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Direito ·
Processo Penal
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Texto de pré-visualização
OraçãO aOs MOçOs OraçãO aOs MOçOs Rui BaRBosa Rui BaRBosa VOl 271 Oração aos Moços Senador Davi Alcolumbre Presidente Senador Antonio Anastasia 1o VicePresidente Senador Lasier Martins 2o VicePresidente Senador Sérgio Petecão 1o Secretário Senador Eduardo Gomes 2o Secretário Senador Flávio Bolsonaro 3o Secretário Senador Luis Carlos Heinze 4a Secretária Suplentes de Secretário Senador Marcos do Val Senador Jaques Wagner Senador Weverton Senadora Leila Barros Conselho Editorial Senador Randolfe Rodrigues Presidente Esther Bemerguy de Albuquerque VicePresidente Conselheiros Alcinéa Cavalcante Aldrin Moura de Figueiredo Ana Luísa Escorel de Moraes Ana Maria Martins Machado Carlos Ricardo Cachiollo Cid de Queiroz Benjamin Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque Eduardo Rômulo Bueno Elisa Lucinda dos Campos Gomes Fabrício Ferrão Araújo Heloísa Maria Murgel Starling Ilana Feldman Marzochi Ilana Trombka João Batista Gomes Filho Ladislau Dowbor Márcia Abrahão de Moura Rita Gomes do Nascimento Vanderlei dos Santos Catalão Toni Carlos Pereira Mesa Diretora Biênio 20192020 Edições do Senado Federal Vol 271 Oração aos Moços Brasília 2019 Edição comemorativa dos 170 anos do nascimento de Rui Barbosa Prefácios de Senador Randolfe Rodrigues Cristian Edward Cyril Lyuch EDIÇÕES DO SENADO FEDERAL Vol 271 O Conselho Editorial do Senado Federal criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997 buscará editar sempre obras de valor histórico e cultural e de importância para a compreensão da história política econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país e também obras da história mundial Organização e Revisão Fábio Harlan Barbosa Cristiano Ferreira Mariana Gava e SEGRAF Editoração eletrônica SEGRAF Arte da capa Leonardo Correa Matoso Projeto gráfico Serviço de Multimídia do Senado Federal Semid Senado Federal 2019 Congresso Nacional Praça dos Três Poderes snº CEP 70165900 DF ceditsenadogovbr httpwwwsenadogovbrwebconselhoconselhohtm Todos os direitos reservados ISBN 9788552800583 Barbosa Ruy 18491923 Oração aos moços Rui Barbosa prefácios de senador Randolfe Rodri gues Cristian Edward Cyril Lyuch Brasília Senado Federal Conselho Editorial 2019 74 p Edições do Senado Federal v 271 Edição comemorativa dos 170 anos do nascimento de Rui Barbosa 1 Político Brasil discursos etc 2 Direito e ética Brasil discursos etc I Título II Série CDU 923281 Sumário Prefácio Pág 7 Prefácio Pág 11 Oração aos Moços Pág 17 Orações Aos Moços nasce de um convite feito a Rui Barbosa para ser paraninfo dos for mandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco escola essa onde ele havia se formado 50 anos antes Acometido de uma enfer midade Rui não pode comparecer ao ato solene sendo seu discurso lido pelo Diretor da Faculdade o professor Reinaldo Porchat Profundamente comovido com a homenagem Rui elabora um texto memorável fazendo um ba lanço de suas atividades como advogado jornalista e aguerrido participante da vida pública brasileira Nesse clássico da cultura brasileira o polímata baiano fala sobre variados temas sobretudo sobre a advocacia a magistratura e a política Sobre a advocacia profissão que exerceu como poucos Rui alertava os ouvintes Prefácio 8 Oração aos Moços Rui Barbosa 8 Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado Nelas se encerra para ele a síntese de todos os mandamentos Não desertar a justiça nem cortejála Não lhe faltar com a fidelidade nem lhe recusar o conselho Não transfugir da legalidade para a violência nem trocar a ordem pela anarquia Não antepor os poderosos aos desvalidos nem recusar patrocínio a estes contra aqueles Não servir sem independência à justiça nem quebrar da verdade ante o poder Não colaborar em perseguições ou atentados nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade Não se subtrair à defesa das causas impopulares nem à das perigosas quando justas Indicado para o prestigioso cargo de juiz da Corte Internacional de Haia função que não pode exercer em razão da saúde debilitada Rui não deixou de alertar para a morosidade da magistratura situação ainda presente nos dias de hoje Justiça atrasada não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e assim a lesa no patrimônio honra e liberdade Os juízes tardinheiros são culpados que a lassidão comum vai tolerando Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o Rui Barbosa 9 delinquente poderoso em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente Defensor das causas da justiça da igualdade da fra ternidade e da solidariedade Rui Barbosa ferrenho com batente da escravidão não deixou de observar em seu dis curso que as desigualdades do Império ainda perduravam no Brasil República O direito dos mais miseráveis dos homens o direito do mendigo do escravo do criminoso não é menos sagrado perante a justiça que o do mais alto dos poderes Antes com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta e redobrar de escrúpulo porque são os mais maldefendidos os que suscitam menos interesse e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos Oração aos moços é mais que um belo e emocio nante discurso é o próprio legado de Rui Barbosa jurista embaixador escritor tradutor político filólogo e orador Este opúsculo que tenho a suprema felicidade de prefaciar que me faz recordar emocionado a minha que ria Universidade Federal do Amapá onde estive como aluno e hoje como professor é a própria síntese da vida de Rui Barbosa um homem ansioso pela verdade e pelo 10 Oração aos Moços bem corajoso e leal Algumas das mais belas qualidades humanas iluminavam a sua vida como nenhuma eloqu ência poderia fazer E mesmo se todas as lições políticas sociais e humanas que ele escreveu e pregou viessem a esmaecer definitivamente restaria como o seu legado aos homens a nobreza moral do homem que ele foi O Conselho Editorial do Senado Federal convida os moços e as moças do hoje e do amanhã a meditar sobre os conselhos que brotam seguidamente do texto daquele que Estremeceu a Justiça viveu no Trabalho e não perdeu o Ideal Macapá 25 de outubro de 2019 Senador Randolfe Rodrigues Presidente do Conselho Editorial do Senado Federal Prefácio Um clássico do bacharelismo liberal Christian Edward Cyril Lynch2 O texto mais popular de toda a imen sa produção intelectual de Rui Barbosa continua sendo sua profissão de fé como jurista a Oração aos moços Sua origem é prosaica A turma de bacharéis que colava grau no ano de 1920 na Faculdade de Direito de São Paulo convidou o então senador pela Bahia para seu paraninfo Tratavase de uma homenagem ao exaluno que comple tava 50 anos de formado Assim nasceu a Oração como discurso de paraninfo Alegando idade avançada e molés tia Rui não se deslocou a São Paulo para comparecer à cerimônia que teve lugar a 29 de março de 1921 O texto 2 Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa FCRB Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro IESPUERJ Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGB 12 Oração aos Moços acabou lido pelo catedrático de direito romano Reinaldo Porchat que viria a ser o primeiro reitor da Universida de de São Paulo O texto tornouse instantaneamente um clássico Diversas de suas passagens se tornaram bordões no ambiente forense Até hoje é comum encontrar re produzidas em sentenças petições sustentações orais ou mesmo estampada em escritórios de advocacia ou gabine tes de juízes frases como A regra da igualdade não con siste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam Ou ainda Justiça atrasa da não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta Ou esta Se o povo é analfabeto só ignorantes estarão em termos de o governar Como explicar a popularida de desse discurso que há quase um século permanece no panteão de verdadeiro evangelho dos estudantes de direi to Como em todas as obras clássicas pesaram diversas causas entre as quais o contexto de sua produção a exce lência de seu conteúdo e sua fortuna crítica Em 1920 aos setenta anos de idade Rui Barbosa era uma personalidade consagrada Senador da República advogado jornalista exministro de Estado ele era considerado pela opinião pública o maior brasileiro vivo Iniciado treze anos an tes por ocasião de sua participação como representante do Brasil na Segunda Conferência da Paz na Haia seu processo de consagração atingira seu apogeu em agosto de Rui Barbosa 13 1918 quando o próprio regime republicano de que Rui era virulento crítico celebrou oficialmente seu jubileu cívico isto é seus cinquenta anos de atividade política Foram três dias de festividades um dos quais decretado feriado nacional Mas para entender o sucesso da Oração é preciso considerar também o estilo literário particular em que foi redigido Não era a primeira vez que Rui se dirigia à mo cidade Em 1903 ele escrevera Palavras à juventude aos meninos de um colégio de Nova Friburgo que ele visi tara Não obstante salta aos olhos a diferença de estilo Desde a Campanha Civilista quando passara a se dirigir pessoalmente a audiências mais amplas Rui percebera a familiaridade do público com o estilo oratório dos ser mões e adotara o estilo evangelizador de um padre Vieira que cruzava o registro do pregador e do pedagogo Na Oração aos Moços ele não era só o pedagogo ele era o velho pai ou padrinho que em tom de intimidade confes sional oferecia conselhos aos moços a partir da sua pró pria experiência Falava da importância de ouvir o próprio coração e de estar preparado para uma vida dedicada ao amor ao sacrifício à justiça à caridade recomendava a oração e o trabalho e pedia aos jovens que não trocassem o dia pela noite continuando sempre a estudar Enaltecia a profissão de juiz e enunciava regras de conduta para os 14 Oração aos Moços magistrados não contribuir para a morosidade processu al receber o advogados das partes evitar o governismo tratar igualmente o rico e o pobre evitar o excesso de ri gor e principalmente duas regras de grande atualidade não se meter em política e não ir atrás de popularidade Quanto ao conteúdo propriamente político a Oração era atravessada por um intenso idealismo liberal democrático Os moços deviam lutar sempre pela verdade do governo da lei verdade eleitoral verdade constitucional verdade republicana sempre incompatíveis com regimes autori tários e oligárquicos Mas Rui também advertia contra o comunismo lembrando que a igualdade não era dar a todos indistintamente filosofia da miséria mas a cada um na proporção de seus méritos O patriotismo era a última lição o bacharel em direito deveria zelar pela sorte do Brasil ameaçado pelos imperialismos de todo o tipo No seu entender o Brasil só poderia ser salvo de sua cor rupta oligarquia política pela ação de uma elite jurídica orientada por um espírito liberal e republicano na defesa da Constituição Era esse o principal recado deixado por Rui que explica em larga parte a popularidade do texto nos meios jurídicos até o dia de hoje em que a ideologia do bacharelismo judiciarista atingiu seu apogeu entre nós De fato o sucesso do texto se deveu igualmen te à sua fortuna crítica A oração foi instantaneamente Rui Barbosa 15 interpretada pelos liberais como uma espécie de testamen to do velho Rui às futuras gerações de bacharéis O sena dor baiano lograra consolidarse na imaginação dos libe rais como um modelo de atuação para a mocidade um ju rista idealista culto destemido solitário incumbido pelo destino de defender a Justiça identificada com o Estado de direito democrático contra a corrupção identificada com politiqueiros conservadores autoritários e oligárqui cos Para tanto o bacharel liberal deveria travar uma luta sem trégua com a Constituição debaixo do braço pela tribuna jornalística forense e parlamentar No idealismo cosmopolita de Rui beberiam as principais lideranças li berais e socialistas de tendência ideológica cosmopolita da Terceira República Pensemos na Ordem dos Advogados do Brasil OAB com advogados como Levi Carneiro Sobral Pinto e Raimundo Faoro na União Democrática Nacional UDN de Aliomar Baleeiro Afonso Arinos de Mello Franco Bilac Pinto e Prado Kelly mas também de Carlos Lacerda que sem ser jurista seria o principal êmulo de seu estilo combativo Mas na herança de Rui be beriam socialistas críticos do personalismo do trabalhismo de origem getulista Pensemos no Partido Socialista Bra sileiro de João Mangabeira Hermes Lima e Evandro Lins e Silva mas também na ala do Partido Trabalhista Brasi leiro de Alberto Pasqualini e Santiago Dantas Todos eles 16 Oração aos Moços se reconheceriam profundamente devedores do exemplo de Rui Barbosa Nas décadas de 19701980 a pregação antiautoritária de Ulysses Guimarães em ocasiões como a da apresentação de sua anticandidatura a presidente da República ou do encerramento da Constituinte de 1988 nada mais fariam do que emular a fórmula ruiana de com bate aos regimes autocráticos Não admira portanto que o busto de Rui Barbosa goze solitariamente do direito de figurar solitariamente no edifício do Senado Federal atrás da cadeira do presidente como um anjo tutelar da demo cracia brasileira Enquanto houver ideal liberal democrata nas escolas de direito e nos bancos parlamentares haverá lugar para a Oração aos moços esse clássico do pensamento político e jurídico brasileiro Oração aos Moços Rui Barbosa Não quis Deus que os meus cinquenta anos de consagração ao Direito viessem receber no templo do seu ensino em S Paulo o selo de uma grande bênção associandose hoje com a vossa admissão ao nosso sacer dócio na solenidade imponente dos votos em que o ides esposar Em verdade vos digo jovens amigos meus que o coin cidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora o seu coincidir num ponto de intersecção tão magni ficamente celebrado era mais do que eu mereceria e negan dome a divina bondade um momento de tamanha ventura não me negou senão a que eu não devia ter tido a inconsci ência de aspirar Senhores 18 Oração aos Moços Mas recusandome o privilégio de um dia tão gran de ainda me consentiu o encanto de vos falar de con versar convosco presente entre vós em espírito o que é também estar presente em verdade Assim que não me ides ouvir de longe como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros mas de ao pé de em meio a vós como a quem está debai xo do mesmo teto e à beira do mesmo lar em colóquio de irmãos ou junto dos mesmos altares sob os mesmos campanários elevando ao Criador as mesmas orações e professando o mesmo credo Direis que isto de me achar assistindo assim entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta seria darse ou supor que se está dando no meio de nós um verdadeiro milagre Será Milagre do maior dos taumaturgos Milagre de quem respira entre milagres Milagre de um santo que cada qual tem no sacrário do seu peito Milagre do cora ção que os sabe chover sobre a criatura humana como o firmamento chove1 nos campos mais áridos e tristes a orvalhada das noites que se esvai com os sonhos de ante manhã ao cair das primeiras frechas de oirodo disco solar Rui Barbosa 19 Embora o realismo dos adágios teime no contrário toleremme o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não Não é certo como corre mundo ou pelo menos muitas e muitíssimas vezes não é verdade como se espalha fama que longe da vista longe do coração O gênio dos anexins aí vai longe de andar certo Esse prolóquio tem mais malícia que ciência mais epi grama que justiça mais engenho que filosofia Vezes sem conto quando se está mais fora da vista dos olhos então e por isso mesmo é que mais à vista do coração estamos não só bem à sua vista senão bem dentro nele Não filhos meus deixaime experimentar uma vez que seja convosco este suavíssimo nome não o coração não é tão frívolo tão exterior tão carnal quanto se cuida Há nele mais que um assombro fisiológico um prodígio moral É o órgão da fé o órgão da esperança o órgão do ideal Vê por isso com os olhos dalma o que não veem os do corpo Vê ao longe vê em ausência vê no invisível e até no infinito vê Onde para o cérebro de ver outor goulhe o Senhor que ainda veja e não se sabe até onde Até onde chegam as vibrações do sentimento até onde se perdem os surtos da poesia até onde se somem os voos da crença até Deus mesmo inviso como os panoramas 20 Oração aos Moços íntimos do coração mas presente ao céu e à terra a todos nós presente enquanto nos palpite incorrupto no seio o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana Quando ele já não estende o raio visual pelo horizon te do invisível quando sua visão tem por limite a do nervo óptico é que o coração já esclerótico ou degenerescente e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal apenas oscila mecanicamente no interior do arcaboiço como pên dula de relógio abandonado que agita com as derradei ras pancadas os vermes e a poeira da caixa Dele se retirou a centelha divina Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço que nos distanceia do incomensurável desco nhecido e lançava entre este e nós uma ponte de astros Agora apagados esses luzeiros que o inundavam de radiosa claridade lá se foram com o extinto cintilar das estrelas as entreabertas do dia eterno deixandonos tãosomente entre o longínquo mistério daquele termo e o aniquilamen to da nossa miséria desamparada as trevas de outro éter como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério do espaço Entre vós porém moços que me estais escutando ainda brilha em toda a sua rutilância o clarão da lâmpa da sagrada ainda arde em toda a sua energia o centro de Rui Barbosa 21 calor a que se aquece a essência dalma Vosso coração pois ainda estará incontaminado e Deus assim o preserve Metei a mão no seio e aí o sentireis com a sua se gunda vista Desta sobre tudo é que ele nutre sua vida agitada e criadora Pois não sabemos que com os ante passados vive ele da memória do luto e da saudade E tudo é viver no pretérito Não sentimos como com os nossos conviventes se alimenta ele na comunhão dos sentimentos e índoles das ideias e aspirações E tudo é viver num mundo em que estamos sempre fora deste pelo amor pela abnegação pelo sacrifício pela caridade Não nos será claro que com os nossos descendentes e so breviventes com os nossos sucessores e pósteros vive ele de fé esperança e sonho Ora tudo é viver previvendo é existir preexistindo é ver prevendo E assim está o co ração cada ano cada dia cada hora sempre alimentado em contemplar o que não vê por ter em dote dos céus a preexcelência de ver ouvir e palpar o que os olhos não divisam os ouvidos não escutam e o tato não sente Para o coração pois não há passado nem futuro nem ausência Ausência pretérito e porvir tudo lhe é atu alidade tudo presença Mas presença animada e vivente palpitante e criadora neste regaço interior onde os mor tos renascem prénascem os vindoiros e os distanciados 22 Oração aos Moços se ajuntam ao influxo de um talismã pelo qual nesse mágico microcosmo de maravilhas encerrado na breve arca de um peito humano cabe em evocações de cada instante a humanidade toda e a mesma eternidade A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber é a da morte e nem esta separa entre si os que a terrível apartadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros Quantas vezes não entrevemos nesse fundo obscuro e remotíssimo uma imagem cara quantas vezes não a vemos assomar nos longes da saudade sorridente ou melancólica alvoroçada ou inquieta severa ou ca rinhosa trazendonos o bálsamo ou o conselho a pro messa ou o desengano a recompensa o castigo o aviso da fatalidade ou os presságios de bom agoiro Quantas nos não vem conversar afável e tranquila ou pressurosa e sobressaltada com o afago nas mãos a doçura na boca a meiguice no semblante o pensamento na fronte lím pida ou carregada e lhe saímos do contato ora seguros e robustecidos ora transidos de cuidado e pesadume