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49 V A Prioridade dos Paradigmas Para descobrir a relação entre regras paradigmas e ciência normal vamos primeiro considerar de que modo os historiadores isolam os núcleos especiais de comprometimento que acabaram de ser descritos como regras aceitas A investigação histórica acurada de uma dada especialidade em um certo período de tempo revela um conjunto recorrente de exemplos quasipadronizados de diversas teorias em suas aplicações conceituais observacionais e instrumentais São os paradigmas da comunidade que os livros didáticos conferências e exercícios de laboratório revelam Estudandoos e praticando com eles os membros da comunidade correspondente aprendem sua profissão É claro que o historiador vai encontrar uma zona de penumbra ocupada por trabalhos científicos cujo status ainda está em dúvida Mas em geral o núcleo resolvido de problemas e técnicas vai ser claro Apesar de ambiguidades ocasionais os paradigmas de uma comunidade científica madura podem ser determinados com relativa facilidade A determinação dos paradigmas compartilhados contudo não é o mesmo que a determinação das regras compartilhadas A determinação dos paradigmas compartilhados demanda um segundo passo Um passo de um tipo relativamente diferente Ao dar esse passo o historiador deve comparar os paradigmas da comunidade entre si e com os relatórios de pesquisa que essa comunidade está produzindo Assim fazendo seu objetivo é descobrir que elementos isoláveis explícitos ou implícitos os membros da comunidade investigada podem ter abstraído dos seus paradigmas mais globais para utilizar como regras em sua pesquisa Qualquer um que tenha tentado descrever ou analisar a evolução de uma tradição particular de pesquisa terá procurado necessariamente regras e princípios aceitos desse tipo É quase certo como indica a seção precedente que esse historiador terá pelo menos algum sucesso nessa busca Mas se a experiência dele tiver sido mais ou menos como a minha própria ele terá achado a busca por regras mais difícil e menos satisfatória que a busca por paradigmas Algumas das generalizações que ele vier a empregar para descrever as crenças compartilhadas da comunidade científica não apresentarão qualquer problema Outras entretanto incluindo algumas daquelas regras utilizadas acima como ilustrações parecerão um pouco forçadas Se fossem formuladas da maneira exposta na seção anterior ou de qualquer outra maneira que possamos imaginar é quase certo que essas regras seriam rejeitadas 50 por alguns membros do grupo que o historiador estuda Apesar disso se quisermos entender uma tradição de pesquisa em termos de regras será preciso alguma especificação da base comum da área correspondente Como resultado a busca por um corpo apropriado de regras para individualizar uma determinada tradição de pesquisa normal tornase uma fonte de frustração profunda e contínua Se reconhecermos tal frustração contudo vai ser possível diagnosticar sua fonte Os cientistas podem concordar que um Newton um Lavoisier um Maxwell ou um Einstein produziram uma solução aparentemente permanente para um grupo de problemas relevantes Ainda assim os cientistas podem discordar às vezes sem ter consciência disso a respeito de certas características abstratas que tornam permanentes aquelas soluções Isto é eles podem concordar quanto à identificação que fazem de um paradigma sem concordar a respeito de uma interpretação ou racionalização completa dele A falta de uma interpretação padrão ou de uma redução consensual a regras não vai impedir que um paradigma guie a pesquisa A ciência normal pode ser determinada em parte pela inspeção direta dos paradigmas Um processo que em geral é ajudado pela formulação de regras e de suposições mas que não depende delas Efetivamente a existência de um paradigma não precisa implicar nem mesmo um conjunto desenvolvido de regras 40 Inevitavelmente o primeiro efeito dessas afirmações é levantar problemas Na falta de um corpo adequado de regras o que restringe o cientista a uma tradição científiconormal particular O que pode significar a expressão inspeção direta de paradigmas Respostas parciais para questões como essas foram desenvolvidas na obra tardia de Ludwig Wittgenstein ainda que em um contexto muito diferente Em se tratando de um contexto que é mais elementar e mais familiar ajudará se considerarmos primeiro a forma do seu argumento O que precisamos saber perguntava Wittgenstein para usarmos inequivocamente e sem provocar controvérsia palavras como cadeira folha ou jogo 41 Essa é uma questão muito antiga e geralmente tem sido respondida quando se diz que consciente ou intuitivamente nós devemos saber o que é uma cadeira ou uma folha ou um jogo Isto 40 Michael Polanyi desenvolveu brilhantemente um tema muito parecido argumentando que boa parte do sucesso de um cientista depende do conhecimento tácito Isto é do conhecimento obtido pela prática e que não pode ser explicitado pela verbalização Ver seu Personal Knowledge Chicago 1958 particularmente os capítulos v e vi 41 Ludwig Wittgenstein Philosophical Investigations trad G E M Anscombe New York 1953 pp 3136 Mas Wittgenstein não diz quase nada sobre o tipo de mundo necessário para dar suporte ao procedimento de atribuição de nomes que ele esboça Parte do tópico que se segue não pode portanto ser atribuída a ele 51 é nós devemos apreender algum conjunto de atributos que todos os jogos e apenas os jogos têm em comum Todavia Wittgenstein concluiu que não precisamos de nenhum conjunto semelhante de características dado o modo como utilizamos a linguagem e o tipo de mundo ao qual nós a aplicamos Embora uma discussão sobre alguns dos atributos compartilhados por um certo número de jogos cadeiras ou folhas geralmente nos ajude a aprender como empregar o termo correspondente não há qualquer conjunto de características que seja simultaneamente aplicável a todos os membros de uma classe e a eles apenas Ao invés disso quando confrontados com uma atividade que não observamos anteriormente nós aplicamos por exemplo o termo jogo porque aquilo que estamos vendo agora carrega uma estreita semelhança de família com várias atividades que anteriormente aprendemos a chamar por esse nome Em suma para Wittgenstein jogos cadeiras e folhas são famílias naturais Cada uma delas constituída por uma rede de semelhanças sobrepostas e entrecruzadas A existência de tal rede é suficiente para dar conta do nosso sucesso na identificação dos objetos ou atividades correspondentes Somente se as famílias que nós nomeamos se sobrepusessem e se fundissem gradualmente umas nas outras isto é somente se não houvesse qualquer família natural o nosso sucesso em identificar e nomear evidenciaria um conjunto de características comuns correspondentes a cada um dos nomes de classes que empregamos Algo do mesmo tipo certamente também pode valer para os diferentes problemas e técnicas de pesquisa que aparecem dentro de uma certa tradição científiconormal O que esses problemas e técnicas têm em comum não é o fato de satisfazerem algum conjunto explícito ou que poderia ser inteiramente descoberto de regras e postulados que dá à tradição científica o seu caráter e a sua possessão do intelecto científico Ao invés disso esses problemas e técnicas relacionamse por semelhança e também por modelarse em uma ou outra parte do corpus científico que a comunidade já reconhece entre seus produtos legítimos Os cientistas trabalham a partir dos modelos adquiridos através da educação e através da subsequente exposição à literatura produzida em sua área em geral não conhecendo suficientemente ou nem mesmo precisando conhecer que características deram a esses modelos o status de paradigmas da comunidade E porque assim fazem os cientistas não precisam de nenhum conjunto extenso de regras A coerência apresentada pela tradição de pesquisa de que participam pode não implicar nem mesmo um corpo subjacente de regras e suposições que a 52 investigação histórica ou filosófica posterior poderia explicitar Que os cientistas habitualmente não questionem ou debatam o que torna legítimos um certo problema ou uma solução particular é algo que nos induz a supor que eles sabem a resposta pelo menos intuitivamente Mas isso pode estar indicando apenas que os cientistas sentem que nem a questão nem a resposta tenham alguma importância para a pesquisa Os paradigmas podem ser anteriores mais coercitivos e mais completos que qualquer conjunto de regras de pesquisa que pudessem ser inequivocamente abstraídas deles Até aqui esse ponto foi inteiramente teórico os paradigmas poderiam determinar a ciência normal sem a intervenção de regras explicitáveis Deixeme agora tentar incrementar a clareza e a imperatividade do que acabo de afirmar indicando algumas das razões para acreditar que os paradigmas efetivamente operam dessa maneira A primeira que já foi discutida bem extensamente é a enorme dificuldade de se descobrirem regras que teriam guiado tradições específicas de ciência normal Essa dificuldade é aproximadamente a mesma que o filósofo encontra ao tentar expor aquilo que todos os jogos têm em comum A segunda da qual a primeira razão apontada é realmente um corolário está enraizada na natureza da educação científica Já deveria estar claro que os cientistas nunca aprendem conceitos leis e teorias em abstrato e por si mesmos Em vez disso essas ferramentas intelectuais são encontradas desde o início implícitas em um agregado que lhes antecede histórica e pedagogicamente e que as mostra juntamente com suas aplicações e por meio de suas aplicações Uma nova teoria é sempre anunciada juntamente com suas aplicações a alguma série concreta de fenômenos naturais Sem essas aplicações ela não poderia nem mesmo candidatarse à aceitação Depois que a teoria é aceita tais aplicações ou outras acompanham as teorias nos livros didáticos em que o futuro cientista vai aprender seu ofício Elas não estão lá meramente como enfeite ou mesmo como ilustração documental Pelo contrário o processo de aprendizagem de uma teoria depende do estudo de aplicações incluindo a prática de resolução de problemas que se desenvolve tanto com lápis e papel quanto com o uso de instrumentos em um laboratório Se por exemplo o estudante de dinâmica newtoniana chega a descobrir o significado de termos como força massa espaço e tempo ele consegue isso menos a partir das definições incompletas que ele tem no manual ainda que eventualmente úteis que pela observação e pela participação na aplicação desses conceitos na solução de problemas 53 Tal processo de aprender fazendo ou aprender por exercícios repetitivos continua através de todo o período da iniciação profissional Na medida em que o estudante avança do início da graduação até a tese de doutorado os problemas apresentados a ele tornamse cada vez mais complexos e cada vez menos completamente antecedidos de precedentes similares Mas eles continuarão sempre estreitamente modelados nos trabalhos científicos prévios Da mesma forma que serão modelados em trabalhos científicos prévios os problemas que normalmente o ocuparão durante a sua subsequente carreira científica independente Qualquer um pode ficar à vontade para supor que no decorrer de sua carreira em algum momento e lugar o cientista abstraiu intuitivamente as regras do seu próprio jogo científico Mas há pouca razão para se acreditar nisso Embora muitos cientistas falem bem e com facilidade a respeito das hipóteses específicas individuais que subjazem um projeto de pesquisa em andamento eles não estão em posição muito melhor que a do leigo para caracterizar as bases de seu campo e também seus problemas e métodos legítimos Se de qualquer modo chegaram a aprender abstrações dessa ordem eles vão mostrar isso em especial através da habilidade em conduzir pesquisas bem sucedidas Entretanto essa habilidade pode ser compreendida sem que se recorra a hipotéticas regras do jogo Essas consequências da educação científica têm um reverso que fornece uma terceira razão para supor que os paradigmas guiam a pesquisa pela modelagem direta assim como por regras abstraídas do paradigma A ciência normal pode seguir em frente sem regras na medida em que a comunidade científica a que nos referimos aceita sem questionar as soluções de problemas particulares já obtidas As regras só deveriam se tornar importantes e a característica despreocupação em relação a elas só deveria desvanecerse quando os paradigmas e modelos passassem a ser sentidos pelos cientistas como inseguros E de fato é exatamente isso que ocorre Em particular o período préparadigma é regularmente marcado por debates profundos e frequentes sobre os métodos problemas e padrões de solução legítimos ainda que isso sirva muito mais para definir diferentes escolas que para produzir acordo Nós já registramos uns poucos debates desse tipo na ótica e na eletricidade Eles desempenharam um papel ainda maior no desenvolvimento da química do século dezessete e da geologia no início do século dezenove 42 Ademais debates como esses não se desvanecem de uma 42 Para a química ver H Metzger Les doctrines chimiques en France du début du XVIIe à la fin du XVIIIe siècle Paris 1923 pp 2427 14649 e Marie Boas Robert Boyle and SeventeenthCentury Chemistry Cambridge 1958 cap ii Para a geologia ver 54 vez por todas com o aparecimento de um paradigma Embora quase não existam durante os períodos de ciência normal eles ocorrem regularmente um pouco antes e durante as revoluções científicas Isto é nos períodos em que os paradigmas são primeiro submetidos a ataque e depois são submetidos a transformação A transição da mecânica newtoniana para a mecânica quântica acionou muitos debates sobre a natureza da física e seus padrões alguns dos quais ainda em andamento 43 Há pessoas que estão vivas até hoje e que podem se lembrar de discussões parecidas engendradas pela teoria eletromagnética de Maxwell e pela mecânica estatística 44 E num passado ainda mais distante a assimilação das mecânicas de Galileu e Newton deu origem a uma série particularmente famosa de debates com aristotélicos cartesianos e leibnizianos sobre os padrões legítimos da ciência 45 Quando os cientistas discordam sobre se os problemas fundamentais de seu campo teriam sido resolvidos ou não a busca de regras ganha uma função que ordinariamente não tem Enquanto os paradigmas permanecem seguros contudo eles podem funcionar sem um acordo sobre racionalização ou mesmo sem qualquer tentativa de racionalização Uma quarta razão para garantir aos paradigmas um status de precedência em relação às regras e suposições compartilhadas pode encerrar essa seção Na Introdução ao presente ensaio sugeri que pode haver revoluções pequenas e grandes Sugeri ainda que algumas revoluções afetam somente uma subespecialidade profissional e que para tais grupos mesmo a descoberta de um fenômeno novo e inesperado pode ser revolucionária A próxima seção vai apresentar uma seleção de revoluções desse tipo mesmo que ainda hoje esteja longe de ser claro como elas podem existir Pelo que ficou implícito na discussão precedente se a ciência normal é tão rígida e se as comunidades científicas são tricotadas em malhas tão estreitas como pode uma mudança de paradigma afetar em determinado momento Walter F Cannon The UniformitarianCatastrophist Debate Isis LI 1960 3855 e C C Gillispie Genesis and Geology Cambridge Mass 1951 caps ivv 43 Para as controvérsias sobre a mecânica quântica ver Jean Ulmo La crise de la physique quantique Paris 1950 cap ii 44 Para a mecânica estatística ver René Dugas La théorie physique au sens de Boltzmann et ses prolongements modernes Neuchâtel 1959 pp 15884 20619 Para a recepção do trabalho de Maxwell ver Max Planck Maxwells Influence in Germany in James Clerk Maxwell A Commemoration Volume 18311931 Cambridge 1931 pp 4565 esp pp 5863 e Silvanus P Thompson The Life of William Thomson Baron Kelvin of Largs London 1910 II 102127 45 Para um exemplo da batalha com os aristotélicos ver A Koyré A Documentary History of the Problem of Fall from Kepler to Newton Transactions of the American Philosophical Society XLV 1955 32995 Para os debates com os cartesianos e leibnizianos ver Pierre Brunet Lintroduction des théories de Newton en France au XVIIe siècle Paris 1931 e A Koyré From the Closed World to the Infinite Universe Baltimore 1957 cap xi 55 apenas um minúsculo subgrupo O que foi dito até agora pareceu implicar que a ciência normal é um empreendimento único monolítico e unificado que se deve manter ou desabar juntamente com qualquer um de seus paradigmas ou então com todos eles juntos Mas é óbvio que a ciência raramente ou nunca se assemelha a algo assim Em geral quando vemos todos os campos científicos juntos a ciência se parece muito mais com uma estrutura desengonçada que tem pouca coerência entre as suas várias partes Nada do que foi dito até agora contudo conflita com essa observação muito familiar Pelo contrário Substituir as regras pelos paradigmas deveria tornar mais fácil de entender a diversidade dos campos e especialidades científicas As regras explícitas quando existem são usualmente comuns a um grupo científico muito amplo Mas isso não precisa ocorrer com os paradigmas Os praticantes de campos largamente separados digamos os astrônomos e os botânicos taxonômicos são educados pela exposição a trabalhos científicos muito diferentes descritos em livros muito diferentes E mesmo pessoas que estando nos mesmos campos científicos ou em campos científicos muito próximos começam estudando vários dos mesmos livros e trabalhos científicos podem adquirir paradigmas bem diferenciados no decorrer da sua especialização profissional Consideremos para dar só um exemplo a comunidade muito ampla e diversificada formada por todos os cientistas físicos Todos os membros desse grupo aprendem hoje em dia digamos as leis da mecânica quântica e a maioria deles emprega essas leis em algum estágio de sua pesquisa ou de seu ensino Mas eles não aprendem as mesmas aplicações dessas leis e portanto nem todos são afetados do mesmo modo pelas mudanças na prática da mecânica quântica Em sua rota para a especialização uns poucos cientistas físicos aprendem apenas os princípios básicos da mecânica quântica Outros estudam em detalhe as aplicações paradigmáticas desses princípios à química Ainda outros estudam as aplicações paradigmáticas desses princípios à física do estado sólido e assim por diante O que a mecânica quântica significa para cada um deles depende dos cursos que fez dos livros que leu e das revistas que estuda Disso se segue que embora uma mudança na lei da mecânica quântica será revolucionária para todos esses grupos uma mudança que repercute apenas em uma ou outra aplicação paradigmática da mecânica quântica será revolucionária apenas para os membros de uma subespecialidade profissional particular Para o resto da profissão tal mudança não será nem mesmo revolucionária Em resumo embora a mecânica quântica ou a dinâmica newtoniana e a teoria eletromagnética 56 seja um paradigma para muitos grupos científicos ela não é o mesmo paradigma para cada um deles Portanto ela pode determinar simultaneamente várias tradições de ciência normal que se sobrepõem sem ser coextensivas Uma revolução produzida dentro de uma dessas tradições também não se estenderá necessariamente às outras Uma breve ilustração dos efeitos da especialização pode dar a toda essa série de pontos uma força adicional Querendo saber alguma coisa sobre o que os cientistas consideravam ser a teoria atômica um investigador perguntou a um físico de destaque e a um eminente químico se um simples átomo de hélio seria uma molécula ou não Ambos responderam sem hesitação mas suas respostas não foram as mesmas Para o químico o átomo de hélio seria uma molécula porque se comporta como uma tendo em vista a teoria cinética dos gases Para o físico por outro lado o átomo de hélio não seria uma molécula porque não apresentaria um espectro molecular 46 Presumivelmente ambos estivessem falando da mesma partícula Mas eles a estavam vendo através dos prismas diferenciados de seu próprio treinamento para a pesquisa e da sua própria prática científica As experiências que ambos tinham na resolução de problemas disseramlhes o que uma molécula deve ser Sem dúvida que suas experiências tinham tido muito em comum mas nesse caso elas não disseram aos dois especialistas a mesma coisa Na medida em que prosseguirmos nós vamos descobrir quão cheios de consequências esses tipos de diferenças podem ocasionalmente ser 46 O investigador era James K Senior com quem estou em débito pelo seu relato verbal Algumas questões correlatas são tratadas em seu artigo The Vernacular of the Laboratory Philosophy of Science XXV 195816368 57 VI A Anomalia e a Emergência das Descobertas Científicas A ciência normal a atividade de resolução de charadas que acabamos de examinar é um empreendimento altamente cumulativo e extremamente bem sucedido em seu objetivo que é a contínua ampliação do alcance e da precisão do conhecimento científico Em todos esses aspectos ela coincide notavelmente com a imagem mais habitual do trabalho científico Apesar disso ainda está faltando mencionar um produto padrão do empreendimento científico A ciência normal não visa às novidades de fato e às novidades de teoria Quando ela é bem sucedida a ciência normal não encontra nenhuma novidade No entanto fenômenos novos e insuspeitados são repetidamente descobertos pela pesquisa científica Ademais teorias radicalmente novas têm sido repetidamente inventadas pelos cientistas A história sugere até mesmo que o empreendimento científico chegou a desenvolver uma técnica ímpar e poderosa para produzir surpresas desse tipo Se quisermos conciliar essa característica da ciência com o que foi dito anteriormente então precisamos admitir que a pesquisa subordinada a um paradigma deve ser uma via particularmente eficaz de induzir a mudança paradigmática É esse tipo de mudança que as novidades de fato e as novidades de teoria produzem Produzidas inadvertidamente por um jogo que se joga sob um conjunto determinado de regras essas novidades de fato e teoria requerem a elaboração de um novo conjunto de regras para que sejam assimiladas Pelo menos para os especialistas em cujo campo particular de trabalho são produzidas e assimiladas essas novidades depois que elas se tornam partes da ciência o empreendimento científico nunca mais voltará a ser exatamente o mesmo de novo Devemos perguntar agora como mudanças desse tipo ocorrem Primeiramente serão consideradas as descobertas ou novidades fatuais Depois serão consideradas as invenções de teoria ou novidades teóricas Essa distinção entre descoberta e invenção ou entre fato e teoria no entanto vai mostrarse de imediato excessivamente artificial A artificialidade dessa distinção é uma importante chave para a compreensão de várias das principais teses desse ensaio Ao examinar uma seleção de descobertas no restante dessa seção rapidamente notaremos que elas não são acontecimentos isolados mas episódios extensos com uma estrutura que se repete com regularidade As descobertas começam com a consciência de 58 uma anomalia Ou seja começam com o reconhecimento de que a natureza violou de algum modo as expectativas paradigmoinduzidas que governam a ciência normal A partir daí elas prosseguem com uma exploração mais ou menos extensa da área da anomalia E se encerram somente quando a teoria paradigmática foi ajustada de tal modo que o anômalo se transforma no esperado A assimilação de um novo tipo de fato requer algo mais que um ajuste que se adiciona à teoria E até que esse ajuste se complete isto é até que os cientistas aprendam a ver a natureza de um modo diferente o novo fato não chega a ser propriamente um fato científico Para vermos quão estreitamente a novidade fatual se entrelaça com a novidade teórica na descoberta científica examinemos um exemplo particularmente famoso a descoberta do oxigênio Pelo menos três pessoas diferentes podem reivindicála legitimamente e no início dos anos setenta do século dezoito vários outros químicos contiveram ar enriquecido em um recipiente de laboratório sem chegar a conhecêlo 47 O progresso da ciência normal nesse caso o progresso da química pneumática preparou de modo bem meticuloso o caminho para uma descoberta O primeiro pretendente a descobridor que preparou uma amostra relativamente pura do gás foi o farmacêutico sueco C W Scheele Todavia nós podemos ignorar seu trabalho uma vez que ele não foi publicado até que a descoberta do oxigênio já tivesse sido repetidamente anunciada em outros lugares Desse modo o trabalho de Scheele não teve qualquer efeito sobre o padrão que mais nos interessa aqui 48 Cronologicamente o segundo a reclamar a descoberta do oxigênio foi o cientista e teólogo britânico Joseph Priestley Ele isolou o gás liberado pelo óxido vermelho de mercúrio em uma prolongada investigação normal sobre os ares emitidos por um grande número de substâncias sólidas Em 1774 ele identificou o gás assim produzido como óxido nitroso Em 1775 impelido por testes adicionais ele identificou o gás como ar comum com uma quantidade de flogisto menor que a usual O terceiro reclamante da descoberta do oxigênio Lavoisier começou o trabalho que o conduziu ao oxigênio após os experimentos de Priestley de 1774 e possivelmente a partir de um 47 Para a discussão ainda clássica da descoberta do oxigênio ver A N Meldrum The EighteenthCentury Revolution in Science the First Phase Calcutta 1930 cap v Um estudo recente indispensável incluindo uma exposição sobre a controvérsia da prioridade é Maurice Daumas Lavoisier théoricien et expérimentateur Paris 1955 caps iiiii Para uma exposição mais completa e bibliografia ver também T S Kuhn The Historical Structure of Scientific Discovery Science CXXXVI June 1 1962 pp 760764 48 Ver no entanto Uno Bocklund A Lost Letter from Scheele to Lavoisier Lychnos 195758 pp 3962 para uma avaliação diferente do papel de Scheele 59 palpite dado pelo próprio Priestley No início de 1775 Lavoisier relatou que o gás obtido pelo aquecimento do óxido vermelho de mercúrio era o próprio ar sem alteração apesar de que ele resulta mais puro mais respirável 49 Em torno de 1777 provavelmente com o apoio de uma segunda sugestão de Priestley Lavoisier concluiu que o gás era uma espécie distinta ou seja que era um dos dois principais constituintes da atmosfera Priestley nunca se dispôs a aceitar essa conclusão Esse padrão de descoberta levanta uma questão que pode ser formulada sobre todo fenômeno novo que ainda não entrou na consciência dos cientistas Quem foi o primeiro a descobrir o oxigênio Priestley ou Lavoisier Se é que foi algum dos dois Qualquer que seja o caso quando o oxigênio foi descoberto Assim formulada essa última questão poderia ser feita mesmo que existisse apenas um pretendente à descoberta Não nos concerne aqui uma resposta que ajuíze sobre a precedência do descobridor e sobre a data da descoberta No entanto se tentarmos produzir uma resposta dessa ordem a natureza da descoberta será iluminada Isso pela simples razão de que não há resposta do tipo usualmente procurado A descoberta não é o tipo de processo sobre o qual temse formulado a pergunta apropriada O fato de que ela é feita 50 é um sintoma de que algo distorcido na imagem da ciência está atribuindo à descoberta essa função supostamente tão fundamental Examinemos de novo o nosso exemplo A pretensão de Priestley à descoberta do oxigênio está baseada na sua precedência no isolamento de um gás que mais tarde seria reconhecido como uma espécie distinta Mas a amostra de Priestley não era pura e se algum jeito de reter o oxigênio impuro é descobrilo então isso foi feito por todo mundo que engarrafou o ar atmosférico Além do mais se Priestley foi o descobridor quando a descoberta foi feita Em 1774 ele pensou ter obtido o óxido nitroso uma espécie que ele já conhecia Em 1775 ele viu o gás como ar desflogistizado o que ainda não é o oxigênio E mesmo para os químicos flogísticos