psicoterapia breve nos aponta para não apenas a importância de conhecêla como um tratamen to eficaz originado nos princípios da teoria e da técnica psicanalítica como também para considerála uma abordagem imprescindível em muitos casos e situações nos dias atuais PSICOTERAPIA BREVE NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA Contexto atual As últimas décadas têm se caracterizado por intensas transforma ções socioculturais estimuladas por avanços tecnológicos que se sucedem numa velocidade não experimentada pelo homem até então Essas modi ficações são amplas e abrangem a estrutura familiar o mercado de tra balho o sistema econômico os progressos da comunicação e das aplica ções da informática e as novas descobertas no campo das ciências Dentro desse contexto presenciamos o declínio da autoridade fami liar caracterizado pela sociedade permissiva As crianças e adolescentes de nossos dias parecem ver a autoridade a tradição e a renúncia à satis fação imediata dos desejos como forma de autoritarismo e repressão Es timulada pela competição consumista essa população tende a estruturar personalidades narcisistas em vez de conflitos e culpa frente à autori dade experimentam ansiedades e insatisfações crônicas que dominam o seu mundo interno Costa 2000 Os riscos que existem na sociedade atual para o desenvolvimento evolutivo saudável de crianças e adolescentes são enfatizados por Lewis e Wolkmar 1993 quando se referem aos efeitos a que crianças e adoles centes estão expostos em situações como divórcio alcoolismo violência social maustratos negligência e abusos Estímulos significativamente estressantes e traumáticos podem desencadear um colapso adaptativo que pode assumir a forma de perturbações psicológicas graves desenca 202 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols deando sintomas psíquicos psicossomáticos ou da vida das relações que acarretam bloqueios do desenvolvimento A necessidade de atender aos problemas atuais dessa população a pressiona à busca de uma solução imediata para que retome o seu de senvolvimento essa busca vem ao encontro da psicoterapia breve em sua função terapêutica e profilática Respeitando as urgências que acompa nham o cotidiano contemporâneo essa modalidade terapêutica oferece um espaço para pensar Constatase que embora a psicoterapia breve destinada à infância e adolescência seja bastante utilizada na prática clínica principalmente em instituições ambulatórios hospitais clínicasescolas entre outras existem poucos trabalhos e pesquisas publicadas sobre essa técnica A psicoterapia breve aplicada à infância e adolescência representa um progresso muito valioso não só do ponto de vista terapêutico mas também dentro da evolução geral da psiquiatria infantil já que introduz técnicas de trabalho interdisciplinar Ou seja inclui a possibilidade do trabalho ser realizado em equipe com a participação da família da co munidade e de profissionais especializados tanto no diagnóstico quanto no tratamento pois uma única forma de abordagem terapêutica pode não ser suficiente para crianças e adolescentes Knobel 1977 Muitas vezes são necessárias várias combinações de tratamentos como farmacote rapia terapia de família acompanhamento pedagógico fonoaudiológico orientação aos pais entre outros A combinação da psicoterapia breve com outras abordagens quando necessárias tem resultado em melhoras significativas e rápidas na população infantojuvenil Particularidades no processo terapêutico O lugar dos pais As características de dependência da criança e do adolescente obrigam o terapeuta a considerar o problema do acompanhamento e orientação aos pais Por isso essa modalidade de atendimento considera indispensável a realização de entrevistas sistemáticas com pais eou cuidadores para que esses sejam auxiliados a compreender e aceitar as dificuldades dos filhos bem como ajudálos a receber as melhorias que irão exigir reestruturação da dinâmica familiar Esse procedimento se justifica ainda em função da reper cussão imediata que esse tipo de intervenção psicoterápica pode causar nes sas faixas etárias mobilizando mudanças rápidas Crianças e adolescentes em psicoterapia 203 Temos o conhecimento de que a psicoterapia de crianças e adoles centes possui particularidades vinculadas à inclusão dos pais na confi guração da relação entre terapeuta e paciente Os pais exercem uma pre sença contínua no horizonte do campo terapêutico configurando com o terapeuta e o paciente uma singular estrutura que promove funções e efeitos próprios nos pacientes e no terapeuta O trabalho psicanalítico leva o terapeuta a ressignificar sua própria infância em relação aos pais de sua história pessoal Ao mesmo tempo a relação vincular do casal de pais com o terapeuta de seu filho ressignifica as situações narcísicas e edípicas nãoresolvidas da história individual dos genitores exercendo neles contínuas reestruturações que por sua vez incidem nas vicissitudes do processo psicoterápico da criança e do adolescente O terapeuta ne cessita então instrumentar ferramentas que permitam incluir dentro do campo analítico os nexos que se estabelecem entre a transferência do paciente e a contratransferência do terapeuta as quais estabelecem um campo do qual faz parte a relação com os pais O terapeuta deve em seus encontros com os genitores criar espaços e tempos mentais discrimi nados na economia libidinal dos próprios pais para que o filho tenha um lugar próprio no território sem fronteira dos inconscientes parentais As sim o terapeuta não só oferece orientação e informações aos pais com a finalidade de adequar o meio ambiente às necessidades de desenvol vimento e crescimento de seus filhos mas também trabalha com a trama identificatória dos desejos de vida e de morte dos pais que recaíram sobre o filho A função do terapeuta é a de libertar os pais e a criança do cati veiro narcisista em que ambas as partes participam e padecem em uma cumplicidade inconsciente Kancyper 1997 Trabalho clínico com crianças e adolescentes A técnica da psicoterapia breve deve ser norteada por alguns aspec tos básicos que são específicos do trabalho clínico com crianças O tera peuta precisa inicialmente facilitar o estabelecimento de uma aliança terapêutica com a criança capaz de sustentar a tarefa em que se recom põe o sintoma como uma manifestação do desejo da mesma de entrar em contato com seu conflito e resolvêlo Para tal é necessário oferecer um setting terapêutico estruturado por meio da escuta empática do acolhi mento incondicional do sigilo e de material lúdico pelo qual a criança poderá comunicar seus sentimentos desejos e fantasias inconscientes Esse enquadre é fundamental pois funciona como o depositário natural 204 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols das ansiedades mais primitivas da criança e como fator estruturante do qual o terapeuta faz parte Racusin 2000 sugere que o terapeuta realize intervenções do tipo verbal e nãoverbal que facilitem o contato da criança com sentimentos e impulsos significandoos e nomeandoos sugere a utilização da interpretação dos conteúdos mentais conscientes e incons cientes de forma que o paciente possa conectar sentimentos e desejos com o significado simbólico de seu sintoma e a utilização da transferência e da contratransferência como recurso importante na construção de algo novo que possa ser criado a partir do aquiagora do processo da psicoterapia Essas intervenções poderão auxiliar a criança a desenvolver recursos que a capacitem na resolução de suas dificuldades fortalecendo seus mecanis mos de enfrentamento incrementando sua autoestima e recuperando sua capacidade de retornar ao percurso de seu desenvolvimento A adolescência rompe a estabilidade da infância trazendo consigo mudanças que determinarão sensações e emoções intensas Ferrari 1996 O adolescente imerso nas dores psíquicas decorrentes de suas perdas e da deformação da percepção do tempo percebe que viver é uma aventura difícil e complexa As angústias que participam dessa nova fase serão enfrentadas por meio de mecanismos maníacos de intelectuali zações e de actings que colocam o corpo e o ato como vias de comunica ção denunciando a ruptura do simbólico O adolescente quando busca tratamento traz consigo sua estrutura psíquica ainda pouco desenvolvida e sem recursos suficientes para dar conta de todas essas questões Exige do ponto de vista técnico que o terapeuta seja empático e continente oferecendo através de suas intervenções verbais e nãoverbais signifi cado a emoções ainda não pensadas A relação que se estabelece a partir do par terapêutico auxilia o adolescente a conectar as experiências que ocorrem no campo com acontecimentos de sua realidade cotidiana inte grando passado e presente Nessa área intermediária da experiência relacional ocorre o processo de mudança no qual o terapeuta estimula o paciente a descobrir seu mundo e o pensar em como se sente nele Kusnetzoff 1993 ao salientar o período turbulento e conflitivo pelo qual o adolescente transita recomenda que o terapeuta numa abor dagem focal mostrese flexível compreensivo e atento É importante que ele aceite o jovem valorizando suas queixas disponibilizandolhe o seu olhar e a sua escuta para receber as suas diferentes formas de comunica ção O terapeuta deve desempenhar um papel ativo na psicoterapia bre ve a fim de estabelecer em curto espaço de tempo um rapport rápido e capaz de focalizar áreas conflituosas importantes sem postergações des Crianças e adolescentes em psicoterapia 205 necessárias Nessa técnica o terapeuta se dedica a situações atuais da vida do adolescente enfatizando os fatores adaptativos do ego e os re cursos que favorecem suas áreas autônomas A partir da focalização de seu problema desenvolve um trabalho compartilhado e considerando a compreensão do que se passa na transferência e na contratransferência o terapeuta deixa de lado material não significativo ao foco Como um fo tógrafo terapeuta e paciente vão ampliando cada vez mais o detalhe foco de uma fotografia até encontrarem algo que não aparecia na reprodução original latente Ferrari 1996 O caso de Clara atendida nessa modalidade ilustra as possibilidades descritas acima Clara 16 anos buscou atendimento psicológico por recomendação de seu cirurgiãodentista Ela precisava se submeter a uma cirurgia bucofacial complexa e de difícil recuperação e se mostrava muito ansiosa com a possibilidade de ver sangue A psicoterapia breve realizada com a paciente aconteceu ao longo de 15 sessões acompanha das de entrevistas com sua mãe e com o dentista para a compreensão dos procedimentos cirúrgicos e para assessorálo quanto ao manejo com a jovem A necessidade urgente de Clara de se preparar emocionalmente para essa intervenção determinou o foco do trabalho psicoterápico Orientado pelo foco o terapeuta se ocupou em ajudar a paciente a entrar em contato com suas fantasias e ansiedades relacionadas à fase evo lutiva as quais se associavam inconscientemente ao ato cirúrgico Com o auxílio do vínculo estabelecido com o terapeuta e das intervenções do mesmo que ativavam sua atenção seu afeto e sua capacidade de pensar a jovem através de suas associações relativas ao foco se deu conta de que a condição de paciente cirúrgica a remetia à sensação de passividade com a qual se submetera às situações de risco nas quais seu pai a colocava quan do criança Ela lembrou que nesses momentos não se sentia amparada e protegida pela mãe que se afastava de forma omissa A evolução do pro cesso aproximou também a paciente de fantasias e desejos edípicos trans feridos para o dentista e associados simbolicamente à intervenção cirúr gica A compreensão de que o temor à morte despertado pela cirurgia se vinculava a sensações de risco e excitação que experimentara com as brincadeiras do pai que a assustava quando por exemplo a colocava sentada em lugares altos ou exposta a risco de queda foi auxiliando a pa ciente a poder pensar de forma mais real sobre a situação que iria enfrentar Na fase final de seu atendimento após um período de resistência de 206 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols sencadeado pelo temor de não ser suficientemente cuidada pela terapeuta e pelo dentista que em sua fantasia a abandonariam em uma situação de risco como fizera sua mãe no passado Clara começou a mostrar interesse em obter mais informações a respeito do procedimento do período de hos pitalização e da recuperação pósoperatória Da mesma forma passou a se sentir mais tranquila para conversar com o dentista e fazer as combina ções necessárias para a intervenção Além das dificuldades relativas à cirurgia pode se verificar mudanças mais amplas na paciente Ela passou a se questionar a respeito de seu grupo de amigos e das relações com seus pais conquistando uma visão mais integrada de suas relações Passou a preocuparse com sua aparência e seu modo de vestir tornandose mais feminina A partir dessas condições a data da cirurgia foi marcada e a intervenção ocorreu com êxito reforçando a autoestima e segurança da paciente em si mesma e na equipe técnica Resta destacar que as entrevistas iniciais principalmente a primeira são cruciais no atendimento de adolescentes pois além de desempenha rem um papel terapêutico são profiláticas da deserção prematura do pa ciente A disposição ao diálogo a evitação do silêncio e o comportamento ativo do terapeuta nas primeiras sessões reduzem as ansiedades para noides frente ao desconhecido e favorecem o desenvolvimento de uma aliança de trabalho positiva A psicoterapia breve na infância e na adolescência vem se desenvol vendo como uma técnica de tratamento na qual as metas terapêuticas são limitadas a um foco De forma geral é recomendada após uma profunda avaliação em casos onde uma modalidade de tratamento mais complexa e de tempo indefinido se mostra impraticável Na clínica com crianças e adolescentes muitas vezes nos deparamos com situações reativas como quadros de ansiedade depressão e pertur bações psicossomáticas advindas de crises determinadas por conflitos familiares separação dos pais problemas escolares e relacionais etc que exigem intervenção rápida e breve Nessas situações a possibilidade de trabalhar com um foco pode se tornar útil e indicada Todo o foco deve possuir um eixo central determinado pelo motivo de consulta e sua configuração será fruto das entrevistas iniciais de ava liação O terapeuta precisará identificar o fator desencadeante e a crise vital ou acidental pela qual passa o paciente para compreender o foco a ser definido junto ao mesmo Identificados o desencadeante e a situação atual o terapeuta deve seguir seu trabalho orientado pelas associações do paciente rumo à investigação e à delimitação do foco que corresponde Crianças e adolescentes em psicoterapia 207 ao conteúdo latente O seguimento do processo psicoterápico promoverá uma evolução da compreensão do foco inicial delimitando e aprofun dando a compreensão de seu psicodinamismo Valério 2005 A psicoterapia breve além de focal se caracteriza por ser dirigida ao insight e por utilizar variadas intervenções verbais como interpretação assinalamento reasseguramento fornecimento de informações orienta ções entre outras O tempo surge também como uma possibilidade da técnica podendo ser definido ou não a priori em função das necessidades do paciente do terapeuta ou da instituição O terapeuta mantém constan temente em sua mente um foco durante o processo psicoterápico como objetivo de seu trabalho junto ao paciente Ele o faz idealmente para que o foco possa ser formulado em termos de uma interpretação essencial sobre o qual toda a terapia irá se basear O terapeuta ocupa um papel ativo no processo pois é sua tarefa principal guiar o paciente para esse foco prin cipal através de interpretações parciais e atenção seletiva Cabe a ele partindo de seu conhecimento profundo do paciente e considerando o que se passa no campo terapêutico eleger o material clínico que está em con sonância com o foco O uso da atenção seletiva do terapeuta no caso de Clara facilitou o trabalho de elaboração de conflitos subjacentes a seu pro blema atual que a impediam de realizar a cirurgia indicada O objetivo último da psicoterapia breve é facilitar à criança e ao adolescente uma adaptação crítica ao ambiente recuperando a sua capa cidade de aprender de se relacionar e de brincar de acordo com sua ida de assim como favorecer ao adolescente a aquisição da possibilidade de projetar seu futuro e integrar sua identidade adulta Knobel 1977 INDICAÇÕES E CONTRAINDICAÇÕES DA PSICOTERAPIA BREVE NA INFÂNCIA E NA ADOLESCÊNCIA A indicação da psicoterapia breve na infância e na adolescência deve ser realizada após minuciosa avaliação diagnóstica o que inclui a compreensão dos sinais e sintomas do paciente o diagnóstico dinâmico que definirá an siedades defesas e níveis libidinais o diagnóstico das características da per sonalidade em desenvolvimento e o diagnóstico sociofamiliar Aberastury 1972 calcada em sua extensa experiência como psica nalista de crianças e adolescentes referese à terapia breve p 30 co mo uma técnica que se utiliza da interpretação adaptada aos limites de uma situação que se coloca como urgente na vida de uma criança In 208 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols dicou essa modalidade de atendimento para pacientes portadores de doenças graves como as cardiopatias congênitas para aqueles que deve riam se submeter a procedimentos cirúrgicos e tratamentos odontoló gicos mobilizadores de ansiedade entre outras situações específicas Knobel 1997 referindose à psicoterapia breve aplicada à infância e adolescência explica que a criança e o adolescente podem apresentar dentro de uma problemática complexa alguns focos que podem ser atacáveis por meio da psicoterapia Sugere que esse tipo de psicoterapia seja indicado em situações de emergências como enfermidades na família problema emocio nal decorrente de doenças orgânicas morte de pessoas significativas vivên cias de abandono divórcio entrada na escola mudanças de residência ou cidade nascimento de irmão entre outros A essas situações agrega as rea ções psicológicas a acontecimentos catastróficos como acidentes graves problemas de crises políticas ou institucionais que repercutem na família Proskauer 1969 a partir de sua experiência clínica com essa mo dalidade de atendimento indica cinco questões a serem avaliadas para indicação da psicoterapia breve na infância São elas a capacidade da criança de responder rapidamente e desenvolver uma aliança de trabalho positiva com o terapeuta a possibilidade de um assunto focal e dinâmico ser identificado como central na psicopatologia geral da criança e compa tível de ser resolvido em período curto favorecendo a retomada de um desenvolvimento sadio a utilização de defesas flexíveis e a presença de traços de caráter da criança que favoreçam a resolução de um assunto focal a possibilidade da criança possuir confiança básica suficiente para que o término da psicoterapia breve seja experimentado mais como uma experiência positiva de crescimento do que como um novo abandono e por fim o ambiente da criança deve ser suficientemente protetor ou se transformar em de tal forma que os esforços de tratamento não sejam sabotados por forças patogênicas na casa da criança na escola ou na co munidade Ampliando essas indicações o autor refere situações espe ciais nas quais a psicoterapia breve pode ser útil como em famílias que possuem a indicação de psicoterapia sistemática ou psicanálise mas que demonstram resistências associadas a sentimentos de ameaça frente a um tratamento de final indeterminado A psicoterapia breve pode funcionar como uma experiência de tratamento que flexibilize as defesas e diminua as ansiedades que impedem a participação em um tratamento profundo de longa duração Uma outra indicação seria a de trabalhar com a criança e a família durante o período que precisam esperar para receberem o atendimento indicado quando este não pode ser recebido de imediato Crianças e adolescentes em psicoterapia 209 como ocorre seguidamente em instituições de saúde mental E ainda em situações em que a família traz um limite de tempo para resolver alguma dificuldade da criança determinada por situações como mudança de país viagens poucos recursos financeiros etc Crianças que apresentavam fobias agudas estados regressivos inibi ções de funções do ego comportamentos neuróticos que não sejam ca racteriológicos reações que extrapolavam os comportamentos normal mente esperados para a sua faixa etária respondem bem a um processo terapêutico breve e focal Lester 1968 As indicações da psicoterapia breve para o adolescente são bastante variáveis sendo mais específicas as perdas e os lutos decorrentes do cres cimento a incapacidade de lidar com a identidade sexual dificuldade em manejar com a temporalidade conflito nas relações sociais familiares e amorosas aceitação conflitiva do próprio corpo vulnerabilidade às pres sões ambientais como uso de drogas atos irresponsáveis e delituosos problemas de aprendizagem dificuldade de tolerar frustração e reconhe cer limites Knobel 1997 Os transtornos neuróticos quer se manifestem pela primeira vez na adolescência ou sejam reedições de conflitos que não foram tratados na infância que desapareceram ou se atenuaram respondem mais facilmen te à Psicoterapia Breve Da mesma forma adolescentes com retração de tipo autista em seu grupo de iguais que quando estimulados pelo ressur gimento de impulsos heterossexuais se relacionam melhor com o seu meio também se beneficiam desta abordagem Kusnetzoff 1993 Em relação à exclusão da indicação de psicoterapia breve parece haver consenso entre os autores de que crianças e adolescentes portado res de psicoses atraso mental significativo baixo nível de adaptação so cial desordens invasivas do desenvolvimento falhas severas nas relações iniciais problemas caracteriológicos sérios e pertencentes a famílias rígi das e disfuncionais teriam menos probabilidade de conquistar benefícios com essa modalidade de atendimento CASO CLÍNICO UM TEMPO PARA RENASCER Thomas estava com 3 anos e 6 meses quando seu pediatra recomen dou que ele realizasse uma avaliação psicológica A ausência do pai com pensada por uma proximidade superprotetora da mãe e as recorrentes crises de asma do menino justificavam o encaminhamento realizado 210 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A relação próxima e ambivalente que Anita mãe e Thomas manti nham logo se revelou na dificuldade que ambos demonstraram em se separar O paciente ao mesmo tempo que exigia a permanência da mãe nas sessões agarrandose as suas pernas com expressiva ansiedade a rejeitava com comportamentos desafiadores e agressivos Na creche a professora reclamava de sua desobediência e de seus comportamentos rebeldes com os colegas O nascimento de Thomas desencadeou o afastamento de Geraldo pai da família culminando com a separação do casal quando quando Thomas tinha 1 mês Anita revelou que ainda não havia superado a má goa e o ódio do exmarido que a abandonara para assumir uma relação extraconjugal Essa situação a impedia de facilitar a aproximação entre pai e filho prevalecendo sua necessidade de reforçar a Thomas uma ima gem desvalorizada da figura paterna O menino e seu pai se encontravam muito esporadicamente Quando iniciou seu atendimento Thomas mamava no seio usava fraldas e dormia na mesma cama que a mãe Embora fosse um menino esperto ativo e espontâneo comportavase como um bebê Ainda nesse momento Anita matriculou o filho em uma creche onde ele se adaptou com facilidade No entanto a mãe se sentiu muito ansiosa e perdida sem o filho e por isso permaneceu vários dias na creche até se acostumar com essa nova situação Esses dados relevantes da história de Thomas evidenciavam a exis tência de significativa ansiedade dificultando o desenvolvimento do pro cesso de separação e individuação entre mãe e filho de forma saudável o que impedia o seu crescimento emocional Constatouse que as ansieda des de separação circulavam na relação entre Anita e Thomas de forma que ambos se encontravam atrelados ao desejo e ao temor do reengol famento e da simbiose Evidenciouse que a relação dessa díade se cons tituía no foco principal do processo de psicoterapia que teve a duração de 28 sessões Uma ligação estreita entre mãe e filho acompanhada da ausência do pai pode gerar dificuldades para a inclusão de um terceiro na relação Uma das intervenções terapêuticas possíveis é abordar o vínculo pa tológico que impossibilita a inclusão de outra pessoa na dupla simbiótica A terapia com o foco no binômio mãe e filho tem por objetivo tratar essa relação esclarecendo a profunda interdependência e a ansiedade de se paração bem como as formas defensivas que mãe e filho recorrem para sustentar esse vínculo O terapeuta assume o papel diferenciador que Crianças e adolescentes em psicoterapia 211 deveria ter sido cumprido pelo pai e não o foi em decorrência de suas dificuldades psíquicas ou por impedimentos advindos da díade mãebebê Bleichmar 1972 A evolução dos atendimentos demonstrou o quanto a terapeuta representava para Anita e Thomas a figura que iria interferir na relação dual e próxima que mantinham A essa vivência de corte experimentada na transferência a dupla reagiu com manifestações de resistência que ameaçaram em alguns momentos a continuidade do atendimento Po rém a atenção e o trabalho terapêutico dedicados a esse ponto de ur gência incrementaram o vínculo do paciente e de sua mãe com a tera peuta encorajandoos a enfrentar as fantasias das quais derivavam senti mentos de ameaça ambivalência e culpa Esse funcionamento encarce rava mãe e filho à medida que negavam a possibilidade de um funcio namento em separado e ao mesmo tempo lutavam contra a simbiose Nas sessões iniciais excluindo a participação da terapeuta mãe e filho alternavam períodos de proximidade promovidos pelos jogos que Thomas propunha à mãe por outros onde eles se afastavam quando o menino chamando a mãe de monstro a convidava para um duelo com armas e espadas No seguimento da psicoterapia Anita e Thomas testaram a terapeu ta em sua capacidade de continência buscando se assegurar de que o trabalho terapêutico não concretizaria o temor de perda subjacente à es treita relação que ambos mantinham muito pouco perturbada pela pre sença do pai A possibilidade de mudança pareceu ter sido marcada pela ansiedade que o pequeno paciente demonstrou quando o gatilho do re vólver com o qual costumava se defender da mãemonstro estragou Aflito dirigiuse de forma direta à terapeuta e pediulhe auxílio pois precisava recuperar e reforçar seus recursos para enfrentar o afastamento da mãe garantindo sua condição masculina ameaçada Thomas passou então a identificar a terapeuta como alguém diferente de sua mãe e portadora de outros atrativos Ele amparado pelo olhar de Anita expe rimentou essa nova relação não mais dispensando a participação da tera peuta nas brincadeiras com a bola com o jogo de sinuca com os su perheróis e com os desenhos com os quais se ocupava ao longo das sessões No entanto a aproximação e o prazer desfrutados nesta nova relação assustaram o paciente que preocupado com os sentimentos de exclusão externalizados pela mãe buscava atender as próprias neces sidades de proteção narcísica através de comportamentos regressivos A terapeuta centrada no foco da relação entre ambos oportunizou um 212 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols espaço no qual mãe e filho puderam entrar em contato com a realidade de seus sentimentos e fantasias e pensando sobre eles puderam criar uma nova forma de se relacionar Assegurado da permissão de sua mãe e mais tranquilo quanto à sua constância enquanto objeto diferenciado de si mesmo Thomas iniciou um brinquedo na casa de bonecas montando cenas familiares nas quais a figura paterna foi incluída Assim o menino expressou o seu desejo de examinar com a mãe as reais possibilidades de um encontro com Geraldo Nas entrevistas de acompanhamento realizadas com a mãe foi pos sível auxiliála a separar suas dificuldades não superadas com o exmari do das questões referentes à relação do filho com o pai A mobilização despertada por essa mudança motivou Anita a iniciar seu tratamento pessoal Os encontros de Thomas e Geraldo começaram a acontecer com maior regularidade O menino completou seu controle esfincteriano dei xou de mamar no seio as queixas somáticas diminuíram de intensidade e a avaliação da creche atestava que ele se mostrava mais maduro Iniciouse um momento da psicoterapia em que Thomas passou a se ocupar com brinquedos adequados para sua idade os quais explicitavam temas de cunho predominantemente edípico Ele se movimentava de for ma mais autônoma nas sessões recorrendo à terapeuta em sua necessi dade de ser ajudado a demarcar um espaço íntimo e individual Mãe e filho iniciam um movimento de separação representado nas sessões pelas brincadeiras de Thomas que dispensavam a participação de Anita e pelo cansaço demonstrado por esta em permanecer nas sessões O menino reforçou seus esforços em direção à individuação na medida em que ele e sua mãe desenvolviam a consciência da diferenciação entre o eu e o outro Mahler 1986 Assim como Thomas ganhara um quarto em sua casa ele ganhara um espaço interno particular e diferenciado Estava pronto para estar só na companhia da terapeuta e assim se reconhecer em sua individualida de assegurado de sua possibilidade de se voltar para o pai na busca de identificações estruturantes de sua identidade O tempo do atendimento foi predeterminado no contrato realizado no início da psicoterapia de acordo com as características da instituição1 na qual Thomas e sua mãe foram atendidos Essa possibilidade da técnica não passou despercebida ao paciente que simbolicamente demonstrou estar atento ao tempo que teria para tentar elaborar o conflito que o impedia de crescer Thomas encontrou em sua caixa de brinquedos um relógio que foi colocado em evidência em todos os momentos iniciais e Crianças e adolescentes em psicoterapia 213 finais de suas sessões ao longo de seu atendimento Na tentativa de con trolar sua ansiedade de separação transposta para a relação com a tera peuta ele marcava o horário do início e do fim de cada encontro Da mesma forma ele em sua fantasia controlava e definia o tempo subje tivo e real que possuía para juntamente com sua mãe se preparar para seu desprendimento do sentimento de completude adquirido na simbiose que poderia cunhar sua eterna dependência Lisondo 2001 A díade mãe e filho no período de sete meses de psicoterapia demonstrou ter adquirido as condições psíquicas necessárias para retomar o proces so de separação de individuação e de indiscriminação elaborando o luto pela perda do vínculo narcisista e construindo espaços de subjetiva ção próprios A terapeuta Thomas e Anita em um clima de emoção presenciaram o nascimento emocional Mahler 1986 do menino que se mostrou apto a dar seguimento ao seu desenvolvimento cognitivo emocional e relacio nal BUSCANDO UMA SÍNTESE Na tentativa de reunir ideias aqui apresentadas sobre aspectos teóri cos técnicos e clínicos da psicoterapia breve arriscamos destacar alguns pontos considerados essenciais para a reflexão sobre o tema Dissemos no início do capítulo que o termo breve no contexto das psicoterapias diz respeito à abordagem focal planejada e de objetivos limi tados Ao mesmo tempo afirmamos que esse recurso psicoterápico é fun dado nos pressupostos da psicanálise também como teoria método e téc nica incluindo certamente a coerência entre os pressupostos teóricotéc nicos e o procedimento clínico Considerando ainda o tempo como uma representação da realidade objetiva indispensável à condição humana podemos pensar que a abordagem definida como breve não muda a essên cia da psicoterapia psicanalítica A clínica psicanalítica parte da ideia que de é possível promover mu danças psíquicas a partir da significação dada às nossas experiências emocionais O alcance de mudanças almejadas e almejáveis é viabilizado via estabelecimento de relações interpessoais experiências de considerar a existência separada do outro seu ponto de vista seu momento de vida sua subjetividade Trazendo essa concepção para a prática psicoterápica podemos entender melhor a importância e o sentido de pensar a psico 214 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols terapia breve como uma abordagem válida eficaz e indicada em diversas situações Se considerarmos aspectos do campo analítico tais como a singularidade da dupla terapeutapaciente o potencial de saúde na busca de tratamento as limitações e transitoriedade da condição huma na estaremos melhor equipados para empreender um processo psicote rápico Não estaria tudo isso representado na experiência que Thomas e sua terapeuta viveram em seu relativamente curto período de 28 sessões da terapia Parece que o tempo que o pequeno paciente marcava de início e fim de cada sessão ilustra a vivência de uma experiência da realidade objetiva externa e simultaneamente a vivência de uma experiência da realidade subjetiva interna integrando fantasias inconscientes e de mandas do mundo externo elementos complementares para a conquista do bemestar do sujeito NOTA 1 SAPP Serviço de Atendimento e Pesquisa em Psicologia da Faculdade de Psi cologia da PUCRS REFERÊNCIAS ABERASTURY A El psicoanálisis de niños y sus aplicaciones Buenos Aires Paidós 1972 BLEICHMAR E D 1972 La psicoterapia del binômio madrehijo en la sim biosis patológica In ABERASTURY A El psicoanalisis de niños y sus aplica ciones Buenos Aires Paidós BRAIER E Psicoterapia breve de orientação psicanalítica São Paulo Martins Fontes 1986 CORDIOLI A Psicoterapias abordagens atuais Porto Alegre Artmed 1998 COSTA J F A ética e o espelho da cultura Rio de Janeiro Rocco 2000 FERRARI A B Adolescência o segundo desafio São Paulo Casa do Psicólogo 1996 FREUD S Análise terminável e interminável In Edição standard brasilei ra das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1974 v 23 Dois artigos de enciclopédia psicanálise e teoria da libido In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1974 Crianças e adolescentes em psicoterapia 215 GEBARA A C Como interpretar na psicoterapia breve psicodinâmica 1 ed São Paulo Vetor 2003 HEGENBERG M Psicoterapia breve São Paulo Casa do Psicólogo 2004 Cole ção Clínica Psicanalítica KANCYPER L La confrontacion generacional estudio psicoanalítico Buenos Ai res Paidós 1997 KNOBEL M Psicoterapia breve São Paulo EPU 1986 Psicoterapia breve da infância e adolescência In FICHTNER N Trans tornos mentais da infância e adolescência Porto Alegre Artmed 1997 Psiquiatria infantil psicodinâmica Buenos Aires Paidós 1977 KUSNETZOFF J C Psicoterapia breve na adolescência Porto Alegre Artmed 1993 LEMGRUBER V Psicoterapia breve e a técnica focal Porto Alegre Artmed 1984 LEWIS M WOLKMAR F Aspectos clínicos do desenvolvimento na infância e ado lescência Porto Alegre Artmed 1993 LESTER E P Brief psychoterapy in child psychiatry Canadian Psychiatric Associa tion Journal v 13 n 4 p 301309 1968 LISONDO A B D Na simbiose patológica uma concha acústica para dois Na psicanálise nasce o ser e a linguagem In GRAÑA R PIVA A Org A atualida de da psicanálise de crianças São Paulo Casa do Psicólogo 2001 LOWENKRON T Psicoterapia psicanalítica breve Porto Alegre Artmed 2006 MAHLER M O processo de separaçãoindividuação Porto Alegre Artmed 1986 MOLNOS A A question of time essentials of brief dynamic psychotherapy Lon don Karnac Books 1995 PARRY G ROTH A D KERR I B Psicoterapia breve e de tempo limitado In GABBARD G BECK J S HOLMES J Compêndio de psicoterapia de Oxford Porto Alegre Artmed 2007 p 679700 PROSKAUER S Some technical issues in time limited psychoterapy with chil dren Journal of American of Child Psychiatry v 8 p 154169 1969 RACUSIN R J Brief psychodynamic psychotherapy with young children Journal of the American Academy of Child and Adolescent Psychiatry v 39 n 6 jun 2000 RAPPAPORT C R Temas básicos de psicologia São Paulo EPU VALÉRIO M H Focalização In EIZIRIK C et al Psicoterapia de orientação analítica fundamentos teóricos e clínicos Porto Alegre Artmed 2005 YOSHIDA E M P Psicoterapias psicodinâmicas breves e critérios psicodiagnósticos São Paulo EPU 1990 Psicoterapia de grupo com crianças mediada por contos Maria da Graça Kern Castro 12 A psicoterapia de grupo abre novas perspectivas a quem está ha bituado a trabalhar em psicoterapia individual com crianças possibilitando conhecer além das ansiedades e fantasias os vínculos e relacionamentos interpessoais como eles aparecem no aquiagora do setting entre todos os membros do grupo entre cada criança e o restante do grupo e com o psicoterapeuta Neste capítulo é apresentado o relato de uma psicoterapia de grupo mediada por contos infantis Juntamente com duas colegas1 compartilhei desta experiência junto a crianças que frequentavam uma escola comunitária de educação infantil Descrevese o enquadre as características do grupo papéis e funções da psicoterapeuta coterapeuta e observadora São descritas as etapas das sessões e é realizada uma retrospectiva do processo psicoterápico enfocando no início os processos de formação do vínculo e estabelecimento do enquadre um outro momento de conso lidação da transferência e processos de catarse e o período final de elabo rações e término O objetivo da terapia de grupo é propiciar mudanças no equilíbrio intrapsíquico de cada paciente Através do vínculo grupal possibilitase a circulação de ideias e sentimentos comuns gerando insights e o autoco nhecimento estimulado pela experimentação de papéis e de relaciona mentos diferenciados no grupo A presença de outras crianças estimula a participação e a espontaneidade Cada membro do grupo pode se deparar com sentimentos e problemas semelhantes aos seustendo a possibilidade de ver espelhado no grupo suas ansiedades seus temores e suas fantasias Crianças e adolescentes em psicoterapia 217 e se sentir aceito e compreendido No grupo toma consciência de como interage com as outras crianças e com o terapeuta tendo espaço para experimentar novas formas de se relacionar e assumir responsabilidades por suas condutas À medida que a criança se sente mais livre e com preendida revela suas emoções e pensamentos sendo também estimulada a sua criatividade Crianças que apresentam inibições se sentem mais à vontade para manifestar seus desejos e as impulsivas são levadas pelo contrato e segurança do setting a tolerar frustrações e adiar gratificações Zimerman 1997 Levinky 1997 Fernandes 2005 2006 Bodstein e Arruda 2006 O objetivo de nosso trabalho era conhecer as possibilidades tera pêuticas da psicoterapia de grupo mediada por contos Gutfreind 2003 Tínhamos também um objetivo de alcance social visando implementar atendimentos de grupo e atender futuramente maior número de crianças expostas a situações de risco e de vulnerabilidade social no ambulatório de uma clínicaescola em uma instituição Por que usar contos numa psicoterapia de grupo Relembrando a personagem Scherazade Mil e uma noites perce bese que contar histórias foi o estratagema que manteve viva a personagem dessa história Barca Gomes 2006 Tal como Scherazade continuamos a contar e escutar histórias para lidar com emoções sentimentos e pen samentos difíceis de serem expressos pela linguagem comum As vivências emocionais mais intensas ou nãoverbais e primitivas em todos os tem pos encontraram formas de expressão através de mediadores culturais como os mitos a literatura o teatro as pinturas e as artes em geral Os contos infantis com sua magia personificam angústias humanas e ao longo dos séculos foram usados pelos povos para lidar com a conflitiva emocional Nas últimas décadas vêm sendo utilizados como mediadores em psicoterapias Bettelheim 1979 Hisada 1996 Gutfreind 2003 Sunderland 2005 Corso 2006 Os contos por serem instrumentos lúdicos e transicionais auxiliam na comunicação de vivências afetivas importantes Apresentam possibilidades de soluções criativas para enfrentar problemas mostrando que novas formas de pensar ser e agir são possíveis Pela identificação com os personagens a criança enxerga sob novas formas problemas antigos e situações de sua própria vida Pela distância temporal e espacial do Era uma vez num país distante fica afastada e vê de longe com distanciamento o seu conflito que é o do personagem e não apenas dela Pela identificação com as diversas facetas de um conto a criança empa 218 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols ticamente se sente compreendida acolhida e aliviada em seus sofrimentos As histórias auxiliam a criança a reconhecer o material psíquico como pertencente a si mesma através de mecanismos de identificação projetiva e introjetiva Os contos com suas imagens e metáforas usam a linguagem do pensamento primário como nos sonhos facilitando a entrada no mundo interno Partindo do imaginário e do fantástico abrem espaço para nomear emoções para o pensar e o simbolizar facilitando o desenvolvimento do pensamento secundário Sunderland 2005 Além de tocarem em aspectos inconscientes os contos estimulam o desenvolvimento egoico como por exemplo as funções de atenção memória pensamento sequencial e lógico observação capacidade de análise e síntese e relações espaçotempo Desenvolvemse funções de linguagem ampliase o vocabulário além de permitirem uma viagem ao mundo da imaginação e do simbólico São desenvolvidas funções do ego como percepção pensamento conhecimento juízo crítico comunicação e atenção que o campo grupal propicia Os participantes aprendem a escutar e a serem ouvidos pelo outro Bettelheim 1979 Gutfreind 2003 Sunderland 2005 Corso e Corso 2006 A psicoterapia grupal com uso de contos apresenta dois eixos que dão conta de seus efeitos psicoterápicos o eixo lúdico e o eixo reflexivo O primeiro se refere ao prazer que uma psicoterapia com contos envolve abrindo espaços de criação Ele se forma através da combinação de ima gens de jogos de ilusão imaginar criar ver de outro modo o concreto da vida gerando um espaço interno onde a criança poderá se refugiar nos momentos difíceis de sua vida O eixo reflexivo é exercido pela função de ser continente de ansiedades que o conto abarca à medida que contém sentimentos e afetos fornece nomes e significados estimula a reflexão e ajuda a pensar Gutfreind 2003 Crianças têm prazer em escutar e contar histórias Inventam e des locam simbolicamente seus sentimentos ansiedades e conflitos recriam reinventam recontam o que lhes interessa naquele momento Os enredos dos contos tradicionais e de alguns contos modernos lidam com conteúdos emocionais que são inferidos pela trama e pelas ações dos personagens Isso produz uma série de mecanismos psicológicos basicamente calcados em identificações projeções introjeções e sublimações e busca de saídas além do pensar sobre temas como rivalidades inveja ciúmes medos de abandono entre outras ansiedades Isso possibilita olhar a vida sob outros vértices e se apresenta como uma ponte para novas aprendizagens Por exemplo numa história de monstros e dragões que engolem e dilaceram pessoas a criança toma contato com sua agressividade voracidade e Crianças e adolescentes em psicoterapia 219 sadismo oral Esse material arcaico é contido pelos personagens e esses elementos regressivos podem ser transformados através de novas associações verbais da criança ao relato por desenhos ou dramatizações Assim os contos têm uma função organizadora da mente já que o mate rial que era primitivo violento e cru passando por um processo mental de processamentos e elaborações se torna um novo elemento disponível para o pensar ao ser deslocado do concreto ao simbólico Ao escutar uma história crianças podem reviver momentos de olhares sons e vozes que remetem a experiências emocionais precoces das suas relações com a mãe algo conhecido no nível inconsciente Gutfreind 2003 Esse conhecimento não pensado foi experienciado no nível préverbal e mesmo sendo incompreensível para o bebê foi entendido e compartilhado pela mãe ou pelo substituto cuidador Uma história fala ao conhecido não pensado Bollas 1992 já que a criança sente traduzidos alguns de seus sentimentos Ao ouvir uma história de monstros bruxas terrores de ser abandonado ou cair em buracos escuros por exemplo sente que isso fala de algo que conheço bem mas nunca tinha pensado Quando um conhecido não pensado é nomeado isso é alentador pois daí em diante ele pode ser reconhecido e ser pensado em nível de processo secundário abrindo caminho para novas cadeias associativas O grupo terapêutico de contos possibilita chegar à vivências profundas da mente infantil e aos conhecidos não pensados trazendo esperança de que os sentimentos das crianças sejam compreendidos Partindo das contribuições de Winnicott 1975 que diz que a psico terapia ocorre numa terceira área da experiência emocional espaço potencial criativo e aberto às simbolizações situado entre a realidade subjetiva e a realidade objetiva explicitamos no diagrama a seguir o espaço psicoterápico onde ocorre a psicoterapia grupal mediada pelos contos 1ª área Realidade interna PACIENTES GRUPO Escutam o conto identificam projetam introjetam elaboram conflitos 3ª área Espaço transicional Transformações de sentimentos e emoções Espaço para criar pensar e simbolizar 2ª área Realidade externa TERAPEUTAS Narram contêm ansiedades e realizam intervenções terapêuticas 220 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols O espaço lúdico e terapêutico se forma através da combinação do que se ouve no conto e das imagens e associações que surgem e se formam na mente da criança e do grupo Criase no vínculo do terapeutanarrador com o grupo de crianças uma relação de confiança e de seguran ça favorecida pelo enquadre O grupo teria uma função continente Bion 1980 com suas regras contratos espaços e papéis delimitados Esse setting teria a função de holding descrita por Winnicott organizando sen sações dispersas oferecendo sustentação e acolhendo a manifestação espontânea de ansiedades emoções e pensamentos das crianças SOBRE O ENQUADRE É a soma de todos procedimentos que organizam normatizam e possibilitam o funcionamento grupal como local horário peridiocidade entre outros acordos formais realizados com o grupo O setting tem como função delimitar papéis posições direitos e deveres dos membros do grupo Zimerman 1997 O enquadre ou