ora cheios de novas inspirações e cismando para a vida no vos rumos Quantas outras não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de alémmundo e com eles renovar a prática interrompida ou instar com eles por alvitre em vão buscado uma palavra um movimento do Rui Barbosa 23 rosto um gesto uma réstia de luz um traço do que por lá se sabe e aqui se ignora Se não há pois abismo entre duas épocas nem mesmo a voragem final desta à outra vida que não trans ponha a mútua atração de duas almas não pode haver na mesquinha superfície do globo terrestre espaços que não vença com os instantâneos de presteza das vibrações lu minosas esse fluido incomparável por onde se realiza na esfera das comunicações morais a maravilha da fotografia à distância no mundo positivo da indústria moderna Tão pouco medeia do Rio a S Paulo Por que não conseguiremos enxergar de um a outro cabo em linha tão curta Tentemos Vejamos Estendamos as mãos entre os dois pontos que a limitam Deste àquele já se estabeleceu a corrente Rápida como o pensamento corre a emanação magnética desta extremidade à oposta Já num aperto se confundiram as mãos que se procuravam Já num am plexo de todos nos abraçamos uns aos outros Em S Pau lo estamos Conversemos amigos de presença a presença Entrelaçando a colação do vosso grau com a come moração jubilar da minha e dandome a honra de vos ser eu paraninfo urdis desta maneira no ingresso à carrei ra que adotastes um como vínculo sagrado entre a vossa 24 Oração aos Moços existência intelectual que se enceta e a do vosso padrinho em Letras que se acerca do seu termo Do ocaso de uma surde18 o arrebol da outra Mercê porém de circunstâncias inopinadas com o encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência se ajusta o remate dos meus cinquenta anos de serviços à nação Já o jurista começava a olhar com os primeiros to ques de saudade para o instrumento que há dez lustros lhe vibra entre os dedos lidando pelo direito quando a consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta provadamente inútil pela grandeza da pátria e suas liberdades no parlamento Essa remoção da metade total de um século de vida laboriosa para o desentulho do tempo não se podia con sumar sem abalo sensível numa existência repentinamen te decepada Mas a comoção foi salutar porque o espírito encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que afinal chegava eu a conhecer a mim mesmo reconhecendo a es cassez de minhas reservas de energia para acomodar o am biente da época às minhas ideias de reconciliação da políti ca nacional com o regímen republicano Era presunção era temeridade era inconsciência insistir na insana pretensão da minha fraqueza Só um Rui Barbosa 25 predestinado poderia arrostar empresa tamanha Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ven tos Não os venci Venceramme eles a mim Era natural Deus nos dá sempre mais do que merecemos Já me não era pouco a graça pela qual erguia as mãos ao céu de abrir os olhos à realidade evidente da minha impotência e poder recolher as velas navegante desenganado antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance a desambição a pureza a sin ceridade os excessos de atividade incansável com que desde os bancos acadêmicos o servi e o tenho servido até hoje Por isso me saí da longa odisseia sem créditos de Ulisses Mas se o não soube imitar nas artes medrançosas de político fértil em meios e manhas em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liber dade e à república as leis do bom governo que prosperam os Estados moralizam as sociedades e honram as nações Preguei demonstrei honrei a verdade eleitoral a verdade constitucional a verdade republicana Pobres clientes estas entre nós sem armas nem oiro nem consi deração mal achavam em uma nacionalidade esmorecida 26 Oração aos Moços e indiferente nos títulos rotos do seu direito com que habilitar o mísero advogado a sustentarlhes com alma com dignidade com sobrançaria as desprezadas reivin dicações As três verdades não podiam alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos Quem por uma causa destas combateu abraçado com ela em vinte e oito anos da sua Via Dolorosa não se pode ter habituado a maldizer senão a perdoar nem a descrer senão a esperar Descrer da cegueira humana sim mas da Providência fatal nas suas soluções bem que ao parecer tarda nos seus passos isso nunca Assim que a bênção do paraninfo não traz fel Não lhe encontrareis no fundo nem rancor nem azedume nem despeito Os maus só lhe inspiram tristeza e pieda de Só o mal é o que o inflama em ódio Porque o ódio ao mal é amor do bem e a ira contra o mal entusiasmo divino Vede Jesus despejando os vendilhões do templo ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota Não são o mesmo Cristo esse ensanguentado Jesus do Calvário e aqueloutro o Jesus iroso o Jesus armado o Jesus do láte go inexorável Não serão um só Jesus o que morre pelos bons e o que açoita os maus Rui Barbosa 27 O Padre Manuel Bernardes pregava numa das suas Silvas Bem pode haver ira sem haver pecado Irascimini et nolite peccare E às vezes poderá haver pecado se não houver ira porquanto a paciência e silêncio fomenta a negligência dos maus e tenta a perseverança dos bons Qui cum causa non irascitur peccat diz um padre patien tia enim irrationabilis vitia seminat negligentiam nutrit et non solum malos sed etiam bonos invitat ad malum Nem o irarse nestes termos é contra a mansidão porque esta vir tude compreende dois atos um é reprimir a ira quando é desordenada outro excitála quando convém A ira se compara ao cão que ao ladrão ladra ao senhor festeja ao hóspede nem festeja nem ladra e sempre faz o seu ofício E assim quem se agasta nas ocasiões e contra as pesso as que convém agastarse bem pode com tudo isso ser verdadeiramente manso Qui igitur disse o Filósofo ad quae oportet et quibus oportet irascitur laudatur esseque is mansuetus potest Luz e Calor 1ª ed 1696 Págs 271272 XVIII Nem toda ira pois é maldade porque a ira se as mais das vezes rebenta agressiva e daninha muitas ou tras oportuna e necessária constitui o específico da cura 28 Oração aos Moços Ora deriva da tentação infernal ora de inspiração religio sa Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade Quando um braveja contra o bem que não entende ou que o contraria é ódio iroso ou ira odienta Quando verbera o escândalo a brutalidade ou o orgulho não é agrestia rude mas exaltação virtuosa não é soberba que explode mas indignação que ilumina não é raiva desaçaimada mas correção fraterna Então não somente não peca o que se irar mas pe cará não se irando Cólera será mas cólera da mansue tude cólera da justiça cólera que reflete a de Deus face também celeste do amor da misericórdia e da santidade Dela esfuzilam centelhas em que se abrasa por ve zes o apóstolo o sacerdote o pai o amigo o orador o magistrado Essas faúlhas da substância divina atravessam o púlpito a cátedra a tribuna o rostro a imprensa quan do se debatem ante o país ou o mundo as grandes causas humanas as grandes causas nacionais as grandes causas populares as grandes causas sociais as grandes causas da consciência religiosa Então a palavra se eletriza brame lampeja atroa fulmina Descargas sobre descargas rasgam o ar incendeiam o horizonte cruzam em raios o espaço É a hora das responsabilidades a hora da conta e do castigo Rui Barbosa 29 a hora das apóstrofes imprecações e anátemas quando a voz do homem reboa como o canhão a arena dos com bates da eloquência estremece como campo de batalha e as siderações da verdade que estala sobre as cabeças dos culpados revolvem o chão coberto de vítimas e destroços incruentos com abalos de terremoto Eila aí a cólera san ta Eis a ira divina Quem senão ela há de expulsar do templo o re negado o blasfemo o profanador o simoníaco quem senão ela exterminar da ciência o apedeuta o plagiário o charlatão quem senão ela banir da sociedade o imo ral o corruptor o libertino quem senão ela varrer dos serviços do Estado o prevaricador o concussionário e o ladrão público quem senão ela precipitar do governo o negocismo a prostituição política ou a tirania quem senão ela arrancar a defesa da pátria à cobardia à incon fidência ou à traição Quem senão ela ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas a cólera do justo crucifixo entre ladrões a cólera do Verbo da ver dade negado pelo poder da mentira a cólera da santidade suprema justiçada pela mais sacrílega das opressões Todos os que nos dessedentamos nessa fonte os que nos saciamos desse pão os que adoramos esse ideal nela vamos buscar a chama incorruptível É dela que ao 30 Oração aos Moços espetáculo ímpio do maltripudiante sobre os reveses do bem rebenta em labaredas a indignação golfa a cólera em borbotões das fráguas da consciência e a palavra sai rechinando esbraseando chispando como o metal can dente dos seios da fornalha Esse metal nobre porém na incandescência da sua ebulição não deixa escória Pode crestar os lábios que atravessa Poderá infla mar por momentos o irritado co ração de onde jorra Mas não o degenera não o macula não o resseca não o caleja não o endurece e no fundo são da urna onde tumultuam essas procelas e donde bor botam essas erupções não assenta um rancor uma inimi zade uma vingança As reações da luta cessam e fica de envolta com o aborrecimento ao mal o relevamento dos males padecidos Nestalma tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes nem de agressões nem de infamações nem de pre terições nem de ingratidões nem de perseguições nem de traições nem de expatriações perdura o menor rasto a menor ideia de revindita Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado E quando lhe digo na oração domi nical Perdoainos Senhor as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores julgo não lhe estar mentindo e a consciência me atesta que até onde alcance a Rui Barbosa 31 imperfeição humana tenho conseguido e consigo todos os dias obedecer ao sublime mandamento Assim me perdoem também os a quem tenho agravado os com quem houver sido injusto violento intolerante maligno ou descaridoso Estouvos abrindo o livro da minha vida Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta ver são rigorosa de uma de suas páginas com que mais me consolo recebeia ao menos como ato de fé ou como conselho de pai a filhos quando não como o testamento de uma carreira que poderá ter discrepado muitas vezes do bem mas sempre o evangelizou com entusiasmo o procurou com fervor e o adorou com sinceridade Desde que o tempo começou lento lento a me decantar o espírito do sedimento das paixões com que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbavam entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana fui sentindo quanto esta necessita da contradi ção como a lima dos sofrimentos a melhora a que ponto o acerbo das provações a expurga a tempera a nobilita a regenera Então vim a perceber vivamente que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus ini migos e desfortunas Por mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte e as maldades dos homens raro nos causam mal tamanho que nos não façam ainda maior 32 Oração aos Moços bem Ai de nós se esta purificação gradual que nos depa ram as vicissitudes cruéis da existência não encontrasse a colaboração providencial da fortuna adversa e dos nossos desafetos Ninguém mete em conta o serviço contínuo de que lhes está em obrigação Diríeis até que mandandonos amar aos nossos inimigos em boa parte nos quis o divino legislador entre mostrar o muito de que eles nos são credores A caridade com os que nos malquerem e os que nos malfazem não é em bem larga escala senão pago dos benefícios que mal a seu grado mas muito deveras eles nos granjeiam Destarte não equivocaremos a aparência com a re alidade se nos dissabores que malquerentes e malfazentes nos propinam discernirmos a quota de lucro com que eles não levando em tal o sentido quase sempre nos favo recem Quanto é pela minha parte o melhor do que sou bem assim o melhor do que me acontece frequentemente acaba o tempo convencendome de que não me vem das doçuras da fortuna propícia ou da verdadeira amizade senão sim que o devo principalmente às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte madrasta Que seria hoje de mim se o veto dos meus adversários siste mático e pertinaz me não houvesse poupado aos tremen dos riscos dessas alturas alturas de Satanás como as de Rui Barbosa 33 que fala o Apocalipse em que tantos se têm perdido mas a que tantas vezes me tem tentado exalçar o voto dos meus amigos Amigos e inimigos estão amiúde em posições trocadas Uns nos querem mal e fazemnos bem Outros nos almejam o bem e nos trazem o mal Não poucas vezes pois razão é lastimar o zelo dos amigos e agradecer a malevolência dos opositores Estes nos salvam quando aqueles nos extraviam De sorte que no perdoar aos inimigos muita vez não vai somente cari dade cristã senão também justiça ordinária e reconheci mento humano E ainda quando aos olhos do mundo como aos do nosso juízo descaminhado tenham logrado a nossa desgraça bem pode ser que aos olhos da filosofia aos da crença e aos da verdade suprema não nos hajam contribuído senão para a felicidade Este senhores será um saber vulgar um saber rasteiro um saber só dexperiências feito Não é o saber da ciência que se libra acima das nuvens e alteia o voo soberbo além das regiões siderais até aos páramos indevassáveis do infinito Mas ainda as sim este saber fácil mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida em versos imortais quanto mais a nós outros 34 Oração aos Moços bichos da terra tão pequenos a ninharia de ocupar di vagações como estas de um dia folhas de árvore morta que talvez não vinguem ao de amanhã Da ciência estamos aqui numa catedral Não cabia em um velho catecúmeno vir ensinar a religião aos seus bispos e pontífices nem aos que agora nela recebem as ordens do seu sacerdócio E hoje é féria ensejo para tré guas ao trabalho ordinário quase dia santo Labutastes a semana toda o vosso curso de cinco anos com teorias hipóteses e sistemas com princípios teses e demonstra ções com leis códigos e jurisprudências com expositores intérpretes e escolas Chegou o momento de vos assen tardes mão por mão com os vossos sentimentos de vos pordes à fala com a vossa consciência de praticardes fami liarmente com os vossos afetos esperanças e propósitos Eis ao que vem o padrinho o velho o abendiço ador carregado de anos e tradições versado nas longas lições do tempo mestre de humildade arrependimento e desconfiança nulo entre os grandes da inteligência gran de entre os experimentados na fraqueza humana Que se feche pois alguns momentos o livro da ciência e folhe emos juntos o da experiência Desaliviemonos do saber humano carga formidável e voltemonos uma hora para Rui Barbosa 35 este outro leve comezinho desalinhado conversável se guro sem altitudes nem despenhadeiros Ninguém senhores meus que empreenda uma jor nada extraordinária primeiro que meta o pé na estrada se esquecerá de entrar em conta com as suas forças por saber se a levarão ao cabo Mas na grande viagem na via gem de trânsito deste a outro mundo não há possa ou não possa não há querer ou não querer A vida não tem mais que duas portas uma de entrar pelo nascimento outra de sair pela morte Ninguém cabendolhe a vez se poderá furtar à entrada Ninguém desde que entrou em lhe chegando o turno se conseguirá evadir à saída E de um ao outro extremo vai o caminho longo ou breve ninguém o sabe entre cujos termos fatais se debate o ho mem pesaroso de que entrasse receioso da hora em que saia cativo de um e outro mistério que lhe confinam a passagem terrestre Não há nada mais trágico do que a fatalidade ine xorável deste destino cuja rapidez ainda lhe agrava a severidade Em tão breve trajeto cada um há de acabar a sua tarefa Com que elementos Com os que herdou e os que cria Aqueles são a parte da natureza Estes a do trabalho 36 Oração aos Moços A parte da natureza varia ao infinito Não há no universo duas cousas iguais Muitas se parecem umas às outras Mas todas entre si diversificam Os ramos de uma só árvore as folhas da mesma planta os traços da polpa de um dedo humano as gotas do mesmo fluido os ar gueiros do mesmo pó as raias do espectro de um só raio solar ou estelar Tudo assim desde os astros no céu até os micróbios no sangue desde as nebulosas no espaço até aos aljôfares do rocio na relva dos prados A regra da igualdade não consiste senão em qui nhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam Nesta desigualdade social proporcionada à desigualdade natural é que se acha a verdadeira lei da igualdade O mais são desvarios da inveja do orgulho ou da loucura Tratar com desigualdade a iguais ou a desi guais com igualdade seria desigualdade flagrante e não igualdade real Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação pretendendo não dar a cada um na razão do que vale mas atribuir o mesmo a todos como se todos se equivalessem Esta blasfêmia contra a razão e a fé contra a civili zação e a humanidade é a filosofia da miséria proclamada em nome dos direitos do trabalho e executada não faria Rui Barbosa 37 senão inaugurar em vez da supremacia do trabalho a orga nização da miséria Mas se a sociedade não pode igualar os que a na tureza criou desiguais cada um nos limites da sua ener gia moral pode reagir sobre as desigualdades nativas pela educação atividade e perseverança Tal a missão do trabalho Os portentos de que esta força é capaz ninguém os calcula Suas vitórias na reconstituição da criatura maldo tada só se comparam às da oração Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do homem A oração é o íntimo subli marse dalma pelo contato com Deus O trabalho é o inteirar o desenvolver o apurar das energias do corpo e do espírito mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo onde labutamos O indivíduo que trabalha acercase continuamente do autor de todas as coisas tomando na sua obra uma parte de que depende também a dele O criador começa e a criatura acaba a criação de si própria Quem quer pois que trabalhe está em oração ao Senhor Oração pelos atos ela emparelha com a oração 38 Oração aos Moços pelo culto Nem pode ser que uma ande verdadeiramente sem a outra Não é trabalho digno de tal nome o do mau porque a malícia do trabalhador o contamina Não é ora ção aceitável a do ocioso porque a ociosidade a dessagra Mas quando o trabalho se junta à oração e a oração com o trabalho a segunda criação do homem a criação do homem pelo homem semelha às vezes em maravilhas à criação do homem pelo divino Criador Ninguém desanime pois de que o berço lhe não fosse generoso ninguém se creia malfadado por lhe min guarem de nascença haveres e qualidades Em tudo isso não há surpresas que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho Quem não conhece a história do Pe Suárez o autor do tratado Das Leis e de Deus Legisla dor De Legibus ac Deo Legislatore monumento jurídico a que os trezentos anos de sua idade ainda não gastaram o conceito de honra das letras castelhanas De cinquen ta aspirantes que em 1564 solicitavam em Salamanca ingresso à Companhia de Jesus esse foi o único rejeitado por curto de entendimento e revesso ao ensino Admiti do todavia a insistências suas com a nota de indiferen te embora primasse entre os mais aplicados tudo lhe eram no estudo espessas trevas Não avançava um passo Afinal por consenso de todos passava por invencível a Rui Barbosa 39 sua incapacidade Confessoua por fim ele mesmo re querendo ao reitor o célebre Pe Martín Gutiérrez que o escusasse da vida escolar e o entregasse aos misteres corporais de irmão coadjutor Gutiérrez animouo a orar persistir e esperar De repente se lhe alagou de claridade a inteligência Mergulhouse então cada vez mais no estu do e daí com estupenda mudança começa a deixar ver o a que era destinada aquela extraordinária cabeça até esse tempo submersa em densa escuridade Já é mestre insigne já encarna todo