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Direito ·

Processo Penal

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A ATUAÇÃO DOS MAGISTRADOS NO JULGAMENTO DAS BRUXAS uma análise histórica do processo e da perseguição às mulheres nos séculos XVI e XVII Daniel Carneiro Machado1 Sumário 1 Introdução 2 O Sistema Inquisitivo e o Sistema Acusatório 3 A imagem da bruxa e a difusão das teorias da demonologia para identificála e punila severamente conscientização dos magistrados 4 O processo inquisitorial infalível contra a bruxaria 41 Do início do processo contra a bruxaria 42 O interrogatório do acusado e a tortura como meio de prova para se obter a confissão 43 A prova testemunhal sigilosa 44 A busca da marca do Diabo 45 Da possibilidade de deduções tautológicas contrárias às evidências do processo 46 A sentença condenatória 5 Conclusão 6 Bibliografia Resumo O artigo propõe o estudo crítico do processo e do julgamento das mulheres acusadas de bruxaria nos séculos XVI e XVII na Europa destacando a atuação peculiar dos magistrados na produção das provas na tortura das acusadas para a obtenção da confissão o que ocasionava a condenação à morte na fogueira na grande maioria dos casos A conduta inquisitorial dos magistrados era legitimada pelas teorias demonológicas difundidas na época por teólogos e juristas renomados Palavraschave história do direito processo magistrado sistema inquisitivo demonologia tortura Abstract The paper focus on the critical study of the prosecution and judgment of women accused of witchcraft in the XVI and XVII centuries in Europe highlighting the peculiar role of the judges in the production of evidence by using torture to obtain their confession which caused their conviction to death burning at the stake in most of the cases The inquisitorial approach of the judges was legitimized by demonological theories widespread at that time by renowned theologians and jurists Key words witchcraft prosecution judge inquisitorial system demonology 1 Introdução O presente estudo se propõe a analisar criticamente o processo contra as bruxas nos séculos XVI e XVII na Europa tendo como paradigma históricojurídico o estudo desenvolvido por Robert Mandrou em sua obra intitulada Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII 1 O autor é Mestre em Direito Processual pela PUCMINAS e Doutorando pela UFMG desde 2013 Atua como juiz federal e professor do Centro Universitário Newton Paiva em Belo Horizonte MG Para se compreender a peculiar atuação dos magistrados no processo e no julgamento das bruxas naquele contexto histórico e como milhares de mulheres foram condenadas e queimadas na fogueira em razão da prática do crime de feitiçaria importante realizar um breve contraponto entre os Sistemas Penais Inquisitivo e Acusatório A análise processual também não poderá se divorciar dos pensamentos de alguns demonólogos da época sobre a bruxaria especialmente o desenvolvido no Malleus maleficarum escrito no século XV pelos teólogos Kramer e Sprenger considerado o mais célebre tratado de demonologia já produzido e um verdadeiro manual direcionado aos magistrados para saber como identificar processar julgar e punir as bruxas Sprenger foi um dos demonólogos mais reeditados e mais lidos do século XVI citando casos e referências bíblicas para comprovar que o Satã percorre a terra propagando o mal e que a vontade divina é expressa em favor de uma repressão o que justificaria algumas regras procedimentais mais rígidas para os julgamentos das bruxas Essa literatura jurídica e teológica da lavra de teólogos renomados é pródiga em conselhos e recomendações concernentes aos subterfúgios enganosos do Diabo influenciando a crença dos juízes e do mundo culto daquela época acerca da presença real do Diabo e a forma de sua atuação na vida cotidiana da sociedade além de incutir na mente das autoridades a necessidade da repressão daqueles que com ele estabeleciam pactos Aliás conforme será abordado em tópico específico deste artigo a leitura e a propagação das idéias das obras de demonologia criaram nas palavras de Robert Mandrou 1968 p 83 uma notoriedade erudita por meio da qual os magistrados se municiaram de um arsenal de questões gerais e préconcepções que permitiram e legitimaram a forma peculiar de condução da produção das provas interrogatório dos acusados a procura da marca a tortura as deduções além de conferir mais firmeza aos juízes para exortar os incriminados a confessarem rompendo o suposto pacto com o Demônio o que ensejava na grande maioria dos casos a condenação das mulheres acusadas de bruxaria Com efeito a religião a moral e o direito estavam visceralmente ligados e dessa forma havia a interferência de dogmas e de argumentos de matizes divinas na própria estruturação jurídicopolítica do Estado e por conseguinte na formação intelectual e na atuação dos magistrados o que justificava a caça às bruxas e principalmente legitimava as condenações corroboradas por préconcepções difundidas pelos teólogos 2 Conforme será demonstrado os magistrados agiam como verdadeiros inquisitores na condução dos processos respaldados pela autoridade da Igreja e pelos manuais de demonologia já que eram considerados invulneráveis a qualquer ataque satânico O estudo mostrase portanto relevante na medida em que analisará historicamente o processo e as razões jurídicas e demonológicas que legitimavam a conduta inquisitorial dos magistrados na produção das provas a prática da tortura para a obtenção da confissão a possibilidade de deduções contrárias aos fatos relatados além da abordagem da sentença e seus efeitos contra as feiticeiras e seus patrimônios 2 O Sistema Inquisitivo e o Sistema Acusatório Antes da abordagem das características peculiares dos processos instaurados contra as mulheres acusadas de bruxaria é preciso fazer uma breve distinção entre os Sistemas Penais Inquisitivo e