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Educação e Promoção em Saúde Você vê características semelhantes entre as ações do Movimento Popular em Saúde Mops e o trabalho dos Agentes Comunitários em Saúde Acs SciELO Books SciELO Livros SciELO Libros GERSCHMAN S A democracia inconclusa um estudo da reforma sanitária brasileira online 2nd ed Rio de Janeiro Editora FIOCRUZ 2004 270 p ISBN 9788575415375 httpsdoiorg1074769788575415375 All the contents of this work except where otherwise noted is licensed under a Creative Commons Attribution 40 International license Todo o conteúdo deste trabalho exceto quando houver ressalva é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 40 Todo el contenido de esta obra excepto donde se indique lo contrario está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 40 A democracia inconclusa um estudo da reforma sanitária brasileira Silvia Gerschman A Democracia Inconclusa um estudo da Reforma Sanitária brasileira cap1pmd 872011 1028 1 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Ernani Gadelha Vieira VicePresidente de Ensino Informação e Comunicação Nísia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora Nísia Trindade Lima Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Gilberto Hochman Ricardo Ventura Santos Conselho Editorial Ana Lúcia Teles Rabello Armando de Oliveira Schubach Carlos E A Coimbra Jr Gerson Oliveira Penna Joseli Lannes Vieira Ligia Vieira da Silva Maria Cecília de Souza Minayo cap1pmd 872011 1028 2 2ª edição A Democracia Inconclusa Silvia Gerschman um estudo da Reforma Sanitária brasileira cap1pmd 872011 1028 3 Copyright 2004 da autora Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ EDITORA ISBN 8585676205 1a Reimpressão 2011 Colaboraram na 2ª edição Capa Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Carlota Rios Imagem da capa Blue 3 de Georgia OKeeffe 1916 The Brooklyn Museum N York Revisão e copidesque Marcionílio Cavalcanti de Paiva Digitação Gislene Monteiro Coimbra Catalogação na fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca G381d Gerschman Silvia A Democracia lnconclusa um estudo da Reforma Sanitária brasileira Silvia Gerschman 2 ed Rio de Janeiro Fiocruz 2004 272 p 1 Refoma Sanitária Brasil 2 Política de Saúde Brasil CDD20 ed 362 10680981 2011 EDITORA FIOCRUZ Av Brasil 4036 Térreo sala 112 Manguinhos 21041361 Rio de Janeiro RJ Tels 21 38829039 38829041 Telefax 21 38829006 httpwwwfiocruzbr email editorafiocruzbr cap1pmd 872011 1028 4 À minha filha Mariana companheira de todas as jornadas cap1pmd 872011 1028 5 PREFÁCIO 9 APRESENTAÇÃO 13 PPPPPARTE ARTE ARTE ARTE ARTE I I I I I 1 A Construção da Democracia algumas questões históricas e teóricas 29 2 O Processo de Reformulação do Setor Saúde os atores as estratégias e o papel dos organismos estatais 53 3 Os Movimentos Sociais em Saúde questões teórico metodológicas para sua abordagem 67 PPPPPARTE ARTE ARTE ARTE ARTE II II II II II 4 O Movimento Popular em Saúde 89 5 O Movimento Médico composição e trajetória 135 PPPPPARTE ARTE ARTE ARTE ARTE III III III III III 6 O Processo de Implementação da Reforma Sanitária 179 7 A Descentralização do Sistema de Saúde 237 8 Os Conselhos de Saúde 237 CONCLUSÃO 249 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 265 Sumário cap1pmd 872011 1028 7 9 É relativamente recente o estudo explícito e sistemático da democratiza ção ou seja dos processos pelos quais os regimes políticos transitam de dife rentes formas de autocracia e tentam consolidar algum tipo de democracia Tal estudo foi muito estimulado pelo grande número de mudanças de regime ocor ridas desde 1974 quando Portugal foi o primeiro a derrubar sua prolongada ditadura Nas duas décadas e meia seguintes quase 50 países seguiram esse caminho Não há um só continente que não tenha sido afetado por essa onda de democratização e há poucas autocracias remanescentes que de alguma forma não foram por ela ameaçadas A ditadura militar que governou o Brasil a partir de 1964 foi uma das primei ras da América Latina a mostrar algum sinal de desejo de pelo menos liberalizar suas instituições e práticas Já em 1979 o novo Presidente do País general João Baptista de Oliveira Figueiredo tinha a intenção de apoiar uma abertura na vida política brasileira com o propósito não acompanhado porém de um calendá rio específico de fazer com que o Brasil retornasse à democracia Esse retrospecto revela que a transição brasileira foi uma das mais protela das e controladas Passaramse mais de dez anos até que um chefe do Executivo popularmente responsável assumisse o poder e a perspectiva de uma retomada do poder ditatorial declinasse significativamente Durante todo esse período os militares e seus aliados civis permaneceram firmemente no poder e controla ram intimamente tanto o ritmo quanto o conteúdo das formas políticas A abertura permitiu uma substancial mobilização da sociedade civil e isso sem dúvida teve algum impacto sobre a decisão final de se aceitarem práticas democráticas Não obstante a grande campanha popular para a realização de eleições diretas para a Presidência em 1985 foi facilmente suprimida Sobre Prefácio cap1pmd 872011 1028 9 1 0 isso não há provas de que os governantes militares brasileiros tenham sido compelidos a fazer concessões explícitas muito menos a se engajarem em pac tos com elementos de oposição Isso contrasta fortemente com o caso da Argentina onde a derrota na Guerra das Malvinas conduziu a um rápido e incontrolável colapso do ancien régime e com o do Uruguai e do Chile onde derrotas não previstas em plebiscitos forçaram os ditadores militares a negociar uma retirada do poder com os partidos de oposição Tudo isso torna a pesquisa de Silvia Gerschman mais desafiadora No caso do Brasil o processo contemporâneo de democratização foi incomumente gradual e parcial Não houve momentos definitivos ou períodos concentrados de ruptura com a autocracia anterior Instituições e práticas assim como as relações de poder que as cercam mudaram apenas perifericamente em ritmos muito diferentes entre si O tema de sua escolha política de saúde não foi particularmente destacado dentro do processo global de democratização em bora tenha sido afetado em grande parte de modo indireto pelas transforma ções que se evidenciaram nas eleições nos partidos políticos na liberdade de associação na elaboração da Constituição e na responsabilidade accountability das ações do Executivo Contudo em pelo menos três aspectos a autora foi além dos limites usuais do que ficou conhecido como transitologia e consolidologia pesquisou profundamente numa arena essencial e específica a política de saúde quando virtualmente toda a literatura existente sobre democratiza ção concentravase exclusivamente em temas referentes a procedimentos e escolhas institucionais que supostamente afetam todas as arenas da política desviou o foco de atenção de uma preocupação exclusiva com mudanças em nível nacional para o impacto dessas mudanças sobre grupos profissi onais específicos sobre unidades territoriais nacionais isto é sobre o Mo vimento Médico e sobre alguns municípios distribuídos pelo Brasil forçou os analistas da transição e consolidação a dar atenção não apenas à tomada de grandes decisões de política mas também à sua implementação em setores e locais específicos também chamando atenção para as mu danças de micro e médio níveis necessárias para tornar a democratização efetiva para os cidadãos cap1pmd 872011 1028 10 1 1 O produto final é uma importante contribuição para a compreensão não apenas da substância da transição particularmente prolongada e controlada no Brasil mas também do processo pelo qual a democratização pode ter impacto sobre específico setor da política e afetar a vida diária dos cidadãos numa am pla gama de países Silvia reuniu três níveis cruciais de análise para sustentar a explanação de um processo políticosocial complexo o nível de democratiza ção do regime o nível intermediário de atores coletivos e dos movimentos sociais e o nível diferenciado de uma área de política com implicações de longo prazo para a estabilidade de uma política democrática de um economia produ tiva e de uma sociedade justa ou seja a saúde de sua população Infelizmente que eu conheça não há estudos comparáveis sobre quaisquer dos cerca de 50 países que tentaram mudanças de regime dessa ordem Nós em Stanford tivemos o privilégio de ter Silvia Gerschman conosco por um longo período como pesquisadora convidada Aqui e ali em sua análi se podese sentir o impacto de sua estada em nossa companhia Em várias ocasiões em palestras conferências e seminários Silvia discutiu seu projeto com outros pesquisadores do Centro de Estudos LatinoAmericanos The Center for Latin American Studies CLAS e também nos influenciou por suas idéias e pelo seu entusiasmo Pessoalmente fiquei especialmente impressionado com o modo pelo qual conseguiu expIorar minha noção de regimes parciais e aplicála de forma criativa ao setor de política de saúde em sua conclusão O substancial de seu esforço porém foi realizado no Brasil num difícil processo de pesquisa de campo Reuniu dados primários de uma variedade de fontes documentais realizou entrevistas com atores relevantes e ainda reconstituiu uma história complexa a partir de elementos em diversos níveis de agregação no transcorrer de um longo período O tempo despendido em Stanford foi constru tivamente gasto num esforço de colocar seu estudo de caso num contexto teórico e comparativo mais amplo mas o trabalho realmente difícil dependeu de uma sistemática e longa compilação anterior de dados relevantes e precisos O que a autora descreve como o caminho das pedras não teve início nas reuniões em minha sala começou muito antes nos arquivos e gabinetes de muitas instituições brasileiras públicas e privadas Como alguém que há muito anos passou pela mesma experiência de pesquisa de campo posso testemunhar pessoalmente quão frustrante e excitante pode ser reunir dados originais no Brasil Há poucos países no mundo onde tão pouco está à disposição dos pesquisadores para a compreensão de processos políticos e sociais e onde tanto cap1pmd 872011 1028 11 1 2 pode ser conseguido com a ajuda dos atores políticos e sociais envolvidos nestes Silvia Gerschman sentiu e explorou esse paradoxo e todos nós temos essa dívida com ela Philippe C Schmitter Universidade de Stanford cap1pmd 872011 1029 12 1 3 A versão original do livro foi resultado de uma reflexão marcada pela conjuntura política de fins da década de 80 e início da de 90 A rapidez das mudanças globais após a primeira metade da década de 90 porém requer uma contextualização que permita retomar as questões e desafios que a reformulação da política de saúde trouxe ao cenário da democracia brasileira Os dez anos que nos encaminharam ao pulo do próximo século falam de um mundo em acelerada e vertiginosa transformação em todos os campos da realidade e do que fazer humano esse clima e essa sensação do fugaz marcam a apresentação da reedição de A Democracia Inconclusa No novo milênio a democracia está fortemente ameaçada Nos países de industrialização avançada o Welfare State vem atravessando uma longa crise que já leva quase 20 anos alimentada na década de 90 pelo processo de globalização da economia predominância do mercado face ao Estado profundas mudan ças no mundo do trabalho e fortes tendências à concentração econômica movi da pelo capital financeiro que se tornou o eixo do processo de acumulação capitalista Gerschman Vianna 1997 As políticas sociais dos Estados democráticos após a Segunda Guerra passaram a ser centrais na atividade política e econômica desses países A busca de um maior bemestar e igualdade constituiuse em mecanismo central de uma política econômica que sofreu nos anos 90 um forte retrocesso As democra cias avançadas passaram a sacrificar a política econômica que marcou o Estado keynesiano restringindo e monetarizando benefícios que sob o Welfare State eram usufruídos claramente como uma condição do exercício do direito de cidadania Cabe ressaltar que uma parte importante da bibliografia que nos últimos anos vem discutindo o caráter da crise Vianna 1998 King 1988 Pierson 1994 destaca que embora as bases sobre as quais se estabeleceu o Welfare Apresentação cap1pmd 872011 1029 13 1 4 uma forte classe operária organizada e demandante tenham sido afetadas com o desemprego e a flexibilização dos contratos de trabalho esse enfraquecimento não foi suficiente para permitir o desmonte dos Welfare States europeus Assim acreditase que seja mais adequado se referir à crise como processo de profundas mudanças nos Estados de bemestar europeus através da readequação dos gastos do Estado e de um maior controle sobre benefícios Esse processo afetou com mais intensidade os importantes contingentes de imigrantes dos países pobres que chegaram sem nenhum tipo de proteção social sem condições de serem absorvidos por um mercado de trabalho em franco retrocesso nos países ricos e portanto não incorporados ao sistema de seguridade social Mudou assim a geografia humana desses países tornando as desigualda des sociais um problema que se acreditava erradicado sob o predomínio do Es tado keynesiano que aproxima de maneira tortuosa os países ricos dos pobres Com o Estado neoliberal a democracia se tornou tão errática quanto as restantes produções da era da globalização as guerras a perda dos valores rela cionados à existência humana a degradação ética a devastação da natureza no planeta a falta de comunicação humana globalizada No que se refere à demo cracia a volatilidade diz respeito a alguma condição ou conjunto de condições que de uma parte fogem das mãos dos governantes na medida em que as políticas econômicas são as mesmas para todos os países e de outra da própria sociedade já que a capacidade que esta tem de influenciar os governos eleitos é quase nula Maier 1994 Assim cada vez mais a democracia é esvaziada de representatividade dado o abismo existente entre cidadãos e governo sendo a resposta da sociedade o desinteresse e a perda de confiança na democracia nos partidos e mais do que tudo nos políticos Na América Latina e no Brasil que atravessaram longos períodos autoritá rios o desempenho das democracias na década de 90 tem deixado um forte ranço de ineficiência e corrupção no exercício dos cargos públicos e também profundas desigualdades sociais relacionadas aos cortes importantes em políti cas sociais Os comportamentos políticos já mencionados marcaram também as novas democracias contribuindo para um sintomático crescimento dos votos nulos e em branco e conseqüentemente para um notável esvaziamento eleitoral Nesses países hoje chamados pobres ou se poderia dizer submersos em processos de busca permanente de um desenvolvimento industrial que não chega de maneira plena a década de 80 representou em particular para o Brasil uma época de esperanças A transição à democracia foi depositária de novas cap1pmd 872011 1029 14 1 5 perspectivas de crescimento econômico com justiça social que acompanhariam a cena política democrática aproximando finalmente a América Latina das socialdemocracias européias Foi o que ocorreu em relação à política de saúde em especial por ter sido a Reforma Sanitária fundada no direito universal à saúde e incorporada à Cons tituição de 1988 Mesmo com o retrocesso sofrido pelas políticas sociais essa particular política social permaneceu na agenda dos governos O processo foi extensamente analisado em A Democracia Inconclusa através do estudo da transi ção à democracia no Brasil das bases sociais de apoio à Reforma Sanitária das mudanças organizacionais que se operaram nas instituições estatais de saúde e do processo de descentralização eixo central na implementação das mudanças políticas do setor Assim os projetos de políticas sociais montados no final dos anos 80 espe cialmente no setor da saúde apoiados na noção de direito universal tiveram na década de 90 um cenário de implementação profundamente adverso A demo cracia durante esse período sofreu importantes abalos também tratados no livro No que se refere ao primeiro governo eleito democraticamente observouse que o andamento na implementação da política de saúde atravessou dilações empeci lhos e alterações dos princípios constitucionais relativos ao setor No início do novo século com a continuidade das políticas neoliberais constatamse resultados funestos em termos de aumento da pobreza da vio lência urbana da criminalidade ligada ao tráfico de drogas da extensão da repressão às populações periféricas das cidades e da população presidiária pa ralelamente ao crescimento da corrupção nas forças policiais e nas altas esferas do governo A saúde da população viuse afetada negativamente mais forte mente nos estratos de baixa renda reaparecendo doenças tais como o dengue tratada aqui como uma epidemia que assolou o estado do Rio de Janeiro em 1992 e que ressurgiu em 2002 portanto dez anos depois na sua forma mais virulenta a hemorrágica Ainda que com esses traços catastróficos que impregnaram a democracia como sistema político e as políticas sociais como alternativa fundante de uma sociedade mais eqüitativa interessa localizar como tem evoluído especifica mente a política de saúde de maneira a desenhar a presença ou não de continui dade entre ambas conjunturas a que se estende do final dos anos 80 até metade dos 90 analisada em profundidade no livro e a que se estende do final dos 90 à entrada no novo século cap1pmd 872011 1029 15 1 6 Gostaríamos de ressaltar duas questões em relação ao período atual De uma parte aspectos que falam de uma continuidade em relação ao período anterior no que se relaciona à definição da política de saúde Tratase basica mente do processo de descentralização e do forte teor político regulatório do Estado em sua implementação A outra questão diz respeito à permanência no cenário político de atores sociais constituintes e constitutivos da política de saú de na conjuntura tratada no livro Os municípios têm registrado nos últimos anos da década passada e nos primeiros do novo século uma alta adesão à municipalização da política de saúde Tal fato pode ser constatado a partir do alto número de municípios no País que têm se candidatado a se habilitar aos modelos de gestão plena de atenção básica e de sistemas de saúde e recentemente à Norma Operacional de Assistência à Saúde Esta última enquadra os municípios em um processo de integração via territorialização dos mesmos na assistência à saúde Mas essa adesão é marcada por um processo burocrático no qual o municí pio se candidata à habilitação sem por vezes efetivamente estar implementando os requisitos exigidos para declarálo habilitado no modelo de gestão em questão Além disso a habilitação de fato significa o acesso a um financiamento federal que não seria obtido sem a declaração municipal do cumprimento de tais requisi tos Ou seja a adesão está relacionada à captura municipal de recursos federais Ainda que durante os últimos anos não tenha havido reformulações signi ficativas do SUS as Normas Operacionais Básicas instrumentos de regulação política do setor ao mesmo tempo que favoreceram a descentralização do sistema de saúde trouxeram algumas alterações relacionadas ao modelo de as sistência à saúde A mudança mais importante incorporada ao sistema foi a definição de programas de atenção básica como uma maneira de cobrir assistencialmente os setores da população mais desassistidos ou de baixo aces so que correspondem a altos níveis de pobreza eou border line da pobreza absoluta Referimonos especialmente ao Programa de Saúde da Família que passou a ser o carro chefe do Sistema Único de Saúde com todas as dificulda des que se observam na promoção de uma medicina integrada nos níveis dife renciados de complexidade De fato isso gerou uma extensa polêmica no setor relacionada à efetivação de políticas focalizadas e serviços simplificados para a atenção de grupos populacionais extremamente pobres e a conseqüente exclusão das classes mé dias do sistema Tais mudanças levariam à perda do caráter universal do sistema de saúde ao desinvestimento em recursos humanos instalações equipamentos cap1pmd 872011 1029 16 1 7 e preservação do parque hospitalar do País paralelo ao crescimento do seguro privado entre as classes médias Alternativamente há quem pense que se trataria de políticas complementa res que ao contrário de promover a quebra da cobertura universal à saúde possibilitariam a complementaridade da atenção sem diminuir a qualidade ba sicamente por adaptar a assistência sanitária ao risco de extensão de doenças para populações extremamente pobres Dessa maneira o conflito universalização focalização permanece sem elucidação até os dias de hoje e continua a ser um divisor de águas nas instâncias governamentais do sistema e nas organizações da sociedade que têm participação na deliberação da política de saúde Quanto à participação dos atores sociais podemos dizer que os Conselhos de Saúde em que como foi observado na primeira edição do livro têm impor tante assento por definição constitucional as organizaçõesagrupamentos da sociedade já nasceram carentes para o exercício da função de representação tão carentes quanto as camadas sociais que lhes dão voz e voto Dados de pesquisa recente1 evidenciam que os Conselhos de Saúde locais são como que convida dos inconvenientes ao exercício do processo decisório Sua base de represen tação é frágil e a formação dos conselheiros é insuficiente para a tomada de decisões em assuntos de caráter técnico Cabe lembrar que os Conselhos ori ginariamente compostos por organismos comunitários hoje são mais um es paço de representação corporativa em que organismos de representação de usuários portadores de doenças deficientes físicos portadores de HIV re nais crônicos etc atuam junto a representantes dos profissionais de saúde do setor filantrópico e dos órgãos governamentais Isso facilita que nas reuniões dos Conselhos se discutam prioritariamente as questões colocadas pelos representantes das Secretarias Municipais de Saúde que por sua vez apresentam pacotes previamente definidos pelas instâncias intergestoras tripartite e bipartite2 e pelo Ministério de Saúde de forma direta 1 Avaliação Análise e Integração de Programas e Experiências Inovadoras de Políticas de Saúde e Políticas Sociais dados atualizados em 2002 Coordenação Silvia Gerschman Professora associada Maria Lucia Werneck Viana 2 A comissão intergestora tripartite é de âmbito nacional tem caráter paritário e nela estão represen tados o Ministério da Saúde o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde Conass e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde Conasems Sua função é assistir ao Minis tério da Saúde na implantação e operacionalização do SUS devendo se submeter ao poder deliberativo e fiscalizador do Conselho Nacional de Saúde Já as comissões bipartites de âmbito estadual são formadas paritariamente por dirigentes da Secretaria Estadual e órgãos de representação dos Secre tários Municipais do Estado Cosems Nessas comissões são decididos os aspectos operacionais do SUS Manual do Gestor do SUS publicado pelo CosemsRJ em março de 1997 cap1pmd 872011 1029 17 1 8 Uma vez formulados e discutidos esses programas passam pelo Conselho Municipal de Saúde onde os representantes disputam benefícios específicos operandose assim a primeira adaptação dos programas de atenção básica ao contexto municipal Cabe acrescentar que nessa modalidade os Conselhos têm um papel con traditório juridicamente são órgãos deliberativos mas de fato dão andamento a políticas adotadas alhures nos âmbitos específicos das três instâncias governa mentais federal estadual e municipal processadas nas Comissões Intergestoras Esse procedimento atualiza de maneira permanente o conflito latente dos pesos desiguais entre burocracias políticas profissionais de saúde e organismos de re presentação da sociedade e usuários Na atual conjuntura histórica de ajuste permanente e no contexto latino americano de restrições à soberania nacional ocasionadas por governos que chegam ao poder via partidos socialdemocratas mas que implementam as po líticas da nova direita que Maier 1994 denominou de retroright a representa ção política se esvazia e os direitos sociais universais se tornam um bem social difuso ainda que sancionados constitucionalmente como no Brasil Na falta de uma experiência histórica sustentada na mobilização e organiza ção sociopolítica da sociedade os conselhos locais de saúde ainda que possuam uma existência legítima carecem dos instrumentos políticos e técnicos capazes de transformar a lei em princípios executáveis para a viabilização de demandas sociais Assim no embate das forças políticas eou grupos de interesse é grande o predomínio das burocracias técnicopolíticas no processo decisório O processo de descentralização no fim da década passada e início deste novo século revela a abrangência de situações e processos relacionados a inova ções na gestão da saúde municipal Os resultados são extremamente contraditó rios Em alguns municípios o tipo de inovação gerencial incorporada representa um claro avanço no processo de descentralização e implementação do SUS através de iniciativas da própria gestão municipal que vão além das diretrizes federaisestaduais injetando recursos orçamentários próprios na implementação da política de saúde Em outros observase a implantação de programas e experiências formuladas exclusivamente no nível federalestadual que são in corporadas pela gestão municipal como uma maneira de receber recursos exter nos principalmente do nível federal ou modalidades de gestão de recursos humanos como no caso das cooperativas médicas que de fato inovam nas relações de trabalho mas descomprometem o governo municipal da responsa cap1pmd 872011 1029 18 1 9 bilidade historicamente legitimada pelo Estado pela existência de relações tra balhistas sustentadas na estabilidade contratual e em encargos sociais aposen tadoria férias décimo terceiro salário etc a cargo do empregador Para os profissionais de saúde em sua maioria médicos o comprometi mento com o SUS e o processo de descentralização é atrelado a condições de trabalho oportunidades de formação processo de trabalho e remuneração alcançada no setor Mas pouca tem sido a preocupação das instâncias de gover no local em criar mecanismos que incorporem os profissionais com base em pressupostos de responsabilidade social e compromisso político com o aper feiçoamento dos serviços enquanto centrais para o bom desempenho do siste ma de saúde municipal Os médicos agem sob a pressão do exercício permanente de atenção mé dica aos pacientes e isto os libera de quaisquer responsabilidade de outra nature za Os gestores do sistema municipal agem sob a pressão política do governo municipal e ainda que na sua maioria sejam profissionais médicos esquecem que não há lugar para um sistema de saúde eficaz sem que seus elementos constitutivos recursos humanos equipamentos infraestrutura dos serviços e demandas sociais estejam permanentemente no centro das preocupações e do investimento do governo local o que de fato implica profundas mudanças no processo decisório no setor da saúde O objeto deste trabalho é o estudo dos movimentos sociais em saúde ligados ao processo de formulação e de implantação das políticas de saúde no período que se estende de meados da década de 70 a 1994 O estudo desse período relacionase à possibilidade de pensar as políticas de saúde no Brasil à época da transição à democracia e da consolidação democrática sob uma pers pectiva que não se sustenta exclusivamente no Estado como o locus privilegiado dos processos de formulação e implementação das políticas sociais Na escolha do objeto de investigação consideramos central a questão do Movimento Popular em Saúde e do Movimento Médico no processo de formulação e implementação das políticas de saúde na transição à democracia por avaliarmos que estes configuram o Movimento Social em Saúde Embora tenha sido considerado ao longo deste trabalho excluímos o autodenominado Movimento Sanitário3 ainda que também integrasse o Movimento em Saúde 3 A exclusão devese ao fato de a questão do Movimento Sanitário ter sido objeto específico da análise de outros estudos no setor dentre eles o de Escorel 1987 cap1pmd 872011 1029 19 2 0 por se tratar de um grupo restrito e diferenciado de origem acadêmica e que constitui em si mesmo tema de investigação Interessávamonos examinar mais profundamente o papel exercido por tais movimentos no processo de transformação da política de saúde no Brasil que culminou com a denominada Reforma Sanitária Brasileira e as mudanças observadas na atuação do Movimento Popular em Saúde e do Movimento Médico no difícil percurso da implantação do mesmo a partir de 1986 e em pleno processo de consolidação da democracia O que torna a implementação da política de saúde uma questão de difícil solução Como se combinam atores arenas e circunstâncias políticas Qual o papel do Estado E qual o papel dos movimentos sociais em saúde nos dois momentos da política de saúde Como os usuários se fazem representar peran te a política de saúde Quais os partidos as associações e os movimentos que interagem na implantação diferentemente da formulação da política de saúde Tais questões nortearam o desenvolvimento deste estudo Nosso argumento central é que os atores sociais interagiram em um campo não conflitivo no processo de formulação da política enquanto a diversidade de interesses do próprio Movimento Social em Saúde estava diluída na oposi ção em bloco ao regime autoritário A partir do momento em que a reformulação da política de saúde foi sancionada na Constituição Nacional já no processo de construção democráti ca sua implementação passou necessariamente pela criação de um campo espe cífico de mediação entre a esfera governamental e a esfera social Assim a recomposição das relações EstadoSociedade que haviam sido parcialmente bloqueadas durante o período autoritário foram retomadas Pretendemos mostrar que a implantação da política não foi bemsucedida em virtude da complexidade da reformulação do sistema de saúde no Brasil Tal questão ultrapassa o campo específico do setor saúde Indicamos três pon tos problemáticos na viabilização da mudança do modelo do sistema de saúde os limites ou extensão desse processo as contradições e os apoios para a implementação da Reforma Sanitária A respeito dos limites procuramos discutir a relação entre democracia e reformas São várias as dimensões desta relação o grau de profundidade das reformas o timing das mesmas a capacidade ou não de o estágio atual da democracia absorvêlas cap1pmd 872011 1029 20 2 1 a ameaça virtual às forças políticas consolidadas antes do exercício da de mocracia a existência de um cálculo estratégico que permita a implantação das mu danças realizado em prol da Reforma Acreditamos que a proposta da Reforma Sanitária somente é viável no contexto da transição à democracia No entanto tal afirmação merece discussão específica já que as diretrizes da Reforma Sanitária implicam profundas trans formações na concepção dos direitos de cidadania e na atuação política do governo de modo a possibilitar o exercício desses direitos A democracia per se comporta ou não tais transformações Parece que esta não é uma questão sim ples nem evidente As contradições surgiram no âmago da atuação dos próprios grupos que sustentaram a Reforma Sanitária e que integraram o Movimento Social em Saú de Cada um deles apresentava grande heterogeneidade na composição de seus membros o que implicava múltiplos interesses Porém essa diversidade não era evidente no momento da formulação da política o que é compreensível devido ao papel de oposição que o Movimento Social em Saúde como um todo sustentou em relação ao regime autoritário e às políticas de saúde predominan tes naquele período De fato as diferenças entre interesses variados estavam diluídas na atuação em bloco do movimento por ocasião da transição à democracia só vindo à luz no momento da consolidação democrática e portanto da implantação da Re forma Sanitária As contradições entre os grupos aliadas à sua maneira compli cada de interação acrescentaram mais um obstáculo no já difícil percurso da implementação da política de saúde Por último a respeito dos apoios o que se pretende discutir não se refere a grupos específicos no setor saúde que favoreceriam a Reforma já que nosso interesse se localiza na questão política mais geral Um processo desse tipo só pode ser viabilizado com o incentivo e o sustentáculo do Estado Neste sentido tornase necessário discutir questões tais como que Estado é este Qual a relação entre Público e Privado Qual o tipo de democracia requerida para a implementação de reformas que signifiquem redistribuição de bens a saúde neste caso para populações que em condições de carên cia não têm acesso à mesma Antes de detalharmos os capítulos que compõem o corpo do trabalho gostaríamos de incorporar algumas reflexões teóricometodológicas que o cap1pmd 872011 1029 21 2 2 subsidiaram A teoria política tem analisado os processos de transição e ulte rior consolidação da democracia após períodos de autoritarismo político sob uma perspectiva centrada de maneira quase exclusiva nos procedimen tos e na sistemática política envolvidos na construção de um sistema de go verno democrático Análises mais recentes Schmitter 1991b discutem o estabelecimento de regimes democráticos como condição necessária para a consolidação da de mocracia Entendese por regime democrático a capacidade reprodutiva da democracia ou seja a capacidade que o governo e a sociedade possam ter para gerar comportamentos democráticos o que significa ir além do domínio estri tamente político na discussão da democracia Este caminho conduziu às possíveis relações entre a constituição da demo cracia na medida em que esta é entendida na ótica do redimensionamento das relações EstadoSociedade e o campo específico da saúde compreendido como modalidade de política social que adquire o valor de um bem a ser usufruído por todo e qualquer cidadão e que o Estado tem a obrigação de prover A partir desse enfoque a reformulação da política de saúde ou mais espe cificamente a Reforma Sanitária passou a ter papel de destaque no próprio processo de construção da democracia Não somente porque essa última atua lizou no plano específico da política pública as dificuldades encontradas na afirmação da democracia mas principalmente porque a Reforma Sanitária constituiuse cenário privilegiado da evolução do próprio processo democráti co ressaltando a relação entre democracia e Reforma O tema pela complexidade obrigounos a refletir sobre aqueles aspectos que consideramos relevantes e aos quais daremos prioridade na análise tanto das relações EstadoSociedade no processo de construção de um regime de mocrático quanto a respeito do tipo de abordagem Embora exista o risco de se incorrer em uma simplificação desse enfoque que tem pretensão de iluminar o lado obscuro do prisma procuraremos sinte tizar a idéia sobre a qual se sustentou a realização deste trabalho para expor posteriormente os principais conteúdos e procedimentos que o compõem A implementação da política de saúde está imbricada por um lado ao processo de democratização do País e às mudanças na esfera do Estado e das relações EstadoSociedade por outro à maneira pela qual os diversos interes ses que compõem o Movimento Social em Saúde lidam entre si e se fazem cap1pmd 872011 1029 22 2 3 representar nas instâncias institucionais da política de saúde Neste sentido ne nhum desses enunciados pode ser visualizado per se Esperamos que a discussão teóricoconceitual efetuada na primeira parte do livro e a análise da dinâmica do comportamento de nossos protagonistas vinculado a cenários nos capítulos subseqüentes colaborem para desvendar a peça para o leitor O trabalho foi dividido em três partes compostas em seu total por seis capítulos Na Parte I desenvolvemos uma análise teórica a respeito da constru ção da ordem democrática no Brasil tendo por base o processo histórico inici ado com a transição à democracia e do estabelecimento de alguns parâmetros conceituais que consideramos substantivos na abordagem de nosso objeto Este bloco consta de três capítulos no primeiro objetivamos a noção de democra cia no segundo a reforma do sistema de saúde no terceiro os movimentos sociais em saúde No capítulo 1 discutimos a transição à democracia e o processo de cons trução eou consolidação da mesma estendendo a noção da democracia para além dos procedimentos tidos como necessários ao estabelecimento da demo cracia política A discussão incluiu cinco pontos Esfera PúblicaPrivada Indiví duoSociedade EqüidadeJustiça Democracia e Reformas O tratamento dos temas aproximounos da definição de relações teóricas conexas entre movi mentos sociais em saúde política de saúde e construção democrática No capítulo 2 analisamos a reformulação da política de saúde como polí tica social sua origem e desenvolvimento até a culminância na proposta da Reforma Sanitária Esta foi compreendida como um caminho de reconstrução da democracia por intermédio de reformas parciais ou dito de outra maneira de consecução da democracia pela via do estabelecimento de regimes parciais democráticos A visão das políticas de saúde sob a perspectiva das políticas sociais obrigounos a aprofundar o campo teóricoconceitual envolvido nessa área e sustentou a discussão a respeito dos processos de formulação e implementação de políticas sociais em razão da necessidade de subsidiar teori camente a análise do processo de implantação da Reforma Sanitária O capítulo 3 introduz o papel dos movimentos sociais em saúde nesses dois momentos a formulação e a implantação da política de saúde enfatizando o particular desempenho desses movimentos à luz das diversas teorias da ação coletiva A reflexão crítica a respeito de tais teorias a partir dos movimentos sociais em saúde possibilitounos identificar as adequações proxi cap1pmd 872011 1029 23 2 4 midades e distanciamentos entre os diversos enfoques que elas apresentavam e o desenrolar da atuação política dos atores por nós privilegiados Adquirimos dessa forma um arcabouço teórico para pensar as políticas de saúde nos pro cessos de transição e construção da democracia desde a perspectiva atual dos atores envolvidos e sua relação com o Estado Na Parte II consideramos o desenvolvimento histórico da atuação dos movimentos sociais em saúde em relação ao processo de reformulação do sistema de saúde E isso com base na análise dos dados de uma pesquisa que coordenamos sobre o papel do Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico no processo de formulação e implementação da política de saúde nas duas últimas décadas Dividimos esta parte em dois capítulos um referido ao Movimento Popular em Saúde o outro ao Movimento Médico No capítulo 4 estudamos o Movimento Popular em Saúde no período que se estende de 1979 a 1990 A composição deste em suas origens relacio nouse às experiências locais de saúde em algumas regiões do País em torno de associações de moradores sociedades de fomento e outras entidades de bairro O movimento estadual e logo nacional de federações e confederações de asso ciações de moradores de bairros e de favelas formase desde o início até mea dos da década de 80 O Movimento Popular em Saúde que assim se autodenominou nos encontros de caráter nacional foi parte constitutiva dessas federações e confederações Por fim houve uma importante desarticulação do Movimento Popular em Saúde em fins dos anos 80 que se caracterizou por notáveis diferenças regionais aprofundadas e também pela descentralização do sistema de saúde e pela formação dos Conselhos de Saúde ainda que o movi mento tenha continuado a existir nacionalmente No capítulo 5 descrevemos a atuação do Movimento Médico no período compreendido em 1976 e 1990 com uma perspectiva que incluiu não só as formas associativas sindicais dos médicos como categoria profissional mas o conjunto das associações médicas tanto as que regulam o exercício da profis são quanto as de caráter técnicocientífico e as que congregam os profissionais médicos na discussão de questões específicas da profissão médica As entidades analisadas foram o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janei ro Cremerj a Sociedade Médica Somerj a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Estado do Rio de Janeiro SMCERJ e o Sindicato dos Médicos Sinmed O levantamento do material e as entrevistas realizadas com lideranças das asso ciações médicas de entidades localizadas no estado do Rio de Janeiro cobrem o período que se estende de 1983 a 1990 cap1pmd 872011 1029 24 2 5 Na Parte III é investigada a dinâmica da relação entre os atores e o proces so de implementação da Reforma Sanitária nos anos 90 Também nesta parte são abordados o próprio processo de implementação da Reforma Sanitária a descentralização do sistema de saúde e os Conselhos de Saúde No Capítulo 6 exploramos até onde se avançou no estabelecimento dos procedimentos legais previstos constitucionalmente para o setor saúde e qual o estado da arte na implementação de Reforma Sanitária até fins de 1993 Os obstáculos criados no desenvolvimento da municipalização um exame da IX Conferência dado o caráter significativo dessa instância decisória da política de saúde a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social Inamps já que ele era desde sua criação em 1977 órgão centralizador das decisões recebidas à política de saúde Especial ênfase é dada ao processo de descentralização nos estados e municípios eixo central na implementação da política de saúde Consideramos marco de referência teórica na análise do processo de descentralização as concepções que associam essa noção à de mocratização do Estado Neste sentido interessounos abordar o estágio atu al do processo de municipalização para sublinhar as diferenças entre algumas das experiências investigadas no decorrer do capítulo e detectar quais os mo tivos que proporcionaram maior sucesso a umas que a outras O capítulo trata também da formação e atuação dos Conselhos como instâncias de caráter deliberativo da política de saúde nas quais os usuários suas entidades e os movimentos sociais deveriam deter 50 da representação nos termos do regulamento da Lei Orgânica de Saúde Na conclusão indicamos como a visão original com a qual pretendíamos abordar o objeto de estudo deste trabalho sofreu deslocamentos Assim a par tir do tema eleito os movimentos sociais em saúde em face das políticas de saúde e do marco teórico que sustentou essa forma de abordagem o redimensionamento das relações EstadoSociedade num âmbito específico da política social no curso do processo de transição e consolidação da demo cracia passamos a conformar metodologicamente o foco de análise em três aspectos a trajetória e o papel dos movimentos sociais em saúde o grau de definição da política de saúde o processo político mais amplo de constituição de um regime democrático Neste sentido retomamos nas conclusões à luz dos resultados as questões teóricas desenvolvidas no início do livro Salientamos que a Reforma Sanitária brasileira constituiuse em um regi me de democratização parcial Schmitter 1991b definimos a maneira pela cap1pmd 872011 1029 25 2 6 qual se estabeleceu o percurso da mesma e considerandose as dificuldades para a constituição de um regime democrático no Brasil explicitamos quais as possibilidades para a implementação da política de saúde dado o estágio alcan çado pelos movimentos sociais em saúde cap1pmd 872011 1029 26 2 7 Parte I Parte I Parte I Parte I Parte I cap1pmd 872011 1029 27 2 9 1 Os anos 80 constituíram um marco na política brasileira do processo de democratização do País Um amplo espectro de forças políticas da sociedade como sindicatos movimentos populares e partidos políticos empreenderam uma luta política que conseguiu aglutinar forças diversas na conquista de eleições para a Presidência da República Essa luta em prol da democratização estabele ceuse na integração da oposição à ditadura militar ante a proposta das Forças Armadas de fazer uma abertura lenta gradual e segura A transição à democracia no Brasil é considerada pelos autores que tratam do assunto como uma decisão unilateral dos militares no marco do regime autoritário No entanto implicou um processo de alta complexidade em gran de parte por causa de sua duração e no qual as forças sociais tiveram papel essencial que a realimentou estabelecendo uma via de mão dupla no desen volvimento da mesma O papel dos movimentos sociais dos sindicatos operários do sindicalismo de classe média dos partidos de oposição enfim o ressurgimento da sociedade civil foi de fundamental importância para minar as bases da estabilidade do regi me autoritário Desse modo parecenos de interesse rediscutir a maneira como se operou a transição no Brasil e os caminhos da consolidação democrática A maneira como são restabelecidas as relações entre EstadoSociedade passa pela criação de regras e procedimentos institucionais que redefinem a forma como os interesses são representados e se traduzem em políticas governamentais especí ficas no processo de consolidação Tal processo tem sido longo e tortuoso já que até hoje os procedimentos não estão plenamente instituídos O processo de transição à democracia atravessou diversos momentos no extenso período de dez anos uma das mais longas transições conhecidas A Construção da Democracia algumas questões históricas e teóricas cap1pmd 872011 1029 29 3 0 o que dificulta a interpretação do tipo de transição e conseqüentemente a previ são dos caminhos para a consolidação da democracia Os militares tiveram papel protagônico na definição e no calendário da transição em seu primeiro momento de 1974 a 1979 Schmitter Karl 1991 identificam quatro tipos ideais ou modelos de transição à democracia pactuada acontece sempre que as elites chegam a um acordo entre elas imposta quando há uma decisão unilateral para estabelecer mudanças no regime reformista em que as massas se mobilizam e impõem uma solução sem violência revolucionária quando as massas pela via armada derrotam militarmen te os antigos dirigentes O Brasil para esses autores estaria incluído no tipo de transição imposta Acreditamos ter sido esse o caso na primeira fase do processo Em um segun do momento que se estende até a sucessão do general Figueiredo começa a existir certa confiança por parte da população no que diz respeito à continuida de do processo de abertura e do afrouxamento da repressão Surgem formas de organização social e política que se expandem pelo País inteiro e obrigam a mudanças na orientação do processo Ainda que setores das Forças Armadas os chamados duros tentassem impor um retrocesso no processo de democratização em 1979 não o conse guiram tendo preponderado a formulação de um pacto político entre as elites e a oposição moderada o que possibilitou uma sucessão presidencial negociada O caráter de pacto exposto por ODonnell com grande precisão se ajusta perfeitamente a esse segundo momento da transição política ODonnell 1988 distingue dois tipos de transição à democracia a por co lapso e a pactuada No primeiro caso tratase de regimes burocráticoautoritários fortemente repressivos e cujas políticas econômicas foram enormemente destrutivas Geram um vazio político ao seu redor perdem os apoios políticos e ao não conseguirem controlar o processo político caem estrepitosamente As transições por colapso ainda que ocorram em contextos econômicos catastrófi cos comportam menor condicionamento político para as forças de oposição e maior liberdade dos governos democráticos No segundo caso tratase de regi mes que tiveram melhor desempenho econômico e nos quais o uso da repressão foi menos brutal e extensivo cap1pmd 872011 1029 30 3 1 O relativo êxito econômico significou aqui a manutenção das alianças com os setores médios e empresariais que se beneficiaram com as políticas econômi cas do regime autoritário Dessa maneira as elites civis e militares tiveram con dições de encaminhar uma transição pactuada impondo às forças de oposição condicionamentos no estabelecimento de governos democráticos Esse tipo de transição traria à cena política a reedição de velhos pactos que configuraram historicamente as relações entre EstadoSociedade no Brasil Uma das características mais marcantes do Estado brasileiro é precisamen te o seu autoritarismo Historicamente a sociedade brasileira apresenta traços profundamente elitistas e excludentes em parte herança do escravismo do perí odo colonial e do caráter oligárquico das classes dominantes Neste sentido o Estado impôs seu domínio à sociedade através do exercício do patrimonialismo político do clientelismo e da incorporação das classes subalternas por meio de mecanismos de cooptação que garantiram a supremacia das elites no exercício da política No entanto o caráter da transição pactuada e da reedição de velhos pactos não é suficiente para explicar o grau de complexidade que adquiriu o desenvol vimento democrático e a atuação dos diversos atores sociais e forças políticas que emergiram com a transição à democracia Embora a histórica relação entre EstadoSociedade tenha sido atualizada e exacerbada pelo regime militar o processo de transição à democracia originou uma forte crítica na sociedade brasileira a respeito da modalidade autoritária predominante no Estado Essa postura foi acompanhada pela compreensão da noção de cidadania como um conjunto de direitos a serem alcançados pela sociedade como um todo Assim as dificuldades para a consolidação da democracia no Brasil reque rem uma discussão específica sobre a relação entre democracia e Estado que exige conceitualizar a democracia em relação à esfera pública e privada ao indivíduo e à sociedade à justiça e à eqüidade Tais questões são a meu ver centrais se considerarmos o estabelecimento de uma democracia no Brasil Os dilemas enunciados a seguir permearam a discussão teórica empreendida Enorme percentual 50 da população que beira o limite da pobreza abso luta a pressão social dessas camadas sociais se expressa através de formas de resistência violenta Essas formas de pressão e resistência criam sociedades e governos paralelos nos bairros miseráveis das grandes metrópoles amea çando a própria sobrevivência da ordem social e política Tratase de situ ação bem próxima àquela assinalada por Hobbes de a guerra de todos cap1pmd 872011 1029 31 3 2 contra todos na qual ou uma nova ordem social e política é procurada através do estabelecimento de um regime democrático ou então a ameaça de um poder absoluto não necessariamente militar como as tentativas do Governo Collor demonstraram pode concretizarse Paralelamente há propostas de reformas substantivas no âmbito social Destas a Reforma Sanitária é a maior expressão mas a dificuldade na implementação da mesma indica o difícil percurso para a constituição de um sistema político democrático e traz à tona a necessidade de uma discus são da própria noção de democracia Como se pode compatibilizar uma política reformista que necessariamente exige profundas transformações do Estado com uma situação do tipo ora enunciado Qual a relação entre Reforma e democracia no Brasil de hoje Uma última questão em relação a tal problemática é a diversidade de inte resses em jogo no processo de construção da democracia interesses de indivíduos grupos sindicatos entidades profissionais usuários de diversos sistemas Como lidar democraticamente com a diversidade A partir da própria diversidade em um movimento de mão dupla Como indivíduo na busca ativa de relações compreendidas em permanente associação em grupos movimentos eou instituições Já na perspectiva do sistema políti co de forma a viabilizar um regime democrático socialmente justo que respeite mantenha e incorpore ao exercício de governo as diferenças de interesses existentes na sociedade Em trabalho recente sobre a consolidação da democracia o tipo de institui ções que a mesma comporta e a forma desses processos Schmitter postula que a consolidação da democracia atravessaria grandes dificuldades nos países sujeitos simultaneamente a pressões de diferentes modos de transição O autor denomina essa situação de Black Hole4 simbolizando com tal imagem a situação em que o país mergulha em uma espécie de vazio ocasionado por uma simultaneidade de lógicas que impossibilitaria aos atores ter uma estratégia vitoriosa 4 São países simultaneamente sujeitos às pressões de diferentes modalidades de transição as elites autoritárias dominantes acreditam possuir todo o poder em mãos freqüentemente de uma maneira rápida as elites políticas de oposição procuram efetuar um pacto entre elas excluindo as elites dominantes as massas são mobilizadas nas ruas trazendo à cena a ameaça da extensão da violência ou de uma saída revolucionária Nossa idéia é que com essa simultaneidade de lógicas é quase impossível os diversos atores terem uma estratégia vitoriosa O Brasil entrou nessa situação devido à morte prematura de Tancredo Neves que tirou da cena política o ator mais decidido e capaz de dar uma seqüência ao processo de democratização por meio de resultados pactuados Schmitter 1991b18 tradução da autora cap1pmd 872011 1029 32 3 3 A situação política no Brasil encaminhouse através de linhas de forte ten são política em que era muito difícil definir as regras e as instituições sobre as quais se assentaria a consolidação democrática A transição foi uma das mais longas que se conhece estendeuse por dez anos sendo claramente controlada durante os primeiros cinco até 1979 O escândalo do Riocentro as denúncias sobre a atuação da repressão e o crescimento das associações da sociedade civil fossem elas partidos movimentos ou sindicatos colocaram limites à atuação das Forças Armadas Para estas isso não significou perda de controle no pro cesso da transição mas obrigouas a ter maiores cuidados e a efetuar negocia ções com as forças de oposição Nos anos de 19831984 aconteceram as maiores mobilizações populares milhões de pessoas reuniramse para exigir eleições diretas para a Presidência da República o que significou uma enorme pressão política sobre as Forças Arma das O desfecho desse processo foi um complexo emaranhado de negociações políticas entre os militares as elites políticas e as forças de oposição A transição negociada promoveu em janeiro de 1985 eleições indiretas por meio de um Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves Presidente e José Sarney VicePresidente do País Porém a maior garantia para o processo de democratiza ção era pela figura de Tancredo que contava com apoio da maioria Com sua morte e assumindo o comando do País o vicepresidente José Sarney se produziu um grande vácuo político que colocou o Brasil em uma situação do tipo descrito por Schmitter A equipe do governo já havia sido escolhida por Tancredo Neves tratavase basicamente de uma composição que refletia as diversas forças políticas que tinham participado da negociação à qual faltava o comando Essa falta de comando deixou imersa a Nova República numa configura ção política bastante distante da democracia De uma parte velhos pactos e velhas elites já não militares mas civis dentre as quais Sarney foi um representan te justificaram reapropriação do espaço nas instituições do Estado enquanto usavam como apelo o slogan Tudo pelo Social De outra nas forças políticas de oposição existia consenso a respeito da necessidade de implementar políticas reformistas que significassem alguma forma de compensação ao crescimento das enormes desigualdades sociais que o regime militar havia produzido A política econômica refletiu essas contradições políticas Implementouse o Plano Cruzado como contenção da inflação ao mesmo tempo que desapare ciam os produtos de consumo massivo sem que o governo tivesse a suficiente cap1pmd 872011 1029 33 3 4 autoridade para punir os empresários a oligarquia rural ou as empresas multinacionais Tentouse aumentar as exportações mas o setor exportador considerou os preços internos não competitivos A renegociação da dívida ex terna emperrou já que a política econômica do governo não correspondia às políticas de ajuste ditadas pelo Fundo Monetário Internacional FMI Enquanto isso a dívida do setor público continuava aumentando já que os compromissos políticos do Governo Sarney com as velhas elites políticas se efetivavam mediante o preenchimento de cargos na máquina estatal que por sua vez funcionava como plataforma eleitoral de políticos que ao velho estilo usavam a máquina do Estado para trocar votos por favores Ou seja a política clientelística foi a tônica do governo da Nova República Simultaneamente algu mas transformações aconteciam nos aparelhos de Estado na medida em que alguns representantes da oposição eram chamados a ocupar cargos sem que isso significasse transformações substantivas nos vícios da máquina estatal No entanto no Brasil nos momentos de maior acirramento das contradi ções há uma homogeneização do discurso político o que induziria a pensar na existência de acordos políticos entre forças conflitantes Em verdade tratase exatamente do contrário o discurso progressista das elites conservadoras não tem nenhuma correspondência com a conhecida atuação política das mesmas Tratase de impedir via os meandros burocráticos da máquina política estatal a ocupação direta de postoschave negociatas econômicas que envolvem grandes transações sofisticação tecnocrática compra de votos transforma ções substantivas do Estado brasileiro Tais procedimentos visceralmente opostos à democracia se fazem em nome da mesma convivem com reformas parciais e só vêm à tona por meio de grandes escândalos públicos onde accountability é somente uma conseqüência forçada à qual os governantes são compelidos pela via dos fatos Assim a Nova República não nas intenções mas nos resultados produziu uma paralisação na construção das instituições e procedimentos democráticos questões fundamentais para que seja possível passar da transição para a conso lidação da democracia Em outras palavras para que o peso da modalidade autoritária clientelística e patrimonialista da atuação política do Estado brasileiro incrementada ainda pelo exercício da política dominante do regime autoritário não se constitua na determinação principal que impeça a criação de instituições e procedimentos democráticos que possibilitem o exercício permanente ou a reprodução da democracia é preciso considerar algumas questões cap1pmd 872011 1029 34 3 5 A principal questão é que diferentemente do momento da transição a consolidação da democracia requer a constituição de um regime democrático Os princípios criados por Dahl 1979 como os procedural minimum voto secre to sufrágio universal eleições regulares competição partidária liberdade de associação transparência do executivo são necessários mas não suficientes para garantir que não se retroceda a uma situação anterior ou para afiançar uma democracia capaz de se reproduzir Tratase de procedimentos mínimos sem os quais não poderia haver democracia ou poliarquia como ele a denominou mas ainda que sejam imprescindíveis para eleger governos democráticos não garantem per se regimes democráticos A diferença entre um governo democrático e um regime democrático se ria dada pela transformação de um padrão ou traço democrático em uma estrutura Schmitter 1991a Qual o significado da existência de uma estrutura política democrática Denominamos de estrutura democrática a capacidade reprodutiva da democracia ou seja a capacidade de o governo e a sociedade virem a autogerar comportamentos políticos democráticos É necessário aqui chegarse a um acordo a respeito do que seja a idéia de estrutura democrática o que remete à própria noção de democracia Percorrer a noção de democracia ao longo da história é um árduo caminho já desenvolvido pelos mais diversos pensadores e através das mais diversas perspectivas Não pretendemos nos aventurar por ele Procuraremos sustentar a argumentação nos dilemas atuais que se colocam para gerar uma estrutura política democrática no Brasil ao levar em consideração a praxe do exercício da política das relações sociais e dos comportamentos individuais A democracia em sua acepção política referese à modalidade de gover no em que por meio de eleições cidadãos livres e iguais escolhem via sistema partidário aqueles que serão seus representantes Em trabalho recente de Schmitter Karl 199176 afirmase que A moderna democracia política é um sistema de governo no qual os governantes são cobrados por suas ações no domínio público por cidadãos que atuam indiretamente através de concorrência e coopera ção de seus representantes eleitos5 É necessário acrescentar ainda que as modernas democracias têm um importante viés societário que se sustenta na tradição socialdemocrata européia 5 Tradução da autora cap1pmd 872011 1029 35 3 6 dos últimos 50 anos em razão da qual a democracia política é hoje indissoluvelmente relacionada a certos padrões de bemestar social Entretanto ainda considerando esta definição ampliada de democracia resta aproximarmonos da consolidação da democracia ou da maneira pela qual regimes democráticos viriam a se estabelecer Incorporando a idéia de Giddens apud Schmitter 1991a de estruturação para a qual as noções de rotinização institucionalização estabilização e reificação foram usadas primei ramente para conhecer este fenômeno No trabalho anteriormente menciona do definese regime ou sistema de governo como um conjunto de normas e regras padrões que determinam a for ma de acesso aos principais cargos públicos as características dos ato res admitidos ou excluídos as estratégias que esses atores podem uti lizar para obter acesso aos cargos públicos as regras a serem seguidas para decidir as árduas questões públicas Melhor dizendo o conjunto deve ser institucionalizado isto é as regras devem ser habitualmente conhecidas praticadas e aceitas pela maioria mesmo que não seja por todos os atores Crescentemente os mecanismos privilegiados de ins titucionalização constituemse em um corpo escrito de leis incorpora do numa constituição formada por normas políticas que podem ter uma base informal sustentada no costume ou na tradição Schmitter Karl 1991766 Sob essa perspectiva acredito que a consolidação da democracia política é possível sempre que comportamentos políticos democráticos tenham sido internalizados com antecedência pelos atores políticos exista consenso entre os atores políticos a respeito do fato de que a diver sidade de interesses presentes na sociedade impõe de uma parte substituir a satisfação imediata dos interesses próprios por interesses de caráter cole tivo A condição de possibilidade da afirmação anterior seria dada pelo consentimento tácito dos atores sociais de que a democracia garantiria a satisfação em um momento posterior dos próprios interesses Essas duas precondições não são dadas e no caso do Brasil são praticamente inexistentes 6 Tradução da autora cap1pmd 872011 1029 36 3 7 Schmitter 1991a97 considera que a consolidação da democracia consisti ria em transformar padrões ad hoc em estruturas que assegurem procedimen toscanais de acesso inclusãoexclusão dos atores recursosestratégias para a ação e regrasnormas a respeito da tomada de decisões de acordo com um standard específico que o princípio retor da democracia é a cidadania Reproduzimos a citação porque nos parece particularmente incitante as sim como um desafio central para se refletir em relação à constituição de uma estrutura democrática Tendose isso por base acreditamos que a possibilidade de abrir uma senda nessa intricada floresta no sentido de uma metáfora uma hobbesiana poderia acontecer a partir da reflexão dos pares enunciados esfe ras públicaprivada indivíduosociedade justiçaeqüidade Parecenos este o momento apropriado para refletir sobre o que diz respeito à maneira pela qual os atores sociais e políticos poderiam preferir com prazer ter comportamen tos democráticos ou uma atuação política democrática Esfera Pública Esfera Privada Essas duas categorias de análise pensadas pelo liberalismo a propósito do Estado como duas ordens a segunda correspondendo à esfera da sociedade na qual se realizam os interesses dos indivíduos a primeira à esfera do Estado como o espaço em que se desenvolvem os assuntos de caráter público ordenam e separam o indivíduo da sociedade e separam esta última do Estado Tal ordenação e separação não são apenas uma construção ideal do pensa mento mas obedecem à necessidade de fundar o Estado moderno não somen te como conseqüência da dissolução da ordem feudal O Estado virá a ser a maior construção política a mais aperfeiçoada organização políticoinstitucional produto da transformação da sociedade feudal com o surgimento da burgue sia como classe universal ou expressão do homem moderno 7 a idéia básica comum a tudo isto é que as relações sociais se tornem estruturas ou seja padrões de interação ocorram regulamente estejam dotados de significado e sejam suficientemente capa zes de motivar condutas de modo que possam vir a ter um funcionamento autônomo para resistir a mudanças induzidas do exterior Simplificando estruturas são coletividades nas quais o todo é maior que a soma das partes As estratégias e normas dos indivíduos dentro delas são restringidas pela totalidade As ações e metas da estrutura não são redutíveis àquelas de suas partes componen tes O que se precisa é de uma definição mais específica e de teorias da estruturação institucionalizaçãoestabilizaçãorotinização que capturem esta modalidade e expliquem como ela poderia ser adotada e também porque os atores poderiam preferilas com prazer tradução da autora cap1pmd 872011 1029 37 3 8 Assim a idéia do Estado como instância que se erige por cima dos ho mens particulares e também da sociedade adquire dimensão singular não ape nas como idéia mas sobretudo como estrutura jurídicoinstitucional política e administrativa da nação Essa nova ordem social burguesa se caracteriza por ser formada por indi víduos livres e iguais que se satisfazem no mercado sendo esta satisfação não um encargo do Estado mas da iniciativa privada Tratase de indivíduos livres já que não estão ligados ao modo de exploração feudal nem à servidão do trabalho da terra nem à entrega do produto da mesma ao senhor As for mas de produção feudal e a sua ordenação política perdem valor econômico social e político ante o rápido processo de acumulação capitalista que a troca de mercadorias facilita por intermédio do mercado Este requer de indivídu os livres que tenham o direito a escolher o lugar e o tipo de trabalho desejado a liberdade de ir e vir morar onde quiser e se expressar a respeito de desejos e opiniões sem serem constrangidos pela ordem política o Estado Assim a condição de igualdade é suposta pelo mercado na medida em que os indiví duos se igualam no ato da troca cada indivíduo é igual a si mesmo e aos outros no exercício do ato econômico de comprar ou vender o que quer que seja independentemente do valor daquilo que esteja sendo trocado Dito de outra maneira o valor desigual passa a ser colocado na mercadoria como objeto da troca sem que este contamine seus possuidores Essa fantástica construção do pensamento liberal não é nada mais do que o que Marx deno minou fetichismo da mercadoria Tal ato simbólico e ao mesmo tempo real a igualdade formal e a desi gualdade real é também fundador da cidadania Neste sentido a mercadoria pode ser equiparada à noção de cidadania no que ambas têm em comum seu componente fetichista Os indivíduos são em relação ao mercado à sociedade eou esfera privada o que os cidadãos são em relação à esfera pública eou ao Estado O ato de dar ao indivíduo o status de cidadão vai permitir justificar que a esfera pública regule relações particulares entre indivíduos privados equipa rando os indivíduos como cidadãos De fato a intervenção da esfera pública na ordem privada se sustenta nas necessidades do próprio processo de acumulação sejam essas explicitadas ou não É indiscutível a presença de alguns interesses privados na ordem pública assim como o fato de esfera pública representar mais alguns inte resses que outros cap1pmd 872011 1029 38 3 9 Tal afirmação é bem exemplificada pela intervenção do Estado ainda nos primórdios do capitalismo ao responder às exigências da burguesia para o melhor andamento do processo de acumulação tais como os decretos sobre vestimentas a criação de taxas e impostos ou nos momentos em que faltava o trigo a proibição do consumo de pão nas sextasfeiras Habermas 1984 ou mesmo pela intervenção da ordem política para garantir a própria sobrevivência do mercado como as leis sobre terras e a regulamentação da jornada de trabalho A cidadania outorga aos indivíduos certa identidade coletiva uma vez que como cidadãos passam a formar parte da nação Mas esse aspecto da cidada nia é contraditório porque ao mesmo tempo que possibilita a percepção do indivíduo como parte de um todo maior essa totalidade não lhe é própria A esfera pública como expressão da cidadania na ordem liberal burguesa é circunscrita aos possuidores de bens sejam terras instrumentos de trabalho ou mercadorias Mas simultaneamente a esfera pública é separada dos produtores privados sejam eles assalariados ou proprietários e é isso que a constitui como o espaço no qual estão representados os interesses públicos do conjunto da comunidade e ainda o que permite que se legitime como autoridade públi ca o Estado de Direito A contradição embutida na idéia de cidadania anteriormente mencionada é sustentada na existência de direitos e portanto na possibilidade de satisfação destes o que não significa necessariamente a efetivação da satisfação Esse as pecto contraditório da cidadania é que possibilitou a luta pela efetiva conquista dos direitos de cidadania e a consecução dos direitos sociais como a expressão mais desenvolvida desta à qual se chegou depois de lutas sociais que levaram dois séculos O momento da obtenção de direitos sociais que Marshall 196757 113 denominou cidadania completa referindoa ao modelo clássico da ob tenção de direitos exemplificado pela Inglaterra teve e tem percursos históricos específicos nas diversas realidades nacionais O efetivo preenchimento dos direitos sociais nos Estados democráticos modernos expressado pelo Welfare State é talvez o momento de maior apro ximação da esfera pública ao público termo este usado aqui para designar a presença na esfera do Estado de interesses de classe diversos dos da classe dominante As sociaisdemocracias modernas conseguiram pluralizar o Estado ao incorporar os interesses das classes subalternas a partir do reconhecimento da desigualdade social como inerente ao modo de produção capitalista e ate nuar essas desigualdades pelo exercício da democracia social lítica sem interferir cap1pmd 872011 1029 39 4 0 no processo de acumulação capitalista Esse percurso da cidadania levou a uma interpenetração crescente da esfera privada pela esfera pública e viceversa8 Essa sobreposição não significa mais que a constatação de que a participa ção social política a partir da condição de cidadania alterou o caráter restrito da esfera pública Tais mudanças se refletiram no Direito como resultado das transformações no Estado Se refletirmos agora sobre essa questão da perspectiva dos indivíduos em sociedade não se torna muito difícil concluir que posso aceitar que meus interes ses não estejam incluídos na esfera pública sob duas condições a obtenção no presente de algum ganho pensatório e a possibilidade de sua inclusão em um futuro A primeira condição é soluvelmente ligada à segunda pois sua compro vação é a prova do cumprimento da outra Tratase de condições ambas con tidas no exercício da cidadania ser cidadão permite usufruir de direitos Remetamonos por exemplo à condição de libertos da servidão à terra e ao senhor feudal à livre escolha de ir e vir ao direito de defesa sob injusta acusa ção por crime não cometido ou ao direito de falar livremente Dos direitos civis os indivíduos podem fazer uso quando quiserem desde os primórdios do capitalismo até os dias de hoje Quanto isso tem de ilusão corresponde à segunda condição enunciada tais direitos não são iguais para to dos mas se em parte o são talvez um dia possam vir a ser completamente e isso na medida em que a parcialidade da esfera pública não seja absoluta Em outras palavras sempre que a esfera pública constitua um espaço a ser definido pela disputa de interesses opostos e por vezes enfrentados na qual exista a possibilida de de que interesses não satisfeitos no presente possam ser realizados no futuro Outra leitura sobre o caráter dessa interpenetração é dada pela manuten ção e ampliação no interior da esfera pública de interesses de grupos priva dos exemplificada pelo Brasil do regime autoritário e em grande parte tam bém da transição O processo de desenvolvimento econômico que o País atravessou durante o regime autoritário caracterizado por taxas elevadas de crescimento econômico pelo importante investimento de capital internacio nal tanto nos setores produtivos como nos investimentos públicos e pela alta 8 A partir da esfera privada publicamente relevante da sociedade civil burguesa constituise uma esfera social repolitizada em que instituições estatais e sociais se sintetizam em um único comple xo de que não é mais diferenciável Essa nova interdependência de esferas até então separadas encontra a sua expressão jurídica na ruptura do sistema clássico de Direito Privado Na socieda de industrial organizada como Estadosocial multiplicamse relações e relacionamentos que não podem ser suficientemente ordenados em institutos quer do Direito Privado quer do Direito Público obrigam antes a introduzir normas do assim chamado Direito Social Habermas 1984177 cap1pmd 872011 1029 40 4 1 concentração de renda com a marginalização de amplos setores da sociedade criou uma sociedade complexa e segmentada Alguns autores têm se referido à sociedade brasileira como a Belíndia mistura de Bélgica e Índia como forma de dar conta da existência de mais de um Brasil um altamente desenvolvido e rico e outro extremamente subdesen volvido e pobre Isto precisamente foi possível pelo encurtamento da esfera pública devido à intervenção e ao papel crescente que grupos econômicos e políticos tiveram na mesma Dessa forma o público é barrado do Estado e este continua a incrementar a capacidade já existente do exercício público de interesses privados leiase de grupos até a não diferenciação entre o que é público e o que é privado Indivíduo Sociedade O homem em sociedade deixa de ser um indivíduo para ser sujeito de si mesmo e dos outros no processo de interação social Só posso me reconhecer como indivíduo em sociedade porque o reconhecimento dos meus direitos ainda que imperfeito é a comprovação da possibilidade de satisfação destes no futuro Considerando que a teoria liberal separa o indivíduo da sociedade e a esta trata como um agregado de indivíduos apresentandoa dessa maneira atomizada tornase importante destacar o tratamento que Freud dá ao tema por ser o primeiro teórico que a partir de uma perspectiva do indivíduo enfocou a questão sob uma visão societária9 A condição da civilização para Freud é colocada na renúncia ao desejo mas isso se torna possível não exclusivamente como um ato de repressão im 9 Nós agora temos que considerar o último mas não certamente o menos importante dos compo nentes da cultura a saber o caminho no qual as relações sociais como um objeto sexual para outros como membro de uma família ou do Estado É especialmente difícil neste assunto não ter preconceitos que obedecem a padrões ideais e determinar com exatidão o que é especificamente cultural Possivelmente poderseia começar por estabelecer que a primeira tentativa para regular as relações sociais conteve de maneira acabada os elementos essenciais da civilização Se esta tentativa não tivesse sido feita estas relações seriam sujeitas ao arbítrio dos indivíduos isto é o homem mais forte psicologicamente poderia decidir as coisas de acordo com seus próprios interesses e desejos A vida humana em comunidades apenas se torna possível quando os homens se juntam e isto constitui uma força superior à de qualquer homem isolado e esta unidade se mantém contra toda a singularidade individual A força deste corpo unido é oposta com Direito à força de um indivíduo o qual é condenado à força bruta Esta substituição do poder pela união dos indivíduos perante um homem singular é um passo decisivo em direção à civilização A essência disto é que os membros de uma comunidade têm restringido suas possibilidades de gratificação enquanto o indivíduo não tem reconhecido tal restrição Freud 195759 cap1pmd 872011 1029 41 4 2 posto pela vida em sociedade O instinto reprimido no indivíduo para obter o reconhecimento da autoridade ou dito de outra maneira trocado pelo amor paterno é o que possibilita ao homem a formação do superego como restri ção O superego é para Freud a mesma coisa que consciência Neste sentido o desejo premente afasta o homem do outro e de usufruir dos benefícios de se associar aos outros sejam esses benefícios imateriais não sentir culpa ser apreciado ou ser amado pelos outros sejam esses materiais a produção social é mais lucrativa do que o trabalho individual A realização imediata do desejo afasta o homem da capacidade de um domínio mais amplo do mundo e por sua vez a capacidade de antecipar resultados é o que lhe permite a postergação do desejo Essa capacidade de antecipação coloca o homem numa contradição permanente ser um indivíduo em sociedade submerso num jogo de perdas e ganhos e ao mesmo tempo continuar vivendo em sociedade A decisão de continuar vivendo em sociedade expressa historicamente por meio da ordem política tem mudado profundamente na forma levando em consideração cada vez mais o conjunto da sociedade assim como os indi víduos que a compõem Neste sentido a separação entre a ordem dos indivíduos e a esfera social é também uma construção ideal do pensamento Não há indivíduos sem socieda de Parece mais plausível falar de sujeitos como uma categoria relacional e da individualidade como o conjunto de interesses preferências inclinações gostos que compõem a percepção que os homens têm de si mesmos self e as opções que fazem nas relações interpessoais A referência a Freud neste trabalho justificase porque o tema do sujeito em psicanálise Birman 1991 é de ordem estritamente intersubjetiva Diferentemen te a ciência política tem resistido até muito recentemente a incorporar o plano do sujeito nas análises políticas Landi 1981 Giddens 1984 Evers 1984 Touraine 1989 Habermas 1984 Tal questão nos parece fundamental quando se trata de pensar formas de exercício da política no mundo moderno como viabilizadoras de melhores condições de existência para os homens A ciência política tem pro curado uma objetividade apoiada num modelo de conhecimento estrutural em que a política e as políticas públicas especialmente participam de uma lógica macropolítica alheia à atuação política de sujeitos dotados de vontade A idéia presente ao longo deste livro é a recorrência a sujeitos como protagonistas às vezes conscientes às vezes não do acontecer político Quanto a cap1pmd 872011 1029 42 4 3 isso a reprodução da democracia questão que nos ocupa prioritariamente está indissoluvelmente relacionada à constituição de sujeitos democráticos A referência a indivíduos ressalta o plano pessoal de satisfação de necessidades estritamente econômicas encaminhadas à reprodução da vida ou o consumo enquanto modo de vida na sociedade capitalista moderna esquecendo que es ses são também comportamentos sociais e culturais especialmente o consu mo para nos restringirmos ao mero ato de satisfação de uma necessidade material Ao nos referirmos a sujeitos estaremos lidando com um plano de análise no qual o reconhecimento do si mesmo e a construção da própria identidade estão sempre relacionados aos outros A referência a sujeitos políticos não pode se desvencilhar da noção do sujeito A disposição para a ação social ou política é relacionada neste sentido ao preenchimento de necessidades de cunho estritamente psicológico tais como as respostas dos outros aos comportamentos políticos ou o reconhecimento do outro emocional afetivo ideológico etc Mas também à capacidade de postergar no tempo os benefícios resultantes da própria intervenção ou dito de outra forma à capacidade de antecipar resultados futuros Por um lado o reconhecimento do outro ainda que constitutivo da ordem social como Freud 1957 afirma pode não ter uma correspondência consci ente da alteridade quando se trata da atuação social e política Por outro a representação que se tem de si mesmo self e do outro na ação política passa a ter uma conotação democrática quando a decisão de agir no plano político é um cálculo que necessariamente inclui o outro e onde por sua vez há certa confiabilidade da inclusão do self nos comportamentos externos ao mesmo Na dimensão do governo o reconhecimento do outro social não signifi ca a eliminação dos conflitos sociais Pelo contrário a existência dos mesmos poderia ser dirimida na arena da luta política dentro da diversidade de atores e interesses que esta comporta desde que as regras de competição democrática fossem suficientemente claras e explícitas para todos os atores sociais que parti cipam do jogo democrático sob a garantia de não exclusão qualquer que seja a questão política em jogo Tal possibilidade poderia provocar maior disposi ção ou encorajar amplos setores da sociedade a disputar por meio da luta política a publicização da esfera pública Em sociedades extremamente desiguais a constituição do self é privilégio a ser usufruído por aqueles indivíduos que acederam à satisfação plena das neces sidades e onde o outro remete à quase metade da população desprovida do cap1pmd 872011 1029 43 4 4 direito a se alimentar diariamente ter um teto onde morar ter direito ao traba lho e à saúde e a formar parte da sociedade condições tais que por sua ausência colocam em questão a própria ordem civilizatória Em verdade quando refletimos a respeito das políticas sociais não estamos pensando exclusivamente em políticas de ordem redistributiva de bens de con sumo social cujo locus administrativo é dado na esfera do Estado ainda que essa seja uma primeira aproximação à compreensão do papel das políticas sociais O que pretendemos focar é a constituição de agentes sociais em estreita relação com as políticas o que implica definição das demandas referidas à política social e o fato de estes agentes serem sujeito da política A idéia de constituição de sujeitos em estreita relação com as políticas sociais requer a existência prévia de direitos de cidadania universais legitimados pela ordem política As políticas sociais passariam assim a adquirir em nossa compreensão o status do que Giddens10 denominou políticas emancipatórias Eqüidade Justiça A questão da eqüidade é sob a perspectiva aqui adotada um componente principal da democracia A eqüidade é embutida na idéia da cidadania não como princípio mas como o resultado das lutas sociais que transformaram a idéia de cidadania na obtenção de direitos concretos pela população Os direi tos civis políticos e por último sociais constituíram os três momentos dos quais a cidadania se nutriu até alcançar um significado pleno que segundo Marshall 1967 encontrase bem distante daquele com o qual a concepção liberal lhe deu origem A História pôs em movimento a idéia da cidadania tendo redefinido assim sua própria noção Daí que entre o princípio de igualda de formal e a noção de eqüidade se interpõe o reconhecimento da incapacidade de o mercado dar conta das desigualdades inerentes à sociedade As transformações históricas protagonizadas pelo movimento operário e pelos partidos de esquerda levaram a profundas reformas do capitalismo 10 Defino política emancipatória como uma perspectiva genérica referente fundamentalmente à liberação de indivíduos e grupos dos entraves que afetam de maneira adversa suas chances de vida As políticas emancipatórias envolvem dois elementos principais o esforço de deixar para trás o passado permitindo uma atitude de transformação em direção ao futuro e o propósito de supera ção da dominação ilegítima de alguns indivíduos ou grupos sobre outros As políticas emancipatórias objetivam reduzir ou eliminar exploração desigualdades e opressões Giddens 1991212213 cap1pmd 872011 1029 44 4 5 Przeworski 1992 por meio da intervenção do Estado na economia e da regulação do mercado De fato os direitos sociais constituíramse conquista das lutas operárias A incorporação desses direitos mediante políticas sociais tiveram expressão nos Welfare States europeus em que a igualdade formal se aproximou da igualdade real Assim a eqüidade como resultado não é mais do que a maneira pela qual as modernas democracias sociais traduziram politicamente sob o capitalismo as desigualdades sociais em distribuição mais eqüitativa da riqueza e do bemestar social A ampliação dos direitos sociais requer a progressiva intervenção do Esta do por intermédio de políticas sociais Por um lado as implementadas a partir da década de 40 provocaram forte intervenção política do Estado e portanto uma mudança na concepção liberal da democracia A própria noção de de mocracia começa a ser relacionada à ampliação da participação social e política e às condições de vida capaz de proporcionar à população Por outro essas mesmas políticas sociais como alternativa de implementação política das trans formações que atravessou a própria concepção de democracia exigiram a presença reguladora do Estado na economia Uma parte do investimento estatal o destinado às políticas sociais passou a ser considerada compensatória da pobreza e investimento de capital sem retorno de lucro As políticas sociais funcionaram como salário indireto Aquela parte do trabalho não retribuída pelo empregador e por este apropriada no processo de produção coluna vertebral do processo de acumulação capitalista a maisvalia passa a ser compensada pelo Estado por meio de bens de consumo social como aposentadoria saúde educação e moradia Uma das idéias que perpassou na época a teoria econômica keynesiana foi a de que a ampliação do consumo era a chave para o crescimento econômi co os benefícios sociais através das políticas sociais têm como papel principal liberar uma parte considerável do salário que já não precisa ser destinada à reprodução da força de trabalho e poderá ser destinada ao consumo Neste sentido o Estado teve também um importante papel regulando o papel do mercado e agindo como planejador investidor e direcionador do processo de acumulação capitalista Além disso uma forma de evitar modificações estrutu rais pode ser atenuando os efeitos do capitalismo sobre a classe trabalhadora De fato o desgaste excessivo da força de trabalho inviabiliza um melhor aproveitamento da mesma no futuro pela diminuição das capacidades necessá rias para absorção de mudanças tecnológicas no processo produtivo e pela cap1pmd 872011 1029 45 4 6 própria deterioração das condições de saúde do trabalhador O Estado tem apoiado os investimentos privados e regulamentado os públicos o que signifi ca também assumir tarefas de controle e do equilíbrio do ciclo econômico Tal processo foi longo e complicado na medida em que implicou altera ções substantivas na economia capitalista e no modelo teóricoliberal que tinha sustentado até a década de 30 a não intervenção do Estado na economia e a própria noção de democracia como democracia liberal Essas transformações que sofreu o capitalismo foram possíveis pelo grau de enfrentamento produzi do pelas desigualdades sociais e pelo desmascaramento do discurso da igualda de entre os indivíduos que o liberalismo vinha exercitando desde os primórdios do capitalismo O processo teve origem e referência no campo da política A teoria mar xista da sociedade capitalista junto às experiências socialistas de princípios do século colocou a questão de uma maior eqüidade distribuição da riqueza como exigência das classes trabalhadoras européias em relação ao sistema econômico capitalista e sua contrapartida política à democracia liberal A estruturação de fortes sindicatos nos setores vitais da economia ligados aos partidos comunista e socialdemocrata que adquiriram um peso crescente no eleitorado europeu abriu uma nova perspectiva para o capitalismo via Welfare State Eqüidade e justiça social não são mais que as duas faces da mesma moeda A eqüidade é agora uma condição da cidadania redimensionada a partir das transformações do capitalismo enquanto a justiça social diz respeito à incorpo ração da eqüidade como um novo código moral e ético das democracias mo dernas A justiça social ao mesmo tempo que dá conta da inclusão da igualdade real na noção de cidadania retraduz no plano formal uma nova ordenação jurídica que poderia ser considerada na ordem do Direito Social Tratase de uma esfera na qual se interpenetram instituições estatais sociais e que conseqüen temente não permite ser enquadrada nem no Direito Público nem no Privado É interessante notar que apesar desse processo histórico não há no siste ma capitalista como um todo nenhuma necessidade indefectível de incorporar essas transformações Pelo contrário nos países em que não houve uma classe trabalhadora ou movimentos sociais que tenham acumulado importantes quo tas de poder político o capitalismo como sistema econômico tende a ser tanto ou mais predatório e reprodutor de enormes desigualdades sociais que quando de sua instalação originária cap1pmd 872011 1029 46 4 7 Neste sentido seriam necessárias transformações na concepção e no exer cício da política ao levarmos em consideração que historicamente a ação polí tica tem tido um valor substantivo nas transformações do capitalismo fazendo com que este se torne mais flexível A incorporação da eqüidade na concepção da democracia e a maneira de implementála nos parece uma das questões centrais que hoje se colocam para o Brasil e outros países que atravessaram regimes autoritários e se encontram com enorme parcela da população no limite da pobreza absoluta11 Democracia e Reforma A democracia comporta reforma Que capacidade tem a democracia de absorver reformas Que tipo de reformas Em relação à primeira pergunta se pensarmos a democracia apenas como um sistema de governo acabaríamos confirmando necessariamente as premis sas elaboradas sobre a teoria liberal no século XIX Esta imaginou a democracia como o mais aperfeiçoado dos sistemas políticos um sistema formal de igual dades e liberdades expressas politicamente mediante o voto de cidadãos livres e iguais representado por partidos políticos competindo pela conquista do go verno por meio de eleições onde a decisão seria das maiorias mas sem que isso significasse que as minorias tivessem de se sujeitar ao domínio despótico das maiorias A teoria da democracia se colocava no contexto da economia capita lista e dentro de uma concepção do Estado na qual a economia e a política eram instâncias diferentes e separadas No entanto o percurso histórico do exercício da democracia a partir das forças políticas e sociais fez com que sua práxis se distanciasse enormemente 11 Przeworski 1992109 tem um enfoque diferente dessa questão Minha versão a respeito desta questão as contradições inerentes ao capitalismo defende que o capitalismo é irracional porque não pode acender a certas distribuições de bemestar que são tecnicamente factíveis Nós podemos ter meios tecnológicos e organizacionais de alimentar a todos na Terra e a vontade de fazêlo mas ainda assim ser incapazes de conseguir isto sob o capitalismo Imagine uma economia na qual há dois agentes P e W Se os resultados não dependessem das taxas de retorno dos investimentos controlados por estes agentes logo sob um dado estágio da tecnologia toda a distribuição do bem estar se resume ao nível em que os resultados sejam acessíveis Mas sob o capitalismo os resultados dependem das taxas de retorno dos investimentos Se os capitalistas recebessem o retorno completo do capital e os trabalhadores o retorno completo do trabalho logo os recursos poderiam ser eficientemente alocados e a distribuição dos ingressos poderia refletir a produtivi dade marginal dos fatores Mas se os capitalistas ou trabalhadores não têm o retorno completo isto é se a distribuição de ingressos difere do mercado competitivo eles poderão retirar capital ou trabalho e os recursos seriam subutilizados Sob o capitalismo investimentos capital e força de trabalho propriedade privada e quem decide se vão e como vão utilizálos são os próprios interessados cap1pmd 872011 1029 47 4 8 daquilo que a teoria clássica pensou como tal ao mesmo tempo que o campo teórico da democracia acrescido pelo pensamento marxista a respeito do Esta do capitalista procurou acompanhar as transformações históricopolíticas das democracias Acreditamos que as mudanças no campo teórico seguem um eixo que se estende da democracia formal à democracia substantiva entendendo por de mocracia substantiva o seguimento teórico do processo histórico pelo qual agentes sociais conquistam efetiva cidadania produzindo ruptura no discurso demo crático liberal Afirmamos que o capitalismo per se não comporta reformas quando estas ocorreram tiveram origem no campo da política foi a luta polí tica nas democracias modernas que levou a mudanças no capitalismo A vitalidade da idéia da democracia reside precisamente na sua indefinição teórica na sua capacidade de se adequar às transformações históricas do agir político sem realizarse em uma teoria acabada da democracia Neste sentido a democracia é uma construção históricopolítica e também teórica Se aceitar mos essa afirmação concluiremos que a democracia enquanto enunciado com porta qualquer reforma Ao se indagar sobre a capacidade da democracia de absorver reformas e se a absorção ou não das reformas está diretamente relacionada ao grau de profundidade das mesmas podese responder que quando as reformas colo carem em perigo forças constituídas ou consolidadas no regime anterior a dificuldade de sua implementação crescerá proporcionalmente à dimensão das mencionadas forças Será necessário portanto um diagnóstico apurado ou o mapeamento das forças políticas e sociais envolvidas e nãoenvolvidas no pro cesso de reforma a relação de força entre elas e um cálculo estratégico que possibilite a acumulação de poder para a implementação das reformas Mas seria possível chegarse talvez a otimizar resultados com um investimento de tempo maior se se trata de implementar reformas parciais Schmitter 1991b4 discute a respeito da consolidação da democracia me diante a constituição do que chama de regimes parciais e baseada na idéia gramsciana da construção de hegemonia por meio da guerra de posições Com o propósito de analisar esse processo a consolidação da democracia pode ser proveitoso pensar a democracia moderna não como um regime mas como um mix de regimes parciais cada um articulando e governando um dife rente conjunto de instituições Quaisquer que sejam a identidade e a significação dessas instituições a con solidação do conjunto delas não acontece ao mesmo tempo A lógica das mu cap1pmd 872011 1029 48 4 9 danças nos regimes obedece a certas prioridades Algumas mudanças são in trínsecas à natureza genérica da democracia como a institucionalização de um regime de controle civil sobre os militares ou acertos de negociação coletiva entre capital e trabalho mas podem não ser implementadas no momento em que seria conveniente pelo poder dos grupos de interesse que se veriam afe tados Essas diferenças nas seqüências nas quais distintos conjuntos de institui ções são objeto de mudanças ou não o são podem ser cruciais para com preender os resultados eventuais A questão à qual Schmitter nos encaminha é que em última instância os regimes parciais que se estabeleçam vão prover importante informação a res peito do tipo de democracia que está sendo implementada Ou seja a luta dos diversos interesses em jogo representados por uma ou outra proposta as estra tégias utilizadas e o timing para sua implementação vão possibilitar que reformas parciais ou setoriais sejam ou não efetivadas Neste sentido a democracia tem uma quota importante de incerteza Przeworski 1992 ODonnell 1988 Schmitter 1991a mas condicionada a uma relativa certeza Esta creio seria dada pelo fato de que cidadãos munidos de uma cultura cívica estarão em condições de aceitar que outros interesses de classe pessoas ou grupos definam os cursos de ação política sempre que existam os canais e um tempo possível para a implementação dos próprios interesses12 Acreditamos que a Reforma Sanitária e a luta em prol de sua implementação atualizam a disputa pelo predomínio da representação de interesses no setor saú de por sua vez inscrito no contexto político mais amplo do processo de demo cratização A Reforma Sanitária pode ser compreendida como um processo de estabelecimento de uma democracia parcial ou como um regime parcial em que a sua efetiva instituição e institucionalização atualizaria na arena política da saúde a condição de possibilidade do exercício da democracia tal como com preendida neste capítulo Ou seja não são condições suficientes para a consoli dação da democracia o estabelecimento das intituições políticas eleições perió dicas e partidos políticos a questão da eqüidade é principal para que a democracia se efetive A Reforma Sanitária atualiza tal condição no campo da saúde Para discutir a última das perguntas aqui colocadas acerca do tipo de re formas acreditamos na necessidade de distinguir as transições do Leste euro 12 A consolidação da democracia pode ser vista como um processo o melhor dos processos que torna esses procedimentos possíveis Esta institucionaliza a incerteza em um subconjunto de papéis políticos e arenas políticas enquanto institucionaliza a certeza em outras Schmitter 1991a6 cap1pmd 872011 1029 49 5 0 peu das transições na América Latina Isso é importante porque de maneira geral quando se discute a questão das reformas há uma assimilação entre estas e economia de mercado Reformas e liberalização do mercado são a nosso ver questões diferentes Julgamos que não o são no caso dos países que estão transitando do socialismo para a democracia A necessidade de liberalização política traz consigo nos países do Leste a recuperação do indivíduo não como sujeito ainda que isso também esteja presente como reivindicação de um indivíduo diferenciado da sociedade de uma ideologia de homogeneização social sustentada na ditadura do proletari ado para a qual o indivíduo não tem valor A recuperação do indivíduo pareceria trazer consigo a obtenção de um maior bemestar econômico e condições de vida mais confortáveis portanto demandas pela ampliação do consumo e da propriedade privada O indivíduo como proprietário alcança a sua realização pessoal pela diferença assim a posse de bens o diferenciará dos outros Não pretendemos a respeito dessas observações estabelecer juízos de valor Em definitivo qualquer forma de imposição política via autoritária seja militar ou partidária conduz a altos graus de compressão social que necessariamente encontram algum tipo de resolução com a desaparição do regime autoritário e da ideologia que o sustentou Quando as barreiras de contenção se quebram os movimentos sociais crescem e a constituição de processos de construção de identidades políticas se opera pela formação de um campo simbólico próprio e diverso daquele que tinha prevalecido em um momento anterior Neste senti do as reformas políticas nos países do Leste precisariam ser acompanhadas por reformas econômicas encaminhadas à liberalização da economia e portan to à constituição do mercado No caso da América Latina ocorre precisamente o contrário Os regimes autoritários aprofundaram a acumulação capitalista ODonnell 1975 o que significou particularmente no caso do Brasil um processo de aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza até um ponto que pode ser considerado intolerável para o conjunto da sociedade Somado a isso os estertores do regi me autoritário foram acompanhados por uma crise econômica derivada da elevação internacional dos preços do petróleo o que levou a uma elevação considerável da inflação e também a um empobrecimento das classes médias Desse modo o que o processo de transição trouxe consigo foi o anseio por mudanças políticas que acabassem com o arrocho salarial e pudessem pro ver a distribuição mais justa da renda e menores desigualdades sociais Assim a cap1pmd 872011 1029 50 5 1 construção de identidades políticas nos movimentos sociais que cresceram nes se período questão que será tratada de maneira detalhada adiante criou um campo simbólico baseado na justiça social Por esse motivo as reformas no campo da economia foram entendidas como a necessidade de controle sobre o capital monopolista e portanto sobre o lucro das empresas a eliminação dos anéis burocráticos no interior do Estado Cardoso 1975 o crescimento do in vestimento em políticas sociais a reforma agrária e o nãopagamento da dívida externa As reformas tinham um conteúdo claro de socialização da economia Ao contrário o que houve foram governos que com plataformas e sub terfúgios políticos pouco claros venceram as eleições e pretenderam implantar com maior ou menor êxito Argentina Chile Brasil reformas econômicas no sentido de desregular a economia e cumprir as metas do FMI Tais diretrizes foram seguidas não só em termos do pagamento da dívida externa mas funda mentalmente em medidas de economia interna destinadas a controlar a inflação dando um maior predomínio ao livre exercício das forças econômicas no mer cado abrindo as importações restringindo a inversão interna diminuindo o consumo e produzindo em definitivo a recessão e o crescimento da pobreza e das desigualdades sociais Isso leva a afirmar que as únicas reformas possíveis na América Latina são as postuladas pelo conjunto da sociedade e as de caráter progressivo nas quais o mercado ainda que mantido seja regulado É nesse contexto que se inscreve o processo da Reforma Sanitária no Brasil cap1pmd 872011 1029 51 5 3 2 O Processo de Reformulação do Setor Saúde os atores as estratégias e o papel dos organismos estatais O processo de transição à democracia trouxe a emergência de novos ato res coletivos Movimentos sociais proliferaram em todo o País juntamente com as novas formas de exercício da política ao mesmo tempo em que novos par tidos faziam sua entrada na cena política nacional Em cada canto do País as demandas por mudanças de liberalização política e de justiça social tomavam conta da sociedade No conjunto dos partidos de oposição o resgate da dívida social resul tante das políticas econômicas de alta concentração de renda do regime autori tário era considerado o leitmotiv da construção da democracia Um amplo debate perpassou a sociedade como um todo no qual a possibilidade de rever ter as enormes desigualdades sociais e a extrema extensão da pobreza se traduziu em propostas políticas que se concentraram na redefinição de políticas sociais Estas foram vistas pelos partidos políticos de oposição como iniciadoras de um processo redistributivo de renda caminho para a universalização de benefícios sociais para toda a população Nesse contexto inscrevese o processo de reformulação do setor saúde que culminou com a proposta da Reforma Sanitária brasileira Teve início em meados dos anos 70 e trouxe como liderança intelectual e política o autodenominado Movimento Sanitário Tratavase de um grupo restrito de intelectuais médicos e lideranças políticas do setor saúde provenientes em sua maioria do Partido Comu nista Brasileiro PCB Este exerceu papel destacado de oposição ao regime mili tar assim como trajetória política própria na área da saúde O grupo influenciou fundamentalmente o âmbito acadêmico e pode ser considerado o mentor do processo de reformulação do setor Recebeu influên cia do modelo da Reforma Sanitária italiana e desempenhou também impor cap2pmd 872011 1030 53 5 4 tante papel em organismos internacionais como a Organização PanAmerica na da Saúde OPS e em experiências alternativas de saúde implementadas em alguns municípios brasileiros na década de 70 A partir da abertura política e no período em que estava bem avançada a transição à democracia passou a ocu par importantes espaços nos aparelhos institucionais de saúde no âmbito do governo federal assim como nos governos estaduais e municipais A constituição do projeto reformador no âmago do Movimento Sanitário teve o primeiro impulso na década de 70 com a criação dos departamentos de medicina preventiva nas faculdades ligadas à área a partir dos quais se difundiu o pensamento crítico da saúde Vinculado a esse percurso acadêmico houve também avanços progressivos na implementação de políticas de saúde alterna tivas às impostas pelo regime militar à medida que a transição à democracia adquiria um perfil mais nítido Isso foi feito ou por meio de programas de extensão universitária ou a partir das secretarias municipais de saúde de alguns estados onde se tinha certo controle político sobre as prefeituras ou até mesmo por intermédio da ocupação de cargos técnicoadministrativos no Ministério da Previdência Social O projeto reformador sustentouse sobre uma ampla crítica ao modelo prevalecente baseado no crescimento do setor privado à custa do setor público o primeiro sendo financiado pelo segundo o que levou à falência deterio ração ineficiência e crise do sistema público de saúde Oliveira Teixeira 1986 Sem pretender refazer a história das propostas reformadoras na saúde cabe assinalar alguns de seus principais momentos Oliveira Fleury 1986 Um deles o Programa de Ações Integradas de Saúde desenvolvido no interior da Previdência Social propunha mudanças na relação entre o setor público privado passando a privilegiar o financiamento do setor público Pretendia também alterar o modelo médicoassistencial promovendo uma relação inte grada interna ao setor público e dando prioridade à assistência ambulatorial estendendo também a cobertura e melhorando a qualidade dos serviços Ainda que se tratando de experiência parcial já que seria implementada apenas em alguns estados e municípios a assinatura dos convênios das Ações Integradas de Saúde AIS iniciada em 1982 previa de maneira incipiente a existência de instâncias de participação da população na gestão dos serviços de saúde o que se constituiria também numa primeira tentativa de descentralização do Sistema de Saúde A partir de 1983 o Movimento Sanitário ampliou a proposta de reformulação do sistema de saúde com a ocupação de espaços nas instituições cap2pmd 872011 1030 54 5 5 estatais de saúde com objetivo de produzir mudanças na política de saúde e tendo em vista que o próprio processo de transição à democracia o permitia Tal crescimento adquiriu sua mais acabada expressão com a VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986 na qual se definiu o projeto da Reforma Sanitária brasileira que introduziu mudanças no setor da saúde de forma a tornálo democrático acessível universal e socialmente eqüitativo O projeto da Reforma Sanitária sustentouse numa conceitualização da saúde ampliada relacionada às condições gerais de vida como moradia sanea mento alimentação condições de trabalho educação lazer A saúde neste sen tido é definida como um direito do cidadão e conseqüentemente um dever do Estado Ou seja os cuidados à saúde ultrapassam o atendimento à doença para se estenderem também à prevenção e à melhoria das condições de vida geradoras de doenças Para que isso fosse efetivado fizeramse necessárias transformações nas políticas de saúde tendo sido encaminhadas pela proposta os seguintes pontos criação de um sistema único de saúde com notável predomínio do setor público descentralização do sistema e hierarquização das unidades de atenção à saúde participação e controle da população na reorganização dos serviços readequação financeira do setor O notório retrocesso político após o primeiro ano de governo da Nova República imprimiu considerável estagnação em âmbito governamental no rit mo da implementação do processo de reformulação do setor se comparado com os notáveis avanços conseguidos na definição da reforma do sistema na VIII Conferência Nacional de Saúde A Comissão Nacional da Reforma Sanitária A partir da aprovação na VIII Conferência do projeto da Reforma Sani tária darseia então continuidade às resoluções emanadas desta por meio da formação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária que teria em suas mãos o processo de implementação do projeto na esfera do governo Paralelamente criouse a Plenária Nacional de Entidades de Saúde cuja finalidade era dar cap2pmd 872011 1030 55 5 6 continuidade à articulação dos organismos da sociedade civil que participaram da VIII Conferência e elaborar um projeto constitucional para ser apresentado no processo constituinte A Comissão Nacional da Reforma Sanitária proposta pelo Ministério da Saúde como desdobramento da VIII Conferência Nacional de Saúde previa uma composição paritária de entidades do governo e da sociedade No entan to sua composição não correspondeu ao peso real das associações da socieda de civil ficando estas em minoria em relação aos organismos estatais e privados do setor saúde A Comissão foi aprovada e constituída por 22 representantes dos quais somente seis eram representantes de organismos populares a Central Única dos Trabalhadores CUT a Confederação Nacional dos Trabalhadores CGT a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura Contag a Confederação Na cional dos Médicos FNM e a Confederação Nacional de Associações de Moradores Conam Os outros 16 membros pertenciam a organismos gover namentais a parlamentares a centrais patronais e a prestadores privados de serviços de saúde A composição da Comissão atualizou desde o início a forma de preser vação do Estado perante políticas oriundas das entidades organizadas da soci edade além de alternativas ao modelo hegemônico no setor saúde A Comis são Nacional da Reforma Sanitária pode se constituir em um bom exemplo de como o Estado filtra demandas da sociedade por meio do exercício da seletividade estrutural Offe 1984 Esse mecanismo não se operou pelo veto de algumas temáticas e a seleção de outras mas pelo procedimento utilizado por organismos estatais para compor a Comissão A partir da formação da concessão produziuse um deslocamento da luta que acontecia no âmbito social e que culminou com uma proposta de amplo alcance e consenso social para o interior dos organismos estatais de saúde A disputa pela implantação da Reforma Sanitária passou a se dar no terreno dos enfrentamentos políticos das diversas facções da tecnoburocracia do setor e a propósito da execução dos avanços operacionais previstos pelo projeto Os Percalços no Processo da Reforma Esses enfrentamentos ocorridos no Ministério de Saúde e mais fortemen te na Previdência Social estiveram permeados pelas próprias lógicas do setor cap2pmd 872011 1030 56 5 7 público portanto limitados pela relação de forças no interior dos aparelhos de Estado afeiçoadas ao clientelismo político à política de favores pessoais e às rotinas burocráticas como uma maneira de impedir a implantação de políticas inovadoras nas práticas institucionais As tentativas de transformação do sistema de saúde mediante a ocupação de espaços nesses ministérios não conseguiram produzir avanços continuados na implantação da Reforma Paulatinamente os representantes do Movimento Sanitário foram sendo demitidos de seus cargos13 Quanto à efetiva implantação da Reforma em 1987 aprovouse o Decre to pelo qual se criou o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde Suds que contemplava o encurtamento da máquina previdenciária de nível estadual a transferência dos serviços de saúde e dos recursos financeiros para os estados e municípios o estabelecimento de um gestor único de saúde para cada esfera de governo e a transferência para os níveis estadual e municipal dos instru mentos de controle sobre o setor privado Escorel 1992 No entanto a implementação dos Suds acabou decepada no que tinha de transformação substantiva do sistema de saúde tendo ocorrido apenas algumas mudanças administrativas no setor A política de saúde do governo da Nova República acompanhou os per calços da transição caracterizandose por idas e vindas no processo de descentralização na integração interinstitucional e no que diz respeito ao privilegiamento do setor público Por meio de mecanismos políticos contábeis e burocráticos no Inamps e no Ministério da Saúde criaramse obstáculos à implementação dos SUS dentre os quais o que mais se notabilizou foi o desa parecimento dos recursos nos meandros das máquinas federais estaduais e municipais Certamente as destinatárias finais do financiamento do setor as unidades locais de saúde viveram em permanente crise por não terem condi ções de pagar aos profissionais de saúde bem como pela falta de instrumental manutenção dos equipamentos e dos medicamentos Os percalços à implantação da Reforma geraram uma grande desconfian ça na população em relação ao setor público da saúde A situação foi muito 13 Na Previdência Social a condução comprometida com as reformas mantevese até meados de 1988 quando da negociação do mandato presidencial e do regime de governo A partir de 1988 nenhum representante do Movimento Sanitário permaneceu em cargos da direção do Inamps Escorel 199223 cap2pmd 872011 1030 57 5 8 bem aproveitada pelo setor privado que cresceu consideravelmente no período sobretudo os seguros privados de saúde Em 1989 aproximadamente um quarto da população 32 milhões de pessoas estava coberto por seguros privados os quais movimentavam em torno de 25 bilhões de dólares cerca de 19 do gasto total com saúde Revista Conjuntura em Saúde jul 1992 A Plenária Nacional de Entidades de Saúde teve significativos avanços em termos de articulação de um movimento social de caráter nacional em torno da questão da saúde conseguindo plasmar na Constituição Nacional os princípios da Reforma Sanitária A Plenária foi constituída em meados de 1987 alimenta da pelas Plenárias Estaduais criadas imediatamente após a VIII Conferência Nacional de Saúde Compunhase de entidades representativas das seguintes forças Movimento Popular em Saúde Confederação Nacional de Associação de Moradores Conam e federações estaduais movimento sindical Central Única dos Trabalhadores CUT Confede ração Nacional dos Trabalhadores CGT Confederação dos Trabalhado res da Agricultura Contag partidos políticos de esquerda Partido Comunista Brasileiro PCB Par tido Comunista do Brasil PC do B Partido dos Trabalhadores PT Par tido Socialista Brasileiro PSB Partido Democrático Trabalhista PDT profissionais de saúde representantes do Movimento Sanitário e a acade mia Centro Brasileiro de Estudos em Saúde Cebes Associação Brasilei ra de PósGraduação em Saúde Coletiva Abrasco União Nacional dos Estudantes UNE etc entidades estaduais e municipais da saúde favoráveis à Reforma Conse lho Nacional dos Secretários de Saúde Conass Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde Conasems De fato a articulação e organização das forças populares na Plenária Nacional possibilitou que o capítulo da saúde na Constituição contemplasse o direito universal à saúde e a criação de um sistema único de saúde descentraliza do acessível e democrático Incluiu a complementação das necessidades de saú de da população com serviços preferencialmente filantrópicos e estabeleceu com o setor privado em geral contratos regidos pelas normas de direito públi co Assim enquanto a Reforma Sanitária era incorporada à Constituição no cap2pmd 872011 1030 58 5 9 capítulo referente à saúde paradoxalmente a implementação do Suds atravessa va o momento de maior retrocesso que por sua vez repercutiu fortemente no Movimento Popular em Saúde como veremos adiante A Construção de uma Abordagem Conceitual Ao considerarmos a Reforma Sanitária como uma particular política de saúde a estamos incluindo dentro do campo mais amplo das políticas sociais no contexto de democratização Neste sentido o que nos interessa por ora é discu tir as diversas formulações teóricas sobre política social de maneira que estas contribuam para desvendar o processo da Reforma Sanitária brasileira especi ficamente no tocante à sua implementação iniciada em 1987 com a reforma administrativa do sistema de saúde e a criação do Suds que atravessou gran des empecilhos para se efetivar A Reforma Sanitária colocanos perante ques tões que remetem ao campo teórico das relações entre o cidadão e o Estado no direcionamento e na implantação de políticas sociais em um contexo de cons truçãoconsolidação da democracia No interior da ciência política desde o século XVIII e sob diferentes pers pectivas a política social constituiu um âmbito de reflexão no sentido de problematizar se o Estado deveria intervir ou não para suprir ou remediar as carências ocasionadas pela pobreza se a pobreza deveria ser atribuída à incapa cidade das pessoas ou se pelo contrário o movimento natural da economia e suas flutuações é que geravam pobreza Já no século XIX vários pensadores se preocuparam em discutir o papel que caberia ao Estado perante o processo de industrialização capitalista que destituiu da proteção social os milhares de trabalhadores que abandonavam as formas feudais agrárias de produção para se constituírem trabalhadores livres No liberalismo clássico ou no liberalismo conservador de nossos dias entende se que o Estado não deve intervir na economia nem para corrigir desigualdades sociais restringindose à sua expressão mínima as políticas sociais Outras correntes de pensamento que se distanciam do liberalismo aproxi mandose de propostas socialdemocratas defendem a incorporação por par te do Estado de políticas regulatórias em relação ao mercado para contrabalan çar os efeitos nocivos do mesmo principalmente o desemprego e prover de seguridade social as camadas sociais desprotegidas eliminando as grandes desi gualdades sociais Expoentes dessa tendência são a teoria econômica keynesiana cap2pmd 872011 1030 59 6 0 e o Plano Beveridge enquanto proposta política concreta para o Estado forne cer seguridade social a todos os cidadãos Já no caso do marxismo clássico negase que o Estado capitalista possa prover bemestar às classes trabalhadoras ou avaliar os males que ele mesmo cria pois isso significaria a existência de valores contrários frontalmente às insti tuições capitalistas No entanto é de salientar o reconhecimento da proteção da mãodeobra por parte do Estado no tratamento que Marx dá à diminuição da jornada de trabalho na Inglaterra14 Este tem sido o ponto de partida para o pensamento das políticas sociais embora diferentes teorias ou abordagens teóricas das ciências políticas tenham tido apreciações próprias a respeito do domínio da política social Para o pluralismo as políticas sociais são entendidas como conseqüência da existência de diversos grupos de interesse presentes na sociedade que por atuarem numa determinada arena política influenciam a tomada de decisões a respeito das políticas sociais Na concepção elitista são os administradores policy makers que interagem no interior do Estado e dão substância concreta tanto às iniciativas como à implantação das políticas sociais A Teoria da Con vergência que constitui uma variante do modelo funcionalista entende que as políticas sociais são uma resultante do desenvolvimento econômico e industrial e que em torno deste a estrutura social como um todo se integra funcionalmente Nas abordagens mais recentes da teoria marxista há em alguns casos uma preocupação expressa pelas políticas sociais que se sustentam em estudos sobre a complexidade do Estado capitalista de nosso tempo Em outros a preocupa ção pela política social não se manifesta explicitamente como no caso de Poulantzas 1980 que no entanto se refere a elas ainda que de maneira não explícita ao analisar o papel atual do Estado Diante da diversidade de visões e definições da política social procurare mos aqui incorporar a riqueza e os diferentes ângulos de algumas dessas abor dagens teóricas buscando um marco conceitual que sem perder de vista a teoria marxista possa nos encaminhar a uma visão mais ampla no que diz res peito às políticas sociais e que evite tanto a pura determinação estrutural quanto o voluntarismo dos atores 14 sobre a constante pressão dos operários agindo por fora nunca essa intervenção darseia Em todo caso este resultado não teria sido alcançado por meio de convênios privados entre os operários e os capitalistas Marx 1978a96 cap2pmd 872011 1030 60 6 1 Denominaremos esse marco conceitual que integra elementos da teoria marxista e da teoria weberiana das instituições de enfoque integrado das polí ticas sociais identificado com a ótica de Offe 1984 mas complementado por algumas contribuições da bibliografia latinoamericana sobre o tema Para Offe 1984 existem dois planos de análise da política social um estrutural e um singular articulados mediante relações que se estabelecem no plano específico do político No plano estrutural as políticas sociais estão liga das ao Estado capitalista e às suas determinações estruturais No singular são consideradas pelas peculiaridades que as distinguem de outras políticas e sua singularidade pode ser captada por meio da pesquisa empírica concentrada em dois eixos básicos a evolução modificações e inovações de uma política social dada e a relação entre estratégias de racionalização administrativa e a implementação de inovações políticas No plano estrutural a política social cria condições socioestruturais para que o trabalho assalariado funcione como tal Por meio da política social o Estado vai regulamentar quem participa ou não do mercado de trabalho Para isso precisa organizar e sancionar as formas de existência externas ao mercado pessoas que pela idade avançada não estejam mais em condições de trabalhar passam a ser atendidas pelo sistema previdenciário pessoas que não estejam em boas condi ções de saúde ficam sob a responsabilidade do sistema de saúde crianças e jovens são atendidos pelo sistema de educação Neste sentido a política social responde às reivindicações da classe operária mas também a constitui na medida em que integra a força de trabalho ao mercado as diversas instituições de previdência saúde educação e habitacionais exer cem o controle da força de trabalho e socializam os custos do desgaste da mesma regulamenta quantitativamente a relação entre oferta e demanda no merca do de trabalho Como se poderia compreender a evolução as modificações e inovações no plano singular do estudo das políticas sociais Diante de uma visão marxista de cunho estrutural funcionalista que explica as políticas sociais ou porque ser vem ao processo de acumulação capitalista ou porque possibilitam que o Esta do se legitime junto às exigências da classe operária organizada Offe afirma que as inovações nessa área obedecem à compatibilização de estratégias que se dão na esfera do político cap2pmd 872011 1030 61 6 2 Assim o Estado reage tanto às exigências como às necessidades de acordo com as instituições políticas adequandoas modernizandoas etc e as relações de força existentes na sociedade canalizadas por essas instituições A política social não está a serviço das necessidades ou exigências de qualquer classe mas reage aos problemas estruturais do aparelho estatal de dominação e de presta ção de serviços Se a afirmação anterior é verdadeira as inovações na política social criam condições de interações conflitivas entre grupos e classes sociais e seus resultados são imprevisíveis ou ambivalentes Os Aportes da Bibliografia LatinoAmericana na Abordagem Conceitual da Reforma Sanitária Passamos a destacar algumas contribuições da bibliografia latinoamerica na que acreditamos contêm idéiaschave a serem incorporadas e articuladas nesta análise Tal incorporação sustentase na necessidade de em nosso ponto de vista enfatizar o papel que a luta política nas suas diversas formas e a relação de forças entre grupos sociais e classes têm nos processos de formula ção e implantação das políticas sociais Uma dessas contribuições Diniz 1978 destaca na análise das relações en tre Estado e sociedade o papel dos atores sociais mas sem abandonar a pers pectiva dos limites dentro dos quais esses atores agem as determinações estru turais do Estado capitalista Aponta o papel predominante que o Estado tem na bibliografia latinoamericana deixando num lugar subordinado da análise os fundamentos sociais da política Em outras palavras a primazia atribuída ao Estado no processo de desen volvimento capitalista ainda que esta seja incontestável descaracterizou a socie dade civil como geradora também de processos com dinamismo próprio Por isso defendese a necessidade de captar essa articulação de interesses suas cone xões com agências governamentais e técnicos localizados em pontos estratégi cos da burocracia pública Distinguese entre uma fase puramente decisória das políticas e outra de implementação chamando atenção para a distância entre a decisão e a aplicação É aí precisamente que se faz sentir o peso dos diversos interesses em jogo Há medidas que são aprovadas e cuja execução é bloqueada ou pela burocracia ou pelo poder de veto do grupo diretamente afetado Tratase de levar em conta a um só tempo as determinações estruturais e o peso das opções feitas cap2pmd 872011 1030 62 6 3 por atores ou grupos de atores que ao escolherem uma alternativa ou outra atualizam as possibilidades estruturais Diniz 197825 A idéia introduzida por Santos 1979 sobre a complexificação do social referese ao processo de diferenciação social e de multiplicação organizacional que se operou nas sociedades nas últimas décadas Surgem novos grupos com grande heterogeneidade como resultado de novos papéis ocupações e posi ções sociais sendo difícil reconhecer nessa diversidade classes sociais mais ho mogêneas Ao mesmo tempo o processo é acompanhado também pelo au mento de uma multiplicidade de organizações que cumprem o papel de mediatizar a ação desses movimentos e grupos sociais Finalmente Oszlak ODonnell 1976 analisam as políticas sociais a partir de uma perspetiva centrada na recuperação da história dos problemas sociais ou demandas políticas e da história das políticas Considerando que as políticas sociais ocorrem no cerne do Estado em sua ossatura institucional caberia interrogar como se retraduzem exigências sociais em problemas e por sua vez estes em resposta do Estado mediante políticas específicas Há uma seletividade das instituições políticas pela qual determinadas de mandas se traduzem em problemas e conseqüentemente em políticas e que opera nos dois planos da política social De um lado a tematização ou exclu são de questões referese ao plano singular da política social tais procedi mentos de outro operam no plano estrutural não deixando que determina das questões possam ameaçar a própria existência do Estado como Estado capitalista Tratase para Offe 1984 de uma seletividade estrutural desse mesmo Estado capitalista Um sistema de filtros vinculados a interesses de classes não visíveis faz com que determinadas questões sejam excluídas pelas instituições do Estado enquanto outras são transformadas de substanciais em menos rele vantes e algumas outras ainda favorecidas Hirsch 1977 da mesma forma trata desse sistema de barreiras e filtros que opera na órbita do Estado transformando exigências políticas em uma agenda viável de problemas e questões Acrescenta a esse tratamento quatro modalidades ou formas em que funciona na prática a seletividade as determinações fundamentais de desenvolvimento social não são objeto de decisões políticas o limite dos recursos materiais do Estado é dado pelo lucro do capital cap2pmd 872011 1030 63 6 4 a seletividade do sistema político se coloca na repressão física e na integração ideológica e de maneira principal as exigências que penetram nos aparelhos de Esta do são tratadas de maneira funcional por burocracias que atuam autono mamente e que têm competências clientelas e percepções próprias dos problemas Em relação a como se opera essa seleção Oszlak ODonnell 1976 chamam a atenção para um estudo não só das transformações do Estado capitalista e suas modalidades de relacionamento com a sociedade civil mas de maneira mais específica também de como o Estado opera para transformar questões sociais em políticas concretas No caso se trataria de recuperar o pro cesso histórico tanto dos problemas como das políticas Articulando agora as contribuições discutidas anteriormente com a pro posta elaborada por Offe as proposições dos autores discutidos anteriormen te teremos o seguinte quadro sinóptico para a análise da Reforma Sanitária brasileira Corte Sincrônico Corte Diacrônico PLANO ESTRUTURAL Corte Diacrônico Corte Sincrônico PLANO SINGULAR COMPLEXIFICAÇÃO DO SOCIAL PAPEL DOS ATORES Compatibilização A complexificação do social proveniente do enfoque de análise pluralista seria articulada no plano de análise estrutural possibilitando complexificar a análise marxista de classes sociais pois no estágio atual do processo de acumu lação capitalista não podemos localizar com nitidez as duas classes fundamen tais e antagônicas burguesia e proletariado Esse processo de estratificação dificulta tanto a delimitação objetiva de classe como a própria identidade de classe Grupos sociais que se superpõem à estrutura produtiva assim como movimentos sociais urbanos que surgem na esfera da reprodução da força de trabalho via consumo de bens coletivos proporcionados pelo Estado por meio de políticas sociais têm formas organizativas próprias expressando demandas sociais cap2pmd 872011 1030 64 6 5 Nessa diversificação social sustentamse os comportamentos dos atores políticos os quais são fundamentais para compreender inovações políticas Pa ralelamente esses atores podem assumir interesses diversos de classe corporativos de grupos individuais que podem ou não se exprimir ideologi camente O procedimento de adequação de estratégias políticas aos processos de racionalização administrativa eou inovações políticas assim como o direcionamento das mesmas é gerado pelo desempenho dos atores políticos Por último incorporar à análise a história das demandas sociais e das políticas sociais colocanos diante da necessidade de realizar um corte diacrônico históri co tanto no plano da análise estrutural quanto no plano singular das políticas sociais Isso complementaria a análise de Offe na medida em que este autor só fazia referência à importância de se realizar um corte diacrônico no plano singular das políticas sociais que reconstrua a história dos efeitos das políticas sociais Observações Resultantes do Enfoque Metodológico Adotado No marco da discussão teórica a Reforma Sanitária como política social foi uma proposta surgida de um movimento social que no cerne do processo de transição à democracia teve a capacidade de se articular Ainda que se tenha conseguido uma proposta acabada de reformulação do sistema de saúde sanci onada na Constituição há grandes dificuldades para implementála Diversos interesses presentes tanto na sociedade como no Estado oferecem resistências utilizando desde mecanismos de veto à política até tentativas de modificála substancialmente Offe 1984 menciona algumas dificuldades dilemas e possíveis soluções ao tratar das inovações sociopolíticas e de racionalização administrativa experi mentadas na Alemanha com a crise do Welfare State que puderam colaborar para evitar os vetos à Reforma Sanitária A Social Democracia alemã não pou pou recursos fiscais destinados a políticas sociais No plano das inovações sociopolíticas procurouse então aumentar a efi ciência das políticas sociais especificamente em relação à política de saúde uma das soluções encontradas foi por intermédio de estratégias preventivas buscan do melhorar as condições de trabalho e de vida da população As dificuldades e resistências assinaladas anteriormente podem nos servir de referência ao aprofundarmos os problemas concretos que a implementação da Reforma Sanitária traz no caso do Brasil sem significar que seja viável a cap2pmd 872011 1030 65 6 6 reprodução das experiências realizadas nos países com democracias avançadas estas nos ajudam a pensar as questões políticas e econômicas relacionadas a processos de reformas ou inovações sociopolíticas que passam então a adqui rir importância decisiva na consolidação da democracia Um dos problemas atuais de maior complexidade para o estabelecimento da democracia é a representação dos interesses subalternos nas agendas políticas ou mais precisamente a existência de espaços para que isso aconteça no interior das políticas sociais Ainda que hoje nos países de capitalismo avançado o Esta do não possa incorporar demandas sociais como em décadas anteriores diver sos interesses de maneira institucionalizada ou não se fazem representar No meio de uma profunda crise do Welfare State os sindicatos e outras organizações sentamse à mesa de negociações participando da formulação e implementação de políticas sociais No Brasil onde não houve até recentemen te sistema político de corte liberaldemocrata o reconhecimento de direitos de cidadania e especificamente do direito de usufruir de um mínimo de bem estar foi bastante tolido Tal situação é agravada pela implantação de políticas econômicas de ajuste à crise que trouxeram cortes nos gastos destinados às políticas sociais intensificando ainda mais o problema estrutural da miséria Especificamente no setor saúde os mecanismos de ajuste à crise foram dimi nuir os recursos do Tesouro aumentar as contribuições de empregados e em pregadores e criar novos fundos sociais que em lugar de serem destinados a financiar ações para os setores sociais se destinaram a suprir a crise fiscal Ao compreender o processo de democratização do setor saúde como a constituição de um regime de democratização parcial os percalços no anda mento da Reforma Sanitária remetem a dificuldades mais gerais que dizem respeito ao próprio processo de consolidação da democracia Desse modo a Reforma Sanitária tem convivido com uma permanente falta de recursos o que afetou profundamente o setor público da saúde alterando a credibilidade dos usuários e seus movimentos sociais organizados cap2pmd 872011 1030 66 6 7 3 Os Movimentos Sociais em Saúde questões teóricometodológicas para sua abordagem O Movimento Social em Saúde é formado pelo Movimento Popular em Saúde e pelo Movimento Médico Ainda que se caracterizem pelas profundas diferenças na composição institucionalização grau de articulação problematização das questões e eixos de atuação existem importantes elos entre ambos O final da década de 70 foi um momento sui generis na política brasileira no que se relaciona ao papel da sociedade civil com o surgimento de diversas entidades em diversos setores da vida social Um movimento febril de agitação e oposição política atravessou toda a sociedade promovendo um amplo de bate e mobilização social em prol do fim do regime autoritário e da democra tização do País A ditadura militar em processo singular acompanhou as propostas de abertura política De uma parte as Forças Armadas assumiram a obrigação de tutelar um processo que se fosse além do razoável poderia colocar em xeque o próprio papel e a relevância das mesmas no contexto político brasileiro as sim como os parâmetros de sociedade e Estado cuja sobrevivência justificara a intervenção militar na década de 60 A abertura lenta gradual e segura foi a estratégia escolhida pelas direções militares que viam no endurecimento e na repressão posição representada por uma parte dos altos comandos das mesmas o caminho mais curto para a radicalização da sociedade com a conseqüente ameaça aos objetivos estraté gicos das Forças Armadas Enquanto isso em reuniões e apreciações das cúpulas militares era medi do e ponderado o descontentamento da sociedade brasileira que ia crescendo proporcionalmente à dimensão da crise econômica pósmilagre e às dificulda cap3pmd 872011 1034 67 6 8 des de expressão política À medida que as contradições começavam a se colo car no interior das Forças Armadas a sociedade ganhava espaço e força nas reivindicações por mudanças políticas Nesse contexto o Movimento Social em Saúde se originou e teve presença marcante em duas vertentes o Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico O Movimento Popular em Saúde Os movimentos populares em saúde se originaram nos bairros pobres das periferias das grandes cidades eou nas favelas localizadas nos grandes centro urbanoindustriais15 Tratouse de uma primeira fase no surgimento desses mo vimentos que começaram a proliferar na década de 70 que aqui será denomi nada fase reivindicativa Os moradores desses bairros se agruparam ao redor de associações comunitárias buscando alguma forma de organização primária em torno de reivindicações por melhores condições de vida saneamento pos tos de saúde água esgotos moradia transportes etc Essas formas de associação possibilitaram criar laços de solidariedade e de organização Isso levou à eleição de representantes para a condução das associ ações de moradores que exerceram papel principal no encaminhamento das demandas ao Estado O Movimento Popular em Saúde teve uma marcante presença de médi cos profissionais e agentes de saúde Esses profissionais exercitaram um certo paternalismo ao mesmo tempo que políticos fisiologistas estabeleciam bases para a obtenção de vetos em troca de algumas melhorias como a instalação de bicas ou de luz em algumas favelas Cabe assinalar que nenhuma relação existia entre esses profissionais de saú de que na década de 70 desenvolveram militância política por meio da prática profissional nos bairros carentes das grandes metrópoles Sua intenção era cola borar para a organização política das mesmas enquanto os políticos fisiologistas operavam por meio de máquinas políticopartidárias caso do chaguismo no Rio de Janeiro com finalidade exclusivamente eleitoral Tratouse de um momento inicial na constituição do Movimento Popular em Saúde em torno de reivindicações pontuais nas quais atribuíase ao Estado a responsabilidade pela falta de assistência médica postos de saúde e hospitais e 15 A trajetória histórica do Movimento Popular em Saúde e do Movimento Médico no período de estudo será tratada mais detidamente na Parte II cap3pmd 872011 1034 68 6 9 conseqüentemente pela nãoresolução de tais problemas Esse momento está intimamente ligado à agitação política presente na sociedade e à atividade de senvolvida na busca de liberdades políticas e de arrocho dos problemas de carência social resultante do arrocho salarial do regime autoritário Essa efervescência política se estendeu até a década de 80 com a campa nha pelas eleições diretas para Presidente da República Identificamos este mo mento com uma segunda fase na existência dos movimentos populares na qual se mantiveram os mesmos eixos reivindicativos as associações de moradores dos diferentes bairros conseguiram se articular para a discussão dos problemas comuns fazer uma leitura política dos mesmos e propor uma atuação destina da a interferir nas soluções que o Estado viesse prover A esta fase denominare mos politização do Movimento Popular em Saúde As associações organiza ramse em torno de federações de associações de moradores nacionais e esta duais reunindose periodicamente elegendo suas direções e se organizando em seções ou departamentos de saúde terras e moradia educação etc Os momentos mais notáveis na organização e mobilização do Movimento Popular em Saúde conduzido pelas federações estão associados às situações nas quais o quadro sanitário da população tornouse crítico como aconteceu com a epidemia de dengue Ainda que tenham existido outros momentos críticos como a epidemia de meningite no início da década de 70 o movimento não alcançara uma expressão própria que lhe permitisse irromper na cena nacional A luta política para erradicar a epidemia de dengue foi uma conquista que marcou o Movimento Popular em Saúde Diversas manifestações populares tiveram ampla difusão nos meios de comunicação em razão da gravidade e extensão da epidemia e do caráter das associações do movimento popular que conseguiram fechar as estradas que interligam os estados mais importantes do País Os resultados da ação empreendida tiveram amplo alcance seja no interior do movimento popular seja no tocante às medidas implementadas pelo Estado para combater a epidemia Podemos depreender que a segunda fase entrelaçada à primeira se carac terizou por um continuum no crescimento da ação coletiva do movimento e atravessou os primeiros dois anos da Nova República até 1986 quando as expectativas políticas desapareceram e a conjuntura adquiriu um nítido caráter de estagnação Nenhum dos grandes males políticos que assolavam o País a corrupção o clientelismo a política de favores pessoais a impunidade a pobre za calamitosa de mais da metade da população foi enfrentado ou combatido cap3pmd 872011 1034 69 7 0 pelo então governo A retomada da inflação os quadros políticos civis da ditadura militar ocupando mais espaçoschave no governo tudo acobertado por um discurso de cunho transformador produziram um enorme descrédito não somente quanto às possibilidades de mudança mas o que é pior quanto à convicção da população de que a ação e a mobilização políticas eram suficientes para alterar o quadro Finalmente a terceira fase do Movimento Popular em Saúde pode ser caracterizada como de acesso a formas orgânicas da política ou de insti tucionalização Está relacionada à formação da Plenária Nacional de Saúde mo vimento que teve importância central na formação das Plenárias Estaduais e Nacionais que por sua vez tiveram papel decisivo na elaboração da Cons tituição de 1988 Precisamente no momento em que o Movimento Popular em Saúde este ve mais próximo das decisões políticas substantivas a ausência de maturidade para absorver a institucionalização como uma exigência do processo político no setor se traduziu em cisão interna Isso se deu como resultado das diferenças políticas no interior do movimento que trouxe como conseqüência o descenso na atuação do mesmo Neste sentido identificamos a presença de duas grandes facções Uma de las é mais crítica e radical em sua visão de Estado referindose a ele como um espaço exclusivo das classes dominantes Tem um discurso antiEstado rejeita qualquer ação estatal e considera que se houver medidas que favoreçam as clas ses mais pobres terão por objetivo o controle social assume conseqüentemen te uma postura mais autonomista e de distanciamento da máquina estatal A outra facção ainda que caracterize o Estado como domínio da burguesia não acredita que este seja tão monolítico a ponto de não haver em seu interior fraturas pelas quais seja possível pressionar e negociar a obtenção de conquistas sociais em saúde No processo mais amplo em torno da discussão da Constituição aparece ram as diferenças políticas entre as duas facções A luta ideológica interna do movimento teve conseqüências singulares em relação à ação política coletiva A atuação política para fora que havia caracterizado o movimento na fase ante rior transformouse em uma ação encaminhada para dentro do movimento Sobrevieram infinitas discussões de caráter políticoideológico que levaram pro gressivamente a um esvaziamento do Movimento Popular em Saúde cuja para lisação política foi notável no fim dos anos 80 e início dos 90 e será mais detidamente abordada no capítulo seguinte cap3pmd 872011 1034 70 7 1 O Movimento Médico No que se refere ao Movimento Médico outro componente do Movi mento Social em Saúde optamos por estudálo por meio da atuação das enti dades médicas as associações de caráter sindical as que regulam o exercício da profissão médica as de caráter técnicocientífico e as que congregam os profis sionais com a finalidade de discutir questões próprias da profissão médica Ainda que se trate de um movimento de profissionais o Movimento Mé dico é mais que uma associação profissional ou uma modalidade de articulação sindical na defesa de interesses da classe médica É composto de diversas enti dades caracterizadas por um alto grau de institucionalização diferentemente do Movimento Popular em Saúde e presença nos diversos planos em que se desenvolve a vida profissional do médico Há certa homogeneidade de classe na composição do mesmo à diferença também do movimento popular Na década de 70 e início da de 80 o Movimento Médico liderou seu questionamento às políticas de saúde e à elaboração da proposta de reformulação do sistema que culminou na Reforma Sanitária A partir da primeira metade da década de 80 deslocouse a discussão política da Refor ma Sanitária para o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde Suds ob servandose um abandono dos princípios questão principal da década ante rior por orientações mais pragmáticas na categoria a respeito dos problemas da implantação da política de saúde Para o Movimento Médico a relação com o Estado não constituiu preocu pação central à prática do mesmo como no caso do Movimento Popular Pelo contrário os aspectos críticos considerados em relação ao Suds apontam para a prefeiturização e a partidarização dos recursos mas não a respeito da invia bilidade do Estado para implementar a Reforma Sanitária considerandose o Suds como a única saída para a caótica situação do sistema público de saúde Desse modo as entidades buscaram engajarse nas questões atinentes à política de saúde e entenderam que o Suds era a estratégia para alcançar o Sistema Único de Saúde SUS No entanto percebese uma grande distância entre as proposições gerais da categoria e a transformação de sua prática den tro de uma orientação na qual interesses de caráter corporativo ficassem em segundo plano Tal afirmação se fundamenta na nãoaceitação pela categoria dos princípios embutidos na implementação do Suds em relação ao exercício da profissão médica emprego único tempo integral e cumprimento de horários cap3pmd 872011 1034 71 7 2 É possível perceber também que outra questão merecedora de destaque no âmbito da Reforma Sanitária foi a da isonomia salarial Apesar de apontada como necessária desde a formulação do Plano das Ações Integradas de Saúde sem a qual esta ou qualquer outra inicial mudança na assistência ficaria compro metida a isonomia passou em nosso ponto de vista a ter importância superior ao próprio projeto da Reforma Sanitária para a categoria Em relação à organização do trabalho médico a preocupação da classe tem sido a de estabelecer parâmetros que limitem qualquer interferência sobre determinado trabalho certamente no sentido de garantir a prática liberal mes mo sob condições de assalariamento Cabe destacar o papel proeminente que a categoria atribui a si nas políticas de saúde Ao mesmo tempo que não é aceita a renúncia aos privilégios que comporta o exercício liberal da medicina obriga se o Estado a cobrir os riscos do mercado Paralelamente tentase manter uma parte importante do poder médico nas mãos dos próprios médicos a fim de impedir que o Estado interfira sobre o trabalho dos