o saber da re nascença teológica em que brilham as letras de Espanha Sucessivamente ilustra as cadeiras de Filosofia Teologia e Cânones nas mais famosas universidades europeias em Segóvia em Valhadolid em Roma em Alcalá em Sala manca em Ávila em Coimbra Nos seus setenta anos de vida professa as Ciências Teológicas durante quarenta e sete escreve cerca de duzentos volumes e morre compa rado com Santo Agostinho e S Tomás abaixo de quem houve quem o considerasse o maior engenho que tem tido a igreja sendo tal a sua nomeada ainda entre os protestantes que deste jesuíta como teólogo e filó sofo chegou a dizer Grócio que apenas havia quem o igualasse 40 Oração aos Moços Pe Francisco Suárez Tratado de las Leyes y de Dios Legislador Ed de Madrid 1918 Tomo I pág XXXVII Já vedes que ao trabalho nada é impossível Dele não há extremos que não sejam de esperar Com ele nada pode haver de que desesperar Mas do século XVI ao século XX o que as ciências cresceram é incomensurável Entre o currículo da Teo logia e Filosofia no primeiro e o programa de um curso jurídico no segundo a distância é infinita Sobre os mes tres os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas e montanhas mais de questões problemas e estudos que quantos há três ou quatro séculos se abrangiam no saber humano O trabalho pois vos há de bater à porta dia e noite e nunca vos negueis às suas visitas se quereis honrar vossa vocação e estais dispostos a cavar nos veios de vossa natu reza até dardes com os tesoiros que aí vos haja reservado com ânimo benigno a dadivosa Providência Ouvistes o aldrabar da mão oculta que vos chama ao estudo Abri abri sem detença Nem por vir muito cedo lho leveis a mal lho tenhais à conta de importuna Quanto mais matutinas essas interrupções do vosso dormir mais lhas deveis agradecer Rui Barbosa 41 O amanhecer do trabalho há de anteciparse ao amanhecer do dia Não vos fieis muito de quem esperta já sol nascente ou sol nado Curtos se fizeram os dias para que nós os dobrássemos madrugando Experimen tai e vereis quanto vai do deitar tarde ao acordar cedo Sobre a noite o cérebro pende ao sono Antemanhã tende a despertar Não invertais a economia do nosso organismo não troqueis a noite pelo dia dedicando este à cama e aquela às distrações O que se esperdiça para o trabalho com as noitadas inúteis não se lhe recobra com as manhãs de extemporâneo dormir ou as tardes de cansado labutar A ciência zelosa do escasso tempo que nos deixa a vida não dá lugar aos tresnoites libertinos Nem a cabeça já exaus ta ou estafada nos prazeres tem onde caiba o inquirir o revolver o meditar do estudo Os próprios estudiosos desacertam quando iludi dos por um hábito de inversão antepõem o trabalho que entra pela noite ao que precede o dia A natureza nos está mostrando com exemplos a verdade Toda ela nos viven tes ao anoitecer inclina para o sono A esta lição geral só abrem triste exceção os animais sinistros e os carniceiros Mas quando se avizinha o volver da luz muito antes que ela arraie a natureza e ainda primeiro que alvoreça no 42 Oração aos Moços firmamento já rompeu na terra em cânticos a alvorada já se orquestram de harmonias e melodias campos e selvas já o galo não o galo triste do luar dos sertões do nosso Ca tulo mas o galo festivo das madrugadas retine ao longe a estridência dos seus clarins vibrantes de jubilosa alegria Ouvi no poema de Jó a voz do Senhor perguntan do a seu servo onde estava quando o louvavam as estre las da manhã Ubi eras cum me laudarent simul astra matutina E que têm mais as estrelas da manhã dizia um grande escritor nosso que têm mais as estrelas da manhã que as da tarde ou as da noite para fazer Deus mais caso do louvor de umas que das outras não é ele o Senhor do tempo que deve ser louvado a todo o tempo não só da luz senão também das trevas Assim é porém as estrelas da manhã têm esta vantagem que madrugam antecipamse e despertam aos outros que se levantem a servir a Deus Pois disto é que Deus se honra e agrada em presença de Jó Padre M Bernardes Sermões e Práticas 1ª ed de 1762 Parte I pág 297 Tomai exemplo estudantes e doutores tomai exem plo das estrelas da manhã e gozareis das mesmas vanta gens não só a de levantardes mais cedo a Deus a oração Rui Barbosa 43 do trabalho mas a de antecederdes aos demais logrando mais para vós mesmos e estimulando os outros a que vos rivalizem no ganho bendito Há estudar e estudar Há trabalhar e trabalhar Desde que o mundo é mundo se vem dizendo que o homem nasce para o trabalho Homo nascitur ad labo rem Mas o trabalhar é como o semear onde tudo vai muito das sazões dos dias e das horas O cérebro cansado e seco do laborar diurno não acolhe bem a semente não a recebe fresco e de bom grado como a terra orvalha da Nem a colheita acode tão suave às mãos do lavrador quando o torrão já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia Jó V 7 Assim todos sabem que para trabalhar nascemos Mas muitos somos os que ignoramos certas condições talvez as mais elementares do trabalho ou pelo menos mui poucos os que as praticamos Quantos serão os que acreditam que os melhores trabalhadores sejam os melho res madrugadores que os mais estudiosos não sejam os que oferecem ao estudo os sobejos do dia mas os que o honram com as primícias da manhã 44 Oração aos Moços Dirão que tais trivialidades cediças e corriqueiras não são para contempladas num discurso acadêmico nem para escutadas entre doutores lentes e sábios Cada um se avém como entende e faz o que pode Mas eu nisto aqui faço ainda o que devo Porque vindo pregarvos experi ência cumpria que relevasse mais a que mais sobressai na minha estirada carreira de estudante Estudante sou Nada mais Mau sabedor fraco ju rista mesquinho advogado pouco mais sei do que saber estudar saber como se estuda e saber que tenho estudado Nem isso mesmo sei se saberei bem Mas do que tenho logrado saber o melhor devo às manhãs e madrugadas Muitas lendas se têm inventado por aí sobre excessos da minha vida laboriosa Deram nos meus progressos inte lectuais larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados nágua fria Contos de imagi nadores Refratário sou ao café Nunca recorri a ele como a estimulante cerebral Nem uma só vez na minha vida bus quei num pedilúvio o espantalho do sono Ao que devo sim o mais dos frutos do meu tra balho a relativa exabundância da sua fertilidade a parte produtiva e durável da sua safra é às minhas madruga das Menino ainda assim que entrei ao colégio alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume e daí avante o Rui Barbosa 45 observei sem cessar toda a vida Eduquei nele o meu cé rebro a ponto de espertar exatamente à hora que comi go mesmo assentara ao dormir Sucedia muito amiúde encetar eu a minha solitária banca de estudo à uma ou às duas da antemanhã Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito e eu fazia apenas que lhe obedecia tornan do logo após àquelas amadas lucubrações as de que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável Tenho ainda hoje convicção de que nessa obser vância persistente está o segredo feliz não só das minhas primeiras vitórias no trabalho mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus concorrentes em todo o andar dos anos até à velhice Muito há que já não sub traio tanto às horas da cama para acrescentar às do estu do Mas o sistema ainda perdura bem que largamente cerceado nas antigas imoderações Até agora nunca o sol deu comigo deitado e ainda hoje um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador madrugador impenitente Mas senhores os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar Vulgar é o ler raro o re fletir O saber não está na ciência alheia que se absorve mas principalmente nas ideias próprias que se geram dos conhecimentos absorvidos mediante a transmutação 46 Oração aos Moços por que passam no espírito que os assimila Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada mas transforma dor reflexivo de aquisições digeridas Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber real O saber de aparência crê e ostenta saber tudo O saber de realidade quanto mais real mais desconfia assim do que vai aprendendo como do que elabora Haveis de conhecer como eu conheço países onde quanto menos ciência se apurar mais sábios florescem Há sim dessas regiões por este mundo além Um homem nessas terras de promissão que nunca se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma tido e havido é por corrente e moente no que quer que seja porque assim o aclamam as trombetas da política do elogio mútuo ou dos corrilhos pessoais e o povo subscreve a néscia atoarda Financei ro administrador estadista chefe de Estado ou qualquer outro lugar de ingente situação e assustadoras responsabi lidades é a pedir de boca o que se diz mão de pronto de sempenho fórmula viva a quaisquer dificuldades chave de todos os enigmas Tenham por averiguado que onde quer que o co locarem dará conta o sujeito das mais árduas empresas e solução aos mais emaranhados problemas Se em nada se Rui Barbosa 47 aparelhou está em tudo e para tudo aparelhado Ninguém vos saberá informar por quê Mas todo o mundo volo dará por líquido e certo Não aprendeu nada e sabe tudo Ler não leu Escrever não escreveu Ruminar não rumi nou Produzir não produziu É um improviso onisciente o fenômeno de que poetava Dante In picciol tempo gran dottor si feo Paradiso XII 85 Em pouco tempo grão doutor se fez A esses homenspanaceias a esses empreiteiros de todas as empreitadas a esses aviadores de todas as enco mendas se escancelam os portões da fama do poderio da grandeza e não contentes de lhes aplaudir entre os da terra a nulidade ainda quando Deus quer a mandam expor à admiração do estrangeiro Pelo contrário os que se tem por notório e incon testável excederem o nível da instrução ordinária es ses para nada servem Por quê Porque sabem demais Sustentase aí que a competência reside justamente na incompetência Vaise até ao incrível de se inculcar o medo aos preparados de havêlos como cidadãos peri gosos e terse por dogma que um homem cujos estudos 48 Oração aos Moços passarem da craveira vulgar não poderia ocupar qualquer posto mais grado no governo em país de analfabetos Se o povo é analfabeto só ignorantes estarão em termos de o governar Nação de analfabetos governo de analfabetos É o que eles muita vez às escâncaras e em letra redonda por aí dizem Sócrates certo dia numa das suas conversações que o Primeiro Alcibíades nos deixa escutar ainda hoje dava grande lição de modéstia ao interlocutor dizendolhe com a costumada lhaneza A pior espécie de ignorância é cuidar uma pessoa saber o que não sabe Tal meu caro Alcibíades o teu caso Entraste pela política antes de a teres estudado E não és tu só o que te vejas nessa condi ção é esta mesma a da mor parte dos que se metem nos negócios da república Apenas excetuo exíguo número e pode ser que unicamente a Péricles teu tutor porque tem cursado os filósofos Vede agora os que intentais exercitarvos na ciên cia das leis e vir a ser seus intérpretes se de tal jeito é que conceberíeis sabelas e executálas Desse jeito isto é como as entendiam os políticos da Grécia pintada pelo mestre de Platão Rui Barbosa 49 Uma vez que Alcibíades discutia com Péricles em palestra registrada por Xenofonte acertou de se debater o que seja lei e quando exista ou não exista Que vem a ser lei indaga Alcibíades A expressão da vontade do povo responde Péricles Mas que é o que determina esse povo O bem ou o mal replicalhe o sobrinho Certo que o bem mancebo Mas sendo uma oligarquia quem mande isto é um diminuto número de homens serão ainda assim respeitáveis as leis Sem dúvida Mas se a disposição vier de um tirano Se ocor rer violência ou ilegalidade Se o poderoso coagir o fraco Cumprirá todavia obedecer Péricles hesita mas acaba admitindo Creio que sim Mas então insiste Alcibíades o tirano que constrange os cidadãos a lhe acatarem os caprichos não será esse sim o inimigo das leis 50 Oração aos Moços Sim vejo agora que errei em chamar leis às or dens de um tirano costumado a mandar sem persuadir Mas quando um diminuto número de cidadãos impõe seus arbítrios à multidão daremos ou não a isso o nome de violência Pareceme a mim concede Péricles cada vez mais vacilante que em caso tal é de violência que se trata não de lei Admitido isso já Alcibíades triunfa Logo quando a multidão governando obrigar os ricos sem consenso destes não será também violência e não lei Péricles não acha que responder e a própria razão não o acharia Não é lei a lei senão quando assenta no consentimento da maioria já que exigido o de todos desiderandum irrealizável não haveria meio jamais de se chegar a uma lei Ora senhores bacharelandos pesai bem que vos ides consagrar à lei num país onde a lei absolutamen te não exprime o consentimento da maioria onde são as minorias as oligarquias mais acanhadas mais impo pulares e menos respeitáveis as que põem e dispõem as Rui Barbosa 51 que mandam e desmandam em tudo a saber num país onde verdadeiramente não há lei não o há moral polí tica ou juridicamente falando Considerai pois nas dificuldades em que se vão enleiar os que professam a missão de sustentáculos e auxi liares da lei seus mestres e executores É verdade que a execução corrige ou atenua muitas vezes a legislação de má nota Mas no Brasil a lei se deslegitima anula e torna inexistente não só pela bas tardia da origem senão ainda pelos horrores da aplicação Ora dizia S Paulo que boa é a lei onde se executa legitimamente Bona est lex si quis ea legitime utatur Quereria dizer Boa é a lei quando executada com retidão Isto é boa será em havendo no executor a virtude que no legislador não havia Porque só a moderação a inteireza e a equidade no aplicar das más leis as poderiam em certa me dida escoimar da impureza dureza e maldade que encerra rem Ou mais lisa e claramente se bem o entendo preten deria significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má quando inexecutada ou mal executada para o bem que a boa lei sofismada e não observada contra ele S Paulo I Tim I 8 52 Oração aos Moços Que extraordinário que imensurável que por as sim dizer estupendo e sobrehumano logo não será em tais condições o papel da justiça Maior que o da pró pria legislação Porque se dignos são os juízes como par te suprema que constituem no executar das leis em sendo justas lhes manterão eles a sua justiça e injustas lhes poderão moderar se não até no seu tanto corrigir a injustiça De nada aproveitam leis bem se sabe não existindo quem as ampare contra os abusos e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder quanto na sua missão Aí temos as leis dizia o Florentino Mas quem lhes há de ter mão Ninguém Le leggi son ma chi pon mano ad esse Nullo Dante Purgatório XVI 9798 Entre nós não seria lícito responder assim tão em absoluto à interrogação do poeta Na Constituição bra sileira a mão que ele não via na sua república e em sua época a mão sustentadora das leis aí a temos hoje cria da e tão grande que nada lhe iguala a majestade nada lhe rivaliza o poder Entre as leis aqui entre as leis ordinárias Rui Barbosa 53 e a lei das leis é a justiça quem decide fulminando aque las quando com esta colidirem Soberania tamanha só nas federações de molde norteamericano cabe ao poder judiciário subordinado aos outros poderes nas demais formas de governo mas nesta superior a todos Dessas democracias pois o eixo é a justiça eixo não abstrato não supositício não meramente moral mas de uma realidade profunda e tão seriamente implantado no mecanismo do regímen tão praticamente embebido através de todas as suas peças que falseando ele ao seu mister todo o sistema cairá em paralisia desordem e sub versão Os poderes constitucionais entrarão em conflitos insolúveis as franquias constitucionais ruirão por terra e da organização constitucional do seu caráter das suas funções das suas garantias apenas restarão destroços Eis o de que nos há de preservar a justiça brasileira se a deixarem sobreviver ainda que agredida oscilante e mal segura aos outros elementos constitutivos da repúbli ca no meio das ruínas em que mal se conservam ligeiros traços da sua verdade Ora senhores esse poder eminencialmente necessá rio vital e salvador tem os dois braços nos quais aguenta a 54 Oração aos Moços lei em duas instituições a magistratura e a advocacia tão velhas como a sociedade humana mas elevadas ao cem dobro na vida constitucional do Brasil pela estupenda importância que o novo regímen veio dar à justiça Meus amigos é para colaborardes em dar existên cia a essas duas instituições que hoje saís daqui habilita dos Magistrados ou advogados sereis São duas carreiras quase sagradas inseparáveis uma da outra e tanto uma como a outra imensas nas dificuldades responsabilidades e utilidades Se cada um de vós meter bem a mão na consciên cia certo que tremerá da perspectiva O tremer próprio é dos que se defrontam com as grandes vocações e são talhados para as desempenhar O tremer mas não o des corçoar O tremer mas não o renunciar O tremer com o ousar O tremer com o empreender O tremer com o confiar Confiai senhores Ousai Reagi E haveis de ser bemsucedidos Deus pátria e trabalho Metei no regaço essas três fés esses três amores esses três signos santos E segui com o coração puro Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie Mais pode que os seus azares a constância a coragem e a virtude Rui Barbosa 55 Idealismo Não experiência da vida Não há for ças que mais a senhoreiem do que essas Experimentaio como eu o tenho experimentado Poderá ser que resigneis certas situações como eu as tenho resignado Mas mera mente para variar de posto e em vos sentindo incapazes de uns buscar outros onde vos venha ao encontro o de ver que a Providência vos haja reservado Encarai jovens colegas meus nessas duas estra das que se vos patenteiam Tomai a que vos indicarem vossos pressentimentos gostos e explorações no cam po dessas nobres disciplinas com que lida a ciência das leis e a distribuição da justiça Abraçai a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister e que ainda não tendes para eleger a melhor derrota entre as duas que se oferecem à carta de idoneidade hoje obtida Pelo que me toca escassamente avalio até onde nis so vos pode ria eu ser útil Muito vi em cinquenta anos Mas o que constitui a experiência consiste menos no ver que no saber observar Observar com clareza com desin teresse com seleção Observar deduzindo induzindo e generalizando com pausa com critério com desconfian ça Observar apurando contrasteando e guardando 56 Oração aos Moços Que espécie de observador seja eu não volo po deria dizer Mas seguro ou não no averiguar e discernir de uma qualidade ao menos me posso abonar a mim mesmo a de exato e consciencioso no expender e narrar Como me dilataria porém numa ou noutra coisa quando tão longamente aqui já me tenho excedido em abusar de vós e de mim mesmo Não recontarei pois senhores a minha experiên cia e muito menos tentarei explanála Cingirmeei es tritamente a falarvos como falaria a mim próprio se vós estivésseis em mim sabendo o que tenho experimentado e eu me achasse em vós tendo que resolver essa escolha Todo pai é conselheiro natural Todos os pais acon selham se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos Os meus serão os a que me julgo obri gado na situação em que momentaneamente estou pelo vosso arbítrio de pai espiritual dos meus afilhados em Le tras nesta solenidade É à magistratura que vos ides votar Elegeis então a mais eminente das profissões a que um homem se pode entregar neste mundo Essa ele vação me impressiona seriamente de modo que não sei se Rui Barbosa 57 a comoção me não atalhará o juízo ou tolherá o discurso Mas não se dirá que em boa vontade fiquei aquém dos meus deveres Serão talvez meras vulgaridades tão singelas quão sabidas mas onde o senso comum a moral e o direito associandose experiência lhe nobilitam os ditames Vul garidades que qualquer outro