Acusatório O Sistema Inquisitivo se difundiu na Idade Média por influência do Direito Canônico e tem sua forma pura nas palavras do jurista Jacinto Coutinho 2001 p 18 no Santo Ofício ou Tribunal da Inquisição como uma forma de repressão às doutrinas hereges De acordo com Tourinho Filho passou a dominar toda ou quase toda Europa a partir do Concílio Lateranense de 1215 2003 p 90 e entrou em decadência naquele continente a partir do século XVIII por influência do Iluminismo Revolução Francesa O referido sistema se caracterizava pela ritualística processual rígida na qual se confundiam as figuras do acusador e do julgador Pautavase pelos atos secretos permitia o início do processo por denúncia que muitas vezes ocorria de forma anônima ou também por ofício caso o julgador ficasse sabendo dos fatos Os nomes das testemunhas eram ocultados do acusado e se fazia todo o possível para que o mesmo não pudesse descobrilas A figura do inquisidor investigava colhia as provas insistindo na confissão pela tortura oitiva de testemunhas e ainda julgava o acusado buscando sempre a verdade absoluta revelada para a salvação Conforme leciona Jacinto Coutinho 2001 p 28 podese dizer que o sistema inquisitório regido pelo princípio inquisitivo tem como principal característica a extrema concentração de poder nas mãos do julgador o qual detém a gestão da prova Aqui o 3 acusado é mero objeto de investigação e tido como detentor da verdade de um crime da qual deverá dar contas ao inquisidor No mesmo sentido importante destacar a doutrina de Gilberto Thuns 2006 p 202 o sistema inquisitório caracterizase pela reunião das funções de persecução e julgamento num único órgão estatal É típico de concepção de Estado absolutista havendo concentração de todo poder nas mãos do soberano A prova pode ser obtida por qualquer meio ainda que cruel O objetivo é a verdade a qualquer custo O juiz inquisidor era portanto o gestor da prova buscando confirmar o que já pensava subjetivismo sobre o fato idéia préconcebida quando deu início ao processo Estabelecese para o juiz inquisidor um verdadeiro quadro mental paranóico porquanto a prova servia para demonstrar a correção da imputação formulada por ele próprio com grave prejuízo para sua imparcialidade Lopes Júnior 2007 p 7880 Para alcançar tal desiderato era perseguida a todo custo a confissão do réu obtida principalmente mediante tortura ou outro meio cruel para obter as respostas que melhor conviesse ao juiz Em outras palavras o julgador representante de Deus na Terra amparado na doutrina difundida pelos teólogos produzia provas para confirmar o fato utilizandose de todos os meios para obter a condenação do objeto da relação processual já que o acusado praticamente não tinha vez e voz naquele procedimento Nesse contexto percebese claramente que o réu era simples objeto da persecução não contando com garantias no decorrer do procedimento O direito de defesa era limitado e muitas vezes inexistente Como exemplo podese mencionar o julgamento de Joana Darc em que ela só poderia escolher seu defensor entre os próprios acusadores Rangel 2005 p 48 De outro lado com características totalmente opostas ao Sistema Inquisitivo encontrase o Acusatório que tem suas origens na Grécia e na Roma Republicana mas naquela época ainda de caráter predominantemente privado No Direito grego o Sistema Acusatório se desenvolveu em virtude da participação direta do povo no exercício da acusação vigorando o sistema da ação popular para os delitos graves e a acusação privada para os delitos de menor gravidade Lopes Júnior 2007 p 58 4 Já no Direito romano na República era possível visualizar as características centrais do Sistema Acusatório na accusatio judicium publicum ou quaestio direcionada aos delicta publica Lopes Júnior 2007 p 59 tais como separação das funções de acusar e julgar adoção do princípio ne procedat judex ex officio pelo qual o julgador não poderia iniciar o processo de ofício mas somente mediante provocação princípio do dispositivo presença do princípio do contraditório como direito de informação e reação publicidade dos julgamentos O acusado que no Sistema Inquisitivo era tratado como mero objeto do processo passa a ser pessoa de direitos e deveres um cidadão e por isso deve necessariamente ter suas garantias individuais resguardadas contra todo e qualquer poder despótico aqui iniciase em sua essência o Sistema Acusatório do processo penal A propósito Ferrajoli 2002 p 564 assim define o Sistema Acusatório se pode chamar acusatório a todo sistema processual que concebe o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o juízo como uma contenda entre iguais iniciada pela acusação a quem compete o ônus da prova enfrentada a defesa em um juízo contraditório oral e público e resolvida pelo juiz segundo sua convicção O Sistema Acusatório é hoje adotado na maioria dos países americanos e em muitos da Europa Esse sistema aponta como traços fundamentais marcantes o princípio do contraditório como garantia políticojurídica do cidadão princípio da igualdade entre as partes acusadora e acusada da publicidade do processo fiscalizável pelo povo da separação das funções de acusar defender e julgar que são obrigatoriamente atribuídas a pessoas distintas e logicamente não permitindo ao juiz iniciar o processo de ofício a iniciativa do processo cabe à parte acusadora que poderá ser o ofendido ou seu representante legal qualquer do povo ou um órgão do Estado A partir de tais distinções podese destacar que o processo desenvolvido no contexto histórico da caça às bruxas nos séculos XVI e XVII na Europa era decorrente do Sistema Inquisitivo que vem da inquisição Santa Inquisição Tribunal Eclesiástico possuindo como finalidade a investigação e punição dos hereges 5 3 A imagem da bruxa e a difusão das teorias da demonologia para identificála e puni la severamente conscientização dos magistrados