mesmos A diferenciação entre o exercício da prática médica e o Estado no sentido deste não interferir mas garantir condições para o exercício da mesma através das políticas de saúde relacionase também à natureza liberal das instituições médicas que se originaram no começo do século como confrarias de profis sionais independentes A atuação da categoria é institucionalizada e diferenciada As questões que se referem à atuação profissional dos médicos são canalizadas por diversas instituições médicas as quais possuem por sua vez orientações políticoprofis sionais diversas A denominação de Movimento Médico obedece a essa atuação diferenciada do conjunto das entidades ou instituições médicas Neste sentido o sindicato dos médicos teve um papel essencialmente tra balhista defendendo os interesses econômicocorporativo dos médicos utili zando como procedimento principal para o encaminhamento das reivindica ções da classe as greves no setor público da saúde Enquanto isso os Conselhos Regionais e Federal de Medicina tiveram um papel sobretudo político especial mente no que se refere à reformulação do Código de Ética Médica e à atuação dentro da Plenária Nacional de Saúde para a elaboração do capítulo da saúde na Constituição de 1988 As greves médicas no setor público da saúde contribuíram para o proces so de desmonte na implantação da Reforma Sanitária Independentemente de as reivindicações serem ou não justas elas conduziram à maior crise de atendi mento dos hospitais e postos de atenção médica Durante meses as filas as cap3pmd 872011 1034 72 7 3 mortes por falta de atendimento a insensibilidade com o sofrimento humano foram a tônica da atuação da categoria médica À proporção que aumentavam enormemente o desprestígio e a ineficiência do setor público da saúde soma do à falta de repasse dos recursos do Suds às unidades locais o que ocasionou falta de instrumental medicamentos e manutenção das instalações cresciam as seguradoras privadas de saúde e sua procura pela população Paralelamente a discussão em torno do processo constituinte foi plena mente assumida pelos Conselhos de Medicina transformandose estes em cen tros de mobilização política em torno da proposta da Reforma Sanitária Pos teriormente já no processo de implementação da política de saúde logo após sancionada a Constituição de 1988 foi elaborado pelo Conselho Regional local o anteprojeto para a Constituição do Estado do Rio de Janeiro onde particu larmente analisei a atuação das entidades médicas Nele se defendiam a criação do Sistema Estadual de Saúde vinculado ao Sistema Único de Saúde a municipalização dos recursos o financiamento através do orçamento da União da seguridade social dos municípios e de outras fontes a participação de entidades representativas de usuários e profissionais de saúde nas decisões sobre o sistema por meio dos conselhos estaduais e municipais de saúde Voltou à tona o importante papel de mobilização política que desempenharam os Conselhos liderando as lutas com conteúdos mais transformadores no campo da saúde Não obstante nossa impressão é de que da mesma forma que na discus são sobre a Ética Médica não se conseguiu adesão substantiva da categoria em seu conjunto a esses processos transformadores Tais questões serão melhor desenvolvi das no quinto capítulo sobre a trajetória do Movimento Médico A Teoria de Ação Coletiva gênese e trajetória da atuação política dos movimentos sociais Neste ponto a finalidade é introduzir a análise da trajetória do Movimento Social em Saúde à luz das teorias da ação coletiva testar seu alcance explicativo e nos prover de instrumentos que possibilitem prever acontecimentos futuros cap3pmd 872011 1034 73 7 4 Vamos partir da concepção de Olson 1965 sobre a ação coletiva Enquanto ação orientada por grupos em estado latente ou por grandes grupos a ação coletiva é resultado de um cálculo racional de custos e benefícios guiado pelos interesses dos indivíduos Supondose que os indivíduos são racionais a estratégia dominante será aquela que melhor satisfazer as necessidades de cada indivíduo Na base da teoria da ação coletiva está a motivação egoísta dos indivíduos que implica um comportamento em que a racionalidade reside em deixar que outros ajam Tal situação configura o assim chamado Dilema do Prisioneiro o mais racional é não atuar e esperar que outros o façam os outros também não atuam com base no mesmo princípio e as conseqüências são que a racionalidade individual leva ao desastre coletivo Outra motivação possível para Olson é o altruísmo incondicional só que se trata de um imperativo categórico e neste sentido ele o rejeita como sendo expressão de desejos sem base no comportamento dos indivíduos Ainda que considere a existência de incentivos seletivos estes não operam indiscri minadamente como ocorre no caso dos bens coletivos sobre o conjunto do grupo mas seletivamente através dos indivíduos que o compõem Um indivíduo mobilizado positivamente pode contribuir para a ação coletiva porém é mais provável que isso aconteça em pequenos grupos do que nos grandes Se observarmos o que aconteceu com os movimentos sociais nas duas conjunturas escolhidas veremos que no caso do Movimento Popular em Saú de no período que culmina com a Nova República há um crescimento da ação coletiva seguida de uma fase de esvaziamento no momento de criação e conso lidação da institucionalidade democrática O que ocorreu na conjuntura da transição Por que foi um período extre mamente marcado pela ascensão das mobilizações populares As motivações egoístas não foram o princípio da ação Os custos da ação coletiva eram meno res que os benefícios Se entendemos por custos as possíveis retaliações que o poder político autoritário poderia desenvolver como resposta à ação coletiva do Movimento Popular em Saúde correse um alto risco logo de início Entretanto ninguém garante que o custo esforço gasto em mobilização vai significar a provisão de um bem público Assim os custos são palpáveis enquanto os benefícios são prováveis no entanto a ação coletiva aconteceu O problema nessa teoria é que a noção de coletivo não é discutida mas simplesmente vista como a produção de uma ação agregada pelo conjunto de cap3pmd 872011 1034 74 7 5 indivíduos essencialmente egoístas Porém se isso é o coletivo como poderia haver ação coletiva já que significa o mesmo que ação cooperativa Ou seja por que ou como um coletivo se cria se todos seguem seus interesses egoístas Voltemos a indagar por que a paralisação da ação coletiva foi o sinal que marcou a atuação do Movimento Popular em Saúde no final da Nova Repúbli ca e durante o período do Governo Collor Já na formulação da pergunta se observa a dificuldade explicativa da teoria Se houve um momento anterior de aumento da mobilização da gestão do coletivo como esta poderia existir se são as motivações egoístas por excelência que caracterizam o comportamento hu mano Se também não se pode explicála pela relação entre custos e benefícios como explicar então a ação coletiva Não explicada a ação antecedente como explicar a inação conseqüente Essa última questão remete a outra limitação da teoria a de não dar conta da dinâmica da ação coletiva Os momentos de mudança da ação para a ina ção conseguem ser capturados pela teoria na medida em que se estabelecem relações lógicas exclusivamente e portanto absolutas entre variáveis nãoabso lutas Entendese por variáveis nãoabsolutas aqui as particularidades do pró prio movimento na gestão do coletivo a noção mesma de coletivo e a comple xidade da conjuntura política que medeia e atravessa os diversos atores que dela participam Neste sentido nossa opinião é de que o coletivo opera simbolicamente no interior do Movimento Popular em Saúde Significa que a ação se recompõe o coletivo enquanto as expectativas dos membros do movimento conduzem a uma identidade em prol de um objetivo independentemente da certeza de obter o bem público Isso não significa que não exista um cálculo por parte dos membros do movimento a respeito de participar ou não da ação coletiva mas a expectativa leva à configuração de um si mesmo e do outro o que tornará o cálculo favorável à participação ou não Quando não me percebo como formando parte de também não percebo que os outros possam ser partes integrantes de um coletivo que passe a atuar de maneira conjunta em dada situação Assim não percebo a cooperação como comportamento possível A cooperação ao mesmo tempo que um comportamento induzido por mim é também induzido pelos outros em mim Para outra vertente de reflexão teórica Laclau Touraine Landi esses são processos de constituição de identidades coletivas Tais construções não são dadas portanto estão sujeitas a transformações permanentes que têm a ver cap3pmd 872011 1034 75 7 6 com o próprio movimento sua formação organização atuação política compo sição de seus membros etc Cabe assinalar também que as conjunturas políticas mais gerais a existência de crises e o caráter destas marcam os próprios processos de formação avanço e estagnação dos movimentos populares em saúde Observando agora a atuação do Movimento Médico constatamos que em nenhuma das duas conjunturas existiu uma paralisação da ação coletiva do movimento pelo contrário em ambos os momentos sua atuação foi intensa No entanto o que mudou foram os eixos sobre os quais a atuação aconteceu Enquanto de fins da década de 70 até a culminação da Nova República o Movimento Médico teve uma atuação fundamentalmente políti ca e também reivindicativotrabalhista na qual o sistema de saúde seu caráter de reprodutor das desigualdades a relação perversa entre setor públicoprivado os problemas derivados do assalariamento médico maciço foram as princi pais questões levantadas mudanças significativas registraramse no fim da década de 80 O Movimento Médico desenvolveu uma ação coletiva profundamente corporativa com penetração importante nas entidades médicas do ideário neoliberal e cuja atuação teve como característica marcante sucessivas e inúme ras greves que afetaram profundamente o setor saúde O que aqui observamos é praticamente um contrasenso da teoria olsoniana da ação coletiva já que esta se produz precisamente a partir de motivações egoístas se assim pudéssemos qualificar os interesses corporativos A esta altura cabe fazer algumas referências que melhor caracterizem o Movimento Médico Em primeiro lugar é ele profundamente articulado em torno da profissão médica Tratase de uma categoria de índole diversa da de outras categorias profissionais ou de trabalhadores É formada por diversas entidades médicas altamente institucionalizadas com longa data de atuação já que surgiram no princípio do século e subsistem até hoje com uma considerá vel solidariedade orgânica resultante da existência de um Código de Ética Mé dica e da própria modalidade de exercício liberal da profissão Isso torna neces sário compreender a ação coletiva do movimento no sentido antes menciona do da gestão do coletivo na sua especificidade O considerável avanço registrado nas correntes teóricas do individualismo metodológico em relação à teoria olsoniana da ação coletiva foi a sensibilidade para capturar a dinâmica desse tipo de ação Neste sentido ainda que não haja discussão acerca daquilo que seja o coletivo e das motivações que induzem os cap3pmd 872011 1034 76 7 7 homens a atuarem coletivamente o fato de considerar a teoria dos jogos como instrumento metodológico principal para qualquer análise do processo históri co centrado na exploração conflito alianças e revolução Elster 1989 possi bilita maior aproximação explicativa a situações nas quais a ação se produz ante aquelas nas quais esta não acontece Ou seja se diante de uma situação X um conjunto de atores tem de decidir uma ação de conjunto Y sendo o comporta mento racional de cada um deles e o do conjunto a melhor garantia para o êxito da ação é plausível inferir que o comportamento não será definido a priori mas a interação com os outros permitirá escolhêlo A noção de coletivo é substituída na teoria dos jogos pela de coopera ção Neste sentido a teoria dá conta da dinâmica da ação coletiva do Movi mento Popular em Saúde Restaria saber porque o Movimento Popular em Saúde agiu cooperativamente na Conjuntura 1 e não do mesmo modo na Con juntura 2 Isso requer análise do contexto do Movimento Popular em Saúde em ambas as conjunturas combinada à própria caracterização delas No que diz respeito ao Movimento Médico as coisas tendem a se compli car ao trabalhar com o enfoque do individualismo metodológico Mas Elster 1989 faz uma distinção entre a cooperação como modalidade da teoria dos jogos que se dá na classe operária e diz que o problema da solidariedade da classe capitalista requer outros instrumentos de análise16 A tarefa dos dirigentes empresariais será a de convencer os empresários individuais a agir de maneira tal que embora do ponto de vista de cada um deles sua ação não traga nem ganhos nem benefícios trará sim benefícios coletivos caso seja adotada por todos A liderança portanto consiste em utilizar a zona de indiferença dos indivíduos No caso essa distinção estabelecida por Elster não se adequaria aos com portamentos observados nesse particular movimento social As questões rela tivas à profissão médica provêm de uma identidade forte e de uma ideologia médica que marca os comportamentos individuais e coletivos dos membros da corporação Esta possui características singulares e diversas formas de expres são social composta por entidades que operam em um amplo espectro de atribuições e que se exprimem tanto no âmbito privado social quanto na esfe ra pública Estado 16 A tarefa dos dirigentes empresariais será convencer os empresários individuais a agirem de maneira tal que embora do ponto de vista de cada um deles sua ação não traga nem ganhos nem benefícios ela trará benefícios coletivos caso seja adotada por todos A liderança portanto consiste em uilizar a zona de indiferença dos indivíduos cap3pmd 872011 1034 77 7 8 Apenas a título de destacar semelhanças e sem entrar numa discussão espe cífica sobre o assunto acreditamos que a corporação médica se assemelha à corporação militar no papel que esta desempenha Quando os interesses médi cos são afetados ou existe uma ameaça a vida da corporação ou seja o espaço privado da corporação é invadido pelo Estado o Movimento Médico tem reagido de maneira forte e imediata Isso ocorreu na década de 70 quando as entidades médicas sofreram intervenção e a consolidação do sistema de saúde levou a mudanças no processo de trabalho médico tendo com isso submetido esses assalariados ao mercado e às condições de arrocho salarial de qualquer outro trabalhador A corporação passou então a fazer parte de outros movimentos de opo sição Sua atuação foi marcada pela ação cooperativa tendo um papel quase de liderança das outras forças sociais as primeiras greves que aconteceram no País naquele período foram as dos médicos Acreditamos que à cooperação universal da maneira que foi formulada pelo individualismo metodológico falta precisão para ser aplicada à ação coletiva do Movimento Médico Em outras palavras minha disposição em atuar embora dada pela dispo sição dos outros e viceversa não é suficiente para explicar a ação coletiva do Movimento Médico regulada em grande medida pelo fato de pertencer à corporação Não atuar pode significar não ser reconhecido por mim e pelos outros como fazendo parte de e nisso há punições morais de autoestima etc Assim a corporação médica na conformação de sua atuação política tem um eixo ou uma medula pela qual o termômetro desta é dado pelo grau em que são afetados pelo Estado os parâmetros estabelecidos para a categoria e defini dos pela própria corporação A conjuntura póstransição marcada pelo Governo Collor mostrou que os médicos voltaram a se predispor a atuar coletivamente colocando em risco a sobrevivência do setor público da saúde na consecução de melhorias salariais e de autonomia no processo de trabalho médico sem interferência do Estado A categoria não se submeteu a outras lógicas que não as da corporação embora isso significasse o abandono da própria proposta da Reforma Sanitária que tinha sido o eixo de atuação política do Movimento Médico até o fim da Nova República Tratavase de um subtipo de cooperação que chamaríamos de coopera ção corporativa na qual não haveria só um cálculo que me levasse a participar se os outros participassem mas também um jogo simultâneo em que todos cap3pmd 872011 1034 78 7 9 participam porque a participação é mediada pela corporação Na cooperação corporativa todos usariam de um tipo particular de solidariedade restrita à corporação Neste caso a cooperação tal como formulada por Elster poderia ser qualificada ao acrescentar o tipo de cooperação à qual estamos nos referindo A lógica dual da ação coletiva teoria concebida e assim denominada por Santos 1989 se sustenta sobre o modelo olsoniano da ação coletiva mas precisamente por isso ao mesmo tempo em que resolve uma das questões principais embutidas na teoria clássica da ação coletiva o início da produção de um bem público fica presa a esse modelo explicativo e a suas limitações A idéia é que a ação coletiva acontece para a provisão de um bem público e o fato de não atuar não significa somente que me privarei de consumir um bem públi co potencial que aconteceria se todos participassem da ação coletiva mas que serei obrigado a usufruir de um mal público Partese da idéia olsoniana de que participar ou não da ação implica um cálculo de custos e benefícios sendo a premissa básica do comportamento humano a de evitar o sofrimento Tal premissa não deixa de ser também um imperativo categórico ainda que mais inclusivo que o egoísmo Se participar da ação coletiva tem custos isso não significa que não participar não implique custos Pelo contrário a idéia é que os custos da não participação para mim podem ser maiores que os custos da participação se pelo fato de não fazêlo me vejo obrigado necessariamente a consumir um mal público Ou seja Cnp Cp sendo que Cnp custo de nãoprodução ou participação Cp custo de produção Essa condição formal ocorre quando a consecução de objetivos privados depende da produção de bens públicos tratase possivelmente de um tipo de interação social que corresponde ao dilema da vontade geral rousseauniana onde bp bem privado bp bem público Acontece independentemente da existência de caronas ainda que às vezes seja necessário eliminálos para dimi nuir o custo da produção de um bem A relação estabelecida pela teoria entre o custo de produzir um bem priva do e a eliminação dos caronas não acrescenta nada à explicação original for malizando simplesmente a afirmação de que sendo mais econômico eliminá los reduzse o custo de produzir um bem privado o que é uma verdade óbvia cap3pmd 872011 1034 79 8 0 A teoria não diz nada a respeito do significado de eliminar ou não os caronas dentro das hipóteses por ela estabelecidos C2bp C1bp Cbp Cefr onde C2bp é menor que o original C1bp Quando Cbp Cefr custo de eliminar os caronas 0 se for econômico fazêlo C2b C1bp alcançará seu valor máximo Observandose os movimentos sociais em saúde à luz dessas idéias estas poderiam explicar porque o Movimento Popular em Saúde teve um desenvol vimento marcante na Conjuntura 1 Atuar significaria no plano simbólico ainda que isso não seja dito pela teoria a obtenção de um bem coletivo no caso medidas governamentais para acabar com a epidemia de dengue Não atuar significaria no plano real que ninguém estaria eximido de usufruir de um mal público a epidemia da dengue Ou seja o momento inicial da ação coletiva consegue ser capturado pela teoria mas por ser estática não consegue explicar porque a ação tem continuidade e no caso menos ainda a paralisia da ação coletiva no momento posterior da Conjuntura 2 A teoria não explicita qual é o custo de não produzir um bem público já que tanto atuar quanto não atuar vão levar ao mesmo resultado à obtenção de um mal público No plano simbólico perderamse as expectativas a respeito da ação coletiva e no plano real sucessivas políticas governamentais de consumo de males públicos foram impostas A teoria não inclui a dinâmica da ação nem a temporalidade da mesma mas o fato de definir o resultado da nãoatuação dos agentes como a obtenção de alguma coisa que não é boa para ninguém e não apenas a perda da obtenção de um bem possibilita no caso do Movi mento Popular em Saúde explicar a atuação deste como necessária para evitar ser alvo da epidemia de dengue No caso do Movimento Médico a teoria também não nos permitiria dis criminar por que tanto na Conjuntura 1 quanto na 2 há ação coletiva Ela não consegue dar conta do caráter diverso da ação coletiva dos médicos nesses dois momentos Por último cabe a referência também à capacidade explicativa da teoria de Offe 1984 sobre a existência de duas lógicas da ação coletiva Divergindo de Olson Offe mostra como não há uma lógica unitária e utilitária da ação coletiva cap3pmd 872011 1034 80 8 1 que cubra todas as associações e como além disso as diferenças de poder conduzem a diferenças no tipo de ação coletiva trabalha aqui com as classes trabalhadoras e capitalistas Essas diferenças tendem também a ser obscurecidas pelo paradigma de grupo de interesse Os interesses da classe trabalhadora e os da classe capitalista estão sujeitos sob o capitalismo a graus distintos de distorção Por isso um processo dialógico um entendimento e um acordo comparti lhado de definição de interesses é necessário para aqueles que se encontram em uma posição de poder inferior e que dependem por isso mesmo de um conceito comum e coletivo do seu interesse Offe acha que há um conflito de classe dentro das formas políticas e tam bém um conflito de classe referido às formas políticas O primeiro ocorre dentro das formas processuais dadas enquanto o segundo é latente escondido por uma pretensão de neutralidade A teoria de Olson só considera a existência desse primeiro nível do conflito onde os parâmetros se tornam variáveis e a ação coletiva se preocupa com o que quer dizer custos e benefícios Caberia salientar que esses dois tipos de conflito nas classes dominadas nunca se dão de maneira separada Quando o conflito começa por demandas pontuais como no caso do Movimento Popular em Saúde não se mantém estanque assumindo rapidamente formas políticoorganizativas que conduzem à redefinição de interesses e à constituição de uma identidade coletiva As organizações empresariais representam uma forma política de racionalidade individualista chamada pelo autor de lógica monológica As or ganizações sindicais operárias constituem um caso misto contendo elementos das duas lógicas já que nelas há uma contradição sempre presente entre buro cracia e democracia interna agregação de interesses individuais e formação de identidade coletiva Tratase de uma condição sempre presente não só nas orga nizações sindicais mas também inerente a todo o processo de institucionalização no interior dos movimentos sociais A partir daqui o que interessa sublinhar em Offe é o aspecto dinâmico no tratamento da ação coletiva a interação entre os membros da organização e os contextos políticos mais amplos que ao mesmo tempo em que permite incluir as diferenças no caráter do conflito na definição de interesses e conse qüentemente o tipo de ação coletiva permite também formular um modelo dinâmico baseado em estágios da ação coletiva nas organizações operárias Tal construção conduz a uma teoria que Offe denomina de sociológica e portanto nãovalorativa do oportunismo Esta é compreendida pelo autor cap3pmd 872011 1034 81 8 2 como a maneira de resolver o conflito que se apresenta nos estágios posteriores à formação de qualquer organização social Enquanto as organizações surgem como resultado da mobilização social num momento posterior esta é substitu ída pelo crescimento das burocracias e da legitimação das rotinas burocráticas A sobrevivência da organização deixa de ser assegurada pela disposição em atuar de seus membros e passa a ser garantida por mecanismos de nego ciação política pautados por procedimentos institucionalizados Tratase para Offe de uma escolha oportunista na medida em que esta cresce burocratica mente sem arriscar sua existência O oportunismo na acepção que o autor lhe dá tem o status de uma formulação teórica neste aspecto e nenhuma conotação valorativa Os estágios mencionados podem ser classificados da seguinte forma Estágio 1 corresponde ao momento de formação das entidades o pa drão da ação é dialógico Estágio 2 a organização fortaleceuse e acumulou poder real derivado de seu reconhecido potencial Recruta mobiliza e ativa os membros para atu alizar seu poder mas ao mesmo tempo deve precaverse para que os membros não se disponham a agir prematuramente Não havendo solu ção segura e permanente para esse dilema podese retornar ao estágio inicial sendo isso possível acontecer apenas em caso de alto grau de politização da luta de classes na ausência de condições favoráveis poderseia passar ao próximo estágio Estágio 3 a única transformação que não ameaça nem a sobrevivência da organização nem interfere em suas perspectivas de êxito é a resolução opor tunista As garantias de sobrevivência interna são substituídas pelas exter nas a organização passa a se sustentar sobre posições de negociação en quanto antes tinha exclusivamente a disposição para agir de seus membros Tais práticas institucionalizamse por meio de estatutos legais Porém a solução do dilema se constitui num dilema em si mesmo Estágio 4 a organização não é mais capaz de resistir às tentativas de retirada do suporte externo bem como dos estatutos institucionais e legais que lhe são proporcionados a partir do exterior Neste sentido terá de se ver obriga da a manter as garantias sendo o resultado então a burocratização com a qual os custos em longo prazo do oportunismo se tornam manifestos cap3pmd 872011 1034 82 8 3 Estágio 5 nova fase de mobilização e ativação dos membros tornase necessária para defender os termos do dilema a sobrevivência e as proba bilidades de êxito da organização Observando a trajetória do Movimento Popular em Saúde constatamos que sua formação respondeu a uma lógica dialógica com resistência muito grande a ingressar no Estágio 2 Ingressar significaria por um lado a institucionalização e o reconhecimento por parte do Estado dos movimentos como interlocutores no campo da negociação política Por outro haveria perda de autonomia das entidades populares em relação ao Estado O problema com o Movimento Popular em Saúde foi que isso suscitou forte polarização de posições ante uma ideologização da discussão que conduziu também à paralisa ção na ação e à ameaça de nãosobrevivência ou esvaziamento das entidades do movimento Para Offe a questão do oportunismo pode ser defendida como a única solução racional e realista para aquelas tensões dilemas e tradições internas ma nifestas como conseqüência do Estágio 2 Se uma organização proteger tanto sua existência quanto suas realizações potenciais parece não haver caminho se não o sacrifício parcial de sua autonomia Os estágios explicitados no desenvolvimento das organizações das classes dominadas se aplicados ao Movimento Popular em Saúde se tornam pro fundamente contraditórios Ao mesmo tempo que o oportunismo constitua talvez o caminho mais curto para acabar com eles em razão das intrínsecas características e da formação e organização desses movimentos a opção pela nãoinstitucionalização produziu uma paralisia na ação coletiva Mas simultane amente sua fluidez colaborou para sua própria reestruturação ante situações que o afetavam diretamente como a crise dos hospitais do setor público e a falta de atendimento médicohospitalar para essas populações No caso do movimento médico o modelo de ação aplicado para as orga nizações da classe operária ajustase perfeitamente ao sindicato médico Em relação às outras entidades médicas não se aplica nem a lógica dialógica nem a monológica de forma estrita ainda que se possa encontrar elementos das duas Nosso ponto de vista já aqui assinalado é de que os médicos constituem uma corporação de características singulares e neste sentido a ideologia médica da corporação merece ênfase particular cap3pmd 872011 1034 83 8 4 Algumas Observações TeóricoMetodológicas A discussão primordial a respeito da transição à democracia e o seu pro cesso de construção eou consolidação teve como propósito estender a noção de democracia para além da consideração dos procedimentos restritos à implementação da democracia política A consolidação da democracia é indissoluvelmente ligada à conformação de estruturas democráticas nos diver sos níveis da sociedade para os quais o estabelecimento de condições relativas Estadosociedade afiguramse fundamentais Discutiuse a questão da cidadania como uma categoria central à democra cia distinguindo o conceito clássico da cidadania do exercício histórico da mes ma Essa distinção e o percurso escolhido para desenvolvêla levaram à conclusão de que a eqüidade está embutida na cidadania não como princípio mas como resultado das lutas sociais que transformaram a idéia de cidadania configurando nela a obtenção de direitos concretos usufruídos pela população enquanto a jus tiça social redunda na regulamentação da eqüidade como valor éticomoral Esses direitos de cidadania consagrados juridicamente se concretizaram mediante forte intervenção do Estado na economia restringindo o papel do mercado e introduzindo importantes reformas no capitalismo com a implanta ção de políticas sociais e os conseqüentes benefícios sociais para as classes traba lhadoras via Welfare State Enfrentar tais questões possibilita sem que isso cons titua um modelo a ser reproduzido estabelecer bases para a discussão da cons trução de um regime democrático A visão das políticas de saúde sob a perspectiva das políticas sociais obri gou a um mergulho no campo teóricoconceitual envolvido nessa área de co nhecimento As dificuldades que acompanharam o processo de implementação da política de saúde exemplificam de maneira bastante aproximada as difíceis relações Estadosociedade no momento de consolidação do processo demo crático sendo a Reforma Sanitária um caminho de reconstrução da democracia por meio de reformas parciais ou dito de outra forma de consecução da democracia pela via do estabelecimento de regimes parciais democráticos A necessidade de criar o processo de implantação da Reforma Sanitária levou à discussão teórica a respeito dos processos de formulação e implementação de políticas sociais As dificuldades de regimes de democratiza ção parcial prosperarem e se instalarem estão estreitamente vinculadas ao enca minhamento das inovações políticas no campo das políticas sociais cap3pmd 872011 1034 84 8 5 Também fizemos referência ao papel dos movimentos sociais em saúde nesses dois momentos a formulação e a implantação da política de saúde com ênfase na particular atuação dos movimentos à luz das diversas teorias da ação coletiva A reflexão crítica relacionada às teorias da ação coletiva possibilitou identificar a partir das trajetórias dos movimentos sociais em saúde as adequa ções proximidades e distanciamentos entre os diversos enfoques teóricos e também o desenvolvimento da atuação política dos atores nela privilegiados Acreditamos ter alcançado um arcabouço teórico que nos aproximou da idéia de pensar as políticas de saúde da perspectiva dos atores em relação ao Estado nos processos de transição e construção da democracia A política de saúde foi vista assim sob uma perspectiva societária ainda que pela própria natureza desta seja na arena do Estado que ela adquire concretude A própria complexidade do processo da Reforma Sanitária exigiu o exercício teórico metodológico e obrigou a expandir o ângulo de visão em múltiplas direções cap3pmd 872011 1034 85 Parte Parte Parte Parte Parte IIIIIIIIII cap3pmd 872011 1034 87 89 4 O Movimento Popular em Saúde O fim dos anos 70 e o início dos 80 se constituíram marco para a política brasileira em torno do processo de democratização do País Amplo espectro de forças sociais sindicatos entidades profissionais associações de bairro movimentos contra a carestia minorias e partidos políticos empreenderam uma luta política que conseguiu aglutinar diversas formas de associação para exigir do regime militar eleições livres e diretas para a Presidência da República A luta em prol da democratização consistiu de uma saída política de opo sição à ditadura militar ante a proposta das Forças Armadas anunciada pelo então Presidente da República Ernesto Geisel de fazer uma abertura lenta gradual e segura Era um momento em que a sociedade como um todo estava mobilizada e direcionada para a consecução de eleições diretas Denominaremos movimento social o conjunto das novas formas de as sociação independentemente do tipo de reivindicação e de articulação institucional que tenham conseguido alcançar Essa ampla definição obedece a uma determinada maneira de compreensão do objeto de estudo assim como também à abertura oferecida pela teoria dos movimentos sociais Nos anos da transição à democracia a efervescência social se expressou na grande quantidade de organismos da sociedade civil que emergiram e se repro duziram nas grandes metrópoles e em seus bairros periféricos sob a forma de sociedades de fomento associações profissionais de classe média postos de atendimento básico de saúde escolas comunitárias creches No cerne da constituição da vertente popular dos movimentos sociais es tavam por um lado as reivindicações por demandas de habitação saúde edu cação e saneamento decorrentes das necessidades pelas quais atravessa grande parcela da população Por outro proliferaram as associações de classe média cap4pmd 872011 1035 89 90 registrandose as primeiras greves de oposição ao regime militar no sindicalismo de classe média e particularmente no setor médico De fato o arrocho salarial com o qual se defrontou a sociedade brasileira como um dos resultados da política econômica do regime militar não afetou somente as classes operárias mas ainda importantes setores assalariados da classe média os quais também sofreram deterioração das condições de vida17 Designamos Movimento Médico a atuação do conjunto das entidades médicas no período de transição à democracia em razão fundamentalmente do papel político que os médicos organizados em associações de caráter profissional científico e sindical tiveram nesse processo característica que se diluiu à medida que a transição adquiriu perfil mais nítido Mantivemos no fim da década de 80 a denominação movimento médico para nos referirmos à atuação política do conjunto das entidades de representação da classe e intitulamos de corporação médica a atuação mais especificamente voltada para reivindicações de caráter econômicocorporativos dos médicos Analisamos a atuação do Movimento Médico no período que vai de 1976 a 1990 através das seguintes entidades Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro Cremerj Sociedade Médica do Estado do Rio de Janeiro Somerj Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro SMCRJ e Sindicato dos Médicos SinMed O material e as entrevistas realizadas com as lideranças das associações médicas localizadas no estado do Rio de Janeiro cobre o período que se estende de 1983 a 1990 O Cremerj corresponde na esfera nacional ao Conselho Federal de Medi cina CFM e o SinMed à Federação Nacional dos Médicos FNM ambas reconhecidas pelo Estado A primeira regula e supervisiona a prática médica outorga o registro profissional e atinge portanto o conjunto da categoria médi ca A segunda representa os interesses profissionais condições de trabalho e salários da mesma Já a Somerj e a SMCRJ são entidades de caráter privado e correspondem na esfera nacional à Associação Médica Brasileira AMB As 17 Para se analisar os movimentos sociais não se deve ensejar generalizações apressadas mas ter em mente a necessidade de um conceito que seja suficientemente abrangente para dar conta da diversidade de movimentos surgidos em contextos sociopolítico diferentes eou marcados por matrizes organizativas distintas Considerar que os movimentos sociais em sua concretude podem ser definidos pela conjugação das contradições históricas e estruturalmente dadas pelas influênci as da conjuntura política e sobretudo pela forma como agem e reagem as partes em conflito ou seja pela efetividade que assumem as proposições de natureza organizativapolíticaideológica no jogo das relações sociais cultura e instituições Doimo Bank 1989 cap4pmd 872011 1035 90 91 duas como entidades de filiação voluntária congregam os médicos em defesa de seus interesses profissionais discutem as políticas de saúde e desenvolvem atividades de caráter técnicocientífico Ao nos debruçarmos sobre a teoria da ação coletiva enquanto modelo explicativo da atuação política dos movimentos sociais em saúde enfatizamos as limitações que tais teorias detêm Sublinhamos a dificuldade embutida nessas concepções da ação coletiva de dar conta de processos de formação de iden tidades sociais e políticas que dizem respeito não só a um cálculo em relação à participação mas também à própria noção do coletivo Considerar essa ques tão do coletivo e darlhe maior precisão nos obriga a penetrar nas questões específicas que a trajetória e a atuação dos movimentos sociais colocam A problemática que envolve a análise dos movimentos sociais de extração popular e neste caso a dos movimentos populares em saúde relacionase basi camente a três eixos de questões decisivas em processos de formação assim como na atuação dos mesmos a relação com o Estado sua institucionalização e a autonomia em relação a outras forças políticas No âmago da constituição dos movimentos sociais estão as reivindicações por demandas de habitação saúde educação saneamento etc decorrentes das necessidades pelas quais grande parcela da população urbana atravessa Ao con siderar que o Movimento Popular em Saúde tem seu eixo de atuação no plano das políticas de saúde área específica de intervenção do Estado constatou se que a concepção do Estado assim como a relação com este constitui seu calcanhar de Aquiles O movimento deixa de ter uma existência virtual no momento em que se relaciona com o Estado já que este passa a ser o alvo da ação coletiva e neste sentido elemento polar em sua constituição Os processos de construção de identidades políticas no Movimento Popular em Saúde e nos movimentos sociais em geral estão intimamente relacionados ao papel do Estado na medida em que este ocupa posição de destaque para a con secução de melhores condições de vida de saúde e de atendimento à saúde Entretanto como esse processo é operado simbolicamente ou seja mediante as representações que o movimento popular tem sobre si mesmo não é necessá rio que o Estado preencha efetivamente esse lugar Pelo contrário sua omissão no preenchimento desse papel opera à maneira de interpelação pela qual o movi mento popular se constitui para exigir sua presença na esfera da saúde Tratase de uma tensão permanente de uma dinâmica contraditória e constituinte que carac teriza a relação entre Movimento Popular em Saúde e Estado cap4pmd 872011 1035 91 92 Cabe ressaltar que a existência do movimento é indissoluvelmente relacio nada à mobilização já que é por meio desta que ele deixa de ser virtual e adquire realidade Se considerarmos ainda que toda ação coletiva nas classes populares é direcionada para reivindicar a presença do Estado para que este efetue a melhoraria das condições de vida das comunidades fica evidente o papel constitutivo do Estado na dinâmica dessas relações É interessante observar que os movimentos sociais quando provêm da sociedade civil nascem desvinculados da ordem política mas passam a ocupar espaço público ao reivindicarem demandas cuja satisfação requer a intervenção estatal Desse modo também se reaviva a discussão do social no âmbito interno do Estado O movimento social tem portanto papel principal no encurtamen to da distância entre a esfera privada e a ordem pública Mas isso só pode acontecer na medida em que a ação política do movimento efetivamente acon teça e a relação com o Estado seja recriada A institucionalização dos movimentos populares é um outro eixo proble mático no desenvolvimento da atuação política dos mesmos Tratase de preo cupação legítima nos movimentos populares em saúde uma vez que essa atua ção está marcada pela heterogeneidade de seus membros pela presença de diversos partidos políticos diante do esforço por manter a independência dos mesmos e pela maleabilidade do próprio movimento o que dificulta o estabe lecimento de regras de funcionamento para a sua organização A ação coletiva nesses movimentos tem freqüentemente um importante componente de decisão política nãodirecionada institucionalmente A ausência de estruturas institucionais mais sólidas que contenham as práticas do Movi mento Popular em Saúde é característica compartilhada com os movimentos populares em geral De fato observase resistência à institucionalização associada à autopercepção de perda de autonomia ao encastelamento das lideranças e à instrumentalização do movimento por políticos locais os quais se apóiam nas burocracias dos ministérios para a obtenção de favores para eles é mais fácil negociar com as direções do movimento que em situações de mobilização popular pois desse modo podem controlar os termos da negociação Ainda que essa autopercepção tenha forte viés ideológico também se sustenta na própria prática do movi mento popular já que mais de uma vez foram trocados votos por bicas É importante destacar que tanto neste ponto quanto no que se refere à autonomia dos movimentos importantes ganhos foram obtidos pelo Mo cap4pmd 872011 1035 92 93 vimento Popular em Saúde nos momentos em que pelo próprio crescimento da ação coletiva dos mesmos houve também uma crescente tendência à insti tucionalização e a procedimentos de negociação política mais formalizados A institucionalização conforma portanto outro de seus pontos de estran gulamento ou de tensão Quando se pensa no grau de articulação dos movi mentos populares geralmente se faz referência à capacidade dos mesmos para agir coletivamente reivindicações de melhores condições de vida de saúde de atendimento etc e não à qualidade de ser institucionalizado Porém essa mo dalidade de articulação sustentada exclusivamente na ação coletiva dificulta a percepção por parte do próprio Movimento Popular em Saúde de um fio condutor que dê continuidade ou historicidade à sua ação política o que resulta também em impedimento no desenvolvimento de avanços continuados e sus tentados que os transformem em definitivos protagonistas das políticas de saúde Em relação à autonomia do movimento esta se coloca perante outras forças políticas tais como partidos técnicos religiosos e também perante o Estado Mas tal questão é falsa Na verdade a tão propalada autonomia não passa de discurso pois os movimentos para terem existência própria necessi tam de articulações políticas18 Como será visto adiante ao analisar a trajetória do Movimento Popular em Saúde efetivamente constatouse que a influência da Igreja progressista as sim como a dos partidos de esquerda foi decisiva em sua formação e desen volvimento Neste sentido quando os movimentos populares carecem de arti culação com outras forças políticas dificilmente conseguem incidir nas decisões políticas mais amplas Ainda que isso possa significar risco de diluição do movi mento dentro de outras forças sociais ou políticas mais estruturadas cabe ao próprio desenvolver mecanismos que garantam a continuidade Desse modo a autonomia em relação ao Estado é uma questão principal para o movimento De fato o que se tem observado freqüentemente é o esva ziamento dessas mobilizações quando cooptadas pelo Estado Nunes Jacobi 1980 A idéia que predominou no Movimento Popular em Saúde desde sua 18 De fato observase que os articuladores sociais têm desempenhado um papel significativo o que não tem representado necessariamente perda de autonomia tão reivindicada pelos movimentos Mas esse ocultamento das conexões políticas que envolvem posições partidárias ou confessionais não pode ser minimizado no caso do Movimento Popular em Saúde já que apesar das resistências dos seus integrantes salta aos olhos a influência dos setores progressistas da Igreja através das Comunidades Eclesiais de Base dos médicos sanitaristas e de militantes do Partido dos Trabalhado res que embora não formalizem laços orgânicos com a estrutura partidária explicitam uma cultura política característica do partido Jacobi 1989 cap4pmd 872011 1035 93 94 formação foi a de que a política do Estado é cooptálo nos canais de participa ção popular abertos por ele uma vez que nestes o movimento não tem poder de decisão Ao mesmo tempo em que o Estado é constituinte do Movimento Popular em Saúde sob a perspectiva deste é percebido como desorganizador da sua ação coletiva Essa questão se situa no âmbito da atuação do movimento face às políticas de saúde e pode ser bem exemplificada pela discussão interna a respei to da participação ou não nas instâncias institucionais criadas pelo Estado no setor saúde dado que estas poderiam vir a se constituir em uma via de cooptação e de desmobilização O que a experiência demonstra é que por vezes isso tem acontecido mas nem sempre O tema da autonomia nos movimentos sociais nos parece estar associado à sua institucionalização pelo fato de colocálo diante da necessidade de estabelecer mecanismos formais de organização e de funcionamento Estes por sua vez servem de controle sobre a própria atuação do movimento nos Conselhos de Saúde sempre que os movimentos conseguem ter uma atuação decisiva nas políticas estatais de saúde como vem acontecendo com o processo de descentralização e com a formação dos Conselhos de Saúde O dilema que a institucionalização coloca é a quota de burocracia que a acompanha e que constitui uma importante ameaça de extinção do movimento se considerarmos que este não é um sindicato e nem um partido político e que desse modo as mobilizações sociais radicam na capacidade de atuação coletiva mais do que na organicidade políticoinstitucional A Formação fase reivindicatória A formação do Movimento Popular em Saúde foi iniciada simultanea mente à discussão no campo da saúde relacionado à medicina comunitária Esteve intimamente ligada às experiências das comunidades de base da Igreja no Terceiro Mundo que se expandiram por todo o País durante a década de 70 Em suas origens o movimento estava localizado principalmente nos esta dos do Rio de Janeiro Minas Gerais e São Paulo Era composto por médicos sanitaristas estudantes religiosos militantes católicos integrantes de partidos políticos e das populações menos favorecidas agrupadas ao redor das socieda des vicinais e de experiências comunitárias católicas em bairros das periferias urbanas e em favelas cap4pmd 872011 1035 94 95 As universidades por intermédio dos departamentos de medicina preven tiva tiveram também importante influência já que nelas ocorria a contestação ao modelo médico hegemônico caracterizado pelo elitismo pela sofisticação tecnológica com baixo impacto nos níveis de saúde da população e sobretudo pelo caráter privado e mercantilista A partir daí surgiram propostas de mode los alternativos sendo a medicina comunitária a mais importante Desse modo dezenas de experiências começaram a ser realizadas no País ligadas às universidades à Igreja ou mesmo ao voluntarismo dos agentes da pastoral da saúde dos militantes dos partidos de esquerda e ainda dos profis sionais de saúde com prática nas comunidades Essas experiências introduziram uma nova concepção do exercício da medicina sustentada na simplificação do ato médico na valorização do trabalho auxiliar dos leigos e na participação comunitária A partir disso começouse a gestar uma articulação nacional do Movimento Popular em Saúde O I Encontro de Experiências de Medicina Comunitária Enemec aconte ceu em Lins São Paulo sob iniciativa do Instituto Paulista de Promoção Humana IPPH do Movimento de Amigos de Bairro de Nova Iguaçu MAB e de outras experiências de medicina comunitária em diferentes regiões do País O IPPH de Lins é uma instituição pertencente à diocese local que à época desen volvia um trabalho de formação de agentes de saúde em algumas regiões do estado de São Paulo e do Triângulo Mineiro O MAB ligado à diocese de Nova Iguaçu no Rio de Janeiro desde 1975 desenvolvia um trabalho na área de saúde na região da Baixada Fluminense Naquele momento a medicina comunitária colocavase como alternativa ao sistema de saúde na medida em que o setor público de saúde se deteriorava como resultado da crescente privatização da assistência médica O setor se ca racterizava pelo repasse de verbas para o setor privado com a conseqüente deterioração dos hospitais públicos as filas para atendimento a ausência de assistência que cobrisse as necessidades mais prementes da população carente e pari passu com a tecnificação e medicalização da medicina inacessível à população Intensas discussões e a produção crítica do Movimento Sanitário levaram à cristalização de uma corrente de pensamento com introdução de políticas alter nativas de saúde por meio de experiências comunitárias Estas tinham como princípio a simplificação dos cuidados de saúde de maneira que estivessem ao alcance da comunidade através da atenção primária sem instrumental de alta complexidade e com a participação de agentes de saúde da própria comunidade além da supervisão e adestramento dos profissionais de saúde nela inseridos cap4pmd 872011 1035 95 96 O Movimento Popular em Saúde contou em suas origens com a partici pação de líderes religiosos que se tornaram dirigentes populares e técnicos da saúde Estes últimos eram em sua maioria médicos enfermeiras e outros pro fissionais de nível superior funcionários de universidades e secretarias estaduais e municipais de saúde atuando localmente organizadas Exemplos dessas experiências foram os projetos denominados Montes Claros Lajes Niterói Cachoeiras de Macacu e tantos outros Tratava se também de profissionais ligados em sua maioria a uma militância política no Partido Comunista Brasileiro PCB e no Partido dos Trabalhadores PT Os técnicos os religiosos e os dirigentes populares compunham um variado mosaico de ângulos políticos visões de mundo contradições mas com alta identidade de princípios e de posições Não é fácil estabelecer a influência que cada um desses componentes exer ceu sobre o conjunto do movimento mas é inegável o poder de opinião dos técnicos e religiosos no direcionamento político e na atuação do Movimento Popular em Saúde O movimento procurou manter uma atuação independente ainda que seu início tivesse coincidido com a mobilização no interior da academia e timidamente nos aparelhos de Estado secretarias estaduais e municipais de saúde Mas junto a essa postura autônoma a questão saúde era vista como instrumento de conscientização e politização para o crescimento do Movi mento Popular em Saúde sem que se percebesse que isso por si só pudesse vir a se tornar uma área de decisão política sobre a qual o movimento poderia exercer importante influência Nesse momento inicial da formação do Movimento Popular em Saúde Mops em fins da década de 70 a problemática relacionada à política nacional de saúde não era visualizada como um eixo de atuação do mesmo Muito pelo contrário o que predominava era o afastamento das políticas estatais de saúde entendendose que a participação nestas colocaria em perigo a autonomia do movimento Esse afastamento voluntário levou à postergação no tempo da emergência do movimento como ator político na esfera nacional A postura de independência ou autonomia constituiuse ao longo da história do Mops como uma das questões mais paradoxais observadas nesta pesquisa Em 1979 registrouse a primeira proposta de promover a articulação na cional do Mops reunindo as diversas experiências locais de medicina comunitá ria que se expandiam por todo o País de maneira espontânea e com o apoio cap4pmd 872011 1035 96 97 também das dioceses Consta a participação de 332 representantes de 18 esta dos e de 1 Território Os delegados eram em sua maioria constituídos por técnicos ligados a universidades ou a secretarias estaduais e municipais de saúde A característica marcante desse I Enemec foi valorizar as experiências lo cais que apontassem para uma organização popular independente As experiên cias institucionais em andamento Lajes Montes Claros etc incentiva vam a participação da população mas quando esta ocorria não chegava a superar o nível instrumental dado que essa mesma população era convidada a contribuir com o projeto sem que houvesse uma participação mais decisiva Isso fazia com que crescesse enormemente a idéia de independência e de afas tamento das políticas estatais de saúde por parte do movimento e de suas lide ranças O relatório apresentou a descrição das experiências desenvolvidas e re velava a preocupação dos delegados com a conscientização e politização das camadas populares por meio da saúde O processo de organização do Movimento Popular em Saúde através das práticas de medicina comunitária foi gradativamente aumentando e já no II Enemec pudemos observar uma mudança na composição dos delegados na maioria representantes dos movimentos populares articulados organicamente em federações associações de moradores comissões de saúde etc Represen tantes de algumas regiões do País propuseram nesse Encontro transformar o Enemec em encontros nacionais de movimentos populares em saúde Entre tanto a proposta só conseguiria vingar mais tarde A novidade naquele momento foi a preocupação dos movimentos popu lares em discutir e acompanhar as propostas institucionais como por exem plo o caso do PrevSaúde A assistência médica foi considerada dever do Esta do e o sistema de saúde como devendo ser universal igualitário referindose a um tratamento igual para os trabalhos rurais e com participação dos traba lhadores em conjunto na elaboração da Política Nacional de Saúde No aspec to organizativo a comissão organizadora passou a ser composta por um repre sentante de cada estado do País O IV Encontro realizado em 1983 abandonou a medicina comunitária como principal eixo temáticoorganizativo do Movimento Popular em Saúde para se constituir ele próprio na motivação principal dos encontros transfor mados em instância de organização política do movimento em âmbito nacio nal A denominação mudou para Encontro do Movimento Popular em Saúde e seu tema geral foi Saúde uma Conquista do Povo cap4pmd 872011 1035 97 98 Podemos observar tanto em relação aos temas específicos considerados quanto ao tratamento dos mesmos que a reunião teve caráter marcadamente ideológico19 O relatório final incluiu uma série de diretrizes para a atuação do Movimento Popular em Saúde expressos nos seguintes pontos controle dos serviços de saúde pelos trabalhadores melhoria e igualdade dos direitos previdenciários e de serviços de saúde no campo e na cidade ações preventivas para a conquista da saúde tais como terra para plantar e morar salário justo emprego saneamento Assim foise configurando a articulação nacional do movimento bem como a preocupação de se estabelecer contatos mais estreitos com outros movimen tos sociais e sindicais Essa articulação foi definida como tendo base local Optouse também pela nãoinstitucionalização entendida como a obtenção de personalidade jurídica Foi proposta uma coordenação nacional para a orga nização do movimento constituída por dois coordenadores por estado os quais se encontrariam duas vezes por ano e definiriam rumos Como estrutura de apoio os encontros teriam uma secretariaexecutiva que funcionaria no pró prio estado que também sediaria o encontro nacional seguinte Esse quarto encontro foi um ponto de inflexão na trajetória do Movimen to Popular em Saúde em que já se pode perceber o ingresso em uma nova fase de caráter marcadamente político não só em relação aos temas considerados mas também nas tentativas de se desvencilhar das lideranças religiosas e técnicas tal como pela procura de uma articulação sustentada nas lideranças de extração popular das federações estaduais e federais das associações de moradores de bairros e favelas Os encontros nacionais a partir de então passaram a se desdobrar em dois grandes momentos de discussão um no qual se convidam assessores especialistas no tema com eficiência e compromisso junto ao movimento popular Sua função no caso é de formação e informação das lideranças populares Neste momento a con juntura política nacional é analisada e a política e os serviços de saúde se tornam objeto de debate 19 Temas abordados Controle dos Serviços de Saúde pelo Povo Movimento Popular em Saúde e Movimentos Populares no Momento Atual Avaliação Diretrizes e Organização do Novo Movi mento cap4pmd 872011 1035 98 99 outro para a definição da estratégia política do movimento como um todo em relação às políticas de saúde quando são lançadas as teses diretrizes e bandeiras de luta O V Encontro do Movimento Popular em Saúde refletiu então os avan ços em todos esses anos não só no tocante à organização mas também à passagem de uma organização centrada na atuação política localregional que na realidade já exercia grande pressão e tinha influência junto aos órgãos muni cipais e estaduais A grande mudança observada em torno da temática e das propostas do relatório final do Encontro foi a ênfase na Política Nacional de Saúde como tópico de destaque As diretrizes formuladas nesse Encontro foram participação do povo na elaboração execução e organização de conselhos populares de saúde para a fiscalização dos serviços mudança e controle da Previdência Social pelos trabalhadores fim de convênios com empresas particulares e de medicina de grupo uma Central de Medicamentos controlada pelo povo e com incentivo e financiamento de pesquisas em medicina popular formação de profissionais de saúde voltados para a medicina preventiva e para as práticas de medicina popular igualdade nos serviços de saúde para o homem do campo e o da cidade serviços públicos gratuitos em todos os níveis de atendimento ambulatorial e hospitalar e prioridade à medicina preventiva O debate de maior peso na futura organização do movimento se deu quando da transformação da mesma em entidade com personalidade jurídica A discussão foi particularmente difícil pelas implicações que acarretava O prin cipal argumento em defesa dessa tese repousava na possibilidade de se obter a independência financeira do movimento que dessa forma poderia receber recursos de várias fontes outras que não apenas a de órgãos governamentais possibilitando assim que se fortalecesse a estrutura centralizada e a tornasse mais ágil O status jurídico facilitaria também uma direção capaz de decisões mais rápidas e uma equipe de assessoria para fomentar o trabalho de formação das bases do movimento A essa idéia se contrapunha o argumento de que aí estava cap4pmd 872011 1035 99 100 o caminho para o atrelamento do movimento ao Estado e sua conseqüente burocratização e afastamento das bases Ainda que a institucionalização e a obtenção de personalidade jurídica não significassem necessariamente o atrelamento ao Estado essa visão era predomi nante no movimento popular e bastante defendida pelos coordenadores As diferenças em torno dessa questão não foram resolvidas e voltaram à tona nos sucessivos encontros influindo decisivamente na atuação do Movimento Popu lar em Saúde A composição social dos coordenadores era bastante heterogênea já que incluía tanto lideranças de origem popular quanto profissionais de classe média e religiosos As diferenças políticas entre tais lideranças eram consideráveis inici andose pelo divisor de águas entre a esquerda secular e a esquerda católica e por sua vez pelas divergências entre os diferentes partidos políticos de esquerda dentro dessas duas vertentes Naquele momento de transição do movimento porém posições ideológicas de autonomia extrema eram defendidas até como uma forma de preservação do movimento popular Assim observouse essa posição em relação aos partidos políticos refletida na reunião de coordenado res realizada em Brasília em setembro de 198520 Até o início da década de 80 a identidade do Movimento Popular em Saúde foi dada principalmente pela mobilização em torno de demandas pontu ais em relação às condições de saúde da população e a respeito das quais o Estado se omitia Nesse momento inicial do Mops a Igreja terceiromundista e a doutrina da Teologia da Libertação tiveram papel decisivo através das comu nidades eclesiais de base A primeira metade dos anos 80 caracterizouse pela organização regular das associações de moradores dos diferentes bairros e favelas das diferentes regiões do País Essas associações estavam dispostas a discutir problemas co muns fazer sua leitura política a respeito deles e propor uma atuação visando intervir nas decisões estatais do setor saúde Se organizaram em torno de fede 20 Vimos que o partido político é uma das ferramentas isto é uma das formas de organização que temos E nós agentes pastorais eou educadores temos um grande desafio o de construir um novo exercício político de forma séria e comprometida com as bases Por essa razão é que devemos ter claro a natureza de cada ferramenta de que dispomos o que cada uma nos oferece e onde como e quando podemos usála O Mops tem que ser alheio aos partidos por ser um movimento formado por entidades grupos e pessoas de diferentes religiões e ideologias Não devemos ser puristas mas termos claro os pontos que nos unem e encontrarmos uma forma democrática de convivermos com essas várias diferenças Relatório final da Reunião de Coorde nadores Brasília 1985 cap4pmd 872011 1035 100 101 rações de associações vicinais nacionais e estaduais as quais se reuniam periodi camente elegiam suas direções se uniam em seções ou departamentos de saú de de terras de moradia de educação dentre outras Adquiriram ao longo da década crescente visibilidade e relevância política O aparecimento de outras formas de atuação política que naquele mo mento da política nacional começavam a adquirir expressão saliente marcou também a década de 80 Partidos políticos e sindicatos deixavam de ter uma atuação limitada para passarem a definir plataformas de governo políticas e linhas de ação Nesse contexto de democratização e de liberalização política a Igreja e as comunidades eclesiais de base perderam a hegemonia política que caracterizara a década anterior em termos de oposição e de articulação da soci edade civil Tais transformações foram plenamente acompanhadas pelo Mops ob servandose naquele período de um lado uma evolução das diretrizes que gui aram a sua atuação deslocadas da problemática local para a nacional De outro o abandono da medicina comunitária pela discussão da política nacional de saúde Neste sentido as origens do movimento foram marcadas por sua ativi dade em nível local O centro da preocupação nos bairros e nas comunidades rurais era o atendimento médico os remédios caseiros as parteiras a formação dos agentes de saúde etc tudo enfim que fazia parte do cotidiano desses movi mentos e que era contemplado pela concepção da medicina comunitária Nenhuma das questões referidas aos modelos assistenciais ao financiamento do setor ao gerenciamento ao caráter público ou privado do sistema de saúde desperta à época interesse nos integrantes do movimento Ainda que existisse uma preocupação relacionada à política nacional de saúde quando da divulga ção do PrevSaúde em 1983 política de saúde anterior ao projeto das Ações Integradas de Saúde AIS tal discussão adquiriu seu ponto de maior inflexão na VIII Conferência Nacional de Saúde Podese visualizar no quadro seguinte os principais aspectos que caracteri zaram o Mops no período analisado cap4pmd 872011 1035 101 102 Quadro 1 Caracterização da conjuntura política e formação do Movimento Popular em Saúde 19791984 Períodos e Principais Caracte rísticas do Sistema Político Brasileiro Regime autoritário em processo de transição Crises militares em torno da sucessão presidencial Anistia política Reestruturação do sistema partidário Crises econômicas 79 e 83 aumento do preço do petróleo Processo econômi co inflacionário Eleição parlamentar com avanço da oposição Período e Princi pais Características do Setor Saúde Predomínio do setor privado com financiamento do setor público Fraudes nas contas dos hospitais do setor privado Ineficiência dos setores público privado Surgimento de propostas alternativas Papel dos departa mentos de medicina preventiva das universidades Experiências de medicina comunitária Proposta de reforma do sistema de saúde Crise da Previdência Social Principais Atores Comunidades Eclesiais de Base Movimento Sanitário Sindicato dos Médicos SinMed Associações de moradores populações carentes Centro Brasileiro de Estudos em Saúde Cebes Academia Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva Abrasco Médicos e associações médicas Principais Bandeiras Democratização do País Melhores condições de saúde Melhor atendimento Fim das filas nos hospitais públicos Contra o setor privado de saúde Contra a medicina de grupo Controle do setor público sobre o privado Reforma do sistema de saúde Formas de Atuação Pastoral de favelas Pastoral de saúde Formação de entidades populares Encontros nacionais Secretários estaduais de saúde Secretários municipais de saúde Grupos Aliados Movimento Sanitário Departamentos de medicina preventiva Organizações não governamentais ONGs Partido Comunista Brasileiro PCB Partido dos Trabalhadores PT Partido Socialista do Brasil PSDB Partido Democrático Trabalhista PDT Partido Comunista do Brasil PC do B Grupos de Oposição Empresas médicas Federação Brasileira de Hospitais FBH Associação Brasileira da Indústria Farmacêu tica Abifarma O Movimento Sanitário na verdade era constituído entre outros pelo Cebes Abrasco Academia e por médicos Estes últimos aparecem no quadro de maneira diferenciada em razão do papel de destaque que exerceram como principais organizações da sociedade civil no setor saúde durante esse período cap4pmd 872011 1035 102 103 A Ascensão a politização do movimento Em fevereiro de 1986 realizouse o VI Encontro Nacional do Mops ten do este sido um dos últimos encontros de caráter nacional pouco antes da VIII Conferência Nacional de Saúde Ainda que o tema geral tenha sido Saúde e Constituinte e os temas específicos similares aos dos outros encontros algo de novo e de importante surgiu para o movimento a inclusão do Mops como delegado na conferência A VIII Conferência Nacional de Saúde convocada pelo Ministério da Saú de através do Decreto Lei no 91466 de 23785 convidou as organizações da sociedade civil a participar através de delegados que as representassem diferen temente de conferências anteriores Assim o evento contou com representantes de várias entidades da sociedade civil da CGT da CUT da Contag de associações de profissionais de saúde e também do Movimento Popular em Saúde chegando a somar mil representantes de organismos societários Tal fato colocou os participantes do Encontro diante da necessidade de explicitar as teses do movimento em função dos temas da Conferência Saúde Dever do Estado Direito do Cidadão Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e Financiamento do Setor Após a discussão desenvolvida nesse VI En contro foi elaborado e aprovado um amplo documento com duas partes uma referida à Conferência e outra encaminhada à discussão pela Assembléia Naci onal Constituinte A preparação desse documento resultou em transformações tanto na con cepção do movimento pelo fato de participar de uma instância de decisão nacional da política de saúde quanto pelo exercício de explicitação das pro postas e estratégias do movimento popular em relação à questão da saúde A primeira parte do documento incluiu temas previstos na Conferência enfatizando a saúde de forma ampla sendo o atendimento médico apenas um aspecto da mesma Assim defendiam a estatização dos serviços de saúde e o controle dos mesmos pela população a autonomia dos movimentos populares em relação ao Estado leis que assegurassem a participação dos trabalhadores no planejamento na execução e no controle dos serviços de saúde a criação de conselhos populares de saúde ligados às prefeituras a unificação e a descentralização das decisões e do planejamento cap4pmd 872011 1035 103 104 o aumento das verbas para a saúde e a definição dos recursos em âmbito nacional estadual e municipal através da criação de um Fundo Único de Saúde Neste ponto foi ainda incluído um item referido na Constituição recomendando a suspensão do pagamento da dívida externa o direito de greve a reforma agrária a proibição de propaganda de medicamentos a política de saúde de acordo com interesses populares e a reformulação da Lei no 617974 que instituía amparo previdenciário para as pessoas com mais de 70 anos A segunda parte do documento que se refere ao direito à saúde e a como ele deveria ser assegurado pela Constituição propugnava que o fosse por meio do tratamento das aposentadorias da assistência médica da Previdência Social da diminuição do poder das empresas multinacionais de tecnologia médica e sobre tudo da indústria farmacêutica no setor da saúde e da implantação de medicinas alternativas A última questão incluída no documento foi a divulgação dessas pro postas na esfera estadual e nacional O marco da trajetória do Mops na última metade dos anos 80 foi dado pela VIII Conferência Nacional de Saúde Para compreender a particular importância dessa Conferência em especial cabe determonos na história desse órgão de definição da política de saúde As Conferências foram instituídas como instância decisória da política de saúde pela Lei no 378 de 1311937 devendo sua convocação sobrevir com intervalo máximo de dois anos Mas a I Conferência aconteceu somente em 1942 três anos após o previsto por lei tendo as seguintes sido convocadas em intervalos irregulares Em relação a conteúdos a III Conferência convocada pelo Ministro da Saúde Wilson Fadul ardente defensor das teses de municipalização Labra 1988 registrou proposições inovadoras que anteciparam a reformulação do sistema de saúde Mas foi a VIII Conferência que congregou a presença de organismos da sociedade civil e particularmente dos movimentos sociais em saúde pela primeira vez na história das políticas de saúde As conclusões espelhavam o amplo consenso em torno da necessidade de introduzir mudanças no setor de forma a tornálo democrático acessível uni versal e eqüitativo As propostas convergentes à formulação da Reforma Sani tária brasileira se sustentavam numa conceituação da saúde que como direito extravasava os limites da assistência médica implicando uma série de direitos correlatos educação moradia lazer participação e liberdade organização e expressão direitos dos cidadãos a serem efetivados pelo Estado cap4pmd 872011 1035 104 105 A partir da VIII Conferência o Mops se estabeleceu como força política no cenário da política nacional de saúde tendo seu projeto inserido na proposta mais ampla de mudança nesse setor no País Esta foi apresentada por outras forças políticas no nível da academia e de instituições da sociedade civil como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde Cebes a Associação Brasileira de PósGraduação em Saúde Coletiva Abrasco o movimento sindical e os par tidos de esquerda Ainda que as discussões evidenciassem diferenças entre os representantes dos diversos setores da sociedade civil estas não chegaram a prejudicar os resultados da Conferência Os delegados do Movimento Popular em Saúde apresentaram uma proposta de estatização do setor sem participação nenhuma do setor privado a qual não contou com a aprovação da maioria das entidades representadas dentre elas o Cebes a Abrasco e as centrais sindicais As teses levadas para a VIII Conferência pelo Mops também foram pro postas para a Constituinte21 Durante a campanha para a eleição dos candidatos à Constituinte o movimento popular apresentoulhes as teses procurando iden tificar os que com elas se comprometiam Uma vez eleita a Assembléia Consti tuinte o Mops passou a formar parte da Plenária Nacional de Saúde na Cons tituinte levou suas teses à discussão pelas forças políticas aliadas que integravam a Plenária e encaminhou posteriormente emenda popular para a área da saúde O VII e último encontro nacional do Mops foi em fevereiro de 1987 Ainda que o movimento continuasse existindo na esfera nacional os encontros seriam posteriormente interrompidos Desde a VIII Conferência Nacional de Saúde a trajetória do movimento popular adquiriu outras características em razão da avançada proposta da Reforma para as questões principais da reformulação do sistema de saúde a existência de um sistema único e descen tralizado de saúde nos estados e municípios O movimento passou então a ter feição estadual e municipal no processo de implementação da Reforma tendo os encontros sido substituídos pela Ple nária Nacional de Saúde como âmbito de articulação nacional Assim as fede rações estaduais e os organismos municipais de bairros e favelas dioceses profissionais de saúde das secretarias estaduais e municipais de saúde militantes deputados estaduais e vereadores dos partidos progressistas passaram a ter papel preponderante no encaminhamento da proposta da Reforma Sanitária 21 Foi inclusive elaborado um cartaz amplamente distribuído junto aos movimentos locais e também um documento para a discussão nas bases cap4pmd 872011 1035 105 106 Esse VII Encontro do Mops na cidade de Cachoeira do Campo em Mi nas Gerais foi organizado pelos movimentos da região metropolitana e do Vale de Mucuri22 que aderiram à articulação nacional no encontro anterior e contou com a participação de 138 delegados de 18 estados23 A articulação nacional que fora a tônica pela qual se estruturara e crescera o Movimento Popular em saúde deslocouse para as instâncias estadual e munici pal devido ao grande impulso e vitalidade que se deu às mesmas como espaço de participação popular Isso estava relacionado ao próprio processo da Refor ma Sanitária que recomendou como eixo central da reformulação da política de saúde a descentralização exigindo do Movimento Popular em Saúde uma atuação reforçada nos níveis locais para dinamizar os Conselhos de Saúde já que neles é que a população passaria a ter assento e papel decisório na implan tação da Reforma Houve deslocamento também na temática do Mops Enquanto as origens foram marcadas pela medicina comunitária como modo de dar conta das ca rências de saúde das populações pobres das grandes cidades e do interior nesse segundo momento ligado à realização da VIII Conferência passouse a enfatizar a política de saúde As experiências estaduais e municipais do Mops variaram de lugar para lugar e dependeram em boa medida do desenvolvimento que os movimentos já tinham conseguido antes da realização da VIII Conferência A escolha do estado do Rio de Janeiro para avaliar a atuação do Mops no final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90 se fundamentou na feição estadual do movimento e no desenvolvimento que este até então havia adquiri do no estado onde congregava na Baixada Fluminense desde 1975 o Movi mento de Amigos de Bairro de Nova Iguaçu MAB Neste estavam agrupadas todas as associações de moradores locais tendo se tornado federação em 1981 e posteriormente a maior federação de associações de bairro do País a Fede ração de Moradores do Estado do Rio de Janeiro Famerj formada em 1978 Mainwaring 1988 Assim a pesquisa que deu sustento ao livro estudou o Movimento Popular em Saúde neste estado 22 Herbert de Souza Betinho Sonia Fleury e Ivo Poletto foram os assessores do VII Encontro 23 A dinâmica foi semelhante aos encontros anteriores e os temas tratados foram Saúde do Trabalha dor Saúde da Mulher Saneamento Básico Pastoral da Criança e da Saúde Hanseníase Plantas Medicinais Hortas Comunitárias e Saúde do Consumidor A Constituinte ainda tema desse encon tro foi debatida delineouse o perfil de seus integrantes conservadores em sua maioria assim como as possibilidades das teses populares serem incluídas no texto constitucional Foram discu tidos também os temas apresentados pelos assessores sobre a conjuntura nacional o sistema de saúde do País e a reforma agrária cap4pmd 872011 1035 106 107 O Mops no Estado do Rio de Janeiro Nova Iguaçu era a maior cidadedormitório do estado Tinha em 1980 segundo dados do último censo 1522400 habitantes Era exclusivamente de moradia ou de alojamento isolada do local de trabalho Por ser cidadedormi tório sua população tinha características socioeconômicas que a distinguiam da do município do Rio de Janeiro e da do resto do estado Era na maioria uma população constituída de jovens em geral migrantes do Nordeste sem qualifi cação profissional inserida no mercado informal de trabalho com localização laboral no município do Rio e moradora de maneira precária em assentamen tos sem infraestrutura urbana Essas características fizeram com que o MAB ao se tornar federação agru passe uma população homogênea que tinha como eixo exclusivo de atenção o local de moradia sem que se considerassem outras questões tais como trabalho etc Ficou constatada assim uma grande proximidade entre as entidades repre sentativas do movimento popular e as bases comunitárias do mesmo alicerçadas na solidariedade espontânea entre os moradores e no trabalho desenvolvido pelo próprio MAB As associações de moradores que integravam o MAB apresentavam com posição bem mais homogênea que a Famerj Enquanto o MAB agrupava o conjunto das associações de moradores de bairros pobres da população de Nova Iguaçu na Famerj estavam representadas também as associações de moradores de bairros de classes média e alta No total a Famerj contava em 1989 com aproximadamente 1200 entidades filiadas24 Destas 82 pertenci am a associações de moradores de bairros de classe baixa e 18 a associações de moradores de classes média e alta ver quadro a seguir 24 Segundo dados divulgados pela própria entidade cap4pmd 872011 1035 107 108 Quadro 2 Etapa de ascensão do Movimento Popular em Saúde 19841987 Entidades do Movimento Popular em Saúde Federação Estadual de Associações de Moradores Famerj Federação de Moradores de Nova Iguaçu MAB Principais Bandeiras Reforma Sanitária Sistema Único de Saúde Cobertura universal Estatização do sistema de saúde Saúde direito do cidadão Acabar com o setor privado Grupos Aliados Partidos PCB PT PDT PC do B PSDB Movimento Sanitário SinMed Cremerj Sindicatos não médicos Organizações de Oposição à Política de Saúde Federação Brasileira de Hospitais FBH Associação Brasileira da Indústria Farma cêutica Abifarma Seguros privados de saúde Formas de Atuação Encontros estaduais Preparação da VIII Conferência VIII Conferência Processo constituinte Problemas locais de saúde Problemas de epidemias locais dengue A luta pela saúde foi central à Constituição do Movimento de Amigos de Bairro de Nova Iguaçu Em 1975 através de Caritas Diocesana foi implantado um programa de saúde composto por quatro médicos Dois deles desde 1974 vinham desempenhando um trabalho com a população carente de atenção à saúde e de formação através de cursos sobre as condições de vida e necessidade de organização dessas comunidades Mainwaring 1988 Origem semelhante teve a Famerj criada em 1977 sendo os problemas de saúde do estado também centrais na sua formação A luta pela saúde ajudou a nascer a Famerj25 A Famerj e o MAB se propunham a coordenar a luta pela saúde no estado do Rio de Janeiro a executar as decisões das plenárias de saúde mo bilizar as associações nas diversas regiões e representar o movimento junto aos órgãos públicos Realizado em 1980 na Cidade de Deus uma das maiores favelas da peri feria do município do Rio o Encontro contou com a participação de três mil pessoas representando federações e associações de moradores de bairros e favelas a Igreja profissionais de saúde e entidades do movimento operário e sindical do estado 25 Lucia Souto presidente da Famerj em 1989 Entrevista realizada durante a pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estudo sobre o Movimento Médico e os movimentos populares em saúde no Estado do Rio de Janeiro 1992 cap4pmd 872011 1035 108 109 Também no estado existia uma instância informal de discussão e articu lação do Movimento Social em Saúde como um todo a Plenária de Saúde ou Fórum Popular reunindo os movimentos populares de maneira nãoorgâni ca desde fins da década de 70 Podese observar desde o Encontro até 1986 o paulatino crescimento das entidades a formulação de um estatuto de funcionamento a definição da estru tura organizacional eleições periódicas a cada dois anos e a obtenção de perso nalidade jurídica Todos esses procedimentos levaram as organizações do Mops à institucionalização apesar das resistências explícitas das lideranças com orien tação radical de esquerda fortemente autonomista e inclinada à nãoparticipa ção nas políticas de saúde Ao longo de 19861987 as principais tarefas enfrentadas pelo Mops no estado do Rio foram de articulação Plenária ou Fórum Popular pela Saúde De signada Plenária Estadual de Saúde após a realização da VIII Conferência come çou a se desenvolver em fins de 1986 enquanto a realização do II Encontro Popular de Saúde do Estado do Rio de Janeiro foi projetada para fins de 1987 O Fórum Popular pela Saúde foi um permanente espaço de debates de divulgação de informações e de mobilização em torno de denúncias e de pro postas globais para exercer pressão articulada por conquistas de saúde Nele agrupavase grande número de entidades da sociedade civil entre as quais CUT Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas Ibase SinMed Cremerj Ordem dos Advogados do Brasil OAB Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro Amerj Famerj MAB etc Também os partidos políticos tive ram importante papel através dos representantes ligados ao setor saúde Den tre eles se destacaram o PCB o PT o PC do B o PDT e o PSDB26 A criação do Fórum tinha por objetivo a ampla articulação do movimento social pela saúde com as lutas concretas que aconteciam no estado Sua principal finalidade era por sua vez enfrentar a epidemia de dengue assim como tam bém preparar a participação no processo político que começava a se deslanchar na Assembléia Nacional Constituinte Tendo adquirido proporções alarmantes no estado do Rio onde afetou com maior intensidade a população da região da Baixada Fluminense a epide mia de dengue evidenciou a ruína do sistema de saúde trouxe à tona a 26 Entrevista realizada com Dilceia Nahon presidente do MAB 1989 Citada na pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estudo sobre o Movimento Médico e os movimentos populares em saúde no estado do Rio de Janeiro 1992 cap4pmd 872011 1035 109 110 falência de tudo esse problema da falência dos serviços de saúde ficou expos to27 expressa na desorientação municipal estadual e federal ante a crise que exigia resposta pronta e efetiva O Mops por sua vez assistiu perplexo à briga ocorrida entre as diferentes esferas de governo para saber de quem era a res ponsabilidade no combate ao mosquito Não podíamos esperar resolverem de quem era o mosquito se explica ram os líderes do Mops com relação à necessidade de reação Dada a gravidade e a extensão da epidemia e o caráter das ações do Mops organizaramse várias manifestações populares com ampla difusão na mídia Houve inclusive um protesto popular bloqueando a rodovia Presidente Dutra que liga os estados do Rio e de São Paulo o protesto teve a participação de moradores dos bairros mais atingidos das entidades agrupadas pela saúde e até de representantes do Ministério da Previdência e da Secretaria Estadual de Saúde O bloqueio dessa importante rodovia foi possibilitado pela resposta das organizações instaladas na Baixada Fluminense como o MAB a Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro e também a Famerj Cada uma dessas organizações congregava por sua vez subestruturas que lhes davam condições de acesso e de ação junto à população28 Os resultados da ação coletiva empreendida pelo Mops foram efetivos tanto para sua unificação e subseqüente atuação como em relação às medidas implementadas pelo governo do estado para o combate à dengue erradicada por meio da intensiva aplicação de produto eficaz na extinção do mosquito e das larvas O que acabou por se tornar óbvia foi a relação entre esse momento o de maior ascensão do Mops no período e a crise sanitária provocada por essa epidemia Neste sentido a atuação do Mops teve caráter eminentemente políti co e não meramente reivindicativo evidenciando a ausência inicial de interven ção do estado no combate à epidemia intervenção mobilizada pela exigência de ação efetiva com a complementação de políticas alternativas de saúde atra vés de agentes comunitários de saúde vigilância sanitária nos bairros etc A própria atuação e pressão do Mops ao mesmo em tempo que revelou a inoperância prévia do Estado obrigou o governo estadual a adotar medidas mais permanentes para enfrentar os problemas 27 Entrevista com Dilceia Nahon 1989 Ver nota anterior 28 Outras mobilizações aconteceram na Assembléia Legislativa na Fundação Oswaldo Cruz Fiocruz e na Superintendência de Campanhas de Saúde Pública Sucam tendo assim possibilitado a generalização e a expansão da luta do Mops contra a epidemia de dengue sendo criado também para isso um comitê popular de combate à doença cap4pmd 872011 1035 110 111 Vale frisar que nesse caso não estamos nos referindo ao estado como totalidade teórica ou sob uma perspectiva conceitual mas como estado no sentido de ser o complexo de decisões de planejamento de instituições e orga nizações que o tornam ativo Ainda que mais adiante retomemos o assunto da relação contraditória do Mops com o Estado por ora é preciso assinalar as dificuldades governamen tais na implementação de políticas de saúde adequadas Com o crescimento da pobreza também cresceram assustadoramente a carência de infraestrutura urbana e as doenças como meningite dengue Aids hanseníase esquistossomose e cólera O Declínio acesso às formas orgânicas da política Finalizada a VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de 1986 com uma proposta que obteve apoio das entidades representativas da sociedade o passo posterior se deu com a articulação do movimento no intuito de implantar a Reforma Sanitária Esse pode ser considerado o momento de maior comple xidade na trajetória dos movimentos sociais em saúde O encaminhamento em nível governamental das resoluções emanadas da VIII Conferência por intermédio dos Ministérios da Previdência e Assistência Social do Trabalho e da Educação estabeleceu uma instância de discussão de nominada Comissão Nacional da Reforma Sanitária cuja composição previa representantes de entidades da sociedade civil No entanto do ponto de vista formal essa composição não correspondia ao peso real que as associações da sociedade civil deveriam ter ficando estas em minoria com relação aos organis mos estatais e privados da saúde A Comissão tinha apenas seis representantes dos organismos populares CGT CUT Contag Conam FNM e 16 representantes de organismos go vernamentais e privados Ministérios da Previdência da Saúde do Trabalho da Educação Legislativo centrais patronais e prestadores privados de serviços de saúde Neste sentido a ação do Estado através da Comissão teve conseqüências não só no que se refere à lentidão no andamento do processo de implantação da Reforma Sanitária mas ainda mais grave na atualização da divisão interna do Movimento Sanitário do Mops entre posições favoráveis a uma política de caráter institucionalestatal versus os que defendiam a necessidade de uma política cap4pmd 872011 1035 111 112 própria e independente do movimento Conforme visto anteriormente era preocupação de parte do movimento do Mops a independência diante de po líticas governamentais isto significava a não participação nos Conselhos de Saú de e em outras instâncias vistas como formas de controle social As diferenças internas existentes no Movimento Popular em Saúde se tor naram evidentes com a formação da Comissão enquanto parte do movimento começou a se referir à Reforma Sanitária como uma proposta de cunho estatal com finalidade surgida pela necessidade de o Estado operar modificações nas políticas de saúde sem implementação de mudanças substantivas no sistema de saúde a outra defendia a Reforma mesmo com as dificuldades que a implementação desse processo comportava A partir da formação da Comissão Nacional pela Reforma Sanitária o que se deu foi um deslocamento do embate que vinha ocorrendo no âmbito da sociedade que culminara com uma proposta de amplo alcance e consenso social para o âmbito interno dos organismos estatais de saúde Essa luta passou então a ser travada no terreno dos enfrentamentos políticos das diversas facções da tecnoburocracia do setor na consecução dos avanços operacionais previstos pela Reforma Sanitária a unificação do sistema de saúde a descentralização da administração a gestão de recursos a hierarquização dos ser viços e a formação dos distritos sanitários como via de acesso ao sistema A mudança no terreno da luta política se explica o Movimento Sanitário vanguarda do processo de transformação das políticas de saúde tinha como estratégia penetrar nos aparelhos de Estado com o objetivo de tentar implementar suas táticas para mudar a direção da política e assim privilegiar o setor público Escorel 1992 Era uma questão problemática e a respeito da qual não existia consenso entre as forças sociais que compunham o setor saúde Desse modo a participação nos organismos estatais acabou sendo uma decisão unilateral do Movimento Sanitá rio o que dificultou sua relação com o Mops no transcorrer da década de 80 Nas origens do Movimento Popular em Saúde os intelectuais e profissionais de saúde que organizaram o Movimento Sanitário se assumiam intelectuais orgâ nicos do movimento popular De fato tiveram importante papel na formação deste À medida que ocorreu o crescimento do movimento e que se desenvolveu a discussão a respeito da sua autonomia perante o Estado e os profissionais de saúde intelectuais e técnicos passaram a ter uma dimensão sui generis diferencian dose e divergindo política e ideologicamente do Movimento Sanitário cap4pmd 872011 1035 112 113 A nomeação de quadros do Movimento Sanitário para cargos técnico políticos na direção do Inamps e Ministério da Saúde colidiu com a burocracia e com as rotinas estabelecidas nestes órgãos Os enfrentamentos ocorridos a partir de 1986 no Ministério da Saúde e mais fortemente ainda na Previdência Social estavam permeados pelas lógicas de poder presentes nos organismos estatais portanto limitados pela própria relação de forças no interior dos apa relhos de Estado As tentativas políticas de transformação do sistema de saúde por parte do Movimento Sanitário com a ocupação dos espaços por esses ministérios pro duziram importantes avanços em prol da Reforma Sanitária Essas tentativas foram todavia difíceis de serem mantidas no terreno da luta estatal eou buro crática o que levou de fato à relativização dos resultados aprofundandose as desavenças entre o Movimento Sanitário e o Mops29 ao mesmo tempo em que neste se produziam divisões internas Em fins de 1986 pouco tempo antes da formação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária o Movimento Popular por intermédio de suas entidades e o Movimento Sanitário atuavam ainda de forma conjunta na instância por vezes denominada Fórum Popular da Saúde por outras Plenária Estadual de Saúde a qual foi também reproduzida pelo Mops em outros estados O objetivo dessas plenárias era garantir a participação do Movimento So cial em Saúde no processo constituinte e ainda dar prosseguimento institucional ao processo da Reforma Sanitária pela via da incorporação das conclusões a que se tinha chegado na VIII Conferência Nacional de Saúde na Constituição No processo constituinte a Plenária Estadual de Saúde do Rio de Janeiro trabalhou a favor da Emenda Popular de Saúde apresentada à Assembléia Na cional Constituinte discutindoa e recolhendo assinaturas para sua inclusão A emenda definia a saúde como direito de cidadania e dever do Estado e propu nha tal como definido na VIII Conferência a criação de um sistema único de saúde com comando e controle estatal hierarquizado e descentralizado nos 29 Posteriormente à VIII Conferência a Famerj convocou também o Movimento Popular em Saúde do Estado do Rio para uma reunião de avaliação resultou um documento que se referia a proble mas de caráter organizativo limitantes de uma participação mais efetiva dos representantes do movimento e a outros de caráter político no sentido de se levantar suspeita de que a VIII Conferência tivesse sido uma forma de legitimar as propostas do governo Apesar disso foi positiva a avaliação da Conferência tanto em termos de procedimentos a exemplo da participação do Movimento Popular como de resultados Documento da Famerj abr1986 Citado na pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estado sobre o Movimento Médico e os Movimentos Populares em Saúde no Estado do Rio de Janeiro 1992 cap4pmd 872011 1035 113 114 estados e municípios brasileiros Este poderia ser complementado pelo setor privado por contrato de direito público O trabalho se constituiu um ato político importantíssimo para o movi mento na medida em que efetivou sua participação orgânica e institucional no processo constituinte ao mesmo tempo em que fortaleceu o crescimento geral da luta política do setor saúde Inicialmente a Emenda Popular pela Saúde se situava no âmbito estadual cujo eixo era a estatização do sistema de saúde Realizouse porém uma Plená ria Nacional de Saúde em maio de 1987 em que se propôs trabalhar em nível nacional a favor de um sistema único de saúde A Plenária Estadual decidiu apoiar o documento da Plenária Nacional abandonando sua proposta inicial Entretanto tal posicionamento não foi consensual Os pontos que marcaram diferenças iriam se tornar um divisor de águas do Movimento Sanitário e do Movimento Popular em Saúde a partir daquele momento Cabe neste ponto mencionar a composição política do Mops Identifica mos a presença de duas grandes facções políticas que conviviam no movimento e poderiam ser caracterizadas da seguinte forma uma facção mais crítica e radical na sua visão do Estado concebendoo como espaço exclusivo das classes dominantes Possuía discurso antiEstado e considerava que se houvesse medidas favoráveis às classes mais pobres estas teriam por objetivo o controle social Assumia portanto uma postu ra autonomista de distanciamento da máquina estatal a outra facção ainda que apresentasse uma caracterização semelhante em relação ao Estado como domínio da burguesia não acreditava que ele fosse monolítico sem fraturas internas através das quais seria possível pres sionar negociar e construir alianças que possibilitassem as conquistas sociais em saúde A associação dessas facções com os partidos não era tãosomente linear Os partidos de esquerda tinham diferenças internas que não poucas vezes se distribuíam entre as duas facções como também havia freqüentes mudanças dentro das próprias facções e também dentro das próprias facções do Mops Enquanto no primeiro caso se tratava de uma composição partidária das alas mais radicais do PT do PDT e do PC do B a segunda facção se identifica va mais com o Movimento Sanitário composto por uma ampla gama de posi ções políticas hegemonizadas pelo PCB De fato o Movimento dos Amigos de cap4pmd 872011 1035 114 115 Bairro MAB teve uma política mais próxima dessa segunda facção embora também reivindicasse independência e autonomia em relação ao Estado Parece pertinente mostrar de que maneira essas questões se apresentavam na dinâmica da atuação política do MAB na Baixada Fluminense Os projetos que chegaram a ter um encaminhamento30 resultaram de uma sólida aliança nas estruturas institucionais oficias de acordo com depoimento de liderança do MAB31 A mencionada aliança articulou o Mops às instituições estatais de saúde Inamps AIS Cims e também à academia Ensp IMS etc em uma conjuntura nacional de democratização em todos os níveis Isso permitiu a exis tência na estrutura do Estado de profissionais e de políticos dotados de com promisso éticopolítico com suas funções de governo e de solidariedade social O Programa Especial de Saúde na Baixada Pesb fez parte de uma inicia tiva que contou com forte investimento da sociedade civil e mostrou sua marca nãoestatal embora necessitasse da colaboração vinda da parceria existente en tre o MAB e a Secretaria Estadual de Saúde Esse projeto em especial foi elaborado e discutido por representantes da comunidadeMAB do Conselho Comunitário de Saúde e da Famerj com a Se cretaria Estadual de Saúde e o Inamps Teve como proposta a implantação de minipostos de unidades mistas englobando urgências de ambulatório e de três hospitais gerais para a Baixada Fluminense Implantadas mesmo foram apenas as 12 unidades mistas previstas pelo programa que tiveram sua construção viabilizada pelo Inamps fornecedor também de parte do equipamento necessário ao seu funcionamento e da verba necessária à manutenção do projeto32 A participação da comunidade na gerência das unidades estava prevista para ser efetivada através de um representante no conselho diretor das mesmas e de uma reunião semanal entre os representantes das associações de moradores e a coordenação do Programa Em relação aos profissionais de saúde valori zouse o salário do pessoal contratado por se entender que era um programa diferenciado e com uma nova proposta de assistência em saúde Isso incentivou os concursados a assumirem seus cargos 30 O SOS Baixada por exemplo primeiro a se transformar mais tarde no Programa Especial de Saúde da Baixada Pesb 31 Entrevista realizada com liderança do MAB Citada na pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estudo sobre o Movimento Médico e os movimen tos populares em saúde no Estado do Rio de Janeiro 1992 32 O ambulatório funcionava com duas equipes de dois clínicos um ginecologista dois pediatras um dentista e um nutricionista Incluía além de agentes administrativos visitadores sanitários assistente social e auxiliares de serviços gerais O setor de urgência tinha seis equipes das quais a de enferma gem juntamente com auxiliares radiologia e laboratório assistiam também ao setor ambulatório cap4pmd 872011 1035 115 116 O Pesb visava garantir atendimento digno humano e personalizado por meio de efetivo controle social que assegurasse a cada cidadão e às comunidades o direito de exigir que os profissionais de saúde cumprissem as obrigações contratuais assegurar atenção contínua e integral aos pacientes dos postos comunitários de saúde e a suas famílias o que implicaria o acompanhamento da evolu ção dos pacientes atendidos realizar a detecção precoce de subgrupos de risco assim como atividades de educação para saúde estabelecer mecanismos de referência para exames consultas atendimento de urgência e internações em outros serviços de saúde do município assim como contrareferência para o posto comunitário de origem do paciente priorizar ações voltadas para a redução da morbimortalidade por meio da prevenção acompanhamento e controle de doenças tais como hipertensão diabetes infecções respiratórias diarréias imunização crescimento e desen volvimento prénatal prevenção de câncer na mulher e aleitamento materno O programa não foi gerenciado pelo poder público mas por uma institui ção pertencente à Igreja católica com profundas raízes na pastoral popular a Caritas convidada a se inserir no processo a partir dos fortes laços que mantinha com o MAB e com o Conselho Comunitário de Saúde e também porque apta a gerenciar com eficácia o programa dada a sua trajetória na Baixada desde 1966 Além disso porque se trata de instituição sem fins lucrativos Depois de três anos ficaram comprovadas a eficiência e a qualidade da assistência à população possi bilitada pela intervenção da Caritas e pela participação do MAB Os postos no entanto começaram a atravessar dificuldades a partir de 1990 devido a atrasos no repasse das verbas que além disso não eram reajus tadas de acordo com a inflação Ademais os funcionários foram estadualizados nesse ano e o Pesb passou a ser de responsabilidade do estado do Rio o que acarretou a supressão do caráter de projeto independente Quanto aos profissionais de saúde sofreram perda salarial de 800 ao fim de três anos Em 1987 ano de iniciação do projeto os salários dos médicos equivaliam a US 800 e em 1990 chegaram a valer US 100 Os recursos repas sados ao Projeto pelo estado eram insuficientes para a manutenção das instala ções dos postos de saúde e para reposição do material e instrumental necessário ao atendimento A deterioração salarial as precárias condições de trabalho e a cap4pmd 872011 1035 116 117 falta de segurança no desenvolvimento do mesmo levaram os profissionais a se recusarem a trabalhar Por tudo isso tornouse inviável o funcionamento A questão só pode ser compreendida sob a perspectiva da política nacio nal de financiamento da área social e em especial da saúde a qual ocupa um lugar subalterno nas prioridades governamentais Se ainda acrescentarmos à escassez dos recursos as modalidades do repasse dos mesmos desde a federa ção até os estados e municípios temse que o que ocorreu com o financiamento do setor saúde é quase incompreensível e nada transparente Constatamos ao observar os valores repassados pela União ao setor pú blico estadual e municipal e ao setor privado contratado da área de saúde que houve um aumento a partir do início dos anos 90 ainda que este tenha sido insuficiente Enquanto em 1989 o orçamento para o setor correspondeu a 185 do PIB em 1990 passou a 236 e em 1991 a 26633 A distribuição porém dependeu de uma tabela de procedimentos estabe lecidos pelo Ministério da Saúde e Inamps de caráter nacional e referente a valores diferenciados per capita por grupo de estados cuja aplicação levou os estados que produziam serviços de maior complexidade quantidade e qualida de a não conseguirem cobrir os custos dos serviços prestados com os recursos a eles atribuídos Carvalho et al 1993 Essa distribuição também não obede ceu aos preceitos estabelecidos na Constituição os mecanismos não eram transparentes os valores eram retidos sem explicação o cálculo do orçamento não correspondia à previsão realizada e assim por diante Retomando as divergências internas do Movimento Popular em Saúde questões mais polêmicas e confIitivas referiamse à proposta de estatização do setor saúde em contrapartida à proposta de um sistema único de saúde com a presença do setor privado desde que não subvencionado pelo Estado A partir de 1987 a trajetória do Mops apresentouse assinalada por momentos de divi são do movimento com paralisação na atuação do mesmo e momentos de unificação e atuação relevante na política de saúde Esses percalços do movimento também estavam relacionados à sua institucionalização Considerando que o Mops foi um dos protagonistas da VIII Conferência Nacional de Saúde exercendo destacado papel na definição da po lítica de saúde viuse de um lado diante da necessidade de adquirir formas organizativas mais institucionalizadas que possibilitassem participação na implementação das políticas De outro lado viuse diante da urgência em definir 33 Ministério da Saúde Brasília 1992 cap4pmd 872011 1035 117 118 de que maneira participaria das instâncias institucionais criadas pelo Estado para o assentamento da comunidade no novo sistema de saúde Esses momentos diversos na atuação e organização do movimento po dem ser assim visualizados Quadro 3 Os impasses na atuação e organização interna do Mops As diferenças não superadas configuraram uma primeira divisão do Movi mento Popular em Saúde o que rompeu uma unificação mantida desde 1986 mais especificamente desde a VIII Conferência Nacional de Saúde O rompi mento concretizouse no trabalho em prol da Emenda Popular pela Saúde Ou seja a facção do Mops defensora da estatização total e imediata considerou que o texto único da Plenária Nacional de Saúde não postulava uma estatização efetiva de modo que não assumiu esse compromisso em âmbito nacional No ano de 1986 houve eleições para a renovação das diretorias em maio na Famerj e em dezembro no MAB As eleitas na Famerj se identificavam com a proposta de estatização total do setor saúde ao passo que as do MAB não tinham postura tão radical A partir do segundo semestre de 1987 a Famerj deixou de trabalhar a favor da Emenda Popular pela Saúde e se voltou para a organização do II Encontro Popular de Saúde do Estado do Rio de Janeiro34 visando reivindicar a autonomia do movimento ante o Estado Divisão do Movimento nov 1987 Estatização total versus alguma participação setorialprivada Discussão política interna e paralisia da ação coletiva Tentativa de Unificação jul 1988 Em torno da crise do sistema de saúde do RJ Ação coletiva do movimento Nova Divisão ago 1988 Participação ou não das instânci as institucionais de saúde criadas pelo Estado Discussão política interna e paralisia da ação coletiva Unificação do Movimento Social de Saúde dez 1988 Articulação do conjunto do Movimento Social Convocatória Cremerj para Constituição estadual Nova Unificação fev 1989 Crise da saúde no estado e Lei Orgânica de Saúde Ação coletiva do Mops 34 Realizado nos dias 28 e 29 de novembro de 1987 esse II Encontro contou com a participação de cerca de 250 pessoas entre representantes de 57 entidades de caráter geral sindicatos organizações nãogovernamentais e outras 24 associações de bairro 23 associações de favelas de funcionários de órgãos públicos e de profissionais de saúde O temário incluiu Reforma Sanitária Saúde do Trabalhador Saúde da Mulher Saúde Mental Foram discutidos também o papel dos Conselhos de Saúde e ainda Conselhos Comunitários de Saúde Grupos Executivos de Saúde ou outras tantas denominações dadas às instâncias previstas pelo SUS para a participação da sociedade nos aparelhos de Estado do setor saúde cap4pmd 872011 1035 118 119 De maneira geral podese afirmar que nesse encontro houve uma radicalização por parte do Mops no que se relaciona às reuniões da Plenária Isso pode ser explicado em parte pela identificação da diretoria da Famerj com a facção mais radical do movimento popular e de outra parte pelas difi culdades de implantação da Reforma Sanitária além da frustração das expecta tivas da população com o governo da Nova República A radicalização do movimento e a divisão interna produziram um esvazi amento das propostas e da atuação do Mops o que ficou evidente no evento mas que já podia ser observado meses atrás nas reuniões das Plenárias ou fórum O II Encontro teve escassa mobilização popular Quanto às conclusões dele extraídas tiveram caráter marcadamente autonomista e antiEstado Em meados de 1988 o Mops no Rio de Janeiro buscou a reunificação fomentada basicamente por dois fatores o primeiro relacionouse com as con seqüências do II Encontro onde o próprio Mops em face de seu esvaziamen to percebeu a necessidade de retomar o processo de luta unificadamente A questão fundamental porém foi a crise do sistema de saúde do Rio de Janeiro já com nítidos sinais de desgaste devido à crise financeira e política da prefeitura da cidade responsável pelas principais unidades hospitalares de emer gência O eixo de luta do movimento foi de fato a reivindicação de soluções para essa crise De certa forma verificouse uma mudança de rota na estraté gia da Plenária na medida em que se voltou para lutas mais pontuais principal mente em relação às unidades de atendimento A reunificação no entanto se rompeu novamente em fins de 1988 Convocada uma Plenária Estadual de Saúde abandonouse a denominação Fórum e passouse a utilizar a denominação única de Plenária mas as divergên cias agora diziam respeito à participação dos movimentos populares nos apa relhos de Estado A facção radical defendeu a criação de um Conselho Popular de Saúde ao invés de um Conselho Estadual de Saúde este aprovado na VIII Conferência e inserido na proposta da Reforma Sanitária A facção favorável à criação do Conselho Estadual de Saúde entendia este como um instrumento de controle popular da política de saúde Já para a facção que defendeu a criação do Conselho Popular de Saúde o Conselho Estadual de Saúde significava a institucionalização e a burocratização do movimento popular ou seja mais um canal de participação aberto pelo Estado como os Grupos Executivos Locais Conselhos Governo Comunidade etc visando à cooptação do movimento Portanto concluise que deveria ter sido cap4pmd 872011 1035 119 120 construída uma instância genuinamente popular sem a participação do Estado um Conselho Popular de Saúde em lugar de um Conselho Estadual de Saúde As diferenças internas e a maneira como estas se processaram internamente no movimento autorizam a incorporar algumas reflexões teóricas mais substan tivas em relação às modalidades de atuação desses atores políticos Os momen tos de maior unidade do Mops coincidiram com as crises no setor da saúde e se refletiram no crescimento da ação política o que por sua vez produziu uma unificação ainda maior dando novo ímpeto ao processo de construção de identidades políticas ao setor Assim as diferenças entre o Movimento Sanitário o Movimento Médico e o Movimento Popular em Saúde perdiam sentido perante a dimensão societal que adquiriram as crises de saúde no País Contrariamente o desmembramento esteve profundamente ligado a períodos de inatividade política do Mops em que a ação para fora que caracterizara o movimento se transformou em ação para dentro Queremos dizer com isso que na existência de períodos em que a atividade estava direcionada à discussão política interna do Mops as duas facções do Movimento tentaram impor sua própria linha políticoideológica acabando por produzir uma discussão de cunho ideológico que em verdade operou como camisadeforça paralisando assim o movimento As questões centrais dessa discussão passaram pela autonomia por uma política antiEstado e pela estatização dos serviços de saúde A posição política do Mops era antiEstado mas curiosamente defendia a estatização absoluta dos serviços de saúde Um dos temas mais debatidos nas reuniões do Fórum Popular pela Saúde e no II Encontro de 1987 foi a atuação do movimento nas instâncias institucionais criadas pelo governo para dar anda mento à política de saúde Além das divergências ideológicas quanto à participação ou não do movi mento nos Conselhos houve também heterogeneidade na composição dos mesmos em termos da representação popular e maior ou menor abertura à participação da comunidade Ou seja na prática havia Conselhos em alguns municípios do estado do Rio que tinham apenas papel burocrático sem efetiva representação popular enquanto outros favoreciam eou conquistavam vitórias para a população Essa questão também não era desvinculada do peso político e da organiza ção do Movimento Popular em Saúde nas diferentes regiões do estado mas cap4pmd 872011 1035 120 121 não era percebida com clareza pelos quadros do movimento embora a existên cia de um tal movimento forte e articulado tivesse incidência na definição polí tica e na atuação dos Conselhos Outra polêmica intimamente conexa a essa relacionavase à criação das instâncias de participação e à sua forma institucional Havia no interior do Mops quem entendesse que por terem sido criadas de cima para baixo essas instânci as careciam de participação popular No entanto no caso do Conselho Comu nitário de Saúde de Nova Iguaçu este consignou importantes vitórias na medi da em que cresceu e se fortaleceu com as lutas populares pela saúde desde a sua formação anterior às diretrizes constitucionais A institucionalização do Conse lho não significou a perda do espaço político conquistado nem a ausência da participação popular A institucionalização do movimento foi por parte deste associada à ala mais radical à burocratização interna e à perda de autonomia em relação aos aparelhos estatais do setor De fato o início de um processo de discussão e negociação com secretarias estaduais e municipais de saúde conduziria necessa riamente a uma reorganização do movimento sobre outras bases A articulação sustentada exclusivamente na mobilização popular na qual a identidade política é resultante do enfrentamento com o Estado se torna insuficiente nesta etapa do processo de implementação da Reforma do Sistema de Saúde Com relação à proposta de criação do Conselho Estadual de Saúde ainda que esta instância não existisse até o segundo semestre de 1993 já tinha sido apro vada em outubro de 1989 pela Constituição estadual O atraso na sua implantação deveuse à ausência de decisão política do governo e da Secretaria Estadual de Saúde sendo efetivada após julho de 1993 quando o Conselho Nacional de Saúde aprovou resolução dispondo sobre a obrigatoriedade de formar Conse lhos em todos os estados do País tarefa delegada aos governos estaduais Neste ponto necessário se faz salientar que as diferenças do próprio movimen to popular também contribuíram para que o governo do estado adiasse a decisão O posicionamento novamente não foi consensual enquanto uma das facções de monstrou ser favorável por se tratar de uma instância que favoreceria o controle popular da política de saúde a outra entendeu que o Conselho Estadual de Saúde geraria um impasse de decisão o que justificava portanto a contraproposta de criação de um Conselho Popular de Saúde totalmente autônomo Por fim aprovado pela Constituição do estado o Conselho Estadual de Saúde não teria o poder desejado por aqueles que o defenderam tendo em cap4pmd 872011 1035 121 122 vista que o texto final promulgado não era a íntegra do Anteprojeto da Subcomissão da Ordem Social como esperado tendo sofrido uma série de cortes Incluiuse dentre estes a redução do poder do Conselho na política de saúde do estado embora sua composição fosse paritária entre o Estado e a sociedade civil organizada e detivesse também poder deliberativo Ainda que não existisse uma estratégia única do Mops em relação a essas instâncias institucionais observase certa amplitude e maleabilidade desses mo vimentos evidenciada em sua atuação conjunta quando os problemas a enfren tar afetavam vitalmente as já precárias condições de vida das populações Salien tese que essa discussão se reproduziu naqueles estados do País que já tinham um movimento forte e atuante Cabe frisar que o movimento sempre ficou dividido em torno de questões centrais de sua atuação o que no entanto não o impediu de atuar coletivamen te Essa ação coletiva ficou interditada sob as condições de agudização da luta ideológica interna ou seja no momento em que esta adquiriu uma dimensão exacerbada perdeuse de vista o objetivo principal a ação coletiva como forma de viabilizar reivindicações populares Cada vez que o movimento procurou uma homogeneização ideológica esta funcionou como camisadeforça o que impediu a atuação do Mops O espaço conquistado na Plenária Estadual de Saúde foi ocupado pelo Conselho Regional de Medicina Cremerj única entidade médica que durante esse perío do manteve a luta política na categoria médica Em fins de 1988 o Cremerj assumiu o papel de entidade articuladora do movimento social pela saúde no Rio de Janeiro tanto na convocação da Plená ria Estadual de Saúde quanto na forma de reunificação do Movimento Social em Saúde como um todo O papel político do Cremerj será analisado no início do próximo capítulo mas assinalamos desde já que à medida que o movimento popular se dilacerava em torno de sua institucionalização uma outra entidade do movimento social em saúde que tinha legitimidade e competência técnica específica no campo da saúde tornouse liderança do Movimento Social em suas diversas vertentes A Plenária Estadual de Saúde realizouse na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro em dezembro de 1988 e teve a participação de 200 pessoas Nela se discutiu a formulação da nova Constituição estadual mediante a participação da sociedade civil organizada segundo os princípios básicos da VIII Conferência Nacional de Saúde A idéia era desenvolver em nível estadual o processo de cap4pmd 872011 1035 122 123 formulação da Constituição federal ou seja objetivavase que a Plenária Esta dual de Saúde tivesse como modelo a Plenária Nacional de Saúde O Cremerj convocou novamente a Plenária Estadual de Saúde em janeiro de 1989 tendo esta sido constituída por três sessões35 Quando da organização desse ciclo de reuniões o Mops discutiu sua participação havendo manifesta ções favoráveis e contrárias Por fim decidiuse pela participação por conside rar que a Plenária era um espaço representativo com capacidade de articulação e mobilização onde se deveria estar presente O ciclo de debates objetivou preparar um anteprojeto para a Constituição estadual Porém a crise do sistema de saúde do Rio de Janeiro fez com que essa questão passasse a ser de fato a finalidade principal da Plenária agregandose ao objetivo de influenciar a Cons tituição estadual A crise atingira um ponto de calamidade pública após três meses de greve dos médicos e servidores públicos municipais com a ameaça de fechamento total de várias unidades de atendimento especialmente as emergências dos três maiores hospitais do município Salgado Filho Souza Aguiar e Miguel Couto Além disso havia a ameaça da proximidade do carnaval quando o número de atendimentos de emergência aumentava substancialmente Após o ciclo de debates da Plenária estadual as lideranças do Movimento Popular em Saúde retomaram o processo de unificação que vinham construin do Ainda que a elaboração da Constituição estadual permanecesse como prio ridade na agenda da Plenária a situação do setor saúde era tão grave no estado que se transformou no eixo principal das discussões Evidenciam esse fato a aprovação de um anteprojeto único para a Consti tuição em apenas dois meses de sessões assim como a presença maciça de pessoas e entidades nas reuniões O movimento de maneira unificada encami nhou esforços para o enfrentamento da situação da saúde do município e para a aprovação do projeto Cabe ressaltar que a crise no setor possibilitou novamente a postergação das diferenças internas no encaminhamento conjunto dos movimentos sociais em saúde e na retomada da relação entre o Movimento Popular e o Movimento Médico O descaso do governo do Rio de Janeiro diante da nova crise de saúde trouxe à tona a contradição entre o Mops e o estado A omissão deste 35 As reuniões abrangeram três temas Constituição Federal texto saúde aprovado e suas implica ções Diagnóstico de saúde e assistência médica no estado do Rio de Janeiro Avaliação e propostas dos movimentos populares e sindicais cap4pmd 872011 1035 123 124 último deixou as populações carentes praticamente sem atendimento o que levou o movimento a se articular novamente e reivindicar o direito de a popu lação ser atendida Era uma dinâmica contraditória a que caracterizava a relação dos movi mentos com o estado na medida em que a omissão deste interpelava esses movimentos ao mesmo tempo em que a ação coletiva era o instrumento atra vés do qual o movimento exercia pressão sobre ele para intervir Dessa forma o movimento voltou a estar presente na cena política exigin do a intervenção do estado através de medidas regulatórias que aliviassem a situação calamitosa dos hospitais do município e da Previdência Social Em 13 de fevereiro de 1989 a Plenária Estadual de Saúde entregou o seu anteprojeto de Constituição estadual para a área da saúde Nele constava um Conselho Estadual de Saúde paritário entre a sociedade e o estado e deliberativo a respeito da política estadual de saúde A reunificação do movi mento possibilitou que dentre as várias entidades que o assinaram figurasse também um Conselho Popular de Saúde instância interna do Mops sem ne nhum status jurídico e que havia se manifestado contrário à criação do Conselho Estadual de Saúde tal como já mencionado Em junho de 1989 a Famerj realizou o seu V Congresso quando foi eleita uma nova diretoria mais heterogênea que a anterior e com posições políticas mais próximas do movimento sanitário Assim a entidade tentou retomar a luta pela saúde no estado junto ao MAB e às entidades médicas de maneira unificada Em outubro de 1989 realizouse um seminário para discutir as Leis Orgânicas Muni cipais organizado conjuntamente pela Famerj Cremerj MAB e outras entidades O seminário foi uma proposta da Plenária Nacional de Saúde que se rearticulou em 1989 para discutir influenciar e garantir na Lei Orgânica da Saú de que regulamenta os princípios constitucionais as propostas do Movi mento Social em Saúde Nele foi distribuída uma proposta de Lei Orgânica Municipal a qual continha as idéias do movimento sanitário para ser discutida junto aos movimentos sociais pela saúde nos diversos municípios É interessante mencionar a adesão e o encaminhamento dessa proposta pelo Mops que se colocou favorável à criação dos Conselhos Municipais de Saúde de forma bastante semelhante ao Conselho Estadual de Saúde desde o início do debate acerca das Leis Orgânicas Municipais Dessa forma verificase que inicialmente o Mops foi contra a criação do Conselho Estadual de Saúde durante o decorrer do processo constituinte cap4pmd 872011 1035 124 125 mas que num momento seguinte já aprovada a Constituição Estadual se posicionou favorável à proposta dos Conselhos Municipais de Saúde desde o começo dos debates Essa mudança se explica pela perda de hegemonia da facção radical do movimento o que se refletiu na composição das lideranças das novas diretorias da Famerj e do MAB respectivamente O que transparece da experiência do Mops apesar das enormes dificuldades que se depreendem da sua trajetória é a capacidade de agir de maneira fluida na cena política com um considerável componente de democracia interna Tal con dição foi facilitadora para que a facção mais radical não chegasse a se cristalizar na condução do movimento pois existiu uma alternância nas direções políticas e nas práticas do Mops Podese observar ao longo desses anos um paulatino desgaste dos serviços públicos de saúde mais notável em alguns estados caso do Rio de Janeiro com o conseqüente descrédito da população diante da falta de eficiência de instrumental hospitalar da desativação de leitos das filas para atendimento e de outras mazelas que assolaram o setor Essa situação que o setor público atravessou poderia ser chamada de contrareforma Caracterizouse por uma coordenação de esforços dos setores que se sentiram afetados pela proposta da Reforma Sanitária Denominamos contrareforma porque existiu a intenção explícita de boi cote ao SUS e ao processo de descentralização Primeiramente o próprio governo federal fez freqüentes pronunciamen tos desde seu estabelecimento em 1990 sobre a ineficiência dos hospitais públicos ao mesmo tempo em que repassava as unidades para estados e municípios sem o correspondente repasse de recursos A falência do setor público da saúde produzida pelo governo federal levou ao crescimento nesse período dos seguros privados em detrimento da Reforma Sanitária Em segundo lugar o setor privado de atendimento hospitalar foi favorecido com a afluência de usuários de classe média que começaram a recorrer ao setor privado diante do descaso em que se encontrava o setor público Em terceiro lugar predominaram os interesses políticos clientelistas na área através do favorecimento pessoal nomeando pessoas sem idoneidade pro fissional para a direção de hospitais públicos e de outros órgãos de saúde Por último o boicote surdo da burocracia estatal contra as mudanças nas rotinas institucionais resultantes do processo de implementação da Reforma cap4pmd 872011 1035 125 126 levou a uma perda de autoridade e de poder decisório por parte da burocra cia e dos políticos clientelistas incrustados nas instituições estatais do setor Assim foram enormemente dificultados os repasses financeiros o processo de descentralização e a participação da comunidade na gestão do sistema As crises no sistema de saúde no estado do Rio de Janeiro não só refle tiram o que acontecia no restante do País mas também os percalços no pro cesso de implantação da Reforma Sanitária cujos problemas de maneira ge ral eram os mesmos em todos os estados apesar das peculiaridades Foi alarmante o desgaste da rede pública devido à dificuldade no repasse dos recursos da esfera federal para a esfera local a qual por sua vez os transferia às unidades hospitalares A implementação de uma progressiva unificação e descentralização do sis tema de saúde teve também seu funcionamento obstaculizado em razão dos conflitos interburocráticos em torno do controle político administrativo e fi nanceiro entre o Inamps e as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde Um nítido exemplo de tais procedimentos pode ser percebido na diver gência entre o Hospital da Lagoa36 e o Escritório Regional do Inamps Houve nesse caso um conflito de poderes entre a direção do Inamps que queria no mear o diretor do Hospital e os novos procedimentos democráticos implanta dos com a eleição do diretor daquele hospital pelo próprios trabalhadores e pacientes Tal procedimento foi sustentado como resultado das propostas de transformação do sistema de saúde Neste sentido o movimento batizado de SOS Lagoa teve grande repercussão e acabou por ser o eixo de luta do movimento social em saúde em fins de 1989 Deflagrado com a exoneração do diretor do hospital pelo Escritório Re gional do Inamps O SOS Lagoa tomou grande proporção Foi articulado por profissionais de saúde pela população das comunidades locais associações e federações de moradores como a Famerj o Conselho Popular de Saúde o MAB por partidos políticos sindicatos deputados vereadores artistas e outros solidários na luta pela manutenção do diretor eleito 36 O Hospital da Lagoa é um dos maiores hospitais gerais do estado do Rio de Janeiro tem excelente localização zona sul do município e atende à população da região especialmente das favelas Dona Marta Rocinha e Vidigal Em março de 1988 em um processo peculiar o Dr Waldinez Lima de Oliveira foi eleito diretor pelos funcionários com a participação daquelas comunidades O Hospital passou então a enfrentar um grande impasse em razão das divergências entre sua diretoria e a do Escritório Regional do Inamps O alvo desse conflito foi o tipo de administração implementada que se pautou pela descentralização dos serviços inaugurou um posto de saúde na favela Dona Marta pelo maior rigor nos critérios de compra de material hospitalar pelo aumento do número de atendimentos etc Na época foi considerada uma administração de qualidade diferenciada cap4pmd 872011 1035 126 127 Havia identificação por parte da população entre essa luta e a luta pela democracia bem como era defendida a manutenção do tipo de administração implementada pela direção eleita alvo então dos conflitos com o Escritório Regional Essa voltouse prioritariamente para as comunidades mais necessita das da área particularmente as residentes nas favelas do Vidigal Rocinha e Dona Marta tendo assumido uma nova postura diante delas bem como tendo elevado de fato o número de atendimentos Desse modo foram criadas as bases pelas quais a comunidade local o Mops e os profissionais de saúde não poderiam aceitar passivamente o desmantelamento pretendido pelo Escritório Regional Maior significado nisso tudo foi a unificação não apenas do Mops mas do movimento social em saúde em seu conjunto numa luta de caráter local porém com forte conteúdo políti co qual seja a luta pela democratização da saúde e em defesa de um atendimen to voltado para a população mais carente Vale assinalar que no que se refere às reivindicações do movimento o con teúdo político das mesmas se traduziu na luta pela efetiva implementação do SUS Os novos procedimentos democráticos a eleição direta das autoridades a participação da comunidade usuária mobilizada nas portas e no interior dos hospitais e o papel próativo dos profissionais de saúde do Hospital nas deci sões políticotécnico e administrativa apoiados pelas entidades médicas O sin dicato dos médicos e o Cremerj não foram aprovados pelo Escritório Regio nal do Inamps que acabou por exonerar o diretor do hospital Embora o Escritório Regional do Inamps tenha imposto sua política e o SOS Lagoa não tenha conseguido reverter essa exoneração a atuação e a mobilização do movi mento possibilitaram uma nova reunificação Algumas considerações teóricas merecem ser feitas com o intuito de se compreender quais efeitos e que alcances teve a ação coletiva na trajetória do Mops A atuação coletiva inclusive do movimento social em saúde constituída pela mobilização e ativação dos seus membros foi alavanca para unificação e deu novo ímpeto ao processo de construção de identidades coletivas no setor As diferenças no interior do Movimento Sanitário do Movimento Médico e do Mops assim como as diferenças entre eles perderam visibilidade se esvaeceram perante a dimensão que para o movimento adquiriram como um todo as crises da saúde no estado do Rio de Janeiro O Mops se viu refletido num espelho que não lhe devolveu uma imagem fragmentada na medida em que conseguiu alcançar presença marcante e reper cap4pmd 872011 1035 127 128 cussão na esfera pública numa conjuntura política específica a crise na demo cratização na gestão do Hospital da Lagoa Não se pretende afirmar a partir dessas reflexões que momentos de uni ficação e de estruturação venham a significar transformações ou avanços per manentes na construção da identidade política do movimento Muito pelo con trário a trajetória histórica do Mops mostrou que em diversos momentos e segundo a conjuntura política o que viabilizou ou não a efetividade na implementação de suas propostas foi o próprio encaminhamento político dado pelo movimento a sua atuação Podemos afirmar que os processos de constru ção de identidades políticas se desenvolveram na própria prática social e na relação com diversas forças políticas Landi 1981 Em se tratando de construções históricas estas estão sujeitas tanto a muta ções e a transformações da sociedade como da própria esfera da cultura e da política assim como a ação dos movimentos populares também se sujeita a variações e aos impactos e respostas da esfera pública A continuidade desses movimentos no tempo não é dada nem pela existência de uma estrutura formal eou hierárquica nem pela institucionalização mas pelos momentos de atuação política nos quais a associação entre os membros é marcada pela gestão do coletivo que consegue penetrar na esfera pública Como Touraine afirma há potencialidade nesses movimentos para se estabelecer e incidir na política37 Estamos nos referindo também às condições constitutivas do Mops nas quais a situação de carência e necessidade a que foram atiradas as populações paupérrimas teve papel de destaque Precisamente por isso o aspecto rei vindicatório foi detonador da mobilização popular para a obtenção de bens como saúde Mas isso é apenas um momento em sua trajetória no qual o próprio movimento não fez ainda uma leitura mais abrangente no sentido de uma visão política da sua práxis que justifique a sua existência Um outro patamar foi alcançado quando o Mops conseguiu identificar como alvo de sua competência não apenas a falta de assistência médicohospi 37 os três elementos constitutivos de um movimento social a definição do próprio setor social de seu adversário e do campo de disputa de seu conflito encontramse simultaneamente separados uns dos outros desintegrados e invertidos o que leva a uma ação mais expressiva do que instru mental segundo o vocabulário clássico da sociologia a defesa de interesses específicos a luta contra os empregadores ou mesmo contra a política urbana é que impedem o espírito comunitário de fecharse sobre si mesmo e permitemlhe contribuir para a formação de movimentos sociais Porém os movimentos comunitários que se formam nas cidades e ainda é necessário sublinhar a sua fragilidade e sua fragmentação permanecem antes de tudo no domínio dos movimentos históricos Isto quer dizer que o seu interlocutor é mais o Estado do que uma categoria social Estado que é adversário e protetor ao mesmo tempo Touraine 198954 cap4pmd 872011 1035 128 129 talar de vacinas a existência de epidemias não controladas pelas autoridades mas principalmente a política de saúde Ou seja acreditamos ter havido um substantivo avanço na conformação da identidade política desses movimentos a partir do momento em que as mazelas da saúde foram vistas como o resulta do das políticas para o setor e também quando o Mops se enfrentou com a política vigente e colocou alternativas próprias a sua formulação já que a ação coletiva não remetia exclusivamente a demandas pontuais mas à política de saúde como geradora das desigualdades na distribuição da saúde No entanto ao observarmos a trajetória histórica do movimento foi pos sível constatar uma fraca articulação social com ausência de expressão política própria O fato de esses movimentos serem formados por moradores das periferias pobres das grandes cidades situou as diferenças a origem dos mo radores a inserção no mercado de trabalho à frente das semelhanças Por um lado foi exatamente isso que lhes instituiu a força e a riqueza dos movimentos gerando pluralidade solidariedade e democracia interna Por ou tro deulhes também a debilidade a incapacidade de se estruturar mais solida mente e conseqüentemente de ter uma influência mais decisiva e permanente nos processos de definição de políticas Neste sentido o Mops encontravase em estágio intermediário tendo em vista que sua atuação não se restringia apenas às demandas específicas de saúde Entretanto ainda não expressava uma categoria social com articulação e expres são política autônomas A seguir ilustramos a caracterização e as principais questões que ocuparam o Mops no período considerado cap4pmd 872011 1035 129 130 Quadro 4 Atuação composição e declínio do Movimento Popular em Saúde 19871992 Principais Atores Famerj Faperj MAB Conselhos de Saúde Associações de moradores locais Associações médicas Movimento Sanitário Cebes Composição Mops Federação de Associação de Moradores Associações de moradores Militantes de partidos e de sindicatos Profissionais de saúde Principais Bandeiras Implantação do SUS Unificação Descentralização Universalização Controle da população dos serviços de saúde Fim das greves médicas Formação dos Conselhos IX Congresso Nacional de Saúde Formas de Atuação Plenárias Nacionais de Saúde Plenárias Estaduais de Saúde Local problemas epidemiológicos Constituição Estadual Partidos políticos nos Conselhos de Saúde Grupos Aliados Movimento Sanitário Cremerj Profissio nais não médicos Partidos políticos Sindicatos Grupos de Oposição Seguros privados Federação Brasileira de Hospitais FBH Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica Abifarma O Mops teve desde o período de seu surgimento e no contexto da Refor ma Sanitária brasileira uma atuação intensa e complexa que dificultou a tarefa de avaliar resultados Mas a incidência do movimento na definição da política de saúde esteve estreitamente relacionada aos seguintes pontos capacidade de viabilizar demandas através da ação coletiva desenvolvimento de articulações políticas com outras forças que integra vam o movimento social partidos políticos sindicatos etc capacidade de reação e articulação diante das crises do setor saúde que evidenciavam a omissão do Estado ante os graves problemas epidemiológicos e de funcionamento dos serviços de saúde Sua atuação foi irregular alternando momentos de importante presença no cenário das políticas de saúde e outros mais voltados à discussão interna do movimento que dificultavam a atuação do Mops e o distanciavam dos centros de decisão na implementação da Reforma Sanitária cap4pmd 872011 1035 130 131 As origens do movimento foram marcadas pelo propósito de conseguir uma articulação nacional Entretanto o surgimento a evolução os momentos de crescimento assim como os períodos de desmobilização forma como se estruturou e como levou adiante as propostas políticas especialmente a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde e após a aprovação da Reforma Sani tária na Constituição incentivaram a atuação do movimento nos níveis estadual e municipal adquirindo este uma feição de cunho estadual Neste sentido opta mos no estágio de implementação do SUS por estudar o Mops no estado do Rio de Janeiro A questão da saúde sempre esteve presente nos movimentos populares seja entendida como assistência médica ou como condições de vida saneamen to básico incluindo água tratada esgoto etc Seu aparecimento como elemento central de uma forma de organização popular tem início somente a partir de fins da década de 70 O surgimento do Mops coincidiu com dois grandes fatos Primeiro a revitalização do movimento popular como um todo que se deu em meados dos anos 70 sob os primeiros sinais de desgaste da ditadura militar Essa revitalização trouxe à cena política brasileira movimentos diversos com um eixo comum a postergação econômica social e política de crescentes contingentes sociais Outro fator que colaborou para a mobilização popular foi a crise do siste ma de saúde tendo como conseqüência as intermináveis filas para atendimento da população pelo setor público assim como o surgimento de uma proposta de política de saúde alternativa expressa em experiências como Montes Claros Lajes Niterói e outras Procuravase via secretarias de saúde estaduais e munici pais de oposição ao regime militar fazer com que o Estado passasse a investir em cuidados de saúde das populações carentes Nas universidades teve início a crítica ao modelo médico hegemônico so bretudo por seu caráter privado e mercantilista Dessas contestações foram propostos modelos alternativos sendo a medicina comunitária a de maior rele vância quando dezenas de experiências desse tipo começaram a se estender por todo o País Apesar de seu início coincidir com a movimentação no interior da academia e ainda timidamente nos aparelhos de Estado o Mops procurou seguir uma rota independente Essa postura pela organização popular independente como instrumento de conscientização e politização explica o afastamento entre o movimento e as cap4pmd 872011 1035 131 132 políticas de saúde implementadas pelo Estado em torno da formação dos Conselhos de Saúde O que foi refletido pela trajetória e experiência do Mops foi uma atuação nãohomogênea neste sentido Desse modo o MAB seguiu uma linha política tipicamente aliancista em relação às instituições estatais de saúde ainda que mantivesse um discurso de independência e autonomia em relação ao Estado De fato sua ação pesou amplamente na implementação das políticas de saúde na Baixada Fluminense O programa inicialmente chamado SOS Baixada depois denominado Projeto Especial de Saúde na Baixada Pesb foi resultado da mobilização popular e do peso da mesma no processo de implantação da Reforma Sanitária Porém esses projetos tiveram vida curta Paulatinamente deixouse de repassar as ver bas necessárias ao seu funcionamento e finalmente no ano de 1990 o Pesb foi extinto e diluído no aparato da Secretaria Estadual de Saúde Tais fatos tiveram correspondência com o retrocesso político que gerou a modalidade de atuação governamental sustentada no arbítrio do Executivo sem discussão com a sociedade ou com suas entidades representativas De fato a reedição do tradicional autoritarismo que permeou a política brasileira se expressou nos procedimentos de governo utilizados os quais ignoraram a exis tência do Parlamento e se valeram de decretos do Poder Executivo Essa situa ção reforçou ainda mais as dificuldades existentes nas instituições democráticas além da impossibilidade de gerar uma dinâmica democrática sustentada em instituições confiáveis Paralelamente os antigos aliados do Mops nas instituições estatais foram deslocados ocorrendo graves mudanças na condução das políticas de saúde Essas mudanças sinalizaram um desinvestimento na estrutura e no funciona mento dos serviços que começaram a decair com a falta de equipamentos medicamentos e leitos Também os médicos e funcionários se afastaram das unidades de saúde devido à deterioração de seus salários Em tal conjuntura observamos que o MAB por um caminho diverso do da Famerj entrou também em fase de desmobilização o que o levou a se distanciar da cena política Naturalmente o MAB tinha uma expectativa impor tante a respeito do financiamento estatal do Pesb mas o abandono do projeto em lugar de estimular a resistência política deixou a entidade inerte Nessa situação as diferenças políticas no interior do movimento popular voltaram novamente à tona e as discussões de caráter políticoideológico pas saram a ser o eixo do Mops Assim a falta de atuação e de mobilização em cap4pmd 872011 1035 132 133 defesa da efetiva implementação da Reforma Sanitária foi suplantada pela ação para dentro e esta levou progressivamente a um esvaziamento do mesmo Uma nova crise no setor porém possibilitou uma vez mais a postergação das diferenças internas no encaminhamento conjunto do Mops Houve funda mentalmente um ponto de encontro importante entre o movimento popular e o movimento médico particularmente pela atuação do Cremerj que fez uma convocação no fim de 1989 para a luta conjunta em defesa da política reformadora de saúde Desse modo o Mops voltou a estar presente na cena política exigindo a intervenção do Estado através de medidas regulatórias que aliviassem a situação de pane em que tinham se envolvido os hospitais do município e da Previdência Social no estado do Rio de Janeiro As crises no setor saúde foram desencadeadoras da organização e da atu ação do Mops fossem elas alimentadas pela inoperância e pela ineficiência do sistema de saúde fossem pelas graves epidemias que afetavam reiteradamente a população especialmente as camadas mais pobres Consideramos que tais crises se situavam no campo das necessidades soci ais básicas Elas foram um mecanismo de disparo em múltiplas direções devi do à ameaça que representavam à estabilidade relativa dos sistemas produtivos e à ordem social mínima que os mesmos requeriam para se reproduzirem ou ainda devido à epidemia ou à impossibilidade de o sistema de saúde conseguir prestar assistência aos doentes Tratavase em ambos os casos da doença sofri da de maneira coletiva ou dito de outra forma de uma situação na qual a população se via obrigada a usufruir de um mal público Por fim a trajetória do Mops mostrou que sua atuação foi profundamente marcada pela presença insuficiente do Estado ou por sua ausência de interven ção na situação de saúde da população No entanto ainda que o Estado tivesse falhado estrategicamente na consecução desse objetivo havia uma dinâmica constitutiva e constituinte na relação dos movimentos populares com ele No caso os movimentos reagiram a sua omissão se articulando e desenca deando a ação coletiva que lhes proporcionou existência concreta o que por sua vez obrigou então o Estado a tomar algum tipo de iniciativa intervencionista Em conseqüência observamos que no momento em que o Movimento Popular em Saúde tentou resolver a contradição com o Estado desconhecendo a existência deste isto é eliminando um dos termos da contradição sobre veio a paralisia política cap4pmd 872011 1035 133 134 A eliminação do Estado não passou de discurso da facção radical do movimento De fato não só o Estado continuou existindo mas o feitiço virou contra o feiticeiro A resultante desse procedimento foi a exclusão de seus interlocutores políticos os organismos estatais da saúde o movimento sanitário qualificado como dos tecnocratas da saúde e por último aquela parte que conservava uma posição política diversa Podese afirmar então que o Mops teve papel principal no encurtamento da distância entre a esfera privada social e a esfera pública ordem política incidindo marcadamente na formulação das políticas de saúde Contudo ape sar das diferenças internas do movimento em relação à Reforma Sanitária os avanços que esta alcançou se devem em grande parte ao papel que a mobilização popular e as lideranças exerceram pressionando o Estado a atuar em tudo o que se relaciona às condições de saúde da população Acreditamos assim que no difícil percurso da democracia brasileira o papel que o Mops possa vir a desenvolver seja determinante na implementação da Reforma Sanitária cap4pmd 872011 1035 134 135 5 O Movimento Médico composição e trajetória 19761990 A denominação Movimento Médico conferida à atuação do conjunto das entidades médicas obedeceu ao leque de atribuições atividades e aspectos diversos que estas comportavam a representação sindical a regulação da pro fissão médica e a reprodução informação e difusão da informação técnico científica É preciso ressaltar ainda que durante o período estudado 1976 1990 a atuação das entidades médicas foi complementada por formas de atuação política que se constituíram numa modalidade particular de representa ção dos interesses médicos As características das entidades médicas o importante grau de institu cionalização das associações e as diversas modalidades de sua atuação cuja trajetória será considerada neste capítulo possibilitarão compreender a enor me distância existente entre estas e as entidades que compuseram o Movimento Popular em Saúde assim como também sua inclusão dentro do que considera mos Movimento Social em Saúde Inicialmente foi possível constatar a existência de uma certa indiferenciação nas funções desempenhadas pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro SMCRJ e pela Sociedade Médica do Estado do Rio de Janeiro Somerj duas entidades de caráter privado sem vinculação com o estado e com atividades voltadas para o terreno técnicocientífico onde aliás a SMCRJ tem reconhecida tradição Filiadas à Associação Médica Brasileira AMB ambas seguiram linhas políticas similares a esta tendo portanto grande penetração nas correntes médi cas ditas neoliberais notável nos últimos anos da década de 80 constituindose também em importantes centros de defesa do corporativismo médico À Somerj filiavamse entidades de âmbito municipal não sendo esta filiação de caráter compulsório Quanto à diretoria era eleita diretamente pelo voto de cap5pmd 872011 1036 135 136 todos os associados a ela filiadas Em 1983 por exemplo foram em número de 20 as entidades que se filiaram tendo esse total se elevado para 28 em 1989 Essa filiação era feita de forma individual ou através das sociedades filiadas conveniadas contando com 4060 filiados em 1983 e com 6530 em 1989 Em relação ao Conselho Regional de Medicina Cremerj e ao Sindicato dos Médicos SinMed eram entidades vinculadas ao estado através do Minis tério do Trabalho Tinham portanto funções definidas por este e contavam como se sabe com uma legislação corporativa Todavia ainda que estivessem inseridas na estrutura corporativa estatal desempenharam importante papel político na defesa do sistema público de saúde voltado ao atendimento das populações necessitadas Considerandose o controle exercido pelo estado sobre o Cremerj e