orador se avantajaria em esmaltar de melhor linguagem mas que na ocasião a mim tocam e no meu ensoado vernáculo hão de ser ditas Baste porém que se digam com isenção com firmeza com lealdade e assim hão de ser ditas hoje desta nobre tribuna Moços se vos ides medir com o direito e o crime na cadeira de juízes começai esquadrinhando as exigências apa rentemente menos altas dos vossos cargos e propondevos ca prichar nelas com dobrado rigor porque para sermos fiéis no muito o devemos ser no pouco Qui fidelis est in minimo et in majori fidelis est et qui in modico iniquus est et in majori iniquus est Lucas XVI 10 Quem é fiel nas coisas mínimas também o é nas maiores e quem é injusto nas coisas mé dias também o é nas maiores 58 Oração aos Moços Ponho exemplo senhores Nada se leva em menos conta na judicatura a uma boa fé de ofício que o vezo de tardança nos despachos e sentenças Os códigos se can sam debalde em o punir Mas a geral habitualidade e a conivência geral o entretêm inocentam e universalizam Destarte se incrementa e desmanda ele em proporções in calculáveis chegando as causas a contar a idade por lus tros ou décadas em vez de anos Mas justiça atrasada não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e assim as lesa no patrimônio honra e liberdade Os juízes tardi nheiros são culpados que a lassidão comum vai toleran do Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente Não sejais pois desses magistrados nas mãos de quem os autos penam como as almas do purgatório ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato Não vos pareçais com esses outros juízes que com tabuleta de escrupulosos imaginam em risco a sua boa fama se não evitarem o contato dos pleiteantes Rui Barbosa 59 recebendoos com má sombra em lugar de os ouvir a todos com desprevenção doçura e serenidade Não imiteis os que em se lhes oferecendo o mais leve pretexto a si mesmos põem suspeições rebuscadas para esquivar responsabilidades que seria do seu dever ar rostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos Não sigais os que argumentam com o grave das acusações para se armarem de suspeita e execração con tra os acusados como se pelo contrário quanto mais odiosa a acusação não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores e menos perder de vista a pre sunção de inocência comum a todos os réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito Não acompanheis os que no pretório ou no júri se convertem de julgadores em verdugos torturando o réu com severidades inoportunas descabidas ou indecentes como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes e a lei processual em todo o mundo civi lizado não houvesse por sagrado o homem sobre quem recai acusação ainda inverificada Não estejais com os que agravam o rigor das leis para se acreditar com o nome de austeros e ilibados 60 Oração aos Moços Porque não há nada menos nobre e aplausível que agen ciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais Não julgueis por considerações de pessoas ou pelas do valor das quantias litigadas negando as somas que se pleiteiam em razão da sua grandeza ou escolhendo entre as partes na lide segundo a situação social delas seu po derio opulência e conspicuidade Porque quanto mais ar mados estão de tais armas os poderosos mais inclinados é de receiar que sejam à extorsão contra os menos ajudados da fortuna e por outro lado quanto maiores são os valo res demandados e maior portanto a lesão arguida mais grave iniquidade será negar a reparação que se demanda Não vos mistureis com os togados que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado ao Governo à Fa zenda por onde os condecora o povo com o título de fazen deiros Essa presunção de terem de ordinário razão contra o resto do mundo nenhuma lei a reconhece à Fazenda ao Governo ou ao Estado Antes se admissível fosse aí qualquer presun ção havia de ser em sentido contrário pois essas enti dades são as mais irresponsáveis as que mais abundam em meios de corromper as que exercem as perseguições Rui Barbosa 61 administrativas políticas e policiais as que demitindo funcionários indemissíveis rasgando contratos solenes consumando lesões de toda a ordem por não serem os perpetradores de tais atentados os que os pagam acu mulam continuamente sobre o Tesoiro público terríveis responsabilidades No Brasil durante o Império os liberais tinham por artigo do seu programa cercear os privilégios já es pantosos da Fazenda Nacional Pasmoso é que eles sob a República se cemdobrem ainda conculcandose até a Constituição em pontos de alto melindre para assegurar ao Fisco esta situação monstruosa e que ainda haja quem sobre todas essas conquistas lhe queira granjear a de um lugar de predileções e vantagens na consciência judiciária no foro íntimo de cada magistrado Magistrados futuros não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno Não negueis jamais ao Erário à Administração à União os seus direitos São tão inviolá veis como quaisquer outros Mas o direito dos mais mise ráveis dos homens o direito do mendigo do escravo do criminoso não é menos sagrado perante a justiça que o do mais alto dos poderes Antes com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta e redobrar de escrú pulo porque são os mais mal defendidos os que suscitam 62 Oração aos Moços menos interesse e os contra cujo direito conspiram a infe rioridade na condição com a míngua nos recursos Preservai juízes de amanhã preservai vossas almas juvenis desses baixos e abomináveis sofismas A ninguém importa mais do que à magistratura fugir do medo esqui var humilhações e não conhecer cobardia Todo o bom magistrado tem muito de heroico em si mesmo na pureza imaculada e na plácida rigidez que a nada se dobre e de nada se tema senão da outra justiça assente cá embaixo na consciência das nações e culminante lá em cima no juízo divino Não tergiverseis com as vossas responsabilidades por mais atribulações que vos imponham e mais perigos a que vos exponham Nem receieis soberanias da terra nem a do povo nem a do poder O povo é uma torrente que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas A intrepidez do juiz como a bravura do soldado o arre batam e fascinam Os governos investem contra a justiça provocam e desrespeitam a tribunais mas por mais que lhes espumem contra as sentenças quando justas não te rão por muito tempo a cabeça erguida em ameaça ou desobediência diante dos magistrados que os enfrentem com dignidade e firmeza Rui Barbosa 63 Os presidentes de certas repúblicas são às vezes mais intolerantes com os magistrados quando lhes resistem como devem do que os antigos monarcas absolutos Mas se os chefes das democracias de tal jaez se esquecem do seu lugar até o extremo de se haverem quando lhes pica o or gulho com os juízes vitalícios e inamovíveis de hoje como se haveriam com os ouvidores e desembargadores delRei Nosso Senhor frágeis instrumentos nas mãos de déspotas coroados cumpre aos amesquinhados pela jactância des sas rebeldias ter em mente que instituindoos em guardas da Constituição contra os legisladores e da lei contra os go vernos esses pactos de liberdade não os revestiram de prer rogativas ultra majestáticas senão para que a sua autoridade não torça às exigências de nenhuma potestade humana Os tiranos e bárbaros antigos tinham por vezes mais compreensão real da justiça que os civilizados e de mocratas de hoje Haja vista a história que nos conta um pregador do século XVII A todo o que faz pessoa de juiz ou ministro dizia o orador sacro manda Deus que não considere na parte a razão de príncipe poderoso ou de pobre desvalido senão só a razão do seu próximo Bem praticou esta virtude Canuto rei dos Vândalos que mandando justiçar uma quadrilha de salteadores e pondo um deles embargos de 64 Oração aos Moços que era parente delRei respondeu Se provar ser nosso parente razão é que lhe façam a forca mais alta Levítico XIX 15 Pe M Bernardes Sermões Parte I págs 2634 Bom é que os bárbaros tivessem deixado lições tão inesperadas às nossas democracias Bem poderia ser que barbarizandose com esses modelos antepusessem elas enfim a justiça ao parentesco e nos livrassem da peste das parentelas em matérias de governo Como vedes senhores para me não chamarem a mim revolucionário ando a catar minha literatura de hoje nos livros religiosos Outro ponto dos maiores na educação do magis trado corar menos de ter errado que de se não emendar Melhor será que a sentença não erre Mas se cair em erro o peior é que se não corrija E se o próprio autor do erro o remediar tanto melhor porque tanto mais cresce com a confissão em crédito de justo o magistrado e tanto mais se soleniza a reparação dada ao ofendido Muitas vezes ainda teria eu de vos dizer Não fa çais não façais Mas já é tempo de cassar as velas ao dis curso Pouco agora vos direi Rui Barbosa 65 Não anteponhais o draconianismo à equidade Da dos a tão cruel mania ganharíeis com razão conceito de maus e não de retos Não cultiveis sistemas extravagâncias e singulari dades Por esse meio lucraríeis a néscia reputação de ori ginais mas nunca a de sábios doutos ou conscienciosos Não militeis em partidos dando à política o que deveis à imparcialidade Dessa maneira venderíeis as al mas e famas ao demônio da ambição da intriga e da ser vidão às paixões mais detestáveis Não cortejeis a popularidade Não transijais com as conveniências Não tenhais negócios em secretarias Não delibereis por conselheiros ou assessores Não deis votos de solidariedade com outros quem quer que sejam Fa zendo aos colegas toda a honra que lhes deverdes prestai lhes o crédito a que sua dignidade houver direito mas não tanto que delibereis só de os ouvir em matéria onde a confiança não substitua a inspeção direta Não prescin dais em suma do conhecimento próprio sempre que a prova terminante vos esteja ao alcance da vista e se ofere ça à verificação imediata do tribunal Por derradeiro amigos de minha alma por derra deiro a última a melhor lição da minha experiência De 66 Oração aos Moços quanto no mundo tenho visto o resumo se abrange nestas cinco palavras Não há justiça onde não haja Deus Quereríeis que volo demonstrasse Mas seria per der tempo se já não encontrastes a demonstração no es petáculo atual da terra na catástrofe da humanidade O gênero humano afundiuse na matéria e no oceano vio lento da matéria flutuam hoje os destroços da civiliza ção meio destruída Esse fatal excídio está clamando por Deus Quando ele tornar a nós as nações abandonarão a guerra e a paz então assomará entre elas a paz das leis e da justiça que o mundo ainda não tem porque ainda não crê À justiça humana cabe nessa regeneração papel essencial Assim o saiba ela honrar Trabalhai por isso os que abraçardes essa carreira com a influência da altíssima dignidade que do seu exercício recebereis Dela vos falei da sua grandeza e dos seus deveres com a incompetência de quem não a tem exercido Não tive a honra de ser magistrado Advogado sou há cin quenta anos e já agora morrerei advogado Rui Barbosa 67 É entretanto da advocacia no Brasil da minha profissão do que nela em experiência acumulei praticandoa que me não será dado agora tratar A exten são já demasiadíssima deste colóquio em desalinho não me consentiria acréscimo tamanho Mas que perdereis com tal omissão Nada Na missão do advogado também se desenvolve uma espécie de magistratura As duas se entrelaçam diversas nas funções mas idênticas no objeto e na resultante a justiça Com o advogado justiça militante Justiça impe rante no magistrado Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado Nelas se encerra para ele a síntese de todos os mandamentos Não desertar a justiça nem cortejála Não lhe faltar com a fidelidade nem lhe recusar o conselho Não transfugir da legalidade para a violência nem tro car a ordem pela anarquia Não antepor os poderosos aos desvalidos nem recusar patrocínio a estes contra aqueles Não servir sem independência à justiça nem quebrar da verdade ante o poder Não colaborar em perseguições ou atentados nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade Não se subtrair à defesa das causas impopulares nem à das perigosas quando justas Onde for apurável um grão que seja de verdadeiro direito não regatear ao atribulado 68 Oração aos Moços o consolo do amparo judicial Não proceder nas consul tas senão com imparcialidade real do juiz nas sentenças Não fazer da banca balcão ou da ciência mercatura Não ser baixo com os grandes nem arrogante com os mise ráveis Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade Amar a pátria estremecer o próximo guar dar fé em Deus na verdade e no bem Senhores devo acabar Quando há cinquenta anos saía eu daqui na velha Paulicéia solitária e brumo sa como hoje saís da transfigurada metrópole do máxi mo Estado brasileiro bem outros eram este país e todo o mundo ocidental O Brasil acabava de varrer do seu território a inva são paraguaia e na América do Norte poucos anos antes a guerra civil limpara da grande república o cativeiro ne gro cuja agonia esteve a pique de a soçobrar despedaçada Eram dois prenúncios de uma alvorada que doirava os cimos do mundo cristão anunciando futuras vitórias da liberdade Mas ao mesmo tempo a invasão germânica alagava terras de França deixandoa violada traspassada no cora ção e cruelmente mutilada aos olhos secos e indiferentes Rui Barbosa 69 das outras potências e mais nações europeias grandes ou pequenas Ninguém percebeu que se estavam semeando o ca tiveiro e a subversão do mundo Daí a menos de cinquen ta anos aquela atroz exacerbação do egoísmo político envolvia culpados e inocentes numa série de convulsões tal que acreditaríeis haverse despejado o inferno entre as nações da terra dando ao inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de representar na sua espanto sa imensidade um cataclismo cósmico Parecia estarse desmanchando e aniquilando o mundo Mas era a eter na justiça que se mostrava Era o velho continente que principiava a expiar a velha política desalmada mercantil e cínica dos Napoleões Metternichs e Bismarcks num ciclone de abominações inenarráveis que bem depressa abrangeria como abrangeu na zona das suas tremendas comoções os outros continentes e deixaria revolvido o orbe inteiro em tormentas catastróficas só Deus sabe por quantas gerações além dos nossos dias O Briareu do inexorável mercantilismo que explo rava a humanidade o colosso do egoísmo universal que durante um século assistira impassível à entronização dos cálculos dos governos sobre os direitos dos povos o rei nado ímpio da ambição e da força rolava e se desfazia 70 Oração aos Moços num desmoronamento pavoroso levando por aí a rojo impérios e dinastias reis domínios constituições e trata dos Mas a medonha intervenção dos poderes tenebrosos do nosso destino mal estava começada Ninguém poderia conjecturar ainda como e quando acabará Neste canto da terra o Brasil da hegemonia sul americana entreluzida com a guerra do Paraguai não cultivava tais veleidades ainda bem que hoje de todo em todo extintas Mas encetara uma era de aspirações jurídi cas e revoluções incruentas Em 1888 aboliu a proprieda de servil Em 1889 baniu a coroa e organizou a repúbli ca Em 1907 entrou pela porta de Haia ao concerto das nações Em 1917 alistouse na aliança da civilização para empenhar a sua responsabilidade e as suas forças navais na guerra das guerras em socorro do direito das gentes cujo código ajudara a organizar na Segunda Conferência da Paz Mas de súbito agora um movimento desvairado parece estarnos levando empuxados de uma corrente submarina a um recuo inexplicável Diríeis que o Brasil de 1921 tendesse hoje a repudiar o Brasil de 1917 Por quê Porque a nossa política nos descurou dos interes ses e ante isso delirando em acesso de frívolo despeito Rui Barbosa 71 iríamos desmentir a excelsa tradição tão gloriosa quão inteligente e fecunda Não senhores não seria possível Na resolução de 1917 o Brasil ascendeu à elevação mais alta de toda a nos sa história Não descerá Amigos meus não Compromissos daquela na tureza daquele alcance daquela dignidade não se re vogam Não convertamos uma questão de futuro em questão de relance Não transformemos uma questão de previdência em questão de cobiça Não reduzamos uma imensa questão de princípios a vil questão de interesses Não demos de barato a essência eterna da justiça por uma rasteira desavença de mercadores Não barganhe mos o nosso porvir a troco de um mesquinho prato de lentilhas Não arrastemos o Brasil ao escândalo de se dar em espetáculo à terra toda como a mais fútil das nações nação que à distância de quatro anos se desdissesse de um dos mais memoráveis atos de sua vida trocasse de ideias variasse de afeições mudasse de caráter e se rene gasse a si mesma Ó senhores não não e não Paladinos ainda ontem do direito e da liberdade não vamos agora mostrar os punhos contraídos aos irmãos com que comungávamos 72 Oração aos Moços há pouco nessa verdadeira cruzada Não percamos assim o equilíbrio da dignidade por amor de uma pendência de estreito caráter comercial ainda mal liquidada sobre a qual as explicações dadas à nação pelos seus agentes até esta data são inconsistentes e furtacores Não culpemos o estrangeiro das nossas decepções políticas no exterior antes de averiguarmos se os culpados não se achariam aqui mesmo entre os a quem se depara nestas cegas agi tações de ódio a outros povos a diversão mais oportuna dos nossos erros e misérias intestinas O Brasil em 1917 plantou a sua bandeira entre as da civilização nos mares da Europa Daí não se retro cede facilmente sem quebra da seriedade e do decoro senão dos próprios interesses Mais cuidado tivéssemos em tempo com os nossos nos conselhos da paz se neles quiséssemos brilhar melhor do que brilhamos nos atos da guerra e acabar sem contratempos ou dissabores Agora o que a política e a honra nos indicam é ou tra coisa Não busquemos o caminho de volta à situação colonial Guardemonos das proteções internacionais Acautelemonos das invasões econômicas Vigiemonos das potências absorventes e das raças expansionistas Não nos temamos tanto dos grandes impérios já sacia dos quanto dos ansiosos por se fazerem tais à custa dos Rui Barbosa 73 povos indefesos e malgovernados Tenhamos sentido nos ventos que sopram de certos quadrantes do céu O Bra sil é a mais cobiçável das presas e oferecida como está incauta ingênua inerme a todas as ambições tem de sobejo com que fartar duas ou três das mais formidáveis Mas o que lhe importa é que dê começo a governar se a si mesmo porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva em conta uma nacionalidade adormecida e anemizada na tutela perpétua de governos que não esco lhe Um povo dependente no seu próprio território e nele mesmo sujeito ao domínio de senhores não pode almejar seriamente nem seriamente manter a sua independência para com o estrangeiro Eia senhores Mocidade viril Inteligência brasilei ra Nobre nação explorada Brasil de ontem e amanhã Dainos o de hoje que nos falta Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida au tonomia mãos à obra da nossa reconstituição interior mãos à obra de reconciliarmos a vida nacional com as ins tituições nacionais mãos à obra de substituir pela verdade o simulacro político da nossa existência entre as nações Trabalhai por essa que há de ser a salvação nossa Mas não buscando salvadores Ainda vos podereis salvar a vós 74 Oração aos Moços mesmos Não é sonho meus amigos bem sinto eu nas pulsações do sangue essa ressurreição ansiada Oxalá não se me fechem os olhos antes de lhe ver os primeiros indí cios no horizonte Assim o queira Deus SENADO FEDERAL OraçãO aOs MOçOs OraçãO aOs MOçOs Rui BaRBosa Rui BaRBosa VOl 271