Para melhor compreensão do processo inquisitivo de julgamento das bruxas é importante destacar também as razões pelos quais na grande maioria dos casos apenas as mulheres foram acusadas e condenadas pelo crime de bruxaria As feiticeiras ou bruxas eram seguidoras do Diabo por meio das quais Deus permitia que os homens fossem tentados a fim de diferenciar seus escolhidos dos demais A feiticeira mulher entregava seu corpo e sua alma aos demônios praticando orgias sexuais e recebendo do Diabo poderes para desencadear os mais diversos e terríveis males como destruir o gado os frutos das árvores e da terra provocar o aborto impedir a consumação dos casamentos através do famigerado feitiço da impotência e assassinar crianças chegando até mesmo a elaborar ungüentos maléficos com a gordura das crianças mortas Kramer 2004 p 4344 Em várias passagens do Malleus Maleficarum Kramer e Sprenger explicam os motivos pelos quais eram as mulheres e não os homens que se entregavam à maléfica superstição da bruxaria 2004 p 112123 Em trechos das Sagradas Escrituras os referidos teólogos asseveravam encontrar testemunhos sobre o alto grau de perversidade que as mulheres podiam atingir concluindo que a ação do Diabo se voltava preferencialmente às mulheres por serem mais fracas na mente e no corpo Kramer 2004 p 116 Para justificar a sua teorização da bruxaria e a imagem feminina da feiticeira Kramer e Sprenger também destacaram a conduta da primeira mulher Eva que teria desobedecido às ordens de Deus in verbis E convém observar que houve uma falha na formação da primeira mulher por ter sido ela criada a partir de uma costela recurva ou seja uma costela do peito cuja curvatura é por assim dizer contrária à retidão do homem E como em virtude dessa falha a mulher é animal imperfeito sempre decepciona e mente Kramer 2004 p 116 Toda essa imperfeição original revelaria a natureza mais carnal da mulher mais descontrolada emotivamente mais prejudicada quanto à memória e à inteligência de modo que o pecado dela proveniente destruiria a alma e relegaria o corpo à punição do pecado o 6 que segundo os referidos teólogos favorecia a escolha do Diabo para com elas estabelecer seus pactos O Malleus maleficarum foi traduzido para diversos idiomas e reimpresso quatorze vezes até 1520 Em razão da difusão de seu pensamento surgiram numerosas obras de demonologia no século XVI que aprimoraram a doutrina da realidade da bruxaria Apresentaram mais argumentos a favor dela detalharam os subterfúgios das bruxas dos demônios e relataram experiências concretas com a bruxaria o que repercutiu fortemente na sociedade da época De acordo com Bruno Galeano Gonçalves 2011 citando Bengt Ankarloo e Stuart Clark as obras dos juristas franceses Jean Bodin Nicholas Remy Henri Boguet e Pierre de Lancre e de muitos outros ofereciam os argumentos padrões acerca de todos os aspectos da bruxaria a apostasia os poderes dos demônios e espíritos o malefício o transporte ao sabá e suas cerimônias banquetes e danças relações sexuais entre as bruxas e os demônios a possibilidade da metamorfose e daí em diante citando a toda hora casos individuais supostamente oriundos de arquivos judiciais A propósito em sua obra De la démonialité des sorciers publicada em Paris no ano de 1582 Jean Bodin apresentou ensinamentos sobre a bruxaria e a propensão da mulher para firmar pactos com o Diabo Considerado um tipo de código penal das bruxas dentro do estudo da demonologia a obra teve dez edições Mandrou 1968 p 107 No prefácio da referida obra consta que ela teria sido escrita para denunciar o crime mais execrável e para responder àqueles que por livros impressos se esforçavam para salvar os feiticeiros parecendo que o Satã os havia inspirado e puxado seu cordão para publicarem aqueles livros Jean Bodin apud Mandrou 1968 p 107 Para Jean Bodin as bruxas eram culpadas de 15 quinze crimes entre os quais renegar a Deus adorar o Diabo a ele sacrificar os filhos consagrálos à Satanás desde o ventre materno alimentarse de carne humana jurar pelo nome do demônio cometer incestos fazer perecerem os frutos ser escravas do Diabo e com ele copularem Da mesma maneira Fray Martín de Castañega em seu Tratado sobre superstições e feitiçarias enumerou as razões da prevalência de mulheres entre as feiticeiras Primeiramente porque Cristo as afastou da administração de seus sacramentos por isto o Demônio lhes dá esta autoridade mais a elas que a eles os homens na administração de seus execramentos Em 7 segundo porque mais rapidamente são enganadas pelo Demônio como parece pela primeira que foi enganada a quem o Demônio teve recurso primeiro que ao varão Em terceiro porque são mais curiosas em sabedoria e em esquadrinhar as coisas ocultas e desejar ser singulares no saber como se negasse a sua natureza Em quarto porque são mais faladeiras que os homens e não guardam tanto segredo ensinando assim umas às outras o que não fazem tanto os homens Em quinto porque são mais sujeitas à ira e mais vingativas como tem menos força para se vingar de algumas pessoas contra as quais têm ressentimentos procuram e pedem vingança e favor ao Demônio Castañega 1529 apud Nogueira 1995 p 101 Geoffrey Parker p 24 e Elliott Currie p 10 também destacam a multiplicidade de obras de demonologia escritas por intelectuais renomados e de grande influência nos séculos XV e XVI cujas idéias teriam propiciado a intensificação da perseguição e julgamento das pessoas acusadas de bruxaria Segundo Robert Mandrou 1968 p 83 as obras de demonologia contribuíram de forma fundamental para a conscientização da magistratura da época especialmente na França e Europa Ocidental acerca da existência da feiticeira e da necessidade de sua repressão severa in verbis Essas boas leituras têm portanto pelo menos o efeito de fornecer aos magistrados um arsenal de questões gerais que atingem o alvo e sobretudo uma segurança na investigação