isso nem era um tipo tão inesperado de gás A pretensão de Lavoisier pode ser mais robusta mas apresenta os mesmos problemas Se recusarmos a palma a Priestley não poderemos dar o prêmio a Lavoisier pelo trabalho de 1775 que o levou a identificar o gás como o próprio ar em sua 49 J B Conant The Overthrow of the Phlogiston Theory The Chemical Revolution of 17751789 Harvard Case Histories in Experimental Science Case 2 Cambridge Mass 1950 p 53 Esse panfleto muito útil reimprime muitos dos documentos relevantes 50 A precedência na descoberta do oxigênio tem sido repetidamente contestada desde os anos oitenta do século dezoito 60 inteireza Presumivelmente devêssemos aguardar pelo trabalho de 1776 e 1777 que levou Lavoisier não a meramente ver o gás mas a ver o quê o gás era Contudo mesmo esse prêmio poderia ser questionado De 1777 até o fim da sua vida Lavoisier insistiu que o oxigênio era um princípio de acidez atômico e que o gás oxigênio só era formado quando esse princípio uniase com o calórico a matéria do calor 51 Portanto devemos dizer que o oxigênio ainda não tinha sido descoberto em 1777 Alguns podem ser tentados a fazer isso Mas o princípio de acidez só foi banido da química depois de 1810 e o calórico persistiu até a década de sessenta do século dezenove O oxigênio tornouse uma substância química padrão antes de qualquer uma dessas datas Claramente nós precisamos de um novo vocabulário e de novos conceitos para analisar eventos como a descoberta do oxigênio Embora a sentença o oxigênio foi descoberto sem dúvida seja correta ela nos leva a um equívoco quando sugere que descobrir algo é um ato isolado simples que podemos assimilar ao nosso habitual e também questionável conceito de visão Eis porque nós assumimos tão prontamente que descobrir como ver ou tocar deveria ser inequivocamente atribuível a um indivíduo e a um momento no tempo Mas atribuir a descoberta a um momento no tempo é sempre impossível e atribuir a descoberta a um indivíduo com frequência também é Se ignorarmos Scheele podemos dizer com segurança que o oxigênio não foi descoberto antes de 1774 E também poderíamos dizer que o oxigênio teria sido descoberto em torno de 1777 ou logo depois Mas dentro desses limites ou outros como esses qualquer tentativa de datar a descoberta deve ser necessariamente arbitrária Isso porque descobrir um novo tipo de fenômeno é necessariamente um evento complexo Ou seja um evento que envolve o reconhecimento de que algo é e também o reconhecimento do que é esse algo Note por exemplo que se para nós o oxigênio fosse ar desflogistizado deveríamos insistir sem hesitação que Priestley teria sido seu descobridor ainda que ficássemos sem saber exatamente quando Mas se a observação e a conceituação o fato e sua assimilação à teoria estão inseparavelmente ligados na descoberta científica então a descoberta científica é um processo que deve levar tempo Somente quando todas as categorias conceituais relevantes estão preparadas de antemão caso em que o fenômeno já não seria de um novo tipo podem ocorrer sem esforço em conjunto e num instante o descobrir que e o descobrir o quê 51 H Metzger La philosophie de la matière chez Lavoisier Paris 1935 e Daumas op cit cap vii 61 Admitamos então que a descoberta envolve um processo de assimilação conceitual extenso ainda que não necessariamente prolongado Podemos também dizer que esse processo envolve uma mudança de paradigma Para essa questão ainda não pode ser dada nenhuma resposta geral Mas pelo menos nesse caso que estamos discutindo a resposta deve ser sim Aquilo que Lavoisier anunciou em seus escritos a partir de 1777 não era propriamente a descoberta do oxigênio mas a teoria da combustão do oxigênio De fato se a descoberta do oxigênio não fosse uma parte essencial da emergência de um novo paradigma para a química a questão da precedência com que começamos jamais teria parecido tão importante Nesse caso e em outros o valor que se aloca sobre um novo fenômeno e portanto sobre seu descobridor varia com a nossa estimativa da extensão em que o fenômeno violou as antecipações paradigmoinduzidas Notemos no entanto já que isso vai ser importante mais tarde que a descoberta do oxigênio não foi por si mesma a causa da mudança na teoria química Muito antes de exercer qualquer função na descoberta do novo gás Lavoisier estava convencido de que algo estava errado com a teoria do flogisto Assim como também estava convencido de que corpos em combustão absorviam alguma porção da atmosfera Em certa medida ele registrou isso no texto lacrado que confiou à Secretaria da Academia Francesa em 1772 52 O que o trabalho sobre o oxigênio fez foi dar muito mais forma e estrutura à sensação prévia de Lavoisier de que algo não estava funcionando Esse trabalho informoulhe uma coisa que ele já estava preparado para descobrir a natureza da substância que a combustão retira da atmosfera Tal consciência antecipada das dificuldades deve ter sido uma fração significativa daquilo que capacitou Lavoisier a ver em experimentos como os de Priestley um gás que o próprio Priestley fora incapaz de ver em seus experimentos Reciprocamente o fato de que uma ampla revisão paradigmática era necessária para ver o que Lavoisier viu deve ter sido a principal razão por que Priestley foi incapaz de ver a mesma coisa até o final de sua longa vida Dois outros exemplos bem mais curtos vão reforçar muito do que acabou de ser dito e ao mesmo tempo nos transferir de uma elucidação da natureza das descobertas para uma compreensão das circunstâncias em que as descobertas emergem na ciência Num esforço para representar as principais maneiras pelas quais as descobertas ocorrem tais exemplos foram escolhidos por serem diferentes entre si e também diferentes do exemplo da descoberta 52 A mais autorizada exposição da origem da insatisfação de Lavoisier é Henry Guerlac Lavoisier the Crucial Year The Background and Origin of His First Experiments on Combustion in 1772 Ithaca N Y 1961 62 do oxigênio O primeiro exemplo dos raios X é um caso clássico de descoberta acidental Tratase de um tipo de descoberta que ocorre mais frequentemente do que os padrões impessoais dos relatórios científicos nos permitem apreender Sua estória começa no dia em que o físico Roentgen interrompeu uma investigação normal dos raios catódicos porque ele notou que uma tela de platinocianeto de bário que estava a alguma distância do seu aparelho blindado ficou fosforescente quando a descarga estava se processando Investigações adicionais 53 indicaram que a causa da fosforescência vinha diretamente do tubo de raios catódicos que a radiação emite sombras que a radiação não poderia ser desviada por um ímã e muitas coisas mais Antes de anunciar sua descoberta Roentgen convenceuse de que aquele efeito não era devido aos raios catódicos mas a um agente com pelo menos alguma similaridade com a luz 54 Até mesmo esse resumo tão breve revela clamorosas semelhanças com a descoberta do oxigênio Antes de fazer experimentos com o óxido vermelho de mercúrio Lavoisier realizou experimentos que não produziram os resultados antecipados pelo paradigma do flogisto A descoberta de Roentgen também começou com o reconhecimento de que sua tela fosforesceu quando não deveria fazêlo Em ambos os casos a percepção da anomalia ou seja a percepção de um fenômeno para o qual o investigador não foi prontificado pelo seu paradigma exerceu um papel essencial na preparação do caminho para a percepção da novidade Igualmente nos dois casos a percepção de que algo saiu errado foi somente o prelúdio da descoberta Nem o oxigênio nem os raios X emergiram sem um processo subsequente de experimentação e de assimilação Em que ponto da investigação de Roentgen por exemplo poderíamos dizer que os raios X foram efetivamente descobertos De modo algum foi naquele primeiro instante em que tudo o que foi notado foi uma tela fosforescendo Pelo menos um outro investigador também tinha visto aquela fosforescência e para seu posterior desgosto ele não chegou a descobrir nada 55 Também já é praticamente certo que o momento da descoberta não pode ser deslocado para algum ponto da última semana de investigação Naquele momento Roentgen estava explorando as propriedades da 53 Elas exigiram sete semanas de intensa atividade durante as quais Roentgen raramente deixou o laboratório 54 L W Taylor Physics the Pioneer Science Boston 1941 pp 79094 e T W Chalmers Historic Researches London 1949 pp 21819 55 E T Whittaker A History of the Theories of Æther and Electricity I 2d ed London 1951 p358 n 1 Sir George Thomson informoume de uma segunda decepção parecida Alertado por incontáveis chapas fotográficas embaçadas Sir William Crookes também estava na trilha da descoberta 63 nova radiação que ele já tinha descoberto Só podemos dizer que os raios X emergiram em Würzburg entre 8 de novembro e 28 de dezembro de 1895 No entanto em uma terceira área a existência de paralelismos significativos entre as descobertas do oxigênio e dos raios X é bem menos aparente Diferentemente da descoberta do oxigênio a descoberta dos raios X não estava implicada em qualquer subversão óbvia da teoria científica pelo menos durante a década que sucedeu o evento Então em que sentido se pode dizer que a assimilação da descoberta dos raios X necessitou uma mudança de paradigma A razão para negar tal mudança é muito forte É certo que os paradigmas subscritos por Roentgen e seus contemporâneos não poderiam ter sido usados para predizer os raios X 56 Mas os paradigmas aceitos por Roentgen e seus contemporâneos não proibiam pelo menos em algum sentido óbvio a existência dos raios X como a teoria do flogisto proibira a interpretação dada por Lavoisier ao gás de Priestley Pelo contrário em 1895 a teoria e a prática científicas admitiam um certo número de radiações visível infravermelha e ultravioleta Por que os raios X não poderiam ter sido aceitos como apenas mais uma forma de uma bem conhecida classe de fenômenos naturais Por que os raios X não foram por exemplo recebidos do mesmo modo que a descoberta de um elemento químico adicional Novos elementos químicos para preencher lugares vazios na tabela periódica ainda estavam sendo procurados nos dias de Roentgen Sua busca era um projeto padrão de ciência normal Encontrálos propiciava apenas uma ocasião para congratulações não para surpresa Mas os raios X foram saudados não apenas com surpresa mas também com choque Lord Kelvin antes de mais nada declarouos uma fraude bem montada 57 Outros ficaram estupefatos com a evidência já não podendo duvidar dela Embora os raios X não fossem vetados pela teoria estabelecida eles violaram expectativas profundamente arraigadas É uma sugestão minha que tais expectativas estavam implícitas na projeção e na interpretação de procedimentos de laboratório estabelecidos Em torno dos anos noventa do século dezenove o aparelho de raio catódico estava amplamente desenvolvido em numerosos laboratórios europeus Se o equipamento de Roentgen produziu raios X então um certo número 56 A teoria eletromagnética de Maxwell ainda não tinha sido generalizadamente aceita e a teoria particulada dos raios catódicos era apenas uma entre várias especulações correntes 57 Silvanus P Thompson The Life of Sir William Thomson Baron Kelvin of Largs London 1910 II p 1125 64 de outros experimentadores também deveria estar num momento ou noutro produzindo aqueles raios sem o saber Talvez aqueles raios que certamente também poderiam ter outras fontes não reconhecidas estivessem implicados no comportamento previamente explicado sem que se fizesse referência a eles No mínimo vários tipos de aparelhos de há muito familiares deveriam no futuro ser blindados com chumbo O trabalho já acabado de projetos normais teria agora que ser feito de novo porque anteriormente os cientistas falharam em reconhecer e controlar uma variável relevante Sem dúvida os raios X abriram um novo campo somandoo ao domínio potencial da ciência normal Mas eles também modificaram campos que já existiam antes e esse é agora o ponto mais importante No processo eles negaram a tipos de instrumentação previamente paradigmáticos o direito a esse título Em resumo conscientemente ou não a decisão de empregar um aparelho em particular e também a decisão de usálo de um modo especificado implica a suposição de que disso resultariam apenas certos tipos de circunstâncias Há expectativas instrumentais da mesma forma que há expectativas teóricas e elas com frequência exerceram uma função decisiva no desenvolvimento científico Uma dessas expectativas instrumentais por exemplo faz parte da estória da demorada descoberta do oxigênio Quando usaram um teste padrão da bondade do ar Priestley e Lavoisier misturaram dois volumes do seu gás para um volume de óxido nítrico Agitaram a mistura em água e mediram o volume do resíduo gasoso A experiência anterior a partir da qual desenvolveuse esse procedimento padrão asseguravalhes que com ar atmosférico restaria um volume e que para qualquer outro gás ou para ar poluído o volume seria maior Nos experimentos com o oxigênio ambos encontraram um volume e consequentemente identificaram o gás Só muito mais tarde e em parte por acidente Priestley renunciou ao procedimento padrão e tentou misturar óxido nítrico com o seu gás em outras proporções Então ele constatou que com o quádruplo do volume de óxido nítrico não restava quase nenhum resíduo Seu compromisso com o procedimento de teste original um procedimento sancionado por muita experiência anterior foi ao mesmo tempo um compromisso com a inexistência de gases que poderiam se comportar do mesmo modo que o oxigênio 58 Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados se nos referíssemos digamos à demorada identificação da fissão do urânio Uma razão pela qual a reação nuclear mostrouse particularmente difícil de reconhecer foi que pessoas que sabiam o que esperar 58 Conant op cit pp 1820 65 quando bombardeavam o urânio escolheram testes químicos apontados principalmente para os elementos do extremo superior da tabela periódica 59 Deveríamos concluir dessa frequência com que tais compromissos instrumentais mostramse equívocos que a ciência deveria abandonar os testes padrão e os instrumentos padrão Isso resultaria num método de pesquisa inconcebível Aplicações e procedimentos paradigmáticos são tão necessários à ciência quanto as leis e teorias paradigmáticas e têm os mesmos efeitos Inevitavelmente eles sempre restringem o campo fenomênico acessível à investigação científica Se reconhecemos isso suficientemente podemos simultaneamente ver um sentido essencial em que descobertas como a dos raios X compelem um segmento específico da comunidade científica a uma mudança de paradigma E portanto a uma mudança nos procedimentos e expectativas Como resultado podemos compreender também como a descoberta dos raios X deixaria a impressão de abrir um estranho mundo novo para muitos cientistas participando desse modo tão efetivamente da crise que conduziu à física do século vinte Nosso exemplo final de descoberta científica a da garrafa de Leyden pertence a uma classe que pode ser descrita como teórico induzida Inicialmente o termo pode parecer paradoxal Muito do que foi dito até agora sugere que descobertas antecipadas por predições da teoria são partes da ciência normal e não resultam em nenhum novo tipo de fato Anteriormente eu me referi às descobertas de novos elementos químicos durante a segunda metade do século dezenove como procedendo da ciência normal exatamente dessa maneira Mas nem todas as teorias são paradigmáticas Durante os períodos préparadigma e durante as crises que conduzem a mudanças em larga escala nos paradigmas os cientistas desenvolvem habitualmente muitas teorias especulativas e 59 K K Darrow Nuclear Fission Bell System Technical Journal XIX 1940 pp 267 89 O criptônio um dos dois principais produtos da fissão parece ter sido identificado por meios químicos só depois que a reação foi bem compreendida O bário o outro produto da fissão foi quase identificado quimicamente em um estágio tardio da investigação porque como efetivamente aconteceu esse elemento tinha que ser adicionado à solução radioativa para precipitar o elemento pesado que os químicos nucleares estavam procurando O fracasso em separar do produto radioativo o bário que tinha sido adicionado finalmente levou depois que a reação foi repetidamente investigada por quase cinco anos ao seguinte relatório Como químicos nós deveríamos ser conduzidos pela investigação a mudar todos os nomes no esquema precedente de reação e escrever Ba La Ce no lugar de Ra Ac Th Mas como químicos nucleares com íntimas conexões com a física não podemos nos permitir esse salto que iria contradizer toda a experiência prévia da física nuclear Pode ser que uma série de estranhos acidentes torne enganadores nossos resultados Otto Hahn e Fritz Strassman Über den Nachweis und das Verhalten der bei der Bestrahlung des Urans mittels Neutronen entstehende Erdalkalimettale Die Naturwissenschaften XXVII 1939 p 15 66 incoesas que podem elas mesmas apontar o caminho para a descoberta No entanto essa descoberta pode não ser exatamente aquela antecipada pela hipótese pouco elaborada ou especulativa Somente quando o experimento e a teoria provisória articulamse conjuntamente em uma assimilação do experimento pela teoria é que a descoberta emerge e a teoria se torna um paradigma A descoberta da garrafa de Leyden mostra todas essas características assim como outras que já observamos antes Quando ela começou não havia um paradigma único para a pesquisa elétrica Ao invés disso várias teorias todas elas derivadas de fenômenos relativamente acessíveis estavam em competição Nenhuma delas teve muito sucesso no ordenamento da variedade dos fenômenos elétricos como um todo Esse fracasso é a fonte de várias anomalias que forneceram o pano de fundo para a descoberta da garrafa de Leyden Uma das escolas competidoras entre os eletricistas considerou que a eletricidade fosse um fluido Essa concepção levou várias pessoas a tentar engarrafar tal fluido segurando um frasco cheio de água com as mãos e encostando a água num condutor conectado a um gerador eletrostático ativo Ao remover o frasco da máquina e tocar a água ou tocar um condutor conectado a ela com as mãos desprotegidas esses investigadores experimentavam um forte choque No entanto os eletricistas ainda não conseguiram produzir a garrafa de Leyden com aqueles primeiros experimentos O dispositivo emergiu mais lentamente e de novo é impossível dizer exatamente quando sua descoberta foi completada As primeiras tentativas de armazenar o fluido elétrico só funcionaram porque os investigadores seguravam o frasco em suas mãos ao mesmo tempo em que se mantinham em contato com o solo Os eletricistas ainda precisariam aprender que a garrafa de Leyden requer uma capa condutora externa e uma capa condutora interna além de não chegar propriamente a armazenar o fluido no frasco Em algum momento no curso das investigações que lhes mostraram tudo isso e que lhes apresentaram vários outros efeitos anômalos o artefato que denominamos garrafa de Leyden emergiu Ademais os experimentos que conduziram à sua emergência muitos deles realizados por Franklin foram também os experimentos que exigiram uma drástica revisão da teoria do fluido fornecendo assim o primeiro paradigma pleno para a eletricidade 60 60 Para vários estágios na evolução da garrafa de Leyden ver I B Cohen Franklin and Newton An Inquiry into Speculative Newtonian Experimental Science and Franklins Work in Electricity as an Example Thereof Philadelphia 1956 pp 38586 400406 45267 5067 O último estágio é descrito por Whittaker op cit pp 5052 67 Em maior ou menor medida correspondendo ao continuum que vai do choque inesperado até o resultado antecipado as características comuns aos três exemplos acima são características de todas as descobertas das quais emergem novos tipos de fenômeno Tais características incluem a consciência prévia da anomalia a emergência gradual e simultânea do reconhecimento observacional e conceitual e a consequente mudança nas categorias e procedimentos paradigmáticos mudança essa geralmente acompanhada de resistência Há inclusive evidência de que essas mesmas características estejam embutidas na própria natureza do processo perceptivo Em um experimento que merece ser muito melhor conhecido fora do meio especializado Bruner e Postman solicitaram aos participantes do experimento que identificassem uma série de cartas de baralho sendolhes expostas controladamente em curtos períodos de tempo Muitas das cartas eram normais mas algumas foram modificadas para se tornar anômalas Por exemplo um seis de espadas vermelho e um quatro de copas preto Cada sessão experimental era constituída pela mostra de uma só carta para uma só pessoa em uma série de exposições que se tornavam cada vez mais demoradas Depois de cada exposição perguntavase à pessoa o que ela tinha visto A sessão terminava quando ocorriam duas identificações corretas sucessivas 61 Mesmo nas exposições mais rápidas muitas pessoas identificaram a maior parte das cartas Depois de um pequeno aumento do tempo das exposições todas as pessoas identificaram todas as cartas Para as cartas normais as identificações eram geralmente corretas Mas as cartas anômalas eram quase sempre identificadas como normais sem aparente hesitação ou perplexidade O quatro de copas preto poderia por exemplo ser identificado tanto como o quatro de espadas quanto como o quatro de copas Sem qualquer consciência de algum problema a carta era imediatamente ajustada a uma das categorias conceituais preparadas pela experiência anterior Não se poderia nem mesmo dizer que as pessoas tenham visto algo diferente daquilo que identificaram Com um aumento adicional da exposição às cartas anômalas as pessoas começavam a hesitar e a exibir consciência da anomalia Quando exposto por exemplo a um seis de espadas vermelho alguém dizia É um seis de espadas mas tem alguma coisa errada com ele O preto tem uma borda vermelha Um novo aumento no tempo de exposição resultou em ainda mais hesitação e confusão Até que 61 J S Bruner e Leo Postman On the Perception of Incongruity a Paradigm Journal of Personality XVIII 1949 pp 20623 68 finalmente e às vezes não mais que repentinamente a maioria das pessoas produzia a identificação correta sem hesitação Ademais depois de fazer isso com duas ou três cartas anômalas elas passavam a ter bem pouca dificuldade com as outras cartas anômalas que viessem a aparecer No entanto umas poucas pessoas nunca foram capazes de fazer o ajuste necessário em suas categorias Mesmo com quarenta vezes o tempo médio de exposição exigido pelo reconhecimento das cartas normais por aquilo que eram mais de dez por cento das cartas anômalas não foram corretamente identificadas E as pessoas que falharam dessa maneira experimentaram um sentimento agudo de angústia Uma delas exclamou Eu não consigo fazer a sequência qualquer que seja ela Daquela vez nem mesmo pareceu uma carta Agora já não sei de que cor ela é ou se é espada ou copa Já não estou nem mesmo certo de como se parece uma espada Meu Deus Na próxima seção também veremos que os cientistas ocasionalmente comportamse dessa maneira Seja como metáfora seja porque reflete a natureza da mente esse experimento psicológico fornece um esquema maravilhosamente simples e convincente do processo da descoberta científica Na ciência como no experimento das cartas de baralho a novidade só emerge com a dificuldade manifestada pela resistência produzida pelo seu contraste com o pano de fundo oferecido pela expectativa Inicialmente somente o antecipado e o usual são experienciados Isso ocorre mesmo num contexto de circunstâncias em que mais tarde será observada uma anomalia O aumento da familiarização entretanto resulta na consciência de algo errado ou relaciona tal ou qual efeito a algo que deu errado antes Essa consciência da anomalia abre um período em que as categorias conceituais são ajustadas até que o inicialmente anômalo tenhase tornado o antecipado Nesse ponto a descoberta foi completada Eu já tinha insistido que tal processo ou um processo muito parecido com esse está envolvido na emergência de todas as novidades científicas fundamentais Deixe me assinalar agora que ao reconhecer esse processo enfim nós podemos começar a ver por que a ciência normal uma ocupação não direcionada a novidades e que tende em princípio a suprimilas deveria apesar disso ser tão efetiva em causar a emergência de novidades No desenvolvimento de qualquer ciência o primeiro paradigma recebido é usualmente considerado muito bem sucedido no enquadramento teórico da maioria das observações e experimentos mais facilmente acessíveis aos seus praticantes Portanto o desenvolvimento posterior tendo que resolver também 69 os problemas que oferecem maior dificuldade demanda a construção de equipamentos sofisticados o desenvolvimento de competências profissionais e de um vocabulário mais especializados além de um refinamento dos conceitos que reduz crescentemente sua semelhança com seus protótipos habituais do senso comum A ciência terseá tornado crescentemente rígida Dentro daquelas áreas em que o paradigma dirige a atenção do grupo por outro lado a ciência normal leva a um nível de detalhamento da informação e a uma precisão no encaixe da observação com a teoria que não poderiam ser atingidos de nenhum outro modo Em acréscimo tanto o detalhamento da informação quanto a precisão do ajuste observação teoria têm um valor para os cientistas que ultrapassa em muito a relevância que poderiam apresentar para qualquer fim útil externo à ciência Sem a aparelhagem construída especialmente para funções previstas os resultados que levam em última instância à novidade não poderiam ocorrer E mesmo quando essa aparelhagem está disponível a novidade geralmente só aparece para pessoas que se tornaram hábeis em reconhecer que algo deu errado pela simples razão de que sabem com precisão qual deve ser o resultado esperado A anomalia só aparece em contraste com o contexto fornecido pelo paradigma Quanto mais preciso e quanto maior o alcance do paradigma mais sensitivo é o indicador de anomalias que ele oferece E portanto também o indicador de ocasiões para uma mudança de paradigma No modo normal da descoberta também a resistência tem uma utilidade Ela será explorada mais completamente na próxima seção Ao assegurar que o paradigma não vai ser tão facilmente abandonado a resistência garante que os cientistas não se distrairão por qualquer coisa e que as anomalias que levam a mudanças de paradigma têm que penetrar até o cerne do conhecimento existente O próprio fato de que uma novidade científica significativa geralmente emerge simultaneamente em vários laboratórios é um índice de que a ciência normal tem uma natureza fortemente tradicional e ao mesmo tempo também é um índice da completude com que esse empreendimento tradicional prepara o caminho da sua própria mudança 70 VII Crise e Emergência de Teorias Científicas Todas as descobertas consideradas na seção VI foram causas de mudança paradigmática ou contribuíram para que ela ocorresse Ademais todas as mudanças em que essas descobertas estiveram implicadas foram destrutivas e também construtivas Depois da assimilação da descoberta os cientistas se tornavam capazes de explicar um espectro mais amplo de fenômenos naturais Ou então tornavamse capazes de explicar com maior precisão alguns dos fenômenos naturais já conhecidos Mas tal ganho era obtido somente com o descarte de algumas crenças e procedimentos considerados padrão até então e ao mesmo tempo com a substituição desses componentes do paradigma anterior por outros Como tenho argumentado mudanças dessa ordem estão associadas com todas as descobertas feitas através da ciência normal excluindo apenas aquelas descobertas previsíveis que foram antecipadas em tudo menos em seus detalhes Todavia as descobertas não são as únicas fontes dessas mudanças destrutivoconstrutivas de paradigma Na