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OraçãO aOs MOçOs OraçãO aOs MOçOs Rui BaRBosa Rui BaRBosa VOl 271 Oração aos Moços Senador Davi Alcolumbre Presidente Senador Antonio Anastasia 1o VicePresidente Senador Lasier Martins 2o VicePresidente Senador Sérgio Petecão 1o Secretário Senador Eduardo Gomes 2o Secretário Senador Flávio Bolsonaro 3o Secretário Senador Luis Carlos Heinze 4a Secretária Suplentes de Secretário Senador Marcos do Val Senador Jaques Wagner Senador Weverton Senadora Leila Barros Conselho Editorial Senador Randolfe Rodrigues Presidente Esther Bemerguy de Albuquerque VicePresidente Conselheiros Alcinéa Cavalcante Aldrin Moura de Figueiredo Ana Luísa Escorel de Moraes Ana Maria Martins Machado Carlos Ricardo Cachiollo Cid de Queiroz Benjamin Cristovam Ricardo Cavalcanti Buarque Eduardo Rômulo Bueno Elisa Lucinda dos Campos Gomes Fabrício Ferrão Araújo Heloísa Maria Murgel Starling Ilana Feldman Marzochi Ilana Trombka João Batista Gomes Filho Ladislau Dowbor Márcia Abrahão de Moura Rita Gomes do Nascimento Vanderlei dos Santos Catalão Toni Carlos Pereira Mesa Diretora Biênio 20192020 Edições do Senado Federal Vol 271 Oração aos Moços Brasília 2019 Edição comemorativa dos 170 anos do nascimento de Rui Barbosa Prefácios de Senador Randolfe Rodrigues Cristian Edward Cyril Lyuch EDIÇÕES DO SENADO FEDERAL Vol 271 O Conselho Editorial do Senado Federal criado pela Mesa Diretora em 31 de janeiro de 1997 buscará editar sempre obras de valor histórico e cultural e de importância para a compreensão da história política econômica e social do Brasil e reflexão sobre os destinos do país e também obras da história mundial Organização e Revisão Fábio Harlan Barbosa Cristiano Ferreira Mariana Gava e SEGRAF Editoração eletrônica SEGRAF Arte da capa Leonardo Correa Matoso Projeto gráfico Serviço de Multimídia do Senado Federal Semid Senado Federal 2019 Congresso Nacional Praça dos Três Poderes snº CEP 70165900 DF ceditsenadogovbr httpwwwsenadogovbrwebconselhoconselhohtm Todos os direitos reservados ISBN 9788552800583 Barbosa Ruy 18491923 Oração aos moços Rui Barbosa prefácios de senador Randolfe Rodri gues Cristian Edward Cyril Lyuch Brasília Senado Federal Conselho Editorial 2019 74 p Edições do Senado Federal v 271 Edição comemorativa dos 170 anos do nascimento de Rui Barbosa 1 Político Brasil discursos etc 2 Direito e ética Brasil discursos etc I Título II Série CDU 923281 Sumário Prefácio Pág 7 Prefácio Pág 11 Oração aos Moços Pág 17 Orações Aos Moços nasce de um convite feito a Rui Barbosa para ser paraninfo dos for mandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco escola essa onde ele havia se formado 50 anos antes Acometido de uma enfer midade Rui não pode comparecer ao ato solene sendo seu discurso lido pelo Diretor da Faculdade o professor Reinaldo Porchat Profundamente comovido com a homenagem Rui elabora um texto memorável fazendo um ba lanço de suas atividades como advogado jornalista e aguerrido participante da vida pública brasileira Nesse clássico da cultura brasileira o polímata baiano fala sobre variados temas sobretudo sobre a advocacia a magistratura e a política Sobre a advocacia profissão que exerceu como poucos Rui alertava os ouvintes Prefácio 8 Oração aos Moços Rui Barbosa 8 Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado Nelas se encerra para ele a síntese de todos os mandamentos Não desertar a justiça nem cortejála Não lhe faltar com a fidelidade nem lhe recusar o conselho Não transfugir da legalidade para a violência nem trocar a ordem pela anarquia Não antepor os poderosos aos desvalidos nem recusar patrocínio a estes contra aqueles Não servir sem independência à justiça nem quebrar da verdade ante o poder Não colaborar em perseguições ou atentados nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade Não se subtrair à defesa das causas impopulares nem à das perigosas quando justas Indicado para o prestigioso cargo de juiz da Corte Internacional de Haia função que não pode exercer em razão da saúde debilitada Rui não deixou de alertar para a morosidade da magistratura situação ainda presente nos dias de hoje Justiça atrasada não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e assim a lesa no patrimônio honra e liberdade Os juízes tardinheiros são culpados que a lassidão comum vai tolerando Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o Rui Barbosa 9 delinquente poderoso em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente Defensor das causas da justiça da igualdade da fra ternidade e da solidariedade Rui Barbosa ferrenho com batente da escravidão não deixou de observar em seu dis curso que as desigualdades do Império ainda perduravam no Brasil República O direito dos mais miseráveis dos homens o direito do mendigo do escravo do criminoso não é menos sagrado perante a justiça que o do mais alto dos poderes Antes com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta e redobrar de escrúpulo porque são os mais maldefendidos os que suscitam menos interesse e os contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição com a míngua nos recursos Oração aos moços é mais que um belo e emocio nante discurso é o próprio legado de Rui Barbosa jurista embaixador escritor tradutor político filólogo e orador Este opúsculo que tenho a suprema felicidade de prefaciar que me faz recordar emocionado a minha que ria Universidade Federal do Amapá onde estive como aluno e hoje como professor é a própria síntese da vida de Rui Barbosa um homem ansioso pela verdade e pelo 10 Oração aos Moços bem corajoso e leal Algumas das mais belas qualidades humanas iluminavam a sua vida como nenhuma eloqu ência poderia fazer E mesmo se todas as lições políticas sociais e humanas que ele escreveu e pregou viessem a esmaecer definitivamente restaria como o seu legado aos homens a nobreza moral do homem que ele foi O Conselho Editorial do Senado Federal convida os moços e as moças do hoje e do amanhã a meditar sobre os conselhos que brotam seguidamente do texto daquele que Estremeceu a Justiça viveu no Trabalho e não perdeu o Ideal Macapá 25 de outubro de 2019 Senador Randolfe Rodrigues Presidente do Conselho Editorial do Senado Federal Prefácio Um clássico do bacharelismo liberal Christian Edward Cyril Lynch2 O texto mais popular de toda a imen sa produção intelectual de Rui Barbosa continua sendo sua profissão de fé como jurista a Oração aos moços Sua origem é prosaica A turma de bacharéis que colava grau no ano de 1920 na Faculdade de Direito de São Paulo convidou o então senador pela Bahia para seu paraninfo Tratavase de uma homenagem ao exaluno que comple tava 50 anos de formado Assim nasceu a Oração como discurso de paraninfo Alegando idade avançada e molés tia Rui não se deslocou a São Paulo para comparecer à cerimônia que teve lugar a 29 de março de 1921 O texto 2 Pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa FCRB Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro IESPUERJ Membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro IHGB 12 Oração aos Moços acabou lido pelo catedrático de direito romano Reinaldo Porchat que viria a ser o primeiro reitor da Universida de de São Paulo O texto tornouse instantaneamente um clássico Diversas de suas passagens se tornaram bordões no ambiente forense Até hoje é comum encontrar re produzidas em sentenças petições sustentações orais ou mesmo estampada em escritórios de advocacia ou gabine tes de juízes frases como A regra da igualdade não con siste senão em aquinhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam Ou ainda Justiça atrasa da não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta Ou esta Se o povo é analfabeto só ignorantes estarão em termos de o governar Como explicar a popularida de desse discurso que há quase um século permanece no panteão de verdadeiro evangelho dos estudantes de direi to Como em todas as obras clássicas pesaram diversas causas entre as quais o contexto de sua produção a exce lência de seu conteúdo e sua fortuna crítica Em 1920 aos setenta anos de idade Rui Barbosa era uma personalidade consagrada Senador da República advogado jornalista exministro de Estado ele era considerado pela opinião pública o maior brasileiro vivo Iniciado treze anos an tes por ocasião de sua participação como representante do Brasil na Segunda Conferência da Paz na Haia seu processo de consagração atingira seu apogeu em agosto de Rui Barbosa 13 1918 quando o próprio regime republicano de que Rui era virulento crítico celebrou oficialmente seu jubileu cívico isto é seus cinquenta anos de atividade política Foram três dias de festividades um dos quais decretado feriado nacional Mas para entender o sucesso da Oração é preciso considerar também o estilo literário particular em que foi redigido Não era a primeira vez que Rui se dirigia à mo cidade Em 1903 ele escrevera Palavras à juventude aos meninos de um colégio de Nova Friburgo que ele visi tara Não obstante salta aos olhos a diferença de estilo Desde a Campanha Civilista quando passara a se dirigir pessoalmente a audiências mais amplas Rui percebera a familiaridade do público com o estilo oratório dos ser mões e adotara o estilo evangelizador de um padre Vieira que cruzava o registro do pregador e do pedagogo Na Oração aos Moços ele não era só o pedagogo ele era o velho pai ou padrinho que em tom de intimidade confes sional oferecia conselhos aos moços a partir da sua pró pria experiência Falava da importância de ouvir o próprio coração e de estar preparado para uma vida dedicada ao amor ao sacrifício à justiça à caridade recomendava a oração e o trabalho e pedia aos jovens que não trocassem o dia pela noite continuando sempre a estudar Enaltecia a profissão de juiz e enunciava regras de conduta para os 14 Oração aos Moços magistrados não contribuir para a morosidade processu al receber o advogados das partes evitar o governismo tratar igualmente o rico e o pobre evitar o excesso de ri gor e principalmente duas regras de grande atualidade não se meter em política e não ir atrás de popularidade Quanto ao conteúdo propriamente político a Oração era atravessada por um intenso idealismo liberal democrático Os moços deviam lutar sempre pela verdade do governo da lei verdade eleitoral verdade constitucional verdade republicana sempre incompatíveis com regimes autori tários e oligárquicos Mas Rui também advertia contra o comunismo lembrando que a igualdade não era dar a todos indistintamente filosofia da miséria mas a cada um na proporção de seus méritos O patriotismo era a última lição o bacharel em direito deveria zelar pela sorte do Brasil ameaçado pelos imperialismos de todo o tipo No seu entender o Brasil só poderia ser salvo de sua cor rupta oligarquia política pela ação de uma elite jurídica orientada por um espírito liberal e republicano na defesa da Constituição Era esse o principal recado deixado por Rui que explica em larga parte a popularidade do texto nos meios jurídicos até o dia de hoje em que a ideologia do bacharelismo judiciarista atingiu seu apogeu entre nós De fato o sucesso do texto se deveu igualmen te à sua fortuna crítica A oração foi instantaneamente Rui Barbosa 15 interpretada pelos liberais como uma espécie de testamen to do velho Rui às futuras gerações de bacharéis O sena dor baiano lograra consolidarse na imaginação dos libe rais como um modelo de atuação para a mocidade um ju rista idealista culto destemido solitário incumbido pelo destino de defender a Justiça identificada com o Estado de direito democrático contra a corrupção identificada com politiqueiros conservadores autoritários e oligárqui cos Para tanto o bacharel liberal deveria travar uma luta sem trégua com a Constituição debaixo do braço pela tribuna jornalística forense e parlamentar No idealismo cosmopolita de Rui beberiam as principais lideranças li berais e socialistas de tendência ideológica cosmopolita da Terceira República Pensemos na Ordem dos Advogados do Brasil OAB com advogados como Levi Carneiro Sobral Pinto e Raimundo Faoro na União Democrática Nacional UDN de Aliomar Baleeiro Afonso Arinos de Mello Franco Bilac Pinto e Prado Kelly mas também de Carlos Lacerda que sem ser jurista seria o principal êmulo de seu estilo combativo Mas na herança de Rui be beriam socialistas críticos do personalismo do trabalhismo de origem getulista Pensemos no Partido Socialista Bra sileiro de João Mangabeira Hermes Lima e Evandro Lins e Silva mas também na ala do Partido Trabalhista Brasi leiro de Alberto Pasqualini e Santiago Dantas Todos eles 16 Oração aos Moços se reconheceriam profundamente devedores do exemplo de Rui Barbosa Nas décadas de 19701980 a pregação antiautoritária de Ulysses Guimarães em ocasiões como a da apresentação de sua anticandidatura a presidente da República ou do encerramento da Constituinte de 1988 nada mais fariam do que emular a fórmula ruiana de com bate aos regimes autocráticos Não admira portanto que o busto de Rui Barbosa goze solitariamente do direito de figurar solitariamente no edifício do Senado Federal atrás da cadeira do presidente como um anjo tutelar da demo cracia brasileira Enquanto houver ideal liberal democrata nas escolas de direito e nos bancos parlamentares haverá lugar para a Oração aos moços esse clássico do pensamento político e jurídico brasileiro Oração aos Moços Rui Barbosa Não quis Deus que os meus cinquenta anos de consagração ao Direito viessem receber no templo do seu ensino em S Paulo o selo de uma grande bênção associandose hoje com a vossa admissão ao nosso sacer dócio na solenidade imponente dos votos em que o ides esposar Em verdade vos digo jovens amigos meus que o coin cidir desta existência declinante com essas carreiras nascentes agora o seu coincidir num ponto de intersecção tão magni ficamente celebrado era mais do que eu mereceria e negan dome a divina bondade um momento de tamanha ventura não me negou senão a que eu não devia ter tido a inconsci ência de aspirar Senhores 18 Oração aos Moços Mas recusandome o privilégio de um dia tão gran de ainda me consentiu o encanto de vos falar de con versar convosco presente entre vós em espírito o que é também estar presente em verdade Assim que não me ides ouvir de longe como a quem se sente arredado por centenas de quilômetros mas de ao pé de em meio a vós como a quem está debai xo do mesmo teto e à beira do mesmo lar em colóquio de irmãos ou junto dos mesmos altares sob os mesmos campanários elevando ao Criador as mesmas orações e professando o mesmo credo Direis que isto de me achar assistindo assim entre os de quem me vejo separado por distância tão vasta seria darse ou supor que se está dando no meio de nós um verdadeiro milagre Será Milagre do maior dos taumaturgos Milagre de quem respira entre milagres Milagre de um santo que cada qual tem no sacrário do seu peito Milagre do cora ção que os sabe chover sobre a criatura humana como o firmamento chove1 nos campos mais áridos e tristes a orvalhada das noites que se esvai com os sonhos de ante manhã ao cair das primeiras frechas de oirodo disco solar Rui Barbosa 19 Embora o realismo dos adágios teime no contrário toleremme o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos provérbios Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não Não é certo como corre mundo ou pelo menos muitas e muitíssimas vezes não é verdade como se espalha fama que longe da vista longe do coração O gênio dos anexins aí vai longe de andar certo Esse prolóquio tem mais malícia que ciência mais epi grama que justiça mais engenho que filosofia Vezes sem conto quando se está mais fora da vista dos olhos então e por isso mesmo é que mais à vista do coração estamos não só bem à sua vista senão bem dentro nele Não filhos meus deixaime experimentar uma vez que seja convosco este suavíssimo nome não o coração não é tão frívolo tão exterior tão carnal quanto se cuida Há nele mais que um assombro fisiológico um prodígio moral É o órgão da fé o órgão da esperança o órgão do ideal Vê por isso com os olhos dalma o que não veem os do corpo Vê ao longe vê em ausência vê no invisível e até no infinito vê Onde para o cérebro de ver outor goulhe o Senhor que ainda veja e não se sabe até onde Até onde chegam as vibrações do sentimento até onde se perdem os surtos da poesia até onde se somem os voos da crença até Deus mesmo inviso como os panoramas 20 Oração aos Moços íntimos do coração mas presente ao céu e à terra a todos nós presente enquanto nos palpite incorrupto no seio o músculo da vida e da nobreza e da bondade humana Quando ele já não estende o raio visual pelo horizon te do invisível quando sua visão tem por limite a do nervo óptico é que o coração já esclerótico ou degenerescente e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal apenas oscila mecanicamente no interior do arcaboiço como pên dula de relógio abandonado que agita com as derradei ras pancadas os vermes e a poeira da caixa Dele se retirou a centelha divina Até ontem lhe banhava ela de luz todo esse espaço que nos distanceia do incomensurável desco nhecido e lançava entre este e nós uma ponte de astros Agora apagados esses luzeiros que o inundavam de radiosa claridade lá se foram com o extinto cintilar das estrelas as entreabertas do dia eterno deixandonos tãosomente entre o longínquo mistério daquele termo e o aniquilamen to da nossa miséria desamparada as trevas de outro éter como esse que se diz encher de escuridão o vago mistério do espaço Entre vós porém moços que me estais escutando ainda brilha em toda a sua rutilância o clarão da lâmpa da sagrada ainda arde em toda a sua energia o centro de Rui Barbosa 21 calor a que se aquece a essência dalma Vosso coração pois ainda estará incontaminado e Deus assim o preserve Metei a mão no seio e aí o sentireis com a sua se gunda vista Desta sobre tudo é que ele nutre sua vida agitada e criadora Pois não sabemos que com os ante passados vive ele da memória do luto e da saudade E tudo é viver no pretérito Não sentimos como com os nossos conviventes se alimenta ele na comunhão dos sentimentos e índoles das ideias e aspirações E tudo é viver num mundo em que estamos sempre fora deste pelo amor pela abnegação pelo sacrifício pela caridade Não nos será claro que com os nossos descendentes e so breviventes com os nossos sucessores e pósteros vive ele de fé esperança e sonho Ora tudo é viver previvendo é existir preexistindo é ver prevendo E assim está o co ração cada ano cada dia cada hora sempre alimentado em contemplar o que não vê por ter em dote dos céus a preexcelência de ver ouvir e palpar o que os olhos não divisam os ouvidos não escutam e o tato não sente Para o coração pois não há passado nem futuro nem ausência Ausência pretérito e porvir tudo lhe é atu alidade tudo presença Mas presença animada e vivente palpitante e criadora neste regaço interior onde os mor tos renascem prénascem os vindoiros e os distanciados 22 Oração aos Moços se ajuntam ao influxo de um talismã pelo qual nesse mágico microcosmo de maravilhas encerrado na breve arca de um peito humano cabe em evocações de cada instante a humanidade toda e a mesma eternidade A maior de quantas distâncias logre a imaginação conceber é a da morte e nem esta separa entre si os que a terrível apartadora de homens arrebatou aos braços uns dos outros Quantas vezes não entrevemos nesse fundo obscuro e remotíssimo uma imagem cara quantas vezes não a vemos assomar nos longes da saudade sorridente ou melancólica alvoroçada ou inquieta severa ou ca rinhosa trazendonos o bálsamo ou o conselho a pro messa ou o desengano a recompensa o castigo o aviso da fatalidade ou os presságios de bom agoiro Quantas nos não vem conversar afável e tranquila ou pressurosa e sobressaltada com o afago nas mãos a doçura na boca a meiguice no semblante o pensamento na fronte lím pida ou carregada e lhe saímos do contato ora seguros e robustecidos ora transidos de cuidado e pesadume ora cheios de novas inspirações e cismando para a vida no vos rumos Quantas outras não somos nós os que vamos chamar esses leais companheiros de alémmundo e com eles renovar a prática interrompida ou instar com eles por alvitre em vão buscado uma palavra um movimento do Rui Barbosa 23 rosto um