uma serenidade inabaláveis elas explicam o tom seguro peremptório mesmo com o qual os juízes exortam os incriminados convidandoos a não se deixarem persuadir a romper o pacto com o Demônio eles elevam a voz por diversas vezes recordando os compromissos assumidos no batismo encorajando suas vítimas a resistir às sugestões diabólicas Logo a seguir conclui Com a ajuda dos teólogos que também são às vezes juízes como Del Rio eles multiplicam as obras eruditas que enaltecem como Bodin a repressão Essas publicações difundidas por toda a parte dedicadas muito freqüentemente aos homens da justiça que precisam ser ajudados em sua luta contra as astúcias demoníacas acentuaram elas próprias a propagação torrencial da epidemia sobre o conjunto da França para não dizer a Europa Ocidental Elas definiram com uma prolixidade inesgotável o dever de consciência da magistratura Os feiticeiros andam por todas as partes aos milhares multiplicandose na terra assim como as lagartas em nossos jardins O que é uma vergonha para os magistrados aos quais cabe o castigo dos crimes e delitos Ninguém pode ser mais claro que Henry Boguet juiz superior do 8 Condado de Borgonha cujo Discours exércrable des sorciers conheceu o mesmo sucesso que a Démomanie Esse bom discípulo que se reporta sem cessar à lição de Sprenger e Bodin faz da perseguição dos feiticeiros um dever de Estado que tem prioridade sobre todos os outros porque ele é ordenado pelo próprio Deus Dessa forma o dever dos magistrados encontrase bem traçado ao mesmo tempo pelos demonólogos orgulhosos de suas proezas e pelas autoridades que são arrastadas no fervor repressivo solicitado pelas populações assim como pelos próprios juízes Mandrou p 111112 Enfim a grande propagação das idéias das obras de demonologia respaldadas pela autoridade da Igreja incutiram na mente dos magistrados um conhecimento teórico e muitas préconcepções sobre a bruxaria que legitimaram naquela época a forma peculiar de condução da produção das provas interrogatório dos acusados a procura da marca a tortura as deduções e de julgamento das mulheres acusadas o que ensejava a condenação na grande maioria dos casos 4 O processo inquisitorial infalível contra a bruxaria Os demonólogos dos séculos XV e XVI eram unânimes e não se cansavam de repetir que os juízes eram invulneráveis a qualquer ataque do demônio e sua missão estava colocada sobre a proteção de Deus não tendo nada a temer A propósito para Kramer e Sprenger 2004 p 198 existiam três classes de homens abençoados por Deus a quem as feiticeiras não teriam o poder de injuriar com suas bruxarias E na primeira estão os que administram a justiça pública contra suas obras e as levam a julgamento pelos seus crimes E prosseguem os demonólogos se todo o poder emana de Deus e de Deus é a espada para a vingança dos injustiçados e para o castigo dos perversos não admira que os demônios se sintam acuados quando se faz justiça para vingar tais crimes horríveis É dentro desse contexto e com respaldo no Sistema Inquisitivo cujas características já foram descritas neste estudo é que os magistrados instruídos pela propagação das obras de demonologia fortaleciamse para conduzir com punhos de ferro os processos e o julgamento das mulheres acusadas de feitiçaria Os magistrados deviam perseguir as feiticeiras constrangindoas a confessar seu pacto com o Diabo e a renunciar sobre a fogueira a esta traição Procedendo dessa maneira os julgadores asseguravam a salvação dessas criaturas transviadas pelo demônio o 9 que dava àquela função judiciária a conotação de uma missão superior Mandrou 1968 p 88 Nas palavras de Robert Mandrou 1968 p 8889 a Igreja delegoulhes um encargo de perseguição que deverá purificar o mundo do demônio satânico salvar as criaturas arrastadas pelo Demônio e limpar as aldeias as comunidades infectadas pelas desordens desses sequazes do Diabo Penetrados dessa convicção os juízes dificilmente deixam escapar o menor sinal de cumplicidade com o Diabo examinando e reexaminando as palavras e os gestos dos acusados terminam por encontrar esses sinais em cada atitude Mesmo a piedade lhes é proibida dizemno incidentalmente Bodin e Lancre no auge da crise do fim do século XVI E logo a seguir conclui Deixarse apiedar pelas lágrimas pelas súplicas seria correr o risco de entrar em cumplicidade com Satã e até de dar a uma de suas criaturas uma nova oportunidade de praticar atos nefastos Essas lágrimas poderiam muito bem ter sido suscitadas pelo próprio Diabo A lógica formal desta atitude extravio místico comum aos juízes e às vítimas é inabalável Ao fim do inquérito o juiz completa tais e tais indícios convergentes pela confissão o processo está acabado A fogueira não está longe Diante desse dever divino outorgado à magistratura para reprimir a bruxaria o juiz inquisidor poderia iniciar o processo de várias formas inclusive por iniciativa própria não poupando esforços para obter provas que confirmassem a sua convicção já previamente formada acerca da culpabilidade do acusado 41 Do início do processo contra a bruxaria A instauração do processo contra o crime de bruxaria poderia ocorrer segundo o manual de demonologia de Kramer e Sprenger 2004 p 396399 de três métodos diferentes De acordo com o primeiro método muito pouco utilizado em razão das suas conseqüências para o denunciante o processo poderia se iniciar mediante a acusação de uma pessoa por outra perante o juiz seja do crime de heresia seja do de dar proteção a algum outro herege sendo que o acusador deveria provar o crime sob pena de se submeter à lei de talião 10 caso não o consiga Pelo segundo método o processo se iniciaria a partir de uma denúncia anônima A pessoa não se comprometia a provar o crime e se recusava a envolverse diretamente na acusação O denunciante agia de forma sigilosa e prestava informações em nome do zelo à fé e a Deus ou para evitar castigos como a