presente seção começaremos a considerar as mudanças semelhantes mas geralmente muito mais amplas que resultam da invenção de novas teorias Como já argumentei que nas ciências fato e teoria descoberta e invenção não são categórica ou permanentemente distintos podemos antecipar a intersecção entre a presente seção e a seção anterior 62 Inevitavelmente ao tratar da emergência de novas teorias também ampliaremos nossa compreensão da descoberta No entanto intersecção não é identidade Pelo menos isoladamente os tipos de descobertas considerados na seção anterior não foram responsáveis por mudanças paradigmáticas como as revoluções copernicana newtoniana química e einsteiniana Também não foram responsáveis pelas mudanças de paradigma algo menores porque mais exclusivamente profissionais produzidas pela teoria ondulatória da luz pela teoria dinâmica do calor ou pela teoria eletromagnética de Maxwell De que modo teorias como essas podem emergir da ciência normal uma atividade ainda menos dirigida para a busca de novas teorias que para a busca de novas descobertas Se a consciência da anomalia exerce um papel na emergência de novos tipos de fenômenos não deveria surpreender ninguém que uma consciência parecida mas muito mais profunda seja o pré 62 A impossível sugestão de que primeiro Priestley descobriu o oxigênio e que depois Lavoisier o inventou tem seus atrativos Já nos defrontamos com o oxigênio enquanto descoberta Logo à frente vamos encontrálo de novo como invenção 71 requisito para todas as mudanças aceitáveis de teoria Penso que nesse ponto a evidência histórica é totalmente inequívoca O estado da astronomia ptolomaica era escandaloso antes da publicação da teoria copernicana 63 As contribuições de Galileu ao estudo do movimento dependeram estreitamente das dificuldades descobertas na teoria de Aristóteles pelos críticos escolásticos 64 A nova teoria da luz e da cor de Newton originouse da descoberta de que nenhuma das teorias préparadigma existentes abrangiam toda a extensão do espectro Também a teoria ondulatória da luz que substituiu a teoria de Newton foi anunciada em meio a uma crescente preocupação com as anomalias na relação dos efeitos de difração e polarização com a teoria de Newton 65 A termodinâmica nasceu da colisão de duas teorias físicas do século dezenove que abordavam a radiação do corpo negro os calores específicos e o efeito fotoelétrico 66 Ademais em todos esses casos exceto no de Newton a consciência da anomalia durou tanto e penetrou tão fundo que de modo apropriado podemos descrever os campos afetados por ela como em um estado de crise crescente A emergência de novas teorias é geralmente precedida de um período de acentuada insegurança profissional porque isso demanda destruição de paradigma em larga escala e enormes mudanças nos problemas e técnicas da ciência normal Como era de se esperar a insegurança é gerada pelo fracasso persistente em fazer as charadas da ciência normal terem o desfecho devido A falência das regras existentes é o prelúdio de uma busca por novas regras Em primeiro lugar examinemos um caso particularmente famoso de mudança de paradigma a emergência da astronomia copernicana Na sua fase de desenvolvimento o seu predecessor foi admiravelmente bem sucedido na predição das mudanças de posição das estrelas e dos planetas Refirome ao sistema ptolomaico num processo que transcorreu nos dois últimos séculos antes de Cristo e nos dois primeiros séculos depois Nenhum outro sistema antigo tivera uma performance tão boa Para as estrelas a astronomia ptolomaica ainda hoje é 63 A R Hall The Scientific Revolution 15001800 London 1954 p 16 64 Marshall Clagett The Science of Mechanics in the Middle Ages Madison Wis 1959 Partes IIIII A Koyré mostra um certo número de elementos medievais no pensamento de Galileu em seus Études Galiléennes Paris 1939 particularmente no Vol I 65 Para Newton ver T S KuhnNewtons Optical Papers in Isaac Newtons Papers and Letters in Natural Philosophy ed I B Cohen Cambridge Mass 1958 pp 2745 Para o prelúdio da teoria ondulatória ver E T Whittaker A History of the Theories of Æther and Electricity I 2d ed London 1847 pp 94109 e W Wheewell History of the Inductive Sciences ed rev London 1847 pp 11396466 66 Para a termodinâmica ver Silvanus P Thompson Life of William Thomson Baron Kelvin of Largs London 1910 I pp 26681 Para a teoria quântica ver Fritz Reiche The Quantum Theory trad H S Hatfield e H L Brose London 1922 72 amplamente utilizada como um dispositivo de aproximação Para os planetas as predições de Ptolomeu eram tão boas quanto as de Copérnico Para uma teoria científica no entanto ter um sucesso admirável nunca é ter um sucesso completo Com relação à posição planetária e à precessão dos equinócios as predições feitas pelo sistema de Ptolomeu nunca se ajustaram muito bem às melhores observações disponíveis O esforço posterior de redução dessas discrepâncias deu origem a muitos dos problemas de pesquisa astronômica normal para vários dos sucessores de Ptolomeu da mesma forma que as tentativas parecidas de assimilar as observações celestes à teoria newtoniana forneceram muitos problemas de pesquisa normal para os sucessores de Newton no século dezoito Por algum tempo os cientistas tiveram toda razão para supor que essas tentativas teriam sucesso Precisamente como aquelas tentativas que tinham conduzido ao desenvolvimento do sistema de Ptolomeu Nesse caso dada uma discrepância em particular os astrônomos mostravamse invariavelmente capazes de fazer algum ajuste específico no sistema ptolomaico de círculos compostos Com o passar do tempo contudo alguém que examinasse o resultado líquido do esforço de pesquisa normal de muitos astrônomos poderia observar que a complexidade da astronomia estava crescendo muito mais rapidamente que a sua precisão Poderia observar também que uma discrepância corrigida em um lugar provavelmente iria aparecer em outro 67 Essas dificuldades só eram reconhecidas lentamente porque a tradição astronômica era repetidamente interrompida por fatores externos à ciência e porque na ausência da imprensa a comunicação entre os astrônomos era restrita Mas a consciência acabou chegando Em torno do século treze Alfonso X poderia proclamar que se ele tivesse sido consultado por Deus durante a criação do mundo terlhe ia dado bons conselhos No século dezesseis Domenico da Novara o colaborador de Copérnico sustentou que nenhum sistema tão complicado e impreciso como se tinha tornado o sistema de Ptolomeu teria a possibilidade de estar de acordo com a natureza O próprio Copérnico escreveu no prefácio do De Revolutionibus que no final das contas a tradição astronômica que ele herdara só tinha criado um monstro Em torno do início do século dezesseis um número cada vez maior dentre os melhores astrônomos da Europa reconhecia que o paradigma astronômico estava fracassando até mesmo na aplicação aos seus próprios problemas tradicionais Tal reconhecimento foi o prérequisito para a rejeição por Copérnico do 67 J L E Dreyer A History of Astronomy from Thales to Kepler 2d ed New York 1953 caps xixii 73 paradigma ptolomaico e para a busca de um novo paradigma Seu famoso prefácio ainda fornece uma das descrições clássicas de um estado de crise 68 O fracasso da técnica normal de resolução de charadas não é claro o único ingrediente da crise astronômica que Copérnico enfrentou Uma abordagem mais ampla também deveria discutir a pressão social pela reforma do calendário 69 Além disso tal abordagem mais completa deveria considerar a crítica medieval de Aristóteles a ascensão do neoplatonismo renascentista e ainda outros elementos históricos significativos Mas o fracasso técnico ainda permaneceria no cerne da crise Em uma ciência madura e a astronomia já se tinha tornado uma na antiguidade fatores externos como os citados acima são significativos principalmente para determinar o ritmo do fracasso o grau de facilidade com que esse fracasso pode ser reconhecido e a área em que pela atenção que lhe foi dedicada o fracasso ocorre em primeiro lugar Ainda que imensamente importantes questões desse tipo estão fora dos limites desse ensaio Se já temos o bastante para deixar claro o caso da revolução copernicana voltemonos agora para um segundo exemplo que é até certo ponto diferente a crise que precedeu a emergência da teoria de Lavoisier sobre a combustão do oxigênio Em 1770 muitos fatores combinaramse para gerar uma crise na química Os historiadores não estão completamente de acordo nem sobre a natureza nem sobre a importância relativa desses fatores Mas dois deles são geralmente aceitos como sendo de primeira grandeza a promoção da química pneumática e a questão das relações de peso A história da primeira começa no século dezessete com o desenvolvimento da bomba de ar e seu uso na experimentação química Com o uso da bomba de ar e vários outros dispositivos pneumáticos durante o século seguinte os químicos passaram a compreender cada vez mais que o ar deve ser um ingrediente ativo nas reações químicas Mas com poucas exceções tão equívocas que talvez nem possam ser consideradas exceções os químicos continuaram a acreditar que o ar era o único tipo de gás Até 1756 quando Joseph Black mostrou que o ar em sua combinação química estável CO2 era consistentemente distinguível do ar normal duas amostras de ar eram consideradas distintas apenas pelas suas impurezas 70 68 T S Kuhn The Copernican Revolution Cambridge Mass 1957 pp 13543 69 Uma pressão que tornou a charada da precessão dos equinócios particularmente urgente 70 J R Partington A Short History of Chemistry 2d ed London 1951 pp 4851 74 Depois do trabalho de Black a investigação dos gases evoluiu rapidamente Mais destacadamente nas mãos de Cavendish Priestley e Scheele que juntos desenvolveram várias novas técnicas capazes de distinguir uma amostra de gás de outra Todas essas pessoas de Black a Scheele acreditavam na teoria do flogisto e a empregavam com frequência na projeção e na interpretação de seus experimentos Scheele foi efetivamente o primeiro a produzir oxigênio por meio de uma elaborada sequência de experimentos projetada para desflogistizar o calor Não obstante o resultado líquido de seus experimentos foi uma variedade tão intrincada de amostras e de propriedades de gás que a teoria do flogisto foise mostrando cada vez menos apta a lidar com a experimentação laboratorial Embora nenhum desses químicos sugerisse que a teoria do flogisto devesse ser substituída eles se tornaram incapazes de aplicála consistentemente No início dos anos setenta do século dezoito quando Lavoisier começou seus experimentos sobre os ares havia quase tantas versões da teoria do flogisto quantos eram os químicos pneumáticos 71 Essa proliferação de versões de uma teoria é um sintoma de crise bem comum Em seu prefácio ao De Revolutionibus Copérnico também reclamou disso A ambiguidade crescente e a utilidade decrescente da teoria do flogisto para a química pneumática não foram contudo as únicas fontes de crise com que Lavoisier se defrontou Ele também estava muito interessado em explicar o ganho de peso que a maioria dos corpos experimenta quando abrasados ou superaquecidos o que também era um problema com uma longa história prévia Pelo menos alguns químicos islâmicos constataram que alguns metais ganham peso quando superaquecidos No século dezessete vários investigadores concluíram do mesmo fato que o metal superaquecido incorpora algum ingrediente da atmosfera Mas no século dezessete essa conclusão não pareceu uma conclusão necessária para a maioria dos químicos Se as reações químicas podiam alterar o volume a cor e a textura dos ingredientes por que elas não poderiam alterar também o peso Nem sempre o peso fora considerado uma medida da quantidade de matéria Ademais o ganho de peso no superaquecimento mantevese como um fenômeno isolado A maioria dos corpos naturais por exemplo a madeira perde peso no superaquecimento como a teoria do flogisto diria mais tarde que deveriam 71 Embora seu interesse principal esteja em um período um pouco posterior muito material relevante está espalhado por J R Partington e Douglas McKies Historical Studies on the Phlogiston Theory Annals of Science II 1937 pp 361404 III 1938 pp 158 33771 e IV 1939 pp 33771 75 Durante o século dezoito entretanto essas respostas à questão do ganho de peso que inicialmente eram adequadas ficaram cada vez mais difíceis de manter Em parte porque a balança foi crescentemente usada como ferramenta padrão da química em parte porque o desenvolvimento da química pneumática tornou não só possível como também desejável reter os produtos gasosos das reações químicas os químicos descobriram cada vez mais casos em que o ganho de peso acompanhava o superaquecimento Simultaneamente a assimilação gradual da teoria gravitacional de Newton levou os químicos a insistir que o aumento no peso deveria significar aumento na quantidade de matéria Essas conclusões não resultaram na rejeição da teoria do flogisto Essa teoria poderia ser ajustada de muitas maneiras Talvez o flogisto tivesse peso negativo ou talvez partículas de fogo ou alguma outra coisa entrassem no corpo superaquecido na medida em que o flogisto o deixava Outras explicações ainda poderiam ser encontradas Mas se o problema do ganho de peso não levou à rejeição da teoria acabou levando a vários estudos especiais em que ele próprio adquiriu proeminência Um desses estudos Sobre o flogisto considerado como uma substância dotada de peso e analisado em termos das mudanças de peso que ele produz nos corpos com os quais ele se une foi lido à Academia Francesa no início de 1772 o ano que se encerrou com a abertura da famosa anotação lacrada que Lavoisier encaminhara à secretaria da Academia Antes que tal anotação tivesse sido escrita um problema que se mantivera à margem da consciência dos químicos por muitos anos ganhou destaque como uma charada a ser resolvida 72 Muitas versões diferentes da teoria do flogisto estavam sendo elaboradas para enfrentálo Do mesmo modo que os problemas da química pneumática os problemas do ganho de peso estavam tornando cada vez mais difícil saber com certeza o que era a teoria do flogisto Esse paradigma do século dezoito estava gradualmente perdendo seu status incontroverso embora ainda se acreditasse e confiasse nele como uma ferramenta de trabalho Cada vez mais a pesquisa que ele guiava ficava parecendo com as escolas que concorriam entre si no período préparadigma um outro efeito típico de crise Como um terceiro e final exemplo vamos considerar agora a crise da física no fim do século dezenove que traçou o roteiro para que a teoria da relatividade emergisse Uma das raízes daquela crise pode ser rastreada no final do século dezessete quando vários filósofos da natureza com destaque para Leibniz criticaram o fato 72 H Guerlac Lavoisier The Crucial Year Ithaca NY 1961 Todo o livro documenta a evolução e o reconhecimento inicial de uma crise Para uma clara exposição da situação no que concernia Lavoisier ver p 35 76 de Newton ter mantido a concepção clássica do espaço absoluto ainda que em versão atualizada 73 Eles se tornaram quase capazes mas nunca o suficiente de mostrar que as posições e os movimentos absolutos não tinham qualquer função no sistema de Newton No entanto eles foram muito bem sucedidos em assinalar o considerável apelo estético que uma concepção totalmente relativista do espaço e do movimento só viria exibir bem mais tarde Mas a crítica que eles faziam era puramente lógica Como os primeiros copernicanos que criticaram as provas de Aristóteles da estabilidade da Terra eles nem sonhavam que um sistema relativista pudesse ter consequências observacionais Em nenhum momento eles relacionavam suas concepções com os problemas que apareciam quando se aplicava a teoria de Newton à natureza Disso resultou que as concepções desses filósofos da natureza morreram com eles durante as primeiras décadas do século dezoito Todavia essas concepções ressuscitariam nas últimas décadas do século dezenove quando passaram a ter uma relação muito diferente com a prática da física Os problemas técnicos com que uma filosofia relativista do espaço acabaria por se relacionar começaram a fazer parte da ciência normal com a aceitação da teoria ondulatória da luz em torno de 1815 e no período que se seguiu àquele ano embora não tenham desencadeado nenhuma crise até a década de noventa do mesmo século Se a luz é um movimento de onda que se propaga num éter mecânico governado pelas leis de Newton então as observações celestes e os experimentos terrestres deveriam tornarse potencialmente capazes de detectar seu fluxo através do éter Das observações celestes apenas aquelas da aberração da luz prometeram suficiente precisão para fornecer informação relevante Assim a detecção do curso da luz no éter por meio das mensurações da aberração tornouse um problema de ciência normal Um equipamento muito especializado foi fabricado para resolvêlo Tal equipamento contudo não detectou nenhum fluxo da luz no éter e o problema foi transferido dos experimentadores e observadores para os teóricos Durante as décadas centrais do século dezenove Fresnel Stokes e outros maquinaram várias reformulações da teoria do éter que visavam à explicação do fracasso na observação do curso da luz no éter Cada uma dessas articulações presumia que um corpo em movimento arrasta alguma fração do éter com ele Cada uma delas era suficientemente bem sucedida para explicar os resultados negativos não só da observação celeste mas também da 73 Max Jammer Concepts of Space The History of Space in Physics Cambridge Mass 1954 pp 11424 77 experimentação terrestre incluindo o famoso experimento de Michelson e Morley 74 Ainda não havia qualquer conflito exceto entre as várias articulações Como faltassem técnicas experimentais relevantes tal conflito nunca chegou a ser agudo A situação teve nova mudança apenas com a aceitação progressiva da teoria eletromagnética de Maxwell nas duas últimas décadas do século dezenove O próprio Maxwell era um newtoniano que acreditava que a luz e o eletromagnetismo em geral deviamse ao deslocamento variável de partículas de um éter mecânico Suas primeiras versões de uma teoria da eletricidade e do magnetismo fizeram uso direto das propriedades hipotéticas com que ele dotou esse ambiente Tais propriedades foram eliminadas da sua versão final mas Maxwell ainda acreditava que sua teoria eletromagnética fosse compatível com alguma articulação da concepção mecânica newtoniana 75 Desenvolver uma formulação adequada foi um desafio para ele e para seus sucessores Na prática contudo como tem repetidamente acontecido no desenvolvimento científico a requerida articulação da teoria mostrouse imensamente difícil de produzir Assim como a hipótese astronômica de Copérnico apesar do otimismo de seu autor criou uma crise crescente para as teorias do movimento que existiam na época também a teoria de Maxwell apesar da sua origem newtoniana acabou produzindo uma crise para o paradigma de que brotou 76 Ademais a área em que essa crise se tornou mais aguda foi proporcionada pelos problemas que acabamos de considerar ou seja pelos problemas do movimento com relação ao éter A discussão de Maxwell sobre o comportamento dos corpos em movimento não fizera qualquer alusão ao arrasto do éter Isso mostrou a enorme dificuldade de inserir tal arrasto em sua teoria Como resultado toda uma série de observações anteriores destinadas a detectar o fluxo da luz através do éter tornouse anômala Por isso os anos que transcorreram após 1890 testemunharam uma longa série de tentativas experimentais e teóricas de detectar o movimento da luz em sua relação com o éter e de integrar na teoria o arrasto no éter As tentativas de detectar o movimento no éter foram uniformemente mal sucedidas ainda que alguns analistas considerassem seus resultados equívocos ou inconclusivos O esforço 74 Joseph Larmor Aether and Matter Including a Discussion of the Influence of the Earths Motion on Optical Phenomena Cambridge 1900 pp 620 32022 75 R T Glazebrook James Clerk Maxwell and Modern Physics London 1896 cap ix Para a atitude final de Maxwell ver seu próprio livro A Treatise on Electricity and Magnetism 3d ed Oxford 1892 p 470 76 Para o papel da astronomia no desenvolvimento da mecânica ver Kuhn op cit cap vii 78 para integrar o arrasto no éter à teoria de Maxwell produziram várias iniciativas promissoras particularmente as de Lorentz e Fitzgerald que todavia acabaram por revelar outras charadas resultando finalmente naquela proliferação de teorias concorrentes que já mostramos que acompanham as crises 77 Foi confrontandose com essa conjuntura histórica que a teoria especial da relatividade de Einstein emergiu em 1905 Esses três exemplos são quase perfeitamente típicos Em cada caso uma nova teoria só emergiu depois de um clamoroso fracasso na atividade normal de resolução de problemas Além disso excetuandose o caso de Copérnico em que fatores externos à ciência exerceram um papel particularmente relevante esse colapso na atividade normal de resolução de problemas e a proliferação de teorias que é o seu sintoma ocorreu não mais que uma ou duas décadas antes da enunciação da nova teoria que venceria a concorrência revolucionária A nova teoria vencedora parece uma resposta direta à crise Embora isso possa não parecer tão típico notemos também que os problemas que fizeram a atividade normal colapsar eram todos de um tipo há muito reconhecido A prática anterior da ciência normal fornecera todas as razões para que fossem considerados resolvidos ou quase resolvidos Isso ajuda a explicar por que o sentimento de fracasso pôde ser tão agudo quando chegou Falhar com um novo tipo de problema é em geral desapontador mas nunca surpreendente Problemas e charadas não se entregam ao primeiro ataque Finalmente esses exemplos compartilham uma outra característica que pode tornar impressionante o exame do papel da crise pelo menos parcialmente a solução de cada um deles foi antecipada durante o período em que não havia qualquer crise na ciência correspondente E na falta de crise tais antecipações foram ignoradas A única antecipação completa é também a mais famosa Refirome à antecipação do heliocentrismo de Copérnico por Aristarco no século III aC Geralmente se diz que se a ciência grega fosse menos dedutiva e menos dominada pelo dogma a astronomia heliocêntrica poderia ter começado seu desenvolvimento dezoito séculos mais cedo do que o fez 78 Mas isso seria ignorar todo o contexto histórico Quando a sugestão de Aristarco foi feita o sistema geocêntrico imensamente mais razoável naquele momento 77 Whittaker op cit I 386410 e II London 1953 pp 2740 78 Para o trabalho de Aristarco ver T L Heath Aristarchus of Samus The Ancient Copernicus Oxford 1913 parte II Para uma exposição extremista da posição tradicional sobre a negligência do feito de Aristarco ver Arthur Koestler The Sleepwalkers A History of Mans Changing Vision of the Universe London 1959 79 não apresentava nenhuma necessidade que só um sistema heliocêntrico pudesse satisfazer mesmo conceitualmente Todo o desenvolvimento da astronomia ptolomaica incluindo seus triunfos e seu colapso situase nos séculos que se seguiram à proposta de Aristarco Até mesmo a proposta heliocêntrica mais elaborada de Copérnico não era nem mais simples nem mais precisa que a de Ptolomeu Como veremos mais claramente abaixo os testes observacionais disponíveis não ofereciam qualquer base para uma escolha entre elas Nessas circunstâncias um dos fatores que levaram os astrônomos ao copernicanismo um fator que não poderia têlos levado ao heliocentrismo de Aristarco foi a reconhecida crise que respondeu em primeiro lugar pela inovação A astronomia ptolomaica tinha fracassado na resolução de seus problemas Chegara o tempo de dar uma chance a um competidor Nossos outros dois exemplos não apresentam antecipações similares tão completas Mas seguramente uma das razões por que as teorias da combustão por absorção da atmosfera teorias desenvolvidas no século dezessete por Rey Hooke e Mayow fracassaram em obter audiência suficiente foi não terem feito nenhum contato com algum foco reconhecido de dificuldade na prática da ciência normal 79 A longa negligência aos críticos relativistas de Newton pelos cientistas dos séculos dezoito e dezenove também foi devida em larga medida ao fracasso de um contato similar Os filósofos da ciência têm demonstrado repetidamente que mais de uma construção teórica sempre pode ser acoplada a uma determinada coleção de dados A história da ciência indica que nem chega a ser difícil inventar tais alternativas particularmente nos estágios iniciais de desenvolvimento de um novo paradigma Mas a invenção de alternativas é exatamente o que os cientistas raramente fazem exceto durante o estágio préparadigma do desenvolvimento de suas ciências e em ocasiões muito especiais de sua evolução subsequente Na medida em que as ferramentas que o paradigma oferece continuam a se mostrar capazes de resolver os problemas que o próprio paradigma define a ciência se move mais rapidamente e penetra mais profundamente com o emprego confiante desse paradigma A razão disso é clara Na indústria como na ciência a substituição das ferramentas é uma extravagância a ser reservada apenas para uma ocasião que vier a demandála O significado das crises é a indicação que elas fornecem de que uma ocasião para a substituição das ferramentas chegou 79 Partington op cit pp 7885 80 VIII A Resposta à Crise Vamos presumir que as crises sejam uma precondição necessária para a emergência de teorias inovadoras e em seguida perguntar como os cientistas respondem à sua existência Parte da resposta tão óbvia quanto importante pode ser descoberta quando observamos aquilo que os cientistas nunca fazem quando confrontados com anomalias que podem ser até mesmo severas e prolongadas Embora eles possam começar a perder a fé e por consequência começar a considerar alternativas eles não renunciam ao paradigma que os levou à crise Isto é eles não tratam as anomalias como contraexemplos embora no vocabulário da filosofia da ciência seja exatamente isso que elas são Em parte essa generalização é simplesmente o enunciado de um fato histórico baseado em exemplos como os dados acima e ainda mais extensivamente abaixo Esses exemplos já insinuam aquilo que o exame da rejeição do paradigma que faremos mais tarde vai revelar mais completamente Isto é uma teoria científica uma vez atingido o status de paradigma só é declarada inválida se uma candidata alternativa já estiver disponível para ocupar o seu lugar Nenhum processo explicitado até agora pelo estudo histórico do desenvolvimento científico chega a se assemelhar ao estereótipo metodológico da falsificação pela comparação direta com a natureza Essa observação não significa que os cientistas não rejeitem teorias científicas ou que a experiência e o experimento não sejam essenciais para o processo em que eles agem dessa maneira Mas essa observação significa o que no fim das contas vai ser um ponto fundamental que o ato de ajuizar que leva os cientistas a rejeitar uma teoria previamente aceita será sempre baseado em muito mais do que uma comparação da teoria com o mundo A decisão de rejeitar um paradigma é sempre ao mesmo tempo a decisão de aceitar um outro paradigma O ajuizamento que leva a tal decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza e também a comparação de ambos os paradigmas entre si Em acréscimo há uma segunda razão para duvidar que cientistas rejeitem paradigmas porque são confrontados por anomalias ou contraexemplos Ao desenvolver essa segunda razão meu argumento vai prefigurar uma outra das principais teses desse ensaio As razões para dúvida esboçadas acima foram puramente fatuais Ou seja elas foram contraexemplos de uma teoria epistemológica que prevalece Assim se minha presente posição está correta elas podem no 81 máximo ajudar a criar uma crise ou mais precisamente a reforçar uma crise que em grande medida já