gesto uma réstia de luz um traço do que por lá se sabe e aqui se ignora Se não há pois abismo entre duas épocas nem mesmo a voragem final desta à outra vida que não trans ponha a mútua atração de duas almas não pode haver na mesquinha superfície do globo terrestre espaços que não vença com os instantâneos de presteza das vibrações lu minosas esse fluido incomparável por onde se realiza na esfera das comunicações morais a maravilha da fotografia à distância no mundo positivo da indústria moderna Tão pouco medeia do Rio a S Paulo Por que não conseguiremos enxergar de um a outro cabo em linha tão curta Tentemos Vejamos Estendamos as mãos entre os dois pontos que a limitam Deste àquele já se estabeleceu a corrente Rápida como o pensamento corre a emanação magnética desta extremidade à oposta Já num aperto se confundiram as mãos que se procuravam Já num am plexo de todos nos abraçamos uns aos outros Em S Pau lo estamos Conversemos amigos de presença a presença Entrelaçando a colação do vosso grau com a come moração jubilar da minha e dandome a honra de vos ser eu paraninfo urdis desta maneira no ingresso à carrei ra que adotastes um como vínculo sagrado entre a vossa 24 Oração aos Moços existência intelectual que se enceta e a do vosso padrinho em Letras que se acerca do seu termo Do ocaso de uma surde18 o arrebol da outra Mercê porém de circunstâncias inopinadas com o encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência se ajusta o remate dos meus cinquenta anos de serviços à nação Já o jurista começava a olhar com os primeiros to ques de saudade para o instrumento que há dez lustros lhe vibra entre os dedos lidando pelo direito quando a consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da sua luta provadamente inútil pela grandeza da pátria e suas liberdades no parlamento Essa remoção da metade total de um século de vida laboriosa para o desentulho do tempo não se podia con sumar sem abalo sensível numa existência repentinamen te decepada Mas a comoção foi salutar porque o espírito encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que afinal chegava eu a conhecer a mim mesmo reconhecendo a es cassez de minhas reservas de energia para acomodar o am biente da época às minhas ideias de reconciliação da políti ca nacional com o regímen republicano Era presunção era temeridade era inconsciência insistir na insana pretensão da minha fraqueza Só um Rui Barbosa 25 predestinado poderia arrostar empresa tamanha Desde 1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ven tos Não os venci Venceramme eles a mim Era natural Deus nos dá sempre mais do que merecemos Já me não era pouco a graça pela qual erguia as mãos ao céu de abrir os olhos à realidade evidente da minha impotência e poder recolher as velas navegante desenganado antes que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada Tenho o consolo de haver dado a meu país tudo o que me estava ao alcance a desambição a pureza a sin ceridade os excessos de atividade incansável com que desde os bancos acadêmicos o servi e o tenho servido até hoje Por isso me saí da longa odisseia sem créditos de Ulisses Mas se o não soube imitar nas artes medrançosas de político fértil em meios e manhas em compensação tudo envidei por inculcar ao povo os costumes da liber dade e à república as leis do bom governo que prosperam os Estados moralizam as sociedades e honram as nações Preguei demonstrei honrei a verdade eleitoral a verdade constitucional a verdade republicana Pobres clientes estas entre nós sem armas nem oiro nem consi deração mal achavam em uma nacionalidade esmorecida 26 Oração aos Moços e indiferente nos títulos rotos do seu direito com que habilitar o mísero advogado a sustentarlhes com alma com dignidade com sobrançaria as desprezadas reivin dicações As três verdades não podiam alcançar melhor sentença no tribunal da corrupção política do que o Deus vivo no de Pilatos Quem por uma causa destas combateu abraçado com ela em vinte e oito anos da sua Via Dolorosa não se pode ter habituado a maldizer senão a perdoar nem a descrer senão a esperar Descrer da cegueira humana sim mas da Providência fatal nas suas soluções bem que ao parecer tarda nos seus passos isso nunca Assim que a bênção do paraninfo não traz fel Não lhe encontrareis no fundo nem rancor nem azedume nem despeito Os maus só lhe inspiram tristeza e pieda de Só o mal é o que o inflama em ódio Porque o ódio ao mal é amor do bem e a ira contra o mal entusiasmo divino Vede Jesus despejando os vendilhões do templo ou Jesus provando a esponja amarga no Gólgota Não são o mesmo Cristo esse ensanguentado Jesus do Calvário e aqueloutro o Jesus iroso o Jesus armado o Jesus do láte go inexorável Não serão um só Jesus o que morre pelos bons e o que açoita os maus Rui Barbosa 27 O Padre Manuel Bernardes pregava numa das suas Silvas Bem pode haver ira sem haver pecado Irascimini et nolite peccare E às vezes poderá haver pecado se não houver ira porquanto a paciência e silêncio fomenta a negligência dos maus e tenta a perseverança dos bons Qui cum causa non irascitur peccat diz um padre patien tia enim irrationabilis vitia seminat negligentiam nutrit et non solum malos sed etiam bonos invitat ad malum Nem o irarse nestes termos é contra a mansidão porque esta vir tude compreende dois atos um é reprimir a ira quando é desordenada outro excitála quando convém A ira se compara ao cão que ao ladrão ladra ao senhor festeja ao hóspede nem festeja nem ladra e sempre faz o seu ofício E assim quem se agasta nas ocasiões e contra as pesso as que convém agastarse bem pode com tudo isso ser verdadeiramente manso Qui igitur disse o Filósofo ad quae oportet et quibus oportet irascitur laudatur esseque is mansuetus potest Luz e Calor 1ª ed 1696 Págs 271272 XVIII Nem toda ira pois é maldade porque a ira se as mais das vezes rebenta agressiva e daninha muitas ou tras oportuna e necessária constitui o específico da cura 28 Oração aos Moços Ora deriva da tentação infernal ora de inspiração religio sa Comumente se acende em sentimentos desumanos e paixões cruéis mas não raro flameja do amor santo e da verdadeira caridade Quando um braveja contra o bem que não entende ou que o contraria é ódio iroso ou ira odienta Quando verbera o escândalo a brutalidade ou o orgulho não é agrestia rude mas exaltação virtuosa não é soberba que explode mas indignação que ilumina não é raiva desaçaimada mas correção fraterna Então não somente não peca o que se irar mas pe cará não se irando Cólera será mas cólera da mansue tude cólera da justiça cólera que reflete a de Deus face também celeste do amor da misericórdia e da santidade Dela esfuzilam centelhas em que se abrasa por ve zes o apóstolo o sacerdote o pai o amigo o orador o magistrado Essas faúlhas da substância divina atravessam o púlpito a cátedra a tribuna o rostro a imprensa quan do se debatem ante o país ou o mundo as grandes causas humanas as grandes causas nacionais as grandes causas populares as grandes causas sociais as grandes causas da consciência religiosa Então a palavra se eletriza brame lampeja atroa fulmina Descargas sobre descargas rasgam o ar incendeiam o horizonte cruzam em raios o espaço É a hora das responsabilidades a hora da conta e do castigo Rui Barbosa 29 a hora das apóstrofes imprecações e anátemas quando a voz do homem reboa como o canhão a arena dos com bates da eloquência estremece como campo de batalha e as siderações da verdade que estala sobre as cabeças dos culpados revolvem o chão coberto de vítimas e destroços incruentos com abalos de terremoto Eila aí a cólera san ta Eis a ira divina Quem senão ela há de expulsar do templo o re negado o blasfemo o profanador o simoníaco quem senão ela exterminar da ciência o apedeuta o plagiário o charlatão quem senão ela banir da sociedade o imo ral o corruptor o libertino quem senão ela varrer dos serviços do Estado o prevaricador o concussionário e o ladrão público quem senão ela precipitar do governo o negocismo a prostituição política ou a tirania quem senão ela arrancar a defesa da pátria à cobardia à incon fidência ou à traição Quem senão ela ela a cólera do celeste inimigo dos vendilhões e dos hipócritas a cólera do justo crucifixo entre ladrões a cólera do Verbo da ver dade negado pelo poder da mentira a cólera da santidade suprema justiçada pela mais sacrílega das opressões Todos os que nos dessedentamos nessa fonte os que nos saciamos desse pão os que adoramos esse ideal nela vamos buscar a chama incorruptível É dela que ao 30 Oração aos Moços espetáculo ímpio do maltripudiante sobre os reveses do bem rebenta em labaredas a indignação golfa a cólera em borbotões das fráguas da consciência e a palavra sai rechinando esbraseando chispando como o metal can dente dos seios da fornalha Esse metal nobre porém na incandescência da sua ebulição não deixa escória Pode crestar os lábios que atravessa Poderá infla mar por momentos o irritado co ração de onde jorra Mas não o degenera não o macula não o resseca não o caleja não o endurece e no fundo são da urna onde tumultuam essas procelas e donde bor botam essas erupções não assenta um rancor uma inimi zade uma vingança As reações da luta cessam e fica de envolta com o aborrecimento ao mal o relevamento dos males padecidos Nestalma tantas vezes ferida e traspassada tantas vezes nem de agressões nem de infamações nem de pre terições nem de ingratidões nem de perseguições nem de traições nem de expatriações perdura o menor rasto a menor ideia de revindita Deus me é testemunha de que tudo tenho perdoado E quando lhe digo na oração domi nical Perdoainos Senhor as nossas dívidas assim como nós perdoamos aos nossos devedores julgo não lhe estar mentindo e a consciência me atesta que até onde alcance a Rui Barbosa 31 imperfeição humana tenho conseguido e consigo todos os dias obedecer ao sublime mandamento Assim me perdoem também os a quem tenho agravado os com quem houver sido injusto violento intolerante maligno ou descaridoso Estouvos abrindo o livro da minha vida Se me não quiserdes aceitar como expressão fiel da realidade esta ver são rigorosa de uma de suas páginas com que mais me consolo recebeia ao menos como ato de fé ou como conselho de pai a filhos quando não como o testamento de uma carreira que poderá ter discrepado muitas vezes do bem mas sempre o evangelizou com entusiasmo o procurou com fervor e o adorou com sinceridade Desde que o tempo começou lento lento a me decantar o espírito do sedimento das paixões com que o verdor dos anos e o amargor das lutas o enturbavam entrando eu a considerar com filosofia nas leis da natureza humana fui sentindo quanto esta necessita da contradi ção como a lima dos sofrimentos a melhora a que ponto o acerbo das provações a expurga a tempera a nobilita a regenera Então vim a perceber vivamente que imensa dívida cada criatura da nossa espécie deve aos seus ini migos e desfortunas Por mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte e as maldades dos homens raro nos causam mal tamanho que nos não façam ainda maior 32 Oração aos Moços bem Ai de nós se esta purificação gradual que nos depa ram as vicissitudes cruéis da existência não encontrasse a colaboração providencial da fortuna adversa e dos nossos desafetos Ninguém mete em conta o serviço contínuo de que lhes está em obrigação Diríeis até que mandandonos amar aos nossos inimigos em boa parte nos quis o divino legislador entre mostrar o muito de que eles nos são credores A caridade com os que nos malquerem e os que nos malfazem não é em bem larga escala senão pago dos benefícios que mal a seu grado mas muito deveras eles nos granjeiam Destarte não equivocaremos a aparência com a re alidade se nos dissabores que malquerentes e malfazentes nos propinam discernirmos a quota de lucro com que eles não levando em tal o sentido quase sempre nos favo recem Quanto é pela minha parte o melhor do que sou bem assim o melhor do que me acontece frequentemente acaba o tempo convencendome de que não me vem das doçuras da fortuna propícia ou da verdadeira amizade senão sim que o devo principalmente às maquinações dos malévolos e às contradições da sorte madrasta Que seria hoje de mim se o veto dos meus adversários siste mático e pertinaz me não houvesse poupado aos tremen dos riscos dessas alturas alturas de Satanás como as de Rui Barbosa 33 que fala o Apocalipse em que tantos se têm perdido mas a que tantas vezes me tem tentado exalçar o voto dos meus amigos Amigos e inimigos estão amiúde em posições trocadas Uns nos querem mal e fazemnos bem Outros nos almejam o bem e nos trazem o mal Não poucas vezes pois razão é lastimar o zelo dos amigos e agradecer a malevolência dos opositores Estes nos salvam quando aqueles nos extraviam De sorte que no perdoar aos inimigos muita vez não vai somente cari dade cristã senão também justiça ordinária e reconheci mento humano E ainda quando aos olhos do mundo como aos do nosso juízo descaminhado tenham logrado a nossa desgraça bem pode ser que aos olhos da filosofia aos da crença e aos da verdade suprema não nos hajam contribuído senão para a felicidade Este senhores será um saber vulgar um saber rasteiro um saber só dexperiências feito Não é o saber da ciência que se libra acima das nuvens e alteia o voo soberbo além das regiões siderais até aos páramos indevassáveis do infinito Mas ainda as sim este saber fácil mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida em versos imortais quanto mais a nós outros 34 Oração aos Moços bichos da terra tão pequenos a ninharia de ocupar di vagações como estas de um dia folhas de árvore morta que talvez não vinguem ao de amanhã Da ciência estamos aqui numa catedral Não cabia em um velho catecúmeno vir ensinar a religião aos seus bispos e pontífices nem aos que agora nela recebem as ordens do seu sacerdócio E hoje é féria ensejo para tré guas ao trabalho ordinário quase dia santo Labutastes a semana toda o vosso curso de cinco anos com teorias hipóteses e sistemas com princípios teses e demonstra ções com leis códigos e jurisprudências com expositores intérpretes e escolas Chegou o momento de vos assen tardes mão por mão com os vossos sentimentos de vos pordes à fala com a vossa consciência de praticardes fami liarmente com os vossos afetos esperanças e propósitos Eis ao que vem o padrinho o velho o abendiço ador carregado de anos e tradições versado nas longas lições do tempo mestre de humildade arrependimento e desconfiança nulo entre os grandes da inteligência gran de entre os experimentados na fraqueza humana Que se feche pois alguns momentos o livro da ciência e folhe emos juntos o da experiência Desaliviemonos do saber humano carga formidável e voltemonos uma hora para Rui Barbosa 35 este outro leve comezinho desalinhado conversável se guro sem altitudes nem despenhadeiros Ninguém senhores meus que empreenda uma jor nada extraordinária primeiro que meta o pé na estrada se esquecerá de entrar em conta com as suas forças por saber se a levarão ao cabo Mas na grande viagem na via gem de trânsito deste a outro mundo não há possa ou não possa não há querer ou não querer A vida não tem mais que duas portas uma de entrar pelo nascimento outra de sair pela morte Ninguém cabendolhe a vez se poderá furtar à entrada Ninguém desde que entrou em lhe chegando o turno se conseguirá evadir à saída E de um ao outro extremo vai o caminho longo ou breve ninguém o sabe entre cujos termos fatais se debate o ho mem pesaroso de que entrasse receioso da hora em que saia cativo de um e outro mistério que lhe confinam a passagem terrestre Não há nada mais trágico do que a fatalidade ine xorável deste destino cuja rapidez ainda lhe agrava a severidade Em tão breve trajeto cada um há de acabar a sua tarefa Com que elementos Com os que herdou e os que cria Aqueles são a parte da natureza Estes a do trabalho 36 Oração aos Moços A parte da natureza varia ao infinito Não há no universo duas cousas iguais Muitas se parecem umas às outras Mas todas entre si diversificam Os ramos de uma só árvore as folhas da mesma planta os traços da polpa de um dedo humano as gotas do mesmo fluido os ar gueiros do mesmo pó as raias do espectro de um só raio solar ou estelar Tudo assim desde os astros no céu até os micróbios no sangue desde as nebulosas no espaço até aos aljôfares do rocio na relva dos prados A regra da igualdade não consiste senão em qui nhoar desigualmente aos desiguais na medida em que se desigualam Nesta desigualdade social proporcionada à desigualdade natural é que se acha a verdadeira lei da igualdade O mais são desvarios da inveja do orgulho ou da loucura Tratar com desigualdade a iguais ou a desi guais com igualdade seria desigualdade flagrante e não igualdade real Os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação pretendendo não dar a cada um na razão do que vale mas atribuir o mesmo a todos como se todos se equivalessem Esta blasfêmia contra a razão e a fé contra a civili zação e a humanidade é a filosofia da miséria proclamada em nome dos direitos do trabalho e executada não faria Rui Barbosa 37 senão inaugurar em vez da supremacia do trabalho a orga nização da miséria Mas se a sociedade não pode igualar os que a na tureza criou desiguais cada um nos limites da sua ener gia moral pode reagir sobre as desigualdades nativas pela educação atividade e perseverança Tal a missão do trabalho Os portentos de que esta força é capaz ninguém os calcula Suas vitórias na reconstituição da criatura maldo tada só se comparam às da oração Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na criação moral do homem A oração é o íntimo subli marse dalma pelo contato com Deus O trabalho é o inteirar o desenvolver o apurar das energias do corpo e do espírito mediante a ação contínua de cada um sobre si mesmo e sobre o mundo onde labutamos O indivíduo que trabalha acercase continuamente do autor de todas as coisas tomando na sua obra uma parte de que depende também a dele O criador começa e a criatura acaba a criação de si própria Quem quer pois que trabalhe está em oração ao Senhor Oração pelos atos ela emparelha com a oração 38 Oração aos Moços pelo culto Nem pode ser que uma ande verdadeiramente sem a outra Não é trabalho digno de tal nome o do mau porque a malícia do trabalhador o contamina Não é ora ção aceitável a do ocioso porque a ociosidade a dessagra Mas quando o trabalho se junta à oração e a oração com o trabalho a segunda criação do homem a criação do homem pelo homem semelha às vezes em maravilhas à criação do homem pelo divino Criador Ninguém desanime pois de que o berço lhe não fosse generoso ninguém se creia malfadado por lhe min guarem de nascença haveres e qualidades Em tudo isso não há surpresas que se não possam esperar da tenacidade e santidade no trabalho Quem não conhece a história do Pe Suárez o autor do tratado Das Leis e de Deus Legisla dor De Legibus ac Deo Legislatore monumento jurídico a que os trezentos anos de sua idade ainda não gastaram o conceito de honra das letras castelhanas De cinquen ta aspirantes que em 1564 solicitavam em Salamanca ingresso à Companhia de Jesus esse foi o único rejeitado por curto de entendimento e revesso ao ensino Admiti do todavia a insistências suas com a nota de indiferen te embora primasse entre os mais aplicados tudo lhe eram no estudo espessas trevas Não avançava um passo Afinal por consenso de todos passava por invencível a Rui Barbosa 39 sua incapacidade Confessoua por fim ele mesmo re querendo ao reitor o célebre Pe Martín Gutiérrez que o escusasse da vida escolar e o entregasse aos misteres corporais de irmão coadjutor Gutiérrez animouo a orar persistir e esperar De repente se lhe alagou de claridade a inteligência Mergulhouse então cada vez mais no estu do e daí com estupenda mudança começa a deixar ver o a que era destinada aquela extraordinária cabeça até esse tempo submersa em densa escuridade Já é mestre insigne já encarna todo o saber da re nascença teológica em que brilham