excomunhão O referido método exigia mais cautela dos juízes de modo que os depoimentos deviam ser colhidos de forma escrita na presença de testemunhas idôneas O terceiro método seria o mais usual Não se teria a presença de um acusador ou um informante apenas uma denúncia geral de que haveria bruxas em determinada aldeia ou cidade O juiz por sua vez deveria proceder à investigação não por solicitação de qualquer das partes mas apenas pela obrigação que lhe seria imposta pelo seu ofício consagrado pela vontade divina As pequenas querelas e tagarelices da aldeia podiam servir de base para denúncias contra mulheres suspeitas de bruxaria tais como a aparência pouco atraente e as roupas do suspeito as extravagâncias do comportamento social e as práticas sexuais incomuns ou não recomendadas os dramas conjugais acerca da impotência e infertilidade os eventos da natureza tempestades granizos sobre as vinhas etc Mandrou 1968 p 80 Enfim tudo poderia tornarse sinal de uma intervenção satânica para quem vivia naquele temor cotidiano ameaças violências e maledicências justificavam a onda de denúncias iniciandose o processo inquisitivo para investigação e punição dos suspeitos da prática de bruxaria Assim a partir da denúncia ou mesmo por iniciativa própria o juiz inquisidor dava início a um procedimento investigatório secreto para carrear elementos no intuito de ratificar a acusação por ele próprio elaborada e admitida Com efeito a prova no Sistema Penal Inquisitivo não era fator de convencimento do juiz mas instrumento para este convencer os outros do acerto da acusação que apresentara liminarmente JARDIM 2001 p 2425 Passase então ao estudo da produção das provas e do julgamento pelos magistrados 11 42 O interrogatório do acusado e a tortura como meio de prova para se obter a confissão Submetidos à justiça os acusados de bruxaria deviam suportar um longo combate na maioria das vezes sem qualquer defesa e do qual raramente saiam vencedores Aliás sobre a possibilidade da dúvida acerca da culpabilidade das acusadas de bruxaria Kramer e Sprenger 2004 p 277 afirmavam não é de nosso conhecimento que alguma pessoa inocente já tenha sido punida por mera suspeita de bruxaria Deus nunca há de permitir que isso aconteça A ausência da dúvida sobre a culpabilidade decorria da infalibilidade do método de interrogatório empregado no processo contra as mulheres acusadas de bruxaria Isso porque os interrogatórios dos acusados eram conduzidos pelos juízes com mãos de ferro para a obtenção da confissão espontânea ou mediante tortura Os juízes imbuídos de recursos de sua erudição formada pelas obras de demonologia então difundidas na classe culta da sociedade desfrutavam de uma enorme vantagem nos interrogatórios pois já admitiam préconcepções irrefutáveis sobre a bruxaria e partiam das mesmas para obter as confirmações dos atos e malefícios praticados pelos acusados Para mostrar contradições e induzir os acusados os juízes também relatavam os fatos já confirmados por outras pessoas da comunidade e fatos comprovados contra outras feiticeiras já condenadas em processos semelhantes ou oriundos do mesmo local da mesma aldeia Era a famosa jurisprudência da época O acusado ficava sempre acuado perturbado e perseguido às vezes por semanas Aliás o fato de os acusados relatarem inúmeras vezes o que os magistrados acreditavam que eles realmente haviam perpetrado pode se dever à corriqueira prática dos interrogatórios sugestivos Por meio dessa técnica minuciosamente ensinada nos tratados de demonologia os juízes efetuavam perguntas que orientavam as respostas dos suspeitos impossibilitando qualquer defesa substancial Como relata Mandrou após exaustiva pesquisa de arquivos judiciais na França dos séculos XVI e XVII a maior parte dos interrogatórios põem com efeito o acusado no caminho lembrandolhe os fatos antigos que pertencem à crônica da comunidade ou então fornecendolhe os elementos da resposta 1968 p 82 12 Por meio do interrogatório portanto os juízes perquiriam a verdade real do processo inquisitivo obtida na sua essência através da confissão A consolidação da confissão como a rainha das provas contou com os influxos religiosos que lhe conferiam a condição de um possível arrependimento do acusado o que poderia propiciar uma reconciliação com Deus Com poderes delegados por Deus para punir as bruxas os juízes agiam de forma obstinada para obter a confissão do acusado e com isso a reconciliação daqueles traidores com Deus rompendo o pacto com o diabo Evidentemente que a confissão não livrava as bruxas da condenação e por conseguinte da pena de morte na fogueira mas assegurava a salvação da alma segundo a demonologia Todavia se o acusado se mostrasse reticente negando e recusando todos os depoimentos e fatos relatados contra ele os juízes procederiam à busca da verdade real por meio de tormentos ou seja da tortura A propósito da utilização legítima da tortura no processo inquisitivo destacase a lição do professor Felipe Pinto 2010 p 200201 A difusão da tortura como método de apuração acompanhou o incremento do movimento da Igreja de combate aos hereges Inicialmente expediuse o decreto Licet ad capiendos de Gregório IX 1233 arregimentado por uma formulação inequívoca na Bula Ad extirpanda 1252 da autoria de Inocêncio IV a partir de quando a aplicação da tortura prevista para todos os processos contra os suspeitos de heresia foi delegada a juízes civis Mais tarde com a bula Multorum querela de Clemente V a tortura alcançou também os tribunais do Santo Ofício Em 1487 publicavase o Malleus Malleficarum de autoria de dois monges dominicanos Heinrich Kramer e James Sprenger posteriormente reconhecido pela bula papal Summis desiderantes affectibus e que consistia numa espécie de manual para diagnóstico de feitiçarias inclusive com descrições requintadas dos meios e modos de inflição dos suplícios aos acusados de bruxaria De