setting é simples e constante sendo construído com cuidado e flexibilidade É necessário um local próprio e adequado espaçoso e confortável para a narrativa dos contos e acomodação do grupo Usamos uma parte ampla de uma sala de aula de uma escola de educação infantil onde desenvolvemos nosso projeto terapêutico As sessões eram semanais sempre no mesmo dia e horário e tinham a duração de 1 hora e 30 minutos A escolha dos contos ocorreu pela demanda do grupo e pelo desejo do narrador Nesse caso muito importante é ressaltar que o narrador goste do conto e esteja identificado com a história escolhida Terapeutas Em nossa experiência alternamos papéis e funções a cada semana trabalhando em coterapia Ao terapeutanarrador cabia a escolha e nar rativa do conto assim como a organização e manutenção do enquadre Sentávamos em círculo no chão junto ao grupo Cabia à coterapeuta auxiliar o grupo a manter o setting e a atenção ficando sentado junto ao grupo A observadora no início ficava fora do círculo de modo a observar e anotar toda movimentação grupal as falas e interações entre membros do grupo Foi convidada pelas crianças a participar da roda e em algumas ocasiões de maior tensão no grupo também auxiliou como coterapeuta Crianças e adolescentes em psicoterapia 221 A função da observadora foi muito importante pois suas anotações forneceram dados que a memória não daria conta para a compreensão dos movimentos transferenciais e contratransferenciais Foi de fundamental importância estarmos atentas às comunicações verbais mas especialmente às manifestações nãoverbais mímicas olhares movimentos corporais que as crianças apresentaram no transcurso do processo psicoterápico O psicoterapeuta de grupo com crianças necessita desenvolver algumas habilidades como por exemplo a capacidade de ser continente e empático com as necessidades de cada membro e do grupo como um todo bem como dispor de senso de humor intuição e rapidez na tomada de decisões em diversas circunstâncias inusitadas que por vezes ocorrem no trabalho com essa faixa etária Ansiedades despertadas pelo conteúdos de alguns contos sofreram transbordamentos na conduta e foram atuadas pelo grupo sob forma de agitação gritos alguns empurrões entre as crianças e fomos exigidas numa rápida e firme intervenção algumas vezes sendo necessário conter fisicamente alguma criança mais violenta Esse tipo de intervenção era explicada e interpretada sempre discriminandose entre fantasia da realidade o pensar e o falar como distintos do agir Ter consciência das manifestações e pressões do grupo sobre as terapeutas foi decisivo para não ficarem confusas no cruzamento das identificações projetivas e introjetivas que perpassavam o setting Levisky 1997 Gutfreind 2003 O grupo Constituído por 14 crianças 6 meninos e 8 meninas de préescola comunitária com idades entre 4 e 6 anos que frequentavam a mesma classe Sabíamos que não era um número ideal que oscila entre 5 a 10 crianças Gutfreind 2003 Um grupo grande criou dificuldades adicionais de manejo e facilitou dispersão em conversas paralelas ou em agitação o que fez com que as terapeutas estivessem muito atentas aos movimentos e reações do grupo Por dados de realidade externa não havia possibilidade de dividir o grupo em dois como seria o ideal A indicação dessas crianças para o trabalho psicoterápico ocorreu em função de seus comportamentos mobilizando a atenção de professores e direção da escola que perceberam a necessidade de ajuda extra Assim o grupo passou a dividir além das suas professoras o setting e as mesmas terapeutas Eram crianças de baixa renda expostas à vulnerabilidade social Suas famílias moravam em bairros distantes porém pais e mães trabalhavam 222 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols no bairro onde se situava a escola desempenhando funções de doméstica jardinero porteiro e atividades similares Havia rotatividade no grupo devido às faltas pois quando seus pais não iam ao trabalho as crianças não frequentavam a escola nesses dias e consequentemente o grupo tera pêutico No transcorrer dos cinco meses da psicoterapia quatro crianças abanonaram a escola e o grupo Etapa diagnóstica Este foi o primeiro momento do trabalho Obtivemos dados sobre as crianças através de entrevistas com direção coordenadora pedagógica e professoras Todos os dados preliminares foram colhidos das observações das crianças tanto em sala de aula quanto nas atividades lúdicas livres e em três sessões diagnósticas com o grupo Foi difícil realizar entrevistas diretamente com os pais2 das crianças visto que poucos puderam se ausentar do trabalho para as entrevistas Realizada a síntese diagnóstica do grupo foram eleitos os seguintes temasfocos que iluminaram nossas atividades agressividade brigas na escola e vivências agressivas no lar separações e abandonos dos pais sexualidade curiosidade intensa aceitação e tolerância às diferenças havia crianças com deficiência física no grupo separações e perdas pais de muitas das crianças em processo de separação e litígios nascimento de irmãos morte de parentes Contrato e duração Nossa vivência mediada por contos se desenvolveu na modalidade breve e focada num total de 18 sessões em um período de cinco meses Foi realizado um contrato verbal um pacto narrativo Gutfreind 2003 sendo explicado como funcionaria a psicoterapia horários pro cedimentos normas para o grupo enfatizando que a expressão simbólica de todos os sentimentos era permitida mas que a expressão na conduta poderia ser contida caso perturbasse o grupo Falamos de nosso trabalho ter tempo limitado e que iríamos trabalhar aproximadamente cinco meses com eles com começo meio e término até nossa separação do grupo Tais informações oferecem nexo e sentido à experiência e fornecem uma moldura estruturante para o funcionamento grupal Crianças e adolescentes em psicoterapia 223 Os momentos de cada sessão Sessões de grupo com crianças devem ser estruturadas mas com fle xibilidade suficiente para o terapeuta estar atento ao novo e inusitado que pode surgir no grupo As sessões se constituíram inicialmente de duas fases A primeira foi a narrativa do conto quando sentadas em círculo no chão junto à narradora e coterapeuta as crianças desenvolviam habilidades de escuta e atenção A segunda fase de elaboração constituiuse de três mo mentos 1 discussões e associações verbais 2 dramatizações e 3 ex pressão gráfica 1 O primeiro momento foi baseado nas discussões sobre pensamentos e sentimentos despertados pela história Também era uma opor tunidade para associações apontamentos e questionamentos sobre a escuta realizada 2 O segundo momento foi da dramatização do conto nascido das necessidades do grupo na quarta sessão Algumas crianças mobilizadas pela pressão da ansiedade buscaram novas formas para lidar com conteúdos ansiogênicos despertados pela escuta do conto e as colocaram em cena através de teatrinho Pensamos que a dramatização surgiu como uma necessidade do grupo de expressar corporalmente uma conflitiva que o nível verbal não continha Talvez nem dispusessem naquele momento de palavras para nomear experiências préverbais acerca das fantasias que os contos estavam suscitando 3 No terceiro momento da sessão foi utilizada a expressão gráfica Após terem dramatizado aspectos do conto as crianças se dirigiam à mesa onde já estavam colocadas pela coterapeuta e observa dora as folhas em branco Havia no centro da mesa vários potes com lápis coloridos e giz de cera e algumas borrachas Cada criança tinha uma pasta individual com seu nome onde eram colocadas suas produções gráficas que ao final da sessão ficavam sob a guar da das terapeutas até o próximo encontro O fato de o grupo encerrar a dramatização e se dirigir à mesa os colocava em um estado de calma Esta etapa funcionou como ponte ou caminho de volta para a realidade externa após a carga emotiva das dramatizações A expressão gráfica se mostrou muito rica e criativa pois algumas crianças partiam do estímulo do conto desenhando suas próprias histórias algumas com ricos conteúdos Outras repetiam monotonamente 224 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols os mesmos desenhos ao longo de todas as sessões crianças mais regressivas e com pouca capacidade simbólica enquanto alguns tentavam imitar o desenho dos colegas o que geralmente criava situações de rivalidade que tiveram ocasião de ser trabalhadas com o grupo Todos gostavam de desenhar e se sentiam bem nessa atividade expressiva que os encaminhava para o final da sessão As terapeutas mantinham atitude atenta e quando solicitadas escreviam as novas histórias relatadas referente aos desenhos no verso da folha Com o transcorrer das sessões as crianças faziam mais de um desenho Aqui observamos as diferenças individuais de forma mais marcada pois pelo grafismo foi possível identificar as crianças mais imaturas no seu desenvolvimento psicomotor e com conflitivas emocionais mais acentuadas Não era nosso objetivo interpretar os desenhos e sim propiciar um espaço de continência e compreensão além de um tempo para elaborações pessoais de cada criança tolerando o ritmo de cada uma Ao final os desenhos eram colocados na pasta de cada criança encerrando aquela sessão e sendo realizada a despedida até o próximo encontro Após o término de cada sessão eram realizadas reuniões com as três terapeutas em que discutiam os sentimentos despertados pelo grupo os aspectos contratransferenciais envolvidos as questões de manejo técnico e de compreensão do material bem como a organização para o próximo encontro Cumpre salientar a importância decisiva da supervisão3 recebida e sem a qual essa experiência não teria se tornado tão produtiva tanto para as crianças quanto para as psicoterapeutas SOBRE O DESENVOLVIMENTO DO PROCESSO PSICOTERÁPICO O desenrolar do processo psicoterápico foi muito enriquecedor para todos os participantes Retrospectivamente relendo e analisando todas as anotações das 18 sessões foi possível demarcar três momentos marcantes no processo psicoterápico e na evolução do grupo Fase 1 Formação do vínculo e estabelecimento do enquadre primeira a quarta sessão Na etapa inicial do processo foi estabelecida a aliança terapêutica e o conhecimento dos membros grupo funções e papéis de cada um Esclarecemos a função terapêutica como distinta das demais exercidas pelas pessoas que participavam de seus cuidados na escola Falamos do Crianças e adolescentes em psicoterapia 225 respeito entre todos os membros do grupo e do sigilo com o conteúdo das falas no grupo Discriminar o setting como algo diferenciado do processo educativo cotidiano da escola se mostrou decisivo para estabelecimento da confiança do vínculo e do contrato terapêutico com as crianças Vi sávamos também nessa etapa possibilitar o desenvolvimento da capa cidade de atenção e de escuta O grupo estava motivado e curioso e os meninos participavam e falavam bastante enquanto as meninas levaram mais tempo para se tornarem espontâneas nas suas expressões Nas três primeiras sessões foram narrados contos tradicionais conhe cidos por todos cujos enredos facilitaram investigar temores segredos familiares conflitivas narcísicas e edípicas A psicoterapia de grupo explorou os relacionamentos como eles se apresentaram no aquiagora do setting entre os membros do grupo como um todo entre cada criança em relação aos demais e em relação aos terapeutas Toda a comunicação individual a qualquer membro do grupo ou às terapeutas foi entendida com significados em níveis de trans ferência O foco psicoterápico não era somente no que diziam as crian ças mas também no como e no porquê Estar atento ao conteúdo forma e motivos das suas falas ofereceu melhor apreensão dos significados de seus sofrimentos O papel das terapeutas foi de continência das ansiedades de discri minação esclarecimentos e interpretações apenas quando necessárias ao crescimento grupal Com muita frequência foi necessário tomar posições ativas de oferecer limites e retomar as combinações feitas As crianças ficavam muito agitadas tanto pela turbulência própria da idade quanto pelas peculiaridades específicas de cada uma delas e pelos conteúdos despertados pelos contos Nas primeiras sessões mantivemos um tempo de espera acolhimento e tolerância o que propiciou o aparecimento de sentimentos e verbalizações sobre os seguintes temas medos de escuro perder os pais ficar só e de morte de familiares segredos familiares separações brigas traições e conflitiva edípica diferenças sexuais casamento e descasamentos as meninas identificadas com o conto do espelho mágico princesas e aspectos de feminilidade e os meninos com príncipes e suas espadas poderosas A etapa posterior à escuta do conto na maioria das vezes histórias dos Irmãos Grimm mas também alguns contos modernos foi a do desenho em que as associações brotavam através do grafismo e das verbalizações e associações sobre eles Na quarta sessão foi narrado um conto moderno que tratava de um fantasma que surgia nas noites em que faltava luz e assombrava as crianças 226 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols numa casa Essa história mobilizou muita ansiedade ocasionando mudança importante na dinâmica grupal As crianças falavam contavam sonhos relatavam medos de vampiros e do Drácula Duas meninas se abraçavam com medo e um menino reclamou que não gostou do conto pois temia sonhar com coisas ruins Outro com voz embargada disse que sonha frequentemente que um fantasma o persegue e o amedronta Na hora do desenho em que geralmente se acalmavam continuavam agitados provocativos uns com outros disputando lápis e borrachas que antes cos tumavam dividir Ficou visível a competição entre eles mas em especial de duas meninas que gritavam e se agrediam verbalmente na disputa por uma borracha grande Essas meninas nas sessões anteriores eram apáticas e pareciam pouco se ligar aos contos e ao grupo Nesse dia chamaram a atenção dos colegas sobre si e foram alvo de muitos ataques pelos colegas Algo novo havia ocorrido as crianças se mostravam como eram realmente assustadas ansiosas ciumentas competitivas e com muita raiva Após inter venção da terapeuta que apontou as rivalidades manifestas e a falta de tolerância das crianças entre si espontaneamente as crianças começaram a usar mímicas enfiando suas blusas na cabeça agitando as mangas como longos braços como se fossem fantasmas e começaram a dar empurrões entre si Isso gerou alguma violência certo caos no grupo e impotência nas terapeutas que momentaneamente se sentiram indiscriminadas nas suas funções de fornecer continência e segurança às crianças A expressão violenta do grupo no nível da ação e do corpo verdadeiras descargas impulsivas e actings precisou ser firmemente contida pelas terapeutas Foram retomadas as regras iniciais de nosso contrato com o grupo e a discriminação entre a expressão direta das emoções e as manifestações simbólicas era permitido desenhar pensar e falar sobre o que sentiam mas não era permitido tudo fazer Levadas por nossa própria ansiedade pela dificuldade de manejo da agressão grupal aliada às angústias atuadas pelas crianças a terapeuta narradora daquele dia aproveitando a iniciativa proposta pelo grupo percebeu que a dramatização seria recurso útil e propôs que dramatizassem os seus medos De forma intuitiva e espontânea o próprio grupo nos havia indicado mais uma via simbólica a ser seguida Assim a representação de papéis o teatrinho surgiu como um recurso terapêutico adicional para a expressão e a simbolização dos conflitos Então os meninos pediram para serem os fantasmas e as meninas teriam que fugir deles Formaram dois grupos o dos perseguidores e o dos perseguidos em uma grande correria pela sala Ocorreu uma gritaria catártica As crianças expressaram fantasias e temores que refletiam impulsos e figuras inconscientes atemorizantes e Crianças e adolescentes em psicoterapia 227 perseguidoras que o conto fez emergir e que pareciam fazer parte da ficção interna de cada uma daquelas crianças Ao término eles se deitaram no chão bem à vontade e mais calmos Entendemos que o grupo naquele momento reproduziu um mecanismo de cisão usado no início da vida quando o bebê assolado pelos próprios impulsos destrutivos agindo dentro de seu ego rudimentar necessita cindir o self e o objeto em aspectos bons e maus como defesa e como forma rudimentar de discriminação de seus impulsos libidinais e agressivos A cisão feita no grupo entre os personagens fantasmas perseguidores sádi cos e as meninas perseguidas dava vida a ansiedades bastante primitivas que encontraram expressão nesse jogo dramático As crianças se benefi ciaram ao trabalhar ludicamente com conteúdos primitivos ansiogênicos que encontraram formas de representação via gestos e movimentos Compreendemos que o estado mental persecutório do grupo era difícil de ser verbalizado mas foi facilmente comunicado através de ações comu nicativas Barugel e Sola 2001 e da dramatização No como se do contexto psicodramático tomou forma um espaço lúdico de quase sonho formando uma ponte entre o concreto e o imaginário entre a realidade interna e a externa do grupo Pavlovsky 1980 As personificações baseadas nos meca nismos de dissociação e projeção são os lastros para a transferência que se manifestou nos diversos papéis que as crianças atribuíram a si e aos outro membros do grupo Klein 1981 As personificações indicam os estados mentais da criança e os papéis representam partes de seu mundo interno e vivências préverbais mas também podem refletir a externalização via projeção e deslocamentos de relacionamentos atuais com seus pais e familiares Estarmos atentas para as cisões negações repressões e projeções de parte do self de cada criança em particular e de todo o grupo ofereceu a possibilidade de retomar o impacto que as ações comunicativas tiveram sobre cada membro do grupo e explorar sentimentos a seu respeito Sen tirse aceito e compreendido sem retaliações é importante para a saúde mental da criança Foi tarefa terapêutica necessária oferecer limites seguros e regras discriminar junto ao grupo o que era a expressão de sentimentos hostis e violentos via ação da aceitação de condutas intoleráveis que se não fossem canalizadas teriam impedido a evolução do trabalho grupal Nesse ponto do trabalho percebemos que o processo transferencial estava estabelecido e as crianças sabiam que ali era o contexto para expressarem sentimentos a serem elaborados no aquiagora da sessão 228 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Fase 2 Consolidação da transferência catarse e início das elaborações de conflitos quinta a décima segunda sessão Na quinta sessão persistiram os conteúdos agressivos ainda com muitas brigas competições das crianças pela atenção das terapeutas e algumas situações difíceis de manejar no grupo O grupo solicitou novas histórias de monstros e fantasmas O conto Monstro Monstruoso da Caverna Cavernosa Rios 2004 foi usado no sexto encontro e as crianças se iden tificaram com os problemas preocupações e ansiedades dos personagens Esse conto a pedido do grupo foi recontado mais tarde em outra sessão O monstro com dois narizes seis orelhas quatro braços e 219 dentes além de atemorizante pelos berros que emitia era simpático não queria devorar princesas pois detestava carne humana e adorava sorvetes Esse personagem foi tela de muitas identificações e projeções para o grupo e muitas crianças falaram da perda dos dentes de leite de ficar banguelas e feios até que os novos dentes nascessem além de outros temores de castração e fantasias de desintegração corporal e emocional Movimentos transferenciais coloridos de agressão não contida ainda escapavam via atuações e encontravam nos diversos personagens vias de identificação e possibilidades de inicialmente realizar processos catárticos e a seguir pensar e elaborar os sentimentos que emergiam mediados pelas histórias Paulatinamente as crianças conseguiram falar de situações vividas nas famílias como por exemplo situações de agressão física sepa rações abruptas de pessoas queridas brigas em família e diversas situações traumáticas às quais eram expostas Algumas das projeções patológicas e violentas de suas famílias incidiam sobre essas crianças e foram trazidas ao setting Tiveram oportunidade de serem descritas por palavras diminuin do paulatinamente a compulsão à repetição via actings Um dos meninos enquanto desenhava criou suas próprias metáforas que capturaram e revelaram quadros da sua realidade emocional Compar tilhouas com o grupo que soube acolher e se identificar com sua fantástica história Partindo de vivências reais de abandono e maus tratos transpôs para a seguinte história as vivências traumáticas que eram semelhantes a de outras crianças do grupo Era uma vez um lugar esquisito onde moravam muitos palhaços mas não era um circo legal e bom Nesse lugar morava um palhaço triste porque ninguém o achava engraçado e não gostavam dele e nem das Crianças e adolescentes em psicoterapia 229 suas piadas Mas riam dele porque o achavam bobão e ele ficava muito bravo com isso pois não era bobo Um dia ele foi parar numa floresta que era habitada somente por lápis de todas as cores Os lápis grandes batiam muito nos lápis pequenos Havia um lápis gigantão muito mau que comia os lápis pequenos Mas aí apareceu um lobo mau que matou o lápis gigante e o engoliu O lobo então vomitou todos os lápis pequenos que estavam na barriga do gigante O lobo morreu envenenado mas os lápis pequenos que foram vomitados viveram felizes para sempre Crianças traumatizadas não costumam relatar de forma verbal na linguagem do processo secundário seus traumas mas os expressam inconscientemente por outras formas geralmente a linguagem dos sintomas Alvarez 1994 Sunderland 2005 Experiência como invasão traumática e como carga insuportável para a mente pode ficar enquistada e se não elaborada tende a ser descarregada por vias não mentalizadas que pode ser o próprio corpo através de somatizações pela mente via delírios e alucinações ou pela conduta pelas atuações de maior ou menor violência Se é excessivamente difícil expressar verbalmente o que lhes acon teceu oferecer às crianças outras formas de expressão desenho criação de peças teatrais poesia facilita o domínio da emoção e o distanciamento do trauma No conto antes relatado o menino conseguiu simbolizar expe riências traumáticas graças à sua capacidade de resiliência e habilidade para responder com condutas adaptativas frente a situações de maus tratos Encontros humanos significantes podem ser elementos preciosos para auxiliar crianças traumatizadas a enfrentar realidades difíceis proporcionando esperança de novos modos de enfrentar as circunstâncias adversas O grupo terapêutico contribuiu como um espaço privilegiado para encontros humanos significativos com as terapeutas e com as outras crianças local para troca de afetos experiências e mudanças psíquicas A continência dada pelo enquadre forneceu fator de proteção ao serem trabalhados conteúdos tão dolorosos e traumáticos Serviu também como modelo para processar conflitos de uma forma deslocada e simbólica portanto tolerável Na sessão seguinte o conto Rapunzel liberou a questão das origens da vida Na dramatização as crianças encenaram nascimentos coloca ramse em fila à frente de uma das terapeutas e imitavam sair de sua barriga chorando como bebês Nessa mesma sessão a menina portadora 230 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols de deficiência física conseguiu falar de todo o seu sofrimento pelo nascimento recente de sua irmã e sobre o ciúmes e medo de perder o amor da mãe para o novo bebê Nessa fase até a décima primeira sessão o grupo esteve muito pro dutivo e os contos trouxeram à tona temas relacionados a perdas e ganhos com o crescimento perder dentes de leite mas ganhar os novos fortes e definitivos perder os colegas da escolinha que se foram mas ganhar os novos amigos que entrariam As crianças maiores que iriam para 1a série após as férias perderiam a escolinha e professoras de que gostavam mas ganhariam outra escola maior com novos amigos e professores aprendendo a ler e escrever Na décima segunda sessão o grupo estava inicialmente agitado mais do que de costume Quase todas as crianças se cutucavam e manifestavam irritação e agressividade o grupo estava caótico e desorganizado Pensamos que tal conduta grupal comunicava alguma forma de projeção de sentimentos brutos não passíveis de serem mentalizados Mas o que seria Quando o grupo se acalmou e já estavam a postos sentados em círculo a narradora4 se deu conta de que não estava disposta a contar nenhuma das histórias que havia preparado Intuiu que os contos pre parados não acolheriam toda carga emocional experimentada por todos nós naqueles momentos anteriores Então perguntou se o grupo não desejaria contar ou inventar uma história para as terapeutas ouvirem Eles prontamente aceitaram e fizeram a seguinte produção coletiva falando ao mesmo tempo outros complementando e enriquecendo dados em um grande prazer lúdico Era uma vez um cachorro que vivia em uma floresta Lá viviam bichos grandes e pequenos bons e maus Um dia resolveram fazer uma festa de aniversário dos bichos pois o cachorrinho estava de aniversário Um bicho mau trouxe um presente para o aniversariante era uma bomba dentro de uma linda caixa Quando o cachorrinho abriu o presente a bomba estourou e ele ficou muito doente E ele morreu As pessoas achavam que ele havia morrido ficaram muito tristes mas não morreu nada Ele andava perdido pela floresta Quando encontrava alguém conhecido todos corriam fugiam dele apavorados pois se ele havia morrido achavam que ele era um fantasma Ele foi ficando cada dia mais triste e sozinho e se escondeu Até que um dia ele encontrou sem querer um amiguinho que não correu e nem se assustou com ele Apenas disse que era muito bom que ele não Crianças e adolescentes em psicoterapia 231 estivesse morto O cachorrinho ficou muito feliz e viveram felizes para sempre Eles então precisaram fazer uma grande festa para comemorar Tinham também que matar o bicho mau Então fizeram uma outra grande festa pois o mau com certeza mandaria outro presentebomba E aí quando fosse hora de abrir o pacote mandariam ele mesmo abrir Então assim foi feito Durante a festa o bicho mau levou outro presente e a bicharada obrigou o mau a abrir o pacote A bomba estourou na cara dele matan doo e todos comemoraram na festa Esse exemplo nos mostra o tipo de ansiedades e fantasias que pre cisavam ser representadas e também nos indicou que as crianças conheciam emocionalmente os objetivos das sessões Demonstraram que é possível contar de outro jeito seus sofrimentos Dentro dos limites do trabalho realizado algumas das crianças estavam recontando suas próprias histórias e se inscrevendo na história de seus pais de suas famílias e do ambiente em que vivem As crianças apresentavam segredos sobre maus tratos violência e abusos em suas famílias Tais assuntos continuaram sem serem verbalizados de forma explícita mas deslocada e simbolicamente estavam sendo tratados e elaborados de forma metafórica com os próprios recursos disponíveis de seu ego e condições desenvolvimentais do momento O setting acolheu as loucuras as brigas as maldades e as perseguições nas situações em que o grupo ficou explosivo e atuaram suas tensões e ansieda des Tiveram a experiência de que não se destruíam entre si e nem às tera peutas que continuaram disponíveis e pensando com eles sobre o que acon tecia no grupo A firmeza e a disponibilidade do setting mostrouse tecni camente indispensável naqueles momentos de desorganização grupal Esse é o papel do enquadre suportar conter e aguentar as ansiedades que são trazidas pelo grupo Assim os empurrões e as brigas puderam ser entendidos como uma forma de projeção patológica do grupo que depois foi canalizada para a linguagem metafórica da explosão do cãozinho e sua morte O revivêlo a vingança frente ao malvado e a sua sobrevivência abriu perspectivas reparadoras O grupo se organizou ao seu próprio modo e nos indicou como essas crianças encontraram um espaço para narrar imaginar e criar algo que não era passível de ser falado e nomeado as ansiedades persecutórias os traumas vividos os temores de morte abandono e rechaço Na fluida atmosfera grupal as crianças descobriam novas dimensões simbólicas e observaram os impactos que fantasias hostis exerciam cada um e sobre o todo do grupo Tal como em um laboratório fizeram novas modalidades de experimentações novas formas de sentir pensar se comportar e relacionar com o outro 232 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Fase 3 elaboração e despedida das terapeutas décima terceira a décima oitava sessão A data do término prevista foi comunicada ao grupo as crianças menores mostraram nos dedos as seis sessões que faltavam Falaram de pessoas que entraram e saíram na turma da escola e de pessoas que saíam e retornavam em suas famílias assim como se separariam das terapeutas brevemente Na décima terceira sessão uma semana após a confecção da história do cachorrinho as crianças estavam muito desorganizadas As meninas sempre mais calmas agrediramse fisicamente e a agitação era grande Não é possível controlar ou prever todas as reações do grupo mas ao se observar que está se instalando um clima de descarga direta da agres são o papel do terapeuta é de transformar em palavras as emoções que passam pelo grupo Após isso retomar as combinações oferecendo os limites necessários ao prosseguimento do processo psicoterápico proporciona ao grupo a retomada do ambiente proprício para o início da sessão O conto escolhido para esse dia narrava a história de uma princesa que tinha medo de escuro de dormir sozinha e de perder suas riquezas O grupo mostrou interesse mas ainda estava muito agitado e inquieto especialmente na hora da dramatização Compreendemos que tais comportamentos estavam ligados às ansiedades paranoides e depressivas suscitadas pela possibilidade de separação com o término da oficina dos contos O grupo demonstrou um empobrecimento do processo simbólico alcançado e na etapa anterior à nossa separação foi necessário dar limites firmes e rever o contrato e o pacto inicial Havia um movimento transfe rencial ligado às situações de frustrações e de perdas que essas crianças viviam em suas famílias5 Parece que geralmente a agressão não era contida e canalizada nas suas famílias e as crianças descarregavam nas sessões suas vivências de forma muito direta e pouco simbolizada Havia alternância de movimentos progressivos e regressivos no grupo Aos poucos conseguiram se reorganizar e se dirigiram à mesa para os desenhos Um dos meninos sugeriu cantar atirei o pau no gato Ao final outro menino propôs cantar uma versão em que gato é amigo e não precisa ganhar pauladas e todos cantam essa versão Essa atividade que nasceu do grupo de forma espontânea foi reorganizadora para as crianças Os limites dados pelas terapeutas foram necessários e estruturantes nos diversos momentos de transbordamento pulsional por parte de algumas crianças Demarcar o que é possível ou não fazer no grupo de forma firme e clara foi construtivo pois inibiu a descarga na ação e favoreceu o pensar Crianças e adolescentes em psicoterapia 233 antes do agir O grupo reagiu positivamente e fez um movimento de autorregulação das suas ansiedades e da agressividade podendo canali zála através de meios simbólicos como foi a escolha das duas versões da canção por eles escolhida Quanto mais as crianças simbolizassem menos recorreriam aos actings comunicacionais mas precisavam ainda de mais recursos para representarem seus conflitos que foram recrudescidos com percepção da data do término de nosso trabalho Nas três sessões finais as manifestações na conduta diminuíram bastante O grupo foi elaborando histórias com conteúdos bem agressivos mas com algumas tentativas mais consistentes de reparação Por exemplo na décima quinta sessão em vez de ouvirem a história preparada pela terapeutanarradora quase todos pediram para ir ao banheiro então por iniciativa do próprio grupo eles se organizaram em uma fila e foram ao banheiro Precisavam evacuar algo urinaansiedades concretamente mas recorreram aos mecanismos obsessivos a fila e buscavam alguma forma de autorregulação No retorno propuseram que eles nos contariam a história de Peter Pan Um dos meninos menores e mais agitados pediu para narrar o conto mas era interrompido por novos detalhes acrescentados pelo grupo Enfatizaram o quanto seria bom não crescer somente desejar coisas boas e não perder nada nunca Um dos meninos lembrou aos colegas que o relógio fazia tictac mas não sabiam onde ele estava sabiam no entanto que ele vinha junto com o crocodilo O crocodilo havia comido a perna do Capitão Gancho mesmo sendo ele um adulto brabo e forte O capitão Gancho temia o jacaré que carregava dentro de si o relógio tempo Assim as crianças entenderam que a lei também servia para todos e que os adultos também sofrem castrações tendo que se curvar frente ao tempo irreversível e às normas e à lei Nas sessões em que eles narraram histórias o grupo buscou uma au toorganização e encontrou um espaço para imaginar e criar baseado em experiências de vida que antes não eram passíveis de serem nomeadas Nesses momentos em vez de interpretarmos os conteúdos escolhemos fazer for mulações verbais dos afetos ligados às narrativas deixando que cada criança realizasse os entendimentos e elaborações possíveis naqueles momentos As mudanças e o crescimento psíquico são gradativos e não podem ser apressados Foi importante aguardar a ocasião adequada para realizar as inter pretações respeitandose o ritmo e o momento do grupo para que pudes sem extrair suas próprias compreensões acerca de suas fantasias e ações Na penúltima sessão foi contada a história de O dragão de sete cabe ças um menino foi expulso de casa pelo pai que não tinha condições de 234 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols criálo Encontrou um pai adotivo na floresta que lhe ensinou a ser caçador lhe deu carinho e ensinou coisas da vida O menino cresceu e quis conhecer o mundo para ganhar dinheiro e mais tarde poder cuidar de seu pai adotivo na sua velhice retribuindo o cuidado O pai lhe disse que pode ria ir mas que as razões para sair de casa seriam conhecer o mundo enfrentar novos perigos e ser curioso pois ele o pai sabia cuidar de si Daí seguemse as aventuras insucessos e sucessos do personagem O grupo ouviu atentamente identificandose com o personagem Es tavam muito mais calmos e centrados Aperceberamse rapidamente que o conto tratava de perdas separação e lutos mas também dos ganhos com o crescimento e a independência Quiseram dramatizar imediata mente e nos chamou atenção que rapidamente se organizaram na dis tribuição dos papéis entre eles fazendo o teatro de forma muito bonita Quando foram à mesa e receberam suas pastas e papéis pediram para fazer dobraduras nova forma de expressão simbólica que partiu deles próprios surpreendendonos O menino franzino que narrou Peter Pan pediu para fazer o avião mas não conseguia sozinho e tivemos que aju dálo Outras crianças faziam barcos e chapéus Desenharam uma carinha sorridente nos chapéus e os pintaram de giz de cera Alguns fizeram questão de escrever o nome enfatizando que sabiam escrevêlo bem Colocaram nas suas cabeças alegres com a atividade Fizeram alguns aviões de papel A cena de aviões voando pela sala nos pareceu um atividade um tanto maníaca talvez uma tentativa de lidar com o luto pela proximidade da separação e o término do grupo terapêutico Novamente falamos do tér mino de nosso trabalho com eles e o grupo trouxe o tema das perdas e dos ganhos no ano seguinte alguns também irão embora pois frequen tarão a 1a série mas os pequenos ainda ficarão ali Os maiores iriam para a 1a série e teriam que se transferir para outra escola muito maior Verbalizaram sentimentos de saudades de todos mas também sua satisfação com as mudanças que viriam Pareceunos que os movimentos progressivos do grupo estavam se fir mando pela elaboração dos sentimentos paranoides e depois dos depressivos com uma autorregulação e evolução que nos surpreendeu Ao narrarem para as terapeutas histórias feitas por eles próprios e a do Peter Pan as crianças mostraram uma identificação com a capacidade narrativa dos adultos além de terem conseguido um espaço mental e lúdico para reorganizar sua ansie dade de separação frente ao término da psicoterapia Cada criança desenvolveu sentimentos de confiança em si e nos vínculos com os membros do grupo à medida que aumentavam seus meios de Crianças e adolescentes em psicoterapia 235 autoexpressão Processos de identificação esclarecimentos confrontações discriminações alargaram suas habilidades interativas e de comunicação interna entre partes de seu self e comunicação interpessoal e expansão dos seus processos simbólicos Cada participante partindo tanto das vivências positivas quanto negativas de suas vidas encontrou um espaço mental para aprender obter insights e crescimento Agora era possível contar suas pró prias histórias com novos significados com a possibilidade de ter esperanças tal como os personagens com os quais se identificaram além de poder pensar sobre desfechos mais favoráveis para as diversas situações de vida CONSIDERAÇÕES FINAIS Trabalhar dentro da segurança oferecida pelo setting possibilitou que cada criança trouxesse um rico potencial para o grupo com seu modo original de ser e de se relacionar O grupo funcionou como um laboratório de vínculos interpessoais pois se em várias circunstâncias as crianças entraram em conflito em inúmeras outras se auxiliaram colaboraram e desenvolveram capacidade empática e de comunicação Na última sessão as duas meninas que mais se hostilizaram durante o transcurso da psico terapia sintetizaram as conquistas obtidas ao verbalizarem aos colegas e às terapeutas vamos ser amigas para sempre mesmo que a gente ainda possa brigar algum dia O processo narrativo de contos se constituiu em um valioso mediador para a psicoterapia grupal e um seguro intermediário entre o mundo interno de cada criança repleto de fantasias reconfortantes boas e também perse cutórias e agressivas e a realidade externa que as circundava por vezes tão hostil quanto suas fantasias mais agressivas A vivência psicoterápica facilitou processos de reconstrução e de apropriação da própria história individual daquelas crianças através da invenção de seus próprios contos grupais ou individuais nos quais manejaram emoções que os mobilizavam O enredo dos contos tradicionais tanto quanto dos modernos promoveu o surgimento de conteúdos emocionais inferidos tanto da trama quanto das ações dos personagens possibilitandolhes nomear sentimentos e ansiedades promovendo uso de mecanismo defensivos mais evoluídos e dessa forma aumentando a capacidade representativa e do pensar antes de agir A experiência de grupo tornouse terapêutica pela expansão da capacidade simbólica das crianças e pela elaboração de diversas situações traumáticas de suas vidas Algumas crianças conseguiram integrar aspectos cindidos de 236 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols seu self responsabilizandose por seus atos com menor uso dos mecanismos projetivos As trocas afetivas e interativas no grupo e a crescente capacidade de nomear e colocar em palavras algumas emoções e pensamentos foram conquistas importantes para o bemestar e a saúde mental daquelas crianças A poesia de Horácio Costa 2003 sintetiza essa ideia Já o menino sabe Que tudo que tem forma Tem nome E o que nome tem conforta Os objetivos inicialmente propostos foram alcançados Alguns con flitos das crianças foram parcialmente elaborados e isso tornou nossa experiência gratificante e produtiva Como psicoterapeutas sentimos pra zer no trabalho realizado ao nos apropriamos desse valioso recurso tera pêutico que poderá atingir e beneficiar maior número de crianças através da psicoterapia de grupo mediada por contos NOTAS 1 Adriane de Rose e Rosimara Pozada 2 Os pais autorizaram que seus filhos participassem das atividades através de consentimento livre e esclarecido dado à Direção da Escola 3 Todo o processo psicoterápico foi supervisionado pelo Dr Celso Gutfreind 4 Psicóloga Adriane de Rose 5 Muitas das famílias viviam situações de hostilidade entre familiares com alcoolismo e agressões físicas além de perdas por separação dos pais e ameaças de punição e castigos físicos REFERÊNCIAS BARCA GOMES P O método terapêutico de Scherazade São Paulo Iluminuras 2000 BARUGEL N SOLA B M La accion comunicativa Revista de Psicoanálisis APdeBA Buenos Aires v 23 n 2 2001 BETTELHEIM B A psicanálise dos contos de fadas Rio de Janeiro Paz e Terra 1979 BION W Aprendiendo de la experiencia Buenos Aires paidós 1980 BODSTEIN K ARRUDA S L S Fantasias sexuais e edípicas em préadolescentes atendidos em grupo de psicoterapia lúdica Arquivos Brasileiros de Psicologia v 58 n 1 p 5874 jun 2006 Crianças e adolescentes em psicoterapia 237 BOLLAS C A Sombra do objeto Rio de Janeiro Imago 1992 COSTA H O menino e o travesseiro São Paulo Geração 2003 CORSO D CORSO M Fadas no divã psicanálise nas histórias infantis Porto Alegre Artmed 2006 FERNANDES B S O desenho como recurso auxiliar em psicoterapia de grupo com crianças Vínculo v 3 n 3 p 4655 dez 2006 Psicoterapia de grupo o que é o grupo infantil e o que promove Revista Brasileira de Psicoterapia v 7 n23 p 217226 maiodez 2005 GUTFREIND C O terapeuta e o lobo São Paulo Casa do Psicólogo 2003 HISADA S A utilização de histórias no processo psicanalítico de pacientes adultos In CATAFESTA I Org D W Winnicott na Universidade de São Paulo São Paulo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo 1996 KLEIN M A personificação dos jogos na criança In Contribuições à psicanálise São Paulo Mestre Jou 1981 LEVISKY R B Grupos com Crianças In ZIMERMAN D E Como trabalhamos com grupos Porto Alegre Artmed 1997 PAVLOVSKY E Espacios y creatividad Buenos Aires Lugar 1980 RIOS R Monstro monstruoso da caverna cavernosa São Paulo Difusão Cultural do Livro 2004 SUNDERLAND M O valor terapêutico de contar histórias para crianças pelas crianças São Paulo Cultrix 2005 WINNICOTT D W O brincar e a realidade Rio de Janeiro Imago 1975 ZIMERMAN D E Como trabalhamos com grupos Porto Alegre Artmed 1997 Psicoterapia familiar nas situações de recasamento a criança o adolescente e seus pais Rosa Lúcia Severino 13 INTRODUÇÃO As grandes transformações na ciência na economia na cultura e na sociedade promoveram mudanças nas constituições familiares e na sua definição De conceitos mais restritos em que a família era composta por um casal heterossexual e seus filhos passamos para concepções nas quais a família pode se definir como um grupo de pessoas vivendo sob o mesmo teto com adultos envolvidos nos cuidados das crianças distribuição de tarefas e funções que se alternam O controle da natalidade a profissionalização e a independência financeira da mulher estão entre os fatores que incidiram no alto índice de separações e divórcios gerandose um número cada vez maior de no vos casamentos e reorganizações familiares A complexidade das relações que se estabelecem na construção e na estruturação dessas famílias podem ser observadas mas muito pouco pode se prever ou pretender generalizar e classificar considerandose sua inserção em diferentes realidades a individual que sofre mudanças a situação dos pais que embora separados precisam comunicarse e continuar se respon sabilizando pelos filhos e a do novo casal que começa sua vida com filhos As crianças eou adolescentes necessitam administrar o estabeleci mento de novos vínculos lidarem com conflitos de lealdade conviverem com novos irmãos e se submeterem a regras e aos padrões de comporta mentos diferentes dos que foram criados sendo por vezes expostos a situações econômicas desiguais entre duas casas Crianças e adolescentes em psicoterapia 239 Para a família extensa o desafio consiste em ter que incorporar uma nova família com netos que não são netos novos sobrinhos noras ou genros com quem irão interagir permanecendo muitas vezes ligações significativas com o cônjuge do primeiro matrimônio A qualidade do relacionamento e a intimidade entre os cônjuges bem como entre estes e os filhos são priorizadas demandando muita sensibilidade compreensão e tolerância de todos os envolvidos Como psicoterapeutas somos desafiados a construir um espaço tera pêutico de acolhimento e resolução de conflitos com indivíduos perten centes a organizações familiares tradicionais famílias com regras de fun cionamento já estabelecidas e com uma identidade que possibilita a seus integrantes o uso da mesma linguagem Somos igualmente solicitados a mergulhar em um mundo de novas possibilidades com famílias que necessitam construir outra identidade baseadas em experiências anteriores e diferentes com expectativas que muitas vezes não se cumprirão Famílias monoparentais com um único genitor envolvido na criação e educação dos filhos famílias com dois núcleos advindos da separação ou divórcio e casais homossexuais com filhos adotivos ou biológicos de um dos parceiros estão entre as novas configurações familiares Entre todas essas que requerem estudos aprofundados abordarei neste capítulo a família com recasamento utilizando minha experiência clínica e trabalhos de diferentes autores Esse modelo de organização fa miliar também pode se definir como combinada reconstituída reestrutu rada ampliada ou aberta DO INDIVÍDUO À FAMÍLIA Os indivíduos se caracterizam por pertencerem a múltiplos sistemas A família é o sistema menor dentro de um macrossistema social onde fluem trocas e interferências mútuas O comportamento e o desenvolvimento de um indivíduo influen ciam todos os demais membros da família e esta igualmente influencia seus integrantes As delimitações de espaços psicológicos entre pais e fi lhos de todos com outros familiares e com o meio externo constituem uma condição importante para o adequado funcionamento da família A família tem um ciclo desenvolvimental que acompanha o cresci mento dos filhos com a dinâmica própria de cada fase Quando os filhos 240 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols são pequenos as demandas são diferentes do período da adolescência da família com adultos jovens ou quando os filhos saíram de casa As expectativas frente ao casamento se modificam e quando expli citadas favorecem a