existe Elas não podem por si mesmas falsificar essa teoria filosófica porque seus defensores farão exatamente aquilo que já vimos os cientistas fazer quando são confrontados pela anomalia Eles vão elaborar numerosas articulações e modificações ad hoc para a sua teoria no intento de eliminar qualquer conflito aparente De fato muitas dessas modificações e qualificações relevantes já estão presentes na literatura Se portanto esses contraexemplos epistemológicos devem constituir algo mais que um irritante secundário será porque eles estarão contribuindo para tornar permissível a emergência de uma análise nova e diferente da ciência dentro da qual eles já não serão mais uma fonte de dificuldade Ademais se um padrão típico que observaremos mais tarde nas revoluções científicas é aplicável aqui então essas anomalias simplesmente já não mais parecerão fatos De dentro de uma nova teoria do conhecimento em vez disso elas podem parecer muitíssimo com tautologias Isto é podem parecer muitíssimo com enunciados de situações que não se conseguiria conceber que pudessem ter sido de outra forma Ainda que tenha tomado séculos de difícil pesquisa fatual e teórica para ser articulada já foi frequentemente observado por exemplo que a segunda lei do movimento de Newton se comporta em grande medida como um enunciado puramente lógico que nenhuma quantidade de observação poderia refutar pelo menos para aqueles que praticam ciência no marco da teoria newtoniana 80 Na Seção X veremos que a lei química das proporções fixas que antes de Dalton era um achado experimental ocasional de generalidade muito duvidosa tornouse depois do trabalho de Dalton um ingrediente de uma definição de composto químico que nenhum trabalho experimental poderia por si mesmo perturbar Algo muito parecido com isso vai acontecer com a generalização de que os cientistas não conseguem rejeitar paradigmas quando se deparam com anomalias ou contraexemplos Embora seja pouco provável que a história tenha registrado seus nomes sem dúvida algumas pessoas foram compelidas a desertar da ciência por causa da sua inabilidade em tolerar crises Como os artistas os cientistas criativos devem ocasionalmente ser capazes de viver em um mundo fora dos eixos Em outro lugar cheguei a descrever essa necessidade como a tensão essencial 80 Ver particularmente a discussão de N R Hanson Patterns of Discovery Cambridge 1958 pp 99105 82 implícita na investigação científica 81 Mas a rejeição da ciência em favor de uma outra ocupação é penso o único tipo de rejeição de paradigma a que os contraexemplos podem levar por si mesmos Uma vez encontrado um primeiro paradigma que nos ofereça o meio para investigar a natureza e já não poderá mais haver pesquisa feita na ausência de um paradigma qualquer Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituílo por um outro é rejeitar a própria ciência Tal ato voltase contra a pessoa e não contra o paradigma Inevitavelmente essa pessoa será vista pelos colegas como o carpinteiro que põe a culpa em suas ferramentas O mesmo tópico pode ser apresentado ao reverso mas com não menos efetividade não pode haver uma coisa tal como pesquisa sem contraexemplos O que é mesmo que diferencia a ciência normal da ciência em estado de crise Certamente não é porque a ciência normal não se confronta com contraexemplos Pelo contrário aquilo que anteriormente denominamos as charadas que constituem a ciência normal só existem porque nenhum paradigma que fornece a base para a pesquisa científica chega a resolver completamente todos os seus problemas Os pouquíssimos paradigmas que aparentemente chegaram a fazer isso por exemplo a ótica geométrica cessaram rapidamente de produzir qualquer problema de pesquisa tornandose em vez disso ferramentas para engenharia Excetuando aqueles que dizem respeito apenas aos instrumentos de investigação todo problema que a ciência normal vê como uma charada também pode ser visto de um outro ponto de vista como um contraexemplo e desse modo como uma fonte de crise Copérnico viu como contraexemplos aquilo que a maioria dos outros sucessores de Ptolomeu tinha visto como charada na compatibilização da observação com a teoria Lavoisier viu como contraexemplo aquilo que Priestley vira como uma charada de resolução bem sucedida na articulação da teoria do flogisto Einstein viu como contraexemplo aquilo que Lorentz Fitzgerald e outros tinham visto como charadas na articulação das teorias de Newton e de Maxwell Ademais mesmo a existência de crise não transforma por si mesma uma charada num contraexemplo Não há uma tal linha divisória nítida Em vez disso ao proliferar as versões do paradigma a crise flexibiliza as regras da resolução normal de charadas em sentidos que em última instância permitirão que um novo paradigma emerja Penso que haja 81 T S Kuhn The Essential Tension Tradition and Innovation in Scientific Research in The Third 1959 University of Utah Research Conference on the Identification of Creative Scientifc Talent ed Calvin W Taylor Salt Lake City 1959 pp 16277 Para um fenômeno comparável entre os artistas ver Frank Barron The Psychology of Imagination Scientific American CXCIX September 1958 15166 esp 160 83 somente duas alternativas ou nenhuma teoria científica chega a confrontar um contraexemplo ou todas as teorias científicas confrontam contraexemplos a todo momento Como pode a situação terse mostrado de maneira diferente Essa questão necessariamente leva à elucidação histórica e crítica da filosofia mas esses tópicos estão barrados aqui Nós podemos contudo pelo menos apontar duas razões pelas quais a ciência pareceu fornecer uma ilustração tão apropriada da generalização que afirma que verdade e falsidade são única e inequivocamente determinadas pela confrontação do enunciado com o fato A ciência normal empenhase e deve empenharse continuamente em levar a teoria e o fato a um acordo cada vez mais estreito Assim essa atividade pode ser vista facilmente como teste ou como busca de confirmação ou de falsificação Apesar disso o objetivo da ciência normal é resolver charadas para cuja existência mesma a validade do paradigma deve ser presumida Um fracasso na obtenção de uma solução desacredita apenas o cientista não a teoria Aqui ainda mais que acima se aplica o provérbio que afirma que quem põe a culpa nas ferramentas é um pobre carpinteiro Ademais a maneira como a pedagogia da ciência enreda a discussão de uma teoria em observações sobre suas aplicações exemplares tem ajudado a reforçar uma teoria da confirmação extraída predominantemente de outras fontes Dada a mais ínfima razão para assim fazer a pessoa que lê um texto científico pode facilmente considerar que as aplicações sejam evidências da teoria isto é razões pelas quais a teoria deveria ser acreditada Mas os estudantes de ciência aceitam as teorias com base na autoridade do professor e com base na autoridade do texto não por causa de evidência Que alternativas eles teriam Ou que competência As aplicações apresentadas nos livros didáticos não estão lá por serem evidências mas porque aprendêlas é parte da aprendizagem do paradigma que está na base da prática científica corrente Se as aplicações fossem expostas como evidência então a própria negligência dos manuais em sugerir interpretações alternativas ou discutir problemas para os quais os cientistas fracassaram na produção de soluções paradigmáticas acusaria seus autores de extrema parcialidade Mas não há a menor razão para tal indiciamento Como então para retornar à questão inicial os cientistas respondem à consciência de uma anomalia no acordo entre a teoria e a natureza O que acabou de ser dito indica que mesmo uma discrepância desproporcionalmente maior que a experimentada em outras aplicações da teoria não precisa requerer uma resposta muito 84 profunda qualquer que seja ela Sempre há algumas discrepâncias Mesmo as discrepâncias mais obstinadas acabam em geral respondendo à prática científica normal Muito frequentemente os cientistas dispõemse a esperar particularmente se há muitos problemas disponíveis em outras partes de seu campo Já observamos por exemplo que durante os sessenta anos posteriores ao cálculo original de Newton o movimento previsto do perigeu da Lua permaneceu só a metade daquilo que a observação media Enquanto os melhores físicos matemáticos da Europa mantiveramse numa luta mal sucedida com essa discrepância bem conhecida apareceram propostas ocasionais para modificar a lei newtoniana do quadrado inverso Mas ninguém levou muito a sério tais propostas e na prática a paciência com essa anomalia relevante comprovouse justificada Em 1750 Clairaut foi capaz de mostrar que somente a matemática da aplicação estava errada e que a teoria de Newton poderia permanecer como antes 82 Mesmo nos casos em que sequer um mero erro pareceria possível 83 uma anomalia persistente e reconhecida nem sempre induz à crise Ninguém questionou seriamente a teoria newtoniana por causa das discrepâncias por longo tempo reconhecidas entre as predições da teoria e a velocidade do som e entre as predições da teoria e o movimento de Mercúrio A primeira discrepância foi por fim e inesperadamente resolvida através de experimentos sobre o calor realizados com um propósito muito diferente A segunda desvaneceuse com a teoria geral da relatividade depois de uma crise em cuja criação ela não teve papel algum 84 Aparentemente nenhuma delas pareceu suficientemente fundamental para desencadear a inquietação que acompanha uma crise Poderiam ter sido reconhecidas como contraexemplos e ainda assim ser postas de lado para trabalho posterior Disso se segue que quando é para uma anomalia desencadear uma crise em geral ela deve ser bem mais que uma simples anomalia Em algum ponto sempre vai haver dificuldades no ajuste paradigmanatureza A maioria dessas dificuldades é superada mais cedo ou mais tarde Com frequência isso ocorre através de processos que nem poderiam ter sido previstos O cientista que parasse para examinar toda anomalia que encontrasse raramente conseguiria fazer 82 W Wheewel History of the Inductive Sciences rev ed London 1847 II pp 2201 83 Talvez porque a matemática envolvida é mais simples ou de um tipo que já se tornou familiar em algum outro campo 84 Para a velocidade do som ver T S Kuhn The Caloric Theory of Adiabatic Compression Isis XLIV 1958 pp 13637 Para a mudança secular no periélio de Mercúrio ver E T Whittaker A History of the Theories of Æther and Electricity II London 1953 pp 151 179 85 algum trabalho significativo Portanto temos que perguntar o que faz uma anomalia parecer digna de investigação conjunta por parte dos cientistas Para essa pergunta no entanto provavelmente não haja uma resposta que valha para todos os casos Os casos que examinamos são característicos mas dificilmente poderiam ser considerados prescritivos Às vezes uma anomalia porá em questão generalizações explícitas e fundamentais do paradigma como foi o caso do problema do arrasto no éter para aqueles que aceitaram a teoria de Maxwell Ou então como no caso da revolução copernicana uma anomalia sem importância científica fundamental pode desencadear uma crise quando as aplicações que ela frustra têm uma importância prática especial Nesse caso a anomalia tinha importância prática para a projeção do calendário e para a astrologia Ou ainda como na química do século dezoito o desenvolvimento da ciência normal pode transformar uma anomalia que anteriormente não fora mais que uma preocupação secundária em uma fonte de crise Refirome ao problema das relações de peso que adquiriu um status muito diferente depois da evolução das técnicas da química pneumática Podemos presumir que ainda haja outras circunstâncias que podem tornar particularmente premente uma anomalia e várias dessas circunstâncias poderão combinarse Já notamos por exemplo que uma fonte da crise enfrentada por Copérnico foi a simples extensão prolongada do período de tempo durante o qual os astrônomos empenharamse sem sucesso na redução das discrepâncias residuais do sistema de Ptolomeu Quando por essas razões e outras como elas uma anomalia deixa de parecer apenas mais uma charada da ciência normal já teve início a transição para a crise e para a ciência extraordinária Nesse momento a própria anomalia já é reconhecida enquanto tal pela profissão Cada vez mais atenção lhe é devotada por um número cada vez maior dentre as mais eminentes pessoas do campo em que ela aparece Se a anomalia continua a resistir o que não é usual muitas delas chegam a ver sua resolução como o objeto de sua disciplina Para tais cientistas o campo de investigação já não vai mais se assemelhar exatamente àquilo que era anteriormente Em parte sua aparência diferente resulta basicamente do novo ponto em que se fixa a investigação científica Uma fonte ainda mais importante de mudança está na natureza divergente das numerosas soluções parciais que a concatenação das atenções sobre o problema disponibiliza Os primeiros ataques ao problema resistente certamente terá seguido as regras do paradigma muito de perto Mas com a continuação da resistência um número cada vez maior dos 86 ataques ao problema terá envolvido alguma articulação menor ou não tão menor do paradigma Nenhuma delas será muito parecida com a outra Cada uma delas poderá ter sucesso parcial mas nenhuma delas terá sucesso suficiente para ser aceita como paradigma pelo grupo Através dessa proliferação de articulações divergentes cada vez mais elas serão descritas como ajustes ad hoc as regras da ciência normal tornamse crescentemente desfocadas Embora ainda haja um paradigma poucos cientistas mostramse claramente concordes a respeito do que ele seja Mesmo soluções de problemas resolvidos anteriormente soluções que eram tomadas como padrão são postas em questão Quando se torna aguda essa situação chega a ser por vezes reconhecida pelos cientistas envolvidos Copérnico reclamava que em sua época os astrônomos eram tão inconsistentes em suas investigações astronômicas que eles não conseguem explicar ou observar nem mesmo a periodicidade anual Com eles ele continuava acontece como quando um artista reúne mãos pés cabeça e outros membros a partir de diversos modelos para compor suas imagens Cada parte está excelentemente desenhada mas elas não se combinam na unidade de um corpo E uma vez que essas partes não se ajustam umas às outras o resultado só pode ser um monstro e não um homem 85 Inibido pelo uso corrente de uma linguagem menos florida Einstein só escreveu que Foi como se o chão tivesse sumido debaixo dos pés não se podendo ver em lugar algum uma base sólida sobre a qual construir 86 E Wolfgang Pauli nos meses que antecederam o artigo de Heisenberg sobre mecânica matricial que apontou o caminho para uma nova mecânica quântica escreveu para um amigo que No momento a física se encontra de novo em terrível confusão De qualquer modo tem sido muito difícil para mim Desejaria ter sido um comediante de cinema ou algo assim sem nunca ter ouvido falar de física Esse testemunho é particularmente impressionante quando contrastado com as palavras do mesmo Pauli menos de cinco meses depois O tipo de mecânica de Heisenberg deume novamente esperança e alegria de viver É certo que ele não oferece uma solução para o enigma mas eu acredito ser possível marchar para a frente de novo 87 85 Citado em T S Kuhn The Copernican Revolution Cambridge Mass 1957 p 138 86 Albert Einstein Autobiographical Note em Albert Einstein PhilosopherScientist ed P A Schilpp Evanston Ill 1949 p 45 87 Ralph Kronig The Turning Point em Theoretical Physics in the Twentieth Century A Memorial Volume to Wolfgang Pauli ed M Fierz e V F Weisskopf New York 1960 pp 22 256 Boa parte desse artigo descreve a crise na mecânica quântica durante os anos imediatamente anteriores a 1925 87 Reconhecimentos explícitos de falência como essas são extremamente raros Todavia os efeitos de uma crise não dependem inteiramente de seu reconhecimento consciente O que podemos dizer sobre o que são esses efeitos Só dois deles parecem ser universais Todas as crises começam com o paradigma se tornando cada vez mais vago e em virtude disso desenvolvendo um consequente afrouxamento das regras da ciência normal Isto posto a pesquisa realizada durante a crise se parece muito com a pesquisa do período préparadigma ainda que o seu foco de investigação seja menor e mais claramente definido Acrescentemos que todas as crises encerramse em um dos três modos seguintes Às vezes a ciência normal acaba por se mostrar capaz de lidar com o problema provocador da crise a despeito do desespero daqueles que o viram como o fim do paradigma existente Em outras ocasiões o problema resiste mesmo com abordagens novas e aparentemente radicais Então os cientistas concluem que não terão solução à vista no presente estado de seu campo O problema é etiquetado e posto de lado para uma geração futura que disponha de ferramentas mais desenvolvidas Ou finalmente e esse é o caso que mais nos interessa aqui a crise pode desembocar no desenvolvimento de novos candidatos a paradigma e na batalha que se segue em prol da aceitação de um deles por toda a comunidade científica Esse último modo de encerramento de uma crise vai ser considerado extensivamente nas últimas seções desse ensaio mas devemos antecipar um aperitivo do que diremos nelas para completar essas notas sobre a evolução e a anatomia do estado de crise A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma a partir do qual possa emergir uma nova tradição de ciência normal está longe de ser um processo cumulativo Ou seja está longe de ser um processo realizado pela articulação ou extensão do velho paradigma Tratase de uma reconstrução do campo a partir de uma nova fundamentação Uma reconstrução que muda algumas das generalizações teóricas mais elementares do campo científico assim como muitos de seus métodos e aplicações paradigmáticos Durante o período de transição haverá uma intersecção grande mas nunca completa entre os problemas que podem ser resolvidos pelo velho paradigma e os problemas que podem ser resolvidos pelo novo paradigma Mas haverá também uma diferença decisiva na maneira de solucionar os problemas Quando a transição se completa a profissão terá mudado a concepção de seu campo científico seus métodos e seus objetivos Um historiador atento examinando um caso clássico de reorientação de uma ciência por mudança 88 paradigmática descreveuo como segurar a outra ponta do bastão ou seja um processo que envolve manipular o mesmo agregado de dados que antes mas por lhe dar um marco estrutural diferente situandoo em um novo sistema de relações mútuas 88 Outros que também notaram esse aspecto do avanço científico enfatizaram sua similaridade com uma conversão na configuração visual Gestalt switch Os riscos no papel que antes eram vistos como um pássaro agora são vistos como um antílope e viceversa 89 Todavia esse paralelo pode nos iludir Os cientistas não veem algo como algo diferente Eles apenas veem algo Já examinamos alguns dos problemas que são criados quando se diz que Priestley viu oxigênio como ar desflogistizado Ademais o cientista não preserva a liberdade subjetiva de figurar visualmente para alternar entre a frente e o verso das maneiras de ver Não obstante a alternância entre figurações visuais particularmente porque isso é tão familiar hoje em dia é um protótipo elementar útil para o que ocorre em uma transformação paradigmática em larga escala O adiantamento que acabamos de fazer pode nos ajudar a reconhecer a crise como um prelúdio plausível para a emergência de novas teorias Particularmente por já termos examinado a versão em pequena escala do mesmo processo quando discutimos a emergência das descobertas científicas Precisamente porque a emergência de uma nova teoria rompe com uma tradição de prática científica e introduz uma nova tradição conduzida sob regras diferentes e dentro de um universo discursivo diferente é de se imaginar que isso ocorra somente quando a tradição científica mais antiga é sentida como tendo se desestruturado severamente Essa nota entretanto não é mais que a preliminar de uma investigação do estado de crise As questões a que ela conduz desafortunadamente exigem muito mais a competência do psicólogo que a competência do historiador Como é a pesquisa extraordinária Como os cientistas procedem quando tomam consciência de que algo deu errado num nível tão fundamental que o seu treinamento não os equipou para lidar com a situação Tais questões requerem muito mais investigação e essa investigação não deveria ser exclusivamente histórica O que se segue vai ser muito mais conjetural e menos completo do que aquilo que expusemos antes Pelo menos em embrião geralmente um novo paradigma emerge antes que uma crise se tenha desenvolvido o bastante ou sido explicitamente reconhecida O trabalho de Lavoisier fornece um caso 88 Herbert Butterfield The Origins of Modern Science 13001800 London 1949 pp 1 7 89 Hanson op cit cap i 89 assim Sua nota selada foi depositada na Academia Francesa menos de um ano depois do primeiro estudo exaustivo das relações de peso na teoria do flogisto e antes que as publicações de Priestley tivessem revelado toda a extensão da crise na química pneumática E ainda as primeiras formulações que Thomas Young fez da teoria ondulatória da luz apareceram num estágio muito inicial de uma crise em desenvolvimento na ótica Essa crise passaria quase despercebida a não ser pelo fato que não teve qualquer participação de Young de que ela se transformou num escândalo científico internacional uma década após os seus primeiros escritos Em casos como esse podese dizer que uma perturbação menor do paradigma e o estágio mais inicial do relaxamento das regras da ciência normal foram suficientes para induzir em alguém uma nova maneira de olhar o seu campo científico Muito daquilo que se interpôs entre a primeira percepção da encrenca e o reconhecimento de uma alternativa deve ter sido em grande medida inconsciente Em outros casos entretanto como os casos de Copérnico de Einstein e da teoria nuclear contemporânea por exemplo um tempo considerável transcorre entre a primeira consciência de desarranjo e a emergência de um novo paradigma Quando isso ocorre o historiador pelo menos pode captar algumas indicações de como é a ciência extraordinária Defrontado com uma anomalia que em teoria é supostamente fundamental geralmente o primeiro esforço do cientista vai ser individualizála com maior precisão e lhe dar uma estrutura Ainda que agora esteja consciente de que elas possam não se mostrar as mais adequadas o cientista vai pressionar as regras da ciência normal com mais determinação que nunca para na área da dificuldade ver com precisão onde e até que ponto pode fazêlas funcionar Simultaneamente o cientista vai procurar maneiras de amplificar a área colapsada tornála mais nítida e talvez também mais sugestiva do que foi quando mostrada nos experimentos cujos resultados pensavase conhecer antecipadamente Por fim no derradeiro esforço mais do que em qualquer outra parte do desenvolvimento pósparadigma da ciência ele ficará muito parecido com a imagem mais usual que temos do cientista Em primeiro lugar com frequência ele vai parecer uma pessoa que procura aleatoriamente tentando diferentes experimentos só para ver o que acontece e procurando por algum efeito cuja natureza ele não pode estimar Ao mesmo tempo já que nenhum experimento pode ser concebido sem algum tipo de teoria o cientista em crise vai constantemente tentar produzir teorias especulativas que se bem 90 sucedidas podem abrir caminho para um novo paradigma e se mal sucedidas podem ser descartadas com relativa tranquilidade A exposição feita por Kepler de sua prolongada batalha com o movimento de Marte e a resposta de Priestley sobre a proliferação de novos gases fornecem exemplos clássicos do tipo de pesquisa mais aleatória produzida pela consciência da anomalia 90 Mas provavelmente as melhores ilustrações entre todas vêm da pesquisa contemporânea na teoria do campo e sobre partículas fundamentais O imenso esforço exigido para detectar o neutrino pareceria justificado se não fosse uma crise que tornou necessário ver até que ponto as regras da ciência normal poderiam ser esticadas Se as regras não tivessem sido tão obviamente quebradas em algum ponto não revelado teria a hipótese radical da não conservação da paridade sido sequer sugerida ou testada Esses experimentos foram em parte tentativas de localizar e definir a fonte de um conjunto ainda difuso de anomalias do mesmo modo que muitas outras pesquisas da física durante a década passada Esse tipo de pesquisa extraordinária geralmente é acompanhado por outro ainda que nem sempre isso ocorra Penso ser nos períodos em que a crise já foi reconhecida que os cientistas voltamse para a análise filosófica como um dispositivo para decifrar os enigmas do seu campo Normalmente os cientistas não precisariam ou desejariam ser filósofos Com efeito a ciência normal habitualmente mantém a filosofia criativa a uma certa distância provavelmente por boas razões Na medida em que o trabalho de investigação normal pode ser conduzido com o uso do paradigma como modelo regras e suposições não precisam ser explicitadas Na Seção V falamos que todo o conjunto de regras procurado pela análise filosófica não precisa nem mesmo existir Mas isso não quer dizer que a busca dos pressupostos mesmo os que não existem não possa ser um jeito eficaz de enfraquecer as garras da tradição cravadas na mente do cientista e sugerir as bases de uma nova tradição de pesquisa Não é acidente que a emergência da física newtoniana no século dezessete e a emergência das mecânicas relativista e quântica no século vinte tivessem que ser precedidas e acompanhadas por análises filosóficas dos fundamentos da tradição de pesquisa então vigente 91 Nem é um acidente que nesses dois períodos 90 Para uma exposição do trabalho de Kepler sobre Marte ver J L E Dreyer A History of Astronomy from Thales to Kepler 2d ed New York 1953 pp 38093 Imprecisões ocasionais não impedem que a síntese de Dreyer ofereça o material que necessitamos aqui Para Priestley ver seu próprio trabalho especialmente Experiments and Observations on Different Kinds of Air London 17741775 91 Para o contraponto filosófico que acompanhou a mecânica do século dezessete ver René Dugas La mécanique au XVIIe siècle Neuchâtel 1954 particularmente o cap 91 o assim chamado experimento em pensamento tenha exercido um papel tão crítico no desenvolvimento da pesquisa Como mostrei em outro lugar a experimentação analítica em pensamento que é tão proeminente nos escritos de Galileu Einstein Bohr e outros é inteiramente calculada para expor o velho paradigma ao conhecimento existente de modo a isolar a raiz da crise com uma clareza que não pode ser obtida no laboratório 92 Com o desenvolvimento isoladamente ou em conjunto desses procedimentos extraordinários pode ocorrer uma outra coisa Ao concentrar a atenção científica sobre uma área problemática restrita e ao preparar a mente científica para reconhecer anomalias experimentais pelo que elas são a crise geralmente faz as descobertas proliferarem Nós já observamos como a consciência da crise distingue o trabalho de Lavoisier sobre o oxigênio do trabalho de Priestley Ademais o oxigênio não foi o único gás que os químicos conscientes da crise foram capazes de descobrir no trabalho de Priestley E também novas descobertas da ótica acumularamse rapidamente pouco antes e durante a emergência da teoria ondulatória da luz Algumas dessas descobertas como a polarização por reflexo foram o resultado de acidentes que o trabalho concentrado numa área encrencada torna prováveis 93 Outras descobertas como o foco de luz no centro da sombra de um disco circular foram predições feitas a partir da nova hipótese O sucesso dessas predições ajudou a transformar a nova hipótese em um paradigma a ser daí por diante elaborado Ainda podemos indicar outras descobertas como as cores de ranhuras e de placas grossas que