as letras de Espanha Sucessivamente ilustra as cadeiras de Filosofia Teologia e Cânones nas mais famosas universidades europeias em Segóvia em Valhadolid em Roma em Alcalá em Sala manca em Ávila em Coimbra Nos seus setenta anos de vida professa as Ciências Teológicas durante quarenta e sete escreve cerca de duzentos volumes e morre compa rado com Santo Agostinho e S Tomás abaixo de quem houve quem o considerasse o maior engenho que tem tido a igreja sendo tal a sua nomeada ainda entre os protestantes que deste jesuíta como teólogo e filó sofo chegou a dizer Grócio que apenas havia quem o igualasse 40 Oração aos Moços Pe Francisco Suárez Tratado de las Leyes y de Dios Legislador Ed de Madrid 1918 Tomo I pág XXXVII Já vedes que ao trabalho nada é impossível Dele não há extremos que não sejam de esperar Com ele nada pode haver de que desesperar Mas do século XVI ao século XX o que as ciências cresceram é incomensurável Entre o currículo da Teo logia e Filosofia no primeiro e o programa de um curso jurídico no segundo a distância é infinita Sobre os mes tres os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas e montanhas mais de questões problemas e estudos que quantos há três ou quatro séculos se abrangiam no saber humano O trabalho pois vos há de bater à porta dia e noite e nunca vos negueis às suas visitas se quereis honrar vossa vocação e estais dispostos a cavar nos veios de vossa natu reza até dardes com os tesoiros que aí vos haja reservado com ânimo benigno a dadivosa Providência Ouvistes o aldrabar da mão oculta que vos chama ao estudo Abri abri sem detença Nem por vir muito cedo lho leveis a mal lho tenhais à conta de importuna Quanto mais matutinas essas interrupções do vosso dormir mais lhas deveis agradecer Rui Barbosa 41 O amanhecer do trabalho há de anteciparse ao amanhecer do dia Não vos fieis muito de quem esperta já sol nascente ou sol nado Curtos se fizeram os dias para que nós os dobrássemos madrugando Experimen tai e vereis quanto vai do deitar tarde ao acordar cedo Sobre a noite o cérebro pende ao sono Antemanhã tende a despertar Não invertais a economia do nosso organismo não troqueis a noite pelo dia dedicando este à cama e aquela às distrações O que se esperdiça para o trabalho com as noitadas inúteis não se lhe recobra com as manhãs de extemporâneo dormir ou as tardes de cansado labutar A ciência zelosa do escasso tempo que nos deixa a vida não dá lugar aos tresnoites libertinos Nem a cabeça já exaus ta ou estafada nos prazeres tem onde caiba o inquirir o revolver o meditar do estudo Os próprios estudiosos desacertam quando iludi dos por um hábito de inversão antepõem o trabalho que entra pela noite ao que precede o dia A natureza nos está mostrando com exemplos a verdade Toda ela nos viven tes ao anoitecer inclina para o sono A esta lição geral só abrem triste exceção os animais sinistros e os carniceiros Mas quando se avizinha o volver da luz muito antes que ela arraie a natureza e ainda primeiro que alvoreça no 42 Oração aos Moços firmamento já rompeu na terra em cânticos a alvorada já se orquestram de harmonias e melodias campos e selvas já o galo não o galo triste do luar dos sertões do nosso Ca tulo mas o galo festivo das madrugadas retine ao longe a estridência dos seus clarins vibrantes de jubilosa alegria Ouvi no poema de Jó a voz do Senhor perguntan do a seu servo onde estava quando o louvavam as estre las da manhã Ubi eras cum me laudarent simul astra matutina E que têm mais as estrelas da manhã dizia um grande escritor nosso que têm mais as estrelas da manhã que as da tarde ou as da noite para fazer Deus mais caso do louvor de umas que das outras não é ele o Senhor do tempo que deve ser louvado a todo o tempo não só da luz senão também das trevas Assim é porém as estrelas da manhã têm esta vantagem que madrugam antecipamse e despertam aos outros que se levantem a servir a Deus Pois disto é que Deus se honra e agrada em presença de Jó Padre M Bernardes Sermões e Práticas 1ª ed de 1762 Parte I pág 297 Tomai exemplo estudantes e doutores tomai exem plo das estrelas da manhã e gozareis das mesmas vanta gens não só a de levantardes mais cedo a Deus a oração Rui Barbosa 43 do trabalho mas a de antecederdes aos demais logrando mais para vós mesmos e estimulando os outros a que vos rivalizem no ganho bendito Há estudar e estudar Há trabalhar e trabalhar Desde que o mundo é mundo se vem dizendo que o homem nasce para o trabalho Homo nascitur ad labo rem Mas o trabalhar é como o semear onde tudo vai muito das sazões dos dias e das horas O cérebro cansado e seco do laborar diurno não acolhe bem a semente não a recebe fresco e de bom grado como a terra orvalha da Nem a colheita acode tão suave às mãos do lavrador quando o torrão já lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os alvores do dia Jó V 7 Assim todos sabem que para trabalhar nascemos Mas muitos somos os que ignoramos certas condições talvez as mais elementares do trabalho ou pelo menos mui poucos os que as praticamos Quantos serão os que acreditam que os melhores trabalhadores sejam os melho res madrugadores que os mais estudiosos não sejam os que oferecem ao estudo os sobejos do dia mas os que o honram com as primícias da manhã 44 Oração aos Moços Dirão que tais trivialidades cediças e corriqueiras não são para contempladas num discurso acadêmico nem para escutadas entre doutores lentes e sábios Cada um se avém como entende e faz o que pode Mas eu nisto aqui faço ainda o que devo Porque vindo pregarvos experi ência cumpria que relevasse mais a que mais sobressai na minha estirada carreira de estudante Estudante sou Nada mais Mau sabedor fraco ju rista mesquinho advogado pouco mais sei do que saber estudar saber como se estuda e saber que tenho estudado Nem isso mesmo sei se saberei bem Mas do que tenho logrado saber o melhor devo às manhãs e madrugadas Muitas lendas se têm inventado por aí sobre excessos da minha vida laboriosa Deram nos meus progressos inte lectuais larga parte ao uso em abuso do café e ao estímulo habitual dos pés mergulhados nágua fria Contos de imagi nadores Refratário sou ao café Nunca recorri a ele como a estimulante cerebral Nem uma só vez na minha vida bus quei num pedilúvio o espantalho do sono Ao que devo sim o mais dos frutos do meu tra balho a relativa exabundância da sua fertilidade a parte produtiva e durável da sua safra é às minhas madruga das Menino ainda assim que entrei ao colégio alvidrei eu mesmo a conveniência desse costume e daí avante o Rui Barbosa 45 observei sem cessar toda a vida Eduquei nele o meu cé rebro a ponto de espertar exatamente à hora que comi go mesmo assentara ao dormir Sucedia muito amiúde encetar eu a minha solitária banca de estudo à uma ou às duas da antemanhã Muitas vezes me mandava meu pai volver ao leito e eu fazia apenas que lhe obedecia tornan do logo após àquelas amadas lucubrações as de que me lembro com saudade mais deleitosa e entranhável Tenho ainda hoje convicção de que nessa obser vância persistente está o segredo feliz não só das minhas primeiras vitórias no trabalho mas de quantas vantagens alcancei jamais levar aos meus concorrentes em todo o andar dos anos até à velhice Muito há que já não sub traio tanto às horas da cama para acrescentar às do estu do Mas o sistema ainda perdura bem que largamente cerceado nas antigas imoderações Até agora nunca o sol deu comigo deitado e ainda hoje um dos meus raros e modestos desvanecimentos é o de ser grande madrugador madrugador impenitente Mas senhores os que madrugam no ler convém madrugarem também no pensar Vulgar é o ler raro o re fletir O saber não está na ciência alheia que se absorve mas principalmente nas ideias próprias que se geram dos conhecimentos absorvidos mediante a transmutação 46 Oração aos Moços por que passam no espírito que os assimila Um sabedor não é armário de sabedoria armazenada mas transforma dor reflexivo de aquisições digeridas Já se vê quanto vai do saber aparente ao saber real O saber de aparência crê e ostenta saber tudo O saber de realidade quanto mais real mais desconfia assim do que vai aprendendo como do que elabora Haveis de conhecer como eu conheço países onde quanto menos ciência se apurar mais sábios florescem Há sim dessas regiões por este mundo além Um homem nessas terras de promissão que nunca se mostrou lido ou sabido em coisa nenhuma tido e havido é por corrente e moente no que quer que seja porque assim o aclamam as trombetas da política do elogio mútuo ou dos corrilhos pessoais e o povo subscreve a néscia atoarda Financei ro administrador estadista chefe de Estado ou qualquer outro lugar de ingente situação e assustadoras responsabi lidades é a pedir de boca o que se diz mão de pronto de sempenho fórmula viva a quaisquer dificuldades chave de todos os enigmas Tenham por averiguado que onde quer que o co locarem dará conta o sujeito das mais árduas empresas e solução aos mais emaranhados problemas Se em nada se Rui Barbosa 47 aparelhou está em tudo e para tudo aparelhado Ninguém vos saberá informar por quê Mas todo o mundo volo dará por líquido e certo Não aprendeu nada e sabe tudo Ler não leu Escrever não escreveu Ruminar não rumi nou Produzir não produziu É um improviso onisciente o fenômeno de que poetava Dante In picciol tempo gran dottor si feo Paradiso XII 85 Em pouco tempo grão doutor se fez A esses homenspanaceias a esses empreiteiros de todas as empreitadas a esses aviadores de todas as enco mendas se escancelam os portões da fama do poderio da grandeza e não contentes de lhes aplaudir entre os da terra a nulidade ainda quando Deus quer a mandam expor à admiração do estrangeiro Pelo contrário os que se tem por notório e incon testável excederem o nível da instrução ordinária es ses para nada servem Por quê Porque sabem demais Sustentase aí que a competência reside justamente na incompetência Vaise até ao incrível de se inculcar o medo aos preparados de havêlos como cidadãos peri gosos e terse por dogma que um homem cujos estudos 48 Oração aos Moços passarem da craveira vulgar não poderia ocupar qualquer posto mais grado no governo em país de analfabetos Se o povo é analfabeto só ignorantes estarão em termos de o governar Nação de analfabetos governo de analfabetos É o que eles muita vez às escâncaras e em letra redonda por aí dizem Sócrates certo dia numa das suas conversações que o Primeiro Alcibíades nos deixa escutar ainda hoje dava grande lição de modéstia ao interlocutor dizendolhe com a costumada lhaneza A pior espécie de ignorância é cuidar uma pessoa saber o que não sabe Tal meu caro Alcibíades o teu caso Entraste pela política antes de a teres estudado E não és tu só o que te vejas nessa condi ção é esta mesma a da mor parte dos que se metem nos negócios da república Apenas excetuo exíguo número e pode ser que unicamente a Péricles teu tutor porque tem cursado os filósofos Vede agora os que intentais exercitarvos na ciên cia das leis e vir a ser seus intérpretes se de tal jeito é que conceberíeis sabelas e executálas Desse jeito isto é como as entendiam os políticos da Grécia pintada pelo mestre de Platão Rui Barbosa 49 Uma vez que Alcibíades discutia com Péricles em palestra registrada por Xenofonte acertou de se debater o que seja lei e quando exista ou não exista Que vem a ser lei indaga Alcibíades A expressão da vontade do povo responde Péricles Mas que é o que determina esse povo O bem ou o mal replicalhe o sobrinho Certo que o bem mancebo Mas sendo uma oligarquia quem mande isto é um diminuto número de homens serão ainda assim respeitáveis as leis Sem dúvida Mas se a disposição vier de um tirano Se ocor rer violência ou ilegalidade Se o poderoso coagir o fraco Cumprirá todavia obedecer Péricles hesita mas acaba admitindo Creio que sim Mas então insiste Alcibíades o tirano que constrange os cidadãos a lhe acatarem os caprichos não será esse sim o inimigo das leis 50 Oração aos Moços Sim vejo agora que errei em chamar leis às or dens de um tirano costumado a mandar sem persuadir Mas quando um diminuto número de cidadãos impõe seus arbítrios à multidão daremos ou não a isso o nome de violência Pareceme a mim concede Péricles cada vez mais vacilante que em caso tal é de violência que se trata não de lei Admitido isso já Alcibíades triunfa Logo quando a multidão governando obrigar os ricos sem consenso destes não será também violência e não lei Péricles não acha que responder e a própria razão não o acharia Não é lei a lei senão quando assenta no consentimento da maioria já que exigido o de todos desiderandum irrealizável não haveria meio jamais de se chegar a uma lei Ora senhores bacharelandos pesai bem que vos ides consagrar à lei num país onde a lei absolutamen te não exprime o consentimento da maioria onde são as minorias as oligarquias mais acanhadas mais impo pulares e menos respeitáveis as que põem e dispõem as Rui Barbosa 51 que mandam e desmandam em tudo a saber num país onde verdadeiramente não há lei não o há moral polí tica ou juridicamente falando Considerai pois nas dificuldades em que se vão enleiar os que professam a missão de sustentáculos e auxi liares da lei seus mestres e executores É verdade que a execução corrige ou atenua muitas vezes a legislação de má nota Mas no Brasil a lei se deslegitima anula e torna inexistente não só pela bas tardia da origem senão ainda pelos horrores da aplicação Ora dizia S Paulo que boa é a lei onde se executa legitimamente Bona est lex si quis ea legitime utatur Quereria dizer Boa é a lei quando executada com retidão Isto é boa será em havendo no executor a virtude que no legislador não havia Porque só a moderação a inteireza e a equidade no aplicar das más leis as poderiam em certa me dida escoimar da impureza dureza e maldade que encerra rem Ou mais lisa e claramente se bem o entendo preten deria significar o apóstolo das gentes que mais vale a lei má quando inexecutada ou mal executada para o bem que a boa lei sofismada e não observada contra ele S Paulo I Tim I 8 52 Oração aos Moços Que extraordinário que imensurável que por as sim dizer estupendo e sobrehumano logo não será em tais condições o papel da justiça Maior que o da pró pria legislação Porque se dignos são os juízes como par te suprema que constituem no executar das leis em sendo justas lhes manterão eles a sua justiça e injustas lhes poderão moderar se não até no seu tanto corrigir a injustiça De nada aproveitam leis bem se sabe não existindo quem as ampare contra os abusos e o amparo sobre todos essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder quanto na sua missão Aí temos as leis dizia o Florentino Mas quem lhes há de ter mão Ninguém Le leggi son ma chi pon mano ad esse Nullo Dante Purgatório XVI 9798 Entre nós não seria lícito responder assim tão em absoluto à interrogação do poeta Na Constituição bra sileira a mão que ele não via na sua república e em sua época a mão sustentadora das leis aí a temos hoje cria da e tão grande que nada lhe iguala a majestade nada lhe rivaliza o poder Entre as leis aqui entre as leis ordinárias Rui Barbosa 53 e a lei das leis é a justiça quem decide fulminando aque las quando com esta colidirem Soberania tamanha só nas federações de molde norteamericano cabe ao poder judiciário subordinado aos outros poderes nas demais formas de governo mas nesta superior a todos Dessas democracias pois o eixo é a justiça eixo não abstrato não supositício não meramente moral mas de uma realidade profunda e tão seriamente implantado no mecanismo do regímen tão praticamente embebido através de todas as suas peças que falseando ele ao seu mister todo o sistema cairá em paralisia desordem e sub versão Os poderes constitucionais entrarão em conflitos insolúveis as franquias constitucionais ruirão por terra e da organização constitucional do seu caráter das suas funções das suas garantias apenas restarão destroços Eis o de que nos há de preservar a justiça brasileira se a deixarem sobreviver ainda que agredida oscilante e mal segura aos outros elementos constitutivos da repúbli ca no meio das ruínas em que mal se conservam ligeiros traços da sua verdade Ora senhores esse poder eminencialmente necessá rio vital e salvador tem os dois braços nos quais aguenta a 54 Oração aos Moços lei em duas instituições a magistratura e a advocacia tão velhas como a sociedade humana mas elevadas ao cem dobro na vida constitucional do Brasil pela estupenda importância que o novo regímen veio dar à justiça Meus amigos é para colaborardes em dar existên cia a essas duas instituições que hoje saís daqui habilita dos Magistrados ou advogados sereis São duas carreiras quase sagradas inseparáveis uma da outra e tanto uma como a outra imensas nas dificuldades responsabilidades e utilidades Se cada um de vós meter bem a mão na consciên cia certo que tremerá da perspectiva O tremer próprio é dos que se defrontam com as grandes vocações e são talhados para as desempenhar O tremer mas não o des corçoar O tremer mas não o renunciar O tremer com o ousar O tremer com o empreender O tremer com o confiar Confiai senhores Ousai Reagi E haveis de ser bemsucedidos Deus pátria e trabalho Metei no regaço essas três fés esses três amores esses três signos santos E segui com o coração puro Não hajais medo a que a sorte vos ludibrie Mais pode que os seus azares a constância a coragem e a virtude Rui Barbosa 55 Idealismo Não experiência da vida Não há for ças que mais a senhoreiem do que essas Experimentaio como eu o tenho experimentado Poderá ser que resigneis certas situações como eu as tenho resignado Mas mera mente para variar de posto e em vos sentindo incapazes de uns buscar outros onde vos venha ao encontro o de ver que a Providência vos haja reservado Encarai jovens colegas meus nessas duas estra das que se vos patenteiam Tomai a que vos indicarem vossos pressentimentos gostos e explorações no cam po dessas nobres disciplinas com que lida a ciência das leis e a distribuição da justiça Abraçai a que vos sentirdes indicada pelo conhecimento de vós mesmos Mas não primeiro que hajais buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é mister e que ainda não tendes para eleger a melhor derrota entre as duas que se oferecem à carta de idoneidade hoje obtida Pelo que me toca escassamente avalio até onde nis so vos pode ria eu ser útil Muito vi em cinquenta anos Mas o que constitui a experiência consiste menos no ver que no saber observar Observar com clareza com desin teresse com seleção Observar deduzindo induzindo e generalizando com pausa com critério com desconfian ça Observar apurando contrasteando e guardando 56 Oração aos Moços Que espécie de observador seja eu não volo po deria dizer Mas seguro ou não no averiguar e discernir de uma qualidade ao menos me posso abonar a mim mesmo a de exato e consciencioso no expender e narrar Como me dilataria porém numa ou noutra coisa quando tão longamente aqui já me tenho excedido em abusar de vós e de mim mesmo Não recontarei pois senhores a minha experiên cia e muito menos tentarei explanála Cingirmeei es tritamente a falarvos como falaria a mim próprio se vós estivésseis em mim sabendo o que tenho experimentado e eu me achasse em vós tendo que resolver essa escolha Todo pai é conselheiro natural Todos os pais acon selham se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos seus conselhos Os meus serão os a que me julgo obri gado na situação em que momentaneamente estou pelo vosso arbítrio de pai espiritual dos meus afilhados em Le tras nesta solenidade É à magistratura que vos ides votar Elegeis então a mais eminente das profissões a que um homem se pode entregar neste mundo Essa ele vação me impressiona seriamente de modo que não sei se Rui Barbosa 57 a comoção me não atalhará o juízo ou tolherá o discurso Mas não se dirá que em boa vontade fiquei aquém dos meus deveres Serão talvez meras vulgaridades tão singelas quão sabidas mas onde o senso comum a moral e o direito associandose experiência lhe