renegociação de regras anteriormente estabelecidas O casamento na juventude é diferente do período da educação e criação dos filhos assim como do período do envelhecimento da paixão ao amor responsável e maior companheirismo e acolhimento recíproco Então podemos observar vários casamentos com o mesmo parceiro modificandose o contrato inicial de acordo com as novas demandas Muitas vezes a falta de flexibilidade no sistema dificulta a solução de crises chegando à dissolução do casamento As transformações vivenciadas pelo grupo se refletem no relaciona mento do casal que precisa se confrontar com as suas diferenças e ao mesmo tempo dar o suporte necessário para o crescimento físico e emo cional dos filhos Fatores do desenvolvimento individual dos cônjuges igualmente entram em cena e por vezes conflitos não resolvidos com as famílias de origem podem confundir e obscurecer reais necessidades e muitas vezes a ruptura no casamento tem nessas relações primordiais a verda deira motivação Para se compreenderem as relações de casamento é fundamental a pesquisa sobre como cada componente se constituiu como indivíduo den tro da sua família de origem qual experiência relacional vivenciou tanto como observador do casamento dos pais quanto na interação com cada um deles A transmissão transgeracional de modelos aprendidos a dele gação de papéis crenças e mitos familiares operam na dinâmica conjugal É na família de origem que os indivíduos experimentam a condição de se sentir fortemente vinculados para posteriormente se separar no caminho da diferenciação Nesse contexto vivencia relações afetivas intensas que in fluenciarão nas escolhas relacionais futuras Severino 1996 p 76 As famílias do recasamento compõem um grupo no qual um novo membro ou membros é incluído num sistema anteriormente composto por pais e filhos e que se desfez por separação ou divórcio ou pela morte de um dos cônjuges Pelo menos um dos envolvidos teve uma experiência matrimonial anterior e em um grande número ambos tiveram São famílias abertas nas quais as pessoas envolvidas podem desem penhar papéis nunca antes assumidos em uma rede de relações que as sume um caráter sentimental amigável genitorial e que variam em in tensidade e comprometimento Francescato e Locatelli1999 p509 Crianças e adolescentes em psicoterapia 241 CONTEXTOS QUE ANTECEDEM AO RECASAMENTO O período de crise no casamento que culmina em separação provo ca reações e emoções desconhecidas por todos os envolvidos nesse pro cesso Os adultos experimentam ansiedade e confusão comportamentos ambíguos dispendendo muita energia psíquica para sobreviverem à dor e aos sentimentos de culpa que acompanham a ruptura do casamento A perda do cônjuge associada à perda de vários vínculos gera sen timentos de insegurança abandono e traição em especial quando a sepa ração é abrupta e nãoconsensual Sluzki 1997 p 104 Somamse questões de ordem prática que envolvem condições eco nômicas o homem que na maioria dos casos é quem deixa a casa de parase com novos desafios como morar e se organizar sozinho além de ficar longe dos filhos Se o homem não se mantém muito atento ao seu relacionamento com os filhos corre o risco de se tornar um pai periférico Já a mulher muitas vezes precisando intensificar sua atividade profissional pode se afastar por maior tempo de casa sentindose tam bém sobrecarregada com o novo papel de cuidar sozinha da casa e dos filhos Se não pode se sustentar sozinha ela permanecerá dependente do exmarido o que não é bom nem sob o ponto de vista econômico nem emocional A perda do convívio com as famílias extensas de cada um muitas vezes a perda da rede de amigos coloca os adultos numa situação de iso lamento maior do que o desejado O retorno ao mundo social extrafamiliar o estabelecimento de novas amizades a vida sexual fora do casamento ou relação estável representam outras dificuldades advindas do divórcio No período inicial do divórcio os pais tencionados e deprimidos podem se voltar mais para si mesmos do que para os filhos dirigindo sua energia para a separação física e financeira se as crianças são pequenas além de vivenciarem a ausência do genitor que saiu de casa experimen tando fantasias ou temores de perder o que ficou Raiva preocupação tristeza solidão conflitos de lealdade e sentimentos de rejeição costu mam emergir nesse período Para os préadolescentes e adolescentes a raiva característica também da idade pode ser intensificada associan dose aos conflitos de lealdade luto e preocupações a respeito de sexo e casamento Ocorrem separações em que ou o pai ou a mãe fazem do filho um aliado contra o outro cônjuge misturandoos nas conflitivas pertinentes ao casal e sobrecarregando emocionalmente a criança ou o adolescente 242 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Acreditar que não perderam a família mas considerar que esta se transformou em dois núcleos a família do pai e a família da mãe pode trazer alento e esperança Ter assegurado o direito de conviver com aquele que não tem a cus tódia bem como a manutenção dos vínculos com seus familiares auxilia os filhos a enfrentarem a nova realidade bem como favorece a aceitação de um novo casamento Os avôs desempenham um papel muito importante pois além de constituírem um sistema de apoio proporcionando carinho e compreen são aos netos transmitem um sentido histórico e de continuidade da família Podem ainda atuar como mediadores com os pais nos casos onde há ausência de comunicação ou litígio Se os recursos econômicos forem suficientes a preservação da moradia dos filhos em especial se tratando de adolescentes favorecerá o convívio com o grupo de amigos e colegas de escola e ajudará na superação das dificuldades Não é o divórcio que prejudica os filhos mas as formas como os pais se separaram O litígio a perda de contato com um dos pais e privações econômicas advindas dessa situação são os fatores que trazem problemas e intensificam o sofrimento Em geral na dissolução do casamento os cônjuges mantêm o padrão comportamental e relacional que tinham previamente Assim um casal não se separa muito diferentemente do que conviveu Se houve consideração res peito mútuo e envolvimento no cuidado dos filhos poderão chegar a acordos que preservem uma relação positiva e a continuidade da união enquanto pais A observação clínica coincide com a literatura especializada enfati zando essas condições como fundamentais para o divórcio emocional Assim arranjos flexíveis serão viabilizados preservando a presença e par ticipação de ambos os genitores na vida dos filhos E quanto melhor ela borado estiver o divórcio para os adultos mais fácil será para os filhos conviverem com essa situação e elaborála A sociedade conjugal se desfaz mas a sociedade parental deverá permanecer até que os filhos se tornem adultos e independentes Os excônjuges podem desenvolver relações amistosas cooperando um com o outro e priorizando o bem estar dos filhos Em alguns casos ressentimentos e antagonismos antigos geram sentimentos de raiva e hos tilidade que interferem nas combinações sobre o cuidado com os filhos observandose menor flexibilidade no sistema Pode se observar a manu tenção do litígio conjugal que cria um clima de hostilidade não havendo Crianças e adolescentes em psicoterapia 243 nenhuma comunicação direta entre os excônjuges gerando famílias de finidas como monoparentais em que um único genitor se responsabiliza pela criação e educação dos filhos Ahrons citado por Kaslow 1987 Em pesquisa recente intitulada Ligações familiares pósdivórcio implicações a longo prazo para as crianças Ahrons 2007 descreve o estudo longitudinal com famílias binucleares em que foram entrevista dos 173 indivíduos 20 anos depois do divórcio de seus pais ocorrido no período da infância Os achados mostraram que o subsistema parental continua impac tando a família binuclear 20 anos após a ruptura do casamento exercen do forte influência na qualidade dos relacionamentos dentro do sistema familiar As crianças que relataram que seus pais foram cooperativos também relataram melhores relacionamentos com seus pais avós pa drastos ou madrastas e irmãos Durante o período de 20 anos a maioria das crianças vivenciou o recasamento de um ou ambos os pais e 13 dessa amostra relembrou o recasamento como mais estressante que o divórcio Para aqueles que experienciaram o recasamento de ambos os pais 23 relatou que o recasamento do pai foi mais estressante do que o da mãe Quando a relação das crianças com o pai se deteriorou depois do divórcio o relacionamento com seus avós paternos madrasta e irmãos emprestados era distante negativo ou inexistente Para que os relaciona mentos permaneçam estáveis se desenvolvam ou piorem dependerá de um complexo entrelaçamento de diversos fatores Ahrons 2007 p 54 De acordo ainda com pesquisas norteamericanas 75 a 80 dos divorciados voltam a se casar o que leva a supor que as pessoas seguem buscando o casamento como uma instituição válida para satisfazer seus anseios e necessidades Kaslow 1987 estudiosa sobre o assunto aponta como motivações para um novo casamento 1 Motivos similares para o primeiro casamento amor e desejo de compartilhar a vida com alguém no sentido de desenvolver e alcançar novas realizações é provavelmente a razão mais co mum dada pelas pessoas 2 Oferecer uma vida em família para os filhos do primeiro casa mento as tarefas de constituírem genitor único podem ser opres sivas e a possibilidade de dividilas com um segundo parceiro que auxilie é muito atrativo 3 Alguns indivíduos divorciados não toleram a condição de esta rem sozinhos se sentindo sem reconhecimento procuram outro 244 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols casamento para se livrar da sensação desconfortável de desequi líbrio 4 Outros casam de novo para serem apoiados financeiramente FORMANDO UMA NOVA FAMÍLIA Quando um homem e uma mulher se unem num segundo casamen to trazendo consigo os filhos de relacionamentos anteriores consti tuem uma estrutura familiar complexa na qual conflitos e tensões pró prios da convivência se intensificam e as reações se tornam visíveis É como se nas famílias recasadas o processo de se unir e pertencer tivessem lugar sob um poderoso microscópio focado diretamente na essência dos relacionamentos interpessoais Visher 1994 p 329 De modo geral considerase aconselhável um período de tempo entre o divórcio e o recasamento dois a três anos para um bom ajuste familiar E de acordo com Kaslow 1987 um novo casamento tem maiores chances de ser bemsucedido se os cônjuges realizaram alguma terapia pósdivórcio para explorarem a dinâmica de seus relacionamentos Quando e como introduzir um novo parceiro na vida das crianças é um ponto chave e delicado Se ocorrer cedo demais acarretará sentimen tos de deslealdade em relação ao outro genitor ou temor de prejudicar sua relação com o mesmo Conviver com o romance e a relação altamente sexualizada do início de um relacionamento pode ser mais um fator de estresse para os filhos E se o namoro não segue adiante há também o risco de significar uma perda dolorosa próxima às perdas vivenciadas na separação dos pais deixando as crianças inseguras e desconfiadas frente a outros rela cionamentos Para mães de crianças pequenas em especial para as que têm muitas ocupações profissionais administrar o tempo disponível para estar com os filhos e um namorado costuma ser complicado e por vezes acaba ocorrendo uma exposição precoce de um ou mais envolvimentos Há situações em que os pais excluem completamente os filhos do novo relacionamento muitas vezes por se sentirem culpados pela separa ção ou por temor das consequências se o exparceiro tomar conhecimen to Manter segredo gera tensões enfraquecendo vínculos de confiança em especial se tratando de adolescentes que raramente deixam de per ceber que está acontecendo alguma coisa que não está sendo falada Crianças e adolescentes em psicoterapia 245 Devese ter sempre presente que a nova constituição familiar ocorre sobre uma situação de luto pela perda da primeira família a elaboração das perdas dependerá de muitos fatores entre os quais o tempo de du ração do matrimônio prévio a maneira como o grupo anterior se rela cionava a idade das crianças e o tipo de divórcio vivenciado Muitos sentimentos podem não ser identificados sobretudo nas crianças por se constituírem processos inconscientes Além disso fre quentemente é difícil para os casais das famílias com recasamento per mitir que as crianças expressem seus sentimentos positivos e negativos em relação aos quatro adultos envolvidos em suas vidas intensifican dose assim os conflitos Uma reação de hostilidade explosão de raiva ou agitação pode estar encobrindo uma profunda tristeza Quando a criança é muito pequena no momento da separação de seus pais o luto pode ficar adiado Alcançando um estágio cognitivo posterior coincidindo ou não com a formação da nova família situações externas que ressignifiquem sentimentos de perda susci tarão reações por vezes incompreensíveis aos olhos dos adultos Quando ambos os pais recasam os filhos devem interagir com dois novos sistemas familiares precisam conviver com pessoas com estilo de vida diferente que trouxeram além das experiências com suas famílias de origem vivências com uniões ou matrimônios anteriores Se a rede familiar inclui muitas pessoas pode ser mais difícil para as crianças acharem o seu lugar no sistema Por outro lado a criança tem seu universo relacional ampliado ao conviver com outras figuras de avós e tios ter que se ajustar a diferentes estilos de vida contribui para tornálos indivíduos flexíveis Os sistemas se tornam ainda mais complexos se ambos trazem filhos dos casamentos anteriores reunindose como grupo de coirmãos A hie rarquia em relação às idades quem é caçula ou o mais velho não se mantém podem ainda ocorrer alianças ou exclusão por questões de gê nero Relações com novos irmãos devem ser desenvolvidas rivalidades fraternas podem ficar acirradas em especial quando os filhos são peque nos Quanto melhor o relacionamento entre os nãoirmãos melhor a in tegração de toda a família Quando são adolescentes a supervisão e comunicação aberta são fundamentais o tabu do incesto não opera ime diatamente podendo ocorrer o enamoramento entre os nãoirmãos Os adultos envolvidos precisam aprender a lidar com necessidades muito diferentes e isso demanda atenção e cuidados especiais Um grande desafio para as famílias com recasamento consiste na necessidade de se tornarem um grupo sem ter tido anteriormente uma 246 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols história através da qual pudessem se organizar gradualmente Dentro desse grupo o novo par deve construir sua identidade de casal desenvol ver alianças mútuas e solidificar sua relação A aceitação por parte das famílias extensas auxilia no processo de construção da nova família favorecendo um sentido de pertinência fami liar O apoio vind dos amigos e da rede social aumenta a adaptação e o desenvolvimento das forças das famílias reconstituídas Minha experiência clínica exemplificada no caso descrito coincide com autores que apontam alguns preditores de dificuldades na organi zação das famílias com recasamento Carter e McGoldrick 1995 1 Uma grande discrepância entre os ciclos de vida das famílias 2 Negação de perda anterior eou um intervalo curto entre os casa mentos 3 Incapacidade de resolver questões de relacionamento intenso na primeira família por exemplo se existirem sentimentos de raiva intensa ou amargura em relação ao divórcio ou se ainda há ações legais pendentes 4 Falta de consciência das dificuldades emocionais do recasamento para os filhos 5 Incapacidade de abandonar o ideal da primeira família intacta e passar para um novo modelo conceitual de família 6 Esforços para estabelecer fronteiras rígidas em torno da nova associação familiar e pressão para haver lealdade e coesão primá rias na nova família 7 Exclusão dos pais ou avós biológicos combatendo sua influên cia 8 Negação das diferenças e dificuldades agir como se essa fosse apenas uma família comum 9 Mudança na custódia dos filhos perto do recasamento Tradicionais papéis de gênero no qual é esperado que as mulheres cuidem dos filhos devem ser revisados uma vez que será importante o envolvimento direto do pai com os filhos quando estes estiveram com ele e a nova parceira Crianças dos recasamentos não estão procurando novos pais Assim a expectativa de que a nova esposa substitua a mãe real irá gerar disfun cionalidades no sistema podendo acarretar sintomas nos filhos Em con sequência poderão ter medo de perder a mãe ficar confusos e divididos entre duas cuidadoras ou se comportar com hostilidade Crianças e adolescentes em psicoterapia 247 Além disso frequentemente as crianças resistem a um dos lares A relação de proximidade e intimidade com o genitor que tem a custódia interfere nos esforços positivos dos padrastos ou madrastas impedindo que estes sejam reconhecidos Cooperar ou gostar deles pode ser sentido como deslealdade Quanto mais os padrastos ou as madrastas se envolvam nos cuidados e disciplina mais as crianças poderão sentir que o território do pai ou mãe real está sendo invadido Entretanto se a aproximação é gradual amorosa e flexível quando for necessária a colocação de limites as crianças demonstram melhor adaptação e aceitação Nesses casos é funda mental que os adultos se apoiem no estabelecimento das regras A nova esposa sensibilizada com a tristeza dos enteados pode ten tar amálos mais do que ama seus filhos Em consequência estabelece uma relação onde não pode reconhecer em si mesma sentimentos de raiva quando ocorrem comportamentos destrutivos ou de superexigência Carter e Peters 1996 p 293 Considerase igualmente problemático quando uma mulher vê no novo companheiro um substituto para um pai ausente situação vivida na relação anterior ou porque no meio dos conflitos pósseparação o litígio conjugal colocou o pai para fora da relação Da real impossibilidade de substituição nesses contextos advêm sentimentos de frustração e por vezes revolta provocando desajustes na relação do casal A expectativa de que o homem assuma a posição de único provedor da família gera estresse e impasses uma vez que suas responsabilidades financeiras com os filhos do primeiro casamento deverão continuar Pesquisas indicam que a posição de um padrasto é mais fácil do que a da madrasta Talvez porque se espera menos dos homens por padrões culturalmente aprendidos fazendo com que eles não se sintam sobrecar regados ou desafiados como as mulheres Uma situação peculiar acontece quando uma criança sente ciúmes do padrasto com quem tem que dividir a atenção e o amor da mãe Schwartz 1995 p164 Um dos piores problemas que os parceiros dos recasamentos devem enfrentar é serem colocados no papel de malvados A complexidade evi denciada nessas relações inspirou uma nova versão para o conto de fadas Cinderela apenas sob o ponto de vista da madrasta Eu estava me sentindo tão sozinha que fui facilmente arrastada pelo pai de Cinderela casando com ele quando nós apenas nos conhecía mos Uma vez casados eu percebi que ele ainda estava obcecado pela esposa falecida 248 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Ele adorava cegamente Cinderela e era tão indulgente com ela que Cinderela jamais imaginou que poderia se esperar ajuda dela em casa Ele gastava muito com presentes para ela e para as minhas filhas não dava nada as quais ficavam compreensivelmente enciumadas Elas também se ressentiam porque deviam lavar e cozinhar enquanto Cin derela se recusava a fazêlo Sempre que eu tentava por ordem na pobre menina órfã ela tinha um acesso de mau humor e corria para seu pai que sempre ficava do seu lado contra mim E quando o pobre homem repentinamente morreu eu não consegui controlar Cinderela Ela ficava fora muitas horas A próxima coisa que fiquei sabendo foi que ela fugiu para se casar com o príncipe que era uma fonte de tormento no castelo e eles contaram que ele a havia salvado de uma escravidão em sua própria casa O texto descrevendo um sentido contrário do famoso conto de fadas aponta para a evidência de que todo o conflito familiar pode ter outra versão A expectativa sobre as madrastas ou padrastos de amarem auto maticamente os filhos do novo cônjuge mais do que amam a seus próprios é um dos fatores que impactam mais do que ajudam nas novas relações e pode criar o mito da madrasta malvada As madrastas podem ser perce bidas como adversárias à medida que os filhos crescem em especial as filhas mulheres que se tornam as maiores protetoras de suas mães e suas guias mais leais Carter e Peters 1996 p 293294 CONTEXTOS TERAPÊUTICOS PARA FAMÍLIAS COM RECASAMENTOS Entre os motivos principais de consulta atualmente encontramos crianças que estão vivenciando ou já vivenciaram a separação dos pais ou estão fazendo parte dos novos arranjos familiares O relato a seguir foi escrito pela mãe de uma família com recasa mento Ilustra as muitas dificuldades que essas famílias enfrentam e a abordagem terapêutica procurou acompanhar a complexidade da cons trução da nova constelação familiar A figura a seguir apresenta esquematicamente parte do genograma familiar no qual se evidencia a triangulação de Renato o paciente identi ficado com a mãe extrema proximidade e com a madrasta relação de conflito Crianças e adolescentes em psicoterapia 249 LUTANDO PARA SEREM FELIZES Conhecemosnos no período da faculdade sendo apenas amigos Ele casou teve filhos e quando eu estava noiva reencontramosnos ca sualmente A vida rolou e dois anos depois fico sabendo que ele se separou Novo reencontro dessa vez combinamos sair juntos Acaba mos namorando e como era tudo ótimo passei a dormir no aparta mento dele as roupas foram indo aos poucos Entre a saída de Luciano de sua casa e o nosso namoro foram apenas seis meses Sua filha Joana tinha 7 anos e o filho Renato 3 anos Eu inicialmente achei o máximo namorar um cara já com filhos Divertíamonos como casal e também com os filhos Fomos relativamente felizes no início com as crianças com quem fazíamos viagens e passeios que fizeram com que convivessem com meus familiares Paralelamente enfrentávamos o in conformismo de Marina sua exesposa em relação ao que estava rolan do ela jogava pesado com as crianças não as autorizando a gosta rem desta intrusa o que gerava conflitos de lealdade Eu era uma mu lher solteira de vida boa formada e com independência econômica Por opção morava ainda com os pais e gastava minha grana com o que eu gostava passeios hobbys congressos amizades etc Marina que encabeçou a separação estava arrependida fazendo tu do para Luciano voltar Ele se mostrava culpado muito culpado pois era o mentor intelectual do evento e sofria pelas crianças Sua mãe não apoiava nossa união e se unia a Marina Luciano cedia às soli citações de Marina que de início o requisitava constantemente Nun ca me assustou a ideia de me envolver com meus enteados fazíamos muitas coisas boas juntos e houve épocas em que eu queria até ado tálos de mãe viva 250 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Hoje sei que cometi alguns erros Entrei nessa história sem que tives sem feito a mínima separação emocional Depois pensei ter entrado numa história que já tinha todos os personagens Eu sobrava Outro erro quanto mais eu era generosa amorosa e cheia de recursos mais minha presença salientava as limitações da mãe deles Isso ficou notório quando o tempo passou e a adolescência os impulsionou a re cuperar a mãe Entre os conflitos de lealdade e carências eles me agrediam para poder voltar para ela Não pensavam que poderiam circular lá e cá Após quatro anos de casados engravidei de nosso primeiro filho Lucas Foi uma época problemática para Marina isso representava a divisão do patrimônio com filhos que não eram seus ansiedade que era repas sada para Joana e Renato No ano seguinte aos 10 meses de Lucas Joana veio morar conosco segui da por Renato um mês depois Luciano me consultou sobre Joana poder ficar e respondi que jamais me oporia mas que não imaginava o que poderia ocorrer De mulher solteira independente passei a ser mãe de três filhos En frentamos novas dificuldades as crianças preferiam permanecer conos co mesmo quando fosse o período combinado para ficarem com a mãe Com o nenê pequeno não conseguia dar a mesma atenção aos maiores mas ainda estávamos levando Dois anos depois nasceu nosso segundo filho Ricardo e mudamos to dos para uma casa nova já que tínhamos uma pretensa grande famí lia Sempre achei que seria viável mas aos poucos comecei a mudar de ideia quando não me sentia dona de minha própria casa Luciano não conseguia me proteger das agressões da exesposa Não sei por que não seguimos a indicação de terapia Talvez as coisas tenham se acalmado quando ficou definida a troca de guarda para Luciano Acreditávamos que poderíamos ser felizes com essa grande família Mas foram tempos difíceis Luciano se demorava para retornar para casa pois não sabia como lidar com a demanda dos filhos A vida de casal ficou interferida e o romantismo sem lugar Meus enteados ficaram conosco durante cinco anos quando então em clima de muitas brigas eles decidiram retornar para a casa da mãe Hoje sei que a melhor madrasta não se compara com a unha da mãe O que importava para eles era ter garantido o amor de Marina Procuramos atendimento quando Renato estava com 8 anos e apresen tava problemas de desatenção e agitação na escola Luiza Crianças e adolescentes em psicoterapia 251 O processo de avaliação psicológica incluiu a nova família sessões com Luciano e Luiza sessões com Joana e Renato e deles com a mãe Foram identificados em Renato sentimentos de tristeza ansiedade e ambivalência frente a permanecer ou deixar a casa materna e ficar próxi mo da irmã que já morava com o pai Marina vinculada aos filhos sofria por terem saído de casa apre sentava depressão o que operava como motivo para as crianças evitarem estar com ela agravando a situação Essas questões foram relacionadas com o comportamento inquieto de Renato e sua falta de atenção nas atividades escolares coincidindo com o pedido de alteração da guarda dos filhos Indicouse psicoterapia individual para Renato com enfoque familiar com a inclusão dos familia res no atendimento sempre que necessário Esse caso clínico exemplifica padrões relacionais possíveis de serem explorados e compreendidos em famílias com recasamento levandose em consideração os triângulos formados dentro dessas famílias Embasandose na teoria de Bowen 1991 pensar triângulos é ob servar as maneiras previsíveis nas quais as pessoas se relacionam umas com as outras num campo emocional Os movimentos dos triângulos po dem ser tão imperceptíveis que dificilmente se pode observálos em situa ções emocionais tranquilas mas na presença de ansiedade e tensões sua frequência e intensidade aumentam p 71 McGoldrick Gerson e Schellenberger 1999 partindo dessa teoria sugerem triangulações previsíveis em famílias com recasamento triangu lação criança pai e madrasta onde a hostilidade entre as crianças e a nova esposa gera conflito no pai que fica dividido entre a esposa e os filhos as crianças estando aliadas à mãe e em conflito com a madrasta entre outras Ocupar uma posição menos central na vida das crianças e respeitar a ligação dessas com o pai e a mãe deixa a criança mais livre evitando a triangulação Triangulações também podem ocorrer com a mãe biológica seus filhos e o padrasto A cultura ocidental influencia em expectativas maiores em relação à maternidade do que à paternidade tornando mais difícil a experiência das madrastas McGoldrick Gerson e Schellemberger 1999 Para um planejamento terapêutico devem ser considerados os espa ços de tempo entre o término do primeiro casamento e a constituição da nova estrutura familiar a idade dos filhos e o tipo de comunicação man tida pelos excônjuges entre tantos outros 252 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Quando uma criança ou adolescente são o motivo de consulta os pais da primeira família devem ser incluídos em especial no processo diagnóstico Se a comunicação é positiva as sessões se realizam em con junto caso contrário pai e mãe são vistos separadamente Se o problema apresentado envolve diretamente o padrasto ou a ma drasta estes deverão participar desde o início e durante o tratamento Crianças cujos pais se separaram quando ainda muito pequenas po dem reviver sentimentos de solidão experimentando sentimentos de abandono ou rechaço que podem se desencadear por situação advinda do ambiente familiar escolar ou de outros eventos fora da família No processo de avaliação e terapia devese enfocar a criança ou ado lescente oferecendolhes um espaço terapêutico individual que possibi lite a expressão a compreensão e a elaboração desses conflitos Parale lamente realizamse sessões com o grupo familiar nas quais se evita a discussão de questões conjugais direcionandose o foco para alternativas de solução conjuntas frente as dificuldades do paciente identificado O relacionamento satisfatório do casal é fundamental não somente para sua felicidade mas porque dessa relação depende a estabilidade de todos os demais O casal deve ser auxiliado a estabelecer fronteiras flexí veis que favoreçam um espaço a dois o que requer um planejamento consciente e objetivo Nessa situação de transição e crise familiar é importante realizar intervenções terapêuticas em nível estrutural relacional e individual que favoreçam a comunicação dos próprios sentimentos a capacidade de escutar os outros e o desenvolvimento de competências relacionais e afetivas Francescato e Locatelli 1999 p 528 O trabalho psicoterapêutico em nível individual deve enfocar ques tões relativas à autoestima desenvolvendo sentimentos de confiança nos outros e a capacidade de expressar pensamentos e emoções que levem a uma interação mais positiva Com a família e o casal são estimulados comportamentos de colabo ração e respeito mútuos de aceitação das diferenças e o restabelecimento de ligações e comunicação que estejam interrompidas As funções parentais devem ser apoiadas tanto no sentido financeiro quanto no sentido educacional e emotivo tendose presente que a disso lução foi da sociedade conjugal a parental deve se manter até a entrada dos filhos na idade adulta Esse aspecto educacional é importante uma vez que auxilia os cuidadores a descobrirem maneiras de levarem adiante o projeto da Crianças e adolescentes em psicoterapia 253 nova família sentindose igualmente validados enquanto pessoas com petentes Orientar os adultos envolvidos na construção da nova família sobre a importância da relação dual entre pais e filhos desenvolvendo ativida des conjuntas por exemplo contribui para reassegurar a proximidade nas relações minimizando sentimentos de exclusão experimentados por padrastos ou madrastas igualmente a relação a dois entre estes e os enteados pode favorecer o estreitamento dos laços afetivos Outra questão a ser trabalhada é auxiliálos a reconhecer que a relação entre os pais e os filhos do primeiro casamento vem de muito mais tempo do que com o novo parceiro e sendo assim o vínculo é mais forte O envolvimento e o compromisso do pai ou mãe com as crianças é completamente diferente do que com os novos parceiros Considerando que os hábitos e formas de convívio devem se cons truir numa nova ordem a criação de rituais familiares auxilia na defini ção da nova família A comemoração de eventos ou datas festivas conforme estavam acostumados os pais da primeira família com seus filhos pode ser res guardada mas é importante que o novo grupo escolha como fazer a sua celebração em particular elegendo datas e momentos para que isso se viabilize Promover encontros reunindo avós ou tios de ambos os lados aju dará as famílias dos recasamentos a se sentirem conectadas e unidas Pensar nas competências dos indivíduos em vez de se acentuar as dificuldades é um caminho para auxiliálos a recuperarem a autoconfian ça e olharem para o futuro Ahrons 2007 aponta seis características descritivas da força fami liar 1 expressão de apreciar uns aos outros e sabedoria para dispender tempo juntos 2 participação de atividades comuns 3 bom padrão de comunicação 4 confiança 5 orientação religiosa e 6 habilidade para lidar com o estresse de maneira positiva Essas mesmas habilidades poderão resultar ou não em um novo casamento podendo se desenvolver na organização de uma nova família Para sintetizar muito do que foi dito até o momento incluo alguns fatores indicativos de uma organização com sucesso e satisfação confor me Francescato 1999 1Elaboração da perda compreendida seja como perda do cônjuge ou do genitor que saiu mas também como perda da ideia da família de origem com suas regras suas lembranças suas tradições etc 254 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols 2A definição de expectativas realísticas esse é um fator decisivo e signi fica que os membros da nova família têm a noção de pertencer a um tipo de família diferente da tradicional em que a os adultos e as crianças se encontram e se unem enquanto estão em posição diferente do seu ciclo de vida individual familiar e de casal b os adultos e as crianças respeitam os excônjuges c as ligações genitorfilho são pre cedentes à formação do casal d existe um genitor biológico em outra casa ou na memória e as crianças se movimentam entre duas famí lias f os padrastos ou madrastas não têm relações legais com as crianças g existe a consciência de que é necessário certo tempo 2 a 4 anos para o processo de construção de uma família reconstituída 3A solidificação do novo casal na família reconstituída com suces so o casal é muito unido e conseguiu superar sobretudo na fase inicial o problema de administrar o próprio espaço e o próprio tempo e os limites entre o espaço do casal e aquele da família 4 A individualização dos rituais familiares a nova família necessita viver seus rituais e tradições a seu próprio modo para a construção das ligações afetivas 5O desenvolvimento da relação entre genitores e filhos do atual companheiro quando foi possível estabelecer inicialmente uma relação amigável deixando a função educativa exclusivamente para os pais e alcançando com o tempo um acordo com os mesmos sobre essa distinção de papéis estabelecemse relações satisfató rias entre os filhos e os padrastosmadrastas As palavraschaves são flexibilidade e clareza 6Colaboração entre as famílias os adultos não são hostis ou compe titivos mas colaboram nos interesses dos filhos Francescato e Locatelli 1990 A terapia acontece na cabeça dos terapeutas É imperativo para a saúde das famílias com recasamento que em nossas cabeças façamos justiça para a flexibilidade para a criatividade e para o esforço que os adultos madrastas e padrastos fazem pelas suas famílias e para a resiliência das crianças em se ajustar a todas essas mudanças Visher 1994 p 329 CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora muitas dificuldades tenham sido discutidas nesse capítulo o trabalho com famílias ao longo de muitos anos me ensinou a reconhecer Crianças e adolescentes em psicoterapia 255 seus inúmeros recursos e saídas para a solução dos problemas enfrenta dos ao longo de seu desenvolvimento Em especial as famílias dos recasamentos desenvolvem a tolerância a aceitação das diferenças e a criatividade muito provavelmente imbuí das do desejo de acertarem a nova escolha cuidando para não repetirem os erros cometidos no passado Desafiados a inventarem a nova família mostramse muito ativos e participativos procurando se adaptar às demandas da nova situação Co mo todas as famílias frente a situações de maior estresse ou sofrimen to podem temporariamente se paralisar cabendo a nós terapeutas ajudálos a recuperarem as próprias competências Favorecer o restabelecimento de relações quando houveram ruptu ras familiares e estimular a ampliação de redes de convívio social estão entre os objetivos da psicoterapia familiar REFERÊNCIAS ABELSOHN D A good enough separation some characteristic operations and tasks Family Process v 31 p 6183 1992 AHRONS C R Family ties after divorce longterm implications for children Family Process v 46 n 1 p 5365 2007 BOWEN M Hacia la diferenciación de si mismo en la familia de origen In BOWEN M Ed De la familia al individuo la diferenciación del si mismo en el sistema familiar Buenos Aires Paidós 1991 p 6486 CARTER B Famílias resultantes de segundas nupcias la creación de un nuevo paradigma In WALTERS M CARTER B SILVERSTEIN O Ed La red invisible Buenos Aires Paidós 1991 p 364400 CARTER B MCGOLDRICK M Ed As mudanças no ciclo de vida familiar 2 ed Porto Alegre Artmed 1995 CARTER B PETERS J K Love honor and negotiate New York Pocket Books 1996 FRANCESCATO D CAGNETTI L GREGO L A Rapporti interpersonali allinterno delle famiglie ricostituite Terapia Familiare v 51 p 1930 1996 FRANCESCATO D LOCATELLI M Luci e ombre delle famiglie aperte In ANDOLFI M Ed La crisi della coppia Milano Raffaello Cortina 1999 p 509539 KASLOW FW SCHWARTZ L L The dynamics of divorce New York Brunner Mazel 1987 MCGOLDRICK M GERSON R SCHELLENBERGER S Family relational patterns and triangles In MCGOLDRICK M GERSON R SCHELLENBERGER S Ed Genograms assessment and intervention New York Norton Company 1999 p 101114 256 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols SCHWARTZ P Love between equals how peer marriage really works New York The Free Press 1995 SEVERINO R L Casais construindo seus caminhos a terapia de casal e a família de origem In PRADO L C Ed Famílias e terapeutas construindo caminhos Porto Alegre Artmed 1996 p 7196 SLUZKI C Casando e descasando vicissitudes da rede social durante o divórcio In SLUZKI C Ed A rede social na prática sistêmica São Paulo Casa do Psicólogo 1997 p 99116 VISHER E B Lessons from remarriage families The American Journal of Family Therapy v 22 n 4 p 327336 1994 WALSH F Coppie sane e coppie disfunzionali quale differenza riesaminando il quid pro quo coniugale In ANDOLFI M Ed La crisi della coppia Milano Raffaello Cortina 1999 p 5572 Psicoterapia de crianças e adolescentes com tendência antissocial Soraya Maria Pandolfi Koch Hack 14 É muito comum na clínica de crianças e adolescentes a procura por atendimento diante da sintomatologia na área da conduta Mentir rou bar agredir destruir desafiar são manifestações que mobilizam os adul tos cuidadores sejam os pais os professores os pediatras bem como outros que também convivem diretamente ou seja os colegas de aula os primos os irmãos etc Tais sintomas são encontrados muitas vezes em crianças com satis fatório nível de integração maturação criatividade com uma estrutu ração e saúde psíquica que surpreende a quem se propõe a atendêlos Por outro lado também constatamos a existência de crianças e adolescentes com sintomas na conduta congelados psiquicamente alguns inclusive nem chegam aos nossos consultórios sendo encontrados nas ruas Toma dos por uma intensa destrutividade acabam como citam Vilhena e Maia 2002 encontrando seus limites nas portas de uma delegacia Portanto as manifestações de problemas na área da conduta em maior ou menor grau aparecem em personalidades com diversas estrutu ras e funcionamento tais como neurótica borderline psicótica anestru turas psicopatia como também em crianças portadoras de síndromes or gânicas etc Mas como explicar essa diversidade de situações clínicas em diferentes estruturações psíquicas com manifestações semelhantes mes mo de intensidades variadas O que essas crianças têm em comum O que clamam Tomando a teoria da tendência antissocial desenvolvida pelo psica nalista D Winnicott proponho entender e a princípio responder essa 258 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols questão Esse autor postulou que a criança à medida que vai crescendo passa por várias fases que vão consolidando seu amadurecimento pes soal a dependência absoluta relativa e o rumo à independência necessi tando uma adaptação do ambiente familiar às suas necessidades Se houver uma ruptura ou perda dos cuidados parentais a criança passa a viver um estado de deprivação1 Uma criança tornase deprivada quan do é destituída de algum aspecto essencial de sua vida em família Winnicott 2000 p 409 O complexo de deprivação começa através de manifestações em seu comportamento denominadas de tendência antisso cial Tais manifestações incluem o roubo a mentira a agressividade sin tomas alimentares bem como uma desordem generalizada E é sob esse vértice teórico enfocando o estado de deprivação de sencadeando a tendência antissocial que esse capítulo se propõe a dis correr Logicamente sem menosprezar outras teorias e definições a respei to dos problemas de conduta que também serão citadas nessa reflexão Sem a pretensão de aprofundar é preciso referir que outros autores da psicanálise tradicional fizeram sua contribuição a respeito do assunto tais como Aichhorn Friedlander e Klein Mas como coloca Loparic 2006 foi Winnicott que introduziu um novo paradigma à psicanálise quando provou que os comportamentos antissociais eram causados pela falha ambiental e não propriamente provenientes de uma culpa originada pela conflitiva edípica Articulando os conceitos de Winnicott alguns autores contemporâ neos vêm estudando o entendimento na etiologia dos indicadores de problemas comportamentais ressaltando a importância que esse tema tem para a clínica psicanalítica contemporânea Bogomoletz 2007 Bor din e Offord 2000 Outeiral e Felippe 2007 Sá 2001 Vilhena e Maia 2002 As terminologias utilizadas na atualidade para referir esses sinto mas variam desde transtorno de conduta distúrbio de conduta proble mas de externalização que não necessariamente tem o mesmo sentido da tendência antissocial tal como foi desenvolvida por Winnicott No entan to todos os autores apontam significativamente que a etiologia está rela cionada com a fragilidade dos relacionamentos entre pais e filhos e com a interação familiar Winnicott 2005 desenvolveu essa teoria observando crianças e adolescentes que passaram por muitas situações de rupturas familiares movidas pela situação da 2a Guerra Mundial Nos dias atuais observamos outras guerras percebidas pelos afastamentos transições familiares inseguranças também geradas pelo cotidiano violento e competitivo das Crianças e adolescentes em psicoterapia 259 grandes cidades que levam muitas vezes os pais a olharem menos os seus filhos Compartilho com Vilhena e Maia 2002 a ideia da falta de legitimidade das funções paterna e materna na contemporaneidade Assistimos ao adolescimento dos pais e do adultescimento das crianças Alexandre 2006 p 15 Com isso faltam padrões adultos para os adolescentes se identificarem Nesse contexto os pais correm o risco de serem negligentes no ato de criar seus filhos Acrescentaria que a falta de continência e de limites por parte dos pais também deixam os filhos mais vulneráveis à violência psíquica oriunda de fontes externas à família como a televisão internet drogas etc É possível identificar segundo Winnicott 2000 1982 graduações diferentes para o comportamento agressivo e destrutivo a as manifes tações naturais de agressividade b as manifestações da própria tendên cia antissocial como sinal de esperança e como resultado do estado de deprivação que é o foco desse capítulo c o extremo do comportamento delinquente Desses três grupos são as crianças e adolescentes com indicadores de tendência antissocial é que certamente mais chegam aos consultórios Aqueles com manifestações naturais de agressividade são facilmente manejados pelo próprio meio e os delinquentes acabam sendo afastados institucionalizados Acrescentaria a possibilidade de existir um outro grupo que evolui da tendência antissocial à delinquência quando o pedido de socorro não é atendido a tempo Hack 2007 Enfim é preciso refletir sobre a complexidade do tema da tendência antissocial incluindo também nessa reflexão as possibilidades de interven ções e atendimentos psicoterápicos Um breve histórico dos conceitos se torna relevante nesse momento dos primórdios da psicanálise tradicional até Winnicott incluindo uma posterior leitura da tendência antissocial na pósmodernidade para depois refletirmos sobre as modalidades de trata mento propriamente dita o setting terapêutico e a técnica psicoterápica adaptados à contemporaneidade da clínica de orientação psicanalítica RECAPITULANDO A CONCEPÇÃO DA DELINQUÊNCIA A PARTIR DA PSICANÁLISE A psicanálise tradicional postulava basicamente que a vida é regida por forças e conflitos e sua principal tendência a ser superada no decorrer do desenvolvimento é a renúncia do princípio do prazer É com essa pers pectiva que muitos dos autores entendiam a delinquência Freud citado 260 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols por Garcia 2004 deparandose com pacientes que praticavam o que ele chamou de ações proibidas furtos fraudes e incêndios voluntários entendia a origem dessas provenientes do complexo de Édipo Para ele isso também acontecia com crianças que praticavam atos proibidos com o objetivo de serem punidas Os seguidores de Anna Freud Aichhorn e Friedlander acreditavam que o ambiente participa da etiologia da delinquência mas esse ambiente é entendido como um agente disciplinador Garcia 2004 Por isso para esses autores o tratamento da delinquência seguia uma linha pedagógica de intervenção Por outro lado para a corrente kleiniana os fatores etio lógicos da delinquência são intrapsíquicos e constituicionais Para Klein é a presença do superego e não a falta que acarreta os comportamentos antissociais no que difere dos freudianos Acreditava que só através da análise dos conteúdos das fantasias inconscientes recalcadas seria pos sível curar a delinquência Garcia 2004 p30 Bowlby 1982 foi um estudioso sobre as perdas e os vínculos rom pidos entre pais e filhos contribuindo com um outro enfoque Para ele Duas síndromes psiquiátricas e duas espécies de sintomas associadas são precedidas por uma elevada incidência de vínculos afetivos desfeitos As síndromes são a personalidade psicopática ou sociopática e a depressão Bowlby 1982 p63 Também sustentava a ideia de que a infância dos indivíduos com psicopatia foi severamente perturbada pela morte divórcio ou separação dos pais ou ainda por outros eventos que resultavam em rupturas de vínculos afetivos Segundo Sá 2001 Bowlby postulava que crianças com vivências de relações satisfatórias com sua mãe podem regredir atra vés de comportamento