eram efeitos que antes já eram vistos com frequência e às vezes eram registrados mas que como o oxigênio de Priestley foram assimilados a outros efeitos já bem conhecidos de maneiras que impediram que fossem vistos pelo que eram 94 Um relato similar poderia ser feito das múltiplas descobertas que foram uma concomitante permanente da emergência da mecânica quântica desde cerca de 1895 A pesquisa extraordinária ainda deve ter outras manifestações e efeitos mas nessa área nós mal começamos a xi Para o episódio similar do século dezenove ver o livro anterior do mesmo autor Histoire de la mécanique Neuchâtel 1950 pp 41943 92 T S Kuhn A Function for Thought Experiments in Mélanges Alexandre Koyré ed R Taton e I B Cohen a ser publicado pela Hermann Paris em 1963 93 Malus o descobridor da polarização por reflexo estava apenas começando o seu trabalho de preparação do ensaio para o prêmio da Academia sobre a refração dupla um assunto amplamente reconhecido pelo seu estado insatisfatório 94 Para as novas descobertas da ótica em geral ver V Ronchi Histoire de la lumière Paris 1956 cap vii Para uma explicação anterior de um desses efeitos ver J Priestley The History and Present State of Discoveries Relating Vision Light and Colours London 1772 pp 498520 92 descobrir as questões que precisam ser feitas Se bem que talvez nada mais seja necessário acrescentar nesse ponto As observações precedentes deveriam ser suficientes para mostrar como a crise simultaneamente fragiliza os estereótipos e fornece os dados adicionais para uma mudança de paradigma a partir dos fundamentos Às vezes a forma do novo paradigma é antecipada na estrutura que a pesquisa extraordinária deu à anomalia Einstein escreveu que antes que ele tivesse um substituto para a mecânica clássica já podia ver a interrelação entre as anomalias conhecidas da radiação do corpo negro o efeito fotoelétrico e calores específicos 95 Em geral uma estrutura como essa não é conscientemente visualizada antes da hora Em vez disso o novo paradigma ou uma proposta suficientemente desenvolvida dele para permitir articulação posterior emerge todo de uma vez na mente de uma pessoa profundamente imersa na crise às vezes no meio da noite Qual a natureza desse estágio final isto é como um indivíduo inventa ou acha que inventou uma nova maneira de dar ordem aos dados que agora já estão todos concatenados deve permanecer inescrutável aqui e isso pode ficar permanentemente assim Aqui vamos considerar apenas uma coisa sobre esse estágio final Quase sempre as pessoas que realizaram essas invenções fundamentais de um novo paradigma ou eram muito jovens ou muito novas no campo cujo paradigma elas mudam 96 Talvez esse ponto nem precise ser explicitado pois obviamente se trata de pessoas que por estarem em decorrência de sua prática anterior pouco comprometidas com as regras tradicionais da ciência normal são particularmente suscetíveis de ver que as regras da ciência normal já não definem um jogo que possa ser jogado e para conceber um novo conjunto de regras que possa substituílas A transição que resulta em um novo paradigma é uma revolução científica um assunto que finalmente estamos preparados para abordar diretamente Primeiro notemos contudo um último e aparentemente enganador aspecto para o qual as últimas três seções prepararam o caminho Até a Seção VI em que o conceito de anomalia foi introduzido pela primeira vez os termos revolução e 95 Einstein loc cit 96 Essa generalização do papel da juventude na pesquisa científica fundamental é tão comum a ponto de se tornar um clichê Como se não bastasse uma olhadinha em quase toda lista de contribuições fundamentais à teoria científica vai fornecer uma confirmação impressionista Não obstante a generalização requer investigação sistemática em uma escala maior Harvey C Lehman Age and Achievement Princeton 1953 fornece muitos dados úteis Mas seus estudos não procuram individualizar as contribuições que envolvem reconceituação fundamental Nem inquirem sobre as circunstâncias especiais se é que há alguma que podem acompanhar uma produtividade individual relativamente tardia nas ciências 93 ciência extraordinária podem ter parecido equivalentes O mais relevante é que nenhuma dessas duas expressões pareceu significar mais que ciência não normal numa circularidade que certamente terá incomodado pelo menos alguns imagino que poucos leitores Na prática essa circularidade não precisaria ter feito isso Estamos próximos de descobrir que uma circularidade semelhante é característica das teorias científicas Incomodativa ou não contudo essa circularidade acabou sendo qualificada A presente seção do ensaio e as duas seções precedentes destacaram numerosos critérios para a identificação de um colapso da atividade da ciência normal Critérios que de modo algum dependem de que o colapso seja seguido de uma revolução Quando confrontados com uma crise os cientistas tomam uma atitude diferente para com os paradigmas existentes E a natureza da sua pesquisa mudará correspondentemente A proliferação de articulações concorrentes a determinação de tentar qualquer coisa a clara manifestação de descontentamento e o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos são todos sintomas de uma transição da ciência normal para a ciência extraordinária A noção de ciência normal depende mais de todas essas coisas que da noção de revoluções
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49 V A Prioridade dos Paradigmas Para descobrir a relação entre regras paradigmas e ciência normal vamos primeiro considerar de que modo os historiadores isolam os núcleos especiais de comprometimento que acabaram de ser descritos como regras aceitas A investigação histórica acurada de uma dada especialidade em um certo período de tempo revela um conjunto recorrente de exemplos quasipadronizados de diversas teorias em suas aplicações conceituais observacionais e instrumentais São os paradigmas da comunidade que os livros didáticos conferências e exercícios de laboratório revelam Estudandoos e praticando com eles os membros da comunidade correspondente aprendem sua profissão É claro que o historiador vai encontrar uma zona de penumbra ocupada por trabalhos científicos cujo status ainda está em dúvida Mas em geral o núcleo resolvido de problemas e técnicas vai ser claro Apesar de ambiguidades ocasionais os paradigmas de uma comunidade científica madura podem ser determinados com relativa facilidade A determinação dos paradigmas compartilhados contudo não é o mesmo que a determinação das regras compartilhadas A determinação dos paradigmas compartilhados demanda um segundo passo Um passo de um tipo relativamente diferente Ao dar esse passo o historiador deve comparar os paradigmas da comunidade entre si e com os relatórios de pesquisa que essa comunidade está produzindo Assim fazendo seu objetivo é descobrir que elementos isoláveis explícitos ou implícitos os membros da comunidade investigada podem ter abstraído dos seus paradigmas mais globais para utilizar como regras em sua pesquisa Qualquer um que tenha tentado descrever ou analisar a evolução de uma tradição particular de pesquisa terá procurado necessariamente regras e princípios aceitos desse tipo É quase certo como indica a seção precedente que esse historiador terá pelo menos algum sucesso nessa busca Mas se a experiência dele tiver sido mais ou menos como a minha própria ele terá achado a busca por regras mais difícil e menos satisfatória que a busca por paradigmas Algumas das generalizações que ele vier a empregar para descrever as crenças compartilhadas da comunidade científica não apresentarão qualquer problema Outras entretanto incluindo algumas daquelas regras utilizadas acima como ilustrações parecerão um pouco forçadas Se fossem formuladas da maneira exposta na seção anterior ou de qualquer outra maneira que possamos imaginar é quase certo que essas regras seriam rejeitadas 50 por alguns membros do grupo que o historiador estuda Apesar disso se quisermos entender uma tradição de pesquisa em termos de regras será preciso alguma especificação da base comum da área correspondente Como resultado a busca por um corpo apropriado de regras para individualizar uma determinada tradição de pesquisa normal tornase uma fonte de frustração profunda e contínua Se reconhecermos tal frustração contudo vai ser possível diagnosticar sua fonte Os cientistas podem concordar que um Newton um Lavoisier um Maxwell ou um Einstein produziram uma solução aparentemente permanente para um grupo de problemas relevantes Ainda assim os cientistas podem discordar às vezes sem ter consciência disso a respeito de certas características abstratas que tornam permanentes aquelas soluções Isto é eles podem concordar quanto à identificação que fazem de um paradigma sem concordar a respeito de uma interpretação ou racionalização completa dele A falta de uma interpretação padrão ou de uma redução consensual a regras não vai impedir que um paradigma guie a pesquisa A ciência normal pode ser determinada em parte pela inspeção direta dos paradigmas Um processo que em geral é ajudado pela formulação de regras e de suposições mas que não depende delas Efetivamente a existência de um paradigma não precisa implicar nem mesmo um conjunto desenvolvido de regras 40 Inevitavelmente o primeiro efeito dessas afirmações é levantar problemas Na falta de um corpo adequado de regras o que restringe o cientista a uma tradição científiconormal particular O que pode significar a expressão inspeção direta de paradigmas Respostas parciais para questões como essas foram desenvolvidas na obra tardia de Ludwig Wittgenstein ainda que em um contexto muito diferente Em se tratando de um contexto que é mais elementar e mais familiar ajudará se considerarmos primeiro a forma do seu argumento O que precisamos saber perguntava Wittgenstein para usarmos inequivocamente e sem provocar controvérsia palavras como cadeira folha ou jogo 41 Essa é uma questão muito antiga e geralmente tem sido respondida quando se diz que consciente ou intuitivamente nós devemos saber o que é uma cadeira ou uma folha ou um jogo Isto 40 Michael Polanyi desenvolveu brilhantemente um tema muito parecido argumentando que boa parte do sucesso de um cientista depende do conhecimento tácito Isto é do conhecimento obtido pela prática e que não pode ser explicitado pela verbalização Ver seu Personal Knowledge Chicago 1958 particularmente os capítulos v e vi 41 Ludwig Wittgenstein Philosophical Investigations trad G E M Anscombe New York 1953 pp 3136 Mas Wittgenstein não diz quase nada sobre o tipo de mundo necessário para dar suporte ao procedimento de atribuição de nomes que ele esboça Parte do tópico que se segue não pode portanto ser atribuída a ele 51 é nós devemos apreender algum conjunto de atributos que todos os jogos e apenas os jogos têm em comum Todavia Wittgenstein concluiu que não precisamos de nenhum conjunto semelhante de características dado o modo como utilizamos a linguagem e o tipo de mundo ao qual nós a aplicamos Embora uma discussão sobre alguns dos atributos compartilhados por um certo número de jogos cadeiras ou folhas geralmente nos ajude a aprender como empregar o termo correspondente não há qualquer conjunto de características que seja simultaneamente aplicável a todos os membros de uma classe e a eles apenas Ao invés disso quando confrontados com uma atividade que não observamos anteriormente nós aplicamos por exemplo o termo jogo porque aquilo que estamos vendo agora carrega uma estreita semelhança de família com várias atividades que anteriormente aprendemos a chamar por esse nome Em suma para Wittgenstein jogos cadeiras e folhas são famílias naturais Cada uma delas constituída por uma rede de semelhanças sobrepostas e entrecruzadas A existência de tal rede é suficiente para dar conta do nosso sucesso na identificação dos objetos ou atividades correspondentes Somente se as famílias que nós nomeamos se sobrepusessem e se fundissem gradualmente umas nas outras isto é somente se não houvesse qualquer família natural o nosso sucesso em identificar e nomear evidenciaria um conjunto de características comuns correspondentes a cada um dos nomes de classes que empregamos Algo do mesmo tipo certamente também pode valer para os diferentes problemas e técnicas de pesquisa que aparecem dentro de uma certa tradição científiconormal O que esses problemas e técnicas têm em comum não é o fato de satisfazerem algum conjunto explícito ou que poderia ser inteiramente descoberto de regras e postulados que dá à tradição científica o seu caráter e a sua possessão do intelecto científico Ao invés disso esses problemas e técnicas relacionamse por semelhança e também por modelarse em uma ou outra parte do corpus científico que a comunidade já reconhece entre seus produtos legítimos Os cientistas trabalham a partir dos modelos adquiridos através da educação e através da subsequente exposição à literatura produzida em sua área em geral não conhecendo suficientemente ou nem mesmo precisando conhecer que características deram a esses modelos o status de paradigmas da comunidade E porque assim fazem os cientistas não precisam de nenhum conjunto extenso de regras A coerência apresentada pela tradição de pesquisa de que participam pode não implicar nem mesmo um corpo subjacente de regras e suposições que a 52 investigação histórica ou filosófica posterior poderia explicitar Que os cientistas habitualmente não questionem ou debatam o que torna legítimos um certo problema ou uma solução particular é algo que nos induz a supor que eles sabem a resposta pelo menos intuitivamente Mas isso pode estar indicando apenas que os cientistas sentem que nem a questão nem a resposta tenham alguma importância para a pesquisa Os paradigmas podem ser anteriores mais coercitivos e mais completos que qualquer conjunto de regras de pesquisa que pudessem ser inequivocamente abstraídas deles Até aqui esse ponto foi inteiramente teórico os paradigmas poderiam determinar a ciência normal sem a intervenção de regras explicitáveis Deixeme agora tentar incrementar a clareza e a imperatividade do que acabo de afirmar indicando algumas das razões para acreditar que os paradigmas efetivamente operam dessa maneira A primeira que já foi discutida bem extensamente é a enorme dificuldade de se descobrirem regras que teriam guiado tradições específicas de ciência normal Essa dificuldade é aproximadamente a mesma que o filósofo encontra ao tentar expor aquilo que todos os jogos têm em comum A segunda da qual a primeira razão apontada é realmente um corolário está enraizada na natureza da educação científica Já deveria estar claro que os cientistas nunca aprendem conceitos leis e teorias em abstrato e por si mesmos Em vez disso essas ferramentas intelectuais são encontradas desde o início implícitas em um agregado que lhes antecede histórica e pedagogicamente e que as mostra juntamente com suas aplicações e por meio de suas aplicações Uma nova teoria é sempre anunciada juntamente com suas aplicações a alguma série concreta de fenômenos naturais Sem essas aplicações ela não poderia nem mesmo candidatarse à aceitação Depois que a teoria é aceita tais aplicações ou outras acompanham as teorias nos livros didáticos em que o futuro cientista vai aprender seu ofício Elas não estão lá meramente como enfeite ou mesmo como ilustração documental Pelo contrário o processo de aprendizagem de uma teoria depende do estudo de aplicações incluindo a prática de resolução de problemas que se desenvolve tanto com lápis e papel quanto com o uso de instrumentos em um laboratório Se por exemplo o estudante de dinâmica newtoniana chega a descobrir o significado de termos como força massa espaço e tempo ele consegue isso menos a partir das definições incompletas que ele tem no manual ainda que eventualmente úteis que pela observação e pela participação na aplicação desses conceitos na solução de problemas 53 Tal processo de aprender fazendo ou aprender por exercícios repetitivos continua através de todo o período da iniciação profissional Na medida em que o estudante avança do início da graduação até a tese de doutorado os problemas apresentados a ele tornamse cada vez mais complexos e cada vez menos completamente antecedidos de precedentes similares Mas eles continuarão sempre estreitamente modelados nos trabalhos científicos prévios Da mesma forma que serão modelados em trabalhos científicos prévios os problemas que normalmente o ocuparão durante a sua subsequente carreira científica independente Qualquer um pode ficar à vontade para supor que no decorrer de sua carreira em algum momento e lugar o cientista abstraiu intuitivamente as regras do seu próprio jogo científico Mas há pouca razão para se acreditar nisso Embora muitos cientistas falem bem e com facilidade a respeito das hipóteses específicas individuais que subjazem um projeto de pesquisa em andamento eles não estão em posição muito melhor que a do leigo para caracterizar as bases de seu campo e também seus problemas e métodos legítimos Se de qualquer modo chegaram a aprender abstrações dessa ordem eles vão mostrar isso em especial através da habilidade em conduzir pesquisas bem sucedidas Entretanto essa habilidade pode ser compreendida sem que se recorra a hipotéticas regras do jogo Essas consequências da educação científica têm um reverso que fornece uma terceira razão para supor que os paradigmas guiam a pesquisa pela modelagem direta assim como por regras abstraídas do paradigma A ciência normal pode seguir em frente sem regras na medida em que a comunidade científica a que nos referimos aceita sem questionar as soluções de problemas particulares já obtidas As regras só deveriam se tornar importantes e a característica despreocupação em relação a elas só deveria desvanecerse quando os paradigmas e modelos passassem a ser sentidos pelos cientistas como inseguros E de fato é exatamente isso que ocorre Em particular o período préparadigma é regularmente marcado por debates profundos e frequentes sobre os métodos problemas e padrões de solução legítimos ainda que isso sirva muito mais para definir diferentes escolas que para produzir acordo Nós já registramos uns poucos debates desse tipo na ótica e na eletricidade Eles desempenharam um papel ainda maior no desenvolvimento da química do século dezessete e da geologia no início do século dezenove 42 Ademais debates como esses não se desvanecem de uma 42 Para a química ver H Metzger Les doctrines chimiques en France du début du XVIIe à la fin du XVIIIe siècle Paris 1923 pp 2427 14649 e Marie Boas Robert Boyle and SeventeenthCentury Chemistry Cambridge 1958 cap ii Para a geologia ver 54 vez por todas com o aparecimento de um paradigma Embora quase não existam durante os períodos de ciência normal eles ocorrem regularmente um pouco antes e durante as revoluções científicas Isto é nos períodos em que os paradigmas são primeiro submetidos a ataque e depois são submetidos a transformação A transição da mecânica newtoniana para a mecânica quântica acionou muitos debates sobre a natureza da física e seus padrões alguns dos quais ainda em andamento 43 Há pessoas que estão vivas até hoje e que podem se lembrar de discussões parecidas engendradas pela teoria eletromagnética de Maxwell e pela mecânica estatística 44 E num passado ainda mais distante a assimilação das mecânicas de Galileu e Newton deu origem a uma série particularmente famosa de debates com aristotélicos cartesianos e leibnizianos sobre os padrões legítimos da ciência 45 Quando os cientistas discordam sobre se os problemas fundamentais de seu campo teriam sido resolvidos ou não a busca de regras ganha uma função que ordinariamente não tem Enquanto os paradigmas permanecem seguros contudo eles podem funcionar sem um acordo sobre racionalização ou mesmo sem qualquer tentativa de racionalização Uma quarta razão para garantir aos paradigmas um status de precedência em relação às regras e suposições compartilhadas pode encerrar essa seção Na Introdução ao presente ensaio sugeri que pode haver revoluções pequenas e grandes Sugeri ainda que algumas revoluções afetam somente uma subespecialidade profissional e que para tais grupos mesmo a descoberta de um fenômeno novo e inesperado pode ser revolucionária A próxima seção vai apresentar uma seleção de revoluções desse tipo mesmo que ainda hoje esteja longe de ser claro como elas podem existir Pelo que ficou implícito na discussão precedente se a ciência normal é tão rígida e se as comunidades científicas são tricotadas em malhas tão estreitas como pode uma mudança de paradigma afetar em determinado momento Walter F Cannon The UniformitarianCatastrophist Debate Isis LI 1960 3855 e C C Gillispie Genesis and Geology Cambridge Mass 1951 caps ivv 43 Para as controvérsias sobre a mecânica quântica ver Jean Ulmo La crise de la physique quantique Paris 1950 cap ii 44 Para a mecânica estatística ver René Dugas La théorie physique au sens de Boltzmann et ses prolongements modernes Neuchâtel 1959 pp 15884 20619 Para a recepção do trabalho de Maxwell ver Max Planck Maxwells Influence in Germany in James Clerk Maxwell A Commemoration Volume 18311931 Cambridge 1931 pp 4565 esp pp 5863 e Silvanus P Thompson The Life of William Thomson Baron Kelvin of Largs London 1910 II 102127 45 Para um exemplo da batalha com os aristotélicos ver A Koyré A Documentary History of the Problem of Fall from Kepler to Newton Transactions of the American Philosophical Society XLV 1955 32995 Para os debates com os cartesianos e leibnizianos ver Pierre Brunet Lintroduction des théories de Newton en France au XVIIe siècle Paris 1931 e A Koyré From the Closed World to the Infinite Universe Baltimore 1957 cap xi 55 apenas um minúsculo subgrupo O que foi dito até agora pareceu implicar que a ciência normal é um empreendimento único monolítico e unificado que se deve manter ou desabar juntamente com qualquer um de seus paradigmas ou então com todos eles juntos Mas é óbvio que a ciência raramente ou nunca se assemelha a algo assim Em geral quando vemos todos os campos científicos juntos a ciência se parece muito mais com uma estrutura desengonçada que tem pouca coerência entre as suas várias partes Nada do que foi dito até agora contudo conflita com essa observação muito familiar Pelo contrário Substituir as regras pelos paradigmas deveria tornar mais fácil de entender a diversidade dos campos e especialidades científicas As regras explícitas quando existem são usualmente comuns a um grupo científico muito amplo Mas isso não precisa ocorrer com os paradigmas Os praticantes de campos largamente separados digamos os astrônomos e os botânicos taxonômicos são educados pela exposição a trabalhos científicos muito diferentes descritos em livros muito diferentes E mesmo pessoas que estando nos mesmos campos científicos ou em campos científicos muito próximos começam estudando vários dos mesmos livros e trabalhos científicos podem adquirir paradigmas bem diferenciados no decorrer da sua especialização profissional Consideremos para dar só um exemplo a comunidade muito ampla e diversificada formada por todos os cientistas físicos Todos os membros desse grupo aprendem hoje em dia digamos as leis da mecânica quântica e a maioria deles emprega essas leis em algum estágio de sua pesquisa ou de seu ensino Mas eles não aprendem as mesmas aplicações dessas leis e portanto nem todos são afetados do mesmo modo pelas mudanças na prática da mecânica quântica Em sua rota para a especialização uns poucos cientistas físicos aprendem apenas os princípios básicos da mecânica quântica Outros estudam em detalhe as aplicações paradigmáticas desses princípios à química Ainda outros estudam as aplicações paradigmáticas desses princípios à física do estado sólido e assim por diante O que a mecânica quântica significa para cada um deles depende dos cursos que fez dos livros que leu e das revistas que estuda Disso se segue que embora uma mudança na lei da mecânica quântica será revolucionária para todos esses grupos uma mudança que repercute apenas em uma ou outra aplicação paradigmática da mecânica quântica será revolucionária apenas para os membros de uma subespecialidade profissional particular Para o resto da profissão tal mudança não será nem mesmo revolucionária Em resumo embora a mecânica quântica ou a dinâmica newtoniana e a teoria eletromagnética 56 seja um paradigma para muitos grupos científicos ela não é o mesmo paradigma para cada um deles Portanto ela pode determinar simultaneamente várias tradições de ciência normal que se sobrepõem sem ser coextensivas Uma revolução produzida dentro de uma dessas tradições também não se estenderá necessariamente às outras Uma breve ilustração dos efeitos da especialização pode dar a toda essa série de pontos uma força adicional Querendo saber alguma coisa sobre o que os cientistas consideravam ser a teoria atômica um investigador perguntou a um físico de destaque e a um eminente químico se um simples átomo de hélio seria uma molécula ou não Ambos responderam sem hesitação mas suas respostas não foram as mesmas Para o químico o átomo de hélio seria uma molécula porque se comporta como uma tendo em vista a teoria cinética dos gases Para o físico por outro lado o átomo de hélio não seria uma molécula porque não apresentaria um espectro molecular 46 Presumivelmente ambos estivessem falando da mesma partícula Mas eles a estavam vendo através dos prismas diferenciados de seu próprio treinamento para a pesquisa e da sua própria prática científica As experiências que ambos tinham na resolução de problemas disseramlhes o que uma molécula deve ser Sem dúvida que suas experiências tinham tido muito em comum mas nesse caso elas não disseram aos dois especialistas a mesma coisa Na medida em que prosseguirmos nós vamos descobrir quão cheios de consequências esses tipos de diferenças podem ocasionalmente ser 46 O investigador era James K Senior com quem estou em débito pelo seu relato verbal Algumas questões correlatas são tratadas em seu artigo The Vernacular of the Laboratory Philosophy of Science XXV 195816368 57 VI A Anomalia e a Emergência das Descobertas Científicas A ciência normal a atividade de resolução de charadas que acabamos de examinar é um empreendimento altamente cumulativo e extremamente bem sucedido em seu objetivo que é a contínua ampliação do alcance e da precisão do conhecimento científico Em todos esses aspectos ela coincide notavelmente com a imagem mais habitual do trabalho científico Apesar disso ainda está faltando mencionar um produto padrão do empreendimento científico A ciência normal não visa às novidades de fato e às novidades de teoria Quando ela é bem sucedida a ciência normal não encontra nenhuma novidade No entanto fenômenos novos e insuspeitados são repetidamente descobertos pela pesquisa científica Ademais teorias radicalmente novas têm sido repetidamente inventadas pelos cientistas A história sugere até mesmo que o empreendimento científico chegou a desenvolver uma técnica ímpar e poderosa para produzir surpresas desse tipo Se quisermos conciliar essa característica da ciência com o que foi dito anteriormente então precisamos admitir que a pesquisa subordinada a um paradigma deve ser uma via particularmente eficaz de induzir a mudança paradigmática É esse tipo de mudança que as novidades de fato e as novidades de teoria produzem Produzidas inadvertidamente por um jogo que se joga sob um conjunto determinado de regras essas novidades de fato e teoria requerem a elaboração de um novo conjunto de regras para que sejam assimiladas Pelo menos para os especialistas em cujo campo particular de trabalho são produzidas e assimiladas essas novidades depois que elas se tornam partes da ciência o empreendimento científico nunca mais voltará a ser exatamente o mesmo de novo Devemos perguntar agora como mudanças desse tipo ocorrem Primeiramente serão consideradas as descobertas ou novidades fatuais Depois serão consideradas as invenções de teoria ou novidades