fato as instruções de tortura muito mais do que um regramento serviram como divulgação do método e estímulo para os inquisidores que em razão do sucesso da técnica de apuração passavam a acreditar que o abençoado método gozava de uma providencial infalibilidade Qualquer que fosse a resistência física ou moral dos acusados a tortura alcançava o seu desiderato na maior parte dos casos já que muitos preferiam a morte rápida 13 assegurada a todos que confessassem prontamente todos os crimes e malefícios praticados à continuação das longas sessões de sofrimento Importante ressaltar que a estrutura do processo inquisitório era corroborada pelos estudos de filósofos e teólogos de notória erudição que utilizaram um conveniente discurso de superação das tentações para a manutenção do corpo puro e ainda a exaltação do sofrimento como maneira de se alcançar a purificação da alma e a reconciliação com Deus A partir de tais discursos legitimadores das barbáries autorizadas pelos juízes a tortura teria adquirido um caráter medicinal para a alma pois a submissão do acusado à tortura enquanto forma de sua salvação para livrarse dos pecados o aproximaria de Deus e dessa forma todo o sofrimento e as marcas deixadas no corpo passariam a gozar de uma conotação benéfica de reconciliação divina Pinto 2010 p 202 Dentro desse contexto o interrogatório se tornou um ato processual de extrema relevância no processo contra as mulheres acusadas de bruxaria uma vez que consistia na formalização da obtenção da prova mais valiosa a confissão e que por essa razão correspondia à verdade real e absoluta mesmo se obtida mediante tortura 43 A prova testemunhal sigilosa Quanto à prova testemunhal a regra era que aquilo que fosse declarado sob juramento por duas ou três pessoas seria considerado a verdade Vigia àquela época o sistema da prova tarifada ou prova legal pelo qual existia uma hierarquia objetiva entre os meios de prova A confissão era a rainha das provas e demonstrava a verdade absoluta Duas ou mais testemunhas também demonstravam o fato mas valiam menos que a confissão Havendo divergências entre os depoimentos das testemunhas ou quando as testemunhas prestavam declarações confusas ou contraditórias ou quando pareciam ter ocultado algum fato o juiz poderia inquirilas quantas vezes lhe aprouvesse até o esclarecimento integral Cumpria ao juiz inquirir também sobre qualquer inimizade pessoal manifestada ou sentida pelas testemunhas para com a prisioneira acusada sendo que nestes casos tais testemunhas poderiam não ser admitidas ou levadas em conta no julgamento No entanto se a própria acusada negava a existência de inimigos ou quando 14 dava o nome de suposto inimigo que não havia prestado depoimento naquele caso mesmo que outras testemunhas tivessem declarado que uma determinada pessoa havia prestado depoimento por motivo de inimizade ou ódio contra a acusada o juiz estava autorizado a não rejeitar as evidências demonstradas pelo depoimento incluindoo junto com as outras provas Kramer 2004 p 405 Além disso na falta de outras provas por mais absurdo que possa parecer admitiase o depoimento de outras bruxas dos cúmplices parentes notórios criminosos e malfeitores desde que para demonstrar os fatos imputados pela acusação Tais pessoas não poderiam ser admitidas contudo como testemunhas em favor da defesa Isso mostra o tratamento prejudicial conferido ao acusado considerado mero objeto do processo Nesse sentido destacamse algumas regras processuais instituídas por Kramer e Sprenger 2004 p 403 Reparar que as pessoas sob sentença de excomunhão os sócios e os cúmplices ou servos que prestam depoimento contra os seus amos são aceitos como testemunhas em causas relacionadas à Fé Assim como um herege pode depor contra outro herege uma bruxa pode depor contra outra bruxa O mesmo se há de dizer do depoimento da esposa dos filhos e dos parentes da pessoa acusada Pois que evidência dessa natureza tem mais valia em provar uma acusação do que em refutála Em razão da gravidade do crime de bruxaria e dos supostos riscos para as testemunhas seus nomes eram mantidos em sigilo de modo que a acusada não ficaria sabendo quem teria prestado o depoimento Conforme instruía Kramer no Malleus Malleficarum 2004 p 417 o Juiz diligente atentará para os poderes dos acusados os quais são de três tipos a saber o poder do berço e da família o poder das riquezas e o poder da malícia O último há de ser mais temido do que os outros dois já que acarreta um maior perigo para os acusadores caso o seu nome se torne conhecido A razão para isso é que é mais perigoso tornar conhecidos da acusada os nomes das testemunhas quando a acusada é pobre porque é pessoa que tem muitos cúmplices malignos como bandidos e homicidas a ela associados que nada têm a perder além da própria vida o que não é o caso com os que são de berço nobre ou ricos com abundância de posses temporais E a espécie de perigo que se há de temer é explicada pelo Papa João XXII é o da morte ou supressão própria ou da prole ou da família ou o consumo da própria substância o alguma coisa dessa natureza 15 Os nomes das testemunhas raramente eram divulgados e isso somente ocorria quando não havia riscos o que era muito difícil nos casos de crime de bruxaria Mais uma vez percebese o direcionamento da condução das provas à procura de evidências para a confirmação das acusações não havendo verdadeira imparcialidade do juiz inquisidor nos processos contra as mulheres acusadas de bruxaria 44 A busca da marca do Diabo Mesmo que nenhuma outra prova superasse a confissão o juiz dispunha ainda de outros meios probatórios para confirmar suas convicções acerca das acusações de bruxaria Isso porque o Diabo marcava suas criaturas Robert Mandrou 1968 p 83 narra que segundo os demonólogos a marca imposta pelo diabo às bruxas como forma de revelar objetivamente o pacto existente era constantemente