hostis antissociais e delinquentes Com essas colocações é possível perceber que Bowlby se aproxima de Winnicott na concepção da delinquência e do impacto das rupturas dos vínculos Porém desenvolveram teorias com peculiaridades diferen tes Para Bowlby segundo Garcia 2002 a mãe no início da vida de um bebê já é um objeto externo enquanto para Winnicott não é um objeto objetivo separado mas um objeto subjetivamente concebido Se a criança sofrer uma perda materna nesse estágio inicial que ele chama de dependência absoluta ela passaria por uma privação No entanto se sofrer a perda na fase posterior em que há uma diferenciação do self ela passaria a viver o estado de deprivação que como será descrito a seguir desencadeia a tendência antissocial Crianças e adolescentes em psicoterapia 261 O ESTADO DE DEPRIVAÇÃO E A TENDÊNCIA ANTISSOCIAL A TEORIA DE WINNICOTT Para entendermos as concepções de Winnicott a respeito da tendên cia antissocial é preciso primeiramente recapitular a teoria do amadu recimento pessoal elaborada pelo mesmo autor fundamentada em dois pressupostos o primeiro é de que todo o indivíduo humano possui uma tendência inata ao amadurecimento e à integração e o segundo é de que essa tendência só se realiza na presença de um ambiente suficientemente bom Garcia 2004 Ao mesmo tempo é preciso retomar também como o autor entendia a agressividade natural sem destrutividade Segundo Winnicott 1988 o indivíduo passa por três fases em relação ao processo de dependência dependência absoluta relativa e rumo à independência No início de sua vida o bebê se encontra na fase de dependência absoluta em relação à sua mãe A agressividade nessa fase é somente um movimento cabendo a própria mãe significar esse gesto espontâneo de seu filho Não há intencionalidade no gesto desse pequeno ser ou seja não existe bebê violento Winnicott 1982 À medida que ele vai crescendo e se desenvolvendo passa para a fase de dependência relativa É necessário que a mãe progressivamente vá se distanciando sem que isso signifique abandono para que a criança perceba que os dois são pessoas diferentes Com isso também possibilita o crescimento da interação doa filhoa com o pai Este por sua vez abre um outro caminho para a criança acrescentando elementos novos e valiosos A existência de uma mãe suficientemente boa está ligada à presença de um pai suficientemente bom Outeiral e Celeri 2002 p 774 Nessa fase surge a ilusão e com ela o objeto transicional tão amado e dilacerado ao mesmo tempo Segundo Newman 2003 se a criança não for bem atendida a partir da fase de dependência relativa pode começar a manifestar a tendência antissocial Ou seja se o afastamento da mãe for maior do que a pequena criança possa suportar ou se o pai não puder cumprir a sua função acon tece a sensação de raiva e de abandono Surge a deprivação levando no futuro à tendência antissocial Assim o gesto que poderia ser criativo passa a ser reativo Vilhena e Maia 2002 Também a relação com o objeto transicional se modifica Pode ser destruído ou perde o sentido Cessa a sua capacidade de usar o símbolo da união Garcia 2004 Portanto uma criança se torna deprivada quando é destituída de algum aspecto essencial de sua vida em família Winnicott 19562000 262 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols p 409 Algum grau do que poderíamos chamar de complexo de depri vação começa a se manifestar através de um comportamento antissocial que aparece em casa ou em um contexto mais amplo Tais manifestações incluem o roubo e a mentira a agressividade a incontinência e a desor dem generalizada Além disso Winnicott inclui outro sintoma comum a sofreguidão juntamente com o seu correlato a inibição do apetite Winnicott 2000 p 412 Há duas vertentes para a tendência antissocial Nas palavras do autor Podese dizer que há dois tipos de tendência antissocial Em um a en fermidade se apresenta em forma de furto ou chamando atenção especial através do ato de urinar na cama falta de asseio e outras delinquên cias menores que de fato dão a mãe trabalho e preocupações extras No outro há destrutividade provocando atitudes firmes Winnicott 1984 p 230 No primeiro tipo houve uma perda do cuidado materno O segundo relacionase com a interação com pai que falha no estabelecimento de limites necessários para o desenvolvimento do autocontrole A tendência antissocial não constitui uma categoria diagnóstica em si Ela pode aparecer em crianças normais ou neuróticas depressivas ou psicóticas Para Winnicott 2005 a tendência antissocial é um sinal de esperança um sinal de SOS em que a criança sente o ambiente em débito com ela reclamando por direitos perdidos podendo nos casos iniciais ser entendida e curada e tratada dentro do lar havendo então pos sibilidade de reverter a situação Vilhena e Maia 2002 destacam que na delinquência em que o reclame por direitos perdidos é mais signifi cativo com nível maior de desespero e solidão o limite é buscado fora de casa às vezes até numa delegacia Dessa forma a motilidade e o gesto espontâneo se transformaram em agressividade com intencionalidade destrutividade e por fim violência por falta de acolhimento Quando nunca se encontram os limites e os cuidados necessários há um conge lamento e o resultado pode ser a psicopatia Vilhena e Maia 2002 O delinquente apresenta defesas constituídas com ganhos secundários que dificultam a criança entrar em contato com seu desilusionamento inicial Winnicott 1999 Portanto existe uma graduação entre a agressividade natural a tendência antissocial e a delinquência E esta é uma discriminação impor tante de se fazer na clínica Da mesma forma é preciso também antes de Crianças e adolescentes em psicoterapia 263 se fazer qualquer tipo de indicação ou intervenção psicoterapêutica re fletir a respeito da seguinte questão no caso que estamos avaliando po demos de fato constatar a deprivação ou seria uma privação DISCRIMINANDO CONCEITOS DEPRIVAÇÃO X PRIVAÇÃO Winnicott 2000 apontanos claramente três aspectos essenciais que caracterizam a deprivação que de alguma forma já foram citados acima 1 a criança no início recebeu cuidados suficientemente bons que foram retirados de maneira abrupta 2 essa perda não foi corrigida a tempo da esperança ser mantida e esse fato levou à vivência de uma aflição intolerável 3 a criança já estava amadurecida o suficiente para se dar conta de que foi o ambiente que falhou Mas a privação A privação acontece na fase da dependência absoluta quando o bebê ainda não tem noção do ambiente Essa falha poderia levar à psicose Segundo Garcia 2004 ao passo que na deprivação a criança sente uma perda fazendo posteriormente uma dissociação na privação o que a criança vive é o aniquilamento e o mecanismo é a cisão Acrescentaria o comentário de Safra 2002 p 830 a respeito das defesas Nos comportamentos antisociais há uma organização defensiva que busca a preservação da esperança e do humano Na organização psicopática há subjacente uma organização psicótica na qual não há memória ou traços da experiência humana Por essas colocações é possível pensar que o delinquente pode ter sofrido uma privação ao passo que a deprivação seria o estado primordial da tendência antissocial No entanto a delinquência também pode ser encarada como uma evolução de uma tendência antissocial não tratada fruto da decepção e desesperança Hack 2007 Até o momento foquei o artigo na teoria winnicottiana trazen do também contribuições de autores que buscam diretamente aprofun dar essa perspectiva e suas contribuições ao pensamento psicanalíti co Mas é preciso considerar também o que outros pesquisadores con temporâneos que estudam especificamente os problemas comporta mentais têm a nos dizer É possível integrar a teoria formulada por D Winnicott em 1956 a essas novas concepções ou não Serão de fato novas concepções 264 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols DISCRIMINANDO DIAGNÓSTICOS E TERMINOLOGIAS A RELEITURA DA TENDÊNCIA ANTISSOCIAL NA PÓSMODERNIDADE Certos comportamentos antissociais podem ser observados no cur so do desenvolvimento normal de crianças e adolescentes transitoria mente Por isso segundo Bordin e Offord 2000 é necessário dife renciar normalidade de psicopatologia Esses autores fazem uma leitura psicanalítica na etiologia dos problemas de conduta citando Winnicott e a privação afetiva a busca do objeto perdido e a desesperança Tam bém propõem uma diferenciação importante entre transtorno de con duta e distúrbio de conduta o primeiro é considerado um transtorno psiquiátrico em que a criança ou adolescente não apresenta sofrimento psíquico ou constrangimento com as próprias atitudes e não se importa em ferir ou desrespeitar as pessoas no geral o segundo é considerado uma forma mais abrangente e inespecífica para nomear problemas de saúde mental que causam incômodo no ambiente seja familiar ou esco lar Comparando tais definições com as de Winnicott faço uma relação entre transtorno de conduta e delinquência de um lado e distúrbio de conduta e tendência antissocial de outro O termo antissocial não é só referido na literatura apenas pelo viés psicanalítico Seguindo uma perspectiva desenvolvimentista Pacheco e colaboradores 2005 refere que o termo antissocial é muito utilizado para fazer referência às características comportamentais de diversos transtornos mentais o vocábulo tem sido empregado para designar o caráter agressivo e desafiador da conduta de indivíduos que mesmo não tendo o diagnóstico de um transtorno específico apresentam problemas comportamentais que causam prejuízos Sugerem utilizar a expressão problemas de externalizaçãopara crianças menores para evitar o es tigma implícito no termo antissocial p 56 Também fazem referência à importância da interação familiar na etiologia e no tratamento É possível constatar que muitos autores contemporâneos que vêm estudando o comportamento agressivo e delinquente se utilizam cada vez mais da teoria da tendência antissocial e delinquência formulada por Winnicott Na busca da etiologia dos problemas comportamentais alguns autores ressaltam a ideia da perda afetiva da ruptura da esperança e às vezes a ausência de esperança em resgatar os cuidados maternos e pa ternos Alexandre 2006 Bordin e Offord 2000 Garcia 2004 Outeiral e Felippe 2007 Sá 2001 Vilhena e Maia 2002 Crianças e adolescentes em psicoterapia 265 Safra 2002 também faz sua leitura sobre esse tema Para ele existi riam três psicodinamismos subjacentes ao comportamento antissocial Há o grupo que reinvindica a situação perdida Há um segundo grupo que procura a experiência constitutiva na rua e não em casa com um código de relacio namento e pertencimento ao grupo da rua p 830 Ainda há um terceiro grupo que é invadido por uma lucidez medonha congelando sua espe rança buscam destruir o que lhes parece mais hipócrita no campo social Vilhena e Maia 2002 descrevem detalhadamente a importância da falha ambiental que instaura a tendência antissocial Essa é um sinal de SOS esperança ao meio que se encontra em débito com a criança Tais autoras ampliam a reflexão ressaltando os problemas encontrados na atualidade principalmente no que diz respeito ao exercício dos cuidados paternos Para elas os filhos da contemporaneidade são retrato de pais com medo de serem pais retrato do lugar que resta vazio a ser preen chido por algo ou alguém que está fora da família seja virtualmente pelos heróis da televisão ou pelos colegas virtuais na internet p50 Acreditam que o comportamento antissocial denuncia um palco de riva lidades já que também a diferença nítida entre criança e o adulto não estaria sendo mais tão marcada Com essa recapitulação é possível entender por que Outeiral 1991 já considerava a tendência antissocial um dos temas básicos nas contribuições de Winnicott p129 Ou seja tal teoria continua sendo pertinente suficientemente aproveitada na contemporaneidade da etio logia dos problemas de conduta COMO TRATAR A TENDÊNCIA ANTISSOCIAL a As consultas terapêuticas Para Winnicott 2000 o tratamento da tendência antissocial deve ser feito pelo fornecimento de um ambiente cuidador que poderá ser redescoberto e testado pela criança dandolhe a oportunidade de ex perimentar novamente os impulsos do id É a estabilidade desse novo ambiente que realiza a terapia Os pais são frequentemente bemsuce didos em curar seus filhos dessas carências secundárias e isso fornece a chave para esperança que o clínico pode ter quanto a conseguir a cura da tendência antissocial Winnicott 1984 p 230 Com essas colocações é possível entender porque Winnicott utili zava o método de consultas terapêuticas para o tratamento da tendência 266 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols antissocial Acreditava que trabalhando com os pais descobrindo o signi ficado dos sintomas e principalmente ajudandoos a restituir os cuida dos perdidos estaria contribuindo efetivamente para a melhora desses pacientes Porém ressaltava que esse procedimento só seria eficaz se a história fosse fornecida principalmente pela própria criança em seu contato individual com ela que é de fato quem sabe sobre os fatos signi ficativos essenciais Portanto o único valor em sentido terapêutico está na descoberta desses problemas na consulta terapêutica com a criança Winnicott 1984 p 230 Acredito que o procedimento de consultas terapêuticas pode ser muito útil e eficiente quando os sintomas e o trauma original são recentes Como diz Garcia 2004 a grande descoberta teórica de Winnicott essencial para fins de prevenção foi de que a tendência antissocial pode ser mais facil mente tratada quanto mais perto estiver do seu ponto de origem Como exemplo desse tipo de intervenção cito um caso clínico refe rente a um menino neste relato será identificado como Felipe Com 4 anos recebo Felipe para avaliação pelo fato de ter regredido no controle esfincteriano adquirido aos 2 anos Encaminhado pela pedia tra a mãe procurou ajuda três semanas depois dos sintomas se mani festarem Felipe estava sujando as calças além de estar muito irri tado O casal parental havia se separado também há dois anos A mãe referia estar ainda deprimida com a separação e impedia o acesso do pai ao filho O pai por sua vez não lutava por essa aproximação mo rando inclusive fora do estado Na sessão de jogo Felipe reproduziu no brinquedo sua situação fami liar Criou com os bonecos da família uma história em que o pai viajava muito a mãe trabalhava e ficava pouco tempo em casa e brigava com o filho Este era descrito como um menino que gostava de brincar mas estava triste A capacidade de simbolização de Felipe era muito desen volvida fator importantíssimo no seu prognóstico Os sintomas de Felipe desapareceram a partir da segunda sessão Fo ram necessárias várias entrevistas com a mãe para que ela entendesse o significado dos sintomas o protesto do menino o sentimento de desam paro Com as entrevistas a mãe passou a entender mais as demandas do filho e percebeu que ela precisava de atendimento para resolver a separação e entender a necessidade que o filho também tinha do pai Não houve indicação de psicoterapia para Felipe pois rapidamente o menino retomou seu desenvolvimento a partir do momento que seus Crianças e adolescentes em psicoterapia 267 protestos foram entendidos na sessão terapêutica e provavelmente também pelas mudanças que se sucederam posteriormente na quali dade do vínculo com seus pais Naturalmente a evolução favorável desse caso ocorreu também pela estruturação mais saudável e pela capacidade de simbolização nem sem pre presente nos pacientes com tendência antissocial Além disso o tem po dos sintomas e a idade do menino foram fatores que contribuíram para a evolução favorável Então quanto mais precoce for a intervenção e o trauma mais facilmente é possível reverter o sintoma Nesse sentido muitos profissionais da área da saúde mental podem ser muito bemsucedidos quando ao entender psicanaliticamente o cla mor dos sintomas intervém no ambiente com intuito de simplesmente restituir à criança o que lhe foi roubado Essa intervenção dirigida aos pais poderia ser utilizada com mais frequência na área da psicologia esco lar Isso porque no cenário da escola muitas vezes é possível detectar tais manifestações mais precocemente o que normalmente não acontece com a mesma frequência no âmbito da psicologia clínica nesta os pacientes já chegam em sua grande maioria com os sintomas mais cristalizados ne cessitando de outro tipo de aporte e intervenção b A psicoterapia psicanaliticamente orientada Em circunstâncias nas quais o ambiente se mostra com dificuldade de restituir os cuidados imediatamente quando a criança já possui outras dificuldades anteriores ou quando há risco de uma cristalização dos sin tomas a curto ou longo prazo a psicoterapia pode ser necessária Antes que os ganhos secundários se estabeleçam de maneira a diminuir o sofri mento do indivíduo que foi deprivado e com isso impeçam a possibilidade dele aceitar ajuda é possível indicar também um tratamento de psicote rapia de orientação psicanalítica da tendência antissocial O objetivo segundo Winnicott 2000 tal como nas consultas tera pêuticas seria o de se chegar ao trauma original da deprivação e redes cobrir no setting a experiência que foi perdida Segundo Garcia 2004 Winnicott postulava que em alguns casos nesse tipo de distúrbio inter pretações de nada adiantavam o necessário era o fornecimento real de confiabilidade e segurança e o reconhecimento do próprio trauma Tal ne cessidade de reconhecimento é também salientada por Safra 2002 Re fletindo sobre esse aspecto lembrome do atendimento de uma menina cujo atendimento relato brevemente a seguir 268 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Mariana uma préadolescente de 10 anos inicia atendimento por apre sentar irritação choro frequente brigas com amigas além de descumprir regras e combinações estabelecidas pela mãe A menina relata de uma forma racional a separação dos pais o afastamento e o recasamento do pai que resultou no nascimento de um novo irmão Embora negasse seus sentimentos de perda com a vivência desses fatos Mariana pintava seus desenhos usando a cor preta de forma predominante Além disso referiase aos materiais lúdicos oferecidos no setting terapêutico como insuficientes À medida que fui trabalhando o significado simbólico dessa insuficiência a vivência do abandono paterno Mariana foi se deprimindo reconhe cendo a sua dor Necessitou intensificar a frequência da psicoterapia por um determinado período pois entendemos que a frequência das sessões também estava insuficiente para conter suas ansiedades préadolescen tes potencializadas pela vivência do afastamento do pai Acredito a exemplo do caso de Mariana que a psicoterapia de orien tação psicanalítica pode ser bemsucedida nos casos típicos de tendência antissocial nas situações em que no setting terapêutico não há apenas o reconhecimento do trauma de uma forma intelectual Ou seja não basta saber o que e quando foi deprivado O paciente precisa sentir a depriva ção e reproduzila na sessão Isso pode acontecer no jogo simbólico e na própria experimentação desse estado na relação terapêutica É preciso considerar que nem todos os pacientes com esse quadro conseguem usar a via da simbolização para expressar seus conflitos Assim acabam manifestando suas angústias diretamente através de seus atos an tissociais na própria sessão Mais do que nunca o psicoterapeuta passa a ser o alvo transferencial direto e por isso deve estar preparado para su portar o impacto da tendência antissocial no setting psicoterápico A partir disso é preciso destacar a importância de compreendermos o ato antisso cial de um paciente na sessão como uma esperança e não como resistência Tomando as palavras de Khan2 o que inicialmente pode parecer uma reação terapêutica negativa pode ser entendida como uma comunicação que diz respeito à perda Essa compreensão é extremamente necessária ao psicoterapeuta que tomado e paralizado pelos inevitáveis sentimentos contratransferenciais que esse tipo de paciente desperta pode vir a se sentir atacado e rechaçado por esse paciente correndo o risco de repetir a deprivação A empobrecida capacidade de simbolização e a reprodução da tendência antissocial na sessão ficam exemplificadas no atendimento do menino que chamo aqui de Tiago relatado a seguir Crianças e adolescentes em psicoterapia 269 Tiago 8 anos apresentava várias atitudes transgressoras na escola quando foi encaminhado para tratamento batia nos colegas quando contrariado discutia com professores se recusava a fazer as tarefas escolares Tiago morava com seus próprios pais Tinha uma mãe preo cupada e conectada com o filho O pai por sua vez encontravase em um momento difícil de sua vida profissional e pouco se envolvia com a rotina do filho e quando isso acontecia deixava o filho criando as próprias regras Tiago sofria de deprivação paterna mas não era cons ciente disso Nas sessões só queria usar jogos burlando regras Também tentava de uma forma onipotente e arrogante transgredir as regras do setting como por exemplo discutir os horários de início e término da sessão Certamente entendia esse comportamento como uma comuni cação de algo que faltava na vida dele Tiago não simbolizava mas atuava a sua necessidade demonstrando que necessitava de alguém que exercesse o papel de função paterna Os limites encontrados no espaço terapêutico por si só inevitavel mente reproduzem o estado de deprivação acionando sentimentos de perda Porém a confiabilidade que o psicoterapeuta desperta a continui dade de seus cuidados e a compreensão compartilhada ajudam a restituir a esperança quase perdida Até chegar nesse ponto os pacientes com esses sintomas irão testar a confiabilidade do setting e do próprio psicoterapeuta por muitas vezes Foi o que aconteceu com Tiago que aos poucos foi en tendendo do que sentia falta integrando os sentimentos que estavam ne gados e cindidos Assim o agir foi substituído pelo pensar e o sentir É também preciso considerar durante a psicoterapia a necessidade de se manter uma aliança terapêutica com os pais possibilitandolhes momentos de reflexão para que busquem o reconhecimento dos sintomas como uma comunicação que precisa ser acolhida e transformada Como exemplo cito o caso de Lauro que realizou psicoterapia comigo em dois momentos de sua vida Aos 7 anos recebo Lauro para atendimento por apresentar condutas destrutivas atirar pedras em outras crianças e agredilas fisicamente Além disso apresentava desleixo com seus materiais e pertences e por vezes furtava pequenos objetos Os sintomas iniciaram após o faleci mento trágico de um de seus irmãos Os pais se deprimiram com a perda mas não conseguiam conversar sobre isso Lauro sentiu diretamente o afastamento dos pais que provocaram a descontinuidade dos cuidados 270 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Quando os pais procuraram o atendimento estavam exaustos e irritados com Lauro Foi muito difícil para os pais entenderem o significado dos sintomas associados ao estado de deprivação materna e paterna pois isso os levava a se apropriarem dos sentimentos de perda em relação ao outro que estava morto Este caso evoluiu muito bem pois era um meni no que conseguia simbolizar e conversar sobre seus sentimentos Mas essa evolução foi possível também com os pais que acabaram aceitando e aderindo ao tratamento de uma forma colaborativa A aceitação foi facilitada pelo fato de se ter trabalhado com os pais mais intensamente no início do atendimento possibilitando posteriormente a construção de uma aliança terapêutica consistente com eles Lauro retomou o atendimento em meados da adolescência por insis tência dos pais O filho estava apresentando sintomas como rebeldia desleixo consigo mesmo e baixo rendimento escolar O adolescente resis tiu o engajamento ao processo psicoterapêutico pois significava reto mar o estado de dependência relativa que tinha estabelecido comigo na infância Entendemos que era necessário o atendimento psicoterápico nesse momento de sua vida em meio às vulnerabilidades suscitadas pela crise da adolescência e pelas manifestações de tendência antisso cial que denunciavam uma reedição do estado de deprivação c Tratamento residencial Winnicott postulava que o lar da criança é o lugar mais adequado para o seu crescimento e desenvolvimento No entanto observou que em alguns casos era necessário um tratamento residencial ou seja o afasta mento da criança do meio familiar e o acolhimento por parte de alguma instituição habilitada para isso Esta deve fornecer uma estrutura rígida e estável porém justa e confiável de controle externo de modo a conter a confusão Garcia 2004 p87 Logicamente essa modalidade de tratamento tem sido nos nossos dias o caminho natural da delin quência Como citado nessa situação clínica há um congelamento afeti vo com ganhos secundários já instituídos Tais pacientes provém na maioria das vezes de lares caóticos sem condições de prover os cuidados mínimos necessários à sobrevivência física e emocional Infelizmente mui tos acabam nem passando pelo tratamento residencial mas se encaminhan do diretamente para a prisão como dizem Vilhena e Maia 2002 Das três possibilidades de intervenção terapêutica certamente é a psicoterapia que mais indicamos nos casos que nos procuram na clínica de orientação psicanalítica de crianças e adolescentes Isso porque quan Crianças e adolescentes em psicoterapia 271 do nos procuram os sintomas já estão com risco de se cristalizarem e aí apenas a consulta terapêutica não é suficiente Por outro lado como já citei no início dessa exposição os quadros diagnosticados como delin quentes nem sempre chegam diretamente nas clínicas Embora muitos delinquentes tenham vivenciado mais o estado de privação pela hipótese de não terem recebido amor e cuidados necessários no início de suas vidas compartilho da ideia de que muitos delinquentes apresentavam inicialmente algum tipo de tendência antissocial na esperança de resga tar algum tipo de cuidado perdido ou seja acredito que muitos tenham vivenciado o estado de deprivação Porém havendo perda total da espe rança instalase o congelamento afetivo QUANDO O SOS CHEGA A TEMPO Somos muito felizes como psicoterapeutas quando conseguimos so correr a tempo nossos pacientes antes que os sintomas se cristalizem antes que eles mesmos percam a esperança A tendência antissocial é o retrato da busca do tesouro perdido O tesouro se refere aos relacionamentos com as figuras parentais que foram em algum momento rompidos ou fragilizados No cenário da pósmodernidade continuamos a reiterar a impor tância dos vínculos familiares dos cuidados materno e paterno da mesma forma como Winnicott 1999 sugeriu no século passado As rupturas des continuidades e falhas significativas desses cuidados geram o que ele defi niu como o estado de deprivação desencadeando por sua vez a ten dência antissocial na criança e no adolescente No entanto hoje podemos observar a tendência antissocial com base na deprivação provavelmente por razões diferentes daquelas descritas e definidas por Winnicott na metade do século passado quando observou as consequências das rupturas familiares sobre os filhos por ocasião da 2a Guerra Mundial Hoje vivemos outras guerras As rupturas e as descontinuidades dos cuidados parentais podem acontecer em diferentes situações e estrutura ções familiares com pais casados viúvos divorciados etc Vemos fa mílias passando por diversas transições Hack 2008 Encontramos pais que não assumem sua função de autoridade perante os filhos não se discriminam ausentandose do seu papel parental e com isso provocan do um vazio um desamparo Também percebemos um culto à indepen dência precoce e um excesso de atividades e estímulos de um lado e a falta de um aparador de outro Com isso muitas crianças e adolescentes 272 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols tentam buscar fora de casa esse amparo através das manifestações de tendência antissocial De outra forma poderiam cair na passividade e no anonimato É nesse aspecto que é possível ver saúde nesse pedido de socorro principalmente quando detectada no início do quadro Na clínica psicoterápica é preciso atentar para essas manifestações e realizar a intervenção mais adequada seja uma consulta terapêutica uma intervenção psicoterápica ou um encaminhamento para um serviço de saúde mental nos casos mais gravemente destrutivos com um comportamento delinquente Acredito que nas situações em que a psicoterapia de orientação psicanalítica se torna necessária é preciso considerar a importância do setting terapêutico incluindo o terapeuta e o holding oferecido por este A continuidade dos cuidados terapêuticos pode vir a restituir o paciente do estado de deprivação e ajudálo a tomar contato com seus próprios sen timentos encobertos por suas transgressões Com isso melhora a sua comu nicação com o ambiente original e originário de suas aflições Enfim é preci so ajudar o paciente a resgatar a esperança ouvir seu pranto e resgatar seu canto ou seja retomar o curso de seu desenvolvimento NOTAS 1 O termo deprivation usado por Winnicott 19561987 no texto original em inglês não tem equivalente no português Neste artigo seguindo a proposta do autor será utilizada a expressão deprivação para poder discriminar da privação A dife rença entre estes dois conceitos será explicitada no decorrer desta exposição 2 Masud Khan escreveu a introdução do livro Da Pediatria à Psicanálise de D Winnicott 2000 REFERÊNCIAS ALEXANDRE D P A importância do holding na organização afetivosocial de crianças que manifestam tendência antisocial Dissertação Mestrado Progra ma de PósGraduação em Psicologia Universidade Federal do Rio Grande do Norte Natal 2006 BOGOMOLETZ D Do desenvolvimento emocional primitivo à tendência antiso cial para uma teoria winnicottiana da delinqüência 2007 Disponível em http wwwdwwinnicottcomartigos23html Acesso em 14 abr 2008 BORDIN I A OFFORD D Transtorno de conduta e comportamento antisocial Revista Brasileira de Psiquiatria v 2 p 1215 2000 Crianças e adolescentes em psicoterapia 273 BOWLBY J Formação e rompimento dos laços afetivos São Paulo Martins Fontes 1982 GARCIA R M A A tendência antisocial em DWWinnicott Dissertação Mes trado em Psicologia Clínica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo São Paulo 2004 HACK S M P K A incrível trajetória do personagem Bochecha do desamparo à delinqüência um olhar winnicottiano Revista IPSI In Cine Novo Hamburgo p 7578 2007 Deprivação e tendência antisocial no adolescente face ao divórcio parental Dissertação Mestrado em Psicologia Clínica Universidade do Vale do Rio dos Sinos São Leopoldo 2008 LOPARIC Z De Freud a Winnicott Aspectos de uma mudança paradigmática Winnicott ePrints v 5 n 1 2006 Disponível em httpwwwcentrowin nicottcombrwinnicotteprintuploadsc9441562982f4176pdf Acesso em 13 abr 2008 NEWMAN A As idéias de DW Winnicott um guia Rio de Janeiro Imago 2003 OUTEIRAL J A tendência Antisocial In OUTEIRAL J GRAÑA R Org Do nald W Winnicott estudos Porto Alegre Artmed 1991 p 129135 OUTEIRAL J CELERI E A tradição freudiana de Donald Winnicott a situação edípica E sobre o pai Revista Brasileira de Psicanálise v 36 p 757777 2002 OUTEIRAL J FELIPPE M Distúrbios de comportamento 2007 Disponível em httpwwwjoseouteiralcomtextosJOuteiral20e20Marcelo20Felippe 2020Disturbios20de20Comportamentodoc Acesso em 26 jul 2007 PACHECO J et al Estabilidade do comportamento antisocial na transição da infância para a adolescência uma perspectiva desenvolvimentista Psicologia Reflexão e Crítica v 18 p 5561 2005 SÁ A A Delinqüência infantojuvenil como uma das formas de solução da privação emocional In Universidade Presbiteriana MacKenzie org Anais do I Congresso de Psicologia Clínica p 1322 2001 SAFRA G O gesto na tradição Revista Brasileira de Psicanálise v 36 p 827834 2002 VILHENA J MAIA M Agressividade e violência reflexões acerca do compor tamento antisocial e sua inscrição na cultura contemporânea Revista MalEstar Subjetividade v 2 p 2758 2002 WINNICOTT D A criança e seu mundo 6th ed Rio de Janeiro LTC 1982 Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil Rio de Janeiro Imago 1984 Da pediatria à psicanálise Rio de Janeiro Imago 2000 O ambiente e os processos de maturação estudos sobre a teoria do desen volvimento emocional 2 ed Porto Alegre Artmed 1988 Privação e delinqüência 4th ed São Paulo Martins Fontes 2005 Through paediatrics to psychoanalysis London Hogarth 1987 Tudo começa em casa São Paulo Martins Fontes 1999 Psicoterapia psicanalítica com crianças institucionalizadas Ana Celina Garcia Albornoz 15 O abandono a negligência e o abuso físico sexual e psicológico são fatos frequentes na vida de muitas crianças As crueldades impostas a essas crianças deixam marcas que causam graves sequelas na estruturação do seu psiquismo dão origem a severos quadros psicopatológicos e têm im portantes repercussões na vida adulta As violências perpetradas contra crianças na maioria dos casos têm os pais como principais autores Pais traumatizados na sua própria infância em geral apresentam dificuldades para desempenhar suficientemente bem o papel parental Em muitos casos a Lei no 8069 de 13 de junho de 1990 determina que as crianças vitimi zadas sejam afastadas das suas famílias de origem e sejam encaminhadas às instituições de acolhimento No meu diaadia profissional em uma instituição pública de aco lhimento de crianças vítimas de maustratos frequentemente me deparo com diversas situações que remetem à necessidade de buscar recursos para minimizar as dores deixadas pelas marcas da violência na infância Tais circunstâncias se inscrevem no campo da práxis ressaltando a questão como ajudar Ao buscar na psicanálise uma resposta fui levada a pesquisar sobre o tema e a constatar que a produção científica na área é escassa A psicoterapia com crianças institucionalizadas requer considera ções especiais de um lado o entendimento dos efeitos das privações sobre o psiquismo e o seu impacto no desenvolvimento e de outro a compreensão das especificidades da técnica da psicoterapia infantil e os benefícios dessa abordagem à infância vitimizada temas abordados neste capítulo Crianças e adolescentes em psicoterapia 275 A ORIGEM DO MAL A falta de um cuidado suficientemente bom nos primeiros anos de vida inaugura um contexto de privações As circunstâncias das privações na infância registrarão as suas marcas na memória do indivíduo edifi carão a sua subjetividade nesse sentido e poderão determinar as suas pautas de conduta no futuro As experiências de frustração de suas necessidades vivenciadas pelo bebê provocam nele o registro da sensação de vazio originado pela ausência de figuras continentes e consistentes Os inadequados objetos de identificação que falham na sua função primordial de pro mover a organização interna e o controle pulsional no ego incipiente permitem o incremento da sensação desprazerosa da dor causada pela irrupção de uma estimulação excessiva e contínua e pela falha signifi cativa dos mecanismos de proteção Instalase o caos o bebê incapaz de satisfazer as próprias necessidades inundado pelo fluxo de excitação que não domina deparase com um excesso de angústia intolerável ao ego Incapaz de dar conta de tal experiência tornase incapacitado por ela Tais experiências traumáticas invadem os processos normais de desenvolvimento pois deparam o ego ainda incipiente com o vazio e com a falta de uma ação capaz de transformação com uma excitação que não pode ser descarregada e com o incremento do ódio Albornoz 2001 promovendo a destruição completa ou parcial do aparelho men tal em desenvolvimento ou já desenvolvido e do senso de identidade culminando na deformação da mente Shengold 1999 ou mesmo na morte do indivíduo Spitz 1988 Bollas 1992 e Piera Aulagnier 1989 propõem que a identidade de uma pessoa é resultante da possibilidade da mesma de metaboli zar os encontros relacionais que teve no momento da constituição do seu psiquismo As possibilidades de funcionamento do ego suas posi ções identificatórias bem como a sua psicopatologia são determinadas pelos encontros e desencontros do indivíduo com os seus objetos da infância O poder maléfico de um encontro pode comprometer a identifi cação do sujeito e entravar significativamente o funcionamento das suas capacidades tornandoo capaz de superar conflitos ou de apenas repe tilos ao longo da vida Posteriormente cada vez que alguém ou algo demandar uma ação do indivíduo desperta nele a memória das cicatri zes do seu passado 276 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A ausência marcante de bons relacionamentos e de cuidadores sufi cientemente bons na infância é vivenciada como uma perda irremediável pelo psiquismo e produz uma sensação de abandono A falha no estabele cimento da sensação de enraizamento no objeto cuidador gera uma pro funda e permanente sensação de insegurança na criança As percepções e sentimentos advindos dessas vivências contaminam o presente e também o futuro Todo o novo objeto que se apresentará a ela espelhará a rejeição e promoverá o medo de ser desprezada A criança vitimizada contém na sua identidade o atributo ser desprezível e reage a ele As vivências hostis na infância determinam o incremento do poder de destrutividade do indivíduo que ele pode voltar tanto para dentro de si constituindo uma potencialidade melancólica como para fora de si dire cionando ataques ao outro A difícil superação de tais vivências infantis pode leválo a revivêlas mais tarde na forma de práticas auto ou hetero destrutivas como a dependência química prostituição assaltos seques tros assassinatos ou ataques terroristas constituindo esse indivíduo como um ser violento como uma ameaça potencial a ele mesmo ou à sociedade As circunstâncias acima descritas assim ocorrem porque os traumas não elaborados contaminam o processo de decodificação das novas experiências sendo essas integradas ao psiquismo a partir da mesma lógica das experiências traumáticas anteriores O abusivo da história no presente esquecido fundamenta o sintoma que através da repetição descontextualizada o denuncia Albornoz 2006 Na tentativa de minimizar os efeitos dos episódios maléficos do passado e partindo do princípio de que a criança não pode se constituir suficientemente bem psiquicamente na ausência de figuras parentais as instituições de abrigamento buscam cada vez mais aperfeiçoar a sua forma de acolhimento no sentido de oferecer cuidados físicos e emo cionais adequados às necessidades dos indivíduos em desenvolvimento Os abrigos buscam reproduzir um contexto tipicamente familiar em que cuidadores substitutos desempenham as funções parentais e estabele cem relações afetivas com as crianças que estão afastadas dos pais Des sa forma propiciam à criança condições para o estabelecimento de uma estruturação psíquica mais saudável capaz de desenvolver e manter a capacidade de estabelecer relações afetivas Porém a seguinte questão se impõe essa maternagem secundária reparadora dará conta de um mauencontro originário É muito é possível Mas as marcas do passado não deixam de pesar facilmente Com um caso clínico ilustro a minha argumentação Crianças e adolescentes em psicoterapia 277 Afinal quem sou eu Conheci Karina quando ela ingressou numa instituição para crianças vitimizadas com 20 dias de vida A menina filha de pai desconhecido fora abandonada pela mãe no hospital logo após o seu nascimento Passou a viver em um abrigo residencial juntamente com outras crianças sendo atendida por uma equipe fixa de cuidadores que passaram a desempenhar os papéis parentais junto a ela e ao fazerem isso desenvolveram impor tante vinculação afetiva com a menina sendo correspondidos na mesma intensidade Karina apresentou ótimo desenvolvimento global era ativa afetiva esperta tinha boa socialização e boa adaptação préescolar Os cuidadores ao cuidarem das suas dores minimizaram os vazios de Karina tornando suportável a sua existência Porém não tardou para que um objeto espelhasse a rejeição e o desprezo vivenciados no aban dono precoce A posteriori seu comportamento denunciou que a impos sibilidade de nomear a angústia vivida num momento de desamparo gerou um caos e se constituiu num entrave na vida da criança Des pertada pela demanda atual a ausência antiga deu sinal de vida não diretamente mas através dos sintomas O desenvolvimento de Karina transcorria bem até que aos 8 anos aquela menina exemplo boazinha esperta que outorgava aos seus cuidadores o troféu do bom cuidado sucumbiu às exigências escolares e passou a apre sentar dificuldades na aprendizagem e má conduta na escola não atendia ordens não respeitava os colegas mostravase distraída não escrevia o seu nome de forma correta mesmo já tendo aprendido anteriormente e não conseguia nomear objetos animais e pessoas de forma adequada Karina despertou para a busca da sua verdadeira identidade Quem é Karina afinal A menina boazinha que conquistou os cuidadores substitutos Ou será que essa menina boazinha tem outra por dentro conforme diz um ditado popular Para compreender e poder falar sobre alguém ou algo Karina precisava compreender a sua própria origem necessidade que permaneceu adormecida até que um estímulo externo tocou a sua ferida e despertou a sua memória As muitas boas mães e os muitos bons pais do abrigo deram sustentação a sua existência e a ajudaram a suportar a vida até o momento em que um exercício de reflexão praticado em aula exigiu que Karina olhasse para dentro de si Nesse momento a menina descobriu um buraco uma nãoresposta do Outro à sua demanda uma sensação de desenraizamento do objeto primário conhecido durante os 9 meses de gestação a privação vivida com o abandono 278 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Os seus sintomas revelam o vazio transparecem a angústia e dão forma às incógnitas Renovam a privação de outrora como uma tentativa de inserila no contexto para solucionála Os sintomas revelam a verdade que os causam Como Karina poderá aderir à lei da cultura se não domi na a lei da natureza como propõe Freud 1980 em Totem e Tabu Como poderá falar do que não entende Como poderá saber o significa do do seu nome se não compreende o que a constitui psiquicamente O nãodito de sua história obstaculiza o seu pensamento Mas os seus sin tomas também são reveladores as letras ininteligíveis do seu nome dizem algo do que foi recalcado Segundo Trece 2003 ao escrever o sujeito diz mais do que sabe e quer Escrever significa dizer de si próprio ato provocado pela angústia na tentativa de se fazer existir em cada letralixo inventar a própria história e por meio da letra bordear o real É preciso ler além do que está dito ler nas entrelinhas é preciso decifrar o que o inconsciente cifrou Escrever é uma forma de escrever a própria experiência é uma tentativa de dar conta da dor da existência A escrita de Karina revela a dor de não poder saber mais a respeito de si mesma Os sintomas permitem o acesso às memórias censuradas e esqueci das das experiências traumáticas Freud 1980 Tais lembranças repeti tivas e veladas do traumático revelam o apego do sujeito ao aconteci mento Ramos 2003 e denotam o seu impacto no psiquismo Karina precisa de ajuda para articular em palavras o que os seus sintomas reve lam e prosseguir o seu desenvolvimento Precisa da ajuda da psicoterapia psicanalítica para nomear a angústia que aparece inominadamente ne cessita de um espaço de reconstrução e de construção O abrigo em que Karina vive conta com um Serviço de Psicologia Clínica que oferece atendimento em psicoterapia psicanalítica para que as crianças vítimas de maustratos resistam às suas mazelas e não sucum bam ao embrutecimento como um meio de prevenção à miséria humana e à violência assim como Freud 1980 apregoava Karina foi encami nhada para uma avaliação psicológica que constatou que ela possui um bom potencial intelectual perturbado por um grande desequilíbrio emo cional sendo indicada a psicoterapia A psicoterapia psicanalítica A psicoterapia infantil é uma modalidade específica de tratamento que leva em conta o momento evolutivo da infância A avaliação da crian Crianças e adolescentes em psicoterapia 279 ça deve observar se as dificuldades apresentadas por ela decorrem de vicis situdes do desenvolvimento normal ou de uma incapacidade de darlhe seguimento A psicoterapia na infância pode ser indicada na presença de sintomas específicos de conflitos interpessoais persistentes ou de atra sos paradas ou regressões no desenvolvimento adaptativo e emocional Ortigues e Ortigues 1988 Zavaschi et al 1998 As primeiras entrevistas têm importância especial para o processo psicoterápico porque em geral contêm um enunciado das questões essen ciais que serão desenvolvidas durante todo o tratamento É essencial que se estabeleça uma relação tal nãodiretiva em que a criança possa deter minar o ritmo do seu processo expressando os desejos e os sofrimentos que é capaz de pôr em jogo em cada momento Ortigues e Ortigues 1988 O paciente não relata fatos ele vive situações é importante que o terapeuta entre em contato com o paciente procurando captar o que ele a partir de sua história está sentindo no aquiagora Duarte Bornholdt e Castro 1989 Entre os objetivos da psicoterapia infantil estão possibilitar o desen volvimento da curiosidade e despertar o desejo de conhecer pois a crian ça que aprende adquire maior domínio de si própria e do mundo Nesse sentido a psicoterapia busca auxiliar a criança a superar ansiedades que geram bloqueios no pensamento e no conhecimento Castro 1998 Para tanto através da análise de seus sintomas conflitos história familiar e escolar e de seus movimentos psíquicos o psicoterapeuta deve buscar compreender os motivos que levam a criança a apresentar uma inibição intelectual Souza 1995 conscientizála dessas demandas instaurando assim o processo de elaboração e de superação das suas dificuldades A psicoterapia é um recurso essencial no processo de elaboração de situações excessivamente traumáticas desde que leve em conta essa con dição peculiar Atualmente buscase cada vez mais aplicar a psicoterapia às pessoas vitimizadas e negligenciadas Esse contexto de tratamento requer uma visão especial visto que precisa levar em conta que esses indivíduos não apresentam o seu desconforto como um sofrimento men tal conectado a uma experiência e a uma representação mas sim como um vazio que a mente busca preencher concretamente Esse