teóricas Essa distinção entre descoberta e invenção ou entre fato e teoria no entanto vai mostrarse de imediato excessivamente artificial A artificialidade dessa distinção é uma importante chave para a compreensão de várias das principais teses desse ensaio Ao examinar uma seleção de descobertas no restante dessa seção rapidamente notaremos que elas não são acontecimentos isolados mas episódios extensos com uma estrutura que se repete com regularidade As descobertas começam com a consciência de 58 uma anomalia Ou seja começam com o reconhecimento de que a natureza violou de algum modo as expectativas paradigmoinduzidas que governam a ciência normal A partir daí elas prosseguem com uma exploração mais ou menos extensa da área da anomalia E se encerram somente quando a teoria paradigmática foi ajustada de tal modo que o anômalo se transforma no esperado A assimilação de um novo tipo de fato requer algo mais que um ajuste que se adiciona à teoria E até que esse ajuste se complete isto é até que os cientistas aprendam a ver a natureza de um modo diferente o novo fato não chega a ser propriamente um fato científico Para vermos quão estreitamente a novidade fatual se entrelaça com a novidade teórica na descoberta científica examinemos um exemplo particularmente famoso a descoberta do oxigênio Pelo menos três pessoas diferentes podem reivindicála legitimamente e no início dos anos setenta do século dezoito vários outros químicos contiveram ar enriquecido em um recipiente de laboratório sem chegar a conhecêlo 47 O progresso da ciência normal nesse caso o progresso da química pneumática preparou de modo bem meticuloso o caminho para uma descoberta O primeiro pretendente a descobridor que preparou uma amostra relativamente pura do gás foi o farmacêutico sueco C W Scheele Todavia nós podemos ignorar seu trabalho uma vez que ele não foi publicado até que a descoberta do oxigênio já tivesse sido repetidamente anunciada em outros lugares Desse modo o trabalho de Scheele não teve qualquer efeito sobre o padrão que mais nos interessa aqui 48 Cronologicamente o segundo a reclamar a descoberta do oxigênio foi o cientista e teólogo britânico Joseph Priestley Ele isolou o gás liberado pelo óxido vermelho de mercúrio em uma prolongada investigação normal sobre os ares emitidos por um grande número de substâncias sólidas Em 1774 ele identificou o gás assim produzido como óxido nitroso Em 1775 impelido por testes adicionais ele identificou o gás como ar comum com uma quantidade de flogisto menor que a usual O terceiro reclamante da descoberta do oxigênio Lavoisier começou o trabalho que o conduziu ao oxigênio após os experimentos de Priestley de 1774 e possivelmente a partir de um 47 Para a discussão ainda clássica da descoberta do oxigênio ver A N Meldrum The EighteenthCentury Revolution in Science the First Phase Calcutta 1930 cap v Um estudo recente indispensável incluindo uma exposição sobre a controvérsia da prioridade é Maurice Daumas Lavoisier théoricien et expérimentateur Paris 1955 caps iiiii Para uma exposição mais completa e bibliografia ver também T S Kuhn The Historical Structure of Scientific Discovery Science CXXXVI June 1 1962 pp 760764 48 Ver no entanto Uno Bocklund A Lost Letter from Scheele to Lavoisier Lychnos 195758 pp 3962 para uma avaliação diferente do papel de Scheele 59 palpite dado pelo próprio Priestley No início de 1775 Lavoisier relatou que o gás obtido pelo aquecimento do óxido vermelho de mercúrio era o próprio ar sem alteração apesar de que ele resulta mais puro mais respirável 49 Em torno de 1777 provavelmente com o apoio de uma segunda sugestão de Priestley Lavoisier concluiu que o gás era uma espécie distinta ou seja que era um dos dois principais constituintes da atmosfera Priestley nunca se dispôs a aceitar essa conclusão Esse padrão de descoberta levanta uma questão que pode ser formulada sobre todo fenômeno novo que ainda não entrou na consciência dos cientistas Quem foi o primeiro a descobrir o oxigênio Priestley ou Lavoisier Se é que foi algum dos dois Qualquer que seja o caso quando o oxigênio foi descoberto Assim formulada essa última questão poderia ser feita mesmo que existisse apenas um pretendente à descoberta Não nos concerne aqui uma resposta que ajuíze sobre a precedência do descobridor e sobre a data da descoberta No entanto se tentarmos produzir uma resposta dessa ordem a natureza da descoberta será iluminada Isso pela simples razão de que não há resposta do tipo usualmente procurado A descoberta não é o tipo de processo sobre o qual temse formulado a pergunta apropriada O fato de que ela é feita 50 é um sintoma de que algo distorcido na imagem da ciência está atribuindo à descoberta essa função supostamente tão fundamental Examinemos de novo o nosso exemplo A pretensão de Priestley à descoberta do oxigênio está baseada na sua precedência no isolamento de um gás que mais tarde seria reconhecido como uma espécie distinta Mas a amostra de Priestley não era pura e se algum jeito de reter o oxigênio impuro é descobrilo então isso foi feito por todo mundo que engarrafou o ar atmosférico Além do mais se Priestley foi o descobridor quando a descoberta foi feita Em 1774 ele pensou ter obtido o óxido nitroso uma espécie que ele já conhecia Em 1775 ele viu o gás como ar desflogistizado o que ainda não é o oxigênio E mesmo para os químicos flogísticos isso nem era um tipo tão inesperado de gás A pretensão de Lavoisier pode ser mais robusta mas apresenta os mesmos problemas Se recusarmos a palma a Priestley não poderemos dar o prêmio a Lavoisier pelo trabalho de 1775 que o levou a identificar o gás como o próprio ar em sua 49 J B Conant The Overthrow of the Phlogiston Theory The Chemical Revolution of 17751789 Harvard Case Histories in Experimental Science Case 2 Cambridge Mass 1950 p 53 Esse panfleto muito útil reimprime muitos dos documentos relevantes 50 A precedência na descoberta do oxigênio tem sido repetidamente contestada desde os anos oitenta do século dezoito 60 inteireza Presumivelmente devêssemos aguardar pelo trabalho de 1776 e 1777 que levou Lavoisier não a meramente ver o gás mas a ver o quê o gás era Contudo mesmo esse prêmio poderia ser questionado De 1777 até o fim da sua vida Lavoisier insistiu que o oxigênio era um princípio de acidez atômico e que o gás oxigênio só era formado quando esse princípio uniase com o calórico a matéria do calor 51 Portanto devemos dizer que o oxigênio ainda não tinha sido descoberto em 1777 Alguns podem ser tentados a fazer isso Mas o princípio de acidez só foi banido da química depois de 1810 e o calórico persistiu até a década de sessenta do século dezenove O oxigênio tornouse uma substância química padrão antes de qualquer uma dessas datas Claramente nós precisamos de um novo vocabulário e de novos conceitos para analisar eventos como a descoberta do oxigênio Embora a sentença o oxigênio foi descoberto sem dúvida seja correta ela nos leva a um equívoco quando sugere que descobrir algo é um ato isolado simples que podemos assimilar ao nosso habitual e também questionável conceito de visão Eis porque nós assumimos tão prontamente que descobrir como ver ou tocar deveria ser inequivocamente atribuível a um indivíduo e a um momento no tempo Mas atribuir a descoberta a um momento no tempo é sempre impossível e atribuir a descoberta a um indivíduo com frequência também é Se ignorarmos Scheele podemos dizer com segurança que o oxigênio não foi descoberto antes de 1774 E também poderíamos dizer que o oxigênio teria sido descoberto em torno de 1777 ou logo depois Mas dentro desses limites ou outros como esses qualquer tentativa de datar a descoberta deve ser necessariamente arbitrária Isso porque descobrir um novo tipo de fenômeno é necessariamente um evento complexo Ou seja um evento que envolve o reconhecimento de que algo é e também o reconhecimento do que é esse algo Note por exemplo que se para nós o oxigênio fosse ar desflogistizado deveríamos insistir sem hesitação que Priestley teria sido seu descobridor ainda que ficássemos sem saber exatamente quando Mas se a observação e a conceituação o fato e sua assimilação à teoria estão inseparavelmente ligados na descoberta científica então a descoberta científica é um processo que deve levar tempo Somente quando todas as categorias conceituais relevantes estão preparadas de antemão caso em que o fenômeno já não seria de um novo tipo podem ocorrer sem esforço em conjunto e num instante o descobrir que e o descobrir o quê 51 H Metzger La philosophie de la matière chez Lavoisier Paris 1935 e Daumas op cit cap vii 61 Admitamos então que a descoberta envolve um processo de assimilação conceitual extenso ainda que não necessariamente prolongado Podemos também dizer que esse processo envolve uma mudança de paradigma Para essa questão ainda não pode ser dada nenhuma resposta geral Mas pelo menos nesse caso que estamos discutindo a resposta deve ser sim Aquilo que Lavoisier anunciou em seus escritos a partir de 1777 não era propriamente a descoberta do oxigênio mas a teoria da combustão do oxigênio De fato se a descoberta do oxigênio não fosse uma parte essencial da emergência de um novo paradigma para a química a questão da precedência com que começamos jamais teria parecido tão importante Nesse caso e em outros o valor que se aloca sobre um novo fenômeno e portanto sobre seu descobridor varia com a nossa estimativa da extensão em que o fenômeno violou as antecipações paradigmoinduzidas Notemos no entanto já que isso vai ser importante mais tarde que a descoberta do oxigênio não foi por si mesma a causa da mudança na teoria química Muito antes de exercer qualquer função na descoberta do novo gás Lavoisier estava convencido de que algo estava errado com a teoria do flogisto Assim como também estava convencido de que corpos em combustão absorviam alguma porção da atmosfera Em certa medida ele registrou isso no texto lacrado que confiou à Secretaria da Academia Francesa em 1772 52 O que o trabalho sobre o oxigênio fez foi dar muito mais forma e estrutura à sensação prévia de Lavoisier de que algo não estava funcionando Esse trabalho informoulhe uma coisa que ele já estava preparado para descobrir a natureza da substância que a combustão retira da atmosfera Tal consciência antecipada das dificuldades deve ter sido uma fração significativa daquilo que capacitou Lavoisier a ver em experimentos como os de Priestley um gás que o próprio Priestley fora incapaz de ver em seus experimentos Reciprocamente o fato de que uma ampla revisão paradigmática era necessária para ver o que Lavoisier viu deve ter sido a principal razão por que Priestley foi incapaz de ver a mesma coisa até o final de sua longa vida Dois outros exemplos bem mais curtos vão reforçar muito do que acabou de ser dito e ao mesmo tempo nos transferir de uma elucidação da natureza das descobertas para uma compreensão das circunstâncias em que as descobertas emergem na ciência Num esforço para representar as principais maneiras pelas quais as descobertas ocorrem tais exemplos foram escolhidos por serem diferentes entre si e também diferentes do exemplo da descoberta 52 A mais autorizada exposição da origem da insatisfação de Lavoisier é Henry Guerlac Lavoisier the Crucial Year The Background and Origin of His First Experiments on Combustion in 1772 Ithaca N Y 1961 62 do oxigênio O primeiro exemplo dos raios X é um caso clássico de descoberta acidental Tratase de um tipo de descoberta que ocorre mais frequentemente do que os padrões impessoais dos relatórios científicos nos permitem apreender Sua estória começa no dia em que o físico Roentgen interrompeu uma investigação normal dos raios catódicos porque ele notou que uma tela de platinocianeto de bário que estava a alguma distância do seu aparelho blindado ficou fosforescente quando a descarga estava se processando Investigações adicionais 53 indicaram que a causa da fosforescência vinha diretamente do tubo de raios catódicos que a radiação emite sombras que a radiação não poderia ser desviada por um ímã e muitas coisas mais Antes de anunciar sua descoberta Roentgen convenceuse de que aquele efeito não era devido aos raios catódicos mas a um agente com pelo menos alguma similaridade com a luz 54 Até mesmo esse resumo tão breve revela clamorosas semelhanças com a descoberta do oxigênio Antes de fazer experimentos com o óxido vermelho de mercúrio Lavoisier realizou experimentos que não produziram os resultados antecipados pelo paradigma do flogisto A descoberta de Roentgen também começou com o reconhecimento de que sua tela fosforesceu quando não deveria fazêlo Em ambos os casos a percepção da anomalia ou seja a percepção de um fenômeno para o qual o investigador não foi prontificado pelo seu paradigma exerceu um papel essencial na preparação do caminho para a percepção da novidade Igualmente nos dois casos a percepção de que algo saiu errado foi somente o prelúdio da descoberta Nem o oxigênio nem os raios X emergiram sem um processo subsequente de experimentação e de assimilação Em que ponto da investigação de Roentgen por exemplo poderíamos dizer que os raios X foram efetivamente descobertos De modo algum foi naquele primeiro instante em que tudo o que foi notado foi uma tela fosforescendo Pelo menos um outro investigador também tinha visto aquela fosforescência e para seu posterior desgosto ele não chegou a descobrir nada 55 Também já é praticamente certo que o momento da descoberta não pode ser deslocado para algum ponto da última semana de investigação Naquele momento Roentgen estava explorando as propriedades da 53 Elas exigiram sete semanas de intensa atividade durante as quais Roentgen raramente deixou o laboratório 54 L W Taylor Physics the Pioneer Science Boston 1941 pp 79094 e T W Chalmers Historic Researches London 1949 pp 21819 55 E T Whittaker A History of the Theories of Æther and Electricity I 2d ed London 1951 p358 n 1 Sir George Thomson informoume de uma segunda decepção parecida Alertado por incontáveis chapas fotográficas embaçadas Sir William Crookes também estava na trilha da descoberta 63 nova radiação que ele já tinha descoberto Só podemos dizer que os raios X emergiram em Würzburg entre 8 de novembro e 28 de dezembro de 1895 No entanto em uma terceira área a existência de paralelismos significativos entre as descobertas do oxigênio e dos raios X é bem menos aparente Diferentemente da descoberta do oxigênio a descoberta dos raios X não estava implicada em qualquer subversão óbvia da teoria científica pelo menos durante a década que sucedeu o evento Então em que sentido se pode dizer que a assimilação da descoberta dos raios X necessitou uma mudança de paradigma A razão para negar tal mudança é muito forte É certo que os paradigmas subscritos por Roentgen e seus contemporâneos não poderiam ter sido usados para predizer os raios X 56 Mas os paradigmas aceitos por Roentgen e seus contemporâneos não proibiam pelo menos em algum sentido óbvio a existência dos raios X como a teoria do flogisto proibira a interpretação dada por Lavoisier ao gás de Priestley Pelo contrário em 1895 a teoria e a prática científicas admitiam um certo número de radiações visível infravermelha e ultravioleta Por que os raios X não poderiam ter sido aceitos como apenas mais uma forma de uma bem conhecida classe de fenômenos naturais Por que os raios X não foram por exemplo recebidos do mesmo modo que a descoberta de um elemento químico adicional Novos elementos químicos para preencher lugares vazios na tabela periódica ainda estavam sendo procurados nos dias de Roentgen Sua busca era um projeto padrão de ciência normal Encontrálos propiciava apenas uma ocasião para congratulações não para surpresa Mas os raios X foram saudados não apenas com surpresa mas também com choque Lord Kelvin antes de mais nada declarouos uma fraude bem montada 57 Outros ficaram estupefatos com a evidência já não podendo duvidar dela Embora os raios X não fossem vetados pela teoria estabelecida eles violaram expectativas profundamente arraigadas É uma sugestão minha que tais expectativas estavam implícitas na projeção e na interpretação de procedimentos de laboratório estabelecidos Em torno dos anos noventa do século dezenove o aparelho de raio catódico estava amplamente desenvolvido em numerosos laboratórios europeus Se o equipamento de Roentgen produziu raios X então um certo número 56 A teoria eletromagnética de Maxwell ainda não tinha sido generalizadamente aceita e a teoria particulada dos raios catódicos era apenas uma entre várias especulações correntes 57 Silvanus P Thompson The Life of Sir William Thomson Baron Kelvin of Largs London 1910 II p 1125 64 de outros experimentadores também deveria estar num momento ou noutro produzindo aqueles raios sem o saber Talvez aqueles raios que certamente também poderiam ter outras fontes não reconhecidas estivessem implicados no comportamento previamente explicado sem que se fizesse referência a eles No mínimo vários tipos de aparelhos de há muito familiares deveriam no futuro ser blindados com chumbo O trabalho já acabado de projetos normais teria agora que ser feito de novo porque anteriormente os cientistas falharam em reconhecer e controlar uma variável relevante Sem dúvida os raios X abriram um novo campo somandoo ao domínio potencial da ciência normal Mas eles também modificaram campos que já existiam antes e esse é agora o ponto mais importante No processo eles negaram a tipos de instrumentação previamente paradigmáticos o direito a esse título Em resumo conscientemente ou não a decisão de empregar um aparelho em particular e também a decisão de usálo de um modo especificado implica a suposição de que disso resultariam apenas certos tipos de circunstâncias Há expectativas instrumentais da mesma forma que há expectativas teóricas e elas com frequência exerceram uma função decisiva no desenvolvimento científico Uma dessas expectativas instrumentais por exemplo faz parte da estória da demorada descoberta do oxigênio Quando usaram um teste padrão da bondade do ar Priestley e Lavoisier misturaram dois volumes do seu gás para um volume de óxido nítrico Agitaram a mistura em água e mediram o volume do resíduo gasoso A experiência anterior a partir da qual desenvolveuse esse procedimento padrão asseguravalhes que com ar atmosférico restaria um volume e que para qualquer outro gás ou para ar poluído o volume seria maior Nos experimentos com o oxigênio ambos encontraram um volume e consequentemente identificaram o gás Só muito mais tarde e em parte por acidente Priestley renunciou ao procedimento padrão e tentou misturar óxido nítrico com o seu gás em outras proporções Então ele constatou que com o quádruplo do volume de óxido nítrico não restava quase nenhum resíduo Seu compromisso com o procedimento de teste original um procedimento sancionado por muita experiência anterior foi ao mesmo tempo um compromisso com a inexistência de gases que poderiam se comportar do mesmo modo que o oxigênio 58 Exemplos desse tipo poderiam ser multiplicados se nos referíssemos digamos à demorada identificação da fissão do urânio Uma razão pela qual a reação nuclear mostrouse particularmente difícil de reconhecer foi que pessoas que sabiam o que esperar 58 Conant op cit pp 1820 65 quando bombardeavam o urânio escolheram testes químicos apontados principalmente para os elementos do extremo superior da tabela periódica 59 Deveríamos concluir dessa frequência com que tais compromissos instrumentais mostramse equívocos que a ciência deveria abandonar os testes padrão e os instrumentos padrão Isso resultaria num método de pesquisa inconcebível Aplicações e procedimentos paradigmáticos são tão necessários à ciência quanto as leis e teorias paradigmáticas e têm os mesmos efeitos Inevitavelmente eles sempre restringem o campo fenomênico acessível à investigação científica Se reconhecemos isso suficientemente podemos simultaneamente ver um sentido essencial em que descobertas como a dos raios X compelem um segmento específico da comunidade científica a uma mudança de paradigma E portanto a uma mudança nos procedimentos e expectativas Como resultado podemos compreender também como a descoberta dos raios X deixaria a impressão de abrir um estranho mundo novo para muitos cientistas participando desse modo tão efetivamente da crise que conduziu à física do século vinte Nosso exemplo final de descoberta científica a da garrafa de Leyden pertence a uma classe que pode ser descrita como teórico induzida Inicialmente o termo pode parecer paradoxal Muito do que foi dito até agora sugere que descobertas antecipadas por predições da teoria são partes da ciência normal e não resultam em nenhum novo tipo de fato Anteriormente eu me referi às descobertas de novos elementos químicos durante a segunda metade do século dezenove como procedendo da ciência normal exatamente dessa maneira Mas nem todas as teorias são paradigmáticas Durante os períodos préparadigma e durante as crises que conduzem a mudanças em larga escala nos paradigmas os cientistas desenvolvem habitualmente muitas teorias especulativas e 59 K K Darrow Nuclear Fission Bell System Technical Journal XIX 1940 pp 267 89 O criptônio um dos dois principais produtos da fissão parece ter sido identificado por meios químicos só depois que a reação foi bem compreendida O bário o outro produto da fissão foi quase identificado quimicamente em um estágio tardio da investigação porque como efetivamente aconteceu esse elemento tinha que ser adicionado à solução radioativa para precipitar o elemento pesado que os químicos nucleares estavam procurando O fracasso em separar do produto radioativo o bário que tinha sido adicionado finalmente levou depois que a reação foi repetidamente investigada por quase cinco anos ao seguinte relatório Como químicos nós deveríamos ser conduzidos pela investigação a mudar todos os nomes no esquema precedente de reação e escrever Ba La Ce no lugar de Ra Ac Th Mas como químicos nucleares com íntimas conexões com a física não podemos nos permitir esse salto que iria contradizer toda a experiência prévia da física nuclear Pode ser que uma série de estranhos acidentes torne enganadores nossos resultados Otto Hahn e Fritz Strassman Über den Nachweis und das Verhalten der bei der Bestrahlung des Urans mittels Neutronen entstehende Erdalkalimettale Die Naturwissenschaften XXVII 1939 p 15 66 incoesas que podem elas mesmas apontar o caminho para a descoberta No entanto essa descoberta pode não ser exatamente aquela antecipada pela hipótese pouco elaborada ou especulativa Somente quando o experimento e a teoria provisória articulamse conjuntamente em uma assimilação do experimento pela teoria é que a descoberta emerge e a teoria se torna um paradigma A descoberta da garrafa de Leyden mostra todas essas características assim como outras que já observamos antes Quando ela começou não havia um paradigma único para a pesquisa elétrica Ao invés disso várias teorias todas elas derivadas de fenômenos relativamente acessíveis estavam em competição Nenhuma delas teve muito sucesso no ordenamento da variedade dos fenômenos elétricos como um todo Esse fracasso é a fonte de várias anomalias que forneceram o pano de fundo para a descoberta da garrafa de Leyden Uma das escolas competidoras entre os eletricistas considerou que a eletricidade fosse um fluido Essa concepção levou várias pessoas a tentar engarrafar tal fluido segurando um frasco cheio de água com as mãos e encostando a água num condutor conectado a um gerador eletrostático ativo Ao remover o frasco da máquina e tocar a água ou tocar um condutor conectado a ela com as mãos desprotegidas esses investigadores experimentavam um forte choque No entanto os eletricistas ainda não conseguiram produzir a garrafa de Leyden com aqueles primeiros experimentos O dispositivo emergiu mais lentamente e de novo é impossível dizer exatamente quando sua descoberta foi completada As primeiras tentativas de armazenar o fluido elétrico só funcionaram porque os investigadores seguravam o frasco em suas mãos ao mesmo tempo em que se mantinham em contato com o solo Os eletricistas ainda precisariam aprender que a garrafa de Leyden requer uma capa condutora externa e uma capa condutora interna além de não chegar propriamente a armazenar o fluido no frasco Em algum momento no curso das investigações que lhes mostraram tudo isso e que lhes apresentaram vários outros efeitos anômalos o artefato que denominamos garrafa de Leyden emergiu Ademais os experimentos que conduziram à sua emergência muitos deles realizados por Franklin foram também os experimentos que exigiram uma drástica revisão da teoria do fluido fornecendo assim o primeiro paradigma pleno para a eletricidade 60 60 Para vários estágios na evolução da garrafa de Leyden ver I B Cohen Franklin and Newton An Inquiry into Speculative Newtonian Experimental Science and Franklins Work in Electricity as an Example Thereof Philadelphia 1956 pp 38586 400406 45267 5067 O último estágio é descrito por Whittaker op cit pp 5052 67 Em maior ou menor medida correspondendo ao continuum que vai do choque inesperado até o resultado antecipado as características comuns aos três exemplos acima são características de todas as descobertas das quais emergem novos tipos de fenômeno Tais características incluem a consciência prévia da anomalia a emergência gradual e simultânea do reconhecimento observacional e conceitual e a consequente mudança nas categorias e procedimentos paradigmáticos mudança essa geralmente acompanhada de resistência Há inclusive evidência de que essas mesmas características estejam embutidas na própria natureza do processo perceptivo Em um experimento que merece ser muito melhor conhecido fora do meio especializado Bruner e Postman solicitaram aos participantes do experimento que identificassem uma série de cartas de baralho sendolhes expostas controladamente em curtos períodos de tempo Muitas das cartas eram normais mas algumas foram modificadas para se tornar anômalas Por exemplo um seis de espadas vermelho e um quatro de copas preto Cada sessão experimental era constituída pela mostra de uma só carta para uma só pessoa em uma série de exposições que se tornavam cada vez mais demoradas Depois de cada exposição perguntavase à pessoa o que ela tinha visto A sessão terminava quando ocorriam duas identificações corretas sucessivas 61 Mesmo nas exposições mais rápidas muitas pessoas identificaram a maior parte das cartas Depois de um pequeno aumento do tempo das exposições todas as pessoas identificaram todas as cartas Para as cartas normais as identificações eram geralmente corretas Mas as cartas anômalas eram quase sempre identificadas como normais sem aparente hesitação ou perplexidade O quatro de copas preto poderia por exemplo ser identificado tanto como o quatro de espadas quanto como o quatro de copas Sem qualquer consciência de algum problema a carta era imediatamente ajustada a uma das categorias conceituais preparadas pela experiência anterior Não se poderia nem mesmo dizer que as pessoas tenham visto algo diferente daquilo que identificaram Com um aumento adicional da exposição às cartas anômalas as pessoas começavam a hesitar e a exibir consciência da anomalia Quando exposto por exemplo a um seis de espadas vermelho alguém dizia É um seis de espadas mas tem alguma coisa errada com ele O preto tem uma borda vermelha Um novo aumento no tempo de exposição resultou em ainda mais hesitação e confusão Até que 61 J S Bruner e Leo Postman On the Perception of Incongruity a Paradigm Journal of Personality XVIII 1949 pp 20623 68 finalmente e às vezes não mais que repentinamente a maioria das pessoas produzia a identificação correta sem hesitação Ademais depois de fazer isso com duas ou três cartas anômalas elas passavam a ter bem pouca dificuldade com as outras cartas anômalas que viessem a aparecer No entanto umas poucas pessoas nunca foram capazes de fazer o ajuste necessário em suas categorias Mesmo com quarenta vezes o tempo médio