procurada pelos juízes nos processos contra a bruxaria mesmo que os acusados não tivessem dificuldades para confessar seus crimes Conforme reiterados processos da França do século XVI e XVII o juízes se valiam da ajuda de cirurgiões que nos intervalos dos interrogatórios encarregavamse de raspar totalmente o acusado e de picálo com uma agulha à procura da marca de insensibilidade reveladora do pacto com o diabo in verbis nos melhores casos a vítima não sente nada quando a agulha é enfiada em sua carne e o sangue não corre quando ela é retirada Esta insensibilidade estreitamente localizada representa uma prova tão boa que é procurada com muita perseverança pelos barbeiros em 1964 próximo de Vesoul uma infeliz foi picada tão fortemente que o operador não pôde recuperar sua agulha O exame do corpo inteiro pode necessitar de um largo tempo várias horas durante as quais o juiz espera pacientemente que cada cicatriz devidamente sondada seja avaliada pelo cirurgião Mandrou 1968 p 84 Essa prova exterior objetivamente constatada se somava aos demais elementos de convicção praticamente irrefutáveis que os interrogatórios e os testemunhos forneciam ao juiz 16 45 Da possibilidade de deduções tautológicas contrárias às evidências do processo Como se não bastasse toda a forma inquisitória e tendenciosa de condução da produção das provas sem qualquer chance de defesa aos acusados os magistrados ainda eram munidos pelas obras teóricas de demonologia de uma interpretação peculiar nos processos contra as mulheres acusadas de bruxaria Os juízes não consideravam o seu interlocutor naquele tipo de processo como um acusado comum havendo sempre o fundado receio de serem enganados pelas mentiras satânicas Em razão disso desconfiavam de tudo que era dito em resposta às perguntas concluindo pela presença diabólica em todas as declarações e até mesmo desconfiavam das pesquisas objetivas das provas como por exemplo da busca da marca quando as evidências não confirmavam em sua inteireza os fatos da denúncia Ou seja o acusado poderia ser considerado culpado mesmo quando resistia às sessões de tortura negando os fatos lhe atribuídos o que já era quase impossível de ocorrer ou quando não se localizava nenhuma marca do demônio Segundo Mandrou no século XVII vários juízes na França concluíram ao fim de uma procura vã das marcas insensíveis que o demônio teria atuado no caso para apagálas momentaneamente e enganar a Justiça em prol de um de seus cúmplices 1968 p 86 Ou seja os juízes estavam munidos de uma ciência erudita demonológica e por isso possuíam uma convicção íntima e arraigada de que teriam de tratar com um verdadeiro inimigo e não um suspeito cujas dissimulações e mentiras poderiam ultrapassar tudo o que se podia imaginar A partir daí os juízes extraiam legitimamente inúmeras deduções tautológicas corroboradas pelas obras de demonologia Quando a feiticeira se recusa a responder negando em bloco o que lhe é imputado ela manifesta o endurecimento suscitado por Satã o pacto de silêncio que ele lhe recomenda para manter em xeque os justiceiros Quando ela se desfaz em lamentos amargos sobre as infelicidades que sofreu sobre a maldade dos vizinhos trai a angústia que os atos nefastos por ela cometidos lhe suscitam em um momento em que o seu protetor a abandonou Da mesma forma as lágrimas vertidas durante a tortura ou ao fim de um interrogatório extenuante traem a culpabilidade reconhecida ao passo que um olho desesperadamente seco exprime a perseverança na cumplicidade diabólica Os juízes possuem assim uma resposta unívoca para todas as atitudes de seus adversários Mandrou 1968 p 87 17 O automatismo e a lógica formal dessas deduções eram inabaláveis naquela época e o final do processo já estava próximo sendo praticamente inevitável a condenação da acusada das práticas de bruxaria 46 A sentença condenatória A partir dos estudos das provas e da sua peculiar condução pelos magistrados não é difícil perceber que a condenação da acusada era inevitável Certamente também ocorriam casos de absolvição mas era recomendado pelas obras de demonologia que não fosse declarado em nenhum trecho da sentença que a acusada seria inocente ou imune mas apenas que nada contra ela havia sido provado no processo Isso porque se depois de algum tempo fosse trazida de novo a julgamento e a acusação fosse legalmente comprovada a pessoa acusada poderia ser condenada por aquele crime não obstante a prévia sentença de absolvição Kramer 2004 p 458 A sentença de condenação por sua vez estava relacionada diretamente com a confissão alcançada nos processos mediante tortura As demais provas vinham apenas para corroborála O juiz venceu o diabo retomandolhe a presa e cumprindo bem o seu dever outorgado por Deus As formalidades da sentença condenatória eram muito simples poderia haver previsão de interrogatório suplementar a fim de obter denúncias de cúmplices ou de outros partidários do Satã estipular cláusula de confisco dos bens da feiticeira a fim de prover as despesas do processo determinar os preparativos da execução sobre o cadafalso ou nos lugares do sabá nas horas seguintes à proclamação do julgamento imediatamente executável salvo nos casos de processo de apelo que os condenados humildes e pobres na maior parte não assistidos de defesa jurídica não tinham condições de iniciar Mandrou 1968 p 89 e 92 A repercussão financeira da sentença condenatória estava relacionada com a multa e o confisco de todos os bens necessários para as despesas do processo do aprisionamento e da execução Os deslocamentos do juiz e dos cirurgiões que examinavam as marcas o trabalho dos auxiliares encarregados da tortura as despesas de instalação do patíbulo e da fogueira a retribuição inclusive do carrasco generosamente pago com os bens 18 da bruxa Freqüentemente os juízes determinavam a incineração do processo juntamente com o acusado para que não restasse mais