equilíbrio é alcançado às expensas de um empobrecimento da vida mental expresso na redução da atividade fantasmática e na superficialidade da percepção e expressão dos sentimentos Pela compulsão à repetição a história traumática mobiliza no pa ciente a necessidade de buscar uma solução para a sua dor Ele a expressa 280 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols concreta e diretamente no setting e envolve a figura do terapeuta A vio lência vivida passivamente no passado agora é revivida também ativa mente O terapeuta passa a ser alvo dos ataques sofridos e não tolerados pelo paciente bem como é solicitado a imporlhe sofrimento e assim confirmar a sua história de agressão e rechaço O terapeuta também é o alvo da demanda de amor não satisfeita no paciente A repetição promove o contato com a realidade cruel O terapeuta interlocutor de um drama promove a transformação dos sentimentos atuados em pensamentos O processo terapêutico inaugura no paciente vitimizado a capacida de de sofrer a dor psíquica O sofrimento pode ser nomeado o paciente pode investigar o seu significado transformando as consequências psíqui cas dessa experiência Dessa forma a abordagem torna possível ao sujeito alcançar também o prazer Dantas 1999 O tratamento deve reencontrar o acidente que golpeou o psiquismo in fantil e quando isso for impossível o terapeuta deve propor uma hipótese sobre ele a partir do que se inscreve no contexto terapêutico Aulagnier 19841989 Esse delicado e profundo processo de reconstrução de uma his tória deve estabelecer o contato com a realidade do paciente decodificando os fatos que o acometeram para que então os sentimentos apropriados a essas vivências possam ser reconhecidos O paciente precisa conhecer o que sofreu com quem e como esse sofrimento afeta a sua vida Shengold 1999 A psicoterapia passa a tecer a trama do imaginário de Karina A meni na implicada na tentativa de decifrar seus enigmas busca saber quem foi o seu primeiro par Por que se afastou dela Nas primeiras sessões ela busca entender a lógica do jogo dos pares que exige o encontro dos pais com os filhotes tarefa que lhe é bem complicada Comunica o que precisa entender em sua vida Refere também as suas hipóteses para o abandono sofrido Ela fantasia que foi deixada pelos pais devido a sua maldade ou seja apresenta a fantasia de que afastou os pais devido à intensidade dos seus impulsos sádicos No jogo a menina errante é abandonada pelos pais porque não foi merecedora do seu afeto Dessa forma Karina reconstrói o período inicial de sua vida tenta compreendêlo e elaborálo A relação terapêutica possibilita o compartilhamento de uma expe riência emocional nãosensorial que está subjacente ao que é dito A dis ponibilidade do paciente para se comunicar e a disponibilidade do tera peuta para compreender essas comunicações permitem a identificação da natureza e da qualidade da dor seja ela decepção frustração ou intole rância Promove o estabelecimento do contato com um eu soterrado que precisa ser descoberto Amendoeira 1999 França 1999 Crianças e adolescentes em psicoterapia 281 A criança facilmente tende a estabelecer uma relação fantasmática com o seu psicoterapeuta envolvendoo como referência do seu passado e mo mento atual Diatkine e Simon 1972 Na transferência o antigo e o atual tomam parte em uma mesma conjuntura confirmando a atemporalidade do inconsciente As atribuições que a criança faz hoje ao terapeuta têm origem nas impressões deixadas por suas experiências prévias de relacionamentos objetais e são reveladoras da sua realidade psíquica Essas revivências reco nhecidas como se e interpretadas pelo terapeuta tornamse acessíveis e pas síveis de reconhecimento pelo paciente Albornoz 2006 No setting o psicoterapeuta filtra a emoção para substituíla pelo pensar enquanto o paciente primeiro abreaciona os afetos para somente depois ingressar no processo racional As memórias guardadas despertam de seu adormecimento e expressam todas as suas dores armazenadas ao longo do tempo vividas como ofensas narcísicas e nunca esquecidas O terapeuta se torna o representante de todos os antepassados vilões ou vítimas que o paciente reencontrará cheio de mágoas libertandose dos sentimentos aprisionados e aprisionadores modificando através do pre sente o passado e o futuro Na trajetória de um tratamento o paciente e o terapeuta cada um no seu papel conhecerão os afetos e emoções de uma história pessoal Francischelli 1999 Para a compreensão do mundo interno que emerge expresso na relação terapêutica é essencial uma atenção cuidadosa à contratransfe rência do terapeuta Este com o seu corpo com o seu afeto e com a sua mente tornase um importante instrumento para o desvelamento das dores e dos amores do paciente Karina desperta intensos sentimentos na terapeuta especialmente quando passa a viver no setting com forte apelo transferencial toda a sua fragilidade e o desejo de ser cuidada como uma filha Ela se mostra boa zinha frágil sedutora verbaliza o desejo de morar no consultório o desejo de ser adotada e demanda ser cuidada como uma filha pela terapeuta Como resposta a essa demanda o desejo de gratificála de confortála de recompensála e de adotála emerge com grande força no terapeuta que em vez de responder com uma atuação pode acompanhar através da sua sensibilidade o impacto dos vazios deixados no psiquismo da paciente A transferência dessas crianças é recheada predominantemente de más expectativas e de raiva o que torna muito difícil o seu manejo É frequente a tentativa do paciente de reproduzir os contextos traumáticos outrora experimentados mostrandose provocativo e desagradável ou sedutor e envolvente atribuindo ao terapeuta o papel de responsável 282 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols pelos fatos passados tentando incitálo de várias formas a imporlhe so frimento demanda essa que deve encontrar forte resistência Shengold 1999 Esses pacientes podem inconscientemente recriar relacionamen tos abusivos do passado em torno do terapeuta Gabbard 2001 en quanto pacientes que apresentam transtorno de estresse póstraumático podem demonstrar dificuldades para estabelecer a relação transferencial pois apresentam uma antecipação crônica da situação de perigo ou de abuso Grunbaum 2000 No caso Karina revive o medo do abandono Ela procura dissimular os seus sentimentos de brabeza quando é derrotada no jogo além de encobrir as dificuldades apresentadas no ambiente externo temendo ser deixada pela terapeuta caso o seu lado feio transpareça como ela acredita que ocorreu no seu passado Ela também transforma em ativo o que viveu passivamente Durante vários momentos de grande intensidade na ses são quando a terapeuta esperava dela uma resposta associativa ao tra balho de desvelamento que estava em andamento Karina saía da sessão para ir ao banheiro Ela abandonava a terapeuta quando esta esperava pelo clímax do descobrimento deixandoa só na sala e com um senti mento de frustração e de incompletude A presença constante do psicoterapeuta na sessão mesmo diante da atividade dos processos de repetição da tendência de reproduzir a perda do objeto alivia e desperta satisfações na criança No entanto a consta tação da permanência do objeto necessita a elaboração da interpretação o que requer certo tempo Diatkine e Simon 1972 Mais tarde Karina passa a viver sentimentos transferenciais nega tivos mais intensos impossíveis de serem encobertos Mostrase hostil com a terapeuta Constata que mesmo diante da expressão de sua malda de não é abandonada Revive na transferência a sua história Pode pedir protestar brigar chorar entender a sua origem e falar sobre ela Sua men te foi liberada para pensar e aprender A menina passa a ter sucesso es colar Ao final do tratamento o seu desejo de adoção foi de fato satisfeito Karina foi colocada em uma família substituta Cabe salientar que a mudança implica também na possibilidade da criança vivenciar uma experiência nova e real de contato com o outro de uma forma diferente e melhor do que antigas formas de relacionamentos já experimentadas Graña 2000 O psicoterapeuta ao não sucumbir à trágica história do paciente que teima em repetir os seus fatos através do tratamento tornase a mais importante mola propulsora para a mudança Ele leva o paciente a conhecer uma outra realidade possível em que a Crianças e adolescentes em psicoterapia 283 tônica das relações deixa de ser abusiva para ser baseada na tônica do desejo e da confiança Esse tipo de paciente exige grande investimento físico intelectual e emocional do terapeuta Além de um consistente arcabouço teórico é essencial que o profissional que tem ao seu encargo tão difícil e delicada tarefa possa contar com uma equipe de apoio com colegas e supervi sores que o auxiliem a suportar a pressão dos intensos sentimentos aos quais está exposto dos ataques que pode sofrer e a perceber os seus sentimentos contratransferenciais Dessa forma o terapeuta protegido frente a possibilidade de vulnerabilidade poderá se fundir com o pacien te e também se afastar dele quando for necessário CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base no caso apresentado e em outros estudos realizados posso afirmar que a psicoterapia psicanalítica deve ser oferecida às crianças vitimi zadas com grande chance de bons resultados pois através da análise do relacionamento transferencial e contratransferencial entre paciente e tera peuta ela permite o resgate das experiências mais precoces da vida de um indivíduo e a sua elaboração possibilitando o desenvolvimento de novas capacidades para a sua personalidade As más representações do self e do objeto podem ser modificadas e substituídas por boas internalizações O reordenamento de sentimentos e de atitudes desencadeados pelo tratamento leva a uma nova organização mental A energia antes empregada para ocul tar o sofrimento fica liberada para novos empreendimentos e dessa forma a personalidade da criança alcança um novo equilíbrio A partir dessa relação intersubjetiva o paciente introjeta a função pensante do terapeuta tor nandose capaz de transformar e simbolizar as suas dores Suportando o seu sofrimento ele pode também desfrutar os prazeres A psicoterapia pode lan çar a criança para além da sua história original REFERÊNCIAS ALBORNOZ A C A infância roubada enfocando vivências de abuso Revista da Saúde v 2 p 3845 juldez 2001 Psicoterapia com crianças e adolescentes institucionalizados São Paulo Ca sa do Psicólogo 2006 284 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols AMENDOEIRA W Dor psíquica Revista Brasileira de Psicanálise v 33 n 3 p 545553 1999 AULAGNIER P O aprendiz de historiador e mestrefeiticeiro do discurso identi ficante ao discurso delirante São Paulo Escuta 1989 BOLLAS C A sombra do objeto psicanálise do conhecido nãopensado Rio de Janeiro Imago 1992 CASTRO M G K Inibições intelectuais e fuga frente ao conhecimento Dissertação Mestrado Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Porto Alegre 1998 DANTAS JR A Dor psíquica e o negativo uma ilustração do trabalho do nega tivo no campo da experiência da dor Revista Brasileira de Psicanálise v 33 n 3 p 573584 1999 DIATKINE R SIMON J La psychanalyse précoce le fil rouge Paris Presses Universitaires de France 1972 DUARTE I BORNHOLDT I CASTRO M G K A prática da psicoterapia infantil Porto Alegre Artmed 1989 FRANCISCHELLI L Memória de mágoas Psicanálise v 1 n 1 p 115122 1999 FRANÇA M O O inexorável da dor humana junto ao processo analítico Revista Brasileira de Psicanálise v 33 p 555572 1999 FREUD S Fragmentos da análise de um caso de histeria In Edição stan dard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1980 v 7 p 129256 Linhas de progresso na terapia psicanalítica In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1980 v 17 p 201216 Totem e tabu In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1980 v 13 p 13194 GABBARD G O A contemporany psychoanalytic model of countertransference Journal of Clinical Psychology v 57 n 8 p 98399l Aug 2001 GRAÑA R B A atualidade da psicanálise de crianças Psicanálise v 2 n 1 p 139153 2000 GRUNBAUM L Posttraumatic nightmare via regia to unconscious healing of the traumatic split Richard e Piggle v 8 n 2 p 181 190 MayAug LEBOVICI S Préface In DIATKINE R SIMON J La psychanalyse précoce le fil rouge Paris Presses Universitaires de France 1972 p 58 ORTIGUES MC ORTIGUES E Como se decide uma psicoterapia de criança São Paulo Martins Fontes 1988 RAMOS H Neurose na infância não é nenhum bichopapão In FERNANDES M A M Org Quando uma criança precisa de análise São Paulo Casa do Psicólogo 2003 p 7586 Crianças e adolescentes em psicoterapia 285 SEGAL H O desenvolvimento infantil nas etapas precoces da maneira que ele se reflete no processo analítico passos na integração Revista Brasileira de Psicanálise v 21 n 3 p 415430 1987 SHENGOLD L Maus tratos e privação na infância assassinato da alma CEAPIA v 12 nov 1999 SOUZA A S Pensando a inibição intelectual São Paulo Casa do Psicólogo 1995 SPITZ R O primeiro ano de vida 5 ed São Paulo Martins Fontes 1988 TRECE L O arriscado reflexões sobre a angústia e a letra In M FERNANDES M A M Org Quando uma criança precisa de análise São Paulo Casa do Psicólogo 2003 p 101118 ZAVASCHI M L et al A psicoterapia de orientação analítica na infância In CORDIOLI A V Ed Psicoterapias abordagens atuais 2 ed Porto Alegre Artmed 1998 p 441458 Psicoterapia psicanalítica com autistas Maria da Graça Kern Castro Iane Campos Álvares 16 No Brasil calculase que existam aproximadamente 600 mil pes soas afetadas pela síndrome do autismo Associação Brasileira de Autis mo se for considerada somente a forma típica da síndrome Bozza e Callias 2000 No entanto não há nenhum estudo sério sobre o número de autistas no país mas suspeitase que haja 1 milhão de casos não diagnosticados Revista Época junho 2007 Infelizmente muitas dessas pessoas jamais chegam a ter o atendimento necessário médico psicoló gico pedagógico psicoterápico e outros que lhes possibilitaria uma vida com menos sofrimentos e ansiedades catastróficas Escrever sobre nossa experiência com autistas em psicoterapia psica nalítica foi uma forma de dividir com o leitor nossas dúvidas perplexi dades as peculiaridades e as complexidades que envolveram nossos en contros com autistas em seus longos e complexos tratamentos Crianças autistas podem ser total ou parcialmente incapazes de es tabelecer contatos com outras pessoas olhálas ou ter capacidade rudi mentar para alcançar vínculos ou sentir curiosidade a respeito dos con tatos humanos Eles vivem num mundo particular no qual desenvolvem um modo privado de formas de agir e de viver Qualquer coisa que per turbe esse universo desperta medo pânico Desenvolvem rituais aos quais aderem como uma maneira de manter controle sobre suas vidas Criam formas de autoproteção e isolamento em todos os processos que seriam normais do desenvolvimento humano que necessitariam ocorrer dentro da intimidade da relação paisfilhos e que não acabam acontecen do Sua linguagem pode ser inexistente ou consistir na repetição de pala Crianças e adolescentes em psicoterapia 287 vras de forma ecolálica e sem sentido As palavras EU e TU caso sejam usadas podem ser usadas de forma intercambiável sem discriminação dos significados das mesmas Falam de si na terceira pessoa e não discriminam self e objeto Eles evitam o contato com os olhos parecem não ouvir e tratam as pessoas da mesma forma que tratam os objetos inanimados A absoluta repetitividade e a estereotipia que apresentam são a me dida da limitação dessas crianças na sua vida emocional Jogos imagi nativos e criativos podem ser inexistentes em algumas e muito restritos em outras Para muitas crianças com autismo a capacidade para pensar simbolicamente não foi desenvolvida Elas frequentemente não conse guem brincar no sentido simbólico e criativo do termo embora possam gastar horas a girar as rodas de um carrinho ou repetir movimentos por muito tempo No presente capítulo apresentaremos as vicissitudes de um processo em que a qualidade da relação humana e as peculiaridades do mundo em que vivem os autistas tornam a psicoterapia uma tarefa extremamente árdua Inicialmente faremos uma rápida resenha histórica do autismo sob o vértice psicanalítico Após com base em casos clínicos discutire mos questões relativas aos fenômenos do processo psicoterápico em es pecial as dificuldades de estabelecer o vínculo o uso da relação transfe rencial e contratransferencial e adaptações da técnica terapêutica que se tornam necessárias com crianças severamente limitadas AUTISMO O VÉRTICE PSICANALÍTICO Desde o seu nascimento a criança tem uma longa trilha a ser per corrida para a construção da sua subjetividade sua humanização e inser ção no mundo compartilhado do simbólico e da cultura Nem todas as crianças conseguem fazer esse percurso já que algumas ficam estacio nadas e detidas em seus processos desenvolvimentais É o caso das crian ças autistas em que se observa uma alteração do padrão humano intera tivo e distúrbios no seu desenvolvimento global presentes precocemente em suas vidas Em 1943 Léo Kanner identificou e nomeou a síndrome do Autismo Infantil Precoce e apontou as seguintes características nas crianças estu dadas elas sofriam de uma inabilidade inata de se relacionarem emocio nalmente com outras pessoas e com os objetos e apresentavam desordens graves no desenvolvimento da linguagem sendo que a maioria delas não 288 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols falava e nas crianças que falavam era comum a ecolalia e a inversão pronominal Suas condutas eram caracterizadas por atos repetitivos e estereotipados não suportavam mudanças no ambiente e preferiam o contexto inanimado ao contexto humano Treze anos antes da nomeação do quadro feita por Kanner Melanie Klein 1981 descreveu psicanaliticamente um caso de um menino Dick de 4 anos em que afirmava que o transtorno diferia da esquizofrenia típica infantil porque o transtorno era nesse caso uma inibição de desenvol vimento enquanto na maioria dos casos tratase de regressão depois que a criança superou com êxito certa etapa de seu desenvolvimento p311 Supondo que a detenção desenvolvimental de Dick seria de origem cons titucional decorrente de intensa ansiedade ligada aos exacerbados im pulsos de morte os quais em combinação com as defesas primitivas e excessivas do ego resultariam em grave perturbação emocional que ini bia o seu desenvolvimento O bloqueio da relação com a realidade e o desenvolvimento da vida de fantasia culminou em déficit na capacidade de simbolizar central no quadro desse menino que hoje diagnostica ríamos como autista O autismo tem sido alvo de inúmeros estudos e de muitas discussões acerca de sua etiologia e fatores desencadeantes Até meados dos anos de 1980 as controvérsias giravam entre causas orgânicas ou psicogênicas Em revisão das diferentes abordagens do autismo Bozza e Callias 2000 consideram o autismo uma síndrome comportamental com etiologia dife rente na qual o processo de desenvolvimento infantil se encontra profun damente distorcido Mesmo com considerável número de pesquisas sobre a síndrome não é possível uma interpretação única para ela já que o campo tem sido marcado por polêmicas em torno das suas causas sejam elas afe tivas cognitivas biológicas ou psicogênicas Tanto modelos neurológicos quanto genéticos não conseguiram ainda especificar os mecanismos pato gênicos do autismo infantil Tafuri 1992 2003 Bozza e Callias 2000 Meltzer 1984 e Alvarez 1994 apontam que se considere uma causação múltipla para o autismo já que uma visão determinista de suas causas são modos lineares e nãoprodutivos de compreender e intervir em fenômeno tão complexo Alvarez 1994 estudou o autismo de um ponto de vista interacional ressaltando que mesmo na presença de disfunção neurológica ou de outras causas orgânicas correrá em paralelo um déficit psíquico resultante das vinculações com o ambiente inicialmente reapre sentado pela mãe e pai os quais terão efeitos sobre a estruturação psí quica da criança Tustin 1990 1994 refere que mesmo no autismo Crianças e adolescentes em psicoterapia 289 psicogênico deve ser levado em conta possível a associação de fatores neuroquímicos com o funcionamento emocional A observação de bebês orientada psicanaliticamente iniciada por Bick 1968 aponta que no início da vida o bebê vive estados de não integração desamparo e ansiedades catastróficas que impelem a busca de um objeto que mantenha unidas as partes do self A função materna teria uma função continente e de membrana protetora como pele ou um filtro entre o interno e externo mantendo coeso o self do bebê ante às ameaças de desmantelamento e de desintegração Perturbações nas funções de pe le primordial levam à formação de segunda pele psíquica ou seja a cria ção de um substituto para a função de pele continente não introjetada no início da vida A segunda pele psíquica teria função defensiva enquanto a dependência ao objeto fica negada sendo substituída por uma pseudo independência manifestandose como uma concha muscular muito co mum nas crianças autistas Meltzer 1975 descreveu que a criança autista oscila entre entre um estado autista propriamente dito e um estado mental com alguma ten dência para a integração No estado autista subitamente ocorre uma in terrupção da vida mental com desmantelamento do self1 Nesse estado a criança não tem noção de tempo nem de espaço e vive no que Meltzer denominou de unidimensionalidade da mente Quando esse estado é sus penso a criança retorna de onde parou e passa a viver no estado residual de autismo em que podemos observar a existência de relações bidimensionais com uso de identificações adesivas2 Esse estado mental advém do fracasso na introjeção pela riança da função continente do objeto externo comu mente representado pela mãe O self não introjeta o objeto mas adere ou se cola a ele Não há noção da existência de um espaço psíquico dentro e de um fora característico do funcionamento bidimensional da mente e ca racterizado por condutas de imitação espelhamento movimentos de repe tição e ecolalia possíveis ameaças à condição de mesmice e de imutabili dade das estereotipias produzem ansiedades intensas e fantasias de rup turas da superfície como rachar desgarrar congelar se dissolver Tustin 1975 postula que autistas pareciam ter nascimento mental prematuro vivenciando a cesura do nascimento com a separação corpo ral com a mãe precocemente e de maneira insuportável Isso os tornava hipersensíveis à vida e entravam em choque e isolamento com suas mães muitas delas depressivas na ocasião do seu nascimento Esse nas cimento mental prematuro desencadearia mecanismos precoces primi tivos para se defender e para lidar com essa espécie de circunstância 290 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Tustin no seu primeiro livro Autismo e psicoses infantis 1975 seguindo os conceitos de Mahler e de Anthony usava o termo autismo primário normal como uma fase desenvolvimental de todas as crianças em um estado inicial de seu desenvolvimento Anos depois Tustin 1995 emba sada nas pesquisas de psicólogos desenvolvimentistas e na observação mãesbebês3 que apontavam para competências do recémnascido na busca de objeto desde o nascimento reformulou o uso dos termos autis mo primário normal e passou a usar a terminologia autossensualidade para nomear as etapas muito precoces do desenvolvimento infantil O termo autismo primário apenas ficaria restrito à psicopatologia Se ocorrerem déficits críticos na vinculação mãebebê nos estágios iniciais haverá uma ruptura básica e patológica da autossensualida de normal ocasionando encapsulamento do bebê em si mesmo A au tossensualidade normal é que vai gerar o subsequente processo de dife renciação e integração da criança que através dos sentidos e percepções conduz à ligação objetal A separação física pelo nascimento nos autistas é percebida como desprendimento traumático de algo inanimado em vez de um processo gradual de diferenciação de um ser humano vivo Percep ções da separação física da mãe reativa uma ferida primária que é sentida como vazio ou buraco O lugar para o bebê no espaço mental materno aflora na sua identificação do que Winnicott chamou de preocupação ma terna primária 1978 e que Tustin baseada no conceito de continente contido de Bion 1991 nomeia útero mental da mãe que acolhe e filtra descargas de excitação sensorial da criança Falhas nessa relação inicial provocam no bebê pavor de aniquilamento de cair infinitamente no vazio num buraco negro e nele ser sugado As crianças autistas viveriam uma fase de autossensualidade patológica com uma ruptura e um corte do contato sensual visual e auditivo basi camente com a mãe Essas crianças se percebem mental e prematuramente sozinhas cedo demais fechandose em uma autossensualidade aberrante Aos sentidos do bebê a mãe não seria mais desejada e necessitada A criança se voltaria para objetos autóctones4 que as autossensações criam patologi camente e se tornam os novos objetos da criança autista São os objetos e formas autistas a que se apegam obstinadamente Tustin 1990 A partir da década de 1980 estudos e avanços sobre as capacidades sociais do bebê expandiram e contribuíram para esclarecer teorias psica nalíticas evolutivas Bozza e Callias 2000 Aportes de pesquisas do de senvolvimento infantil de alguma forma confirmam alguns dos pressu postos dos teóricos das relações objetais Greenberg e Mitchel 1994 ao Crianças e adolescentes em psicoterapia 291 abrirem perspectivas para a compreensão das crianças como sensíveis aos vínculos às formas e às qualidades da experiência vivenciada com seus primeiros objetos Stern 1992 p 210 indicou que o bebê é dotado de vida subjetiva ativa e é profundamente social no sentido de estar pre disposto a se envolver e a encontrar interações singulares com outros seres humanos Stern 1992 p 210 Hobson em sua Teoria Afetiva 1993 2002 considera o bebê humano preparado para ser sensível e responsivo à emoção dos outros assim como emocionalmente expressivo Isso permite desde o nascimento seu engajamento afetivo e social nas interações face a face que caracterizam a fase de intersubjetividade primária Outros teóri cos do desenvolvimento Brazelton 1998 Trevarthen 2000 comprovam que bebês têm preferência em focalizar o rosto humano e em especial os olhos e que comunicam para o outro suas necessidades usando seu corpo seus movimentos e sons que emitem As trocas afetivas entre os bebês e suas mães são a base para a ligação e compreensão nãoverbal entre eles e assim o bebê vai adquirindo a habilidade de comunicar ao outro suas necessidades e desejos Bebês autistas no entanto evitam o contato e o olhar humano e tendem a focalizar o seu olhar em áreas periféricas ao rosto humano Milher e Fernandes 2006 As crianças com autismo apresentam déficit na aquisição e no desenvolvimento dessa habilidade que pressupõe a intenção comunicativa Essa falha é notada pois os autistas não olham para a face do outro não prestam atenção aos objetos manipulados por outras pessoas produzem pouco ou nenhum gesto declarativo não se envolvem em jogos de fazdeconta Tomasello 2003 A dificuldade do bebê autista de retribuir o olhar materno e interagir afetivamente foi responsável por muitos debates sobre o papel dos pais na etiologia do autismo chegandose mesmo a responsabilizálos pelas difi culdades do filho Contemporaneamente a visão psicanalítica é que a distância afetiva entre a criança com autismo e seus pais pode ter resul tados bastante nocivos mas não é a causa do autismo5 Nesse sentido é importante não perder de vista a perspectiva de múltiplos fatores etio lógicos Hoje como uma parte importante do plano de tratamento os psicoterapeutas oferecem aos pais da criança autista um espaço regular para a escuta e compreensão de suas dificuldades visando maximizar a melhora na comunicação com o filho bem como oferecer suporte nas difi culdades cotidianas que poderão dirigir e controlar a família pelas de mandas e rituais da criança autista Esse suporte aos pais contribui para aumentar a vinculação com eles de modo a manterem a psicoterapia da criança Essa escuta não pode ser confundida com psicoterapia pessoal 292 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols dos pais que somente é recomendada a eles no momento em que se sentem motivados para tal A PSICOTERAPIA COM AUTISTAS Tratar psicanaliticamente autistas é uma tarefa complexa e enigmá tica que nos coloca em contato com os elementos muito primitivos da constituição do aparelho psíquico e da subjetividade humana Lidamos com o nãoverbal com a repetição monótona ecolálica e obsessiva num âmbito concreto muito mais com as sensações primitivas e de um corpo ainda não libidinizado Crianças autistas no setting manipulam seus de dos seus pés chupam sua língua mordem a parte interna das bochechas soltam bolas de saliva emitem gases ou defecam enfiam dedos nos ori fícios do rosto de uma forma automática Esses comportamentos refletem o seu primitivismo pois o corpo é o palco daquilo que para outras crian ças já seria mentalizado e teria alguma forma de representação Geral mente apresentam perturbações nas funções alimentares e de higiene Dos quatro casos que apresentaremos três deles tinham sérios distúrbios alimentares e encoprese até aproximadamente os 10 anos Não ignoramos6 as áreas de sobreposição orgânica e psicológica que existe na compreensão dos transtornos autísticos e que é vital para nos auxiliar a moldar objetivos realísticos para o seu tratamento Nosso ofício é facilitado ao partirmos de ampla compreensão dos fenômenos autistas e da cuidadosa observação e flexibilidade necessárias aos ajus tes incluídos no setting com as adaptações da técnica terapêutica para esse tipo de pacientes A configuração do setting protetor e acolhedor representa o pri meiro passo para a formação do vínculo terapêutico Na psicoterapia de uma criança autista é de suma importância a manutenção do setting e o vínculo formado com o terapeuta como essenciais ao desenvolvimento do tratamento pois esses fatores levam à gradual discriminação eu nãoeu e ao início da construção da identidade do paciente Marques e Arruda 2007 Assumir uma postura de tolerância e continência e inicialmente sem preocupações em compreender ou dar significa ções aos atos da criança é fator de importância para criação da relação terapêutica Nos casos por nós atendidos identificamos etapas muito semelhan tes às propostas por Tustin 1975 1990 na psicoterapia com autistas Crianças e adolescentes em psicoterapia 293 Fase inicial da psicoterapia A criança ao chegar à psicoterapia apresenta vida psíquica pobre e está imersa no seu isolamento além disso muitos autistas não falam o que nos torna testemunhas de rituais infindáveis Adriano 5 anos em sua primeira sessão ao ser convidado a entrar o fez de forma automática ignorando a presença da terapeuta Parecia surdo e mudo Pulava batia as mãos como se fosse voar corria desorde nadamente pelo consultório De imediato viu uma máquina de cal cular sobre a escrivaninha e passou a apertar seus botões por longo tempo em total alheamento Só interrompia a atividade para dar no vos pulos e agitar freneticamente suas mãos Ao trabalhar com autistas temos uma configuração do estar juntos em termos espaciais com uma qualidade física mas não emocional Mondello 1996 Isso é angustiante pois o que ocorre nesse espaço fisicamente di vidido com a criança como exemplificado com Adriano não remete a um contato humano com trocas entre criança e psicoterapeuta Há movimen tação no espaço físico mas não há um movimento com trajetória de expe riências não há um trajeto de ação de ritmo que discrimine eutu inte riorexterior Há fuga afastamento rodopios flaps pulos ficar à distância ou se enfiar em um canto Todos esses deslocamentos no espaço impossibi litam que apareça o limite a diferença a separação o eu e o tu A atividade bizarra e insistente de Adriano não podia ser conside rada um jogo ou brincar simbólico Ferreira 2000 chama essas ativi dades de movimentos de jogo que mesmo sem aparente sentido teriam a função de um apaziguamento pulsional Se tivermos paciência e atenção com eles poderá se abrir uma pequena brecha para compreensão do mundo mental do autista Nossa principal tarefa na fase inicial é fazer contato com a sua tênue vida psíquica estabelecendo alguma espécie de vínculo e de rela ção terapêutica e muito lentamente ir trabalhando as barreiras autistas É indispensável o estabelecimento do setting que acolha as ansiedades catastróficas e de desmantelamento que costumam se apresentar quando se rompe a mesmice e o isolamento da criança Nessas circunstâncias entramos em contato com seus sofrimentos e terrores aqui as palavras não atingem Indispensável é o psicoterapeuta ser tolerante às frustrações e capaz para aguardar os vagos indícios de alguma novidade num mundo 294 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols tão estereotipado e rígido Enquanto o autista vive no seu mundo fe chado repleto de certezas repetitivas e de rituais nós terapeutas nos sentimos ignorados e na posição de mais um objeto inanimado Muitas vezes temos o sentimento de que nada acontece que as sessões são sem pre previsíveis e idênticas às anteriores Mas a experiência nos ensinou que a atenção contínua ao pequeno detalhe no aparentemente igual a observação de um gesto vago ou uma nova forma de gritar de pular ou de atirar um objeto podem indicar caminhos e apontar focos de luz no es curo do rígido e impenetrável universo autista Cumpre salientar que mais importante que o conteúdo das inter venções ou possíveis interpretações é o tom e inflexão de nossa voz nossos gestos e nossa postura atenta e viva que possibilitam o estar junto e ter acesso à criança nas sessões Na fase inicial prioritariamente temos que fazer discriminações de atividades aparentemente caóticas Por exemplo ao rodar um objeto compulsivamente a criança pode ser auxiliada a discriminar que o mesmo está fora do seu corpo e que sua ação visa controlar esse objeto Ao enfiar a mão dentro de um orifício corporal como sua boca ou seu nariz ou ao fazer uma bolha de saliva que brota entre seus lábios o autista pode aprender sobre suas cavidades corporais protótipos de seus espaços internos Na etapa inicial do tratamento convivemos com crianças dominadas por sensações que necessitam passar por um longo processo de trans formações do sensorial e concreto ao psíquico e ao representável O refúgio no interior de seu escudo protetor ou barreira autística com en capsulamento em atividades autossensuais estereotipadas e sem vida visa a proteção frente a estados de grande vulnerabilidade e sofrimento para evitar a consciência da separação corporal do objeto O psicote rapeuta teria a função de tentar atravessar a barreira autística e fazer contato com esse mundo desvitalizado agindo como um elemento vivo e ativo para que a criança autista possa estabelecer alguma ligação com uma mente viva que pensa Alvarez 1994 Korbivcher 2007 O brinquedo simbólico inexiste e eles realizam ações monótonas e repetidas à exaustão É possível aproveitálas para realizar tentativas de jogos de diferenciação dentrofora nomear partes do corpo da criança distinguindoas das do corpo do terapeuta delimitando bordas espaços limites do EunãoEu Vagarosamente a criança vai construindo espaços e saindo de relações bidimensionais de imitação colagem e aderência Um dos indícios de progressos é quando começam a tolerar abrir mão dos objetos e formas autistas e mesmo que por poucos momentos possam Crianças e adolescentes em psicoterapia 295 realizar jogos de reciprocidade como por exemplo atirar uma bola e recebêla de volta ou alguma atividade que lembre jogos de esconder Quando isso acontece já há considerável avanço pois ocorre a troca dos objetos autistas pelos objetos e espaços transicionais e vão se cons tituindo as possibilidades para o eu verdadeiro brincar A fase inicial que poderá durar muitos meses evolui para a segun da etapa com a chegada do paciente a algum tipo de tridimensionalidade mental e isso se manifesta por exemplo com interesses por cavidades por colocar e retirar cubos de uma caixa e também com desenhos Tustin 1990 p238 de figuras geométricas como o círculo e o triangulo7 como exemplificado no caso a seguir Adriano em sua 47a sessão se negava a entrar gritava muito e corria pelo corredor apagando e acendendo as luzes Teve que ser contido pela mãe que o colocou para dentro do consultório Entrou sem me olhar dirigin dose ao aparelho de ar condicionado que o fascinava Gritava pulava e tentava ligar e desligar o botão do aparelho Tento contato verbal e o chamo pelo nome Verbalizo que parecia muito zangado no corredor Ele então se dirige ao quadro negro e desenha uma figura humana com um triangulo no abdômen Coloca muitas bolinhas dentro do triângulo Fala diversas vezes o que falta O que falta O que falta O que falta 296 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Percebo que está repetindo um desenho feito na escola e lhe digo que quer saber as partes do corpo que faltam no desenho Ele pula e torce as mãos Olhamos o desenho ele ponta a cabeça e percebe que faltam os olhos a boca os ouvidos nariz cabelo Mostrolhe que o desenho tem uma barriga com um triângulo enorme cheio de coisas Adriano risca todo o desenho abana suas mãos como se estivesse que rendo tirar algo de sua cabeça Em seguida senta na minha poltrona e a gira sem parar Ao impedilo de persistir naquele movimento seguro a cadeira ele bate com sua perna em meu pé Nesse momento parece que me descobriu ou no sentido de Winnicott 1975 crioume como ser humano pois me olha atentamente no rosto o que era incomum acontecer Estabelecese algo novo entre nós Digo a ele que está me olhando no rosto que eu sou Graça e ele é Adria no Ele escorrega da poltrona e nesse movimento vira o seu pé que fica trancado na cadeira Chora um choro sem modulação e sem nenhuma lágrima como se fosse um uivo ou um gemido Digo que seu pé deve ter doído realmente ao ficar preso na cadeira Ele me olha novamente e fala pomadinha branca no dodói pomadinha branca no dodói Digolhe que está chorando porque está doendo o pé e quer que eu cuide dele Não tenho pomadinha branca mas tenho conversas com ele que podem ajudar Repito que desenhou seu corpo cheio de cocôs duros que ele os prende não deixa sair ele apresentava severa encoprese Assim como seu pé ficou preso e dolorido Continuo dizendo que desenho ris cado no quadro mostra um menino cheio de coisas que o assustam Surpreendentemente ele me olhou e disse Adriano cheio de choro Fecha seus olhos e brotam lágrimas Ele verdadeiramente agora chora com algum sentimento Senta no chão e se encosta em mim O que faltava e que ele perguntava insistentemente no início da sessão agora aparecia emoção e possibilidade de formar alguns vínculos tanto internos entre algumas partes de seu self quanto externos entre nós dois Nesse momento percebo que evacuou na calça Mostrolhe que sinto o cheiro de suas fezes e que ele também sente Ele grita negan dose ir ao banheiro Deita a cabeça no chão e diz descansar Assim fica até acabar a sessão aguardando sua mãe leválo Nesse dia algo mudou na qualidade da relação de Adriano com a rea lidade externa mas em especial houve alguma transformação dentro de seu self que agora tinha algum espaço tridimensional para abrigar e ser continente de seu sofrimento de seu choro de seu cansaço Crianças e adolescentes em psicoterapia 297 Na fase inicial da psicoterapia com autistas nosso objetivo é modificar o isolamento e diminuir o uso de formas e objetos autísticos chamandoos à vida Não é bom tratarmos esses pacientes como se eles fossem pedaços preciosos de porcelana chinesa Eles frequentemente tentam nos forçar a isso mas não devemos conspirar com eles Eles possuem muitas forças que nunca descobriram e devemos ajudálos a descobrilas Tustin 1990 p 237 Fase intermediária consolidando espaços mentais e trabalhando o desamparo Quando a concha autística começa a ser aberta e é revelada surge uma criatura desamparada que sente que uma parte vital está faltando Tustin 1990 p 239 Há indícios do surgimento de continente psíquico rudimentar que já pode conter identificações projetivas e introjetivas com surgimento de fanta sias rudimentares Instalase um espaço transicional existem rudimentos de jogo e há maior interação com o psicoterapeuta Nessa etapa surgem osci lações dos estados de isolamento ao contato e viceversa estabelecendose algum sentido de identidade Interessante apontar que crianças encapsu ladas no seu autismo raramente adoecem mas quando retiradas de sua con cha protetora ficam expostas às doenças comuns da infância e nos jovens autistas aparecem afecções psicossomáticas em especial na pele8 A atenção redobrada às manifestações da relação transferencial e contratransferencial facilita chegar mais próximo ao mundo interno da criança Lenta e gradualmente fazemos contatos para tirála para longe do mundo estéril estranho e não obstante seguro que eles criam Man ter ligações é o nosso grande desafio terapêutico para inserilos num mundo mais vivo em que as relações humanas são melhores que os ri tuais sem sentido que sustentam suas vidas Autistas vivem num mundo vazio e solitário em que os fatos vividos são como que descolados das experiências emocionais que deveriam acompanhálas Em função dessa concretude e desligamento existem dificuldades para a construção de memórias que servirão de base para os processos de sua subjetivação Lambert 1995 ressalta que o autista sofre de uma falta de história Geralmente seus pais ao relatarem a vida dos filhos autistas lembram pou cos acontecimentos costumando descrever dados factuais de que não inco modaram dormiam muito eram bonzinhos parecendo não haver um bebê em casa Construir vínculos estabelecer um sistema de trocas afetivas entre pais filhos irmãos e demais membros da família produz experiências emo cionais que serão marcantes para produção de lembranças que servirão de 298 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols alicerces da historicidade de uma família Como construir uma história em comum nessas famílias com crianças tão quietas e isoladas que pareciam nem ter existência Como dar sentido ao que foi vivido por essas crianças Seria possível construir uma história com significados para esses pacientes O que estamos acostumados a vivenciar nos tratamentos com outros pacientes em termos de transferência se mostra completamente diverso quando tratamos autistas No setting o isolamento as condutas bizarras e ritualísticas nos fazem esbarrar em angústias impensáveis que contra transferencialmente também nos mobilizam sensações de isolamento e estranheza É comum experimentarmos tédio desatenção desânimo irritação e sensação de nada compreender sentimentos que nos impelem ao afastamento do paciente Outra reação contratransferencial é ir ao sentido inverso forçando uma busca de sentidos onde há o vácuo e a ausência de significados Alvarez 1994 p 211 alerta que os compor tamentos repetitivos apontam para o mortífero o vazio ou possivelmente algo ainda pior Tomar contato com nossos sentimentos de impotência frente aos comportamentos autistas pode tornar possíveis movimentos produtivos na relação terapêutica Rocha 1997 citando Xavier Jacquey descreve uma forma de trans ferência típica dos autistas que ele nomeou de subobjetal na qual são transferidas relações bidimensionais de adesão imitação formas au tossensuais e muito primitivas Não é a transferência dos objetos internos de um psicótico nem de imagos materna ou paterna sobre o terapeuta São transferências anteriores à possibilidade de internalização de rela ções objetais que comportem existência de continente psíquico capaz de usar identificações projetivas e introjetivas Na transferência subobjetal o terapeuta não é reconhecido nas suas qualidades pessoais e numa posição de sujeito que suportaria a transferência de desejo ou movimento pul sional O psicoterapeuta é sentido como um objeto anônimo e inanimado e é investido como mais um objeto autístico Isso pode ser exemplificado quando usam a mão do terapeuta ou nos empurram como se fôssemos um objeto sem vida ou mais uma coisa no meio de outras Como apontado antes o autista tem sérias dificuldades para consti tuir sua história e seu processo de subjetivação Isso aparece na transfe rência subobjetal O terapeuta se torna depositário dos aspectos parentais recusados e nãointernalizados Repetese na relação transferencial um movimento pulsional dos pais em relação à criança que não pode ser simbolizada e internalizada por envolver perdas narcísicas impossíveis de serem suportadas pelo casal parental Rocha 1997 p18 Crianças e adolescentes em psicoterapia 299 Na fase intermediária da psicoterapia em síntese há o desenvolvi mento de algum sentido de identidade maior interação com o psicotera peuta surgimento do espaço transicional e do jogo o surgimento de fan tasias do tipo kleiniano e maior movimento ao se sentir humano A seguir apresentamos alguns exemplos que ilustram alguns dos fenômenos do processo psicoterápico nas etapas iniciais e intermediárias baseados em nossa experiência clínica com autistas MAURÍCIO DO DESMANTELAMENTO RUMO À INTEGRAÇÃO Maurício foi um de meus primeiros pacientes Foime enviado por uma colega já com o diagnóstico de autismo infantil Chegou surpreen dendome Era um menino lindo mas seu rosto parecia de mármore bo nito mas frio e sem expressão Distante Havia uma grande distância en tre nós não só por seu autismo mas também por ter vindo num momento em que eu estava cheia de expectativa com a chegada de meu primeiro paciente infantil Não tinha como lhe explicar da caixa dos brinquedos que poderia usar de como poderia ficar livre para brincar e expressar o que quisesse Também não poderia lhe dizer qualquer outra frase que havia aprendido nos livros Nada disso poderia ser feito E agora o que faria com aquele menininho de 3 anos A mãe Sandra o havia introduzido na sala dirigindoo à mesinha e ele obedientemente ou automaticamente sentouse na cadeirinha baixa Sandra Olha quanto brinquedo essa tia tem Imediatamente Maurício passou a repetir a frase ao mesmo tempo em que fazia ansiosamente um gesto com a mão parecendo estar escre vendo no ar sem lápis Maurício Brinquedo essa tia tem essa tia tem essa tia tem essa tia tem