o SinMed as funções que estas assumiram em defesa da categoria podem ser consideradas conquistas efetivas oriundas das diretrizes políticas assumidas a partir do final da década de 70 e durante a década de 80 As funções de caráter institucional atribuídas ao Cremerj eram dirigidas à regulação e à supervisão da prática médica A eleição do Conselho realizada diretamente por médicos credenciados com exceção dos que eram militares ocorria de cinco em cinco anos A diretoria era indicada anualmente pelo Con selho Em 1983 o Cremerj contava com 28889 filiados e em 1989 com 37 mil Com relação ao SinMed qualquer médico diplomado é admitido Sua diretoria era eleita a cada dois anos por todos os médicos com pelo menos seis meses de filiação e diplomados há mais de dois anos Enquanto em 1983 o número de filiados era de 7 mil em 1989 aumentou para 13800 O Cremerj esteve sob intervenção do Conselho Federal de Medicina CFM no período compreendido entre 1978 e 198338 após o qual vem elegendo diretorias bastante homogêneas no que tange à sua posição crítica ao sistema de saúde vigente defendendo as propostas de unificação do sistema de saúde sob responsabilidade do Estado No plano específico da categoria médica essas diretorias eram também bastante críticas quanto aos interesses de caráter individualista privatista e corporativista que se tornaram mais fortes a partir do fim da década de 80 Desse modo a entidade teve um destacado papel na busca de contato mais 38 A intervenção no Cremerj obedeceu ao fato de que a chapa Renovação e Unidade formada por profissionais afinados com a concepção de reformulação do sistema de saúde ganhou as eleições com mais de 75 dos votos e em aberta oposição ao regime militar e ao Ministério do Trabalho cap5pmd 872011 1036 136 137 estreito com o Movimento Popular em Saúde É importante ressaltar que essa homogeneidade na condução política da entidade poderia estar relacionada à baixa rotatividade na composição do Conselho renovada a cada ano É provável que o SinMed tenha sido a entidade que mais se manteve fiel às funções de representação dos interesses profissionais dos médicos estabeleci dos legalmente no período estudado enquanto a SMCRJ a Somerj e mesmo o Cremerj estenderam em muito suas funções originais definidas estatutariamente chamando para si a tarefa de defesa dos interesses da categoria e da participa ção na discussão dos destinos da área de saúde no País Ainda que sob orientações políticas diversas e em diferentes graus observa mos que o SinMed priorizou a partir de 1983 a atuação no terreno estritamente sindical diferentemente do período compreendido entre 1976 e 1983 Neste a entidade havia se tornado a liderança política hegemônica da categoria médica conduzindo a discussão política do setor saúde no estado do Rio de Janeiro A mudança na atuação do sindicato deveuse a uma reorientação de ca ráter corporativo nas chapas sindicais sem que tivesse havido alterações na conformação das diretorias nos anos recentes já que estas eram compostas praticamente pelas mesmas pessoas que delas faziam parte no período áureo do sindicato A diversidade de associações que articulavam a categoria médica e a variação da atuação tanto política como profissional das mesmas apontaram algumas reflexões teóricas iniciais a respeito do papel dos médicos e de suas entidades no processo de formulação e implementação das políticas de saúde a serem explo radas no transcorrer deste capítulo A denominação Movimento Médico não parece inteiramente ajustada à maneira clássica em que têm sido compreendidos os movimentos sociais As formas de articulação profissional assim como a atuação dos médicos e das instituições de assistência médica em relação às políticas de saúde e ao Estado sofreram importantes variações no período estudado Em relação à composição o Movimento Médico foi multifacetado inclu indo as várias associações profissionais e uma relação orgânica dos seus mem bros na defesa de interesses corporativos da classe médica Assemelhase bas tante às antigas corporações e conta com uma unidade e com um sprit the corp comparável à corporação militar Formada por diversas entidades dotadas de larga existência com funções bem diferenciadas nos vários planos em que se desenvolve a vida do profissional médico cap5pmd 872011 1036 137 138 No que concerne à sua atuação o Movimento Médico demonstrou ser bastante complexo Na década de 70 particularmente em seus derradeiros anos as associações médicas tiveram uma atuação política especialmente intensa o que justifica amplamente a denominação movimento médico Não se preten de afirmar que ela tenha sido exclusiva muito pelo contrário O que se quer frisar é que foi predominante tendo ocupado o segundo plano a atuação de caráter profissional eou sindical dos médicos No entanto a década de 80 acentuou a face reversa da atuação médica marcada pela atuação profissional e corporativa dos médicos e expressa também em graus diversos pelo conjunto das entidades médicas Dois eixos temáticos parecem de importância singular para a análise da atuação da categoria em relação às políticas de saúde a corporação médica a representação dos interesses médicos ante as políticas de saúde do Estado A corporação médica é composta por algumas instituições datadas do século passado como é o caso da SMCRJ e da Associação Médica Brasileira AMB Elas se sustentaram sobre um código de exercício da profissão médica fortemente compartilhado e respeitado pelo conjunto da categoria envolven do sigilo profissional liberdade de eleição do assistente por parte do paciente liberdade de prescrição autonomia do trabalho médico pagamento direto da consulta médica Caro 1969 Essas questões conformaram o ideário médico em torno do exercício liberal da medicina No entanto o pertencimento à corporação não implicava nem a existência de uma organização hierarquizada nem a obrigatoriedade no cumprimento de regras de comportamento estabelecidas pela corporação exceto as que se referiam ao Código de Ética Médica e que regulamentavam o exercí cio da profissão sem interferirem na relação dos médicos com as associações Ainda que esses princípios tenham perdido vigência ou então se adequado às mudanças no sistema de saúde e conseqüentemente ao processo de trabalho e de exercício da profissão médica nos últimos 20 anos outorgavam unidade e identidade à categoria Neste sentido diferentemente de qualquer outra profis são liberal a unidade e identidade de princípios existência de um código médico fizeram da categoria médica um tipo singular de corporação A primeira conseqüência ao se considerar a categoria médica como corporação é a de não aceitação de regras externas à mesma na definição de cap5pmd 872011 1036 138 139 padrões de intervenção terapêuticos processos de trabalho e remuneração Sig nifica que os processos de adaptação às mudanças nas políticas de saúde basicamente a mercantilização da medicina a perda da autonomia e o assalariamento médico acarretaram forte resistência no que diz respeito às tentativas de defesa do ideário da medicina liberal Apesar de haver mudado a inserção profissional desde o exercício liberal da medicina ao assalariamento o médico continuou a se considerar possuidor do poder que lhe conferiu o saber e que se mantém ao longo do tempo resguardado de interferências alheias à relação médicopaciente Um dos traços significativos da política de saúde na década de 70 está relacionado à privatização e à capitalização do setor sustentado pelo modelo da medicina previdenciária o que teria provocado profundas mudanças no tipo de inserção profissional dos médicos A acumulação capitalista desse setor número mais elevado de intervenções médicas significou crescimento desme dido dos lucros do setor privado conveniado com a Previdência Social fezse acompanhar de profundas mudanças na inserção profissional do médico Hou ve massificação do trabalho médico assalariado do setor públicoprivado ten do estes mantido simultaneamente formas paralelas de inserção no mercado de trabalho seja como profissional liberal autônomo ou proprietário de clínicas ou hospitais Donangelo 1984 Em 1970 por exemplo o setor de assistência médicohospitalar emprega va 448 dos médicos enquanto em 1980 já empregava 62 dos que se en contravam em atividade A porcentagem destes em relação aos que trabalha vam de maneira autônoma se ampliou durante o período em 1970 foi regis trado 6535 de médicos empregados e 3205 de autônomos ao passo que em 1980 esse índice se elevou para 6733 de empregados e conseqüentemente caiu para 2458 de autônomos Medici 198739 No transcorrer da mesma década o salário do médico empregado sofreu importante diminuição tal como ocorreu com as demais categorias profissionais De acordo com Medici 1987 essa redução de rendimentos médicos ou sua proletarização pode ter ocorrido em virtude da redução do padrão sala rial e não pela redução da renda real Isso pode ser explicado pela múltipla inserção desses profissionais Dito de outro modo tais mudanças obrigaram os médicos a ter dois ou três empregos a fim de evitar o empobrecimento Todavia 39 A porcentagem restante nas duas datas consideradas corresponde na tabela original à categoria outros setores Planejamento I Recursos Humanos em Saúde RI Textos de Apoio PECEnsp Fiocruz 1987 cap5pmd 872011 1036 139 140 essa múltipla inserção resultou na depreciação da atividade falta de tempo para estudar diminuição da responsabilidade médica no local de trabalho cres cimento dos erros médicos e também na extensão das lutas salariais da categoria Por conta disso o trabalho médico na área assistencial ou previdenciária inclinouse à tendência em se tornar cada vez mais especializado a relação mé dicopaciente foi intermediada pela instituição e a utilização da tecnologia médi ca intensificouse assim como a medicalização De fato ocorreu uma perda da autonomia dos médicos no processo de trabalho o que afetou os próprios princípios da medicina liberal visto que as instituições assistenciais passaram a interferir diretamente no trabalho do médico A resistência dos médicos às transformações no processo de trabalho ao assalariamento maciço e à proletarização da categoria não se fez esperar Já na metade da década de 70 a corporação médica nucleada em torno da chapa Movimento de Renovação Médica Reme que vinha conquistando as direções das entidades médicas começou a ter singular importância no âmago da cate goria médica Ainda que o Reme tivesse nítida orientação de esquerda adquiriu penetra ção nas instituições médicas e iniciou um movimento de oposição de caráter político e sindical ao regime militar Devido principalmente à atuação política das entidades médicas com o apoio conjunto da categoria as instituições médi cas sofreram fortes pressões do regime militar que no caso do Cremerj desig nou uma junta interventora do Ministério do Trabalho para destituir as direções eleitas por seus membros em 1978 A representação de interesses da categoria médica requer discussão adicio nal E surge a interrogação pelo fato de a categoria médica ter uma estrutura organizacional assemelhada às antigas corporações poderíamos deduzir que ela defende seus interesses apenas sob uma modalidade corporativa A representação de interesses dessa maneira corporativa implicaria neces sariamente o controle de seus membros por parte das entidades médicas so bre seus membros e também a institucionalização de certos canais formais de relacionamento com o Estado nos processos de formulação de políticas Dife rentemente a reformulação do sistema de saúde resultou das pressões políticas conjuntas das associações médicas dos movimentos populares e do Movimen to Sanitário onde um processo de acumulação de forças sociais e de luta no terreno político com um projeto definido para o setor saúde junto de uma cap5pmd 872011 1036 140 141 definição estratégica impôs profundas reformas ao Estado no campo das po líticas de saúde Poderseia interpretar a forte reação política da corporação médica como provocada pelos interesses médicos afetados pelas políticas de saúde do regime autoritário Todavia não existiu no período nenhum canal institucionalizado por parte do Estado para representação dos interesses médicos Acreditamos portanto não ser conveniente pensar a representação de inte resses médicos na década de 70 como sendo de caráter corporativo Castro 1989 nem que o poder e a identidade da corporação médica encontrava su porte material na produção de equipamentos insumos medicamentos e fármacos Vianna 1987 Tal observação seria válida enquanto tendência geral na constituição do poder médico mas é inadequada ao se referir ao processo que atravessou a categoria médica na mencionada década Muito ao contrário enquanto a identidade da corporação médica se ba seou nos princípios da medicina liberal as transformações do sistema previdenciário de saúde na década de 70 mudaram profundamente o pro cesso de trabalho médico levando a categoria a enfrentar a política de saúde dominante De fato a medicina previdenciária sustentada na assistência hospitalar e no complexo médicoindustrial tecnologia e fármacos levou a amplas mudanças na relação médicopaciente no processo de trabalho e no papel social do mé dico tudo isso sob grande resistência dos médicos Após essas considerações caberia distinguir as formas de representação de interesses assim como fazer uma nova leitura teórica sobre as modalidades da corporação médica em representar os interesses da categoria já que estas mo dalidades mudaram no período aqui analisado Poderíamos nos aproximar de uma definição de representação de interes ses a partir da idéia da associação de pessoas que têm uma ou várias caracterís ticas comuns ao conjunto das mesmas e que aspiram a influenciar nos processos de políticas específicas que estejam relacionadas com aquilo que é comum ao grupo de interesse De maneira geral a bibliografia sobre o tema consultar Schmitter 1992 e Offe 1989 estabelece uma primeira grande distinção entre a representação plural de interesses e a representação corporativa Schmitter 1992 afirma que no pluralismo o tipo de determinação de interesses é múltiplo disperso não hierárquico e voluntário enquanto no caso do corporativismo se trata de uma cap5pmd 872011 1036 141 142 modalidade de determinação de interesses que é basicamente singular concen trada funcionalmente diferenciada hierárquica e obrigatória40 A notável síntese elaborada por Schmitter corresponde a tipos ideais de representação de interesses De fato a relação entre intermediação de interesses e modos de formação de políticas adquire especificidade segundo os países e de acordo com processos históricopolíticos singulares o que necessariamente implica gradações diversas no exercício real da representação de interesses que podem por vezes aproximarse ou distanciarse desse tipo ideal Offe 1989 acrescenta quatro dimensões do conceito de corporativismo relacionadas ao status formal dos grupos de interesse status de recursos quando o Estado provê de recursos as organizações de representação de interessessubsídios isenções fiscais filiação compul sória acesso aos meios de comunicação controlados pelo Estado status de representação quando o alcance da representação é definida pelo Estado áreas em que esta pode operar região número de filiados posição status de procedimento quando são reguladas as relações internas entre membros e direções status de procedimento quando as organizações são reconhecidas para assumir junto a um conjunto específico de participantes um papel na legis lação no sistema judiciário no planejamento e na implementação de políti cas Isso é definido em contraposição a relações de cooperação informal Tratase portanto de um status definido por lei ou de regras de procedi mento formalmente adotadas Tanto na compreensão de Schmitter como na de Offe a representação corporativa de interesses supõe alguma forma de concertação na formulação da política Constitui uma das várias formas de se resolver nas sociedades de de mocracia avançada o conflito entre uma multiplicidade de interesses e a ameaça 40 el tipo de determinación de interés múltiple disperso no jerárquico y voluntario es decir el pluralismo y el tipo singular concentrado diferenciado funcionalmente jerárquico y obligatorio es decir el corporativismo Una hipótesis obvia es que existe una compatibilidad estructural o afinidad selectiva entre el comproativismo y la concertación y entre el pluralismo y la presión En el primero los intereses afectados por muy organizados que sean quedan incoporados al proceso político como negociadores reconocidos e indispensables y son corresponsables y en ocasiones totalmente responsables y em ocasiones totalmente respnsables de la aplicación de las decisiones políticas que entonces adoptan una calidad caracteristicamente semipública o paraestatal En la última los interesses afectados quedan esencialmente fuera del proceso político como consultores o combatientes en las cuestiones que se trate y la aplicación ocurre exclusivamente bajo la responsabilidad de las autoridades públicas por muy influenciadas que puedan estar por las acciones autónomas de los intereses organizados en el curso de sus actividades Schmitter 1992 cap5pmd 872011 1036 142 143 freqüente de polarização dos mesmos que pode conduzir à ingovernabilidade Tratase de uma maneira de canalizar os interesses que não leve as forças sociais e os governos a um jogo de soma zero Se observarmos a corporação médica sob tal perspectiva podemos então refletir sobre a distinção aqui considerada Por um lado ela é composta por diver sas entidades das quais unicamente duas têm status público o Cremerj e o SinMed São reconhecidas pelo Estado mas de seu controle que caracterizara a década de 70 conseguiram se desvencilhar a partir dos anos 80 com o avanço do processo de democratização do País tendo então adquirido forte autonomia Por outro lado as demais entidades AMB Somerj SMCRJ de caráter privado ainda que institucionalizadas e regulamentadas quanto aos procedi mentos internos composição das diretorias eleições periódicas cursos e ou tras atividades de caráter científico não possuem status público Historicamen te exerceram o papel ideológico de aglutinar os médicos sob aqueles princípios tradicionais da medicina oferecendolhes atualização científica Também exer ceram o papel de representação dos interesses médicos quando ameaçados pela intervenção do Estado ou quando afetados por políticas específicas Com relação à representação dos interesses médicos fizemos referência a dois momentos bem diferenciados na atuação dos médicos Um primeiro na década de 70 em que a atuação médica teve um componente precipuamente político de oposição à ditadura militar às políticas de saúde implementadas naquele período e à intervenção militar nas entidades médicas Em conseqüência da oposição a essa intervenção sobretudo houve imediata solidariedade das outras entidades além de uma atuação conjunta com a caracte rística de ser pluralista inorgânica e de pressão política sobre o regime militar Neste sentido o processo de reformulação do sistema de saúde foi o resultado da imposição das forças sociais em saúde entre estas o Movimento Médico que através de uma representação de interesses de caráter pluralista colaborou na produção de mudanças concretas no delineamento das políticas de saúde Um outro momento referente à segunda metade dos anos 80 caracterizado pelo avançado processo de democratização do País teve como eixo no setor saúde em 1988 a Reforma Sanitária foi estabelecida na Constituição a implan tação do novo modelo políticosanitário que embora obtendo o apoio da maio ria envolvida com esse setor necessitava ainda passar do papel à realidade O projeto não se concretizou até hoje alternando avanços e retrocessos atribuíveis por um lado às dificuldades do processo e por outro ao fato de ser cap5pmd 872011 1036 143 144 justamente o momento da implementação quando a diversidade dos interesses médicos relativos às diversas formas de inserção da categoria médica no mer cado de trabalho incrementou ainda mais as dificuldades no andamento da Reforma Sanitária Nesse aspecto registramos notáveis transformações na atuação do Sindi cato Médico em direção à representação corporativa dos médicos que não chegou a ser institucionalizada e que conseqüentemente não se encaminhou a um modelo de concertação de políticas A atuação do SinMed se aproxima ainda que não completamente ao modelo italiano de relações entre Estado e sindicatos em que se estabelecem formas de colaboração pelas quais represen tantes sindicais participam em organismos públicos ou em juntas de diretores mesmo que as consultas na formação da política sejam de caráter informal e constante Regini 1992 No caso do SinMed apenas algumas vezes houve consultas informais entre governo e sindicato como no concurso público no Hospital da Posse a ser discutido adiante A combinação das tipologias analisadas possibilitará estabelecer relações entre modalidades de representação de interesses e tipo de organização das entidades médicas no período considerado visualizadas a seguir Quadro 5 Representação de interesses e tipos de organização médica 1976 1986 Representação de Interesses Plural Corporativa Status Público SinMedCremerj Status Privado SomerjSMCRJ Quadro 6 Representação de interesses e tipos de organização médica 1986 1992 Representação de Interesses Plural Corporativa nãoinstitucional em relação ao Estado Status Público Cremerj SinMed Status Privado SomerjSMCRJ cap5pmd 872011 1036 144 145 Se nos Quadros 7 e 8 considerarmos as relações entre representação de interesses formação de políticas e tipo de organização médica observaremos que em nenhum dos períodos examinados houve concertação da maneira como esta foi compreendida pela reflexão teórica mais recente sobre o corporativismo discutida anteriormente Quadro 7 Representação de interesses formação de políticas e tipos de orga nização médica 19761986 Quadro 8 Representação de interesses formação de políticas e tipos de orga nização médica 19861992 Status Público SinMed Cremerj Status Privado SomerjSMCRJ Representação de Interesses Plural Corporativo Status Público Status Privado Pressão Concertação A tipologia de representação de interesses desenvolvida por Lange Regini 1987 relacionou interesses e instituições no processo de formação de políticas ante a consideração do grau de exclusãoinclusão dos interesses organizados apud Castro 1989 No primeiro caso a exclusão seria uma típica modalidade dos regimes totalitários a inclusão corresponderia ao máximo grau de concertação e resultaria na delegação de funções públicas a governos priva dos Streek Schmitter 1992 Tal distinção permite considerar gradações ou diferenciações na inclusão exclusão dos interesses médicos na formação de políticas do regime autoritário e no processo de democratização Isso remete à dificuldade em criar procedi Status Público Cremerj SinMed Status Privado SomerjSMCRJ Representação de Interesses Plural Corporativo não institucional Status Público Status Privado Pressão Concertação cap5pmd 872011 1036 145 146 mentos políticos mais adequados de representação de interesses médicos no processo de implantação da Reforma Sanitária dificuldade esta observada hoje no estabelecimento do regime democrático Tratase de obstáculo que se inscre ve nas instituições estatais de saúde especialmente na corporação médica Diferenciações ou gradações da representação de interesses da corporação médica estão relacionadas à diversidade de inserções profissionais dos médicos no mercado de trabalho Os médicos tanto do serviço público quanto do privado são trabalhado res assalariados agrupados pelos sindicatos e em condições relativamente simi lares às das demais categorias Contudo quando ocupam cargos técnicos ou de direção nos organismos estatais sejam estes de aplicação de políticas ou de serviços de saúde fazem parte da tecnoburocracia de Estado com autorida de e poder de decisão sobre a alocação de recursos gestão e procedimentos do sistema de saúde e também com interesses profundamente associados aos das instituições e políticas estatais Se considerarmos agora os médicos proprietários de clínicas e hospitais notamos que representam os interesses do setor privado e que tiveram no período do regime autoritário influência na tecnoburocracia de Estado através de mecanismos de pressão e orientação denominados de anéis burocráticos por Cardoso 1975 A entidade que os representa é a Federação Brasileira de Hospitais FBH que congrega empresários da saúde Todavia na medida em que uma grande proporção de pequenas clinicas e hospitais são de propriedade de médicos e tendo em vista que a concepção desses proprietários em termos de prática médica não se distancia da categoria como um todo acreditamos que devem ser considerados como uma das formas de inserção profissional dos médicos Por fim a designação de médico liberal ou autônomo já não significa muito mais que uma categoria em extinção Embora possa corresponder ao exercício médico no consultório privado é uma modalidade quase desapareci da Atualmente os médicos com consultório particular em sua grande maioria são conveniados com o setor privado Nesse caso a forma de representação de interesses se sustenta mais que em qualquer outra forma de inserção profissio nal na defesa dos princípios da medicina liberal Essa modalidade oculta o assalariamento médico sob a forma do exercício liberal da profissão reduzida à formalidade conceitual cap5pmd 872011 1036 146 147 Do resultado dessa diferenciação ocupacional dos médicos poderiamos estabelecer relações entre as modalidades de inserção profissional e o tipo de representação de interesses Quadro 9 Tipo de inserção profissional e representação de interesses 1976 1986 Tipo de Inserção Profissional Assalariamento Liberal ou autônoma Tecnoburocracia Proprietário clínicahospital Plural Sim Sim Não Não Corporativa anéis burocráticos ou círculos de pressão Não Não Sim Sim Quadro 10 Tipo de inserção profissional e representação de interesses 1986 1992 Tipo de Inserção Profissional Assalariamento Liberal ou autônoma Tecnoburocracia Proprietário clínicahospital Plural Não Sim Sim Não Corporativa nãoinstitucionalizada Sim Não Não Sim A formação de políticas de democratização e de construção de uma institucionalidade democrática tendeu a ser exercida pela via da pressão política Configurouse uma situação na qual os atores sociais cujos interesses haviam sido postergados no regime militar almejaram a obtenção ou a compensação de benefícios através da pressão popular o que poderia inviabilizar a democra cia considerando que inexistia tradição de negociação tanto no Estado quanto nas forças políticas conflitantes As diferenças políticas substantivas não faziam parte do jogo político uma vez que o regime autoritário operara pela via da exclusão de interesses conside cap5pmd 872011 1036 147 148 rados incompatíveis com seus lineamentos políticos e econômicos A constru ção da institucionalidade democrática requereu a incorporação de mecanis mos de negociação na decisão e na implantação de políticas mas enfrentou dificuldades Por um lado a ausência de uma prática de negociação política levou a que fossem considerados os mecanismos de pressão a única maneira de viabilizar interesses sem negociação entre as partes envolvidas De fato a possibilidade de incorporação de interesses estava diretamente relacionada à força política e aos recursos do grupo sem modalidades preexistentes apropriadas à discussão en tre as forças conflitantes e o governo Nessa circunstância os governos tendiam a dar a uns e a tirar de outros conforme a intensidade da pressão e dos com promissos políticos em jogo Diríamos que o uso reiterado da pressão política dificulta a constituição de instituições estáveis bem como de mecanismos de negociação política compatí veis com um governo democrático Essa maneira de lidar com interesses conflitantes leva necessariamente à desestabilização política permanente a não ser que o go verno disponha de suporte político necessário para enfrentar o embate entre in teresses através do reconhecimento e autoridade suficientes para conduzir de maneira mais isenta as negociações Isso dificilmente poderia ocorrer com as características atuais da sociedade brasileira e do seu sistema políticopartidário Criouse por outro lado uma modalidade de formação de políticas combi nada com uma maneira particular de exclusãoinclusão de interesses via regime autoritário que ODonnell 1975143 denominou corporativismo bifronte e segmentado o qual dificilmente pode ser expulso do domínio do Estado Neste haveria ocupação do Estado por parte de grupos dominantes na sociedade grande capital e profissionais de alta renda sem a preocupação de mediar nem a representação corporativa de interesses nem formas de concertação de políti cas Também haveria intervenção ou controle do Estado pela força ou através de legislação impeditiva do desenvolvimento de entidades da sociedade civil repre sentativas de interesses da classe operária ou de classes subalternas A primeira dessas formas de corporativismo instalouse nos aparelhos institucionais do Estado e estabeleceu uma colonização inversa àquela que Schmitter atribui ao neocorporativismo ainda que às vezes com resultados semelhantes As greves dos médicos como única forma de canalizar os interesses da categoria se constituíram numa modalidade de competição política extrema mente frágil já que só se podia observar a exacerbação da representação cap5pmd 872011 1036 148 149 corporativa da categoria à medida que seus interesses eram diretamente afeta dos pela política Quando a política não os afetava o que se observava era a omissão Essas são questões a serem retomadas adiante As Entidades Médicas e aaaaa Política de Saúde O objetivo deste tópico é analisar a atuação do conjunto das entidades mé dicas que denominaremos de Movimento Médico com relação à formação das políticas de saúde As entidades médicas fundamentalmente o SinMed tiveram atuação política destacada no processo de democratização do País no período de 1976 a 1986 propugnando por uma nova estrutura para o setor saúde cuja maior expressão foi a VIII Conferência Nacional de Saúde com a respectiva proposta de reformulação do sistema a Reforma Sanitária brasileira Produziramse amplas mudanças na atuação e no posicionamento político do Movimento Médico posteriormente a 1986 na fase de implementação da Reforma Sanitária O comportamento político de oposição ao regime militar que caracterizou as entidades médicas na transição à democracia assim como sua inserção no processo de reformulação do sistema de saúde cedeu lugar a uma atuação dirigida à defesa dos interesses econômicoscorporativos dos médicos ou seja à revalorização do exercício liberal da profissão médica e à readequação das agendas e questões das entidades médicas a seguir analisadas aos novos rumos da política em anos recentes A organização temática desta seção terá como eixo a recuperação das ques tões relevantes na articulação política do movimento e de sua atuação no tocan te às políticas de saúde Ainda que o trabalho de pesquisa tenha dado ênfase ao período que se estende de 1976 a 1992 o ordenamento da exposição subdivi diuo em dois um de 1976 a 1986 outro entre 1986 e 1992 para melhor visualização das diferenças na trajetória do movimento desde seu surgimento até a década de 90 O período compreendido entre 1976 e 1986 foi marcado pela presença política do Movimento Médico tanto nas lutas específicas da categoria pelos direitos trabalhistas quanto nas críticas ao Sistema Nacional de Saúde vigente à época e também pela participação dos médicos no processo de democra tização do País O movimento começou a tomar corpo com a criação da chapa denomi nada Movimento de Renovação Médica Reme formada por médicos do Rio cap5pmd 872011 1036 149 150 de Janeiro e de São Paulo com vistas a concorrer às eleições de todas as associ ações médicas Alcançou influência política na categoria a partir de 1977 quan do venceu as eleições do sindicato dos médicos no estado do Rio da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Estado do Rio e da AMB e se expandiu para a maioria dos estados brasileiros Uma vez consolidado o Movimento Médico levou adiante a luta política pela democratização em oposição ao regime militar influenciando intensamen te as associações profissionais de classe média que proliferavam nas grandes cidades do País No que tange à luta sindical dos profissionais de saúde o Reme liderou as greves dos médicos e residentes tendo estas se expandido considera velmente em todo o território nacional a partir de 1978 reivindicando melhores salários redução da carga horária e melhoria das condições de trabalho A intensa mobilização nesse período decorria na realidade das modifica ções realizadas na área da saúde as quais haviam acarretado um assalariamento generalizado da categoria médica fazendo com que esses profissionais tradi cionalmente liberais acorressem massivamente ao vínculo empregatício no se tor públicoprivado da saúde Desse modo o Reme interpretava as dificuldades da categoria resultantes das novas formas de inserção profissional tendo utilizado as greves e o fortale cimento do sindicato como instrumento de luta e de reivindicação das deman das médicas Apresentouse como defensor dos médicos assalariados propugnando formas de luta e de atuação típicas destes Procurou simultanea mente transcender as lutas de cunho corporativo ao mobilizar a categoria tanto para a reformulação do Sistema Nacional de Saúde como para a participação nas lutas mais gerais pela democratização do País Com essa política questionavase o ideário tradicional de autonomia do médico de consultório vigente na medicina brasileira ideário este hegemônico nas instituições médicas da época Essa era a questão mais polêmica que permeava o exercício da prática médica e que outorgava identidade à corporação médica independentemente das mudanças que se produziram no processo de trabalho médico O Reme transformouse assim em vertente do Movimento Sanitário41 Este era formado por intelectuais sanitaristas médicos e outros profissionais 41 Ainda que este trabalho não inclua o Movimento Sanitário como objeto específico de análise fazemos freqüentes referências às relações entre o Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico com o Movimento Sanitário na medida em que tais relações nos possibilitam compreendê los melhor cap5pmd 872011 1036 150 151 da saúde coletiva os quais se caracterizavam por práticas políticas teóricas e ideológicas que enfocavam a questão da saúde como questão mais ampla rela cionada ao âmbito da sociedade e da política Escorel 1992 Seu projeto era sustentado em uma ampla crítica ao modelo prevalente baseado no crescimento do setor privado através do financiamento pelo setor público o que levou o sistema público de saúde à falência deterioração inefici ência e crise Oliveira Fleury 1984 Propunha a reversão do modelo traçan do uma estratégia fundamentada em propostas alternativas para o setor as quais tiveram uma relativa penetração nos aparelhos estatais de saúde ao passo que progredia o processo de democratização do País Durante esse período o Reme conseguiu notável desenvolvimento em todas as entidades médicas Em 1978 venceu as eleições também no Cremerj Porém a vitória não foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina diri gido desde 1957 por um grupo conservador caracterizado pela omissão di ante de assuntos ligados à política de saúde como também pelo caráter auto ritário de suas decisões sempre tomadas sem qualquer consulta ao conjunto dos médicos De 1978 a 1983 o Conselho foi dirigido por uma junta interventora o que significou a completa desinformação quanto aos assuntos referidos à Ética Médica atividade prioritária do Conselho além de não apre sentar condições de julgamento dos médicos por infrações éticas visto não possuir diretoria eleita O quadro modificouse em 1983 quando o Tribunal Federal do Trabalho reconheceu a situação de irregularidade quanto ao impedimento da posse da chapa vencedora e decretou a realização de novas eleições A chapa ligada ao Reme denominada Renovação e Unidade obteve 75 dos votos e os resulta dos tiveram de ser aceitos pelo CFM que então já não possuía o espaço político anterior devido ao avanço do processo de democratização Diversas entidades médicas a AMB o CFM a Somerj a SMCRJ tam bém foram conquistadas pelo Reme o que possibilitou a unidade na atuação das associações médicas Mas o SinMed foi sem dúvida a entidade que melhor expressou a ascensão do Movimento Médico no estado tendo se constituído em uma das principais entidades da sociedade civil de oposição e de luta contra a ditadura militar junto com a OAB a ABI e outras O Sindicato dos Médicos teve atuação marcante no período Liderou a categoria em grandes mobilizações pela democratização do País e pelas condi ções de exercício da prática médica Esse papel se explica pela capacidade que cap5pmd 872011 1036 151 152 teve na época de agrupar os médicos de fazer uma releitura dos interesses da categoria a partir das transformações que tinham lugar no mercado de trabalho e de abrir um espaço político para o surgimento do Reme Sua plataforma baseouse precisamente na defesa dos médicos assalaria dos na renovação das linhas políticas das entidades médicas fortemente pre midas pelo regime autoritário e na luta por mudanças políticas em prol da democratização do País Entre 1977 ano da primeira diretoria do Reme no Sindicato e 1983 triplicouse o número de associados pelo Sindicato o que mostra sua decisiva penetração na categoria médica e o fato de ter sabido aproveitar o espaço político que o Cremerj deixou vazio por estar sob intervenção do Ministério do Trabalho Em um dos primeiros números do jornal do SinMed na gestão do Reme a diretoria do Sindicato reivindicou os princípios da ética hipocrática da medi cina com relação à dignidade e à honra no exercício da medicina esquecidos em nome do caráter mercantilista comercial e privatizante que o setor saúde adquiriu com o desenvolvimento capitalista das últimas décadas Afirmavase que a privatização e o empresariamento da área de saúde a existência do mercado e o afã de lucro desqualificam o médico como profissional e o paci ente enquanto usuário É interessante ressaltar que essa questão foi abandonada pelo Sindicato após 1986 Quanto ao processo político geral pós83 o Movimento Médico teve através de suas entidades participação direta na campanha pelas Diretas Já e pelo estabelecimento de uma Assembléia Nacional Constituinte Para tanto além de instalar uma Comissão de Eleições Diretas que coordenou as atividades da entidade e das demais associações médicas nessa campanha o Cremerj deu início também a um programa de fóruns abertos à categoria e à sociedade sobre questões ligadas aos problemas da prática médica Com isso aumentou paulatinamente a consciência da necessidade de modificação no sistema de saúde através de maior participação da categoria Os temas considerados nos fóruns exemplificam os eixos da atuação polí tica do Movimento Médico durante esses anos e tinham como fim repensar a própria prática médica e influenciar nos rumos da política de saúde do País Controle da Natalidade Doenças Infecciosas e Parasitárias Ensino Médico e temas de caráter mais político tais como Serviços de Saúde e Reforma Sanitá ria Código de Ética Médica e Processo Constituinte cap5pmd 872011 1036 152 153 Das outras entidades médicas vale destacar a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Estado do Rio de Janeiro que teve papel fundamental na reorgani zação da Associação Médica Brasileira com a qual organizou o I Congresso Brasileiro de Entidades Médicas Esse congresso contou com a participação de dois mil médicos e discutiu desde temas médicos específicos até a Política Nacional de Saúde Todas as entidades médicas estiveram presentes e também representando as cooperati vas de trabalho médico a Confederação Nacional das Unimeds à qual coube as discussões sobre mercado de trabalho As cooperativas médicas na época foram consideradas uma alternativa à mercantilização da medicina Na verdade tratavase de uma tendência do Mo vimento Médico que a SMCRJ vinha defendendo em todos os documentos da associação desde 1971 Contudo tal questão tendeu a desaparecer no transcor rer da década As cooperativas médicas acabaram se transformando em em presas privadas de seguros de saúde ao mesmo tempo em que começaram a avultar as concepções neoliberais de exercício da medicina Ilustramos com o quadro a seguir as principais características do Movi mento Médico nesse período Faremos ato contínuo uma análise da atuação do Movimento Médico no período de 19861992 tendo por base a agenda de questões consideradas pe las diversas entidades selecionadas a maneira pela qual foram tratadas e as trans formações políticas que se produziram internamente nas próprias associações médicas A ênfase dessa análise recairá nas questões a seguir incorporadas à agenda das associações a Ética Médica a relação com o Estado e o processo constituinte as greves e o corporativismo médico os convênios com o setor privado e o exercício liberal da medicina cap5pmd 872011 1036 153 154 Características do Período Transição à democracia Desgaste do governo militar Crisesucessão presidencial Lei de Anistia Morre Tancredo Neves Nova República Plano Cruzado VIII Conferência Nacional de Saúde Assalariarnento Crescimento do setor privado Composição do Movimento Médico AMB SinMed SMCRJ Cremerj Somerj Unimeds Principais Bandeiras Democratização do País Oposição ao sistema de saúde Melhoria de salários Condições de trabalho lsonomia salarial Reforma Sanitária Formas de Atuação Greves Fórunsseminários Conferências congressos Partido dos Trabalhadores Encontros nacionais Publicações das entidades médicas VIII Conferência Nacional de Saúde Forças e instituições aliadas Movimento Sanitário Movimento Popular em Saúde Partido Comunista Brasileiro Partidos dos Trabalhadores Partido Democráti co Trabalhista Partido Comunista do Brasil Profissionais de saúde NãoMédicos Forças e Instituições Oposição FBH Abifarma Seguros privados de saúde Quadro 11 Caracterização da conjuntura e politização das entidades e das demandas do movimento 19761986 cap5pmd 872011 1036 154 155 A Ética Médica A Ética Médica foi gradualmente adquirindo relevância e se tornou objeto de discussão e de reflexão Passou a constituir o eixo político principal na articu lação da categoria no final da década de 80 Foi por intermédio do Conselho Regional de Medicina que a questão da Ética Médica entrou na agenda do Movimento Médico estimulando a forma ção de comissões de ética nas unidades hospitalares e intensificando a discussão acerca do assunto de modo a elaborar um novo código compatível com a realidade da prática médica no Brasil Essa linha de atuação foi encaminhada tanto nos fóruns de debate quanto nas reuniões das comissões de ética que forneceram subsídios para a formula ção de um projeto de código com a participação da categoria Paralelamente o Cremerj reuniase periodicamente com os Conselhos de outros estados e discu tia propostas para um novo código junto ao Conselho Federal de Medicina Ao término do ano de 1988 mais de cem comissões de ética haviam sido instaladas em hospitais municipais estaduais e da rede do Inamps bem como em hospitais da rede privada Aproximadamente dois mil médicos do municí pio do Rio de Janeiro e do interior do estado participaram ativamente dessas comissões inúmeras vezes entrando em conflito com diretores de hospitais empresários do setor e autoridades42 O Sindicato pela colaboração que deu ao Conselho na tarefa acabou também atuando na formação das comissões de ética nas unidades hospitalares Foi intensa a atividade desenvolvida pelo Cremerj na elaboração de um novo Código de Ética Médica durante o período As discussões em hospitais entidades médicas delegacias regionais e comissões de ética tiveram expressiva participação dos médicos Demonstrava a preocupação em colocar as questões relativas aos problemas enfrentados no trabalho cotidiano dentro da complexa e nova realidade da prática profissional o qual interferiam fatores vários além da relação médicopaciente Enfatizaramse aspectos tais como a relação dos médicos com as instituições de saúde a desumanização do atendimento a ga rantia de exame e a elaboração do prontuário para o paciente assim como a definição de responsabilidades em caso de remoção O anteprojeto do Código de Ética elaborado na Conferência Estadual de Ética Médica acentuava aspectos relacionados às pesquisas em seres humanos 42 Segundo dados fornecidos pela diretoria do Cremerj cap5pmd 872011 1036 155 156 transplantes de órgãos e de tecidos e questões de direitos humanos a serem respeitadas no exercício profissional A proposta do Rio contou com a segunda maior bancada de delegados à Conferência Nacional de Ética Médica No evento inédito na história da medicina do País elaborouse o novo Código de Ética Médica que detalhou e aprofundou as normas éticas ficando bem mais extenso que o anterior Ao se considerar que os médicos são prepon derantemente assalariados inovouse em conceitos como a extensão da res ponsabilidade pelo ato médico à unidade de saúde e a obrigatoriedade do médico em denunciar ao Conselho as más condições de trabalho Igualmente inovador foi o capítulo sobre direitos humanos no qual a prática da tortura foi execrada bem como proibido o envolvimento do médico direta ou indiretamente na execução da pena de morte no caso de ela vir a existir Tais questões entraram no projeto quando a participação de médicos na prática da tortura se tornou conhecida devido aos processos iniciados por organismos de direitos humanos e por familiares dos presos políticos durante o regime militar Outra diretriz inovadora foi a que se referiu à nãomercantilização da medicina Conforme as diretrizes da VIII Conferência Nacional de Saúde o novo código adotou o conceito ampliado de saúde entendendo não como ausência de doença mas como resultante de adequadas condições de alimentação habi tação saneamento educação renda meio ambiente emprego lazer e garantia dos direitos sociais a serem asseguradas pelo Estado etc O novo Código de Ética refletiu as principais aspirações do Movimento Social em Saúde Foi o resultado de anos de debates e reflexões sobre as expe riências da prática médica e da luta dos profissionais em saúde no novo contex to brasileiro constituído a partir da década de 70 Refletiu ainda a vitória das concepções trabalhistas de medicina sobre o ideário liberal da prática médica Em seus princípios fundamentais ligou a atividade dos médicos às condições de saúde e aos padrões dos serviços médicos Dessa forma responsabilizou o médico pelo bom funcionamento do sistema de saúde O papel aglutinador que desempenhou a implantação de Comissões e a elaboração do Código de Ética Médica fez com que o Conselho Regional de Medicina se tornasse o principal órgão de expressão política da categoria lugar anteriormente ocupado pelo Sindicato dos Médicos No entanto o estabeleci mento da democracia no País impôs problemas e desafios que a categoria não conseguiu assimilar nem responder nem mesmo através da elaboração de es tratégias adequadas àquele novo momento políticoeconômico cap5pmd 872011 1036 156 157 A questão da Ética Médica não teve força suficiente para como bandeira de luta política se impor ao conjunto da categoria já que se tratava de uma proposta de caráter marcadamente político na atuação dos médicos Ainda que aprovada e portanto obrigatoriamente respeitada expressou um descompasso entre o Movimento Médico que não mudou sua proposta e a categoria profis sional que defendia propostas de cunho corporativista O momento político relacionado ao estabelecimento de um regime demo crático difere substancialmente do período de transição do autoritarismo para a democracia As questões democráticas durante a transição relacionamse à ampli ação das liberdades políticas fundamentalmente da liberdade de expressão e de organização da sociedade Se às restrições políticas do regime autoritário somar mos as mudanças no sistema de saúde que conduziram a uma pauperização dos profissionais médicos compreendese que a junção da luta política com a luta por melhores condições salariais e de trabalho dos médicos empreendida pelas lide ranças médicas tenha encontrado receptividade na categoria A estratégia seguida pelo Movimento Médico teve por alvo a queda do regime militar e neste sentido houve adequação entre o objetivo e a estratégia para alcançálo centrada no inconformismo da categoria médica com as trans formações no exercício da profissão A consolidação da democracia trouxe como questão principal porém a construção da institucionalidade democrática novos padrões de relacionamen to entre Estado e sociedade e mecanismos políticos que garantissem a discussão ordenada das reivindicações de diversos setores sociais ou seja as condições para impulsionar o processo de mudança Para se estabelecer esse processo enfrentou por um lado a resistência às transformações por parte das elites políticas no Brasil essencialmente a re núncia a benefícios conquistados há bastante tempo e aprofundados com o regime militar Essa resistência evidenciou as dificuldades no Estado brasilei ro Por outro o Movimento Médico deixou de ter atuação política unificada como teve durante a oposição e resistência ao regime militar para expressar as profundas diferenças na categoria médica Os interesses e demandas dos médicos assalariados do setor público daqueles inseridos nos seguros priva dos dos proprietários de hospitais e dos conveniados diferiam e exigiam modalidades próprias de discussão Da perspectiva da sociedade a representação plural de interesses sem ter havido um processo de adequação de formação política das representações cap5pmd 872011 1036 157 158 pela via institucional levou todos a quererem tudo de modo que as demandas reprimidas durante o regime autoritário e expressas simultaneamente produzi ram a tão conhecida situação de ingovernabilidade da democracia Ao tempo que ao apelarem os médicos para greves como principal instru mento de pressão para obter melhores salários e condições de trabalho enfren taram a rejeição dos usuários especialmente do setor público e por extensão a crítica da sociedade à categoria Relação com o Estado e o Processo Constituinte Na década de 70 e na primeira metade dos anos 80 o Movimento Médico caracterizouse por uma atuação relevante no setor saúde no questionamento às políticas de saúde e na elaboração de uma proposta de reformulação do sistema que culminou com a Reforma Sanitária A partir da segunda metade da década de 80 houve um deslocamento da discussão política da Reforma Sanitária para o Sistema Unificado e Descentra lizado de Saúde Suds A Reforma Sanitária era mais ampla que o Suds En quanto a primeira era uma proposta de cunho políticofilosófico a respeito do setor da saúde a segunda era um instrumento administrativo do Estado para encaminhála A implantação do Suds em 1988 guiouse pelos princípios da Reforma Sanitária mas não conseguiu efetiválos Tratouse de uma reforma administra tiva do sistema de saúde na qual o Instituto Nacional da Previdência Social Inamps principal órgão do sistema público de saúde repassou suas unida des segundo a localização às secretarias de saúde de estados e municípios A partir disso as unidades passaram a ser administradas regionalmente tanto na gestão quanto no financiamento O Suds atravessou enormes dificuldades em razão de diversas causas den tre as quais se destacaram o avanço das burocracias locais e a interferência de políticos clientelistas no nível municipal o emperramento dos repasses dos recursos para estados e municípios sem que se conseguisse detectar em que lugar estes desapareciam e os entraves legais e operacionais no funcionamento dos Conselhos de Saúde que obstaculizaram a participação da população na gestão das unidades locais Logo no início da implementação da política de saúde observase um importante retrocesso na proposta da Reforma Sanitária manifesto pela saída cap5pmd 872011 1036 158 159 dos quadros ligados ao Movimento Sanitário dos cargos de direção do Inamps Já em pleno processo de implantação outro aspecto desse retrocesso se refere ao boicote em 1999 do Governo Collor à Reforma Sanitária e às manifesta ções contrárias à mesma por parte do setor privado da saúde O Suds foi constantemente apontado pela Somerj e por outras entidades como a única saída para a situação caótica do sistema público de saúde mas as denúncias relacionadas às dificuldades na implementação da Reforma Sanitária em sua totalidade eram pouco enfáticas e muito gerais se comparadas às ações desenvolvidas pelo governo no emperramento do Suds Para seu efetivo sucesso a Somerj defendia a criação de um Fundo Único de Saúde com recursos dos estados municípios e Inamps e de uma dotação orçamentária federal para a criação de Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde e para a isonomia salarial para os médicos a médio prazo Fica evidente através dessas iniciativas que as entidades mantiveram um discurso comprometido com as questões relacionadas à Reforma No entanto não houve uma contribuição de vigilância mais concreta da categoria para implementar um sistema único de saúde que controlasse a multiplicidade de inserções profissionais dos médicos e que exigisse destes a dedicação integral e o cumprimento da carga horária Ou seja é possível observar o distanciamento entre as proposições gerais da categoria e a transformação da prática médica dentro de uma orientação onde os interesses da corporação fossem compatibilizados com as mudanças no sistema de saúde Tal questão fica ainda mais clara ao se analisar o material reunido a respeito da atuação das entidades médicas na VIII Conferência Nacional de Saúde onde se percebe que duas questões começaram a merecer destaque no âmbito da Reforma Sanitária A primeira delas foi o que diz respeito à isonomia salarial para os médicos Apesar de ter sido sempre considerada uma necessidade a partir da formulação do Plano das Ações Integradas de Saúde em 1983 a isonomia passou a ter importância superior aos próprios projetos que a circuns creviam inclusive à Reforma Sanitária A segunda questão era bem mais polêmica já que se tratava do emprego único com salário único e tempo integral de trabalho As lideranças médicas reconheceram haver grande resistência da categoria a essa proposta e assumi ram que muitos deveriam ser conscientizados participantes do novo sistema No entanto estabeleceram algumas precondições os médicos aceitariam dis cutir emprego único com tempo integral no caso de adequadas condições de cap5pmd 872011 1036 159 160 trabalho e se fossem estabelecidos mecanismos institucionais que impedissem em qualquer hipótese a redução ou achatamento desses salários43 É preciso ressaltar que essas precondições eram impossíveis de ser encon tradas no fim da década de 80 Em relação à organização do trabalho médico destacamos que no VI Encontro Nacional de Entidades Médicas em 1987 definiase o trabalho médico como uma forma de compromisso social onde deveria ser sempre auscultado e respeitado o interesse da sociedade Afirmavase ainda que a inserção do trabalho médico na produção social constitui um direito de todos os médicos cuja garantia deve ser assegurada pelo Estado44 Depreendese disso que a categoria aparentemente assumiu que o compromisso social era inerente à profissão médica e que caberia ao Estado assegurar trabalho para todos os médicos Além disso no Encontro foi salientada a necessidade de preservar a rela ção médicopaciente na prestação dos serviços procurando os médicos se de sobrigarem de quaisquer tipos de controle sobre seu trabalho como se pode observar na seguinte afirmação do presidente do SinMed as instituições que intermediam o trabalho médico não podem interferir com seu compromisso ético e social Fica portanto evidente a preocupação da categoria em estabele cer parâmetros que limitassem a interferência do Estado sobre o trabalho mé dico certamente no sentido de garantir a prática liberal mesmo sob condições de assalariamento Cabe ressaltar através da análise dessas questões o papel prevalente que a categoria se atribuiu na formação das políticas de saúde Havia na categoria médi ca uma posição ambígua observável também na atuação das entidades médicas Ainda que o Cremerj tivesse preservado um papel mais político e menos corporativo a tônica do conjunto das instituições médicas foi bastante dúbia As tentativas de manter o exercício liberal da medicina naqueles aspectos que interessavam aos médicos fezse acompanhar da exigência de intervenção do Estado para favorecer questões que eram do interesse da categoria tais como a garantia de emprego para todos os médicos isonomia salarial não obrigatoriedade de tempo integral garantia de estabilidade e as 40 horas sema nais apontadas pela Reforma Sanitária Ou seja ao mesmo tempo em que se 43 Declarações de Roberto Chabo presidente do SinMed Edição Médica 677 1987 44 Edição Médica 687 1987 cap5pmd 872011 1036 160 161 defendiam posturas liberais exigiase a intervenção do Estado em aspectos nos quais o liberalismo prejudicava o exercício da medicina Essa ambigüidade nos remete à discussão do tema autonomia médica que configura um dos principais componentes da ideologia médica à qual é ligada e do exercício da medicina desde seu começo até os dias atuais o que merecerá abordagem específica Retomando agora o papel das entidades médicas nas políticas nacionais de saúde observamos que a discussão em torno da Constituinte foi defendida completamente pelo Cremerj No acompanhamento dos trabalhos da Assem bléia Nacional Constituinte a entidade teve uma de suas mais destacadas atua ções em nível nacional Com a proximidade da votação da Seção da Saúde pela Plenária da Cons tituinte o Cremerj se transformou no centro mobilizador do movimento naci onal em defesa das diretrizes da VIII Conferência Nacional de Saúde e lançou boletins cartazes e um manifesto em defesa da proposta da Reforma Sanitária assinado por governadores secretários de saúde pelo prefeito do Rio de Janei ro e por centenas de entidades do setor Salientamos que posteriormente à aprovação da Constituição Nacional e dentro dos esforços para se levar a questão da saúde à sociedade a Plenária Estadual de Saúde convocada pelo Cremerj em outubro de 1988 reuniu cerca de 60 entidades da sociedade civil para discutir a Constituinte Estadual Volta assim a desempenhar o Conselho um importante papel de mobilização política ao liderar as lutas pela reforma do sistema de saúde Todavia nosso ponto de vista é que da mesma forma que na discussão sobre a Ética Médica isso acontece sem que se observe uma importante mobilização da categoria na definição da Constituição Estadual No entanto apesar da ausência de uma considerável adesão da categoria à qual interessava muito pouco os princípios que conduziram à Reforma Sani tária a proposta encaminhada pelas entidades à Constituinte foi essencialmen te a mesma da Subcomissão de Saúde da Câmara na qual tinham assento o Movimento Sanitário e as organizações do Movimento Social em Saúde Por fim já em 1989 durante a Plenária Estadual de Saúde uma proposta de anteprojeto referente ao setor para a Constituinte Estadual foi elaborada pela Somerj e outras entidades de saúde sindicatos e associações de moradores Em linhas gerais o anteprojeto defendia a criação do Sistema Estadual de Saúde com vinculação ao Sistema Único de Saúde onde se propunha cap5pmd 872011 1036 161 162 a municipalização dos recursos o financiamento da seguridade social através do orçamento do estado da União dos municípios e de outras fontes a participação de entidades representativas nos Conselhos Estaduais e Mu nicipais de Saúde de usuários e de profissionais de saúde nas decisões sobre o sistema De maneira geral o papel do Movimento Médico no processo constituin te estadual foi bastante progressista sem que tenham existido aspectos polêmi cos de envergadura no âmbito interno das entidades médicas O Cremerj tor nouse o portavoz na articulação do Movimento Social em Saúde como um todo no estado do Rio de Janeiro De qualquer modo para não gerar confusões devemos enfatizar que mes mo que o projeto tenha sido aprovado pela Constituinte toda essa atividade política do Conselho teve repercussão relativa no conjunto da categoria médica As Greves e o Corporativismo Médico No período pós85 percebese um crescimento desmedido de reivindi cações econômicocorporativas da categoria médica em relação a períodos anteriores De fato registrouse uma mudança na categoria ao término da década da atuação política de oposição ao regime militar que acompanhou as greves realizadas na década de 70 ao início dos anos 80 aumentaram as greves que reivindicavam exclusivamente aumentos de salários e melhores condições de trabalho A expectativa inicial com a Nova República não demorou a se desfazer Com isso as reivindicações por melhores salários condições de trabalho redução de carga horária entre outras começaram a ocupar um lugar principal no âmago da categoria A greve dos funcionários do Ministério de Saúde no estado do Rio de Janeiro em 1985 foi pautada pela reivindicação de 80 de reposição salarial efetivação do pessoal das campanhas nacionais tuberculose câncer e saúde men tal e a redução da carga horária de 40 horas para 30 horas semanais Em 1986 e 1987 a greve dos médicos previdenciários exigiu aumento de salários e a elaboração de um Plano de Cargos e Salários Nesse mesmo perío do no interior do Rio de Janeiro assim como em outros estados do País sucederamse movimentos grevistas também cap5pmd 872011 1036 162 163 Dentre as lutas salariais travadas pela categoria destacouse a greve de 162 dias dos funcionários municipais que gerou crise sem precedentes na assistência à saúde na cidade do Rio de Janeiro Inicialmente decidida durante o VII En contro Nacional de Entidades Médicas o Dia Nacional de Luta 22091988 teve a participação de todos os previdenciários e profissionais de saúde fede rais estaduais e municipais As reivindicações dos médicos foram a isonomia salarial com o Inamps implantação imediata da tabela de honorários médicos da AMB para hospitais conveniados e para o Inamps elaboração de Plano de Cargos Carreiras e Salá rios unificado nacionalmente mudança da legislação do trabalho médico com definição de piso salarial Dentre todos os participantes continuaram paralisados apenas os médicos previdenciários e os profissionais municipais tendo a greve terminado em mar ço de 1989 em virtude de a Prefeitura ter cancelado o pagamento de todo o funcionalismo municipal O Sindicato destacouse na condução das greves o que ajudou a redefinir seu papel no setor com ênfase no exercício da representação dos interesses trabalhistas da categoria mais do que na representação política que caracterizara a atuação do SinMed na década anterior Durante essa greve o Cremerj foi a única entidade que se posicionou niti damente ao lado da população e contra o movimento Garantiu um mínimo de assistência e liderou a luta para exigir providências das autoridades As greves dos médicos sem solução de continuidade foram criando uma situação de desassistência à população que se arrastou durante meses Como não existia nenhuma forma de planejamento para o funcionamento dos servi ços de atendimento mesmo de maneira emergencial ou provisória a popula ção atribuía à categoria médica a culpa pelo abandono em que se encontrava o setor público da saúde As entidades médicas ainda que defendessem a paralisação apoiaram tam bém as demandas do Movimento Popular em Saúde e da população em geral atribuindo os problemas de atendimento ao governo Por fim a categoria levou a greve até o esgotamento acabando por perder efetividade essa forma de resistência à situação de deterioração salarial e das condições de trabalho dos médicos empregados no setor público da saúde O posicionamento de responsabilidade civil assumido pelo Cremerj na greve possibilitou nova reunificação entre as entidades médicas e as entidades cap5pmd 872011 1036 163 164 do Movimento Popular em Saúde o que ficou evidenciado na participação conjunta na Plenária Estadual de Saúde e na mobilização popular denominada Marcha pela Saúde Desta participou um grande número de entidades da socie dade além da Somerj Confederação Nacional dos Médicos Federação Nacional dos Médicos e o SinMed do Rio de Janeiro e de Niterói Independentemente de as reivindicações serem ou não justas é necessário assinalar que essa greve provocou a maior crise de atendimento do setor públi co antes vista Foram diversos meses em que filas mortes por falta de atendi mento e a insensibilidade com o sofrimento humano foram a tônica da atuação da categoria médica noticiada incansavelmente pela imprensa Como desdo bramento da situação ocorreu um notável desprestígio dos médicos preocu pados muito mais com a defesa de seus interesses do que com as conseqüências advindas das sucessivas paralisações Outro fato que bem demonstra o conflito existente entre a categoria e a população no período é a determinação tomada pelo Instituto Nacional de Pre vidência e Assistência Social INPS de transferir médicos de diferentes unidades hospitalares de bairros residenciais de classe média e alta para o Hospital da Posse em Nova Iguaçu uma das regiões mais pobres da periferia do Rio de Janeiro Isso porque os médicos concursados que deveriam ser encaminhados para exercer sua atividade no Hospital da Posse ficaram alocados em hospitais melhor situados do município em razão de influências políticas Acabou assim havendo reação à decisão por parte da categoria e das entidades médicas principalmente do SinMed que protegeu os médicos que se recusavam à transferência As entida des médicas conseguiram influir na decisão do Ministério da Previdência que acabou concordando em chamar médicos aprovados em outros concursos Nesse período também cresceu aparentemente a preocupação da catego ria com a desconfiança da população em relação aos médicos enfatizandose a necessidade de recuperar a credibilidade perdida Para a classe essa desconfian ça se devia à culpa sempre creditada aos médicos por erros que na realidade seriam causados pelas deficiências do sistema de saúde Poucas vezes os médi cos aceitaram a responsabilidade pela situação45 45 Como exemplo há um editorial do periódico Edição Médica em que são feitas críticas à situação da medicina no estado do Rio Segundo o editorial as lutas do Movimento Médico teriam conquistado importantes avanços salariais mas com poucos reflexos na maior parte do atendimento assistencial o que tirava sua respeitabilidade até para reivindicar melhor salários e condições de trabalho Acrescenta que é crescente o número daqueles que compreendem que sem o resgate da respei tabilidade do médico perante a sociedade em geral qualquer movimento médico cairá no vazio Edição Médica 70 1988 cap5pmd 872011 1036 164 165 Acreditamos que isso tenha acontecido porque havia uma compreensão deturpada que permeava a categoria sobre a diferença entre condições de tra balho e exercício da medicina Ou seja na medida em que não se distinguia o fato de ser assalariado questão que tem a ver com a inserção laboral do exercício da prática médica independente da condição de assalariamento e ine rente ao profissional médico lidar com o ser humano doente também não se conseguia isolar as responsabilidades do Estado quanto ao atendimento hos pitalar e as do médico Os Convênios com o Setor Privado Importantes transformações ocorreram no mercado de trabalho médico a partir da segunda metade da década de 80 A visível deterioração do setor público da saúde em virtude da falta de recursos para a manutenção das insta lações e para o pagamento dos profissionais ficou evidenciada na redução de leitos hospitalares de 428 leitos1000 habitantes em 1980 caiu para 372 em 1989 tendo no período havido a expansão de leitos no setor privado 468 e decréscimo no setor público 261 Buss 1994 De fato o atendimento no setor público implicou um incremento dos riscos ao se submeter o paciente a intervenções médicas Essa situação foi muito bem aproveitada pelos seguros privados que cresceram significativamente no período Ou seja quem tinha disponibilidade adquiria seguro privado de saúde ficando o atendimento público restrito à parcela da população que não tinha reservas para gastos em saúde fechando ainda mais o círculo da pobreza Com o crescimento dos convênios privados de assistência à saúde os seguros de saúde e a concomitante decadência da assistência pública o traba lho por credenciamento ganhou importância singular para a categoria passan do a ser até mesmo uma fonte exclusiva de renda de grande parte dela O credenciamento médico é uma modalidade específica de contrato entre os médicos e os seguros privados hospitais ou outros serviços de saúde A parte empregadora credencia habilita médicos para o atendimento sem se comprometer a lhes encaminhar pacientes e nem efetuar o pagamento de salá rios mas inclui o médico na lista dos que integram a empresa O paciente faz sua escolha nessa listagem e a empresa fornece para o pagamento da consulta tíquetes posteriormente trocados por valores pelo médico segundo tabela de honorários previamente estabelecida pela empresa Isso explica a atenção dada cap5pmd 872011 1036 165 166 pelas entidades à questão e também a preocupação em estabelecer critérios que garantissem direitos a essa parcela dos médicos tendo em vista principalmente a nãoexploração do trabalho médico As entidades reconheceram durante o VI Encontro Nacional de Entida des Médicas realizado em 1987 que o credenciamento era utilizado muitas vezes como forma de subemprego sendo aplicado de diferentes maneiras tan to no setor privado quanto no próprio setor público Assim procuraram esta belecer critérios que melhorassem essa relação de trabalho para a categoria tendo a principal proposta sido a de que o credenciamento deveria ser univer sal Além disso determinaram que fosse feito exclusivamente nos consultórios particulares e de nenhuma forma no sistema público onde o ingresso deveria ser apenas por concurso O credenciamento universal nesse sentido viria como forma de prestação de serviço relativamente autônoma já que os médicos não seriam obrigados a se filiar aos convênios Poderiam atender pacientes de diferentes convênios os quais sem dúvida os tornavam assalariados e indiretamente os impediam de escolher pacientes além de não lhes exigir nenhum tipo de controle sobre sua formação Esse posicionamento representou uma visão estritamente liberal sobre a forma como deveria ser exercida a prática médica Ademais em nosso ponto de vista é uma situação contraditória com o reconhecimento pela própria cate goria do baixo nível de formação acadêmica que não exigindo concurso requereria um outro tipo de controle sobre o exercício do profissional Mantevese nessas discussões a proposta de que o pagamento aos credenciados tivesse por base sempre a tabela de honorários médicos da AMB e fosse desvinculado das contas dos hospitais Como era de se esperar boa parte das empresas de medicina de grupo ignorou a tabela o que resultou em greves dos médicos conveniados O Sindicato procurou então conscientizar os médicos da rede particular sobre seus direitos promovendo encontros com essa parte da categoria Essa luta ampliou consideravelmente o alcance do SinMed A preocupação das entidades com essa vasta parcela da categoria inserida no setor privado demonstra por um lado a diferença com períodos anteriores em que não eram consideradas suas reivindicações Houve mudanças na con cepção que privilegiava os assalariados do setor público Cabe ressaltar no entanto as mudanças ocorridas na prática liberal onde o mercado passou a ser cada vez mais dependente dos convênios com empresas cap5pmd 872011 1036 166 167 Em verdade essa mudança seria apenas de acordo com nossa opinião parte do processo de aniquilamento da prática liberal mascarado pela utilização dos convênios indicando a forma latente com a qual se apresentava a ideologia liberal entre os profissionais médicos De Volta à Prática Liberal O Movimento Médico pós83 mostrou como as entidades médicas volta ram a privilegiar seus problemas corporativos solidificando uma nova ideolo gia a partir da proposta de engajamento num projeto reformador da saúde Um desses indicativos foi o visível descenso do Sindicato dos Médicos enquanto entidade que se fortaleceu com o Reme e dirigiu importantes lutas da categoria ao voltarse para problemas especificamente corporativos A prioridade dada pelo Reme ao processo de democratização do País ao projeto reformador na saúde e ao assalariamento médico juntamente com um certo abandono dos problemas específicos urgentes para a categoria médica pode ter significado a abertura de espaço para o aparecimento de uma nova corrente política no coração do Movimento Médico a corrente neoliberal que privilegiava ao contrário as questões específicas da categoria Campos 1986 Esse fenômeno poderia ser explicado pelo fato de não ter havido preocu pação mais específica do Reme com questões que faziam parte do diaadia da prática médica e que mobilizavam a categoria principalmente a salarial Real mente essa questão estava embutida nas demandas políticas mais amplas de democratização do País porque se entendia que esta era a via para mudar a situação profissional dos médicos Entretanto a ideologia liberal hoje não é mais a ideologia tradicional que se opõe à presença do Estado na prestação da assistência à saúde que nega o assalariamento como forma antiética do exercício profissional e que usa essa ética como forma de relacionamento primordial tanto entre os próprios médi cos quanto com a sociedade em geral Fruto das transformações ocorridas no setor saúde principalmente nas décadas de 60 e 70 essa ideologia passou a conviver cada vez mais de forma independente de sua vontade com a heterogeneidade na inserção dos profis sionais médicos no mercado de trabalho A enorme inserção dos médicos nos serviços de saúde fossem públicos ou privados determinou que os profissionais médicos não mais respondessem cap5pmd 872011 1036 167 168 a uma conduta decidida entre eles próprios mas que esta fosse definitivamente intermediada por outra a da organização hospitalar que o empregava Tornavase necessário portanto reavaliar essa conduta no sentido de res ponder à heterogeneidade e não perder o que em nossa opinião é a base da unidade da profissão ou seja a legitimidade imputada pela sociedade ao traba lho do médico no enfrentamento da enfermidade importância essa que lhe dá prestígio e lugar diferenciado na hierarquia social As novas formas de inserção profissional contribuíram para o surgimento de três tipos diversos de ideologia na década de 70 Segundo Donangelo 1984 seriam elas a ideologia liberal a empresarial e a estatizante que enfrentavam conflitos em última instância resolvidos no âmbito da ética médica No entanto o acirramento das contradições entre os diferentes interesses desnudava uma vez mais a fragilidade do pacto firmado sobre a ética princí pio da medicina que guia o exercício da prática médica As diferenças ficaram evidentes sobretudo a partir da reorganização do Movimento Médico na se gunda metade da década de 70 com a entrada do Reme na cena política Ao defender a prestação dos serviços de saúde pelo Estado e condenar a sua mercantilização o Reme fez também uma nítida opção pela transformação da assistência à saúde em benefício da maioria da população e assumiu aberta mente a defesa dos assalariados médicos Representava portanto uma dife renciação explícita tanto em relação aos liberais tradicionais quanto aos empresá rios médicos A proposta empreendida pelo Reme tomou corpo com a conquista de inúmeras entidades brasileiras no período de 1979 a 1983 A resposta a esse crescimento não tardou a ser formulada Ainda em 1980 começou a se organizar uma terceira corrente política que visava em nossa opinião reorganizar a unidade cindida da categoria médica então baseada na representação quase exclusiva dos médicos assalariados A divisão da categoria punha em risco a posição da profissão médica ameaçandoa de vir a ser uma profissão como outra qualquer Essa nova corrente chamada de neoliberal por Campos 1986 adotou o que o autor chama de sincretismo político no sentido de aliar interesses tanto dos liberais quanto do Reme Propunhase a defender tanto os médicos liberais quanto os assalariados e assumia por um lado que a categoria tinha se afastado dos centros de poder e que necessitava se unir à população para exigir do governo uma política de saúde em benefício de todos Por outro centrava o foco de suas acusações no governo e no Inamps cujo planos de saúde visavam cap5pmd 872011 1036 168 169 para os neoliberais apenas administrar escassos recursos e adequar a saúde às disponibilidades financeiras Para atingir seu objetivo não titubeava em se aliar aos hospitais privados contratados pela Previdência Social e lhes propor uma aliança com os próprios médicos credenciados Dessa forma os neoliberais visavam a unidade dos médicos e realmente se entendiam enquanto representantes de toda a categoria ao procurar respon der com as propostas de atuação aos anseios dos profissionais nas diferentes formas de inserção no mercado No entanto como afirma Campos privilegiavam efetivamente a auto nomia do trabalho médico Ainda segundo o autor 1986 os neoliberais pro punham uma terceira via que combinasse propriedade privada exercício au tônomo e intervenção do Estado baseada principalmente na assistência previdenciária produtora direta de serviços e financiadora via credenciamento de médicos particulares e no cooperativismo médico Cri ticavam contudo a lucratividade desmedida no setor procurando com isso uma via que conciliasse a prática liberal às necessidades de atendimento da população necessitada Apesar de essa nova corrente ter surgido em São Paulo em 1980 e contar com apoio principalmente nesse estado e no Rio Grande do Sul parece tam bém ter influenciado a mudança de qualidade no movimento como um todo No Rio de Janeiro teve influência expressiva não obstante o Reme ser hege mônico Essa mudança de curso se iniciou com as eleições realizadas na AMB em que o Reme perdeu para a chapa denominada Nova AMB presidida por Nelson Proença e identificada com a nova corrente Em verdade o que esta nova proposta no âmago da corporação assina lava era a retomada dos valores tradicionais da profissão médica adequando os às circunstâncias políticas que atravessavam o setor da saúde e os profissio nais médicos nos anos 80 Neste sentido não se tratava exatamente de uma proposta política de cu nho neoliberal tal como era entendida pelas correntes e escolas econômicas do neoliberalismo uma vez que carecia de definição alternativa à Reforma Sanitária para a organização do setor além de não assumir a sua defesa No entanto colaborou em grande medida para a retirada da adesão à Reforma empreen dida pela corporação médica em épocas anteriores A proposta dos neoliberais tomou impulso e certamente onde não con quistou diretamente as entidades influenciou suas diretrizes O ingresso dos cap5pmd 872011 1036 169 170 neoliberais na AMB em 1983 superando o então hegemônico Reme resultou no declínio deste último Não estamos afirmando que os neoliberais tenham sido os responsáveis diretos por essa queda As mudanças conjunturais na cena política nacional e de saúde juntamente com as transformações operadas no mercado de trabalho médico com o crescimento dos convênios e seguros privados de saúde e a deterioração do setor público se refletiram numa desmobilização política do Movimento Médico Desse modo o Reme não conseguiu contraporse à proposta neoliberal no que de mais importante ela oferecia à categoria ou seja a recuperação do ideário médico por um lado a possibilidade de manutenção do exercício libe ral como principal objetivo dos médicos mesmo que concomitante a outras formas de inserção como o assalariamento e por outro a autonomia do traba lho médico na medida em que a possibilidade de reversão da doença e promo ção da saúde permanecia em última instância sob poder do médico Mesmo que o Reme não se opusesse diretamente à prática liberal da medicina via o assalariamento médico como definitivo O reordenamento da ideologia médica no que chamaríamos de nova ide ologia liberal era no entanto mais extenso do que o que era explicitado na proposta dos neoliberais Extenso no sentido de que revestia antigos valores com nova roupagem e buscava o apoio do conjunto da categoria independen te de sua inserção no mercado de trabalho A preocupação com a autonomia não se restringia exclusivamente a uma questão ética para essa determinada corrente mas implicava também a garantia de que os médicos não estivessem condenados ao assalariamento podendo procurar outras formas de múltipla inserção no mercado Essas formas na realidade encobriam o assalariamento como já vimos e foram colocadas em prática pelos médicos nos últimos anos Ou seja a autono mia não significaria somente a possibilidade de realização profissional dos mé dicos em um plano simbólico da prática médica mas também uma maneira de manutenção da renda ou a possibilidade de incrementála Contudo a manutenção do ideário de posse sobre a doença ratificava ao revés a manutenção de uma posição predominante nas instituições de saúde junto a um lugar privilegiado na hierarquia social servindo como aval ao exer cício autônomo tanto para manter os ingressos quanto para se desvencilhar de possíveis controles cap5pmd 872011 1036 170 171 Por fim acredito ter a ideologia liberal penetrado no Movimento Médico não só pelas questões aqui apontadas mas por ter sido também constitutiva dos médicos enquanto ideário da corporação O nascimento da prática médica está associado ao conhecimento especi alizado exercido no começo da carreira de maneira individual independente das instituições médicas que só apresentam caráter de congregação e de forma dor onde a autoridade médica é o próprio médico Assim desde a formalização do ensino médico universitário classificase o profissional médico egresso das faculdades de medicina como profissional li beral Embora tal denominação seja compartilhada com outras profissões de saber altamente especializado no caso da medicina o exercício liberal norteia a atividade médica como referência principal Ainda que cruciais transformações tenham se produzido no transcorrer de aproximadamente um século no exercício da prática médica e ainda hoje nos deparemos com um modelo médico hegemônico baseado no trabalho as salariado sob formas mais ou menos sofisticadas de exploração capitalista de produção e consumo de serviços de saúde o imaginário individual e social da categoria remete ao ideário médico do nascimento da medicina Porém o ideário médico se recria cotidianamente na relação médicopaciente com o caráter individual e o intransferível eixo do exercício da prática médica Segundo Schraiber 199373 a autonomia médica tem razão de ser na medida em que tanto o diagnóstico da patologia como o tratamento residem no julgamento do médico na capacidade deste em desvelar a doença46 Independentemente da adequação ou não dessa ideologia ao exercício da prática médica concreta atualmente ela continua vigente na maneira como o próprio médico enxerga a sua prática profissional atualizandoa em cada ato de intervenção médica ainda que apenas no plano simbólico Assim o ideário liberal reaflora sob traduções atualizadas que compatibilizam o imaginário social do médico com as circunstâncias concretas que perpassam pelo exercício da prática médica Isso precisamente no momento em que a categoria sentese ameaçada de perder aquilo que tinha perdido na década de 46 Qualificase então também por essa via a prática médica como prática fundada na competência pessoal do médico para desenvolver tal senso de particularização e exercitar sua subjetividade estabelecendo inclusive as próprias regras de decisão e os limites de sua intervenção ou de auto regulação Para tal exercício carregado de tantos e tão complexos requerimentos não poderia ser outra a forma de desempenho por necessidade de adequação do médico a seu ato de prática que não aquela realizada por meio de sua inserção autônoma quando então disporá o médico de amplas condições de adquirir e exercer sua experiência clínica individual cap5pmd 872011 1036 171 172 70 com o trabalho assalariado médico mas que persiste no imaginário médico o lugar privilegiado que este ocupava na sociedade Para finalizar o quadro a seguir ilustra a atuação das entidades médicas no final dos anos 80 evidenciando uma notória despolitização das reivindicações médicas Principais Características do Período Fracasso do Plano Cruzado Crise política da Nova República Crescimento da inflação Retrocesso político reformista Collor eleito presidente no marco da transição democrática Reedição do autoritarismo político Composição do Movimento Médico SinMed Somerj Cremerj SMCRJ Unimeds Principais Bandeiras de Luta Isonomia salarial Diminuição da jornada de trabalho Exercício liberal Melhores condições de trabalho Formas de Atuação Greves do setor público Encontros de entidades médicas Congressos e seminários Greves do setor privado Publicações de entida des médicas Reforma do Código de Ética Médica Forças e Instituições de Oposição Movimento Sanitário Movimento Popular em Saúde Partido Comunista Brasileiro Partidos dos Trabalha dores Partido Comunista do Brasil Partido Democrático Trabalhista Partido Social Demo crático do Brasil População Quadro 12 Caracterização da conjuntura e despolitização das entidades e das demandas do Movimento Médico 19861992 cap5pmd 872011 1036 172 173 A primeira questão a salientar no estudo da atuação histórica das entidades médicas é a que diz respeito à denominação Movimento Médico Tendo em vista que nosso interesse está focalizado nas políticas de saúde especificamente no pro cesso de formulação e implementação da Reforma Sanitária constatamos o pa pel singular que as entidades médicas têm desenvolvido em relação às mesmas Assim como o Movimento Popular em Saúde o Movimento Médico tem uma atribuição política decisiva no setor saúde Ainda que sejam dois tipos de movimentos diferenciados quanto às bases sociais formas de inserções na po lítica e interesses enquanto o primeiro reivindica serviços de saúde o segundo se relaciona com a reprodução da força de trabalho ambos configuram o Movimento Social em Saúde A trajetória mostra como a política de saúde tornouse alvo e objetivo da atuação das entidades médicas mediatizada por reivindicações econômico corporativas que se relacionam ao papel indiscutivelmente diferenciado dos médicos no sistema de saúde Embora em sua maioria sejam assalariados do setor públicoprivado da saúde havendo alternância com outras formas de inserção no mercado com põem ao mesmo tempo uma corporação que mantém regras de pertencimento e solidariedade profissional fortemente orgânicas Tratase no entanto de uma corporação bastante peculiar que tem exercido ao longo das décadas de 70 e 80 diferentes modalidades de atuação política e de representação de interesses via de regra referenciadas ao exercício da prática médica e à maneira pela qual determinado contexto político social e econômico a afeta Enquanto o período da transição à democracia no final dos anos 70 foi marcado pela oposição política ao regime autoritário através de uma modali dade eminentemente plural da representação dos interesses da corporação mé dica a década de 80 apresenta traços singulares da atuação política da categoria No período de construção da institucionalidade democrática houve uma fragmentação do movimento na medida em que as diferenças na inserção pro fissional dos médicos no mercado de trabalho se aprofundaram em razão do crescimento dos seguro privados de saúde e a crise do setor público se agra vou além de a revitalização do ideário liberal ter ganho corpo para categoria Dessa maneira a diversidade dos interesses médicos passa a ser expressa segundo a inserção dos médicos no mercado de trabalho diferentemente do período anterior no qual as entidades médicas e principalmente o SinMed re presentavam a categoria enquanto assalariados cap5pmd 872011 1036 173 174 Podemos observar em conseqüência disso a ausência de atuação política unívoca da corporação concomitante ao crescimento da modalidade corporativa nãoinstitucionalizada de representação de interesses das entidades médicas Além disso também notase que a relação entre a inserção profissional e as modalida des de representação de interesses no cerne da categoria reflete no caso dos assalariados e dos profissionais liberais uma mudança de representação plural para corporativa enquanto as outras modalidades de inserção profissional à medida que passam a se constituir oposição política adquirem uma forma de representação plural de interesses O tratamento das questões referentes à ética médica às políticas de saúde às greves médicas às transformações no mercado de trabalho e à ideologia neoliberal consideradas do ponto de vista da trajetória histórica do Movimento Médico na construção da democracia evidenciam as mu danças operadas na atuação das entidades médicas assim como na categoria como um todo Tais mudanças propiciaram cisão nas entidades médicas tendo o Cremerj assumido um papel predominantemente político em relação ao processo do setor saúde enquanto o SinMed passou a atuar exclusivamente como órgão sindical liderando as greves econômicocorporativas da categoria e abando nando o rol político desempenhado durante a transição à democracia Outrossim em relação à categoria percebese tanto transformações na inserção profissional dos médicos no mercado de trabalho quanto uma forte penetração da ideologia neoliberal e um distanciamento da mobilização política da década de 70 Para finalizar essa discussão caberia incorporar algumas reflexões teóricas sobre os movimentos sociais Considerar a atuação desses atores sociais em termos de movimento social com relação às políticas de saúde no processo de transição e construção da democracia colocanos ante a necessidade de distin guir melhor os conceitos de ator social de sujeito político e de indivíduo Entendese por atores sociais as categorias sociais com organização pró pria e com expressão política Neste sentido atores sociais podem ou não ser sujeitos políticos Constituemse sujeitos quando adquirem uma identidade po lítica construída com o desenvolvimento de uma prática política e na inter relação com outras forças políticas Da maneira como têm sido entendidos no Brasil os movimentos sociais mais referenciados aos movimentos populares das periferias dos grandes cen cap5pmd 872011 1036 174 175 tros industriais se estabelecem em sujeitos políticos na relação com o Estado na medida em que reivindicam saúde moradia educação melhores condições de vida ante o Estado e por este são interpelados tanto pela presença quanto pela omissão na satisfação das necessidades da população É precisamente na prática política que os movimentos passam a configurar uma identidade e a se torna rem sujeitos políticos Não se poderia dizer que esses movimentos são atores sociais já que sua base social é heterogênea e carece de organização e de expres são política duradoura e institucionalizada Considerandose o Movimento Médico podemos afirmar que ele é um ator social na medida em que é uma categoria social com organização e expres são política Conforme já mencionado os atores podem ou não ser sujeitos políticos Isso tem acontecido com o Movimento Médico em alguns momen tos da história das políticas de saúde Como atores sociais se guia pelo pertencimento à corporação mas como sujeito político sua atuação não é dada pois se conforma no exercício da política Assim na década de 70 os médicos fizeram um movimento que teve atu ação política contrahegemônica em relação à política de saúde dominante o que se explica pela própria conformação do setor baseada na privatização apoiada em complexos hospitalares no trabalho assalariado na especialização médica e na maciça incorporação de tecnologia Todas essas mudanças no exercício da profissão afetaram profundamente a autonomia do trabalho médico levando a categoria e suas entidades a se mobilizar politicamente na oposição ao regime militar A situação foi alterada por ininterruptas mudanças e com elas também a atuação tanto dos médicos como de suas entidades Feita a distinção entre atores sociais e sujeitos políticos cabe a referência aos indivíduos Estes se tornam sujeitos pelo reconhecimento da alteridade tal como assinalamos no primeiro capítulo e até poderiam enquanto sujeitos po líticos individuais exercer a representação de grupos ou classes sociais Por vezes o surgimento de um indivíduo compreendido enquanto sujei to político único com uma proposta política decisiva e em um lugar político decisório pode ser o catalisador de um profundo processo de mudanças sociais mas pode também não ser suficiente se não houver na sociedade sujei tos políticos que façam com que as mudanças ocorram Em certo sentido é necessário haver um resgate de indivíduos para a polí tica porque as sociedades são compostas por cidadãos com necessidades anseios cap5pmd 872011 1036 175 176 desejos intenções gostos etc Esse resgate da individualidade significa recupe rar no âmbito da sociologia e da política a categoria de indivíduo e principal mente recuperar o papel dos indivíduos nas atuais democracias Não no sentido do individualismo possessivo e liberal como afirmava MacPherson 1979 mas no sentido do homem do valor essencial à humanidade cap5pmd 872011 1036 176 177 Parte Parte Parte Parte Parte IIIIIIIIIIIIIII cap5pmd 872011 1036 177 179 6 O Processo de Implementação da Reforma Sanitária Retoma este capítulo como questão central as políticas de saúde no pro cesso de construção da democracia mas em plano de análise diverso do ado tado na primeira parte do livro A discussão então empreendida possibilitou delimitar teoricamente o campo da democracia e dentro deste a capacidade de os sistemas políticos democráticos assimilarem processos de reformas polí ticas Assim foi posta no centro da atenção a Reforma Sanitária brasileira Da ênfase teórica dada ao tratamento da mesma passamos agora a nos ocupar de sua dinâmica com aqueles aspectos obscuros que se evidenciam nos percalços do processo da implementação das políticas de saúde procuran do demonstrar que para a efetivação da Reforma Sanitária seriam necessários a continuidade e o aprofundamento do processo democrático Regimes de exclusão social e de cunho autoritário dificilmente poderiam assimilar um pro cesso de reformas dessa natureza Neste sentido a incorporação de direitos sociais levou à incorporação de reformas estruturais no âmbito da economia e do Estado nas modernas de mocracias políticas Sob esse ponto de vista poderíamos afirmar que tem havi do uma continuada luta entre o governo e as forças políticas e sociais que entendem a Reforma Sanitária como o possível caminho para a democratiza ção da saúde e seu usufruto pelo conjunto da sociedade especialmente pelas camadas mais pobres e necessitadas da população Procuraremos inicialmente delimitar até onde se avançou no estabeleci mento dos procedimentos legais previstos constitucionalmente para o setor saúde e qual o estado da arte até o final de 1993 O avanço na implementação do novo sistema de saúde tem sido difícil a partir da regulamentação do arcabouço jurídicoinstitucional da Reforma Sani tária estabelecido na Constituição Nacional em 1988 até os dias atuais cap6pmd 872011 1037 179 180 O último ano e meio do Governo Sarney caracterizouse por grande dete rioração política e por notável retrocesso na área da saúde ilustrado pela saída dos quadros políticos reformistas da Previdência Social Em 1988 o desenvolvimento do Suds se viu seriamente ameaçado por ocasião da demissão do presidente do Inamps e de sua equipe quadros do Movimento Sanitário pela resistência oferecida por políticos fisiologistas pela burocracia do Inamps e do Ministério da Saúde assim como pela oposição do setor privado Embora a articulação desses interesses contrários à proposta não tenha conseguido se impor no processo constituinte teve um papel decisivo na para lisação do processo de implementação das medidas reformadoras estabelecidas na Constituição O Governo Collor empossado em janeiro de 1990 não demorou a evi denciar os dois aspectos marcantes da sua política as tentativas neoliberais para desmontar políticas sociais dentre elas particularmente a mais estruturada ou seja a Reforma Sanitária e os escândalos relacionados à corrupção generaliza da em todos os escalões de governo Poderíamos afirmar que à revelia da lei inscrita na Constituição os avatares políticos do Governo Collor e do seu Ministro da Saúde marcaram fortemente o setor afetando o andamento políticosanitário sem deixar nenhuma dúvida quanto à existência da profunda relação entre Reforma Sanitária e democracia Entendemos que o avanço na implementação da Reforma poderia neces sariamente requerer o afiançamento do processo políticodemocrático consi derando que ela previa um espaço considerável de participação social na gestão do sistema de saúde e particularmente no processo de descentralização do sistema o qual constituiu a coluna vertebral desse processo Por sua vez dado o caráter profundamente democrático da Reforma poderiam ser estabelecidas as bases de um importante aprendizado político para o exercício da democracia no percurso de sua execução Contudo o governo eleito como resultado do processo de democratiza ção do País não tinha a intenção de percorrer esse caminho Mais teve uma atuação de cunho autocrático valendose dos artifícios disponíveis tais como decretos do poder executivo normas operacionais etc que emperrou o an damento da Reforma Sanitária Com isso conseguiu tolhêla uma vez que exercia o poder de veto ante os projetos apresentados pela articulação das forças democráticas Cabe assinalar cap6pmd 872011 1037 180 181 que alguns aspectos foram cumpridos até porque era impossível para um go verno constitucional governar à revelia da Constituição Por um lado a orientação neoliberal da política de governo foi de encon tro a uma proposta de caráter reformista como a que tinha chegado a ser contemplada na Constituição Por outro o exercício da política do Governo Collor reeditou o velho autoritarismo da política brasileira marcada pelo clientelismo político e pela corrupção devidamente incrementada em nível naci onal ao tradicional estilo dos políticos do Nordeste Com isso o Governo Sarney foi amplamente superado chegando a corrupção a constituirse uma praxe da prática de governo da qual nenhuma área política foi poupada Voltando à política de saúde regulamentouse primeiro a Reforma Sani tária na Constituição Nacional em 1988 Posteriormente as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais estabeleceram os princípios que norteariam o modelo de atenção e de organização dos serviços de saúde locais segundo as diretrizes da Constituição O sistema descentralizado de saúde visava de fato integrar um sistema único de saúde com cobertura universal integralidade das ações com a participação da comunidade através dos conselhos locais de saúde Conforme já mencionado o processo de legislação do setor não foi acom panhado pela efetivação da política criandose uma situação sui generis como a de se ter apenas conseguido contemplar na Constituição o modelo de saúde a ser aplicado no País sem as condições políticas necessárias para efetiválo Des se modo a Reforma Sanitária foi definida no plano legal sem que isso revertesse em melhor atendimento prevenção ou condições de saúde da população No ano e meio transcorrido da aprovação da Constituição até o Governo Collor tomar posse deuse prosseguimento com enormes dificuldades à descentralização política de saúde Esta se caracterizou pelo repasse aos estados e municípios da prestação dos serviços de saúde tal como previsto na proposta da Reforma Sanitária aprovada na VIII Conferência Nacional de Saúde que teve prosseguimento com o Decreto que criou o Suds em 1987 posterior mente legislado na Constituição Nacional sob o nome de Sistema Único de Saúde SUS De maneira geral as unidades eram transferidas sem haver nos estados e municípios as condições gerenciais eou financeiras para sustentálas Os recur sos eram repassados da esfera federal para as instâncias descentralizadas por meio de transferências negociadas por convênio Isso favorecia aqueles estados cap6pmd 872011 1037 181 182 e municípios que pelo tamanho eou poder de negociação política tinham melhores condições de barganha com o governo federal Foram perceptíveis os avanços conquistados na implementação em instâncias descentralizadas nas quais existiu por parte de governadores e prefeitos um compromisso político com a proposta A maior dificuldade experimentada pelo processo de municipalização em todos esses anos nos dois sucessivos governos foi o repasse dos recursos do Suds e posteriormente do SUS Santos 1992 constatou que sendo o orçamento público destinado à saú de proveniente em grande parte do orçamento da seguridade social este sem pre se encontra restringido visto que os recursos não são recolhidos ou são desviados de maneira ilegal e através de artifícios diversos em 1991 não foi recolhido o montante de 40 das contribuições das em presas por sonegação ou inadimplência no mesmo ano também não foi recolhida a contribuição de mais de 20 milhões de trabalhadores sem carteira de trabalho que emigraram da eco nomia formal para a informal devido à recessão foram cobertas as despesas do orçamento fiscal com recursos da Seguridade Social em 1990 221 do orçamento foram desviados para os Ministérios do Exército da Economia da Educação e até para o Governo do Distrito Federal em 1991 o Ministério da Economia reteve 75 da arrecadação do Fundo de Investimento Social Finsocial e das taxações sobre o lucro componen tes do orçamento da Seguridade Social para cobrir outros gastos da União a inclusão pelo Governo de gastos que correspondiam ao orçamento de outros Ministérios nos 30 do orçamento da Seguridade destinados à saúde Se a isso acrescentarmos a diminuição geral dos recursos para o setor não é difícil imaginar as penúrias da Reforma Sanitária Enquanto em 1988 o gasto em saúde correspondeu a 232 do PIB em 1991 representava 151 do PIB47 47 Porcentagem calculada a partir dos dados obtidos em Conjuntura e Saúde Quadro I Gastos Sociais do Governo Federal Rio de janeiro NUPES ago 1992 p6 cap6pmd 872011 1037 182 183 O processo de implementação da política de saúde é de grande complexi dade Seus desdobramentos avanços e retrocessos nos diversos planos legislativo institucional orçamentário e gerencial do sistema de saúde obede ceram ao papel de oposição e enfrentamento ao Governo Collor desempe nhado pelas forças reformistas assim como também às relações de força resul tantes do embate de um conjunto de forças políticas Dentre estas encontramse os movimentos sociais em saúde sindicatos partidos políticos progressistas intelectuais e acadêmicos da saúde entidades médicas técnicos prógoverna mentais setor hospitalar privado seguros de saúde No terreno constitucional a aprovação da Lei Orgânica da Saúde Lei Federal 8080 de 19990 tornouse possível graças à articulação das forças políticas em prol da Reforma Sanitária nucleadas na Plenária das Entidades de Saúde Analisados em outra parte deste livro tiveram papel capital na aprova ção do capítulo da saúde na Constituição do País Essa lei regulamentou o SUS e deu destaque à participação social através das Conferências e Conselhos Nacionais de Saúde Logo depois de sua aprova ção foi vetada pelo Presidente da República precisamente nos tópicos referen tes à participação social Conferência e Conselhos à formulação de um Plano de Carreira Cargos e Salários para o pessoal do SUS à transferência automática dos recursos da saúde para os estados e municípios e por último nos artigos relacionados à reestruturação do Ministério da Saúde no que se refere à extinção e descentralização do Inamps Superintendência de Campanhas Sucam e Fun dação de Serviço Especial de Saúde Pública FSESP Diante do veto presidencial fezse presente uma vez mais a pressão e a articulação da Plenária conseguindo do Congresso a apresentação de um novo projeto de lei aprovado em 28 de dezembro de 1990 A nova Lei número 8142 sancionada na data de aprovação do projeto dispôs sobre a realização das Conferências e Conselhos de Saúde e sobre as transferências automáticas para estados e municípios tornando obrigatórios a criação dos Conselhos EstaduaisMunicipais de Saúde e os Fundos de Saúde a programação e a orçamentação o relatório da gestão local a contrapartida orçamentária de 10 cap6pmd 872011 1037 183 184 a formação de uma comissão para a elaboração de planos de carreira cargos e salários A resposta do governo não demorou Em janeiro de 1991 estabeleceuse a Norma Operacional Básica no 1 do Ministério da Saúde equivalente a um decreto de Poder Executivo definindo os critérios de repasse para estados e municípios Ao contrário do que pregava a Constituição criouse um complexo siste ma de financiamento com base na produção dos serviços e com igualdade dos pagamentos para diferentes prestadores A Norma reeditou antigos procedi mentos favorecedores da corrupção do setor especificamente no Inamps48 que continuava a ser o principal gestor dos recursos mantendose a modalida de tradicional de pagamento dos mesmos ou seja por serviços Em artigo recente Carvalho et al 1993 afirmaram que essa norma repre sentou um verdadeiro retrocesso Ao restabelecer a centralização e o controle dos fluxos financeiros converteu as transferências financeiras intragovernamentais em pagamentos de faturas por serviços produzidos e colocou em igualdade de condições as empresas privadas contratadas e conveniadas Finalmente a segunda e última Norma Operacional do governo datada de 7 de fevereiro de 1992 acrescentou à anterior a adoção do critério populacional para o repasse dos recursos e agregou o repasse automático dos mesmos aos municípios que tivessem cumprido as exigências constitucionais O recuo do governo que se depreende do conteúdo da segunda Norma Operacional é explicado por sua importante deterioração o que o impediu de acrescentar ainda mais obstáculos ao andamento do SUS O que eviden ciou tal deterioração foi o caráter público que adquiriram as irregularidades administrativas no Ministério da Saúde já tendo estas atingido a figura do Ministro Alceni Guerra Além disso as denúncias de corrupção estavam sen do veiculadas pela mídia Nesse contexto o Ministro não tinha autoridade para impor a política de governo Ainda assim o repasse dos recursos aos estados e municípios conti nuou a sofrer o mesmo tipo de dificuldades Na realidade se considerarmos a capacidade de contar com recursos úni ca maneira de operacionalizar o sistema evidentemente que o esforço empre 48 Entre os últimos atos do Governo Sarney esteve um decreto transferindo o Inamps para o Minis tério da Saúde cap6pmd 872011 1037 184 185 endido pelas forças em prol da Reforma Sanitária se localizou mais no terreno da formulação e da definição constitucionallegal no qual as forças reformistas concentraram sua luta Entretanto houve certo descaso em termos da factibilidade de imple mentação considerandose as restrições orçamentárias impostas pela crise eco nômica inflação crescimento de economia marginal desemprego dívida ex terna etc à qual se somou a falta de investimento do governo na área social Os indiscutíveis avanços no plano jurídico não foram acompanhados por um esforço de avaliação e de intervenção diante das dificuldades de financiamento do sistema que foram se apresentando com a implementação da Reforma em um governo que se mostrou hostil ao projeto É preciso salientar o caráter sui generis dos avanços alcançados na definição da política de saúde que diferentemente de outras experiências nacionais na América Latina foram conseguidos devido à existência de um movimento político de oposição à política de saúde vigente sob o autoritarismo e pela reformulação desse sistema que conseguiu acumular forças e travar também uma luta política capaz de operar por linhas internas ao Estado Em outros países da América Latina Argentina Colômbia Venezuela México também surgiram propostas de transformação do sistema de saúde mas não conseguiram extrapolar o setor específico da saúde estabelecer alian ças e convocar outras forças políticas nem relacionar as propostas de mudan ças no setor às transformações políticodemocráticas Conseqüentemente dada a dimensão alcançada pela proposta da Reforma Sanitária a implementação da política de saúde recentemente praticada no Bra sil não pode ser analisada independentemente da atuação das forças de oposi ção ao governo no setor saúde em razão da capacidade de pressão dessas Tal atuação é bem exemplificada pelos obstáculos colocados para o go verno pelas forças reformistas em relação à privatização e ao desmonte da política de seguridade social e saúde49 Em compensação os entraves colocados pelo governo e pela iniciativa privada na área da saúde obrigaram as forças de oposição do setor a operar sob constantes deslocamentos e redefinições das arenas da luta onde se realizam o enfrentamento e a definição política Assim os cenários municipais se tornaram um espaço de luta privilegiado das forças re formistas assim que o andamento ficou emperrado no nível central 49 Vide o projeto de governo sobre a privatização da Previdência nos moldes chilenos que até hoje não conseguiu passar na Câmara cap6pmd 872011 1037 185 186 Isso nos leva a concluir que a oposição demonstrou indiscutível efetividade no terreno da luta políticoideológica considerando que os princípios da Re forma Sanitária ficaram consagrados na Carta Magna do País Tendo em vista as dificuldades para que a luta política acontecesse no terre no da transformação efetiva do sistema de saúde no nível do governo central e após o término da etapa de definição constitucional da Reforma houve dois eixos de atuação política nos quais se concentrou a oposição o convocatório e a realização da IX Conferência Nacional de Saúde já prevista na Lei 8142 e o processo de descentralização da política de saúde Aliás a descentralização da política foi estreitamente associada à municipalização e esta última definida como o tema central da Conferência Municipalização é o Caminho50 A idéia aqui defendida é a de reacomodação da estratégia política do Mo vimento Social em Saúde nas duas direções explicitadas De um lado a IX Conferência possibilitaria como aconteceu a mobilização da sociedade para pressionar a implementação dos princípios da Reforma através do aprofundamento do processo de municipalização da política de saúde De ou tro tornaria a Reforma menos vulnerável no nível central de decisão da política A partir do reconhecimento da dificuldade de se avançar nesse terreno deu se início ao incentivo aos níveis locais na implementação da política questão que se sustentou na concepção política que compreendeu a municipalização como des locamento de poderes e atribuições do nível central para o local além de proces sos de democratização da política através da participação social na gestão local Cabe a interrogação se essa foi uma estratégia adequada quanto à conver gência entre os objetivos e a implementação da Reforma Ou seja as restrições sofridas pela descentralização da política no processo de municipalização por não ter havido uma definição do governo federal que incorporasse as questões contempladas pela Reforma Sanitária assim como por não terem sido defini das atribuições para os níveis federal e estadual no processo de descentralização não conduziram de fato a uma fragmentação da política Em que medida essa fragmentação não contribuiria para diferenciar ainda mais as condições de saúde das comunidades mais necessitadas acentuando as presentes desigualda des sociais e contribuindo para a reprodução da pobreza De fato o processo de municipalização tal como vem sendo implementado contribuiu para a fragmentação ou a atomização da política de saúde na medi 50 Ver sobre a IX Conferência Escorel 1992 cap6pmd 872011 1037 186 187 da em que o sistema passou a depender inteiramente da definição política dos prefeitos em relação à Reforma Sanitária e também da disponibilidade de re cursos das prefeituras a serem aplicados no sistema local de saúde Neste senti do mais adiante poderá ser constatado como essas questões se equacionaram a partir do estudo da situação em alguns municípios A IX Conferência Nacional de Saúde A IX Conferência foi realizada em 9 de agosto de 1992 após sucessivos adiamentos dos quais o primeiro ocorreu ainda ao Governo Sarney Escorel 1992 A realização da IX Conferência significou consideráveis esforços polí ticos das forças reformistas e uma definição política a respeito da importân cia decisiva que a mesma teria na vida política nacional e no setor da saúde particularmente A VIII Conferência deixara assentadas as bases do papel que o Movimen to Sanitário e o Movimento Social em Saúde alcançaram na determinação de qual seria o sistema de saúde mais adequado para o atendimento às necessida des do conjunto da população e especialmente das camadas mais pobres Porém na memória das forças de oposição esse havia sido um espaço conquistado como resultante da luta política do setor ao qual se chegou devido à existência de um projeto proveniente da sociedade tendo para isso contado com o apoio de consideráveis forças sociais Movimento Social em Saúde profissionais de saúde usuários capaz de se impor ao governo Em tal sentido o espaço da participação social alcançado na VIII Confe rência Nacional de Saúde foi preservado tendo a IX Conferência sido realizada com ampla participação das entidades ligadas ao setor apesar das dificuldades e prorrogações por parte do governo Foram inicialmente realizadas as Confe rências Estaduais e Municipais processo que regimentalmente precede a Naci onal e escolhidos os delegados e participantes credenciados A etapa preparatória trouxe de volta à cena política o clima de mobilização social alcançado pela VIII Conferência justamente num momento de paralisa ção e de perplexidade política que afetou o País e a sociedade como um todo diante das transgressões éticas e morais do Presidente da República A título de exemplo da capacidade de mobilização conseguido pelas forças sociais em prol da Reforma Sanitária na capital de um paupérrimo estado do nordeste brasileiro São Luís do Maranhão reuniramse 500 delegados regionais para a Conferên cap6pmd 872011 1037 187 188 cia Estadual de Saúde51 representantes dos Conselhos de Saúde movimentos populares profissionais de saúde etc No espaço de tempo entre a preparação e a realização o Ministro da Saúde Alceni Guerra foi substituído ou melhor obrigado a renunciar porque denúncias de corrupção o implicavam diretamente o que foi objeto dos pri meiros escândalos da administração Collor O governo em franco retrocesso nomeou para o cargo o Dr Adib Jatene que se comprometeu com a realização da IX Conferência O temário da Conferência incluiria os seguintes pontos sociedade gover no e saúde implantação do SUS municipalização financiamento gerenciamento do sistema de saúde e política de recursos humanos e controle social A Comis são Organizadora contou entre os componentes com o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde Conasems que conformaram a presi dência do Comitê Executivo e cujo documento será discutido à parte por constituir um dos aportes mais concisos e objetivos em termos de diagnóstico das dificuldades por que passava a implementação da política de saúde Dentre os documentos a que tivemos acesso é interessante fazer referência ao conteúdo dos mesmos já que se aproximou de um diagnóstico e de pro postas para efetivar o SUS Os documentos da Plenária Nacional de Entidades de Saúde do Conselho Federal de Medicina CFM e dos Secretários Municipais de Saúde de maneira geral são documentos aqui e ali coincidentes em seus aspectos fundamentais com diferenças no grau de precisão dos diagnósticos e propostas Em relação ao financiamento destacase que eram destinados somente 3 do PIB para o setor saúde com a proposta de dispor de 8 a 10 do PIB a ser investido na saúde além da recomendação de que fossem destinados de 10 a 15 da receita própria de cada esfera de governo à área da saúde junto com a viabilização imediata dos Fundos Estaduais e Municipais de Saúde O documento do Conasems considerou que não se devia permitir a dedu ção do imposto de renda das despesas com assistência médica privada deven dose em contrapartida destinar ao SUS os recursos do seguro obrigatório de automóvel Esses recursos deveriam ser centralizados no Fundo Nacional de Saúde e transferidos de forma regular e automática aos fundos estaduais e municipais O Conselho Nacional de Saúde teria que definir os percentuais re 51 Mesaredonda intitulada Sociedade Saúde e Governo realizada em setembro de 1991 durante a I Conferência Municipal de Saúde cap6pmd 872011 1037 188 189 passados a cada instância Contra a forma de pagamento em vigor por servi ços os critérios adotados seriam populacional e epidemiológico e de acordo com a capacidade e a complexidade dos serviços de saúde instalados Quanto aos Conselhos de Saúde propôs sua implantação imediata com caráter deliberativo e composição paritária conforme o previsto na Lei no 8142 tendo o CFM acrescentado que os Conselhos fossem articulados com as redes prestadoras de serviço O documento do Conasems enfatizou o próprio pro cesso de municipalização afirmando que a municipalização plena compreendia além dos recursos financeiros a gestão efetiva do SUS e o controle social plena mente exercido salientando não se poder limitar a municipalização a determi nada forma operacional consórcio distrito sanitário ou outra cabendo aos próprios municípios a resolução sobre a forma mais conveniente Finalmente no âmbito dos recursos humanos defendeu a implementação imediata de um Plano de Cargos Carreiras e Salários a formação de recursos humanos em todos os níveis a valorização da dedicação exclusiva e a integração de recursos humano de diversas instituições O CFM agregou em relação ao setor público isonomia salarial estímulo ao tempo integral ascensão funcional Em relação ao setor privado foi defendida a garantia de remuneração condig na dos honorários médicos desvinculandoos das contas hospitalares Dentre as propostas e trabalhos apresentados destacouse pela maior ob jetividade e precisão o documento do Conasems Coincidentemente foi o gru po de maior estruturação e articulação política da IX Conferência o que não foi casual uma vez que a implementação do SUS pela própria definição política e táticooperacional do Movimento Sanitário e do Movimento Social em Saúde ficou nas mãos dos Secretários Municipais de Saúde levando a municipalização a tornarse o tema central da IX Conferência Genericamente os documentos restantes foram pouco objetivos alguns tiveram caráter excessivamente teórico e outros um cunho mais políticoideoló gico como o documento da CUT não conseguindo exprimir de maneira mais afinada quais deveriam ser os desdobramentos do temário em termos de diagnóstico apurado da situação e os possíveis encaminhamentos ou diretrizes para operacionalizar o SUS O que esses documentos deixam transparecer são as diferenças nos encaminhamentos e posicionamentos dos diversos grupos que sustentavam o projeto da Reforma Sanitária Acreditamos ser esse um fato de suma importância ou seja a multiplicidade de grupos com interesses específicos em jogo no setor saúde Tal constatação cap6pmd 872011 1037 189 190 suscita a questão de como lidar com a diversidade de interesses já que os favorecimentos da realização de uma determinada ação deixam de ser virtuais para favorecer a uns e prejudicar a outros Tratase de questão intrínseca ao exercício da própria democracia e que se atualiza no processo de implementação da política de saúde O que interessa ressaltar no entanto é que os próprios grupos motores da Reforma no momento da sua implementação interagem de maneira particu larmente estreita na medida em que os conflitos internos cobram vulto despro porcional acirrando ainda mais as divergências entre os interesses dos usuários e os dos médicos Necessário se faz a propósito destacar a ausência de condução política pela Reforma nas forças sociais o que levou por exemplo à adoção de dife rentes posições por parte de um mesmo partido político conforme sua capaci dade de expressar os interesses dos profissionais de saúde ou os dos usuários Referimonos à defesa feita pela CUT com relação aos profissionais de saú de no que dizia respeito à dedicação de 30 horas semanais no serviço público e à posição contrária dos usuários organizados representados majoritariamente pelo PT que defendiam 40 horas semanais de trabalho médico no setor público Outro obstáculo de importância é o viés ideológico adotado no tratamen to dos Conselhos de Saúde a respeito da relação dos movimentos populares com o Estado que dificulta discussões mais objetivas e precisas sobre as ques tões relativas à implementação da política nas discussões levantadas durante a IX Conferência A disparidade de interesses entre usuários e profissionais de saúde deve ser considerada chave para as dificuldades na implementação da Reforma especi ficamente no que se refere aos médicos No entanto colocar na atuação destes o maior empecilho para a implementação da política de saúde não deixa de ser uma simplificação da questão Escorel 1992 Em primeiro lugar significa atribuir aos médicos no sistema de saúde brasileiro um papel que eles não têm Embora tenham uma responsabilidade ética no atendimento aos pacientes e nos últimos anos tenham mostrado maior preocupação com seus interesses corporativos do que com os valores essenciais do exercício da medicina eles não deixam de ser apenas uma peça na engrena gem que sustenta a reprodução do Estado no setor específico da saúde Inexistem condições satisfatórias de atendimento no sistema público de saúde salvo meritórias exceções instrumental higiene medicamentos pessoal cap6pmd 872011 1037 190 191 auxiliar manutenção das instalações etc Se às condições de trabalho agregar mos os salários enormemente deteriorados a falta de formação adequada como resultado dos currículos das faculdades de medicina o ingresso precoce no mercado de trabalho e as múltiplas inserções profissionais para contornar o empobrecimento fica evidente o papel secundário que os médicos representam no sistema de saúde Quando se compara o papel social e político dos médicos no Brasil em relação a outros países podemse observar as diferenças aviltantes do poder político e a valorização social dos médicos em países desenvolvidos Gerschman 1992b No Brasil os médicos não deixam de ser mais do que profissionais emergentes de um sistema de saúde obsoleto que resiste a sair de cena Em termos de resultados na IX Conferência conseguiuse garantir a continuidade do processo de municipalização da política de saúde de acordo com os princípios constitucionais não houve avanços significativos em relação à operacionalização da Refor ma ou seja sobre a definição de que lugar caberia aos estados e à federa ção na implementação da política Em suma os resultados da IX teriam ficado aquém dos resultados alcançados pela VIII Faltou um diagnósticoavaliação objetivo do momento atual de implementação do SUS que possibilitasse dar um passo à frente em relação a diretrizes concretas da operacionalização do SUS nos municípios definindo modalidades mais pragmáticas de intervenção e incidência no montante do orçamento a forma de pagamento e o repasse ágil dos recursos para estados e municípios Ou seja como enfrentar operacionalmente no geral o velho siste ma de saúde desde as gestões estadual e municipal A IX Conferência significou tal como a VIII um grande esforço de luta e de mobilização política com a reunião de amplas forças sociais para discutir democraticamente os problemas do setor saúde Porém evidenciou um certo esgotamento de um determinado modo de exercício da política apoiado em princípios eou questões substantivas Ainda que estes sejam necessários à for mulação da política são insuficientes para a implementação das reformas as quais requerem a negociação e a construção de acordos entre parceiros e opo sição de maneira a viabilizar as transformações propostas As dificuldades observadas resultam também da heterogeneidade na com posição das funções e do posicionamento destas no interior do Movimento cap6pmd 872011 1037 191 192 Social em Saúde à qual se agregou a fragilidade do Movimento Sanitário numa fase de declínio após ter conseguido durante mais de dez anos exercer a condução do movimento social em saúde e a ausência de uma direção políti ca aceita e reconhecida como tal pelo conjunto das facções do movimento social em saúde De fato isso a diferencia também da VIII Conferência onde o projeto da Reforma Sanitária foi abraçado e reconhecido como legítimo pelo Movimento Social em Saúde apesar das diferenças internas do Movimento Social como por exemplo com referência ao papel exercido pelo Estado visto anterior mente na Parte II A Redefinição da Política de Saúde e a Extinção do Inamps Algumas considerações devem ser apontadas a respeito do período políti co que se iniciou no final de 1992 no Governo de Itamar Franco sem que pretendamos aprofundar essa linha de discussão mas apenas destacar algumas questões gerais que podem subsidiar o debate acerca da política de saúde O período inicial da gestão de Itamar Franco caracterizouse pela ausência de definições articuladas em uma proposta de governo e de políticas que viabilizassem o aprofundamento do processo democrático sob a perspectiva da institucionalidade democrática da redistribuição de renda e da administra ção da justiça social A tônica de governo foi a de evitar enfrentamentos entre interesses conflitantes sem uma direcionalidade política evidente A composição dos ministérios eviden ciou projetos assim como posições diferenciadas entre os membros do gabinete sem o estabelecimento de articulações mais amplas embora o pessoal contem plado com as nomeações não estivesse contaminado pela corrupção No caso do setor saúde ainda que o governo não tenha tido um direcionamento político explícito para a implementação da Reforma a escolha de um ministro da saúde afinado com a mesma resultou numa gestão caracte rizada pela intenção e pela vontade política de aprofundar o processo de municipalização Em período extremamente curto menos de um ano na pasta o Minis tro da Saúde Jamil Haddad trouxe à discussão o papel e a definição das atribui ções que caberiam ao nível central de condução da política para que o SUS pudesse ser efetivado cap6pmd 872011 1037 192 193 No marco da Constituição do País além dos decretos que reorganizavam o Fundo Nacional de Saúde e a estrutura transitória do Inamps constituíram propostas radicais para a implementação do SUS o projeto de lei propondo a extinção do Inamps em abril do mesmo ano e o documento publicado em março de 1993 A Ousadia de Cumprir e Fazer Cumprir a Lei Nesse documento tratavase dos encaminhamentos no nível central para a implementação do SUS Retomaramse também as questões que conforma vam o SUS segundo a Constituição as medidas a serem efetivadas e as atribui ções a serem desempenhadas por cada uma das instâncias do sistema de saúde Priorizouse o financiamento considerandoo um desafio de natureza po lítica que exigiria o compromisso de 10 a 15 das receitas de cada uma das três esferas de governo federal estadual e municipal para o setor da saúde A maneira de dispor do montante de recursos foi discutida no citado docu mento em três pontoschave como ampliar a receita num quadro recessivo como racionalizar o custo da assistência e como erradicar o desperdício A respeito do primeiro ponto não há referência aos lineamentos da políti ca econômica que deveriam ser incorporados para o financiamento do setor A ausência de definições mais incisivas que revertessem na ampliação dos recur sos públicos para a área social e em especial da saúde se contrapôs ao empe nho das forças políticas conservadoras em mantêlos nos patamares existentes Ao mesmo tempo expressa a impossibilidade de recompor um novo pacto político e o impedimento de se avançar no processo de construção da demo cracia uma vez que as relações permaneciam pouco transparentes e pouco plurais no setor da saúde As medidas propostas passavam pelo cumprimento do previsto em lei como por exemplo a garantia de que não existisse sonega ção nas arrecadações cobranças etc Transformações mais profundas no financiamento da saúde levariam o setor empresarial de assistência de medicamentos e de tecnologia médica a perder espaço ou consideráveis cotas de poder Mesmo que o Presidente Itamar Franco tenha chamado figuras da esquerda política para ocupar cargos governamentais isso não redundou numa recomposição social e política ou seja não se tornou um processo de governo coordenado que expressasse um projeto nacional No segundo ponto como racionalizar os custos da assistência embora se considere esta uma questão técnica não houve uma definição mais clara de qual seria a imagemobjetivo do modelo assistencial fora o de tornálo mais eficiente e de como se poderia alterálo Para erradicar o desperdício apon cap6pmd 872011 1037 193 194 touse a necessidade de reverter a lógica da prática gerencial vigente responsa bilizando as instâncias pelo controle dos recursos do sistema Em termos operacionais e atribuições concluiuse que à esfera federal corresponderia formular a política nacional de saúde o desenvolvimento científico e tecnológico o desenvolvimento de recursos humanos a regulação do SUS e da atividade privada à esfera estadual a formulação da política estadual a coordenação e o planejamento da rede a supervisão e a cooperação técnica e financeira aos municípios e supletivamente a execução de alguns serviços à esfera municipal a formulação da política de âmbito local o planejamen to e controle das ações e serviços de saúde dirigidas ao indivíduo ao cole tivo ou ao ambiente incluindo os processos de produção e de consumo dos produtos de interesse para a saúde Ainda em termos operacionais propôsse a criação de um Grupo Especial para a Descentralização no Ministério da Saúde que elaborasse diretrizes volta das para a viabilização do processo em todas as suas áreas A redefinição da esfera federal conseqüentemente levou à revisão da organização administrativa do Ministério para a qual se propôs a criação de grupostarefa de profissionais lotados em seus diversos órgãos funcionando como equipes perenes na condução do plano técnicoadministrativo do pro cesso de descentralização e das transformações indispensáveis ao desempe nho do novo papel Propôsse ainda que esses grupos se constituíssem nas seguintes áreas financiamento desenvolvimento científico e tecnológico recursos humanos pla nejamento e orçamento vigilância epidemiológica qualidade de assistência à saúde qualidade de processos e produtos qualidade do ambiente incentivo à participação e controle social O documento foi aprovado pelas entidades da sociedade pelo Movimen to Social em Saúde e pelos municípios através do Conasems que ressalvas em relação a algumas questões tais como a ênfase quase exclusiva na assistência médica o uso da municipalização como sinônimo de descentralização a falta de uma nítida definição do papel das secretarias estaduais cap6pmd 872011 1037 194 195 a necessidade de alianças com segmentos do governo e do Legislativo para concretização das propostas a necessidade de se especificar melhor a relação com os municípios A Confederação Nacional da Indústria CNI a Associação Brasileira de Fármacos Abifarma o Sindicato de Fármacos Sindifarma e outras entida des empresariais opuseramse ao documento criticando e principalmente suge rindo que não se estruturasse uma municipalização pura e simplesmente mas sim uma regionalização ordenada e preestabelecida em função dos fluxos natu rais dos usuários existentes na época Também propuseram que os orçamentos da União dos estados e municí pios fossem definidos de acordo com os valores alocados por pessoa em um ano para o financiamento do serviços Entre outras questões similares foi pro posto ainda que a rede de alta complexidade fosse definida antes de ser ampli ado o processo de municipalização De modo geral os pronunciamentos des sas entidades visavam especialmente preservar o setor hospitalar privado Outra medida ligada à decisão de completar a municipalização foi o envio ao Congresso de um projeto de lei extinguindo o Inamps que foi aprovado através da Lei no 8685 em 29793 pelo Senado Federal Sua criação ocorrera em 1977 pela Lei no 6439 Tinha a seu cargo a assistência médica prestada por todos os órgãos previdenciários a centralização e o posterior repasse e controle dos recursos para os serviços de saúde da Previdência e do setor privado conveniado Representava assim um instrumento remanescente e tardio da política de saúde concebida no período autoritário e portanto distante dos princípios do SUS No início de 1990 um dos últimos atos do Governo Sarney foi a assinatu ra de decreto transferindo o Inamps para o Ministério da Saúde Mas sua estru tura organização e competências somente foram definidas em 1991 As funções que o Ministério de Saúde atribuíra ao Inamps tinham sido o controle avaliação e auditoria da rede assistencial a cooperação técnica com estados municípios e Distrito Federal além do repasse e do controle de recur sos financeiros para a assistência médica Em suma o Ministério da Saúde não efetivara alterações substantivas dentro do Inamps mantendoo como um ór gão superdimensionado e de caráter centralizador da política de saúde tal como desde a sua criação Enquanto isso a Lei Orgânica da Saúde regulamentada em 1990 previa o repasse automático e o controle dos recursos financeiros pelo Fundo Nacional cap6pmd 872011 1037 195 196 de Saúde em franca oposição à manutenção das funções do Inamps as quais foram reforçadas com a transferência para o Ministério da Saúde Um dos problemas históricos do Inamps tem sido o uso indevido dos recursos Desde a sua criação a corrupção foi facilitada através da nomeação de cargos de confiança nas direções regionais e nos hospitais pelo superfaturamento de compras e licitações de material e instrumental hospitalar e ainda pelo finan ciamento dos serviços de saúde este ao se sustentar sobre uma forma de pagamento por ato de intervenção médica acabou por favorecer o excesso de intervenções assim como pelo superfaturamento por ações não realizadas Para se ter idéia do superdimensionamento do Inamps no momento de sua extinção quando o processo de municipalização já havia avançado o órgão ainda geria 6500 hospitais contratados 40000 credenciados 9 hospitais pró prios 3 maternidades e 7 postos de atendimento ambulatorial Dele dependiam 96913 servidores distribuídos em coordenadorias regionais hospitais e postos de saúde próprios ou cedidos à rede pública conveniada ao SUS além do que apresentava 65104 aposentados incluídos na folha de pagamento52 O Decreto no 808 de 24493 estabeleceu a estrutura provisória até ser aprovada a sua extinção pelo Congresso Aboliu 550 cargos de confiança do órgão delegou amplos poderes ao Ministério da Saúde para sua descentralização e adequação ao SUS e ainda lhe atribuiu funções de apoio técnicoadministrati vo com relação a esse Ministério na descentralização das ações de saúde e na administração dos recursos orçamentáriofinanceiros patrimoniais e humanos alocados ao SUS A extinção do Inamps foi alvo de manifestações que expressavam posicionamentos diversos salientando uma desorientação muito grande com relação à medida governamental Os representantes políticos dos partidos con servadores de hospitais privados e os coordenadores estaduais do órgão não estavam de modo geral de acordo com a medida As forças políticas que participaram da luta pela Reforma Sanitária não chegaram a uma posição consensual nem a acordos em relação à sua implementação Parte das fileiras próreforma apoiaram a determinação adota da pelo Ministro propondo que o processo de descentralização deveria aprofundar a transferência de poderes para o nível local situação favorecida mas não necessariamente garantida pela extinção do Inamps alegando que não se podia confundir descentralização com municipalização 52 Conjuntura em Saúde NupesDapsEnspFiocruz abril de 1993 cap6pmd 872011 1037 196 197 Houve também nas fileiras próreforma a suspeita de que se tratava de mais um engodo da política neoliberal encaminhada pelo governo para ocultar a insuficiência dos gastos públicos destinados à saúde e ao enxugamento da máquina estatal apenas transferindo a corrupção e o clientelismo para outras instituições do Estado53 A ausência de acordos em torno da extinção do Inamps atualizou as dife renças internas existentes no Movimento Social em Saúde Neste cada facção vislumbrava o processo sob a ótica de interesses específicos que ali se dirimiam sem fixar acordos políticotécnicos sobre questões que reforçassem a unidade do movimento de maneira a enfrentar a oposição à Reforma 53 Gastão Wagner no artigo Sai Inamps entra publicado no periódico Proposta Jornal da Reforma Sanitária em abril de 1993 cap6pmd 872011 1037 197 199 7 A Descentralização do Sistema de Saúde A descentralização do sistema de saúde em estados e municípios foi o eixo central da implementação da Reforma Sanitária Esta passou a ter uma base local municipal de considerável importância já que com a regulamenta ção do SUS na Constituição e as Leis Orgânicas ocorreram transferências dos serviços de saúde para estados e municípios embora o processo perma necesse incompleto Isso porque de um lado em virtude dos empecilhos que o Inamps e o governo central impuseram ao processo a transferência de recursos tornouse difícil e demorada sobretudo no que diz respeito ao financiamento que conti nuou definido no nível central tanto em seu montante quanto em seu repasse De outro a continuidade e o aprofundamento do processo de municipalização em grande medida ficou ao arbítrio político de governadores e prefeitos ao que se somou a própria heterogeneidade econômica populacional e de infra estrutura dos serviços de saúde dos municípios brasileiros Uma grande quantidade e diversidade de trabalhos relacionados à descentralização foram desenvolvidos no Brasil nos últimos anos O processo de democratização do País tem atualizado uma discussão que em si mesma não é recente A ambigüidade do termo Jacobi 1989 e as diferentes conotações atribuídas à descentralização adquirem um interesse específico no processo de democratização Teixeira 1989 Campos 1990 que o País atravessa Descentralização desconcentração de funções eou deslocamento de po der formam os diversos aspectos do processo de descentralização política fri sados pelos autores Havendo leituras tão diversas sobre a descentralização polarizar o debate em termos ideológicos induziria a uma simplificação da temática Jacobi 1989 Muller 1992 sendo mais proveitoso situar a tensão cap7pmd 872011 1039 199 200 centralizaçãodescentralização nos diversos grupos sociais e nas concepções políticas envolvidas na implementação da política de saúde além de considerar marco de referência desse tipo de análise a concepção de descentralização que associa essa noção à democratização do Estado Interessa aqui examinar o atual estágio do processo de municipalização tentando sublinhar as diferenças entre algumas experiências municipais discuti das mais adiante e os motivos que explicariam o motivo pelo qual umas foram mais bemsucedidas que outras54 Antes da abordagem dos municípios escolhidos nos deteremos nas restri ções e condicionamentos colocados em nível central e estadual pela implementação da política de saúde Uma das primeiras questões a relação entre Reforma e Democracia foi discutida teoricamente no primeiro capítulo deste livro Embora acreditando na compatibilidade entre ambas ou seja que a democracia comporta qual quer reforma a efetivação desse princípio teórico requer mudanças institucionais nos aparelhos de Estado a própria Reforma do Estado Den tre elas viabilizar a descentralização da política de saúde de maneira a alterar a distribuição de poder político entre federação estados e municípios com o intuito de alcançar uma redistribuição mais eqüitativa do cuidado à saúde da população no contexto municipal O que a implementação da política de saúde evidenciou de forma precisa foi a íntima relação entre saúde e política tendo em vista que prover melhores condições de saúde às populações necessitadas é questão que não pode ser resolvida sem que o Estado priorize inovações nas políticas sociais em geral de maneira a enfrentar por meio destas os problemas da miséria e da morbidade O setor da saúde pelo grau de desenvolvimento do projeto da Reforma Sanitária e das forças sociais em prol da mesma constitui o ponto de fratura ou de condensação das contradições do sistema político Ou seja considerando o estágio em que se encontra a implementação da Reforma Sanitária e por esta envolver a participação social em sua efetivação configuramse pontos de fra tura enfrentamentos e contradições entre essas áreas de política e o próprio sistema político quando se exige deste maior transparência e accountability nos procedimentos 54 Dois eixos analíticos vão requerer a nossa atenção a própria gestão governamental da política de âmbito local no contexto do estabelecimento da democracia e a incidência da atuação dos mo mentos sociais nas experiências de municipalização escolhidas através dos Conselhos de Saúde cap7pmd 872011 1039 200 201 Tornamse assim flagrantes que os impedimentos na implementação da Reforma Sanitária não podem ser desvinculados da modalidade de exercício da política do governo federal a qual não somente compromete a consolida ção da democracia mas também revela a inadequação do Estado ao processo de descentralização em curso O diagnóstico do esgotamento do Estado e do pacto de dominação em que este se sustentou assim como o estabelecimento de um novo pacto com a conseqüente reestruturação do Estado mereceram tratamento excelente no tra balho apresentado por Fiori 1992 na IX Conferência Nacional de Saúde55 Ainda que uma profunda reforma do Estado devesse passar necessaria mente pela constituição de um novo pacto caberia às forças reformistas no setor saúde um relevante papel nesse processo proporcionando maior adequa ção ao processo de implantação da Reforma e de negociações políticas com aquelas forças do setor saúde não comprometidas com a Reforma tais como as associações que representam o setor privado da saúde É preciso ressaltar neste momento um ponto de crucial significação Ape sar do enorme poder convocatório e de mobilização social do Movimento Sanitário e do Movimento Social em Saúde evidenciado na IX Conferência não houve liderança política com projeção nacional nas forças reformistas nem autoridade política que a habilitasse a negociar Não houve um plano nacional de saúde cuja operacionalização e implementação exigisse a reforma do pró prio Estado nem uma explicitação das mudanças consideradas prioritárias no âmbito do Estado para a implementação da Reforma Sanitária Fazse necessário ainda assinalar o papel que atribuímos ao Estado e em que direção deveria ser exercido Não temos dúvida a respeito do papel central que o Estado deve manter com relação ao mercado e ao setor privado na sua interven ção como promotor do desenvolvimento econômico e de justiça social 55 Em síntese decomporse durante os anos 70 o pacto desenvolvimentista desfezse sua articula ção econômica e sua aliança política perdendo ademais sua aparente autonomia a coalizão tecnoburocráticomilitar responsável pela gestão do governo e da economia durante os vinte anos de autoritarismo desenvolvimentista Este quadro se mantém durante os anos 80 sem que se afirme nenhuma nova hegemonia coalizão ou estratégia E este para nós é o núcleo da crise orgânica vivida pelo Estado brasileiro As transformações que se impõem são radicais e apontam para uma mudança qualitativa do papel do Estado assentada num pacto nacional que incorpore a população até hoje excluída permitirá reformar o aparelho do Estado e dotálo da flexibilidade instrumental capaz de viabilizar um Estado ágil interna e externamente cujas intervenções sejam definidas por uma estratégia que solidarize os setores empresariais hegemônicos com as burocracias estatais e estes em conjunto com os ideais de dignidade e cidadania popular comple tamente ausentes até agora da vida política brasileira Só um estado forte poderá cumprir estes objetivos Fiori 1992 cap7pmd 872011 1039 201 202 Essas funções dãolhe novas atribuições e exigências de modo que a de mocracia venha a se confundir cada vez mais com a eqüidade social e as mu danças implementadas se tornem objeto de reflexão discussão e contínua ava liação dos resultados e da efetividade conseguida através das mudanças implementadas tais como o desmonte e o redimensionamento dos nichos de ineficiência da máquina estatal e a criação de centros nervosos de decisão da política em que te nham assento e representação os diversos interesses sociais em jogo na sociedade diante de políticas específicas a incorporação de uma burocracia concursada de alto nível técnico e bem remunerada a demissão do excesso de funcionários mal remunerados e sem formação adequada e a negociação com o setor privado eou a cria ção de empregos para a alocação desses funcionários dentro de um prazo razoável por último a aproximação por parte do Estado das experiências locais de gestão fundamentalmente nas áreas de política social estendendo o processo de descentralização do setor saúde às áreas de política social restantes Neste sentido quando mencionamos Reforma do Estado não estamos nos referindo a uma reforma exclusivamente administrativa o que seria impra ticável Nenhuma reforma administrativa per se garantiria o encaminhamento da Reforma Sanitária tal como consagrada na Constituição Sua implementação requereria também uma recomposição das alianças políticas e de relações de forças entre interesses e grupos as burocracias e os médicos empregados no setor públicoprivado os representantes do setor pri vado profissionais de saúde movimentos sociais usuários sindicatos etc Trata se portanto de questão a ser pensada pelas forças reformistas Se nos detivermos agora nas restrições que em nível central se colocaram para a operacionalização do SUS a primeira a se destacar é o orçamento nacional destinado à saúde Escassos 3 do PIB inviabilizam totalmente um sistema universal e público de saúde o SUS enquanto os dados sobre gastos destinados à saúde nos países desenvolvidos registravam em torno