de exposição exigido pelo reconhecimento das cartas normais por aquilo que eram mais de dez por cento das cartas anômalas não foram corretamente identificadas E as pessoas que falharam dessa maneira experimentaram um sentimento agudo de angústia Uma delas exclamou Eu não consigo fazer a sequência qualquer que seja ela Daquela vez nem mesmo pareceu uma carta Agora já não sei de que cor ela é ou se é espada ou copa Já não estou nem mesmo certo de como se parece uma espada Meu Deus Na próxima seção também veremos que os cientistas ocasionalmente comportamse dessa maneira Seja como metáfora seja porque reflete a natureza da mente esse experimento psicológico fornece um esquema maravilhosamente simples e convincente do processo da descoberta científica Na ciência como no experimento das cartas de baralho a novidade só emerge com a dificuldade manifestada pela resistência produzida pelo seu contraste com o pano de fundo oferecido pela expectativa Inicialmente somente o antecipado e o usual são experienciados Isso ocorre mesmo num contexto de circunstâncias em que mais tarde será observada uma anomalia O aumento da familiarização entretanto resulta na consciência de algo errado ou relaciona tal ou qual efeito a algo que deu errado antes Essa consciência da anomalia abre um período em que as categorias conceituais são ajustadas até que o inicialmente anômalo tenhase tornado o antecipado Nesse ponto a descoberta foi completada Eu já tinha insistido que tal processo ou um processo muito parecido com esse está envolvido na emergência de todas as novidades científicas fundamentais Deixe me assinalar agora que ao reconhecer esse processo enfim nós podemos começar a ver por que a ciência normal uma ocupação não direcionada a novidades e que tende em princípio a suprimilas deveria apesar disso ser tão efetiva em causar a emergência de novidades No desenvolvimento de qualquer ciência o primeiro paradigma recebido é usualmente considerado muito bem sucedido no enquadramento teórico da maioria das observações e experimentos mais facilmente acessíveis aos seus praticantes Portanto o desenvolvimento posterior tendo que resolver também 69 os problemas que oferecem maior dificuldade demanda a construção de equipamentos sofisticados o desenvolvimento de competências profissionais e de um vocabulário mais especializados além de um refinamento dos conceitos que reduz crescentemente sua semelhança com seus protótipos habituais do senso comum A ciência terseá tornado crescentemente rígida Dentro daquelas áreas em que o paradigma dirige a atenção do grupo por outro lado a ciência normal leva a um nível de detalhamento da informação e a uma precisão no encaixe da observação com a teoria que não poderiam ser atingidos de nenhum outro modo Em acréscimo tanto o detalhamento da informação quanto a precisão do ajuste observação teoria têm um valor para os cientistas que ultrapassa em muito a relevância que poderiam apresentar para qualquer fim útil externo à ciência Sem a aparelhagem construída especialmente para funções previstas os resultados que levam em última instância à novidade não poderiam ocorrer E mesmo quando essa aparelhagem está disponível a novidade geralmente só aparece para pessoas que se tornaram hábeis em reconhecer que algo deu errado pela simples razão de que sabem com precisão qual deve ser o resultado esperado A anomalia só aparece em contraste com o contexto fornecido pelo paradigma Quanto mais preciso e quanto maior o alcance do paradigma mais sensitivo é o indicador de anomalias que ele oferece E portanto também o indicador de ocasiões para uma mudança de paradigma No modo normal da descoberta também a resistência tem uma utilidade Ela será explorada mais completamente na próxima seção Ao assegurar que o paradigma não vai ser tão facilmente abandonado a resistência garante que os cientistas não se distrairão por qualquer coisa e que as anomalias que levam a mudanças de paradigma têm que penetrar até o cerne do conhecimento existente O próprio fato de que uma novidade científica significativa geralmente emerge simultaneamente em vários laboratórios é um índice de que a ciência normal tem uma natureza fortemente tradicional e ao mesmo tempo também é um índice da completude com que esse empreendimento tradicional prepara o caminho da sua própria mudança 70 VII Crise e Emergência de Teorias Científicas Todas as descobertas consideradas na seção VI foram causas de mudança paradigmática ou contribuíram para que ela ocorresse Ademais todas as mudanças em que essas descobertas estiveram implicadas foram destrutivas e também construtivas Depois da assimilação da descoberta os cientistas se tornavam capazes de explicar um espectro mais amplo de fenômenos naturais Ou então tornavamse capazes de explicar com maior precisão alguns dos fenômenos naturais já conhecidos Mas tal ganho era obtido somente com o descarte de algumas crenças e procedimentos considerados padrão até então e ao mesmo tempo com a substituição desses componentes do paradigma anterior por outros Como tenho argumentado mudanças dessa ordem estão associadas com todas as descobertas feitas através da ciência normal excluindo apenas aquelas descobertas previsíveis que foram antecipadas em tudo menos em seus detalhes Todavia as descobertas não são as únicas fontes dessas mudanças destrutivoconstrutivas de paradigma Na presente seção começaremos a considerar as mudanças semelhantes mas geralmente muito mais amplas que resultam da invenção de novas teorias Como já argumentei que nas ciências fato e teoria descoberta e invenção não são categórica ou permanentemente distintos podemos antecipar a intersecção entre a presente seção e a seção anterior 62 Inevitavelmente ao tratar da emergência de novas teorias também ampliaremos nossa compreensão da descoberta No entanto intersecção não é identidade Pelo menos isoladamente os tipos de descobertas considerados na seção anterior não foram responsáveis por mudanças paradigmáticas como as revoluções copernicana newtoniana química e einsteiniana Também não foram responsáveis pelas mudanças de paradigma algo menores porque mais exclusivamente profissionais produzidas pela teoria ondulatória da luz pela teoria dinâmica do calor ou pela teoria eletromagnética de Maxwell De que modo teorias como essas podem emergir da ciência normal uma atividade ainda menos dirigida para a busca de novas teorias que para a busca de novas descobertas Se a consciência da anomalia exerce um papel na emergência de novos tipos de fenômenos não deveria surpreender ninguém que uma consciência parecida mas muito mais profunda seja o pré 62 A impossível sugestão de que primeiro Priestley descobriu o oxigênio e que depois Lavoisier o inventou tem seus atrativos Já nos defrontamos com o oxigênio enquanto descoberta Logo à frente vamos encontrálo de novo como invenção 71 requisito para todas as mudanças aceitáveis de teoria Penso que nesse ponto a evidência histórica é totalmente inequívoca O estado da astronomia ptolomaica era escandaloso antes da publicação da teoria copernicana 63 As contribuições de Galileu ao estudo do movimento dependeram estreitamente das dificuldades descobertas na teoria de Aristóteles pelos críticos escolásticos 64 A nova teoria da luz e da cor de Newton originouse da descoberta de que nenhuma das teorias préparadigma existentes abrangiam toda a extensão do espectro Também a teoria ondulatória da luz que substituiu a teoria de Newton foi anunciada em meio a uma crescente preocupação com as anomalias na relação dos efeitos de difração e polarização com a teoria de Newton 65 A termodinâmica nasceu da colisão de duas teorias físicas do século dezenove que abordavam a radiação do corpo negro os calores específicos e o efeito fotoelétrico 66 Ademais em todos esses casos exceto no de Newton a consciência da anomalia durou tanto e penetrou tão fundo que de modo apropriado podemos descrever os campos afetados por ela como em um estado de crise crescente A emergência de novas teorias é geralmente precedida de um período de acentuada insegurança profissional porque isso demanda destruição de paradigma em larga escala e enormes mudanças nos problemas e técnicas da ciência normal Como era de se esperar a insegurança é gerada pelo fracasso persistente em fazer as charadas da ciência normal terem o desfecho devido A falência das regras existentes é o prelúdio de uma busca por novas regras Em primeiro lugar examinemos um caso particularmente famoso de mudança de paradigma a emergência da astronomia copernicana Na sua fase de desenvolvimento o seu predecessor foi admiravelmente bem sucedido na predição das mudanças de posição das estrelas e dos planetas Refirome ao sistema ptolomaico num processo que transcorreu nos dois últimos séculos antes de Cristo e nos dois primeiros séculos depois Nenhum outro sistema antigo tivera uma performance tão boa Para as estrelas a astronomia ptolomaica ainda hoje é 63 A R Hall The Scientific Revolution 15001800 London 1954 p 16 64 Marshall Clagett The Science of Mechanics in the Middle Ages Madison Wis 1959 Partes IIIII A Koyré mostra um certo número de elementos medievais no pensamento de Galileu em seus Études Galiléennes Paris 1939 particularmente no Vol I 65 Para Newton ver T S KuhnNewtons Optical Papers in Isaac Newtons Papers and Letters in Natural Philosophy ed I B Cohen Cambridge Mass 1958 pp 2745 Para o prelúdio da teoria ondulatória ver E T Whittaker A History of the Theories of Æther and Electricity I 2d ed London 1847 pp 94109 e W Wheewell History of the Inductive Sciences ed rev London 1847 pp 11396466 66 Para a termodinâmica ver Silvanus P Thompson Life of William Thomson Baron Kelvin of Largs London 1910 I pp 26681 Para a teoria quântica ver Fritz Reiche The Quantum Theory trad H S Hatfield e H L Brose London 1922 72 amplamente utilizada como um dispositivo de aproximação Para os planetas as predições de Ptolomeu eram tão boas quanto as de Copérnico Para uma teoria científica no entanto ter um sucesso admirável nunca é ter um sucesso completo Com relação à posição planetária e à precessão dos equinócios as predições feitas pelo sistema de Ptolomeu nunca se ajustaram muito bem às melhores observações disponíveis O esforço posterior de redução dessas discrepâncias deu origem a muitos dos problemas de pesquisa astronômica normal para vários dos sucessores de Ptolomeu da mesma forma que as tentativas parecidas de assimilar as observações celestes à teoria newtoniana forneceram muitos problemas de pesquisa normal para os sucessores de Newton no século dezoito Por algum tempo os cientistas tiveram toda razão para supor que essas tentativas teriam sucesso Precisamente como aquelas tentativas que tinham conduzido ao desenvolvimento do sistema de Ptolomeu Nesse caso dada uma discrepância em particular os astrônomos mostravamse invariavelmente capazes de fazer algum ajuste específico no sistema ptolomaico de círculos compostos Com o passar do tempo contudo alguém que examinasse o resultado líquido do esforço de pesquisa normal de muitos astrônomos poderia observar que a complexidade da astronomia estava crescendo muito mais rapidamente que a sua precisão Poderia observar também que uma discrepância corrigida em um lugar provavelmente iria aparecer em outro 67 Essas dificuldades só eram reconhecidas lentamente porque a tradição astronômica era repetidamente interrompida por fatores externos à ciência e porque na ausência da imprensa a comunicação entre os astrônomos era restrita Mas a consciência acabou chegando Em torno do século treze Alfonso X poderia proclamar que se ele tivesse sido consultado por Deus durante a criação do mundo terlhe ia dado bons conselhos No século dezesseis Domenico da Novara o colaborador de Copérnico sustentou que nenhum sistema tão complicado e impreciso como se tinha tornado o sistema de Ptolomeu teria a possibilidade de estar de acordo com a natureza O próprio Copérnico escreveu no prefácio do De Revolutionibus que no final das contas a tradição astronômica que ele herdara só tinha criado um monstro Em torno do início do século dezesseis um número cada vez maior dentre os melhores astrônomos da Europa reconhecia que o paradigma astronômico estava fracassando até mesmo na aplicação aos seus próprios problemas tradicionais Tal reconhecimento foi o prérequisito para a rejeição por Copérnico do 67 J L E Dreyer A History of Astronomy from Thales to Kepler 2d ed New York 1953 caps xixii 73 paradigma ptolomaico e para a busca de um novo paradigma Seu famoso prefácio ainda fornece uma das descrições clássicas de um estado de crise 68 O fracasso da técnica normal de resolução de charadas não é claro o único ingrediente da crise astronômica que Copérnico enfrentou Uma abordagem mais ampla também deveria discutir a pressão social pela reforma do calendário 69 Além disso tal abordagem mais completa deveria considerar a crítica medieval de Aristóteles a ascensão do neoplatonismo renascentista e ainda outros elementos históricos significativos Mas o fracasso técnico ainda permaneceria no cerne da crise Em uma ciência madura e a astronomia já se tinha tornado uma na antiguidade fatores externos como os citados acima são significativos principalmente para determinar o ritmo do fracasso o grau de facilidade com que esse fracasso pode ser reconhecido e a área em que pela atenção que lhe foi dedicada o fracasso ocorre em primeiro lugar Ainda que imensamente importantes questões desse tipo estão fora dos limites desse ensaio Se já temos o bastante para deixar claro o caso da revolução copernicana voltemonos agora para um segundo exemplo que é até certo ponto diferente a crise que precedeu a emergência da teoria de Lavoisier sobre a combustão do oxigênio Em 1770 muitos fatores combinaramse para gerar uma crise na química Os historiadores não estão completamente de acordo nem sobre a natureza nem sobre a importância relativa desses fatores Mas dois deles são geralmente aceitos como sendo de primeira grandeza a promoção da química pneumática e a questão das relações de peso A história da primeira começa no século dezessete com o desenvolvimento da bomba de ar e seu uso na experimentação química Com o uso da bomba de ar e vários outros dispositivos pneumáticos durante o século seguinte os químicos passaram a compreender cada vez mais que o ar deve ser um ingrediente ativo nas reações químicas Mas com poucas exceções tão equívocas que talvez nem possam ser consideradas exceções os químicos continuaram a acreditar que o ar era o único tipo de gás Até 1756 quando Joseph Black mostrou que o ar em sua combinação química estável CO2 era consistentemente distinguível do ar normal duas amostras de ar eram consideradas distintas apenas pelas suas impurezas 70 68 T S Kuhn The Copernican Revolution Cambridge Mass 1957 pp 13543 69 Uma pressão que tornou a charada da precessão dos equinócios particularmente urgente 70 J R Partington A Short History of Chemistry 2d ed London 1951 pp 4851 74 Depois do trabalho de Black a investigação dos gases evoluiu rapidamente Mais destacadamente nas mãos de Cavendish Priestley e Scheele que juntos desenvolveram várias novas técnicas capazes de distinguir uma amostra de gás de outra Todas essas pessoas de Black a Scheele acreditavam na teoria do flogisto e a empregavam com frequência na projeção e na interpretação de seus experimentos Scheele foi efetivamente o primeiro a produzir oxigênio por meio de uma elaborada sequência de experimentos projetada para desflogistizar o calor Não obstante o resultado líquido de seus experimentos foi uma variedade tão intrincada de amostras e de propriedades de gás que a teoria do flogisto foise mostrando cada vez menos apta a lidar com a experimentação laboratorial Embora nenhum desses químicos sugerisse que a teoria do flogisto devesse ser substituída eles se tornaram incapazes de aplicála consistentemente No início dos anos setenta do século dezoito quando Lavoisier começou seus experimentos sobre os ares havia quase tantas versões da teoria do flogisto quantos eram os químicos pneumáticos 71 Essa proliferação de versões de uma teoria é um sintoma de crise bem comum Em seu prefácio ao De Revolutionibus Copérnico também reclamou disso A ambiguidade crescente e a utilidade decrescente da teoria do flogisto para a química pneumática não foram contudo as únicas fontes de crise com que Lavoisier se defrontou Ele também estava muito interessado em explicar o ganho de peso que a maioria dos corpos experimenta quando abrasados ou superaquecidos o que também era um problema com uma longa história prévia Pelo menos alguns químicos islâmicos constataram que alguns metais ganham peso quando superaquecidos No século dezessete vários investigadores concluíram do mesmo fato que o metal superaquecido incorpora algum ingrediente da atmosfera Mas no século dezessete essa conclusão não pareceu uma conclusão necessária para a maioria dos químicos Se as reações químicas podiam alterar o volume a cor e a textura dos ingredientes por que elas não poderiam alterar também o peso Nem sempre o peso fora considerado uma medida da quantidade de matéria Ademais o ganho de peso no superaquecimento mantevese como um fenômeno isolado A maioria dos corpos naturais por exemplo a madeira perde peso no superaquecimento como a teoria do flogisto diria mais tarde que deveriam 71 Embora seu interesse principal esteja em um período um pouco posterior muito material relevante está espalhado por J R Partington e Douglas McKies Historical Studies on the Phlogiston Theory Annals of Science II 1937 pp 361404 III 1938 pp 158 33771 e IV 1939 pp 33771 75 Durante o século dezoito entretanto essas respostas à questão do ganho de peso que inicialmente eram adequadas ficaram cada vez mais difíceis de manter Em parte porque a balança foi crescentemente usada como ferramenta padrão da química em parte porque o desenvolvimento da química pneumática tornou não só possível como também desejável reter os produtos gasosos das reações químicas os químicos descobriram cada vez mais casos em que o ganho de peso acompanhava o superaquecimento Simultaneamente a assimilação gradual da teoria gravitacional de Newton levou os químicos a insistir que o aumento no peso deveria significar aumento na quantidade de matéria Essas conclusões não resultaram na rejeição da teoria do flogisto Essa teoria poderia ser ajustada de muitas maneiras Talvez o flogisto tivesse peso negativo ou talvez partículas de fogo ou alguma outra coisa entrassem no corpo superaquecido na medida em que o flogisto o deixava Outras explicações ainda poderiam ser encontradas Mas se o problema do ganho de peso não levou à rejeição da teoria acabou levando a vários estudos especiais em que ele próprio adquiriu proeminência Um desses estudos Sobre o flogisto considerado como uma substância dotada de peso e analisado em termos das mudanças de peso que ele produz nos corpos com os quais ele se une foi lido à Academia Francesa no início de 1772 o ano que se encerrou com a abertura da famosa anotação lacrada que Lavoisier encaminhara à secretaria da Academia Antes que tal anotação tivesse sido escrita um problema que se mantivera à margem da consciência dos químicos por muitos anos ganhou destaque como uma charada a ser resolvida 72 Muitas versões diferentes da teoria do flogisto estavam sendo elaboradas para enfrentálo Do mesmo modo que os problemas da química pneumática os problemas do ganho de peso estavam tornando cada vez mais difícil saber com certeza o que era a teoria do flogisto Esse paradigma do século dezoito estava gradualmente perdendo seu status incontroverso embora ainda se acreditasse e confiasse nele como uma ferramenta de trabalho Cada vez mais a pesquisa que ele guiava ficava parecendo com as escolas que concorriam entre si no período préparadigma um outro efeito típico de crise Como um terceiro e final exemplo vamos considerar agora a crise da física no fim do século dezenove que traçou o roteiro para que a teoria da relatividade emergisse Uma das raízes daquela crise pode ser rastreada no final do século dezessete quando vários filósofos da natureza com destaque para Leibniz criticaram o fato 72 H Guerlac Lavoisier The Crucial Year Ithaca NY 1961 Todo o livro documenta a evolução e o reconhecimento inicial de uma crise Para uma clara exposição da situação no que concernia Lavoisier ver p 35 76 de Newton ter mantido a concepção clássica do espaço absoluto ainda que em versão atualizada 73 Eles se tornaram quase capazes mas nunca o suficiente de mostrar que as posições e os movimentos absolutos não tinham qualquer função no sistema de Newton No entanto eles foram muito bem sucedidos em assinalar o considerável apelo estético que uma concepção totalmente relativista do espaço e do movimento só viria exibir bem mais tarde Mas a crítica que eles faziam era puramente lógica Como os primeiros copernicanos que criticaram as provas de Aristóteles da estabilidade da Terra eles nem sonhavam que um sistema relativista pudesse ter consequências observacionais Em nenhum momento eles relacionavam suas concepções com os problemas que apareciam quando se aplicava a teoria de Newton à natureza Disso resultou que as concepções desses filósofos da natureza morreram com eles durante as primeiras décadas do século dezoito Todavia essas concepções ressuscitariam nas últimas décadas do século dezenove quando passaram a ter uma relação muito diferente com a prática da física Os problemas técnicos com que uma filosofia relativista do espaço acabaria por se relacionar começaram a fazer parte da ciência normal com a aceitação da teoria ondulatória da luz em torno de 1815 e no período que se seguiu àquele ano embora não tenham desencadeado nenhuma crise até a década de noventa do mesmo século Se a luz é um movimento de onda que se propaga num éter mecânico governado pelas leis de Newton então as observações celestes e os experimentos terrestres deveriam tornarse potencialmente capazes de detectar seu fluxo através do éter Das observações celestes apenas aquelas da aberração da luz prometeram suficiente precisão para fornecer informação relevante Assim a detecção do curso da luz no éter por meio das mensurações da aberração tornouse um problema de ciência normal Um equipamento muito especializado foi fabricado para resolvêlo Tal equipamento contudo não detectou nenhum fluxo da luz no éter e o problema foi transferido dos experimentadores e observadores para os teóricos Durante as décadas centrais do século dezenove Fresnel Stokes e outros maquinaram várias reformulações da teoria do éter que visavam à explicação do fracasso na observação do curso da luz no éter Cada uma dessas articulações presumia que um corpo em movimento arrasta alguma fração do éter com ele Cada uma delas era suficientemente bem sucedida para explicar os resultados negativos não só da observação celeste mas também da 73 Max Jammer Concepts of Space The History of Space in Physics Cambridge Mass 1954 pp 11424 77 experimentação terrestre incluindo o famoso experimento de Michelson e Morley 74 Ainda não havia qualquer conflito exceto entre as várias articulações Como faltassem técnicas experimentais relevantes tal conflito nunca chegou a ser agudo A situação teve nova mudança apenas com a aceitação progressiva da teoria eletromagnética de Maxwell nas duas últimas décadas do século dezenove O próprio Maxwell era um newtoniano que acreditava que a luz e o eletromagnetismo em geral deviamse ao deslocamento variável de partículas de um éter mecânico Suas primeiras versões de uma teoria da eletricidade e do magnetismo fizeram uso direto das propriedades hipotéticas com que ele dotou esse ambiente Tais propriedades foram eliminadas da sua versão final mas Maxwell ainda acreditava que sua teoria eletromagnética fosse compatível com alguma articulação da concepção mecânica newtoniana 75 Desenvolver uma formulação adequada foi um desafio para ele e para seus sucessores Na prática contudo como tem repetidamente acontecido no desenvolvimento científico a requerida articulação da teoria mostrouse imensamente difícil de produzir Assim como a hipótese astronômica de Copérnico apesar do otimismo de seu autor criou uma crise crescente para as teorias do movimento que existiam na época também a teoria de Maxwell apesar da sua origem newtoniana acabou produzindo uma crise para o paradigma de que brotou 76 Ademais a área em que essa crise se tornou mais aguda foi proporcionada pelos problemas que acabamos de considerar ou seja pelos problemas do movimento com relação ao éter A discussão de Maxwell sobre o comportamento dos corpos em movimento não fizera qualquer alusão ao arrasto do éter Isso mostrou a enorme dificuldade de inserir tal arrasto em sua teoria Como resultado toda uma série de observações anteriores destinadas a detectar o fluxo da luz através do éter tornouse anômala Por isso os anos que transcorreram após 1890 testemunharam uma longa série de tentativas experimentais e teóricas de detectar o movimento da luz em sua relação com o éter e de integrar na teoria o arrasto no éter As tentativas de detectar o movimento no éter foram uniformemente mal sucedidas ainda que alguns analistas considerassem seus resultados equívocos ou inconclusivos O esforço 74 Joseph Larmor Aether and Matter Including a Discussion of the Influence of the Earths Motion on Optical Phenomena Cambridge 1900 pp 620 32022 75 R T Glazebrook James Clerk Maxwell and Modern Physics London 1896 cap ix Para a atitude final de Maxwell ver seu próprio livro A Treatise on Electricity and Magnetism 3d ed Oxford 1892 p 470 76 Para o papel da astronomia no desenvolvimento da mecânica ver Kuhn op cit cap vii 78 para integrar o arrasto no éter à teoria de Maxwell produziram várias iniciativas promissoras particularmente as de Lorentz e Fitzgerald que todavia acabaram por revelar outras charadas resultando finalmente naquela proliferação de teorias concorrentes que já mostramos que acompanham as crises 77 Foi confrontandose com essa conjuntura histórica que a teoria especial da relatividade de Einstein emergiu em 1905 Esses três exemplos são quase perfeitamente típicos Em cada caso uma nova teoria só emergiu depois de um clamoroso fracasso na atividade normal de resolução de problemas Além disso excetuandose o caso de Copérnico em que fatores externos à ciência exerceram um papel particularmente relevante esse colapso na atividade normal de resolução de problemas e a proliferação de teorias que é o seu sintoma ocorreu não mais que uma ou duas décadas antes da enunciação da nova teoria que venceria a concorrência revolucionária A nova teoria vencedora parece uma resposta direta à crise Embora isso possa não parecer tão típico notemos também que os problemas que fizeram a atividade normal colapsar eram todos de um tipo há muito reconhecido A prática anterior da ciência normal fornecera todas as razões para que fossem considerados resolvidos ou quase resolvidos Isso ajuda a explicar por que o sentimento de fracasso pôde ser tão agudo quando chegou Falhar com um novo tipo de problema é em geral desapontador mas nunca surpreendente Problemas e charadas não se entregam ao primeiro ataque Finalmente esses exemplos compartilham uma outra característica que pode tornar impressionante o exame do papel da crise pelo menos parcialmente a solução de cada um deles foi antecipada durante o período em que não havia qualquer crise na ciência correspondente E na falta de crise tais antecipações foram ignoradas A única antecipação completa é também a mais famosa Refirome à antecipação do heliocentrismo de Copérnico por Aristarco no século III aC Geralmente se diz que se a ciência grega fosse menos dedutiva e menos dominada pelo dogma a astronomia heliocêntrica poderia ter começado seu desenvolvimento dezoito séculos mais cedo do que o fez 78 Mas isso seria ignorar todo o contexto histórico Quando a sugestão de Aristarco foi feita o sistema geocêntrico imensamente mais razoável naquele momento 77 Whittaker op cit I 