Foi interrompido pela frase seguinte da mãe Sandra Vou te esperar lá fora Agora repetia ecolalicamente essa segunda frase enquanto ela se retirava Ficou sentado na cadeirinha pegou o lápis de cima da mesa e passou a escrever na capa do bloco de papel Escrevia os números de 1 até 12 colocandoos na capa de maneira aleatória Quando chegava no 12 às vezes no 13 recomeçava Eu tinha a impressão de que ele nem via o que estava fazendo estava absorto como se fosse tudo automático 300 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Senteime a seu lado tentava falar com ele cheguei mais perto tentava dizer algo passava a mão em seu braço Eu queria contato desespera damente mas ele parecia não me notar Seu rosto parecia ter uma expressão de tranquilidade ou era sem expressão Nos primeiros 30 minutos da sessão tentei encontrar uma brecha para entrar e quem sabe encontrálo mas foi em vão Na capa do bloco de papel onde ele estava colocando os números uns por cima dos outros agora havia um grande borrão Sem saber bem o quê ou como fazer para que ele apenas me olhas se comecei a cantar uma música infantil Sentiame pequena como ele Nesse momento ele me olhou Continuei ali cantando com medo de que ele fosse embora novamente Agora era ele quem me observava Depois do término da sessão eu fiquei ali parada por longo tempo Sentiame exausta meio que sem saber no que pensar então fiz algumas anotações e reli a entrevista que tivera anteriormente com os pais Percebi que eu precisava transformar todas aquelas emoções tão intensas em algo mais coeso No encontro com os pais Sandra relatou os primeiros meses com seu bebê de forma objetiva mas deixava passar sua angústia com um esfregar de suas mãos suadas Sua voz era tensa e sentava de maneira ereta e rígida Após a primeira entrevista o que parecia mais vivo e nítido para mim era a distância e a dificuldade de contato emocional que Sandra tivera com o seu bebê desde os primeiros meses Ela parecia muito só e angustiada na luta para lidar com uma criança pouco responsiva aos seus cuidados O pai trabalhava muito e deixava os afazeres domésticos e os cuidados com os filhos para a esposa dizia isso é coisa para mulheres Sandra tentava cuidar de seu bebê porém com grandes dificuldades Estaria ela repetindo a história de sua família com mulheres distantes de seus filhos como havia me relatado a relação com sua mãe Para entender melhor essa criança reportome a dois grandes autores Donald Meltzer e Esther Bick Enquanto Meltzer estudava crianças autistas no final da década de 1960 e início da década de 1970 Bick correspondia se com ele e direcionava seus estudos para a Experiência da pele nas primei ras relações de objeto 1968 Ela observava os estados de angústia catas trófica em certos bebês cujas mães apresentavam dificuldades de exercer a função continente resultando em um estado de desintegração na mente da criança Meltzer 1975 descreve como as crianças autistas oscilam entre um estado de autismo propriamente dito e outro de maior integração que nomeou de estado residual do autismo Estes dois estados ocorrem com alternâncias às vezes súbitas Durante o período em que a criança está no Crianças e adolescentes em psicoterapia 301 estado autista propriamente dito ocorre uma suspensão da vida mental com o desmantelamento do self Considera que esse desmantelamento so brevém de maneira passiva a criança apenas deixaria os sentidos vagarem suspendendo a atenção Neste estado ocorrem fatos mas não há expe riências mentais que se prestem para a memória e o simbolismo Não existe a transformação da experiência sensorial bruta elementos beta em ex periências com significados e sentidos elementos alfa que serão a base do sonhar e do pensar Bion 1991 Como Bick 1968 Meltzer 1975 também conclui que esse estado primitivo de funcionamento advém devido a um fracasso inicial nas rela ções objetais e na função continente do objeto materno Sendo assim interrompese a relação objetal e consequentemente no tratamento in terrompese a relação transferencial Alvarez 1994 propõe uma teoria das relações objetais modificada ao acrescentar à teoria psicanalítica as propostas dos teóricos organicistas e do desenvolvimento sobre etiologia do autismo propondo um repensar tan to sobre as bases inatamente determinadas quanto sobre as bases muito iniciais da experiência de se relacionar com um objeto p 206 Refere então que mesmo uma mãe saudável e não deprimida pode apresentar sérias dificuldades vinculares ao perceber a não responsividade do bebê diante de seus cuidados e atenções criandose um círculo vicioso entre a dupla que Debray 1988 nomeou de decepção recíproca com consequên cias devastadoras para o desenvolvimento da criança Bick 1968 estudando as relações de objeto primitivas diz que o bebê necessita de uma força capaz de unir as partes da personalidade e é com a ajuda desse objeto continente que ele pode sair do estado primitivo de nãointegração Álvares e Vieira 2003 p157 estudando esses as pectos descritos por Bick apontam a falha neste processo inicial além de impedir o desenvolvimento de um conceito de espaço dentro do self também impede a formação da noção de um objeto externo continente Assim o bebê se vê impedido de projetar para dentro do objeto externo identificação projetiva Sente como se a personalidade estivesse simplesmente vazando sem contenção em um espaço sem limites gerando uma ansiedade de estar se liquefazendo Dessa maneira acreditamos que o trabalho psicoterápico com essas crianças seja o de ajudálos a integrar as partes da personalidade Voltandonos novamente para Maurício podemos sentir uma falta de contato entre mãe e filho e mesmo de Maurício com a terapeuta a 302 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols qual em suas anotações encontra seguidamente a palavra distância ou a referência à falta de contato Os sentimentos despertados fazem pensar no contato entre duas superfícies planas relações de bidimensionalidade Meltzer 1975 Isso é anterior aos processos de holding Winnicott 1975 que pressupõem a existência de espaços psíquicos a tridimensio nalidade mental capaz de conter identificações projetivas Para que o objeto materno possa desempenhar suficientemente bem sua função de holding necessita ser capaz de estar por inteiro ali com seu bebê pres tarlhe atenção e como diz Winnicott 1956 desenvolver uma preocupa ção materna primária identificandose com seu bebê A mãe de Maurício parecia ter tido dificuldades de introjetar boas re lações continentes e protetoras Muitas vezes a terapeuta a sentia funcio nando como Meltzer 1975 descreve a mente bidimensional percebendo os objetos e a si mesma como superfícies planas sem interior Nesse tipo de funcionamento bidimensional os valores e as relações são externos de imitação e colagem ou seja não geram quase nada que venha deles próprios mas copiam os outros estão sempre atentos ao que vem de fora Geralmente andam na moda valorizam o status social e são pessoas aparentemente bem adaptadas ao exterior funcionando como um falso self defensivo Winnicott 1990 Assim me parecia Sandra seus conceitos vinham do exterior seus relatos muitas vezes começavam com o médico disse que todo mundo sabe que o bom é Ela imitava ou seguia o que lia nos livros ou o que lhe diziam os médicos Faltava algo que viesse de dentro de si de uma expe riência emocional para dar conta de seu filho Como observei em Maurício desde nosso primeiro encontro descrito acima não havia ainda formado a noção de espaço interno O bloco de papel de sua caixa só era desenhado na capa Formouse um borrão com riscos apenas por fora nunca abria o bloco Durante todo o início do tratamento manteve essa conduta ficando preso à superfícies Maurício vinha à psicoterapia três vezes por semana sempre trazido pela mãe Nos primeiros meses de tratamento meu maior esforço foi no sentido de entrar em contato com ele Assim eu tentava através de minha mente unir as partes de sua mente ainda tão desmantelada Desejava que ele me olhasse Eu cantava cantigas infantis para ele e tocavalhe enquanto falava Gradativamente passou a me olhar por mais tempo porém em algumas sessões voltava aquela sensação forte de que ele estava muito distante e passava os 50 minutos com um olhar vago fora de foco Após seis ou sete meses de tratamento passou a demonstrar que a noção de dentro e de fora estava surgindo em sua mente Estava cons Crianças e adolescentes em psicoterapia 303 truindo a noção de um espaço interno que pudesse conter primeiramente representado pela cavidade oral Era a capacidade introjetiva se organizan do e sua psicoterapia ingressando em outro estágio Nessa época quando eu lhe dizia alguma frase como Oi como vai Maurício aproximavase bem de meu rosto abria bem sua boca e com um sinal me dava a entender que eu deveria repetir a frase dentro de sua boca para que minhas palavras entrassem dentro dele Assim eu fazia falava com minha boca bem perto de sua boca aberta Em seguida utilizando suas duas mãos ele abria deli cadamente minha boca escancarandoa e finalmente aproximava sua boca da minha e falava de modo que suas palavras pudessem entrar em mim Tudo bem Iane Foi desse modo que iniciamos alguns diálogos Ele parecia querer beber incorporarme Muitas sessões iniciavam com esse diálogo para depois ele se dirigir ao banheiro encher a pia de água e ficar mergulhando na aguinha limpa e bebendoa Em outras ocasiões quando se desgostava de mim por algum mo tivo principalmente se eu o fazia esperar um ou dois minutos antes de atendêlo ficava furioso Cuspia inúmeras vezes no chão como que a me colocar para fora em seguida perdíamos contato seus olhos iam saindo de foco e não mais respondia a qualquer estímulo meu Na evolução de uma criança autista esta passa a um narcisismo onde predomina a cisão dos objetos em bons e maus Meltzer 1975 Quando Maurício me via como um objeto bom como a aguinha limpa desejavame colocar para dentro de si bebendome Quando o frustrava sentindose abandonado por têlo deixado por apenas um ou dois minutos esperando antes de atendêlo eu me tornava o objeto mau que deveria ser projetado e cuspido Podia presenciar o nascimento desses mecanismos de projeção e introjeção que estavam aparecendo de maneira ainda muito primitiva Concretamente cuspiame e me engolia A defesa contra esse objeto mau que abandona a projeção não era muitas vezes suficiente para aplacar sua angústia Maurício então regredia e se deixava desmantelar Sandra pro curava chegar sempre no horário exato para que Maurício não ficasse esperando na sala de espera mas às vezes até por diferença de relógios ele não podia entrar imediatamente A espera de um minuto já era catas trófica Presenciei diversas vezes o quão fácil era frustrálo intensamente e perdêlo para seu autismo Pude compreender melhor e ter empatia com Sandra em sua tarefa de lidar com o filho no dia a dia ainda mais ima ginando que ela própria tinha dificuldades nesta área Nos meses seguintes comecei a observar momentos de progressos significativos Ele falava e eu podia entendêlo Porém minhas férias se 304 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols aproximavam e eu me preocupava pensando em como reagiria já que os pequenos abandonos na sala de espera já eram tão catastróficos para ele Tentava avisálo sobre as férias mas ele não ouvia isso Era tão doloroso para ele que não podia deixar minhas palavras penetrálo Foi só no último dia antes de minha saída que ele entendeu Expressouse então aos soluços e cantando bem alto e de maneira desesperada o anel que tu me deste era vidro e se quebrou o amor que tu me tinhas era pouco e se acabou Tudo era tão intenso que ainda hoje passados mais de 20 anos recordome de seus soluços e de suas lágrimas pingando no chão Sua angústia e tristeza eram intensas mas agora já era capaz de expressálas sem desmantelar sua mente sem perder o contato transferencial Crianças autistas psicogênicas tiveram uma consciência traumática da separação física da mãe antes que tivessem equipamento para lidar com a perda Tustin 1990 Tanto a história de Maurício relatada pelos pais quanto os dados obtidos durante o tratamento comprovam essa ex trema dificuldade para lidar com perdas Os pais trouxeramme inúmeras situações de perdas e mudanças por volta dos 2 anos momento em que o bebê parou de falar e foi se afastando das pessoas até chegar em meu consultório aos 3 anos já com o quadro autista bem agravado Outro aspecto importante são os estudos de Winnicott 1990 sobre os processos de maturação do bebê A mãe e o bebê funcionam em reci procidade empática produzindo a ilusão de continuidade do ser o que parece não ocorrer de maneira adequada nas crianças autistas A sepa ração parece ser experimentada como uma quebra na continuidade cor poral como a perda de uma parte do corpo O autor aponta para os peri gos de um choque desastroso na consciência de separação física Pensando em toda essa problemática quanto a separações prepa reime para a primeira sessão após as férias Como ele retornaria Viria com sua mente desmantelada ou teria conseguido aguentar nosso afastamento Entrou berrando esperneando Dirigiuse a sua caixa pegou o fogãozinho e a geladeira de brinquedos jogandoos contra a parede e gritando cai fora Recolhia os brinquedos e os jogava novamente gri tando a mesma frase cai fora Nas sessões que se seguiram passou a controlar todas as minhas ati tudes Faziame perguntas e eu deveria responderlhe da maneira como ele desejava Se eu sem saber exatamente o que deveria falar respondia com palavras um pouco diferentes ainda que com o mesmo sentido Maurício se irritava e então ele mesmo dizia o que queria ouvir e insistia para que eu me corrigisse Por exemplo quando chegava ao consultório perguntava sempre Crianças e adolescentes em psicoterapia 305 Oi tudo bem Iane se eu lhe respondia Tudo bem e tu vais bem ele ficava furioso e dizia Estou bem e o Maurício está bem Dizia essa frase com a entonação de que eu deveria repetir e de maneira autoritária refazia a sua pergunta e ficava esperando que eu corrigisse minha resposta Só quando eu o fazia exatamente da maneira que ele queria é que se tranquilizava O controle onipotente dos objetos servia para evitar a separação O paciente autista deseja possuir seu objeto não pode se separar dele Essa é uma forma muito primitiva de amor egocêntrica mas autêntica Meltzer 1975 Essa tentativa de me controlar estava ligada a um certo grau de previ sibilidade e uma certa estabilidade que são as bases para o sentimento de segurança Sandri 2000 p 4 Minhas férias realmente o pegaram despre venido Ele não podia suportar nem as separações e nem as inseguranças trazidas por um objeto não controlável Minha ausência por três semanas despertou muita raiva e decepção porém controlarme e assim tornar o mundo mais previsível era suficiente já não necessitava se desmantelar Ainda durante o primeiro ano de tratamento em certa sessão Maurício observa a placa com o logotipo da Pepsi Cola através da janela na entrada de um bar em frente ao consultório Em seguida repete pepsi e correndo pega um giz colocao em minha mão e apertando minha mão contra o quadronegro repete pepsi Entendo que devo fazer o desenho do logotipo do refrigerante que ele havia observado Quando começo a fazer Mauricio irritase e aperta minha mão com mais força repetindo a palavra pepsi Acabo percebendo que ele deseja que eu desenhe uma garrafa desse refrige rante Mal termino o desenho o menino coloca a sua boca no quadronegro como se fosse bebêlo Começa a chorar quando percebe que isso é impos sível Essa passagem é um exemplo claro do conceito de equação simbólica Segall 1983 O desenho para ele não era um símbolo do refrigerante mas era o próprio Não havia diferença entre símbolo e simbolizado Durante o segundo ano de tratamento fazia xixi nas calças e ria sadicamente Em certa sessão após fazer xixi no meu sofá veio em mi nha direção e de maneira viva como nunca havia feito convidoume Iane vamos brincar Inicialmente pegou o bebê e a mamãe em sua caixa em seguida abandonouos e veio se sentar no meu colo Aco modouse Ele chorava e dizia que a sua barriguinha doía Dava puns ora na realidade ora imitando o som destes Parecia estar revivendo suas cólicas nos cinco primeiros meses de vida Essa brincadeira se re petiu por várias sessões Começou a poder utilizar o setting e a relação transferencial como um espaço transicional onde o brincar já era pos sível Winnicott 1975 306 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Em uma quartafeira antes que eu me despedisse como de hábito o fazia no final da sessão dizendo que o esperaria na sextafeira ele se apressou em me comunicar Maurício Sextafeira eu não venho era a primeira vez que ele utilizava o pronome EU Iane Não vens Maurício Eu não vou ir lá com a mamãe vou ficar aqui ela não sabe Iane O que ela não sabe Maurício Ela não pega vou ficar aqui Iane Queres ficar aqui porque a mamãe não sabe te pegar no colo Queres colinho Maurício Ela não sabe Vou ficar aqui bem decidido Sua capacidade de brincar no espaço transicional Winnicott 1975 ainda era nascente e por isso necessitava do colo concretamente então pegueio no colo e ele se deixou levar até a sala de espera Lá passeio diretamente do meu colo para o colo de Sandra dizendo Hoje ele está precisando de colinho mamãe Sandra imediatamente largouo no chão Mas com esse peso no colo Nessa passagem Sandra mostra o quanto estava pesado para ela ter que lidar 24 horas por dia com uma criança autista Nas entrevistas com ela demonstrava esse aspecto Percebia que ela necessitava também de meu colo holding para ajudála a enfrentar esse peso Maurício pedia à terapeuta para pegálo Anzieu 1989 em seu livro O eu pele referindose a um paciente adulto com um funcionamento bem primitivo Marsias demonstra como este necessitava que eu o carregue o aqueça o manipule e devolvalhe pelo exercício as possibilidades de seu corpo e de seu pensamento p 183 Carregar aquecer manipular o pa ciente de Anzieu assim como a palavra utilizada por nosso pequeno pa ciente Maurício pegar pegar no colo são palavras que mais uma vez nos remetem a reconstruções de falhas no holding materno Porém apesar de todas essas falhas Maurício lutava e prosseguia em seu desenvolvimento O tema das sessões passa a ser o mamazinho Levanta sua blusa e diz Eu tenho um mamazinho Ou olha os bonecos e coloca pedaços de massinha de modelar dizendo serem os mamazinhos Dizia várias vezes Eu é que tenho um mamazinho Muitas vezes sentia que ele queria me evitar enquanto brincava eu tinha a impressão que ele achava que eu iria me intrometer à força dentro Crianças e adolescentes em psicoterapia 307 dele Outras vezes mostrava temer que eu o mordesse abaixando sua blusa e se virando de costas para mim dizendo não morde minha barriguinha Essa impressão foi se intensificando nas sessões que se se guiram Cada vez mais desejava se livrar de mim Passou a escrever algumas letras no quadro negro enquanto falava M de Maurício S de Sandra C de Celso I de Iane M de mamãe Assim passava muito tempo no quadro Sempre de costas para mim e cada vez me evitando mais Comecei a interpretar que não queria me olhar e estava com medo de mim Então acrescentou no quadro o HM e dizia O HM vai embora ou HM é o vai embora Essas frases eram ditas na entonação de uma música que passava na televisão naquela época na propaganda das lojas HM Como muitas letras ele fazia de lado ou de cabeça para baixo mostreilhe que o H também era o I se visto de lado e o M era de mamãe Ele queria que o HM eu e a mamãe fôssemos embora Pegou outro giz e começou a dese nhar figuras humanas destacando os mamazinhos e o bigo Desse dia em diante nas sessões que se seguiram passou a falar bastante em fazer xixi no mamazinho em estragar o mamazinho e em fazer cocô O xixi mata o mamazinho gritava fazendo xixi nas calças e rindo sadicamente Agredia assim aquele mamazinho que ele pensava que o havia abandonado e que lhe causava tantas cólicas Depois ficava parado o olhar fora de foco e eu sentia que ele estava se indo perdendo contato Era como se ele tivesse destruído todo o mundo à sua volta Após dois meses trabalhando com ele esse material sua agressão foi gradativamente diminuindo e começou a se interessar por mim e pelo consultório novamente Examinava toda a sala mexia no armário exami nava cada objeto de vários ângulos Meu rosto era apalpado cuidadosa mente Por vezes pedia que eu abrisse minha boca e a examinava tam 308 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols bém Eu observava o despertar do impulso epistemofílico descrito por Klein 1981 a descobrir e explorar o corpo materno Após muitas sessões de agressões mais amenas e de descobertas pela sala e por meu corpo notei um brilho diferente em seus olhos parecia deslumbrado e foi se aproximando de mim lentamente Feliz como quem enxerga um tesouro passou sua mão em meu peito dizendo o meu mamazinho Descobria que o mamazinho e eu havíamos sobrevivido Essa foi a primeira vez que pude notar um brilho de esperança nele Após passa a alternar períodos de maior esperança com outros de desesperança nas sessões Por esses dias saiu correndo de meu consul tório e abraçou fortemente a mãe Esta escorregou da cadeira e ajoelhada no chão deixouse abraçar Olhava alternadamente para mim e para o seu filho por fim fechou seus braços abraçando a ele também Foram alguns segundos de reencontro Em seguida como quem se recupera de um mo mento de fraqueza Sandra se levantou pegou o filho pela mão e disse Está na hora vamos indo Mas em mim e certamente em Maurício nasceu uma grande esperança Maurício prosseguiu seu tratamento por mais alguns anos Estabele ceu uma rotina ao chegar ao consultório Trazia sempre uma revista da sala de espera e então indicava que eu me sentasse acomodavase sen tando em meu colo de uma maneira que seu corpo se encaixava exata mente no meu passava a folhear a revista apontando para as diversas figuras como que a me mostrar Era como um encaixe perfeito era cô modo inclusive para mim Eu tinha a impressão de que ao chegar necessi tava restabelecer o contato comigo como se o intervalo entre uma sessão e a outra de alguma forma rompesse nossa nascente simbiose Após alguns minutos encaixados assim passava para outra ativida de Geralmente montava um quebracabeça de 20 peças que formava um desenho dos personagens Tom e Jerry Sabemos da dificuldade desses pacientes para integrar suas mentes e portanto para montar um quebracabeça Nas primeiras vezes eu o auxiliava como por exemplo Cadê a perna do Jerry Ele procurava com visível ansiedade Muitas vezes eu tinha que lhe mostrar e ele pe gando a peça a encaixava com bastante dificuldade Em seguida passou a ele próprio fazer as perguntas Cadê a perna do Tom Maurício mesmo procurava e encaixava a peça Comecei a me questionar se se tratava de uma introjeção Mas certamente era ainda algo muito primitivo como uma incorporação do tipo que acontecia quando exigia que eu falasse dentro de sua boca aberta para que pudesse engolir minhas palavras Era Crianças e adolescentes em psicoterapia 309 algo que se aproximava da equação simbólica algo concreto e não um símbolo propriamente dito como na ocasião em que me solicitou que fizesse o desenho da pepsi Ele repetia as mesmas perguntas que eu havia feito com a mesma en tonação parecia mais com uma identificação adesiva Algumas sessões mais tarde surpreendeume fazendo perguntas originais que eu nunca havia feito como por exemplo Cadê o dedão do Tom Esse brinquedo passou a ser cada vez mais original de acordo com a sua crescente capacidade de introje ção Estava começando a introjetar a função mental podia criar perguntas e soluções Outras brincadeiras começaram a surgir e o mesmo foi ocorrendo Ao mesmo tempo em que ele me deixava entrar em sua mente sentia como se eu o invadisse e o penetrasse à força Se eu falava algo mesmo que fosse respondendo a uma pergunta sua irritavase muito levantavase e soqueava diversas vezes uma almofada Eu ficava a assistir sua intensa luta entre deixarme entrar ou colocarme bem longe agredindome Tudo se dava com intensa ansiedade e gritavas Cadê Iane Não Cala a boca Ao vivenciar essa situação tão dramática eu pensava o quanto sua pele psíquica Bick 1968 não estava bem formada havia buracos ou esfíncteres que não conseguia controlar Meltzer 1994 Não conseguia controlar os objetos que penetravam à força dentro dele Contratransferencialmente eu me sentia paralisada não sabia o que fazer se respondia se me calava também paralisada com sua angústia Ele ficava agressivo como se eu estivesse saindo de seu controle Ora tentava impedir que eu entrasse dentro dele ora tentava introjetarme para me controlar Tentava me introjetar como a um bom objeto mas nesse mesmo ato sentiase invadido à força e eu era também o agressivo e o mau objeto No percurso para o crescimento paulatinamente verificouse que Maurício con seguia iniciar certa integração tolerando por breves momentos a ambiva lência A continuidade do tratamento se caracterizou por momentos de re gressão e progressão Por mais alguns anos seguiu vindo ao meu consultório porém já então com características de uma psicoterapia psicanalítica padrão HÉLIO SUA HIPERSENSUALIDADE SONORA DOS MONSTROS RUMO AO HUMANO Hélio aos 5 anos iniciou psicoterapia por se isolar e ter condutas esquisitas Falava muito pouco e apresentava estereotipias encoprese alimentação extremamente seletiva e um terrível medo a barulhos altos 310 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Realizou um longo tratamento até seus 16 anos quando concluiu o ensino fundamental Quando pequeno estava sempre atento aos ruídos e entrava em pânico ao ouvir estouros de foguetes e de balões Sua mãe relembrava que quando era bebê gritava muito ante a visão de balões motivo pelo qual não o levava aos aniversários e o mantinha pratica mente isolado no lar Já frequentando a psicoterapia observei sua ex trema sensibilidade auditiva Nas ocasiões em que havia jogos de futebol ele evitava sair à rua pois temia os foguetes ou barulhos de buzinas Ficava em estado de pânico com ruídos altos e estouros repetindo baru lho cabeça estourada A sensorialidade exacerbada de Hélio é comum a muitas crianças autistas frente aos estímulos externos Essa dolorosa sen sibilidade pode ser compreendida como uma proteção para um self vulne rável e que também conduz a um maior isolamento e incremento do uso das defesas autísticas que possibilitam enfrentar o caos a desintegração o cair num buraco sem fim Aos 11 anos já não possuía a fobia aos balões e foguetes mas persistia sua hipersensibilidade a certos ruídos que dificilmente qualquer outra pessoa escutaria Tomado pelo sensorial que o invadia parecia um pequeno animal atento a qualquer som que pudesse lhe indicar perigos de fragmen tação No consultório em várias ocasiões me avisou a lâmpada vai explodir pois escuto o barulhinho dela Tinha crises e temia que fosse ocorrer uma catástrofe na sala de atendimento Em dois ou três dias realmente a lâm pada deixava de acender Essa especial aptidão auditiva tornava Hélio mais vulnerável frente aos seus temores de ser explodido e aniquilado em pedaços o que dificultava ainda mais os seus vínculos com a realidade externa Ruídos eram invasões e causavam seu desmantelamento psíquico Meltzer 1975 deixandoo fragmentado em total desamparo e pânico Tal como outros autistas9 Hélio apresentou dificuldades para cons tituir o que Anzieu 1989 chamou de envelope sonoro O contato com o universo de sons oferecido pela mãe através de sua voz que acalma pelo canto pela música de sua entonação ou pela devolução em eco de suas vocalizações e gritos forma um continente sonoro que é introjetado pelo bebê Assim a mãe além de ser o primeiro espelho Winnicott 1975 para o bebê que acolhe com seu olhar significa e devolve o gesto espon tâneo da criança é também um espelho sonoro Se o banho de palavras não for envolvente e se tornar desagradável esse espelho sonoro não irá orientar o bebê sobre o que ele sente nem sobre o que sua mãe sente por ele O envelope sonoro é o primeiro espaço psíquico base para poste riores espaços visual tátil olfativo locomotor mental gráfico que Crianças e adolescentes em psicoterapia 311 introjetados serão o esboço préindividual de unidade e identidade e alicerce para aquisição de um aparelho psíquico capaz de conter e intro jetar significados para simbolizar e pensar Anzieu1989 Durante os primeiros meses de terapia o isolamento de Hélio era tal que diversas vezes dormiu chegando a cair da cadeira em que sentava Parecia surdo frente a minha voz o que era um paradoxo já que escutava ruídos subhumanos Angústia e terror eram os sentimentos predominan tes nas ocasiões em que eu tentava contato verbal com ele ou quando percebia alguma mudança na posição de algum objeto do consultório Repetiu por meses uma atividade que consistia em retirar os móveis do banheiro da casinha e recolocálos minuciosamente no mesmo lugar Dei xava espaços tão justos e certeiros que os móveis entravam com exatidão no espaço destinado a eles Eu sentia sono e tédio ao ver aquele jogo de repetições incansáveis Deime conta em certa sessão de que desejava muito que os pequenos móveis não coubessem nos espaços que Hélio lhes destinava na casinha Um dia ele errou e deixou um espaço menor não entrando no vão o movelzinho que lhe era destinado Foi um caos Agi tação e gritos Não dá assim não dá Não entra assim não Hélio havia perdido o controle sobre suas formas e objetos autís ticos Ao errar introduziu o novo a incerteza Aquela sessão marcou uma série de outras em que passou a tolerar vagarosamente as frustra ções com menor desorganização O movimento repetido sempre o mes mo não lhe cansava porque reafirmava seu domínio sobre o objeto eliminando qualquer excitação sensorial Tustin 1990 p 94 refere que a criança autista está sempre tentando carimbar o mundo em termos de sistemas rígidos que parecem seguros Com muitas oscilações entre alguns progressos e muitos retrocessos foi uma grande surpresa escutar Hélio entoar uma canção e juntos can tamos por alguns minutos Nessa etapa de seu tratamento passou a usar uma expressão gráfica como forma comunicativa Por meses a fio fazia riscos no papel garatujas espiraladas como se fossem redemoinhos Contratrans ferencialmente sentiame tomada por ansiedade e sugada para dentro daquele desenho ao ficar olhando seu repetitivo e monótono rabiscar a pon to de adormecer por fração de segundos como que hipnotizada Sentime sugada para dentro daqueles emaranhados de linhas como se fossem a figuração do buraco negro descrito por Tustin 1990 O termo oriundo da Física referese à força de gravitação dos buracos negros que é tão forte que ela impede até partículas virtualmente desprovidas de massa os fótons de lhe escapar O terror essencial do autista é de ser aspirado e de desaparecer 312 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols em um abismo em um semfundo como um buraco negro Essa vivência terrorífica corresponde a um estado mental de depressão elementar que gera o isolamento e a alienação Assim sentime puxada por aqueles redemoi nhos repetitivos e engolfantes alienada a ponto de adormecer Ao abrir os olhos ele me olhava fixamente no rosto Identificada com ele e suas vivências caóticas fiquei autista e adormeci como ele na etapa inicial de sua psicoterapia A partir desse evento tivemos nosso primeiro encontro pelo olhar série de muitos outros que se seguiram Para uma crian ça como Hélio suportar o olhar do outro foi uma grande conquista emocio nal pois foi através da possibilidade de se ver reconhecido no olhar do ou tro como uma individualidade que se iniciaram os processos de diferen ciação Eu e NãoEu A troca de olhares entre nós representou um importante momento na formação do vínculo e marcou mudanças transferenciais in dicando novas possibilidades de crescimento mental para o menino Meses mais tarde falava palavras que eu não compreendia Ele se irritava e repetia compulsivamente a palavra até que claramente enten di que dizia monsters Pegou do bolso algumas figurinhas chamadas Ploc Monsters que acompanhavam uma conhecida marca de chicletes Eram figuras bizarras com metade do corpo de um animal e o restante de outro Ele lia os nomes dos monstros de sua enorme coleção de figurinhas por muitas sessões Fazia também balões de chicletes que tinham que fazer um barulho parecido com Ploc ao explodirem na sua boca Estava elabo rando os seus temores de fragmentação através do brincar agora ele criava bolas que ficavam sob seu controle lúdico Ele as explodia e não era toma do pelas antigas ansiedades catastróficas Nessa etapa já havia se criado uma área transicional intermediária entre seu mundo interno e a realidade externa e ele podia brincar personificando e repetindo o seu antigo trau ma relativo aos terrores de se sentir fragmentado pelos ruídos altos Semanas depois ele passou a criar os seus próprios monsters dese nhando esquisitas combinações de animais O contato com a terapeuta passou a ser mais efetivo pois nomeava os monstros e obsessivamente os numerava e guardava numa pasta em perfeita ordem Mais tarde depois de meses usando esse jogo começou a desenhar cachorros gatos e pássaros Aos poucos passou a incluir pessoas nos desenhos que ficavam ao lado dos animais Todo esse processo foi lento e era alternado com maneirismos e crises de pânico quando sentia mudanças na ordem que ele queria manter nos objetos do consultório e na sua caixa individual Tinha menores momentos de isolamento e na escola conseguia acompanhar as atividades tendo êxito em matemática Nos seus desenhos passaram a predominar as Crianças e adolescentes em psicoterapia 313 figuras humanas Escrevia os nomes de seus colegas ou de familiares Houve uma transformação em sua vida mental perceptível na sua produção gráfica na sua capacidade simbólica e nas suas relações escolares e familiares Dos monstros que povoavam sua mente passou a se relacionar com pessoas internamente e na sua vida externa Na época do natal começou a se interessar pelo mito do Papai Noel que anos antes lhe cau sava pânico Desenhou muitos deles e conseguia discriminar que era um mito em que uma pessoa qualquer se fantasiava de Papai Noel Foi alar gando seus interesses trazendo livros com histórias de Saci Pererê Ne grinho do Pastoreio e outros personagens folclóricos Hélio avançava sim bolicamente ao discriminar entre o mundo de fantasias e a realidade exter na Estava estabelecido o espaço transicional uma área do como se que lhe abria portas para o criar o simbolizar e o pensar Tal como o personagem Pinóquio que de boneco de madeira conquis tou seu direito de ser humano Hélio também passou por um longo processo de transformações e de um menino robotizado e enrijecido nas suas este reotipias tornouse um jovem humanizado que conseguia estabelecer vín culos e modular alguns afetos a par de continuar com seus momentos de recolhimento autista Em seus longos anos de psicoterapia realizou algumas conquistas pessoais como concluir o ensino fundamental e ter atividade remunerada sendo encarregado de organizar os vídeos e filmes de uma locadora Aos 18 anos retornou agora por desejo próprio à psicoterapia Conseguia falar com adequação sobre seus sofrimentos pelos rituais obses sivos que mantinha na hora de dormir sobre o controle que tinha de manter sobre os objetos de seu quarto como é típico do pósautismo Mas sobretudo Hélio agora sofria pelos seus desejos sexuais e ativida des masturbatórias que julgava serem pecaminosas Organizaramse defe sas compulsivas que o impeliam a lavar as suas mãos exageradamente Ele queria namorar mas não era bem aceito pelas moças de quem se aproxi mava Tinha alguma consciência de ser diferente e sofria muito Nessa época quando muito mobilizado por ansiedades relativas aos seus desejos sexuais apresentava alergias e coceiras na pele Permaneceu mais dois anos em tratamento interrompendoo por mudança de cidade de sua família Hélio sofreu para conquistar sua condição humana e muito aprendi com ele sobre o difícil e doloroso trajeto que um autista tem que trilhar em busca de seus processos de subjetivação Da sensorialidade exacerba da e das protoemoções não transformadas que o desmantelavam cons truiu via relação terapêutica uma mente pensante Para Bion 1962 1991 o aparelho mental se constrói no vínculo e as emoções são o cen 314 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols tro do significado sendo que o conhecer e o pensar estão indissociados dos afetos Hélio duramente pode ter acesso a afetos que conferiram sentidos a muitos eventos de sua vida e já adolescente teve a possibi lidade de sofrer o seu próprio sofrimento Estava inserido no mundo da cultura humana trabalhava e mantinha alguns vínculos a par de manter muitas condutas bizarras e fases de isolamento Seu estado pósautista era o de um obsessivocompulsivo grave ETAPA FINAL DA PSICOTERAPIA Os tratamentos com crianças autistas costumam ser muito longos Dois dos casos aqui descritos foram acompanhados até a adolescência época em que já haviam adquirido progressos em sua vida psíquica e relativas conquis tas na vida interpessoal os outros meninos encontramse ainda em tratamen to A etapa de finalização da psicoterapia não pode ser apressada e o processo de separação precisa ser trabalhado com tempo calma e muita paciência Nessa etapa está consolidado um espaço psicoterápico potencial e criativo área em comum entre paciente e terapeuta tal como em qual quer outra psicoterapia psicanalítica Surgem todas as gamas de fenôme nos que envolvem o campo psicoterápico como já foi descrito em capí tulos anteriores deste livro10 com elaborações dos estados de pânico e desamparo com a constatação de suas diferenças mas também com inú meros crescimentos e trabalhos de luto Como autistas viveram feridas de separação nãocicatrizadas quando bebês ao final de suas psicoterapias quando terão que se separar fisicamente de seus terapeutas atravessam um período bastante variável de tempo em que temas de perdas e lutos têm que ser bem trabalhados pois já aprenderam que há desencontros encontros afastamentos e novos reencontros durante suas vidas Como aponta Tustin 1990 p 243 talvez a parte danificada nunca seja completamente curada mas abremse portas de uma vida mais plena com interações e trocas e novas possibilidades para seu viver Leonardo do irrepresentável à capacidade de nomear seu sofrimento Leonardo estava com 17 anos frequentava a 8a série e estava próximo da etapa final de sua longa psicoterapia Contou que fez uma viagem com seus colegas de escola mas que todos já tinham pares para sentar Crianças e adolescentes em psicoterapia 315 no ônibus e ele ficou sozinho almoçando também isolado no restau rante Após esse relato fica muito reservado Levantase e vai até uma estante de livros e pega um deles Lê o título em voz alta Irrepre sentável11 Pensa e pergunta Leonardo O que é isso Terapeuta O que tu achas que é Leonardo Não sei É sobre representar Terapeuta Pode ser mas pode ser sobre não representar Mas o que é representar Leonardo É representar uma pessoa como os atores da Globo É imitar uma pessoa triste ou alguém bravo Fica silencioso Retraise e faz certos movimentos estereotipados com suas mãos como que rodopiando algo como é seu hábito quando precisa se defender de algo angustiante A terapeuta o chama pelo nome diversas vezes pergunta sobre o que pensa sem sucesso Ele respondia Nada nada De forma intuitiva a terapeuta começa a representar os movimentos autísticos de Leo nardo Nesse momento ele a olha e fala com raiva Leonardo Pára de representar Leonardo distraído Terapeuta Quando ficaste com olhar vago e te chamei e perguntei o que pensavas acho que não tinha nada mesmo só um vazio um bu raco Estavas muito longe desligado daqui Leonardo Eu não sei o que é Fico distraído Minha mãe diz que fico esquisito e as pessoas não gostam de gente que é assim diferente Leonardo pega o livro e lê em voz alta o que estava escrito na contra capa o analista se abre ao alucinatório e atinge assim zonas do psiquismo do analisando inatingíveis de outro modo a dos traumas que não puderam ser representados Repete a palavra trauma e si lenciosamente pega uma bola dentro do armário e a rodopia com as mãos Repete Trauma Trauma Trauma é uma coisa que aconte ceu novamente se distrai rodopiando a bola nas mãos Depois diz Leonardo Eu não lembro de nenhum trauma Terapeuta Pode ser que não lembres mesmo mas pode ter existido algum que não tenhas memória e que seja mesmo irrepresentável Leonardo pega novamente o livro abreo e pergunta onde comprei porque gostou dele e quer ter um igual Conversamos sobre ser um livro difícil de ler e que talvez não fosse a leitura mais apropriada para ele nesse momento Ficou zangado e acusava a terapeuta de não querer que ele tivesse um livro igual ao seu Fica quieto e depois grita 316 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Leonardo Dei um peido Abre essa janela Vou te infestar toda Terapeuta Foi um peido fedorento mesmo Um peido pode ser repre sentado Ele rindo e abrindo a janela diz Leonardo Acho que pode É um vento fedorento Terapeuta Eu e tu estamos aqui com teu vento fedorento mas eu não fujo de ti e nem vou ficar contaminada com o cheiro Lembras quando começaste a vir aqui Quase não falavas ficavas muito isolado fazia gestos Agora podemos conversar sobre o que tu sentes e até represen tar a tua raiva através de um peido fedorento Leonardo E eu já era distraído desde pequeno Eu queria ter ami gos Sou esquisito ninguém gosta de mim Seguese a sessão com Leonardo falando de seus sofrimentos e frustra ções por não conseguir ter amigos que o convidem para sair ou ir a festas e também de seu desejo de ter uma namorada Ao final da sessão dá um abraço na terapeuta Com esse fragmento de sessão observase que Leonardo ao ver personificado na terapeuta seus rituais autísticos percebeu os efeitos que causava nos demais Conseguiu nomear sentimentos arcaicos de isola mento além de mostrar sua raiva através da atuação soltando gazes Representar dramatizar o que ocorreu foi mais produtivo do que lhe fornecer interpretações no momento da sua retirada autística Intuitiva mente foilhe oferecida a personificação e a imagem de seu isolamento autístico e condutas bizarras A partir dessa experiência ele criou a representação de sua raiva através da metáfora do vento fedorento que inundou a sala Em conjunto a dupla pacienteterapeuta criou signifi cados em cima do invisível do traumático e do irrepresentável Esse fragmento clínico mostra a possibilidade do desenvolvimento da capacidade de simbolização duramente alcançado por Leonardo no transcurso de sua psicoterapia Em seguida conseguiu retomar o seu pensamento verbal e falar sobre seu intenso sofrimento por não ter amigos por ser rejeitado e ser considerado uma pessoa esquisita por seus colegas Essa sessão marcou uma etapa nova e de mais progressos que se mantiveram até o término de sua psicoterapia O jogo dos afetos transferenciais e contratransferenciais vivenciado por sua terapeuta frente a Leonardo abriu possibilidades de represen tação que desempenharam um papel fundamental para o prosseguimento de suas narrativas e possibilidades de reconstrução de seus traumas e sua Crianças e adolescentes em psicoterapia 317 história nas demais sessões que se seguiram auxiliando na evolução do seu crescimento psíquico CONSIDERAÇÕES FINAIS A experiência com autistas enriqueceu nossa prática clínica e nos tor nou mais tolerantes e abertas ao desconhecido Contratransferencialmente ao longo das psicoterapias experimentávamos a mesma sensação de desam paro e extrema solidão que os nossos pacientes Em muitos momentos tive mos nossas ligações mentais rompidas e nossa capacidade de pensar para lisada Houve muitas ocasiões em que duvidávamos de nossas possibilidades de levar adiante tratamentos tão difíceis longas psicoterapias complexas e sofridas para os pacientes suas famílias e para nós terapeutas O conceito elaborado por Alvarez 1994 p 6465 de objeto recla mador teve importância em nossa clínica Aprendemos que ao tratar autistas temos que reclamar sua atenção e não deixálos entregues às suas estereoti pias e rituais chamandoos à vida ter paciência muita persistência e empatia com seu sofrimento silencioso estar disponíveis e continentes ter flexibilidade para adaptar a técnica habitual usada para outros tipos de pacientes menos graves Outra questão nos inquietava até que ponto uma psicoterapia psica nalítica seria eficiente para crianças autistas Casos como o de Adriano Leonardo Maurício e Hélio fazemnos pensar que todo o investimento afetivo das famílias das terapeutas e dos demais profissionais envolvidos valeu a pena Agora não mais nos deparávamos com pessoas robotizadas e quase inacessíveis mas vislumbrávamos pessoas com sua carga de sub jetividade que podiam manifestar os próprios desejos e que podiam sofrer alegrarse e viver uma vida menos árida a par de terem alguma consciência de suas limitações mas com interesse nas relações humanas Quando um tratamento com autistas é finalizado é gratificante saber que eles cada vez menos apresentam momentos de prisão em um terror sem nome no caos e na indiferenciação subhumana Os seus sofrimentos possuem denominações são pessoais e tem algum sentido Há um sujeito que construiu algum significado ao que foi vivido aos traumas e aos aspectos 318 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols de sua história pessoal que podem ser representados pensados e elabo rados mesmo que de forma ainda rudimentar Nossa rica experiência com crianças e jovens autistas nos ensinou que é possível eles se apropriarem de seu modo de ser no mundo construindo seus processos de subjetivação e como qualquer pessoa sofrerem e elaborarem as suas dores por si mesmos NOTAS 1 um processo de clivagem segundo o qual as crianças autistas desmantelam seu Eu em suas capacidades perceptuais separadas o ver o tocar o escutar o sentir etc Meltzer 1975 p212 A fixação ou o agarramento em uma sensação particular auditiva tátil vestibular visa no autista escapar deste desmantelamento sensorial origem de um sentimento de inconsistência de arrebentamento ou de despedaçamento intolerável 2 Lapsos no desenvolvimento do senso de espaços internos impossibilitam o uso da identificação projetiva como mecanismo de comunicação primitiva do bebêmãe Bebês aderem a objetos na