de 10 do PIB Desse modo não poderia ser aceita uma depreciação do orçamento da saúde dessa magnitude pois o patamar de 10 do PIB é exigência para a cap7pmd 872011 1039 202 203 implementação da política Não existe margem de discussão a esse respeito já que se trata de exigência inelutável para a implementação da política Posta essa questão como de caráter inegociável entre as forças reformistas e o governo obrigase este a redefinir uma política orçamentária nacional o que aciona um mecanismo em múltiplas direções por ser o orçamento da saúde vinculado à definição da política econômica nacional Conseqüentemente decisões desse tipo envolvem a orientação da produ ção nacional as prioridades de investimento as dívidas externa e interna as políticas fiscal e bancária a própria estrutura do Estado e todos aqueles fatores que definem um projeto nacional de desenvolvimento conceitualmente susten tado na redistribuição de renda e na transferência de poderes para os níveis locais do exercício da política Já no plano mais específico dos recursos financeiros destinados ao setor ainda se faz necessário abolir o repasse dos recursos para estados e municípios na forma de pagamento pela produção de serviços Unidade de Cobertura AmbulatorialUCA e Autorização de Internação HospitalarAIH Esse talvez seja o ponto no qual vão assentarse a reprodução do sistema de saúde e a produção de serviços de saúde Ao se levar em conta que o sistema de saúde deve ser sustentado num modelo de produção de serviços médicos e que a produção de qualquer bem na sociedade capitalista é regido pelas leis do mercado ou seja que aquele que dele quiser usufruir terá de pagar por isso fica evidente que cada ato de inter venção médica terá seu correspondente pagamento seja no consultório particu lar ou no serviço público Assim quanto maior o número de intervenções médicas maior a quanti dade de ordens de pagamento ainda que o paciente não pague de seu próprio bolso ou seja que o Estado é quem cumpra essa função Enquanto o sistema de saúde estiver condicionado à produção de servi ços a saúde continuará a ser compreendida não como direito de cidadania mas como bem a ser possuído e portanto condicionado à aquisição privada ou pública Essa é a lógica que se estende da relação médicopaciente ao sistema de saúde decomposto nos seus fundamentos Por essa ótica assim como a saúde não é um direito do cidadão e um dever do Estado ainda que contemplada pela Constituição a atribuição dos recursos para o setor não consegue se desprender do modelo liberal de aten ção à saúde Campos 1992 Na questão do financiamento e na modalidade cap7pmd 872011 1039 203 204 do repasse dos recursos reside um dos pontoschaves para a mudança do sistema de saúde56 Embora a definição dos critérios a serem aplicados para o repasse de recursos tenha dependido da regulamentação do Artigo 35 da Lei no 8080 até os dias atuais o documento elaborado pelo Conasems para a IX Conferência reafirmou o estipulado pelo Artigo 3 da Lei no 8142 Este estabeleceu que deveria ser respeitado o critério populacional até a regulamentação da Lei no 8080 e agregou a manutenção da rede hospitalar e ambulatorial além dos investimentos das ações de saúde coletiva e os novos serviços executados dire tamente pelos municípios mas sem incorporar o critério epidemiológico o perfil demográfico da população e a capacidade instalada O montante dos recursos a serem repassados a cada um dos estados e municípios deveria ser portanto uma resultante de análise e reflexão por parte das autoridades nacionais e do Conselho Nacional de Saúde e ser incorporada na elaboração de um Plano Nacional de Saúde Outra questão diz respeito às atribuições correspondentes a cada uma das instâncias de governo implicadas no processo de descentralização Se bem que essa remeta a uma discussão conceitual relacionada à própria noção de descentralização a perspectiva que nos interessa aqui destacar relacionase à pre sença ou à omissão dos órgãos centrais na política assim como aos incentivos utilizados pelos órgãos federais para estimular a autonomia políticoadministra tiva das instâncias descentralizadas no processo em curso Em nível federal o que se observou até recentemente foi o esvaziamento da política que se manifestou na ausência do papel regulador do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde no processo de municipalização As sim a falta de um Plano Nacional de Saúde que contivesse as diretrizes básicas que guiariam a implementação do SUS levou a uma descentralização adminis trativa do sistema de saúde em que faltaram incentivos para uma efetiva auto nomia política e administrativa dos municípios Essa omissão por parte do Estado em relação a seu papel regulador central também facilitou medidas de caráter casuístico resultantes das negoci ações políticas entre os tradicionais parceiros da saúde políticos clientelistas setor privado 56 Campos 1992 afirma a partir de uma perspectiva muito próxima a essa que não se pode pensar em mudanças enquanto se mantiver um modelo liberal de atenção à saúde Considera contudo que os médicos constituem um dos principais fatores que têm impedido a efetiva transformação do modelo de assistência médicosanitária brasileiro questão à qual retornaremos cap7pmd 872011 1039 204 205 Se nos reportarmos ao ano de 1992 dois fatos ilustram adequadamente a afirmação anterior a ausência de uma política orçamentária nacional e de saúde levou o Ministro da Previdência a resolver repentinamente não repas sar mais recursos para estados e municípios logo após a decretação do estado de falência do seu ministério Simultaneamente a inexistência de um Plano Nacional de Saúde possibilitou ao Ministro da Saúde fazer uso sem consulta do Fundo de Amparo ao Trabalhador FAT para pagar aos prestadores vinculados ao setor privado As relações dinâmicas de poder entre atores envolvidos consolidadas diferenciadamente na história das instituições de saúde voltam a inclinar a balança da maneira habitual Estados e municípios ficaram prejudicados pela disponibilização e utilização dos recursos financeiros definidos exclusivamen te pelo governo federal Previdência e Saúde situação favorecida pela ausên cia de diretrizes orçamentárias contidas num plano nacional de saúde de ex tensão nacional As restrições da política em nível estadual em razão da ausência de instru mento político dos estados no processo reformador atualizaram e agravaram os problemas do nível central Mendes 1992 suscita alguns pontos que pare cem de importância no nível estadual de descentralização Em primeiro lugar a retirada das secretarias estaduais da operação da rede de serviços de saúde obrigaria a uma reorientação políticoadministrativa que as readequasse às novas funções e atividades necessárias ao processo de descentralização Neste contexto o papel das secretarias passaria a ser de caráter políticoestratégico na condução das políticas de saúde e na definição das dire trizes municipais As secretarias estaduais deveriam de acordo com as atribuições a elas conferidas pela Constituição ter a seu encargo as relações com o setor priva do através de instrumentos de direito público Deveriam também assumir a execução direta de serviços que pelo nível de cumplicidade não poderiam ser assumidos pelos municípios e de programas de insumos críticos para o conjunto do Estado O controle epidemiológico e sanitário deveria ser realizado também pelos estados assim como o exercício de funções normativas e de avaliação e o controle das ações descentralizadas não mais em termos contábeis e financeiros ou em atos médicos finais mas sobre bases epidemiológicas e sanitárias o que colaboraria para mudar o modelo de atenção à saúde Por fim caberia da cap7pmd 872011 1039 205 206 mesma forma aos estados desempenhar um papel redistributivo de recursos em relação aos municípios como parte do processo de avaliação A efetivação dessas políticas exigiria a nãointerferência do nível central e a definição da autonomia administrativa que fizesse das secretarias estaduais gestores efetivos e únicos do SUS nos estados A descentralização real das decisões políticas não é factível sem a autonomia dos níveis inferiores aos quais corresponde decidir e implementar a política e ampliar a participação dos atores sociais envolvidos na mesma Ao pensarmos o processo de descentralização nessa direção não nos propomos afirmar que ne cessariamente a descentralização implique uma democratização da política O que se quer destacar é que ainda que a descentralização não garantisse per se a ampliação da participação dos cidadãos na tomada de decisões por haver uma efetivação políticoadministrativa do processo de descentralização contemplado pelo SUS esta favoreceria indiscutivelmente a democratização da política de saúde na medida em que criaria condições para viabilizar ins tâncias locais de participação geradas pela própria população eou suas enti dades representativas Tornamse sumamente complexas a análise e a avaliação do processo de municipalização se considerarmos que no total 4973 municípios extremamen te heterogêneos conformam o território nacional Assim foi necessário um recorte que viabilizasse o tratamento da questão de maneira a facultar parâmetros iniciais de avaliação a respeito da implementação da política de saúde em nível municipal Trataremos a seguir de um restrito estudo de casos sobre o atual estágio da política de saúde em alguns municípios brasileiros visando estabelecer certas com parações entre eles conducentes a aproximações que ainda que não possam ser consideradas conclusivas ou significativas em termos do conjunto dos municípios evidenciam indícios que contribuem para um enfoque metodológico disponível em futuras análises da implementação da política nos municípios brasileiros A primeira classificação estabelecida pelos estudos sobre municipalização baseiase no tamanho da população diferenciando municípios de grande porte médios e pequenos Não há consenso na bibliografia especializada nem entre os pesquisadores especialistas no tema nacionais e internacionais a respeito de uma classificação única do tamanho dos municípios O Instituto Brasileiro de Administração Municipal Ibam tem por crité rio considerar como pequenos municípios os que têm até 10 mil habitantes cap7pmd 872011 1039 206 207 médios entre 10 mil e 50 mil habitantes e grandes os que contam mais de 50 mil habitantes Sendo esse critério não prescritivo vale o que for definido pelo pesquisador Tentando compatibilizar o número de habitantes e o fator desenvolvimento vamos considerar que nos municípios de grande porte se agrupam as cidades capitais dos estados e outras grandes cidades do País que normalmente coincidem com os municípios de maior importância e desenvolvimento econômicosocial regional Os municípios de porte médio correspondem a níveis intermediários de população atividades produtivas e desenvolvimento Os de pequeno porte são municípios agrícolas de escasso ou nenhum desenvolvimento De qualquer forma persistem ainda grandes diferenças internas nesses agru pamentos difíceis de serem classificadas e reagrupadas e que se relacionam com a história do município o tipo de população as migrações o tipo de atividade produtiva ingressos educação tradição cultural etc Partindo desses critérios de classificação escolhemos de maneira aleatória para a análise alguns dos municípios com registrosinformações das experiên cias de municipalização implementadas sobre os quais existe consenso nas pu blicações especializadas57 sobre os avanços conquistados no que diz respeito ao processo de descentralização Dentre os grandes municípios serão analisados São Paulo SP e Rio de Janeiro RJ Dos municípios de médio porte discutiremos Santos SP e Manaus AM e finalmente entre os pequenos escolhemos Manhuaçu MG e Icapuí CE São experiências as mais diversas quanto às variáveis selecionadas mas procuramos agrupar os valores encontrados de maneira tal que nos forneçam base comparativa para a análise Em relação aos municípios escolhidos poderíamos afirmar de um lado que apresentam a mesma heterogeneidade que caracteriza os municípios bra sileiros De outro que nosso interesse focalizou os municípios onde houve certo avanço na política de municipalização segundo o critério adotado De modo geral podemos assegurar que quanto maior o município maior a complexidade das questões envolvidas e conseqüentemente as dificuldades na implementação da política 57 Entre tais publicações podemos destacar Saúde em Debate periódico do Cebes Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Proposta Jornal da Reforma Sanitária do RadisFiocruz Reunião Análise e Difusão de Informação sobre Saúde Edição Médica órgão oficial da SMCRJ Sociedade de Medici na e Cirurgia do Rio de Janeiro Cadernos de Saúde Pública da EnspFiocruz Escola Nacional de Saúde Pública cap7pmd 872011 1039 207 208 Se nessa divisão interna entre municípios há variações no ritmo na pro fundidade e nos resultados existe todavia certo consenso a respeito da im portância da orientação políticopartidária das prefeituras no andamento da política nos trabalhos que tematizaram o processo de municipalização da política de saúde no Brasil Uma outra questão considerada como positiva é a existência dos Conselhos de Saúde e o grau de mobilização da sociedade em torno da proposta De fato seriam essas as condições prioritárias para o desenvolvimento do processo de municipalização No entanto permanecem as diferenças em relação aos pontos mencionados quando observamos a nãoexistência de certos requisitos de natureza política mas que exigem procedimentos técni cos dentre os quais destacamos o incremento de recursos orçamentários no setor saúde o diagnóstico do quadro sanitário da população do município e o plano de saúde correspondente à abordagem da implementação da política com particular ênfase no enfrentamento dos problemas de saúde detectados Constituirão pontos a elucidar os resultados alcançados na operacionalização da rede de serviços e de atendimento dos usuários e em que medida as refor mas administrativas empreendidas pelos municípios no setor saúde possibilita ram maior participação dos usuários no sistema de saúde municipal A avaliação dessas questões requereria dois planos de análise em contígua interação e portanto um esforço redobrado para distinguir quais os elemen tos essenciais que conduziriam à compreensão do processo de municipalização da política de saúde Por um lado poderíamos lidar com indicadores eou resultados estatísticos que nos informassem a respeito da melhoria ou não na qualidade dos serviços e do atendimento à saúde ou seja o seu impacto sobre a população vertente de análise que não vamos considerar aqui Por outro lado veremos o processo de municipalização como um processo polí tico que envolve a própria democratização não só da saúde mas do Estado e da sociedade Na realidade o desenho políticoinstitucional construído na última década e meia da história da política de saúde que se convencionou chamar de Refor ma Sanitária teve por princípio orientador a ampliação da participação social e a constituição da cidadania na construção da democracia Em que medida a municipalização da política de saúde na implementação do SUS viabilizou ou não tais princípios constituirá o eixo da discussão dos casos cap7pmd 872011 1039 208 209 Município de São Paulo O município de São Paulo é o maior do País com aproximadamente oito milhões de habitantes No período que se estende de 1989 a 1992 a Prefeitura esteve a cargo do Partido dos Trabalhadores PT tendo promovi do uma ampla reforma administrativa na Secretaria de Saúde com a finalida de de implementar o SUS58 Foram então criadas dez Administrações Regionais de Saúde ARS subdividi das em 44 distritos dos quais 32 estavam em funcionamento Por sua vez nas ARS e Distritos Sanitários DS criaramse Conselhos TécnicoAdministrativos compos tos por integrantes de todos os níveis incluídas as próprias unidades de saúde As ARS contavam com Direções Regionais que funcionavam como Secre tarias de Saúde Regionais Os DS concentravam a atividade de planejamento coordenando e gerenciando os programas e as unidades sob sua jurisdição Os Conselhos de Saúde foram estabelecidos no nível municipal regional distrital e nas Comissões de Gestão dos Serviços Nos Conselhos de Saúde a representação dos usuários correspondeu a 50 do total de membros A re presentação paritária dos usuários em relação aos trabalhadores de saúde e administradores do sistema foi estipulada na I Conferência Municipal de Saúde realizada em 1990 Essas reformas recompuseram a estrutura administrativa da Secretaria Municipal em quatro níveis central regional distrital e local O que se constata a partir dessas informações é que no município de São Paulo houve uma efeti va descentralização administrativa do setor saúde junto a um processo de am pliação da participação popular na gestão municipal É necessário destacar que os grandes municípios dentre eles São Paulo tinham uma rede de serviços muito extensa correspondente ao estado e às vezes à federação Sua municipalização em geral não se operou completamente e mesmo quando aconteceu não foi acompanhada do repasse dos recursos do estado eou da federação para o município A Prefeitura de São Paulo destinou 13 do orçamento municipal para a saúde porém não conseguiu integrar ao sistema as unidades de emergência que pela legislação corresponderiam ao município nem as unidades do estado 58 Os dados discutidos em relação ao município de São Paulo foram obtidos do trabalho Participa ção popular e gestão de serviços de saúde um olhar sobre a experiência de São Paulo realizado por Amelia Cohn Paulo Elias e Pedro Jacobi e do periódico Conjuntura em Saúde jul a out nov 1992 e mar abr maio e jun1993 cap7pmd 872011 1039 209 210 Segundo levantamento feito pelo Sindicato dos Trabalhadores na Área de Saúde em 17 hospitais da Grande São Paulo existiam 2557 leitos desativados e havia também um déficit de 50 de médicos 73 de enfermeiros e 41 de pessoal de enfermagem Ainda em relação à rede estadual agregouse à falta de recursos o esquema político do governador do estado que obedeceu aos moldes tradicionais clientelistas do PMDB pelo qual as direções dos hospitais eram submetidas a interesses políticopartidários segundo negociações e arranjos convenientes à condução do partido do governo estadual Neste sentido e para exemplificar a afirmação anterior constatamos que o Hospital de Heliópolis construído pela Previdência Social estadualizado em 1988 e um dos maiores do estado possuía 440 leitos e era considerado de referência em cirurgia reduziu o número de atendimentos nos últimos meses por falta de material e de pessoal Esse fato foi significativamente registrado após a mudança da direção do hospital59 feita pela Secretaria Estadual para atender a interesses de vereador do PMDB Na verdade tratase de regra e não exceção nos estados brasileiros De qualquer modo em relação ao município há indicadores de melhoria na gestão da rede própria os recursos humanos da saúde aumentaram em 74 nos quatro anos de gestão do PT o número de leitos dobrou e incrementouse a operação dos mesmos alcançando taxas de ocupação de 86 e reduzindo a mortalidade hospitalar de 74 para 50 em 1992 Os salários dos profissio nais de saúde tiveram reajustes constantes o que significou importantes mudan ças na qualidade de atendimento e na dedicação dos médicos à função Em pesquisa realizada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea Cedec por Cohn Elias Jacobi 1993 foram ressaltados a partir de entre vistas realizadas com administradores do sistema e com usuários os pontos de estrangulamento após os primeiros dois anos da implementação do SUS Os resultados da investigação são os seguintes os diretores de região e de distrito apontaram para a falta de uma compre ensão mais clara sobre o papel dos Conselhos de Saúde e de como concre tizar a proposta de participação popular indicaram a necessidade de definir prioridades na programação das ativida des das unidades 59 Folha de S Paulo 170692 cap7pmd 872011 1039 210 211 declararam as dificuldades na gestão dos recursos humanos devido às resis tências para modificar a prática tradicional junto aos recursos corporativos utilizados pelos funcionários para se proteger das mudanças explicitaram que em algumas regiões também ocorreram dificuldades para implementar os Conselhos de Saúde em conseqüência das tensões entre funcionários e população Um aspecto que enfatizaram como dos mais complexos foi a expectativa interna de alguns movimentos face à sua institucionalização pela experiência da participação na gestão pública Essa questão foi analisada no capítulo relaciona do aos movimentos sociais em saúde mas a retomaremos mais adiante já que não deixa de ser um paradoxo que precisamente em uma administração pro gressista e de caráter popular não tenham sido aliviadas as dificuldades para lidar com usuários e com movimentos populares em saúde permanecendo o dilema da institucionalização do movimento como um impedimento de uma inserção mais incisiva desses movimentos na política Os investigadores concluíram a partir das entrevistas com os representan tes dos usuários que as direções das unidades encontraram com quem dialogar na formação dos Conselhos onde havia um movimento popular organizado Porém onde este não existia as dificuldades ampliaramse devido à falta de uma política clara de representação bem como de uma agenda para a sua formação Havia pouca institucionalização da experiência e a relação dos repre sentantes com os representados ocorria de maneira informal o boca a boca a vizinhança etc O funcionamento regular dos Conselhos se ressentiu também da falta de definições mais nítidas sendo a boa vontade ou não dos diretores em explicar as coisas com clareza um dos critérios mais utilizados para o julgamento que os usuários fizeram sobre o papel da direção Algumas observações merecem ser destacadas dentre as quais considera mos que se deve dar especial atenção à relação entre a necessidade de um co nhecimento técnicopolítico mais apurado do setor saúde e os problemas deri vados da falta de experiência política na gestão de governo por parte do PT numa prefeitura que é das mais complexas do País Outro ponto a enfatizar referese ao próprio exercício da democracia quando se trata de atores políticos os partidos e de atores sociais usuários e movimentos sociais que nunca vivenciaram uma experiência democrática de gestão política Portanto não há um conhecimento político acumulado nem cap7pmd 872011 1039 211 212 clareza quanto à implantação de inovações políticas que aproximem os serviços de saúde aos usuários Exemplificam a nossa afirmação as observações sobre a falta de adequação entre a proposta e sua concretização a necessidade de definir prioridades a falta de entendimento dos trabalhadores de saúde e as diferenças entre usuários e administradores Questionamos sobre qual a melhor forma de gerir as unidades de saúde e até onde inovar quais os benefícios recebidos por se implantar formas de co gestão e nesse caso de que tipos e de que maneira as vantagens da maleabilidade na administração segundo o tipo de unidades de saúde as questões de saúde prioritárias e com que instrumentos abordálas por onde começar e como prosseguir como lidar com recursos escassos e com um governo estadual que responde aos velhos cânones partidários e que conseqüentemente dificulta ino vações democráticas Uma das questões que em nossa opinião é de extrema delicadeza e de singular importância diz respeito ao financiamento dos sistemas locais de saúde na medida em que a obtenção de recursos possa ser condicionada pelas auto ridades locais ao grau de mobilização da população Através de uma gestão democrática impõemse novas formas de atuação dos movimentos populares em relação à implementação da política mas também modalidades de gestão e conseqüentemente de aplicação de recursos que obedeçam a lógicas redistributivas não atreladas a formas clientelistas Esse perigo pode ser assim exemplificado Existe um forte consenso entre os que participam desses processos de que quanto mais sólida a organização e mais intensa a mobilização maior a eficiência dos serviços e mais prontamente um serviço vê suas reivindicações atendidas Ora como se trabalha em um quadro de grande precariedade e sobrecarga dos serviços de saúde do Municí pio de São Paulo apesar da expressiva participação da Secretaria de Saúde no orçamento municipal de 10 a 15 no período as várias regiões e em cada uma delas as unidades de saúde acabam por ter de competir entre si pelos recursos E isso acaba sendo uma realidade difícil de ser enfrentada sobretudo para os movimentos populares que entendem e pensam os interesses da população como sendo se melhantes e portanto comum a todos Cohn Elias Jacobi 1993 No exercício da democracia a participação popular adquire um significa do diverso daquele de mobilização popular Esta como única alternativa po lítica para a obtenção de demandas correspondeu a um estágio do exercício da cap7pmd 872011 1039 212 213 política ligado à formação desses movimentos sociais no regime autoritário Com uma gestão partidária que busca representar os interesses dos trabalhado res e das populações carentes tornase prioritária a formação de ossaturas institucionais inovadoras para o exercício das funções políticas na esfera de governo que contemplem a dinâmica das relações entre o próprio partido governista e os movimentos na sua relação com as instâncias governamentais Já não cabem as mobilizações na porta das prefeituras como única maneira de esses movimentos se expressarem politicamente Não que elas deixem de existir mas não poderiam vir a ser o modo principal de exercício da política na democracia De qualquer modo os resíduos de um momento político anterior e a modalidade tradicional de exercício da política são ainda mais fortes que a tendência às inovações políticas democráticas Um bom exemplo disso foi o manejo do PT sobre os recursos para as unidades de saúde citado antes onde os mesmos eram negociados com os movimentos populares em troca de mobilização estabelecendose a regra sobre a qual quanto maior a mobilização popular maior a quantidade de recursos O problema dos recursos um dos mais sérios na implementação do SUS por ser objeto de desvio político tema ao qual já nos referimos não poderia ou deveria continuar acontecendo ainda que sob outras formas com uma administração popular Os movimentos populares não podem ser arte e parte Na verdade tratase de um procedimento que descaracteriza a participa ção popular na medida em que a participação tornase pouco determinante na implementação da política No momento em que isso acontece o movimento popular passa a ser instrumento de negociação política entre facções do partido ou de autoridades e a mobilização popular tornase provedora de recursos Se efetivamente os Conselhos de Saúde fossem deliberativos em relação à política seriam instâncias que nos diferentes níveis da implementação da políti ca municipal regional distrital unidades teriam uma função redistributiva em relação aos recursos e para cujo desempenho os movimentos populares preci sariam se habilitar Mas por não ser assim cabe indagarmos sobre esse contra senso ou seja o movimento popular precisar negociar consigo próprio os re cursos a serem aplicados nas unidades O processo iniciado pela Prefeitura de São Paulo teve uma duração extre mamente curta somente quatro anos e os resultados alcançados não foram significativos em relação à melhoria da rede de serviços e às condições de saúde da população Os hospitais municipais os que pertenciam ao município antes cap7pmd 872011 1039 213 214 da municipalização foram mais bem reequipados e receberam maior número de leitos Houve também melhoria na gestão dos recursos humanos do siste ma o que redundou em melhoria da qualidade no atendimento médico e na diminuição das greves no setor Os programas implantados não tiveram um desenvolvimento notável nem se verificaram mudanças significativas nos indicadores de saúde da população nesses anos Sob a perspectiva política em geral o processo am pliou a participação dos usuários e dos movimentos populares na implementação do SUS e trouxe à tona principalmente as dificuldades in trínsecas à democratização como as diferenças presentes de organização cultura linguagens entre os diversos atores envolvidos a pluralidade de interesses e a carência de procedimentos institucionais que facilitassem a tomada de decisões A política deixou de ser arbitrada externamente para passar a ser uma condição a ser desenvolvida pelos próprios atores entre si e na relação com os outros Neste sentido há um processo de mudança social e subjetiva no sentido do sujeito que não tem unicidade nem previsibilidade mas que pro move rearranjos nos comportamentos políticos dos diversos atores A experiência de participação popular nos Conselhos de Saúde tem sido para esses atores desencadeadora de transformações na concepção do que seja a gestão política e sua complexidade assim como na consciência da necessidade de possuir conhecimentos que os habilitem a desempenhála melhor Cohn Elias Jacobi 1993 Considerados assim os processos de democratização têm um valor em si mesmos ainda que resultados imediatos não possam ser alcançados em termos de nova ordenação social e política A gestão do PT na prefeitura acabou em fins de 1992 após as eleições municipais Como resultado destas produziuse uma mudança total de orienta ção já que o PMDB venceu as eleições tendo então assumido o governo do estado Paulo Maluf antigo político de moldes clientelistas conhecido pelas de núncias de corrupção no manejo da coisa pública durante o regime militar Os resultados dessa mudança política logo se tornaram visíveis tendo a situação da rede municipal voltado a se assemelhar à da estadual O Sindicato dos Médicos de São Paulo realizou uma pesquisa em março de 1993 cujos resultados indicaram que dos 21 mil leitos existentes nos hospi tais do estado 8610 encontravamse desativados o que correspondia a cerca cap7pmd 872011 1039 214 215 de 41 constatandose também um déficit considerável de médicos enfer meiros e pessoal de enfermagem Ficou constatado também que havia 500 leitos desativados cerca de 20 dentre os 2557 existentes na rede municipal ao passo que a rede básica só funcionava três vezes na semana por falta de equipamento e pessoal Os gran des complexos hospitalares Hospital das Clínicas e Mandaqui passaram a atender apenas a emergências Em outras unidades hospitalares houve reinci dência de greves de médicos e de funcionários e a própria Secretaria Municipal de Saúde manifestouse através da imprensa para afirmar que esses aconteci mentos eram resultado dos baixos salários e da conseqüente perda de médicos A política salarial de reajustes constantes da gestão anterior foi interrompida pelo novo prefeito logo após ter assumido o cargo Assim enquanto em 1990 o salário dos médicos alcançava o equivalente a US 1000 em abril de 1993 não chegava a US 340 No município enquanto 900 médicos pediram demissão naquele ano houve falta de quatro mil médicos no estado segundo dados do SinMed Ameaçando a sobrevivência do setor público da saúde a situação acen tuouse quando a greve completou um mês em toda a rede estadual Quando as crises no setor saúde chegam a esse extremo produzse uma reação em cadeia em todos os níveis do sistema Se a rede estadual deixa de funcionar não só os pacientes deixam de ser atendidos como também os hospitais ficam abandonados sem a manutenção necessária do instrumental e da aparelhagem o cuidado com as instalações e a limpeza Dessa forma os doentes antes atendidos pela rede estadual passam a fre qüentar a rede municipal sobrecarregando e impossibilitando também o atendimento nesta a qual também sobrevive com dificuldades sucateada de profissionais e de equipamentos As conseqüências quase evidentes são o desmonte dos serviços públicos justificado pelo enorme descrédito da população em relação aos mesmos e à propagação de um certo consenso a respeito da inviabilidade do setor público da saúde espaço que é rapida mente aproveitado pelo setor privado A continuada falência do setor público é sinônimo de mais mercado a ser ocupado Só que dessa vez esses atores em conjunto apresen tam uma proposta de um sistema nacional alternativo de saúde a conformação de um sistema que sozinho poderia congregar em tor no de 80 da capacidade instalada no país gerida fora do aparelho governamental para um sistema que oferece cobertura a 30 mi lhões de pessoas não seria difícil alcançar algo em torno do dobro cap7pmd 872011 1039 215 216 dessa população desde que ampliemse as alianças o que significaria próximo dos 50 da população brasileira O resto viveria de assis tencialismo mesmo Conjuntura em Saúde maio de 1993 A crítica situação do estado e do município não teve solução e o prefeito acabou por adotar uma medida caracteristicamente aleatória tendo então de mitido o Secretário Estadual e o Secretário Municipal quando foram constata dos pela Comissão de Direitos Humanos da OAB a precariedade no funcio namento de um dos maiores hospitais do estado e o tratamento desumano oferecido aos pacientes Assim os avanços atingidos pelo processo de municipalização foram pro fundamente abalados no município de São Paulo como resultado da regressividade das mudanças políticas inauguradas pela gestão de Paulo Maluf na prefeitura Município do Rio de Janeiro O Rio de Janeiro é o segundo maior município do País com uma população em torno de 5 milhões de habitantes e a maior rede hospitalar federal e estadual A extensão desta sem o conseqüente repasse de recursos para manutenção resul tou no descaso em relação às unidades hospitalares Em virtude disso em 1992 os Secretários de Saúde dos municípios ameaçaram devolver as unidades descen tralizadas ao Inamps e à Secretaria Estadual de Saúde SES visto que os municí pios não tinham condições de gerilas Essa informação veiculada pela imprensa não refletiu exatamente o que vinha acontecendo com a descentralização do siste ma de saúde uma vez que devolvida ou não de fato a rede estadual e a federal não chegaram a ser incorporadas ao Sistema Municipal de Saúde O SUS na verdade não foi implantado no Rio de Janeiro pois no espaço do município foi realizada apenas uma sobreposição das redes municipal esta dual e federal perfeitamente diferenciadas entre si As unidades embora repas sadas não receberam o financiamento para suprir as necessidades decorrentes e nem foi implantada uma política salarial para os trabalhadores de saúde Tanto no caso do governo federal como no do estadual não houve investimento direto para a manutenção da rede tendo a política estadual de saúde se caracte rizado pelo desinteresse das autoridades governamentais Cabe fazer uma referência à situação política particular que o estado do Rio vem atravessando desde 1990 que incidiu de maneira determinante na cap7pmd 872011 1039 216 217 implantação de qualquer processo de cunho reformador A crise generalizada do tecido social e a formação de um governo paralelo vinculado ao narcotráfico no espaço da cidade configuraram um novo tipo de situação de guerra das máfias com ramificações nos altos escalões do governo do estado Assembléia Legislativa Judiciário e Polícia Federal De um lado a imposição do terror às populações faveladas a corrupção e os homicídios dificultaram sobremaneira qualquer forma de organização e par ticipação política da população De outro não houve no espaço do estado enquanto poder público a capacidade de regular políticas Essa incapacidade no setor da saúde é expressada na nãointervenção ante situações em que hospitais foram invadidos por narcotraficantes em que os médicos sofreram ameaças para atender delinqüentes às quais se soma a corrupção no gerenciamento dos hospitais públicos e a já habitual falta de recursos para a implementação da Reforma Sanitária Embora não haja dados oficiais sobre o estado da rede das unidades esta duais detectamse informações através das denúncias que se sucederam dia após dia com relação à desativação de leitos à falta de instrumental e de medi camentos à precariedade das instalações assim como à inexistência de condi ções de atendimento por causa da ausência de médicos enfermeiros e pessoal auxiliar suficiente O Cremerj exerceu importante papel na denúncia e interdição das unida des que não contavam com as mínimas condições de operar O papel desem penhado por esse órgão será retomado mais adiante O que importa frisar agora é o caráter inovador ocupado por entidades da sociedade civil em pro cessos políticodecisórios o processo de descentralização democrática da política de saúde impondo uma interferência reguladora ao Estado em espa ços em que este detinha o monopólio da intervenção A reação do governador ao desempenho do Cremerj foi afirmar perante a imprensa que não permitiria mais a vistoria e a interdição de hospitais por parte do órgão A democratização da política da mesma forma que amplia a arena decisória ao incorporar múltiplos atores e interesses evidencia e desestabiliza os velhos mecanismos de clientelismo político e de corrupção dominantes na atuação dos políticos ou caudilhos de velho estilo De fato a atuação do Cremerj através das Comissões de Ética deixou em evidência a maneira pela qual a Secretaria Estadual de Saúde não operava o sistema A intervenção nos hospitais que se encontravam com sérios problemas cap7pmd 872011 1039 217 218 de funcionamento possibilitou a comprovação da malversação dos recursos públicos em um dos maiores hospitais do estado o Iaserj e também no Instituto Nacional do Câncer Inca no Instituto Ary Frauzino e em outros Por sua vez as irregularidades nos hospitais não eram um fato isolado já que correspondiam ao modelo de gestão pública do Secretário Estadual do Go verno Brizola Dentre as providências tomadas pelas entidades da sociedade é de se res saltar a ação popular impetrada na Justiça contra o Secretário Estadual de Saú de por iniciativa do Cremerj do SinMed e de deputados do PSB e do PT A apuração na Justiça sustentouse no superfaturamento das compras de material hospitalar depois de se comprovar com as notas dos fornecedores uma enor me disparidade de preços assim como a sangria de recursos utilizada para pagamento de apoio político favorecimento de empresários da área de saúde e em benefício próprio O conhecimento por parte das entidades da sociedade da existência de jurisprudência adequada e a utilização de procedimentos judiciais em cada caso comprovado de irregularidade na gestão pública ao mesmo tempo que colo cam uma ameaça virtual para o uso privado de bens públicos vão gestando uma cultura política democrática no âmago da sociedade Na medida em que se recorre à via jurídica abrese espaço para a prestação de contas por parte das autoridades no exercício do governo e fechase o ciclo do livre arbítrio das mesmas e o da ignorância da população A reprodução destas experiências vai criando novas modalidades do exer cício da democracia política as quais contribuem para a legitimação e institucionalização de procedimentos democráticos oriundos da ação dos cida dãos A política se torna desse modo próxima da experiência individual havendo uma reapropriação do político no espaço societário desde o mais próximo até o mais distante Em nossa opinião tendese a criar enclaves democráticos ou como foi discutido no primeiro capítulo regimes de democracia parcial nos quais come ça a existir uma vivência democrática a formação de cidadãos junto à institucionalização de procedimentos e práticas no seio da sociedade mas tam bém do Estado ainda que em entornos limitados e talvez sem condições de adquirir dimensão nacional em um prazo previsível A atuação do Ministério da Saúde a cargo de Jamil Haddad se fez pre sente através da formação de uma comissão de emergência para propor so cap7pmd 872011 1039 218 219 luções à situação crítica das unidades estaduais e federais e dos municípios da Baixada Fluminense A Comissão foi presidida pelo secretárioexecutivo do Ministério da Saú de e expresidente do Sindicato dos Médicos Quanto à secretariaexecutiva esta coube à Fundação Oswaldo Cruz Fiocruz e contou também com a par ticipação do Cremerj SinMed de parlamentares secretarias estadual e munici pal dirigentes das federações de moradores do estado As prioridades ficaram centradas na reativação das unidades desativadas no Programa de Saúde da Baixada Pesb60 e na constituição do Conselho Estadual de Saúde Exceto a formação do Conselho de caráter estritamente político as reso luções emanadas da comissão requeriam a decisão política de serem implementadas e uma injeção considerável de recursos para reabrir as unidades fechadas contratar o pessoal que assegurasse o seu funcionamento e que permi tisse mantêlas posteriormente Se considerarmos que nesse ínterim houve importantes mudanças políticas no Ministério da Saúde como a renúncia do Ministro novamente nos depara remos com o fato de que o processo de municipalização pode ser gravemente ameaçado de não adquirir a profundidade suficiente que a política de Reforma Sanitária requer para a sua efetivação De fato as condições de operacionalização da política de saúde foram fortemente obstaculizadas pelos retrocessos políticos ocorridos no governo durante o período em análise mas o processo não foi paralisado em alguns estados e municípios ainda que em condições adversas pelo fato de existir neles uma base localmunicipal e haver uma decisão política explícita de implementar a Reforma Sanitária Em relação ao município do Rio os serviços de saúde foram mantidos e as instalações recuperadas oferecendo melhor atendimento à população até 1993 Isso foi feito em 1992 nos maiores hospitais do município tendo em vista a realização da Conferência Mundial de Ecologia ECO92 Os investimentos necessários para recuperar a rede municipal eram recursos federais já que os hospitais municipais passaram a ser hospitais de referência para atendimento à Conferência Couberam à Prefeitura o cuidado e a manutenção da rede no cerne do processo de municipalização 60 O Plano de Saúde da Baixada já foi comentado no segundo capítulo na parte que se refere ao Movimento Popular em Saúde cap7pmd 872011 1039 219 220 Uma das principais medidas implementadas pela secretaria tal como em São Paulo foi o aumento dos salários dos profissionais de saúde o que possibi litou a existência de equipes completas de clínicos e de especialistas nos hospitais durante 24 horas No caso do município do Rio não houve uma reforma administrativa profunda da Secretaria Municipal de Saúde ao tempo em que esta se recusou a receber as unidades federais e estaduais Entretanto desenvolveuse uma expe riência inovadora encaminhada pela Secretaria na gestão de alguns hospitais federais que deveriam ser municipalizados Consistiu no implemento da co gestão entre o Inamps e o município para a administração dos mesmos Em termos de resultados o hospital que manteve por maior tempo a proposta apresentou melhores condições de operação que os outros o que poderia indi car um caminho a ser seguido na transferência das unidades ao município No Rio de Janeiro embora tenha havido mudança da Prefeitura após as eleições de 1992 com a transferência de poder do PDT para o PMDB não ocorreram importantes alterações no processo de municipalização da saúde por que o novo prefeito manteve o antigo Secretário Municipal de Saúde no cargo As prioridades anunciadas pelo Secretário de Saúde logo após reassumir o cargo foram em relação à prevenção e ao atendimento da saúde da população assim como aos profissionais de saúde Quanto à saúde da população foram criados programas dirigidos à mulher à gestante e à criança e mantidos os já existentes de combate ao cólera e à Aids Com referência aos profissionais de saúde aumentouse o número do pessoal de enfermagem e o de seus auxiliares e os salários dos médicos embora já se encontrassem no nível de mercado foram melhorados O orçamento municipal destinado à saúde foi mantido no piso da gestão anterior 11 assim como foi sustentado o esforço para captar recursos extraordinários através de empréstimos internacionais para execução de obras e aquisição de equipamentos o que já havia dado bons resultados em anos anteriores Em relação à participação da população nos Conselhos de Saúde e à reformulação do sistema não houve um tratamento privilegiado por parte do PDT partido que administrou desde então a gestão estadual e municipal Dife rentemente do município de São Paulo o Conselho Municipal de Saúde acabou tendo muito mais uma existência formal do que decisória em relação à política de saúde Como agravante dessa situação houve o fato de não ter sido efetiva cap7pmd 872011 1039 220 221 da uma reforma administrativa e conseqüentemente de não existirem Conse lhos formalmente reconhecidos nas antigas regiões de saúde nem nas unidades do município As avaliações são de difícil realização quanto aos resultados do processo de municipalização na medida em que o repasse pelas unidades federais foi efeti vado sem que a Prefeitura as assumisse sob sua responsabilidade Considerando o peso substancial da rede estadual e federal no município não poderíamos afirmar que o processo de municipalização tenha significado uma melhor operacionalização destas Ainda que a gestão e a atribuição de recursos da rede municipal de modo geral tenham melhorado com o decorrer do tempo a sobrecarga desses servi ços chegou à saturação pela grande afluência de atendimento à população do Grande Rio Baixada e Zona Oeste Como conseqüência da crise dos serviços federais e estaduais no município e estado as melhorias constatadas na rede municipal não conseguiram ser mantidas e em 1994 delineouse novamente uma grande crise de atendimento nos hospitais municipais No município do Rio não houve grandes inovações políticoadministrati vas Assim por exemplo o Secretário de Saúde declarou a impossibilidade de contratação de enfermeiras e auxiliares de enfermagem por ter gasto todas as vagas adjudicadas ao município61 Ao mesmo tempo recorreu à negociação políticopartidária com as instâncias centrais para abrir novas vagas o que atua lizou a modalidade de atuação clientelista ou prefeiturização da política A mesma insuficiência de autonomia na gestão municipal das prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo se tornam evidentes ao considerarmos ques tões tais como a contratação dos profissionais necessários para o funcionamen to da rede municipal a indecisão para exonerar o pessoal que não cumpria suas funções e a incapacidade para gerar recursos financeiros próprios que facilitas sem o processo de municipalização O que essas duas experiências de municipalização revelaram foi uma gran de diversidade de alternativas e de modalidades na implementação do processo de descentralização diversidade essa que se relaciona com a heterogeneidade dos municípios com a abordagem política e com os encaminhamentos técni cos viabilizados pelas próprias autoridades municipais No caso do município do Rio é de se ressaltar também uma certa desar ticulação do Movimento Popular em Saúde que se foi tornando visível nos 61 Jornal do Cremerj jan de 1993 cap7pmd 872011 1039 221 222 últimos anos e que acreditamos incidiu fortemente na ausência de uma partici pação social mais incisiva no processo de municipalização Município de Santos Santos pode ser considerada uma cidade de médio porte pois possui 480 mil habitantes A maioria da população dispõe de água encanada e esgoto A principal atividade produtiva é o porto o maior centro de escoamento da pro dução nacional Sua população operária é muito elevada e adscrita principal mente às atividades portuárias Conta com o maior número de casos de Aids do País alcançando a cifra de 2004 notificações entre 1985 e 1990 A mortalidade infantil vem aumentan do também chegando em 1990 a 32 por cada mil nascidos vivos Tal como nas outras metrópoles do País houve nas últimas décadas um importante cresci mento das doenças ligadas às condições de empobrecimento da população às quais se agregam as doenças características do desenvolvimento Neste sentido os problemas de saúde da população são consideráveis e de solução complexa O município alocava 135 do seu orçamento à saúde até novembro de 1992 A partir dessa data o Secretário Municipal de Saúde foi eleito Prefeito da cidade devido à gestão desenvolvida anteriormente como Secretário de Saú de e o gasto dessa área foi elevado para 16 do orçamento municipal O governo federal participava somente com 20 do gasto total em saúde no município não tendo o governo do estado de São Paulo feito nenhum repasse de recursos entre 1989 e 1994 A constituição do Conselho Municipal de Saúde com participação paritária dos usuários e de suas representações foi uma das primeiras medidas tomadas pelo Secretário Municipal de Saúde Davi Capistrano ao assumir o cargo em 1989 Desde sua constituição todas as atividades da Secretaria passaram a ser submetidas ao Conselho A rede pública era composta por 23 policlínicas hierarquizadas e distribu ídas em cinco distritos sanitários que atendiam a uma média de três consultas médicas por habitante a cada ano Isso fez com que a assistência ambulatorial no município se tornasse compatível com a demanda Também o número de pro fissionais foi incrementado assim como os salários pagos aos mesmos A assistência hospitalar passou por momentos de estrangulamento em 1991 já que esta era coberta pela Santa Casa de Santos que dispunha de 850 leitos e cap7pmd 872011 1039 222 223 era o único hospital conveniado com o SUS Na época o Hospital dos Estivadores que possuía 320 leitos sendo 21 de UTI foi fechado por não conseguir pagar as dívidas com funcionários e fornecedores calculadas em Cr 200 milhões A justiça acatou uma ação do Ministério Público que baseado no direito cons titucional de a população poder ter acesso aos serviços de saúde propunha a reabertura do hospital de forma que sua gestão passasse para o SUS Os estivadores conseguiram uma liminar suspendendo a decisão judicial enquanto o Conselho Municipal de Saúde enfrentou esse sindicato para tentar reabrir o hospital e integrálo ao SUS Os programas de combate à Aids e de Saúde Mental foram considerados prioridade municipal com base no Plano de Saúde Municipal A efetividade desses concentrou desde então a atenção de autoridades governamentais tanto nacionais como internacionais Foram criados também programas especiais além de um centro de referência em saúde do trabalhador O Programa de Combate à Aids consumia 10 dos recursos em saúde e desenvolveuse com excelentes resultados Tanto que passou a ser referência para os programas de controle da Aids em esfera nacional sendo reproduzido em outras cidades do País e no estrangeiro O Programa de Atenção à Saúde Mental realizouse junto à implementação dos critérios contemplados na Reforma Psiquiátrica ou seja os da construção de alternativas assistenciais ao manicômio O atendimento psiquiátrico foi basica mente desenvolvido em Núcleos de Assistência Psicossocial e complementado por um Programa de Internação Domiciliar Depois de uma intervenção feita em um hospital psiquiátrico em 1989 onde havia mais de 500 internos produziuse uma verdadeira revolução nos critérios de atendimento aos doentes mentais Com isso em 1994 o número de internos desse hospital foi reduzido para 80 Dentre os programas especiais cabe ressaltar o Centro da Gestante e Ado lescente o Programa de Atendimento e Internação Domiciliar e o Programa de Atendimento Odontológico O município contou com um serviço de Vigilância do RecémNascido de Risco inexistente no restante do País através do qual fo ram acompanhadas 3612 crianças no período que vai de 1991 a julho de 1993 A Secretária Municipal de Saúde eleita em 1992 Aparecida Linhares man teve inalterada a política implementada na gestão anterior Sua avaliação sobre o andamento do processo de municipalização do País como um todo realizada na IX Conferência revela a concepção política com a qual foi abordado o processo de municipalização em Santos cap7pmd 872011 1039 223 224 a implantação do SUS não pode descuidar a questão da necessidade de conferir aos municípios um Modelo Assistencial que seja sobria mente compatível com a realidade local um dos preceitos consti tucionais trata justamente da Organização Política Administrativa esta belecendo autonomia aos Municípios Estados e Distrito Federal e mesmo assim poucas instâncias tomaram para si esta responsabilida de É necessária a realização de um movimento político para que o município invista na saúde com recursos próprios O sucesso de propostas como esta de municipalização depende muito da partici pação intensa das comunidades nas discussões 62 A experiência de Santos mostrou diferentemente de São Paulo e do Rio o principal papel do município quanto ao incremento da alocação de recursos para o setor e de um diagnóstico apurado por parte da Secretaria Municipal de Saúde relativo a problemas de saúde da população a serem priorizados e à maneira de abordálos Revelou a necessidade de elaboração de um Plano Rei tor de Saúde para o município que compatibilizasse e reorganizasse a infra estrutura de serviços existentes com os objetivos a serem alcançados pelo plano de saúde Por último mas destacadamente enfatizou a necessidade de existência de um Conselho Municipal de Saúde ativo e operante para garantir o controle por parte da população usuária e de suas representações de toda e de cada uma das decisões emanadas da Secretaria de Saúde A experiência de Santos sugere uma questão interessante que se refere a como se lidar nessas experiências de municipalização com a multiplicação de atores e de interesses que necessariamente se originam nesses processos de descentralização da política e que apresentam uma dupla face Por um lado a instauração de procedimentos democráticos para lidar com uma pluralidade de interesses promove a criação de vias institucionais de nego ciação política e portanto a institucionalização da política como uma maneira inovadora de resolver conflitos adjudicar competências e redistribuir poder como foi o caso do processo de implementação da política de saúde nesse município Por outro lado a mesma situação de multiplicação de grupos e inte resses pode encaminhar ao uso indiscriminado da negociação política Essa modalidade de exercício da política dentro do âmbito político partidário conduz à diluição das questões conflitivas nas relações entre as forças internas que no partido exercem a autoridade de governo ou ao desgaste 62 Anais da IX Conferência Nacional de Saúde Brasília 1992 cap7pmd 872011 1039 224 225 ocasionado por um permanente processo de enfrentamento e de acordos pos teriores entre o partido governante e a oposição Quando à falta de um nível central de condução da política se soma a ausência de diretrizes operacionais em nível local que orientem sua implementação um diagnóstico claro dos problemas a serem enfrentados e um Plano de Saúde evidenciase a recorrência ao fato de a política não conseguir ser resolutiva Além disso correse o perigo maior de se tornar o seu próprio objeto na medida em que as preocupações se voltam para a negociação entre as forças conflitantes mais do que para questões específicas relativas à saúde Acredita mos ser esse um dos dilemas de algumas das prefeituras progressistas que com prometeram consideravelmente a implementação do SUS Município de Manaus Manaus é um município com 1300000 habitantes dos quais 98 reside na zona urbana É uma população basicamente de origem rural inserida atualmente na indústria eletrônica no setor de serviços e no setor de extração da madeira De maneira mais acentuada que no eixo centrosul do País os níveis de pobreza e de inserção no mercado informal de trabalho de sua população tem crescido enormemente com a queda do ciclo econômico da borracha e a baixa utilização de mãodeobra no setor industrial eletrônico Um dos indicadores recentemente considerado para avaliar os níveis de pobreza é o abastecimento de água e de saneamento básico No caso específico podese usálo para ressaltar esses níveis pois mesmo em se tratando de cidade capital do estado somente 10 da população tem esgoto e 80 da população urbana tem água pelo sistema formal Os problemas de saúde da população correspondentes às suas condições socioeconômicas são de grande magnitude e extensão Doenças como tuberculose raiva humana hanseníase pólio saram po leptospirose febre tifóide hepatite e nos últimos anos o cólera constituem o quadro dramático do município A preocupação inicial da Secretaria Municipal de Saúde no período com preendido entre 1989 e 1992 foi a de efetuar um levantamento das condições de saúde da população as quais uma vez identificadas serviram para elaborar o Plano de Saúde e definir as prioridades do município O saneamento básico municipal recebeu lugar de destaque e foram construídos mais de 370 quilôme tros de rede sanitária até o fim da gestão cap7pmd 872011 1039 225 226 Essa mesma administração promoveu uma ampla reforma administrativa na Secretaria Municipal de Saúde com a finalidade de efetivar o processo de municipalização Em Manaus houve uma identidade política das instâncias esta dual e municipal com a Reforma Sanitária e com a implementação do processo de descentralização diferentemente dos casos anteriormente discutidos Há integração perfeita entre a Secretaria Estadual as secretarias muni cipais em especial de Manaus Universidade de Amazonas Governo Estadual Governos Municipais e até como no nosso caso é peculiar com a zona de fronteira envolvendo inclusive as instituições vincula das às Forças Armadas numa discussão global sobre o SUS 63 A iniciativa viabilizouse de um lado devido à gravidade da situação de saúde do estado e à ausência de um projeto de saúde alternativo à Reforma Sanitária que permitisse resolver com efetividade a situação de saúde da popu lação De outro pela decisão política das autoridades estaduais e municipais e pela articulação das forças sociais capazes de encaminhar e de dar continuidade ao processo por elas iniciado A primeira medida encarada pelo Secretário Municipal de Saúde Evandro Melo foi a implantação do Conselho de Saúde e do Fundo Municipal de Saúde para o depósito dos recursos da saúde ambos sob controle da comunidade O Conselho Municipal foi composto por 24 membros sendo 12 deles represen tantes de usuários eleitos direta e democraticamente nas comunidades Esses membros decidiam todas as questões relacionadas à área da saúde Pela mesma lei foram criados o Conselho e o Fundo sendo Manaus a primeira capital bra sileira com Fundo implantado e com todos os recursos da saúde da Prefeitura do Estado e do governo federal depositados numa mesma conta Para que a Secretaria realizasse uma ampla reforma no setor a cidade foi dividida em seis distritos sanitários Por sua vez a Prefeitura dividiu o território do município em núcleos habitacionais formados por 50 mil pessoas cada um deles contando com uma unidade de saúde com três consultórios médicos e três odontológicos Cada unidade seria equipada conforme a necessidade da população a ser atendida nos bairros que integravam os núcleos habitacionais Organizouse para cada unidade um Conselho de Saúde composto por qua tro membros dois representantes de usuários o diretor e um representante dos funcionários 63 Entrevista com o Secretário Estadual de Saúde Proposta Jornal da Reforma Sanitária setout de 1992 cap7pmd 872011 1039 226 227 O Distrito Sanitário possibilitava qualquer tipo de atendimento médico pois cada uma dessas zonas tinha um posto e um centro de saúde Os Conse lhos eram compostos por diretores das unidades do distrito e tinham a mes ma quantidade tanto de usuários como de diretores A existência desses distri tos permitiu definir as portas de entrada para o sistema de saúde assim como responsabilizar cada uma das unidades de saúde por uma determinada popu lação que teria participação ativa através dos seus representantes eleitos nos Conselhos A população passou a identificar a unidade de saúde como a unidade que lhe garantiria atenção quando necessitasse As unidades de saúde chamadas de portas de entrada tinham além dos consultórios médicos e odontológicos atendimento de emergência 24 horas e encaminhavam os pacientes para níveis de maior complexidade de atendimento Toda a rede básica de Manaus contou com 75 unidades na área urbana e de 16 na rural O aumento do número de unidades de saúde foi de 21 quando a atual gestão da Prefeitura tomou posse em 1989 para 54 até agosto de 1992 Agentes de saúde eleitos pela própria comunidade administravam as unidades da zona rural A Secretaria Municipal visitava os postos uma vez por mês com equipes formadas por 20 profissionais que desenvolviam desde consultas mé dicas até palestras sobre prevenção do cólera e outras epidemias e endemias além de orientações na área social para mais de mil famílias A rede de serviços de saúde até meados de 1992 foi ampliada em 86 e no fim de 1992 chegou a 100 em relação ao que havia anteriormente Os recursos alocados pela Secretaria Municipal até 1992 correspondentes a 11 do orçamento municipal nesse ano passaram para 14 cifra que supe rou o previsto pela Lei Orgânica Municipal Já o orçamento previsto para 1993 foi de 15 Os salários dos profissionais de saúde foram elevados pela implementação no município e no estado de um Plano de Carreira Cargos e Salários para o SUS que contemplava não só a carreira mas os pisos mínimos e a capacitação constante do pessoal implementandose a formação de pós graduação para os profissionais da rede e diversos cursos de especialização em convênio com a Fiocruz e com a Fundação Getúlio Vargas Os programas de saúde empreendidos tiveram excelentes resultados e o cólera foi controlado pois nos últimos cinco meses de 1992 não houve nenhum caso Para isso foi elaborado um plano de combate ao cólera e o estabelecimen to de quais eram as áreas de risco no município e no estado cap7pmd 872011 1039 227 228 As ações envolveram educação em saúde informação sobre os riscos da doença cuidados com a higiene controle da água e cuidados com alimentos Foram utilizados agentes de saúde que visitavam casa por casa distribuiuse hipoclorito e estabeleceuse um sistema de vigilância sanitária ao longo de todo o rio Ao mesmo tempo foram monitoradas todas as diarréias e além disso todas as pessoas com cólera eram identificadas antes de chegarem a Manaus A cidade foi mapeada e em cada bairro havia um núcleo de pessoas envolvidas nas ações de vigilância sanitária junto aos técnicos e agentes de saúde Em relação ao quadro sanitário da população observase que doenças como coqueluche difteria pólio e sarampo que se manifestam nos primeiros anos de vida tiveram uma queda muito acentuada nesse período A incidência da pólio foi zerada e reduziramse também os casos de tuberculose entre 1990 e 1992 O Município de Manhuaçu Tratase de um município localizado em Minas Gerais quase divisa com o Espírito Santo com uma população de 75 mil habitantes estando 40 mil na área urbana e 35 mil no campo As principais atividades produtivas são a agri cultura do café e a pecuária nas quais se inscreve a maioria da população rece bendo baixa remuneração o que faz com que a pobreza seja bastante grande assim como na maioria dos municípios rurais Há sérios problemas de saneamento básico devido ao fato de o esgoto sanitário ser lançado diretamente no Rio Manhuaçu Essa situação somada à pobreza incide fortemente nas condições de saúde da população e principal mente na mortalidade infantil As principais causas de mortalidade infantil na região são atribuídas às do enças infecciosas e parasitárias pneumonias e deficiências nutricionais sendo o coeficiente de mortalidade de 52 para cada mil nascidos vivos Os problemas de saúde da população adulta são bem diversos hanseníase tuberculose hepa tite parasitárias e deficiências nutricionais Atropelamentos são também muito freqüentes em vista de as rodovias federais margearem o município o que explica que 60 dos atendimentos em prontossocorros sejam nos serviços de traumatoortopedia O processo de municipalização iniciado em 1989 e aprofundado pela atual gestão municipal acarretou uma reforma administrativa que dividiu a extensão territorial do município em duas regiões sanitárias subdivididas em quatro zo cap7pmd 872011 1039 228 229 nas sanitárias urbanas e quatro rurais O município contava com uma unidade do Inamps e um posto de saúde do estado mas ambos foram repassados à Prefeitura que comprou também um hospital da rede privada Como parte do processo de municipalização foram construídos a Policlí nica e o ProntoSocorro Municipal que contam com 23 leitos e 51 médicos e prestam cerca de 100 atendimentos diários nas mais diversas especialidades Também foram implantados 13 postos de saúde alguns em fase de conclusão nove deles na área rural e o restante na área urbana e mais quatro centros de saúde em grandes distritos da área rural A maior parte do atendimento e das intervenções de maior complexidade eram feitas no hospital filantrópico que dispunha de 210 leitos com o qual a Secretaria Municipal mantinha convênio administrando e controlando o repas se dos recursos O sistema dispunha de um hemocentro que registrava aproxi madamente 200 doações mensais de sangue e um serviço de hemodiálise com 63 pacientes inscritos O número de profissionais adscritos à rede ampliada foi incrementado consideravelmente Organizouse também o Fundo Municipal de Saúde para o repasse dos recursos federais e estaduais O Conselho Municipal de Saúde foi composto por 26 membros metade deles representando os usuários e a outra metade a Prefeitura prestadores de serviços e trabalhadores da saúde Desde a sua formação apresentou caráter permanente e deliberativo tendo se constituído na instância máxima para a avaliação e o controle da política de saúde assim como no tocante à decisão de alocação de recursos À atuação do Conselho Municipal somavamse os Conselhos Zonais e Locais que desenvolveram um papel central na política de saúde municipal Assim por exemplo o Conselho Local de um dos distritos do município en volvido na preocupação com a proliferação do cólera solicitou uma estação de tratamento de esgotos já que a rodoviária local recebia diariamente mais de dez mil passageiros de todo o País tendo sido a mesma construída em oito meses e com um investimento de Cr 1 bilhão Através de entrevistas realizadas com representantes dos usuários no Conselho64 constatase que a mobilização popular e o próprio movimento popular estava organizado e preexistia à implementação do processo de municipalização 64 Proposta Jornal da Reforma Sanitária 31 1993 cap7pmd 872011 1039 229 230 Paralelamente vários programas foram efetivados Atenção aos Desnu tridos e Grupos de Acompanhamento de Diabéticos Gestantes Tuberculose e Hanseníase e a possibilidade de sua realização ocorreu devido à implantação do sistema de informatização e estatísticas do SUS de Manhuaçu para a locali zação dos doentes O Programa de Vacinação obteve uma cobertura de 98 a 100 e todas as crianças atendidas foram cadastradas o que fez diminuir o número de casos de doenças imunizáveis O Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria utilizou procedimen tos inovadores e encaminhou à Câmara Municipal um novo Código Sanitário que garantia ao município um efetivo poder fiscalizador e de educação da co munidade Nessa mesma direção o atual Secretário de Saúde e VicePrefeito Fernando Bittencourt enviou um projeto à Câmara estabelecendo gratificações de estímulo aos médicos que aceitassem trabalhar na zona rural com percentuais variáveis de 30 a 80 já que fixar médicos em tais áreas era uma das grandes dificuldades do município Município de Icapuí Tratase de um município rural distante 200 quilômetros de Fortaleza com uma população estimada pelo IBGE em 1989 em 15 mil habitantes A princi pal atividade econômica é a pesca além do artesanato e da agricultura O abas tecimento de água realizase em 93 dos casos através de poço e 66 da água consumida não recebe tratamento Somente 7 do lixo tem coleta pública ficando a céu aberto 38 e sendo queimados 38 O nível de analfabetismo da população é de quase 50 e da outra metade apenas 43 cursam ou conclu íram o ensino fundamental Em 1991 a Prefeitura iniciou uma campanha de estímulo ao uso de fil tros e criou o Sistema Autônomo de Água e Esgoto que passou a abastecer 20 da cidade aumentando também a coleta de lixo Quanto ao quadro sanitário as doenças mais comuns eram infecções diarréicas agudas infecções parasitárias e doenças dermatológicas O índice de mortalidade infantil foi diminuído para 495 por cada 1000 nascidos vivos o menor índice de todo o estado a partir de uma campanha permanente de conscientização da popu lação de como evitar as mortes infantis Destinouse 23 do orçamento municipal à saúde sem que existisse trans ferência de recursos do estado para o município Também foi elaborado um cap7pmd 872011 1039 230 231 plano municipal de saúde que a Secretaria Municipal de Saúde implementou Cadastraramse todas as famílias do município o que proporcionou um diag nóstico de saúde e de condições de vida que serviu de base para a elaboração de programas específicos O cadastramento realizado durante dois meses envolveu a visita a cada residência por agentes de saúde e por pessoas da comunidade treinadas e super visionadas por funcionários da Prefeitura Com base nesse cadastramento o Plano de Saúde priorizou as ações básicas o monitoramento das causas de doença e de morte A partir disso foram instalados dois centros de saúde que dispunham de consultórios médicos e odontológicos farmácia sala para reidratação oral e quatro postos de saúde nas seis áreas ou distritos sanitários em que foi dividido o município A pedido dos pacientes foram utilizadas redes em lugar de camas nas salas de observação dos centros de saúde Em todas as unidades implantouse um prontuário familiar o que permitiu vincular as famílias aos distritos sanitários assim como o acompanhamento das mesmas Há a pretensão de se construir ainda um hospital com horário integral no município O Conselho Municipal de Saúde foi composto por cinco representantes das instituições prestadoras cinco profissionais de saúde e 25 representantes das comunidades e de outras categorias profissionais Constituiuse outro impor tante fórum de decisões as reuniões mensais de funcionários da Secretaria de Saúde Os profissionais de saúde que vinham tendo seus salários reajustados mensalmente receberam isonomia e novas formas de reajustes a partir da ela boração do Plano de Cargos e Salários desde 1991 Destacamos para a análise comparativa algumas das variáveis contempla das na abordagem dos municípios selecionados tais como o tamanho dos municípios o encaminhamento de reformas administrativas eou reorganiza ção dos serviços os recursos financeiros aplicados pelas secretarias municipais a implantação ou não dos Conselhos o grau de autonomia municipal a elabo ração do quadro sanitário da população e do Plano de Saúde Municipal a existênciaextensão da rede estadual e federal aumento do número de leitos incorporação de melhorias salariais dos profissionais de saúde Os quadros a seguir apresentam uma síntese analítica das variáveis contempladas nos municí pios selecionados cap7pmd 872011 1039 231 232 Quadro 13 Parte I Análise comparativa dos municípios estudados Municípios São Paulo Rio de Janeiro Santos Manaus Manhuaçu Icapuí Tamanho grande grande médio médio pequeno pequeno Reforma Administrativa Reorgarnização dos Serviços sim não sim sim sim sim Recursos Financeiros Implantação dos Conselhos sim não sim sim sim sim Classificamos a variável Recursos Financeiros em termos de porcentagem do orçamento municipal destinado à saúde até 10 10 14 mais de 14 Quadro 13 Parte II Análise comparativa dos municípios estudados Municípios São Paulo R Janeiro Santos Manaus Manhuaçu Icapuí Grau de Autonomia Municipal Quadro Sanitário Plano de Saúde Municipal não não sim sim sim sim Existência Extensão de Rede Estadual e Federal Aumento do Número de Leitos não não sim sim sim sim Melhorias Salariais Profissionais de Saúde sim sim sim sim sim sim Resultados A variável Autonomia Municipal foi considerada em termos da capacidade do município incorporar inovações de caráter políticoadministrativo e a estratificamos com base na seguinte escala de valores nenhuma pouca mediana considerável cap7pmd 872011 1039 232 233 A variável ExistênciaExtensão da Rede Estadual e Federal foi classificada pelos seguintes valores não tem escassa mediana grande A variável Resultados foi classificada de acordo com os avanços políticoadministra tivos do processo de municipalização e lhe atribuímos os seguintes valores escassos medianos importantes O quadro evidencia a relação inversa entre o tamanho dos municípios e os resultados alcançados A dimensão dos mesmos constitui efetivamente dificul dade na implementação da municipalização associada à extensão das redes es tadual e federal sem que exista uma legislação terminada sobre a matéria nem condução política do poder central Muito embora os obstáculos à municipalização sejam conexos às dificul dades no nível central do sistema também se conectam com as realidades lo cais a que se somam a falta às vezes de clareza e de definição quanto ao projeto sanitário eou ausência de um plano de saúde a ser operacionalizado pelas prefeituras locais No caso dos municípios do Rio e São Paulo há resultados próximos apesar dos projetos políticos serem completamente diferentes Acreditamos ser as situações encontradas nos dois municípios adversas à municipalização por várias razões pela incidência local muito grande do poder central Inamps pela deterioração em que se encontravam as unidades de saúde pela própria relação de forças desfavorável à implementação da Reforma dada a concen tração do setor privado hospitalar nesses municípios e pelo estado de desmobilização política que atravessava o Movimento Social em Saúde espe cialmente no Rio de Janeiro A outra questão foi o grau de improvisação política e técnica das prefeituras Em Santos e Manaus o panorama inicial em termos do projeto político a decisão de implementar a Reforma Sanitária é semelhante diferindo os resultados dos alcançados pelo Rio e por São Paulo Isso por serem municípios menores com reduzida incidência do nível federal no setor saúde hospitais e postos do Inamps e onde pelos motivos expostos se faz necessário aumen cap7pmd 872011 1039 233 234 tar o número de leitos do setor público Nestes casos foram incorporados ao plano de saúde municipal um diagnóstico preciso e apurado das condições de saúde da população a definição das prioridades e sua operacionalização Nos municípios de pequeno porte se observam menores condicionamen tos políticos técnicos e de infraestrutura de serviços na implementação do processo de municipalização nos casos de prefeituras e secretarias afinadas com o projeto da Reforma Sanitária O fato de não contar com rede federal eou estadual e às vezes nem municipal de serviços de saúde exige do município destinar parcela considerável do orçamento municipal à saúde mas facilita a incorporação de procedimentos inovadores na gestão do sistema A formação de uma rede própria nesses pequenos municípios não impli ca serviços de alta complexidade e tecnologia Como foi visto quando preexistem no município ainda que pertencentes ao setor filantrópico ou priva do o número de serviços não excede o de um hospital de nível terciário como no caso de Manhuaçu De fato administrar e controlar um número exíguo de convênios com os serviços credenciados ou gerir um hospital do nível federal ou estadual simplifica enormemente a administração do sistema Devido à menor complexidade com que se apresentam as questões nesses municípios é necessariamente menor o nível de imbricamento político técnico e administrativo se bem que o diagnóstico da situação de saúde da população assim como o plano a ser implementado constituam requisitos básicos A capacidade de inovação política por parte dos governos locais nos mu nicípios pequenos fica menos subordinada à relação das forças sociais e políti cas atuantes no espaço local do que no caso dos municípios médios e grandes dado o caráter quase familiar das relações sociais em pequenas localidades ru rais O que pode haver é a potencialização de projetos conforme o grau de enfrentamento das forças políticas locais O incremento dos salários dos profissionais de saúde e a elevação do nú mero de profissionais adscritos à rede parece ser condição prioritária do pro cesso de municipalização Ainda que com gradações e modos diversos de aten der à questão esses são pontos nodais sem os quais dificilmente existe Reforma também representando um empecilho afeto à própria prática médica Os Conselhos de Saúde ainda que essenciais à efetivação da política merecem discussão em separado retomada na seção deste capítulo referente aos movimentos sociais em saúde De qualquer maneira os Conselhos de Saúde tendem a ter uma atuação mais homogênea e harmônica nos diversos cap7pmd 872011 1039 234 235 níveis de implementação quando há no município um movimento popular organizado e certo grau de mobilização social em torno das condições de vida e de saúde da população e o incentivo à participação social na gestão municipal por parte das autoridades Finalmente cabe destacar o grau em que a autonomia da gestão municipal e os recursos financeiros aplicados pelo município no setor saúde se relacionam diretamente com os resultados do processo de municipalização mesmo quan do caso do Rio de Janeiro a relação é alterada por variáveis intervenientes como observado no quadro anterior Quanto maior o grau de autonomia e aplicação de recursos ao sistema melhores resultados Ainda no que concerne aos recursos o repasse automático federal e estadual a uma única conta foi facilitado nos municípios que possuíam o Fundo Municipal de Saúde Dos casos selecionados ocorreu em Santos Manaus e Manhuaçu mas na maioria dos municípios brasileiros os Fundos de Saúde não foram criados Um dos pontos relevantes do processo de municipalização é a própria atribuição local da autonomia da gestão municipal Estamos nos referindo à atribuição própria porque ainda que a autonomia dos municípios seja contem plada pela Constituição de 1988 falta ainda como a outros tópicos da Consti tuição65 a regulamentação através de leis ordinárias das atribuições dos diferen tes poderes Nessa situação cabe às instâncias descentralizadas criar jurisprudên cia sempre que colabore para viabilizar a implementação do SUS A autonomia municipal constitui peçachave para a efetivação dos princí pios da Reforma Sanitária requerendo então maior ortodoxia no cumprimen to da Constituição e na formação de uma institucionalidade democrática em nível local A inovação de procedimentos políticoadministrativos diferencian do as experiências locais origina também conseqüências não desejadas a frag mentação da política de saúde em grande diversidade de experiências isoladas sem margem a uma homogeneização da política de saúde no conjunto do País A fragmentação poderia ser resultado da autonomia municipal mas na verdade a ausência de um nível de condução central da política e de um proces so de descentralização que considere o nível estadual contribui como fator de atomização das experiências de municipalização 65 Vide no financiamento da saúde a modalidade de repasse dos recursos cap7pmd 872011 1039 235 236 Qualquer que seja a razão parece claro a posteriori da análise dos municí pios aqui considerados que o processo de descentralização poderia ser uma condição de possibilidade para o exercício da cidadania colaborando para o rompimento de barreiras entre cidadãos e Estado no exercício da democracia ao deslocar o poder de decisão da órbita exclusiva do Estado Tal condição contribuiria para aproximar a democracia política de uma maior eqüidade na distribuição de benefícios de saúde entre as camadas me nos favorecidas da população mas não só isso Constituise principalmente em processo educativo na medida em que as transferências de cotas de poder nos níveis locais do exercício da política exigem do cidadão maior conheci mento e informação que o habilitem a ter um papel decisório nos Conselhos Locais de Saúde cap7pmd 872011 1039 236 237 8 Os Conselhos de Saúde Uma vez que o sistema de saúde foi objeto de profundas reformas im porta detectar em que grau os entraves a essa política foram em parte conse qüência da ação eou comportamento do movimento social organizado A análise da trajetória do Movimento Popular em Saúde formação ascensão e declínio permitiu algumas inferências relativas ao papel e projeção que os movimentos populares em saúde se reservaram diante das políticas de saúde Um dos pontos aparentemente cruciais é o próprio modo de atuação desses movimentos a partir da busca da autonomia tanto na mobilização popular quanto no distanciamento das instâncias estatais de saúde não obstante estas previssem a participação popular A rejeição à participação do movimen to popular nos Conselhos de Saúde fez com que se perdesse a capacidade de influenciar a política de maneira efetiva Observase que ao mesmo tempo em que a mobilização é estruturante no momento em que acontece fragiliza o movimento porque depende de fatores externos como graves crises do setor saúde sejam de cunho epidemiológico ou de atendimento rotineiro Tal tipo de atuação sustentada na autonomia e evitando a relação com o Estado acaba eximindoo de atuar nos Conselhos e acentua a rejeição existente nesses movimentos à estruturação e articulação de modalidades da atividade política a não ser as oriundas exclusivamente da mobilização A tendência a certa institucionalização e o reconhecimento de formas alternativas à mobilização poderiam gerar nos movimentos um investimento de inovação política estru turas próprias e autônomas de incidência mais decidida nos rumos da política Com efeito o tipo de atuação desses movimentos no período de consoli dação da democracia e da implementação da política de saúde obstaculizou a cap8pmd 872011 1042 237 238 coresponsabilidade no processo de efetivação da mesma Mais impediuos de neutralizar o surgimento de tendências altamente corporativas no Movimento Médico acabando estas por ocupar o espaço abandonado pelos movimentos populares nos Conselhos de Saúde A mobilização acabou por converterse em empecilho pois não houve readequação da estratégia na luta política do Movi mento Popular em Saúde Isso é causa suficiente para rever a atuação dos Movimentos Populares em Saúde no âmbito específico dos Conselhos de Saúde instância esta de caráter deliberativo da política de saúde na qual os usuários e suas entidades e movi mentos representativos contavam com 50 da composição dos Conselhos por regulamentação da Lei Orgânica da Saúde Formação e Funcionamento dos Conselhos de Saúde Os Conselhos de Saúde são como regulamenta a Constituição Nacional o principal órgão de participação da sociedade na definição do sistema e dos serviços de saúde nas esferas nacional estadual e municipal Sua ingerência pre vê a formulação do Plano de Saúde adequado à operacionalização do SUS a definição e aplicação orçamentária do setor a reorganização administrativa o gerenciamento da rede a alocação e remuneração dos profissionais de saúde e o próprio modelo assistencial De um total de 27 unidades federadas do País os Conselhos foram legal mente constituídos em 1466 Juridicamente sem funcionarem existiam em 11 estados e sem definição jurídica em apenas dois Sua formação não foi impul sionada nem exigida pela sociedade ou por entidades organizadas na maioria dos estados brasileiros Originaramse via de regra por iniciativa dos técnicos das secretarias estaduais de saúde alinhados às forças reformistas Em geral sua origem é localizável nas diversas instâncias da esfera governamental Assim por exemplo no Rio de Janeiro a iniciativa foi do Legislativo Em apenas oito estados houve participação considerável de setores da sociedade na formação dos Conselhos e em dois essa participação foi decisi va Dependendo também do estado naqueles em que se deu a participação 66 Os dados sobre os Conselhos foram obtidos da pesquisa Avaliação do Funcionamento dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde desenvolvida pelas seguintes entidades Ibam IMSUerj NescCE NesconUFMG NessBA Relatório Nacional versão preliminar agosto de 1993 Ministério da SaúdeConselho Nacional de Saúde cap8pmd 872011 1042 238 239 popular verificaramse diferenças eou conflitos entre as representações popu lares eou usuários propriamente ditos Apesar de a lei determinar o caráter deliberativo dos Conselhos estes aca baram tendo papel meramente consultivo Os avanços para se tornar um canal de denúncias da sociedade que facilitasse o pleno acesso da população às infor mações de saúde à participação dos conselhos nas unidades de serviço e à articulação destes com o Conselho Nacional de Saúde e com os Conselhos Municipais de Saúde variaram de estado para estado dependendo do interesse dos governadores em impulsionar ou não a formação dos mesmos Poucos estados ampliaram as atribuições e funções dos Conselhos de Saú de A composição dos Conselhos Estaduais não foi paritária como previsto pela Lei Orgânica da Saúde 808090 e pela Resolução 3393 Os dados de conjunto do País indicam uma bancada maior de representantes de prestadores 350 que de usuários 312 Os dados correspondem à análise dos 24 Conse lhos estaduais Maranhão e Santa Catarina não os instalaram legalmente e Sergipe não foi abrangido pela mencionada pesquisa Entre os prestadores foram incluídos os representantes do Poder Executivo federal estadual municipal do Legislativo os profissionais de saúde os prestadores stricto sensu e a comunidade acadêmica No total dos estados os repre sentantes dos três níveis de governo somavam 161 membros com o executivo estadual tendo o maior número de membros 97 Os representantes do poder Legislativo eram em número de oito os dos profissionais de saúde de 106 os dos prestadores do setor público e privado somavam 56 e os de intelectuais e acadêmicos do setor 19 A bancada dos usuários abarcava movimentos sociais e comunitários com representação de 123 membros que se apresentavam de forma bastante diversificada com inúmeros segmentos sendo a de maior presença a das asso ciações de moradores seguida do Movimento Popular em Saúde 10 Os tra balhadores e centrais sindicais somavam 96 representantes os empresários de todos os setores da economia estavam representados por 36 membros os portadores de doenças contavam com 40 representantes e os organismos religi osos com 17 As bancadas de trabalhadores e profissionais de saúde somadas constitu íam a maioria dos membros dos Conselhos Estaduais de Saúde A representa ção dos prestadores era composta por 56 membros dos quais 37 representan tes do setor privado filantrópico e lucrativo cap8pmd 872011 1042 239 240 Acerca de tais dados merece ser mencionado que a composição dos Con selhos parece indicar tendência à representação de caráter corporativo antes de mais nada Outro aspecto referese ao peso dos prestadores privados em rela ção aos públicos embora estes últimos pudessem estar representados também no Executivo e no Legislativo vários deles eram proprietários de clínicas e hospitais Não ficou claro se havia representantes de prestadores públicos diretores de hospitais públicos e se assim fosse em que proporção tinham assento no Executivo e no Legislativo O mandato dos Conselhos variava conforme os estados Em 50 deles a duração era de dois anos enquanto nos demais de um a quatro anos Em Goiás Amazonas Mato Grosso do Sul e Paraná havia coincidência do manda to dos representantes do Conselho com os do governo Quanto às reuniões ordinárias eram realizadas uma vez ao mês e as extraordinárias convocadas pelo presidente ou por 50 dos membros Somente em alguns estados a pauta de reunião era distribuída com antecedência As decisões eram tomadas por votação nominal e a deliberação por maioria simples67 Poucos estados dispunham de dotação orçamentária para o funcionamen to dos Conselhos O fato é indicativo de um papel menor na decisão das polí ticas já que nenhum órgão de governo carece de dotação Ainda que os Conse lhos fossem órgãos criados pela política de saúde para que a sociedade Desse modo seus membros não tiveram remuneração O que de fato aconteceu prin cipalmente na esfera municipal foi que os representantes de movimentos e de usuários nos Conselhos não tinham às vezes condições de comparecer às reu niões por não poder custear seu próprio transporte68 Tratase de aspecto extre mamente problemático pois a carência dos meios pecuniários somada à não difusão dos resultados das deliberações dessa instância política além da não divulgação das informações necessárias sobre o sistema de atendimento tornou inócua a sua atuação A representatividade foi bastante desigual Predominou a iniciativa do Es tado sobre a da sociedade com algumas variações nos estados em que as enti dades da sociedade participaram da criação dos conselhos A indicação dos conselheiros em quase todos os Estados foi decidida pelas suas respectivas entidades sendo nomeados pelo governador 67 Em relação à dinâmica de funcionamento a pesquisa considerada analisou 12 estados já que os restantes não se encontravam ainda em pleno funcionamento e os que funcionam eram muito recentes o que dificultam a avaliação 68 Ver Cohn Elias Jacobi 1993 cap8pmd 872011 1042 240 241 Em dois estados o Poder Legislativo foi inserido na bancada dos usuários Pernambuco e Amazonas enquanto nos demais ele integrou a bancada do Poder Executivo A inclusão dos representantes do Poder Legislativo na banca da dos usuários significa uma completa inversão da idéia original dos Conse lhos que visava o controle social da população na implementação da política De fato a solução mais razoável é incluíla na bancada do Poder Executi vo independentemente de que partidos tivessem maior peso no Legislativo Cabe evidenciarmos isso já que tem sido questão constante das agendas das secretarias municipais e estaduais de saúde Fazse necessário inclusive acrescentar que em estados onde não há movi mento social organizado e onde os representantes do Legislativo têm posições próximas à Reforma Sanitária representar os movimentos e usuários expressa um comportamento de cunho paternalista em relação à população e pouco condizente com os procedimentos democráticos Observase que a maioria dos Conselhos não operam nem como um es paço institucional de canalização das demandas da população por melhores condições de atendimento e cuidados de saúde no município nem como um espaço de denúncia dos problemas de saúde local Tampouco há visibilidade para a população sobre a existência e a finalidade dos conselhos nem ações planejadas destes para a ocupação de espaços nos meios de comunicação de massa que sirvam à difusão existência e alcance dos conselhos de saúde A falta de orçamento próprio inviabiliza o encaminhamento de desdobra mentos imprescindíveis ao desenvolvimento da ação dos conselhos A articula ção dos conselhos estaduais com o conselho nacional e com os conselhos mu nicipais é outrossim mais ou menos intensa dependendo do estado Em al guns destes há ainda uma articulação com universidades e organizações não governamentais através de consultas capacitação de recursos humanos elabo ração de planos de saúde e nas conferências estaduais Quanto às condições administrativas financeiras e técnicas de funciona mento e decisão ficou evidenciada a relação de dependência dos Conselhos com as Secretarias Estaduais A respeito dessas constatações ressaltamos que ainda que os usuários par ticipem pouco dos Conselhos a existência destes gera um impacto político devido ao conhecimento que a população tem da existência dos mesmos e à influência que estes podem ter no sistema de saúde visando obter melhor aten dimento para a população cap8pmd 872011 1042 241 242 Neste sentido a existência dos Conselhos é um espaço difusor de práticas políticas alternativas colaborando para que alguns autores no campo da ciência política denominam contextual effects Schmitter 1985 No caso seriam resulta dos inesperados não a um nível agregado mas quanto a uma mudança na per cepção que os indivíduos ou a população possa adquirir em relação a uma determinada política Dito de outra forma o acesso à política de saúde torna se algo próximo dos usuários na medida em que existem órgãos deliberativos da política sobre os quais estes têm ingerência direta A definição de prioridades em saúde não foi na prática assumida pelos Conselhos enquanto a formalização da incorporação de reclamações e suges tões dos usuários para a elaboração do Plano Estadual não foi implantada Dos municípios existentes no País apenas 68 foram cadastrados pela pesquisa69 Destes municípios 62 constituíram legalmente o Conselho Muni cipal de Saúde a partir de 1991 Nos pequenos municípios a existência dos Conselhos é menos freqüente e quando estes existem funcionam de maneira regular apenas na metade dos municípios Nos municípios capitais dos 26 estados da federação as secretarias munici pais de saúde representaram os principais agentes para a criação dos mesmos entre os anos 19901991 Os Conselhos de Saúde nas Capitais e Municípios A composição dos Conselhos Municipais das capitais foi formada por parte dos usuários sobretudo por representantes dos movimentos sociais num total de 168 membros Nesse grupo os representantes do Movimento Popular em Saúde 27 e em segundo lugar as associações de moradores 15 Além dos movimentos comunitários havia a bancada das entidades de trabalhadores 66 nas quais predominavam membros das centrais sindicais e entidades de trabalhadores em saúde Por parte dos prestadores os representantes do Poder Executivo eram 126 sendo 81 da esfera municipal 23 da federal e 18 da estadual Os profissio nais de saúde contavam com 102 representantes das áreas médicas de enferma gem de entidades de trabalhadores de saúde estando os demais distribuídos por outras categorias 69 Avaliação do Funcionamento dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde agosto de 1993 cap8pmd 872011 1042 242 243 Ainda da parte dos prestadores além dos representantes do Poder Execu tivo e dos profissionais de saúde havia os prestadores stricto sensu que somavam 49 sendo 11 da área pública 11 dos filantrópicos e 15 dos privados Por fim a comunidade acadêmica possuía 17 cadeiras nos Conselhos Novamente o Po der Legislativo tomava assento como Estado e como usuário em Macapá Manaus e Boa Vista Os conselheiros eram indicados pelas entidades e nomeados pelo prefeito O tempo de duração do mandato era também em alguns municípios atrelado à gestão municipal A dotação orçamentária preconizada pela legislação fede ral só era atendido por dois municípios o do Rio de Janeiro e o de Palmas A organização interna dos conselhos era composto de Plenária de Secreta ria Executiva e de presidente O do município de São Paulo apresentou peculi aridades visto que substituiu a Plenária por Colegiado Pleno e constituiu Co missões Interdisciplinares permanentes para discussão de assuntos setoriais da saúde além de uma Comissão Executiva para a apreciação de denúncias e de demandas com caráter deliberativo Os municípios de Goiânia Recife e Belo Horizonte constituíram Mesas Diretoras enquanto Rio de Janeiro e Porto Alegre tinham núcleos de coordena ção De modo geral as reuniões realizavamse mensalmente e a tomada de decisões na maioria dos casos ocorria nas Plenárias e Colegiados através de votação nominal aberta e quando necessário secreta Os resultados explicitados ajudam a complementar a análise do processo de municipalização ao mesmo tempo que a interpretar seu caráter Da mesma for ma que na análise do processo de municipalização no caso dos Conselhos pode se constatar que a descentralização da política de saúde tem acontecido de manei ra incompleta O processo avançou no nível municipal da política mas a profun didade e o alcance da municipalízação do setor saúde diferem entre os municípi os No nível estadual têm sido imensas as dificuldades para que se assuma o processo de descentralização e a formação dos Conselhos de Saúde Podese afirmar que existiram grandes empecilhos por parte das Secretarias Estaduais de Saúde para a efetivação do SUS Isso diz respeito à falta de entrosamento dos governos estaduais com a Reforma Sanitária e ao despreparo e inadequação gerencial administrativa e orçamentária das secretarias estaduais para assumir a descentralização A situação é mais bem contornada no nível localmunicipal devido ao fato de a estrutura do sistema de saúde a rede de serviços possuir menor cap8pmd 872011 1042 243 244 complexidade à exceção dos municípios que constituem as grandes cidades capitais do País onde a rede municipal convive com as redes federal e estadual De modo geral a efetividade dos Conselhos relacionase à pressão exercida pelos usuários pelos movimentos sociais organizados e profissionais de saúde e à maior proximidade da população com as autoridades locais Seja como for o processo de municipalização ainda que tenha tido enor me difusão política uma vez que a questão da municipalização passou a ter papel principal na implementação da política pública não teve o efeito almeja do em relação às transferências de poder para os níveis locais e particularmente para a população Essa situação se explica pelo fato de a política se localizar exclusivamente no nível municipal sem uma definição de atribuições e obrigações das esferas federal e estadual e sem o repasse correspondente dos recursos Porém princi palmente devido ao fato de os Conselhos não terem sido criados de baixo para cima o que fez com que ficassem depreciados e dependessem da vonta de política dos governadores e prefeitos para incentiválos ou não Ao se comparar os Conselhos municipais com os Conselhos estaduais verifi case que os primeiros têm sido bem mais atuantes tendo a população exercido algum controle em termos de financiamento administração e gestão das unidades de saúde Essa atuação difere bastante de município para município mas tem ocor rido de forma continuada ainda que o início da década de 90 corresponda a um momento político caracterizado pelo declínio na ação dos movimentos sociais em saúde e especialmente do movimento popular e associações de moradores Os Conselhos de Saúde e a Participação Cidadã A problemática em jogo é a passagem de uma postura de oposição para a de participante ativo situação que o alinha às forças governamentais e o coloca como coresponsável das decisões a serem implementadas Mas para a conti nuidade da luta das forças populares isso tem sido muito mais um fator de enfraquecimento e desunião que propriamente um estímulo Há uma observação que se repete em todo documento impresso dos movimentos populares as coisas só acontecem quando a gente começa a lu tar No entanto a impressão ao fim de um levantamento e pela observação da atuação desses movimentos é de que não se acredita e se desconhece do que e de quanto é possível mudar através da participação e do controle social cap8pmd 872011 1042 244 245 Revisando panfletos e publicações fidedignas do movimento popular cons tatase que existe difusão a respeito dos Conselhos e sua finalidade ou seja através destes a população exerceria o direito de controlar fiscalizar formular e participar do planejamento e execução das políticas de saúde70 Tratase de um processo que se encontra em um momento inicial e que sofre fortes resistências das diversas instâncias do Executivo prestadores priva dos etc expressas em obstáculos à viabilização de um funcionamento mais fluido dos Conselhos não os considerando órgãos deliberativos ou não lhes atribuindo dotação orçamentária É uma situação dúbia o Poder Executivo não lhes reconhece o caráter decisório e o Movimento Social em Saúde e os usuários lhe retiram o crédito dificultando que os Conselhos alcancem uma posição de destaque na transformação da política de saúde O discurso do próprio movimento aliás parece cair num vazio O usufru to da saúde e o atendimento à doença como algo resultante ou relacionado à participação e à conseqüente atividade nos Conselhos parece não ser entendida como questão decisiva para melhorar o atendimento Assim a importante bancada de representantes de movimentos e usu ários não tem revertido num papel mais operativo e resolutivo dos conse lhos de saúde situação notória nos conselhos estaduais de uma parte estes não se constituíram em elemento dinamizador da mobilização popular como foi à época o processo constituinte De outra o período transcorrido na década de 90 caracterizouse pela fragmentação dos movimentos sociais em geral com a conseqüente paralisação da ação coletiva dos movimentos populares em saúde No âmago do Movimento Popular em Saúde produziuse um impasse com uma divisão ideológica que neutralizou a política no âmbito de sua implementação Isso ocorreu a partir do esvaziamento do potencial de partici pação das entidades autônomas que ao estarem divididas e fragmentadas cri aram uma armadilha para a nãoparticipação Se participar leva à cooptação não participar ou se abster de fazêlo a evitaria mas inviabilizaria a política A nãoparticipação colaboraria com dois tipos de conseqüências abrir brecha para o corporativismo médico e facilitar a cooptação de agrupamentos ou da própria população nãoarticulada no Movi mento Popular em Saúde 70 Se Liga no Sinal 312 julago 1993 Informativo do Cepel Rio de Janeiro cap8pmd 872011 1042 245 246 A alternativa participaçãonãoparticipação na qual o Movimento Popular em Saúde se colocou o submete a uma lógica que lhe é alheia conduzindoo ao dilema do prisioneiro expressa como paralisia decisória Elster 1989 Definitivamente o desafio é a criação de formas inovadoras de atuação política capazes de inaugurar uma outra lógica que abra as comportas a idéias não tão polarizadas e inibidoras tais como EstadonãoEstado participar nãoparticipar ser cooptadonão ser cooptado etc Polarizações ideológicas às quais o movimento se prende e que estão profundamente relacionadas a uma visão de Estado que o impede de se perceber fora de ainda que o discurso seja o da autonomia do movimento em relação ao Estado O espaço que os movimentos e usuários não preenchem nos Conselhos de Saúde passa a ser ocupado pelas entidades médicas novamente atuantes no plano político reivindicando a implementação do SUS e no plano corporativo exigindo isonomia salarial plano de cargos e salários e melhores condições de trabalho e de atendimento no setor público e privado O que se deduz da prática do movimento popular durante o período início da década de 90 é a inexistência de sinais de recuperação no processo de declínio observado desde o fim dos anos 80 O engajamento político do mo vimento que excepcionalmente reapareceu na oportunidade da IX Conferên cia voltou a se esvair ante as dificuldades de implementação da política de saúde nas suas instâncias agora descentralizadas assim como os Conselhos de Saúde órgão de participação social na política de saúde O próprio Estado contribuiu para que sua importância fosse minimizada ao não reconhecêlos Em nossa maneira de ver tratase de um direcionamento não deliberado de um acontecer que vai ocupando o espaço que o movi mento deixa vago e que se expressa através de formas individuais e solidárias de resistência à dor e até à própria morte enquanto estratégias para superar a sofrida experiência de empobrecer e adoecer dessas populações carentes cres cente nos últimos anos Às vezes ocorrem expressões ou manifestações de caráter mais coletivo tais como formação de hortas comunitárias ou de grupos de acompanhamento de doentes Entretanto mais freqüentemente acontecem de maneira individual quan do os próprios moradores procuram se capacitar como agentes de saúde comu nitários ou doam tempo à colaboração em atividades revertidas para a saúde da comunidade como a desinfecção de valas etc orientadas por impulsos soli dários e relacionadas de maneira imediata a situações de sobrevivência cap8pmd 872011 1042 246 247 Muitas dessas experiências retomam práticas anteriores das comunidades eclesiais de base da década de 60 recuperando ideais religiosos de comunhão vicinal Esse tipo de prática remete à discussão do papel dos sujeitos na política na medida em que reivindica e valoriza os procedimentos com os quais a cultura e a experiência popular contam para enfrentar a vida Revela o reconhecimento extremamente valioso de um acervo pessoal do qual os indivíduos lançam mão como alternativa nãomédica para enfrentar a doença e o sofrimento Com tudo isso evidenciase a perda dos espaços criados pela Reforma Sanitária para a efetivação da política de saúde pois embora o movimento participe dos Conselhos não os tem como próprios e decisórios para alcançar o sistema de saúde almejado pelas populações carentes Contudo tornase evidente que existe também um retrocesso do próprio movimento em sua articulação e institucionalização De fato a institucionalização tornase imprescindível para que se constituam interlocutores políticos legítimos e reconhecidos pelo Poder Executivo e pela sociedade organizada sindicatos partidos políticos entidades médicas organizações religiosas e outras A nãoinstitucionalização do movimento leva à nãomaioridade do mes mo sendo continuamente desconsiderado tutelado ou protegido por forças mais solidamente constituídas Se essas políticas acabam acontecendo como resultado do curso natural a procura da sobrevivência como a saída possí vel em face do descaso do Estado são também limitadoras ao não acarreta rem a capacidade de interferir no sistema de saúde Os condicionamentos políticos sociais e econômicos a que essas popula ções necessitadas estão submetidas parecem remeter a certas condições de ma turidade organizativa e portanto a políticas que não conseguem se cristalizar internamente no movimento e que são reiteradamente alternadas com a desinstitucionalização do mesmo Simultaneamente na mesma medida em que o movimento abandona o espaço de interferência na política de saúde repro duz a perpetuação das condições de existência dessas populações Em suma se o movimento não ocupa os possíveis espaços políticos aber tos acaba reproduzindo o lugar político que lhe foi atribuído Ao mesmo tem po outras forças organizadas se apropriam no caso analisado as entidades médicas desses canais de interferência nas decisões políticas De fato no mo mento em que as entidades médicas retomaram a atuação política passaram a exercer uma função tutelar em relação ao usuário do sistema público de saúde através do papel destacado nos Conselhos de Saúde e nas políticas de saúde dirigidas às camadas pobres da população cap8pmd 872011 1042 247 249 Conclusão A escolha teórica dos movimentos sociais em saúde no processo de reformulação e de implementação das políticas de saúde teve a pretensão de deslocar o foco de análise da política de saúde enquanto política social da esfera do Estado como lugar privilegiado para se pensar a política pública Situados nessa perspectiva penetramos na formação nos comporta mentos políticos e na atuação desses movimentos no transcurso de um momento da história política do País em que as tensões e contradições so ciais e políticas exacerbadas pelo regime autoritário no que se refere às relações Estadosociedade buscaram vazão através da transição à demo cracia Foi precisamente nessa passagem e na redefinição de áreas de política social como a da saúde que se localizaram os novos atores sociais e os protagonistas da cena democrática confundindose com o próprio proces so de instauração da democracia Tal decisão levou a que se trabalhasse com três focos de análise simultanea mente e a deslocar ou priorizar temporariamente um sobre os outros os movi mentos sociais em saúde a construção da democracia e a política de saúde Num enquadramento estritamente teórico do nosso múltiplo objeto nos parece necessário estabelecer algumas considerações Os movimentos sociais em saúde fazem parte de movimentos sociais e com eles compartilham as no vas formas de associativismo relacionadas à formação de identidades coletivas Estas são sustentadas em laços de solidariedade originados das condições de vida de populações carentes seja em moradia transporte saúde infraestrutura urbana educação etc ou em situações que afetam as condições e as modali dades de vida da classe média meio ambiente violência urbana discriminação de minorias pauperização de setores profissionais etc cap8pmd 872011 1042 249 250 Neste sentido os movimentos sociais em saúde embora não constituindo fenômeno restrito ou específico do setor da saúde têm elemento distintivo que os caracteriza que é o fato de se originarem numa área específica de política social situação que não se verificou com a mesma especificidade e alcance em nenhum outro setor da política pública A área de atuação desses movimentos restringiuse às questões relativas à saúde da população e às políticas de saúde No entanto a discussão política ultrapassou essa esfera questionando as relações entre Estado e movimento a política governamental e a autonomia e a institucionalização dos mesmos Constatase que os movimentos sociais em saúde contribuíram para a ampliação do exercício da política levando ao interior do Estado uma proble mática que dele estava ausente ao mesmo tempo que aproximou das decisões relativas à política de saúde tradicionalmente reservadas ao Estado os destinatá rios da mesma Dessa forma o movimento social exerceu papel protagonista no encurtamento da distância entre a esfera privada e a ordem pública O enfoque teórico pelo qual nos aproximamos da compreensão do Movi mento Social em Saúde incorporou as diversas concepções relativas à ação coleti va e à formação de identidades políticas que ajudaram a explicar as motivações que levaram atores coletivos e individuais a se disporem ou não a agir coletiva mente na reformulação das políticas de saúde dentro do contexto maior da transição à democracia A idéia defendida em relação ao conceito de movimento social implica uma novidade talvez sutil mas nem por isso menos importante na medida em que envolve a noção de comportamento coletivo Dito de outra maneira essa categoria referese por um lado a uma modalidade particular de associação caracterizada pela fluidez organizativa pela falta de institucionalização e conse qüentemente pela ausência de regras formais que definam hierarquias e vínculos entre os seus membros Por outro lado diz respeito ao modo como viabiliza demandas de teor políticoreivindicativo através da mobilização ou da ação coletiva na qual a disposição para a ação é fortemente marcada pela presença do coletivo Isso complementa o conceito visto que ajuda a identificar os movimentos sociais pelo comportamento político que os agrupamentos sociais desenvolvem Enfoques teóricos diversos recebem articulação plena se olhados da pers pectiva da definição do nosso objeto de pesquisa Analisar as políticas sociais da perspectiva dos atores sociais envolvidos nas decisões políticas e como destina cap8pmd 872011 1042 250 251 tários das mesmas levaram a reconstruir um campo teórico que se expandisse para além das teorias do Estado e do papel das políticas sociais nessa esfera Ao mesmo tempo que não podíamos deixar de incluir este campo de pensamento éramos obrigados a deslocar o eixo de reflexão da política social para o âmbito das sociedades Recriar uma perspectiva teórica na relação entre atores e política no con texto histórico delimitado pelo nosso objeto de pesquisa tornou figura princi pal o que era pano de fundo fazendo com que o processo de estabelecimento de regime democrático na abordagem da transição à democracia ganhasse pa pel fundamental na análise da relação entre os movimentos sociais em saúde e as políticas de saúde Assim discutimos a democracia nos seus aspectos constitutivos e em suas transformações impreteríveis nos pares de relações esfera públicaprivada indi víduosociedade eqüidadejustiça social como condição necessária para o esta belecimento de regime democrático capaz de assentar as bases de novo padrão das relações Estadosociedade no qual as políticas sociais e em especial as de saúde por lidar com a vida e a morte em sociedades profundamente desi guais exercem papel fundamental para a constituição da ordem democrática A idéia de democracia assinalada ao longo deste livro sustentase na de constituição de sujeitos democráticos capazes de reproduzir comportamentos e ações políticas que levem em conta a existência do outro Tratase da promo ção de democracias com extensiva participação social Por outro lado em situações de imensas desigualdades socioeconômicas das quais o Brasil é um exemplo num mundo que se aproxima cada vez mais da privação e da injustiça social verificase ilusório ignorar o papel que o Esta do tem a desempenhar na fundação de novo modelo de democracia que vá além da instalação de um sistema político democrático Neste sentido as políticas sociais e dentre essas particularmente a Refor ma Sanitária constituem elementos centrais na democratização do Estado ten do em vista que veiculam a participação social em área tradicionalmente restrita ou seja a da implementação de políticas e promovem a alocação e redistribuição progressiva de benefícios que contribuem para o estabelecimento da justiça social progressiva De fato ao discutirmos a Reforma Sanitária na moldura do processo de formação e implementação de políticas sociais ao mesmo tempo que sinalizá vamos os constraints estruturais relacionados ao próprio processo de acumula cap8pmd 872011 1042 251 252 ção no Estado capitalista enfatizávamos a presença de nível singular de análise das políticas sociais onde aspectos de inovação política ampliaram o espaço social e a luta política na arena estatal tanto nos procedimentos burocrático administrativos como nas relações de força societária que a implementação da política foi capaz de desencadear No entanto a questão de importância fundamental em nossa opinião é o papel singular que adquirem as políticas sociais devido a este ser precisamente campo propício à incorporação de inovações políticas e que no período estu dado mostrouse ameaçado pelas políticas de ajuste econômico das décadas recentes o que retraiu as políticas sociais a sua manifestação mínima O papel regulatório do Estado na relação com o mercado e o setor priva do assim como sua intervenção enquanto promotor do desenvolvimento eco nômico e da justiça social requer Estado forte contrariamente à idéia neoliberal do Estado mínimo e lhe impõe novas atribuições e exigências Dentre estas o desmonte e o redimensionamento da máquina estatal e a criação de centros de decisão política em que tenham assento e representação os diversos interesses sociais em jogo na sociedade relacionados a políticas específicas E implica fundamentalmente sensibilizar o Estado para experiências locais de gestão es pecialmente nas áreas de política social de modo que a democracia se confunda cada vez mais com a eqüidade social e que as mudanças se configurem em objeto de reflexão discussão e avaliação contínuas principalmente no que concerne a resultados e à efetividade obtidos através das mudanças implementadas O conceito de cidadania é central à perspectiva que nos interessa no pro cesso de constituição de um regime democrático quando os processos de re formas abrangentes das políticas sociais constituem a condição de possibilidade para o estabelecimento de sociedade mais justa e eqüitativa Razão pela qual ao discutir a cidadania procuramos denotar o sentido e a compreensão embutidos na concepção teórica que lhe deu origem e apontar as contradições que o con ceito denunciou a partir do desenvolvimento histórico já não do conceito mas da cidadania no mundo moderno Concluímos assim que a eqüidade resultante do percurso histórico da consecução de direitos de cidadania como conquista da sociedade ou mais especificamente da classe operária nas sociaisdemocracias dos países de capita lismo avançado está estreitamente relacionada à idéia de justiça social enquan to valor éticomoral impreterível ao estabelecimento da democracia A constru cap8pmd 872011 1042 252 253 ção da democracia referese à construção do que se tem chamado de demo cracia radical Mouffe 1992238 A distinção privado liberdade individualpúblico res publica tal como a separação indivíduocidadão não correspondem a esferas separadas Não é possível dizer onde termina minha obrigação como cidadão e onde começa a minha liberdade como indivíduo Estas duas identidades existem em permanente tensão e não podem ser reconciliadas Mas esta é precisamente a tensão entre liberdade e igual dade que caracteriza a democracia moderna A essência deste regime e de quaisquer tentativas de trazer a harmonia completa ou seja compreendêla como democracia verdadeira só levaria a sua des truição Esta é a razão pela qual o projeto de democracia radical e plural reconhece a impossibilidade da compreensão de democracia plena e a realização última da comunidade política Seu objetivo é usar recursos simbólicos da tradição democrática liberal para lutar pelo aprofundamento da revolução democrática sabendo que este é processo sem fim Minha tese é que a cidadania ideal poderia contri buir enormemente para a extensão dos princípios de liberdade e igualdade Unindo os direitos ideais e o pluralismo com as idéias do espírito público e o engajamento políticoético uma nova concep ção democrática moderna da cidadania poderia restaurar a dignida de da política e prover o veículo para a construção de uma hegemo nia democrática radical A concepção de democracia passa assim a denotar um processo no qual o sentido não é dado pela adscrição e pela procura de modelo acabado seja doutrina econômica a implantar ou proposta de sociedade Tratase de condi ção necessária ou dito de outra maneira da amplitude com que a democracia é capaz de viabilizar valores éticomorais isto é eqüidade e justiça social enquan to bastiões da dignidade humana respeito à pluralidade cultural étnica religio sa preferências sexuais de gênero etc e a liberdade em todas as manifestações doquefazer humano Porém os obstáculos a uma democracia que incorpore tais valores e comportamentos políticos decorrentes dos mesmos um regime democrático societário afiguramse intransponíveis O conceito de regimes de democratização parcial Schmitter 1991a foi de grande importância para pensarmos considerando as dificuldades expos tas anteriormente a constituição da democracia como estabelecimento de estruturas e comportamentos democráticos em áreas restritas de políticas nas quais uma particular configuração sociopolítica as faz portadoras de maleabilidade cap8pmd 872011 1042 253 254 que as habilita a veicular transformações num conjunto de instituições mais sensíveis à participação e à discussão societária Neste sentido a constituição da democracia é compreendida como um processo político de partes em movimento um mix de regimes parciais de democratização Schmitter 1991a que atualizam interiormente as dificuldades de mudanças mais homogêneas e unívocas e conseqüentemente a democracia como processo político porque incompleto em permanente transformação A formação de regimes de democratização parcial sinaliza portanto um caminho de aproximações sucessivas em que recortes não completamente estruturados compõem um mosaico inacabado e em permanente movimen to Definitivamente por trás da idéia da formação de regimes de democrati zação parcial o que se tem é uma abordagem metodológica que renuncia à idéia de totalidade para ancorar na indeterminação resgatando uma direcionalidade progressiva O setor da saúde particularmente a Reforma Sanitária brasileira tem se constituído num regime de democratização parcial caracterizado pelo ressurgi mento da sociedade civil e pelo nascimento dos movimentos sociais em saúde que desempenharam papel inestimável na política de saúde até então pratica mente confinada ao espaço exclusivo do Estado A análise do Movimento Social em Saúde na sua relação com a política nacional de saúde mostrou a origem dos movimentos sociais relacionada à acepção de cidadania que os processos de democratização trouxeram para o centro da cena política Já a trajetória desses movimentos religouse às alternati vas que os protagonistas sociais imprimiram ao processo de transformação da política de saúde nas diversas esferas implicadas O Movimento Social em Saúde nas duas vertentes analisadas e na relação com o processo de formulação da política de saúde atravessou fases extrema mente diversas A ação coletiva foi num crescendo marcada pela identidade co letiva alcançada pelo movimento mas também caracterizouse por momentos de clara estagnação nos quais as dificuldades se evidenciaram principalmente ao ter que optar diante de modalidades mais institucionalizadas no exercício da política O período da transição à democracia marcado pela oposição ao regime militar com amplos setores da sociedade engajados foi propício à formação do Movimento Popular em Saúde De fato se originou sob o calor da discus são crítica das condições de saúde das populações marginais nas grandes me trópoles Esse período de formação iniciado em finais da década de 70 foi cap8pmd 872011 1042 254 255 influenciado pelas comunidades eclesiais de base experiências de organiza ção popular desenvolvidas pela Igreja com as populações carentes e pelas experiências de medicina comunitária como política de saúde alternativa ao sistema de saúde do regime autoritário Teve como difusores intelectuais e profissionais de saúde engajados numa prática políticopartidária Ainda que as políticas de saúde tenham se erigido no eixo que marcou a atuação do movimento a relação deste com as políticas de saúde foi caracteri zada pela dinâmica interna do próprio movimento Questões relativas à pro posta políticoorganizativa a autonomia diante do Estado a institucionalização do movimento e a relação com os partidos políticos foram adquirindo signi ficado decisivo o que se depreende da trajetória desses movimentos ante as políticas de saúde O que diferenciou o momento de estruturação do movimento foram as tentativas para conseguir articulação nacional e a oposição às políticas de saúde do regime militar que excluíram as populações carentes do atendimento e dos de mais cuidados de saúde ao favorecerem o setor privado às custas do setor públi co A proposta alternativa articulada pelo movimento foi a da medicina comuni tária a ponto de os encontros nacionais do Movimento Popular em Saúde nos primeiros anos denominaremse encontros de medicina comunitária A fase de ascensão do movimento coincidiria com mudanças substantivas no processo político de democratização quando a ênfase recaiu na definição de propostas políticas que diferentemente da época autoritária estimulassem os setores da sociedade excluídos no regime precedente à participação social e econômica Sob esse aspecto a proposta da Reforma Sanitária foi tomando forma até alcançar o ponto de maior definição na VIII Conferência Nacional de Saúde O Movimento Popular em Saúde amadureceu neste contexto tanto no que se refere à proposta localizada na medicina comunitária para abranger o Sistema Nacional de Saúde quanto na articulação política do movimento com a cria ção de federações estaduais e confederações nacionais de bairros e favelas Foi um segundo momento em que o processo definitório da reformulação do sistema de saúde se confundia com a existência mesma do Movimento Popular em Saúde As interferências relativas à problemática interna do movi mento mencionadas antes eram menos notórias embora já se evidenciassem diferenças a respeito da estatização do sistema de saúde e da autonomia do movimento em relação àquela cap8pmd 872011 1042 255 256 Por último a fase de declínio que se caracterizou mais pelo agravamen to da discussão política interna que por definições claras do movimento em relação à implementação da Reforma Sanitária Esta fase pode ser definida como a das resistências e dificuldades que o movimento enfrentava diante de um processo de institucionalização que lhe permitisse talvez atuação mais decisória na política de saúde através de Conselhos Municipais Esta duais e Nacional Algumas reflexões ou inquietações retomam o enfoque teórico pela mão da trajetória do movimento agora no que concerne à dinâmica da relação entre atores e políticas Quando se constituem os atores em sujeito e quando deixam de sêlo Como consegue ou não esse tipo de movimento transcender suas limitações para se situar no plano da definição da política A dificuldade que o Movimento Popular em Saúde exprime em sua trajetó ria é a de se assumir como sujeito autoconstruído em lugar de em oposição a Essa passagem é afinal evolução em relação ao Estado Ao longo do tempo o lugar ocupado reiteradamente pelo Estado acaba se configurando em limite estreito e constrangedor na percepção de si mesmo e conseqüentemente na sua operacionalidade política Isso significa que não estando resolvido o dilema a respeito de si mesmo este impede a projeção no âmbito político em atuação duradoura ainda que chegue a ser sujeito político ou sujeito na política diante de situações de crise de maneira quando muito apenas esporádica Esse autolimitarse da atuação faz com que o processo a encaminhe à perda progressiva na capacidade de decisão estratégica ao mesmo tempo em que desemboca no objetivo rejeitado Seu contorno está configurado de fora para dentro não à maneira da autonomia tal como compreendida pelo movi mento mas segundo a dimensão com que o Estado vai avultando na atuação do movimento e nas distorções do discurso ideológico Assim o discurso tornase realidade enquanto impossibilidade de constru ção de espaço próprio Em tal sentido não é o Estado que coopta o movimen to mas é o temor à cooptação que acaba impondo ao movimento enquanto este pretende se definir como organização independente a disjuntiva entre ser organização sob a luz do Estado ou desaparecer definitivamente De alguma maneira a profecia autocumprida presente no imaginário desses movimentos é intrinsecamente estabelecida pela própria dinâmica constitutiva dos mesmos até adquirir um peso decisivo no fiel da balança a ameaça de cap8pmd 872011 1042 256 257 cooptação deixa de ser virtual e se torna fantasmagórica realidade ou simples mente realidade Já o Movimento Médico e sua atuação face às políticas de saúde apresen taram uma problemática interna e questões bem diversas das detectadas no movimento popular Em primeiro lugar a denominação movimento esbarra na particular modalidade de articulação e organização que no Brasil os profis sionais médicos têm se dado na prática desde a regulamentação da medicina como profissão Com efeito o Movimento Médico é formado por diversas entidades Várias delas originadas no início do século XX caracterizamse por alto grau de institucionalização e presença nos vários níveis em que se desenvol ve a vida do profissional médico A mobilização por reivindicações laborais e a oposição às políticas de saúde dominantes no regime militar levaram os médicos do final da década de 70 até meados dos anos 80 a agir coletivamente sem que a atuação da categoria estivesse atrelada às instituições médicas Criouse um Movimento Médico que sem desco nhecer a existência das entidades médicas não as reconhecia como condutoras efetivas da classe A categoria agia suprainstituições médicas muitas destas tendo passado até mesmo por intervenções militares A liderança efetiva da categoria foi assumida pelo Movimento de Renovação Médica originado de uma chapa elei toral formada para disputar as eleições no Sindicato dos Médicos A condição de possibilidade para que os médicos agissem e se constituíssem em movimento com identidade coletiva relacionavase às peculiaridades da corporação médica sustentadas mais do que numa estrutura hierárquica na força que o ideário da profissão médica tem para com seus praticantes Caro 1969 Desse modo a atuação do Movimento Médico caracterizouse por forte resistência às políticas de saúde do regime militar e pela disputa de um papel principal na elaboração junto a outros integrantes do Movimento Social em Saúde de uma proposta de reformulação do sistema o que culminou na proposta nacional de Reforma Sanitária por ocasião da VIII Conferência Nacional de Saúde A constituição do Movimento Médico característica principal da atuação da categoria na década mudou substantivamente no final dos anos 80 Em pleno processo de democratização do País sem a oposição aos militares como traço de união do movimento e uma vez regulamentada a Reforma Sanitária na Constituição Nacional de 1988 os médicos passaram a ser repre sentados pelas instituições médicas Dentre estas adquiriu papel central o Sindi cap8pmd 872011 1042 257 258 cato dos Médicos em defesa dos interesses econômicocorporativos dos mesmos e o Conselho de Medicina que tentava preservar o papel político dos médicos na defesa dos princípios da Reforma Sanitária É necessário salientar as diferenças que permearam a categoria médica re lacionadas às transformações no mercado de trabalho as quais se refletiram numa atuação política focalizada nas múltiplas formas de representação dos interesses médicos segundo a particular inserção destes no mercado de traba lho Nessa contingência o movimento social se fraturou e a defesa da implementação da Reforma Sanitária e dos princípios que lhe deram origem cedeu lugar às diferenças evidenciadas internamente na categoria e expressas na representação dos interesses da corporação médica No que diz respeito à categoria médica em face das políticas de saúde houve o gradual abandono dos princípios da Reforma Sanitária e os médicos manifestaram por meio de sucessivas e intermináveis greves o inconformismo com a situação salarial e com as condições de trabalho eixos principais da atuação da corporação na década de 90 A articulação do Movimento Popular em Saúde foi difusa de modo geral o que se explica pela especificidade desse tipo de movimento Dispõe de uma organização flexível pouco formalizada institucionalmente A mobilização por demandas de saúde ante o Estado é que desempenha papel principal em sua constituição e permanência no cenário Contudo o Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico chegaram a ter uma dinâmica de atuação bem articulada em tomo das grandes questões do setor Por algum tempo na primeira fase e até meados da segunda o processo de reformulação do setor que culminaria com a Reforma Sanitária na VIII Con ferência Nacional de Saúde assim como com a formação da Plenária Nacional de Entidades de Saúde para influenciar o processo constituinte e a regulamenta ção da Constituição Nacional contou com o trabalho conjunto do movimento popular e do Movimento Médico no apoio à incorporação da Reforma Sanitária na Constituição As dificuldades entre ambos os movimentos se evidenciaram menos com relação à política que em relação a interesses divergentes entre usuários e médi cos centrados de um lado nas necessidades de atendimento da população e de outro nas greves médicas por melhores salários e condições de trabalho que desde 1989 de maneira ininterrupta levaram a uma pronunciada crise de aten dimento do setor público situação mais notável aliás nos estados com grande cap8pmd 872011 1042 258 259 rede federal e estadual e os que ofereciam as piores condições de remuneração e de infraestrutura hospitalar As greves no setor público já bastante depreciado pelo descaso dos gover nos federal e estadual reforçariam o desmonte deste o que afetaria profunda mente os usuários do sistema populações de baixa renda em geral e que não dispunha de nenhuma outra opção de atendimento A situação gerou enfrentamentos tendo a população manifestadose contra os médicos em di versas oportunidades71 A atuação dos médicos foi de encontro aos interesses dos usuários Mas a resistência do Movimento Popular em Saúde em se institucionalizar e a ter papel mais decisivo na política deixaram desprotegidos os usuários abrindo caminho para o corporativismo médico Cabem aqui algumas reflexões a respeito do peso ou incidência de cada uma das seguintes questões na atuação do Movimento Social em Saúde em face da implementação da Reforma Sanitária a articulação política entre os movimentos a modalidade de atuação e de organização interna e a própria política de saúde tal como implementada na esfera do governo Em primeiro lugar os fatores externos ao movimento a particular mo dalidade governamental na implementação da Reforma Sanitária explicável pelas diferenças políticoideológicas do governo com a Reforma tiveram grande peso no retrocesso político do Movimento Social em Saúde Em segundo lu gar o que se depreende do tratamento da questão é que os mesmos fatores externos não foram determinantes no comportamento que esses movimentos desenvolveram comportamento este que respondeu à própria dinâmica interna dos mesmos O modo como os movimentos reagiram aos empecilhos opostos pelo governo à Reforma Sanitária obedeceram no caso do movimento popular à particular modalidade de atuação e às resistências do movimento a ter partici pação mais incisiva na política de saúde através dos Conselhos de Saúde o que facilitou a rendição à atuação corporativa dos médicos Fatores externos e internos ao movimento interagiram num campo extre mamente conflituoso o das políticas de saúde com forte conteúdo de reforma num contexto de democratização do País extremamente frágil no 71 Vide conflito sobre o Hospital da Posse mencionado no capítulo 5 cap8pmd 872011 1042 259 260 que se referia às transformações substanciais necessárias à concretização do es tabelecimento de um regime democrático As dificuldades vieram após o processo de implementação da Reforma marcada pelo retrocesso político do Movimento Social em Saúde que se carac terizou caso do movimento popular pelas divergências políticas internas que paralisaram sua atuação pelas mudanças que afetaram a categoria médica e pela ausência do papel de liderança política que desempenhara o Movimento Sanitário nos anos 80 Enquanto o movimento popular se debatia no dilema de participar e ser cooptado pelo Estado ou absterse e evitar a cooptação o papel potencial que entidades autônomas poderiam exercer para forçar a participação social nos Conselhos de Saúde foi inviabilizado pelos próprios movimentos A situação ao contribuir para neutralizar a questão embutida na concepção da Reforma Sanitária é que paradoxalmente favoreceu o corporativismo médico e facili tou efetivamente o caminho para a cooptação de representantes de usuários nos Conselhos de Saúde No que se refere ao papel que o Estado deveria preservar para dar prossegui mento à política os empecilhos colocados pelo governo foram decisivos para impedir avanços substantivos do processo reformador no setor saúde Os avan ços que a Constituição de 1988 incorporou à própria noção de saúde e ao sistema que viria a possibilitar a distribuição mais eqüitativa da saúde passou por tentativas diversas marcadas pelo desconhecimento da legislação constitucional e pela modificação das leis substituídas por decretos do Executivo que contra diziam a letra o escrito e o espírito da Constituição Foi o tratamento que recebeu inicialmente a Lei Orgânica da Saúde ao ser vetada pelo Presidente da República expressamente nos tópicos referentes às Conferências Nacionais e aos Conselhos à formulação de Plano de Carreiras e Salários à transferência automática dos recursos e à restruturação do Ministério de Saúde com a extinção e descentralização do Inamps Sucam e FSESP De qualquer maneira se o governo cedeu nesse ponto específico na operacionalização das medidas constitucionais conseguiu sistematicamente des respeitar o estabelecido por lei como observado na questão do repasse dos recursos a estados e municípios que continuaram com as mesmas dificuldades Deduzimos do exame do processo que este tem avançado nas linhas de menor resistência política o repasse dos serviços enquanto o núcleo duro da Reforma correspondente ao financiamento do sistema de saúde não sofreu cap8pmd 872011 1042 260 261 as alterações necessárias para a implementação da política a ser efetivada com o que se obteve o estabelecimento apenas de mudanças de caráter administrativo ou reorganizativo dos serviços no SUS Embora o processo de descentralização com a atuação do Inamps e de outros órgãos centralizadores da política tenha acontecido mais pelo incenti vo do Movimento Social em Saúde particularmente a partir da realização da IX Conferência Nacional consistiu sempre de medidas circunstanciais sobre o desgaste do governo pela força ocasional alcançada nesses momentos pelo Movimento Social em Saúde sem que as medidas revertessem em duradouras melhorias quer do funcionamento do sistema quer da administração de maior bemestar relativo à saúde para a população mais necessitada Seja como for o que o processo de descentralização evidenciou nos municípios analisados foi que a existência de algumas precondições gover no municipal consubstanciado com a proposta a existência de um projeto de saúde municipal elaborado a partir do quadro sanitário da população o au mento dos recursos destinados ao setor o aumento dos salários dos profissi onais de saúde facilitarou indiscutivelmente a implementação da Reforma Sanitária no nível local Neste sentido importantes transformações foram operadas no setor saú de ainda que localizadas mais no plano político que em resultados concretos considerados estes como melhoras palpáveis nas condições de saúde da popu lação Mas o setor temse tornado como se pode observar em algumas das experiências de municipalização da política mais sensível à participação da po pulação mais transparente na gestão do sistema e mais plural na atuação dos diversos atores que o compõem ainda que seja difícil esperar transformações mais substanciais no setor A Reforma Sanitária resultado de um movimento originariamente societário de oposição ao regime militar cujas lideranças provinham de partidos políticos da esquerda foi uma proposta que extrapolou o setor saúde É indiscutível que a Reforma Sanitária brasileira constituiuse num paradigma político da noção de Reforma no campo das políticas sociais e conseqüentemente num labora tório privilegiado para a análise da viabilidade na implementação de transfor mações nas instituições estatais e a relação entre reformas e democracia Dado o atual estágio e as dificuldades na consolidação do regime demo crático os impulsos reformadores no setor saúde e a capacidade de viabilizá los colaboram para a constituição de um regime de democratização parcial cap8pmd 872011 1042 261 262 num setor de políticas específico e em um determinado momento fazendo reiterese aportes relevantes para o reestabelecimento de um regime demo crático no Brasil A afirmação remete à idéia de a consolidação da democracia considerarse mais que um regime um mix de regimes parciais articulando e governando um conjunto de instituições cuja consolidação não acontece simultaneamente No marco do processo de consolidação da democracia a Reforma Sanitária cons tituiuse um regime de democratização parcial apesar das limitações antepostas pelo governo a sua implementação A análise do processo de implementação da política reformadora é extre mamente esclarecedora a respeito das questões teóricas discutidas no capítulo inicial Se observarmos até onde houve avanços no processo de implementação da Reforma veremos sustentarse de maneira conclusiva a idéia de que os limi tes de política de reformas substantivas no setor não foram dados por limita ções intrínsecas à democracia mas pelo caráter que a democracia adquire em determinados processos nacionais e de acordo com circunstâncias históricas sociais e políticas Neste sentido o governo vitorioso primeiras eleições livres para Presi dente da República após o longo regime autoritário não teve por meta dar substância social à democracia política nascente Mantevese isso sim muito longe de promover o estabelecimento de um regime de embasamento de mocrático Cabe reiterar que a relevância da afirmação anterior se apóia no significado dado à concepção do que seja o estabelecimento de regime democrático relaci onado à reprodução da própria democracia enquanto maneira de envolver o conjunto atuante das relações sociais e políticas e capaz de atualizar as diferen ças além de definir saídas à base de consenso construído em processo discursivo Habermas 1984 ou dito de outra forma pela aceitação da existência do outro social eou político no campo relacional específico O conceito em que alavancamos a compreensão da Reforma Sanitária o da formação de regimes de democratização parcial remete ao estabelecimento de regras e comportamentos democráticos num campo determinado de políticas e instituições A capacidade de expandir a reprodução da democracia por aproxi mações sucessivas com o intuito de conquistar um regime democrático tanto na sociedade quanto na ordem política ajudou a pensar a formulação e a implementação das políticas de saúde como processo em permanente transfor cap8pmd 872011 1042 262 263 mação A partir disso constatamos o quão profundas foram as mudanças sobre tudo na formulação e na definição da política alcançada na medida em que pro blemas da mesma intensidade e alcance em nível governamental e dos movimen tos dificultaram o andamento progressivo da Reforma Sanitária Assim a análise da participação social através da atuação organização e articulação dos movimentos sociais em saúde nos sucessivos momentos dife renciados da trajetória da Reforma Sanitária evidencia que regimes de demo cratização parcial são viáveis quando se leva em consideração o estágio em que os atores sociais com inserções diversas na política se constituem a partir de e se expressam para viabilizar ou dificultar o andamento de dada política Por fim o grau e o alcance da participação social na política seja através de sujeitos indivíduos movimentos ou atores sociais define o direcionamento e a profundidade no estabelecimento de regimes de democratização parcial cap8pmd 872011 1042 263 265 Referências Bibliográficas ABRANCHES S A Os Despossuídos crescimento e pobreza no país do milagre Rio de Janeiro Zahar 1985 BIRMAN J A interpretação e a singularidade do sujeito na experiência psicanalítica Physis 12722 1991 BUSS P Saúde e Desigualdade o caso do Brasil EnspFiocruz 1994 Mimeo CAMPOS G W de S Os Médicos e a Política de Saúde entre a Estatização e o Empresariamento a defesa da prática liberal da medicina 1986 Dissertação de Mestrado São Paulo Universidade de São Paulo CAMPOS G W de S Um balanço do 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melhorias de equipamentos médicos e de saneamento básico onde priorizavam formas de organização mobilização e pressão ao confrontar o Estado MALFITANO E LOPES2009 O movimentos se destacava pois levava em consideração as ações além das experiências comunitárias de medicina alternativas ou seja dos saberes locais em relação remédios caseiros plantas medicinais e métodos naturalistas utilizados nas regiões mais carentes do país como o norte e nordeste ou nas localidades interioranas dos estados O MOPS ganhou visibilidade numa multiplicidade de localidades pelo Brasil Nas periferias das grandes regiões metropolitanas e capitais brasileiras como São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Porto Alegre Curitiba Recife Fortaleza Vitória Cuiabá Teresina e outros tantas localidades este movimento também marcava presença nos Estados de Goiana Tocantins Roraima e no Distrito Federal Mesmo mantidas as raízes das experiências em medicina comunitária a força do movimento popular em saúde era nítida cujos princípios se definiam pela manutenção da independência e autonomia dos grupos organizados em relação aos partidos e ao governo Logo a saúde passou a vir de tomadas de decisões pelo povo GERSCHMAN2004 Naquele momento a medicina comunitária colocavase como alternativa ao sistema de saúde na medida em que o setor público de saúde se deteriorava como resultado da crescente privatização da assistência médica O setor se caracterizava pelo repasse de verbas para o setor privado com a consequente deterioração dos hospitais públicos as filas para atendimento a ausência de assistência que cobrisse as necessidades mais prementes da população carente MALFITANO E LOPES2009 Portanto nasce o PSF segundo o Ministério da Saúde se traduz como técnica que prioriza as ações de promoção proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e da família do recémnascido ao idoso sadios ou doentes de forma integral e contínua BRASIL 2003 Podemos destacar que uma equipe mínima do PSF é composta por um médico generalista um enfermeiro um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitário de saúde ACS Sendo assim o trabalho do ACS e atender aos moradores em suas casas dando atenção a todas as questões relacionadas à saúde identifica problemas orienta encaminha e acompanha a realização dos procedimentos necessários à proteção promoção e recuperaçãoreabilitação da saúde das pessoas daquela comunidade Os mesmos recebem qualificação específica e passam a fazer parte da equipe de saúde local MALFITANO E LOPES2009 Você vê características semelhantes entre as ações do movimento popular em saúde Mops e o trabalho dos Agentes comunitários de saúde ACs Podemos verificar características semelhantes entre as ações do MOPs e do ACS quando vislumbramos que tanto no Movimento Popular da Saúde quanto no trabalho dos Agentes comunitários de saúde o campo social é algo levado em total consideração pois priorizam o cuidado segundo as necessidades do grupocomunidade neste caso os dois perpassam por uma política de saúde que almeja atender as necessidades sociais da comunidade em questão tendo poder mediador entre as carências das comunidades e o poder público visando melhorias e eficácia das politicas sociais e de saúde no nível local Referências BRASIL Ministério da Saúde Programa de Saúde da Família Disponível em httpwwwsaudegovbrpsf Acesso em Out 2022 GERSCHMAN 2004 A democracia inconclusa um estudo da reforma sanitária brasileira Disponível em httpswwwarcafiocruzbrbitstreamhandleicict42084gerschman 9788575415375pdfjsessionid94C383589616FAF7031157147425A83E sequence3Acesso em Out2022 MALFITANO Ana Paula Serrata e LOPES Roseli Esquerdo Educação popular ações em saúde demandas e intervenções sociais o papel dos agentes comunitários de saúde Disponível emhttpswwwscielobrjccedesaFpW37t85m4XQKxgLNgC6G7P langpt Acesso em Out2022
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Texto de pré-visualização