nenhum traço de seus crimes mesmo nos arquivos da Justiça Da mesma forma os juízes mandavam ao fogo os instrumentos da magia encontrados no domicílio da bruxa Mandrou 1968 p 95 Nas palavras conclusivas de Robert Mandrou 1968 p 89 uma vez lançadas as cinzas ao vento que arrasta os últimos traços dos culpados e freqüentemente até mesmo de seu processo jogado na fogueira após a última leitura da sentença os juízes retornam a outros afazeres e certamente a novas perseguições de feiticeiras 5 Conclusão O presente artigo apresentou uma visão geral do processo inquisitivo da Europa Ocidental nos séculos XVI e XVII dando ênfase à forma peculiar de atuação dos magistrados no período da caça às bruxas o que teria contribuído diretamente para que muitas mulheres fossem condenadas e queimadas na fogueira sem qualquer chance de defesa Ao contrário do que poderia parecer num primeiro momento não foram apenas as características típicas do Sistema Inquisitivo vigorante à época como por exemplo a confusão entre os papéis de acusador e julgador que inviabilizaram o exercício do direito de defesa das mulheres suspeitas de bruxaria e facilitaram inúmeras condenações à morte Conforme se demonstrou ao longo deste estudo as condenações pelo crime de bruxaria se deveram também ao tratamento ainda mais rígido e peculiar dado pelos juízes aos referidos casos Os juízes inquisidores não consideravam o seu interlocutor naquele tipo específico de processo como um acusado comum havendo sempre o fundado receio de serem enganados pelas supostas mentiras satânicas pelas manobras do Diabo Essa postura seria decorrente da propagação das obras de demonologia cujo discurso jurídico teleológico estabeleceu uma profunda conscientização da magistratura da época camada erudita da sociedade acerca da existência da feiticeira e da necessidade de sua identificação e repressão severa especialmente na França e Europa Ocidental dos séculos XVI e XVII 19 Com efeito a propagação das teorias demonológicas respaldadas pela autoridade da Igreja incutiram na mente dos magistrados uma visão bem definida de que agiam por delegação de Deus para cumprir uma missão jurisdicional superior e essencial à salvação das mulheres transviadas pelo diabo nos casos de bruxaria Além da íntima convicção de que estavam agindo em nome de Deus os magistrados também foram municiados pelos demonólogos de um conhecimento teórico e de préconcepções sobre a bruxaria as formas de sua identificação e punição que legitimaram naquele contexto histórico a maneira incisiva de condução da produção das provas e do julgamento A confissão era a rainha das provas e o juiz a perseguia com mãos de ferro no interrogatório dos acusados de bruxaria valendose inclusive da tortura pois se acreditava que era a forma de salvação da alma do acusado e de sua reconciliação com Deus Os nomes das testemunhas eram mantidos em sigilo pois havia o risco de que os malefícios da bruxa recaíssem sobre aquelas pessoas seus parentes e seus bens Os juízes podiam ainda fazer deduções tautológicas contrárias às evidências do processo tendo em vista que pressupunham em qualquer situação a atuação do diabo para enganar a justiça e livrar seus cúmplices da punição divina Ou seja a condução do processo pelos julgadores se apresentava de forma tão peculiar que dificilmente a mulher acusada de bruxaria conseguia se livrar da condenação e da morte na fogueira Enfim de tudo que foi apresentado neste artigo percebese que naquele contexto histórico mesmo que aos olhos da contemporaneidade pareça absurdo o processo foi considerado válido e os julgamentos justos amparados em obras teóricas e conceitos amplamente difundidos As condenações de mulheres à morte na fogueira nos Séculos XVI e XVII por terem cometido atos de bruxaria mesmo que desprovidas de provas ou baseadas em confissões obtidas por meios cruéis foram legitimadas por préconcepções demonológicas difundidas na sociedade erudita da qual os magistrados faziam parte e respaldadas pela autoridade da igreja sem que existissem vozes capazes de refutálas com a mesma força 6 Bibliografia 20 COUTINHO Jacinto Nelson de Miranda Introdução aos princípios gerais de Direito Processual Penal In Revista de Estudos Criminais Ano 1 Nº 1 Sapucaia do Sul 2001 O papel do novo juiz no processo penal In COUTINHO Jacinto Nelson de Miranda org Crítica a Teoria Geral do Direito Processual Penal Rio de Janeiro Renovar 2001 CURRIE Elliott P CRIMES WITHOUT CRIMINALS Witchcraft and its control in Renaissance Europe 3 Law Socy Rev 7 19681969 p 732 FERRAJOLI Luigi Direito e razão teoria do garantismo penal São Paulo Revista dos Tribunais 2002 GONÇALVES Bruno Galeano de Oliveira O mal da bruxaria Anais do XXVI Simpósio Nacional de História ANPUH São Paulo julho 2011 KRAMER Heirinch SPRENGER James O martelo das feiticeiras Rio de Janeiro Record Rosa dos Tempos 2004 JARDIM Afrânio Silva Ação penal pública princípio da obrigatoriedade 4 ed Rio de Janeiro Forense 2001 LOPES JUNIOR Aury Direito processual penal e sua conformidade constitucional Rio de Janeiro Lumen Juris 2007 MANDROU Robert Magistrados e Feiticeiros na França do Século XVII São Paulo Ed Perspectiva 1968 NOGUEIRA Carlos Roberto Figueiredo Bruxaria e história as práticas mágicas no ocidente cristão Bauru EDUSC 2004 O nascimento da bruxaria São Paulo Imaginário 1995 Parker Geoffrey The European Witchcraze revisited p 2324 21 PINTO Felipe Martins A Inquisição e o Sistema Inquisitório Revista da Faculdade de Direito da UFMG Belo Horizonte n 56 p 189206 janjun 2010 RANGEL Paulo Direito Processual Penal Rio de Janeiro Editora Lumen Juris 2005 RIDDELL William Renwick The trial of Witches Segundum Artem 21 Am Inst Crim L Criminology 257 19301931 p 257260 THUNS Gilberto Sistemas processuais penais Rio de Janeiro Lumen Júris 2006 TOURINHO FILHO Fernando da Costa Processo Penal Volume I São Paulo Editora Saraiva 2003 22