ausência de espaços nos quais se possa projetar Isso recebeu o nome de adesão ou identificação adesiva Hinsehlwood 1992 p 470 3 Se por autismo queremos dizer uma falta primária de interesse e de registros aos estímulos externos então os dados recentes indicam que o bebê jamais é autista No autismo existe uma falta de interesse geralmente seletiva ou evitação dos estímulos humanos Isso jamais acontece com bebês normais Uma fase autística normal a que ela está presa pelo nome e parcialmente pelo conceito a uma condição que é patológica e que não ocorre até mais tarde no desenvolvimento A Dra Mahler está a par de muitos achados recentes de pesquisas e de certa forma modificou sua conceitualização para acomodar esses achados Em recente discussão ela sugeriu que essa fase inicial bem poderia ter sido chamada de despertar o que está próximo de emergência termo usado por Stern comunicação pessoal de Mahler em 1983 Stern 1992 p 210 4 Autoctonia é o termo relativo a seres não humanos que nascem da própria terra emergindo do solo 5 Sobre esse tema ver Capítulo 6 O lugar dos pais na psicoterapia de crianças e de adolescentes 6 Entre as diversas teorias que nos auxiliaram apontamos Teoria Afetiva Hobson Teoria da Mente BaronCohen Teorias Neuropsicológicas e de Processamento de Informação e de Déficit na Função Executiva Hughes C e Russell 7 Ver também Maurício com seu desenhos ressaltando os mamazinhos e bigo 8 Ver casos Leonardo que no estado pósautista passou a ter dermatite nas mãos quando algo o perturbava emocionalmente e Hélio que ansioso com fantasias sexuais apresentava dermatites de contato Crianças e adolescentes em psicoterapia 319 9 Como no caso Maurício Hélio estabeleceu contato através do envelope sonoro proporcionado por sua psicoterapeuta na primeira sessão 10 Ver Capítulo 4 A clínica com crianças e adolescentes o processo psicoterápico Capítulo 5 As etapas da psicoterapia com crianças 11 BotellaC e Botella S 2001 O Irrepresentável Porto Alegre Editora Criação Humana REFERÊNCIAS ÁLVARES I VIEIRA C O clone e a identificação adesiva Revista Psicoterapia Psicanalítica IEPP v 5 n 5 p 154163 2003 ALVAREZ A Companhia viva Porto Alegre Artmed 1994 ANZIEU D O eu pele São Paulo Casa do Psicólogo 1989 BAILEY A PHILIPS W RUTTER M Autism Towards an integration of clinical genetic neuropsychological and neurobiological perspectives Journal of Child Psychology and Psychiatry v 37 p 89126 1996 BARONCOHEN S Social and pragmatic deficits in autism cognitive or affec tive Journal of Autism and Developmental Disorders v 18 p379401 1988 BARONCOHEN S LESLIE A M FRITH U Does the autistic child have a theory of mind Cognition v 21 p 3746 1985 BICK E The Experience of skin in early object relations Internacional Journal of PsycoAnalysis v 49 p 484488 1968 BION W Aprendiendo de la experiencia Buenos Aires Paidós 1991a Elementos de psicanálise Rio de Janeiro Imago 1991b BOZZA C CALLIAS M Autismo breve revisão de diferentes abordagens Psicologia Reflexão e Crítica Porto Alegre v 13 n 1 2000 BRAZELTON T B O desenvolvimento do apego Porto Alegre Artmed 1988 DEBRAY R Bebêsmães em revolta Porto Alegre Artmed 1988 FERREIRA T A escrita da clínica psicanálise com crianças Belo Horizonte Au têntica 2000 GEENBERG L MITCHEL S Teoria das relações objetais Porto Alegre Artmed 1994 HOBSON P Autism and the development of mind London L Erlbaum 1993 The cradle of thought Oxford University 2002 HUGHES C RUSSELL J Autistic childrens difficulty with disengagement from an object Its implications for theories of autism Developmental Psychology v 29 p 498510 1993 KANNER L Autistic disturbances of affective contact Nervous Child v 2 n 3 p217250 1943 KLEIN M A 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In FERRARI A Adolescên cia o segundo desafio São Paulo Casa do Psicólogo 1996 p 119141 ROCHA P S Terror do mudo novo ou interpretação autista do velho mundo In ROCHA P S Org Autismos São Paulo Escuta 1997 p 97110 SANDRI R O primeiro sentimento de existência do bebê entre corpo e psiquismo Conferência realizada na Clínica PaisBebê Porto Alegre 2000 SEGALL H A obra de Hanna Segall Rio de Janeiro Imago 1983 STERN D O mundo interpessoal do bebê Porto Alegre Artmed 1992 TAFURI M I Autismo infantil precoce Insight Psicoterapia ano 2 n 16 p 19 22 1992 Dos sons à palavra explorações sobre o tratamento psicanalítico da crian ça autista Brasília ABRAFIPP 2003 TOMASELLO M Origens culturais da aquisição do conhecimento humano São Paulo Martins Fontes 2003 TUSTIN F A perpetuação de um erro Letra Freudiana ano 16 n 14 p 6379 1995 Autismo e psicose infantil Rio de JaneiroImago 1975 Autistic children assesed as not braindamage Journal of Child Psychotera py v 20 p 209225 1994 Barreiras autistas em pacientes neuróticos Porto Alegre Artmed 1990 TREVARTHEN C Inrinsic motives for companioship in understanding their ori gin development and significance for infant mental health Infant Mental Jour nal v 22 n ½ p 95131 2000 WINNICOTT D W A natureza humana Rio de Janeiro Imago 1990 Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self In O am biente e os processos de maturação Porto Alegre Artmed 1990 O brincar e a realidade Rio de Janeiro Imago 1975 Preocupação materna primária In Textos selecionados da pedia tria à psicanálise Rio de Janeiro F Alves 1978 Psicoterapia de adolescentes com tendência suicida Sandra Maria Mallman da Rosa 17 Esse tema suscita questões que vão muito além do entendimento e do manejo técnico pois se refere a questões de vida e morte não apenas em nível simbólico mas no real e no concreto Falar sobre suicídio em especial na sociedade ocidental é praticamente um tabu Para as famílias e até mesmo para alguns profissionais da área da saúde entrar em conta to com ideias ou ameaças de morte mobiliza questões relacionadas com a própria morte e banalizar o fato negálo criticálo ou buscar culpados é uma forma encontrada para aplacar as ansiedades que o assunto desper ta Dessa forma muitos dos mitos que existem em torno do suicídio mais do que desinformação se justificam como uma proteção contra a per cepção de um risco iminente bem como para eximir os demais de respon sabilidades e das providências a serem tomadas O adolescente é caracteristicamente impulsivo hipersensível suscetí vel emotivo impaciente e está em constante desequilíbrio Como conse quência é maior a sua vulnerabilidade para condutas de risco pois para alguns deles o ataque ao corpo é a única forma de expressar os conflitos internos e aplacar a tensão produzida pelas rápidas mudanças desencadea das pela puberdade Os jovens com tendência suicida mobilizam e desa fiam o terapeuta de maneira peculiar são intensas as identificações projeti vas que provocam reações contratransferenciais igualmente intensas Tam bém o narcisismo do terapeuta é colocado em cheque ao se deparar com o fato de que em certos casos as suas intervenções poderão não ser suficien tes para impedir o ato suicida Alguns desses jovens estão decididos a mor rer e para eles os esforços terapêuticos terão pouca ou nenhuma eficácia 322 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols O suicídio ou parasuicídio é definido como qualquer ação que varia quanto ao grau de consciência pela qual o indivíduo provoca um dano físico a si mesmo Mesmo sem consequência de morte essa ação é poten cialmente perigosa seja pela sua intencionalidade autodestrutiva ou pelo desconhecimento do indivíduo quanto aos riscos cuja motivação vai desde o desejo de acabar com a própria existência até a intenção de com o ato modificar o ambiente sociofamiliar Através dos tempos as reações da sociedade assumiram diferentes características diante do suicídio admiração como um ato de suprema liberdade ou solução aceitável para as situações intoleráveis da vida co mo ofensa a Deus ou para os gregos e romanos um ato contra o Estado ou interpretado como um desvio de comportamento despertando rea ções de hostilidade e punição aos ditos infratores Timbó 2006 Na An tiguidade Clássica começa a se esboçar o conceito de suicídio romântico em que os amores impossíveis levavam a ameaças ou à consumação do suicídio sendo abundantes na literatura as histórias com fim trágico relacionadas ao abandono ou à perda do ser amado Durante séculos a Igreja não se posicionou só havendo menção ao ato suicida quando Santo Agostinho e São Tomás de Aquino o taxaram como uma ação pecaminosa demoníaca e moralmente recriminável Pos teriormente incorporado à lei civil o suicídio passou a ser visto como um atentado contra as instituições sociais sendo punido com severidade os bens da vítima eram confiscados o corpo era exposto à execração pública e os parentes deviam pagar multa ao Estado No século XIX intelectuais e filósofos começam a questionar esses conceitos e o suicídio passa a ser visto como uma manifestação de lou cura Gradualmente vaise percebendo que existem fatores predisponen tes e situações desencadeantes do comportamento suicida A abordagem agora menos baseada na moral busca a compreensão do ato com um enfoque mais médico e social chegando à visão atual do suicídio como uma questão de saúde pública Cerca de 3 mil pessoas por dia cometem suicídio em todo o mundo e para cada uma delas outras 20 tentam sem sucesso A média de suicídios na população geral teve um aumento de 60 nos últimos 50 anos prin cipalmente nos países em desenvolvimento OMS 10092007 Inú meras pesquisas apontam para o suicídio como a segunda ou terceira cau sa de morte entre adolescentes e jovens adultos sendo a faixa de 1518 anos a mais crítica para os comportamentos de risco É difícil precisar a frequência dessa ocorrência na população jovem brasileira devido à pre Crianças e adolescentes em psicoterapia 323 cariedade dos registros médicos e policiais Sem falar na dificuldade para determinar a intencionalidade de algumas situações aparentemente aci dentais visto que os acidentes de trânsito atropelamentos e afogamentos podem camuflar uma intenção suicida Tendo isso em mente a projeção é de que existem pelo menos dez vezes mais suicídios no Brasil do que é de fato relatado Souza Minayo e Malaquias 2002 Estimase que de 15 a 25 daqueles que buscam a morte tentam novamente no ano seguinte e desses 10 conseguem consumar o ato nos próximos 10 anos Botega 2006 As taxas mais altas de suicídio entre jovens aparecem na Rússia Lituâ nia Hungria e Nova Zelândia Avanci Pedrão e Costa Junior 2005 Estimase que no Brasil entre 9 e 12 dos adolescentes atentam contra sua vida e 13 das hospitalizações psiquiátricas têm a tentativa de suicídio como um dos motivos de baixa Resmini 1993 Sabese que a população feminina utiliza esse recurso com mais frequência porém o índice de mor talidade é maior na população masculina Isso se deve à escolha de méto dos mais letais maior propensão para violência impulsiva maior incli nação ao abuso de substâncias pedido de ajuda menos frequente e por serem mais frágeis diante de rupturas relacionais e outros tipos de ten sões Frazão 2003 Dentre as principais cidades brasileiras Porto Alegre desponta com a taxa mais elevada seguida por Curitiba Os meios e procedimentos mais utilizados pelos jovens brasileiros Souza Minayo e Malaquias 2002 são o enforcamento estrangulamento e sufocamento seguidos do uso de armas de fogo e explosivos Entre as meninas predomina a ingestão de medica mentos e substâncias químicas Avanci Pedrão e Costa Júnior 2005 Análises epidemiológicas indicam que a maioria dos suicídios entre os jo vens ocorre em casa durante o dia aproveitando a ausência dos pais e ressaltam que uma relação pobre com a figura materna é um dos impor tantes fatores de risco A adolescência é um período de grande turbulência emocional que demanda um sofrido trabalho de reorganização psíquica em função das fantasias e angústias intensas que são acionadas principalmente pelas transformações corporais da puberdade O corpo é vivido como o lugar de onde emerge uma força pulsional incontrolável e inquietante e para que se possa escapar da angústia ligada à possibilidade de consumação do incesto e do parricídio o jovem deverá renunciar à onipotência infantil à bissexualidade e admitir a diferença de sexos e gerações Ladame e Ottino 1996 Existe uma estreita relação entre a constituição da genita lidade e a confrontação com a ideia de morte como um fato irreversível e 324 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols definitivo Ao mesmo tempo que o advento da capacidade procriativa traz implícita a noção de vida as perdas consequentes das alterações da pu berdade fazem irromper a noção de morte noção de temporalidade de finitude da vida e o reconhecimento da morte Tubert 1999 O narcisismo do adolescente caracterizase pelo retraimento da li bido introspecção e delírio de grandeza hipervalorização dos próprios desejos e atos psíquicos onipotência de ideias fé na força mágica das palavras O colapso narcísico Probst 1989 produzse quando ele não é capaz de tolerar e elaborar dois fenômenos concomitantes o desmorona mento do seu ego ideal frente às feridas narcisistas e a falha de seus ideais de ego ainda não estabelecidos suficientemente O rompimento das fan tasias mágicas e onipotentes e o reconhecimento da morte com o decor rente sofrimento narcisista e autoestima abalada poderão dar lugar a depressões e ao surgimento da conduta suicida A forma de comunicação nessa faixa etária dáse preponderante mente pela ação muito mais do que pela palavra Quando o malestar e a estranheza causados pelo novo corpo atingem um nível insuportável e não é possível fazer o luto pelo corpo perdido existe um risco de pane Dias 2000 que será resolvido pela passagem ao ato Surgem então as tentativas de morte muitas vezes mascaradas através de jogos e condutas arriscadas O risco de morte implícito nessas condutas relacionase com a onipotência infantil ainda não superada que faz com que o jovem não considere a possibilidade de dano ao próprio corpo ou dos outros As de fesas maníacas são o último recurso para aliviar a dor e o sofrimento psí quico e a sensação é de poder sobre a própria vida de retomada do con trole o que lhe restabelece o sentimento de liberdade A manipulação dessa ideia e a experimentação dos limites representam a fantasia de con trole sobre a vida e a própria morte Desafiar a morte e tentar dominála com o sonho íntimo da imortalidade é arriscarse a morrer para conseguir viver e entender o que isso significa Oliveira Amâncio e Sampaio 2001 Na cultura de muitos povos primitivos a adolescência representa um segundo nascimento Nos ritos de iniciação é encenada a morte do rapaz que posteriormente é trazido de volta à vida pelos espíritos mar cando o fim da infância a perda da identidade infantil e o ingresso no mundo dos homens quando muitas vezes ele recebe um novo nome A proibição do incesto e do parricídio também está representada nesses ritos e somente através da renúncia a esses desejos primitivos da infância é que o jovem será admitido entre os adultos A circuncisão tão frequente na cultura desses povos significa uma castração simbólica quando então Crianças e adolescentes em psicoterapia 325 o púbere é obrigado a romper o narcisismo onipotente da primeira in fância representado pelo vínculo idealizado com a mãe para só assim poder alcançar o poder social Tubert 1999 Com as meninas os ritos ocorrem após a menarca e têm em comum com a iniciação dos meninos a separação da mãe o isolamento o castigo e o renascimento O rito de iniciação condensa a significação da morte do nascimento e a constitui ção do sujeito como tal possibilitandolhe o acesso à ordem simbólica A tentativa de suicídio do jovem ocidental seria para Tubert 1999 um equivalente dos rituais primitivos um ato mágico em que existe um pe ríodo de morte simbólica com ruptura do vínculo com a realidade e os objetos externos seguida de uma reconexão com o mundo e experimen tada como um renascimento Sob esse enfoque o que o adolescente esta ria buscando não seria realmente a morte mas o controle da mesma atra vés da sua sobrevivência ao ato suicida Durante a adolescência é bastante comum o aparecimento de ideias suicidas Isso não constitui um perigo por si só caso não exista uma plani ficação ou associação com outros fatores de risco quando só então adqui rem um caráter mórbido que pode levar ao ato suicida Barrero 2005 É necessário que se faça uma diferenciação entre ideação suicida e aqueles pensamentos mais ou menos mórbidos que buscam responder às interro gações existenciais tão características do período da adolescência Nessa fase é bastante comum que surja um interesse maior pelos símbolos de morte atitudes de atraçãorepulsão por acontecimentos horríveis etc Pen sar sobre a morte é necessário e estruturante nessa idade Teixeira 2004 Também é fator marcante a influência que têm sobre o indivíduo as crenças da sua cultura relacionadas com a morte Na evolução da hu manidade a negação da morte como o final de tudo é uma constante e sobre o suicídio em particular é possível que mais do que a expressão do instinto de morte o ato suicida venha acompanhado de uma fantasia de vida ou sobrevida melhor ou mais feliz que a atual Muitos pacientes trazem na ideia suicida o desejo de viver de outra maneira numa mescla de fantasia de imortalidade por um lado e esperança de que da próxima vez vá ser diferente do outro seria assim um modo equivocado de que rer viver E o dano ou a morte ocorreriam paradoxalmente como conse quência Sinay 1983 Para Ladame e Ottino 1996 o suicídio encerra vários paradoxos o corpo se torna um objeto estranho e ao mesmo tempo é próprio ao sujeito o gesto suicida é dirigido contra um inimigo vivido como exterior ao mesmo tempo em que ele ataca a si mesmo O conflito entre o corpo real genital e o corpo idealizado impúbere leva a outro 326 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols paradoxo como destruir o corpo real salvando o corpo idealizado O paradoxo maior é que o adolescente quer e não quer morrer Na adolescência muitos comportamentos apesar de não serem abertamente suicidas podem ser considerados de risco dirigir sem cinto de segurança andar de moto sem capacete portar armas envolverse em brigas consumir substâncias cigarro álcool maconha inalantes não usar preservativo nem método anticoncepcional provocar vômito ou usar laxantes e moderadores do apetite para controle do peso CarliniCotrim GazalCarvalho e Gouveia 2000 A prática da automutilação é mais uma das formas com que os jovens lidam com a angústia extravasandoa no próprio corpo e também pode ser caracterizada como um comporta mento suicida Coldibeli 2007 As práticas de arranhões cortes quei maduras bater a cabeça contra a parede configuram microssuicídios ou parassuicídios Oliveira Amâncio e Sampaio 2001 nos quais a escolha feita é pelo sofrimento ao invés da morte Também a chamada Body Art que inclui a scarification cicatrizes feitas com bisturi e o branding a pele é marcada com ferro quente como acontece com o gado vão muito além da identificação com os pares por meio das inscrições no corpo pois rompem o limite entre estética e sofrimento onde a dor física está a serviço da expressão da dor emocional Atualmente o ato suicida já não é encarado tanto como um momen to delirante mas como negação da realidade sendo fruto mais de um rapto ansioso do que psicótico Ottino 1996 critica o emprego excessi vo do termo psicose nesses casos como também as teorias centradas exclusivamente no ódio ao próprio corpo O momento suicida é de rompi mento entre pensamento e ato um atuar fora de controle um estado de desespero em que não há possibilidade de representação simbólica Mas o acento maior das teorias atuais recai sobre a vulnerabilidade desses ado lescentes devido à sua fragilidade narcísica As falhas narcisistas assu mem papel preponderante na medida em que levam à incapacidade do psiquismo de enfrentar situações ansiogênicas sejam elas internas ou externas Flechner 2000 A tentativa suicida seria uma busca de imobi lidade para extinguir a atividade psíquica deter o que não está podendo ser controlado que é a entrada na idade adulta Essa imobilidade permiti ria a negação da perda do objeto primário e a busca do reencontro fu sional com ele Essa seria uma forma de alcançar a calma e a paz que para esse jovem existiam antes do início da puberdade Por ser difícil de definir a intencionalidade autodestrutiva na adoles cência deve haver cuidado nas atitudes a serem tomadas em relação a Crianças e adolescentes em psicoterapia 327 comportamentos predominantemente manipuladores que não parecem ter um propósito real de autodestruição Ao se desconsiderarem os riscos e a gravidade potencial de tais comportamentos perdese a oportunidade de intervir adequadamente o que pode significar a diferença entre a vida e a morte daquele indivíduo Mesmo diante de uma nítida simulação é conveniente que se busque entender o motivo da escolha dessa forma específica de expressão pois indica que o jovem foi incapaz de responder de forma mais saudável à pressão dos seus conflitos internos Dentre os fatores que contribuem para o risco de suicídio Resmini 1993 destacamse aspectos familiares abuso sexual pais dependentes de substâncias psicoativas ausentes com conduta agressiva e repressora com re lações conflituosas aspectos sociais apoio emocional insuficiente moram sozinhos ou com outras pessoas que não os pais grupo de amigos problemá ticos e desvalorizados aspectos escolares mau rendimento escolar ou bom desempenho mas com muita pressão pelo próprio êxito sexualidade vínculos simbióticos forte ansiedade de separação diante de ameaças de rompimento início precoce das atividades sexuais para reter o parceiro sintomas psiquiátricos ansiedade desesperança humor depressi vo impulsividade agressividade conduta antissocial história pregressa tentativas prévias de suicídio maustratos ou negligência perda ausência ou falta de convívio com um dos pais na infância exposição prévia ao suicídio de pessoas significativas diagnóstico o distúrbio depressivo aumenta a probabilidade transtorno de conduta borderline uso de substâncias psicoativas Quanto aos sinais precursores sempre existem avisos mensagens indícios que anunciam as intenções suicidas Bouchard nd são restos de esperança que configuram um pedido de ajuda mensagens verbais diretas aludindo à morte ameaças de suicídio comportamentos autodestrutivos mensagens indiretas que aludem ao suicídio preparativos para viagem cartas de adeus etc doação de objetos pessoais inte resse por temas relacionados à morte atração súbita por armas de fogo e produtos tóxicos depressão transtornos do apetite e do sono tristeza choro indecisão irritabilidade cólera raiva baixa 328 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols autoestima ansiedade aumentada isolamento mutismo perda de interesse nas atividades busca pela solidão comportamentos como faltas à escola dificuldade de concen tração queda no rendimento escolar hiperatividade ou lentidão extrema atração e preocupação com temas de morte e reencar nação negligência com a aparência consumo excessivo de álcool drogas ou medicamentos O processo suicida segue uma evolução desde o início da crise até a passagem ao ato Bouchard sd 1 Busca de solução alternativas que possam gerar mudanças na situação estressante ou reduzir o sofrimento A ideia de suicídio ainda não foi considerada ou é vista como apenas uma das possibilidades 2 Ideação suicida são rejeitadas as soluções ineficazes para a cri se e dentre as possíveis aparece súbita e brevemente a morte Esta passa a ser considerada com mais frequência e começam pensamentos sobre como colocar em prática 3 Ruminação o desconforto aumenta é mais difícil de suportálo sensação de terem se esgotado todas as possibilidades de solu ção retorno constante da ideia de suicídio 4 Cristalização certeza de que o suicídio é a solução passando à elaboração do plano Isso leva a um alívio parecendo não haver mais problema pois a solução foi encontrada Desligamento emocional dos demais e sentimento de isolamento 5 Elemento desencadeante é iminente a passagem ao ato bastan do qualquer elemento precipitante Cabe lembrar que o tempo de desenvolvimento de todo esse processo pode ser muito curto durando por vezes apenas algumas horas Entre tanto nunca é tarde para se intervir a ambivalência e o medo de passar ao ato estão presentes até o último instante e o processo pode ser interrom pido a qualquer momento Não deve ser esquecido entretanto que os pas sos desse processo evoluem mais rapidamente na segunda tentativa quan do as mensagens são mais veladas e o método utilizado é mais violento No tratamento com o adolescente devese investigar o que lhe vem à mente quando pensa em suicídio e o que pensava no momento da tentativa Relatar que pensava em alguém pode sinalizar um desejo de viver e que ainda mantém interesse pelos objetos ao passo que não estar Crianças e adolescentes em psicoterapia 329 pensando em nada pode significar que já matou dentro de si as pessoas significativas indicando gravidade maior e grande risco de repetição do ato Laufer 1996 P 17 anos refere pensar em morte o tempo todo Entretanto demons tra preocupação com os amigos e como ficarão após sua morte Pensa em se afastar do convívio deles com antecedência para que tenham tempo de se acostumarem com sua ausência enquanto ainda está vivo Esses são objetos com quem ele ainda se importa que ainda não matou dentro de si A tentativa de suicídio segundo o grau de risco que implica pode ser Tubert 1999 1 Benigna ato compulsivo de baixo risco com características reativas a situações de mudança ou perda em um contexto emo cional depressivo é simultaneamente um castigo e um ato de vin gança ocorre em local onde seja possível ajuda busca continen te é uma tentativa de restabelecer contato com alguém signifi cativo Os instrumentos utilizados são menos perigosos e mais ambivalentes como remédios que também servem para curar Simboliza a morte como tentativa de renascer Posterior alívio da tensão podendo chegar ao arrependimento e desaparecendo a intenção suicida 2 Maligna ato impulsivo de muito risco relacionado com es trutura e psicopatologia ligada à personalidade prévia sem de sencadeantes observáveis ocorre na ausência de testemunhas os instrumentos utilizados indicam que a busca da morte é a fina lidade maior armas jogarse do alto de um prédio por exemplo ou na frente de carros após a tentativa dáse um agravamento da tensão e persiste o desejo suicida A tarefa terapêutica é auxiliar o paciente a compreender o ato e liberálo da sua fascinação pela morte através principalmente do traba lho sobre o momento traumático Devese procurar converter a angústia em um alarme que permita um primeiro ponto de ancoragem que pas sará necessariamente pela figura do terapeuta Flechner 2000 O tra balho do terapeuta pode ser comparado aos ritos de passagem em que a iniciação morte da criança darseia através da ação do terapeuta co mo o mediador da função simbólica Tubert 2000 330 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols No contato com adolescentes suicidas a empatia deve ser utilizada como principal instrumento Devese tentar ver o mundo através dos olhos do paciente em uma escuta ativa acurada empática que possibi litará entender o conflito para o qual o paciente não vê outra solução senão a morte Ao investigar com o paciente as razões para sua conduta ou ideação autodestrutiva o terapeuta poderá auxiliálo a buscar modos alternativos de lidar com as crises e problemas que enfrenta Mas devese estar alerta para o risco de uma entrevista excessivamente centrada nos aspectos destrutivos pois seria como uma confirmação aos temores do paciente de ser julgado como doente mental o que poderia leválo a re trairse defensivamente Resmini 1993 C 18 anos foi encaminhado pelo clínico com queixa de dores pelo corpo que não correspondem a doença somática Na primeira entrevista conta que se sente triste desde sempre Após a morte recente do pai transfor mou seu quarto num verdadeiro cenário fúnebre pintou as paredes de preto acrescentou objetos como velas forca arame farpado lâminas de barbear Remete o significado de cada objeto a ideias eou tentativas ante riores de suicídio A terapeuta optou por realizar mais uma entrevista an tes de encaminhálo ao psiquiatra visto que o paciente já estava medicado com antidepressivo e demonstrava desejo de falar a respeito do que sentia e no que pensava Na segunda entrevista foi feito o encaminhamento psi quiátrico que foi prontamente aceito pelo paciente Na terceira entrevista ainda não havia consultado o psiquiatra e estava muito bravo com sua mãe Queixavase de que ela teria lhe dito que não se preocupasse com o fato de ir ao psiquiatra pois isso não significava que fosse louco Apesar de o assunto ter sido muito examinado nessa sessão C não retornou mais Tanto ele quanto sua mãe se esquivaram das tentativas de contato feitas pela terapeuta restando a esta o papel de causadora da dor e sofri mento do paciente a pessoa que o considerava um louco Além disso foi transferida para ela toda a preocupação com a sobrevivência do rapaz Fica aqui uma indagação relacionada com um aspecto paradoxal do atendimento em consultório a este tipo de paciente a urgência de uma intervenção psiquiátrica e medicamentosa em contraste com a necessi dade de se estabelecer um vínculo mais consistente com o paciente antes de proceder ao encaminhamento A estrutura familiar tem participação importante no contexto da questão suicida do adolescente Encontramse nessas famílias a indiferen Crianças e adolescentes em psicoterapia 331 ciação e a indiscriminação dos papéis de seus membros ausência ou falha da função paterna e predomínio da função materna A união com a figura materna fortalece a posição narcisista dandose um desequilíbrio na família São famílias incapazes de tolerar a expressão da agressão porque não podem elaborála nem simbolizála O adolescente é escolhido como uma vítima propiciatória voltando a agressividade contra si mesmo o que serve para impedir a desintegração do grupo Ele renuncia à própria identidade e fica sem um lugar onde possa se definir e se reconhecer como sujeito Tubert 2000 entende que a tentativa de suicídio pretende romper a relação indiferenciada com a mãe da qual não é possível sair de outro modo A saída da posição narcisista significa uma morte mas mantêla também significa morrer como sujeito As alterações da puber dade afetam não só o adolescente mas também a todos os que convivem com ele reativando antigos demônios que até então estavam silencia dos Isso significa que as atitudes dos pais podem estar relacionadas com uma reativação de conflitos transgeracionais por sua vez relacionados com a violência e que não foram elaborados simbolicamente Flechner 2000 Sob esse enfoque o ato suicida pode ocorrer como um fenômeno de repetição de algo escondido nos pais que irrompe no filho através da identificação inconsciente com seus antepassados suicidas É bastante frequente encontrar na história familiar desses adolescentes uma ou mais situações de morte por suicídio em gerações anteriores fato geralmente desconhecido pelo paciente fazendo parte de um segredo familiar Mes mo que o fato seja do seu conhecimento em geral é cercado de uma aura de mistério que permite a proliferação de fantasias a respeito inclusive a de que cabe a ele dar continuidade a esse destino A contratransferência na relação terapêutica com pacientes em risco também merece atenção especial o paciente projeta no terapeuta sua hostilidade e angústia de morte e este é posto à prova pois deve ser capaz de receber e conter esses aspectos para só posteriormente inter pretálos e devolvêlos ao paciente Como vimos anteriormente o tera peuta representa o responsável pelo despertar da dor psíquica e por isso é imprescindível que tenha analisado os aspectos que tocam diretamente a sua própria adolescência bem como as angústias relacionadas à sua própria morte Flechner 2000 Em muitos casos o paciente relata situações claramente autodestru tivas sem demonstrar preocupação com sua conduta mesmo que admita o risco implícito quando confrontado com a situação As angústias de morte são projetadas no terapeuta que se faz cargo da depressão do 332 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols paciente e sobre quem recai a pesada tarefa de se preocupar com sua integridade F19 anos é um rapaz aparentemente bem adaptado faz faculdade estagia no outro turno toca numa banda e tem uma namorada com quem segundo ele se dá muito bem Buscou atendimento por dificul dades de relacionamento com o pai Entretanto a cada sessão relata situações em que se coloca em risco de vida nem sempre estando sob efeito da maconha da qual faz uso quase diário Cada vez que sai do consultório sorridente e agradecido deixa a terapeuta por algum tem po sentindo uma profunda tristeza e vontade de chorar F permanece em sua mente até a sessão seguinte sempre havendo o temor de que não retorne São comuns seus longos atrasos e faltas o que estimula ainda mais a preocupação da terapeuta Tais pacientes contaminam aqueles com quem convivem invadin doos com sua angústia e desesperança É o que F gera em sua terapeuta cuja situação angustiante a levou à contraatuação como resposta incons ciente fazendo contatos telefônicos quando ele não comparecia à sessão O ódio contratransferencial aparece no tratamento com muita fre quência através de reações como o sentimento de maldade e aversão mais comum com pacientes com alto risco de suicídio podendo ocasio nar atuações negligência no atendimento o que pode oportunizar uma tentativa suicida As ameaças suicidas do paciente fomentadas por atua ções e agressões mobilizam o terapeuta provocando culpa e ansiedade deixandoo com a sensação de estar encurralado Como resposta às agres sões do paciente o terapeuta protegese num desejo inconsciente de que o paciente morra terminando sua tormenta ou que então abandone o tratamento Tubert 2000 Laufer 1996 faz distinção entre os pacientes que apresentam idea ção suicida mas buscam ajuda daqueles que já tentaram suicídio Os pri meiros ainda mantêm condições de duvidarem de seus pensamentos e ações e mantêm algum sentimento de interesse por seus pais Quanto aos segundos já perderam a habilidade de duvidar das consequências de seus atos e pouca coisa se modifica internamente como resultado dessa tenta tiva permanecendo eles com uma parte morta dentro de si Alertase para a promessa do adolescente de que não vai tentar um novo ato sui cida pois embora possa não estar mentindo isso não poderá ser mantido enquanto não encontrar um sentido um significado para o que ocorreu Crianças e adolescentes em psicoterapia 333 com ele Fato esse que além de entendido deverá passar a fazer parte da sua vida mental Apesar de algumas questões relacionadas ao suicídio na adolescên cia ainda não estarem muito claras já é ponto pacífico que não existe um único tipo de funcionamento psicopatológico que explique esse compor tamento pois suas causas são multifatoriais Botega et al 2006 Vimos aqui que para a compreensão das condutas autoagressivas e de risco é central o conceito de narcisismo o qual é e precisa ser abalado e reformulado durante o período da adolescência A noção de morte e o início do reconhecimento da possibilidade da própria morte impõem uma limitação narcisista à qual o jovem terá que se submeter para que possa amadurecer emocionalmente e ingressar na vida adulta A busca da própria morte assume diferentes significados para cada indivíduo não podendo ser meramente reduzida à compreensão de um ataque ao corpo com o objetivo de eliminálo Como a ação é uma característica desse período de vida a passagem ao ato como substituto do pensar surge como uma das formas de expressar e tentar resolver os conflitos internos que ainda não podem ser metabolizados pelo apare lho psíquico Embora o momento suicida represente um colapso mental uma falha na capacidade de simbolização e seja em si um gesto de des truição do corpo real pode estar paradoxalmente representando um sinal de esperança a procura de algo diferente do que está sendo viven ciado naquele momento Neste sentido a tentativa de suicídio não teria propriamente o objetivo de acabar com tudo senão controlar onipoten temente o que causa sofrimento e levar a um renascimento em melhores condições Por vezes o sofrimento é tal que o adolescente não vê outra alternativa senão morrer destruindo assim o inimigo que projeta em seu próprio corpo Resta o questionamento do quanto ele tem noção de que também está destruindo a si mesmo ou se permanece numa fanta sia onipotente de vida eterna de invulnerabilidade invencibilidade e imortalidade Dentre os diversos fatores que contribuem para o desenvolvimento de condutas suicidas destacase a importância do contexto familiar já que esse tem a função de auxiliar o jovem a desenvolver uma adequada capacidade de simbolização de elaborar em especial o conflito edípico e aprender a lidar com a agressão Em um estudo recente SaucedaGarcia LaraMunoz e FocilMarquez 2006 identificouse que conflitos familia res foram os eventos que mais frequentemente precipitaram tentativas de suicídio entre os jovens 334 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols O tratamento psicoterápico com esses adolescentes deve antes de tudo ter uma função continente para suas fantasias e intensas angústias além de possibilitar a adequada expressão da agressão Aplacar os senti mentos de desamparo e solidão aprender a colocar em palavras os senti mentos e aflições poder simbolizar as pulsões destrutivas são aspectos que fazem parte do processo de reconstrução progressiva dos vários fatores que motivaram o ato suicida ou que levaram a concebêlo como saída inevitável para o impasse em que o jovem se vê Encontrar palavras para nomear os fantasmas e desejos faz parte do trabalho de busca de um sentido ao ato suicida e demais condutas autodestrutivas pois somente encarandoos de frente é que esse jovem poderá evoluir ter uma mente mais saudável e progredir para uma vida sexual e social adulta Para que consiga realmente ajudar um adolescente suicida é impres cindível que o terapeuta tenha bemresolvidas as questões relacionadas com sua própria adolescência em especial os assuntos ligados à vida e à morte Na interação com o paciente são despertados sentimentos inten sos nem sempre conscientes e tentase alcançar a desesperança do pa ciente pode levar o terapeuta a um encontro consigo mesmo A proxi midade da morte do outro traz aspectos de indagações sobre a própria existência e sobre o sentido da morte e da vida Teixeira 2003 É reco mendável portanto um contato regular com colegas da área que auxi liem na identificação de pontos cegos e equívocos na condução do caso e com quem possam ser discutidas em especial as reações contratrans ferenciais que podem entravar o tratamento levar ao abandono ou até mesmo facilitar a passagem ao ato É de suma importância que sejam mais estudados os comportamen tos suicidas nessa fase da vida com o objetivo de divulgação e ações preventivas em especial junto à escola e à família lugares onde pode ser feita a detecção precoce e tomadas medidas mais imediatas e efetivas A Organização Mundial da Saúde OMS e a Associação Internacional para a Prevenção do Suicídio AIPS alertam para a necessidade de se reforçar programas para que seja possível identificar e prevenir o comportamento suicida para que não continue sendo visto como um fenômenotabu ou um resultado aceitável de crises pessoais ou sociais mas como uma condição de saúde influenciada por um ambiente psicológicosocial e cul tural de alto risco Ciência e Saúde 100907 Crianças e adolescentes em psicoterapia 335 REFERÊNCIAS AVANCI R C PEDRÃO L J COSTA JUNIOR M L Perfil do adolescente que tenta suicídio em uma unidade de emergência Revista Brasileira de Enfermagem v 58 n 5 p 535539 2005 Disponível em wwwscielobrscielophpscript sciarttextpidS003471672005000500007Ingptnrmiso BARRERO S A P Como evitar el suicídio en adolescentes 2005 Disponível em httpwwwpsicologiaonlinecomebookssuicidioindexshtml BOTEGA N J et al 2006 Prevenção do comportamento suicida Psico v 37 n 3 p 213220 setdez 2006 Disponível em httprevistaseletronicas pucrsbrojsindexphprevistapsicoarticleview14421130 BOUCHARD G Le suicide à la adolescence Disponível em wwwpsychome diaqccadart7htm CARLINICOTRIM B GAZALCARVALHO C GOUVEIA N Comportamentos de saúde entre jovens das redes pública e privada da área metropolitana do Es tado de São Paulo Revista de Saúde Pública v 34 n 6 p 636645 dez 2000 Disponível em wwwscielobrscielophpscriptsciarttextpidS00348910 2000000600012Ingennrmiso COLDIBELI L 2007 O drama da automutilação Guia da semana teen Disponível em httpwwwguiadasemanacombrnoticiasaspTEENSAOPAULOa1 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SINAY C G M Aportes para la comprensión del suicídio Revista Psicoanalisis Buenos Aires v 5 n 3 1983 SOUZA E R MINAYO M C S MALAQUIAS J V Suicide among young people in selected brazilian state capitals Cadernos de Saúde Pública Rio de Janeiro v 18 n 3 p 673683 2002 Disponível em httpwwwscielobrpdfcsp v18n39295pdf TEIXEIRA C M F S Tentativa de suicídio na adolescência Revista da UFG v 6 n 1 jun 2004 Disponível em wwwproecufgbrrevistaufgjuventude suicidiohtml TIMBÓ F G M Por que os adolescentes tentam suicídio Explicações a partir de dois casos em Ipueiras CE 2006 Monografia Especialização em Saúde Men tal Universidade Estadual Vale do Acaraú Sobral 2006 Disponível wwwesforgbrdownloadsmonografiasmentalgoncalinasuicídiopdf TUBERT S A morte e o imaginário na adolescência Rio de Janeiro Companhia de Freud 1999 Psicoterapia com o adolescente psicótico Aurinez Rospide Schmitz Luciana Motta 18 No exercício da atividade psicoterápica observamos cada vez mais pacientes de estruturas regressivas incluindo a psicótica Isso requer dos psicoterapeutas uma constante busca de conhecimentos reflexões e mu danças nos parâmetros tidos até então em relação à teoria e à técnica para uma ação psicoterápica mais adequada Sentimos a necessidade de compartilhar a experiência do atendimento de adolescentes psicóticos vivida na intimidade de nossos consultórios1 com os colegas que se depa ram com situações semelhantes O tratamento de psicóticos apesar de cada vez mais frequente na clínica atual ainda é pouco discutido Acre ditamos que um dos motivos disso seja dificuldade de traduzir em pala vras as intensas e complexas experiências vividas com o paciente na re lação terapêutica O estudo da psicoterapia com pacientes psicóticos passa necessaria mente pelo viés histórico visto que o próprio Freud não acreditava que a abordagem psicanalítica com esses pacientes fosse possível devido ao fato de o psicótico não desenvolver uma transferência e do ego ser frágil para suportar as interpretações manter a aliança terapêutica e cooperar na análise No entanto assinalou alguns caminhos que possibilitariam futu ramente uma abordagem desses quadros Freud 1972 referiu que a partir de mudanças apropriadas no método psicanalítico talvez pudessem ser superadas as contraindicações para a psicoterapia das psicoses No Esboço de Psicanálise Freud 1972 apontou que na estrutura psíquica dos psicóticos uma parte do ego fica preservada lançando uma fonte de esperança para o tratamento desses casos 338 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols A partir de Freud a contribuição de outros autores foi fundamental para que o tratamento com pacientes psicóticos inicialmente desacre ditado passasse a ser possível mediante adequações técnicas e aprofun damentos teóricos Nesse capítulo tomamos como base conceitos desen volvidos por Wilfred Bion e Herbert Rosenfeld a partir de Melanie Klein que nos auxiliaram na compreensão e tratamento desses casos As ideias de autores como Jeammet Corcos e Pestalozzi contribuíram na compreen são dos aspectos normais e patológicos da adolescência visto ser esse um momento de mudanças internas e externas que se somados a outros fatores podem causar uma desestruturação psicótica Nas complexidades do trabalho com esses adolescentes abordaremos as questões técnicas referentes ao setting psicoterápico a respeito do qual Donald Winnicott nos auxiliou com seu trabalho sobre a regressão no contexto psicanalítico As peculiaridades da transferência e contratransferência bem como da comunicação do psicótico serão desenvolvidas com base nos autores da escola inglesa Para nossas reflexões apresentaremos quatro adolescen tes nos quais podemos identificar características de um funcionamento psicótico Faremos alguns recortes das psicoterapias de Carla 15 anos Fernando 18 anos André 19 anos e Paula 20 anos para ilustrar o percurso em busca da mudança psíquica A CHEGADA DO ADOLESCENTE PSICÓTICO As modificações corporais da puberdade inauguram uma nova etapa na qual o indivíduo se vê diante de mudanças não somente biológicas como também psicológicas e sociais Essa passagem da vida infantil à eta pa adulta irá exigir do adolescente uma reorganização considerando a imposição das mudanças internas e externas que não permitem mais que ele funcione como antes Para o enfrentamento desse período são necessá rias condições psíquicas visto que essa é a fase da vida que exerce maior exigência às estruturas psíquicas do indivíduo Pestalozzi 2005 A literatura aponta a adolescência como uma etapa de crise Esta é inerente a todo o processo vivenciado pelo adolescente porém a ocorrên cia de perturbações pode sugerir o fracasso relativo do aparelho psíquico em lidar com a crise sinalizando um estado de vulnerabilidade ou até mesmo psicopatológico como a psicose Jeammet e Corcos 2005 Por vezes no momento de realizar uma avaliação diagnóstica o tera peuta pode minimizar os sintomas apresentados pelo adolescente consi Crianças e adolescentes em psicoterapia 339 derandoos manifestações da crise vivida nessa etapa Ao mesmo tempo com frequência ocorre por parte da família a subvalorização dos mesmos até o momento em que resulta num episódio francamente psicótico indi cando a gravidade da situação Quevedo Schmitt e Kapczinski 2008 A experiência clínica revela que após o primeiro episódio psicótico tornase mais fácil identificar os sinais prévios da instalação da doença olhandoos retrospectivamente Além disso nessa etapa o quadro psicótico pode ser tanto passageiro quanto definitivo É importante identificar se os