nobilitam os ditames Vul garidades que qualquer outro orador se avantajaria em esmaltar de melhor linguagem mas que na ocasião a mim tocam e no meu ensoado vernáculo hão de ser ditas Baste porém que se digam com isenção com firmeza com lealdade e assim hão de ser ditas hoje desta nobre tribuna Moços se vos ides medir com o direito e o crime na cadeira de juízes começai esquadrinhando as exigências apa rentemente menos altas dos vossos cargos e propondevos ca prichar nelas com dobrado rigor porque para sermos fiéis no muito o devemos ser no pouco Qui fidelis est in minimo et in majori fidelis est et qui in modico iniquus est et in majori iniquus est Lucas XVI 10 Quem é fiel nas coisas mínimas também o é nas maiores e quem é injusto nas coisas mé dias também o é nas maiores 58 Oração aos Moços Ponho exemplo senhores Nada se leva em menos conta na judicatura a uma boa fé de ofício que o vezo de tardança nos despachos e sentenças Os códigos se can sam debalde em o punir Mas a geral habitualidade e a conivência geral o entretêm inocentam e universalizam Destarte se incrementa e desmanda ele em proporções in calculáveis chegando as causas a contar a idade por lus tros ou décadas em vez de anos Mas justiça atrasada não é justiça senão injustiça qualificada e manifesta Porque a dilação ilegal nas mãos do julgador contraria o direito escrito das partes e assim as lesa no patrimônio honra e liberdade Os juízes tardi nheiros são culpados que a lassidão comum vai toleran do Mas sua culpa tresdobra com a terrível agravante de que o lesado não tem meio de reagir contra o delinquente poderoso em cujas mãos jaz a sorte do litígio pendente Não sejais pois desses magistrados nas mãos de quem os autos penam como as almas do purgatório ou arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato Não vos pareçais com esses outros juízes que com tabuleta de escrupulosos imaginam em risco a sua boa fama se não evitarem o contato dos pleiteantes Rui Barbosa 59 recebendoos com má sombra em lugar de os ouvir a todos com desprevenção doçura e serenidade Não imiteis os que em se lhes oferecendo o mais leve pretexto a si mesmos põem suspeições rebuscadas para esquivar responsabilidades que seria do seu dever ar rostar sem quebra de ânimo ou de confiança no prestígio dos seus cargos Não sigais os que argumentam com o grave das acusações para se armarem de suspeita e execração con tra os acusados como se pelo contrário quanto mais odiosa a acusação não houvesse o juiz de se precaver mais contra os acusadores e menos perder de vista a pre sunção de inocência comum a todos os réus enquanto não liquidada a prova e reconhecido o delito Não acompanheis os que no pretório ou no júri se convertem de julgadores em verdugos torturando o réu com severidades inoportunas descabidas ou indecentes como se todos os acusados não tivessem direito à proteção dos seus juízes e a lei processual em todo o mundo civi lizado não houvesse por sagrado o homem sobre quem recai acusação ainda inverificada Não estejais com os que agravam o rigor das leis para se acreditar com o nome de austeros e ilibados 60 Oração aos Moços Porque não há nada menos nobre e aplausível que agen ciar uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verdadeira inteligência dos textos legais Não julgueis por considerações de pessoas ou pelas do valor das quantias litigadas negando as somas que se pleiteiam em razão da sua grandeza ou escolhendo entre as partes na lide segundo a situação social delas seu po derio opulência e conspicuidade Porque quanto mais ar mados estão de tais armas os poderosos mais inclinados é de receiar que sejam à extorsão contra os menos ajudados da fortuna e por outro lado quanto maiores são os valo res demandados e maior portanto a lesão arguida mais grave iniquidade será negar a reparação que se demanda Não vos mistureis com os togados que contraíram a doença de achar sempre razão ao Estado ao Governo à Fa zenda por onde os condecora o povo com o título de fazen deiros Essa presunção de terem de ordinário razão contra o resto do mundo nenhuma lei a reconhece à Fazenda ao Governo ou ao Estado Antes se admissível fosse aí qualquer presun ção havia de ser em sentido contrário pois essas enti dades são as mais irresponsáveis as que mais abundam em meios de corromper as que exercem as perseguições Rui Barbosa 61 administrativas políticas e policiais as que demitindo funcionários indemissíveis rasgando contratos solenes consumando lesões de toda a ordem por não serem os perpetradores de tais atentados os que os pagam acu mulam continuamente sobre o Tesoiro público terríveis responsabilidades No Brasil durante o Império os liberais tinham por artigo do seu programa cercear os privilégios já es pantosos da Fazenda Nacional Pasmoso é que eles sob a República se cemdobrem ainda conculcandose até a Constituição em pontos de alto melindre para assegurar ao Fisco esta situação monstruosa e que ainda haja quem sobre todas essas conquistas lhe queira granjear a de um lugar de predileções e vantagens na consciência judiciária no foro íntimo de cada magistrado Magistrados futuros não vos deixeis contagiar de contágio tão maligno Não negueis jamais ao Erário à Administração à União os seus direitos São tão inviolá veis como quaisquer outros Mas o direito dos mais mise ráveis dos homens o direito do mendigo do escravo do criminoso não é menos sagrado perante a justiça que o do mais alto dos poderes Antes com os mais miseráveis é que a justiça deve ser mais atenta e redobrar de escrú pulo porque são os mais mal defendidos os que suscitam 62 Oração aos Moços menos interesse e os contra cujo direito conspiram a infe rioridade na condição com a míngua nos recursos Preservai juízes de amanhã preservai vossas almas juvenis desses baixos e abomináveis sofismas A ninguém importa mais do que à magistratura fugir do medo esqui var humilhações e não conhecer cobardia Todo o bom magistrado tem muito de heroico em si mesmo na pureza imaculada e na plácida rigidez que a nada se dobre e de nada se tema senão da outra justiça assente cá embaixo na consciência das nações e culminante lá em cima no juízo divino Não tergiverseis com as vossas responsabilidades por mais atribulações que vos imponham e mais perigos a que vos exponham Nem receieis soberanias da terra nem a do povo nem a do poder O povo é uma torrente que rara vez se não deixa conter pelas ações magnânimas A intrepidez do juiz como a bravura do soldado o arre batam e fascinam Os governos investem contra a justiça provocam e desrespeitam a tribunais mas por mais que lhes espumem contra as sentenças quando justas não te rão por muito tempo a cabeça erguida em ameaça ou desobediência diante dos magistrados que os enfrentem com dignidade e firmeza Rui Barbosa 63 Os presidentes de certas repúblicas são às vezes mais intolerantes com os magistrados quando lhes resistem como devem do que os antigos monarcas absolutos Mas se os chefes das democracias de tal jaez se esquecem do seu lugar até o extremo de se haverem quando lhes pica o or gulho com os juízes vitalícios e inamovíveis de hoje como se haveriam com os ouvidores e desembargadores delRei Nosso Senhor frágeis instrumentos nas mãos de déspotas coroados cumpre aos amesquinhados pela jactância des sas rebeldias ter em mente que instituindoos em guardas da Constituição contra os legisladores e da lei contra os go vernos esses pactos de liberdade não os revestiram de prer rogativas ultra majestáticas senão para que a sua autoridade não torça às exigências de nenhuma potestade humana Os tiranos e bárbaros antigos tinham por vezes mais compreensão real da justiça que os civilizados e de mocratas de hoje Haja vista a história que nos conta um pregador do século XVII A todo o que faz pessoa de juiz ou ministro dizia o orador sacro manda Deus que não considere na parte a razão de príncipe poderoso ou de pobre desvalido senão só a razão do seu próximo Bem praticou esta virtude Canuto rei dos Vândalos que mandando justiçar uma quadrilha de salteadores e pondo um deles embargos de 64 Oração aos Moços que era parente delRei respondeu Se provar ser nosso parente razão é que lhe façam a forca mais alta Levítico XIX 15 Pe M Bernardes Sermões Parte I págs 2634 Bom é que os bárbaros tivessem deixado lições tão inesperadas às nossas democracias Bem poderia ser que barbarizandose com esses modelos antepusessem elas enfim a justiça ao parentesco e nos livrassem da peste das parentelas em matérias de governo Como vedes senhores para me não chamarem a mim revolucionário ando a catar minha literatura de hoje nos livros religiosos Outro ponto dos maiores na educação do magis trado corar menos de ter errado que de se não emendar Melhor será que a sentença não erre Mas se cair em erro o peior é que se não corrija E se o próprio autor do erro o remediar tanto melhor porque tanto mais cresce com a confissão em crédito de justo o magistrado e tanto mais se soleniza a reparação dada ao ofendido Muitas vezes ainda teria eu de vos dizer Não fa çais não façais Mas já é tempo de cassar as velas ao dis curso Pouco agora vos direi Rui Barbosa 65 Não anteponhais o draconianismo à equidade Da dos a tão cruel mania ganharíeis com razão conceito de maus e não de retos Não cultiveis sistemas extravagâncias e singulari dades Por esse meio lucraríeis a néscia reputação de ori ginais mas nunca a de sábios doutos ou conscienciosos Não militeis em partidos dando à política o que deveis à imparcialidade Dessa maneira venderíeis as al mas e famas ao demônio da ambição da intriga e da ser vidão às paixões mais detestáveis Não cortejeis a popularidade Não transijais com as conveniências Não tenhais negócios em secretarias Não delibereis por conselheiros ou assessores Não deis votos de solidariedade com outros quem quer que sejam Fa zendo aos colegas toda a honra que lhes deverdes prestai lhes o crédito a que sua dignidade houver direito mas não tanto que delibereis só de os ouvir em matéria onde a confiança não substitua a inspeção direta Não prescin dais em suma do conhecimento próprio sempre que a prova terminante vos esteja ao alcance da vista e se ofere ça à verificação imediata do tribunal Por derradeiro amigos de minha alma por derra deiro a última a melhor lição da minha experiência De 66 Oração aos Moços quanto no mundo tenho visto o resumo se abrange nestas cinco palavras Não há justiça onde não haja Deus Quereríeis que volo demonstrasse Mas seria per der tempo se já não encontrastes a demonstração no es petáculo atual da terra na catástrofe da humanidade O gênero humano afundiuse na matéria e no oceano vio lento da matéria flutuam hoje os destroços da civiliza ção meio destruída Esse fatal excídio está clamando por Deus Quando ele tornar a nós as nações abandonarão a guerra e a paz então assomará entre elas a paz das leis e da justiça que o mundo ainda não tem porque ainda não crê À justiça humana cabe nessa regeneração papel essencial Assim o saiba ela honrar Trabalhai por isso os que abraçardes essa carreira com a influência da altíssima dignidade que do seu exercício recebereis Dela vos falei da sua grandeza e dos seus deveres com a incompetência de quem não a tem exercido Não tive a honra de ser magistrado Advogado sou há cin quenta anos e já agora morrerei advogado Rui Barbosa 67 É entretanto da advocacia no Brasil da minha profissão do que nela em experiência acumulei praticandoa que me não será dado agora tratar A exten são já demasiadíssima deste colóquio em desalinho não me consentiria acréscimo tamanho Mas que perdereis com tal omissão Nada Na missão do advogado também se desenvolve uma espécie de magistratura As duas se entrelaçam diversas nas funções mas idênticas no objeto e na resultante a justiça Com o advogado justiça militante Justiça impe rante no magistrado Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do advogado Nelas se encerra para ele a síntese de todos os mandamentos Não desertar a justiça nem cortejála Não lhe faltar com a fidelidade nem lhe recusar o conselho Não transfugir da legalidade para a violência nem tro car a ordem pela anarquia Não antepor os poderosos aos desvalidos nem recusar patrocínio a estes contra aqueles Não servir sem independência à justiça nem quebrar da verdade ante o poder Não colaborar em perseguições ou atentados nem pleitear pela iniquidade ou imoralidade Não se subtrair à defesa das causas impopulares nem à das perigosas quando justas Onde for apurável um grão que seja de verdadeiro direito não regatear ao atribulado 68 Oração aos Moços o consolo do amparo judicial Não proceder nas consul tas senão com imparcialidade real do juiz nas sentenças Não fazer da banca balcão ou da ciência mercatura Não ser baixo com os grandes nem arrogante com os mise ráveis Servir aos opulentos com altivez e aos indigentes com caridade Amar a pátria estremecer o próximo guar dar fé em Deus na verdade e no bem Senhores devo acabar Quando há cinquenta anos saía eu daqui na velha Paulicéia solitária e brumo sa como hoje saís da transfigurada metrópole do máxi mo Estado brasileiro bem outros eram este país e todo o mundo ocidental O Brasil acabava de varrer do seu território a inva são paraguaia e na América do Norte poucos anos antes a guerra civil limpara da grande república o cativeiro ne gro cuja agonia esteve a pique de a soçobrar despedaçada Eram dois prenúncios de uma alvorada que doirava os cimos do mundo cristão anunciando futuras vitórias da liberdade Mas ao mesmo tempo a invasão germânica alagava terras de França deixandoa violada traspassada no cora ção e cruelmente mutilada aos olhos secos e indiferentes Rui Barbosa 69 das outras potências e mais nações europeias grandes ou pequenas Ninguém percebeu que se estavam semeando o ca tiveiro e a subversão do mundo Daí a menos de cinquen ta anos aquela atroz exacerbação do egoísmo político envolvia culpados e inocentes numa série de convulsões tal que acreditaríeis haverse despejado o inferno entre as nações da terra dando ao inaudito fenômeno humano proporções quase capazes de representar na sua espanto sa imensidade um cataclismo cósmico Parecia estarse desmanchando e aniquilando o mundo Mas era a eter na justiça que se mostrava Era o velho continente que principiava a expiar a velha política desalmada mercantil e cínica dos Napoleões Metternichs e Bismarcks num ciclone de abominações inenarráveis que bem depressa abrangeria como abrangeu na zona das suas tremendas comoções os outros continentes e deixaria revolvido o orbe inteiro em tormentas catastróficas só Deus sabe por quantas gerações além dos nossos dias O Briareu do inexorável mercantilismo que explo rava a humanidade o colosso do egoísmo universal que durante um século assistira impassível à entronização dos cálculos dos governos sobre os direitos dos povos o rei nado ímpio da ambição e da força rolava e se desfazia 70 Oração aos Moços num desmoronamento pavoroso levando por aí a rojo impérios e dinastias reis domínios constituições e trata dos Mas a medonha intervenção dos poderes tenebrosos do nosso destino mal estava começada Ninguém poderia conjecturar ainda como e quando acabará Neste canto da terra o Brasil da hegemonia sul americana entreluzida com a guerra do Paraguai não cultivava tais veleidades ainda bem que hoje de todo em todo extintas Mas encetara uma era de aspirações jurídi cas e revoluções incruentas Em 1888 aboliu a proprieda de servil Em 1889 baniu a coroa e organizou a repúbli ca Em 1907 entrou pela porta de Haia ao concerto das nações Em 1917 alistouse na aliança da civilização para empenhar a sua responsabilidade e as suas forças navais na guerra das guerras em socorro do direito das gentes cujo código ajudara a organizar na Segunda Conferência da Paz Mas de súbito agora um movimento desvairado parece estarnos levando empuxados de uma corrente submarina a um recuo inexplicável Diríeis que o Brasil de 1921 tendesse hoje a repudiar o Brasil de 1917 Por quê Porque a nossa política nos descurou dos interes ses e ante isso delirando em acesso de frívolo despeito Rui Barbosa 71 iríamos desmentir a excelsa tradição tão gloriosa quão inteligente e fecunda Não senhores não seria possível Na resolução de 1917 o Brasil ascendeu à elevação mais alta de toda a nos sa história Não descerá Amigos meus não Compromissos daquela na tureza daquele alcance daquela dignidade não se re vogam Não convertamos uma questão de futuro em questão de relance Não transformemos uma questão de previdência em questão de cobiça Não reduzamos uma imensa questão de princípios a vil questão de interesses Não demos de barato a essência eterna da justiça por uma rasteira desavença de mercadores Não barganhe mos o nosso porvir a troco de um mesquinho prato de lentilhas Não arrastemos o Brasil ao escândalo de se dar em espetáculo à terra toda como a mais fútil das nações nação que à distância de quatro anos se desdissesse de um dos mais memoráveis atos de sua vida trocasse de ideias variasse de afeições mudasse de caráter e se rene gasse a si mesma Ó senhores não não e não Paladinos ainda ontem do direito e da liberdade não vamos agora mostrar os punhos contraídos aos irmãos com que comungávamos 72 Oração aos Moços há pouco nessa verdadeira cruzada Não percamos assim o equilíbrio da dignidade por amor de uma pendência de estreito caráter comercial ainda mal liquidada sobre a qual as explicações dadas à nação pelos seus agentes até esta data são inconsistentes e furtacores Não culpemos o estrangeiro das nossas decepções políticas no exterior antes de averiguarmos se os culpados não se achariam aqui mesmo entre os a quem se depara nestas cegas agi tações de ódio a outros povos a diversão mais oportuna dos nossos erros e misérias intestinas O Brasil em 1917 plantou a sua bandeira entre as da civilização nos mares da Europa Daí não se retro cede facilmente sem quebra da seriedade e do decoro senão dos próprios interesses Mais cuidado tivéssemos em tempo com os nossos nos conselhos da paz se neles quiséssemos brilhar melhor do que brilhamos nos atos da guerra e acabar sem contratempos ou dissabores Agora o que a política e a honra nos indicam é ou tra coisa Não busquemos o caminho de volta à situação colonial Guardemonos das proteções internacionais Acautelemonos das invasões econômicas Vigiemonos das potências absorventes e das raças expansionistas Não nos temamos tanto dos grandes impérios já sacia dos quanto dos ansiosos por se fazerem tais à custa dos Rui Barbosa 73 povos indefesos e malgovernados Tenhamos sentido nos ventos que sopram de certos quadrantes do céu O Bra sil é a mais cobiçável das presas e oferecida como está incauta ingênua inerme a todas as ambições tem de sobejo com que fartar duas ou três das mais formidáveis Mas o que lhe importa é que dê começo a governar se a si mesmo porquanto nenhum dos árbitros da paz e da guerra leva em conta uma nacionalidade adormecida e anemizada na tutela perpétua de governos que não esco lhe Um povo dependente no seu próprio território e nele mesmo sujeito ao domínio de senhores não pode almejar seriamente nem seriamente manter a sua independência para com o estrangeiro Eia senhores Mocidade viril Inteligência brasilei ra Nobre nação explorada Brasil de ontem e amanhã Dainos o de hoje que nos falta Mãos à obra da reivindicação de nossa perdida au tonomia mãos à obra da nossa reconstituição interior mãos à obra de reconciliarmos a vida nacional com as ins tituições nacionais mãos à obra de substituir pela verdade o simulacro político da nossa existência entre as nações Trabalhai por essa que há de ser a salvação nossa Mas não buscando salvadores Ainda vos podereis salvar a vós 74 Oração aos Moços mesmos Não é sonho meus amigos bem sinto eu nas pulsações do sangue essa ressurreição ansiada Oxalá não se me fechem os olhos antes de lhe ver os primeiros indí cios no horizonte Assim o queira Deus SENADO FEDERAL OraçãO aOs MOçOs OraçãO aOs MOçOs Rui BaRBosa Rui BaRBosa VOl 271