Educação e Promoção em Saúde Você vê características semelhantes entre as ações do Movimento Popular em Saúde Mops e o trabalho dos Agentes Comunitários em Saúde Acs SciELO Books SciELO Livros SciELO Libros GERSCHMAN S A democracia inconclusa um estudo da reforma sanitária brasileira online 2nd ed Rio de Janeiro Editora FIOCRUZ 2004 270 p ISBN 9788575415375 httpsdoiorg1074769788575415375 All the contents of this work except where otherwise noted is licensed under a Creative Commons Attribution 40 International license Todo o conteúdo deste trabalho exceto quando houver ressalva é publicado sob a licença Creative Commons Atribição 40 Todo el contenido de esta obra excepto donde se indique lo contrario está bajo licencia de la licencia Creative Commons Reconocimento 40 A democracia inconclusa um estudo da reforma sanitária brasileira Silvia Gerschman A Democracia Inconclusa um estudo da Reforma Sanitária brasileira cap1pmd 872011 1028 1 FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ Presidente Paulo Ernani Gadelha Vieira VicePresidente de Ensino Informação e Comunicação Nísia Trindade Lima EDITORA FIOCRUZ Diretora Nísia Trindade Lima Editor Executivo João Carlos Canossa Mendes Editores Científicos Gilberto Hochman Ricardo Ventura Santos Conselho Editorial Ana Lúcia Teles Rabello Armando de Oliveira Schubach Carlos E A Coimbra Jr Gerson Oliveira Penna Joseli Lannes Vieira Ligia Vieira da Silva Maria Cecília de Souza Minayo cap1pmd 872011 1028 2 2ª edição A Democracia Inconclusa Silvia Gerschman um estudo da Reforma Sanitária brasileira cap1pmd 872011 1028 3 Copyright 2004 da autora Todos os direitos desta edição reservados à FUNDAÇÃO OSWALDO CRUZ EDITORA ISBN 8585676205 1a Reimpressão 2011 Colaboraram na 2ª edição Capa Projeto Gráfico e Editoração Eletrônica Carlota Rios Imagem da capa Blue 3 de Georgia OKeeffe 1916 The Brooklyn Museum N York Revisão e copidesque Marcionílio Cavalcanti de Paiva Digitação Gislene Monteiro Coimbra Catalogação na fonte Centro de Informação Científica e Tecnológica Biblioteca da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca G381d Gerschman Silvia A Democracia lnconclusa um estudo da Reforma Sanitária brasileira Silvia Gerschman 2 ed Rio de Janeiro Fiocruz 2004 272 p 1 Refoma Sanitária Brasil 2 Política de Saúde Brasil CDD20 ed 362 10680981 2011 EDITORA FIOCRUZ Av Brasil 4036 Térreo sala 112 Manguinhos 21041361 Rio de Janeiro RJ Tels 21 38829039 38829041 Telefax 21 38829006 httpwwwfiocruzbr email editorafiocruzbr cap1pmd 872011 1028 4 À minha filha Mariana companheira de todas as jornadas cap1pmd 872011 1028 5 PREFÁCIO 9 APRESENTAÇÃO 13 PPPPPARTE ARTE ARTE ARTE ARTE I I I I I 1 A Construção da Democracia algumas questões históricas e teóricas 29 2 O Processo de Reformulação do Setor Saúde os atores as estratégias e o papel dos organismos estatais 53 3 Os Movimentos Sociais em Saúde questões teórico metodológicas para sua abordagem 67 PPPPPARTE ARTE ARTE ARTE ARTE II II II II II 4 O Movimento Popular em Saúde 89 5 O Movimento Médico composição e trajetória 135 PPPPPARTE ARTE ARTE ARTE ARTE III III III III III 6 O Processo de Implementação da Reforma Sanitária 179 7 A Descentralização do Sistema de Saúde 237 8 Os Conselhos de Saúde 237 CONCLUSÃO 249 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 265 Sumário cap1pmd 872011 1028 7 9 É relativamente recente o estudo explícito e sistemático da democratiza ção ou seja dos processos pelos quais os regimes políticos transitam de dife rentes formas de autocracia e tentam consolidar algum tipo de democracia Tal estudo foi muito estimulado pelo grande número de mudanças de regime ocor ridas desde 1974 quando Portugal foi o primeiro a derrubar sua prolongada ditadura Nas duas décadas e meia seguintes quase 50 países seguiram esse caminho Não há um só continente que não tenha sido afetado por essa onda de democratização e há poucas autocracias remanescentes que de alguma forma não foram por ela ameaçadas A ditadura militar que governou o Brasil a partir de 1964 foi uma das primei ras da América Latina a mostrar algum sinal de desejo de pelo menos liberalizar suas instituições e práticas Já em 1979 o novo Presidente do País general João Baptista de Oliveira Figueiredo tinha a intenção de apoiar uma abertura na vida política brasileira com o propósito não acompanhado porém de um calendá rio específico de fazer com que o Brasil retornasse à democracia Esse retrospecto revela que a transição brasileira foi uma das mais protela das e controladas Passaramse mais de dez anos até que um chefe do Executivo popularmente responsável assumisse o poder e a perspectiva de uma retomada do poder ditatorial declinasse significativamente Durante todo esse período os militares e seus aliados civis permaneceram firmemente no poder e controla ram intimamente tanto o ritmo quanto o conteúdo das formas políticas A abertura permitiu uma substancial mobilização da sociedade civil e isso sem dúvida teve algum impacto sobre a decisão final de se aceitarem práticas democráticas Não obstante a grande campanha popular para a realização de eleições diretas para a Presidência em 1985 foi facilmente suprimida Sobre Prefácio cap1pmd 872011 1028 9 1 0 isso não há provas de que os governantes militares brasileiros tenham sido compelidos a fazer concessões explícitas muito menos a se engajarem em pac tos com elementos de oposição Isso contrasta fortemente com o caso da Argentina onde a derrota na Guerra das Malvinas conduziu a um rápido e incontrolável colapso do ancien régime e com o do Uruguai e do Chile onde derrotas não previstas em plebiscitos forçaram os ditadores militares a negociar uma retirada do poder com os partidos de oposição Tudo isso torna a pesquisa de Silvia Gerschman mais desafiadora No caso do Brasil o processo contemporâneo de democratização foi incomumente gradual e parcial Não houve momentos definitivos ou períodos concentrados de ruptura com a autocracia anterior Instituições e práticas assim como as relações de poder que as cercam mudaram apenas perifericamente em ritmos muito diferentes entre si O tema de sua escolha política de saúde não foi particularmente destacado dentro do processo global de democratização em bora tenha sido afetado em grande parte de modo indireto pelas transforma ções que se evidenciaram nas eleições nos partidos políticos na liberdade de associação na elaboração da Constituição e na responsabilidade accountability das ações do Executivo Contudo em pelo menos três aspectos a autora foi além dos limites usuais do que ficou conhecido como transitologia e consolidologia pesquisou profundamente numa arena essencial e específica a política de saúde quando virtualmente toda a literatura existente sobre democratiza ção concentravase exclusivamente em temas referentes a procedimentos e escolhas institucionais que supostamente afetam todas as arenas da política desviou o foco de atenção de uma preocupação exclusiva com mudanças em nível nacional para o impacto dessas mudanças sobre grupos profissi onais específicos sobre unidades territoriais nacionais isto é sobre o Mo vimento Médico e sobre alguns municípios distribuídos pelo Brasil forçou os analistas da transição e consolidação a dar atenção não apenas à tomada de grandes decisões de política mas também à sua implementação em setores e locais específicos também chamando atenção para as mu danças de micro e médio níveis necessárias para tornar a democratização efetiva para os cidadãos cap1pmd 872011 1028 10 1 1 O produto final é uma importante contribuição para a compreensão não apenas da substância da transição particularmente prolongada e controlada no Brasil mas também do processo pelo qual a democratização pode ter impacto sobre específico setor da política e afetar a vida diária dos cidadãos numa am pla gama de países Silvia reuniu três níveis cruciais de análise para sustentar a explanação de um processo políticosocial complexo o nível de democratiza ção do regime o nível intermediário de atores coletivos e dos movimentos sociais e o nível diferenciado de uma área de política com implicações de longo prazo para a estabilidade de uma política democrática de um economia produ tiva e de uma sociedade justa ou seja a saúde de sua população Infelizmente que eu conheça não há estudos comparáveis sobre quaisquer dos cerca de 50 países que tentaram mudanças de regime dessa ordem Nós em Stanford tivemos o privilégio de ter Silvia Gerschman conosco por um longo período como pesquisadora convidada Aqui e ali em sua análi se podese sentir o impacto de sua estada em nossa companhia Em várias ocasiões em palestras conferências e seminários Silvia discutiu seu projeto com outros pesquisadores do Centro de Estudos LatinoAmericanos The Center for Latin American Studies CLAS e também nos influenciou por suas idéias e pelo seu entusiasmo Pessoalmente fiquei especialmente impressionado com o modo pelo qual conseguiu expIorar minha noção de regimes parciais e aplicála de forma criativa ao setor de política de saúde em sua conclusão O substancial de seu esforço porém foi realizado no Brasil num difícil processo de pesquisa de campo Reuniu dados primários de uma variedade de fontes documentais realizou entrevistas com atores relevantes e ainda reconstituiu uma história complexa a partir de elementos em diversos níveis de agregação no transcorrer de um longo período O tempo despendido em Stanford foi constru tivamente gasto num esforço de colocar seu estudo de caso num contexto teórico e comparativo mais amplo mas o trabalho realmente difícil dependeu de uma sistemática e longa compilação anterior de dados relevantes e precisos O que a autora descreve como o caminho das pedras não teve início nas reuniões em minha sala começou muito antes nos arquivos e gabinetes de muitas instituições brasileiras públicas e privadas Como alguém que há muito anos passou pela mesma experiência de pesquisa de campo posso testemunhar pessoalmente quão frustrante e excitante pode ser reunir dados originais no Brasil Há poucos países no mundo onde tão pouco está à disposição dos pesquisadores para a compreensão de processos políticos e sociais e onde tanto cap1pmd 872011 1028 11 1 2 pode ser conseguido com a ajuda dos atores políticos e sociais envolvidos nestes Silvia Gerschman sentiu e explorou esse paradoxo e todos nós temos essa dívida com ela Philippe C Schmitter Universidade de Stanford cap1pmd 872011 1029 12 1 3 A versão original do livro foi resultado de uma reflexão marcada pela conjuntura política de fins da década de 80 e início da de 90 A rapidez das mudanças globais após a primeira metade da década de 90 porém requer uma contextualização que permita retomar as questões e desafios que a reformulação da política de saúde trouxe ao cenário da democracia brasileira Os dez anos que nos encaminharam ao pulo do próximo século falam de um mundo em acelerada e vertiginosa transformação em todos os campos da realidade e do que fazer humano esse clima e essa sensação do fugaz marcam a apresentação da reedição de A Democracia Inconclusa No novo milênio a democracia está fortemente ameaçada Nos países de industrialização avançada o Welfare State vem atravessando uma longa crise que já leva quase 20 anos alimentada na década de 90 pelo processo de globalização da economia predominância do mercado face ao Estado profundas mudan ças no mundo do trabalho e fortes tendências à concentração econômica movi da pelo capital financeiro que se tornou o eixo do processo de acumulação capitalista Gerschman Vianna 1997 As políticas sociais dos Estados democráticos após a Segunda Guerra passaram a ser centrais na atividade política e econômica desses países A busca de um maior bemestar e igualdade constituiuse em mecanismo central de uma política econômica que sofreu nos anos 90 um forte retrocesso As democra cias avançadas passaram a sacrificar a política econômica que marcou o Estado keynesiano restringindo e monetarizando benefícios que sob o Welfare State eram usufruídos claramente como uma condição do exercício do direito de cidadania Cabe ressaltar que uma parte importante da bibliografia que nos últimos anos vem discutindo o caráter da crise Vianna 1998 King 1988 Pierson 1994 destaca que embora as bases sobre as quais se estabeleceu o Welfare Apresentação cap1pmd 872011 1029 13 1 4 uma forte classe operária organizada e demandante tenham sido afetadas com o desemprego e a flexibilização dos contratos de trabalho esse enfraquecimento não foi suficiente para permitir o desmonte dos Welfare States europeus Assim acreditase que seja mais adequado se referir à crise como processo de profundas mudanças nos Estados de bemestar europeus através da readequação dos gastos do Estado e de um maior controle sobre benefícios Esse processo afetou com mais intensidade os importantes contingentes de imigrantes dos países pobres que chegaram sem nenhum tipo de proteção social sem condições de serem absorvidos por um mercado de trabalho em franco retrocesso nos países ricos e portanto não incorporados ao sistema de seguridade social Mudou assim a geografia humana desses países tornando as desigualda des sociais um problema que se acreditava erradicado sob o predomínio do Es tado keynesiano que aproxima de maneira tortuosa os países ricos dos pobres Com o Estado neoliberal a democracia se tornou tão errática quanto as restantes produções da era da globalização as guerras a perda dos valores rela cionados à existência humana a degradação ética a devastação da natureza no planeta a falta de comunicação humana globalizada No que se refere à demo cracia a volatilidade diz respeito a alguma condição ou conjunto de condições que de uma parte fogem das mãos dos governantes na medida em que as políticas econômicas são as mesmas para todos os países e de outra da própria sociedade já que a capacidade que esta tem de influenciar os governos eleitos é quase nula Maier 1994 Assim cada vez mais a democracia é esvaziada de representatividade dado o abismo existente entre cidadãos e governo sendo a resposta da sociedade o desinteresse e a perda de confiança na democracia nos partidos e mais do que tudo nos políticos Na América Latina e no Brasil que atravessaram longos períodos autoritá rios o desempenho das democracias na década de 90 tem deixado um forte ranço de ineficiência e corrupção no exercício dos cargos públicos e também profundas desigualdades sociais relacionadas aos cortes importantes em políti cas sociais Os comportamentos políticos já mencionados marcaram também as novas democracias contribuindo para um sintomático crescimento dos votos nulos e em branco e conseqüentemente para um notável esvaziamento eleitoral Nesses países hoje chamados pobres ou se poderia dizer submersos em processos de busca permanente de um desenvolvimento industrial que não chega de maneira plena a década de 80 representou em particular para o Brasil uma época de esperanças A transição à democracia foi depositária de novas cap1pmd 872011 1029 14 1 5 perspectivas de crescimento econômico com justiça social que acompanhariam a cena política democrática aproximando finalmente a América Latina das socialdemocracias européias Foi o que ocorreu em relação à política de saúde em especial por ter sido a Reforma Sanitária fundada no direito universal à saúde e incorporada à Cons tituição de 1988 Mesmo com o retrocesso sofrido pelas políticas sociais essa particular política social permaneceu na agenda dos governos O processo foi extensamente analisado em A Democracia Inconclusa através do estudo da transi ção à democracia no Brasil das bases sociais de apoio à Reforma Sanitária das mudanças organizacionais que se operaram nas instituições estatais de saúde e do processo de descentralização eixo central na implementação das mudanças políticas do setor Assim os projetos de políticas sociais montados no final dos anos 80 espe cialmente no setor da saúde apoiados na noção de direito universal tiveram na década de 90 um cenário de implementação profundamente adverso A demo cracia durante esse período sofreu importantes abalos também tratados no livro No que se refere ao primeiro governo eleito democraticamente observouse que o andamento na implementação da política de saúde atravessou dilações empeci lhos e alterações dos princípios constitucionais relativos ao setor No início do novo século com a continuidade das políticas neoliberais constatamse resultados funestos em termos de aumento da pobreza da vio lência urbana da criminalidade ligada ao tráfico de drogas da extensão da repressão às populações periféricas das cidades e da população presidiária pa ralelamente ao crescimento da corrupção nas forças policiais e nas altas esferas do governo A saúde da população viuse afetada negativamente mais forte mente nos estratos de baixa renda reaparecendo doenças tais como o dengue tratada aqui como uma epidemia que assolou o estado do Rio de Janeiro em 1992 e que ressurgiu em 2002 portanto dez anos depois na sua forma mais virulenta a hemorrágica Ainda que com esses traços catastróficos que impregnaram a democracia como sistema político e as políticas sociais como alternativa fundante de uma sociedade mais eqüitativa interessa localizar como tem evoluído especifica mente a política de saúde de maneira a desenhar a presença ou não de continui dade entre ambas conjunturas a que se estende do final dos anos 80 até metade dos 90 analisada em profundidade no livro e a que se estende do final dos 90 à entrada no novo século cap1pmd 872011 1029 15 1 6 Gostaríamos de ressaltar duas questões em relação ao período atual De uma parte aspectos que falam de uma continuidade em relação ao período anterior no que se relaciona à definição da política de saúde Tratase basica mente do processo de descentralização e do forte teor político regulatório do Estado em sua implementação A outra questão diz respeito à permanência no cenário político de atores sociais constituintes e constitutivos da política de saú de na conjuntura tratada no livro Os municípios têm registrado nos últimos anos da década passada e nos primeiros do novo século uma alta adesão à municipalização da política de saúde Tal fato pode ser constatado a partir do alto número de municípios no País que têm se candidatado a se habilitar aos modelos de gestão plena de atenção básica e de sistemas de saúde e recentemente à Norma Operacional de Assistência à Saúde Esta última enquadra os municípios em um processo de integração via territorialização dos mesmos na assistência à saúde Mas essa adesão é marcada por um processo burocrático no qual o municí pio se candidata à habilitação sem por vezes efetivamente estar implementando os requisitos exigidos para declarálo habilitado no modelo de gestão em questão Além disso a habilitação de fato significa o acesso a um financiamento federal que não seria obtido sem a declaração municipal do cumprimento de tais requisi tos Ou seja a adesão está relacionada à captura municipal de recursos federais Ainda que durante os últimos anos não tenha havido reformulações signi ficativas do SUS as Normas Operacionais Básicas instrumentos de regulação política do setor ao mesmo tempo que favoreceram a descentralização do sistema de saúde trouxeram algumas alterações relacionadas ao modelo de as sistência à saúde A mudança mais importante incorporada ao sistema foi a definição de programas de atenção básica como uma maneira de cobrir assistencialmente os setores da população mais desassistidos ou de baixo aces so que correspondem a altos níveis de pobreza eou border line da pobreza absoluta Referimonos especialmente ao Programa de Saúde da Família que passou a ser o carro chefe do Sistema Único de Saúde com todas as dificulda des que se observam na promoção de uma medicina integrada nos níveis dife renciados de complexidade De fato isso gerou uma extensa polêmica no setor relacionada à efetivação de políticas focalizadas e serviços simplificados para a atenção de grupos populacionais extremamente pobres e a conseqüente exclusão das classes mé dias do sistema Tais mudanças levariam à perda do caráter universal do sistema de saúde ao desinvestimento em recursos humanos instalações equipamentos cap1pmd 872011 1029 16 1 7 e preservação do parque hospitalar do País paralelo ao crescimento do seguro privado entre as classes médias Alternativamente há quem pense que se trataria de políticas complementa res que ao contrário de promover a quebra da cobertura universal à saúde possibilitariam a complementaridade da atenção sem diminuir a qualidade ba sicamente por adaptar a assistência sanitária ao risco de extensão de doenças para populações extremamente pobres Dessa maneira o conflito universalização focalização permanece sem elucidação até os dias de hoje e continua a ser um divisor de águas nas instâncias governamentais do sistema e nas organizações da sociedade que têm participação na deliberação da política de saúde Quanto à participação dos atores sociais podemos dizer que os Conselhos de Saúde em que como foi observado na primeira edição do livro têm impor tante assento por definição constitucional as organizaçõesagrupamentos da sociedade já nasceram carentes para o exercício da função de representação tão carentes quanto as camadas sociais que lhes dão voz e voto Dados de pesquisa recente1 evidenciam que os Conselhos de Saúde locais são como que convida dos inconvenientes ao exercício do processo decisório Sua base de represen tação é frágil e a formação dos conselheiros é insuficiente para a tomada de decisões em assuntos de caráter técnico Cabe lembrar que os Conselhos ori ginariamente compostos por organismos comunitários hoje são mais um es paço de representação corporativa em que organismos de representação de usuários portadores de doenças deficientes físicos portadores de HIV re nais crônicos etc atuam junto a representantes dos profissionais de saúde do setor filantrópico e dos órgãos governamentais Isso facilita que nas reuniões dos Conselhos se discutam prioritariamente as questões colocadas pelos representantes das Secretarias Municipais de Saúde que por sua vez apresentam pacotes previamente definidos pelas instâncias intergestoras tripartite e bipartite2 e pelo Ministério de Saúde de forma direta 1 Avaliação Análise e Integração de Programas e Experiências Inovadoras de Políticas de Saúde e Políticas Sociais dados atualizados em 2002 Coordenação Silvia Gerschman Professora associada Maria Lucia Werneck Viana 2 A comissão intergestora tripartite é de âmbito nacional tem caráter paritário e nela estão represen tados o Ministério da Saúde o Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde Conass e o Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde Conasems Sua função é assistir ao Minis tério da Saúde na implantação e operacionalização do SUS devendo se submeter ao poder deliberativo e fiscalizador do Conselho Nacional de Saúde Já as comissões bipartites de âmbito estadual são formadas paritariamente por dirigentes da Secretaria Estadual e órgãos de representação dos Secre tários Municipais do Estado Cosems Nessas comissões são decididos os aspectos operacionais do SUS Manual do Gestor do SUS publicado pelo CosemsRJ em março de 1997 cap1pmd 872011 1029 17 1 8 Uma vez formulados e discutidos esses programas passam pelo Conselho Municipal de Saúde onde os representantes disputam benefícios específicos operandose assim a primeira adaptação dos programas de atenção básica ao contexto municipal Cabe acrescentar que nessa modalidade os Conselhos têm um papel con traditório juridicamente são órgãos deliberativos mas de fato dão andamento a políticas adotadas alhures nos âmbitos específicos das três instâncias governa mentais federal estadual e municipal processadas nas Comissões Intergestoras Esse procedimento atualiza de maneira permanente o conflito latente dos pesos desiguais entre burocracias políticas profissionais de saúde e organismos de re presentação da sociedade e usuários Na atual conjuntura histórica de ajuste permanente e no contexto latino americano de restrições à soberania nacional ocasionadas por governos que chegam ao poder via partidos socialdemocratas mas que implementam as po líticas da nova direita que Maier 1994 denominou de retroright a representa ção política se esvazia e os direitos sociais universais se tornam um bem social difuso ainda que sancionados constitucionalmente como no Brasil Na falta de uma experiência histórica sustentada na mobilização e organiza ção sociopolítica da sociedade os conselhos locais de saúde ainda que possuam uma existência legítima carecem dos instrumentos políticos e técnicos capazes de transformar a lei em princípios executáveis para a viabilização de demandas sociais Assim no embate das forças políticas eou grupos de interesse é grande o predomínio das burocracias técnicopolíticas no processo decisório O processo de descentralização no fim da década passada e início deste novo século revela a abrangência de situações e processos relacionados a inova ções na gestão da saúde municipal Os resultados são extremamente contraditó rios Em alguns municípios o tipo de inovação gerencial incorporada representa um claro avanço no processo de descentralização e implementação do SUS através de iniciativas da própria gestão municipal que vão além das diretrizes federaisestaduais injetando recursos orçamentários próprios na implementação da política de saúde Em outros observase a implantação de programas e experiências formuladas exclusivamente no nível federalestadual que são in corporadas pela gestão municipal como uma maneira de receber recursos exter nos principalmente do nível federal ou modalidades de gestão de recursos humanos como no caso das cooperativas médicas que de fato inovam nas relações de trabalho mas descomprometem o governo municipal da responsa cap1pmd 872011 1029 18 1 9 bilidade historicamente legitimada pelo Estado pela existência de relações tra balhistas sustentadas na estabilidade contratual e em encargos sociais aposen tadoria férias décimo terceiro salário etc a cargo do empregador Para os profissionais de saúde em sua maioria médicos o comprometi mento com o SUS e o processo de descentralização é atrelado a condições de trabalho oportunidades de formação processo de trabalho e remuneração alcançada no setor Mas pouca tem sido a preocupação das instâncias de gover no local em criar mecanismos que incorporem os profissionais com base em pressupostos de responsabilidade social e compromisso político com o aper feiçoamento dos serviços enquanto centrais para o bom desempenho do siste ma de saúde municipal Os médicos agem sob a pressão do exercício permanente de atenção mé dica aos pacientes e isto os libera de quaisquer responsabilidade de outra nature za Os gestores do sistema municipal agem sob a pressão política do governo municipal e ainda que na sua maioria sejam profissionais médicos esquecem que não há lugar para um sistema de saúde eficaz sem que seus elementos constitutivos recursos humanos equipamentos infraestrutura dos serviços e demandas sociais estejam permanentemente no centro das preocupações e do investimento do governo local o que de fato implica profundas mudanças no processo decisório no setor da saúde O objeto deste trabalho é o estudo dos movimentos sociais em saúde ligados ao processo de formulação e de implantação das políticas de saúde no período que se estende de meados da década de 70 a 1994 O estudo desse período relacionase à possibilidade de pensar as políticas de saúde no Brasil à época da transição à democracia e da consolidação democrática sob uma pers pectiva que não se sustenta exclusivamente no Estado como o locus privilegiado dos processos de formulação e implementação das políticas sociais Na escolha do objeto de investigação consideramos central a questão do Movimento Popular em Saúde e do Movimento Médico no processo de formulação e implementação das políticas de saúde na transição à democracia por avaliarmos que estes configuram o Movimento Social em Saúde Embora tenha sido considerado ao longo deste trabalho excluímos o autodenominado Movimento Sanitário3 ainda que também integrasse o Movimento em Saúde 3 A exclusão devese ao fato de a questão do Movimento Sanitário ter sido objeto específico da análise de outros estudos no setor dentre eles o de Escorel 1987 cap1pmd 872011 1029 19 2 0 por se tratar de um grupo restrito e diferenciado de origem acadêmica e que constitui em si mesmo tema de investigação Interessávamonos examinar mais profundamente o papel exercido por tais movimentos no processo de transformação da política de saúde no Brasil que culminou com a denominada Reforma Sanitária Brasileira e as mudanças observadas na atuação do Movimento Popular em Saúde e do Movimento Médico no difícil percurso da implantação do mesmo a partir de 1986 e em pleno processo de consolidação da democracia O que torna a implementação da política de saúde uma questão de difícil solução Como se combinam atores arenas e circunstâncias políticas Qual o papel do Estado E qual o papel dos movimentos sociais em saúde nos dois momentos da política de saúde Como os usuários se fazem representar peran te a política de saúde Quais os partidos as associações e os movimentos que interagem na implantação diferentemente da formulação da política de saúde Tais questões nortearam o desenvolvimento deste estudo Nosso argumento central é que os atores sociais interagiram em um campo não conflitivo no processo de formulação da política enquanto a diversidade de interesses do próprio Movimento Social em Saúde estava diluída na oposi ção em bloco ao regime autoritário A partir do momento em que a reformulação da política de saúde foi sancionada na Constituição Nacional já no processo de construção democráti ca sua implementação passou necessariamente pela criação de um campo espe cífico de mediação entre a esfera governamental e a esfera social Assim a recomposição das relações EstadoSociedade que haviam sido parcialmente bloqueadas durante o período autoritário foram retomadas Pretendemos mostrar que a implantação da política não foi bemsucedida em virtude da complexidade da reformulação do sistema de saúde no Brasil Tal questão ultrapassa o campo específico do setor saúde Indicamos três pon tos problemáticos na viabilização da mudança do modelo do sistema de saúde os limites ou extensão desse processo as contradições e os apoios para a implementação da Reforma Sanitária A respeito dos limites procuramos discutir a relação entre democracia e reformas São várias as dimensões desta relação o grau de profundidade das reformas o timing das mesmas a capacidade ou não de o estágio atual da democracia absorvêlas cap1pmd 872011 1029 20 2 1 a ameaça virtual às forças políticas consolidadas antes do exercício da de mocracia a existência de um cálculo estratégico que permita a implantação das mu danças realizado em prol da Reforma Acreditamos que a proposta da Reforma Sanitária somente é viável no contexto da transição à democracia No entanto tal afirmação merece discussão específica já que as diretrizes da Reforma Sanitária implicam profundas trans formações na concepção dos direitos de cidadania e na atuação política do governo de modo a possibilitar o exercício desses direitos A democracia per se comporta ou não tais transformações Parece que esta não é uma questão sim ples nem evidente As contradições surgiram no âmago da atuação dos próprios grupos que sustentaram a Reforma Sanitária e que integraram o Movimento Social em Saú de Cada um deles apresentava grande heterogeneidade na composição de seus membros o que implicava múltiplos interesses Porém essa diversidade não era evidente no momento da formulação da política o que é compreensível devido ao papel de oposição que o Movimento Social em Saúde como um todo sustentou em relação ao regime autoritário e às políticas de saúde predominan tes naquele período De fato as diferenças entre interesses variados estavam diluídas na atuação em bloco do movimento por ocasião da transição à democracia só vindo à luz no momento da consolidação democrática e portanto da implantação da Re forma Sanitária As contradições entre os grupos aliadas à sua maneira compli cada de interação acrescentaram mais um obstáculo no já difícil percurso da implementação da política de saúde Por último a respeito dos apoios o que se pretende discutir não se refere a grupos específicos no setor saúde que favoreceriam a Reforma já que nosso interesse se localiza na questão política mais geral Um processo desse tipo só pode ser viabilizado com o incentivo e o sustentáculo do Estado Neste sentido tornase necessário discutir questões tais como que Estado é este Qual a relação entre Público e Privado Qual o tipo de democracia requerida para a implementação de reformas que signifiquem redistribuição de bens a saúde neste caso para populações que em condições de carên cia não têm acesso à mesma Antes de detalharmos os capítulos que compõem o corpo do trabalho gostaríamos de incorporar algumas reflexões teóricometodológicas que o cap1pmd 872011 1029 21 2 2 subsidiaram A teoria política tem analisado os processos de transição e ulte rior consolidação da democracia após períodos de autoritarismo político sob uma perspectiva centrada de maneira quase exclusiva nos procedimen tos e na sistemática política envolvidos na construção de um sistema de go verno democrático Análises mais recentes Schmitter 1991b discutem o estabelecimento de regimes democráticos como condição necessária para a consolidação da de mocracia Entendese por regime democrático a capacidade reprodutiva da democracia ou seja a capacidade que o governo e a sociedade possam ter para gerar comportamentos democráticos o que significa ir além do domínio estri tamente político na discussão da democracia Este caminho conduziu às possíveis relações entre a constituição da demo cracia na medida em que esta é entendida na ótica do redimensionamento das relações EstadoSociedade e o campo específico da saúde compreendido como modalidade de política social que adquire o valor de um bem a ser usufruído por todo e qualquer cidadão e que o Estado tem a obrigação de prover A partir desse enfoque a reformulação da política de saúde ou mais espe cificamente a Reforma Sanitária passou a ter papel de destaque no próprio processo de construção da democracia Não somente porque essa última atua lizou no plano específico da política pública as dificuldades encontradas na afirmação da democracia mas principalmente porque a Reforma Sanitária constituiuse cenário privilegiado da evolução do próprio processo democráti co ressaltando a relação entre democracia e Reforma O tema pela complexidade obrigounos a refletir sobre aqueles aspectos que consideramos relevantes e aos quais daremos prioridade na análise tanto das relações EstadoSociedade no processo de construção de um regime de mocrático quanto a respeito do tipo de abordagem Embora exista o risco de se incorrer em uma simplificação desse enfoque que tem pretensão de iluminar o lado obscuro do prisma procuraremos sinte tizar a idéia sobre a qual se sustentou a realização deste trabalho para expor posteriormente os principais conteúdos e procedimentos que o compõem A implementação da política de saúde está imbricada por um lado ao processo de democratização do País e às mudanças na esfera do Estado e das relações EstadoSociedade por outro à maneira pela qual os diversos interes ses que compõem o Movimento Social em Saúde lidam entre si e se fazem cap1pmd 872011 1029 22 2 3 representar nas instâncias institucionais da política de saúde Neste sentido ne nhum desses enunciados pode ser visualizado per se Esperamos que a discussão teóricoconceitual efetuada na primeira parte do livro e a análise da dinâmica do comportamento de nossos protagonistas vinculado a cenários nos capítulos subseqüentes colaborem para desvendar a peça para o leitor O trabalho foi dividido em três partes compostas em seu total por seis capítulos Na Parte I desenvolvemos uma análise teórica a respeito da constru ção da ordem democrática no Brasil tendo por base o processo histórico inici ado com a transição à democracia e do estabelecimento de alguns parâmetros conceituais que consideramos substantivos na abordagem de nosso objeto Este bloco consta de três capítulos no primeiro objetivamos a noção de democra cia no segundo a reforma do sistema de saúde no terceiro os movimentos sociais em saúde No capítulo 1 discutimos a transição à democracia e o processo de cons trução eou consolidação da mesma estendendo a noção da democracia para além dos procedimentos tidos como necessários ao estabelecimento da demo cracia política A discussão incluiu cinco pontos Esfera PúblicaPrivada Indiví duoSociedade EqüidadeJustiça Democracia e Reformas O tratamento dos temas aproximounos da definição de relações teóricas conexas entre movi mentos sociais em saúde política de saúde e construção democrática No capítulo 2 analisamos a reformulação da política de saúde como polí tica social sua origem e desenvolvimento até a culminância na proposta da Reforma Sanitária Esta foi compreendida como um caminho de reconstrução da democracia por intermédio de reformas parciais ou dito de outra maneira de consecução da democracia pela via do estabelecimento de regimes parciais democráticos A visão das políticas de saúde sob a perspectiva das políticas sociais obrigounos a aprofundar o campo teóricoconceitual envolvido nessa área e sustentou a discussão a respeito dos processos de formulação e implementação de políticas sociais em razão da necessidade de subsidiar teori camente a análise do processo de implantação da Reforma Sanitária O capítulo 3 introduz o papel dos movimentos sociais em saúde nesses dois momentos a formulação e a implantação da política de saúde enfatizando o particular desempenho desses movimentos à luz das diversas teorias da ação coletiva A reflexão crítica a respeito de tais teorias a partir dos movimentos sociais em saúde possibilitounos identificar as adequações proxi cap1pmd 872011 1029 23 2 4 midades e distanciamentos entre os diversos enfoques que elas apresentavam e o desenrolar da atuação política dos atores por nós privilegiados Adquirimos dessa forma um arcabouço teórico para pensar as políticas de saúde nos pro cessos de transição e construção da democracia desde a perspectiva atual dos atores envolvidos e sua relação com o Estado Na Parte II consideramos o desenvolvimento histórico da atuação dos movimentos sociais em saúde em relação ao processo de reformulação do sistema de saúde E isso com base na análise dos dados de uma pesquisa que coordenamos sobre o papel do Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico no processo de formulação e implementação da política de saúde nas duas últimas décadas Dividimos esta parte em dois capítulos um referido ao Movimento Popular em Saúde o outro ao Movimento Médico No capítulo 4 estudamos o Movimento Popular em Saúde no período que se estende de 1979 a 1990 A composição deste em suas origens relacio nouse às experiências locais de saúde em algumas regiões do País em torno de associações de moradores sociedades de fomento e outras entidades de bairro O movimento estadual e logo nacional de federações e confederações de asso ciações de moradores de bairros e de favelas formase desde o início até mea dos da década de 80 O Movimento Popular em Saúde que assim se autodenominou nos encontros de caráter nacional foi parte constitutiva dessas federações e confederações Por fim houve uma importante desarticulação do Movimento Popular em Saúde em fins dos anos 80 que se caracterizou por notáveis diferenças regionais aprofundadas e também pela descentralização do sistema de saúde e pela formação dos Conselhos de Saúde ainda que o movi mento tenha continuado a existir nacionalmente No capítulo 5 descrevemos a atuação do Movimento Médico no período compreendido em 1976 e 1990 com uma perspectiva que incluiu não só as formas associativas sindicais dos médicos como categoria profissional mas o conjunto das associações médicas tanto as que regulam o exercício da profis são quanto as de caráter técnicocientífico e as que congregam os profissionais médicos na discussão de questões específicas da profissão médica As entidades analisadas foram o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janei ro Cremerj a Sociedade Médica Somerj a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Estado do Rio de Janeiro SMCERJ e o Sindicato dos Médicos Sinmed O levantamento do material e as entrevistas realizadas com lideranças das asso ciações médicas de entidades localizadas no estado do Rio de Janeiro cobrem o período que se estende de 1983 a 1990 cap1pmd 872011 1029 24 2 5 Na Parte III é investigada a dinâmica da relação entre os atores e o proces so de implementação da Reforma Sanitária nos anos 90 Também nesta parte são abordados o próprio processo de implementação da Reforma Sanitária a descentralização do sistema de saúde e os Conselhos de Saúde No Capítulo 6 exploramos até onde se avançou no estabelecimento dos procedimentos legais previstos constitucionalmente para o setor saúde e qual o estado da arte na implementação de Reforma Sanitária até fins de 1993 Os obstáculos criados no desenvolvimento da municipalização um exame da IX Conferência dado o caráter significativo dessa instância decisória da política de saúde a extinção do Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social Inamps já que ele era desde sua criação em 1977 órgão centralizador das decisões recebidas à política de saúde Especial ênfase é dada ao processo de descentralização nos estados e municípios eixo central na implementação da política de saúde Consideramos marco de referência teórica na análise do processo de descentralização as concepções que associam essa noção à de mocratização do Estado Neste sentido interessounos abordar o estágio atu al do processo de municipalização para sublinhar as diferenças entre algumas das experiências investigadas no decorrer do capítulo e detectar quais os mo tivos que proporcionaram maior sucesso a umas que a outras O capítulo trata também da formação e atuação dos Conselhos como instâncias de caráter deliberativo da política de saúde nas quais os usuários suas entidades e os movimentos sociais deveriam deter 50 da representação nos termos do regulamento da Lei Orgânica de Saúde Na conclusão indicamos como a visão original com a qual pretendíamos abordar o objeto de estudo deste trabalho sofreu deslocamentos Assim a par tir do tema eleito os movimentos sociais em saúde em face das políticas de saúde e do marco teórico que sustentou essa forma de abordagem o redimensionamento das relações EstadoSociedade num âmbito específico da política social no curso do processo de transição e consolidação da demo cracia passamos a conformar metodologicamente o foco de análise em três aspectos a trajetória e o papel dos movimentos sociais em saúde o grau de definição da política de saúde o processo político mais amplo de constituição de um regime democrático Neste sentido retomamos nas conclusões à luz dos resultados as questões teóricas desenvolvidas no início do livro Salientamos que a Reforma Sanitária brasileira constituiuse em um regi me de democratização parcial Schmitter 1991b definimos a maneira pela cap1pmd 872011 1029 25 2 6 qual se estabeleceu o percurso da mesma e considerandose as dificuldades para a constituição de um regime democrático no Brasil explicitamos quais as possibilidades para a implementação da política de saúde dado o estágio alcan çado pelos movimentos sociais em saúde cap1pmd 872011 1029 26 2 7 Parte I Parte I Parte I Parte I Parte I cap1pmd 872011 1029 27 2 9 1 Os anos 80 constituíram um marco na política brasileira do processo de democratização do País Um amplo espectro de forças políticas da sociedade como sindicatos movimentos populares e partidos políticos empreenderam uma luta política que conseguiu aglutinar forças diversas na conquista de eleições para a Presidência da República Essa luta em prol da democratização estabele ceuse na integração da oposição à ditadura militar ante a proposta das Forças Armadas de fazer uma abertura lenta gradual e segura A transição à democracia no Brasil é considerada pelos autores que tratam do assunto como uma decisão unilateral dos militares no marco do regime autoritário No entanto implicou um processo de alta complexidade em gran de parte por causa de sua duração e no qual as forças sociais tiveram papel essencial que a realimentou estabelecendo uma via de mão dupla no desen volvimento da mesma O papel dos movimentos sociais dos sindicatos operários do sindicalismo de classe média dos partidos de oposição enfim o ressurgimento da sociedade civil foi de fundamental importância para minar as bases da estabilidade do regi me autoritário Desse modo parecenos de interesse rediscutir a maneira como se operou a transição no Brasil e os caminhos da consolidação democrática A maneira como são restabelecidas as relações entre EstadoSociedade passa pela criação de regras e procedimentos institucionais que redefinem a forma como os interesses são representados e se traduzem em políticas governamentais especí ficas no processo de consolidação Tal processo tem sido longo e tortuoso já que até hoje os procedimentos não estão plenamente instituídos O processo de transição à democracia atravessou diversos momentos no extenso período de dez anos uma das mais longas transições conhecidas A Construção da Democracia algumas questões históricas e teóricas cap1pmd 872011 1029 29 3 0 o que dificulta a interpretação do tipo de transição e conseqüentemente a previ são dos caminhos para a consolidação da democracia Os militares tiveram papel protagônico na definição e no calendário da transição em seu primeiro momento de 1974 a 1979 Schmitter Karl 1991 identificam quatro tipos ideais ou modelos de transição à democracia pactuada acontece sempre que as elites chegam a um acordo entre elas imposta quando há uma decisão unilateral para estabelecer mudanças no regime reformista em que as massas se mobilizam e impõem uma solução sem violência revolucionária quando as massas pela via armada derrotam militarmen te os antigos dirigentes O Brasil para esses autores estaria incluído no tipo de transição imposta Acreditamos ter sido esse o caso na primeira fase do processo Em um segun do momento que se estende até a sucessão do general Figueiredo começa a existir certa confiança por parte da população no que diz respeito à continuida de do processo de abertura e do afrouxamento da repressão Surgem formas de organização social e política que se expandem pelo País inteiro e obrigam a mudanças na orientação do processo Ainda que setores das Forças Armadas os chamados duros tentassem impor um retrocesso no processo de democratização em 1979 não o conse guiram tendo preponderado a formulação de um pacto político entre as elites e a oposição moderada o que possibilitou uma sucessão presidencial negociada O caráter de pacto exposto por ODonnell com grande precisão se ajusta perfeitamente a esse segundo momento da transição política ODonnell 1988 distingue dois tipos de transição à democracia a por co lapso e a pactuada No primeiro caso tratase de regimes burocráticoautoritários fortemente repressivos e cujas políticas econômicas foram enormemente destrutivas Geram um vazio político ao seu redor perdem os apoios políticos e ao não conseguirem controlar o processo político caem estrepitosamente As transições por colapso ainda que ocorram em contextos econômicos catastrófi cos comportam menor condicionamento político para as forças de oposição e maior liberdade dos governos democráticos No segundo caso tratase de regi mes que tiveram melhor desempenho econômico e nos quais o uso da repressão foi menos brutal e extensivo cap1pmd 872011 1029 30 3 1 O relativo êxito econômico significou aqui a manutenção das alianças com os setores médios e empresariais que se beneficiaram com as políticas econômi cas do regime autoritário Dessa maneira as elites civis e militares tiveram con dições de encaminhar uma transição pactuada impondo às forças de oposição condicionamentos no estabelecimento de governos democráticos Esse tipo de transição traria à cena política a reedição de velhos pactos que configuraram historicamente as relações entre EstadoSociedade no Brasil Uma das características mais marcantes do Estado brasileiro é precisamen te o seu autoritarismo Historicamente a sociedade brasileira apresenta traços profundamente elitistas e excludentes em parte herança do escravismo do perí odo colonial e do caráter oligárquico das classes dominantes Neste sentido o Estado impôs seu domínio à sociedade através do exercício do patrimonialismo político do clientelismo e da incorporação das classes subalternas por meio de mecanismos de cooptação que garantiram a supremacia das elites no exercício da política No entanto o caráter da transição pactuada e da reedição de velhos pactos não é suficiente para explicar o grau de complexidade que adquiriu o desenvol vimento democrático e a atuação dos diversos atores sociais e forças políticas que emergiram com a transição à democracia Embora a histórica relação entre EstadoSociedade tenha sido atualizada e exacerbada pelo regime militar o processo de transição à democracia originou uma forte crítica na sociedade brasileira a respeito da modalidade autoritária predominante no Estado Essa postura foi acompanhada pela compreensão da noção de cidadania como um conjunto de direitos a serem alcançados pela sociedade como um todo Assim as dificuldades para a consolidação da democracia no Brasil reque rem uma discussão específica sobre a relação entre democracia e Estado que exige conceitualizar a democracia em relação à esfera pública e privada ao indivíduo e à sociedade à justiça e à eqüidade Tais questões são a meu ver centrais se considerarmos o estabelecimento de uma democracia no Brasil Os dilemas enunciados a seguir permearam a discussão teórica empreendida Enorme percentual 50 da população que beira o limite da pobreza abso luta a pressão social dessas camadas sociais se expressa através de formas de resistência violenta Essas formas de pressão e resistência criam sociedades e governos paralelos nos bairros miseráveis das grandes metrópoles amea çando a própria sobrevivência da ordem social e política Tratase de situ ação bem próxima àquela assinalada por Hobbes de a guerra de todos cap1pmd 872011 1029 31 3 2 contra todos na qual ou uma nova ordem social e política é procurada através do estabelecimento de um regime democrático ou então a ameaça de um poder absoluto não necessariamente militar como as tentativas do Governo Collor demonstraram pode concretizarse Paralelamente há propostas de reformas substantivas no âmbito social Destas a Reforma Sanitária é a maior expressão mas a dificuldade na implementação da mesma indica o difícil percurso para a constituição de um sistema político democrático e traz à tona a necessidade de uma discus são da própria noção de democracia Como se pode compatibilizar uma política reformista que necessariamente exige profundas transformações do Estado com uma situação do tipo ora enunciado Qual a relação entre Reforma e democracia no Brasil de hoje Uma última questão em relação a tal problemática é a diversidade de inte resses em jogo no processo de construção da democracia interesses de indivíduos grupos sindicatos entidades profissionais usuários de diversos sistemas Como lidar democraticamente com a diversidade A partir da própria diversidade em um movimento de mão dupla Como indivíduo na busca ativa de relações compreendidas em permanente associação em grupos movimentos eou instituições Já na perspectiva do sistema políti co de forma a viabilizar um regime democrático socialmente justo que respeite mantenha e incorpore ao exercício de governo as diferenças de interesses existentes na sociedade Em trabalho recente sobre a consolidação da democracia o tipo de institui ções que a mesma comporta e a forma desses processos Schmitter postula que a consolidação da democracia atravessaria grandes dificuldades nos países sujeitos simultaneamente a pressões de diferentes modos de transição O autor denomina essa situação de Black Hole4 simbolizando com tal imagem a situação em que o país mergulha em uma espécie de vazio ocasionado por uma simultaneidade de lógicas que impossibilitaria aos atores ter uma estratégia vitoriosa 4 São países simultaneamente sujeitos às pressões de diferentes modalidades de transição as elites autoritárias dominantes acreditam possuir todo o poder em mãos freqüentemente de uma maneira rápida as elites políticas de oposição procuram efetuar um pacto entre elas excluindo as elites dominantes as massas são mobilizadas nas ruas trazendo à cena a ameaça da extensão da violência ou de uma saída revolucionária Nossa idéia é que com essa simultaneidade de lógicas é quase impossível os diversos atores terem uma estratégia vitoriosa O Brasil entrou nessa situação devido à morte prematura de Tancredo Neves que tirou da cena política o ator mais decidido e capaz de dar uma seqüência ao processo de democratização por meio de resultados pactuados Schmitter 1991b18 tradução da autora cap1pmd 872011 1029 32 3 3 A situação política no Brasil encaminhouse através de linhas de forte ten são política em que era muito difícil definir as regras e as instituições sobre as quais se assentaria a consolidação democrática A transição foi uma das mais longas que se conhece estendeuse por dez anos sendo claramente controlada durante os primeiros cinco até 1979 O escândalo do Riocentro as denúncias sobre a atuação da repressão e o crescimento das associações da sociedade civil fossem elas partidos movimentos ou sindicatos colocaram limites à atuação das Forças Armadas Para estas isso não significou perda de controle no pro cesso da transição mas obrigouas a ter maiores cuidados e a efetuar negocia ções com as forças de oposição Nos anos de 19831984 aconteceram as maiores mobilizações populares milhões de pessoas reuniramse para exigir eleições diretas para a Presidência da República o que significou uma enorme pressão política sobre as Forças Arma das O desfecho desse processo foi um complexo emaranhado de negociações políticas entre os militares as elites políticas e as forças de oposição A transição negociada promoveu em janeiro de 1985 eleições indiretas por meio de um Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves Presidente e José Sarney VicePresidente do País Porém a maior garantia para o processo de democratiza ção era pela figura de Tancredo que contava com apoio da maioria Com sua morte e assumindo o comando do País o vicepresidente José Sarney se produziu um grande vácuo político que colocou o Brasil em uma situação do tipo descrito por Schmitter A equipe do governo já havia sido escolhida por Tancredo Neves tratavase basicamente de uma composição que refletia as diversas forças políticas que tinham participado da negociação à qual faltava o comando Essa falta de comando deixou imersa a Nova República numa configura ção política bastante distante da democracia De uma parte velhos pactos e velhas elites já não militares mas civis dentre as quais Sarney foi um representan te justificaram reapropriação do espaço nas instituições do Estado enquanto usavam como apelo o slogan Tudo pelo Social De outra nas forças políticas de oposição existia consenso a respeito da necessidade de implementar políticas reformistas que significassem alguma forma de compensação ao crescimento das enormes desigualdades sociais que o regime militar havia produzido A política econômica refletiu essas contradições políticas Implementouse o Plano Cruzado como contenção da inflação ao mesmo tempo que desapare ciam os produtos de consumo massivo sem que o governo tivesse a suficiente cap1pmd 872011 1029 33 3 4 autoridade para punir os empresários a oligarquia rural ou as empresas multinacionais Tentouse aumentar as exportações mas o setor exportador considerou os preços internos não competitivos A renegociação da dívida ex terna emperrou já que a política econômica do governo não correspondia às políticas de ajuste ditadas pelo Fundo Monetário Internacional FMI Enquanto isso a dívida do setor público continuava aumentando já que os compromissos políticos do Governo Sarney com as velhas elites políticas se efetivavam mediante o preenchimento de cargos na máquina estatal que por sua vez funcionava como plataforma eleitoral de políticos que ao velho estilo usavam a máquina do Estado para trocar votos por favores Ou seja a política clientelística foi a tônica do governo da Nova República Simultaneamente algu mas transformações aconteciam nos aparelhos de Estado na medida em que alguns representantes da oposição eram chamados a ocupar cargos sem que isso significasse transformações substantivas nos vícios da máquina estatal No entanto no Brasil nos momentos de maior acirramento das contradi ções há uma homogeneização do discurso político o que induziria a pensar na existência de acordos políticos entre forças conflitantes Em verdade tratase exatamente do contrário o discurso progressista das elites conservadoras não tem nenhuma correspondência com a conhecida atuação política das mesmas Tratase de impedir via os meandros burocráticos da máquina política estatal a ocupação direta de postoschave negociatas econômicas que envolvem grandes transações sofisticação tecnocrática compra de votos transforma ções substantivas do Estado brasileiro Tais procedimentos visceralmente opostos à democracia se fazem em nome da mesma convivem com reformas parciais e só vêm à tona por meio de grandes escândalos públicos onde accountability é somente uma conseqüência forçada à qual os governantes são compelidos pela via dos fatos Assim a Nova República não nas intenções mas nos resultados produziu uma paralisação na construção das instituições e procedimentos democráticos questões fundamentais para que seja possível passar da transição para a conso lidação da democracia Em outras palavras para que o peso da modalidade autoritária clientelística e patrimonialista da atuação política do Estado brasileiro incrementada ainda pelo exercício da política dominante do regime autoritário não se constitua na determinação principal que impeça a criação de instituições e procedimentos democráticos que possibilitem o exercício permanente ou a reprodução da democracia é preciso considerar algumas questões cap1pmd 872011 1029 34 3 5 A principal questão é que diferentemente do momento da transição a consolidação da democracia requer a constituição de um regime democrático Os princípios criados por Dahl 1979 como os procedural minimum voto secre to sufrágio universal eleições regulares competição partidária liberdade de associação transparência do executivo são necessários mas não suficientes para garantir que não se retroceda a uma situação anterior ou para afiançar uma democracia capaz de se reproduzir Tratase de procedimentos mínimos sem os quais não poderia haver democracia ou poliarquia como ele a denominou mas ainda que sejam imprescindíveis para eleger governos democráticos não garantem per se regimes democráticos A diferença entre um governo democrático e um regime democrático se ria dada pela transformação de um padrão ou traço democrático em uma estrutura Schmitter 1991a Qual o significado da existência de uma estrutura política democrática Denominamos de estrutura democrática a capacidade reprodutiva da democracia ou seja a capacidade de o governo e a sociedade virem a autogerar comportamentos políticos democráticos É necessário aqui chegarse a um acordo a respeito do que seja a idéia de estrutura democrática o que remete à própria noção de democracia Percorrer a noção de democracia ao longo da história é um árduo caminho já desenvolvido pelos mais diversos pensadores e através das mais diversas perspectivas Não pretendemos nos aventurar por ele Procuraremos sustentar a argumentação nos dilemas atuais que se colocam para gerar uma estrutura política democrática no Brasil ao levar em consideração a praxe do exercício da política das relações sociais e dos comportamentos individuais A democracia em sua acepção política referese à modalidade de gover no em que por meio de eleições cidadãos livres e iguais escolhem via sistema partidário aqueles que serão seus representantes Em trabalho recente de Schmitter Karl 199176 afirmase que A moderna democracia política é um sistema de governo no qual os governantes são cobrados por suas ações no domínio público por cidadãos que atuam indiretamente através de concorrência e coopera ção de seus representantes eleitos5 É necessário acrescentar ainda que as modernas democracias têm um importante viés societário que se sustenta na tradição socialdemocrata européia 5 Tradução da autora cap1pmd 872011 1029 35 3 6 dos últimos 50 anos em razão da qual a democracia política é hoje indissoluvelmente relacionada a certos padrões de bemestar social Entretanto ainda considerando esta definição ampliada de democracia resta aproximarmonos da consolidação da democracia ou da maneira pela qual regimes democráticos viriam a se estabelecer Incorporando a idéia de Giddens apud Schmitter 1991a de estruturação para a qual as noções de rotinização institucionalização estabilização e reificação foram usadas primei ramente para conhecer este fenômeno No trabalho anteriormente menciona do definese regime ou sistema de governo como um conjunto de normas e regras padrões que determinam a for ma de acesso aos principais cargos públicos as características dos ato res admitidos ou excluídos as estratégias que esses atores podem uti lizar para obter acesso aos cargos públicos as regras a serem seguidas para decidir as árduas questões públicas Melhor dizendo o conjunto deve ser institucionalizado isto é as regras devem ser habitualmente conhecidas praticadas e aceitas pela maioria mesmo que não seja por todos os atores Crescentemente os mecanismos privilegiados de ins titucionalização constituemse em um corpo escrito de leis incorpora do numa constituição formada por normas políticas que podem ter uma base informal sustentada no costume ou na tradição Schmitter Karl 1991766 Sob essa perspectiva acredito que a consolidação da democracia política é possível sempre que comportamentos políticos democráticos tenham sido internalizados com antecedência pelos atores políticos exista consenso entre os atores políticos a respeito do fato de que a diver sidade de interesses presentes na sociedade impõe de uma parte substituir a satisfação imediata dos interesses próprios por interesses de caráter cole tivo A condição de possibilidade da afirmação anterior seria dada pelo consentimento tácito dos atores sociais de que a democracia garantiria a satisfação em um momento posterior dos próprios interesses Essas duas precondições não são dadas e no caso do Brasil são praticamente inexistentes 6 Tradução da autora cap1pmd 872011 1029 36 3 7 Schmitter 1991a97 considera que a consolidação da democracia consisti ria em transformar padrões ad hoc em estruturas que assegurem procedimen toscanais de acesso inclusãoexclusão dos atores recursosestratégias para a ação e regrasnormas a respeito da tomada de decisões de acordo com um standard específico que o princípio retor da democracia é a cidadania Reproduzimos a citação porque nos parece particularmente incitante as sim como um desafio central para se refletir em relação à constituição de uma estrutura democrática Tendose isso por base acreditamos que a possibilidade de abrir uma senda nessa intricada floresta no sentido de uma metáfora uma hobbesiana poderia acontecer a partir da reflexão dos pares enunciados esfe ras públicaprivada indivíduosociedade justiçaeqüidade Parecenos este o momento apropriado para refletir sobre o que diz respeito à maneira pela qual os atores sociais e políticos poderiam preferir com prazer ter comportamen tos democráticos ou uma atuação política democrática Esfera Pública Esfera Privada Essas duas categorias de análise pensadas pelo liberalismo a propósito do Estado como duas ordens a segunda correspondendo à esfera da sociedade na qual se realizam os interesses dos indivíduos a primeira à esfera do Estado como o espaço em que se desenvolvem os assuntos de caráter público ordenam e separam o indivíduo da sociedade e separam esta última do Estado Tal ordenação e separação não são apenas uma construção ideal do pensa mento mas obedecem à necessidade de fundar o Estado moderno não somen te como conseqüência da dissolução da ordem feudal O Estado virá a ser a maior construção política a mais aperfeiçoada organização políticoinstitucional produto da transformação da sociedade feudal com o surgimento da burgue sia como classe universal ou expressão do homem moderno 7 a idéia básica comum a tudo isto é que as relações sociais se tornem estruturas ou seja padrões de interação ocorram regulamente estejam dotados de significado e sejam suficientemente capa zes de motivar condutas de modo que possam vir a ter um funcionamento autônomo para resistir a mudanças induzidas do exterior Simplificando estruturas são coletividades nas quais o todo é maior que a soma das partes As estratégias e normas dos indivíduos dentro delas são restringidas pela totalidade As ações e metas da estrutura não são redutíveis àquelas de suas partes componen tes O que se precisa é de uma definição mais específica e de teorias da estruturação institucionalizaçãoestabilizaçãorotinização que capturem esta modalidade e expliquem como ela poderia ser adotada e também porque os atores poderiam preferilas com prazer tradução da autora cap1pmd 872011 1029 37 3 8 Assim a idéia do Estado como instância que se erige por cima dos ho mens particulares e também da sociedade adquire dimensão singular não ape nas como idéia mas sobretudo como estrutura jurídicoinstitucional política e administrativa da nação Essa nova ordem social burguesa se caracteriza por ser formada por indi víduos livres e iguais que se satisfazem no mercado sendo esta satisfação não um encargo do Estado mas da iniciativa privada Tratase de indivíduos livres já que não estão ligados ao modo de exploração feudal nem à servidão do trabalho da terra nem à entrega do produto da mesma ao senhor As for mas de produção feudal e a sua ordenação política perdem valor econômico social e político ante o rápido processo de acumulação capitalista que a troca de mercadorias facilita por intermédio do mercado Este requer de indivídu os livres que tenham o direito a escolher o lugar e o tipo de trabalho desejado a liberdade de ir e vir morar onde quiser e se expressar a respeito de desejos e opiniões sem serem constrangidos pela ordem política o Estado Assim a condição de igualdade é suposta pelo mercado na medida em que os indiví duos se igualam no ato da troca cada indivíduo é igual a si mesmo e aos outros no exercício do ato econômico de comprar ou vender o que quer que seja independentemente do valor daquilo que esteja sendo trocado Dito de outra maneira o valor desigual passa a ser colocado na mercadoria como objeto da troca sem que este contamine seus possuidores Essa fantástica construção do pensamento liberal não é nada mais do que o que Marx deno minou fetichismo da mercadoria Tal ato simbólico e ao mesmo tempo real a igualdade formal e a desi gualdade real é também fundador da cidadania Neste sentido a mercadoria pode ser equiparada à noção de cidadania no que ambas têm em comum seu componente fetichista Os indivíduos são em relação ao mercado à sociedade eou esfera privada o que os cidadãos são em relação à esfera pública eou ao Estado O ato de dar ao indivíduo o status de cidadão vai permitir justificar que a esfera pública regule relações particulares entre indivíduos privados equipa rando os indivíduos como cidadãos De fato a intervenção da esfera pública na ordem privada se sustenta nas necessidades do próprio processo de acumulação sejam essas explicitadas ou não É indiscutível a presença de alguns interesses privados na ordem pública assim como o fato de esfera pública representar mais alguns inte resses que outros cap1pmd 872011 1029 38 3 9 Tal afirmação é bem exemplificada pela intervenção do Estado ainda nos primórdios do capitalismo ao responder às exigências da burguesia para o melhor andamento do processo de acumulação tais como os decretos sobre vestimentas a criação de taxas e impostos ou nos momentos em que faltava o trigo a proibição do consumo de pão nas sextasfeiras Habermas 1984 ou mesmo pela intervenção da ordem política para garantir a própria sobrevivência do mercado como as leis sobre terras e a regulamentação da jornada de trabalho A cidadania outorga aos indivíduos certa identidade coletiva uma vez que como cidadãos passam a formar parte da nação Mas esse aspecto da cidada nia é contraditório porque ao mesmo tempo que possibilita a percepção do indivíduo como parte de um todo maior essa totalidade não lhe é própria A esfera pública como expressão da cidadania na ordem liberal burguesa é circunscrita aos possuidores de bens sejam terras instrumentos de trabalho ou mercadorias Mas simultaneamente a esfera pública é separada dos produtores privados sejam eles assalariados ou proprietários e é isso que a constitui como o espaço no qual estão representados os interesses públicos do conjunto da comunidade e ainda o que permite que se legitime como autoridade públi ca o Estado de Direito A contradição embutida na idéia de cidadania anteriormente mencionada é sustentada na existência de direitos e portanto na possibilidade de satisfação destes o que não significa necessariamente a efetivação da satisfação Esse as pecto contraditório da cidadania é que possibilitou a luta pela efetiva conquista dos direitos de cidadania e a consecução dos direitos sociais como a expressão mais desenvolvida desta à qual se chegou depois de lutas sociais que levaram dois séculos O momento da obtenção de direitos sociais que Marshall 196757 113 denominou cidadania completa referindoa ao modelo clássico da ob tenção de direitos exemplificado pela Inglaterra teve e tem percursos históricos específicos nas diversas realidades nacionais O efetivo preenchimento dos direitos sociais nos Estados democráticos modernos expressado pelo Welfare State é talvez o momento de maior apro ximação da esfera pública ao público termo este usado aqui para designar a presença na esfera do Estado de interesses de classe diversos dos da classe dominante As sociaisdemocracias modernas conseguiram pluralizar o Estado ao incorporar os interesses das classes subalternas a partir do reconhecimento da desigualdade social como inerente ao modo de produção capitalista e ate nuar essas desigualdades pelo exercício da democracia social lítica sem interferir cap1pmd 872011 1029 39 4 0 no processo de acumulação capitalista Esse percurso da cidadania levou a uma interpenetração crescente da esfera privada pela esfera pública e viceversa8 Essa sobreposição não significa mais que a constatação de que a participa ção social política a partir da condição de cidadania alterou o caráter restrito da esfera pública Tais mudanças se refletiram no Direito como resultado das transformações no Estado Se refletirmos agora sobre essa questão da perspectiva dos indivíduos em sociedade não se torna muito difícil concluir que posso aceitar que meus interes ses não estejam incluídos na esfera pública sob duas condições a obtenção no presente de algum ganho pensatório e a possibilidade de sua inclusão em um futuro A primeira condição é soluvelmente ligada à segunda pois sua compro vação é a prova do cumprimento da outra Tratase de condições ambas con tidas no exercício da cidadania ser cidadão permite usufruir de direitos Remetamonos por exemplo à condição de libertos da servidão à terra e ao senhor feudal à livre escolha de ir e vir ao direito de defesa sob injusta acusa ção por crime não cometido ou ao direito de falar livremente Dos direitos civis os indivíduos podem fazer uso quando quiserem desde os primórdios do capitalismo até os dias de hoje Quanto isso tem de ilusão corresponde à segunda condição enunciada tais direitos não são iguais para to dos mas se em parte o são talvez um dia possam vir a ser completamente e isso na medida em que a parcialidade da esfera pública não seja absoluta Em outras palavras sempre que a esfera pública constitua um espaço a ser definido pela disputa de interesses opostos e por vezes enfrentados na qual exista a possibilida de de que interesses não satisfeitos no presente possam ser realizados no futuro Outra leitura sobre o caráter dessa interpenetração é dada pela manuten ção e ampliação no interior da esfera pública de interesses de grupos priva dos exemplificada pelo Brasil do regime autoritário e em grande parte tam bém da transição O processo de desenvolvimento econômico que o País atravessou durante o regime autoritário caracterizado por taxas elevadas de crescimento econômico pelo importante investimento de capital internacio nal tanto nos setores produtivos como nos investimentos públicos e pela alta 8 A partir da esfera privada publicamente relevante da sociedade civil burguesa constituise uma esfera social repolitizada em que instituições estatais e sociais se sintetizam em um único comple xo de que não é mais diferenciável Essa nova interdependência de esferas até então separadas encontra a sua expressão jurídica na ruptura do sistema clássico de Direito Privado Na socieda de industrial organizada como Estadosocial multiplicamse relações e relacionamentos que não podem ser suficientemente ordenados em institutos quer do Direito Privado quer do Direito Público obrigam antes a introduzir normas do assim chamado Direito Social Habermas 1984177 cap1pmd 872011 1029 40 4 1 concentração de renda com a marginalização de amplos setores da sociedade criou uma sociedade complexa e segmentada Alguns autores têm se referido à sociedade brasileira como a Belíndia mistura de Bélgica e Índia como forma de dar conta da existência de mais de um Brasil um altamente desenvolvido e rico e outro extremamente subdesen volvido e pobre Isto precisamente foi possível pelo encurtamento da esfera pública devido à intervenção e ao papel crescente que grupos econômicos e políticos tiveram na mesma Dessa forma o público é barrado do Estado e este continua a incrementar a capacidade já existente do exercício público de interesses privados leiase de grupos até a não diferenciação entre o que é público e o que é privado Indivíduo Sociedade O homem em sociedade deixa de ser um indivíduo para ser sujeito de si mesmo e dos outros no processo de interação social Só posso me reconhecer como indivíduo em sociedade porque o reconhecimento dos meus direitos ainda que imperfeito é a comprovação da possibilidade de satisfação destes no futuro Considerando que a teoria liberal separa o indivíduo da sociedade e a esta trata como um agregado de indivíduos apresentandoa dessa maneira atomizada tornase importante destacar o tratamento que Freud dá ao tema por ser o primeiro teórico que a partir de uma perspectiva do indivíduo enfocou a questão sob uma visão societária9 A condição da civilização para Freud é colocada na renúncia ao desejo mas isso se torna possível não exclusivamente como um ato de repressão im 9 Nós agora temos que considerar o último mas não certamente o menos importante dos compo nentes da cultura a saber o caminho no qual as relações sociais como um objeto sexual para outros como membro de uma família ou do Estado É especialmente difícil neste assunto não ter preconceitos que obedecem a padrões ideais e determinar com exatidão o que é especificamente cultural Possivelmente poderseia começar por estabelecer que a primeira tentativa para regular as relações sociais conteve de maneira acabada os elementos essenciais da civilização Se esta tentativa não tivesse sido feita estas relações seriam sujeitas ao arbítrio dos indivíduos isto é o homem mais forte psicologicamente poderia decidir as coisas de acordo com seus próprios interesses e desejos A vida humana em comunidades apenas se torna possível quando os homens se juntam e isto constitui uma força superior à de qualquer homem isolado e esta unidade se mantém contra toda a singularidade individual A força deste corpo unido é oposta com Direito à força de um indivíduo o qual é condenado à força bruta Esta substituição do poder pela união dos indivíduos perante um homem singular é um passo decisivo em direção à civilização A essência disto é que os membros de uma comunidade têm restringido suas possibilidades de gratificação enquanto o indivíduo não tem reconhecido tal restrição Freud 195759 cap1pmd 872011 1029 41 4 2 posto pela vida em sociedade O instinto reprimido no indivíduo para obter o reconhecimento da autoridade ou dito de outra maneira trocado pelo amor paterno é o que possibilita ao homem a formação do superego como restri ção O superego é para Freud a mesma coisa que consciência Neste sentido o desejo premente afasta o homem do outro e de usufruir dos benefícios de se associar aos outros sejam esses benefícios imateriais não sentir culpa ser apreciado ou ser amado pelos outros sejam esses materiais a produção social é mais lucrativa do que o trabalho individual A realização imediata do desejo afasta o homem da capacidade de um domínio mais amplo do mundo e por sua vez a capacidade de antecipar resultados é o que lhe permite a postergação do desejo Essa capacidade de antecipação coloca o homem numa contradição permanente ser um indivíduo em sociedade submerso num jogo de perdas e ganhos e ao mesmo tempo continuar vivendo em sociedade A decisão de continuar vivendo em sociedade expressa historicamente por meio da ordem política tem mudado profundamente na forma levando em consideração cada vez mais o conjunto da sociedade assim como os indi víduos que a compõem Neste sentido a separação entre a ordem dos indivíduos e a esfera social é também uma construção ideal do pensamento Não há indivíduos sem socieda de Parece mais plausível falar de sujeitos como uma categoria relacional e da individualidade como o conjunto de interesses preferências inclinações gostos que compõem a percepção que os homens têm de si mesmos self e as opções que fazem nas relações interpessoais A referência a Freud neste trabalho justificase porque o tema do sujeito em psicanálise Birman 1991 é de ordem estritamente intersubjetiva Diferentemen te a ciência política tem resistido até muito recentemente a incorporar o plano do sujeito nas análises políticas Landi 1981 Giddens 1984 Evers 1984 Touraine 1989 Habermas 1984 Tal questão nos parece fundamental quando se trata de pensar formas de exercício da política no mundo moderno como viabilizadoras de melhores condições de existência para os homens A ciência política tem pro curado uma objetividade apoiada num modelo de conhecimento estrutural em que a política e as políticas públicas especialmente participam de uma lógica macropolítica alheia à atuação política de sujeitos dotados de vontade A idéia presente ao longo deste livro é a recorrência a sujeitos como protagonistas às vezes conscientes às vezes não do acontecer político Quanto a cap1pmd 872011 1029 42 4 3 isso a reprodução da democracia questão que nos ocupa prioritariamente está indissoluvelmente relacionada à constituição de sujeitos democráticos A referência a indivíduos ressalta o plano pessoal de satisfação de necessidades estritamente econômicas encaminhadas à reprodução da vida ou o consumo enquanto modo de vida na sociedade capitalista moderna esquecendo que es ses são também comportamentos sociais e culturais especialmente o consu mo para nos restringirmos ao mero ato de satisfação de uma necessidade material Ao nos referirmos a sujeitos estaremos lidando com um plano de análise no qual o reconhecimento do si mesmo e a construção da própria identidade estão sempre relacionados aos outros A referência a sujeitos políticos não pode se desvencilhar da noção do sujeito A disposição para a ação social ou política é relacionada neste sentido ao preenchimento de necessidades de cunho estritamente psicológico tais como as respostas dos outros aos comportamentos políticos ou o reconhecimento do outro emocional afetivo ideológico etc Mas também à capacidade de postergar no tempo os benefícios resultantes da própria intervenção ou dito de outra forma à capacidade de antecipar resultados futuros Por um lado o reconhecimento do outro ainda que constitutivo da ordem social como Freud 1957 afirma pode não ter uma correspondência consci ente da alteridade quando se trata da atuação social e política Por outro a representação que se tem de si mesmo self e do outro na ação política passa a ter uma conotação democrática quando a decisão de agir no plano político é um cálculo que necessariamente inclui o outro e onde por sua vez há certa confiabilidade da inclusão do self nos comportamentos externos ao mesmo Na dimensão do governo o reconhecimento do outro social não signifi ca a eliminação dos conflitos sociais Pelo contrário a existência dos mesmos poderia ser dirimida na arena da luta política dentro da diversidade de atores e interesses que esta comporta desde que as regras de competição democrática fossem suficientemente claras e explícitas para todos os atores sociais que parti cipam do jogo democrático sob a garantia de não exclusão qualquer que seja a questão política em jogo Tal possibilidade poderia provocar maior disposi ção ou encorajar amplos setores da sociedade a disputar por meio da luta política a publicização da esfera pública Em sociedades extremamente desiguais a constituição do self é privilégio a ser usufruído por aqueles indivíduos que acederam à satisfação plena das neces sidades e onde o outro remete à quase metade da população desprovida do cap1pmd 872011 1029 43 4 4 direito a se alimentar diariamente ter um teto onde morar ter direito ao traba lho e à saúde e a formar parte da sociedade condições tais que por sua ausência colocam em questão a própria ordem civilizatória Em verdade quando refletimos a respeito das políticas sociais não estamos pensando exclusivamente em políticas de ordem redistributiva de bens de con sumo social cujo locus administrativo é dado na esfera do Estado ainda que essa seja uma primeira aproximação à compreensão do papel das políticas sociais O que pretendemos focar é a constituição de agentes sociais em estreita relação com as políticas o que implica definição das demandas referidas à política social e o fato de estes agentes serem sujeito da política A idéia de constituição de sujeitos em estreita relação com as políticas sociais requer a existência prévia de direitos de cidadania universais legitimados pela ordem política As políticas sociais passariam assim a adquirir em nossa compreensão o status do que Giddens10 denominou políticas emancipatórias Eqüidade Justiça A questão da eqüidade é sob a perspectiva aqui adotada um componente principal da democracia A eqüidade é embutida na idéia da cidadania não como princípio mas como o resultado das lutas sociais que transformaram a idéia de cidadania na obtenção de direitos concretos pela população Os direi tos civis políticos e por último sociais constituíram os três momentos dos quais a cidadania se nutriu até alcançar um significado pleno que segundo Marshall 1967 encontrase bem distante daquele com o qual a concepção liberal lhe deu origem A História pôs em movimento a idéia da cidadania tendo redefinido assim sua própria noção Daí que entre o princípio de igualda de formal e a noção de eqüidade se interpõe o reconhecimento da incapacidade de o mercado dar conta das desigualdades inerentes à sociedade As transformações históricas protagonizadas pelo movimento operário e pelos partidos de esquerda levaram a profundas reformas do capitalismo 10 Defino política emancipatória como uma perspectiva genérica referente fundamentalmente à liberação de indivíduos e grupos dos entraves que afetam de maneira adversa suas chances de vida As políticas emancipatórias envolvem dois elementos principais o esforço de deixar para trás o passado permitindo uma atitude de transformação em direção ao futuro e o propósito de supera ção da dominação ilegítima de alguns indivíduos ou grupos sobre outros As políticas emancipatórias objetivam reduzir ou eliminar exploração desigualdades e opressões Giddens 1991212213 cap1pmd 872011 1029 44 4 5 Przeworski 1992 por meio da intervenção do Estado na economia e da regulação do mercado De fato os direitos sociais constituíramse conquista das lutas operárias A incorporação desses direitos mediante políticas sociais tiveram expressão nos Welfare States europeus em que a igualdade formal se aproximou da igualdade real Assim a eqüidade como resultado não é mais do que a maneira pela qual as modernas democracias sociais traduziram politicamente sob o capitalismo as desigualdades sociais em distribuição mais eqüitativa da riqueza e do bemestar social A ampliação dos direitos sociais requer a progressiva intervenção do Esta do por intermédio de políticas sociais Por um lado as implementadas a partir da década de 40 provocaram forte intervenção política do Estado e portanto uma mudança na concepção liberal da democracia A própria noção de de mocracia começa a ser relacionada à ampliação da participação social e política e às condições de vida capaz de proporcionar à população Por outro essas mesmas políticas sociais como alternativa de implementação política das trans formações que atravessou a própria concepção de democracia exigiram a presença reguladora do Estado na economia Uma parte do investimento estatal o destinado às políticas sociais passou a ser considerada compensatória da pobreza e investimento de capital sem retorno de lucro As políticas sociais funcionaram como salário indireto Aquela parte do trabalho não retribuída pelo empregador e por este apropriada no processo de produção coluna vertebral do processo de acumulação capitalista a maisvalia passa a ser compensada pelo Estado por meio de bens de consumo social como aposentadoria saúde educação e moradia Uma das idéias que perpassou na época a teoria econômica keynesiana foi a de que a ampliação do consumo era a chave para o crescimento econômi co os benefícios sociais através das políticas sociais têm como papel principal liberar uma parte considerável do salário que já não precisa ser destinada à reprodução da força de trabalho e poderá ser destinada ao consumo Neste sentido o Estado teve também um importante papel regulando o papel do mercado e agindo como planejador investidor e direcionador do processo de acumulação capitalista Além disso uma forma de evitar modificações estrutu rais pode ser atenuando os efeitos do capitalismo sobre a classe trabalhadora De fato o desgaste excessivo da força de trabalho inviabiliza um melhor aproveitamento da mesma no futuro pela diminuição das capacidades necessá rias para absorção de mudanças tecnológicas no processo produtivo e pela cap1pmd 872011 1029 45 4 6 própria deterioração das condições de saúde do trabalhador O Estado tem apoiado os investimentos privados e regulamentado os públicos o que signifi ca também assumir tarefas de controle e do equilíbrio do ciclo econômico Tal processo foi longo e complicado na medida em que implicou altera ções substantivas na economia capitalista e no modelo teóricoliberal que tinha sustentado até a década de 30 a não intervenção do Estado na economia e a própria noção de democracia como democracia liberal Essas transformações que sofreu o capitalismo foram possíveis pelo grau de enfrentamento produzi do pelas desigualdades sociais e pelo desmascaramento do discurso da igualda de entre os indivíduos que o liberalismo vinha exercitando desde os primórdios do capitalismo O processo teve origem e referência no campo da política A teoria mar xista da sociedade capitalista junto às experiências socialistas de princípios do século colocou a questão de uma maior eqüidade distribuição da riqueza como exigência das classes trabalhadoras européias em relação ao sistema econômico capitalista e sua contrapartida política à democracia liberal A estruturação de fortes sindicatos nos setores vitais da economia ligados aos partidos comunista e socialdemocrata que adquiriram um peso crescente no eleitorado europeu abriu uma nova perspectiva para o capitalismo via Welfare State Eqüidade e justiça social não são mais que as duas faces da mesma moeda A eqüidade é agora uma condição da cidadania redimensionada a partir das transformações do capitalismo enquanto a justiça social diz respeito à incorpo ração da eqüidade como um novo código moral e ético das democracias mo dernas A justiça social ao mesmo tempo que dá conta da inclusão da igualdade real na noção de cidadania retraduz no plano formal uma nova ordenação jurídica que poderia ser considerada na ordem do Direito Social Tratase de uma esfera na qual se interpenetram instituições estatais sociais e que conseqüen temente não permite ser enquadrada nem no Direito Público nem no Privado É interessante notar que apesar desse processo histórico não há no siste ma capitalista como um todo nenhuma necessidade indefectível de incorporar essas transformações Pelo contrário nos países em que não houve uma classe trabalhadora ou movimentos sociais que tenham acumulado importantes quo tas de poder político o capitalismo como sistema econômico tende a ser tanto ou mais predatório e reprodutor de enormes desigualdades sociais que quando de sua instalação originária cap1pmd 872011 1029 46 4 7 Neste sentido seriam necessárias transformações na concepção e no exer cício da política ao levarmos em consideração que historicamente a ação polí tica tem tido um valor substantivo nas transformações do capitalismo fazendo com que este se torne mais flexível A incorporação da eqüidade na concepção da democracia e a maneira de implementála nos parece uma das questões centrais que hoje se colocam para o Brasil e outros países que atravessaram regimes autoritários e se encontram com enorme parcela da população no limite da pobreza absoluta11 Democracia e Reforma A democracia comporta reforma Que capacidade tem a democracia de absorver reformas Que tipo de reformas Em relação à primeira pergunta se pensarmos a democracia apenas como um sistema de governo acabaríamos confirmando necessariamente as premis sas elaboradas sobre a teoria liberal no século XIX Esta imaginou a democracia como o mais aperfeiçoado dos sistemas políticos um sistema formal de igual dades e liberdades expressas politicamente mediante o voto de cidadãos livres e iguais representado por partidos políticos competindo pela conquista do go verno por meio de eleições onde a decisão seria das maiorias mas sem que isso significasse que as minorias tivessem de se sujeitar ao domínio despótico das maiorias A teoria da democracia se colocava no contexto da economia capita lista e dentro de uma concepção do Estado na qual a economia e a política eram instâncias diferentes e separadas No entanto o percurso histórico do exercício da democracia a partir das forças políticas e sociais fez com que sua práxis se distanciasse enormemente 11 Przeworski 1992109 tem um enfoque diferente dessa questão Minha versão a respeito desta questão as contradições inerentes ao capitalismo defende que o capitalismo é irracional porque não pode acender a certas distribuições de bemestar que são tecnicamente factíveis Nós podemos ter meios tecnológicos e organizacionais de alimentar a todos na Terra e a vontade de fazêlo mas ainda assim ser incapazes de conseguir isto sob o capitalismo Imagine uma economia na qual há dois agentes P e W Se os resultados não dependessem das taxas de retorno dos investimentos controlados por estes agentes logo sob um dado estágio da tecnologia toda a distribuição do bem estar se resume ao nível em que os resultados sejam acessíveis Mas sob o capitalismo os resultados dependem das taxas de retorno dos investimentos Se os capitalistas recebessem o retorno completo do capital e os trabalhadores o retorno completo do trabalho logo os recursos poderiam ser eficientemente alocados e a distribuição dos ingressos poderia refletir a produtivi dade marginal dos fatores Mas se os capitalistas ou trabalhadores não têm o retorno completo isto é se a distribuição de ingressos difere do mercado competitivo eles poderão retirar capital ou trabalho e os recursos seriam subutilizados Sob o capitalismo investimentos capital e força de trabalho propriedade privada e quem decide se vão e como vão utilizálos são os próprios interessados cap1pmd 872011 1029 47 4 8 daquilo que a teoria clássica pensou como tal ao mesmo tempo que o campo teórico da democracia acrescido pelo pensamento marxista a respeito do Esta do capitalista procurou acompanhar as transformações históricopolíticas das democracias Acreditamos que as mudanças no campo teórico seguem um eixo que se estende da democracia formal à democracia substantiva entendendo por de mocracia substantiva o seguimento teórico do processo histórico pelo qual agentes sociais conquistam efetiva cidadania produzindo ruptura no discurso demo crático liberal Afirmamos que o capitalismo per se não comporta reformas quando estas ocorreram tiveram origem no campo da política foi a luta polí tica nas democracias modernas que levou a mudanças no capitalismo A vitalidade da idéia da democracia reside precisamente na sua indefinição teórica na sua capacidade de se adequar às transformações históricas do agir político sem realizarse em uma teoria acabada da democracia Neste sentido a democracia é uma construção históricopolítica e também teórica Se aceitar mos essa afirmação concluiremos que a democracia enquanto enunciado com porta qualquer reforma Ao se indagar sobre a capacidade da democracia de absorver reformas e se a absorção ou não das reformas está diretamente relacionada ao grau de profundidade das mesmas podese responder que quando as reformas colo carem em perigo forças constituídas ou consolidadas no regime anterior a dificuldade de sua implementação crescerá proporcionalmente à dimensão das mencionadas forças Será necessário portanto um diagnóstico apurado ou o mapeamento das forças políticas e sociais envolvidas e nãoenvolvidas no pro cesso de reforma a relação de força entre elas e um cálculo estratégico que possibilite a acumulação de poder para a implementação das reformas Mas seria possível chegarse talvez a otimizar resultados com um investimento de tempo maior se se trata de implementar reformas parciais Schmitter 1991b4 discute a respeito da consolidação da democracia me diante a constituição do que chama de regimes parciais e baseada na idéia gramsciana da construção de hegemonia por meio da guerra de posições Com o propósito de analisar esse processo a consolidação da democracia pode ser proveitoso pensar a democracia moderna não como um regime mas como um mix de regimes parciais cada um articulando e governando um dife rente conjunto de instituições Quaisquer que sejam a identidade e a significação dessas instituições a con solidação do conjunto delas não acontece ao mesmo tempo A lógica das mu cap1pmd 872011 1029 48 4 9 danças nos regimes obedece a certas prioridades Algumas mudanças são in trínsecas à natureza genérica da democracia como a institucionalização de um regime de controle civil sobre os militares ou acertos de negociação coletiva entre capital e trabalho mas podem não ser implementadas no momento em que seria conveniente pelo poder dos grupos de interesse que se veriam afe tados Essas diferenças nas seqüências nas quais distintos conjuntos de institui ções são objeto de mudanças ou não o são podem ser cruciais para com preender os resultados eventuais A questão à qual Schmitter nos encaminha é que em última instância os regimes parciais que se estabeleçam vão prover importante informação a res peito do tipo de democracia que está sendo implementada Ou seja a luta dos diversos interesses em jogo representados por uma ou outra proposta as estra tégias utilizadas e o timing para sua implementação vão possibilitar que reformas parciais ou setoriais sejam ou não efetivadas Neste sentido a democracia tem uma quota importante de incerteza Przeworski 1992 ODonnell 1988 Schmitter 1991a mas condicionada a uma relativa certeza Esta creio seria dada pelo fato de que cidadãos munidos de uma cultura cívica estarão em condições de aceitar que outros interesses de classe pessoas ou grupos definam os cursos de ação política sempre que existam os canais e um tempo possível para a implementação dos próprios interesses12 Acreditamos que a Reforma Sanitária e a luta em prol de sua implementação atualizam a disputa pelo predomínio da representação de interesses no setor saú de por sua vez inscrito no contexto político mais amplo do processo de demo cratização A Reforma Sanitária pode ser compreendida como um processo de estabelecimento de uma democracia parcial ou como um regime parcial em que a sua efetiva instituição e institucionalização atualizaria na arena política da saúde a condição de possibilidade do exercício da democracia tal como com preendida neste capítulo Ou seja não são condições suficientes para a consoli dação da democracia o estabelecimento das intituições políticas eleições perió dicas e partidos políticos a questão da eqüidade é principal para que a democracia se efetive A Reforma Sanitária atualiza tal condição no campo da saúde Para discutir a última das perguntas aqui colocadas acerca do tipo de re formas acreditamos na necessidade de distinguir as transições do Leste euro 12 A consolidação da democracia pode ser vista como um processo o melhor dos processos que torna esses procedimentos possíveis Esta institucionaliza a incerteza em um subconjunto de papéis políticos e arenas políticas enquanto institucionaliza a certeza em outras Schmitter 1991a6 cap1pmd 872011 1029 49 5 0 peu das transições na América Latina Isso é importante porque de maneira geral quando se discute a questão das reformas há uma assimilação entre estas e economia de mercado Reformas e liberalização do mercado são a nosso ver questões diferentes Julgamos que não o são no caso dos países que estão transitando do socialismo para a democracia A necessidade de liberalização política traz consigo nos países do Leste a recuperação do indivíduo não como sujeito ainda que isso também esteja presente como reivindicação de um indivíduo diferenciado da sociedade de uma ideologia de homogeneização social sustentada na ditadura do proletari ado para a qual o indivíduo não tem valor A recuperação do indivíduo pareceria trazer consigo a obtenção de um maior bemestar econômico e condições de vida mais confortáveis portanto demandas pela ampliação do consumo e da propriedade privada O indivíduo como proprietário alcança a sua realização pessoal pela diferença assim a posse de bens o diferenciará dos outros Não pretendemos a respeito dessas observações estabelecer juízos de valor Em definitivo qualquer forma de imposição política via autoritária seja militar ou partidária conduz a altos graus de compressão social que necessariamente encontram algum tipo de resolução com a desaparição do regime autoritário e da ideologia que o sustentou Quando as barreiras de contenção se quebram os movimentos sociais crescem e a constituição de processos de construção de identidades políticas se opera pela formação de um campo simbólico próprio e diverso daquele que tinha prevalecido em um momento anterior Neste senti do as reformas políticas nos países do Leste precisariam ser acompanhadas por reformas econômicas encaminhadas à liberalização da economia e portan to à constituição do mercado No caso da América Latina ocorre precisamente o contrário Os regimes autoritários aprofundaram a acumulação capitalista ODonnell 1975 o que significou particularmente no caso do Brasil um processo de aprofundamento das desigualdades sociais e da pobreza até um ponto que pode ser considerado intolerável para o conjunto da sociedade Somado a isso os estertores do regi me autoritário foram acompanhados por uma crise econômica derivada da elevação internacional dos preços do petróleo o que levou a uma elevação considerável da inflação e também a um empobrecimento das classes médias Desse modo o que o processo de transição trouxe consigo foi o anseio por mudanças políticas que acabassem com o arrocho salarial e pudessem pro ver a distribuição mais justa da renda e menores desigualdades sociais Assim a cap1pmd 872011 1029 50 5 1 construção de identidades políticas nos movimentos sociais que cresceram nes se período questão que será tratada de maneira detalhada adiante criou um campo simbólico baseado na justiça social Por esse motivo as reformas no campo da economia foram entendidas como a necessidade de controle sobre o capital monopolista e portanto sobre o lucro das empresas a eliminação dos anéis burocráticos no interior do Estado Cardoso 1975 o crescimento do in vestimento em políticas sociais a reforma agrária e o nãopagamento da dívida externa As reformas tinham um conteúdo claro de socialização da economia Ao contrário o que houve foram governos que com plataformas e sub terfúgios políticos pouco claros venceram as eleições e pretenderam implantar com maior ou menor êxito Argentina Chile Brasil reformas econômicas no sentido de desregular a economia e cumprir as metas do FMI Tais diretrizes foram seguidas não só em termos do pagamento da dívida externa mas funda mentalmente em medidas de economia interna destinadas a controlar a inflação dando um maior predomínio ao livre exercício das forças econômicas no mer cado abrindo as importações restringindo a inversão interna diminuindo o consumo e produzindo em definitivo a recessão e o crescimento da pobreza e das desigualdades sociais Isso leva a afirmar que as únicas reformas possíveis na América Latina são as postuladas pelo conjunto da sociedade e as de caráter progressivo nas quais o mercado ainda que mantido seja regulado É nesse contexto que se inscreve o processo da Reforma Sanitária no Brasil cap1pmd 872011 1029 51 5 3 2 O Processo de Reformulação do Setor Saúde os atores as estratégias e o papel dos organismos estatais O processo de transição à democracia trouxe a emergência de novos ato res coletivos Movimentos sociais proliferaram em todo o País juntamente com as novas formas de exercício da política ao mesmo tempo em que novos par tidos faziam sua entrada na cena política nacional Em cada canto do País as demandas por mudanças de liberalização política e de justiça social tomavam conta da sociedade No conjunto dos partidos de oposição o resgate da dívida social resul tante das políticas econômicas de alta concentração de renda do regime autori tário era considerado o leitmotiv da construção da democracia Um amplo debate perpassou a sociedade como um todo no qual a possibilidade de rever ter as enormes desigualdades sociais e a extrema extensão da pobreza se traduziu em propostas políticas que se concentraram na redefinição de políticas sociais Estas foram vistas pelos partidos políticos de oposição como iniciadoras de um processo redistributivo de renda caminho para a universalização de benefícios sociais para toda a população Nesse contexto inscrevese o processo de reformulação do setor saúde que culminou com a proposta da Reforma Sanitária brasileira Teve início em meados dos anos 70 e trouxe como liderança intelectual e política o autodenominado Movimento Sanitário Tratavase de um grupo restrito de intelectuais médicos e lideranças políticas do setor saúde provenientes em sua maioria do Partido Comu nista Brasileiro PCB Este exerceu papel destacado de oposição ao regime mili tar assim como trajetória política própria na área da saúde O grupo influenciou fundamentalmente o âmbito acadêmico e pode ser considerado o mentor do processo de reformulação do setor Recebeu influên cia do modelo da Reforma Sanitária italiana e desempenhou também impor cap2pmd 872011 1030 53 5 4 tante papel em organismos internacionais como a Organização PanAmerica na da Saúde OPS e em experiências alternativas de saúde implementadas em alguns municípios brasileiros na década de 70 A partir da abertura política e no período em que estava bem avançada a transição à democracia passou a ocu par importantes espaços nos aparelhos institucionais de saúde no âmbito do governo federal assim como nos governos estaduais e municipais A constituição do projeto reformador no âmago do Movimento Sanitário teve o primeiro impulso na década de 70 com a criação dos departamentos de medicina preventiva nas faculdades ligadas à área a partir dos quais se difundiu o pensamento crítico da saúde Vinculado a esse percurso acadêmico houve também avanços progressivos na implementação de políticas de saúde alterna tivas às impostas pelo regime militar à medida que a transição à democracia adquiria um perfil mais nítido Isso foi feito ou por meio de programas de extensão universitária ou a partir das secretarias municipais de saúde de alguns estados onde se tinha certo controle político sobre as prefeituras ou até mesmo por intermédio da ocupação de cargos técnicoadministrativos no Ministério da Previdência Social O projeto reformador sustentouse sobre uma ampla crítica ao modelo prevalecente baseado no crescimento do setor privado à custa do setor público o primeiro sendo financiado pelo segundo o que levou à falência deterio ração ineficiência e crise do sistema público de saúde Oliveira Teixeira 1986 Sem pretender refazer a história das propostas reformadoras na saúde cabe assinalar alguns de seus principais momentos Oliveira Fleury 1986 Um deles o Programa de Ações Integradas de Saúde desenvolvido no interior da Previdência Social propunha mudanças na relação entre o setor público privado passando a privilegiar o financiamento do setor público Pretendia também alterar o modelo médicoassistencial promovendo uma relação inte grada interna ao setor público e dando prioridade à assistência ambulatorial estendendo também a cobertura e melhorando a qualidade dos serviços Ainda que se tratando de experiência parcial já que seria implementada apenas em alguns estados e municípios a assinatura dos convênios das Ações Integradas de Saúde AIS iniciada em 1982 previa de maneira incipiente a existência de instâncias de participação da população na gestão dos serviços de saúde o que se constituiria também numa primeira tentativa de descentralização do Sistema de Saúde A partir de 1983 o Movimento Sanitário ampliou a proposta de reformulação do sistema de saúde com a ocupação de espaços nas instituições cap2pmd 872011 1030 54 5 5 estatais de saúde com objetivo de produzir mudanças na política de saúde e tendo em vista que o próprio processo de transição à democracia o permitia Tal crescimento adquiriu sua mais acabada expressão com a VIII Conferência Nacional de Saúde em 1986 na qual se definiu o projeto da Reforma Sanitária brasileira que introduziu mudanças no setor da saúde de forma a tornálo democrático acessível universal e socialmente eqüitativo O projeto da Reforma Sanitária sustentouse numa conceitualização da saúde ampliada relacionada às condições gerais de vida como moradia sanea mento alimentação condições de trabalho educação lazer A saúde neste sen tido é definida como um direito do cidadão e conseqüentemente um dever do Estado Ou seja os cuidados à saúde ultrapassam o atendimento à doença para se estenderem também à prevenção e à melhoria das condições de vida geradoras de doenças Para que isso fosse efetivado fizeramse necessárias transformações nas políticas de saúde tendo sido encaminhadas pela proposta os seguintes pontos criação de um sistema único de saúde com notável predomínio do setor público descentralização do sistema e hierarquização das unidades de atenção à saúde participação e controle da população na reorganização dos serviços readequação financeira do setor O notório retrocesso político após o primeiro ano de governo da Nova República imprimiu considerável estagnação em âmbito governamental no rit mo da implementação do processo de reformulação do setor se comparado com os notáveis avanços conseguidos na definição da reforma do sistema na VIII Conferência Nacional de Saúde A Comissão Nacional da Reforma Sanitária A partir da aprovação na VIII Conferência do projeto da Reforma Sani tária darseia então continuidade às resoluções emanadas desta por meio da formação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária que teria em suas mãos o processo de implementação do projeto na esfera do governo Paralelamente criouse a Plenária Nacional de Entidades de Saúde cuja finalidade era dar cap2pmd 872011 1030 55 5 6 continuidade à articulação dos organismos da sociedade civil que participaram da VIII Conferência e elaborar um projeto constitucional para ser apresentado no processo constituinte A Comissão Nacional da Reforma Sanitária proposta pelo Ministério da Saúde como desdobramento da VIII Conferência Nacional de Saúde previa uma composição paritária de entidades do governo e da sociedade No entan to sua composição não correspondeu ao peso real das associações da socieda de civil ficando estas em minoria em relação aos organismos estatais e privados do setor saúde A Comissão foi aprovada e constituída por 22 representantes dos quais somente seis eram representantes de organismos populares a Central Única dos Trabalhadores CUT a Confederação Nacional dos Trabalhadores CGT a Confederação dos Trabalhadores da Agricultura Contag a Confederação Na cional dos Médicos FNM e a Confederação Nacional de Associações de Moradores Conam Os outros 16 membros pertenciam a organismos gover namentais a parlamentares a centrais patronais e a prestadores privados de serviços de saúde A composição da Comissão atualizou desde o início a forma de preser vação do Estado perante políticas oriundas das entidades organizadas da soci edade além de alternativas ao modelo hegemônico no setor saúde A Comis são Nacional da Reforma Sanitária pode se constituir em um bom exemplo de como o Estado filtra demandas da sociedade por meio do exercício da seletividade estrutural Offe 1984 Esse mecanismo não se operou pelo veto de algumas temáticas e a seleção de outras mas pelo procedimento utilizado por organismos estatais para compor a Comissão A partir da formação da concessão produziuse um deslocamento da luta que acontecia no âmbito social e que culminou com uma proposta de amplo alcance e consenso social para o interior dos organismos estatais de saúde A disputa pela implantação da Reforma Sanitária passou a se dar no terreno dos enfrentamentos políticos das diversas facções da tecnoburocracia do setor e a propósito da execução dos avanços operacionais previstos pelo projeto Os Percalços no Processo da Reforma Esses enfrentamentos ocorridos no Ministério de Saúde e mais fortemen te na Previdência Social estiveram permeados pelas próprias lógicas do setor cap2pmd 872011 1030 56 5 7 público portanto limitados pela relação de forças no interior dos aparelhos de Estado afeiçoadas ao clientelismo político à política de favores pessoais e às rotinas burocráticas como uma maneira de impedir a implantação de políticas inovadoras nas práticas institucionais As tentativas de transformação do sistema de saúde mediante a ocupação de espaços nesses ministérios não conseguiram produzir avanços continuados na implantação da Reforma Paulatinamente os representantes do Movimento Sanitário foram sendo demitidos de seus cargos13 Quanto à efetiva implantação da Reforma em 1987 aprovouse o Decre to pelo qual se criou o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde Suds que contemplava o encurtamento da máquina previdenciária de nível estadual a transferência dos serviços de saúde e dos recursos financeiros para os estados e municípios o estabelecimento de um gestor único de saúde para cada esfera de governo e a transferência para os níveis estadual e municipal dos instru mentos de controle sobre o setor privado Escorel 1992 No entanto a implementação dos Suds acabou decepada no que tinha de transformação substantiva do sistema de saúde tendo ocorrido apenas algumas mudanças administrativas no setor A política de saúde do governo da Nova República acompanhou os per calços da transição caracterizandose por idas e vindas no processo de descentralização na integração interinstitucional e no que diz respeito ao privilegiamento do setor público Por meio de mecanismos políticos contábeis e burocráticos no Inamps e no Ministério da Saúde criaramse obstáculos à implementação dos SUS dentre os quais o que mais se notabilizou foi o desa parecimento dos recursos nos meandros das máquinas federais estaduais e municipais Certamente as destinatárias finais do financiamento do setor as unidades locais de saúde viveram em permanente crise por não terem condi ções de pagar aos profissionais de saúde bem como pela falta de instrumental manutenção dos equipamentos e dos medicamentos Os percalços à implantação da Reforma geraram uma grande desconfian ça na população em relação ao setor público da saúde A situação foi muito 13 Na Previdência Social a condução comprometida com as reformas mantevese até meados de 1988 quando da negociação do mandato presidencial e do regime de governo A partir de 1988 nenhum representante do Movimento Sanitário permaneceu em cargos da direção do Inamps Escorel 199223 cap2pmd 872011 1030 57 5 8 bem aproveitada pelo setor privado que cresceu consideravelmente no período sobretudo os seguros privados de saúde Em 1989 aproximadamente um quarto da população 32 milhões de pessoas estava coberto por seguros privados os quais movimentavam em torno de 25 bilhões de dólares cerca de 19 do gasto total com saúde Revista Conjuntura em Saúde jul 1992 A Plenária Nacional de Entidades de Saúde teve significativos avanços em termos de articulação de um movimento social de caráter nacional em torno da questão da saúde conseguindo plasmar na Constituição Nacional os princípios da Reforma Sanitária A Plenária foi constituída em meados de 1987 alimenta da pelas Plenárias Estaduais criadas imediatamente após a VIII Conferência Nacional de Saúde Compunhase de entidades representativas das seguintes forças Movimento Popular em Saúde Confederação Nacional de Associação de Moradores Conam e federações estaduais movimento sindical Central Única dos Trabalhadores CUT Confede ração Nacional dos Trabalhadores CGT Confederação dos Trabalhado res da Agricultura Contag partidos políticos de esquerda Partido Comunista Brasileiro PCB Par tido Comunista do Brasil PC do B Partido dos Trabalhadores PT Par tido Socialista Brasileiro PSB Partido Democrático Trabalhista PDT profissionais de saúde representantes do Movimento Sanitário e a acade mia Centro Brasileiro de Estudos em Saúde Cebes Associação Brasilei ra de PósGraduação em Saúde Coletiva Abrasco União Nacional dos Estudantes UNE etc entidades estaduais e municipais da saúde favoráveis à Reforma Conse lho Nacional dos Secretários de Saúde Conass Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde Conasems De fato a articulação e organização das forças populares na Plenária Nacional possibilitou que o capítulo da saúde na Constituição contemplasse o direito universal à saúde e a criação de um sistema único de saúde descentraliza do acessível e democrático Incluiu a complementação das necessidades de saú de da população com serviços preferencialmente filantrópicos e estabeleceu com o setor privado em geral contratos regidos pelas normas de direito públi co Assim enquanto a Reforma Sanitária era incorporada à Constituição no cap2pmd 872011 1030 58 5 9 capítulo referente à saúde paradoxalmente a implementação do Suds atravessa va o momento de maior retrocesso que por sua vez repercutiu fortemente no Movimento Popular em Saúde como veremos adiante A Construção de uma Abordagem Conceitual Ao considerarmos a Reforma Sanitária como uma particular política de saúde a estamos incluindo dentro do campo mais amplo das políticas sociais no contexto de democratização Neste sentido o que nos interessa por ora é discu tir as diversas formulações teóricas sobre política social de maneira que estas contribuam para desvendar o processo da Reforma Sanitária brasileira especi ficamente no tocante à sua implementação iniciada em 1987 com a reforma administrativa do sistema de saúde e a criação do Suds que atravessou gran des empecilhos para se efetivar A Reforma Sanitária colocanos perante ques tões que remetem ao campo teórico das relações entre o cidadão e o Estado no direcionamento e na implantação de políticas sociais em um contexo de cons truçãoconsolidação da democracia No interior da ciência política desde o século XVIII e sob diferentes pers pectivas a política social constituiu um âmbito de reflexão no sentido de problematizar se o Estado deveria intervir ou não para suprir ou remediar as carências ocasionadas pela pobreza se a pobreza deveria ser atribuída à incapa cidade das pessoas ou se pelo contrário o movimento natural da economia e suas flutuações é que geravam pobreza Já no século XIX vários pensadores se preocuparam em discutir o papel que caberia ao Estado perante o processo de industrialização capitalista que destituiu da proteção social os milhares de trabalhadores que abandonavam as formas feudais agrárias de produção para se constituírem trabalhadores livres No liberalismo clássico ou no liberalismo conservador de nossos dias entende se que o Estado não deve intervir na economia nem para corrigir desigualdades sociais restringindose à sua expressão mínima as políticas sociais Outras correntes de pensamento que se distanciam do liberalismo aproxi mandose de propostas socialdemocratas defendem a incorporação por par te do Estado de políticas regulatórias em relação ao mercado para contrabalan çar os efeitos nocivos do mesmo principalmente o desemprego e prover de seguridade social as camadas sociais desprotegidas eliminando as grandes desi gualdades sociais Expoentes dessa tendência são a teoria econômica keynesiana cap2pmd 872011 1030 59 6 0 e o Plano Beveridge enquanto proposta política concreta para o Estado forne cer seguridade social a todos os cidadãos Já no caso do marxismo clássico negase que o Estado capitalista possa prover bemestar às classes trabalhadoras ou avaliar os males que ele mesmo cria pois isso significaria a existência de valores contrários frontalmente às insti tuições capitalistas No entanto é de salientar o reconhecimento da proteção da mãodeobra por parte do Estado no tratamento que Marx dá à diminuição da jornada de trabalho na Inglaterra14 Este tem sido o ponto de partida para o pensamento das políticas sociais embora diferentes teorias ou abordagens teóricas das ciências políticas tenham tido apreciações próprias a respeito do domínio da política social Para o pluralismo as políticas sociais são entendidas como conseqüência da existência de diversos grupos de interesse presentes na sociedade que por atuarem numa determinada arena política influenciam a tomada de decisões a respeito das políticas sociais Na concepção elitista são os administradores policy makers que interagem no interior do Estado e dão substância concreta tanto às iniciativas como à implantação das políticas sociais A Teoria da Con vergência que constitui uma variante do modelo funcionalista entende que as políticas sociais são uma resultante do desenvolvimento econômico e industrial e que em torno deste a estrutura social como um todo se integra funcionalmente Nas abordagens mais recentes da teoria marxista há em alguns casos uma preocupação expressa pelas políticas sociais que se sustentam em estudos sobre a complexidade do Estado capitalista de nosso tempo Em outros a preocupa ção pela política social não se manifesta explicitamente como no caso de Poulantzas 1980 que no entanto se refere a elas ainda que de maneira não explícita ao analisar o papel atual do Estado Diante da diversidade de visões e definições da política social procurare mos aqui incorporar a riqueza e os diferentes ângulos de algumas dessas abor dagens teóricas buscando um marco conceitual que sem perder de vista a teoria marxista possa nos encaminhar a uma visão mais ampla no que diz res peito às políticas sociais e que evite tanto a pura determinação estrutural quanto o voluntarismo dos atores 14 sobre a constante pressão dos operários agindo por fora nunca essa intervenção darseia Em todo caso este resultado não teria sido alcançado por meio de convênios privados entre os operários e os capitalistas Marx 1978a96 cap2pmd 872011 1030 60 6 1 Denominaremos esse marco conceitual que integra elementos da teoria marxista e da teoria weberiana das instituições de enfoque integrado das polí ticas sociais identificado com a ótica de Offe 1984 mas complementado por algumas contribuições da bibliografia latinoamericana sobre o tema Para Offe 1984 existem dois planos de análise da política social um estrutural e um singular articulados mediante relações que se estabelecem no plano específico do político No plano estrutural as políticas sociais estão liga das ao Estado capitalista e às suas determinações estruturais No singular são consideradas pelas peculiaridades que as distinguem de outras políticas e sua singularidade pode ser captada por meio da pesquisa empírica concentrada em dois eixos básicos a evolução modificações e inovações de uma política social dada e a relação entre estratégias de racionalização administrativa e a implementação de inovações políticas No plano estrutural a política social cria condições socioestruturais para que o trabalho assalariado funcione como tal Por meio da política social o Estado vai regulamentar quem participa ou não do mercado de trabalho Para isso precisa organizar e sancionar as formas de existência externas ao mercado pessoas que pela idade avançada não estejam mais em condições de trabalhar passam a ser atendidas pelo sistema previdenciário pessoas que não estejam em boas condi ções de saúde ficam sob a responsabilidade do sistema de saúde crianças e jovens são atendidos pelo sistema de educação Neste sentido a política social responde às reivindicações da classe operária mas também a constitui na medida em que integra a força de trabalho ao mercado as diversas instituições de previdência saúde educação e habitacionais exer cem o controle da força de trabalho e socializam os custos do desgaste da mesma regulamenta quantitativamente a relação entre oferta e demanda no merca do de trabalho Como se poderia compreender a evolução as modificações e inovações no plano singular do estudo das políticas sociais Diante de uma visão marxista de cunho estrutural funcionalista que explica as políticas sociais ou porque ser vem ao processo de acumulação capitalista ou porque possibilitam que o Esta do se legitime junto às exigências da classe operária organizada Offe afirma que as inovações nessa área obedecem à compatibilização de estratégias que se dão na esfera do político cap2pmd 872011 1030 61 6 2 Assim o Estado reage tanto às exigências como às necessidades de acordo com as instituições políticas adequandoas modernizandoas etc e as relações de força existentes na sociedade canalizadas por essas instituições A política social não está a serviço das necessidades ou exigências de qualquer classe mas reage aos problemas estruturais do aparelho estatal de dominação e de presta ção de serviços Se a afirmação anterior é verdadeira as inovações na política social criam condições de interações conflitivas entre grupos e classes sociais e seus resultados são imprevisíveis ou ambivalentes Os Aportes da Bibliografia LatinoAmericana na Abordagem Conceitual da Reforma Sanitária Passamos a destacar algumas contribuições da bibliografia latinoamerica na que acreditamos contêm idéiaschave a serem incorporadas e articuladas nesta análise Tal incorporação sustentase na necessidade de em nosso ponto de vista enfatizar o papel que a luta política nas suas diversas formas e a relação de forças entre grupos sociais e classes têm nos processos de formula ção e implantação das políticas sociais Uma dessas contribuições Diniz 1978 destaca na análise das relações en tre Estado e sociedade o papel dos atores sociais mas sem abandonar a pers pectiva dos limites dentro dos quais esses atores agem as determinações estru turais do Estado capitalista Aponta o papel predominante que o Estado tem na bibliografia latinoamericana deixando num lugar subordinado da análise os fundamentos sociais da política Em outras palavras a primazia atribuída ao Estado no processo de desen volvimento capitalista ainda que esta seja incontestável descaracterizou a socie dade civil como geradora também de processos com dinamismo próprio Por isso defendese a necessidade de captar essa articulação de interesses suas cone xões com agências governamentais e técnicos localizados em pontos estratégi cos da burocracia pública Distinguese entre uma fase puramente decisória das políticas e outra de implementação chamando atenção para a distância entre a decisão e a aplicação É aí precisamente que se faz sentir o peso dos diversos interesses em jogo Há medidas que são aprovadas e cuja execução é bloqueada ou pela burocracia ou pelo poder de veto do grupo diretamente afetado Tratase de levar em conta a um só tempo as determinações estruturais e o peso das opções feitas cap2pmd 872011 1030 62 6 3 por atores ou grupos de atores que ao escolherem uma alternativa ou outra atualizam as possibilidades estruturais Diniz 197825 A idéia introduzida por Santos 1979 sobre a complexificação do social referese ao processo de diferenciação social e de multiplicação organizacional que se operou nas sociedades nas últimas décadas Surgem novos grupos com grande heterogeneidade como resultado de novos papéis ocupações e posi ções sociais sendo difícil reconhecer nessa diversidade classes sociais mais ho mogêneas Ao mesmo tempo o processo é acompanhado também pelo au mento de uma multiplicidade de organizações que cumprem o papel de mediatizar a ação desses movimentos e grupos sociais Finalmente Oszlak ODonnell 1976 analisam as políticas sociais a partir de uma perspetiva centrada na recuperação da história dos problemas sociais ou demandas políticas e da história das políticas Considerando que as políticas sociais ocorrem no cerne do Estado em sua ossatura institucional caberia interrogar como se retraduzem exigências sociais em problemas e por sua vez estes em resposta do Estado mediante políticas específicas Há uma seletividade das instituições políticas pela qual determinadas de mandas se traduzem em problemas e conseqüentemente em políticas e que opera nos dois planos da política social De um lado a tematização ou exclu são de questões referese ao plano singular da política social tais procedi mentos de outro operam no plano estrutural não deixando que determina das questões possam ameaçar a própria existência do Estado como Estado capitalista Tratase para Offe 1984 de uma seletividade estrutural desse mesmo Estado capitalista Um sistema de filtros vinculados a interesses de classes não visíveis faz com que determinadas questões sejam excluídas pelas instituições do Estado enquanto outras são transformadas de substanciais em menos rele vantes e algumas outras ainda favorecidas Hirsch 1977 da mesma forma trata desse sistema de barreiras e filtros que opera na órbita do Estado transformando exigências políticas em uma agenda viável de problemas e questões Acrescenta a esse tratamento quatro modalidades ou formas em que funciona na prática a seletividade as determinações fundamentais de desenvolvimento social não são objeto de decisões políticas o limite dos recursos materiais do Estado é dado pelo lucro do capital cap2pmd 872011 1030 63 6 4 a seletividade do sistema político se coloca na repressão física e na integração ideológica e de maneira principal as exigências que penetram nos aparelhos de Esta do são tratadas de maneira funcional por burocracias que atuam autono mamente e que têm competências clientelas e percepções próprias dos problemas Em relação a como se opera essa seleção Oszlak ODonnell 1976 chamam a atenção para um estudo não só das transformações do Estado capitalista e suas modalidades de relacionamento com a sociedade civil mas de maneira mais específica também de como o Estado opera para transformar questões sociais em políticas concretas No caso se trataria de recuperar o pro cesso histórico tanto dos problemas como das políticas Articulando agora as contribuições discutidas anteriormente com a pro posta elaborada por Offe as proposições dos autores discutidos anteriormen te teremos o seguinte quadro sinóptico para a análise da Reforma Sanitária brasileira Corte Sincrônico Corte Diacrônico PLANO ESTRUTURAL Corte Diacrônico Corte Sincrônico PLANO SINGULAR COMPLEXIFICAÇÃO DO SOCIAL PAPEL DOS ATORES Compatibilização A complexificação do social proveniente do enfoque de análise pluralista seria articulada no plano de análise estrutural possibilitando complexificar a análise marxista de classes sociais pois no estágio atual do processo de acumu lação capitalista não podemos localizar com nitidez as duas classes fundamen tais e antagônicas burguesia e proletariado Esse processo de estratificação dificulta tanto a delimitação objetiva de classe como a própria identidade de classe Grupos sociais que se superpõem à estrutura produtiva assim como movimentos sociais urbanos que surgem na esfera da reprodução da força de trabalho via consumo de bens coletivos proporcionados pelo Estado por meio de políticas sociais têm formas organizativas próprias expressando demandas sociais cap2pmd 872011 1030 64 6 5 Nessa diversificação social sustentamse os comportamentos dos atores políticos os quais são fundamentais para compreender inovações políticas Pa ralelamente esses atores podem assumir interesses diversos de classe corporativos de grupos individuais que podem ou não se exprimir ideologi camente O procedimento de adequação de estratégias políticas aos processos de racionalização administrativa eou inovações políticas assim como o direcionamento das mesmas é gerado pelo desempenho dos atores políticos Por último incorporar à análise a história das demandas sociais e das políticas sociais colocanos diante da necessidade de realizar um corte diacrônico históri co tanto no plano da análise estrutural quanto no plano singular das políticas sociais Isso complementaria a análise de Offe na medida em que este autor só fazia referência à importância de se realizar um corte diacrônico no plano singular das políticas sociais que reconstrua a história dos efeitos das políticas sociais Observações Resultantes do Enfoque Metodológico Adotado No marco da discussão teórica a Reforma Sanitária como política social foi uma proposta surgida de um movimento social que no cerne do processo de transição à democracia teve a capacidade de se articular Ainda que se tenha conseguido uma proposta acabada de reformulação do sistema de saúde sanci onada na Constituição há grandes dificuldades para implementála Diversos interesses presentes tanto na sociedade como no Estado oferecem resistências utilizando desde mecanismos de veto à política até tentativas de modificála substancialmente Offe 1984 menciona algumas dificuldades dilemas e possíveis soluções ao tratar das inovações sociopolíticas e de racionalização administrativa experi mentadas na Alemanha com a crise do Welfare State que puderam colaborar para evitar os vetos à Reforma Sanitária A Social Democracia alemã não pou pou recursos fiscais destinados a políticas sociais No plano das inovações sociopolíticas procurouse então aumentar a efi ciência das políticas sociais especificamente em relação à política de saúde uma das soluções encontradas foi por intermédio de estratégias preventivas buscan do melhorar as condições de trabalho e de vida da população As dificuldades e resistências assinaladas anteriormente podem nos servir de referência ao aprofundarmos os problemas concretos que a implementação da Reforma Sanitária traz no caso do Brasil sem significar que seja viável a cap2pmd 872011 1030 65 6 6 reprodução das experiências realizadas nos países com democracias avançadas estas nos ajudam a pensar as questões políticas e econômicas relacionadas a processos de reformas ou inovações sociopolíticas que passam então a adqui rir importância decisiva na consolidação da democracia Um dos problemas atuais de maior complexidade para o estabelecimento da democracia é a representação dos interesses subalternos nas agendas políticas ou mais precisamente a existência de espaços para que isso aconteça no interior das políticas sociais Ainda que hoje nos países de capitalismo avançado o Esta do não possa incorporar demandas sociais como em décadas anteriores diver sos interesses de maneira institucionalizada ou não se fazem representar No meio de uma profunda crise do Welfare State os sindicatos e outras organizações sentamse à mesa de negociações participando da formulação e implementação de políticas sociais No Brasil onde não houve até recentemen te sistema político de corte liberaldemocrata o reconhecimento de direitos de cidadania e especificamente do direito de usufruir de um mínimo de bem estar foi bastante tolido Tal situação é agravada pela implantação de políticas econômicas de ajuste à crise que trouxeram cortes nos gastos destinados às políticas sociais intensificando ainda mais o problema estrutural da miséria Especificamente no setor saúde os mecanismos de ajuste à crise foram dimi nuir os recursos do Tesouro aumentar as contribuições de empregados e em pregadores e criar novos fundos sociais que em lugar de serem destinados a financiar ações para os setores sociais se destinaram a suprir a crise fiscal Ao compreender o processo de democratização do setor saúde como a constituição de um regime de democratização parcial os percalços no anda mento da Reforma Sanitária remetem a dificuldades mais gerais que dizem respeito ao próprio processo de consolidação da democracia Desse modo a Reforma Sanitária tem convivido com uma permanente falta de recursos o que afetou profundamente o setor público da saúde alterando a credibilidade dos usuários e seus movimentos sociais organizados cap2pmd 872011 1030 66 6 7 3 Os Movimentos Sociais em Saúde questões teóricometodológicas para sua abordagem O Movimento Social em Saúde é formado pelo Movimento Popular em Saúde e pelo Movimento Médico Ainda que se caracterizem pelas profundas diferenças na composição institucionalização grau de articulação problematização das questões e eixos de atuação existem importantes elos entre ambos O final da década de 70 foi um momento sui generis na política brasileira no que se relaciona ao papel da sociedade civil com o surgimento de diversas entidades em diversos setores da vida social Um movimento febril de agitação e oposição política atravessou toda a sociedade promovendo um amplo de bate e mobilização social em prol do fim do regime autoritário e da democra tização do País A ditadura militar em processo singular acompanhou as propostas de abertura política De uma parte as Forças Armadas assumiram a obrigação de tutelar um processo que se fosse além do razoável poderia colocar em xeque o próprio papel e a relevância das mesmas no contexto político brasileiro as sim como os parâmetros de sociedade e Estado cuja sobrevivência justificara a intervenção militar na década de 60 A abertura lenta gradual e segura foi a estratégia escolhida pelas direções militares que viam no endurecimento e na repressão posição representada por uma parte dos altos comandos das mesmas o caminho mais curto para a radicalização da sociedade com a conseqüente ameaça aos objetivos estraté gicos das Forças Armadas Enquanto isso em reuniões e apreciações das cúpulas militares era medi do e ponderado o descontentamento da sociedade brasileira que ia crescendo proporcionalmente à dimensão da crise econômica pósmilagre e às dificulda cap3pmd 872011 1034 67 6 8 des de expressão política À medida que as contradições começavam a se colo car no interior das Forças Armadas a sociedade ganhava espaço e força nas reivindicações por mudanças políticas Nesse contexto o Movimento Social em Saúde se originou e teve presença marcante em duas vertentes o Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico O Movimento Popular em Saúde Os movimentos populares em saúde se originaram nos bairros pobres das periferias das grandes cidades eou nas favelas localizadas nos grandes centro urbanoindustriais15 Tratouse de uma primeira fase no surgimento desses mo vimentos que começaram a proliferar na década de 70 que aqui será denomi nada fase reivindicativa Os moradores desses bairros se agruparam ao redor de associações comunitárias buscando alguma forma de organização primária em torno de reivindicações por melhores condições de vida saneamento pos tos de saúde água esgotos moradia transportes etc Essas formas de associação possibilitaram criar laços de solidariedade e de organização Isso levou à eleição de representantes para a condução das associ ações de moradores que exerceram papel principal no encaminhamento das demandas ao Estado O Movimento Popular em Saúde teve uma marcante presença de médi cos profissionais e agentes de saúde Esses profissionais exercitaram um certo paternalismo ao mesmo tempo que políticos fisiologistas estabeleciam bases para a obtenção de vetos em troca de algumas melhorias como a instalação de bicas ou de luz em algumas favelas Cabe assinalar que nenhuma relação existia entre esses profissionais de saú de que na década de 70 desenvolveram militância política por meio da prática profissional nos bairros carentes das grandes metrópoles Sua intenção era cola borar para a organização política das mesmas enquanto os políticos fisiologistas operavam por meio de máquinas políticopartidárias caso do chaguismo no Rio de Janeiro com finalidade exclusivamente eleitoral Tratouse de um momento inicial na constituição do Movimento Popular em Saúde em torno de reivindicações pontuais nas quais atribuíase ao Estado a responsabilidade pela falta de assistência médica postos de saúde e hospitais e 15 A trajetória histórica do Movimento Popular em Saúde e do Movimento Médico no período de estudo será tratada mais detidamente na Parte II cap3pmd 872011 1034 68 6 9 conseqüentemente pela nãoresolução de tais problemas Esse momento está intimamente ligado à agitação política presente na sociedade e à atividade de senvolvida na busca de liberdades políticas e de arrocho dos problemas de carência social resultante do arrocho salarial do regime autoritário Essa efervescência política se estendeu até a década de 80 com a campa nha pelas eleições diretas para Presidente da República Identificamos este mo mento com uma segunda fase na existência dos movimentos populares na qual se mantiveram os mesmos eixos reivindicativos as associações de moradores dos diferentes bairros conseguiram se articular para a discussão dos problemas comuns fazer uma leitura política dos mesmos e propor uma atuação destina da a interferir nas soluções que o Estado viesse prover A esta fase denominare mos politização do Movimento Popular em Saúde As associações organiza ramse em torno de federações de associações de moradores nacionais e esta duais reunindose periodicamente elegendo suas direções e se organizando em seções ou departamentos de saúde terras e moradia educação etc Os momentos mais notáveis na organização e mobilização do Movimento Popular em Saúde conduzido pelas federações estão associados às situações nas quais o quadro sanitário da população tornouse crítico como aconteceu com a epidemia de dengue Ainda que tenham existido outros momentos críticos como a epidemia de meningite no início da década de 70 o movimento não alcançara uma expressão própria que lhe permitisse irromper na cena nacional A luta política para erradicar a epidemia de dengue foi uma conquista que marcou o Movimento Popular em Saúde Diversas manifestações populares tiveram ampla difusão nos meios de comunicação em razão da gravidade e extensão da epidemia e do caráter das associações do movimento popular que conseguiram fechar as estradas que interligam os estados mais importantes do País Os resultados da ação empreendida tiveram amplo alcance seja no interior do movimento popular seja no tocante às medidas implementadas pelo Estado para combater a epidemia Podemos depreender que a segunda fase entrelaçada à primeira se carac terizou por um continuum no crescimento da ação coletiva do movimento e atravessou os primeiros dois anos da Nova República até 1986 quando as expectativas políticas desapareceram e a conjuntura adquiriu um nítido caráter de estagnação Nenhum dos grandes males políticos que assolavam o País a corrupção o clientelismo a política de favores pessoais a impunidade a pobre za calamitosa de mais da metade da população foi enfrentado ou combatido cap3pmd 872011 1034 69 7 0 pelo então governo A retomada da inflação os quadros políticos civis da ditadura militar ocupando mais espaçoschave no governo tudo acobertado por um discurso de cunho transformador produziram um enorme descrédito não somente quanto às possibilidades de mudança mas o que é pior quanto à convicção da população de que a ação e a mobilização políticas eram suficientes para alterar o quadro Finalmente a terceira fase do Movimento Popular em Saúde pode ser caracterizada como de acesso a formas orgânicas da política ou de insti tucionalização Está relacionada à formação da Plenária Nacional de Saúde mo vimento que teve importância central na formação das Plenárias Estaduais e Nacionais que por sua vez tiveram papel decisivo na elaboração da Cons tituição de 1988 Precisamente no momento em que o Movimento Popular em Saúde este ve mais próximo das decisões políticas substantivas a ausência de maturidade para absorver a institucionalização como uma exigência do processo político no setor se traduziu em cisão interna Isso se deu como resultado das diferenças políticas no interior do movimento que trouxe como conseqüência o descenso na atuação do mesmo Neste sentido identificamos a presença de duas grandes facções Uma de las é mais crítica e radical em sua visão de Estado referindose a ele como um espaço exclusivo das classes dominantes Tem um discurso antiEstado rejeita qualquer ação estatal e considera que se houver medidas que favoreçam as clas ses mais pobres terão por objetivo o controle social assume conseqüentemen te uma postura mais autonomista e de distanciamento da máquina estatal A outra facção ainda que caracterize o Estado como domínio da burguesia não acredita que este seja tão monolítico a ponto de não haver em seu interior fraturas pelas quais seja possível pressionar e negociar a obtenção de conquistas sociais em saúde No processo mais amplo em torno da discussão da Constituição aparece ram as diferenças políticas entre as duas facções A luta ideológica interna do movimento teve conseqüências singulares em relação à ação política coletiva A atuação política para fora que havia caracterizado o movimento na fase ante rior transformouse em uma ação encaminhada para dentro do movimento Sobrevieram infinitas discussões de caráter políticoideológico que levaram pro gressivamente a um esvaziamento do Movimento Popular em Saúde cuja para lisação política foi notável no fim dos anos 80 e início dos 90 e será mais detidamente abordada no capítulo seguinte cap3pmd 872011 1034 70 7 1 O Movimento Médico No que se refere ao Movimento Médico outro componente do Movi mento Social em Saúde optamos por estudálo por meio da atuação das enti dades médicas as associações de caráter sindical as que regulam o exercício da profissão médica as de caráter técnicocientífico e as que congregam os profis sionais com a finalidade de discutir questões próprias da profissão médica Ainda que se trate de um movimento de profissionais o Movimento Mé dico é mais que uma associação profissional ou uma modalidade de articulação sindical na defesa de interesses da classe médica É composto de diversas enti dades caracterizadas por um alto grau de institucionalização diferentemente do Movimento Popular em Saúde e presença nos diversos planos em que se desenvolve a vida profissional do médico Há certa homogeneidade de classe na composição do mesmo à diferença também do movimento popular Na década de 70 e início da de 80 o Movimento Médico liderou seu questionamento às políticas de saúde e à elaboração da proposta de reformulação do sistema que culminou na Reforma Sanitária A partir da primeira metade da década de 80 deslocouse a discussão política da Refor ma Sanitária para o Sistema Unificado Descentralizado de Saúde Suds ob servandose um abandono dos princípios questão principal da década ante rior por orientações mais pragmáticas na categoria a respeito dos problemas da implantação da política de saúde Para o Movimento Médico a relação com o Estado não constituiu preocu pação central à prática do mesmo como no caso do Movimento Popular Pelo contrário os aspectos críticos considerados em relação ao Suds apontam para a prefeiturização e a partidarização dos recursos mas não a respeito da invia bilidade do Estado para implementar a Reforma Sanitária considerandose o Suds como a única saída para a caótica situação do sistema público de saúde Desse modo as entidades buscaram engajarse nas questões atinentes à política de saúde e entenderam que o Suds era a estratégia para alcançar o Sistema Único de Saúde SUS No entanto percebese uma grande distância entre as proposições gerais da categoria e a transformação de sua prática den tro de uma orientação na qual interesses de caráter corporativo ficassem em segundo plano Tal afirmação se fundamenta na nãoaceitação pela categoria dos princípios embutidos na implementação do Suds em relação ao exercício da profissão médica emprego único tempo integral e cumprimento de horários cap3pmd 872011 1034 71 7 2 É possível perceber também que outra questão merecedora de destaque no âmbito da Reforma Sanitária foi a da isonomia salarial Apesar de apontada como necessária desde a formulação do Plano das Ações Integradas de Saúde sem a qual esta ou qualquer outra inicial mudança na assistência ficaria compro metida a isonomia passou em nosso ponto de vista a ter importância superior ao próprio projeto da Reforma Sanitária para a categoria Em relação à organização do trabalho médico a preocupação da classe tem sido a de estabelecer parâmetros que limitem qualquer interferência sobre determinado trabalho certamente no sentido de garantir a prática liberal mes mo sob condições de assalariamento Cabe destacar o papel proeminente que a categoria atribui a si nas políticas de saúde Ao mesmo tempo que não é aceita a renúncia aos privilégios que comporta o exercício liberal da medicina obriga se o Estado a cobrir os riscos do mercado Paralelamente tentase manter uma parte importante do poder médico nas mãos dos próprios médicos a fim de impedir que o Estado interfira sobre o trabalho dos mesmos A diferenciação entre o exercício da prática médica e o Estado no sentido deste não interferir mas garantir condições para o exercício da mesma através das políticas de saúde relacionase também à natureza liberal das instituições médicas que se originaram no começo do século como confrarias de profis sionais independentes A atuação da categoria é institucionalizada