sintomas apontam para um episódio psicótico reversível ou para o início de um quadro esquizofrênico Cahn 1994 Ressaltamos que o diagnóstico pre ciso e o tratamento diminuem o risco de uma evolução incapacitante tan to pelos prejuízos imediatos quanto pelas sequelas no desenvolvimento futuro do adolescente Acreditamos que o processo de avaliação para o início de uma psico terapia deva englobar aspectos do funcionamento atual do adolescente considerar as vivências infantis bem como a história de vida até o presente momento Nos casos de adolescentes com estrutura psicótica é indicada também a realização de uma avaliação psiquiátrica a fim de considerar a necessidade do uso de medicação como mais um recurso terapêutico Cabe ressaltar que atualmente a tendência é do atendimento integrado ao pa ciente visto que a abordagem biológica não dá conta dos aspectos psico lógicos e sociais envolvidos sendo necessária uma intervenção multidis ciplinar que contemple as três áreas O atendimento familiar o uso de me dicação e o acompanhamento psicoterapêutico cada qual utilizando os instrumentos técnicos e específicos da sua área porém norteados pela visão psicanalítica são fundamentais para a melhora do paciente Sterian 2005 O diagnóstico de psicose na adolescência exige do psicoterapeuta além dos conhecimentos psicanalíticos e psicopatológicos uma familiarida de com a linguagem psiquiátrica e noções de psicofarmacologia Tendo em vista que um quadro psicótico quase sempre está inserido num contexto disfuncional é também importante o conhecimento da dinâmica familiar Apresentaremos os pacientes Fernando e Carla a fim de traçar algu mas diferenciações quanto ao estabelecimento e curso do quadro psicó tico Fernando 18 anos frente às demandas adolescentes representadas pelo vestibular e pelo seu primeiro relacionamento heterossexual desen cadeou um episódio psicótico de início abrupto Embora a ansiedade apre sentada por Fernando em relação a esses dois aspectos seja própria desse momento de vida para ele foram os fatores desencadeantes de sua deses truturação psicótica O quadro psicótico se caracterizava por delírios per 340 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols secutórios místicos e alucinações auditivas com significativa agitação psi comotora sendo clara a necessidade de internação psiquiátrica pelo grau de desestruturação apresentado naquele momento Após a internação mostravase dependente dos familiares necessitando ser acompanhado na maior parte do tempo em função do seu grau de regressão Pela forma violenta com que os sintomas se manifestaram Fernando ficou impossibi litado naquele momento de continuar seus projetos No entanto com a manutenção da psicoterapia e da medicação foi sendo possível a remissão dos sintomas psicóticos e a retomada de algumas atividades entre elas o curso préuniversitário A hipótese diagnóstica inicial foi de um transtorno agudo no entanto o fato de o primeiro episódio psicótico de Fernando ocorrer aos 18 anos tam bém sugeria a possibilidade de ser o início de um quadro esquizofrênico Retrospectivamente foi possível identificar alguns indícios de perturbações durante as etapas do seu desenvolvimento Casos assim exigem um acompa nhamento longitudinal a fim de confirmar a hipótese diagnóstica A história de Carla nos mostra um curso diferente em relação ao es tabelecimento da doença O primeiro episódio ocorreu aos 12 anos o qual pode ser vinculado ao início das mudanças biológicas que caracterizam a entrada na puberdade Houve necessidade de internação psiquiátrica e após esse episódio seguiramse mais quatro internações no espaço de três anos Além disso esteve em tratamento psicoterápico durante períodos de curta duração com diferentes profissionais Carla chegou aos 15 anos en caminhada novamente para psicoterapia com sintomas relativos ao isola mento social afetivo e familiar O quadro psicótico era caracterizado por delírios de grandeza persecutórios e sexuais bem como alucinações vi suais e auditivas A desorganização de Carla foi relacionada às transformações corpo rais da puberdade concomitantemente à entrada na adolescência Nessa etapa da vida ocorre a eclosão dos impulsos sexuais e agressivos os quais são negados pelos adolescentes como forma de defesa diante das intensas modificações que estão ocorrendo Levisky 1998 A destrutividade de sempenha um papel central lado a lado com o erótico visto que na ado lescência existe a possibilidade da realização do incesto assim como do parricídio e do suicídio Levy 2008 Nos adolescentes psicóticos as fa lhas internas no domínio das pulsões poderão gerar defesas de recusa à vida pulsional e ao corpo que lhe dá suporte Jeammet e Corcos 2005 Carla apesar de seus 15 anos não conseguindo permanecer com os amigos de sua idade devido à angústia que sentia diante de situações que Crianças e adolescentes em psicoterapia 341 envolviam aspectos do corpo sexuado relacionavase preferentemente com préadolescentes No entanto mesmo com essa recusa dos aspectos sexuais estes irrompiam em brincadeiras nas quais uma simples expres são facial era entendida por exemplo como um convite sexual explícito Em determinada situação o pai de uma amiga se ofereceu para levar Carla da escola até a sua residência esse gesto foi compreendido por ela como uma atitude sedutora Ao relatar esse fato em sua sessão expressou as fantasias sexuais que a deixaram bastante perturbada pela reativação dos aspectos edípicos O trecho a seguir retirado de uma sessão exem plifica a eclosão das fantasias edípicas nesta adolescente Carla falou dos sentimentos em relação ao seu pai Descreveu o nojo que sentia dele durante a refeição Quando o pai estava se alimentando ela o via beijando e mordendo suas partes íntimas Em função disso pre feriu ficar longe dele evitando sua presença A terapeuta reforçou a importância de verbalizar esse conteúdo na sessão auxiliandoa a dis criminar a realidade da fantasia Tal conduta é importante pois desco necta a concretude da equação entre a atitude do pai de estar se ali mentando e os desejos incestuosos da paciente em relação a ele a visão dele beijando e mordendo suas partes íntimas Pelo que expomos até agora observamos que a chegada para psico terapia de um adolescente psicótico provoca um impacto pelo seu funcio namento e não poderia deixar de suscitar questionamentos sobre o alcan ce do tratamento psicanalítico Sendo assim o que de acordo com a nossa experiência viabilizou a realização da psicoterapia de orientação psicana lítica nos casos aqui relatados Os estudos atuais avançaram na compreensão da psicose propondo modificações necessárias para o atendimento desses pacientes São casos que exigem que o terapeuta saia de uma posição conhecida baseada no tratamento de pacientes neuróticos e se disponibilize para um atendimen to com características peculiares no seu processo no uso de medicação no suporte aos familiares e em algumas situações nos períodos de interna ção psiquiátrica durante a vigência da psicoterapia André chegou para psicoterapia aos 18 anos em função de seus gra ves sintomas obsessivos porém transcorrido algum tempo de tratamento foi revelando aspectos mais regressivos evidenciando um funcionamento psicótico através de pensamentos delirantes ideias mágicas e condutas de automutilação tricotilomania Manifestava medo de não conseguir con 342 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols trolar seus impulsos agressivos pensando efetivamente que poderia matar alguém A intervenção da terapeuta necessitava ser mais ativa diferente da forma interpretativa utilizada com pacientes neuróticos auxiliandoo na discriminação entre o pensar e o consumar a agressão O conteúdo das sessões era carregado de morte sangue e suicídio Este último tema era recorrente e visto por André como algo sublime e corajoso A partir da leitura de inúmeras obras literárias André referia as ideias dos escritores como sendo suas de forma indiscriminada de modo a se tornar difícil diferenciar a fantasia da realidade Frente ao discurso confuso e caótico de André a terapeuta se sentia invadida pela descarga maciça dentro de sua mente necessitando metabolizar essas evacuações2 para posteriormente devolvêlas a ele Pacientes com esse funcionamento necessitam de modificações na técnica psicoterápica pois não se bene ficiam com a intervenção interpretativa clássica necessitando da mente do terapeuta para auxiliálos na discriminação de aspectos do seu psi quismo como internoexterno selfobjeto pensaragir Cabe enfatizar a importância do setting psicoterápico o qual possibilita uma moldura firme e necessária para sustentar e acolher os aspectos regres sivos do paciente Entendemos que o setting não se restringe apenas às com binações específicas do contrato terapêutico e envolve diversos aspectos do manejo a permeabilidade da mente do psicoterapeuta para acolher os aspec tos regressivos do paciente e as complexidades do campo bipessoal que se estabelece Cabe ressaltar a importância da manutenção do setting com pa cientes regressivos na medida em que esse reproduz as situações iniciais de maternagem pela regularidade frequência e duração fixa das sessões deter minando dessa forma a estabilidade da relação Winnicott 2000 O mo mento da adolescência acrescido de um funcionamento regressivo acentua a necessidade da figura real do terapeuta na reconstrução de um psiquismo que teve falhas nos primórdios de sua vida mental Em função disso o terapeuta terá que lidar com tentativas de rompimento do setting pelo paciente man tendose firme sem ser rígido no estabelecimento da relação terapêutica Dessa forma além do conhecimento teórico e técnico necessário na formação de todo psicoterapeuta as peculiaridades acima descritas de mandam que este seja capaz de mergulhar junto com o paciente em etapas muito primitivas do seu psiquismo Ao realizar isso o próprio terapeuta entrará em contato com esses aspectos de si mesmo exigindo que tenham sido aprofundados em seu tratamento pessoal A continência proporcio nada pelo tratamento do terapeuta o auxiliará a tolerar as invasões à sua privacidade e ao seu espaço mental que podem suscitar os mais variados Crianças e adolescentes em psicoterapia 343 sentimentos como raiva incômodo e rejeição que necessitam de um es paço para serem compreendidos No início da experiência com pacientes psicóticos a gama de senti mentos experimentados pelo terapeuta poderá ser mais intensa e causar um impacto maior Já na avaliação o terapeuta precisa pensar no seu momento de vida no número de pacientes mais regressivos que está atendendo a fim de considerar a sua disponibilidade para mais um já que os tratamentos tendem a ser de longo prazo Além disso uma dose de tolerância à frustração por parte do tera peuta é essencial para a manutenção do tratamento na medida em que o crescimento desses pacientes não ocorre de forma linear e constante O processo psicoterápico engloba incessantes movimentos progressivos e regressivos e a evolução ocorre através de pequenas conquistas com profundos significados que repercutem na vida desses adolescentes A supervisão é um recurso do qual o terapeuta deve lançar mão para auxi liálo a tolerar a carga das identificações projetivas dandolhe continência e funcionando como um terceiro olhar sobre o caso AS COMPLEXIDADES E PECULIARIDADES DA PSICOTERAPIA COM PACIENTES PSICÓTICOS Sabese que a linguagem é uma das formas de expressão da capaci dade de organização mental do indivíduo Sendo assim desestruturação irá influenciar a forma como o indivíduo se expressa pedindo tornar sua linguagem muitas vezes de difícil compreensão O paciente André nas poesias que escrevia utilizava palavras vazias aparentemente ilógicas precisando da terapeuta para auxiliálo a traduzilas em palavras comuns conferindolhes sentido A seguir uma de suas produções escritas3 que frequentemente levava para as sessões Nas cerúleas eternidades aliformes Onde miríades de aves encantadoras Com seus mantos de penas verniformes Macias negras lutuosas lágrimas aladas Os cisnes aves de fulgor portentoso Salmodiam melopeis de esplendor lustroso Nessa poesia confirmase uma comunicação incompreensível e des provida de significado causada pela dificuldade de André traduzir suas 344 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols experiências emocionais em pensamentos e estes em palavras A comuni cação utilizada por esses pacientes desafia o terapeuta a apreender tanto o sentido concreto quanto o metafórico das suas verbalizações No entanto recomendase que no início do tratamento o terapeuta não forneça inter pretações do significado simbólico da comunicação Pestalozzi 2005 Dentro dessa perspectiva na comunicação do psicótico as palavras adquirem uma dimensão concreta quando são as próprias coisas que designam Bion 1994 Identificase esse funcionamento no sentido da equação simbólica descrita por Segal 1982 No processo da formação de símbolos a equação simbólica se refere ao momento inicial em que o símbolo é igual ao objeto original As equações simbólicas são típicas de uma mente regressiva que funciona basicamente com mecanismos da posição esquizoparanoide nas quais as relações ocorrem com objetos parciais cindidos em bons ou maus Se existir um estado mental perse guidor será vivenciada uma invasão de maus objetos no self Para se livrar disso o sujeito recorre ao uso maciço de identificações projetivas que serão ejetadas no mundo externo e identificadas com o objeto mau e perseguidor Essas são as equações simbólicas percebidas como iguais ao objeto e são usadas para negar a ausência do objeto bom ou ideal e controlar o objeto perseguidor Essa é a base do pensamento concreto do psicótico no qual há confusão entre objeto e a coisa simbolizada e indis criminação entre fantasia e realidade Podemos citar uma passagem da sessão de André em que ao passar a mão repetidas vezes na poltrona acariciandoa e olhando fixamente para a psicoterapeuta momento em que se desligava do mundo externo forne cia sinais de que fazia uma equação simbólica entre as duas Esse mesmo paciente não tolerava a separação da terapeuta recusandose a sair quando esta apontava o término da sessão Entendemos que para a formação dos símbolos é necessário suportar a separação pois somente quando o ego mais desenvolvido suporta a noção de ausência do objeto na posição de pressiva é que o símbolo passa a substituir o objeto representandoo No processo de formação de símbolos observamos alguns pacientes realizarem tentativas de construção porém ainda de uma maneira frágil e desarticulada Tratase de uma pseudosimbolização Isso ocorre quan do o paciente confere um significado particular e inadequado a movi mentos isolados do terapeuta que para este não fazem nenhum sentido Pestalozzi 2005 Citamos o exemplo de Carla que diante de movimen tos aleatórios feitos pela terapeuta com as suas mãos ou pés atribuía um sentido de provocação sentindose convidada a brigar com ela Crianças e adolescentes em psicoterapia 345 A abordagem com pacientes psicóticos traz em seu cerne a compreen são de que diferente dos neuróticos esses não utilizam a repressão e sim a cisão seguida do uso de maciças identificações projetivas Nos casos aqui apresentados o uso da identificação projetiva era sentido fisicamente pelas terapeutas através das reações que causava nelas como intenso cansaço sono e sensações corporais como por exemplo dores abdominais Bion 1994 descreve o conceito de identificação projetiva através do qual o sujeito cinde e projeta uma parte de seu self para dentro do objeto no qual se instala O uso estruturante desse mecanismo é a pri meira forma de comunicação de estados mentais entre o bebê e sua mãe Ocorre quando a mãe acolhe as evacuações do bebê colocadas em sua mente via identificação projetiva transformando a experiência emocio nal bruta que agora mentalizada pelo aparelho psíquico materno fica disponível para a reintrojeção No caso dos pacientes psicóticos observa mos que houve falhas nesse processo inicial As desordens psicóticas na construção de seus processos de pensar e conhecer podem estar relacio nadas tanto à dificuldade da mãe em servir como continente das neces sidades do filho quanto ao ódio e à inveja do bebê que dificulta o estabe lecimento da relação continentecontido indispensável para desenvolver a capacidade de pensar O uso da identificação projetiva normal visando a comunicação é a base da empatia com o outro e inicia os primórdios do processo simbólico No caso de psicóticos o uso deste mecanismo é exces sivo e visa prioritariamente se livrar de estados mentais insuportáveis que são colocados no exterior mãe e terapeuta Ao usar de forma maciça identificações projetivas patológicas o paciente borra os limites do ego e conduz à dissolução dos mesmos e à indiscriminação eunão eu fantasia realidade presentepassado e a outros estados confusionais tão caracte rísticos do funcionamento psicótico Pestalozzi 2005 No processo transferencial tais vivências emocionais primitivas e cruas precisam encontrar um continente mental que as processe e trans forme Através da capacidade simbólica e do pensar do psicoterapeuta este gradativamente vai as discriminando e devolvendo ao paciente res peitando seu tempo interno para a reintrojeção Esta só ocorrerá se o paciente se sentir compreendido e contido em suas ansiedades e se len tamente for capaz de aprender a tolerar alguma frustração Nesse mo mento muitas vezes o terapeuta pode se sentir prejudicado na sua capa cidade de pensar em função dos contínuos ataques destrutivos caracte rísticos dos pacientes psicóticos ao elo e à sua própria matriz do pensa mento Bion 1994 346 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols Um fragmento da sessão de Carla ilustra os ataques ao elo na relação com sua terapeuta Ao falar sobre suas atividades masturbatórias e da frequência desse comportamento Carla se sentiu acusada de obter prazer inadequadamente por meio da masturbação Distorceu o sentido das pa lavras escutadas e agrediu verbalmente a terapeuta que se sentiu confusa e impedida de pensar necessitando de algum tempo para se dar conta do que estava ocorrendo e retomar sua função psicanalítica Situações como essas colorem e diferenciam o campo terapêutico com pacientes psicó ticos Estes por não usarem a linguagem verbal para fins de comunicação mas com o objetivo de se livrarem de estados mentais desagradáveis recorrem à identificação projetiva como forma de comunicar suas expe riências emocionais primitivas Tal fato gera no terapeuta um tipo espe cífico de contratransferência denominada por Grinberg 1962 de con traidentificação projetiva Tratase de uma manifestação no terapeuta devido à recepção passiva das projeções dos objetos internos do paciente desempenhando inconscientemente o papel atribuído por ele Enfatiza também o valor comunicativo da contraidentificação projetiva Esse tipo de comunicação ocorre quando o terapeuta acolhe a projeção do paciente e a utiliza para dar sentido à vivência deste que não pôde ser comunicada verbalmente Diferente do que se acreditava anteriormente que o psicótico era incapaz de estabelecer uma relação transferencial os avanços teóricos a respeito desse tema apontaram a existência da transferência na relação pacienteterapeuta Rosenfeld 1993 menciona que o paciente repete re vive e atua na sessão estados emocionais muito primitivos e regressivos denominando esse tipo de relação de transferência psicótica A trans ferência do psicótico é caracterizada como prematura precipitada inten samente dependente tênue tenaz e baseada na identificação projetiva Bion 1994 O paciente André já nas primeiras sessões apresentou uma transferência imediata com intensa idealização da terapeuta mostrando precocemente uma dependência da mesma a qual pode ser percebida na seguinte verbalização Eu não consigo fazer nada Eu fico esperando os dias passarem sextafeira sábado domingo segundafeira até eu poder vir aqui A minha vida é ler e vir aqui Nas sessões oscilava desse tipo de transferência para uma relação persecutória rompendo com a idealização e sinalizando a fragilidade da relação transferencial Uma característica típica da transferência psicótica é a tendência do desenvolvimento da transferência erótica desde o início do tratamento Rosenfeld 1988 Outra experiência de tratamento ilustra o estabele Crianças e adolescentes em psicoterapia 347 cimento desse tipo de transferência no começo da psicoterapia Paula 20 anos estudante apesar das dificuldades afetivas e de relacionamento in terpessoal mantinha preservada sua área intelectual estando prestes a concluir o ensino médio Na escola possuía poucos amigos e uma vida restrita ao ambiente familiar sem a experiência de ter tido um namorado O contato com pessoas de seu cotidiano suscitava delírios de cunho sexual Em sua psicoterapia ao abordar suas dificuldades nos relaciona mentos interpessoais expressava imediatamente fantasias homossexuais em relação à terapeuta Sua imaginação incluía situações nas quais ambas passeavam juntas em diferentes locais e também os momentos mais ín timos em que se via acariciando a terapeuta e beijandoa Percebese que pelo processo transferencial essa paciente regredia a desejos de fusão muito primitivos com a figura materna desejos de ser acariciada e cui dada mas que surgiam na sessão sob forma de amor homossexual A vivência de Paula em relação à transferência erótica expressa a maneira direta e crua que essas fantasias irrompem nos pacientes psicóticos sem passar pelo processo de repressão que nos neuróticos faz com que elas apareçam de forma deslocada Em termos técnicos apesar do entendimento do terapeuta sobre essas manifestações é necessário que este propicie um espaço para que o paciente possa organizar uma barreira de contato Bion 1991 de forma que tais conteúdos apareçam através de meios simbóli cos como no processo onírico ou em fantasias deslocadas Nesse sentido Rosenfeld 1988 afirma que a interpretação precoce da transferência eró tica deixaria o paciente confuso e negativista oferecendo riscos à continui dade do tratamento visto que ele a vivenciaria como uma sugestão concreta e não como interpretação de suas fantasias Esse autor é claro ao alertar que é uma técnica equivocada interpretar a transferência sexual no início da psicoterapia com pacientes psicóticos O DIFÍCIL PERCURSO EM BUSCA DA MUDANÇA PSÍQUICA André que queria aprender a pensar Cada encontro com o adolescente psicótico configura um momento único no qual primitivas vivências e intensas emoções são experimenta das durante o percurso do tratamento psicoterápico Uma verbalização no início do tratamento de André Eu não sei pensar nunca aprendi a pen sar ensiname a pensar nos aponta o caminho a ser percorrido com esses pacientes no sentido do auxílio para desenvolver a sua capacidade 348 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols simbólica pois eles têm um insuficiente aparelho para pensar pensamen tos conceito desenvolvido por Bion 1991 que auxilia na compreensão das dificuldades dos pacientes psicóticos Para esses pacientes o psicote rapeuta será modelo para aprender a pensar através de suas funções continenteconteúdo e de suportar as ansiedades relativas às oscilações da posição esquizoparanoide para a depressiva Bion 1994 André no início do seu tratamento apresentava uma mente debili tada um discurso inacessível e histórias confusas que aos poucos foram se transformando pela possibilidade de nomear sentimentos ideias e pen samentos Usava a narrativa escrita como forma de elaborar seus conflitos ansiedades e fantasias Sua linguagem convocava os seus estados mentais e seus primeiros poemas eram como colagens de palavras sem ligação No leito cosmogônico de mitológicas torres frias O rei dragão corta o céu crepusculário Com asas escarlates de envergaduras fantásticas sombrias E a sombra envolve os mitos como hierático relicário Que guarda imarcecíveis flores lendárias Suas asas são lábaros ígneos de cores vazias A psicoterapia de André foi caracterizada por inúmeros contos escri tos e poesias feitas por ele e lidas na sessão No decorrer do tratamento observouse o crescimento de seu processo simbólico e a maior integração de sua personalidade os quais se refletiram no seu pensar mais organi zado e na forma da sua escrita Esta é o resultado da transformação da experiência emocional antes sem sentido beta em experiências novas palavras e significados que o auxiliaram a organizar seus sentimentos caóticos Após alguns anos de psicoterapia André venceu alguns concur sos de poesia e publicou em jornais seus textos como o descrito a seguir Precisamos melhor aperfeiçoar nossas almas e usálas como instrumento de modificação Precisamos reinventar o humano lançando novos alicerces para uma sociedade melhor que proporcione frutos para as futuras gera ções as quais continuarão nossos legados de miséria ou esperança de acor do com o que semeamos no presente Essa evolução foi possível através do espaço criado na psicoterapia no qual a terapeuta funcionou como rêverie emprestando sua função alfa que conteve as fantasias mais primitivas devolvendoas ao paciente pouco a pouco de modo que ficassem integradas na sua vivência e não como fantasmas perseguidores As palavras agora não eram mais coisas das Crianças e adolescentes em psicoterapia 349 quais precisava se livrar mas elas descreviam suas vivências internas que ofereciam coesão e sentido a sua experiência A melhora desse paciente teve repercussão em outras áreas de sua vida na medida em que iniciou e manteve relacionamentos de amizade bem como conseguiu retomar os estudos concluindo o ensino médio e se preparando para ingressar na universidade Frisamos que cada processo é único no que diz respeito à evolução e tempo necessário para tal As conquistas de André refletem o trabalho psicoterápico realizado ao longo de muitos anos Paula e Carla a construção da barreira de contato Paula que desenvolveu uma relação transferencial erotizada com a terapeuta em um fragmento de sua sessão após dois anos de tratamento mostrou estar iniciando um caminho para a mudança psíquica Paula per maneceu um tempo em silêncio A terapeuta questionou sobre o que ficou pensando e Paula ficou novamente silenciosa Em seguida disse não sei se quero te falar Novo período de silêncio São aquelas fantasias de sem pre fantasias homossexuais Tu já sabes Só que eu não sei se dessa vez quero te falar A intervenção da terapeuta depois disso foi no sentido de auxiliála na discriminação dos mundos interno e externo e na manutenção das suas fantasias no seu mundo interno Paula então fez a seguinte colo cação têm horas que eu acho ridículos esses meus pensamentos que não deveria têlos pois afinal tu és a minha terapeuta e estás aqui para me ajudar Eu fico perdendo tempo com esses pensamentos que não vão levar a nada Percebemos esse aspecto como um indicativo de mudança na paciente An teriormente os conteúdos inconscientes surgiam de forma caótica e bruta podendo ser conceituados pelo que Bion 1991 denominou de tela beta Paulatinamente a paciente dava sinais de estar construindo uma barreira de contato conceito desenvolvido por Bion 1991 a partir de Freud A bar reira de contato funciona como um filtro que visa separar o consciente do inconsciente discriminandoos O funcionamento da barreira de contato corresponde ao do mecanismo de repressão o qual oportuniza que os aspec tos primitivos se organizem no inconsciente não irrompendo na mente de forma violenta e assim permaneçam reprimidos surgindo através de de rivativos e não de forma crua e caótica com seu potencial desorganizador A barreira de contato exerce uma função de proteção como se fosse uma membrana semipermeável a qual evita que a realidade seja distorcida por emoções internas A construção dessa barreira é um dos objetivos principais 350 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols do tratamento com pacientes psicóticos pois possibilita filtrar os conteúdos inconscientes que irrompem na mente e com isso construir um continente mental capaz de discriminar dentrofora internoexterno contendo os pen samentos e fantasias que antes saíam de forma expulsiva por palavrascoisa ou por identificações projetivas maciças Grinberg Sor e Bianchedi 1973 Carla paciente que chegou para psicoterapia com um histórico de diversas internações a partir da puberdade foi construindo pouco a pouco um espaço mental próprio O campo psicoterápico o vínculo e a relação de confiança estabelecida auxiliaramna a ir formando sua barreira de contato No exemplo a seguir podese observar que as fantasias paranoi des continuaram assombrandoa no entanto ela conseguia expressar esses conteúdos em suas sessões de psicoterapia Carla Oi Esta semana consegui me controlar Não briguei com meus pais nem na escola Imediatamente após esta fala Carla inicia um discurso delirante Carla Não adianta mesmo aquele meu professor é sempre a mesma coisa eu sei quando ele está rindo por trás de mim Ele é do mal e faz o mal eu sou do bem e faço o bem O meu professor não perde por esperar quando eu fizer a jogada final ele vai ver Eu tenho que passar por tudo isso para salvar o meu filho Eu quero o bem para o meu filho e ele não vai passar por nada disso Compreendese que o fato de Carla usar o espaço terapêutico para expulsar esses elementos foi o que permitiu algum controle nas relações estabelecidas com colegas professores e pais Carla pôde usar sua recém adquirida capacidade de contenção das fantasias e ansiedades dentro de seu próprio continente mental possibilitando uma vida em maior sintonia com a realidade externa No primeiro ano do tratamento de Carla as re percussões em sua vida foram a diminuição do isolamento social e a me lhora nos seus relacionamentos interpessoais tanto no âmbito familiar quanto escolar Nos dois anos seguintes ao primeiro episódio psicótico Carla frequentemente necessitava interromper as atividades escolares de vido à desestruturação emocional e à necessidade de internação psiquiá trica o que a impedia de encerrar o ano letivo Com o tratamento psico terápico conseguiu garantir a continuidade nos estudos sem novas inter nações apesar da persistência de seu sofrimento psíquico Em muitos momentos Carla demonstrou o entendimento da conti nência oferecida pelo setting psicoterápico no qual relatava os pensamen Crianças e adolescentes em psicoterapia 351 tos que sabia não serem compreendidos em outros locais Em um primeiro momento diante das evacuações do paciente o terapeuta pode se sentir confuso ao acolhêlas em sua mente tendo que suportar um período de não entendimento As palavras de Winnicott traduzem com extrema sen sibilidade a vivência do terapeuta no tratamento de pacientes psicóticos todos sabem o quão louco é preciso estar para viver ali e no entanto é necessário estar ali e permanecer ali por longos períodos a fim de alcançar algum resultado terapêutico Winnicott 2000 p 314 Fernando da internação à reestruturação após o colapso psíquico Através do paciente Fernando foi possível acompanhar o impacto que a eclosão de um episódio psicótico e a consequente internação psi quiátrica causaram na vida desse adolescente No transcorrer do primeiro ano de tratamento psicoterápico Fernando evoluiu de uma desestrutu ração psíquica com um funcionamento regressivo e a presença de pen samentos delirantes e alucinações já descritos para uma reorganização interna que lhe permitiu retomar o curso de sua vida Alguns critérios como a exposição a riscos para si e para os outros a incapacidade da família naquele momento de manejar com o paciente em casa e a recusa em tomar a medicação foram definitivos para a internação Tratase de uma decisão difícil tendo em vista as repercussões que uma internação psiquiátrica causa na vida de um adolescente No entanto quando é baseada em critérios que consideram como primordial a pro teção do paciente tornase mais clara a sua indicação O vínculo estabelecido com o paciente foi mantido através da continui dade das sessões no ambiente hospitalar com as modificações necessárias no setting Isso foi possibilitado pela terapeuta devido ao seu posicionamen to teórico de que existe uma parte preservada nesses adolescentes mesmo em um momento de colapso psíquico A realização da psicoterapia no am biente hospitalar pôde acontecer também devido ao oferecimento de um espaço físico dentro da instituição bem como da compreensão da equipe de profissionais de que esse atendimento beneficiaria o paciente oportuni zando a realização de um trabalho multidisciplinar A disponibilidade do psicoterapeuta para trabalhar em conjunto com outros profissionais em es pecial da área da psiquiatria é essencial nessas situações O exemplo a seguir extraído de uma de suas sessões durante a inter nação ilustra que Fernando mesmo passando por um período de confusão 352 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols psicótica com delírios e alucinações manteve uma parte saudável que o fez questionar a própria visão pois esta poderia não conferir com a realidade Fernando Quando estávamos vindo para cá referindose a sala de atendi mento tinha um homem parado ao lado do posto de enfermagem Terapeuta O que tu achas Fernando Eu não sei se tinha mesmo ou se é da minha cabeça Terapeuta Tinha mesmo um homem ali parado Mas tu estás me mos trando como é difícil não saber se as coisas estão acontecendo ou se são somente da tua cabeça Fernando começa a chorar Fernando Eu preciso muito da tua ajuda Bion 1994 trouxe importante contribuição ao teorizar que parale lamente com a parte psicótica da personalidade convive a parte não psicótica que deve ser trabalhada e ampliada pois dela depende a conser vação do contato com a realidade Realizar a discriminação dos aspectos internos e externos desses pacientes constitui o objetivo principal quando o paciente está num momento de desestruturação e necessita do terapeuta para auxiliálo Além disso é como se o terapeuta funcionasse como uma ponte que insere a realidade no mundo interno desconexo do paciente sendo este o significado da sua presença física na instituição hospitalar Através da nossa experiência constatamos que a manutenção do aten dimento psicoterápico durante o período de internação auxiliou não só no fortalecimento do vínculo entre o paciente e a terapeuta como também com os familiares que se sentiram acolhidos sendo este um dos fatores decisivos para a evolução desses casos Os pacientes que passam por essa experiência costumam manifestar o sentimento de amparo pelo fato de a terapeuta ter estado presente e compartilhado um momento que era tão difícil Após a alta hospitalar a psicoterapia individual de Fernando foi reto mada no consultório e houve a necessidade de continuar o atendimento aos familiares tendo em vista que a doença de um familiar atinge a todos Esse acolhimento significa se oferecer como um suporte à família fornecen do informações clareando dúvidas e escutando o seu sofrimento Além dis so a participação dos familiares é fundamental no comprometimento do paciente com o seu tratamento psicoterápico e farmacológico Durante o tratamento psicoterápico de Fernando sua fragilidade egoica aparecia toda vez que algum acontecimento da realidade externa exigisse mais dele Além disso o núcleo delirante denunciava sua estru Crianças e adolescentes em psicoterapia 353 tura psicótica sendo a conduta terapêutica nesses momentos baseada na discriminação entre a realidade e a fantasia Dessa forma com a combi nação dos tratamentos psicoterápico e farmacológico ele conseguiu ir se reorganizando e os objetivos em relação à sua vida afetiva e profissional foram sendo atingidos Fernando foi aprovado no vestibular e ingressou no curso que desejava Iniciadas as aulas relatou na sessão a felicidade dessa conquista e o quanto sua vida mudara Mencionou que foi preciso chegar ao seu limite pois sofria muito antes Também apontou com sur presa que já possuía amigos na faculdade e algumas semanas depois presenteou a namorada com uma aliança de compromisso CONSIDERAÇÕES FINAIS Sabese que a experiência da clínica psicoterápica é uma atividade basicamente solitária em que ocorre no entanto uma troca intensa de vi vências e emoções Neste capítulo foi possível a elaboração de algumas dessas experiências e ansiedades através da escrita e da reflexão sobre casos complexos e de difícil manejo que muito exigem da capacidade pessoal e técnica do psicoterapeuta Também se trata da possibilidade de um espaço para compartilhar com colegas nossa atividade clínica O processo psico terápico com adolescentes psicóticos gera impacto no terapeuta principal mente ao se deparar com um funcionamento regressivo no qual vivências primitivas são reeditadas Pensamos que a psicoterapia individual de orien tação psicanalítica pelo estabelecimento via transferência de outro tipo de vínculo pode ser uma oportunidade de ressignificar essas experiências que foram falhas na construção do psiquismo Diferente do que se pensava há algum tempo acreditamos que me diante as mudanças técnicas desenvolvidas nos últimos anos especial mente através de alguns conceitos dos autores que embasaram nossa prática é possível tratar psicoterapicamente os pacientes psicóticos Em especial na adolescência colhemse os benefícios da abordagem de orien tação psicanalítica no sentido de diminuir o risco de cronicidade e o de terioro psíquico e com isso ter uma visão menos limitante em relação ao futuro desses adolescentes Os recortes das histórias pessoais e das psi coterapias nos possibilitaram a descrição do funcionamento típico dos adolescentes psicóticos e ao mesmo tempo o processo único com ritmo próprio e geralmente por um longo período para o qual o psicoterapeuta precisa estar preparado No percurso psicoterápico desses adolescentes 354 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols que aqui apresentamos ocorreram significativas mudanças psíquicas porém estas não foram observadas de forma linear e constante O pro cesso é doloroso para ambos os participantes da dupla terapêutica Alter namse movimentos de progressão e regressão muito mais acentuados do que com outros tipos de pacientes A partir de nossa experiência gostaríamos ainda de enfatizar que o psicoterapeuta ao aceitar em tratamento um adolescente psicótico está se disponibilizando a realizar um atendimento que quase sempre inclui situa ções especiais Uma delas é o trabalho multidisciplinar que poderá ocorrer não somente quando houver necessidade de internação psiquiátrica mas principalmente em função de a indicação de medicação ser muito frequente nesses casos A outra diz respeito ao atendimento aos familiares do ado lescente em especial nos momentos de maior desestruturação Neste capítulo compartilhamos nossa visão otimista em relação à possibilidade de tratamento e melhora de pacientes psicóticos que outro ra foram incluídos no grupo que não se beneficiava de uma abordagem de orientação psicanalítica NOTAS 1 Os pacientes e familiares dos casos relatados foram consultados e consentiram que suas histórias fossem descritas neste capítulo mediante alterações dos dados 2 Na obra Elementos da Psicanálise Bion utiliza o modelo digestivo para favorecer a compreensão dos processos de pensamento o aparelho para pensar pensamentos constróise no modelo gastrintestinal ou seja há o pressuposto na criança de que tudo segue uma linearidade temporal e espacial tal como um alimento começa na boca e termina expulso pelo ânus Aliás é bastante usada a expressão de Bion de evacuação referente à expulsão dos protomentais elementos beta sob a forma de identificações projetivas excessivas Zimerman 1995 p 36 3 As poesias e texto citados neste capítulo tiveram a autorização do paciente para serem publicados através da assinatura de um termo de consentimento livre esclarecido REFERÊNCIAS BION W R O aprender com a experiência Rio de Janeiro Imago 1991 Estudos psicanalíticos revisados 3 ed Rio de Janeiro Imago 1994 CAHN R Para una teoría psicoanalitica de la psicosis en la adolescencia Revista de Psicoanálisis con niños y Adolescentes Buenos Aires v 7 p 3251 1994 Crianças e adolescentes em psicoterapia 355 FREUD S Esboço de psicanálise In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1972 v 23 Sobre a psicoterapia In Edição standard brasileira das obras psico lógicas completas de Sigmund Freud Rio de Janeiro Imago 1972 v 7 GRINBERG L Psicopatologia de la identificación y contraidentificación proyectivas y de la contratransferência Revista de Psicoanalisis v 20 n 2 p 113123 1962 GRINBERG L SOR D BIANCHEDI E T Introdução às idéias de Bion Rio de Janeiro Imago 1973 JEAMMET P CORCOS M Novas problemáticas da adolescência evolução e manejo da dependência São Paulo Casa do Psicólogo 2005 LEVISKY D L Adolescência reflexões psicanalíticas 2 ed São Paulo Casa do Psicólogo 1998 LEVY R Adolescenza Refugi Narcisistici Distrutivitá e Dilemmi del Contro transfert Quaderni dellIstituto di Psicoterapia del Bambino e dellAdolescente dallAdolescente al Giovane Adulto Milano v 27 p 147167 2008 PESTALOZZI J O simbólico e o concreto adolescentes psicóticos em psicoterapia psicanalítica Livro Anual de Psicanálise v 19 p 269288 2005 QUEVEDO J SCHMITT R KAPCZINSKI F Emergências psiquiátricas 2 ed Porto Alegre Artmed 2008 ROSENFELD D O psicótico aspectos da personalidade Petrópolis Vozes 1993 ROSENFELD H Impasse e interpretação fatores terapeuticos e antiterapeuticos no tratamento psicanalítico de pacientes neuróticos psicóticos e fronteiriços Rio de Janeiro Imago 1988 SEGAL H A obra de Hanna Segal uma abordagem Kleiniana à prática clínica Rio de Janeiro Imago 1982 STERIAN A Esquizofrenia 3 ed São Paulo Casa do Psicólogo 2005 ZIMERMAN D Bion da teoria à prática uma leitura didática Porto Alegre Artmed 1995 WINNICOTT D W Da pediatria à psicanálise obras escolhidas Rio de Janeiro Imago 2000 Índice A Adolescentes comunicação na psicoterapia Ver Comunicação desenvolvimento emocional normal Ver Desenvolvimento emocional nomal e transgeracionalidade 162172 imagem corporal 155161 na atualidade 162172 psicóticos 337354 tendência suicida Ver Tendência suicida no adolescente Anna Freud 3435 Atuações ações comunicativas e enactment 182189 Autismo 286318 psicoterapia 291298 etapa final 314316 fase inicial 292296 fase intermediária 297298 visão psicanalítica 287291 B Brincar e psicoterapia de crianças Ver Comunicação na psicoterapia de crianças C Características do psicoterapeuta de crianças e adolescentes Ver Psico terapeuta de crianças e adolescentes condições essenciais Clínica com crianças e adolescentes Ver Processo psicoterápico Complexo de Édipo em Lacan 155 161 Comunicação 141152 na psicoterapia de adolescentes 175 191 corpo e sexualidade 176182 atuações ações comunicativas e enactment 182189 na psicoterapia de crianças 141152 Corpo do adolescente Ver Imagem cor poral do adolescente Crianças autistas 286318 comunicação na psicoterapia Ver Co municação na psicoterapia de crianças desenvolvimento emocional normal Ver Desenvolvimento emocional normal 358 Maria da Graça Kern Castro Anie Stürmer cols etapas da psicoterapia Ver Etapas da psicoterapia vítimas de maus tratos 274283 Crianças institucionalizadas 274283 origem do mal 275276 psicoterapia psicanalítica 279283 D Desenho e psicoterapia de crianças Ver Comunicação na psicoterapia de crianças Desenvolvimento emocional normal 56 69 crianças 5661 adolescentes 6169 E Estádio do Espelho e adolescência 155 161 Etapas da psicoterapia com crianças 97 113 fase final despedida 109113 fase inicial aliança 104106 fase intermediária processo elabo rativo 106109 período de avaliação encontro 98 104 F Formação do psicoterapeuta de crianças e adolescentes Ver Psicoterapeuta de crianças e adolescentes condições es senciais G Grupo psicoterapia de Ver Psicoterapia grupal mediada por contos I Imagem corporal do adolescente 155 161 J Jogo e psicoterapia de crianças Ver Comu nicação na psicoterapia de crianças M Melanie Klein 3134 N Narcisismo 155161 O Origens da psicoterapia de crianças e adolescentes 2940 América Latina e Brasil 3739 Anna Freud 3435 Melanie Klein 3134 psicologia do ego 35 teoria das relações objetais 3537 P Pais importância no processo da psico terapia 116138 abordagem histórica e técnica 117122 aspectos legais 117 aspectos transgeracionais 122125 e adolescentes 131133 manejo técnico e postura terapêutica 125131 nos transtornos invasivos do desenvolvi mento sindrômicos e psicóticos 134 138 Prática clínica 75191 Processo psicoterápico 7795 campo psicoterápico 7981 fenômenos transferenciais e contra transferenciais 8490 intervenções na atualidade 9094 relação terapêutica 8284 Psicanálise 2940 como origem da psicoterapia de crianças e adolescentes 2940 Crianças e adolescentes em psicoterapia 359 Psicologia do ego 35 Psicoses na adolescência 337354 avaliação diagnóstica 338343 complexidades e peculiaridades 343 347 percurso em busca da mudança psíquica 347353 Psicoterapeuta de crianças e adoles centes condições essenciais 4254 Psicoterapia breve de orientação ana lítica 195214 histórico 199201 na infância e na adolescência 201207 contexto atual 201202 indicações e contra indicações 207 209 particularidades no processo tera pêutico 202207 lugar dos pais 202203 Psicoterapia familiar e recasamento 238255 contextos terapêuticos 248254 do indivíduo à família 239243 contextos antecedentes 240243 formação de nova família 244248 Psicoterapia grupal mediada por contos 216236 enquadre 220224 contrato e duração 222 etapa diagnóstica 222 grupo 221222 momentos de cada sessão 222224 terapeutas 220221 desenvolvimento do processo psi coterápico 224234 consolidação da transferência catarse e início das elaborações de conflitos 227231 elaboração e despedida dos tera peutas 231234 formação do vínculo e estabele cimento do enquadre 224227 R Recasamento e psicoterapia familiar Ver Psicoterapia familiar e recasamento S Simbolismo na psicoterapia de crianças Ver Comunicação na psicoterapia de crianças Suicídio tendência na adolescência Ver Tendência suicida no adolescente T Tendência antissocial psicoterapia 257 272 delinquência na psicanálise 259261 deprivação x privação 263264 estado de deprivação e tendência antissocial teoria de Winnicott 261 263 releitura na pósmodernidade 264 265 tratamento 265271 Tendência suicida no adolescente 321 334 Teoria das relações objetais 3537 Transgeracionalidade e adolescência atual 162172