e diferenciada As questões que se referem à atuação profissional dos médicos são canalizadas por diversas instituições médicas as quais possuem por sua vez orientações políticoprofis sionais diversas A denominação de Movimento Médico obedece a essa atuação diferenciada do conjunto das entidades ou instituições médicas Neste sentido o sindicato dos médicos teve um papel essencialmente tra balhista defendendo os interesses econômicocorporativo dos médicos utili zando como procedimento principal para o encaminhamento das reivindica ções da classe as greves no setor público da saúde Enquanto isso os Conselhos Regionais e Federal de Medicina tiveram um papel sobretudo político especial mente no que se refere à reformulação do Código de Ética Médica e à atuação dentro da Plenária Nacional de Saúde para a elaboração do capítulo da saúde na Constituição de 1988 As greves médicas no setor público da saúde contribuíram para o proces so de desmonte na implantação da Reforma Sanitária Independentemente de as reivindicações serem ou não justas elas conduziram à maior crise de atendi mento dos hospitais e postos de atenção médica Durante meses as filas as cap3pmd 872011 1034 72 7 3 mortes por falta de atendimento a insensibilidade com o sofrimento humano foram a tônica da atuação da categoria médica À proporção que aumentavam enormemente o desprestígio e a ineficiência do setor público da saúde soma do à falta de repasse dos recursos do Suds às unidades locais o que ocasionou falta de instrumental medicamentos e manutenção das instalações cresciam as seguradoras privadas de saúde e sua procura pela população Paralelamente a discussão em torno do processo constituinte foi plena mente assumida pelos Conselhos de Medicina transformandose estes em cen tros de mobilização política em torno da proposta da Reforma Sanitária Pos teriormente já no processo de implementação da política de saúde logo após sancionada a Constituição de 1988 foi elaborado pelo Conselho Regional local o anteprojeto para a Constituição do Estado do Rio de Janeiro onde particu larmente analisei a atuação das entidades médicas Nele se defendiam a criação do Sistema Estadual de Saúde vinculado ao Sistema Único de Saúde a municipalização dos recursos o financiamento através do orçamento da União da seguridade social dos municípios e de outras fontes a participação de entidades representativas de usuários e profissionais de saúde nas decisões sobre o sistema por meio dos conselhos estaduais e municipais de saúde Voltou à tona o importante papel de mobilização política que desempenharam os Conselhos liderando as lutas com conteúdos mais transformadores no campo da saúde Não obstante nossa impressão é de que da mesma forma que na discus são sobre a Ética Médica não se conseguiu adesão substantiva da categoria em seu conjunto a esses processos transformadores Tais questões serão melhor desenvolvi das no quinto capítulo sobre a trajetória do Movimento Médico A Teoria de Ação Coletiva gênese e trajetória da atuação política dos movimentos sociais Neste ponto a finalidade é introduzir a análise da trajetória do Movimento Social em Saúde à luz das teorias da ação coletiva testar seu alcance explicativo e nos prover de instrumentos que possibilitem prever acontecimentos futuros cap3pmd 872011 1034 73 7 4 Vamos partir da concepção de Olson 1965 sobre a ação coletiva Enquanto ação orientada por grupos em estado latente ou por grandes grupos a ação coletiva é resultado de um cálculo racional de custos e benefícios guiado pelos interesses dos indivíduos Supondose que os indivíduos são racionais a estratégia dominante será aquela que melhor satisfazer as necessidades de cada indivíduo Na base da teoria da ação coletiva está a motivação egoísta dos indivíduos que implica um comportamento em que a racionalidade reside em deixar que outros ajam Tal situação configura o assim chamado Dilema do Prisioneiro o mais racional é não atuar e esperar que outros o façam os outros também não atuam com base no mesmo princípio e as conseqüências são que a racionalidade individual leva ao desastre coletivo Outra motivação possível para Olson é o altruísmo incondicional só que se trata de um imperativo categórico e neste sentido ele o rejeita como sendo expressão de desejos sem base no comportamento dos indivíduos Ainda que considere a existência de incentivos seletivos estes não operam indiscri minadamente como ocorre no caso dos bens coletivos sobre o conjunto do grupo mas seletivamente através dos indivíduos que o compõem Um indivíduo mobilizado positivamente pode contribuir para a ação coletiva porém é mais provável que isso aconteça em pequenos grupos do que nos grandes Se observarmos o que aconteceu com os movimentos sociais nas duas conjunturas escolhidas veremos que no caso do Movimento Popular em Saú de no período que culmina com a Nova República há um crescimento da ação coletiva seguida de uma fase de esvaziamento no momento de criação e conso lidação da institucionalidade democrática O que ocorreu na conjuntura da transição Por que foi um período extre mamente marcado pela ascensão das mobilizações populares As motivações egoístas não foram o princípio da ação Os custos da ação coletiva eram meno res que os benefícios Se entendemos por custos as possíveis retaliações que o poder político autoritário poderia desenvolver como resposta à ação coletiva do Movimento Popular em Saúde correse um alto risco logo de início Entretanto ninguém garante que o custo esforço gasto em mobilização vai significar a provisão de um bem público Assim os custos são palpáveis enquanto os benefícios são prováveis no entanto a ação coletiva aconteceu O problema nessa teoria é que a noção de coletivo não é discutida mas simplesmente vista como a produção de uma ação agregada pelo conjunto de cap3pmd 872011 1034 74 7 5 indivíduos essencialmente egoístas Porém se isso é o coletivo como poderia haver ação coletiva já que significa o mesmo que ação cooperativa Ou seja por que ou como um coletivo se cria se todos seguem seus interesses egoístas Voltemos a indagar por que a paralisação da ação coletiva foi o sinal que marcou a atuação do Movimento Popular em Saúde no final da Nova Repúbli ca e durante o período do Governo Collor Já na formulação da pergunta se observa a dificuldade explicativa da teoria Se houve um momento anterior de aumento da mobilização da gestão do coletivo como esta poderia existir se são as motivações egoístas por excelência que caracterizam o comportamento hu mano Se também não se pode explicála pela relação entre custos e benefícios como explicar então a ação coletiva Não explicada a ação antecedente como explicar a inação conseqüente Essa última questão remete a outra limitação da teoria a de não dar conta da dinâmica da ação coletiva Os momentos de mudança da ação para a ina ção conseguem ser capturados pela teoria na medida em que se estabelecem relações lógicas exclusivamente e portanto absolutas entre variáveis nãoabso lutas Entendese por variáveis nãoabsolutas aqui as particularidades do pró prio movimento na gestão do coletivo a noção mesma de coletivo e a comple xidade da conjuntura política que medeia e atravessa os diversos atores que dela participam Neste sentido nossa opinião é de que o coletivo opera simbolicamente no interior do Movimento Popular em Saúde Significa que a ação se recompõe o coletivo enquanto as expectativas dos membros do movimento conduzem a uma identidade em prol de um objetivo independentemente da certeza de obter o bem público Isso não significa que não exista um cálculo por parte dos membros do movimento a respeito de participar ou não da ação coletiva mas a expectativa leva à configuração de um si mesmo e do outro o que tornará o cálculo favorável à participação ou não Quando não me percebo como formando parte de também não percebo que os outros possam ser partes integrantes de um coletivo que passe a atuar de maneira conjunta em dada situação Assim não percebo a cooperação como comportamento possível A cooperação ao mesmo tempo que um comportamento induzido por mim é também induzido pelos outros em mim Para outra vertente de reflexão teórica Laclau Touraine Landi esses são processos de constituição de identidades coletivas Tais construções não são dadas portanto estão sujeitas a transformações permanentes que têm a ver cap3pmd 872011 1034 75 7 6 com o próprio movimento sua formação organização atuação política compo sição de seus membros etc Cabe assinalar também que as conjunturas políticas mais gerais a existência de crises e o caráter destas marcam os próprios processos de formação avanço e estagnação dos movimentos populares em saúde Observando agora a atuação do Movimento Médico constatamos que em nenhuma das duas conjunturas existiu uma paralisação da ação coletiva do movimento pelo contrário em ambos os momentos sua atuação foi intensa No entanto o que mudou foram os eixos sobre os quais a atuação aconteceu Enquanto de fins da década de 70 até a culminação da Nova República o Movimento Médico teve uma atuação fundamentalmente políti ca e também reivindicativotrabalhista na qual o sistema de saúde seu caráter de reprodutor das desigualdades a relação perversa entre setor públicoprivado os problemas derivados do assalariamento médico maciço foram as princi pais questões levantadas mudanças significativas registraramse no fim da década de 80 O Movimento Médico desenvolveu uma ação coletiva profundamente corporativa com penetração importante nas entidades médicas do ideário neoliberal e cuja atuação teve como característica marcante sucessivas e inúme ras greves que afetaram profundamente o setor saúde O que aqui observamos é praticamente um contrasenso da teoria olsoniana da ação coletiva já que esta se produz precisamente a partir de motivações egoístas se assim pudéssemos qualificar os interesses corporativos A esta altura cabe fazer algumas referências que melhor caracterizem o Movimento Médico Em primeiro lugar é ele profundamente articulado em torno da profissão médica Tratase de uma categoria de índole diversa da de outras categorias profissionais ou de trabalhadores É formada por diversas entidades médicas altamente institucionalizadas com longa data de atuação já que surgiram no princípio do século e subsistem até hoje com uma considerá vel solidariedade orgânica resultante da existência de um Código de Ética Mé dica e da própria modalidade de exercício liberal da profissão Isso torna neces sário compreender a ação coletiva do movimento no sentido antes menciona do da gestão do coletivo na sua especificidade O considerável avanço registrado nas correntes teóricas do individualismo metodológico em relação à teoria olsoniana da ação coletiva foi a sensibilidade para capturar a dinâmica desse tipo de ação Neste sentido ainda que não haja discussão acerca daquilo que seja o coletivo e das motivações que induzem os cap3pmd 872011 1034 76 7 7 homens a atuarem coletivamente o fato de considerar a teoria dos jogos como instrumento metodológico principal para qualquer análise do processo históri co centrado na exploração conflito alianças e revolução Elster 1989 possi bilita maior aproximação explicativa a situações nas quais a ação se produz ante aquelas nas quais esta não acontece Ou seja se diante de uma situação X um conjunto de atores tem de decidir uma ação de conjunto Y sendo o comporta mento racional de cada um deles e o do conjunto a melhor garantia para o êxito da ação é plausível inferir que o comportamento não será definido a priori mas a interação com os outros permitirá escolhêlo A noção de coletivo é substituída na teoria dos jogos pela de coopera ção Neste sentido a teoria dá conta da dinâmica da ação coletiva do Movi mento Popular em Saúde Restaria saber porque o Movimento Popular em Saúde agiu cooperativamente na Conjuntura 1 e não do mesmo modo na Con juntura 2 Isso requer análise do contexto do Movimento Popular em Saúde em ambas as conjunturas combinada à própria caracterização delas No que diz respeito ao Movimento Médico as coisas tendem a se compli car ao trabalhar com o enfoque do individualismo metodológico Mas Elster 1989 faz uma distinção entre a cooperação como modalidade da teoria dos jogos que se dá na classe operária e diz que o problema da solidariedade da classe capitalista requer outros instrumentos de análise16 A tarefa dos dirigentes empresariais será a de convencer os empresários individuais a agir de maneira tal que embora do ponto de vista de cada um deles sua ação não traga nem ganhos nem benefícios trará sim benefícios coletivos caso seja adotada por todos A liderança portanto consiste em utilizar a zona de indiferença dos indivíduos No caso essa distinção estabelecida por Elster não se adequaria aos com portamentos observados nesse particular movimento social As questões rela tivas à profissão médica provêm de uma identidade forte e de uma ideologia médica que marca os comportamentos individuais e coletivos dos membros da corporação Esta possui características singulares e diversas formas de expres são social composta por entidades que operam em um amplo espectro de atribuições e que se exprimem tanto no âmbito privado social quanto na esfe ra pública Estado 16 A tarefa dos dirigentes empresariais será convencer os empresários individuais a agirem de maneira tal que embora do ponto de vista de cada um deles sua ação não traga nem ganhos nem benefícios ela trará benefícios coletivos caso seja adotada por todos A liderança portanto consiste em uilizar a zona de indiferença dos indivíduos cap3pmd 872011 1034 77 7 8 Apenas a título de destacar semelhanças e sem entrar numa discussão espe cífica sobre o assunto acreditamos que a corporação médica se assemelha à corporação militar no papel que esta desempenha Quando os interesses médi cos são afetados ou existe uma ameaça a vida da corporação ou seja o espaço privado da corporação é invadido pelo Estado o Movimento Médico tem reagido de maneira forte e imediata Isso ocorreu na década de 70 quando as entidades médicas sofreram intervenção e a consolidação do sistema de saúde levou a mudanças no processo de trabalho médico tendo com isso submetido esses assalariados ao mercado e às condições de arrocho salarial de qualquer outro trabalhador A corporação passou então a fazer parte de outros movimentos de opo sição Sua atuação foi marcada pela ação cooperativa tendo um papel quase de liderança das outras forças sociais as primeiras greves que aconteceram no País naquele período foram as dos médicos Acreditamos que à cooperação universal da maneira que foi formulada pelo individualismo metodológico falta precisão para ser aplicada à ação coletiva do Movimento Médico Em outras palavras minha disposição em atuar embora dada pela dispo sição dos outros e viceversa não é suficiente para explicar a ação coletiva do Movimento Médico regulada em grande medida pelo fato de pertencer à corporação Não atuar pode significar não ser reconhecido por mim e pelos outros como fazendo parte de e nisso há punições morais de autoestima etc Assim a corporação médica na conformação de sua atuação política tem um eixo ou uma medula pela qual o termômetro desta é dado pelo grau em que são afetados pelo Estado os parâmetros estabelecidos para a categoria e defini dos pela própria corporação A conjuntura póstransição marcada pelo Governo Collor mostrou que os médicos voltaram a se predispor a atuar coletivamente colocando em risco a sobrevivência do setor público da saúde na consecução de melhorias salariais e de autonomia no processo de trabalho médico sem interferência do Estado A categoria não se submeteu a outras lógicas que não as da corporação embora isso significasse o abandono da própria proposta da Reforma Sanitária que tinha sido o eixo de atuação política do Movimento Médico até o fim da Nova República Tratavase de um subtipo de cooperação que chamaríamos de coopera ção corporativa na qual não haveria só um cálculo que me levasse a participar se os outros participassem mas também um jogo simultâneo em que todos cap3pmd 872011 1034 78 7 9 participam porque a participação é mediada pela corporação Na cooperação corporativa todos usariam de um tipo particular de solidariedade restrita à corporação Neste caso a cooperação tal como formulada por Elster poderia ser qualificada ao acrescentar o tipo de cooperação à qual estamos nos referindo A lógica dual da ação coletiva teoria concebida e assim denominada por Santos 1989 se sustenta sobre o modelo olsoniano da ação coletiva mas precisamente por isso ao mesmo tempo em que resolve uma das questões principais embutidas na teoria clássica da ação coletiva o início da produção de um bem público fica presa a esse modelo explicativo e a suas limitações A idéia é que a ação coletiva acontece para a provisão de um bem público e o fato de não atuar não significa somente que me privarei de consumir um bem públi co potencial que aconteceria se todos participassem da ação coletiva mas que serei obrigado a usufruir de um mal público Partese da idéia olsoniana de que participar ou não da ação implica um cálculo de custos e benefícios sendo a premissa básica do comportamento humano a de evitar o sofrimento Tal premissa não deixa de ser também um imperativo categórico ainda que mais inclusivo que o egoísmo Se participar da ação coletiva tem custos isso não significa que não participar não implique custos Pelo contrário a idéia é que os custos da não participação para mim podem ser maiores que os custos da participação se pelo fato de não fazêlo me vejo obrigado necessariamente a consumir um mal público Ou seja Cnp Cp sendo que Cnp custo de nãoprodução ou participação Cp custo de produção Essa condição formal ocorre quando a consecução de objetivos privados depende da produção de bens públicos tratase possivelmente de um tipo de interação social que corresponde ao dilema da vontade geral rousseauniana onde bp bem privado bp bem público Acontece independentemente da existência de caronas ainda que às vezes seja necessário eliminálos para dimi nuir o custo da produção de um bem A relação estabelecida pela teoria entre o custo de produzir um bem priva do e a eliminação dos caronas não acrescenta nada à explicação original for malizando simplesmente a afirmação de que sendo mais econômico eliminá los reduzse o custo de produzir um bem privado o que é uma verdade óbvia cap3pmd 872011 1034 79 8 0 A teoria não diz nada a respeito do significado de eliminar ou não os caronas dentro das hipóteses por ela estabelecidos C2bp C1bp Cbp Cefr onde C2bp é menor que o original C1bp Quando Cbp Cefr custo de eliminar os caronas 0 se for econômico fazêlo C2b C1bp alcançará seu valor máximo Observandose os movimentos sociais em saúde à luz dessas idéias estas poderiam explicar porque o Movimento Popular em Saúde teve um desenvol vimento marcante na Conjuntura 1 Atuar significaria no plano simbólico ainda que isso não seja dito pela teoria a obtenção de um bem coletivo no caso medidas governamentais para acabar com a epidemia de dengue Não atuar significaria no plano real que ninguém estaria eximido de usufruir de um mal público a epidemia da dengue Ou seja o momento inicial da ação coletiva consegue ser capturado pela teoria mas por ser estática não consegue explicar porque a ação tem continuidade e no caso menos ainda a paralisia da ação coletiva no momento posterior da Conjuntura 2 A teoria não explicita qual é o custo de não produzir um bem público já que tanto atuar quanto não atuar vão levar ao mesmo resultado à obtenção de um mal público No plano simbólico perderamse as expectativas a respeito da ação coletiva e no plano real sucessivas políticas governamentais de consumo de males públicos foram impostas A teoria não inclui a dinâmica da ação nem a temporalidade da mesma mas o fato de definir o resultado da nãoatuação dos agentes como a obtenção de alguma coisa que não é boa para ninguém e não apenas a perda da obtenção de um bem possibilita no caso do Movi mento Popular em Saúde explicar a atuação deste como necessária para evitar ser alvo da epidemia de dengue No caso do Movimento Médico a teoria também não nos permitiria dis criminar por que tanto na Conjuntura 1 quanto na 2 há ação coletiva Ela não consegue dar conta do caráter diverso da ação coletiva dos médicos nesses dois momentos Por último cabe a referência também à capacidade explicativa da teoria de Offe 1984 sobre a existência de duas lógicas da ação coletiva Divergindo de Olson Offe mostra como não há uma lógica unitária e utilitária da ação coletiva cap3pmd 872011 1034 80 8 1 que cubra todas as associações e como além disso as diferenças de poder conduzem a diferenças no tipo de ação coletiva trabalha aqui com as classes trabalhadoras e capitalistas Essas diferenças tendem também a ser obscurecidas pelo paradigma de grupo de interesse Os interesses da classe trabalhadora e os da classe capitalista estão sujeitos sob o capitalismo a graus distintos de distorção Por isso um processo dialógico um entendimento e um acordo comparti lhado de definição de interesses é necessário para aqueles que se encontram em uma posição de poder inferior e que dependem por isso mesmo de um conceito comum e coletivo do seu interesse Offe acha que há um conflito de classe dentro das formas políticas e tam bém um conflito de classe referido às formas políticas O primeiro ocorre dentro das formas processuais dadas enquanto o segundo é latente escondido por uma pretensão de neutralidade A teoria de Olson só considera a existência desse primeiro nível do conflito onde os parâmetros se tornam variáveis e a ação coletiva se preocupa com o que quer dizer custos e benefícios Caberia salientar que esses dois tipos de conflito nas classes dominadas nunca se dão de maneira separada Quando o conflito começa por demandas pontuais como no caso do Movimento Popular em Saúde não se mantém estanque assumindo rapidamente formas políticoorganizativas que conduzem à redefinição de interesses e à constituição de uma identidade coletiva As organizações empresariais representam uma forma política de racionalidade individualista chamada pelo autor de lógica monológica As or ganizações sindicais operárias constituem um caso misto contendo elementos das duas lógicas já que nelas há uma contradição sempre presente entre buro cracia e democracia interna agregação de interesses individuais e formação de identidade coletiva Tratase de uma condição sempre presente não só nas orga nizações sindicais mas também inerente a todo o processo de institucionalização no interior dos movimentos sociais A partir daqui o que interessa sublinhar em Offe é o aspecto dinâmico no tratamento da ação coletiva a interação entre os membros da organização e os contextos políticos mais amplos que ao mesmo tempo em que permite incluir as diferenças no caráter do conflito na definição de interesses e conse qüentemente o tipo de ação coletiva permite também formular um modelo dinâmico baseado em estágios da ação coletiva nas organizações operárias Tal construção conduz a uma teoria que Offe denomina de sociológica e portanto nãovalorativa do oportunismo Esta é compreendida pelo autor cap3pmd 872011 1034 81 8 2 como a maneira de resolver o conflito que se apresenta nos estágios posteriores à formação de qualquer organização social Enquanto as organizações surgem como resultado da mobilização social num momento posterior esta é substitu ída pelo crescimento das burocracias e da legitimação das rotinas burocráticas A sobrevivência da organização deixa de ser assegurada pela disposição em atuar de seus membros e passa a ser garantida por mecanismos de nego ciação política pautados por procedimentos institucionalizados Tratase para Offe de uma escolha oportunista na medida em que esta cresce burocratica mente sem arriscar sua existência O oportunismo na acepção que o autor lhe dá tem o status de uma formulação teórica neste aspecto e nenhuma conotação valorativa Os estágios mencionados podem ser classificados da seguinte forma Estágio 1 corresponde ao momento de formação das entidades o pa drão da ação é dialógico Estágio 2 a organização fortaleceuse e acumulou poder real derivado de seu reconhecido potencial Recruta mobiliza e ativa os membros para atu alizar seu poder mas ao mesmo tempo deve precaverse para que os membros não se disponham a agir prematuramente Não havendo solu ção segura e permanente para esse dilema podese retornar ao estágio inicial sendo isso possível acontecer apenas em caso de alto grau de politização da luta de classes na ausência de condições favoráveis poderseia passar ao próximo estágio Estágio 3 a única transformação que não ameaça nem a sobrevivência da organização nem interfere em suas perspectivas de êxito é a resolução opor tunista As garantias de sobrevivência interna são substituídas pelas exter nas a organização passa a se sustentar sobre posições de negociação en quanto antes tinha exclusivamente a disposição para agir de seus membros Tais práticas institucionalizamse por meio de estatutos legais Porém a solução do dilema se constitui num dilema em si mesmo Estágio 4 a organização não é mais capaz de resistir às tentativas de retirada do suporte externo bem como dos estatutos institucionais e legais que lhe são proporcionados a partir do exterior Neste sentido terá de se ver obriga da a manter as garantias sendo o resultado então a burocratização com a qual os custos em longo prazo do oportunismo se tornam manifestos cap3pmd 872011 1034 82 8 3 Estágio 5 nova fase de mobilização e ativação dos membros tornase necessária para defender os termos do dilema a sobrevivência e as proba bilidades de êxito da organização Observando a trajetória do Movimento Popular em Saúde constatamos que sua formação respondeu a uma lógica dialógica com resistência muito grande a ingressar no Estágio 2 Ingressar significaria por um lado a institucionalização e o reconhecimento por parte do Estado dos movimentos como interlocutores no campo da negociação política Por outro haveria perda de autonomia das entidades populares em relação ao Estado O problema com o Movimento Popular em Saúde foi que isso suscitou forte polarização de posições ante uma ideologização da discussão que conduziu também à paralisa ção na ação e à ameaça de nãosobrevivência ou esvaziamento das entidades do movimento Para Offe a questão do oportunismo pode ser defendida como a única solução racional e realista para aquelas tensões dilemas e tradições internas ma nifestas como conseqüência do Estágio 2 Se uma organização proteger tanto sua existência quanto suas realizações potenciais parece não haver caminho se não o sacrifício parcial de sua autonomia Os estágios explicitados no desenvolvimento das organizações das classes dominadas se aplicados ao Movimento Popular em Saúde se tornam pro fundamente contraditórios Ao mesmo tempo que o oportunismo constitua talvez o caminho mais curto para acabar com eles em razão das intrínsecas características e da formação e organização desses movimentos a opção pela nãoinstitucionalização produziu uma paralisia na ação coletiva Mas simultane amente sua fluidez colaborou para sua própria reestruturação ante situações que o afetavam diretamente como a crise dos hospitais do setor público e a falta de atendimento médicohospitalar para essas populações No caso do movimento médico o modelo de ação aplicado para as orga nizações da classe operária ajustase perfeitamente ao sindicato médico Em relação às outras entidades médicas não se aplica nem a lógica dialógica nem a monológica de forma estrita ainda que se possa encontrar elementos das duas Nosso ponto de vista já aqui assinalado é de que os médicos constituem uma corporação de características singulares e neste sentido a ideologia médica da corporação merece ênfase particular cap3pmd 872011 1034 83 8 4 Algumas Observações TeóricoMetodológicas A discussão primordial a respeito da transição à democracia e o seu pro cesso de construção eou consolidação teve como propósito estender a noção de democracia para além da consideração dos procedimentos restritos à implementação da democracia política A consolidação da democracia é indissoluvelmente ligada à conformação de estruturas democráticas nos diver sos níveis da sociedade para os quais o estabelecimento de condições relativas Estadosociedade afiguramse fundamentais Discutiuse a questão da cidadania como uma categoria central à democra cia distinguindo o conceito clássico da cidadania do exercício histórico da mes ma Essa distinção e o percurso escolhido para desenvolvêla levaram à conclusão de que a eqüidade está embutida na cidadania não como princípio mas como resultado das lutas sociais que transformaram a idéia de cidadania configurando nela a obtenção de direitos concretos usufruídos pela população enquanto a jus tiça social redunda na regulamentação da eqüidade como valor éticomoral Esses direitos de cidadania consagrados juridicamente se concretizaram mediante forte intervenção do Estado na economia restringindo o papel do mercado e introduzindo importantes reformas no capitalismo com a implanta ção de políticas sociais e os conseqüentes benefícios sociais para as classes traba lhadoras via Welfare State Enfrentar tais questões possibilita sem que isso cons titua um modelo a ser reproduzido estabelecer bases para a discussão da cons trução de um regime democrático A visão das políticas de saúde sob a perspectiva das políticas sociais obri gou a um mergulho no campo teóricoconceitual envolvido nessa área de co nhecimento As dificuldades que acompanharam o processo de implementação da política de saúde exemplificam de maneira bastante aproximada as difíceis relações Estadosociedade no momento de consolidação do processo demo crático sendo a Reforma Sanitária um caminho de reconstrução da democracia por meio de reformas parciais ou dito de outra forma de consecução da democracia pela via do estabelecimento de regimes parciais democráticos A necessidade de criar o processo de implantação da Reforma Sanitária levou à discussão teórica a respeito dos processos de formulação e implementação de políticas sociais As dificuldades de regimes de democratiza ção parcial prosperarem e se instalarem estão estreitamente vinculadas ao enca minhamento das inovações políticas no campo das políticas sociais cap3pmd 872011 1034 84 8 5 Também fizemos referência ao papel dos movimentos sociais em saúde nesses dois momentos a formulação e a implantação da política de saúde com ênfase na particular atuação dos movimentos à luz das diversas teorias da ação coletiva A reflexão crítica relacionada às teorias da ação coletiva possibilitou identificar a partir das trajetórias dos movimentos sociais em saúde as adequa ções proximidades e distanciamentos entre os diversos enfoques teóricos e também o desenvolvimento da atuação política dos atores nela privilegiados Acreditamos ter alcançado um arcabouço teórico que nos aproximou da idéia de pensar as políticas de saúde da perspectiva dos atores em relação ao Estado nos processos de transição e construção da democracia A política de saúde foi vista assim sob uma perspectiva societária ainda que pela própria natureza desta seja na arena do Estado que ela adquire concretude A própria complexidade do processo da Reforma Sanitária exigiu o exercício teórico metodológico e obrigou a expandir o ângulo de visão em múltiplas direções cap3pmd 872011 1034 85 Parte Parte Parte Parte Parte IIIIIIIIII cap3pmd 872011 1034 87 89 4 O Movimento Popular em Saúde O fim dos anos 70 e o início dos 80 se constituíram marco para a política brasileira em torno do processo de democratização do País Amplo espectro de forças sociais sindicatos entidades profissionais associações de bairro movimentos contra a carestia minorias e partidos políticos empreenderam uma luta política que conseguiu aglutinar diversas formas de associação para exigir do regime militar eleições livres e diretas para a Presidência da República A luta em prol da democratização consistiu de uma saída política de opo sição à ditadura militar ante a proposta das Forças Armadas anunciada pelo então Presidente da República Ernesto Geisel de fazer uma abertura lenta gradual e segura Era um momento em que a sociedade como um todo estava mobilizada e direcionada para a consecução de eleições diretas Denominaremos movimento social o conjunto das novas formas de as sociação independentemente do tipo de reivindicação e de articulação institucional que tenham conseguido alcançar Essa ampla definição obedece a uma determinada maneira de compreensão do objeto de estudo assim como também à abertura oferecida pela teoria dos movimentos sociais Nos anos da transição à democracia a efervescência social se expressou na grande quantidade de organismos da sociedade civil que emergiram e se repro duziram nas grandes metrópoles e em seus bairros periféricos sob a forma de sociedades de fomento associações profissionais de classe média postos de atendimento básico de saúde escolas comunitárias creches No cerne da constituição da vertente popular dos movimentos sociais es tavam por um lado as reivindicações por demandas de habitação saúde edu cação e saneamento decorrentes das necessidades pelas quais atravessa grande parcela da população Por outro proliferaram as associações de classe média cap4pmd 872011 1035 89 90 registrandose as primeiras greves de oposição ao regime militar no sindicalismo de classe média e particularmente no setor médico De fato o arrocho salarial com o qual se defrontou a sociedade brasileira como um dos resultados da política econômica do regime militar não afetou somente as classes operárias mas ainda importantes setores assalariados da classe média os quais também sofreram deterioração das condições de vida17 Designamos Movimento Médico a atuação do conjunto das entidades médicas no período de transição à democracia em razão fundamentalmente do papel político que os médicos organizados em associações de caráter profissional científico e sindical tiveram nesse processo característica que se diluiu à medida que a transição adquiriu perfil mais nítido Mantivemos no fim da década de 80 a denominação movimento médico para nos referirmos à atuação política do conjunto das entidades de representação da classe e intitulamos de corporação médica a atuação mais especificamente voltada para reivindicações de caráter econômicocorporativos dos médicos Analisamos a atuação do Movimento Médico no período que vai de 1976 a 1990 através das seguintes entidades Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro Cremerj Sociedade Médica do Estado do Rio de Janeiro Somerj Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro SMCRJ e Sindicato dos Médicos SinMed O material e as entrevistas realizadas com as lideranças das associações médicas localizadas no estado do Rio de Janeiro cobre o período que se estende de 1983 a 1990 O Cremerj corresponde na esfera nacional ao Conselho Federal de Medi cina CFM e o SinMed à Federação Nacional dos Médicos FNM ambas reconhecidas pelo Estado A primeira regula e supervisiona a prática médica outorga o registro profissional e atinge portanto o conjunto da categoria médi ca A segunda representa os interesses profissionais condições de trabalho e salários da mesma Já a Somerj e a SMCRJ são entidades de caráter privado e correspondem na esfera nacional à Associação Médica Brasileira AMB As 17 Para se analisar os movimentos sociais não se deve ensejar generalizações apressadas mas ter em mente a necessidade de um conceito que seja suficientemente abrangente para dar conta da diversidade de movimentos surgidos em contextos sociopolítico diferentes eou marcados por matrizes organizativas distintas Considerar que os movimentos sociais em sua concretude podem ser definidos pela conjugação das contradições históricas e estruturalmente dadas pelas influênci as da conjuntura política e sobretudo pela forma como agem e reagem as partes em conflito ou seja pela efetividade que assumem as proposições de natureza organizativapolíticaideológica no jogo das relações sociais cultura e instituições Doimo Bank 1989 cap4pmd 872011 1035 90 91 duas como entidades de filiação voluntária congregam os médicos em defesa de seus interesses profissionais discutem as políticas de saúde e desenvolvem atividades de caráter técnicocientífico Ao nos debruçarmos sobre a teoria da ação coletiva enquanto modelo explicativo da atuação política dos movimentos sociais em saúde enfatizamos as limitações que tais teorias detêm Sublinhamos a dificuldade embutida nessas concepções da ação coletiva de dar conta de processos de formação de iden tidades sociais e políticas que dizem respeito não só a um cálculo em relação à participação mas também à própria noção do coletivo Considerar essa ques tão do coletivo e darlhe maior precisão nos obriga a penetrar nas questões específicas que a trajetória e a atuação dos movimentos sociais colocam A problemática que envolve a análise dos movimentos sociais de extração popular e neste caso a dos movimentos populares em saúde relacionase basi camente a três eixos de questões decisivas em processos de formação assim como na atuação dos mesmos a relação com o Estado sua institucionalização e a autonomia em relação a outras forças políticas No âmago da constituição dos movimentos sociais estão as reivindicações por demandas de habitação saúde educação saneamento etc decorrentes das necessidades pelas quais grande parcela da população urbana atravessa Ao con siderar que o Movimento Popular em Saúde tem seu eixo de atuação no plano das políticas de saúde área específica de intervenção do Estado constatou se que a concepção do Estado assim como a relação com este constitui seu calcanhar de Aquiles O movimento deixa de ter uma existência virtual no momento em que se relaciona com o Estado já que este passa a ser o alvo da ação coletiva e neste sentido elemento polar em sua constituição Os processos de construção de identidades políticas no Movimento Popular em Saúde e nos movimentos sociais em geral estão intimamente relacionados ao papel do Estado na medida em que este ocupa posição de destaque para a con secução de melhores condições de vida de saúde e de atendimento à saúde Entretanto como esse processo é operado simbolicamente ou seja mediante as representações que o movimento popular tem sobre si mesmo não é necessá rio que o Estado preencha efetivamente esse lugar Pelo contrário sua omissão no preenchimento desse papel opera à maneira de interpelação pela qual o movi mento popular se constitui para exigir sua presença na esfera da saúde Tratase de uma tensão permanente de uma dinâmica contraditória e constituinte que carac teriza a relação entre Movimento Popular em Saúde e Estado cap4pmd 872011 1035 91 92 Cabe ressaltar que a existência do movimento é indissoluvelmente relacio nada à mobilização já que é por meio desta que ele deixa de ser virtual e adquire realidade Se considerarmos ainda que toda ação coletiva nas classes populares é direcionada para reivindicar a presença do Estado para que este efetue a melhoraria das condições de vida das comunidades fica evidente o papel constitutivo do Estado na dinâmica dessas relações É interessante observar que os movimentos sociais quando provêm da sociedade civil nascem desvinculados da ordem política mas passam a ocupar espaço público ao reivindicarem demandas cuja satisfação requer a intervenção estatal Desse modo também se reaviva a discussão do social no âmbito interno do Estado O movimento social tem portanto papel principal no encurtamen to da distância entre a esfera privada e a ordem pública Mas isso só pode acontecer na medida em que a ação política do movimento efetivamente acon teça e a relação com o Estado seja recriada A institucionalização dos movimentos populares é um outro eixo proble mático no desenvolvimento da atuação política dos mesmos Tratase de preo cupação legítima nos movimentos populares em saúde uma vez que essa atua ção está marcada pela heterogeneidade de seus membros pela presença de diversos partidos políticos diante do esforço por manter a independência dos mesmos e pela maleabilidade do próprio movimento o que dificulta o estabe lecimento de regras de funcionamento para a sua organização A ação coletiva nesses movimentos tem freqüentemente um importante componente de decisão política nãodirecionada institucionalmente A ausência de estruturas institucionais mais sólidas que contenham as práticas do Movi mento Popular em Saúde é característica compartilhada com os movimentos populares em geral De fato observase resistência à institucionalização associada à autopercepção de perda de autonomia ao encastelamento das lideranças e à instrumentalização do movimento por políticos locais os quais se apóiam nas burocracias dos ministérios para a obtenção de favores para eles é mais fácil negociar com as direções do movimento que em situações de mobilização popular pois desse modo podem controlar os termos da negociação Ainda que essa autopercepção tenha forte viés ideológico também se sustenta na própria prática do movi mento popular já que mais de uma vez foram trocados votos por bicas É importante destacar que tanto neste ponto quanto no que se refere à autonomia dos movimentos importantes ganhos foram obtidos pelo Mo cap4pmd 872011 1035 92 93 vimento Popular em Saúde nos momentos em que pelo próprio crescimento da ação coletiva dos mesmos houve também uma crescente tendência à insti tucionalização e a procedimentos de negociação política mais formalizados A institucionalização conforma portanto outro de seus pontos de estran gulamento ou de tensão Quando se pensa no grau de articulação dos movi mentos populares geralmente se faz referência à capacidade dos mesmos para agir coletivamente reivindicações de melhores condições de vida de saúde de atendimento etc e não à qualidade de ser institucionalizado Porém essa mo dalidade de articulação sustentada exclusivamente na ação coletiva dificulta a percepção por parte do próprio Movimento Popular em Saúde de um fio condutor que dê continuidade ou historicidade à sua ação política o que resulta também em impedimento no desenvolvimento de avanços continuados e sus tentados que os transformem em definitivos protagonistas das políticas de saúde Em relação à autonomia do movimento esta se coloca perante outras forças políticas tais como partidos técnicos religiosos e também perante o Estado Mas tal questão é falsa Na verdade a tão propalada autonomia não passa de discurso pois os movimentos para terem existência própria necessi tam de articulações políticas18 Como será visto adiante ao analisar a trajetória do Movimento Popular em Saúde efetivamente constatouse que a influência da Igreja progressista as sim como a dos partidos de esquerda foi decisiva em sua formação e desen volvimento Neste sentido quando os movimentos populares carecem de arti culação com outras forças políticas dificilmente conseguem incidir nas decisões políticas mais amplas Ainda que isso possa significar risco de diluição do movi mento dentro de outras forças sociais ou políticas mais estruturadas cabe ao próprio desenvolver mecanismos que garantam a continuidade Desse modo a autonomia em relação ao Estado é uma questão principal para o movimento De fato o que se tem observado freqüentemente é o esva ziamento dessas mobilizações quando cooptadas pelo Estado Nunes Jacobi 1980 A idéia que predominou no Movimento Popular em Saúde desde sua 18 De fato observase que os articuladores sociais têm desempenhado um papel significativo o que não tem representado necessariamente perda de autonomia tão reivindicada pelos movimentos Mas esse ocultamento das conexões políticas que envolvem posições partidárias ou confessionais não pode ser minimizado no caso do Movimento Popular em Saúde já que apesar das resistências dos seus integrantes salta aos olhos a influência dos setores progressistas da Igreja através das Comunidades Eclesiais de Base dos médicos sanitaristas e de militantes do Partido dos Trabalhado res que embora não formalizem laços orgânicos com a estrutura partidária explicitam uma cultura política característica do partido Jacobi 1989 cap4pmd 872011 1035 93 94 formação foi a de que a política do Estado é cooptálo nos canais de participa ção popular abertos por ele uma vez que nestes o movimento não tem poder de decisão Ao mesmo tempo em que o Estado é constituinte do Movimento Popular em Saúde sob a perspectiva deste é percebido como desorganizador da sua ação coletiva Essa questão se situa no âmbito da atuação do movimento face às políticas de saúde e pode ser bem exemplificada pela discussão interna a respei to da participação ou não nas instâncias institucionais criadas pelo Estado no setor saúde dado que estas poderiam vir a se constituir em uma via de cooptação e de desmobilização O que a experiência demonstra é que por vezes isso tem acontecido mas nem sempre O tema da autonomia nos movimentos sociais nos parece estar associado à sua institucionalização pelo fato de colocálo diante da necessidade de estabelecer mecanismos formais de organização e de funcionamento Estes por sua vez servem de controle sobre a própria atuação do movimento nos Conselhos de Saúde sempre que os movimentos conseguem ter uma atuação decisiva nas políticas estatais de saúde como vem acontecendo com o processo de descentralização e com a formação dos Conselhos de Saúde O dilema que a institucionalização coloca é a quota de burocracia que a acompanha e que constitui uma importante ameaça de extinção do movimento se considerarmos que este não é um sindicato e nem um partido político e que desse modo as mobilizações sociais radicam na capacidade de atuação coletiva mais do que na organicidade políticoinstitucional A Formação fase reivindicatória A formação do Movimento Popular em Saúde foi iniciada simultanea mente à discussão no campo da saúde relacionado à medicina comunitária Esteve intimamente ligada às experiências das comunidades de base da Igreja no Terceiro Mundo que se expandiram por todo o País durante a década de 70 Em suas origens o movimento estava localizado principalmente nos esta dos do Rio de Janeiro Minas Gerais e São Paulo Era composto por médicos sanitaristas estudantes religiosos militantes católicos integrantes de partidos políticos e das populações menos favorecidas agrupadas ao redor das socieda des vicinais e de experiências comunitárias católicas em bairros das periferias urbanas e em favelas cap4pmd 872011 1035 94 95 As universidades por intermédio dos departamentos de medicina preven tiva tiveram também importante influência já que nelas ocorria a contestação ao modelo médico hegemônico caracterizado pelo elitismo pela sofisticação tecnológica com baixo impacto nos níveis de saúde da população e sobretudo pelo caráter privado e mercantilista A partir daí surgiram propostas de mode los alternativos sendo a medicina comunitária a mais importante Desse modo dezenas de experiências começaram a ser realizadas no País ligadas às universidades à Igreja ou mesmo ao voluntarismo dos agentes da pastoral da saúde dos militantes dos partidos de esquerda e ainda dos profis sionais de saúde com prática nas comunidades Essas experiências introduziram uma nova concepção do exercício da medicina sustentada na simplificação do ato médico na valorização do trabalho auxiliar dos leigos e na participação comunitária A partir disso começouse a gestar uma articulação nacional do Movimento Popular em Saúde O I Encontro de Experiências de Medicina Comunitária Enemec aconte ceu em Lins São Paulo sob iniciativa do Instituto Paulista de Promoção Humana IPPH do Movimento de Amigos de Bairro de Nova Iguaçu MAB e de outras experiências de medicina comunitária em diferentes regiões do País O IPPH de Lins é uma instituição pertencente à diocese local que à época desen volvia um trabalho de formação de agentes de saúde em algumas regiões do estado de São Paulo e do Triângulo Mineiro O MAB ligado à diocese de Nova Iguaçu no Rio de Janeiro desde 1975 desenvolvia um trabalho na área de saúde na região da Baixada Fluminense Naquele momento a medicina comunitária colocavase como alternativa ao sistema de saúde na medida em que o setor público de saúde se deteriorava como resultado da crescente privatização da assistência médica O setor se ca racterizava pelo repasse de verbas para o setor privado com a conseqüente deterioração dos hospitais públicos as filas para atendimento a ausência de assistência que cobrisse as necessidades mais prementes da população carente e pari passu com a tecnificação e medicalização da medicina inacessível à população Intensas discussões e a produção crítica do Movimento Sanitário levaram à cristalização de uma corrente de pensamento com introdução de políticas alter nativas de saúde por meio de experiências comunitárias Estas tinham como princípio a simplificação dos cuidados de saúde de maneira que estivessem ao alcance da comunidade através da atenção primária sem instrumental de alta complexidade e com a participação de agentes de saúde da própria comunidade além da supervisão e adestramento dos profissionais de saúde nela inseridos cap4pmd 872011 1035 95 96 O Movimento Popular em Saúde contou em suas origens com a partici pação de líderes religiosos que se tornaram dirigentes populares e técnicos da saúde Estes últimos eram em sua maioria médicos enfermeiras e outros pro fissionais de nível superior funcionários de universidades e secretarias estaduais e municipais de saúde atuando localmente organizadas Exemplos dessas experiências foram os projetos denominados Montes Claros Lajes Niterói Cachoeiras de Macacu e tantos outros Tratava se também de profissionais ligados em sua maioria a uma militância política no Partido Comunista Brasileiro PCB e no Partido dos Trabalhadores PT Os técnicos os religiosos e os dirigentes populares compunham um variado mosaico de ângulos políticos visões de mundo contradições mas com alta identidade de princípios e de posições Não é fácil estabelecer a influência que cada um desses componentes exer ceu sobre o conjunto do movimento mas é inegável o poder de opinião dos técnicos e religiosos no direcionamento político e na atuação do Movimento Popular em Saúde O movimento procurou manter uma atuação independente ainda que seu início tivesse coincidido com a mobilização no interior da academia e timidamente nos aparelhos de Estado secretarias estaduais e municipais de saúde Mas junto a essa postura autônoma a questão saúde era vista como instrumento de conscientização e politização para o crescimento do Movi mento Popular em Saúde sem que se percebesse que isso por si só pudesse vir a se tornar uma área de decisão política sobre a qual o movimento poderia exercer importante influência Nesse momento inicial da formação do Movimento Popular em Saúde Mops em fins da década de 70 a problemática relacionada à política nacional de saúde não era visualizada como um eixo de atuação do mesmo Muito pelo contrário o que predominava era o afastamento das políticas estatais de saúde entendendose que a participação nestas colocaria em perigo a autonomia do movimento Esse afastamento voluntário levou à postergação no tempo da emergência do movimento como ator político na esfera nacional A postura de independência ou autonomia constituiuse ao longo da história do Mops como uma das questões mais paradoxais observadas nesta pesquisa Em 1979 registrouse a primeira proposta de promover a articulação na cional do Mops reunindo as diversas experiências locais de medicina comunitá ria que se expandiam por todo o País de maneira espontânea e com o apoio cap4pmd 872011 1035 96 97 também das dioceses Consta a participação de 332 representantes de 18 esta dos e de 1 Território Os delegados eram em sua maioria constituídos por técnicos ligados a universidades ou a secretarias estaduais e municipais de saúde A característica marcante desse I Enemec foi valorizar as experiências lo cais que apontassem para uma organização popular independente As experiên cias institucionais em andamento Lajes Montes Claros etc incentiva vam a participação da população mas quando esta ocorria não chegava a superar o nível instrumental dado que essa mesma população era convidada a contribuir com o projeto sem que houvesse uma participação mais decisiva Isso fazia com que crescesse enormemente a idéia de independência e de afas tamento das políticas estatais de saúde por parte do movimento e de suas lide ranças O relatório apresentou a descrição das experiências desenvolvidas e re velava a preocupação dos delegados com a conscientização e politização das camadas populares por meio da saúde O processo de organização do Movimento Popular em Saúde através das práticas de medicina comunitária foi gradativamente aumentando e já no II Enemec pudemos observar uma mudança na composição dos delegados na maioria representantes dos movimentos populares articulados organicamente em federações associações de moradores comissões de saúde etc Represen tantes de algumas regiões do País propuseram nesse Encontro transformar o Enemec em encontros nacionais de movimentos populares em saúde Entre tanto a proposta só conseguiria vingar mais tarde A novidade naquele momento foi a preocupação dos movimentos popu lares em discutir e acompanhar as propostas institucionais como por exem plo o caso do PrevSaúde A assistência médica foi considerada dever do Esta do e o sistema de saúde como devendo ser universal igualitário referindose a um tratamento igual para os trabalhos rurais e com participação dos traba lhadores em conjunto na elaboração da Política Nacional de Saúde No aspec to organizativo a comissão organizadora passou a ser composta por um repre sentante de cada estado do País O IV Encontro realizado em 1983 abandonou a medicina comunitária como principal eixo temáticoorganizativo do Movimento Popular em Saúde para se constituir ele próprio na motivação principal dos encontros transfor mados em instância de organização política do movimento em âmbito nacio nal A denominação mudou para Encontro do Movimento Popular em Saúde e seu tema geral foi Saúde uma Conquista do Povo cap4pmd 872011 1035 97 98 Podemos observar tanto em relação aos temas específicos considerados quanto ao tratamento dos mesmos que a reunião teve caráter marcadamente ideológico19 O relatório final incluiu uma série de diretrizes para a atuação do Movimento Popular em Saúde expressos nos seguintes pontos controle dos serviços de saúde pelos trabalhadores melhoria e igualdade dos direitos previdenciários e de serviços de saúde no campo e na cidade ações preventivas para a conquista da saúde tais como terra para plantar e morar salário justo emprego saneamento Assim foise configurando a articulação nacional do movimento bem como a preocupação de se estabelecer contatos mais estreitos com outros movimen tos sociais e sindicais Essa articulação foi definida como tendo base local Optouse também pela nãoinstitucionalização entendida como a obtenção de personalidade jurídica Foi proposta uma coordenação nacional para a orga nização do movimento constituída por dois coordenadores por estado os quais se encontrariam duas vezes por ano e definiriam rumos Como estrutura de apoio os encontros teriam uma secretariaexecutiva que funcionaria no pró prio estado que também sediaria o encontro nacional seguinte Esse quarto encontro foi um ponto de inflexão na trajetória do Movimen to Popular em Saúde em que já se pode perceber o ingresso em uma nova fase de caráter marcadamente político não só em relação aos temas considerados mas também nas tentativas de se desvencilhar das lideranças religiosas e técnicas tal como pela procura de uma articulação sustentada nas lideranças de extração popular das federações estaduais e federais das associações de moradores de bairros e favelas Os encontros nacionais a partir de então passaram a se desdobrar em dois grandes momentos de discussão um no qual se convidam assessores especialistas no tema com eficiência e compromisso junto ao movimento popular Sua função no caso é de formação e informação das lideranças populares Neste momento a con juntura política nacional é analisada e a política e os serviços de saúde se tornam objeto de debate 19 Temas abordados Controle dos Serviços de Saúde pelo Povo Movimento Popular em Saúde e Movimentos Populares no Momento Atual Avaliação Diretrizes e Organização do Novo Movi mento cap4pmd 872011 1035 98 99 outro para a definição da estratégia política do movimento como um todo em relação às políticas de saúde quando são lançadas as teses diretrizes e bandeiras de luta O V Encontro do Movimento Popular em Saúde refletiu então os avan ços em todos esses anos não só no tocante à organização mas também à passagem de uma organização centrada na atuação política localregional que na realidade já exercia grande pressão e tinha influência junto aos órgãos muni cipais e estaduais A grande mudança observada em torno da temática e das propostas do relatório final do Encontro foi a ênfase na Política Nacional de Saúde como tópico de destaque As diretrizes formuladas nesse Encontro foram participação do povo na elaboração execução e organização de conselhos populares de saúde para a fiscalização dos serviços mudança e controle da Previdência Social pelos trabalhadores fim de convênios com empresas particulares e de medicina de grupo uma Central de Medicamentos controlada pelo povo e com incentivo e financiamento de pesquisas em medicina popular formação de profissionais de saúde voltados para a medicina preventiva e para as práticas de medicina popular igualdade nos serviços de saúde para o homem do campo e o da cidade serviços públicos gratuitos em todos os níveis de atendimento ambulatorial e hospitalar e prioridade à medicina preventiva O debate de maior peso na futura organização do movimento se deu quando da transformação da mesma em entidade com personalidade jurídica A discussão foi particularmente difícil pelas implicações que acarretava O prin cipal argumento em defesa dessa tese repousava na possibilidade de se obter a independência financeira do movimento que dessa forma poderia receber recursos de várias fontes outras que não apenas a de órgãos governamentais possibilitando assim que se fortalecesse a estrutura centralizada e a tornasse mais ágil O status jurídico facilitaria também uma direção capaz de decisões mais rápidas e uma equipe de assessoria para fomentar o trabalho de formação das bases do movimento A essa idéia se contrapunha o argumento de que aí estava cap4pmd 872011 1035 99 100 o caminho para o atrelamento do movimento ao Estado e sua conseqüente burocratização e afastamento das bases Ainda que a institucionalização e a obtenção de personalidade jurídica não significassem necessariamente o atrelamento ao Estado essa visão era predomi nante no movimento popular e bastante defendida pelos coordenadores As diferenças em torno dessa questão não foram resolvidas e voltaram à tona nos sucessivos encontros influindo decisivamente na atuação do Movimento Popu lar em Saúde A composição social dos coordenadores era bastante heterogênea já que incluía tanto lideranças de origem popular quanto profissionais de classe média e religiosos As diferenças políticas entre tais lideranças eram consideráveis inici andose pelo divisor de águas entre a esquerda secular e a esquerda católica e por sua vez pelas divergências entre os diferentes partidos políticos de esquerda dentro dessas duas vertentes Naquele momento de transição do movimento porém posições ideológicas de autonomia extrema eram defendidas até como uma forma de preservação do movimento popular Assim observouse essa posição em relação aos partidos políticos refletida na reunião de coordenado res realizada em Brasília em setembro de 198520 Até o início da década de 80 a identidade do Movimento Popular em Saúde foi dada principalmente pela mobilização em torno de demandas pontu ais em relação às condições de saúde da população e a respeito das quais o Estado se omitia Nesse momento inicial do Mops a Igreja terceiromundista e a doutrina da Teologia da Libertação tiveram papel decisivo através das comu nidades eclesiais de base A primeira metade dos anos 80 caracterizouse pela organização regular das associações de moradores dos diferentes bairros e favelas das diferentes regiões do País Essas associações estavam dispostas a discutir problemas co muns fazer sua leitura política a respeito deles e propor uma atuação visando intervir nas decisões estatais do setor saúde Se organizaram em torno de fede 20 Vimos que o partido político é uma das ferramentas isto é uma das formas de organização que temos E nós agentes pastorais eou educadores temos um grande desafio o de construir um novo exercício político de forma séria e comprometida com as bases Por essa razão é que devemos ter claro a natureza de cada ferramenta de que dispomos o que cada uma nos oferece e onde como e quando podemos usála O Mops tem que ser alheio aos partidos por ser um movimento formado por entidades grupos e pessoas de diferentes religiões e ideologias Não devemos ser puristas mas termos claro os pontos que nos unem e encontrarmos uma forma democrática de convivermos com essas várias diferenças Relatório final da Reunião de Coorde nadores Brasília 1985 cap4pmd 872011 1035 100 101 rações de associações vicinais nacionais e estaduais as quais se reuniam periodi camente elegiam suas direções se uniam em seções ou departamentos de saú de de terras de moradia de educação dentre outras Adquiriram ao longo da década crescente visibilidade e relevância política O aparecimento de outras formas de atuação política que naquele mo mento da política nacional começavam a adquirir expressão saliente marcou também a década de 80 Partidos políticos e sindicatos deixavam de ter uma atuação limitada para passarem a definir plataformas de governo políticas e linhas de ação Nesse contexto de democratização e de liberalização política a Igreja e as comunidades eclesiais de base perderam a hegemonia política que caracterizara a década anterior em termos de oposição e de articulação da soci edade civil Tais transformações foram plenamente acompanhadas pelo Mops ob servandose naquele período de um lado uma evolução das diretrizes que gui aram a sua atuação deslocadas da problemática local para a nacional De outro o abandono da medicina comunitária pela discussão da política nacional de saúde Neste sentido as origens do movimento foram marcadas por sua ativi dade em nível local O centro da preocupação nos bairros e nas comunidades rurais era o atendimento médico os remédios caseiros as parteiras a formação dos agentes de saúde etc tudo enfim que fazia parte do cotidiano desses movi mentos e que era contemplado pela concepção da medicina comunitária Nenhuma das questões referidas aos modelos assistenciais ao financiamento do setor ao gerenciamento ao caráter público ou privado do sistema de saúde desperta à época interesse nos integrantes do movimento Ainda que existisse uma preocupação relacionada à política nacional de saúde quando da divulga ção do PrevSaúde em 1983 política de saúde anterior ao projeto das Ações Integradas de Saúde AIS tal discussão adquiriu seu ponto de maior inflexão na VIII Conferência Nacional de Saúde Podese visualizar no quadro seguinte os principais aspectos que caracteri zaram o Mops no período analisado cap4pmd 872011 1035 101 102 Quadro 1 Caracterização da conjuntura política e formação do Movimento Popular em Saúde 19791984 Períodos e Principais Caracte rísticas do Sistema Político Brasileiro Regime autoritário em processo de transição Crises militares em torno da sucessão presidencial Anistia política Reestruturação do sistema partidário Crises econômicas 79 e 83 aumento do preço do petróleo Processo econômi co inflacionário Eleição parlamentar com avanço da oposição Período e Princi pais Características do Setor Saúde Predomínio do setor privado com financiamento do setor público Fraudes nas contas dos hospitais do setor privado Ineficiência dos setores público privado Surgimento de propostas alternativas Papel dos departa mentos de medicina preventiva das universidades Experiências de medicina comunitária Proposta de reforma do sistema de saúde Crise da Previdência Social Principais Atores Comunidades Eclesiais de Base Movimento Sanitário Sindicato dos Médicos SinMed Associações de moradores populações carentes Centro Brasileiro de Estudos em Saúde Cebes Academia Associação Brasileira de Pós Graduação em Saúde Coletiva Abrasco Médicos e associações médicas Principais Bandeiras Democratização do País Melhores condições de saúde Melhor atendimento Fim das filas nos hospitais públicos Contra o setor privado de saúde Contra a medicina de grupo Controle do setor público sobre o privado Reforma do sistema de saúde Formas de Atuação Pastoral de favelas Pastoral de saúde Formação de entidades populares Encontros nacionais Secretários estaduais de saúde Secretários municipais de saúde Grupos Aliados Movimento Sanitário Departamentos de medicina preventiva Organizações não governamentais ONGs Partido Comunista Brasileiro PCB Partido dos Trabalhadores PT Partido Socialista do Brasil PSDB Partido Democrático Trabalhista PDT Partido Comunista do Brasil PC do B Grupos de Oposição Empresas médicas Federação Brasileira de Hospitais FBH Associação Brasileira da Indústria Farmacêu tica Abifarma O Movimento Sanitário na verdade era constituído entre outros pelo Cebes Abrasco Academia e por médicos Estes últimos aparecem no quadro de maneira diferenciada em razão do papel de destaque que exerceram como principais organizações da sociedade civil no setor saúde durante esse período cap4pmd 872011 1035 102 103 A Ascensão a politização do movimento Em fevereiro de 1986 realizouse o VI Encontro Nacional do Mops ten do este sido um dos últimos encontros de caráter nacional pouco antes da VIII Conferência Nacional de Saúde Ainda que o tema geral tenha sido Saúde e Constituinte e os temas específicos similares aos dos outros encontros algo de novo e de importante surgiu para o movimento a inclusão do Mops como delegado na conferência A VIII Conferência Nacional de Saúde convocada pelo Ministério da Saú de através do Decreto Lei no 91466 de 23785 convidou as organizações da sociedade civil a participar através de delegados que as representassem diferen temente de conferências anteriores Assim o evento contou com representantes de várias entidades da sociedade civil da CGT da CUT da Contag de associações de profissionais de saúde e também do Movimento Popular em Saúde chegando a somar mil representantes de organismos societários Tal fato colocou os participantes do Encontro diante da necessidade de explicitar as teses do movimento em função dos temas da Conferência Saúde Dever do Estado Direito do Cidadão Reformulação do Sistema Nacional de Saúde e Financiamento do Setor Após a discussão desenvolvida nesse VI En contro foi elaborado e aprovado um amplo documento com duas partes uma referida à Conferência e outra encaminhada à discussão pela Assembléia Naci onal Constituinte A preparação desse documento resultou em transformações tanto na con cepção do movimento pelo fato de participar de uma instância de decisão nacional da política de saúde quanto pelo exercício de explicitação das pro postas e estratégias do movimento popular em relação à questão da saúde A primeira parte do documento incluiu temas previstos na Conferência enfatizando a saúde de forma ampla sendo o atendimento médico apenas um aspecto da mesma Assim defendiam a estatização dos serviços de saúde e o controle dos mesmos pela população a autonomia dos movimentos populares em relação ao Estado leis que assegurassem a participação dos trabalhadores no planejamento na execução e no controle dos serviços de saúde a criação de conselhos populares de saúde ligados às prefeituras a unificação e a descentralização das decisões e do planejamento cap4pmd 872011 1035 103 104 o aumento das verbas para a saúde e a definição dos recursos em âmbito nacional estadual e municipal através da criação de um Fundo Único de Saúde Neste ponto foi ainda incluído um item referido na Constituição recomendando a suspensão do pagamento da dívida externa o direito de greve a reforma agrária a proibição de propaganda de medicamentos a política de saúde de acordo com interesses populares e a reformulação da Lei no 617974 que instituía amparo previdenciário para as pessoas com mais de 70 anos A segunda parte do documento que se refere ao direito à saúde e a como ele deveria ser assegurado pela Constituição propugnava que o fosse por meio do tratamento das aposentadorias da assistência médica da Previdência Social da diminuição do poder das empresas multinacionais de tecnologia médica e sobre tudo da indústria farmacêutica no setor da saúde e da implantação de medicinas alternativas A última questão incluída no documento foi a divulgação dessas pro postas na esfera estadual e nacional O marco da trajetória do Mops na última metade dos anos 80 foi dado pela VIII Conferência Nacional de Saúde Para compreender a particular importância dessa Conferência em especial cabe determonos na história desse órgão de definição da política de saúde As Conferências foram instituídas como instância decisória da política de saúde pela Lei no 378 de 1311937 devendo sua convocação sobrevir com intervalo máximo de dois anos Mas a I Conferência aconteceu somente em 1942 três anos após o previsto por lei tendo as seguintes sido convocadas em intervalos irregulares Em relação a conteúdos a III Conferência convocada pelo Ministro da Saúde Wilson Fadul ardente defensor das teses de municipalização Labra 1988 registrou proposições inovadoras que anteciparam a reformulação do sistema de saúde Mas foi a VIII Conferência que congregou a presença de organismos da sociedade civil e particularmente dos movimentos sociais em saúde pela primeira vez na história das políticas de saúde As conclusões espelhavam o amplo consenso em torno da necessidade de introduzir mudanças no setor de forma a tornálo democrático acessível uni versal e eqüitativo As propostas convergentes à formulação da Reforma Sani tária brasileira se sustentavam numa conceituação da saúde que como direito extravasava os limites da assistência médica implicando uma série de direitos correlatos educação moradia lazer participação e liberdade organização e expressão direitos dos cidadãos a serem efetivados pelo Estado cap4pmd 872011 1035 104 105 A partir da VIII Conferência o Mops se estabeleceu como força política no cenário da política nacional de saúde tendo seu projeto inserido na proposta mais ampla de mudança nesse setor no País Esta foi apresentada por outras forças políticas no nível da academia e de instituições da sociedade civil como o Centro Brasileiro de Estudos em Saúde Cebes a Associação Brasileira de PósGraduação em Saúde Coletiva Abrasco o movimento sindical e os par tidos de esquerda Ainda que as discussões evidenciassem diferenças entre os representantes dos diversos setores da sociedade civil estas não chegaram a prejudicar os resultados da Conferência Os delegados do Movimento Popular em Saúde apresentaram uma proposta de estatização do setor sem participação nenhuma do setor privado a qual não contou com a aprovação da maioria das entidades representadas dentre elas o Cebes a Abrasco e as centrais sindicais As teses levadas para a VIII Conferência pelo Mops também foram pro postas para a Constituinte21 Durante a campanha para a eleição dos candidatos à Constituinte o movimento popular apresentoulhes as teses procurando iden tificar os que com elas se comprometiam Uma vez eleita a Assembléia Consti tuinte o Mops passou a formar parte da Plenária Nacional de Saúde na Cons tituinte levou suas teses à discussão pelas forças políticas aliadas que integravam a Plenária e encaminhou posteriormente emenda popular para a área da saúde O VII e último encontro nacional do Mops foi em fevereiro de 1987 Ainda que o movimento continuasse existindo na esfera nacional os encontros seriam posteriormente interrompidos Desde a VIII Conferência Nacional de Saúde a trajetória do movimento popular adquiriu outras características em razão da avançada proposta da Reforma para as questões principais da reformulação do sistema de saúde a existência de um sistema único e descen tralizado de saúde nos estados e municípios O movimento passou então a ter feição estadual e municipal no processo de implementação da Reforma tendo os encontros sido substituídos pela Ple nária Nacional de Saúde como âmbito de articulação nacional Assim as fede rações estaduais e os organismos municipais de bairros e favelas dioceses profissionais de saúde das secretarias estaduais e municipais de saúde militantes deputados estaduais e vereadores dos partidos progressistas passaram a ter papel preponderante no encaminhamento da proposta da Reforma Sanitária 21 Foi inclusive elaborado um cartaz amplamente distribuído junto aos movimentos locais e também um documento para a discussão nas bases cap4pmd 872011 1035 105 106 Esse VII Encontro do Mops na cidade de Cachoeira do Campo em Mi nas Gerais foi organizado pelos movimentos da região metropolitana e do Vale de Mucuri22 que aderiram à articulação nacional no encontro anterior e contou com a participação de 138 delegados de 18 estados23 A articulação nacional que fora a tônica pela qual se estruturara e crescera o Movimento Popular em saúde deslocouse para as instâncias estadual e munici pal devido ao grande impulso e vitalidade que se deu às mesmas como espaço de participação popular Isso estava relacionado ao próprio processo da Refor ma Sanitária que recomendou como eixo central da reformulação da política de saúde a descentralização exigindo do Movimento Popular em Saúde uma atuação reforçada nos níveis locais para dinamizar os Conselhos de Saúde já que neles é que a população passaria a ter assento e papel decisório na implan tação da Reforma Houve deslocamento também na temática do Mops Enquanto as origens foram marcadas pela medicina comunitária como modo de dar conta das ca rências de saúde das populações pobres das grandes cidades e do interior nesse segundo momento ligado à realização da VIII Conferência passouse a enfatizar a política de saúde As experiências estaduais e municipais do Mops variaram de lugar para lugar e dependeram em boa medida do desenvolvimento que os movimentos já tinham conseguido antes da realização da VIII Conferência A escolha do estado do Rio de Janeiro para avaliar a atuação do Mops no final dos anos 80 e na primeira metade dos anos 90 se fundamentou na feição estadual do movimento e no desenvolvimento que este até então havia adquiri do no estado onde congregava na Baixada Fluminense desde 1975 o Movi mento de Amigos de Bairro de Nova Iguaçu MAB Neste estavam agrupadas todas as associações de moradores locais tendo se tornado federação em 1981 e posteriormente a maior federação de associações de bairro do País a Fede ração de Moradores do Estado do Rio de Janeiro Famerj formada em 1978 Mainwaring 1988 Assim a pesquisa que deu sustento ao livro estudou o Movimento Popular em Saúde neste estado 22 Herbert de Souza Betinho Sonia Fleury e Ivo Poletto foram os assessores do VII Encontro 23 A dinâmica foi semelhante aos encontros anteriores e os temas tratados foram Saúde do Trabalha dor Saúde da Mulher Saneamento Básico Pastoral da Criança e da Saúde Hanseníase Plantas Medicinais Hortas Comunitárias e Saúde do Consumidor A Constituinte ainda tema desse encon tro foi debatida delineouse o perfil de seus integrantes conservadores em sua maioria assim como as possibilidades das teses populares serem incluídas no texto constitucional Foram discu tidos também os temas apresentados pelos assessores sobre a conjuntura nacional o sistema de saúde do País e a reforma agrária cap4pmd 872011 1035 106 107 O Mops no Estado do Rio de Janeiro Nova Iguaçu era a maior cidadedormitório do estado Tinha em 1980 segundo dados do último censo 1522400 habitantes Era exclusivamente de moradia ou de alojamento isolada do local de trabalho Por ser cidadedormi tório sua população tinha características socioeconômicas que a distinguiam da do município do Rio de Janeiro e da do resto do estado Era na maioria uma população constituída de jovens em geral migrantes do Nordeste sem qualifi cação profissional inserida no mercado informal de trabalho com localização laboral no município do Rio e moradora de maneira precária em assentamen tos sem infraestrutura urbana Essas características fizeram com que o MAB ao se tornar federação agru passe uma população homogênea que tinha como eixo exclusivo de atenção o local de moradia sem que se considerassem outras questões tais como trabalho etc Ficou constatada assim uma grande proximidade entre as entidades repre sentativas do movimento popular e as bases comunitárias do mesmo alicerçadas na solidariedade espontânea entre os moradores e no trabalho desenvolvido pelo próprio MAB As associações de moradores que integravam o MAB apresentavam com posição bem mais homogênea que a Famerj Enquanto o MAB agrupava o conjunto das associações de moradores de bairros pobres da população de Nova Iguaçu na Famerj estavam representadas também as associações de moradores de bairros de classes média e alta No total a Famerj contava em 1989 com aproximadamente 1200 entidades filiadas24 Destas 82 pertenci am a associações de moradores de bairros de classe baixa e 18 a associações de moradores de classes média e alta ver quadro a seguir 24 Segundo dados divulgados pela própria entidade cap4pmd 872011 1035 107 108 Quadro 2 Etapa de ascensão do Movimento Popular em Saúde 19841987 Entidades do Movimento Popular em Saúde Federação Estadual de Associações de Moradores Famerj Federação de Moradores de Nova Iguaçu MAB Principais Bandeiras Reforma Sanitária Sistema Único de Saúde Cobertura universal Estatização do sistema de saúde Saúde direito do cidadão Acabar com o setor privado Grupos Aliados Partidos PCB PT PDT PC do B PSDB Movimento Sanitário SinMed Cremerj Sindicatos não médicos Organizações de Oposição à Política de Saúde Federação Brasileira de Hospitais FBH Associação Brasileira da Indústria Farma cêutica Abifarma Seguros privados de saúde Formas de Atuação Encontros estaduais Preparação da VIII Conferência VIII Conferência Processo constituinte Problemas locais de saúde Problemas de epidemias locais dengue A luta pela saúde foi central à Constituição do Movimento de Amigos de Bairro de Nova Iguaçu Em 1975 através de Caritas Diocesana foi implantado um programa de saúde composto por quatro médicos Dois deles desde 1974 vinham desempenhando um trabalho com a população carente de atenção à saúde e de formação através de cursos sobre as condições de vida e necessidade de organização dessas comunidades Mainwaring 1988 Origem semelhante teve a Famerj criada em 1977 sendo os problemas de saúde do estado também centrais na sua formação A luta pela saúde ajudou a nascer a Famerj25 A Famerj e o MAB se propunham a coordenar a luta pela saúde no estado do Rio de Janeiro a executar as decisões das plenárias de saúde mo bilizar as associações nas diversas regiões e representar o movimento junto aos órgãos públicos Realizado em 1980 na Cidade de Deus uma das maiores favelas da peri feria do município do Rio o Encontro contou com a participação de três mil pessoas representando federações e associações de moradores de bairros e favelas a Igreja profissionais de saúde e entidades do movimento operário e sindical do estado 25 Lucia Souto presidente da Famerj em 1989 Entrevista realizada durante a pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estudo sobre o Movimento Médico e os movimentos populares em saúde no Estado do Rio de Janeiro 1992 cap4pmd 872011 1035 108 109 Também no estado existia uma instância informal de discussão e articu lação do Movimento Social em Saúde como um todo a Plenária de Saúde ou Fórum Popular reunindo os movimentos populares de maneira nãoorgâni ca desde fins da década de 70 Podese observar desde o Encontro até 1986 o paulatino crescimento das entidades a formulação de um estatuto de funcionamento a definição da estru tura organizacional eleições periódicas a cada dois anos e a obtenção de perso nalidade jurídica Todos esses procedimentos levaram as organizações do Mops à institucionalização apesar das resistências explícitas das lideranças com orien tação radical de esquerda fortemente autonomista e inclinada à nãoparticipa ção nas políticas de saúde Ao longo de 19861987 as principais tarefas enfrentadas pelo Mops no estado do Rio foram de articulação Plenária ou Fórum Popular pela Saúde De signada Plenária Estadual de Saúde após a realização da VIII Conferência come çou a se desenvolver em fins de 1986 enquanto a realização do II Encontro Popular de Saúde do Estado do Rio de Janeiro foi projetada para fins de 1987 O Fórum Popular pela Saúde foi um permanente espaço de debates de divulgação de informações e de mobilização em torno de denúncias e de pro postas globais para exercer pressão articulada por conquistas de saúde Nele agrupavase grande número de entidades da sociedade civil entre as quais CUT Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas Ibase SinMed Cremerj Ordem dos Advogados do Brasil OAB Associação Médica do Estado do Rio de Janeiro Amerj Famerj MAB etc Também os partidos políticos tive ram importante papel através dos representantes ligados ao setor saúde Den tre eles se destacaram o PCB o PT o PC do B o PDT e o PSDB26 A criação do Fórum tinha por objetivo a ampla articulação do movimento social pela saúde com as lutas concretas que aconteciam no estado Sua principal finalidade era por sua vez enfrentar a epidemia de dengue assim como tam bém preparar a participação no processo político que começava a se deslanchar na Assembléia Nacional Constituinte Tendo adquirido proporções alarmantes no estado do Rio onde afetou com maior intensidade a população da região da Baixada Fluminense a epide mia de dengue evidenciou a ruína do sistema de saúde trouxe à tona a 26 Entrevista realizada com Dilceia Nahon presidente do MAB 1989 Citada na pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estudo sobre o Movimento Médico e os movimentos populares em saúde no estado do Rio de Janeiro 1992 cap4pmd 872011 1035 109 110 falência de tudo esse problema da falência dos serviços de saúde ficou expos to27 expressa na desorientação municipal estadual e federal ante a crise que exigia resposta pronta e efetiva O Mops por sua vez assistiu perplexo à briga ocorrida entre as diferentes esferas de governo para saber de quem era a res ponsabilidade no combate ao mosquito Não podíamos esperar resolverem de quem era o mosquito se explica ram os líderes do Mops com relação à necessidade de reação Dada a gravidade e a extensão da epidemia e o caráter das ações do Mops organizaramse várias manifestações populares com ampla difusão na mídia Houve inclusive um protesto popular bloqueando a rodovia Presidente Dutra que liga os estados do Rio e de São Paulo o protesto teve a participação de moradores dos bairros mais atingidos das entidades agrupadas pela saúde e até de representantes do Ministério da Previdência e da Secretaria Estadual de Saúde O bloqueio dessa importante rodovia foi possibilitado pela resposta das organizações instaladas na Baixada Fluminense como o MAB a Federação de Favelas do Estado do Rio de Janeiro e também a Famerj Cada uma dessas organizações congregava por sua vez subestruturas que lhes davam condições de acesso e de ação junto à população28 Os resultados da ação coletiva empreendida pelo Mops foram efetivos tanto para sua unificação e subseqüente atuação como em relação às medidas implementadas pelo governo do estado para o combate à dengue erradicada por meio da intensiva aplicação de produto eficaz na extinção do mosquito e das larvas O que acabou por se tornar óbvia foi a relação entre esse momento o de maior ascensão do Mops no período e a crise sanitária provocada por essa epidemia Neste sentido a atuação do Mops teve caráter eminentemente políti co e não meramente reivindicativo evidenciando a ausência inicial de interven ção do estado no combate à epidemia intervenção mobilizada pela exigência de ação efetiva com a complementação de políticas alternativas de saúde atra vés de agentes comunitários de saúde vigilância sanitária nos bairros etc A própria atuação e pressão do Mops ao mesmo em tempo que revelou a inoperância prévia do Estado obrigou o governo estadual a adotar medidas mais permanentes para enfrentar os problemas 27 Entrevista com Dilceia Nahon 1989 Ver nota anterior 28 Outras mobilizações aconteceram na Assembléia Legislativa na Fundação Oswaldo Cruz Fiocruz e na Superintendência de Campanhas de Saúde Pública Sucam tendo assim possibilitado a generalização e a expansão da luta do Mops contra a epidemia de dengue sendo criado também para isso um comitê popular de combate à doença cap4pmd 872011 1035 110 111 Vale frisar que nesse caso não estamos nos referindo ao estado como totalidade teórica ou sob uma perspectiva conceitual mas como estado no sentido de ser o complexo de decisões de planejamento de instituições e orga nizações que o tornam ativo Ainda que mais adiante retomemos o assunto da relação contraditória do Mops com o Estado por ora é preciso assinalar as dificuldades governamen tais na implementação de políticas de saúde adequadas Com o crescimento da pobreza também cresceram assustadoramente a carência de infraestrutura urbana e as doenças como meningite dengue Aids hanseníase esquistossomose e cólera O Declínio acesso às formas orgânicas da política Finalizada a VIII Conferência Nacional de Saúde no ano de 1986 com uma proposta que obteve apoio das entidades representativas da sociedade o passo posterior se deu com a articulação do movimento no intuito de implantar a Reforma Sanitária Esse pode ser considerado o momento de maior comple xidade na trajetória dos movimentos sociais em saúde O encaminhamento em nível governamental das resoluções emanadas da VIII Conferência por intermédio dos Ministérios da Previdência e Assistência Social do Trabalho e da Educação estabeleceu uma instância de discussão de nominada Comissão Nacional da Reforma Sanitária cuja composição previa representantes de entidades da sociedade civil No entanto do ponto de vista formal essa composição não correspondia ao peso real que as associações da sociedade civil deveriam ter ficando estas em minoria com relação aos organis mos estatais e privados da saúde A Comissão tinha apenas seis representantes dos organismos populares CGT CUT Contag Conam FNM e 16 representantes de organismos go vernamentais e privados Ministérios da Previdência da Saúde do Trabalho da Educação Legislativo centrais patronais e prestadores privados de serviços de saúde Neste sentido a ação do Estado através da Comissão teve conseqüências não só no que se refere à lentidão no andamento do processo de implantação da Reforma Sanitária mas ainda mais grave na atualização da divisão interna do Movimento Sanitário do Mops entre posições favoráveis a uma política de caráter institucionalestatal versus os que defendiam a necessidade de uma política cap4pmd 872011 1035 111 112 própria e independente do movimento Conforme visto anteriormente era preocupação de parte do movimento do Mops a independência diante de po líticas governamentais isto significava a não participação nos Conselhos de Saú de e em outras instâncias vistas como formas de controle social As diferenças internas existentes no Movimento Popular em Saúde se tor naram evidentes com a formação da Comissão enquanto parte do movimento começou a se referir à Reforma Sanitária como uma proposta de cunho estatal com finalidade surgida pela necessidade de o Estado operar modificações nas políticas de saúde sem implementação de mudanças substantivas no sistema de saúde a outra defendia a Reforma mesmo com as dificuldades que a implementação desse processo comportava A partir da formação da Comissão Nacional pela Reforma Sanitária o que se deu foi um deslocamento do embate que vinha ocorrendo no âmbito da sociedade que culminara com uma proposta de amplo alcance e consenso social para o âmbito interno dos organismos estatais de saúde Essa luta passou então a ser travada no terreno dos enfrentamentos políticos das diversas facções da tecnoburocracia do setor na consecução dos avanços operacionais previstos pela Reforma Sanitária a unificação do sistema de saúde a descentralização da administração a gestão de recursos a hierarquização dos ser viços e a formação dos distritos sanitários como via de acesso ao sistema A mudança no terreno da luta política se explica o Movimento Sanitário vanguarda do processo de transformação das políticas de saúde tinha como estratégia penetrar nos aparelhos de Estado com o objetivo de tentar implementar suas táticas para mudar a direção da política e assim privilegiar o setor público Escorel 1992 Era uma questão problemática e a respeito da qual não existia consenso entre as forças sociais que compunham o setor saúde Desse modo a participação nos organismos estatais acabou sendo uma decisão unilateral do Movimento Sanitá rio o que dificultou sua relação com o Mops no transcorrer da década de 80 Nas origens do Movimento Popular em Saúde os intelectuais e profissionais de saúde que organizaram o Movimento Sanitário se assumiam intelectuais orgâ nicos do movimento popular De fato tiveram importante papel na formação deste À medida que ocorreu o crescimento do movimento e que se desenvolveu a discussão a respeito da sua autonomia perante o Estado e os profissionais de saúde intelectuais e técnicos passaram a ter uma dimensão sui generis diferencian dose e divergindo política e ideologicamente do Movimento Sanitário cap4pmd 872011 1035 112 113 A nomeação de quadros do Movimento Sanitário para cargos técnico políticos na direção do Inamps e Ministério da Saúde colidiu com a burocracia e com as rotinas estabelecidas nestes órgãos Os enfrentamentos ocorridos a partir de 1986 no Ministério da Saúde e mais fortemente ainda na Previdência Social estavam permeados pelas lógicas de poder presentes nos organismos estatais portanto limitados pela própria relação de forças no interior dos apa relhos de Estado As tentativas políticas de transformação do sistema de saúde por parte do Movimento Sanitário com a ocupação dos espaços por esses ministérios pro duziram importantes avanços em prol da Reforma Sanitária Essas tentativas foram todavia difíceis de serem mantidas no terreno da luta estatal eou buro crática o que levou de fato à relativização dos resultados aprofundandose as desavenças entre o Movimento Sanitário e o Mops29 ao mesmo tempo em que neste se produziam divisões internas Em fins de 1986 pouco tempo antes da formação da Comissão Nacional da Reforma Sanitária o Movimento Popular por intermédio de suas entidades e o Movimento Sanitário atuavam ainda de forma conjunta na instância por vezes denominada Fórum Popular da Saúde por outras Plenária Estadual de Saúde a qual foi também reproduzida pelo Mops em outros estados O objetivo dessas plenárias era garantir a participação do Movimento So cial em Saúde no processo constituinte e ainda dar prosseguimento institucional ao processo da Reforma Sanitária pela via da incorporação das conclusões a que se tinha chegado na VIII Conferência Nacional de Saúde na Constituição No processo constituinte a Plenária Estadual de Saúde do Rio de Janeiro trabalhou a favor da Emenda Popular de Saúde apresentada à Assembléia Na cional Constituinte discutindoa e recolhendo assinaturas para sua inclusão A emenda definia a saúde como direito de cidadania e dever do Estado e propu nha tal como definido na VIII Conferência a criação de um sistema único de saúde com comando e controle estatal hierarquizado e descentralizado nos 29 Posteriormente à VIII Conferência a Famerj convocou também o Movimento Popular em Saúde do Estado do Rio para uma reunião de avaliação resultou um documento que se referia a proble mas de caráter organizativo limitantes de uma participação mais efetiva dos representantes do movimento e a outros de caráter político no sentido de se levantar suspeita de que a VIII Conferência tivesse sido uma forma de legitimar as propostas do governo Apesar disso foi positiva a avaliação da Conferência tanto em termos de procedimentos a exemplo da participação do Movimento Popular como de resultados Documento da Famerj abr1986 Citado na pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estado sobre o Movimento Médico e os Movimentos Populares em Saúde no Estado do Rio de Janeiro 1992 cap4pmd 872011 1035 113 114 estados e municípios brasileiros Este poderia ser complementado pelo setor privado por contrato de direito público O trabalho se constituiu um ato político importantíssimo para o movi mento na medida em que efetivou sua participação orgânica e institucional no processo constituinte ao mesmo tempo em que fortaleceu o crescimento geral da luta política do setor saúde Inicialmente a Emenda Popular pela Saúde se situava no âmbito estadual cujo eixo era a estatização do sistema de saúde Realizouse porém uma Plená ria Nacional de Saúde em maio de 1987 em que se propôs trabalhar em nível nacional a favor de um sistema único de saúde A Plenária Estadual decidiu apoiar o documento da Plenária Nacional abandonando sua proposta inicial Entretanto tal posicionamento não foi consensual Os pontos que marcaram diferenças iriam se tornar um divisor de águas do Movimento Sanitário e do Movimento Popular em Saúde a partir daquele momento Cabe neste ponto mencionar a composição política do Mops Identifica mos a presença de duas grandes facções políticas que conviviam no movimento e poderiam ser caracterizadas da seguinte forma uma facção mais crítica e radical na sua visão do Estado concebendoo como espaço exclusivo das classes dominantes Possuía discurso antiEstado e considerava que se houvesse medidas favoráveis às classes mais pobres estas teriam por objetivo o controle social Assumia portanto uma postu ra autonomista de distanciamento da máquina estatal a outra facção ainda que apresentasse uma caracterização semelhante em relação ao Estado como domínio da burguesia não acreditava que ele fosse monolítico sem fraturas internas através das quais seria possível pres sionar negociar e construir alianças que possibilitassem as conquistas sociais em saúde A associação dessas facções com os partidos não era tãosomente linear Os partidos de esquerda tinham diferenças internas que não poucas vezes se distribuíam entre as duas facções como também havia freqüentes mudanças dentro das próprias facções e também dentro das próprias facções do Mops Enquanto no primeiro caso se tratava de uma composição partidária das alas mais radicais do PT do PDT e do PC do B a segunda facção se identifica va mais com o Movimento Sanitário composto por uma ampla gama de posi ções políticas hegemonizadas pelo PCB De fato o Movimento dos Amigos de cap4pmd 872011 1035 114 115 Bairro MAB teve uma política mais próxima dessa segunda facção embora também reivindicasse independência e autonomia em relação ao Estado Parece pertinente mostrar de que maneira essas questões se apresentavam na dinâmica da atuação política do MAB na Baixada Fluminense Os projetos que chegaram a ter um encaminhamento30 resultaram de uma sólida aliança nas estruturas institucionais oficias de acordo com depoimento de liderança do MAB31 A mencionada aliança articulou o Mops às instituições estatais de saúde Inamps AIS Cims e também à academia Ensp IMS etc em uma conjuntura nacional de democratização em todos os níveis Isso permitiu a exis tência na estrutura do Estado de profissionais e de políticos dotados de com promisso éticopolítico com suas funções de governo e de solidariedade social O Programa Especial de Saúde na Baixada Pesb fez parte de uma inicia tiva que contou com forte investimento da sociedade civil e mostrou sua marca nãoestatal embora necessitasse da colaboração vinda da parceria existente en tre o MAB e a Secretaria Estadual de Saúde Esse projeto em especial foi elaborado e discutido por representantes da comunidadeMAB do Conselho Comunitário de Saúde e da Famerj com a Se cretaria Estadual de Saúde e o Inamps Teve como proposta a implantação de minipostos de unidades mistas englobando urgências de ambulatório e de três hospitais gerais para a Baixada Fluminense Implantadas mesmo foram apenas as 12 unidades mistas previstas pelo programa que tiveram sua construção viabilizada pelo Inamps fornecedor também de parte do equipamento necessário ao seu funcionamento e da verba necessária à manutenção do projeto32 A participação da comunidade na gerência das unidades estava prevista para ser efetivada através de um representante no conselho diretor das mesmas e de uma reunião semanal entre os representantes das associações de moradores e a coordenação do Programa Em relação aos profissionais de saúde valori zouse o salário do pessoal contratado por se entender que era um programa diferenciado e com uma nova proposta de assistência em saúde Isso incentivou os concursados a assumirem seus cargos 30 O SOS Baixada por exemplo primeiro a se transformar mais tarde no Programa Especial de Saúde da Baixada Pesb 31 Entrevista realizada com liderança do MAB Citada na pesquisa Movimentos Sociais Construção de Hegemonia e Formulação de Políticas um estudo sobre o Movimento Médico e os movimen tos populares em saúde no Estado do Rio de Janeiro 1992 32 O ambulatório funcionava com duas equipes de dois clínicos um ginecologista dois pediatras um dentista e um nutricionista Incluía além de agentes administrativos visitadores sanitários assistente social e auxiliares de serviços gerais O setor de urgência tinha seis equipes das quais a de enferma gem juntamente com auxiliares radiologia e laboratório assistiam também ao setor ambulatório cap4pmd 872011 1035 115 116 O Pesb visava garantir atendimento digno humano e personalizado por meio de efetivo controle social que assegurasse a cada cidadão e às comunidades o direito de exigir que os profissionais de saúde cumprissem as obrigações contratuais assegurar atenção contínua e integral aos pacientes dos postos comunitários de saúde e a suas famílias o que implicaria o acompanhamento da evolu ção dos pacientes atendidos realizar a detecção precoce de subgrupos de risco assim como atividades de educação para saúde estabelecer mecanismos de referência para exames consultas atendimento de urgência e internações em outros serviços de saúde do município assim como contrareferência para o posto comunitário de origem do paciente priorizar ações voltadas para a redução da morbimortalidade por meio da prevenção acompanhamento e controle de doenças tais como hipertensão diabetes infecções respiratórias diarréias imunização crescimento e desen volvimento prénatal prevenção de câncer na mulher e aleitamento materno O programa não foi gerenciado pelo poder público mas por uma institui ção pertencente à Igreja católica com profundas raízes na pastoral popular a Caritas convidada a se inserir no processo a partir dos fortes laços que mantinha com o MAB e com o Conselho Comunitário de Saúde e também porque apta a gerenciar com eficácia o programa dada a sua trajetória na Baixada desde 1966 Além disso porque se trata de instituição sem fins lucrativos Depois de três anos ficaram comprovadas a eficiência e a qualidade da assistência à população possi bilitada pela intervenção da Caritas e pela participação do MAB Os postos no entanto começaram a atravessar dificuldades a partir de 1990 devido a atrasos no repasse das verbas que além disso não eram reajus tadas de acordo com a inflação Ademais os funcionários foram estadualizados nesse ano e o Pesb passou a ser de responsabilidade do estado do Rio o que acarretou a supressão do caráter de projeto independente Quanto aos profissionais de saúde sofreram perda salarial de 800 ao fim de três anos Em 1987 ano de iniciação do projeto os salários dos médicos equivaliam a US 800 e em 1990 chegaram a valer US 100 Os recursos repas sados ao Projeto pelo estado eram insuficientes para a manutenção das instala ções dos postos de saúde e para reposição do material e instrumental necessário ao atendimento A deterioração salarial as precárias condições de trabalho e a cap4pmd 872011 1035 116 117 falta de segurança no desenvolvimento do mesmo levaram os profissionais a se recusarem a trabalhar Por tudo isso tornouse inviável o funcionamento A questão só pode ser compreendida sob a perspectiva da política nacio nal de financiamento da área social e em especial da saúde a qual ocupa um lugar subalterno nas prioridades governamentais Se ainda acrescentarmos à escassez dos recursos as modalidades do repasse dos mesmos desde a federa ção até os estados e municípios temse que o que ocorreu com o financiamento do setor saúde é quase incompreensível e nada transparente Constatamos ao observar os valores repassados pela União ao setor pú blico estadual e municipal e ao setor privado contratado da área de saúde que houve um aumento a partir do início dos anos 90 ainda que este tenha sido insuficiente Enquanto em 1989 o orçamento para o setor correspondeu a 185 do PIB em 1990 passou a 236 e em 1991 a 26633 A distribuição porém dependeu de uma tabela de procedimentos estabe lecidos pelo Ministério da Saúde e Inamps de caráter nacional e referente a valores diferenciados per capita por grupo de estados cuja aplicação levou os estados que produziam serviços de maior complexidade quantidade e qualida de a não conseguirem cobrir os custos dos serviços prestados com os recursos a eles atribuídos Carvalho et al 1993 Essa distribuição também não obede ceu aos preceitos estabelecidos na Constituição os mecanismos não eram transparentes os valores eram retidos sem explicação o cálculo do orçamento não correspondia à previsão realizada e assim por diante Retomando as divergências internas do Movimento Popular em Saúde questões mais polêmicas e confIitivas referiamse à proposta de estatização do setor saúde em contrapartida à proposta de um sistema único de saúde com a presença do setor privado desde que não subvencionado pelo Estado A partir de 1987 a trajetória do Mops apresentouse assinalada por momentos de divi são do movimento com paralisação na atuação do mesmo e momentos de unificação e atuação relevante na política de saúde Esses percalços do movimento também estavam relacionados à sua institucionalização Considerando que o Mops foi um dos protagonistas da VIII Conferência Nacional de Saúde exercendo destacado papel na definição da po lítica de saúde viuse de um lado diante da necessidade de adquirir formas organizativas mais institucionalizadas que possibilitassem participação na implementação das políticas De outro lado viuse diante da urgência em definir 33 Ministério da Saúde Brasília 1992 cap4pmd 872011 1035 117 118 de que maneira participaria das instâncias institucionais criadas pelo Estado para o assentamento da comunidade no novo sistema de saúde Esses momentos diversos na atuação e organização do movimento po dem ser assim visualizados Quadro 3 Os impasses na atuação e organização interna do Mops As diferenças não superadas configuraram uma primeira divisão do Movi mento Popular em Saúde o que rompeu uma unificação mantida desde 1986 mais especificamente desde a VIII Conferência Nacional de Saúde O rompi mento concretizouse no trabalho em prol da Emenda Popular pela Saúde Ou seja a facção do Mops defensora da estatização total e imediata considerou que o texto único da Plenária Nacional de Saúde não postulava uma estatização efetiva de modo que não assumiu esse compromisso em âmbito nacional No ano de 1986 houve eleições para a renovação das diretorias em maio na Famerj e em dezembro no MAB As eleitas na Famerj se identificavam com a proposta de estatização total do setor saúde ao passo que as do MAB não tinham postura tão radical A partir do segundo semestre de 1987 a Famerj deixou de trabalhar a favor da Emenda Popular pela Saúde e se voltou para a organização do II Encontro Popular de Saúde do Estado do Rio de Janeiro34 visando reivindicar a autonomia do movimento ante o Estado Divisão do Movimento nov 1987 Estatização total versus alguma participação setorialprivada Discussão política interna e paralisia da ação coletiva Tentativa de Unificação jul 1988 Em torno da crise do sistema de saúde do RJ Ação coletiva do movimento Nova Divisão ago 1988 Participação ou não das instânci as institucionais de saúde criadas pelo Estado Discussão política interna e paralisia da ação coletiva Unificação do Movimento Social de Saúde dez 1988 Articulação do conjunto do Movimento Social Convocatória Cremerj para Constituição estadual Nova Unificação fev 1989 Crise da saúde no estado e Lei Orgânica de Saúde Ação coletiva do Mops 34 Realizado nos dias 28 e 29 de novembro de 1987 esse II Encontro contou com a participação de cerca de 250 pessoas entre representantes de 57 entidades de caráter geral sindicatos organizações nãogovernamentais e outras 24 associações de bairro 23 associações de favelas de funcionários de órgãos públicos e de profissionais de saúde O temário incluiu Reforma Sanitária Saúde do Trabalhador Saúde da Mulher Saúde Mental Foram discutidos também o papel dos Conselhos de Saúde e ainda Conselhos Comunitários de Saúde Grupos Executivos de Saúde ou outras tantas denominações dadas às instâncias previstas pelo SUS para a participação da sociedade nos aparelhos de Estado do setor saúde cap4pmd 872011 1035 118 119 De maneira geral podese afirmar que nesse encontro houve uma radicalização por parte do Mops no que se relaciona às reuniões da Plenária Isso pode ser explicado em parte pela identificação da diretoria da Famerj com a facção mais radical do movimento popular e de outra parte pelas difi culdades de implantação da Reforma Sanitária além da frustração das expecta tivas da população com o governo da Nova República A radicalização do movimento e a divisão interna produziram um esvazi amento das propostas e da atuação do Mops o que ficou evidente no evento mas que já podia ser observado meses atrás nas reuniões das Plenárias ou fórum O II Encontro teve escassa mobilização popular Quanto às conclusões dele extraídas tiveram caráter marcadamente autonomista e antiEstado Em meados de 1988 o Mops no Rio de Janeiro buscou a reunificação fomentada basicamente por dois fatores o primeiro relacionouse com as con seqüências do II Encontro onde o próprio Mops em face de seu esvaziamen to percebeu a necessidade de retomar o processo de luta unificadamente A questão fundamental porém foi a crise do sistema de saúde do Rio de Janeiro já com nítidos sinais de desgaste devido à crise financeira e política da prefeitura da cidade responsável pelas principais unidades hospitalares de emer gência O eixo de luta do movimento foi de fato a reivindicação de soluções para essa crise De certa forma verificouse uma mudança de rota na estraté gia da Plenária na medida em que se voltou para lutas mais pontuais principal mente em relação às unidades de atendimento A reunificação no entanto se rompeu novamente em fins de 1988 Convocada uma Plenária Estadual de Saúde abandonouse a denominação Fórum e passouse a utilizar a denominação única de Plenária mas as divergên cias agora diziam respeito à participação dos movimentos populares nos apa relhos de Estado A facção radical defendeu a criação de um Conselho Popular de Saúde ao invés de um Conselho Estadual de Saúde este aprovado na VIII Conferência e inserido na proposta da Reforma Sanitária A facção favorável à criação do Conselho Estadual de Saúde entendia este como um instrumento de controle popular da política de saúde Já para a facção que defendeu a criação do Conselho Popular de Saúde o Conselho Estadual de Saúde significava a institucionalização e a burocratização do movimento popular ou seja mais um canal de participação aberto pelo Estado como os Grupos Executivos Locais Conselhos Governo Comunidade etc visando à cooptação do movimento Portanto concluise que deveria ter sido cap4pmd 872011 1035 119 120 construída uma instância genuinamente popular sem a participação do Estado um Conselho Popular de Saúde em lugar de um Conselho Estadual de Saúde As diferenças internas e a maneira como estas se processaram internamente no movimento autorizam a incorporar algumas reflexões teóricas mais substan tivas em relação às modalidades de atuação desses atores políticos Os momen tos de maior unidade do Mops coincidiram com as crises no setor da saúde e se refletiram no crescimento da ação política o que por sua vez produziu uma unificação ainda maior dando novo ímpeto ao processo de construção de identidades políticas ao setor Assim as diferenças entre o Movimento Sanitário o Movimento Médico e o Movimento Popular em Saúde perdiam sentido perante a dimensão societal que adquiriram as crises de saúde no País Contrariamente o desmembramento esteve profundamente ligado a períodos de inatividade política do Mops em que a ação para fora que caracterizara o movimento se transformou em ação para dentro Queremos dizer com isso que na existência de períodos em que a atividade estava direcionada à discussão política interna do Mops as duas facções do Movimento tentaram impor sua própria linha políticoideológica acabando por produzir uma discussão de cunho ideológico que em verdade operou como camisadeforça paralisando assim o movimento As questões centrais dessa discussão passaram pela autonomia por uma política antiEstado e pela estatização dos serviços de saúde A posição política do Mops era antiEstado mas curiosamente defendia a estatização absoluta dos serviços de saúde Um dos temas mais debatidos nas reuniões do Fórum Popular pela Saúde e no II Encontro de 1987 foi a atuação do movimento nas instâncias institucionais criadas pelo governo para dar anda mento à política de saúde Além das divergências ideológicas quanto à participação ou não do movi mento nos Conselhos houve também heterogeneidade na composição dos mesmos em termos da representação popular e maior ou menor abertura à participação da comunidade Ou seja na prática havia Conselhos em alguns municípios do estado do Rio que tinham apenas papel burocrático sem efetiva representação popular enquanto outros favoreciam eou conquistavam vitórias para a população Essa questão também não era desvinculada do peso político e da organiza ção do Movimento Popular em Saúde nas diferentes regiões do estado mas cap4pmd 872011 1035 120 121 não era percebida com clareza pelos quadros do movimento embora a existên cia de um tal movimento forte e articulado tivesse incidência na definição polí tica e na atuação dos Conselhos Outra polêmica intimamente conexa a essa relacionavase à criação das instâncias de participação e à sua forma institucional Havia no interior do Mops quem entendesse que por terem sido criadas de cima para baixo essas instânci as careciam de participação popular No entanto no caso do Conselho Comu nitário de Saúde de Nova Iguaçu este consignou importantes vitórias na medi da em que cresceu e se fortaleceu com as lutas populares pela saúde desde a sua formação anterior às diretrizes constitucionais A institucionalização do Conse lho não significou a perda do espaço político conquistado nem a ausência da participação popular A institucionalização do movimento foi por parte deste associada à ala mais radical à burocratização interna e à perda de autonomia em relação aos aparelhos estatais do setor De fato o início de um processo de discussão e negociação com secretarias estaduais e municipais de saúde conduziria necessa riamente a uma reorganização do movimento sobre outras bases A articulação sustentada exclusivamente na mobilização popular na qual a identidade política é resultante do enfrentamento com o Estado se torna insuficiente nesta etapa do processo de implementação da Reforma do Sistema de Saúde Com relação à proposta de criação do Conselho Estadual de Saúde ainda que esta instância não existisse até o segundo semestre de 1993 já tinha sido apro vada em outubro de 1989 pela Constituição estadual O atraso na sua implantação deveuse à ausência de decisão política do governo e da Secretaria Estadual de Saúde sendo efetivada após julho de 1993 quando o Conselho Nacional de Saúde aprovou resolução dispondo sobre a obrigatoriedade de formar Conse lhos em todos os estados do País tarefa delegada aos governos estaduais Neste ponto necessário se faz salientar que as diferenças do próprio movimen to popular também contribuíram para que o governo do estado adiasse a decisão O posicionamento novamente não foi consensual enquanto uma das facções de monstrou ser favorável por se tratar de uma instância que favoreceria o controle popular da política de saúde a outra entendeu que o Conselho Estadual de Saúde geraria um impasse de decisão o que justificava portanto a contraproposta de criação de um Conselho Popular de Saúde totalmente autônomo Por fim aprovado pela Constituição do estado o Conselho Estadual de Saúde não teria o poder desejado por aqueles que o defenderam tendo em cap4pmd 872011 1035 121 122 vista que o texto final promulgado não era a íntegra do Anteprojeto da Subcomissão da Ordem Social como esperado tendo sofrido uma série de cortes Incluiuse dentre estes a redução do poder do Conselho na política de saúde do estado embora sua composição fosse paritária entre o Estado e a sociedade civil organizada e detivesse também poder deliberativo Ainda que não existisse uma estratégia única do Mops em relação a essas instâncias institucionais observase certa amplitude e maleabilidade desses mo vimentos evidenciada em sua atuação conjunta quando os problemas a enfren tar afetavam vitalmente as já precárias condições de vida das populações Salien tese que essa discussão se reproduziu naqueles estados do País que já tinham um movimento forte e atuante Cabe frisar que o movimento sempre ficou dividido em torno de questões centrais de sua atuação o que no entanto não o impediu de atuar coletivamen te Essa ação coletiva ficou interditada sob as condições de agudização da luta ideológica interna ou seja no momento em que esta adquiriu uma dimensão exacerbada perdeuse de vista o objetivo principal a ação coletiva como forma de viabilizar reivindicações populares Cada vez que o movimento procurou uma homogeneização ideológica esta funcionou como camisadeforça o que impediu a atuação do Mops O espaço conquistado na Plenária Estadual de Saúde foi ocupado pelo Conselho Regional de Medicina Cremerj única entidade médica que durante esse perío do manteve a luta política na categoria médica Em fins de 1988 o Cremerj assumiu o papel de entidade articuladora do movimento social pela saúde no Rio de Janeiro tanto na convocação da Plená ria Estadual de Saúde quanto na forma de reunificação do Movimento Social em Saúde como um todo O papel político do Cremerj será analisado no início do próximo capítulo mas assinalamos desde já que à medida que o movimento popular se dilacerava em torno de sua institucionalização uma outra entidade do movimento social em saúde que tinha legitimidade e competência técnica específica no campo da saúde tornouse liderança do Movimento Social em suas diversas vertentes A Plenária Estadual de Saúde realizouse na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro em dezembro de 1988 e teve a participação de 200 pessoas Nela se discutiu a formulação da nova Constituição estadual mediante a participação da sociedade civil organizada segundo os princípios básicos da VIII Conferência Nacional de Saúde A idéia era desenvolver em nível estadual o processo de cap4pmd 872011 1035 122 123 formulação da Constituição federal ou seja objetivavase que a Plenária Esta dual de Saúde tivesse como modelo a Plenária Nacional de Saúde O Cremerj convocou novamente a Plenária Estadual de Saúde em janeiro de 1989 tendo esta sido constituída por três sessões35 Quando da organização desse ciclo de reuniões o Mops discutiu sua participação havendo manifesta ções favoráveis e contrárias Por fim decidiuse pela participação por conside rar que a Plenária era um espaço representativo com capacidade de articulação e mobilização onde se deveria estar presente O ciclo de debates objetivou preparar um anteprojeto para a Constituição estadual Porém a crise do sistema de saúde do Rio de Janeiro fez com que essa questão passasse a ser de fato a finalidade principal da Plenária agregandose ao objetivo de influenciar a Cons tituição estadual A crise atingira um ponto de calamidade pública após três meses de greve dos médicos e servidores públicos municipais com a ameaça de fechamento total de várias unidades de atendimento especialmente as emergências dos três maiores hospitais do município Salgado Filho Souza Aguiar e Miguel Couto Além disso havia a ameaça da proximidade do carnaval quando o número de atendimentos de emergência aumentava substancialmente Após o ciclo de debates da Plenária estadual as lideranças do Movimento Popular em Saúde retomaram o processo de unificação que vinham construin do Ainda que a elaboração da Constituição estadual permanecesse como prio ridade na agenda da Plenária a situação do setor saúde era tão grave no estado que se transformou no eixo principal das discussões Evidenciam esse fato a aprovação de um anteprojeto único para a Consti tuição em apenas dois meses de sessões assim como a presença maciça de pessoas e entidades nas reuniões O movimento de maneira unificada encami nhou esforços para o enfrentamento da situação da saúde do município e para a aprovação do projeto Cabe ressaltar que a crise no setor possibilitou novamente a postergação das diferenças internas no encaminhamento conjunto dos movimentos sociais em saúde e na retomada da relação entre o Movimento Popular e o Movimento Médico O descaso do governo do Rio de Janeiro diante da nova crise de saúde trouxe à tona a contradição entre o Mops e o estado A omissão deste 35 As reuniões abrangeram três temas Constituição Federal texto saúde aprovado e suas implica ções Diagnóstico de saúde e assistência médica no estado do Rio de Janeiro Avaliação e propostas dos movimentos populares e sindicais cap4pmd 872011 1035 123 124 último deixou as populações carentes praticamente sem atendimento o que levou o movimento a se articular novamente e reivindicar o direito de a popu lação ser atendida Era uma dinâmica contraditória a que caracterizava a relação dos movi mentos com o estado na medida em que a omissão deste interpelava esses movimentos ao mesmo tempo em que a ação coletiva era o instrumento atra vés do qual o movimento exercia pressão sobre ele para intervir Dessa forma o movimento voltou a estar presente na cena política exigin do a intervenção do estado através de medidas regulatórias que aliviassem a situação calamitosa dos hospitais do município e da Previdência Social Em 13 de fevereiro de 1989 a Plenária Estadual de Saúde entregou o seu anteprojeto de Constituição estadual para a área da saúde Nele constava um Conselho Estadual de Saúde paritário entre a sociedade e o estado e deliberativo a respeito da política estadual de saúde A reunificação do movi mento possibilitou que dentre as várias entidades que o assinaram figurasse também um Conselho Popular de Saúde instância interna do Mops sem ne nhum status jurídico e que havia se manifestado contrário à criação do Conselho Estadual de Saúde tal como já mencionado Em junho de 1989 a Famerj realizou o seu V Congresso quando foi eleita uma nova diretoria mais heterogênea que a anterior e com posições políticas mais próximas do movimento sanitário Assim a entidade tentou retomar a luta pela saúde no estado junto ao MAB e às entidades médicas de maneira unificada Em outubro de 1989 realizouse um seminário para discutir as Leis Orgânicas Muni cipais organizado conjuntamente pela Famerj Cremerj MAB e outras entidades O seminário foi uma proposta da Plenária Nacional de Saúde que se rearticulou em 1989 para discutir influenciar e garantir na Lei Orgânica da Saú de que regulamenta os princípios constitucionais as propostas do Movi mento Social em Saúde Nele foi distribuída uma proposta de Lei Orgânica Municipal a qual continha as idéias do movimento sanitário para ser discutida junto aos movimentos sociais pela saúde nos diversos municípios É interessante mencionar a adesão e o encaminhamento dessa proposta pelo Mops que se colocou favorável à criação dos Conselhos Municipais de Saúde de forma bastante semelhante ao Conselho Estadual de Saúde desde o início do debate acerca das Leis Orgânicas Municipais Dessa forma verificase que inicialmente o Mops foi contra a criação do Conselho Estadual de Saúde durante o decorrer do processo constituinte cap4pmd 872011 1035 124 125 mas que num momento seguinte já aprovada a Constituição Estadual se posicionou favorável à proposta dos Conselhos Municipais de Saúde desde o começo dos debates Essa mudança se explica pela perda de hegemonia da facção radical do movimento o que se refletiu na composição das lideranças das novas diretorias da Famerj e do MAB respectivamente O que transparece da experiência do Mops apesar das enormes dificuldades que se depreendem da sua trajetória é a capacidade de agir de maneira fluida na cena política com um considerável componente de democracia interna Tal con dição foi facilitadora para que a facção mais radical não chegasse a se cristalizar na condução do movimento pois existiu uma alternância nas direções políticas e nas práticas do Mops Podese observar ao longo desses anos um paulatino desgaste dos serviços públicos de saúde mais notável em alguns estados caso do Rio de Janeiro com o conseqüente descrédito da população diante da falta de eficiência de instrumental hospitalar da desativação de leitos das filas para atendimento e de outras mazelas que assolaram o setor Essa situação que o setor público atravessou poderia ser chamada de contrareforma Caracterizouse por uma coordenação de esforços dos setores que se sentiram afetados pela proposta da Reforma Sanitária Denominamos contrareforma porque existiu a intenção explícita de boi cote ao SUS e ao processo de descentralização Primeiramente o próprio governo federal fez freqüentes pronunciamen tos desde seu estabelecimento em 1990 sobre a ineficiência dos hospitais públicos ao mesmo tempo em que repassava as unidades para estados e municípios sem o correspondente repasse de recursos A falência do setor público da saúde produzida pelo governo federal levou ao crescimento nesse período dos seguros privados em detrimento da Reforma Sanitária Em segundo lugar o setor privado de atendimento hospitalar foi favorecido com a afluência de usuários de classe média que começaram a recorrer ao setor privado diante do descaso em que se encontrava o setor público Em terceiro lugar predominaram os interesses políticos clientelistas na área através do favorecimento pessoal nomeando pessoas sem idoneidade pro fissional para a direção de hospitais públicos e de outros órgãos de saúde Por último o boicote surdo da burocracia estatal contra as mudanças nas rotinas institucionais resultantes do processo de implementação da Reforma cap4pmd 872011 1035 125 126 levou a uma perda de autoridade e de poder decisório por parte da burocra cia e dos políticos clientelistas incrustados nas instituições estatais do setor Assim foram enormemente dificultados os repasses financeiros o processo de descentralização e a participação da comunidade na gestão do sistema As crises no sistema de saúde no estado do Rio de Janeiro não só refle tiram o que acontecia no restante do País mas também os percalços no pro cesso de implantação da Reforma Sanitária cujos problemas de maneira ge ral eram os mesmos em todos os estados apesar das peculiaridades Foi alarmante o desgaste da rede pública devido à dificuldade no repasse dos recursos da esfera federal para a esfera local a qual por sua vez os transferia às unidades hospitalares A implementação de uma progressiva unificação e descentralização do sis tema de saúde teve também seu funcionamento obstaculizado em razão dos conflitos interburocráticos em torno do controle político administrativo e fi nanceiro entre o Inamps e as Secretarias Estaduais e Municipais de Saúde Um nítido exemplo de tais procedimentos pode ser percebido na diver gência entre o Hospital da Lagoa36 e o Escritório Regional do Inamps Houve nesse caso um conflito de poderes entre a direção do Inamps que queria no mear o diretor do Hospital e os novos procedimentos democráticos implanta dos com a eleição do diretor daquele hospital pelo próprios trabalhadores e pacientes Tal procedimento foi sustentado como resultado das propostas de transformação do sistema de saúde Neste sentido o movimento batizado de SOS Lagoa teve grande repercussão e acabou por ser o eixo de luta do movimento social em saúde em fins de 1989 Deflagrado com a exoneração do diretor do hospital pelo Escritório Re gional do Inamps O SOS Lagoa tomou grande proporção Foi articulado por profissionais de saúde pela população das comunidades locais associações e federações de moradores como a Famerj o Conselho Popular de Saúde o MAB por partidos políticos sindicatos deputados vereadores artistas e outros solidários na luta pela manutenção do diretor eleito 36 O Hospital da Lagoa é um dos maiores hospitais gerais do estado do Rio de Janeiro tem excelente localização zona sul do município e atende à população da região especialmente das favelas Dona Marta Rocinha e Vidigal Em março de 1988 em um processo peculiar o Dr Waldinez Lima de Oliveira foi eleito diretor pelos funcionários com a participação daquelas comunidades O Hospital passou então a enfrentar um grande impasse em razão das divergências entre sua diretoria e a do Escritório Regional do Inamps O alvo desse conflito foi o tipo de administração implementada que se pautou pela descentralização dos serviços inaugurou um posto de saúde na favela Dona Marta pelo maior rigor nos critérios de compra de material hospitalar pelo aumento do número de atendimentos etc Na época foi considerada uma administração de qualidade diferenciada cap4pmd 872011 1035 126 127 Havia identificação por parte da população entre essa luta e a luta pela democracia bem como era defendida a manutenção do tipo de administração implementada pela direção eleita alvo então dos conflitos com o Escritório Regional Essa voltouse prioritariamente para as comunidades mais necessita das da área particularmente as residentes nas favelas do Vidigal Rocinha e Dona Marta tendo assumido uma nova postura diante delas bem como tendo elevado de fato o número de atendimentos Desse modo foram criadas as bases pelas quais a comunidade local o Mops e os profissionais de saúde não poderiam aceitar passivamente o desmantelamento pretendido pelo Escritório Regional Maior significado nisso tudo foi a unificação não apenas do Mops mas do movimento social em saúde em seu conjunto numa luta de caráter local porém com forte conteúdo políti co qual seja a luta pela democratização da saúde e em defesa de um atendimen to voltado para a população mais carente Vale assinalar que no que se refere às reivindicações do movimento o con teúdo político das mesmas se traduziu na luta pela efetiva implementação do SUS Os novos procedimentos democráticos a eleição direta das autoridades a participação da comunidade usuária mobilizada nas portas e no interior dos hospitais e o papel próativo dos profissionais de saúde do Hospital nas deci sões políticotécnico e administrativa apoiados pelas entidades médicas O sin dicato dos médicos e o Cremerj não foram aprovados pelo Escritório Regio nal do Inamps que acabou por exonerar o diretor do hospital Embora o Escritório Regional do Inamps tenha imposto sua política e o SOS Lagoa não tenha conseguido reverter essa exoneração a atuação e a mobilização do movi mento possibilitaram uma nova reunificação Algumas considerações teóricas merecem ser feitas com o intuito de se compreender quais efeitos e que alcances teve a ação coletiva na trajetória do Mops A atuação coletiva inclusive do movimento social em saúde constituída pela mobilização e ativação dos seus membros foi alavanca para unificação e deu novo ímpeto ao processo de construção de identidades coletivas no setor As diferenças no interior do Movimento Sanitário do Movimento Médico e do Mops assim como as diferenças entre eles perderam visibilidade se esvaeceram perante a dimensão que para o movimento adquiriram como um todo as crises da saúde no estado do Rio de Janeiro O Mops se viu refletido num espelho que não lhe devolveu uma imagem fragmentada na medida em que conseguiu alcançar presença marcante e reper cap4pmd 872011 1035 127 128 cussão na esfera pública numa conjuntura política específica a crise na demo cratização na gestão do Hospital da Lagoa Não se pretende afirmar a partir dessas reflexões que momentos de uni ficação e de estruturação venham a significar transformações ou avanços per manentes na construção da identidade política do movimento Muito pelo con trário a trajetória histórica do Mops mostrou que em diversos momentos e segundo a conjuntura política o que viabilizou ou não a efetividade na implementação de suas propostas foi o próprio encaminhamento político dado pelo movimento a sua atuação Podemos afirmar que os processos de constru ção de identidades políticas se desenvolveram na própria prática social e na relação com diversas forças políticas Landi 1981 Em se tratando de construções históricas estas estão sujeitas tanto a muta ções e a transformações da sociedade como da própria esfera da cultura e da política assim como a ação dos movimentos populares também se sujeita a variações e aos impactos e respostas da esfera pública A continuidade desses movimentos no tempo não é dada nem pela existência de uma estrutura formal eou hierárquica nem pela institucionalização mas pelos momentos de atuação política nos quais a associação entre os membros é marcada pela gestão do coletivo que consegue penetrar na esfera pública Como Touraine afirma há potencialidade nesses movimentos para se estabelecer e incidir na política37 Estamos nos referindo também às condições constitutivas do Mops nas quais a situação de carência e necessidade a que foram atiradas as populações paupérrimas teve papel de destaque Precisamente por isso o aspecto rei vindicatório foi detonador da mobilização popular para a obtenção de bens como saúde Mas isso é apenas um momento em sua trajetória no qual o próprio movimento não fez ainda uma leitura mais abrangente no sentido de uma visão política da sua práxis que justifique a sua existência Um outro patamar foi alcançado quando o Mops conseguiu identificar como alvo de sua competência não apenas a falta de assistência médicohospi 37 os três elementos constitutivos de um movimento social a definição do próprio setor social de seu adversário e do campo de disputa de seu conflito encontramse simultaneamente separados uns dos outros desintegrados e invertidos o que leva a uma ação mais expressiva do que instru mental segundo o vocabulário clássico da sociologia a defesa de interesses específicos a luta contra os empregadores ou mesmo contra a política urbana é que impedem o espírito comunitário de fecharse sobre si mesmo e permitemlhe contribuir para a formação de movimentos sociais Porém os movimentos comunitários que se formam nas cidades e ainda é necessário sublinhar a sua fragilidade e sua fragmentação permanecem antes de tudo no domínio dos movimentos históricos Isto quer dizer que o seu interlocutor é mais o Estado do que uma categoria social Estado que é adversário e protetor ao mesmo tempo Touraine 198954 cap4pmd 872011 1035 128 129 talar de vacinas a existência de epidemias não controladas pelas autoridades mas principalmente a política de saúde Ou seja acreditamos ter havido um substantivo avanço na conformação da identidade política desses movimentos a partir do momento em que as mazelas da saúde foram vistas como o resulta do das políticas para o setor e também quando o Mops se enfrentou com a política vigente e colocou alternativas próprias a sua formulação já que a ação coletiva não remetia exclusivamente a demandas pontuais mas à política de saúde como geradora das desigualdades na distribuição da saúde No entanto ao observarmos a trajetória histórica do movimento foi pos sível constatar uma fraca articulação social com ausência de expressão política própria O fato de esses movimentos serem formados por moradores das periferias pobres das grandes cidades situou as diferenças a origem dos mo radores a inserção no mercado de trabalho à frente das semelhanças Por um lado foi exatamente isso que lhes instituiu a força e a riqueza dos movimentos gerando pluralidade solidariedade e democracia interna Por ou tro deulhes também a debilidade a incapacidade de se estruturar mais solida mente e conseqüentemente de ter uma influência mais decisiva e permanente nos processos de definição de políticas Neste sentido o Mops encontravase em estágio intermediário tendo em vista que sua atuação não se restringia apenas às demandas específicas de saúde Entretanto ainda não expressava uma categoria social com articulação e expres são política autônomas A seguir ilustramos a caracterização e as principais questões que ocuparam o Mops no período considerado cap4pmd 872011 1035 129 130 Quadro 4 Atuação composição e declínio do Movimento Popular em Saúde 19871992 Principais Atores Famerj Faperj MAB Conselhos de Saúde Associações de moradores locais Associações médicas Movimento Sanitário Cebes Composição Mops Federação de Associação de Moradores Associações de moradores Militantes de partidos e de sindicatos Profissionais de saúde Principais Bandeiras Implantação do SUS Unificação Descentralização Universalização Controle da população dos serviços de saúde Fim das greves médicas Formação dos Conselhos IX Congresso Nacional de Saúde Formas de Atuação Plenárias Nacionais de Saúde Plenárias Estaduais de Saúde Local problemas epidemiológicos Constituição Estadual Partidos políticos nos Conselhos de Saúde Grupos Aliados Movimento Sanitário Cremerj Profissio nais não médicos Partidos políticos Sindicatos Grupos de Oposição Seguros privados Federação Brasileira de Hospitais FBH Associação Brasileira da Indústria Farmacêutica Abifarma O Mops teve desde o período de seu surgimento e no contexto da Refor ma Sanitária brasileira uma atuação intensa e complexa que dificultou a tarefa de avaliar resultados Mas a incidência do movimento na definição da política de saúde esteve estreitamente relacionada aos seguintes pontos capacidade de viabilizar demandas através da ação coletiva desenvolvimento de articulações políticas com outras forças que integra vam o movimento social partidos políticos sindicatos etc capacidade de reação e articulação diante das crises do setor saúde que evidenciavam a omissão do Estado ante os graves problemas epidemiológicos e de funcionamento dos serviços de saúde Sua atuação foi irregular alternando momentos de importante presença no cenário das políticas de saúde e outros mais voltados à discussão interna do movimento que dificultavam a atuação do Mops e o distanciavam dos centros de decisão na implementação da Reforma Sanitária cap4pmd 872011 1035 130 131 As origens do movimento foram marcadas pelo propósito de conseguir uma articulação nacional Entretanto o surgimento a evolução os momentos de crescimento assim como os períodos de desmobilização forma como se estruturou e como levou adiante as propostas políticas especialmente a partir da VIII Conferência Nacional de Saúde e após a aprovação da Reforma Sani tária na Constituição incentivaram a atuação do movimento nos níveis estadual e municipal adquirindo este uma feição de cunho estadual Neste sentido opta mos no estágio de implementação do SUS por estudar o Mops no estado do Rio de Janeiro A questão da saúde sempre esteve presente nos movimentos populares seja entendida como assistência médica ou como condições de vida saneamen to básico incluindo água tratada esgoto etc Seu aparecimento como elemento central de uma forma de organização popular tem início somente a partir de fins da década de 70 O surgimento do Mops coincidiu com dois grandes fatos Primeiro a revitalização do movimento popular como um todo que se deu em meados dos anos 70 sob os primeiros sinais de desgaste da ditadura militar Essa revitalização trouxe à cena política brasileira movimentos diversos com um eixo comum a postergação econômica social e política de crescentes contingentes sociais Outro fator que colaborou para a mobilização popular foi a crise do siste ma de saúde tendo como conseqüência as intermináveis filas para atendimento da população pelo setor público assim como o surgimento de uma proposta de política de saúde alternativa expressa em experiências como Montes Claros Lajes Niterói e outras Procuravase via secretarias de saúde estaduais e munici pais de oposição ao regime militar fazer com que o Estado passasse a investir em cuidados de saúde das populações carentes Nas universidades teve início a crítica ao modelo médico hegemônico so bretudo por seu caráter privado e mercantilista Dessas contestações foram propostos modelos alternativos sendo a medicina comunitária a de maior rele vância quando dezenas de experiências desse tipo começaram a se estender por todo o País Apesar de seu início coincidir com a movimentação no interior da academia e ainda timidamente nos aparelhos de Estado o Mops procurou seguir uma rota independente Essa postura pela organização popular independente como instrumento de conscientização e politização explica o afastamento entre o movimento e as cap4pmd 872011 1035 131 132 políticas de saúde implementadas pelo Estado em torno da formação dos Conselhos de Saúde O que foi refletido pela trajetória e experiência do Mops foi uma atuação nãohomogênea neste sentido Desse modo o MAB seguiu uma linha política tipicamente aliancista em relação às instituições estatais de saúde ainda que mantivesse um discurso de independência e autonomia em relação ao Estado De fato sua ação pesou amplamente na implementação das políticas de saúde na Baixada Fluminense O programa inicialmente chamado SOS Baixada depois denominado Projeto Especial de Saúde na Baixada Pesb foi resultado da mobilização popular e do peso da mesma no processo de implantação da Reforma Sanitária Porém esses projetos tiveram vida curta Paulatinamente deixouse de repassar as ver bas necessárias ao seu funcionamento e finalmente no ano de 1990 o Pesb foi extinto e diluído no aparato da Secretaria Estadual de Saúde Tais fatos tiveram correspondência com o retrocesso político que gerou a modalidade de atuação governamental sustentada no arbítrio do Executivo sem discussão com a sociedade ou com suas entidades representativas De fato a reedição do tradicional autoritarismo que permeou a política brasileira se expressou nos procedimentos de governo utilizados os quais ignoraram a exis tência do Parlamento e se valeram de decretos do Poder Executivo Essa situa ção reforçou ainda mais as dificuldades existentes nas instituições democráticas além da impossibilidade de gerar uma dinâmica democrática sustentada em instituições confiáveis Paralelamente os antigos aliados do Mops nas instituições estatais foram deslocados ocorrendo graves mudanças na condução das políticas de saúde Essas mudanças sinalizaram um desinvestimento na estrutura e no funciona mento dos serviços que começaram a decair com a falta de equipamentos medicamentos e leitos Também os médicos e funcionários se afastaram das unidades de saúde devido à deterioração de seus salários Em tal conjuntura observamos que o MAB por um caminho diverso do da Famerj entrou também em fase de desmobilização o que o levou a se distanciar da cena política Naturalmente o MAB tinha uma expectativa impor tante a respeito do financiamento estatal do Pesb mas o abandono do projeto em lugar de estimular a resistência política deixou a entidade inerte Nessa situação as diferenças políticas no interior do movimento popular voltaram novamente à tona e as discussões de caráter políticoideológico pas saram a ser o eixo do Mops Assim a falta de atuação e de mobilização em cap4pmd 872011 1035 132 133 defesa da efetiva implementação da Reforma Sanitária foi suplantada pela ação para dentro e esta levou progressivamente a um esvaziamento do mesmo Uma nova crise no setor porém possibilitou uma vez mais a postergação das diferenças internas no encaminhamento conjunto do Mops Houve funda mentalmente um ponto de encontro importante entre o movimento popular e o movimento médico particularmente pela atuação do Cremerj que fez uma convocação no fim de 1989 para a luta conjunta em defesa da política reformadora de saúde Desse modo o Mops voltou a estar presente na cena política exigindo a intervenção do Estado através de medidas regulatórias que aliviassem a situação de pane em que tinham se envolvido os hospitais do município e da Previdência Social no estado do Rio de Janeiro As crises no setor saúde foram desencadeadoras da organização e da atu ação do Mops fossem elas alimentadas pela inoperância e pela ineficiência do sistema de saúde fossem pelas graves epidemias que afetavam reiteradamente a população especialmente as camadas mais pobres Consideramos que tais crises se situavam no campo das necessidades soci ais básicas Elas foram um mecanismo de disparo em múltiplas direções devi do à ameaça que representavam à estabilidade relativa dos sistemas produtivos e à ordem social mínima que os mesmos requeriam para se reproduzirem ou ainda devido à epidemia ou à impossibilidade de o sistema de saúde conseguir prestar assistência aos doentes Tratavase em ambos os casos da doença sofri da de maneira coletiva ou dito de outra forma de uma situação na qual a população se via obrigada a usufruir de um mal público Por fim a trajetória do Mops mostrou que sua atuação foi profundamente marcada pela presença insuficiente do Estado ou por sua ausência de interven ção na situação de saúde da população No entanto ainda que o Estado tivesse falhado estrategicamente na consecução desse objetivo havia uma dinâmica constitutiva e constituinte na relação dos movimentos populares com ele No caso os movimentos reagiram a sua omissão se articulando e desenca deando a ação coletiva que lhes proporcionou existência concreta o que por sua vez obrigou então o Estado a tomar algum tipo de iniciativa intervencionista Em conseqüência observamos que no momento em que o Movimento Popular em Saúde tentou resolver a contradição com o Estado desconhecendo a existência deste isto é eliminando um dos termos da contradição sobre veio a paralisia política cap4pmd 872011 1035 133 134 A eliminação do Estado não passou de discurso da facção radical do movimento De fato não só o Estado continuou existindo mas o feitiço virou contra o feiticeiro A resultante desse procedimento foi a exclusão de seus interlocutores políticos os organismos estatais da saúde o movimento sanitário qualificado como dos tecnocratas da saúde e por último aquela parte que conservava uma posição política diversa Podese afirmar então que o Mops teve papel principal no encurtamento da distância entre a esfera privada social e a esfera pública ordem política incidindo marcadamente na formulação das políticas de saúde Contudo ape sar das diferenças internas do movimento em relação à Reforma Sanitária os avanços que esta alcançou se devem em grande parte ao papel que a mobilização popular e as lideranças exerceram pressionando o Estado a atuar em tudo o que se relaciona às condições de saúde da população Acreditamos assim que no difícil percurso da democracia brasileira o papel que o Mops possa vir a desenvolver seja determinante na implementação da Reforma Sanitária cap4pmd 872011 1035 134 135 5 O Movimento Médico composição e trajetória 19761990 A denominação Movimento Médico conferida à atuação do conjunto das entidades médicas obedeceu ao leque de atribuições atividades e aspectos diversos que estas comportavam a representação sindical a regulação da pro fissão médica e a reprodução informação e difusão da informação técnico científica É preciso ressaltar ainda que durante o período estudado 1976 1990 a atuação das entidades médicas foi complementada por formas de atuação política que se constituíram numa modalidade particular de representa ção dos interesses médicos As características das entidades médicas o importante grau de institu cionalização das associações e as diversas modalidades de sua atuação cuja trajetória será considerada neste capítulo possibilitarão compreender a enor me distância existente entre estas e as entidades que compuseram o Movimento Popular em Saúde assim como também sua inclusão dentro do que considera mos Movimento Social em Saúde Inicialmente foi possível constatar a existência de uma certa indiferenciação nas funções desempenhadas pela Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro SMCRJ e pela Sociedade Médica do Estado do Rio de Janeiro Somerj duas entidades de caráter privado sem vinculação com o estado e com atividades voltadas para o terreno técnicocientífico onde aliás a SMCRJ tem reconhecida tradição Filiadas à Associação Médica Brasileira AMB ambas seguiram linhas políticas similares a esta tendo portanto grande penetração nas correntes médi cas ditas neoliberais notável nos últimos anos da década de 80 constituindose também em importantes centros de defesa do corporativismo médico À Somerj filiavamse entidades de âmbito municipal não sendo esta filiação de caráter compulsório Quanto à diretoria era eleita diretamente pelo voto de cap5pmd 872011 1036 135 136 todos os associados a ela filiadas Em 1983 por exemplo foram em número de 20 as entidades que se filiaram tendo esse total se elevado para 28 em 1989 Essa filiação era feita de forma individual ou através das sociedades filiadas conveniadas contando com 4060 filiados em 1983 e com 6530 em 1989 Em relação ao Conselho Regional de Medicina Cremerj e ao Sindicato dos Médicos SinMed eram entidades vinculadas ao estado através do Minis tério do Trabalho Tinham portanto funções definidas por este e contavam como se sabe com uma legislação corporativa Todavia ainda que estivessem inseridas na estrutura corporativa estatal desempenharam importante papel político na defesa do sistema público de saúde voltado ao atendimento das populações necessitadas Considerandose o controle exercido pelo estado sobre o Cremerj e o SinMed as funções que estas assumiram em defesa da categoria podem ser consideradas conquistas efetivas oriundas das diretrizes políticas assumidas a partir do final da década de 70 e durante a década de 80 As funções de caráter institucional atribuídas ao Cremerj eram dirigidas à regulação e à supervisão da prática médica A eleição do Conselho realizada diretamente por médicos credenciados com exceção dos que eram militares ocorria de cinco em cinco anos A diretoria era indicada anualmente pelo Con selho Em 1983 o Cremerj contava com 28889 filiados e em 1989 com 37 mil Com relação ao SinMed qualquer médico diplomado é admitido Sua diretoria era eleita a cada dois anos por todos os médicos com pelo menos seis meses de filiação e diplomados há mais de dois anos Enquanto em 1983 o número de filiados era de 7 mil em 1989 aumentou para 13800 O Cremerj esteve sob intervenção do Conselho Federal de Medicina CFM no período compreendido entre 1978 e 198338 após o qual vem elegendo diretorias bastante homogêneas no que tange à sua posição crítica ao sistema de saúde vigente defendendo as propostas de unificação do sistema de saúde sob responsabilidade do Estado No plano específico da categoria médica essas diretorias eram também bastante críticas quanto aos interesses de caráter individualista privatista e corporativista que se tornaram mais fortes a partir do fim da década de 80 Desse modo a entidade teve um destacado papel na busca de contato mais 38 A intervenção no Cremerj obedeceu ao fato de que a chapa Renovação e Unidade formada por profissionais afinados com a concepção de reformulação do sistema de saúde ganhou as eleições com mais de 75 dos votos e em aberta oposição ao regime militar e ao Ministério do Trabalho cap5pmd 872011 1036 136 137 estreito com o Movimento Popular em Saúde É importante ressaltar que essa homogeneidade na condução política da entidade poderia estar relacionada à baixa rotatividade na composição do Conselho renovada a cada ano É provável que o SinMed tenha sido a entidade que mais se manteve fiel às funções de representação dos interesses profissionais dos médicos estabeleci dos legalmente no período estudado enquanto a SMCRJ a Somerj e mesmo o Cremerj estenderam em muito suas funções originais definidas estatutariamente chamando para si a tarefa de defesa dos interesses da categoria e da participa ção na discussão dos destinos da área de saúde no País Ainda que sob orientações políticas diversas e em diferentes graus observa mos que o SinMed priorizou a partir de 1983 a atuação no terreno estritamente sindical diferentemente do período compreendido entre 1976 e 1983 Neste a entidade havia se tornado a liderança política hegemônica da categoria médica conduzindo a discussão política do setor saúde no estado do Rio de Janeiro A mudança na atuação do sindicato deveuse a uma reorientação de ca ráter corporativo nas chapas sindicais sem que tivesse havido alterações na conformação das diretorias nos anos recentes já que estas eram compostas praticamente pelas mesmas pessoas que delas faziam parte no período áureo do sindicato A diversidade de associações que articulavam a categoria médica e a variação da atuação tanto política como profissional das mesmas apontaram algumas reflexões teóricas iniciais a respeito do papel dos médicos e de suas entidades no processo de formulação e implementação das políticas de saúde a serem explo radas no transcorrer deste capítulo A denominação Movimento Médico não parece inteiramente ajustada à maneira clássica em que têm sido compreendidos os movimentos sociais As formas de articulação profissional assim como a atuação dos médicos e das instituições de assistência médica em relação às políticas de saúde e ao Estado sofreram importantes variações no período estudado Em relação à composição o Movimento Médico foi multifacetado inclu indo as várias associações profissionais e uma relação orgânica dos seus mem bros na defesa de interesses corporativos da classe médica Assemelhase bas tante às antigas corporações e conta com uma unidade e com um sprit the corp comparável à corporação militar Formada por diversas entidades dotadas de larga existência com funções bem diferenciadas nos vários planos em que se desenvolve a vida do profissional médico cap5pmd 872011 1036 137 138 No que concerne à sua atuação o Movimento Médico demonstrou ser bastante complexo Na década de 70 particularmente em seus derradeiros anos as associações médicas tiveram uma atuação política especialmente intensa o que justifica amplamente a denominação movimento médico Não se preten de afirmar que ela tenha sido exclusiva muito pelo contrário O que se quer frisar é que foi predominante tendo ocupado o segundo plano a atuação de caráter profissional eou sindical dos médicos No entanto a década de 80 acentuou a face reversa da atuação médica marcada pela atuação profissional e corporativa dos médicos e expressa também em graus diversos pelo conjunto das entidades médicas Dois eixos temáticos parecem de importância singular para a análise da atuação da categoria em relação às políticas de saúde a corporação médica a representação dos interesses médicos ante as políticas de saúde do Estado A corporação médica é composta por algumas instituições datadas do século passado como é o caso da SMCRJ e da Associação Médica Brasileira AMB Elas se sustentaram sobre um código de exercício da profissão médica fortemente compartilhado e respeitado pelo conjunto da categoria envolven do sigilo profissional liberdade de eleição do assistente por parte do paciente liberdade de prescrição autonomia do trabalho médico pagamento direto da consulta médica Caro 1969 Essas questões conformaram o ideário médico em torno do exercício liberal da medicina No entanto o pertencimento à corporação não implicava nem a existência de uma organização hierarquizada nem a obrigatoriedade no cumprimento de regras de comportamento estabelecidas pela corporação exceto as que se referiam ao Código de Ética Médica e que regulamentavam o exercí cio da profissão sem interferirem na relação dos médicos com as associações Ainda que esses princípios tenham perdido vigência ou então se adequado às mudanças no sistema de saúde e conseqüentemente ao processo de trabalho e de exercício da profissão médica nos últimos 20 anos outorgavam unidade e identidade à categoria Neste sentido diferentemente de qualquer outra profis são liberal a unidade e identidade de princípios existência de um código médico fizeram da categoria médica um tipo singular de corporação A primeira conseqüência ao se considerar a categoria médica como corporação é a de não aceitação de regras externas à mesma na definição de cap5pmd 872011 1036 138 139 padrões de intervenção terapêuticos processos de trabalho e remuneração Sig nifica que os processos de adaptação às mudanças nas políticas de saúde basicamente a mercantilização da medicina a perda da autonomia e o assalariamento médico acarretaram forte resistência no que diz respeito às tentativas de defesa do ideário da medicina liberal Apesar de haver mudado a inserção profissional desde o exercício liberal da medicina ao assalariamento o médico continuou a se considerar possuidor do poder que lhe conferiu o saber e que se mantém ao longo do tempo resguardado de interferências alheias à relação médicopaciente Um dos traços significativos da política de saúde na década de 70 está relacionado à privatização e à capitalização do setor sustentado pelo modelo da medicina previdenciária o que teria provocado profundas mudanças no tipo de inserção profissional dos médicos A acumulação capitalista desse setor número mais elevado de intervenções médicas significou crescimento desme dido dos lucros do setor privado conveniado com a Previdência Social fezse acompanhar de profundas mudanças na inserção profissional do médico Hou ve massificação do trabalho médico assalariado do setor públicoprivado ten do estes mantido simultaneamente formas paralelas de inserção no mercado de trabalho seja como profissional liberal autônomo ou proprietário de clínicas ou hospitais Donangelo 1984 Em 1970 por exemplo o setor de assistência médicohospitalar emprega va 448 dos médicos enquanto em 1980 já empregava 62 dos que se en contravam em atividade A porcentagem destes em relação aos que trabalha vam de maneira autônoma se ampliou durante o período em 1970 foi regis trado 6535 de médicos empregados e 3205 de autônomos ao passo que em 1980 esse índice se elevou para 6733 de empregados e conseqüentemente caiu para 2458 de autônomos Medici 198739 No transcorrer da mesma década o salário do médico empregado sofreu importante diminuição tal como ocorreu com as demais categorias profissionais De acordo com Medici 1987 essa redução de rendimentos médicos ou sua proletarização pode ter ocorrido em virtude da redução do padrão sala rial e não pela redução da renda real Isso pode ser explicado pela múltipla inserção desses profissionais Dito de outro modo tais mudanças obrigaram os médicos a ter dois ou três empregos a fim de evitar o empobrecimento Todavia 39 A porcentagem restante nas duas datas consideradas corresponde na tabela original à categoria outros setores Planejamento I Recursos Humanos em Saúde RI Textos de Apoio PECEnsp Fiocruz 1987 cap5pmd 872011 1036 139 140 essa múltipla inserção resultou na depreciação da atividade falta de tempo para estudar diminuição da responsabilidade médica no local de trabalho cres cimento dos erros médicos e também na extensão das lutas salariais da categoria Por conta disso o trabalho médico na área assistencial ou previdenciária inclinouse à tendência em se tornar cada vez mais especializado a relação mé dicopaciente foi intermediada pela instituição e a utilização da tecnologia médi ca intensificouse assim como a medicalização De fato ocorreu uma perda da autonomia dos médicos no processo de trabalho o que afetou os próprios princípios da medicina liberal visto que as instituições assistenciais passaram a interferir diretamente no trabalho do médico A resistência dos médicos às transformações no processo de trabalho ao assalariamento maciço e à proletarização da categoria não se fez esperar Já na metade da década de 70 a corporação médica nucleada em torno da chapa Movimento de Renovação Médica Reme que vinha conquistando as direções das entidades médicas começou a ter singular importância no âmago da cate goria médica Ainda que o Reme tivesse nítida orientação de esquerda adquiriu penetra ção nas instituições médicas e iniciou um movimento de oposição de caráter político e sindical ao regime militar Devido principalmente à atuação política das entidades médicas com o apoio conjunto da categoria as instituições médi cas sofreram fortes pressões do regime militar que no caso do Cremerj desig nou uma junta interventora do Ministério do Trabalho para destituir as direções eleitas por seus membros em 1978 A representação de interesses da categoria médica requer discussão adicio nal E surge a interrogação pelo fato de a categoria médica ter uma estrutura organizacional assemelhada às antigas corporações poderíamos deduzir que ela defende seus interesses apenas sob uma modalidade corporativa A representação de interesses dessa maneira corporativa implicaria neces sariamente o controle de seus membros por parte das entidades médicas so bre seus membros e também a institucionalização de certos canais formais de relacionamento com o Estado nos processos de formulação de políticas Dife rentemente a reformulação do sistema de saúde resultou das pressões políticas conjuntas das associações médicas dos movimentos populares e do Movimen to Sanitário onde um processo de acumulação de forças sociais e de luta no terreno político com um projeto definido para o setor saúde junto de uma cap5pmd 872011 1036 140 141 definição estratégica impôs profundas reformas ao Estado no campo das po líticas de saúde Poderseia interpretar a forte reação política da corporação médica como provocada pelos interesses médicos afetados pelas políticas de saúde do regime autoritário Todavia não existiu no período nenhum canal institucionalizado por parte do Estado para representação dos interesses médicos Acreditamos portanto não ser conveniente pensar a representação de inte resses médicos na década de 70 como sendo de caráter corporativo Castro 1989 nem que o poder e a identidade da corporação médica encontrava su porte material na produção de equipamentos insumos medicamentos e fármacos Vianna 1987 Tal observação seria válida enquanto tendência geral na constituição do poder médico mas é inadequada ao se referir ao processo que atravessou a categoria médica na mencionada década Muito ao contrário enquanto a identidade da corporação médica se ba seou nos princípios da medicina liberal as transformações do sistema previdenciário de saúde na década de 70 mudaram profundamente o pro cesso de trabalho médico levando a categoria a enfrentar a política de saúde dominante De fato a medicina previdenciária sustentada na assistência hospitalar e no complexo médicoindustrial tecnologia e fármacos levou a amplas mudanças na relação médicopaciente no processo de trabalho e no papel social do mé dico tudo isso sob grande resistência dos médicos Após essas considerações caberia distinguir as formas de representação de interesses assim como fazer uma nova leitura teórica sobre as modalidades da corporação médica em representar os interesses da categoria já que estas mo dalidades mudaram no período aqui analisado Poderíamos nos aproximar de uma definição de representação de interes ses a partir da idéia da associação de pessoas que têm uma ou várias caracterís ticas comuns ao conjunto das mesmas e que aspiram a influenciar nos processos de políticas específicas que estejam relacionadas com aquilo que é comum ao grupo de interesse De maneira geral a bibliografia sobre o tema consultar Schmitter 1992 e Offe 1989 estabelece uma primeira grande distinção entre a representação plural de interesses e a representação corporativa Schmitter 1992 afirma que no pluralismo o tipo de determinação de interesses é múltiplo disperso não hierárquico e voluntário enquanto no caso do corporativismo se trata de uma cap5pmd 872011 1036 141 142 modalidade de determinação de interesses que é basicamente singular concen trada funcionalmente diferenciada hierárquica e obrigatória40 A notável síntese elaborada por Schmitter corresponde a tipos ideais de representação de interesses De fato a relação entre intermediação de interesses e modos de formação de políticas adquire especificidade segundo os países e de acordo com processos históricopolíticos singulares o que necessariamente implica gradações diversas no exercício real da representação de interesses que podem por vezes aproximarse ou distanciarse desse tipo ideal Offe 1989 acrescenta quatro dimensões do conceito de corporativismo relacionadas ao status formal dos grupos de interesse status de recursos quando o Estado provê de recursos as organizações de representação de interessessubsídios isenções fiscais filiação compul sória acesso aos meios de comunicação controlados pelo Estado status de representação quando o alcance da representação é definida pelo Estado áreas em que esta pode operar região número de filiados posição status de procedimento quando são reguladas as relações internas entre membros e direções status de procedimento quando as organizações são reconhecidas para assumir junto a um conjunto específico de participantes um papel na legis lação no sistema judiciário no planejamento e na implementação de políti cas Isso é definido em contraposição a relações de cooperação informal Tratase portanto de um status definido por lei ou de regras de procedi mento formalmente adotadas Tanto na compreensão de Schmitter como na de Offe a representação corporativa de interesses supõe alguma forma de concertação na formulação da política Constitui uma das várias formas de se resolver nas sociedades de de mocracia avançada o conflito entre uma multiplicidade de interesses e a ameaça 40 el tipo de determinación de interés múltiple disperso no jerárquico y voluntario es decir el pluralismo y el tipo singular concentrado diferenciado funcionalmente jerárquico y obligatorio es decir el corporativismo Una hipótesis obvia es que existe una compatibilidad estructural o afinidad selectiva entre el comproativismo y la concertación y entre el pluralismo y la presión En el primero los intereses afectados por muy organizados que sean quedan incoporados al proceso político como negociadores reconocidos e indispensables y son corresponsables y en ocasiones totalmente responsables y em ocasiones totalmente respnsables de la aplicación de las decisiones políticas que entonces adoptan una calidad caracteristicamente semipública o paraestatal En la última los interesses afectados quedan esencialmente fuera del proceso político como consultores o combatientes en las cuestiones que se trate y la aplicación ocurre exclusivamente bajo la responsabilidad de las autoridades públicas por muy influenciadas que puedan estar por las acciones autónomas de los intereses organizados en el curso de sus actividades Schmitter 1992 cap5pmd 872011 1036 142 143 freqüente de polarização dos mesmos que pode conduzir à ingovernabilidade Tratase de uma maneira de canalizar os interesses que não leve as forças sociais e os governos a um jogo de soma zero Se observarmos a corporação médica sob tal perspectiva podemos então refletir sobre a distinção aqui considerada Por um lado ela é composta por diver sas entidades das quais unicamente duas têm status público o Cremerj e o SinMed São reconhecidas pelo Estado mas de seu controle que caracterizara a década de 70 conseguiram se desvencilhar a partir dos anos 80 com o avanço do processo de democratização do País tendo então adquirido forte autonomia Por outro lado as demais entidades AMB Somerj SMCRJ de caráter privado ainda que institucionalizadas e regulamentadas quanto aos procedi mentos internos composição das diretorias eleições periódicas cursos e ou tras atividades de caráter científico não possuem status público Historicamen te exerceram o papel ideológico de aglutinar os médicos sob aqueles princípios tradicionais da medicina oferecendolhes atualização científica Também exer ceram o papel de representação dos interesses médicos quando ameaçados pela intervenção do Estado ou quando afetados por políticas específicas Com relação à representação dos interesses médicos fizemos referência a dois momentos bem diferenciados na atuação dos médicos Um primeiro na década de 70 em que a atuação médica teve um componente precipuamente político de oposição à ditadura militar às políticas de saúde implementadas naquele período e à intervenção militar nas entidades médicas Em conseqüência da oposição a essa intervenção sobretudo houve imediata solidariedade das outras entidades além de uma atuação conjunta com a caracte rística de ser pluralista inorgânica e de pressão política sobre o regime militar Neste sentido o processo de reformulação do sistema de saúde foi o resultado da imposição das forças sociais em saúde entre estas o Movimento Médico que através de uma representação de interesses de caráter pluralista colaborou na produção de mudanças concretas no delineamento das políticas de saúde Um outro momento referente à segunda metade dos anos 80 caracterizado pelo avançado processo de democratização do País teve como eixo no setor saúde em 1988 a Reforma Sanitária foi estabelecida na Constituição a implan tação do novo modelo políticosanitário que embora obtendo o apoio da maio ria envolvida com esse setor necessitava ainda passar do papel à realidade O projeto não se concretizou até hoje alternando avanços e retrocessos atribuíveis por um lado às dificuldades do processo e por outro ao fato de ser cap5pmd 872011 1036 143 144 justamente o momento da implementação quando a diversidade dos interesses médicos relativos às diversas formas de inserção da categoria médica no mer cado de trabalho incrementou ainda mais as dificuldades no andamento da Reforma Sanitária Nesse aspecto registramos notáveis transformações na atuação do Sindi cato Médico em direção à representação corporativa dos médicos que não chegou a ser institucionalizada e que conseqüentemente não se encaminhou a um modelo de concertação de políticas A atuação do SinMed se aproxima ainda que não completamente ao modelo italiano de relações entre Estado e sindicatos em que se estabelecem formas de colaboração pelas quais represen tantes sindicais participam em organismos públicos ou em juntas de diretores mesmo que as consultas na formação da política sejam de caráter informal e constante Regini 1992 No caso do SinMed apenas algumas vezes houve consultas informais entre governo e sindicato como no concurso público no Hospital da Posse a ser discutido adiante A combinação das tipologias analisadas possibilitará estabelecer relações entre modalidades de representação de interesses e tipo de organização das entidades médicas no período considerado visualizadas a seguir Quadro 5 Representação de interesses e tipos de organização médica 1976 1986 Representação de Interesses Plural Corporativa Status Público SinMedCremerj Status Privado SomerjSMCRJ Quadro 6 Representação de interesses e tipos de organização médica 1986 1992 Representação de Interesses Plural Corporativa nãoinstitucional em relação ao Estado Status Público Cremerj SinMed Status Privado SomerjSMCRJ cap5pmd 872011 1036 144 145 Se nos Quadros 7 e 8 considerarmos as relações entre representação de interesses formação de políticas e tipo de organização médica observaremos que em nenhum dos períodos examinados houve concertação da maneira como esta foi compreendida pela reflexão teórica mais recente sobre o corporativismo discutida anteriormente Quadro 7 Representação de interesses formação de políticas e tipos de orga nização médica 19761986 Quadro 8 Representação de interesses formação de políticas e tipos de orga nização médica 19861992 Status Público SinMed Cremerj Status Privado SomerjSMCRJ Representação de Interesses Plural Corporativo Status Público Status Privado Pressão Concertação A tipologia de representação de interesses desenvolvida por Lange Regini 1987 relacionou interesses e instituições no processo de formação de políticas ante a consideração do grau de exclusãoinclusão dos interesses organizados apud Castro 1989 No primeiro caso a exclusão seria uma típica modalidade dos regimes totalitários a inclusão corresponderia ao máximo grau de concertação e resultaria na delegação de funções públicas a governos priva dos Streek Schmitter 1992 Tal distinção permite considerar gradações ou diferenciações na inclusão exclusão dos interesses médicos na formação de políticas do regime autoritário e no processo de democratização Isso remete à dificuldade em criar procedi Status Público Cremerj SinMed Status Privado SomerjSMCRJ Representação de Interesses Plural Corporativo não institucional Status Público Status Privado Pressão Concertação cap5pmd 872011 1036 145 146 mentos políticos mais adequados de representação de interesses médicos no processo de implantação da Reforma Sanitária dificuldade esta observada hoje no estabelecimento do regime democrático Tratase de obstáculo que se inscre ve nas instituições estatais de saúde especialmente na corporação médica Diferenciações ou gradações da representação de interesses da corporação médica estão relacionadas à diversidade de inserções profissionais dos médicos no mercado de trabalho Os médicos tanto do serviço público quanto do privado são trabalhado res assalariados agrupados pelos sindicatos e em condições relativamente simi lares às das demais categorias Contudo quando ocupam cargos técnicos ou de direção nos organismos estatais sejam estes de aplicação de políticas ou de serviços de saúde fazem parte da tecnoburocracia de Estado com autorida de e poder de decisão sobre a alocação de recursos gestão e procedimentos do sistema de saúde e também com interesses profundamente associados aos das instituições e políticas estatais Se considerarmos agora os médicos proprietários de clínicas e hospitais notamos que representam os interesses do setor privado e que tiveram no período do regime autoritário influência na tecnoburocracia de Estado através de mecanismos de pressão e orientação denominados de anéis burocráticos por Cardoso 1975 A entidade que os representa é a Federação Brasileira de Hospitais FBH que congrega empresários da saúde Todavia na medida em que uma grande proporção de pequenas clinicas e hospitais são de propriedade de médicos e tendo em vista que a concepção desses proprietários em termos de prática médica não se distancia da categoria como um todo acreditamos que devem ser considerados como uma das formas de inserção profissional dos médicos Por fim a designação de médico liberal ou autônomo já não significa muito mais que uma categoria em extinção Embora possa corresponder ao exercício médico no consultório privado é uma modalidade quase desapareci da Atualmente os médicos com consultório particular em sua grande maioria são conveniados com o setor privado Nesse caso a forma de representação de interesses se sustenta mais que em qualquer outra forma de inserção profissio nal na defesa dos princípios da medicina liberal Essa modalidade oculta o assalariamento médico sob a forma do exercício liberal da profissão reduzida à formalidade conceitual cap5pmd 872011 1036 146 147 Do resultado dessa diferenciação ocupacional dos médicos poderiamos estabelecer relações entre as modalidades de inserção profissional e o tipo de representação de interesses Quadro 9 Tipo de inserção profissional e representação de interesses 1976 1986 Tipo de Inserção Profissional Assalariamento Liberal ou autônoma Tecnoburocracia Proprietário clínicahospital Plural Sim Sim Não Não Corporativa anéis burocráticos ou círculos de pressão Não Não Sim Sim Quadro 10 Tipo de inserção profissional e representação de interesses 1986 1992 Tipo de Inserção Profissional Assalariamento Liberal ou autônoma Tecnoburocracia Proprietário clínicahospital Plural Não Sim Sim Não Corporativa nãoinstitucionalizada Sim Não Não Sim A formação de políticas de democratização e de construção de uma institucionalidade democrática tendeu a ser exercida pela via da pressão política Configurouse uma situação na qual os atores sociais cujos interesses haviam sido postergados no regime militar almejaram a obtenção ou a compensação de benefícios através da pressão popular o que poderia inviabilizar a democra cia considerando que inexistia tradição de negociação tanto no Estado quanto nas forças políticas conflitantes As diferenças políticas substantivas não faziam parte do jogo político uma vez que o regime autoritário operara pela via da exclusão de interesses conside cap5pmd 872011 1036 147 148 rados incompatíveis com seus lineamentos políticos e econômicos A constru ção da institucionalidade democrática requereu a incorporação de mecanis mos de negociação na decisão e na implantação de políticas mas enfrentou dificuldades Por um lado a ausência de uma prática de negociação política levou a que fossem considerados os mecanismos de pressão a única maneira de viabilizar interesses sem negociação entre as partes envolvidas De fato a possibilidade de incorporação de interesses estava diretamente relacionada à força política e aos recursos do grupo sem modalidades preexistentes apropriadas à discussão en tre as forças conflitantes e o governo Nessa circunstância os governos tendiam a dar a uns e a tirar de outros conforme a intensidade da pressão e dos com promissos políticos em jogo Diríamos que o uso reiterado da pressão política dificulta a constituição de instituições estáveis bem como de mecanismos de negociação política compatí veis com um governo democrático Essa maneira de lidar com interesses conflitantes leva necessariamente à desestabilização política permanente a não ser que o go verno disponha de suporte político necessário para enfrentar o embate entre in teresses através do reconhecimento e autoridade suficientes para conduzir de maneira mais isenta as negociações Isso dificilmente poderia ocorrer com as características atuais da sociedade brasileira e do seu sistema políticopartidário Criouse por outro lado uma modalidade de formação de políticas combi nada com uma maneira particular de exclusãoinclusão de interesses via regime autoritário que ODonnell 1975143 denominou corporativismo bifronte e segmentado o qual dificilmente pode ser expulso do domínio do Estado Neste haveria ocupação do Estado por parte de grupos dominantes na sociedade grande capital e profissionais de alta renda sem a preocupação de mediar nem a representação corporativa de interesses nem formas de concertação de políti cas Também haveria intervenção ou controle do Estado pela força ou através de legislação impeditiva do desenvolvimento de entidades da sociedade civil repre sentativas de interesses da classe operária ou de classes subalternas A primeira dessas formas de corporativismo instalouse nos aparelhos institucionais do Estado e estabeleceu uma colonização inversa àquela que Schmitter atribui ao neocorporativismo ainda que às vezes com resultados semelhantes As greves dos médicos como única forma de canalizar os interesses da categoria se constituíram numa modalidade de competição política extrema mente frágil já que só se podia observar a exacerbação da representação cap5pmd 872011 1036 148 149 corporativa da categoria à medida que seus interesses eram diretamente afeta dos pela política Quando a política não os afetava o que se observava era a omissão Essas são questões a serem retomadas adiante As Entidades Médicas e aaaaa Política de Saúde O objetivo deste tópico é analisar a atuação do conjunto das entidades mé dicas que denominaremos de Movimento Médico com relação à formação das políticas de saúde As entidades médicas fundamentalmente o SinMed tiveram atuação política destacada no processo de democratização do País no período de 1976 a 1986 propugnando por uma nova estrutura para o setor saúde cuja maior expressão foi a VIII Conferência Nacional de Saúde com a respectiva proposta de reformulação do sistema a Reforma Sanitária brasileira Produziramse amplas mudanças na atuação e no posicionamento político do Movimento Médico posteriormente a 1986 na fase de implementação da Reforma Sanitária O comportamento político de oposição ao regime militar que caracterizou as entidades médicas na transição à democracia assim como sua inserção no processo de reformulação do sistema de saúde cedeu lugar a uma atuação dirigida à defesa dos interesses econômicoscorporativos dos médicos ou seja à revalorização do exercício liberal da profissão médica e à readequação das agendas e questões das entidades médicas a seguir analisadas aos novos rumos da política em anos recentes A organização temática desta seção terá como eixo a recuperação das ques tões relevantes na articulação política do movimento e de sua atuação no tocan te às políticas de saúde Ainda que o trabalho de pesquisa tenha dado ênfase ao período que se estende de 1976 a 1992 o ordenamento da exposição subdivi diuo em dois um de 1976 a 1986 outro entre 1986 e 1992 para melhor visualização das diferenças na trajetória do movimento desde seu surgimento até a década de 90 O período compreendido entre 1976 e 1986 foi marcado pela presença política do Movimento Médico tanto nas lutas específicas da categoria pelos direitos trabalhistas quanto nas críticas ao Sistema Nacional de Saúde vigente à época e também pela participação dos médicos no processo de democra tização do País O movimento começou a tomar corpo com a criação da chapa denomi nada Movimento de Renovação Médica Reme formada por médicos do Rio cap5pmd 872011 1036 149 150 de Janeiro e de São Paulo com vistas a concorrer às eleições de todas as associ ações médicas Alcançou influência política na categoria a partir de 1977 quan do venceu as eleições do sindicato dos médicos no estado do Rio da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Estado do Rio e da AMB e se expandiu para a maioria dos estados brasileiros Uma vez consolidado o Movimento Médico levou adiante a luta política pela democratização em oposição ao regime militar influenciando intensamen te as associações profissionais de classe média que proliferavam nas grandes cidades do País No que tange à luta sindical dos profissionais de saúde o Reme liderou as greves dos médicos e residentes tendo estas se expandido considera velmente em todo o território nacional a partir de 1978 reivindicando melhores salários redução da carga horária e melhoria das condições de trabalho A intensa mobilização nesse período decorria na realidade das modifica ções realizadas na área da saúde as quais haviam acarretado um assalariamento generalizado da categoria médica fazendo com que esses profissionais tradi cionalmente liberais acorressem massivamente ao vínculo empregatício no se tor públicoprivado da saúde Desse modo o Reme interpretava as dificuldades da categoria resultantes das novas formas de inserção profissional tendo utilizado as greves e o fortale cimento do sindicato como instrumento de luta e de reivindicação das deman das médicas Apresentouse como defensor dos médicos assalariados propugnando formas de luta e de atuação típicas destes Procurou simultanea mente transcender as lutas de cunho corporativo ao mobilizar a categoria tanto para a reformulação do Sistema Nacional de Saúde como para a participação nas lutas mais gerais pela democratização do País Com essa política questionavase o ideário tradicional de autonomia do médico de consultório vigente na medicina brasileira ideário este hegemônico nas instituições médicas da época Essa era a questão mais polêmica que permeava o exercício da prática médica e que outorgava identidade à corporação médica independentemente das mudanças que se produziram no processo de trabalho médico O Reme transformouse assim em vertente do Movimento Sanitário41 Este era formado por intelectuais sanitaristas médicos e outros profissionais 41 Ainda que este trabalho não inclua o Movimento Sanitário como objeto específico de análise fazemos freqüentes referências às relações entre o Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico com o Movimento Sanitário na medida em que tais relações nos possibilitam compreendê los melhor cap5pmd 872011 1036 150 151 da saúde coletiva os quais se caracterizavam por práticas políticas teóricas e ideológicas que enfocavam a questão da saúde como questão mais ampla rela cionada ao âmbito da sociedade e da política Escorel 1992 Seu projeto era sustentado em uma ampla crítica ao modelo prevalente baseado no crescimento do setor privado através do financiamento pelo setor público o que levou o sistema público de saúde à falência deterioração inefici ência e crise Oliveira Fleury 1984 Propunha a reversão do modelo traçan do uma estratégia fundamentada em propostas alternativas para o setor as quais tiveram uma relativa penetração nos aparelhos estatais de saúde ao passo que progredia o processo de democratização do País Durante esse período o Reme conseguiu notável desenvolvimento em todas as entidades médicas Em 1978 venceu as eleições também no Cremerj Porém a vitória não foi sancionada pelo Conselho Federal de Medicina diri gido desde 1957 por um grupo conservador caracterizado pela omissão di ante de assuntos ligados à política de saúde como também pelo caráter auto ritário de suas decisões sempre tomadas sem qualquer consulta ao conjunto dos médicos De 1978 a 1983 o Conselho foi dirigido por uma junta interventora o que significou a completa desinformação quanto aos assuntos referidos à Ética Médica atividade prioritária do Conselho além de não apre sentar condições de julgamento dos médicos por infrações éticas visto não possuir diretoria eleita O quadro modificouse em 1983 quando o Tribunal Federal do Trabalho reconheceu a situação de irregularidade quanto ao impedimento da posse da chapa vencedora e decretou a realização de novas eleições A chapa ligada ao Reme denominada Renovação e Unidade obteve 75 dos votos e os resulta dos tiveram de ser aceitos pelo CFM que então já não possuía o espaço político anterior devido ao avanço do processo de democratização Diversas entidades médicas a AMB o CFM a Somerj a SMCRJ tam bém foram conquistadas pelo Reme o que possibilitou a unidade na atuação das associações médicas Mas o SinMed foi sem dúvida a entidade que melhor expressou a ascensão do Movimento Médico no estado tendo se constituído em uma das principais entidades da sociedade civil de oposição e de luta contra a ditadura militar junto com a OAB a ABI e outras O Sindicato dos Médicos teve atuação marcante no período Liderou a categoria em grandes mobilizações pela democratização do País e pelas condi ções de exercício da prática médica Esse papel se explica pela capacidade que cap5pmd 872011 1036 151 152 teve na época de agrupar os médicos de fazer uma releitura dos interesses da categoria a partir das transformações que tinham lugar no mercado de trabalho e de abrir um espaço político para o surgimento do Reme Sua plataforma baseouse precisamente na defesa dos médicos assalaria dos na renovação das linhas políticas das entidades médicas fortemente pre midas pelo regime autoritário e na luta por mudanças políticas em prol da democratização do País Entre 1977 ano da primeira diretoria do Reme no Sindicato e 1983 triplicouse o número de associados pelo Sindicato o que mostra sua decisiva penetração na categoria médica e o fato de ter sabido aproveitar o espaço político que o Cremerj deixou vazio por estar sob intervenção do Ministério do Trabalho Em um dos primeiros números do jornal do SinMed na gestão do Reme a diretoria do Sindicato reivindicou os princípios da ética hipocrática da medi cina com relação à dignidade e à honra no exercício da medicina esquecidos em nome do caráter mercantilista comercial e privatizante que o setor saúde adquiriu com o desenvolvimento capitalista das últimas décadas Afirmavase que a privatização e o empresariamento da área de saúde a existência do mercado e o afã de lucro desqualificam o médico como profissional e o paci ente enquanto usuário É interessante ressaltar que essa questão foi abandonada pelo Sindicato após 1986 Quanto ao processo político geral pós83 o Movimento Médico teve através de suas entidades participação direta na campanha pelas Diretas Já e pelo estabelecimento de uma Assembléia Nacional Constituinte Para tanto além de instalar uma Comissão de Eleições Diretas que coordenou as atividades da entidade e das demais associações médicas nessa campanha o Cremerj deu início também a um programa de fóruns abertos à categoria e à sociedade sobre questões ligadas aos problemas da prática médica Com isso aumentou paulatinamente a consciência da necessidade de modificação no sistema de saúde através de maior participação da categoria Os temas considerados nos fóruns exemplificam os eixos da atuação polí tica do Movimento Médico durante esses anos e tinham como fim repensar a própria prática médica e influenciar nos rumos da política de saúde do País Controle da Natalidade Doenças Infecciosas e Parasitárias Ensino Médico e temas de caráter mais político tais como Serviços de Saúde e Reforma Sanitá ria Código de Ética Médica e Processo Constituinte cap5pmd 872011 1036 152 153 Das outras entidades médicas vale destacar a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Estado do Rio de Janeiro que teve papel fundamental na reorgani zação da Associação Médica Brasileira com a qual organizou o I Congresso Brasileiro de Entidades Médicas Esse congresso contou com a participação de dois mil médicos e discutiu desde temas médicos específicos até a Política Nacional de Saúde Todas as entidades médicas estiveram presentes e também representando as cooperati vas de trabalho médico a Confederação Nacional das Unimeds à qual coube as discussões sobre mercado de trabalho As cooperativas médicas na época foram consideradas uma alternativa à mercantilização da medicina Na verdade tratavase de uma tendência do Mo vimento Médico que a SMCRJ vinha defendendo em todos os documentos da associação desde 1971 Contudo tal questão tendeu a desaparecer no transcor rer da década As cooperativas médicas acabaram se transformando em em presas privadas de seguros de saúde ao mesmo tempo em que começaram a avultar as concepções neoliberais de exercício da medicina Ilustramos com o quadro a seguir as principais características do Movi mento Médico nesse período Faremos ato contínuo uma análise da atuação do Movimento Médico no período de 19861992 tendo por base a agenda de questões consideradas pe las diversas entidades selecionadas a maneira pela qual foram tratadas e as trans formações políticas que se produziram internamente nas próprias associações médicas A ênfase dessa análise recairá nas questões a seguir incorporadas à agenda das associações a Ética Médica a relação com o Estado e o processo constituinte as greves e o corporativismo médico os convênios com o setor privado e o exercício liberal da medicina cap5pmd 872011 1036 153 154 Características do Período Transição à democracia Desgaste do governo militar Crisesucessão presidencial Lei de Anistia Morre Tancredo Neves Nova República Plano Cruzado VIII Conferência Nacional de Saúde Assalariarnento Crescimento do setor privado Composição do Movimento Médico AMB SinMed SMCRJ Cremerj Somerj Unimeds Principais Bandeiras Democratização do País Oposição ao sistema de saúde Melhoria de salários Condições de trabalho lsonomia salarial Reforma Sanitária Formas de Atuação Greves Fórunsseminários Conferências congressos Partido dos Trabalhadores Encontros nacionais Publicações das entidades médicas VIII Conferência Nacional de Saúde Forças e instituições aliadas Movimento Sanitário Movimento Popular em Saúde Partido Comunista Brasileiro Partidos dos Trabalhadores Partido Democráti co Trabalhista Partido Comunista do Brasil Profissionais de saúde NãoMédicos Forças e Instituições Oposição FBH Abifarma Seguros privados de saúde Quadro 11 Caracterização da conjuntura e politização das entidades e das demandas do movimento 19761986 cap5pmd 872011 1036 154 155 A Ética Médica A Ética Médica foi gradualmente adquirindo relevância e se tornou objeto de discussão e de reflexão Passou a constituir o eixo político principal na articu lação da categoria no final da década de 80 Foi por intermédio do Conselho Regional de Medicina que a questão da Ética Médica entrou na agenda do Movimento Médico estimulando a forma ção de comissões de ética nas unidades hospitalares e intensificando a discussão acerca do assunto de modo a elaborar um novo código compatível com a realidade da prática médica no Brasil Essa linha de atuação foi encaminhada tanto nos fóruns de debate quanto nas reuniões das comissões de ética que forneceram subsídios para a formula ção de um projeto de código com a participação da categoria Paralelamente o Cremerj reuniase periodicamente com os Conselhos de outros estados e discu tia propostas para um novo código junto ao Conselho Federal de Medicina Ao término do ano de 1988 mais de cem comissões de ética haviam sido instaladas em hospitais municipais estaduais e da rede do Inamps bem como em hospitais da rede privada Aproximadamente dois mil médicos do municí pio do Rio de Janeiro e do interior do estado participaram ativamente dessas comissões inúmeras vezes entrando em conflito com diretores de hospitais empresários do setor e autoridades42 O Sindicato pela colaboração que deu ao Conselho na tarefa acabou também atuando na formação das comissões de ética nas unidades hospitalares Foi intensa a atividade desenvolvida pelo Cremerj na elaboração de um novo Código de Ética Médica durante o período As discussões em hospitais entidades médicas delegacias regionais e comissões de ética tiveram expressiva participação dos médicos Demonstrava a preocupação em colocar as questões relativas aos problemas enfrentados no trabalho cotidiano dentro da complexa e nova realidade da prática profissional o qual interferiam fatores vários além da relação médicopaciente Enfatizaramse aspectos tais como a relação dos médicos com as instituições de saúde a desumanização do atendimento a ga rantia de exame e a elaboração do prontuário para o paciente assim como a definição de responsabilidades em caso de remoção O anteprojeto do Código de Ética elaborado na Conferência Estadual de Ética Médica acentuava aspectos relacionados às pesquisas em seres humanos 42 Segundo dados fornecidos pela diretoria do Cremerj cap5pmd 872011 1036 155 156 transplantes de órgãos e de tecidos e questões de direitos humanos a serem respeitadas no exercício profissional A proposta do Rio contou com a segunda maior bancada de delegados à Conferência Nacional de Ética Médica No evento inédito na história da medicina do País elaborouse o novo Código de Ética Médica que detalhou e aprofundou as normas éticas ficando bem mais extenso que o anterior Ao se considerar que os médicos são prepon derantemente assalariados inovouse em conceitos como a extensão da res ponsabilidade pelo ato médico à unidade de saúde e a obrigatoriedade do médico em denunciar ao Conselho as más condições de trabalho Igualmente inovador foi o capítulo sobre direitos humanos no qual a prática da tortura foi execrada bem como proibido o envolvimento do médico direta ou indiretamente na execução da pena de morte no caso de ela vir a existir Tais questões entraram no projeto quando a participação de médicos na prática da tortura se tornou conhecida devido aos processos iniciados por organismos de direitos humanos e por familiares dos presos políticos durante o regime militar Outra diretriz inovadora foi a que se referiu à nãomercantilização da medicina Conforme as diretrizes da VIII Conferência Nacional de Saúde o novo código adotou o conceito ampliado de saúde entendendo não como ausência de doença mas como resultante de adequadas condições de alimentação habi tação saneamento educação renda meio ambiente emprego lazer e garantia dos direitos sociais a serem asseguradas pelo Estado etc O novo Código de Ética refletiu as principais aspirações do Movimento Social em Saúde Foi o resultado de anos de debates e reflexões sobre as expe riências da prática médica e da luta dos profissionais em saúde no novo contex to brasileiro constituído a partir da década de 70 Refletiu ainda a vitória das concepções trabalhistas de medicina sobre o ideário liberal da prática médica Em seus princípios fundamentais ligou a atividade dos médicos às condições de saúde e aos padrões dos serviços médicos Dessa forma responsabilizou o médico pelo bom funcionamento do sistema de saúde O papel aglutinador que desempenhou a implantação de Comissões e a elaboração do Código de Ética Médica fez com que o Conselho Regional de Medicina se tornasse o principal órgão de expressão política da categoria lugar anteriormente ocupado pelo Sindicato dos Médicos No entanto o estabeleci mento da democracia no País impôs problemas e desafios que a categoria não conseguiu assimilar nem responder nem mesmo através da elaboração de es tratégias adequadas àquele novo momento políticoeconômico cap5pmd 872011 1036 156 157 A questão da Ética Médica não teve força suficiente para como bandeira de luta política se impor ao conjunto da categoria já que se tratava de uma proposta de caráter marcadamente político na atuação dos médicos Ainda que aprovada e portanto obrigatoriamente respeitada expressou um descompasso entre o Movimento Médico que não mudou sua proposta e a categoria profis sional que defendia propostas de cunho corporativista O momento político relacionado ao estabelecimento de um regime demo crático difere substancialmente do período de transição do autoritarismo para a democracia As questões democráticas durante a transição relacionamse à ampli ação das liberdades políticas fundamentalmente da liberdade de expressão e de organização da sociedade Se às restrições políticas do regime autoritário somar mos as mudanças no sistema de saúde que conduziram a uma pauperização dos profissionais médicos compreendese que a junção da luta política com a luta por melhores condições salariais e de trabalho dos médicos empreendida pelas lide ranças médicas tenha encontrado receptividade na categoria A estratégia seguida pelo Movimento Médico teve por alvo a queda do regime militar e neste sentido houve adequação entre o objetivo e a estratégia para alcançálo centrada no inconformismo da categoria médica com as trans formações no exercício da profissão A consolidação da democracia trouxe como questão principal porém a construção da institucionalidade democrática novos padrões de relacionamen to entre Estado e sociedade e mecanismos políticos que garantissem a discussão ordenada das reivindicações de diversos setores sociais ou seja as condições para impulsionar o processo de mudança Para se estabelecer esse processo enfrentou por um lado a resistência às transformações por parte das elites políticas no Brasil essencialmente a re núncia a benefícios conquistados há bastante tempo e aprofundados com o regime militar Essa resistência evidenciou as dificuldades no Estado brasilei ro Por outro o Movimento Médico deixou de ter atuação política unificada como teve durante a oposição e resistência ao regime militar para expressar as profundas diferenças na categoria médica Os interesses e demandas dos médicos assalariados do setor público daqueles inseridos nos seguros priva dos dos proprietários de hospitais e dos conveniados diferiam e exigiam modalidades próprias de discussão Da perspectiva da sociedade a representação plural de interesses sem ter havido um processo de adequação de formação política das representações cap5pmd 872011 1036 157 158 pela via institucional levou todos a quererem tudo de modo que as demandas reprimidas durante o regime autoritário e expressas simultaneamente produzi ram a tão conhecida situação de ingovernabilidade da democracia Ao tempo que ao apelarem os médicos para greves como principal instru mento de pressão para obter melhores salários e condições de trabalho enfren taram a rejeição dos usuários especialmente do setor público e por extensão a crítica da sociedade à categoria Relação com o Estado e o Processo Constituinte Na década de 70 e na primeira metade dos anos 80 o Movimento Médico caracterizouse por uma atuação relevante no setor saúde no questionamento às políticas de saúde e na elaboração de uma proposta de reformulação do sistema que culminou com a Reforma Sanitária A partir da segunda metade da década de 80 houve um deslocamento da discussão política da Reforma Sanitária para o Sistema Unificado e Descentra lizado de Saúde Suds A Reforma Sanitária era mais ampla que o Suds En quanto a primeira era uma proposta de cunho políticofilosófico a respeito do setor da saúde a segunda era um instrumento administrativo do Estado para encaminhála A implantação do Suds em 1988 guiouse pelos princípios da Reforma Sanitária mas não conseguiu efetiválos Tratouse de uma reforma administra tiva do sistema de saúde na qual o Instituto Nacional da Previdência Social Inamps principal órgão do sistema público de saúde repassou suas unida des segundo a localização às secretarias de saúde de estados e municípios A partir disso as unidades passaram a ser administradas regionalmente tanto na gestão quanto no financiamento O Suds atravessou enormes dificuldades em razão de diversas causas den tre as quais se destacaram o avanço das burocracias locais e a interferência de políticos clientelistas no nível municipal o emperramento dos repasses dos recursos para estados e municípios sem que se conseguisse detectar em que lugar estes desapareciam e os entraves legais e operacionais no funcionamento dos Conselhos de Saúde que obstaculizaram a participação da população na gestão das unidades locais Logo no início da implementação da política de saúde observase um importante retrocesso na proposta da Reforma Sanitária manifesto pela saída cap5pmd 872011 1036 158 159 dos quadros ligados ao Movimento Sanitário dos cargos de direção do Inamps Já em pleno processo de implantação outro aspecto desse retrocesso se refere ao boicote em 1999 do Governo Collor à Reforma Sanitária e às manifesta ções contrárias à mesma por parte do setor privado da saúde O Suds foi constantemente apontado pela Somerj e por outras entidades como a única saída para a situação caótica do sistema público de saúde mas as denúncias relacionadas às dificuldades na implementação da Reforma Sanitária em sua totalidade eram pouco enfáticas e muito gerais se comparadas às ações desenvolvidas pelo governo no emperramento do Suds Para seu efetivo sucesso a Somerj defendia a criação de um Fundo Único de Saúde com recursos dos estados municípios e Inamps e de uma dotação orçamentária federal para a criação de Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde e para a isonomia salarial para os médicos a médio prazo Fica evidente através dessas iniciativas que as entidades mantiveram um discurso comprometido com as questões relacionadas à Reforma No entanto não houve uma contribuição de vigilância mais concreta da categoria para implementar um sistema único de saúde que controlasse a multiplicidade de inserções profissionais dos médicos e que exigisse destes a dedicação integral e o cumprimento da carga horária Ou seja é possível observar o distanciamento entre as proposições gerais da categoria e a transformação da prática médica dentro de uma orientação onde os interesses da corporação fossem compatibilizados com as mudanças no sistema de saúde Tal questão fica ainda mais clara ao se analisar o material reunido a respeito da atuação das entidades médicas na VIII Conferência Nacional de Saúde onde se percebe que duas questões começaram a merecer destaque no âmbito da Reforma Sanitária A primeira delas foi o que diz respeito à isonomia salarial para os médicos Apesar de ter sido sempre considerada uma necessidade a partir da formulação do Plano das Ações Integradas de Saúde em 1983 a isonomia passou a ter importância superior aos próprios projetos que a circuns creviam inclusive à Reforma Sanitária A segunda questão era bem mais polêmica já que se tratava do emprego único com salário único e tempo integral de trabalho As lideranças médicas reconheceram haver grande resistência da categoria a essa proposta e assumi ram que muitos deveriam ser conscientizados participantes do novo sistema No entanto estabeleceram algumas precondições os médicos aceitariam dis cutir emprego único com tempo integral no caso de adequadas condições de cap5pmd 872011 1036 159 160 trabalho e se fossem estabelecidos mecanismos institucionais que impedissem em qualquer hipótese a redução ou achatamento desses salários43 É preciso ressaltar que essas precondições eram impossíveis de ser encon tradas no fim da década de 80 Em relação à organização do trabalho médico destacamos que no VI Encontro Nacional de Entidades Médicas em 1987 definiase o trabalho médico como uma forma de compromisso social onde deveria ser sempre auscultado e respeitado o interesse da sociedade Afirmavase ainda que a inserção do trabalho médico na produção social constitui um direito de todos os médicos cuja garantia deve ser assegurada pelo Estado44 Depreendese disso que a categoria aparentemente assumiu que o compromisso social era inerente à profissão médica e que caberia ao Estado assegurar trabalho para todos os médicos Além disso no Encontro foi salientada a necessidade de preservar a rela ção médicopaciente na prestação dos serviços procurando os médicos se de sobrigarem de quaisquer tipos de controle sobre seu trabalho como se pode observar na seguinte afirmação do presidente do SinMed as instituições que intermediam o trabalho médico não podem interferir com seu compromisso ético e social Fica portanto evidente a preocupação da categoria em estabele cer parâmetros que limitassem a interferência do Estado sobre o trabalho mé dico certamente no sentido de garantir a prática liberal mesmo sob condições de assalariamento Cabe ressaltar através da análise dessas questões o papel prevalente que a categoria se atribuiu na formação das políticas de saúde Havia na categoria médi ca uma posição ambígua observável também na atuação das entidades médicas Ainda que o Cremerj tivesse preservado um papel mais político e menos corporativo a tônica do conjunto das instituições médicas foi bastante dúbia As tentativas de manter o exercício liberal da medicina naqueles aspectos que interessavam aos médicos fezse acompanhar da exigência de intervenção do Estado para favorecer questões que eram do interesse da categoria tais como a garantia de emprego para todos os médicos isonomia salarial não obrigatoriedade de tempo integral garantia de estabilidade e as 40 horas sema nais apontadas pela Reforma Sanitária Ou seja ao mesmo tempo em que se 43 Declarações de Roberto Chabo presidente do SinMed Edição Médica 677 1987 44 Edição Médica 687 1987 cap5pmd 872011 1036 160 161 defendiam posturas liberais exigiase a intervenção do Estado em aspectos nos quais o liberalismo prejudicava o exercício da medicina Essa ambigüidade nos remete à discussão do tema autonomia médica que configura um dos principais componentes da ideologia médica à qual é ligada e do exercício da medicina desde seu começo até os dias atuais o que merecerá abordagem específica Retomando agora o papel das entidades médicas nas políticas nacionais de saúde observamos que a discussão em torno da Constituinte foi defendida completamente pelo Cremerj No acompanhamento dos trabalhos da Assem bléia Nacional Constituinte a entidade teve uma de suas mais destacadas atua ções em nível nacional Com a proximidade da votação da Seção da Saúde pela Plenária da Cons tituinte o Cremerj se transformou no centro mobilizador do movimento naci onal em defesa das diretrizes da VIII Conferência Nacional de Saúde e lançou boletins cartazes e um manifesto em defesa da proposta da Reforma Sanitária assinado por governadores secretários de saúde pelo prefeito do Rio de Janei ro e por centenas de entidades do setor Salientamos que posteriormente à aprovação da Constituição Nacional e dentro dos esforços para se levar a questão da saúde à sociedade a Plenária Estadual de Saúde convocada pelo Cremerj em outubro de 1988 reuniu cerca de 60 entidades da sociedade civil para discutir a Constituinte Estadual Volta assim a desempenhar o Conselho um importante papel de mobilização política ao liderar as lutas pela reforma do sistema de saúde Todavia nosso ponto de vista é que da mesma forma que na discussão sobre a Ética Médica isso acontece sem que se observe uma importante mobilização da categoria na definição da Constituição Estadual No entanto apesar da ausência de uma considerável adesão da categoria à qual interessava muito pouco os princípios que conduziram à Reforma Sani tária a proposta encaminhada pelas entidades à Constituinte foi essencialmen te a mesma da Subcomissão de Saúde da Câmara na qual tinham assento o Movimento Sanitário e as organizações do Movimento Social em Saúde Por fim já em 1989 durante a Plenária Estadual de Saúde uma proposta de anteprojeto referente ao setor para a Constituinte Estadual foi elaborada pela Somerj e outras entidades de saúde sindicatos e associações de moradores Em linhas gerais o anteprojeto defendia a criação do Sistema Estadual de Saúde com vinculação ao Sistema Único de Saúde onde se propunha cap5pmd 872011 1036 161 162 a municipalização dos recursos o financiamento da seguridade social através do orçamento do estado da União dos municípios e de outras fontes a participação de entidades representativas nos Conselhos Estaduais e Mu nicipais de Saúde de usuários e de profissionais de saúde nas decisões sobre o sistema De maneira geral o papel do Movimento Médico no processo constituin te estadual foi bastante progressista sem que tenham existido aspectos polêmi cos de envergadura no âmbito interno das entidades médicas O Cremerj tor nouse o portavoz na articulação do Movimento Social em Saúde como um todo no estado do Rio de Janeiro De qualquer modo para não gerar confusões devemos enfatizar que mes mo que o projeto tenha sido aprovado pela Constituinte toda essa atividade política do Conselho teve repercussão relativa no conjunto da categoria médica As Greves e o Corporativismo Médico No período pós85 percebese um crescimento desmedido de reivindi cações econômicocorporativas da categoria médica em relação a períodos anteriores De fato registrouse uma mudança na categoria ao término da década da atuação política de oposição ao regime militar que acompanhou as greves realizadas na década de 70 ao início dos anos 80 aumentaram as greves que reivindicavam exclusivamente aumentos de salários e melhores condições de trabalho A expectativa inicial com a Nova República não demorou a se desfazer Com isso as reivindicações por melhores salários condições de trabalho redução de carga horária entre outras começaram a ocupar um lugar principal no âmago da categoria A greve dos funcionários do Ministério de Saúde no estado do Rio de Janeiro em 1985 foi pautada pela reivindicação de 80 de reposição salarial efetivação do pessoal das campanhas nacionais tuberculose câncer e saúde men tal e a redução da carga horária de 40 horas para 30 horas semanais Em 1986 e 1987 a greve dos médicos previdenciários exigiu aumento de salários e a elaboração de um Plano de Cargos e Salários Nesse mesmo perío do no interior do Rio de Janeiro assim como em outros estados do País sucederamse movimentos grevistas também cap5pmd 872011 1036 162 163 Dentre as lutas salariais travadas pela categoria destacouse a greve de 162 dias dos funcionários municipais que gerou crise sem precedentes na assistência à saúde na cidade do Rio de Janeiro Inicialmente decidida durante o VII En contro Nacional de Entidades Médicas o Dia Nacional de Luta 22091988 teve a participação de todos os previdenciários e profissionais de saúde fede rais estaduais e municipais As reivindicações dos médicos foram a isonomia salarial com o Inamps implantação imediata da tabela de honorários médicos da AMB para hospitais conveniados e para o Inamps elaboração de Plano de Cargos Carreiras e Salá rios unificado nacionalmente mudança da legislação do trabalho médico com definição de piso salarial Dentre todos os participantes continuaram paralisados apenas os médicos previdenciários e os profissionais municipais tendo a greve terminado em mar ço de 1989 em virtude de a Prefeitura ter cancelado o pagamento de todo o funcionalismo municipal O Sindicato destacouse na condução das greves o que ajudou a redefinir seu papel no setor com ênfase no exercício da representação dos interesses trabalhistas da categoria mais do que na representação política que caracterizara a atuação do SinMed na década anterior Durante essa greve o Cremerj foi a única entidade que se posicionou niti damente ao lado da população e contra o movimento Garantiu um mínimo de assistência e liderou a luta para exigir providências das autoridades As greves dos médicos sem solução de continuidade foram criando uma situação de desassistência à população que se arrastou durante meses Como não existia nenhuma forma de planejamento para o funcionamento dos servi ços de atendimento mesmo de maneira emergencial ou provisória a popula ção atribuía à categoria médica a culpa pelo abandono em que se encontrava o setor público da saúde As entidades médicas ainda que defendessem a paralisação apoiaram tam bém as demandas do Movimento Popular em Saúde e da população em geral atribuindo os problemas de atendimento ao governo Por fim a categoria levou a greve até o esgotamento acabando por perder efetividade essa forma de resistência à situação de deterioração salarial e das condições de trabalho dos médicos empregados no setor público da saúde O posicionamento de responsabilidade civil assumido pelo Cremerj na greve possibilitou nova reunificação entre as entidades médicas e as entidades cap5pmd 872011 1036 163 164 do Movimento Popular em Saúde o que ficou evidenciado na participação conjunta na Plenária Estadual de Saúde e na mobilização popular denominada Marcha pela Saúde Desta participou um grande número de entidades da socie dade além da Somerj Confederação Nacional dos Médicos Federação Nacional dos Médicos e o SinMed do Rio de Janeiro e de Niterói Independentemente de as reivindicações serem ou não justas é necessário assinalar que essa greve provocou a maior crise de atendimento do setor públi co antes vista Foram diversos meses em que filas mortes por falta de atendi mento e a insensibilidade com o sofrimento humano foram a tônica da atuação da categoria médica noticiada incansavelmente pela imprensa Como desdo bramento da situação ocorreu um notável desprestígio dos médicos preocu pados muito mais com a defesa de seus interesses do que com as conseqüências advindas das sucessivas paralisações Outro fato que bem demonstra o conflito existente entre a categoria e a população no período é a determinação tomada pelo Instituto Nacional de Pre vidência e Assistência Social INPS de transferir médicos de diferentes unidades hospitalares de bairros residenciais de classe média e alta para o Hospital da Posse em Nova Iguaçu uma das regiões mais pobres da periferia do Rio de Janeiro Isso porque os médicos concursados que deveriam ser encaminhados para exercer sua atividade no Hospital da Posse ficaram alocados em hospitais melhor situados do município em razão de influências políticas Acabou assim havendo reação à decisão por parte da categoria e das entidades médicas principalmente do SinMed que protegeu os médicos que se recusavam à transferência As entida des médicas conseguiram influir na decisão do Ministério da Previdência que acabou concordando em chamar médicos aprovados em outros concursos Nesse período também cresceu aparentemente a preocupação da catego ria com a desconfiança da população em relação aos médicos enfatizandose a necessidade de recuperar a credibilidade perdida Para a classe essa desconfian ça se devia à culpa sempre creditada aos médicos por erros que na realidade seriam causados pelas deficiências do sistema de saúde Poucas vezes os médi cos aceitaram a responsabilidade pela situação45 45 Como exemplo há um editorial do periódico Edição Médica em que são feitas críticas à situação da medicina no estado do Rio Segundo o editorial as lutas do Movimento Médico teriam conquistado importantes avanços salariais mas com poucos reflexos na maior parte do atendimento assistencial o que tirava sua respeitabilidade até para reivindicar melhor salários e condições de trabalho Acrescenta que é crescente o número daqueles que compreendem que sem o resgate da respei tabilidade do médico perante a sociedade em geral qualquer movimento médico cairá no vazio Edição Médica 70 1988 cap5pmd 872011 1036 164 165 Acreditamos que isso tenha acontecido porque havia uma compreensão deturpada que permeava a categoria sobre a diferença entre condições de tra balho e exercício da medicina Ou seja na medida em que não se distinguia o fato de ser assalariado questão que tem a ver com a inserção laboral do exercício da prática médica independente da condição de assalariamento e ine rente ao profissional médico lidar com o ser humano doente também não se conseguia isolar as responsabilidades do Estado quanto ao atendimento hos pitalar e as do médico Os Convênios com o Setor Privado Importantes transformações ocorreram no mercado de trabalho médico a partir da segunda metade da década de 80 A visível deterioração do setor público da saúde em virtude da falta de recursos para a manutenção das insta lações e para o pagamento dos profissionais ficou evidenciada na redução de leitos hospitalares de 428 leitos1000 habitantes em 1980 caiu para 372 em 1989 tendo no período havido a expansão de leitos no setor privado 468 e decréscimo no setor público 261 Buss 1994 De fato o atendimento no setor público implicou um incremento dos riscos ao se submeter o paciente a intervenções médicas Essa situação foi muito bem aproveitada pelos seguros privados que cresceram significativamente no período Ou seja quem tinha disponibilidade adquiria seguro privado de saúde ficando o atendimento público restrito à parcela da população que não tinha reservas para gastos em saúde fechando ainda mais o círculo da pobreza Com o crescimento dos convênios privados de assistência à saúde os seguros de saúde e a concomitante decadência da assistência pública o traba lho por credenciamento ganhou importância singular para a categoria passan do a ser até mesmo uma fonte exclusiva de renda de grande parte dela O credenciamento médico é uma modalidade específica de contrato entre os médicos e os seguros privados hospitais ou outros serviços de saúde A parte empregadora credencia habilita médicos para o atendimento sem se comprometer a lhes encaminhar pacientes e nem efetuar o pagamento de salá rios mas inclui o médico na lista dos que integram a empresa O paciente faz sua escolha nessa listagem e a empresa fornece para o pagamento da consulta tíquetes posteriormente trocados por valores pelo médico segundo tabela de honorários previamente estabelecida pela empresa Isso explica a atenção dada cap5pmd 872011 1036 165 166 pelas entidades à questão e também a preocupação em estabelecer critérios que garantissem direitos a essa parcela dos médicos tendo em vista principalmente a nãoexploração do trabalho médico As entidades reconheceram durante o VI Encontro Nacional de Entida des Médicas realizado em 1987 que o credenciamento era utilizado muitas vezes como forma de subemprego sendo aplicado de diferentes maneiras tan to no setor privado quanto no próprio setor público Assim procuraram esta belecer critérios que melhorassem essa relação de trabalho para a categoria tendo a principal proposta sido a de que o credenciamento deveria ser univer sal Além disso determinaram que fosse feito exclusivamente nos consultórios particulares e de nenhuma forma no sistema público onde o ingresso deveria ser apenas por concurso O credenciamento universal nesse sentido viria como forma de prestação de serviço relativamente autônoma já que os médicos não seriam obrigados a se filiar aos convênios Poderiam atender pacientes de diferentes convênios os quais sem dúvida os tornavam assalariados e indiretamente os impediam de escolher pacientes além de não lhes exigir nenhum tipo de controle sobre sua formação Esse posicionamento representou uma visão estritamente liberal sobre a forma como deveria ser exercida a prática médica Ademais em nosso ponto de vista é uma situação contraditória com o reconhecimento pela própria cate goria do baixo nível de formação acadêmica que não exigindo concurso requereria um outro tipo de controle sobre o exercício do profissional Mantevese nessas discussões a proposta de que o pagamento aos credenciados tivesse por base sempre a tabela de honorários médicos da AMB e fosse desvinculado das contas dos hospitais Como era de se esperar boa parte das empresas de medicina de grupo ignorou a tabela o que resultou em greves dos médicos conveniados O Sindicato procurou então conscientizar os médicos da rede particular sobre seus direitos promovendo encontros com essa parte da categoria Essa luta ampliou consideravelmente o alcance do SinMed A preocupação das entidades com essa vasta parcela da categoria inserida no setor privado demonstra por um lado a diferença com períodos anteriores em que não eram consideradas suas reivindicações Houve mudanças na con cepção que privilegiava os assalariados do setor público Cabe ressaltar no entanto as mudanças ocorridas na prática liberal onde o mercado passou a ser cada vez mais dependente dos convênios com empresas cap5pmd 872011 1036 166 167 Em verdade essa mudança seria apenas de acordo com nossa opinião parte do processo de aniquilamento da prática liberal mascarado pela utilização dos convênios indicando a forma latente com a qual se apresentava a ideologia liberal entre os profissionais médicos De Volta à Prática Liberal O Movimento Médico pós83 mostrou como as entidades médicas volta ram a privilegiar seus problemas corporativos solidificando uma nova ideolo gia a partir da proposta de engajamento num projeto reformador da saúde Um desses indicativos foi o visível descenso do Sindicato dos Médicos enquanto entidade que se fortaleceu com o Reme e dirigiu importantes lutas da categoria ao voltarse para problemas especificamente corporativos A prioridade dada pelo Reme ao processo de democratização do País ao projeto reformador na saúde e ao assalariamento médico juntamente com um certo abandono dos problemas específicos urgentes para a categoria médica pode ter significado a abertura de espaço para o aparecimento de uma nova corrente política no coração do Movimento Médico a corrente neoliberal que privilegiava ao contrário as questões específicas da categoria Campos 1986 Esse fenômeno poderia ser explicado pelo fato de não ter havido preocu pação mais específica do Reme com questões que faziam parte do diaadia da prática médica e que mobilizavam a categoria principalmente a salarial Real mente essa questão estava embutida nas demandas políticas mais amplas de democratização do País porque se entendia que esta era a via para mudar a situação profissional dos médicos Entretanto a ideologia liberal hoje não é mais a ideologia tradicional que se opõe à presença do Estado na prestação da assistência à saúde que nega o assalariamento como forma antiética do exercício profissional e que usa essa ética como forma de relacionamento primordial tanto entre os próprios médi cos quanto com a sociedade em geral Fruto das transformações ocorridas no setor saúde principalmente nas décadas de 60 e 70 essa ideologia passou a conviver cada vez mais de forma independente de sua vontade com a heterogeneidade na inserção dos profis sionais médicos no mercado de trabalho A enorme inserção dos médicos nos serviços de saúde fossem públicos ou privados determinou que os profissionais médicos não mais respondessem cap5pmd 872011 1036 167 168 a uma conduta decidida entre eles próprios mas que esta fosse definitivamente intermediada por outra a da organização hospitalar que o empregava Tornavase necessário portanto reavaliar essa conduta no sentido de res ponder à heterogeneidade e não perder o que em nossa opinião é a base da unidade da profissão ou seja a legitimidade imputada pela sociedade ao traba lho do médico no enfrentamento da enfermidade importância essa que lhe dá prestígio e lugar diferenciado na hierarquia social As novas formas de inserção profissional contribuíram para o surgimento de três tipos diversos de ideologia na década de 70 Segundo Donangelo 1984 seriam elas a ideologia liberal a empresarial e a estatizante que enfrentavam conflitos em última instância resolvidos no âmbito da ética médica No entanto o acirramento das contradições entre os diferentes interesses desnudava uma vez mais a fragilidade do pacto firmado sobre a ética princí pio da medicina que guia o exercício da prática médica As diferenças ficaram evidentes sobretudo a partir da reorganização do Movimento Médico na se gunda metade da década de 70 com a entrada do Reme na cena política Ao defender a prestação dos serviços de saúde pelo Estado e condenar a sua mercantilização o Reme fez também uma nítida opção pela transformação da assistência à saúde em benefício da maioria da população e assumiu aberta mente a defesa dos assalariados médicos Representava portanto uma dife renciação explícita tanto em relação aos liberais tradicionais quanto aos empresá rios médicos A proposta empreendida pelo Reme tomou corpo com a conquista de inúmeras entidades brasileiras no período de 1979 a 1983 A resposta a esse crescimento não tardou a ser formulada Ainda em 1980 começou a se organizar uma terceira corrente política que visava em nossa opinião reorganizar a unidade cindida da categoria médica então baseada na representação quase exclusiva dos médicos assalariados A divisão da categoria punha em risco a posição da profissão médica ameaçandoa de vir a ser uma profissão como outra qualquer Essa nova corrente chamada de neoliberal por Campos 1986 adotou o que o autor chama de sincretismo político no sentido de aliar interesses tanto dos liberais quanto do Reme Propunhase a defender tanto os médicos liberais quanto os assalariados e assumia por um lado que a categoria tinha se afastado dos centros de poder e que necessitava se unir à população para exigir do governo uma política de saúde em benefício de todos Por outro centrava o foco de suas acusações no governo e no Inamps cujo planos de saúde visavam cap5pmd 872011 1036 168 169 para os neoliberais apenas administrar escassos recursos e adequar a saúde às disponibilidades financeiras Para atingir seu objetivo não titubeava em se aliar aos hospitais privados contratados pela Previdência Social e lhes propor uma aliança com os próprios médicos credenciados Dessa forma os neoliberais visavam a unidade dos médicos e realmente se entendiam enquanto representantes de toda a categoria ao procurar respon der com as propostas de atuação aos anseios dos profissionais nas diferentes formas de inserção no mercado No entanto como afirma Campos privilegiavam efetivamente a auto nomia do trabalho médico Ainda segundo o autor 1986 os neoliberais pro punham uma terceira via que combinasse propriedade privada exercício au tônomo e intervenção do Estado baseada principalmente na assistência previdenciária produtora direta de serviços e financiadora via credenciamento de médicos particulares e no cooperativismo médico Cri ticavam contudo a lucratividade desmedida no setor procurando com isso uma via que conciliasse a prática liberal às necessidades de atendimento da população necessitada Apesar de essa nova corrente ter surgido em São Paulo em 1980 e contar com apoio principalmente nesse estado e no Rio Grande do Sul parece tam bém ter influenciado a mudança de qualidade no movimento como um todo No Rio de Janeiro teve influência expressiva não obstante o Reme ser hege mônico Essa mudança de curso se iniciou com as eleições realizadas na AMB em que o Reme perdeu para a chapa denominada Nova AMB presidida por Nelson Proença e identificada com a nova corrente Em verdade o que esta nova proposta no âmago da corporação assina lava era a retomada dos valores tradicionais da profissão médica adequando os às circunstâncias políticas que atravessavam o setor da saúde e os profissio nais médicos nos anos 80 Neste sentido não se tratava exatamente de uma proposta política de cu nho neoliberal tal como era entendida pelas correntes e escolas econômicas do neoliberalismo uma vez que carecia de definição alternativa à Reforma Sanitária para a organização do setor além de não assumir a sua defesa No entanto colaborou em grande medida para a retirada da adesão à Reforma empreen dida pela corporação médica em épocas anteriores A proposta dos neoliberais tomou impulso e certamente onde não con quistou diretamente as entidades influenciou suas diretrizes O ingresso dos cap5pmd 872011 1036 169 170 neoliberais na AMB em 1983 superando o então hegemônico Reme resultou no declínio deste último Não estamos afirmando que os neoliberais tenham sido os responsáveis diretos por essa queda As mudanças conjunturais na cena política nacional e de saúde juntamente com as transformações operadas no mercado de trabalho médico com o crescimento dos convênios e seguros privados de saúde e a deterioração do setor público se refletiram numa desmobilização política do Movimento Médico Desse modo o Reme não conseguiu contraporse à proposta neoliberal no que de mais importante ela oferecia à categoria ou seja a recuperação do ideário médico por um lado a possibilidade de manutenção do exercício libe ral como principal objetivo dos médicos mesmo que concomitante a outras formas de inserção como o assalariamento e por outro a autonomia do traba lho médico na medida em que a possibilidade de reversão da doença e promo ção da saúde permanecia em última instância sob poder do médico Mesmo que o Reme não se opusesse diretamente à prática liberal da medicina via o assalariamento médico como definitivo O reordenamento da ideologia médica no que chamaríamos de nova ide ologia liberal era no entanto mais extenso do que o que era explicitado na proposta dos neoliberais Extenso no sentido de que revestia antigos valores com nova roupagem e buscava o apoio do conjunto da categoria independen te de sua inserção no mercado de trabalho A preocupação com a autonomia não se restringia exclusivamente a uma questão ética para essa determinada corrente mas implicava também a garantia de que os médicos não estivessem condenados ao assalariamento podendo procurar outras formas de múltipla inserção no mercado Essas formas na realidade encobriam o assalariamento como já vimos e foram colocadas em prática pelos médicos nos últimos anos Ou seja a autono mia não significaria somente a possibilidade de realização profissional dos mé dicos em um plano simbólico da prática médica mas também uma maneira de manutenção da renda ou a possibilidade de incrementála Contudo a manutenção do ideário de posse sobre a doença ratificava ao revés a manutenção de uma posição predominante nas instituições de saúde junto a um lugar privilegiado na hierarquia social servindo como aval ao exer cício autônomo tanto para manter os ingressos quanto para se desvencilhar de possíveis controles cap5pmd 872011 1036 170 171 Por fim acredito ter a ideologia liberal penetrado no Movimento Médico não só pelas questões aqui apontadas mas por ter sido também constitutiva dos médicos enquanto ideário da corporação O nascimento da prática médica está associado ao conhecimento especi alizado exercido no começo da carreira de maneira individual independente das instituições médicas que só apresentam caráter de congregação e de forma dor onde a autoridade médica é o próprio médico Assim desde a formalização do ensino médico universitário classificase o profissional médico egresso das faculdades de medicina como profissional li beral Embora tal denominação seja compartilhada com outras profissões de saber altamente especializado no caso da medicina o exercício liberal norteia a atividade médica como referência principal Ainda que cruciais transformações tenham se produzido no transcorrer de aproximadamente um século no exercício da prática médica e ainda hoje nos deparemos com um modelo médico hegemônico baseado no trabalho as salariado sob formas mais ou menos sofisticadas de exploração capitalista de produção e consumo de serviços de saúde o imaginário individual e social da categoria remete ao ideário médico do nascimento da medicina Porém o ideário médico se recria cotidianamente na relação médicopaciente com o caráter individual e o intransferível eixo do exercício da prática médica Segundo Schraiber 199373 a autonomia médica tem razão de ser na medida em que tanto o diagnóstico da patologia como o tratamento residem no julgamento do médico na capacidade deste em desvelar a doença46 Independentemente da adequação ou não dessa ideologia ao exercício da prática médica concreta atualmente ela continua vigente na maneira como o próprio médico enxerga a sua prática profissional atualizandoa em cada ato de intervenção médica ainda que apenas no plano simbólico Assim o ideário liberal reaflora sob traduções atualizadas que compatibilizam o imaginário social do médico com as circunstâncias concretas que perpassam pelo exercício da prática médica Isso precisamente no momento em que a categoria sentese ameaçada de perder aquilo que tinha perdido na década de 46 Qualificase então também por essa via a prática médica como prática fundada na competência pessoal do médico para desenvolver tal senso de particularização e exercitar sua subjetividade estabelecendo inclusive as próprias regras de decisão e os limites de sua intervenção ou de auto regulação Para tal exercício carregado de tantos e tão complexos requerimentos não poderia ser outra a forma de desempenho por necessidade de adequação do médico a seu ato de prática que não aquela realizada por meio de sua inserção autônoma quando então disporá o médico de amplas condições de adquirir e exercer sua experiência clínica individual cap5pmd 872011 1036 171 172 70 com o trabalho assalariado médico mas que persiste no imaginário médico o lugar privilegiado que este ocupava na sociedade Para finalizar o quadro a seguir ilustra a atuação das entidades médicas no final dos anos 80 evidenciando uma notória despolitização das reivindicações médicas Principais Características do Período Fracasso do Plano Cruzado Crise política da Nova República Crescimento da inflação Retrocesso político reformista Collor eleito presidente no marco da transição democrática Reedição do autoritarismo político Composição do Movimento Médico SinMed Somerj Cremerj SMCRJ Unimeds Principais Bandeiras de Luta Isonomia salarial Diminuição da jornada de trabalho Exercício liberal Melhores condições de trabalho Formas de Atuação Greves do setor público Encontros de entidades médicas Congressos e seminários Greves do setor privado Publicações de entida des médicas Reforma do Código de Ética Médica Forças e Instituições de Oposição Movimento Sanitário Movimento Popular em Saúde Partido Comunista Brasileiro Partidos dos Trabalha dores Partido Comunista do Brasil Partido Democrático Trabalhista Partido Social Demo crático do Brasil População Quadro 12 Caracterização da conjuntura e despolitização das entidades e das demandas do Movimento Médico 19861992 cap5pmd 872011 1036 172 173 A primeira questão a salientar no estudo da atuação histórica das entidades médicas é a que diz respeito à denominação Movimento Médico Tendo em vista que nosso interesse está focalizado nas políticas de saúde especificamente no pro cesso de formulação e implementação da Reforma Sanitária constatamos o pa pel singular que as entidades médicas têm desenvolvido em relação às mesmas Assim como o Movimento Popular em Saúde o Movimento Médico tem uma atribuição política decisiva no setor saúde Ainda que sejam dois tipos de movimentos diferenciados quanto às bases sociais formas de inserções na po lítica e interesses enquanto o primeiro reivindica serviços de saúde o segundo se relaciona com a reprodução da força de trabalho ambos configuram o Movimento Social em Saúde A trajetória mostra como a política de saúde tornouse alvo e objetivo da atuação das entidades médicas mediatizada por reivindicações econômico corporativas que se relacionam ao papel indiscutivelmente diferenciado dos médicos no sistema de saúde Embora em sua maioria sejam assalariados do setor públicoprivado da saúde havendo alternância com outras formas de inserção no mercado com põem ao mesmo tempo uma corporação que mantém regras de pertencimento e solidariedade profissional fortemente orgânicas Tratase no entanto de uma corporação bastante peculiar que tem exercido ao longo das décadas de 70 e 80 diferentes modalidades de atuação política e de representação de interesses via de regra referenciadas ao exercício da prática médica e à maneira pela qual determinado contexto político social e econômico a afeta Enquanto o período da transição à democracia no final dos anos 70 foi marcado pela oposição política ao regime autoritário através de uma modali dade eminentemente plural da representação dos interesses da corporação mé dica a década de 80 apresenta traços singulares da atuação política da categoria No período de construção da institucionalidade democrática houve uma fragmentação do movimento na medida em que as diferenças na inserção pro fissional dos médicos no mercado de trabalho se aprofundaram em razão do crescimento dos seguro privados de saúde e a crise do setor público se agra vou além de a revitalização do ideário liberal ter ganho corpo para categoria Dessa maneira a diversidade dos interesses médicos passa a ser expressa segundo a inserção dos médicos no mercado de trabalho diferentemente do período anterior no qual as entidades médicas e principalmente o SinMed re presentavam a categoria enquanto assalariados cap5pmd 872011 1036 173 174 Podemos observar em conseqüência disso a ausência de atuação política unívoca da corporação concomitante ao crescimento da modalidade corporativa nãoinstitucionalizada de representação de interesses das entidades médicas Além disso também notase que a relação entre a inserção profissional e as modalida des de representação de interesses no cerne da categoria reflete no caso dos assalariados e dos profissionais liberais uma mudança de representação plural para corporativa enquanto as outras modalidades de inserção profissional à medida que passam a se constituir oposição política adquirem uma forma de representação plural de interesses O tratamento das questões referentes à ética médica às políticas de saúde às greves médicas às transformações no mercado de trabalho e à ideologia neoliberal consideradas do ponto de vista da trajetória histórica do Movimento Médico na construção da democracia evidenciam as mu danças operadas na atuação das entidades médicas assim como na categoria como um todo Tais mudanças propiciaram cisão nas entidades médicas tendo o Cremerj assumido um papel predominantemente político em relação ao processo do setor saúde enquanto o SinMed passou a atuar exclusivamente como órgão sindical liderando as greves econômicocorporativas da categoria e abando nando o rol político desempenhado durante a transição à democracia Outrossim em relação à categoria percebese tanto transformações na inserção profissional dos médicos no mercado de trabalho quanto uma forte penetração da ideologia neoliberal e um distanciamento da mobilização política da década de 70 Para finalizar essa discussão caberia incorporar algumas reflexões teóricas sobre os movimentos sociais Considerar a atuação desses atores sociais em termos de movimento social com relação às políticas de saúde no processo de transição e construção da democracia colocanos ante a necessidade de distin guir melhor os conceitos de ator social de sujeito político e de indivíduo Entendese por atores sociais as categorias sociais com organização pró pria e com expressão política Neste sentido atores sociais podem ou não ser sujeitos políticos Constituemse sujeitos quando adquirem uma identidade po lítica construída com o desenvolvimento de uma prática política e na inter relação com outras forças políticas Da maneira como têm sido entendidos no Brasil os movimentos sociais mais referenciados aos movimentos populares das periferias dos grandes cen cap5pmd 872011 1036 174 175 tros industriais se estabelecem em sujeitos políticos na relação com o Estado na medida em que reivindicam saúde moradia educação melhores condições de vida ante o Estado e por este são interpelados tanto pela presença quanto pela omissão na satisfação das necessidades da população É precisamente na prática política que os movimentos passam a configurar uma identidade e a se torna rem sujeitos políticos Não se poderia dizer que esses movimentos são atores sociais já que sua base social é heterogênea e carece de organização e de expres são política duradoura e institucionalizada Considerandose o Movimento Médico podemos afirmar que ele é um ator social na medida em que é uma categoria social com organização e expres são política Conforme já mencionado os atores podem ou não ser sujeitos políticos Isso tem acontecido com o Movimento Médico em alguns momen tos da história das políticas de saúde Como atores sociais se guia pelo pertencimento à corporação mas como sujeito político sua atuação não é dada pois se conforma no exercício da política Assim na década de 70 os médicos fizeram um movimento que teve atu ação política contrahegemônica em relação à política de saúde dominante o que se explica pela própria conformação do setor baseada na privatização apoiada em complexos hospitalares no trabalho assalariado na especialização médica e na maciça incorporação de tecnologia Todas essas mudanças no exercício da profissão afetaram profundamente a autonomia do trabalho médico levando a categoria e suas entidades a se mobilizar politicamente na oposição ao regime militar A situação foi alterada por ininterruptas mudanças e com elas também a atuação tanto dos médicos como de suas entidades Feita a distinção entre atores sociais e sujeitos políticos cabe a referência aos indivíduos Estes se tornam sujeitos pelo reconhecimento da alteridade tal como assinalamos no primeiro capítulo e até poderiam enquanto sujeitos po líticos individuais exercer a representação de grupos ou classes sociais Por vezes o surgimento de um indivíduo compreendido enquanto sujei to político único com uma proposta política decisiva e em um lugar político decisório pode ser o catalisador de um profundo processo de mudanças sociais mas pode também não ser suficiente se não houver na sociedade sujei tos políticos que façam com que as mudanças ocorram Em certo sentido é necessário haver um resgate de indivíduos para a polí tica porque as sociedades são compostas por cidadãos com necessidades anseios cap5pmd 872011 1036 175 176 desejos intenções gostos etc Esse resgate da individualidade significa recupe rar no âmbito da sociologia e da política a categoria de indivíduo e principal mente recuperar o papel dos indivíduos nas atuais democracias Não no sentido do individualismo possessivo e liberal como afirmava MacPherson 1979 mas no sentido do homem do valor essencial à humanidade cap5pmd 872011 1036 176 177 Parte Parte Parte Parte Parte IIIIIIIIIIIIIII cap5pmd 872011 1036 177 179 6 O Processo de Implementação da Reforma Sanitária Retoma este capítulo como questão central as políticas de saúde no pro cesso de construção da democracia mas em plano de análise diverso do ado tado na primeira parte do livro A discussão então empreendida possibilitou delimitar teoricamente o campo da democracia e dentro deste a capacidade de os sistemas políticos democráticos assimilarem processos de reformas polí ticas Assim foi posta no centro da atenção a Reforma Sanitária brasileira Da ênfase teórica dada ao tratamento da mesma passamos agora a nos ocupar de sua dinâmica com aqueles aspectos obscuros que se evidenciam nos percalços do processo da implementação das políticas de saúde procuran do demonstrar que para a efetivação da Reforma Sanitária seriam necessários a continuidade e o aprofundamento do processo democrático Regimes de exclusão social e de cunho autoritário dificilmente poderiam assimilar um pro cesso de reformas dessa natureza Neste sentido a incorporação de direitos sociais levou à incorporação de reformas estruturais no âmbito da economia e do Estado nas modernas de mocracias políticas Sob esse ponto de vista poderíamos afirmar que tem havi do uma continuada luta entre o governo e as forças políticas e sociais que entendem a Reforma Sanitária como o possível caminho para a democratiza ção da saúde e seu usufruto pelo conjunto da sociedade especialmente pelas camadas mais pobres e necessitadas da população Procuraremos inicialmente delimitar até onde se avançou no estabeleci mento dos procedimentos legais previstos constitucionalmente para o setor saúde e qual o estado da arte até o final de 1993 O avanço na implementação do novo sistema de saúde tem sido difícil a partir da regulamentação do arcabouço jurídicoinstitucional da Reforma Sani tária estabelecido na Constituição Nacional em 1988 até os dias atuais cap6pmd 872011 1037 179 180 O último ano e meio do Governo Sarney caracterizouse por grande dete rioração política e por notável retrocesso na área da saúde ilustrado pela saída dos quadros políticos reformistas da Previdência Social Em 1988 o desenvolvimento do Suds se viu seriamente ameaçado por ocasião da demissão do presidente do Inamps e de sua equipe quadros do Movimento Sanitário pela resistência oferecida por políticos fisiologistas pela burocracia do Inamps e do Ministério da Saúde assim como pela oposição do setor privado Embora a articulação desses interesses contrários à proposta não tenha conseguido se impor no processo constituinte teve um papel decisivo na para lisação do processo de implementação das medidas reformadoras estabelecidas na Constituição O Governo Collor empossado em janeiro de 1990 não demorou a evi denciar os dois aspectos marcantes da sua política as tentativas neoliberais para desmontar políticas sociais dentre elas particularmente a mais estruturada ou seja a Reforma Sanitária e os escândalos relacionados à corrupção generaliza da em todos os escalões de governo Poderíamos afirmar que à revelia da lei inscrita na Constituição os avatares políticos do Governo Collor e do seu Ministro da Saúde marcaram fortemente o setor afetando o andamento políticosanitário sem deixar nenhuma dúvida quanto à existência da profunda relação entre Reforma Sanitária e democracia Entendemos que o avanço na implementação da Reforma poderia neces sariamente requerer o afiançamento do processo políticodemocrático consi derando que ela previa um espaço considerável de participação social na gestão do sistema de saúde e particularmente no processo de descentralização do sistema o qual constituiu a coluna vertebral desse processo Por sua vez dado o caráter profundamente democrático da Reforma poderiam ser estabelecidas as bases de um importante aprendizado político para o exercício da democracia no percurso de sua execução Contudo o governo eleito como resultado do processo de democratiza ção do País não tinha a intenção de percorrer esse caminho Mais teve uma atuação de cunho autocrático valendose dos artifícios disponíveis tais como decretos do poder executivo normas operacionais etc que emperrou o an damento da Reforma Sanitária Com isso conseguiu tolhêla uma vez que exercia o poder de veto ante os projetos apresentados pela articulação das forças democráticas Cabe assinalar cap6pmd 872011 1037 180 181 que alguns aspectos foram cumpridos até porque era impossível para um go verno constitucional governar à revelia da Constituição Por um lado a orientação neoliberal da política de governo foi de encon tro a uma proposta de caráter reformista como a que tinha chegado a ser contemplada na Constituição Por outro o exercício da política do Governo Collor reeditou o velho autoritarismo da política brasileira marcada pelo clientelismo político e pela corrupção devidamente incrementada em nível naci onal ao tradicional estilo dos políticos do Nordeste Com isso o Governo Sarney foi amplamente superado chegando a corrupção a constituirse uma praxe da prática de governo da qual nenhuma área política foi poupada Voltando à política de saúde regulamentouse primeiro a Reforma Sani tária na Constituição Nacional em 1988 Posteriormente as Constituições Estaduais e as Leis Orgânicas Municipais estabeleceram os princípios que norteariam o modelo de atenção e de organização dos serviços de saúde locais segundo as diretrizes da Constituição O sistema descentralizado de saúde visava de fato integrar um sistema único de saúde com cobertura universal integralidade das ações com a participação da comunidade através dos conselhos locais de saúde Conforme já mencionado o processo de legislação do setor não foi acom panhado pela efetivação da política criandose uma situação sui generis como a de se ter apenas conseguido contemplar na Constituição o modelo de saúde a ser aplicado no País sem as condições políticas necessárias para efetiválo Des se modo a Reforma Sanitária foi definida no plano legal sem que isso revertesse em melhor atendimento prevenção ou condições de saúde da população No ano e meio transcorrido da aprovação da Constituição até o Governo Collor tomar posse deuse prosseguimento com enormes dificuldades à descentralização política de saúde Esta se caracterizou pelo repasse aos estados e municípios da prestação dos serviços de saúde tal como previsto na proposta da Reforma Sanitária aprovada na VIII Conferência Nacional de Saúde que teve prosseguimento com o Decreto que criou o Suds em 1987 posterior mente legislado na Constituição Nacional sob o nome de Sistema Único de Saúde SUS De maneira geral as unidades eram transferidas sem haver nos estados e municípios as condições gerenciais eou financeiras para sustentálas Os recur sos eram repassados da esfera federal para as instâncias descentralizadas por meio de transferências negociadas por convênio Isso favorecia aqueles estados cap6pmd 872011 1037 181 182 e municípios que pelo tamanho eou poder de negociação política tinham melhores condições de barganha com o governo federal Foram perceptíveis os avanços conquistados na implementação em instâncias descentralizadas nas quais existiu por parte de governadores e prefeitos um compromisso político com a proposta A maior dificuldade experimentada pelo processo de municipalização em todos esses anos nos dois sucessivos governos foi o repasse dos recursos do Suds e posteriormente do SUS Santos 1992 constatou que sendo o orçamento público destinado à saú de proveniente em grande parte do orçamento da seguridade social este sem pre se encontra restringido visto que os recursos não são recolhidos ou são desviados de maneira ilegal e através de artifícios diversos em 1991 não foi recolhido o montante de 40 das contribuições das em presas por sonegação ou inadimplência no mesmo ano também não foi recolhida a contribuição de mais de 20 milhões de trabalhadores sem carteira de trabalho que emigraram da eco nomia formal para a informal devido à recessão foram cobertas as despesas do orçamento fiscal com recursos da Seguridade Social em 1990 221 do orçamento foram desviados para os Ministérios do Exército da Economia da Educação e até para o Governo do Distrito Federal em 1991 o Ministério da Economia reteve 75 da arrecadação do Fundo de Investimento Social Finsocial e das taxações sobre o lucro componen tes do orçamento da Seguridade Social para cobrir outros gastos da União a inclusão pelo Governo de gastos que correspondiam ao orçamento de outros Ministérios nos 30 do orçamento da Seguridade destinados à saúde Se a isso acrescentarmos a diminuição geral dos recursos para o setor não é difícil imaginar as penúrias da Reforma Sanitária Enquanto em 1988 o gasto em saúde correspondeu a 232 do PIB em 1991 representava 151 do PIB47 47 Porcentagem calculada a partir dos dados obtidos em Conjuntura e Saúde Quadro I Gastos Sociais do Governo Federal Rio de janeiro NUPES ago 1992 p6 cap6pmd 872011 1037 182 183 O processo de implementação da política de saúde é de grande complexi dade Seus desdobramentos avanços e retrocessos nos diversos planos legislativo institucional orçamentário e gerencial do sistema de saúde obede ceram ao papel de oposição e enfrentamento ao Governo Collor desempe nhado pelas forças reformistas assim como também às relações de força resul tantes do embate de um conjunto de forças políticas Dentre estas encontramse os movimentos sociais em saúde sindicatos partidos políticos progressistas intelectuais e acadêmicos da saúde entidades médicas técnicos prógoverna mentais setor hospitalar privado seguros de saúde No terreno constitucional a aprovação da Lei Orgânica da Saúde Lei Federal 8080 de 19990 tornouse possível graças à articulação das forças políticas em prol da Reforma Sanitária nucleadas na Plenária das Entidades de Saúde Analisados em outra parte deste livro tiveram papel capital na aprova ção do capítulo da saúde na Constituição do País Essa lei regulamentou o SUS e deu destaque à participação social através das Conferências e Conselhos Nacionais de Saúde Logo depois de sua aprova ção foi vetada pelo Presidente da República precisamente nos tópicos referen tes à participação social Conferência e Conselhos à formulação de um Plano de Carreira Cargos e Salários para o pessoal do SUS à transferência automática dos recursos da saúde para os estados e municípios e por último nos artigos relacionados à reestruturação do Ministério da Saúde no que se refere à extinção e descentralização do Inamps Superintendência de Campanhas Sucam e Fun dação de Serviço Especial de Saúde Pública FSESP Diante do veto presidencial fezse presente uma vez mais a pressão e a articulação da Plenária conseguindo do Congresso a apresentação de um novo projeto de lei aprovado em 28 de dezembro de 1990 A nova Lei número 8142 sancionada na data de aprovação do projeto dispôs sobre a realização das Conferências e Conselhos de Saúde e sobre as transferências automáticas para estados e municípios tornando obrigatórios a criação dos Conselhos EstaduaisMunicipais de Saúde e os Fundos de Saúde a programação e a orçamentação o relatório da gestão local a contrapartida orçamentária de 10 cap6pmd 872011 1037 183 184 a formação de uma comissão para a elaboração de planos de carreira cargos e salários A resposta do governo não demorou Em janeiro de 1991 estabeleceuse a Norma Operacional Básica no 1 do Ministério da Saúde equivalente a um decreto de Poder Executivo definindo os critérios de repasse para estados e municípios Ao contrário do que pregava a Constituição criouse um complexo siste ma de financiamento com base na produção dos serviços e com igualdade dos pagamentos para diferentes prestadores A Norma reeditou antigos procedi mentos favorecedores da corrupção do setor especificamente no Inamps48 que continuava a ser o principal gestor dos recursos mantendose a modalida de tradicional de pagamento dos mesmos ou seja por serviços Em artigo recente Carvalho et al 1993 afirmaram que essa norma repre sentou um verdadeiro retrocesso Ao restabelecer a centralização e o controle dos fluxos financeiros converteu as transferências financeiras intragovernamentais em pagamentos de faturas por serviços produzidos e colocou em igualdade de condições as empresas privadas contratadas e conveniadas Finalmente a segunda e última Norma Operacional do governo datada de 7 de fevereiro de 1992 acrescentou à anterior a adoção do critério populacional para o repasse dos recursos e agregou o repasse automático dos mesmos aos municípios que tivessem cumprido as exigências constitucionais O recuo do governo que se depreende do conteúdo da segunda Norma Operacional é explicado por sua importante deterioração o que o impediu de acrescentar ainda mais obstáculos ao andamento do SUS O que eviden ciou tal deterioração foi o caráter público que adquiriram as irregularidades administrativas no Ministério da Saúde já tendo estas atingido a figura do Ministro Alceni Guerra Além disso as denúncias de corrupção estavam sen do veiculadas pela mídia Nesse contexto o Ministro não tinha autoridade para impor a política de governo Ainda assim o repasse dos recursos aos estados e municípios conti nuou a sofrer o mesmo tipo de dificuldades Na realidade se considerarmos a capacidade de contar com recursos úni ca maneira de operacionalizar o sistema evidentemente que o esforço empre 48 Entre os últimos atos do Governo Sarney esteve um decreto transferindo o Inamps para o Minis tério da Saúde cap6pmd 872011 1037 184 185 endido pelas forças em prol da Reforma Sanitária se localizou mais no terreno da formulação e da definição constitucionallegal no qual as forças reformistas concentraram sua luta Entretanto houve certo descaso em termos da factibilidade de imple mentação considerandose as restrições orçamentárias impostas pela crise eco nômica inflação crescimento de economia marginal desemprego dívida ex terna etc à qual se somou a falta de investimento do governo na área social Os indiscutíveis avanços no plano jurídico não foram acompanhados por um esforço de avaliação e de intervenção diante das dificuldades de financiamento do sistema que foram se apresentando com a implementação da Reforma em um governo que se mostrou hostil ao projeto É preciso salientar o caráter sui generis dos avanços alcançados na definição da política de saúde que diferentemente de outras experiências nacionais na América Latina foram conseguidos devido à existência de um movimento político de oposição à política de saúde vigente sob o autoritarismo e pela reformulação desse sistema que conseguiu acumular forças e travar também uma luta política capaz de operar por linhas internas ao Estado Em outros países da América Latina Argentina Colômbia Venezuela México também surgiram propostas de transformação do sistema de saúde mas não conseguiram extrapolar o setor específico da saúde estabelecer alian ças e convocar outras forças políticas nem relacionar as propostas de mudan ças no setor às transformações políticodemocráticas Conseqüentemente dada a dimensão alcançada pela proposta da Reforma Sanitária a implementação da política de saúde recentemente praticada no Bra sil não pode ser analisada independentemente da atuação das forças de oposi ção ao governo no setor saúde em razão da capacidade de pressão dessas Tal atuação é bem exemplificada pelos obstáculos colocados para o go verno pelas forças reformistas em relação à privatização e ao desmonte da política de seguridade social e saúde49 Em compensação os entraves colocados pelo governo e pela iniciativa privada na área da saúde obrigaram as forças de oposição do setor a operar sob constantes deslocamentos e redefinições das arenas da luta onde se realizam o enfrentamento e a definição política Assim os cenários municipais se tornaram um espaço de luta privilegiado das forças re formistas assim que o andamento ficou emperrado no nível central 49 Vide o projeto de governo sobre a privatização da Previdência nos moldes chilenos que até hoje não conseguiu passar na Câmara cap6pmd 872011 1037 185 186 Isso nos leva a concluir que a oposição demonstrou indiscutível efetividade no terreno da luta políticoideológica considerando que os princípios da Re forma Sanitária ficaram consagrados na Carta Magna do País Tendo em vista as dificuldades para que a luta política acontecesse no terre no da transformação efetiva do sistema de saúde no nível do governo central e após o término da etapa de definição constitucional da Reforma houve dois eixos de atuação política nos quais se concentrou a oposição o convocatório e a realização da IX Conferência Nacional de Saúde já prevista na Lei 8142 e o processo de descentralização da política de saúde Aliás a descentralização da política foi estreitamente associada à municipalização e esta última definida como o tema central da Conferência Municipalização é o Caminho50 A idéia aqui defendida é a de reacomodação da estratégia política do Mo vimento Social em Saúde nas duas direções explicitadas De um lado a IX Conferência possibilitaria como aconteceu a mobilização da sociedade para pressionar a implementação dos princípios da Reforma através do aprofundamento do processo de municipalização da política de saúde De ou tro tornaria a Reforma menos vulnerável no nível central de decisão da política A partir do reconhecimento da dificuldade de se avançar nesse terreno deu se início ao incentivo aos níveis locais na implementação da política questão que se sustentou na concepção política que compreendeu a municipalização como des locamento de poderes e atribuições do nível central para o local além de proces sos de democratização da política através da participação social na gestão local Cabe a interrogação se essa foi uma estratégia adequada quanto à conver gência entre os objetivos e a implementação da Reforma Ou seja as restrições sofridas pela descentralização da política no processo de municipalização por não ter havido uma definição do governo federal que incorporasse as questões contempladas pela Reforma Sanitária assim como por não terem sido defini das atribuições para os níveis federal e estadual no processo de descentralização não conduziram de fato a uma fragmentação da política Em que medida essa fragmentação não contribuiria para diferenciar ainda mais as condições de saúde das comunidades mais necessitadas acentuando as presentes desigualda des sociais e contribuindo para a reprodução da pobreza De fato o processo de municipalização tal como vem sendo implementado contribuiu para a fragmentação ou a atomização da política de saúde na medi 50 Ver sobre a IX Conferência Escorel 1992 cap6pmd 872011 1037 186 187 da em que o sistema passou a depender inteiramente da definição política dos prefeitos em relação à Reforma Sanitária e também da disponibilidade de re cursos das prefeituras a serem aplicados no sistema local de saúde Neste senti do mais adiante poderá ser constatado como essas questões se equacionaram a partir do estudo da situação em alguns municípios A IX Conferência Nacional de Saúde A IX Conferência foi realizada em 9 de agosto de 1992 após sucessivos adiamentos dos quais o primeiro ocorreu ainda ao Governo Sarney Escorel 1992 A realização da IX Conferência significou consideráveis esforços polí ticos das forças reformistas e uma definição política a respeito da importân cia decisiva que a mesma teria na vida política nacional e no setor da saúde particularmente A VIII Conferência deixara assentadas as bases do papel que o Movimen to Sanitário e o Movimento Social em Saúde alcançaram na determinação de qual seria o sistema de saúde mais adequado para o atendimento às necessida des do conjunto da população e especialmente das camadas mais pobres Porém na memória das forças de oposição esse havia sido um espaço conquistado como resultante da luta política do setor ao qual se chegou devido à existência de um projeto proveniente da sociedade tendo para isso contado com o apoio de consideráveis forças sociais Movimento Social em Saúde profissionais de saúde usuários capaz de se impor ao governo Em tal sentido o espaço da participação social alcançado na VIII Confe rência Nacional de Saúde foi preservado tendo a IX Conferência sido realizada com ampla participação das entidades ligadas ao setor apesar das dificuldades e prorrogações por parte do governo Foram inicialmente realizadas as Confe rências Estaduais e Municipais processo que regimentalmente precede a Naci onal e escolhidos os delegados e participantes credenciados A etapa preparatória trouxe de volta à cena política o clima de mobilização social alcançado pela VIII Conferência justamente num momento de paralisa ção e de perplexidade política que afetou o País e a sociedade como um todo diante das transgressões éticas e morais do Presidente da República A título de exemplo da capacidade de mobilização conseguido pelas forças sociais em prol da Reforma Sanitária na capital de um paupérrimo estado do nordeste brasileiro São Luís do Maranhão reuniramse 500 delegados regionais para a Conferên cap6pmd 872011 1037 187 188 cia Estadual de Saúde51 representantes dos Conselhos de Saúde movimentos populares profissionais de saúde etc No espaço de tempo entre a preparação e a realização o Ministro da Saúde Alceni Guerra foi substituído ou melhor obrigado a renunciar porque denúncias de corrupção o implicavam diretamente o que foi objeto dos pri meiros escândalos da administração Collor O governo em franco retrocesso nomeou para o cargo o Dr Adib Jatene que se comprometeu com a realização da IX Conferência O temário da Conferência incluiria os seguintes pontos sociedade gover no e saúde implantação do SUS municipalização financiamento gerenciamento do sistema de saúde e política de recursos humanos e controle social A Comis são Organizadora contou entre os componentes com o Conselho Nacional dos Secretários Municipais de Saúde Conasems que conformaram a presi dência do Comitê Executivo e cujo documento será discutido à parte por constituir um dos aportes mais concisos e objetivos em termos de diagnóstico das dificuldades por que passava a implementação da política de saúde Dentre os documentos a que tivemos acesso é interessante fazer referência ao conteúdo dos mesmos já que se aproximou de um diagnóstico e de pro postas para efetivar o SUS Os documentos da Plenária Nacional de Entidades de Saúde do Conselho Federal de Medicina CFM e dos Secretários Municipais de Saúde de maneira geral são documentos aqui e ali coincidentes em seus aspectos fundamentais com diferenças no grau de precisão dos diagnósticos e propostas Em relação ao financiamento destacase que eram destinados somente 3 do PIB para o setor saúde com a proposta de dispor de 8 a 10 do PIB a ser investido na saúde além da recomendação de que fossem destinados de 10 a 15 da receita própria de cada esfera de governo à área da saúde junto com a viabilização imediata dos Fundos Estaduais e Municipais de Saúde O documento do Conasems considerou que não se devia permitir a dedu ção do imposto de renda das despesas com assistência médica privada deven dose em contrapartida destinar ao SUS os recursos do seguro obrigatório de automóvel Esses recursos deveriam ser centralizados no Fundo Nacional de Saúde e transferidos de forma regular e automática aos fundos estaduais e municipais O Conselho Nacional de Saúde teria que definir os percentuais re 51 Mesaredonda intitulada Sociedade Saúde e Governo realizada em setembro de 1991 durante a I Conferência Municipal de Saúde cap6pmd 872011 1037 188 189 passados a cada instância Contra a forma de pagamento em vigor por servi ços os critérios adotados seriam populacional e epidemiológico e de acordo com a capacidade e a complexidade dos serviços de saúde instalados Quanto aos Conselhos de Saúde propôs sua implantação imediata com caráter deliberativo e composição paritária conforme o previsto na Lei no 8142 tendo o CFM acrescentado que os Conselhos fossem articulados com as redes prestadoras de serviço O documento do Conasems enfatizou o próprio pro cesso de municipalização afirmando que a municipalização plena compreendia além dos recursos financeiros a gestão efetiva do SUS e o controle social plena mente exercido salientando não se poder limitar a municipalização a determi nada forma operacional consórcio distrito sanitário ou outra cabendo aos próprios municípios a resolução sobre a forma mais conveniente Finalmente no âmbito dos recursos humanos defendeu a implementação imediata de um Plano de Cargos Carreiras e Salários a formação de recursos humanos em todos os níveis a valorização da dedicação exclusiva e a integração de recursos humano de diversas instituições O CFM agregou em relação ao setor público isonomia salarial estímulo ao tempo integral ascensão funcional Em relação ao setor privado foi defendida a garantia de remuneração condig na dos honorários médicos desvinculandoos das contas hospitalares Dentre as propostas e trabalhos apresentados destacouse pela maior ob jetividade e precisão o documento do Conasems Coincidentemente foi o gru po de maior estruturação e articulação política da IX Conferência o que não foi casual uma vez que a implementação do SUS pela própria definição política e táticooperacional do Movimento Sanitário e do Movimento Social em Saúde ficou nas mãos dos Secretários Municipais de Saúde levando a municipalização a tornarse o tema central da IX Conferência Genericamente os documentos restantes foram pouco objetivos alguns tiveram caráter excessivamente teórico e outros um cunho mais políticoideoló gico como o documento da CUT não conseguindo exprimir de maneira mais afinada quais deveriam ser os desdobramentos do temário em termos de diagnóstico apurado da situação e os possíveis encaminhamentos ou diretrizes para operacionalizar o SUS O que esses documentos deixam transparecer são as diferenças nos encaminhamentos e posicionamentos dos diversos grupos que sustentavam o projeto da Reforma Sanitária Acreditamos ser esse um fato de suma importância ou seja a multiplicidade de grupos com interesses específicos em jogo no setor saúde Tal constatação cap6pmd 872011 1037 189 190 suscita a questão de como lidar com a diversidade de interesses já que os favorecimentos da realização de uma determinada ação deixam de ser virtuais para favorecer a uns e prejudicar a outros Tratase de questão intrínseca ao exercício da própria democracia e que se atualiza no processo de implementação da política de saúde O que interessa ressaltar no entanto é que os próprios grupos motores da Reforma no momento da sua implementação interagem de maneira particu larmente estreita na medida em que os conflitos internos cobram vulto despro porcional acirrando ainda mais as divergências entre os interesses dos usuários e os dos médicos Necessário se faz a propósito destacar a ausência de condução política pela Reforma nas forças sociais o que levou por exemplo à adoção de dife rentes posições por parte de um mesmo partido político conforme sua capaci dade de expressar os interesses dos profissionais de saúde ou os dos usuários Referimonos à defesa feita pela CUT com relação aos profissionais de saú de no que dizia respeito à dedicação de 30 horas semanais no serviço público e à posição contrária dos usuários organizados representados majoritariamente pelo PT que defendiam 40 horas semanais de trabalho médico no setor público Outro obstáculo de importância é o viés ideológico adotado no tratamen to dos Conselhos de Saúde a respeito da relação dos movimentos populares com o Estado que dificulta discussões mais objetivas e precisas sobre as ques tões relativas à implementação da política nas discussões levantadas durante a IX Conferência A disparidade de interesses entre usuários e profissionais de saúde deve ser considerada chave para as dificuldades na implementação da Reforma especi ficamente no que se refere aos médicos No entanto colocar na atuação destes o maior empecilho para a implementação da política de saúde não deixa de ser uma simplificação da questão Escorel 1992 Em primeiro lugar significa atribuir aos médicos no sistema de saúde brasileiro um papel que eles não têm Embora tenham uma responsabilidade ética no atendimento aos pacientes e nos últimos anos tenham mostrado maior preocupação com seus interesses corporativos do que com os valores essenciais do exercício da medicina eles não deixam de ser apenas uma peça na engrena gem que sustenta a reprodução do Estado no setor específico da saúde Inexistem condições satisfatórias de atendimento no sistema público de saúde salvo meritórias exceções instrumental higiene medicamentos pessoal cap6pmd 872011 1037 190 191 auxiliar manutenção das instalações etc Se às condições de trabalho agregar mos os salários enormemente deteriorados a falta de formação adequada como resultado dos currículos das faculdades de medicina o ingresso precoce no mercado de trabalho e as múltiplas inserções profissionais para contornar o empobrecimento fica evidente o papel secundário que os médicos representam no sistema de saúde Quando se compara o papel social e político dos médicos no Brasil em relação a outros países podemse observar as diferenças aviltantes do poder político e a valorização social dos médicos em países desenvolvidos Gerschman 1992b No Brasil os médicos não deixam de ser mais do que profissionais emergentes de um sistema de saúde obsoleto que resiste a sair de cena Em termos de resultados na IX Conferência conseguiuse garantir a continuidade do processo de municipalização da política de saúde de acordo com os princípios constitucionais não houve avanços significativos em relação à operacionalização da Refor ma ou seja sobre a definição de que lugar caberia aos estados e à federa ção na implementação da política Em suma os resultados da IX teriam ficado aquém dos resultados alcançados pela VIII Faltou um diagnósticoavaliação objetivo do momento atual de implementação do SUS que possibilitasse dar um passo à frente em relação a diretrizes concretas da operacionalização do SUS nos municípios definindo modalidades mais pragmáticas de intervenção e incidência no montante do orçamento a forma de pagamento e o repasse ágil dos recursos para estados e municípios Ou seja como enfrentar operacionalmente no geral o velho siste ma de saúde desde as gestões estadual e municipal A IX Conferência significou tal como a VIII um grande esforço de luta e de mobilização política com a reunião de amplas forças sociais para discutir democraticamente os problemas do setor saúde Porém evidenciou um certo esgotamento de um determinado modo de exercício da política apoiado em princípios eou questões substantivas Ainda que estes sejam necessários à for mulação da política são insuficientes para a implementação das reformas as quais requerem a negociação e a construção de acordos entre parceiros e opo sição de maneira a viabilizar as transformações propostas As dificuldades observadas resultam também da heterogeneidade na com posição das funções e do posicionamento destas no interior do Movimento cap6pmd 872011 1037 191 192 Social em Saúde à qual se agregou a fragilidade do Movimento Sanitário numa fase de declínio após ter conseguido durante mais de dez anos exercer a condução do movimento social em saúde e a ausência de uma direção políti ca aceita e reconhecida como tal pelo conjunto das facções do movimento social em saúde De fato isso a diferencia também da VIII Conferência onde o projeto da Reforma Sanitária foi abraçado e reconhecido como legítimo pelo Movimento Social em Saúde apesar das diferenças internas do Movimento Social como por exemplo com referência ao papel exercido pelo Estado visto anterior mente na Parte II A Redefinição da Política de Saúde e a Extinção do Inamps Algumas considerações devem ser apontadas a respeito do período políti co que se iniciou no final de 1992 no Governo de Itamar Franco sem que pretendamos aprofundar essa linha de discussão mas apenas destacar algumas questões gerais que podem subsidiar o debate acerca da política de saúde O período inicial da gestão de Itamar Franco caracterizouse pela ausência de definições articuladas em uma proposta de governo e de políticas que viabilizassem o aprofundamento do processo democrático sob a perspectiva da institucionalidade democrática da redistribuição de renda e da administra ção da justiça social A tônica de governo foi a de evitar enfrentamentos entre interesses conflitantes sem uma direcionalidade política evidente A composição dos ministérios eviden ciou projetos assim como posições diferenciadas entre os membros do gabinete sem o estabelecimento de articulações mais amplas embora o pessoal contem plado com as nomeações não estivesse contaminado pela corrupção No caso do setor saúde ainda que o governo não tenha tido um direcionamento político explícito para a implementação da Reforma a escolha de um ministro da saúde afinado com a mesma resultou numa gestão caracte rizada pela intenção e pela vontade política de aprofundar o processo de municipalização Em período extremamente curto menos de um ano na pasta o Minis tro da Saúde Jamil Haddad trouxe à discussão o papel e a definição das atribui ções que caberiam ao nível central de condução da política para que o SUS pudesse ser efetivado cap6pmd 872011 1037 192 193 No marco da Constituição do País além dos decretos que reorganizavam o Fundo Nacional de Saúde e a estrutura transitória do Inamps constituíram propostas radicais para a implementação do SUS o projeto de lei propondo a extinção do Inamps em abril do mesmo ano e o documento publicado em março de 1993 A Ousadia de Cumprir e Fazer Cumprir a Lei Nesse documento tratavase dos encaminhamentos no nível central para a implementação do SUS Retomaramse também as questões que conforma vam o SUS segundo a Constituição as medidas a serem efetivadas e as atribui ções a serem desempenhadas por cada uma das instâncias do sistema de saúde Priorizouse o financiamento considerandoo um desafio de natureza po lítica que exigiria o compromisso de 10 a 15 das receitas de cada uma das três esferas de governo federal estadual e municipal para o setor da saúde A maneira de dispor do montante de recursos foi discutida no citado docu mento em três pontoschave como ampliar a receita num quadro recessivo como racionalizar o custo da assistência e como erradicar o desperdício A respeito do primeiro ponto não há referência aos lineamentos da políti ca econômica que deveriam ser incorporados para o financiamento do setor A ausência de definições mais incisivas que revertessem na ampliação dos recur sos públicos para a área social e em especial da saúde se contrapôs ao empe nho das forças políticas conservadoras em mantêlos nos patamares existentes Ao mesmo tempo expressa a impossibilidade de recompor um novo pacto político e o impedimento de se avançar no processo de construção da demo cracia uma vez que as relações permaneciam pouco transparentes e pouco plurais no setor da saúde As medidas propostas passavam pelo cumprimento do previsto em lei como por exemplo a garantia de que não existisse sonega ção nas arrecadações cobranças etc Transformações mais profundas no financiamento da saúde levariam o setor empresarial de assistência de medicamentos e de tecnologia médica a perder espaço ou consideráveis cotas de poder Mesmo que o Presidente Itamar Franco tenha chamado figuras da esquerda política para ocupar cargos governamentais isso não redundou numa recomposição social e política ou seja não se tornou um processo de governo coordenado que expressasse um projeto nacional No segundo ponto como racionalizar os custos da assistência embora se considere esta uma questão técnica não houve uma definição mais clara de qual seria a imagemobjetivo do modelo assistencial fora o de tornálo mais eficiente e de como se poderia alterálo Para erradicar o desperdício apon cap6pmd 872011 1037 193 194 touse a necessidade de reverter a lógica da prática gerencial vigente responsa bilizando as instâncias pelo controle dos recursos do sistema Em termos operacionais e atribuições concluiuse que à esfera federal corresponderia formular a política nacional de saúde o desenvolvimento científico e tecnológico o desenvolvimento de recursos humanos a regulação do SUS e da atividade privada à esfera estadual a formulação da política estadual a coordenação e o planejamento da rede a supervisão e a cooperação técnica e financeira aos municípios e supletivamente a execução de alguns serviços à esfera municipal a formulação da política de âmbito local o planejamen to e controle das ações e serviços de saúde dirigidas ao indivíduo ao cole tivo ou ao ambiente incluindo os processos de produção e de consumo dos produtos de interesse para a saúde Ainda em termos operacionais propôsse a criação de um Grupo Especial para a Descentralização no Ministério da Saúde que elaborasse diretrizes volta das para a viabilização do processo em todas as suas áreas A redefinição da esfera federal conseqüentemente levou à revisão da organização administrativa do Ministério para a qual se propôs a criação de grupostarefa de profissionais lotados em seus diversos órgãos funcionando como equipes perenes na condução do plano técnicoadministrativo do pro cesso de descentralização e das transformações indispensáveis ao desempe nho do novo papel Propôsse ainda que esses grupos se constituíssem nas seguintes áreas financiamento desenvolvimento científico e tecnológico recursos humanos pla nejamento e orçamento vigilância epidemiológica qualidade de assistência à saúde qualidade de processos e produtos qualidade do ambiente incentivo à participação e controle social O documento foi aprovado pelas entidades da sociedade pelo Movimen to Social em Saúde e pelos municípios através do Conasems que ressalvas em relação a algumas questões tais como a ênfase quase exclusiva na assistência médica o uso da municipalização como sinônimo de descentralização a falta de uma nítida definição do papel das secretarias estaduais cap6pmd 872011 1037 194 195 a necessidade de alianças com segmentos do governo e do Legislativo para concretização das propostas a necessidade de se especificar melhor a relação com os municípios A Confederação Nacional da Indústria CNI a Associação Brasileira de Fármacos Abifarma o Sindicato de Fármacos Sindifarma e outras entida des empresariais opuseramse ao documento criticando e principalmente suge rindo que não se estruturasse uma municipalização pura e simplesmente mas sim uma regionalização ordenada e preestabelecida em função dos fluxos natu rais dos usuários existentes na época Também propuseram que os orçamentos da União dos estados e municí pios fossem definidos de acordo com os valores alocados por pessoa em um ano para o financiamento do serviços Entre outras questões similares foi pro posto ainda que a rede de alta complexidade fosse definida antes de ser ampli ado o processo de municipalização De modo geral os pronunciamentos des sas entidades visavam especialmente preservar o setor hospitalar privado Outra medida ligada à decisão de completar a municipalização foi o envio ao Congresso de um projeto de lei extinguindo o Inamps que foi aprovado através da Lei no 8685 em 29793 pelo Senado Federal Sua criação ocorrera em 1977 pela Lei no 6439 Tinha a seu cargo a assistência médica prestada por todos os órgãos previdenciários a centralização e o posterior repasse e controle dos recursos para os serviços de saúde da Previdência e do setor privado conveniado Representava assim um instrumento remanescente e tardio da política de saúde concebida no período autoritário e portanto distante dos princípios do SUS No início de 1990 um dos últimos atos do Governo Sarney foi a assinatu ra de decreto transferindo o Inamps para o Ministério da Saúde Mas sua estru tura organização e competências somente foram definidas em 1991 As funções que o Ministério de Saúde atribuíra ao Inamps tinham sido o controle avaliação e auditoria da rede assistencial a cooperação técnica com estados municípios e Distrito Federal além do repasse e do controle de recur sos financeiros para a assistência médica Em suma o Ministério da Saúde não efetivara alterações substantivas dentro do Inamps mantendoo como um ór gão superdimensionado e de caráter centralizador da política de saúde tal como desde a sua criação Enquanto isso a Lei Orgânica da Saúde regulamentada em 1990 previa o repasse automático e o controle dos recursos financeiros pelo Fundo Nacional cap6pmd 872011 1037 195 196 de Saúde em franca oposição à manutenção das funções do Inamps as quais foram reforçadas com a transferência para o Ministério da Saúde Um dos problemas históricos do Inamps tem sido o uso indevido dos recursos Desde a sua criação a corrupção foi facilitada através da nomeação de cargos de confiança nas direções regionais e nos hospitais pelo superfaturamento de compras e licitações de material e instrumental hospitalar e ainda pelo finan ciamento dos serviços de saúde este ao se sustentar sobre uma forma de pagamento por ato de intervenção médica acabou por favorecer o excesso de intervenções assim como pelo superfaturamento por ações não realizadas Para se ter idéia do superdimensionamento do Inamps no momento de sua extinção quando o processo de municipalização já havia avançado o órgão ainda geria 6500 hospitais contratados 40000 credenciados 9 hospitais pró prios 3 maternidades e 7 postos de atendimento ambulatorial Dele dependiam 96913 servidores distribuídos em coordenadorias regionais hospitais e postos de saúde próprios ou cedidos à rede pública conveniada ao SUS além do que apresentava 65104 aposentados incluídos na folha de pagamento52 O Decreto no 808 de 24493 estabeleceu a estrutura provisória até ser aprovada a sua extinção pelo Congresso Aboliu 550 cargos de confiança do órgão delegou amplos poderes ao Ministério da Saúde para sua descentralização e adequação ao SUS e ainda lhe atribuiu funções de apoio técnicoadministrati vo com relação a esse Ministério na descentralização das ações de saúde e na administração dos recursos orçamentáriofinanceiros patrimoniais e humanos alocados ao SUS A extinção do Inamps foi alvo de manifestações que expressavam posicionamentos diversos salientando uma desorientação muito grande com relação à medida governamental Os representantes políticos dos partidos con servadores de hospitais privados e os coordenadores estaduais do órgão não estavam de modo geral de acordo com a medida As forças políticas que participaram da luta pela Reforma Sanitária não chegaram a uma posição consensual nem a acordos em relação à sua implementação Parte das fileiras próreforma apoiaram a determinação adota da pelo Ministro propondo que o processo de descentralização deveria aprofundar a transferência de poderes para o nível local situação favorecida mas não necessariamente garantida pela extinção do Inamps alegando que não se podia confundir descentralização com municipalização 52 Conjuntura em Saúde NupesDapsEnspFiocruz abril de 1993 cap6pmd 872011 1037 196 197 Houve também nas fileiras próreforma a suspeita de que se tratava de mais um engodo da política neoliberal encaminhada pelo governo para ocultar a insuficiência dos gastos públicos destinados à saúde e ao enxugamento da máquina estatal apenas transferindo a corrupção e o clientelismo para outras instituições do Estado53 A ausência de acordos em torno da extinção do Inamps atualizou as dife renças internas existentes no Movimento Social em Saúde Neste cada facção vislumbrava o processo sob a ótica de interesses específicos que ali se dirimiam sem fixar acordos políticotécnicos sobre questões que reforçassem a unidade do movimento de maneira a enfrentar a oposição à Reforma 53 Gastão Wagner no artigo Sai Inamps entra publicado no periódico Proposta Jornal da Reforma Sanitária em abril de 1993 cap6pmd 872011 1037 197 199 7 A Descentralização do Sistema de Saúde A descentralização do sistema de saúde em estados e municípios foi o eixo central da implementação da Reforma Sanitária Esta passou a ter uma base local municipal de considerável importância já que com a regulamenta ção do SUS na Constituição e as Leis Orgânicas ocorreram transferências dos serviços de saúde para estados e municípios embora o processo perma necesse incompleto Isso porque de um lado em virtude dos empecilhos que o Inamps e o governo central impuseram ao processo a transferência de recursos tornouse difícil e demorada sobretudo no que diz respeito ao financiamento que conti nuou definido no nível central tanto em seu montante quanto em seu repasse De outro a continuidade e o aprofundamento do processo de municipalização em grande medida ficou ao arbítrio político de governadores e prefeitos ao que se somou a própria heterogeneidade econômica populacional e de infra estrutura dos serviços de saúde dos municípios brasileiros Uma grande quantidade e diversidade de trabalhos relacionados à descentralização foram desenvolvidos no Brasil nos últimos anos O processo de democratização do País tem atualizado uma discussão que em si mesma não é recente A ambigüidade do termo Jacobi 1989 e as diferentes conotações atribuídas à descentralização adquirem um interesse específico no processo de democratização Teixeira 1989 Campos 1990 que o País atravessa Descentralização desconcentração de funções eou deslocamento de po der formam os diversos aspectos do processo de descentralização política fri sados pelos autores Havendo leituras tão diversas sobre a descentralização polarizar o debate em termos ideológicos induziria a uma simplificação da temática Jacobi 1989 Muller 1992 sendo mais proveitoso situar a tensão cap7pmd 872011 1039 199 200 centralizaçãodescentralização nos diversos grupos sociais e nas concepções políticas envolvidas na implementação da política de saúde além de considerar marco de referência desse tipo de análise a concepção de descentralização que associa essa noção à democratização do Estado Interessa aqui examinar o atual estágio do processo de municipalização tentando sublinhar as diferenças entre algumas experiências municipais discuti das mais adiante e os motivos que explicariam o motivo pelo qual umas foram mais bemsucedidas que outras54 Antes da abordagem dos municípios escolhidos nos deteremos nas restri ções e condicionamentos colocados em nível central e estadual pela implementação da política de saúde Uma das primeiras questões a relação entre Reforma e Democracia foi discutida teoricamente no primeiro capítulo deste livro Embora acreditando na compatibilidade entre ambas ou seja que a democracia comporta qual quer reforma a efetivação desse princípio teórico requer mudanças institucionais nos aparelhos de Estado a própria Reforma do Estado Den tre elas viabilizar a descentralização da política de saúde de maneira a alterar a distribuição de poder político entre federação estados e municípios com o intuito de alcançar uma redistribuição mais eqüitativa do cuidado à saúde da população no contexto municipal O que a implementação da política de saúde evidenciou de forma precisa foi a íntima relação entre saúde e política tendo em vista que prover melhores condições de saúde às populações necessitadas é questão que não pode ser resolvida sem que o Estado priorize inovações nas políticas sociais em geral de maneira a enfrentar por meio destas os problemas da miséria e da morbidade O setor da saúde pelo grau de desenvolvimento do projeto da Reforma Sanitária e das forças sociais em prol da mesma constitui o ponto de fratura ou de condensação das contradições do sistema político Ou seja considerando o estágio em que se encontra a implementação da Reforma Sanitária e por esta envolver a participação social em sua efetivação configuramse pontos de fra tura enfrentamentos e contradições entre essas áreas de política e o próprio sistema político quando se exige deste maior transparência e accountability nos procedimentos 54 Dois eixos analíticos vão requerer a nossa atenção a própria gestão governamental da política de âmbito local no contexto do estabelecimento da democracia e a incidência da atuação dos mo mentos sociais nas experiências de municipalização escolhidas através dos Conselhos de Saúde cap7pmd 872011 1039 200 201 Tornamse assim flagrantes que os impedimentos na implementação da Reforma Sanitária não podem ser desvinculados da modalidade de exercício da política do governo federal a qual não somente compromete a consolida ção da democracia mas também revela a inadequação do Estado ao processo de descentralização em curso O diagnóstico do esgotamento do Estado e do pacto de dominação em que este se sustentou assim como o estabelecimento de um novo pacto com a conseqüente reestruturação do Estado mereceram tratamento excelente no tra balho apresentado por Fiori 1992 na IX Conferência Nacional de Saúde55 Ainda que uma profunda reforma do Estado devesse passar necessaria mente pela constituição de um novo pacto caberia às forças reformistas no setor saúde um relevante papel nesse processo proporcionando maior adequa ção ao processo de implantação da Reforma e de negociações políticas com aquelas forças do setor saúde não comprometidas com a Reforma tais como as associações que representam o setor privado da saúde É preciso ressaltar neste momento um ponto de crucial significação Ape sar do enorme poder convocatório e de mobilização social do Movimento Sanitário e do Movimento Social em Saúde evidenciado na IX Conferência não houve liderança política com projeção nacional nas forças reformistas nem autoridade política que a habilitasse a negociar Não houve um plano nacional de saúde cuja operacionalização e implementação exigisse a reforma do pró prio Estado nem uma explicitação das mudanças consideradas prioritárias no âmbito do Estado para a implementação da Reforma Sanitária Fazse necessário ainda assinalar o papel que atribuímos ao Estado e em que direção deveria ser exercido Não temos dúvida a respeito do papel central que o Estado deve manter com relação ao mercado e ao setor privado na sua interven ção como promotor do desenvolvimento econômico e de justiça social 55 Em síntese decomporse durante os anos 70 o pacto desenvolvimentista desfezse sua articula ção econômica e sua aliança política perdendo ademais sua aparente autonomia a coalizão tecnoburocráticomilitar responsável pela gestão do governo e da economia durante os vinte anos de autoritarismo desenvolvimentista Este quadro se mantém durante os anos 80 sem que se afirme nenhuma nova hegemonia coalizão ou estratégia E este para nós é o núcleo da crise orgânica vivida pelo Estado brasileiro As transformações que se impõem são radicais e apontam para uma mudança qualitativa do papel do Estado assentada num pacto nacional que incorpore a população até hoje excluída permitirá reformar o aparelho do Estado e dotálo da flexibilidade instrumental capaz de viabilizar um Estado ágil interna e externamente cujas intervenções sejam definidas por uma estratégia que solidarize os setores empresariais hegemônicos com as burocracias estatais e estes em conjunto com os ideais de dignidade e cidadania popular comple tamente ausentes até agora da vida política brasileira Só um estado forte poderá cumprir estes objetivos Fiori 1992 cap7pmd 872011 1039 201 202 Essas funções dãolhe novas atribuições e exigências de modo que a de mocracia venha a se confundir cada vez mais com a eqüidade social e as mu danças implementadas se tornem objeto de reflexão discussão e contínua ava liação dos resultados e da efetividade conseguida através das mudanças implementadas tais como o desmonte e o redimensionamento dos nichos de ineficiência da máquina estatal e a criação de centros nervosos de decisão da política em que te nham assento e representação os diversos interesses sociais em jogo na sociedade diante de políticas específicas a incorporação de uma burocracia concursada de alto nível técnico e bem remunerada a demissão do excesso de funcionários mal remunerados e sem formação adequada e a negociação com o setor privado eou a cria ção de empregos para a alocação desses funcionários dentro de um prazo razoável por último a aproximação por parte do Estado das experiências locais de gestão fundamentalmente nas áreas de política social estendendo o processo de descentralização do setor saúde às áreas de política social restantes Neste sentido quando mencionamos Reforma do Estado não estamos nos referindo a uma reforma exclusivamente administrativa o que seria impra ticável Nenhuma reforma administrativa per se garantiria o encaminhamento da Reforma Sanitária tal como consagrada na Constituição Sua implementação requereria também uma recomposição das alianças políticas e de relações de forças entre interesses e grupos as burocracias e os médicos empregados no setor públicoprivado os representantes do setor pri vado profissionais de saúde movimentos sociais usuários sindicatos etc Trata se portanto de questão a ser pensada pelas forças reformistas Se nos detivermos agora nas restrições que em nível central se colocaram para a operacionalização do SUS a primeira a se destacar é o orçamento nacional destinado à saúde Escassos 3 do PIB inviabilizam totalmente um sistema universal e público de saúde o SUS enquanto os dados sobre gastos destinados à saúde nos países desenvolvidos registravam em torno de 10 do PIB Desse modo não poderia ser aceita uma depreciação do orçamento da saúde dessa magnitude pois o patamar de 10 do PIB é exigência para a cap7pmd 872011 1039 202 203 implementação da política Não existe margem de discussão a esse respeito já que se trata de exigência inelutável para a implementação da política Posta essa questão como de caráter inegociável entre as forças reformistas e o governo obrigase este a redefinir uma política orçamentária nacional o que aciona um mecanismo em múltiplas direções por ser o orçamento da saúde vinculado à definição da política econômica nacional Conseqüentemente decisões desse tipo envolvem a orientação da produ ção nacional as prioridades de investimento as dívidas externa e interna as políticas fiscal e bancária a própria estrutura do Estado e todos aqueles fatores que definem um projeto nacional de desenvolvimento conceitualmente susten tado na redistribuição de renda e na transferência de poderes para os níveis locais do exercício da política Já no plano mais específico dos recursos financeiros destinados ao setor ainda se faz necessário abolir o repasse dos recursos para estados e municípios na forma de pagamento pela produção de serviços Unidade de Cobertura AmbulatorialUCA e Autorização de Internação HospitalarAIH Esse talvez seja o ponto no qual vão assentarse a reprodução do sistema de saúde e a produção de serviços de saúde Ao se levar em conta que o sistema de saúde deve ser sustentado num modelo de produção de serviços médicos e que a produção de qualquer bem na sociedade capitalista é regido pelas leis do mercado ou seja que aquele que dele quiser usufruir terá de pagar por isso fica evidente que cada ato de inter venção médica terá seu correspondente pagamento seja no consultório particu lar ou no serviço público Assim quanto maior o número de intervenções médicas maior a quanti dade de ordens de pagamento ainda que o paciente não pague de seu próprio bolso ou seja que o Estado é quem cumpra essa função Enquanto o sistema de saúde estiver condicionado à produção de servi ços a saúde continuará a ser compreendida não como direito de cidadania mas como bem a ser possuído e portanto condicionado à aquisição privada ou pública Essa é a lógica que se estende da relação médicopaciente ao sistema de saúde decomposto nos seus fundamentos Por essa ótica assim como a saúde não é um direito do cidadão e um dever do Estado ainda que contemplada pela Constituição a atribuição dos recursos para o setor não consegue se desprender do modelo liberal de aten ção à saúde Campos 1992 Na questão do financiamento e na modalidade cap7pmd 872011 1039 203 204 do repasse dos recursos reside um dos pontoschaves para a mudança do sistema de saúde56 Embora a definição dos critérios a serem aplicados para o repasse de recursos tenha dependido da regulamentação do Artigo 35 da Lei no 8080 até os dias atuais o documento elaborado pelo Conasems para a IX Conferência reafirmou o estipulado pelo Artigo 3 da Lei no 8142 Este estabeleceu que deveria ser respeitado o critério populacional até a regulamentação da Lei no 8080 e agregou a manutenção da rede hospitalar e ambulatorial além dos investimentos das ações de saúde coletiva e os novos serviços executados dire tamente pelos municípios mas sem incorporar o critério epidemiológico o perfil demográfico da população e a capacidade instalada O montante dos recursos a serem repassados a cada um dos estados e municípios deveria ser portanto uma resultante de análise e reflexão por parte das autoridades nacionais e do Conselho Nacional de Saúde e ser incorporada na elaboração de um Plano Nacional de Saúde Outra questão diz respeito às atribuições correspondentes a cada uma das instâncias de governo implicadas no processo de descentralização Se bem que essa remeta a uma discussão conceitual relacionada à própria noção de descentralização a perspectiva que nos interessa aqui destacar relacionase à pre sença ou à omissão dos órgãos centrais na política assim como aos incentivos utilizados pelos órgãos federais para estimular a autonomia políticoadministra tiva das instâncias descentralizadas no processo em curso Em nível federal o que se observou até recentemente foi o esvaziamento da política que se manifestou na ausência do papel regulador do Ministério da Saúde e do Conselho Nacional de Saúde no processo de municipalização As sim a falta de um Plano Nacional de Saúde que contivesse as diretrizes básicas que guiariam a implementação do SUS levou a uma descentralização adminis trativa do sistema de saúde em que faltaram incentivos para uma efetiva auto nomia política e administrativa dos municípios Essa omissão por parte do Estado em relação a seu papel regulador central também facilitou medidas de caráter casuístico resultantes das negoci ações políticas entre os tradicionais parceiros da saúde políticos clientelistas setor privado 56 Campos 1992 afirma a partir de uma perspectiva muito próxima a essa que não se pode pensar em mudanças enquanto se mantiver um modelo liberal de atenção à saúde Considera contudo que os médicos constituem um dos principais fatores que têm impedido a efetiva transformação do modelo de assistência médicosanitária brasileiro questão à qual retornaremos cap7pmd 872011 1039 204 205 Se nos reportarmos ao ano de 1992 dois fatos ilustram adequadamente a afirmação anterior a ausência de uma política orçamentária nacional e de saúde levou o Ministro da Previdência a resolver repentinamente não repas sar mais recursos para estados e municípios logo após a decretação do estado de falência do seu ministério Simultaneamente a inexistência de um Plano Nacional de Saúde possibilitou ao Ministro da Saúde fazer uso sem consulta do Fundo de Amparo ao Trabalhador FAT para pagar aos prestadores vinculados ao setor privado As relações dinâmicas de poder entre atores envolvidos consolidadas diferenciadamente na história das instituições de saúde voltam a inclinar a balança da maneira habitual Estados e municípios ficaram prejudicados pela disponibilização e utilização dos recursos financeiros definidos exclusivamen te pelo governo federal Previdência e Saúde situação favorecida pela ausên cia de diretrizes orçamentárias contidas num plano nacional de saúde de ex tensão nacional As restrições da política em nível estadual em razão da ausência de instru mento político dos estados no processo reformador atualizaram e agravaram os problemas do nível central Mendes 1992 suscita alguns pontos que pare cem de importância no nível estadual de descentralização Em primeiro lugar a retirada das secretarias estaduais da operação da rede de serviços de saúde obrigaria a uma reorientação políticoadministrativa que as readequasse às novas funções e atividades necessárias ao processo de descentralização Neste contexto o papel das secretarias passaria a ser de caráter políticoestratégico na condução das políticas de saúde e na definição das dire trizes municipais As secretarias estaduais deveriam de acordo com as atribuições a elas conferidas pela Constituição ter a seu encargo as relações com o setor priva do através de instrumentos de direito público Deveriam também assumir a execução direta de serviços que pelo nível de cumplicidade não poderiam ser assumidos pelos municípios e de programas de insumos críticos para o conjunto do Estado O controle epidemiológico e sanitário deveria ser realizado também pelos estados assim como o exercício de funções normativas e de avaliação e o controle das ações descentralizadas não mais em termos contábeis e financeiros ou em atos médicos finais mas sobre bases epidemiológicas e sanitárias o que colaboraria para mudar o modelo de atenção à saúde Por fim caberia da cap7pmd 872011 1039 205 206 mesma forma aos estados desempenhar um papel redistributivo de recursos em relação aos municípios como parte do processo de avaliação A efetivação dessas políticas exigiria a nãointerferência do nível central e a definição da autonomia administrativa que fizesse das secretarias estaduais gestores efetivos e únicos do SUS nos estados A descentralização real das decisões políticas não é factível sem a autonomia dos níveis inferiores aos quais corresponde decidir e implementar a política e ampliar a participação dos atores sociais envolvidos na mesma Ao pensarmos o processo de descentralização nessa direção não nos propomos afirmar que ne cessariamente a descentralização implique uma democratização da política O que se quer destacar é que ainda que a descentralização não garantisse per se a ampliação da participação dos cidadãos na tomada de decisões por haver uma efetivação políticoadministrativa do processo de descentralização contemplado pelo SUS esta favoreceria indiscutivelmente a democratização da política de saúde na medida em que criaria condições para viabilizar ins tâncias locais de participação geradas pela própria população eou suas enti dades representativas Tornamse sumamente complexas a análise e a avaliação do processo de municipalização se considerarmos que no total 4973 municípios extremamen te heterogêneos conformam o território nacional Assim foi necessário um recorte que viabilizasse o tratamento da questão de maneira a facultar parâmetros iniciais de avaliação a respeito da implementação da política de saúde em nível municipal Trataremos a seguir de um restrito estudo de casos sobre o atual estágio da política de saúde em alguns municípios brasileiros visando estabelecer certas com parações entre eles conducentes a aproximações que ainda que não possam ser consideradas conclusivas ou significativas em termos do conjunto dos municípios evidenciam indícios que contribuem para um enfoque metodológico disponível em futuras análises da implementação da política nos municípios brasileiros A primeira classificação estabelecida pelos estudos sobre municipalização baseiase no tamanho da população diferenciando municípios de grande porte médios e pequenos Não há consenso na bibliografia especializada nem entre os pesquisadores especialistas no tema nacionais e internacionais a respeito de uma classificação única do tamanho dos municípios O Instituto Brasileiro de Administração Municipal Ibam tem por crité rio considerar como pequenos municípios os que têm até 10 mil habitantes cap7pmd 872011 1039 206 207 médios entre 10 mil e 50 mil habitantes e grandes os que contam mais de 50 mil habitantes Sendo esse critério não prescritivo vale o que for definido pelo pesquisador Tentando compatibilizar o número de habitantes e o fator desenvolvimento vamos considerar que nos municípios de grande porte se agrupam as cidades capitais dos estados e outras grandes cidades do País que normalmente coincidem com os municípios de maior importância e desenvolvimento econômicosocial regional Os municípios de porte médio correspondem a níveis intermediários de população atividades produtivas e desenvolvimento Os de pequeno porte são municípios agrícolas de escasso ou nenhum desenvolvimento De qualquer forma persistem ainda grandes diferenças internas nesses agru pamentos difíceis de serem classificadas e reagrupadas e que se relacionam com a história do município o tipo de população as migrações o tipo de atividade produtiva ingressos educação tradição cultural etc Partindo desses critérios de classificação escolhemos de maneira aleatória para a análise alguns dos municípios com registrosinformações das experiên cias de municipalização implementadas sobre os quais existe consenso nas pu blicações especializadas57 sobre os avanços conquistados no que diz respeito ao processo de descentralização Dentre os grandes municípios serão analisados São Paulo SP e Rio de Janeiro RJ Dos municípios de médio porte discutiremos Santos SP e Manaus AM e finalmente entre os pequenos escolhemos Manhuaçu MG e Icapuí CE São experiências as mais diversas quanto às variáveis selecionadas mas procuramos agrupar os valores encontrados de maneira tal que nos forneçam base comparativa para a análise Em relação aos municípios escolhidos poderíamos afirmar de um lado que apresentam a mesma heterogeneidade que caracteriza os municípios bra sileiros De outro que nosso interesse focalizou os municípios onde houve certo avanço na política de municipalização segundo o critério adotado De modo geral podemos assegurar que quanto maior o município maior a complexidade das questões envolvidas e conseqüentemente as dificuldades na implementação da política 57 Entre tais publicações podemos destacar Saúde em Debate periódico do Cebes Centro Brasileiro de Estudos de Saúde Proposta Jornal da Reforma Sanitária do RadisFiocruz Reunião Análise e Difusão de Informação sobre Saúde Edição Médica órgão oficial da SMCRJ Sociedade de Medici na e Cirurgia do Rio de Janeiro Cadernos de Saúde Pública da EnspFiocruz Escola Nacional de Saúde Pública cap7pmd 872011 1039 207 208 Se nessa divisão interna entre municípios há variações no ritmo na pro fundidade e nos resultados existe todavia certo consenso a respeito da im portância da orientação políticopartidária das prefeituras no andamento da política nos trabalhos que tematizaram o processo de municipalização da política de saúde no Brasil Uma outra questão considerada como positiva é a existência dos Conselhos de Saúde e o grau de mobilização da sociedade em torno da proposta De fato seriam essas as condições prioritárias para o desenvolvimento do processo de municipalização No entanto permanecem as diferenças em relação aos pontos mencionados quando observamos a nãoexistência de certos requisitos de natureza política mas que exigem procedimentos técni cos dentre os quais destacamos o incremento de recursos orçamentários no setor saúde o diagnóstico do quadro sanitário da população do município e o plano de saúde correspondente à abordagem da implementação da política com particular ênfase no enfrentamento dos problemas de saúde detectados Constituirão pontos a elucidar os resultados alcançados na operacionalização da rede de serviços e de atendimento dos usuários e em que medida as refor mas administrativas empreendidas pelos municípios no setor saúde possibilita ram maior participação dos usuários no sistema de saúde municipal A avaliação dessas questões requereria dois planos de análise em contígua interação e portanto um esforço redobrado para distinguir quais os elemen tos essenciais que conduziriam à compreensão do processo de municipalização da política de saúde Por um lado poderíamos lidar com indicadores eou resultados estatísticos que nos informassem a respeito da melhoria ou não na qualidade dos serviços e do atendimento à saúde ou seja o seu impacto sobre a população vertente de análise que não vamos considerar aqui Por outro lado veremos o processo de municipalização como um processo polí tico que envolve a própria democratização não só da saúde mas do Estado e da sociedade Na realidade o desenho políticoinstitucional construído na última década e meia da história da política de saúde que se convencionou chamar de Refor ma Sanitária teve por princípio orientador a ampliação da participação social e a constituição da cidadania na construção da democracia Em que medida a municipalização da política de saúde na implementação do SUS viabilizou ou não tais princípios constituirá o eixo da discussão dos casos cap7pmd 872011 1039 208 209 Município de São Paulo O município de São Paulo é o maior do País com aproximadamente oito milhões de habitantes No período que se estende de 1989 a 1992 a Prefeitura esteve a cargo do Partido dos Trabalhadores PT tendo promovi do uma ampla reforma administrativa na Secretaria de Saúde com a finalida de de implementar o SUS58 Foram então criadas dez Administrações Regionais de Saúde ARS subdividi das em 44 distritos dos quais 32 estavam em funcionamento Por sua vez nas ARS e Distritos Sanitários DS criaramse Conselhos TécnicoAdministrativos compos tos por integrantes de todos os níveis incluídas as próprias unidades de saúde As ARS contavam com Direções Regionais que funcionavam como Secre tarias de Saúde Regionais Os DS concentravam a atividade de planejamento coordenando e gerenciando os programas e as unidades sob sua jurisdição Os Conselhos de Saúde foram estabelecidos no nível municipal regional distrital e nas Comissões de Gestão dos Serviços Nos Conselhos de Saúde a representação dos usuários correspondeu a 50 do total de membros A re presentação paritária dos usuários em relação aos trabalhadores de saúde e administradores do sistema foi estipulada na I Conferência Municipal de Saúde realizada em 1990 Essas reformas recompuseram a estrutura administrativa da Secretaria Municipal em quatro níveis central regional distrital e local O que se constata a partir dessas informações é que no município de São Paulo houve uma efeti va descentralização administrativa do setor saúde junto a um processo de am pliação da participação popular na gestão municipal É necessário destacar que os grandes municípios dentre eles São Paulo tinham uma rede de serviços muito extensa correspondente ao estado e às vezes à federação Sua municipalização em geral não se operou completamente e mesmo quando aconteceu não foi acompanhada do repasse dos recursos do estado eou da federação para o município A Prefeitura de São Paulo destinou 13 do orçamento municipal para a saúde porém não conseguiu integrar ao sistema as unidades de emergência que pela legislação corresponderiam ao município nem as unidades do estado 58 Os dados discutidos em relação ao município de São Paulo foram obtidos do trabalho Participa ção popular e gestão de serviços de saúde um olhar sobre a experiência de São Paulo realizado por Amelia Cohn Paulo Elias e Pedro Jacobi e do periódico Conjuntura em Saúde jul a out nov 1992 e mar abr maio e jun1993 cap7pmd 872011 1039 209 210 Segundo levantamento feito pelo Sindicato dos Trabalhadores na Área de Saúde em 17 hospitais da Grande São Paulo existiam 2557 leitos desativados e havia também um déficit de 50 de médicos 73 de enfermeiros e 41 de pessoal de enfermagem Ainda em relação à rede estadual agregouse à falta de recursos o esquema político do governador do estado que obedeceu aos moldes tradicionais clientelistas do PMDB pelo qual as direções dos hospitais eram submetidas a interesses políticopartidários segundo negociações e arranjos convenientes à condução do partido do governo estadual Neste sentido e para exemplificar a afirmação anterior constatamos que o Hospital de Heliópolis construído pela Previdência Social estadualizado em 1988 e um dos maiores do estado possuía 440 leitos e era considerado de referência em cirurgia reduziu o número de atendimentos nos últimos meses por falta de material e de pessoal Esse fato foi significativamente registrado após a mudança da direção do hospital59 feita pela Secretaria Estadual para atender a interesses de vereador do PMDB Na verdade tratase de regra e não exceção nos estados brasileiros De qualquer modo em relação ao município há indicadores de melhoria na gestão da rede própria os recursos humanos da saúde aumentaram em 74 nos quatro anos de gestão do PT o número de leitos dobrou e incrementouse a operação dos mesmos alcançando taxas de ocupação de 86 e reduzindo a mortalidade hospitalar de 74 para 50 em 1992 Os salários dos profissio nais de saúde tiveram reajustes constantes o que significou importantes mudan ças na qualidade de atendimento e na dedicação dos médicos à função Em pesquisa realizada no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea Cedec por Cohn Elias Jacobi 1993 foram ressaltados a partir de entre vistas realizadas com administradores do sistema e com usuários os pontos de estrangulamento após os primeiros dois anos da implementação do SUS Os resultados da investigação são os seguintes os diretores de região e de distrito apontaram para a falta de uma compre ensão mais clara sobre o papel dos Conselhos de Saúde e de como concre tizar a proposta de participação popular indicaram a necessidade de definir prioridades na programação das ativida des das unidades 59 Folha de S Paulo 170692 cap7pmd 872011 1039 210 211 declararam as dificuldades na gestão dos recursos humanos devido às resis tências para modificar a prática tradicional junto aos recursos corporativos utilizados pelos funcionários para se proteger das mudanças explicitaram que em algumas regiões também ocorreram dificuldades para implementar os Conselhos de Saúde em conseqüência das tensões entre funcionários e população Um aspecto que enfatizaram como dos mais complexos foi a expectativa interna de alguns movimentos face à sua institucionalização pela experiência da participação na gestão pública Essa questão foi analisada no capítulo relaciona do aos movimentos sociais em saúde mas a retomaremos mais adiante já que não deixa de ser um paradoxo que precisamente em uma administração pro gressista e de caráter popular não tenham sido aliviadas as dificuldades para lidar com usuários e com movimentos populares em saúde permanecendo o dilema da institucionalização do movimento como um impedimento de uma inserção mais incisiva desses movimentos na política Os investigadores concluíram a partir das entrevistas com os representan tes dos usuários que as direções das unidades encontraram com quem dialogar na formação dos Conselhos onde havia um movimento popular organizado Porém onde este não existia as dificuldades ampliaramse devido à falta de uma política clara de representação bem como de uma agenda para a sua formação Havia pouca institucionalização da experiência e a relação dos repre sentantes com os representados ocorria de maneira informal o boca a boca a vizinhança etc O funcionamento regular dos Conselhos se ressentiu também da falta de definições mais nítidas sendo a boa vontade ou não dos diretores em explicar as coisas com clareza um dos critérios mais utilizados para o julgamento que os usuários fizeram sobre o papel da direção Algumas observações merecem ser destacadas dentre as quais considera mos que se deve dar especial atenção à relação entre a necessidade de um co nhecimento técnicopolítico mais apurado do setor saúde e os problemas deri vados da falta de experiência política na gestão de governo por parte do PT numa prefeitura que é das mais complexas do País Outro ponto a enfatizar referese ao próprio exercício da democracia quando se trata de atores políticos os partidos e de atores sociais usuários e movimentos sociais que nunca vivenciaram uma experiência democrática de gestão política Portanto não há um conhecimento político acumulado nem cap7pmd 872011 1039 211 212 clareza quanto à implantação de inovações políticas que aproximem os serviços de saúde aos usuários Exemplificam a nossa afirmação as observações sobre a falta de adequação entre a proposta e sua concretização a necessidade de definir prioridades a falta de entendimento dos trabalhadores de saúde e as diferenças entre usuários e administradores Questionamos sobre qual a melhor forma de gerir as unidades de saúde e até onde inovar quais os benefícios recebidos por se implantar formas de co gestão e nesse caso de que tipos e de que maneira as vantagens da maleabilidade na administração segundo o tipo de unidades de saúde as questões de saúde prioritárias e com que instrumentos abordálas por onde começar e como prosseguir como lidar com recursos escassos e com um governo estadual que responde aos velhos cânones partidários e que conseqüentemente dificulta ino vações democráticas Uma das questões que em nossa opinião é de extrema delicadeza e de singular importância diz respeito ao financiamento dos sistemas locais de saúde na medida em que a obtenção de recursos possa ser condicionada pelas auto ridades locais ao grau de mobilização da população Através de uma gestão democrática impõemse novas formas de atuação dos movimentos populares em relação à implementação da política mas também modalidades de gestão e conseqüentemente de aplicação de recursos que obedeçam a lógicas redistributivas não atreladas a formas clientelistas Esse perigo pode ser assim exemplificado Existe um forte consenso entre os que participam desses processos de que quanto mais sólida a organização e mais intensa a mobilização maior a eficiência dos serviços e mais prontamente um serviço vê suas reivindicações atendidas Ora como se trabalha em um quadro de grande precariedade e sobrecarga dos serviços de saúde do Municí pio de São Paulo apesar da expressiva participação da Secretaria de Saúde no orçamento municipal de 10 a 15 no período as várias regiões e em cada uma delas as unidades de saúde acabam por ter de competir entre si pelos recursos E isso acaba sendo uma realidade difícil de ser enfrentada sobretudo para os movimentos populares que entendem e pensam os interesses da população como sendo se melhantes e portanto comum a todos Cohn Elias Jacobi 1993 No exercício da democracia a participação popular adquire um significa do diverso daquele de mobilização popular Esta como única alternativa po lítica para a obtenção de demandas correspondeu a um estágio do exercício da cap7pmd 872011 1039 212 213 política ligado à formação desses movimentos sociais no regime autoritário Com uma gestão partidária que busca representar os interesses dos trabalhado res e das populações carentes tornase prioritária a formação de ossaturas institucionais inovadoras para o exercício das funções políticas na esfera de governo que contemplem a dinâmica das relações entre o próprio partido governista e os movimentos na sua relação com as instâncias governamentais Já não cabem as mobilizações na porta das prefeituras como única maneira de esses movimentos se expressarem politicamente Não que elas deixem de existir mas não poderiam vir a ser o modo principal de exercício da política na democracia De qualquer modo os resíduos de um momento político anterior e a modalidade tradicional de exercício da política são ainda mais fortes que a tendência às inovações políticas democráticas Um bom exemplo disso foi o manejo do PT sobre os recursos para as unidades de saúde citado antes onde os mesmos eram negociados com os movimentos populares em troca de mobilização estabelecendose a regra sobre a qual quanto maior a mobilização popular maior a quantidade de recursos O problema dos recursos um dos mais sérios na implementação do SUS por ser objeto de desvio político tema ao qual já nos referimos não poderia ou deveria continuar acontecendo ainda que sob outras formas com uma administração popular Os movimentos populares não podem ser arte e parte Na verdade tratase de um procedimento que descaracteriza a participa ção popular na medida em que a participação tornase pouco determinante na implementação da política No momento em que isso acontece o movimento popular passa a ser instrumento de negociação política entre facções do partido ou de autoridades e a mobilização popular tornase provedora de recursos Se efetivamente os Conselhos de Saúde fossem deliberativos em relação à política seriam instâncias que nos diferentes níveis da implementação da políti ca municipal regional distrital unidades teriam uma função redistributiva em relação aos recursos e para cujo desempenho os movimentos populares preci sariam se habilitar Mas por não ser assim cabe indagarmos sobre esse contra senso ou seja o movimento popular precisar negociar consigo próprio os re cursos a serem aplicados nas unidades O processo iniciado pela Prefeitura de São Paulo teve uma duração extre mamente curta somente quatro anos e os resultados alcançados não foram significativos em relação à melhoria da rede de serviços e às condições de saúde da população Os hospitais municipais os que pertenciam ao município antes cap7pmd 872011 1039 213 214 da municipalização foram mais bem reequipados e receberam maior número de leitos Houve também melhoria na gestão dos recursos humanos do siste ma o que redundou em melhoria da qualidade no atendimento médico e na diminuição das greves no setor Os programas implantados não tiveram um desenvolvimento notável nem se verificaram mudanças significativas nos indicadores de saúde da população nesses anos Sob a perspectiva política em geral o processo am pliou a participação dos usuários e dos movimentos populares na implementação do SUS e trouxe à tona principalmente as dificuldades in trínsecas à democratização como as diferenças presentes de organização cultura linguagens entre os diversos atores envolvidos a pluralidade de interesses e a carência de procedimentos institucionais que facilitassem a tomada de decisões A política deixou de ser arbitrada externamente para passar a ser uma condição a ser desenvolvida pelos próprios atores entre si e na relação com os outros Neste sentido há um processo de mudança social e subjetiva no sentido do sujeito que não tem unicidade nem previsibilidade mas que pro move rearranjos nos comportamentos políticos dos diversos atores A experiência de participação popular nos Conselhos de Saúde tem sido para esses atores desencadeadora de transformações na concepção do que seja a gestão política e sua complexidade assim como na consciência da necessidade de possuir conhecimentos que os habilitem a desempenhála melhor Cohn Elias Jacobi 1993 Considerados assim os processos de democratização têm um valor em si mesmos ainda que resultados imediatos não possam ser alcançados em termos de nova ordenação social e política A gestão do PT na prefeitura acabou em fins de 1992 após as eleições municipais Como resultado destas produziuse uma mudança total de orienta ção já que o PMDB venceu as eleições tendo então assumido o governo do estado Paulo Maluf antigo político de moldes clientelistas conhecido pelas de núncias de corrupção no manejo da coisa pública durante o regime militar Os resultados dessa mudança política logo se tornaram visíveis tendo a situação da rede municipal voltado a se assemelhar à da estadual O Sindicato dos Médicos de São Paulo realizou uma pesquisa em março de 1993 cujos resultados indicaram que dos 21 mil leitos existentes nos hospi tais do estado 8610 encontravamse desativados o que correspondia a cerca cap7pmd 872011 1039 214 215 de 41 constatandose também um déficit considerável de médicos enfer meiros e pessoal de enfermagem Ficou constatado também que havia 500 leitos desativados cerca de 20 dentre os 2557 existentes na rede municipal ao passo que a rede básica só funcionava três vezes na semana por falta de equipamento e pessoal Os gran des complexos hospitalares Hospital das Clínicas e Mandaqui passaram a atender apenas a emergências Em outras unidades hospitalares houve reinci dência de greves de médicos e de funcionários e a própria Secretaria Municipal de Saúde manifestouse através da imprensa para afirmar que esses aconteci mentos eram resultado dos baixos salários e da conseqüente perda de médicos A política salarial de reajustes constantes da gestão anterior foi interrompida pelo novo prefeito logo após ter assumido o cargo Assim enquanto em 1990 o salário dos médicos alcançava o equivalente a US 1000 em abril de 1993 não chegava a US 340 No município enquanto 900 médicos pediram demissão naquele ano houve falta de quatro mil médicos no estado segundo dados do SinMed Ameaçando a sobrevivência do setor público da saúde a situação acen tuouse quando a greve completou um mês em toda a rede estadual Quando as crises no setor saúde chegam a esse extremo produzse uma reação em cadeia em todos os níveis do sistema Se a rede estadual deixa de funcionar não só os pacientes deixam de ser atendidos como também os hospitais ficam abandonados sem a manutenção necessária do instrumental e da aparelhagem o cuidado com as instalações e a limpeza Dessa forma os doentes antes atendidos pela rede estadual passam a fre qüentar a rede municipal sobrecarregando e impossibilitando também o atendimento nesta a qual também sobrevive com dificuldades sucateada de profissionais e de equipamentos As conseqüências quase evidentes são o desmonte dos serviços públicos justificado pelo enorme descrédito da população em relação aos mesmos e à propagação de um certo consenso a respeito da inviabilidade do setor público da saúde espaço que é rapida mente aproveitado pelo setor privado A continuada falência do setor público é sinônimo de mais mercado a ser ocupado Só que dessa vez esses atores em conjunto apresen tam uma proposta de um sistema nacional alternativo de saúde a conformação de um sistema que sozinho poderia congregar em tor no de 80 da capacidade instalada no país gerida fora do aparelho governamental para um sistema que oferece cobertura a 30 mi lhões de pessoas não seria difícil alcançar algo em torno do dobro cap7pmd 872011 1039 215 216 dessa população desde que ampliemse as alianças o que significaria próximo dos 50 da população brasileira O resto viveria de assis tencialismo mesmo Conjuntura em Saúde maio de 1993 A crítica situação do estado e do município não teve solução e o prefeito acabou por adotar uma medida caracteristicamente aleatória tendo então de mitido o Secretário Estadual e o Secretário Municipal quando foram constata dos pela Comissão de Direitos Humanos da OAB a precariedade no funcio namento de um dos maiores hospitais do estado e o tratamento desumano oferecido aos pacientes Assim os avanços atingidos pelo processo de municipalização foram pro fundamente abalados no município de São Paulo como resultado da regressividade das mudanças políticas inauguradas pela gestão de Paulo Maluf na prefeitura Município do Rio de Janeiro O Rio de Janeiro é o segundo maior município do País com uma população em torno de 5 milhões de habitantes e a maior rede hospitalar federal e estadual A extensão desta sem o conseqüente repasse de recursos para manutenção resul tou no descaso em relação às unidades hospitalares Em virtude disso em 1992 os Secretários de Saúde dos municípios ameaçaram devolver as unidades descen tralizadas ao Inamps e à Secretaria Estadual de Saúde SES visto que os municí pios não tinham condições de gerilas Essa informação veiculada pela imprensa não refletiu exatamente o que vinha acontecendo com a descentralização do siste ma de saúde uma vez que devolvida ou não de fato a rede estadual e a federal não chegaram a ser incorporadas ao Sistema Municipal de Saúde O SUS na verdade não foi implantado no Rio de Janeiro pois no espaço do município foi realizada apenas uma sobreposição das redes municipal esta dual e federal perfeitamente diferenciadas entre si As unidades embora repas sadas não receberam o financiamento para suprir as necessidades decorrentes e nem foi implantada uma política salarial para os trabalhadores de saúde Tanto no caso do governo federal como no do estadual não houve investimento direto para a manutenção da rede tendo a política estadual de saúde se caracte rizado pelo desinteresse das autoridades governamentais Cabe fazer uma referência à situação política particular que o estado do Rio vem atravessando desde 1990 que incidiu de maneira determinante na cap7pmd 872011 1039 216 217 implantação de qualquer processo de cunho reformador A crise generalizada do tecido social e a formação de um governo paralelo vinculado ao narcotráfico no espaço da cidade configuraram um novo tipo de situação de guerra das máfias com ramificações nos altos escalões do governo do estado Assembléia Legislativa Judiciário e Polícia Federal De um lado a imposição do terror às populações faveladas a corrupção e os homicídios dificultaram sobremaneira qualquer forma de organização e par ticipação política da população De outro não houve no espaço do estado enquanto poder público a capacidade de regular políticas Essa incapacidade no setor da saúde é expressada na nãointervenção ante situações em que hospitais foram invadidos por narcotraficantes em que os médicos sofreram ameaças para atender delinqüentes às quais se soma a corrupção no gerenciamento dos hospitais públicos e a já habitual falta de recursos para a implementação da Reforma Sanitária Embora não haja dados oficiais sobre o estado da rede das unidades esta duais detectamse informações através das denúncias que se sucederam dia após dia com relação à desativação de leitos à falta de instrumental e de medi camentos à precariedade das instalações assim como à inexistência de condi ções de atendimento por causa da ausência de médicos enfermeiros e pessoal auxiliar suficiente O Cremerj exerceu importante papel na denúncia e interdição das unida des que não contavam com as mínimas condições de operar O papel desem penhado por esse órgão será retomado mais adiante O que importa frisar agora é o caráter inovador ocupado por entidades da sociedade civil em pro cessos políticodecisórios o processo de descentralização democrática da política de saúde impondo uma interferência reguladora ao Estado em espa ços em que este detinha o monopólio da intervenção A reação do governador ao desempenho do Cremerj foi afirmar perante a imprensa que não permitiria mais a vistoria e a interdição de hospitais por parte do órgão A democratização da política da mesma forma que amplia a arena decisória ao incorporar múltiplos atores e interesses evidencia e desestabiliza os velhos mecanismos de clientelismo político e de corrupção dominantes na atuação dos políticos ou caudilhos de velho estilo De fato a atuação do Cremerj através das Comissões de Ética deixou em evidência a maneira pela qual a Secretaria Estadual de Saúde não operava o sistema A intervenção nos hospitais que se encontravam com sérios problemas cap7pmd 872011 1039 217 218 de funcionamento possibilitou a comprovação da malversação dos recursos públicos em um dos maiores hospitais do estado o Iaserj e também no Instituto Nacional do Câncer Inca no Instituto Ary Frauzino e em outros Por sua vez as irregularidades nos hospitais não eram um fato isolado já que correspondiam ao modelo de gestão pública do Secretário Estadual do Go verno Brizola Dentre as providências tomadas pelas entidades da sociedade é de se res saltar a ação popular impetrada na Justiça contra o Secretário Estadual de Saú de por iniciativa do Cremerj do SinMed e de deputados do PSB e do PT A apuração na Justiça sustentouse no superfaturamento das compras de material hospitalar depois de se comprovar com as notas dos fornecedores uma enor me disparidade de preços assim como a sangria de recursos utilizada para pagamento de apoio político favorecimento de empresários da área de saúde e em benefício próprio O conhecimento por parte das entidades da sociedade da existência de jurisprudência adequada e a utilização de procedimentos judiciais em cada caso comprovado de irregularidade na gestão pública ao mesmo tempo que colo cam uma ameaça virtual para o uso privado de bens públicos vão gestando uma cultura política democrática no âmago da sociedade Na medida em que se recorre à via jurídica abrese espaço para a prestação de contas por parte das autoridades no exercício do governo e fechase o ciclo do livre arbítrio das mesmas e o da ignorância da população A reprodução destas experiências vai criando novas modalidades do exer cício da democracia política as quais contribuem para a legitimação e institucionalização de procedimentos democráticos oriundos da ação dos cida dãos A política se torna desse modo próxima da experiência individual havendo uma reapropriação do político no espaço societário desde o mais próximo até o mais distante Em nossa opinião tendese a criar enclaves democráticos ou como foi discutido no primeiro capítulo regimes de democracia parcial nos quais come ça a existir uma vivência democrática a formação de cidadãos junto à institucionalização de procedimentos e práticas no seio da sociedade mas tam bém do Estado ainda que em entornos limitados e talvez sem condições de adquirir dimensão nacional em um prazo previsível A atuação do Ministério da Saúde a cargo de Jamil Haddad se fez pre sente através da formação de uma comissão de emergência para propor so cap7pmd 872011 1039 218 219 luções à situação crítica das unidades estaduais e federais e dos municípios da Baixada Fluminense A Comissão foi presidida pelo secretárioexecutivo do Ministério da Saú de e expresidente do Sindicato dos Médicos Quanto à secretariaexecutiva esta coube à Fundação Oswaldo Cruz Fiocruz e contou também com a par ticipação do Cremerj SinMed de parlamentares secretarias estadual e munici pal dirigentes das federações de moradores do estado As prioridades ficaram centradas na reativação das unidades desativadas no Programa de Saúde da Baixada Pesb60 e na constituição do Conselho Estadual de Saúde Exceto a formação do Conselho de caráter estritamente político as reso luções emanadas da comissão requeriam a decisão política de serem implementadas e uma injeção considerável de recursos para reabrir as unidades fechadas contratar o pessoal que assegurasse o seu funcionamento e que permi tisse mantêlas posteriormente Se considerarmos que nesse ínterim houve importantes mudanças políticas no Ministério da Saúde como a renúncia do Ministro novamente nos depara remos com o fato de que o processo de municipalização pode ser gravemente ameaçado de não adquirir a profundidade suficiente que a política de Reforma Sanitária requer para a sua efetivação De fato as condições de operacionalização da política de saúde foram fortemente obstaculizadas pelos retrocessos políticos ocorridos no governo durante o período em análise mas o processo não foi paralisado em alguns estados e municípios ainda que em condições adversas pelo fato de existir neles uma base localmunicipal e haver uma decisão política explícita de implementar a Reforma Sanitária Em relação ao município do Rio os serviços de saúde foram mantidos e as instalações recuperadas oferecendo melhor atendimento à população até 1993 Isso foi feito em 1992 nos maiores hospitais do município tendo em vista a realização da Conferência Mundial de Ecologia ECO92 Os investimentos necessários para recuperar a rede municipal eram recursos federais já que os hospitais municipais passaram a ser hospitais de referência para atendimento à Conferência Couberam à Prefeitura o cuidado e a manutenção da rede no cerne do processo de municipalização 60 O Plano de Saúde da Baixada já foi comentado no segundo capítulo na parte que se refere ao Movimento Popular em Saúde cap7pmd 872011 1039 219 220 Uma das principais medidas implementadas pela secretaria tal como em São Paulo foi o aumento dos salários dos profissionais de saúde o que possibi litou a existência de equipes completas de clínicos e de especialistas nos hospitais durante 24 horas No caso do município do Rio não houve uma reforma administrativa profunda da Secretaria Municipal de Saúde ao tempo em que esta se recusou a receber as unidades federais e estaduais Entretanto desenvolveuse uma expe riência inovadora encaminhada pela Secretaria na gestão de alguns hospitais federais que deveriam ser municipalizados Consistiu no implemento da co gestão entre o Inamps e o município para a administração dos mesmos Em termos de resultados o hospital que manteve por maior tempo a proposta apresentou melhores condições de operação que os outros o que poderia indi car um caminho a ser seguido na transferência das unidades ao município No Rio de Janeiro embora tenha havido mudança da Prefeitura após as eleições de 1992 com a transferência de poder do PDT para o PMDB não ocorreram importantes alterações no processo de municipalização da saúde por que o novo prefeito manteve o antigo Secretário Municipal de Saúde no cargo As prioridades anunciadas pelo Secretário de Saúde logo após reassumir o cargo foram em relação à prevenção e ao atendimento da saúde da população assim como aos profissionais de saúde Quanto à saúde da população foram criados programas dirigidos à mulher à gestante e à criança e mantidos os já existentes de combate ao cólera e à Aids Com referência aos profissionais de saúde aumentouse o número do pessoal de enfermagem e o de seus auxiliares e os salários dos médicos embora já se encontrassem no nível de mercado foram melhorados O orçamento municipal destinado à saúde foi mantido no piso da gestão anterior 11 assim como foi sustentado o esforço para captar recursos extraordinários através de empréstimos internacionais para execução de obras e aquisição de equipamentos o que já havia dado bons resultados em anos anteriores Em relação à participação da população nos Conselhos de Saúde e à reformulação do sistema não houve um tratamento privilegiado por parte do PDT partido que administrou desde então a gestão estadual e municipal Dife rentemente do município de São Paulo o Conselho Municipal de Saúde acabou tendo muito mais uma existência formal do que decisória em relação à política de saúde Como agravante dessa situação houve o fato de não ter sido efetiva cap7pmd 872011 1039 220 221 da uma reforma administrativa e conseqüentemente de não existirem Conse lhos formalmente reconhecidos nas antigas regiões de saúde nem nas unidades do município As avaliações são de difícil realização quanto aos resultados do processo de municipalização na medida em que o repasse pelas unidades federais foi efeti vado sem que a Prefeitura as assumisse sob sua responsabilidade Considerando o peso substancial da rede estadual e federal no município não poderíamos afirmar que o processo de municipalização tenha significado uma melhor operacionalização destas Ainda que a gestão e a atribuição de recursos da rede municipal de modo geral tenham melhorado com o decorrer do tempo a sobrecarga desses servi ços chegou à saturação pela grande afluência de atendimento à população do Grande Rio Baixada e Zona Oeste Como conseqüência da crise dos serviços federais e estaduais no município e estado as melhorias constatadas na rede municipal não conseguiram ser mantidas e em 1994 delineouse novamente uma grande crise de atendimento nos hospitais municipais No município do Rio não houve grandes inovações políticoadministrati vas Assim por exemplo o Secretário de Saúde declarou a impossibilidade de contratação de enfermeiras e auxiliares de enfermagem por ter gasto todas as vagas adjudicadas ao município61 Ao mesmo tempo recorreu à negociação políticopartidária com as instâncias centrais para abrir novas vagas o que atua lizou a modalidade de atuação clientelista ou prefeiturização da política A mesma insuficiência de autonomia na gestão municipal das prefeituras do Rio de Janeiro e de São Paulo se tornam evidentes ao considerarmos ques tões tais como a contratação dos profissionais necessários para o funcionamen to da rede municipal a indecisão para exonerar o pessoal que não cumpria suas funções e a incapacidade para gerar recursos financeiros próprios que facilitas sem o processo de municipalização O que essas duas experiências de municipalização revelaram foi uma gran de diversidade de alternativas e de modalidades na implementação do processo de descentralização diversidade essa que se relaciona com a heterogeneidade dos municípios com a abordagem política e com os encaminhamentos técni cos viabilizados pelas próprias autoridades municipais No caso do município do Rio é de se ressaltar também uma certa desar ticulação do Movimento Popular em Saúde que se foi tornando visível nos 61 Jornal do Cremerj jan de 1993 cap7pmd 872011 1039 221 222 últimos anos e que acreditamos incidiu fortemente na ausência de uma partici pação social mais incisiva no processo de municipalização Município de Santos Santos pode ser considerada uma cidade de médio porte pois possui 480 mil habitantes A maioria da população dispõe de água encanada e esgoto A principal atividade produtiva é o porto o maior centro de escoamento da pro dução nacional Sua população operária é muito elevada e adscrita principal mente às atividades portuárias Conta com o maior número de casos de Aids do País alcançando a cifra de 2004 notificações entre 1985 e 1990 A mortalidade infantil vem aumentan do também chegando em 1990 a 32 por cada mil nascidos vivos Tal como nas outras metrópoles do País houve nas últimas décadas um importante cresci mento das doenças ligadas às condições de empobrecimento da população às quais se agregam as doenças características do desenvolvimento Neste sentido os problemas de saúde da população são consideráveis e de solução complexa O município alocava 135 do seu orçamento à saúde até novembro de 1992 A partir dessa data o Secretário Municipal de Saúde foi eleito Prefeito da cidade devido à gestão desenvolvida anteriormente como Secretário de Saú de e o gasto dessa área foi elevado para 16 do orçamento municipal O governo federal participava somente com 20 do gasto total em saúde no município não tendo o governo do estado de São Paulo feito nenhum repasse de recursos entre 1989 e 1994 A constituição do Conselho Municipal de Saúde com participação paritária dos usuários e de suas representações foi uma das primeiras medidas tomadas pelo Secretário Municipal de Saúde Davi Capistrano ao assumir o cargo em 1989 Desde sua constituição todas as atividades da Secretaria passaram a ser submetidas ao Conselho A rede pública era composta por 23 policlínicas hierarquizadas e distribu ídas em cinco distritos sanitários que atendiam a uma média de três consultas médicas por habitante a cada ano Isso fez com que a assistência ambulatorial no município se tornasse compatível com a demanda Também o número de pro fissionais foi incrementado assim como os salários pagos aos mesmos A assistência hospitalar passou por momentos de estrangulamento em 1991 já que esta era coberta pela Santa Casa de Santos que dispunha de 850 leitos e cap7pmd 872011 1039 222 223 era o único hospital conveniado com o SUS Na época o Hospital dos Estivadores que possuía 320 leitos sendo 21 de UTI foi fechado por não conseguir pagar as dívidas com funcionários e fornecedores calculadas em Cr 200 milhões A justiça acatou uma ação do Ministério Público que baseado no direito cons titucional de a população poder ter acesso aos serviços de saúde propunha a reabertura do hospital de forma que sua gestão passasse para o SUS Os estivadores conseguiram uma liminar suspendendo a decisão judicial enquanto o Conselho Municipal de Saúde enfrentou esse sindicato para tentar reabrir o hospital e integrálo ao SUS Os programas de combate à Aids e de Saúde Mental foram considerados prioridade municipal com base no Plano de Saúde Municipal A efetividade desses concentrou desde então a atenção de autoridades governamentais tanto nacionais como internacionais Foram criados também programas especiais além de um centro de referência em saúde do trabalhador O Programa de Combate à Aids consumia 10 dos recursos em saúde e desenvolveuse com excelentes resultados Tanto que passou a ser referência para os programas de controle da Aids em esfera nacional sendo reproduzido em outras cidades do País e no estrangeiro O Programa de Atenção à Saúde Mental realizouse junto à implementação dos critérios contemplados na Reforma Psiquiátrica ou seja os da construção de alternativas assistenciais ao manicômio O atendimento psiquiátrico foi basica mente desenvolvido em Núcleos de Assistência Psicossocial e complementado por um Programa de Internação Domiciliar Depois de uma intervenção feita em um hospital psiquiátrico em 1989 onde havia mais de 500 internos produziuse uma verdadeira revolução nos critérios de atendimento aos doentes mentais Com isso em 1994 o número de internos desse hospital foi reduzido para 80 Dentre os programas especiais cabe ressaltar o Centro da Gestante e Ado lescente o Programa de Atendimento e Internação Domiciliar e o Programa de Atendimento Odontológico O município contou com um serviço de Vigilância do RecémNascido de Risco inexistente no restante do País através do qual fo ram acompanhadas 3612 crianças no período que vai de 1991 a julho de 1993 A Secretária Municipal de Saúde eleita em 1992 Aparecida Linhares man teve inalterada a política implementada na gestão anterior Sua avaliação sobre o andamento do processo de municipalização do País como um todo realizada na IX Conferência revela a concepção política com a qual foi abordado o processo de municipalização em Santos cap7pmd 872011 1039 223 224 a implantação do SUS não pode descuidar a questão da necessidade de conferir aos municípios um Modelo Assistencial que seja sobria mente compatível com a realidade local um dos preceitos consti tucionais trata justamente da Organização Política Administrativa esta belecendo autonomia aos Municípios Estados e Distrito Federal e mesmo assim poucas instâncias tomaram para si esta responsabilida de É necessária a realização de um movimento político para que o município invista na saúde com recursos próprios O sucesso de propostas como esta de municipalização depende muito da partici pação intensa das comunidades nas discussões 62 A experiência de Santos mostrou diferentemente de São Paulo e do Rio o principal papel do município quanto ao incremento da alocação de recursos para o setor e de um diagnóstico apurado por parte da Secretaria Municipal de Saúde relativo a problemas de saúde da população a serem priorizados e à maneira de abordálos Revelou a necessidade de elaboração de um Plano Rei tor de Saúde para o município que compatibilizasse e reorganizasse a infra estrutura de serviços existentes com os objetivos a serem alcançados pelo plano de saúde Por último mas destacadamente enfatizou a necessidade de existência de um Conselho Municipal de Saúde ativo e operante para garantir o controle por parte da população usuária e de suas representações de toda e de cada uma das decisões emanadas da Secretaria de Saúde A experiência de Santos sugere uma questão interessante que se refere a como se lidar nessas experiências de municipalização com a multiplicação de atores e de interesses que necessariamente se originam nesses processos de descentralização da política e que apresentam uma dupla face Por um lado a instauração de procedimentos democráticos para lidar com uma pluralidade de interesses promove a criação de vias institucionais de nego ciação política e portanto a institucionalização da política como uma maneira inovadora de resolver conflitos adjudicar competências e redistribuir poder como foi o caso do processo de implementação da política de saúde nesse município Por outro lado a mesma situação de multiplicação de grupos e inte resses pode encaminhar ao uso indiscriminado da negociação política Essa modalidade de exercício da política dentro do âmbito político partidário conduz à diluição das questões conflitivas nas relações entre as forças internas que no partido exercem a autoridade de governo ou ao desgaste 62 Anais da IX Conferência Nacional de Saúde Brasília 1992 cap7pmd 872011 1039 224 225 ocasionado por um permanente processo de enfrentamento e de acordos pos teriores entre o partido governante e a oposição Quando à falta de um nível central de condução da política se soma a ausência de diretrizes operacionais em nível local que orientem sua implementação um diagnóstico claro dos problemas a serem enfrentados e um Plano de Saúde evidenciase a recorrência ao fato de a política não conseguir ser resolutiva Além disso correse o perigo maior de se tornar o seu próprio objeto na medida em que as preocupações se voltam para a negociação entre as forças conflitantes mais do que para questões específicas relativas à saúde Acredita mos ser esse um dos dilemas de algumas das prefeituras progressistas que com prometeram consideravelmente a implementação do SUS Município de Manaus Manaus é um município com 1300000 habitantes dos quais 98 reside na zona urbana É uma população basicamente de origem rural inserida atualmente na indústria eletrônica no setor de serviços e no setor de extração da madeira De maneira mais acentuada que no eixo centrosul do País os níveis de pobreza e de inserção no mercado informal de trabalho de sua população tem crescido enormemente com a queda do ciclo econômico da borracha e a baixa utilização de mãodeobra no setor industrial eletrônico Um dos indicadores recentemente considerado para avaliar os níveis de pobreza é o abastecimento de água e de saneamento básico No caso específico podese usálo para ressaltar esses níveis pois mesmo em se tratando de cidade capital do estado somente 10 da população tem esgoto e 80 da população urbana tem água pelo sistema formal Os problemas de saúde da população correspondentes às suas condições socioeconômicas são de grande magnitude e extensão Doenças como tuberculose raiva humana hanseníase pólio saram po leptospirose febre tifóide hepatite e nos últimos anos o cólera constituem o quadro dramático do município A preocupação inicial da Secretaria Municipal de Saúde no período com preendido entre 1989 e 1992 foi a de efetuar um levantamento das condições de saúde da população as quais uma vez identificadas serviram para elaborar o Plano de Saúde e definir as prioridades do município O saneamento básico municipal recebeu lugar de destaque e foram construídos mais de 370 quilôme tros de rede sanitária até o fim da gestão cap7pmd 872011 1039 225 226 Essa mesma administração promoveu uma ampla reforma administrativa na Secretaria Municipal de Saúde com a finalidade de efetivar o processo de municipalização Em Manaus houve uma identidade política das instâncias esta dual e municipal com a Reforma Sanitária e com a implementação do processo de descentralização diferentemente dos casos anteriormente discutidos Há integração perfeita entre a Secretaria Estadual as secretarias muni cipais em especial de Manaus Universidade de Amazonas Governo Estadual Governos Municipais e até como no nosso caso é peculiar com a zona de fronteira envolvendo inclusive as instituições vincula das às Forças Armadas numa discussão global sobre o SUS 63 A iniciativa viabilizouse de um lado devido à gravidade da situação de saúde do estado e à ausência de um projeto de saúde alternativo à Reforma Sanitária que permitisse resolver com efetividade a situação de saúde da popu lação De outro pela decisão política das autoridades estaduais e municipais e pela articulação das forças sociais capazes de encaminhar e de dar continuidade ao processo por elas iniciado A primeira medida encarada pelo Secretário Municipal de Saúde Evandro Melo foi a implantação do Conselho de Saúde e do Fundo Municipal de Saúde para o depósito dos recursos da saúde ambos sob controle da comunidade O Conselho Municipal foi composto por 24 membros sendo 12 deles represen tantes de usuários eleitos direta e democraticamente nas comunidades Esses membros decidiam todas as questões relacionadas à área da saúde Pela mesma lei foram criados o Conselho e o Fundo sendo Manaus a primeira capital bra sileira com Fundo implantado e com todos os recursos da saúde da Prefeitura do Estado e do governo federal depositados numa mesma conta Para que a Secretaria realizasse uma ampla reforma no setor a cidade foi dividida em seis distritos sanitários Por sua vez a Prefeitura dividiu o território do município em núcleos habitacionais formados por 50 mil pessoas cada um deles contando com uma unidade de saúde com três consultórios médicos e três odontológicos Cada unidade seria equipada conforme a necessidade da população a ser atendida nos bairros que integravam os núcleos habitacionais Organizouse para cada unidade um Conselho de Saúde composto por qua tro membros dois representantes de usuários o diretor e um representante dos funcionários 63 Entrevista com o Secretário Estadual de Saúde Proposta Jornal da Reforma Sanitária setout de 1992 cap7pmd 872011 1039 226 227 O Distrito Sanitário possibilitava qualquer tipo de atendimento médico pois cada uma dessas zonas tinha um posto e um centro de saúde Os Conse lhos eram compostos por diretores das unidades do distrito e tinham a mes ma quantidade tanto de usuários como de diretores A existência desses distri tos permitiu definir as portas de entrada para o sistema de saúde assim como responsabilizar cada uma das unidades de saúde por uma determinada popu lação que teria participação ativa através dos seus representantes eleitos nos Conselhos A população passou a identificar a unidade de saúde como a unidade que lhe garantiria atenção quando necessitasse As unidades de saúde chamadas de portas de entrada tinham além dos consultórios médicos e odontológicos atendimento de emergência 24 horas e encaminhavam os pacientes para níveis de maior complexidade de atendimento Toda a rede básica de Manaus contou com 75 unidades na área urbana e de 16 na rural O aumento do número de unidades de saúde foi de 21 quando a atual gestão da Prefeitura tomou posse em 1989 para 54 até agosto de 1992 Agentes de saúde eleitos pela própria comunidade administravam as unidades da zona rural A Secretaria Municipal visitava os postos uma vez por mês com equipes formadas por 20 profissionais que desenvolviam desde consultas mé dicas até palestras sobre prevenção do cólera e outras epidemias e endemias além de orientações na área social para mais de mil famílias A rede de serviços de saúde até meados de 1992 foi ampliada em 86 e no fim de 1992 chegou a 100 em relação ao que havia anteriormente Os recursos alocados pela Secretaria Municipal até 1992 correspondentes a 11 do orçamento municipal nesse ano passaram para 14 cifra que supe rou o previsto pela Lei Orgânica Municipal Já o orçamento previsto para 1993 foi de 15 Os salários dos profissionais de saúde foram elevados pela implementação no município e no estado de um Plano de Carreira Cargos e Salários para o SUS que contemplava não só a carreira mas os pisos mínimos e a capacitação constante do pessoal implementandose a formação de pós graduação para os profissionais da rede e diversos cursos de especialização em convênio com a Fiocruz e com a Fundação Getúlio Vargas Os programas de saúde empreendidos tiveram excelentes resultados e o cólera foi controlado pois nos últimos cinco meses de 1992 não houve nenhum caso Para isso foi elaborado um plano de combate ao cólera e o estabelecimen to de quais eram as áreas de risco no município e no estado cap7pmd 872011 1039 227 228 As ações envolveram educação em saúde informação sobre os riscos da doença cuidados com a higiene controle da água e cuidados com alimentos Foram utilizados agentes de saúde que visitavam casa por casa distribuiuse hipoclorito e estabeleceuse um sistema de vigilância sanitária ao longo de todo o rio Ao mesmo tempo foram monitoradas todas as diarréias e além disso todas as pessoas com cólera eram identificadas antes de chegarem a Manaus A cidade foi mapeada e em cada bairro havia um núcleo de pessoas envolvidas nas ações de vigilância sanitária junto aos técnicos e agentes de saúde Em relação ao quadro sanitário da população observase que doenças como coqueluche difteria pólio e sarampo que se manifestam nos primeiros anos de vida tiveram uma queda muito acentuada nesse período A incidência da pólio foi zerada e reduziramse também os casos de tuberculose entre 1990 e 1992 O Município de Manhuaçu Tratase de um município localizado em Minas Gerais quase divisa com o Espírito Santo com uma população de 75 mil habitantes estando 40 mil na área urbana e 35 mil no campo As principais atividades produtivas são a agri cultura do café e a pecuária nas quais se inscreve a maioria da população rece bendo baixa remuneração o que faz com que a pobreza seja bastante grande assim como na maioria dos municípios rurais Há sérios problemas de saneamento básico devido ao fato de o esgoto sanitário ser lançado diretamente no Rio Manhuaçu Essa situação somada à pobreza incide fortemente nas condições de saúde da população e principal mente na mortalidade infantil As principais causas de mortalidade infantil na região são atribuídas às do enças infecciosas e parasitárias pneumonias e deficiências nutricionais sendo o coeficiente de mortalidade de 52 para cada mil nascidos vivos Os problemas de saúde da população adulta são bem diversos hanseníase tuberculose hepa tite parasitárias e deficiências nutricionais Atropelamentos são também muito freqüentes em vista de as rodovias federais margearem o município o que explica que 60 dos atendimentos em prontossocorros sejam nos serviços de traumatoortopedia O processo de municipalização iniciado em 1989 e aprofundado pela atual gestão municipal acarretou uma reforma administrativa que dividiu a extensão territorial do município em duas regiões sanitárias subdivididas em quatro zo cap7pmd 872011 1039 228 229 nas sanitárias urbanas e quatro rurais O município contava com uma unidade do Inamps e um posto de saúde do estado mas ambos foram repassados à Prefeitura que comprou também um hospital da rede privada Como parte do processo de municipalização foram construídos a Policlí nica e o ProntoSocorro Municipal que contam com 23 leitos e 51 médicos e prestam cerca de 100 atendimentos diários nas mais diversas especialidades Também foram implantados 13 postos de saúde alguns em fase de conclusão nove deles na área rural e o restante na área urbana e mais quatro centros de saúde em grandes distritos da área rural A maior parte do atendimento e das intervenções de maior complexidade eram feitas no hospital filantrópico que dispunha de 210 leitos com o qual a Secretaria Municipal mantinha convênio administrando e controlando o repas se dos recursos O sistema dispunha de um hemocentro que registrava aproxi madamente 200 doações mensais de sangue e um serviço de hemodiálise com 63 pacientes inscritos O número de profissionais adscritos à rede ampliada foi incrementado consideravelmente Organizouse também o Fundo Municipal de Saúde para o repasse dos recursos federais e estaduais O Conselho Municipal de Saúde foi composto por 26 membros metade deles representando os usuários e a outra metade a Prefeitura prestadores de serviços e trabalhadores da saúde Desde a sua formação apresentou caráter permanente e deliberativo tendo se constituído na instância máxima para a avaliação e o controle da política de saúde assim como no tocante à decisão de alocação de recursos À atuação do Conselho Municipal somavamse os Conselhos Zonais e Locais que desenvolveram um papel central na política de saúde municipal Assim por exemplo o Conselho Local de um dos distritos do município en volvido na preocupação com a proliferação do cólera solicitou uma estação de tratamento de esgotos já que a rodoviária local recebia diariamente mais de dez mil passageiros de todo o País tendo sido a mesma construída em oito meses e com um investimento de Cr 1 bilhão Através de entrevistas realizadas com representantes dos usuários no Conselho64 constatase que a mobilização popular e o próprio movimento popular estava organizado e preexistia à implementação do processo de municipalização 64 Proposta Jornal da Reforma Sanitária 31 1993 cap7pmd 872011 1039 229 230 Paralelamente vários programas foram efetivados Atenção aos Desnu tridos e Grupos de Acompanhamento de Diabéticos Gestantes Tuberculose e Hanseníase e a possibilidade de sua realização ocorreu devido à implantação do sistema de informatização e estatísticas do SUS de Manhuaçu para a locali zação dos doentes O Programa de Vacinação obteve uma cobertura de 98 a 100 e todas as crianças atendidas foram cadastradas o que fez diminuir o número de casos de doenças imunizáveis O Departamento de Vigilância Sanitária da Secretaria utilizou procedimen tos inovadores e encaminhou à Câmara Municipal um novo Código Sanitário que garantia ao município um efetivo poder fiscalizador e de educação da co munidade Nessa mesma direção o atual Secretário de Saúde e VicePrefeito Fernando Bittencourt enviou um projeto à Câmara estabelecendo gratificações de estímulo aos médicos que aceitassem trabalhar na zona rural com percentuais variáveis de 30 a 80 já que fixar médicos em tais áreas era uma das grandes dificuldades do município Município de Icapuí Tratase de um município rural distante 200 quilômetros de Fortaleza com uma população estimada pelo IBGE em 1989 em 15 mil habitantes A princi pal atividade econômica é a pesca além do artesanato e da agricultura O abas tecimento de água realizase em 93 dos casos através de poço e 66 da água consumida não recebe tratamento Somente 7 do lixo tem coleta pública ficando a céu aberto 38 e sendo queimados 38 O nível de analfabetismo da população é de quase 50 e da outra metade apenas 43 cursam ou conclu íram o ensino fundamental Em 1991 a Prefeitura iniciou uma campanha de estímulo ao uso de fil tros e criou o Sistema Autônomo de Água e Esgoto que passou a abastecer 20 da cidade aumentando também a coleta de lixo Quanto ao quadro sanitário as doenças mais comuns eram infecções diarréicas agudas infecções parasitárias e doenças dermatológicas O índice de mortalidade infantil foi diminuído para 495 por cada 1000 nascidos vivos o menor índice de todo o estado a partir de uma campanha permanente de conscientização da popu lação de como evitar as mortes infantis Destinouse 23 do orçamento municipal à saúde sem que existisse trans ferência de recursos do estado para o município Também foi elaborado um cap7pmd 872011 1039 230 231 plano municipal de saúde que a Secretaria Municipal de Saúde implementou Cadastraramse todas as famílias do município o que proporcionou um diag nóstico de saúde e de condições de vida que serviu de base para a elaboração de programas específicos O cadastramento realizado durante dois meses envolveu a visita a cada residência por agentes de saúde e por pessoas da comunidade treinadas e super visionadas por funcionários da Prefeitura Com base nesse cadastramento o Plano de Saúde priorizou as ações básicas o monitoramento das causas de doença e de morte A partir disso foram instalados dois centros de saúde que dispunham de consultórios médicos e odontológicos farmácia sala para reidratação oral e quatro postos de saúde nas seis áreas ou distritos sanitários em que foi dividido o município A pedido dos pacientes foram utilizadas redes em lugar de camas nas salas de observação dos centros de saúde Em todas as unidades implantouse um prontuário familiar o que permitiu vincular as famílias aos distritos sanitários assim como o acompanhamento das mesmas Há a pretensão de se construir ainda um hospital com horário integral no município O Conselho Municipal de Saúde foi composto por cinco representantes das instituições prestadoras cinco profissionais de saúde e 25 representantes das comunidades e de outras categorias profissionais Constituiuse outro impor tante fórum de decisões as reuniões mensais de funcionários da Secretaria de Saúde Os profissionais de saúde que vinham tendo seus salários reajustados mensalmente receberam isonomia e novas formas de reajustes a partir da ela boração do Plano de Cargos e Salários desde 1991 Destacamos para a análise comparativa algumas das variáveis contempla das na abordagem dos municípios selecionados tais como o tamanho dos municípios o encaminhamento de reformas administrativas eou reorganiza ção dos serviços os recursos financeiros aplicados pelas secretarias municipais a implantação ou não dos Conselhos o grau de autonomia municipal a elabo ração do quadro sanitário da população e do Plano de Saúde Municipal a existênciaextensão da rede estadual e federal aumento do número de leitos incorporação de melhorias salariais dos profissionais de saúde Os quadros a seguir apresentam uma síntese analítica das variáveis contempladas nos municí pios selecionados cap7pmd 872011 1039 231 232 Quadro 13 Parte I Análise comparativa dos municípios estudados Municípios São Paulo Rio de Janeiro Santos Manaus Manhuaçu Icapuí Tamanho grande grande médio médio pequeno pequeno Reforma Administrativa Reorgarnização dos Serviços sim não sim sim sim sim Recursos Financeiros Implantação dos Conselhos sim não sim sim sim sim Classificamos a variável Recursos Financeiros em termos de porcentagem do orçamento municipal destinado à saúde até 10 10 14 mais de 14 Quadro 13 Parte II Análise comparativa dos municípios estudados Municípios São Paulo R Janeiro Santos Manaus Manhuaçu Icapuí Grau de Autonomia Municipal Quadro Sanitário Plano de Saúde Municipal não não sim sim sim sim Existência Extensão de Rede Estadual e Federal Aumento do Número de Leitos não não sim sim sim sim Melhorias Salariais Profissionais de Saúde sim sim sim sim sim sim Resultados A variável Autonomia Municipal foi considerada em termos da capacidade do município incorporar inovações de caráter políticoadministrativo e a estratificamos com base na seguinte escala de valores nenhuma pouca mediana considerável cap7pmd 872011 1039 232 233 A variável ExistênciaExtensão da Rede Estadual e Federal foi classificada pelos seguintes valores não tem escassa mediana grande A variável Resultados foi classificada de acordo com os avanços políticoadministra tivos do processo de municipalização e lhe atribuímos os seguintes valores escassos medianos importantes O quadro evidencia a relação inversa entre o tamanho dos municípios e os resultados alcançados A dimensão dos mesmos constitui efetivamente dificul dade na implementação da municipalização associada à extensão das redes es tadual e federal sem que exista uma legislação terminada sobre a matéria nem condução política do poder central Muito embora os obstáculos à municipalização sejam conexos às dificul dades no nível central do sistema também se conectam com as realidades lo cais a que se somam a falta às vezes de clareza e de definição quanto ao projeto sanitário eou ausência de um plano de saúde a ser operacionalizado pelas prefeituras locais No caso dos municípios do Rio e São Paulo há resultados próximos apesar dos projetos políticos serem completamente diferentes Acreditamos ser as situações encontradas nos dois municípios adversas à municipalização por várias razões pela incidência local muito grande do poder central Inamps pela deterioração em que se encontravam as unidades de saúde pela própria relação de forças desfavorável à implementação da Reforma dada a concen tração do setor privado hospitalar nesses municípios e pelo estado de desmobilização política que atravessava o Movimento Social em Saúde espe cialmente no Rio de Janeiro A outra questão foi o grau de improvisação política e técnica das prefeituras Em Santos e Manaus o panorama inicial em termos do projeto político a decisão de implementar a Reforma Sanitária é semelhante diferindo os resultados dos alcançados pelo Rio e por São Paulo Isso por serem municípios menores com reduzida incidência do nível federal no setor saúde hospitais e postos do Inamps e onde pelos motivos expostos se faz necessário aumen cap7pmd 872011 1039 233 234 tar o número de leitos do setor público Nestes casos foram incorporados ao plano de saúde municipal um diagnóstico preciso e apurado das condições de saúde da população a definição das prioridades e sua operacionalização Nos municípios de pequeno porte se observam menores condicionamen tos políticos técnicos e de infraestrutura de serviços na implementação do processo de municipalização nos casos de prefeituras e secretarias afinadas com o projeto da Reforma Sanitária O fato de não contar com rede federal eou estadual e às vezes nem municipal de serviços de saúde exige do município destinar parcela considerável do orçamento municipal à saúde mas facilita a incorporação de procedimentos inovadores na gestão do sistema A formação de uma rede própria nesses pequenos municípios não impli ca serviços de alta complexidade e tecnologia Como foi visto quando preexistem no município ainda que pertencentes ao setor filantrópico ou priva do o número de serviços não excede o de um hospital de nível terciário como no caso de Manhuaçu De fato administrar e controlar um número exíguo de convênios com os serviços credenciados ou gerir um hospital do nível federal ou estadual simplifica enormemente a administração do sistema Devido à menor complexidade com que se apresentam as questões nesses municípios é necessariamente menor o nível de imbricamento político técnico e administrativo se bem que o diagnóstico da situação de saúde da população assim como o plano a ser implementado constituam requisitos básicos A capacidade de inovação política por parte dos governos locais nos mu nicípios pequenos fica menos subordinada à relação das forças sociais e políti cas atuantes no espaço local do que no caso dos municípios médios e grandes dado o caráter quase familiar das relações sociais em pequenas localidades ru rais O que pode haver é a potencialização de projetos conforme o grau de enfrentamento das forças políticas locais O incremento dos salários dos profissionais de saúde e a elevação do nú mero de profissionais adscritos à rede parece ser condição prioritária do pro cesso de municipalização Ainda que com gradações e modos diversos de aten der à questão esses são pontos nodais sem os quais dificilmente existe Reforma também representando um empecilho afeto à própria prática médica Os Conselhos de Saúde ainda que essenciais à efetivação da política merecem discussão em separado retomada na seção deste capítulo referente aos movimentos sociais em saúde De qualquer maneira os Conselhos de Saúde tendem a ter uma atuação mais homogênea e harmônica nos diversos cap7pmd 872011 1039 234 235 níveis de implementação quando há no município um movimento popular organizado e certo grau de mobilização social em torno das condições de vida e de saúde da população e o incentivo à participação social na gestão municipal por parte das autoridades Finalmente cabe destacar o grau em que a autonomia da gestão municipal e os recursos financeiros aplicados pelo município no setor saúde se relacionam diretamente com os resultados do processo de municipalização mesmo quan do caso do Rio de Janeiro a relação é alterada por variáveis intervenientes como observado no quadro anterior Quanto maior o grau de autonomia e aplicação de recursos ao sistema melhores resultados Ainda no que concerne aos recursos o repasse automático federal e estadual a uma única conta foi facilitado nos municípios que possuíam o Fundo Municipal de Saúde Dos casos selecionados ocorreu em Santos Manaus e Manhuaçu mas na maioria dos municípios brasileiros os Fundos de Saúde não foram criados Um dos pontos relevantes do processo de municipalização é a própria atribuição local da autonomia da gestão municipal Estamos nos referindo à atribuição própria porque ainda que a autonomia dos municípios seja contem plada pela Constituição de 1988 falta ainda como a outros tópicos da Consti tuição65 a regulamentação através de leis ordinárias das atribuições dos diferen tes poderes Nessa situação cabe às instâncias descentralizadas criar jurisprudên cia sempre que colabore para viabilizar a implementação do SUS A autonomia municipal constitui peçachave para a efetivação dos princí pios da Reforma Sanitária requerendo então maior ortodoxia no cumprimen to da Constituição e na formação de uma institucionalidade democrática em nível local A inovação de procedimentos políticoadministrativos diferencian do as experiências locais origina também conseqüências não desejadas a frag mentação da política de saúde em grande diversidade de experiências isoladas sem margem a uma homogeneização da política de saúde no conjunto do País A fragmentação poderia ser resultado da autonomia municipal mas na verdade a ausência de um nível de condução central da política e de um proces so de descentralização que considere o nível estadual contribui como fator de atomização das experiências de municipalização 65 Vide no financiamento da saúde a modalidade de repasse dos recursos cap7pmd 872011 1039 235 236 Qualquer que seja a razão parece claro a posteriori da análise dos municí pios aqui considerados que o processo de descentralização poderia ser uma condição de possibilidade para o exercício da cidadania colaborando para o rompimento de barreiras entre cidadãos e Estado no exercício da democracia ao deslocar o poder de decisão da órbita exclusiva do Estado Tal condição contribuiria para aproximar a democracia política de uma maior eqüidade na distribuição de benefícios de saúde entre as camadas me nos favorecidas da população mas não só isso Constituise principalmente em processo educativo na medida em que as transferências de cotas de poder nos níveis locais do exercício da política exigem do cidadão maior conheci mento e informação que o habilitem a ter um papel decisório nos Conselhos Locais de Saúde cap7pmd 872011 1039 236 237 8 Os Conselhos de Saúde Uma vez que o sistema de saúde foi objeto de profundas reformas im porta detectar em que grau os entraves a essa política foram em parte conse qüência da ação eou comportamento do movimento social organizado A análise da trajetória do Movimento Popular em Saúde formação ascensão e declínio permitiu algumas inferências relativas ao papel e projeção que os movimentos populares em saúde se reservaram diante das políticas de saúde Um dos pontos aparentemente cruciais é o próprio modo de atuação desses movimentos a partir da busca da autonomia tanto na mobilização popular quanto no distanciamento das instâncias estatais de saúde não obstante estas previssem a participação popular A rejeição à participação do movimen to popular nos Conselhos de Saúde fez com que se perdesse a capacidade de influenciar a política de maneira efetiva Observase que ao mesmo tempo em que a mobilização é estruturante no momento em que acontece fragiliza o movimento porque depende de fatores externos como graves crises do setor saúde sejam de cunho epidemiológico ou de atendimento rotineiro Tal tipo de atuação sustentada na autonomia e evitando a relação com o Estado acaba eximindoo de atuar nos Conselhos e acentua a rejeição existente nesses movimentos à estruturação e articulação de modalidades da atividade política a não ser as oriundas exclusivamente da mobilização A tendência a certa institucionalização e o reconhecimento de formas alternativas à mobilização poderiam gerar nos movimentos um investimento de inovação política estru turas próprias e autônomas de incidência mais decidida nos rumos da política Com efeito o tipo de atuação desses movimentos no período de consoli dação da democracia e da implementação da política de saúde obstaculizou a cap8pmd 872011 1042 237 238 coresponsabilidade no processo de efetivação da mesma Mais impediuos de neutralizar o surgimento de tendências altamente corporativas no Movimento Médico acabando estas por ocupar o espaço abandonado pelos movimentos populares nos Conselhos de Saúde A mobilização acabou por converterse em empecilho pois não houve readequação da estratégia na luta política do Movi mento Popular em Saúde Isso é causa suficiente para rever a atuação dos Movimentos Populares em Saúde no âmbito específico dos Conselhos de Saúde instância esta de caráter deliberativo da política de saúde na qual os usuários e suas entidades e movi mentos representativos contavam com 50 da composição dos Conselhos por regulamentação da Lei Orgânica da Saúde Formação e Funcionamento dos Conselhos de Saúde Os Conselhos de Saúde são como regulamenta a Constituição Nacional o principal órgão de participação da sociedade na definição do sistema e dos serviços de saúde nas esferas nacional estadual e municipal Sua ingerência pre vê a formulação do Plano de Saúde adequado à operacionalização do SUS a definição e aplicação orçamentária do setor a reorganização administrativa o gerenciamento da rede a alocação e remuneração dos profissionais de saúde e o próprio modelo assistencial De um total de 27 unidades federadas do País os Conselhos foram legal mente constituídos em 1466 Juridicamente sem funcionarem existiam em 11 estados e sem definição jurídica em apenas dois Sua formação não foi impul sionada nem exigida pela sociedade ou por entidades organizadas na maioria dos estados brasileiros Originaramse via de regra por iniciativa dos técnicos das secretarias estaduais de saúde alinhados às forças reformistas Em geral sua origem é localizável nas diversas instâncias da esfera governamental Assim por exemplo no Rio de Janeiro a iniciativa foi do Legislativo Em apenas oito estados houve participação considerável de setores da sociedade na formação dos Conselhos e em dois essa participação foi decisi va Dependendo também do estado naqueles em que se deu a participação 66 Os dados sobre os Conselhos foram obtidos da pesquisa Avaliação do Funcionamento dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde desenvolvida pelas seguintes entidades Ibam IMSUerj NescCE NesconUFMG NessBA Relatório Nacional versão preliminar agosto de 1993 Ministério da SaúdeConselho Nacional de Saúde cap8pmd 872011 1042 238 239 popular verificaramse diferenças eou conflitos entre as representações popu lares eou usuários propriamente ditos Apesar de a lei determinar o caráter deliberativo dos Conselhos estes aca baram tendo papel meramente consultivo Os avanços para se tornar um canal de denúncias da sociedade que facilitasse o pleno acesso da população às infor mações de saúde à participação dos conselhos nas unidades de serviço e à articulação destes com o Conselho Nacional de Saúde e com os Conselhos Municipais de Saúde variaram de estado para estado dependendo do interesse dos governadores em impulsionar ou não a formação dos mesmos Poucos estados ampliaram as atribuições e funções dos Conselhos de Saú de A composição dos Conselhos Estaduais não foi paritária como previsto pela Lei Orgânica da Saúde 808090 e pela Resolução 3393 Os dados de conjunto do País indicam uma bancada maior de representantes de prestadores 350 que de usuários 312 Os dados correspondem à análise dos 24 Conse lhos estaduais Maranhão e Santa Catarina não os instalaram legalmente e Sergipe não foi abrangido pela mencionada pesquisa Entre os prestadores foram incluídos os representantes do Poder Executivo federal estadual municipal do Legislativo os profissionais de saúde os prestadores stricto sensu e a comunidade acadêmica No total dos estados os repre sentantes dos três níveis de governo somavam 161 membros com o executivo estadual tendo o maior número de membros 97 Os representantes do poder Legislativo eram em número de oito os dos profissionais de saúde de 106 os dos prestadores do setor público e privado somavam 56 e os de intelectuais e acadêmicos do setor 19 A bancada dos usuários abarcava movimentos sociais e comunitários com representação de 123 membros que se apresentavam de forma bastante diversificada com inúmeros segmentos sendo a de maior presença a das asso ciações de moradores seguida do Movimento Popular em Saúde 10 Os tra balhadores e centrais sindicais somavam 96 representantes os empresários de todos os setores da economia estavam representados por 36 membros os portadores de doenças contavam com 40 representantes e os organismos religi osos com 17 As bancadas de trabalhadores e profissionais de saúde somadas constitu íam a maioria dos membros dos Conselhos Estaduais de Saúde A representa ção dos prestadores era composta por 56 membros dos quais 37 representan tes do setor privado filantrópico e lucrativo cap8pmd 872011 1042 239 240 Acerca de tais dados merece ser mencionado que a composição dos Con selhos parece indicar tendência à representação de caráter corporativo antes de mais nada Outro aspecto referese ao peso dos prestadores privados em rela ção aos públicos embora estes últimos pudessem estar representados também no Executivo e no Legislativo vários deles eram proprietários de clínicas e hospitais Não ficou claro se havia representantes de prestadores públicos diretores de hospitais públicos e se assim fosse em que proporção tinham assento no Executivo e no Legislativo O mandato dos Conselhos variava conforme os estados Em 50 deles a duração era de dois anos enquanto nos demais de um a quatro anos Em Goiás Amazonas Mato Grosso do Sul e Paraná havia coincidência do manda to dos representantes do Conselho com os do governo Quanto às reuniões ordinárias eram realizadas uma vez ao mês e as extraordinárias convocadas pelo presidente ou por 50 dos membros Somente em alguns estados a pauta de reunião era distribuída com antecedência As decisões eram tomadas por votação nominal e a deliberação por maioria simples67 Poucos estados dispunham de dotação orçamentária para o funcionamen to dos Conselhos O fato é indicativo de um papel menor na decisão das polí ticas já que nenhum órgão de governo carece de dotação Ainda que os Conse lhos fossem órgãos criados pela política de saúde para que a sociedade Desse modo seus membros não tiveram remuneração O que de fato aconteceu prin cipalmente na esfera municipal foi que os representantes de movimentos e de usuários nos Conselhos não tinham às vezes condições de comparecer às reu niões por não poder custear seu próprio transporte68 Tratase de aspecto extre mamente problemático pois a carência dos meios pecuniários somada à não difusão dos resultados das deliberações dessa instância política além da não divulgação das informações necessárias sobre o sistema de atendimento tornou inócua a sua atuação A representatividade foi bastante desigual Predominou a iniciativa do Es tado sobre a da sociedade com algumas variações nos estados em que as enti dades da sociedade participaram da criação dos conselhos A indicação dos conselheiros em quase todos os Estados foi decidida pelas suas respectivas entidades sendo nomeados pelo governador 67 Em relação à dinâmica de funcionamento a pesquisa considerada analisou 12 estados já que os restantes não se encontravam ainda em pleno funcionamento e os que funcionam eram muito recentes o que dificultam a avaliação 68 Ver Cohn Elias Jacobi 1993 cap8pmd 872011 1042 240 241 Em dois estados o Poder Legislativo foi inserido na bancada dos usuários Pernambuco e Amazonas enquanto nos demais ele integrou a bancada do Poder Executivo A inclusão dos representantes do Poder Legislativo na banca da dos usuários significa uma completa inversão da idéia original dos Conse lhos que visava o controle social da população na implementação da política De fato a solução mais razoável é incluíla na bancada do Poder Executi vo independentemente de que partidos tivessem maior peso no Legislativo Cabe evidenciarmos isso já que tem sido questão constante das agendas das secretarias municipais e estaduais de saúde Fazse necessário inclusive acrescentar que em estados onde não há movi mento social organizado e onde os representantes do Legislativo têm posições próximas à Reforma Sanitária representar os movimentos e usuários expressa um comportamento de cunho paternalista em relação à população e pouco condizente com os procedimentos democráticos Observase que a maioria dos Conselhos não operam nem como um es paço institucional de canalização das demandas da população por melhores condições de atendimento e cuidados de saúde no município nem como um espaço de denúncia dos problemas de saúde local Tampouco há visibilidade para a população sobre a existência e a finalidade dos conselhos nem ações planejadas destes para a ocupação de espaços nos meios de comunicação de massa que sirvam à difusão existência e alcance dos conselhos de saúde A falta de orçamento próprio inviabiliza o encaminhamento de desdobra mentos imprescindíveis ao desenvolvimento da ação dos conselhos A articula ção dos conselhos estaduais com o conselho nacional e com os conselhos mu nicipais é outrossim mais ou menos intensa dependendo do estado Em al guns destes há ainda uma articulação com universidades e organizações não governamentais através de consultas capacitação de recursos humanos elabo ração de planos de saúde e nas conferências estaduais Quanto às condições administrativas financeiras e técnicas de funciona mento e decisão ficou evidenciada a relação de dependência dos Conselhos com as Secretarias Estaduais A respeito dessas constatações ressaltamos que ainda que os usuários par ticipem pouco dos Conselhos a existência destes gera um impacto político devido ao conhecimento que a população tem da existência dos mesmos e à influência que estes podem ter no sistema de saúde visando obter melhor aten dimento para a população cap8pmd 872011 1042 241 242 Neste sentido a existência dos Conselhos é um espaço difusor de práticas políticas alternativas colaborando para que alguns autores no campo da ciência política denominam contextual effects Schmitter 1985 No caso seriam resulta dos inesperados não a um nível agregado mas quanto a uma mudança na per cepção que os indivíduos ou a população possa adquirir em relação a uma determinada política Dito de outra forma o acesso à política de saúde torna se algo próximo dos usuários na medida em que existem órgãos deliberativos da política sobre os quais estes têm ingerência direta A definição de prioridades em saúde não foi na prática assumida pelos Conselhos enquanto a formalização da incorporação de reclamações e suges tões dos usuários para a elaboração do Plano Estadual não foi implantada Dos municípios existentes no País apenas 68 foram cadastrados pela pesquisa69 Destes municípios 62 constituíram legalmente o Conselho Muni cipal de Saúde a partir de 1991 Nos pequenos municípios a existência dos Conselhos é menos freqüente e quando estes existem funcionam de maneira regular apenas na metade dos municípios Nos municípios capitais dos 26 estados da federação as secretarias munici pais de saúde representaram os principais agentes para a criação dos mesmos entre os anos 19901991 Os Conselhos de Saúde nas Capitais e Municípios A composição dos Conselhos Municipais das capitais foi formada por parte dos usuários sobretudo por representantes dos movimentos sociais num total de 168 membros Nesse grupo os representantes do Movimento Popular em Saúde 27 e em segundo lugar as associações de moradores 15 Além dos movimentos comunitários havia a bancada das entidades de trabalhadores 66 nas quais predominavam membros das centrais sindicais e entidades de trabalhadores em saúde Por parte dos prestadores os representantes do Poder Executivo eram 126 sendo 81 da esfera municipal 23 da federal e 18 da estadual Os profissio nais de saúde contavam com 102 representantes das áreas médicas de enferma gem de entidades de trabalhadores de saúde estando os demais distribuídos por outras categorias 69 Avaliação do Funcionamento dos Conselhos Estaduais e Municipais de Saúde agosto de 1993 cap8pmd 872011 1042 242 243 Ainda da parte dos prestadores além dos representantes do Poder Execu tivo e dos profissionais de saúde havia os prestadores stricto sensu que somavam 49 sendo 11 da área pública 11 dos filantrópicos e 15 dos privados Por fim a comunidade acadêmica possuía 17 cadeiras nos Conselhos Novamente o Po der Legislativo tomava assento como Estado e como usuário em Macapá Manaus e Boa Vista Os conselheiros eram indicados pelas entidades e nomeados pelo prefeito O tempo de duração do mandato era também em alguns municípios atrelado à gestão municipal A dotação orçamentária preconizada pela legislação fede ral só era atendido por dois municípios o do Rio de Janeiro e o de Palmas A organização interna dos conselhos era composto de Plenária de Secreta ria Executiva e de presidente O do município de São Paulo apresentou peculi aridades visto que substituiu a Plenária por Colegiado Pleno e constituiu Co missões Interdisciplinares permanentes para discussão de assuntos setoriais da saúde além de uma Comissão Executiva para a apreciação de denúncias e de demandas com caráter deliberativo Os municípios de Goiânia Recife e Belo Horizonte constituíram Mesas Diretoras enquanto Rio de Janeiro e Porto Alegre tinham núcleos de coordena ção De modo geral as reuniões realizavamse mensalmente e a tomada de decisões na maioria dos casos ocorria nas Plenárias e Colegiados através de votação nominal aberta e quando necessário secreta Os resultados explicitados ajudam a complementar a análise do processo de municipalização ao mesmo tempo que a interpretar seu caráter Da mesma for ma que na análise do processo de municipalização no caso dos Conselhos pode se constatar que a descentralização da política de saúde tem acontecido de manei ra incompleta O processo avançou no nível municipal da política mas a profun didade e o alcance da municipalízação do setor saúde diferem entre os municípi os No nível estadual têm sido imensas as dificuldades para que se assuma o processo de descentralização e a formação dos Conselhos de Saúde Podese afirmar que existiram grandes empecilhos por parte das Secretarias Estaduais de Saúde para a efetivação do SUS Isso diz respeito à falta de entrosamento dos governos estaduais com a Reforma Sanitária e ao despreparo e inadequação gerencial administrativa e orçamentária das secretarias estaduais para assumir a descentralização A situação é mais bem contornada no nível localmunicipal devido ao fato de a estrutura do sistema de saúde a rede de serviços possuir menor cap8pmd 872011 1042 243 244 complexidade à exceção dos municípios que constituem as grandes cidades capitais do País onde a rede municipal convive com as redes federal e estadual De modo geral a efetividade dos Conselhos relacionase à pressão exercida pelos usuários pelos movimentos sociais organizados e profissionais de saúde e à maior proximidade da população com as autoridades locais Seja como for o processo de municipalização ainda que tenha tido enor me difusão política uma vez que a questão da municipalização passou a ter papel principal na implementação da política pública não teve o efeito almeja do em relação às transferências de poder para os níveis locais e particularmente para a população Essa situação se explica pelo fato de a política se localizar exclusivamente no nível municipal sem uma definição de atribuições e obrigações das esferas federal e estadual e sem o repasse correspondente dos recursos Porém princi palmente devido ao fato de os Conselhos não terem sido criados de baixo para cima o que fez com que ficassem depreciados e dependessem da vonta de política dos governadores e prefeitos para incentiválos ou não Ao se comparar os Conselhos municipais com os Conselhos estaduais verifi case que os primeiros têm sido bem mais atuantes tendo a população exercido algum controle em termos de financiamento administração e gestão das unidades de saúde Essa atuação difere bastante de município para município mas tem ocor rido de forma continuada ainda que o início da década de 90 corresponda a um momento político caracterizado pelo declínio na ação dos movimentos sociais em saúde e especialmente do movimento popular e associações de moradores Os Conselhos de Saúde e a Participação Cidadã A problemática em jogo é a passagem de uma postura de oposição para a de participante ativo situação que o alinha às forças governamentais e o coloca como coresponsável das decisões a serem implementadas Mas para a conti nuidade da luta das forças populares isso tem sido muito mais um fator de enfraquecimento e desunião que propriamente um estímulo Há uma observação que se repete em todo documento impresso dos movimentos populares as coisas só acontecem quando a gente começa a lu tar No entanto a impressão ao fim de um levantamento e pela observação da atuação desses movimentos é de que não se acredita e se desconhece do que e de quanto é possível mudar através da participação e do controle social cap8pmd 872011 1042 244 245 Revisando panfletos e publicações fidedignas do movimento popular cons tatase que existe difusão a respeito dos Conselhos e sua finalidade ou seja através destes a população exerceria o direito de controlar fiscalizar formular e participar do planejamento e execução das políticas de saúde70 Tratase de um processo que se encontra em um momento inicial e que sofre fortes resistências das diversas instâncias do Executivo prestadores priva dos etc expressas em obstáculos à viabilização de um funcionamento mais fluido dos Conselhos não os considerando órgãos deliberativos ou não lhes atribuindo dotação orçamentária É uma situação dúbia o Poder Executivo não lhes reconhece o caráter decisório e o Movimento Social em Saúde e os usuários lhe retiram o crédito dificultando que os Conselhos alcancem uma posição de destaque na transformação da política de saúde O discurso do próprio movimento aliás parece cair num vazio O usufru to da saúde e o atendimento à doença como algo resultante ou relacionado à participação e à conseqüente atividade nos Conselhos parece não ser entendida como questão decisiva para melhorar o atendimento Assim a importante bancada de representantes de movimentos e usu ários não tem revertido num papel mais operativo e resolutivo dos conse lhos de saúde situação notória nos conselhos estaduais de uma parte estes não se constituíram em elemento dinamizador da mobilização popular como foi à época o processo constituinte De outra o período transcorrido na década de 90 caracterizouse pela fragmentação dos movimentos sociais em geral com a conseqüente paralisação da ação coletiva dos movimentos populares em saúde No âmago do Movimento Popular em Saúde produziuse um impasse com uma divisão ideológica que neutralizou a política no âmbito de sua implementação Isso ocorreu a partir do esvaziamento do potencial de partici pação das entidades autônomas que ao estarem divididas e fragmentadas cri aram uma armadilha para a nãoparticipação Se participar leva à cooptação não participar ou se abster de fazêlo a evitaria mas inviabilizaria a política A nãoparticipação colaboraria com dois tipos de conseqüências abrir brecha para o corporativismo médico e facilitar a cooptação de agrupamentos ou da própria população nãoarticulada no Movi mento Popular em Saúde 70 Se Liga no Sinal 312 julago 1993 Informativo do Cepel Rio de Janeiro cap8pmd 872011 1042 245 246 A alternativa participaçãonãoparticipação na qual o Movimento Popular em Saúde se colocou o submete a uma lógica que lhe é alheia conduzindoo ao dilema do prisioneiro expressa como paralisia decisória Elster 1989 Definitivamente o desafio é a criação de formas inovadoras de atuação política capazes de inaugurar uma outra lógica que abra as comportas a idéias não tão polarizadas e inibidoras tais como EstadonãoEstado participar nãoparticipar ser cooptadonão ser cooptado etc Polarizações ideológicas às quais o movimento se prende e que estão profundamente relacionadas a uma visão de Estado que o impede de se perceber fora de ainda que o discurso seja o da autonomia do movimento em relação ao Estado O espaço que os movimentos e usuários não preenchem nos Conselhos de Saúde passa a ser ocupado pelas entidades médicas novamente atuantes no plano político reivindicando a implementação do SUS e no plano corporativo exigindo isonomia salarial plano de cargos e salários e melhores condições de trabalho e de atendimento no setor público e privado O que se deduz da prática do movimento popular durante o período início da década de 90 é a inexistência de sinais de recuperação no processo de declínio observado desde o fim dos anos 80 O engajamento político do mo vimento que excepcionalmente reapareceu na oportunidade da IX Conferên cia voltou a se esvair ante as dificuldades de implementação da política de saúde nas suas instâncias agora descentralizadas assim como os Conselhos de Saúde órgão de participação social na política de saúde O próprio Estado contribuiu para que sua importância fosse minimizada ao não reconhecêlos Em nossa maneira de ver tratase de um direcionamento não deliberado de um acontecer que vai ocupando o espaço que o movi mento deixa vago e que se expressa através de formas individuais e solidárias de resistência à dor e até à própria morte enquanto estratégias para superar a sofrida experiência de empobrecer e adoecer dessas populações carentes cres cente nos últimos anos Às vezes ocorrem expressões ou manifestações de caráter mais coletivo tais como formação de hortas comunitárias ou de grupos de acompanhamento de doentes Entretanto mais freqüentemente acontecem de maneira individual quan do os próprios moradores procuram se capacitar como agentes de saúde comu nitários ou doam tempo à colaboração em atividades revertidas para a saúde da comunidade como a desinfecção de valas etc orientadas por impulsos soli dários e relacionadas de maneira imediata a situações de sobrevivência cap8pmd 872011 1042 246 247 Muitas dessas experiências retomam práticas anteriores das comunidades eclesiais de base da década de 60 recuperando ideais religiosos de comunhão vicinal Esse tipo de prática remete à discussão do papel dos sujeitos na política na medida em que reivindica e valoriza os procedimentos com os quais a cultura e a experiência popular contam para enfrentar a vida Revela o reconhecimento extremamente valioso de um acervo pessoal do qual os indivíduos lançam mão como alternativa nãomédica para enfrentar a doença e o sofrimento Com tudo isso evidenciase a perda dos espaços criados pela Reforma Sanitária para a efetivação da política de saúde pois embora o movimento participe dos Conselhos não os tem como próprios e decisórios para alcançar o sistema de saúde almejado pelas populações carentes Contudo tornase evidente que existe também um retrocesso do próprio movimento em sua articulação e institucionalização De fato a institucionalização tornase imprescindível para que se constituam interlocutores políticos legítimos e reconhecidos pelo Poder Executivo e pela sociedade organizada sindicatos partidos políticos entidades médicas organizações religiosas e outras A nãoinstitucionalização do movimento leva à nãomaioridade do mes mo sendo continuamente desconsiderado tutelado ou protegido por forças mais solidamente constituídas Se essas políticas acabam acontecendo como resultado do curso natural a procura da sobrevivência como a saída possí vel em face do descaso do Estado são também limitadoras ao não acarreta rem a capacidade de interferir no sistema de saúde Os condicionamentos políticos sociais e econômicos a que essas popula ções necessitadas estão submetidas parecem remeter a certas condições de ma turidade organizativa e portanto a políticas que não conseguem se cristalizar internamente no movimento e que são reiteradamente alternadas com a desinstitucionalização do mesmo Simultaneamente na mesma medida em que o movimento abandona o espaço de interferência na política de saúde repro duz a perpetuação das condições de existência dessas populações Em suma se o movimento não ocupa os possíveis espaços políticos aber tos acaba reproduzindo o lugar político que lhe foi atribuído Ao mesmo tem po outras forças organizadas se apropriam no caso analisado as entidades médicas desses canais de interferência nas decisões políticas De fato no mo mento em que as entidades médicas retomaram a atuação política passaram a exercer uma função tutelar em relação ao usuário do sistema público de saúde através do papel destacado nos Conselhos de Saúde e nas políticas de saúde dirigidas às camadas pobres da população cap8pmd 872011 1042 247 249 Conclusão A escolha teórica dos movimentos sociais em saúde no processo de reformulação e de implementação das políticas de saúde teve a pretensão de deslocar o foco de análise da política de saúde enquanto política social da esfera do Estado como lugar privilegiado para se pensar a política pública Situados nessa perspectiva penetramos na formação nos comporta mentos políticos e na atuação desses movimentos no transcurso de um momento da história política do País em que as tensões e contradições so ciais e políticas exacerbadas pelo regime autoritário no que se refere às relações Estadosociedade buscaram vazão através da transição à demo cracia Foi precisamente nessa passagem e na redefinição de áreas de política social como a da saúde que se localizaram os novos atores sociais e os protagonistas da cena democrática confundindose com o próprio proces so de instauração da democracia Tal decisão levou a que se trabalhasse com três focos de análise simultanea mente e a deslocar ou priorizar temporariamente um sobre os outros os movi mentos sociais em saúde a construção da democracia e a política de saúde Num enquadramento estritamente teórico do nosso múltiplo objeto nos parece necessário estabelecer algumas considerações Os movimentos sociais em saúde fazem parte de movimentos sociais e com eles compartilham as no vas formas de associativismo relacionadas à formação de identidades coletivas Estas são sustentadas em laços de solidariedade originados das condições de vida de populações carentes seja em moradia transporte saúde infraestrutura urbana educação etc ou em situações que afetam as condições e as modali dades de vida da classe média meio ambiente violência urbana discriminação de minorias pauperização de setores profissionais etc cap8pmd 872011 1042 249 250 Neste sentido os movimentos sociais em saúde embora não constituindo fenômeno restrito ou específico do setor da saúde têm elemento distintivo que os caracteriza que é o fato de se originarem numa área específica de política social situação que não se verificou com a mesma especificidade e alcance em nenhum outro setor da política pública A área de atuação desses movimentos restringiuse às questões relativas à saúde da população e às políticas de saúde No entanto a discussão política ultrapassou essa esfera questionando as relações entre Estado e movimento a política governamental e a autonomia e a institucionalização dos mesmos Constatase que os movimentos sociais em saúde contribuíram para a ampliação do exercício da política levando ao interior do Estado uma proble mática que dele estava ausente ao mesmo tempo que aproximou das decisões relativas à política de saúde tradicionalmente reservadas ao Estado os destinatá rios da mesma Dessa forma o movimento social exerceu papel protagonista no encurtamento da distância entre a esfera privada e a ordem pública O enfoque teórico pelo qual nos aproximamos da compreensão do Movi mento Social em Saúde incorporou as diversas concepções relativas à ação coleti va e à formação de identidades políticas que ajudaram a explicar as motivações que levaram atores coletivos e individuais a se disporem ou não a agir coletiva mente na reformulação das políticas de saúde dentro do contexto maior da transição à democracia A idéia defendida em relação ao conceito de movimento social implica uma novidade talvez sutil mas nem por isso menos importante na medida em que envolve a noção de comportamento coletivo Dito de outra maneira essa categoria referese por um lado a uma modalidade particular de associação caracterizada pela fluidez organizativa pela falta de institucionalização e conse qüentemente pela ausência de regras formais que definam hierarquias e vínculos entre os seus membros Por outro lado diz respeito ao modo como viabiliza demandas de teor políticoreivindicativo através da mobilização ou da ação coletiva na qual a disposição para a ação é fortemente marcada pela presença do coletivo Isso complementa o conceito visto que ajuda a identificar os movimentos sociais pelo comportamento político que os agrupamentos sociais desenvolvem Enfoques teóricos diversos recebem articulação plena se olhados da pers pectiva da definição do nosso objeto de pesquisa Analisar as políticas sociais da perspectiva dos atores sociais envolvidos nas decisões políticas e como destina cap8pmd 872011 1042 250 251 tários das mesmas levaram a reconstruir um campo teórico que se expandisse para além das teorias do Estado e do papel das políticas sociais nessa esfera Ao mesmo tempo que não podíamos deixar de incluir este campo de pensamento éramos obrigados a deslocar o eixo de reflexão da política social para o âmbito das sociedades Recriar uma perspectiva teórica na relação entre atores e política no con texto histórico delimitado pelo nosso objeto de pesquisa tornou figura princi pal o que era pano de fundo fazendo com que o processo de estabelecimento de regime democrático na abordagem da transição à democracia ganhasse pa pel fundamental na análise da relação entre os movimentos sociais em saúde e as políticas de saúde Assim discutimos a democracia nos seus aspectos constitutivos e em suas transformações impreteríveis nos pares de relações esfera públicaprivada indi víduosociedade eqüidadejustiça social como condição necessária para o esta belecimento de regime democrático capaz de assentar as bases de novo padrão das relações Estadosociedade no qual as políticas sociais e em especial as de saúde por lidar com a vida e a morte em sociedades profundamente desi guais exercem papel fundamental para a constituição da ordem democrática A idéia de democracia assinalada ao longo deste livro sustentase na de constituição de sujeitos democráticos capazes de reproduzir comportamentos e ações políticas que levem em conta a existência do outro Tratase da promo ção de democracias com extensiva participação social Por outro lado em situações de imensas desigualdades socioeconômicas das quais o Brasil é um exemplo num mundo que se aproxima cada vez mais da privação e da injustiça social verificase ilusório ignorar o papel que o Esta do tem a desempenhar na fundação de novo modelo de democracia que vá além da instalação de um sistema político democrático Neste sentido as políticas sociais e dentre essas particularmente a Refor ma Sanitária constituem elementos centrais na democratização do Estado ten do em vista que veiculam a participação social em área tradicionalmente restrita ou seja a da implementação de políticas e promovem a alocação e redistribuição progressiva de benefícios que contribuem para o estabelecimento da justiça social progressiva De fato ao discutirmos a Reforma Sanitária na moldura do processo de formação e implementação de políticas sociais ao mesmo tempo que sinalizá vamos os constraints estruturais relacionados ao próprio processo de acumula cap8pmd 872011 1042 251 252 ção no Estado capitalista enfatizávamos a presença de nível singular de análise das políticas sociais onde aspectos de inovação política ampliaram o espaço social e a luta política na arena estatal tanto nos procedimentos burocrático administrativos como nas relações de força societária que a implementação da política foi capaz de desencadear No entanto a questão de importância fundamental em nossa opinião é o papel singular que adquirem as políticas sociais devido a este ser precisamente campo propício à incorporação de inovações políticas e que no período estu dado mostrouse ameaçado pelas políticas de ajuste econômico das décadas recentes o que retraiu as políticas sociais a sua manifestação mínima O papel regulatório do Estado na relação com o mercado e o setor priva do assim como sua intervenção enquanto promotor do desenvolvimento eco nômico e da justiça social requer Estado forte contrariamente à idéia neoliberal do Estado mínimo e lhe impõe novas atribuições e exigências Dentre estas o desmonte e o redimensionamento da máquina estatal e a criação de centros de decisão política em que tenham assento e representação os diversos interesses sociais em jogo na sociedade relacionados a políticas específicas E implica fundamentalmente sensibilizar o Estado para experiências locais de gestão es pecialmente nas áreas de política social de modo que a democracia se confunda cada vez mais com a eqüidade social e que as mudanças se configurem em objeto de reflexão discussão e avaliação contínuas principalmente no que concerne a resultados e à efetividade obtidos através das mudanças implementadas O conceito de cidadania é central à perspectiva que nos interessa no pro cesso de constituição de um regime democrático quando os processos de re formas abrangentes das políticas sociais constituem a condição de possibilidade para o estabelecimento de sociedade mais justa e eqüitativa Razão pela qual ao discutir a cidadania procuramos denotar o sentido e a compreensão embutidos na concepção teórica que lhe deu origem e apontar as contradições que o con ceito denunciou a partir do desenvolvimento histórico já não do conceito mas da cidadania no mundo moderno Concluímos assim que a eqüidade resultante do percurso histórico da consecução de direitos de cidadania como conquista da sociedade ou mais especificamente da classe operária nas sociaisdemocracias dos países de capita lismo avançado está estreitamente relacionada à idéia de justiça social enquan to valor éticomoral impreterível ao estabelecimento da democracia A constru cap8pmd 872011 1042 252 253 ção da democracia referese à construção do que se tem chamado de demo cracia radical Mouffe 1992238 A distinção privado liberdade individualpúblico res publica tal como a separação indivíduocidadão não correspondem a esferas separadas Não é possível dizer onde termina minha obrigação como cidadão e onde começa a minha liberdade como indivíduo Estas duas identidades existem em permanente tensão e não podem ser reconciliadas Mas esta é precisamente a tensão entre liberdade e igual dade que caracteriza a democracia moderna A essência deste regime e de quaisquer tentativas de trazer a harmonia completa ou seja compreendêla como democracia verdadeira só levaria a sua des truição Esta é a razão pela qual o projeto de democracia radical e plural reconhece a impossibilidade da compreensão de democracia plena e a realização última da comunidade política Seu objetivo é usar recursos simbólicos da tradição democrática liberal para lutar pelo aprofundamento da revolução democrática sabendo que este é processo sem fim Minha tese é que a cidadania ideal poderia contri buir enormemente para a extensão dos princípios de liberdade e igualdade Unindo os direitos ideais e o pluralismo com as idéias do espírito público e o engajamento políticoético uma nova concep ção democrática moderna da cidadania poderia restaurar a dignida de da política e prover o veículo para a construção de uma hegemo nia democrática radical A concepção de democracia passa assim a denotar um processo no qual o sentido não é dado pela adscrição e pela procura de modelo acabado seja doutrina econômica a implantar ou proposta de sociedade Tratase de condi ção necessária ou dito de outra maneira da amplitude com que a democracia é capaz de viabilizar valores éticomorais isto é eqüidade e justiça social enquan to bastiões da dignidade humana respeito à pluralidade cultural étnica religio sa preferências sexuais de gênero etc e a liberdade em todas as manifestações doquefazer humano Porém os obstáculos a uma democracia que incorpore tais valores e comportamentos políticos decorrentes dos mesmos um regime democrático societário afiguramse intransponíveis O conceito de regimes de democratização parcial Schmitter 1991a foi de grande importância para pensarmos considerando as dificuldades expos tas anteriormente a constituição da democracia como estabelecimento de estruturas e comportamentos democráticos em áreas restritas de políticas nas quais uma particular configuração sociopolítica as faz portadoras de maleabilidade cap8pmd 872011 1042 253 254 que as habilita a veicular transformações num conjunto de instituições mais sensíveis à participação e à discussão societária Neste sentido a constituição da democracia é compreendida como um processo político de partes em movimento um mix de regimes parciais de democratização Schmitter 1991a que atualizam interiormente as dificuldades de mudanças mais homogêneas e unívocas e conseqüentemente a democracia como processo político porque incompleto em permanente transformação A formação de regimes de democratização parcial sinaliza portanto um caminho de aproximações sucessivas em que recortes não completamente estruturados compõem um mosaico inacabado e em permanente movimen to Definitivamente por trás da idéia da formação de regimes de democrati zação parcial o que se tem é uma abordagem metodológica que renuncia à idéia de totalidade para ancorar na indeterminação resgatando uma direcionalidade progressiva O setor da saúde particularmente a Reforma Sanitária brasileira tem se constituído num regime de democratização parcial caracterizado pelo ressurgi mento da sociedade civil e pelo nascimento dos movimentos sociais em saúde que desempenharam papel inestimável na política de saúde até então pratica mente confinada ao espaço exclusivo do Estado A análise do Movimento Social em Saúde na sua relação com a política nacional de saúde mostrou a origem dos movimentos sociais relacionada à acepção de cidadania que os processos de democratização trouxeram para o centro da cena política Já a trajetória desses movimentos religouse às alternati vas que os protagonistas sociais imprimiram ao processo de transformação da política de saúde nas diversas esferas implicadas O Movimento Social em Saúde nas duas vertentes analisadas e na relação com o processo de formulação da política de saúde atravessou fases extrema mente diversas A ação coletiva foi num crescendo marcada pela identidade co letiva alcançada pelo movimento mas também caracterizouse por momentos de clara estagnação nos quais as dificuldades se evidenciaram principalmente ao ter que optar diante de modalidades mais institucionalizadas no exercício da política O período da transição à democracia marcado pela oposição ao regime militar com amplos setores da sociedade engajados foi propício à formação do Movimento Popular em Saúde De fato se originou sob o calor da discus são crítica das condições de saúde das populações marginais nas grandes me trópoles Esse período de formação iniciado em finais da década de 70 foi cap8pmd 872011 1042 254 255 influenciado pelas comunidades eclesiais de base experiências de organiza ção popular desenvolvidas pela Igreja com as populações carentes e pelas experiências de medicina comunitária como política de saúde alternativa ao sistema de saúde do regime autoritário Teve como difusores intelectuais e profissionais de saúde engajados numa prática políticopartidária Ainda que as políticas de saúde tenham se erigido no eixo que marcou a atuação do movimento a relação deste com as políticas de saúde foi caracteri zada pela dinâmica interna do próprio movimento Questões relativas à pro posta políticoorganizativa a autonomia diante do Estado a institucionalização do movimento e a relação com os partidos políticos foram adquirindo signi ficado decisivo o que se depreende da trajetória desses movimentos ante as políticas de saúde O que diferenciou o momento de estruturação do movimento foram as tentativas para conseguir articulação nacional e a oposição às políticas de saúde do regime militar que excluíram as populações carentes do atendimento e dos de mais cuidados de saúde ao favorecerem o setor privado às custas do setor públi co A proposta alternativa articulada pelo movimento foi a da medicina comuni tária a ponto de os encontros nacionais do Movimento Popular em Saúde nos primeiros anos denominaremse encontros de medicina comunitária A fase de ascensão do movimento coincidiria com mudanças substantivas no processo político de democratização quando a ênfase recaiu na definição de propostas políticas que diferentemente da época autoritária estimulassem os setores da sociedade excluídos no regime precedente à participação social e econômica Sob esse aspecto a proposta da Reforma Sanitária foi tomando forma até alcançar o ponto de maior definição na VIII Conferência Nacional de Saúde O Movimento Popular em Saúde amadureceu neste contexto tanto no que se refere à proposta localizada na medicina comunitária para abranger o Sistema Nacional de Saúde quanto na articulação política do movimento com a cria ção de federações estaduais e confederações nacionais de bairros e favelas Foi um segundo momento em que o processo definitório da reformulação do sistema de saúde se confundia com a existência mesma do Movimento Popular em Saúde As interferências relativas à problemática interna do movi mento mencionadas antes eram menos notórias embora já se evidenciassem diferenças a respeito da estatização do sistema de saúde e da autonomia do movimento em relação àquela cap8pmd 872011 1042 255 256 Por último a fase de declínio que se caracterizou mais pelo agravamen to da discussão política interna que por definições claras do movimento em relação à implementação da Reforma Sanitária Esta fase pode ser definida como a das resistências e dificuldades que o movimento enfrentava diante de um processo de institucionalização que lhe permitisse talvez atuação mais decisória na política de saúde através de Conselhos Municipais Esta duais e Nacional Algumas reflexões ou inquietações retomam o enfoque teórico pela mão da trajetória do movimento agora no que concerne à dinâmica da relação entre atores e políticas Quando se constituem os atores em sujeito e quando deixam de sêlo Como consegue ou não esse tipo de movimento transcender suas limitações para se situar no plano da definição da política A dificuldade que o Movimento Popular em Saúde exprime em sua trajetó ria é a de se assumir como sujeito autoconstruído em lugar de em oposição a Essa passagem é afinal evolução em relação ao Estado Ao longo do tempo o lugar ocupado reiteradamente pelo Estado acaba se configurando em limite estreito e constrangedor na percepção de si mesmo e conseqüentemente na sua operacionalidade política Isso significa que não estando resolvido o dilema a respeito de si mesmo este impede a projeção no âmbito político em atuação duradoura ainda que chegue a ser sujeito político ou sujeito na política diante de situações de crise de maneira quando muito apenas esporádica Esse autolimitarse da atuação faz com que o processo a encaminhe à perda progressiva na capacidade de decisão estratégica ao mesmo tempo em que desemboca no objetivo rejeitado Seu contorno está configurado de fora para dentro não à maneira da autonomia tal como compreendida pelo movi mento mas segundo a dimensão com que o Estado vai avultando na atuação do movimento e nas distorções do discurso ideológico Assim o discurso tornase realidade enquanto impossibilidade de constru ção de espaço próprio Em tal sentido não é o Estado que coopta o movimen to mas é o temor à cooptação que acaba impondo ao movimento enquanto este pretende se definir como organização independente a disjuntiva entre ser organização sob a luz do Estado ou desaparecer definitivamente De alguma maneira a profecia autocumprida presente no imaginário desses movimentos é intrinsecamente estabelecida pela própria dinâmica constitutiva dos mesmos até adquirir um peso decisivo no fiel da balança a ameaça de cap8pmd 872011 1042 256 257 cooptação deixa de ser virtual e se torna fantasmagórica realidade ou simples mente realidade Já o Movimento Médico e sua atuação face às políticas de saúde apresen taram uma problemática interna e questões bem diversas das detectadas no movimento popular Em primeiro lugar a denominação movimento esbarra na particular modalidade de articulação e organização que no Brasil os profis sionais médicos têm se dado na prática desde a regulamentação da medicina como profissão Com efeito o Movimento Médico é formado por diversas entidades Várias delas originadas no início do século XX caracterizamse por alto grau de institucionalização e presença nos vários níveis em que se desenvol ve a vida do profissional médico A mobilização por reivindicações laborais e a oposição às políticas de saúde dominantes no regime militar levaram os médicos do final da década de 70 até meados dos anos 80 a agir coletivamente sem que a atuação da categoria estivesse atrelada às instituições médicas Criouse um Movimento Médico que sem desco nhecer a existência das entidades médicas não as reconhecia como condutoras efetivas da classe A categoria agia suprainstituições médicas muitas destas tendo passado até mesmo por intervenções militares A liderança efetiva da categoria foi assumida pelo Movimento de Renovação Médica originado de uma chapa elei toral formada para disputar as eleições no Sindicato dos Médicos A condição de possibilidade para que os médicos agissem e se constituíssem em movimento com identidade coletiva relacionavase às peculiaridades da corporação médica sustentadas mais do que numa estrutura hierárquica na força que o ideário da profissão médica tem para com seus praticantes Caro 1969 Desse modo a atuação do Movimento Médico caracterizouse por forte resistência às políticas de saúde do regime militar e pela disputa de um papel principal na elaboração junto a outros integrantes do Movimento Social em Saúde de uma proposta de reformulação do sistema o que culminou na proposta nacional de Reforma Sanitária por ocasião da VIII Conferência Nacional de Saúde A constituição do Movimento Médico característica principal da atuação da categoria na década mudou substantivamente no final dos anos 80 Em pleno processo de democratização do País sem a oposição aos militares como traço de união do movimento e uma vez regulamentada a Reforma Sanitária na Constituição Nacional de 1988 os médicos passaram a ser repre sentados pelas instituições médicas Dentre estas adquiriu papel central o Sindi cap8pmd 872011 1042 257 258 cato dos Médicos em defesa dos interesses econômicocorporativos dos mesmos e o Conselho de Medicina que tentava preservar o papel político dos médicos na defesa dos princípios da Reforma Sanitária É necessário salientar as diferenças que permearam a categoria médica re lacionadas às transformações no mercado de trabalho as quais se refletiram numa atuação política focalizada nas múltiplas formas de representação dos interesses médicos segundo a particular inserção destes no mercado de traba lho Nessa contingência o movimento social se fraturou e a defesa da implementação da Reforma Sanitária e dos princípios que lhe deram origem cedeu lugar às diferenças evidenciadas internamente na categoria e expressas na representação dos interesses da corporação médica No que diz respeito à categoria médica em face das políticas de saúde houve o gradual abandono dos princípios da Reforma Sanitária e os médicos manifestaram por meio de sucessivas e intermináveis greves o inconformismo com a situação salarial e com as condições de trabalho eixos principais da atuação da corporação na década de 90 A articulação do Movimento Popular em Saúde foi difusa de modo geral o que se explica pela especificidade desse tipo de movimento Dispõe de uma organização flexível pouco formalizada institucionalmente A mobilização por demandas de saúde ante o Estado é que desempenha papel principal em sua constituição e permanência no cenário Contudo o Movimento Popular em Saúde e o Movimento Médico chegaram a ter uma dinâmica de atuação bem articulada em tomo das grandes questões do setor Por algum tempo na primeira fase e até meados da segunda o processo de reformulação do setor que culminaria com a Reforma Sanitária na VIII Con ferência Nacional de Saúde assim como com a formação da Plenária Nacional de Entidades de Saúde para influenciar o processo constituinte e a regulamenta ção da Constituição Nacional contou com o trabalho conjunto do movimento popular e do Movimento Médico no apoio à incorporação da Reforma Sanitária na Constituição As dificuldades entre ambos os movimentos se evidenciaram menos com relação à política que em relação a interesses divergentes entre usuários e médi cos centrados de um lado nas necessidades de atendimento da população e de outro nas greves médicas por melhores salários e condições de trabalho que desde 1989 de maneira ininterrupta levaram a uma pronunciada crise de aten dimento do setor público situação mais notável aliás nos estados com grande cap8pmd 872011 1042 258 259 rede federal e estadual e os que ofereciam as piores condições de remuneração e de infraestrutura hospitalar As greves no setor público já bastante depreciado pelo descaso dos gover nos federal e estadual reforçariam o desmonte deste o que afetaria profunda mente os usuários do sistema populações de baixa renda em geral e que não dispunha de nenhuma outra opção de atendimento A situação gerou enfrentamentos tendo a população manifestadose contra os médicos em di versas oportunidades71 A atuação dos médicos foi de encontro aos interesses dos usuários Mas a resistência do Movimento Popular em Saúde em se institucionalizar e a ter papel mais decisivo na política deixaram desprotegidos os usuários abrindo caminho para o corporativismo médico Cabem aqui algumas reflexões a respeito do peso ou incidência de cada uma das seguintes questões na atuação do Movimento Social em Saúde em face da implementação da Reforma Sanitária a articulação política entre os movimentos a modalidade de atuação e de organização interna e a própria política de saúde tal como implementada na esfera do governo Em primeiro lugar os fatores externos ao movimento a particular mo dalidade governamental na implementação da Reforma Sanitária explicável pelas diferenças políticoideológicas do governo com a Reforma tiveram grande peso no retrocesso político do Movimento Social em Saúde Em segundo lu gar o que se depreende do tratamento da questão é que os mesmos fatores externos não foram determinantes no comportamento que esses movimentos desenvolveram comportamento este que respondeu à própria dinâmica interna dos mesmos O modo como os movimentos reagiram aos empecilhos opostos pelo governo à Reforma Sanitária obedeceram no caso do movimento popular à particular modalidade de atuação e às resistências do movimento a ter partici pação mais incisiva na política de saúde através dos Conselhos de Saúde o que facilitou a rendição à atuação corporativa dos médicos Fatores externos e internos ao movimento interagiram num campo extre mamente conflituoso o das políticas de saúde com forte conteúdo de reforma num contexto de democratização do País extremamente frágil no 71 Vide conflito sobre o Hospital da Posse mencionado no capítulo 5 cap8pmd 872011 1042 259 260 que se referia às transformações substanciais necessárias à concretização do es tabelecimento de um regime democrático As dificuldades vieram após o processo de implementação da Reforma marcada pelo retrocesso político do Movimento Social em Saúde que se carac terizou caso do movimento popular pelas divergências políticas internas que paralisaram sua atuação pelas mudanças que afetaram a categoria médica e pela ausência do papel de liderança política que desempenhara o Movimento Sanitário nos anos 80 Enquanto o movimento popular se debatia no dilema de participar e ser cooptado pelo Estado ou absterse e evitar a cooptação o papel potencial que entidades autônomas poderiam exercer para forçar a participação social nos Conselhos de Saúde foi inviabilizado pelos próprios movimentos A situação ao contribuir para neutralizar a questão embutida na concepção da Reforma Sanitária é que paradoxalmente favoreceu o corporativismo médico e facili tou efetivamente o caminho para a cooptação de representantes de usuários nos Conselhos de Saúde No que se refere ao papel que o Estado deveria preservar para dar prossegui mento à política os empecilhos colocados pelo governo foram decisivos para impedir avanços substantivos do processo reformador no setor saúde Os avan ços que a Constituição de 1988 incorporou à própria noção de saúde e ao sistema que viria a possibilitar a distribuição mais eqüitativa da saúde passou por tentativas diversas marcadas pelo desconhecimento da legislação constitucional e pela modificação das leis substituídas por decretos do Executivo que contra diziam a letra o escrito e o espírito da Constituição Foi o tratamento que recebeu inicialmente a Lei Orgânica da Saúde ao ser vetada pelo Presidente da República expressamente nos tópicos referentes às Conferências Nacionais e aos Conselhos à formulação de Plano de Carreiras e Salários à transferência automática dos recursos e à restruturação do Ministério de Saúde com a extinção e descentralização do Inamps Sucam e FSESP De qualquer maneira se o governo cedeu nesse ponto específico na operacionalização das medidas constitucionais conseguiu sistematicamente des respeitar o estabelecido por lei como observado na questão do repasse dos recursos a estados e municípios que continuaram com as mesmas dificuldades Deduzimos do exame do processo que este tem avançado nas linhas de menor resistência política o repasse dos serviços enquanto o núcleo duro da Reforma correspondente ao financiamento do sistema de saúde não sofreu cap8pmd 872011 1042 260 261 as alterações necessárias para a implementação da política a ser efetivada com o que se obteve o estabelecimento apenas de mudanças de caráter administrativo ou reorganizativo dos serviços no SUS Embora o processo de descentralização com a atuação do Inamps e de outros órgãos centralizadores da política tenha acontecido mais pelo incenti vo do Movimento Social em Saúde particularmente a partir da realização da IX Conferência Nacional consistiu sempre de medidas circunstanciais sobre o desgaste do governo pela força ocasional alcançada nesses momentos pelo Movimento Social em Saúde sem que as medidas revertessem em duradouras melhorias quer do funcionamento do sistema quer da administração de maior bemestar relativo à saúde para a população mais necessitada Seja como for o que o processo de descentralização evidenciou nos municípios analisados foi que a existência de algumas precondições gover no municipal consubstanciado com a proposta a existência de um projeto de saúde municipal elaborado a partir do quadro sanitário da população o au mento dos recursos destinados ao setor o aumento dos salários dos profissi onais de saúde facilitarou indiscutivelmente a implementação da Reforma Sanitária no nível local Neste sentido importantes transformações foram operadas no setor saú de ainda que localizadas mais no plano político que em resultados concretos considerados estes como melhoras palpáveis nas condições de saúde da popu lação Mas o setor temse tornado como se pode observar em algumas das experiências de municipalização da política mais sensível à participação da po pulação mais transparente na gestão do sistema e mais plural na atuação dos diversos atores que o compõem ainda que seja difícil esperar transformações mais substanciais no setor A Reforma Sanitária resultado de um movimento originariamente societário de oposição ao regime militar cujas lideranças provinham de partidos políticos da esquerda foi uma proposta que extrapolou o setor saúde É indiscutível que a Reforma Sanitária brasileira constituiuse num paradigma político da noção de Reforma no campo das políticas sociais e conseqüentemente num labora tório privilegiado para a análise da viabilidade na implementação de transfor mações nas instituições estatais e a relação entre reformas e democracia Dado o atual estágio e as dificuldades na consolidação do regime demo crático os impulsos reformadores no setor saúde e a capacidade de viabilizá los colaboram para a constituição de um regime de democratização parcial cap8pmd 872011 1042 261 262 num setor de políticas específico e em um determinado momento fazendo reiterese aportes relevantes para o reestabelecimento de um regime demo crático no Brasil A afirmação remete à idéia de a consolidação da democracia considerarse mais que um regime um mix de regimes parciais articulando e governando um conjunto de instituições cuja consolidação não acontece simultaneamente No marco do processo de consolidação da democracia a Reforma Sanitária cons tituiuse um regime de democratização parcial apesar das limitações antepostas pelo governo a sua implementação A análise do processo de implementação da política reformadora é extre mamente esclarecedora a respeito das questões teóricas discutidas no capítulo inicial Se observarmos até onde houve avanços no processo de implementação da Reforma veremos sustentarse de maneira conclusiva a idéia de que os limi tes de política de reformas substantivas no setor não foram dados por limita ções intrínsecas à democracia mas pelo caráter que a democracia adquire em determinados processos nacionais e de acordo com circunstâncias históricas sociais e políticas Neste sentido o governo vitorioso primeiras eleições livres para Presi dente da República após o longo regime autoritário não teve por meta dar substância social à democracia política nascente Mantevese isso sim muito longe de promover o estabelecimento de um regime de embasamento de mocrático Cabe reiterar que a relevância da afirmação anterior se apóia no significado dado à concepção do que seja o estabelecimento de regime democrático relaci onado à reprodução da própria democracia enquanto maneira de envolver o conjunto atuante das relações sociais e políticas e capaz de atualizar as diferen ças além de definir saídas à base de consenso construído em processo discursivo Habermas 1984 ou dito de outra forma pela aceitação da existência do outro social eou político no campo relacional específico O conceito em que alavancamos a compreensão da Reforma Sanitária o da formação de regimes de democratização parcial remete ao estabelecimento de regras e comportamentos democráticos num campo determinado de políticas e instituições A capacidade de expandir a reprodução da democracia por aproxi mações sucessivas com o intuito de conquistar um regime democrático tanto na sociedade quanto na ordem política ajudou a pensar a formulação e a implementação das políticas de saúde como processo em permanente transfor cap8pmd 872011 1042 262 263 mação A partir disso constatamos o quão profundas foram as mudanças sobre tudo na formulação e na definição da política alcançada na medida em que pro blemas da mesma intensidade e alcance em nível governamental e dos movimen tos dificultaram o andamento progressivo da Reforma Sanitária Assim a análise da participação social através da atuação organização e articulação dos movimentos sociais em saúde nos sucessivos momentos dife renciados da trajetória da Reforma Sanitária evidencia que regimes de demo cratização parcial são viáveis quando se leva em consideração o estágio em que os atores sociais com inserções diversas na política se constituem a partir de e se expressam para viabilizar ou dificultar o andamento de dada política Por fim o grau e o alcance da participação social na política seja através de sujeitos indivíduos movimentos ou atores sociais define o direcionamento e a profundidade no estabelecimento de regimes de democratização parcial cap8pmd 872011 1042 263 265 Referências Bibliográficas ABRANCHES S A Os Despossuídos crescimento e pobreza no país do milagre Rio de Janeiro Zahar 1985 BIRMAN J A interpretação e a singularidade do sujeito na experiência psicanalítica Physis 12722 1991 BUSS P Saúde e Desigualdade o caso do Brasil EnspFiocruz 1994 Mimeo CAMPOS G W de S Os Médicos e a Política de Saúde entre a Estatização e o Empresariamento a defesa da prática liberal da medicina 1986 Dissertação de Mestrado São Paulo Universidade de São Paulo CAMPOS G W de S Um balanço do 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America São Paulo 1991 Mimeo VIANNA M L W Coord O Inamps enquanto Organização e suas Clientelas Rio de Janeiro IEIUFRJ 1987 Relatório de Pesquisa WALZER M Spheres of Justice a defense of pluralism and equality New York Basic Books Inc Publishers 1983 WEBER M Ensayos sobre Metodología Sociológica Buenos Aires Amorrortu 1958 WEBER M Basic Concepts in Sociology London Peter Owen London Lin 1978 cap8pmd 872011 1042 270 271 Formato 16 x 23 cm Tipologia Aucoin Light e Garamond Papel Pólen Bold 70gm2 miolo Cartão Supremo 250gm2 capa Reimpressão e acabamento Imprinta Gráfica e Editora Ltda Rio de Janeiro julho de 2011 Não encontrando nossos títulos em livrarias contactar a EDITORA FIOCRUZ Av Brasil 4036 Térreo s 112 Manguinhos 21041361 Rio de Janeiro RJ Tel 21 38829039 e 38829041 Telefax 21 38829006 httpwwwfiocruzbreditora email editorafiocruzbr cap8pmd 872011 1042 271 Que tal pesquisarmos um pouco sobre este trabalho O MOPS originouse seguindo os movimentos reivindicativos urbanos por melhorias de equipamentos médicos e de saneamento básico onde priorizavam formas de organização mobilização e pressão ao confrontar o Estado MALFITANO E LOPES2009 O movimentos se destacava pois levava em consideração as ações além das experiências comunitárias de medicina alternativas ou seja dos saberes locais em relação remédios caseiros plantas medicinais e métodos naturalistas utilizados nas regiões mais carentes do país como o norte e nordeste ou nas localidades interioranas dos estados O MOPS ganhou visibilidade numa multiplicidade de localidades pelo Brasil Nas periferias das grandes regiões metropolitanas e capitais brasileiras como São Paulo Rio de Janeiro Belo Horizonte Porto Alegre Curitiba Recife Fortaleza Vitória Cuiabá Teresina e outros tantas localidades este movimento também marcava presença nos Estados de Goiana Tocantins Roraima e no Distrito Federal Mesmo mantidas as raízes das experiências em medicina comunitária a força do movimento popular em saúde era nítida cujos princípios se definiam pela manutenção da independência e autonomia dos grupos organizados em relação aos partidos e ao governo Logo a saúde passou a vir de tomadas de decisões pelo povo GERSCHMAN2004 Naquele momento a medicina comunitária colocavase como alternativa ao sistema de saúde na medida em que o setor público de saúde se deteriorava como resultado da crescente privatização da assistência médica O setor se caracterizava pelo repasse de verbas para o setor privado com a consequente deterioração dos hospitais públicos as filas para atendimento a ausência de assistência que cobrisse as necessidades mais prementes da população carente MALFITANO E LOPES2009 Portanto nasce o PSF segundo o Ministério da Saúde se traduz como técnica que prioriza as ações de promoção proteção e recuperação da saúde dos indivíduos e da família do recémnascido ao idoso sadios ou doentes de forma integral e contínua BRASIL 2003 Podemos destacar que uma equipe mínima do PSF é composta por um médico generalista um enfermeiro um auxiliar de enfermagem e de quatro a seis agentes comunitário de saúde ACS Sendo assim o trabalho do ACS e atender aos moradores em suas casas dando atenção a todas as questões relacionadas à saúde identifica problemas orienta encaminha e acompanha a realização dos procedimentos necessários à proteção promoção e recuperaçãoreabilitação da saúde das pessoas daquela comunidade Os mesmos recebem qualificação específica e passam a fazer parte da equipe de saúde local MALFITANO E LOPES2009 Você vê características semelhantes entre as ações do movimento popular em saúde Mops e o trabalho dos Agentes comunitários de saúde ACs Podemos verificar características semelhantes entre as ações do MOPs e do ACS quando vislumbramos que tanto no Movimento Popular da Saúde quanto no trabalho dos Agentes comunitários de saúde o campo social é algo levado em total consideração pois priorizam o cuidado segundo as necessidades do grupocomunidade neste caso os dois perpassam por uma política de saúde que almeja atender as necessidades sociais da comunidade em questão tendo poder mediador entre as carências das comunidades e o poder público visando melhorias e eficácia das politicas sociais e de saúde no nível local Referências BRASIL Ministério da Saúde Programa de Saúde da Família Disponível em httpwwwsaudegovbrpsf Acesso em Out 2022 GERSCHMAN 2004 A democracia inconclusa um estudo da reforma sanitária brasileira Disponível em httpswwwarcafiocruzbrbitstreamhandleicict42084gerschman 9788575415375pdfjsessionid94C383589616FAF7031157147425A83E sequence3Acesso em Out2022 MALFITANO Ana Paula Serrata e LOPES Roseli Esquerdo Educação popular ações em saúde demandas e intervenções sociais o papel dos agentes comunitários de saúde Disponível emhttpswwwscielobrjccedesaFpW37t85m4XQKxgLNgC6G7P langpt Acesso em Out2022