386410 e II London 1953 pp 2740 78 Para o trabalho de Aristarco ver T L Heath Aristarchus of Samus The Ancient Copernicus Oxford 1913 parte II Para uma exposição extremista da posição tradicional sobre a negligência do feito de Aristarco ver Arthur Koestler The Sleepwalkers A History of Mans Changing Vision of the Universe London 1959 79 não apresentava nenhuma necessidade que só um sistema heliocêntrico pudesse satisfazer mesmo conceitualmente Todo o desenvolvimento da astronomia ptolomaica incluindo seus triunfos e seu colapso situase nos séculos que se seguiram à proposta de Aristarco Até mesmo a proposta heliocêntrica mais elaborada de Copérnico não era nem mais simples nem mais precisa que a de Ptolomeu Como veremos mais claramente abaixo os testes observacionais disponíveis não ofereciam qualquer base para uma escolha entre elas Nessas circunstâncias um dos fatores que levaram os astrônomos ao copernicanismo um fator que não poderia têlos levado ao heliocentrismo de Aristarco foi a reconhecida crise que respondeu em primeiro lugar pela inovação A astronomia ptolomaica tinha fracassado na resolução de seus problemas Chegara o tempo de dar uma chance a um competidor Nossos outros dois exemplos não apresentam antecipações similares tão completas Mas seguramente uma das razões por que as teorias da combustão por absorção da atmosfera teorias desenvolvidas no século dezessete por Rey Hooke e Mayow fracassaram em obter audiência suficiente foi não terem feito nenhum contato com algum foco reconhecido de dificuldade na prática da ciência normal 79 A longa negligência aos críticos relativistas de Newton pelos cientistas dos séculos dezoito e dezenove também foi devida em larga medida ao fracasso de um contato similar Os filósofos da ciência têm demonstrado repetidamente que mais de uma construção teórica sempre pode ser acoplada a uma determinada coleção de dados A história da ciência indica que nem chega a ser difícil inventar tais alternativas particularmente nos estágios iniciais de desenvolvimento de um novo paradigma Mas a invenção de alternativas é exatamente o que os cientistas raramente fazem exceto durante o estágio préparadigma do desenvolvimento de suas ciências e em ocasiões muito especiais de sua evolução subsequente Na medida em que as ferramentas que o paradigma oferece continuam a se mostrar capazes de resolver os problemas que o próprio paradigma define a ciência se move mais rapidamente e penetra mais profundamente com o emprego confiante desse paradigma A razão disso é clara Na indústria como na ciência a substituição das ferramentas é uma extravagância a ser reservada apenas para uma ocasião que vier a demandála O significado das crises é a indicação que elas fornecem de que uma ocasião para a substituição das ferramentas chegou 79 Partington op cit pp 7885 80 VIII A Resposta à Crise Vamos presumir que as crises sejam uma precondição necessária para a emergência de teorias inovadoras e em seguida perguntar como os cientistas respondem à sua existência Parte da resposta tão óbvia quanto importante pode ser descoberta quando observamos aquilo que os cientistas nunca fazem quando confrontados com anomalias que podem ser até mesmo severas e prolongadas Embora eles possam começar a perder a fé e por consequência começar a considerar alternativas eles não renunciam ao paradigma que os levou à crise Isto é eles não tratam as anomalias como contraexemplos embora no vocabulário da filosofia da ciência seja exatamente isso que elas são Em parte essa generalização é simplesmente o enunciado de um fato histórico baseado em exemplos como os dados acima e ainda mais extensivamente abaixo Esses exemplos já insinuam aquilo que o exame da rejeição do paradigma que faremos mais tarde vai revelar mais completamente Isto é uma teoria científica uma vez atingido o status de paradigma só é declarada inválida se uma candidata alternativa já estiver disponível para ocupar o seu lugar Nenhum processo explicitado até agora pelo estudo histórico do desenvolvimento científico chega a se assemelhar ao estereótipo metodológico da falsificação pela comparação direta com a natureza Essa observação não significa que os cientistas não rejeitem teorias científicas ou que a experiência e o experimento não sejam essenciais para o processo em que eles agem dessa maneira Mas essa observação significa o que no fim das contas vai ser um ponto fundamental que o ato de ajuizar que leva os cientistas a rejeitar uma teoria previamente aceita será sempre baseado em muito mais do que uma comparação da teoria com o mundo A decisão de rejeitar um paradigma é sempre ao mesmo tempo a decisão de aceitar um outro paradigma O ajuizamento que leva a tal decisão envolve a comparação de ambos os paradigmas com a natureza e também a comparação de ambos os paradigmas entre si Em acréscimo há uma segunda razão para duvidar que cientistas rejeitem paradigmas porque são confrontados por anomalias ou contraexemplos Ao desenvolver essa segunda razão meu argumento vai prefigurar uma outra das principais teses desse ensaio As razões para dúvida esboçadas acima foram puramente fatuais Ou seja elas foram contraexemplos de uma teoria epistemológica que prevalece Assim se minha presente posição está correta elas podem no 81 máximo ajudar a criar uma crise ou mais precisamente a reforçar uma crise que em grande medida já existe Elas não podem por si mesmas falsificar essa teoria filosófica porque seus defensores farão exatamente aquilo que já vimos os cientistas fazer quando são confrontados pela anomalia Eles vão elaborar numerosas articulações e modificações ad hoc para a sua teoria no intento de eliminar qualquer conflito aparente De fato muitas dessas modificações e qualificações relevantes já estão presentes na literatura Se portanto esses contraexemplos epistemológicos devem constituir algo mais que um irritante secundário será porque eles estarão contribuindo para tornar permissível a emergência de uma análise nova e diferente da ciência dentro da qual eles já não serão mais uma fonte de dificuldade Ademais se um padrão típico que observaremos mais tarde nas revoluções científicas é aplicável aqui então essas anomalias simplesmente já não mais parecerão fatos De dentro de uma nova teoria do conhecimento em vez disso elas podem parecer muitíssimo com tautologias Isto é podem parecer muitíssimo com enunciados de situações que não se conseguiria conceber que pudessem ter sido de outra forma Ainda que tenha tomado séculos de difícil pesquisa fatual e teórica para ser articulada já foi frequentemente observado por exemplo que a segunda lei do movimento de Newton se comporta em grande medida como um enunciado puramente lógico que nenhuma quantidade de observação poderia refutar pelo menos para aqueles que praticam ciência no marco da teoria newtoniana 80 Na Seção X veremos que a lei química das proporções fixas que antes de Dalton era um achado experimental ocasional de generalidade muito duvidosa tornouse depois do trabalho de Dalton um ingrediente de uma definição de composto químico que nenhum trabalho experimental poderia por si mesmo perturbar Algo muito parecido com isso vai acontecer com a generalização de que os cientistas não conseguem rejeitar paradigmas quando se deparam com anomalias ou contraexemplos Embora seja pouco provável que a história tenha registrado seus nomes sem dúvida algumas pessoas foram compelidas a desertar da ciência por causa da sua inabilidade em tolerar crises Como os artistas os cientistas criativos devem ocasionalmente ser capazes de viver em um mundo fora dos eixos Em outro lugar cheguei a descrever essa necessidade como a tensão essencial 80 Ver particularmente a discussão de N R Hanson Patterns of Discovery Cambridge 1958 pp 99105 82 implícita na investigação científica 81 Mas a rejeição da ciência em favor de uma outra ocupação é penso o único tipo de rejeição de paradigma a que os contraexemplos podem levar por si mesmos Uma vez encontrado um primeiro paradigma que nos ofereça o meio para investigar a natureza e já não poderá mais haver pesquisa feita na ausência de um paradigma qualquer Rejeitar um paradigma sem simultaneamente substituílo por um outro é rejeitar a própria ciência Tal ato voltase contra a pessoa e não contra o paradigma Inevitavelmente essa pessoa será vista pelos colegas como o carpinteiro que põe a culpa em suas ferramentas O mesmo tópico pode ser apresentado ao reverso mas com não menos efetividade não pode haver uma coisa tal como pesquisa sem contraexemplos O que é mesmo que diferencia a ciência normal da ciência em estado de crise Certamente não é porque a ciência normal não se confronta com contraexemplos Pelo contrário aquilo que anteriormente denominamos as charadas que constituem a ciência normal só existem porque nenhum paradigma que fornece a base para a pesquisa científica chega a resolver completamente todos os seus problemas Os pouquíssimos paradigmas que aparentemente chegaram a fazer isso por exemplo a ótica geométrica cessaram rapidamente de produzir qualquer problema de pesquisa tornandose em vez disso ferramentas para engenharia Excetuando aqueles que dizem respeito apenas aos instrumentos de investigação todo problema que a ciência normal vê como uma charada também pode ser visto de um outro ponto de vista como um contraexemplo e desse modo como uma fonte de crise Copérnico viu como contraexemplos aquilo que a maioria dos outros sucessores de Ptolomeu tinha visto como charada na compatibilização da observação com a teoria Lavoisier viu como contraexemplo aquilo que Priestley vira como uma charada de resolução bem sucedida na articulação da teoria do flogisto Einstein viu como contraexemplo aquilo que Lorentz Fitzgerald e outros tinham visto como charadas na articulação das teorias de Newton e de Maxwell Ademais mesmo a existência de crise não transforma por si mesma uma charada num contraexemplo Não há uma tal linha divisória nítida Em vez disso ao proliferar as versões do paradigma a crise flexibiliza as regras da resolução normal de charadas em sentidos que em última instância permitirão que um novo paradigma emerja Penso que haja 81 T S Kuhn The Essential Tension Tradition and Innovation in Scientific Research in The Third 1959 University of Utah Research Conference on the Identification of Creative Scientifc Talent ed Calvin W Taylor Salt Lake City 1959 pp 16277 Para um fenômeno comparável entre os artistas ver Frank Barron The Psychology of Imagination Scientific American CXCIX September 1958 15166 esp 160 83 somente duas alternativas ou nenhuma teoria científica chega a confrontar um contraexemplo ou todas as teorias científicas confrontam contraexemplos a todo momento Como pode a situação terse mostrado de maneira diferente Essa questão necessariamente leva à elucidação histórica e crítica da filosofia mas esses tópicos estão barrados aqui Nós podemos contudo pelo menos apontar duas razões pelas quais a ciência pareceu fornecer uma ilustração tão apropriada da generalização que afirma que verdade e falsidade são única e inequivocamente determinadas pela confrontação do enunciado com o fato A ciência normal empenhase e deve empenharse continuamente em levar a teoria e o fato a um acordo cada vez mais estreito Assim essa atividade pode ser vista facilmente como teste ou como busca de confirmação ou de falsificação Apesar disso o objetivo da ciência normal é resolver charadas para cuja existência mesma a validade do paradigma deve ser presumida Um fracasso na obtenção de uma solução desacredita apenas o cientista não a teoria Aqui ainda mais que acima se aplica o provérbio que afirma que quem põe a culpa nas ferramentas é um pobre carpinteiro Ademais a maneira como a pedagogia da ciência enreda a discussão de uma teoria em observações sobre suas aplicações exemplares tem ajudado a reforçar uma teoria da confirmação extraída predominantemente de outras fontes Dada a mais ínfima razão para assim fazer a pessoa que lê um texto científico pode facilmente considerar que as aplicações sejam evidências da teoria isto é razões pelas quais a teoria deveria ser acreditada Mas os estudantes de ciência aceitam as teorias com base na autoridade do professor e com base na autoridade do texto não por causa de evidência Que alternativas eles teriam Ou que competência As aplicações apresentadas nos livros didáticos não estão lá por serem evidências mas porque aprendêlas é parte da aprendizagem do paradigma que está na base da prática científica corrente Se as aplicações fossem expostas como evidência então a própria negligência dos manuais em sugerir interpretações alternativas ou discutir problemas para os quais os cientistas fracassaram na produção de soluções paradigmáticas acusaria seus autores de extrema parcialidade Mas não há a menor razão para tal indiciamento Como então para retornar à questão inicial os cientistas respondem à consciência de uma anomalia no acordo entre a teoria e a natureza O que acabou de ser dito indica que mesmo uma discrepância desproporcionalmente maior que a experimentada em outras aplicações da teoria não precisa requerer uma resposta muito 84 profunda qualquer que seja ela Sempre há algumas discrepâncias Mesmo as discrepâncias mais obstinadas acabam em geral respondendo à prática científica normal Muito frequentemente os cientistas dispõemse a esperar particularmente se há muitos problemas disponíveis em outras partes de seu campo Já observamos por exemplo que durante os sessenta anos posteriores ao cálculo original de Newton o movimento previsto do perigeu da Lua permaneceu só a metade daquilo que a observação media Enquanto os melhores físicos matemáticos da Europa mantiveramse numa luta mal sucedida com essa discrepância bem conhecida apareceram propostas ocasionais para modificar a lei newtoniana do quadrado inverso Mas ninguém levou muito a sério tais propostas e na prática a paciência com essa anomalia relevante comprovouse justificada Em 1750 Clairaut foi capaz de mostrar que somente a matemática da aplicação estava errada e que a teoria de Newton poderia permanecer como antes 82 Mesmo nos casos em que sequer um mero erro pareceria possível 83 uma anomalia persistente e reconhecida nem sempre induz à crise Ninguém questionou seriamente a teoria newtoniana por causa das discrepâncias por longo tempo reconhecidas entre as predições da teoria e a velocidade do som e entre as predições da teoria e o movimento de Mercúrio A primeira discrepância foi por fim e inesperadamente resolvida através de experimentos sobre o calor realizados com um propósito muito diferente A segunda desvaneceuse com a teoria geral da relatividade depois de uma crise em cuja criação ela não teve papel algum 84 Aparentemente nenhuma delas pareceu suficientemente fundamental para desencadear a inquietação que acompanha uma crise Poderiam ter sido reconhecidas como contraexemplos e ainda assim ser postas de lado para trabalho posterior Disso se segue que quando é para uma anomalia desencadear uma crise em geral ela deve ser bem mais que uma simples anomalia Em algum ponto sempre vai haver dificuldades no ajuste paradigmanatureza A maioria dessas dificuldades é superada mais cedo ou mais tarde Com frequência isso ocorre através de processos que nem poderiam ter sido previstos O cientista que parasse para examinar toda anomalia que encontrasse raramente conseguiria fazer 82 W Wheewel History of the Inductive Sciences rev ed London 1847 II pp 2201 83 Talvez porque a matemática envolvida é mais simples ou de um tipo que já se tornou familiar em algum outro campo 84 Para a velocidade do som ver T S Kuhn The Caloric Theory of Adiabatic Compression Isis XLIV 1958 pp 13637 Para a mudança secular no periélio de Mercúrio ver E T Whittaker A History of the Theories of Æther and Electricity II London 1953 pp 151 179 85 algum trabalho significativo Portanto temos que perguntar o que faz uma anomalia parecer digna de investigação conjunta por parte dos cientistas Para essa pergunta no entanto provavelmente não haja uma resposta que valha para todos os casos Os casos que examinamos são característicos mas dificilmente poderiam ser considerados prescritivos Às vezes uma anomalia porá em questão generalizações explícitas e fundamentais do paradigma como foi o caso do problema do arrasto no éter para aqueles que aceitaram a teoria de Maxwell Ou então como no caso da revolução copernicana uma anomalia sem importância científica fundamental pode desencadear uma crise quando as aplicações que ela frustra têm uma importância prática especial Nesse caso a anomalia tinha importância prática para a projeção do calendário e para a astrologia Ou ainda como na química do século dezoito o desenvolvimento da ciência normal pode transformar uma anomalia que anteriormente não fora mais que uma preocupação secundária em uma fonte de crise Refirome ao problema das relações de peso que adquiriu um status muito diferente depois da evolução das técnicas da química pneumática Podemos presumir que ainda haja outras circunstâncias que podem tornar particularmente premente uma anomalia e várias dessas circunstâncias poderão combinarse Já notamos por exemplo que uma fonte da crise enfrentada por Copérnico foi a simples extensão prolongada do período de tempo durante o qual os astrônomos empenharamse sem sucesso na redução das discrepâncias residuais do sistema de Ptolomeu Quando por essas razões e outras como elas uma anomalia deixa de parecer apenas mais uma charada da ciência normal já teve início a transição para a crise e para a ciência extraordinária Nesse momento a própria anomalia já é reconhecida enquanto tal pela profissão Cada vez mais atenção lhe é devotada por um número cada vez maior dentre as mais eminentes pessoas do campo em que ela aparece Se a anomalia continua a resistir o que não é usual muitas delas chegam a ver sua resolução como o objeto de sua disciplina Para tais cientistas o campo de investigação já não vai mais se assemelhar exatamente àquilo que era anteriormente Em parte sua aparência diferente resulta basicamente do novo ponto em que se fixa a investigação científica Uma fonte ainda mais importante de mudança está na natureza divergente das numerosas soluções parciais que a concatenação das atenções sobre o problema disponibiliza Os primeiros ataques ao problema resistente certamente terá seguido as regras do paradigma muito de perto Mas com a continuação da resistência um número cada vez maior dos 86 ataques ao problema terá envolvido alguma articulação menor ou não tão menor do paradigma Nenhuma delas será muito parecida com a outra Cada uma delas poderá ter sucesso parcial mas nenhuma delas terá sucesso suficiente para ser aceita como paradigma pelo grupo Através dessa proliferação de articulações divergentes cada vez mais elas serão descritas como ajustes ad hoc as regras da ciência normal tornamse crescentemente desfocadas Embora ainda haja um paradigma poucos cientistas mostramse claramente concordes a respeito do que ele seja Mesmo soluções de problemas resolvidos anteriormente soluções que eram tomadas como padrão são postas em questão Quando se torna aguda essa situação chega a ser por vezes reconhecida pelos cientistas envolvidos Copérnico reclamava que em sua época os astrônomos eram tão inconsistentes em suas investigações astronômicas que eles não conseguem explicar ou observar nem mesmo a periodicidade anual Com eles ele continuava acontece como quando um artista reúne mãos pés cabeça e outros membros a partir de diversos modelos para compor suas imagens Cada parte está excelentemente desenhada mas elas não se combinam na unidade de um corpo E uma vez que essas partes não se ajustam umas às outras o resultado só pode ser um monstro e não um homem 85 Inibido pelo uso corrente de uma linguagem menos florida Einstein só escreveu que Foi como se o chão tivesse sumido debaixo dos pés não se podendo ver em lugar algum uma base sólida sobre a qual construir 86 E Wolfgang Pauli nos meses que antecederam o artigo de Heisenberg sobre mecânica matricial que apontou o caminho para uma nova mecânica quântica escreveu para um amigo que No momento a física se encontra de novo em terrível confusão De qualquer modo tem sido muito difícil para mim Desejaria ter sido um comediante de cinema ou algo assim sem nunca ter ouvido falar de física Esse testemunho é particularmente impressionante quando contrastado com as palavras do mesmo Pauli menos de cinco meses depois O tipo de mecânica de Heisenberg deume novamente esperança e alegria de viver É certo que ele não oferece uma solução para o enigma mas eu acredito ser possível marchar para a frente de novo 87 85 Citado em T S Kuhn The Copernican Revolution Cambridge Mass 1957 p 138 86 Albert Einstein Autobiographical Note em Albert Einstein PhilosopherScientist ed P A Schilpp Evanston Ill 1949 p 45 87 Ralph Kronig The Turning Point em Theoretical Physics in the Twentieth Century A Memorial Volume to Wolfgang Pauli ed M Fierz e V F Weisskopf New York 1960 pp 22 256 Boa parte desse artigo descreve a crise na mecânica quântica durante os anos imediatamente anteriores a 1925 87 Reconhecimentos explícitos de falência como essas são extremamente raros Todavia os efeitos de uma crise não dependem inteiramente de seu reconhecimento consciente O que podemos dizer sobre o que são esses efeitos Só dois deles parecem ser universais Todas as crises começam com o paradigma se tornando cada vez mais vago e em virtude disso desenvolvendo um consequente afrouxamento das regras da ciência normal Isto posto a pesquisa realizada durante a crise se parece muito com a pesquisa do período préparadigma ainda que o seu foco de investigação seja menor e mais claramente definido Acrescentemos que todas as crises encerramse em um dos três modos seguintes Às vezes a ciência normal acaba por se mostrar capaz de lidar com o problema provocador da crise a despeito do desespero daqueles que o viram como o fim do paradigma existente Em outras ocasiões o problema resiste mesmo com abordagens novas e aparentemente radicais Então os cientistas concluem que não terão solução à vista no presente estado de seu campo O problema é etiquetado e posto de lado para uma geração futura que disponha de ferramentas mais desenvolvidas Ou finalmente e esse é o caso que mais nos interessa aqui a crise pode desembocar no desenvolvimento de novos candidatos a paradigma e na batalha que se segue em prol da aceitação de um deles por toda a comunidade científica Esse último modo de encerramento de uma crise vai ser considerado extensivamente nas últimas seções desse ensaio mas devemos antecipar um aperitivo do que diremos nelas para completar essas notas sobre a evolução e a anatomia do estado de crise A transição de um paradigma em crise para um novo paradigma a partir do qual possa emergir uma nova tradição de ciência normal está longe de ser um processo cumulativo Ou seja está longe de ser um processo realizado pela articulação ou extensão do velho paradigma Tratase de uma reconstrução do campo a partir de uma nova fundamentação Uma reconstrução que muda algumas das generalizações teóricas mais elementares do campo científico assim como muitos de seus métodos e aplicações paradigmáticos Durante o período de transição haverá uma intersecção grande mas nunca completa entre os problemas que podem ser resolvidos pelo velho paradigma e os problemas que podem ser resolvidos pelo novo paradigma Mas haverá também uma diferença decisiva na maneira de solucionar os problemas Quando a transição se completa a profissão terá mudado a concepção de seu campo científico seus métodos e seus objetivos Um historiador atento examinando um caso clássico de reorientação de uma ciência por mudança 88 paradigmática descreveuo como segurar a outra ponta do bastão ou seja um processo que envolve manipular o mesmo agregado de dados que antes mas por lhe dar um marco estrutural diferente situandoo em um novo sistema de relações mútuas 88 Outros que também notaram esse aspecto do avanço científico enfatizaram sua similaridade com uma conversão na configuração visual Gestalt switch Os riscos no papel que antes eram vistos como um pássaro agora são vistos como um antílope e viceversa 89 Todavia esse paralelo pode nos iludir Os cientistas não veem algo como algo diferente Eles apenas veem algo Já examinamos alguns dos problemas que são criados quando se diz que Priestley viu oxigênio como ar desflogistizado Ademais o cientista não preserva a liberdade subjetiva de figurar visualmente para alternar entre a frente e o verso das maneiras de ver Não obstante a alternância entre figurações visuais particularmente porque isso é tão familiar hoje em dia é um protótipo elementar útil para o que ocorre em uma transformação paradigmática em larga escala O adiantamento que acabamos de fazer pode nos ajudar a reconhecer a crise como um prelúdio plausível para a emergência de novas teorias Particularmente por já termos examinado a versão em pequena escala do mesmo processo quando discutimos a emergência das descobertas científicas Precisamente porque a emergência de uma nova teoria rompe com uma tradição de prática científica e introduz uma nova tradição conduzida sob regras diferentes e dentro de um universo discursivo diferente é de se imaginar que isso ocorra somente quando a tradição científica mais antiga é sentida como tendo se desestruturado severamente Essa nota entretanto não é mais que a preliminar de uma investigação do estado de crise As questões a que ela conduz desafortunadamente exigem muito mais a competência do psicólogo que a competência do historiador Como é a pesquisa extraordinária Como os cientistas procedem quando tomam consciência de que algo deu errado num nível tão fundamental que o seu treinamento não os equipou para lidar com a situação Tais questões requerem muito mais investigação e essa investigação não deveria ser exclusivamente histórica O que se segue vai ser muito mais conjetural e menos completo do que aquilo que expusemos antes Pelo menos em embrião geralmente um novo paradigma emerge antes que uma crise se tenha desenvolvido o bastante ou sido explicitamente reconhecida O trabalho de Lavoisier fornece um caso 88 Herbert Butterfield The Origins of Modern Science 13001800 London 1949 pp 1 7 89 Hanson op cit cap i 89 assim Sua nota selada foi depositada na Academia Francesa menos de um ano depois do primeiro estudo exaustivo das relações de peso na teoria do flogisto e antes que as publicações de Priestley tivessem revelado toda a extensão da crise na química pneumática E ainda as primeiras formulações que Thomas Young fez da teoria ondulatória da luz apareceram num estágio muito inicial de uma crise em desenvolvimento na ótica Essa crise passaria quase despercebida a não ser pelo fato que não teve qualquer participação de Young de que ela se transformou num escândalo científico internacional uma década após os seus primeiros escritos Em casos como esse podese dizer que uma perturbação menor do paradigma e o estágio mais inicial do relaxamento das regras da ciência normal foram suficientes para induzir em alguém uma nova maneira de olhar o seu campo científico Muito daquilo que se interpôs entre a primeira percepção da encrenca e o reconhecimento de uma alternativa deve ter sido em grande medida inconsciente Em outros casos entretanto como os casos de Copérnico de Einstein e da teoria nuclear contemporânea por exemplo um tempo considerável transcorre entre a primeira consciência de desarranjo e a emergência de um novo paradigma Quando isso ocorre o historiador pelo menos pode captar algumas indicações de como é a ciência extraordinária Defrontado com uma anomalia que em teoria é supostamente fundamental geralmente o primeiro esforço do cientista vai ser individualizála com maior precisão e lhe dar uma estrutura Ainda que agora esteja consciente de que elas possam não se mostrar as mais adequadas o cientista vai pressionar as regras da ciência normal com mais determinação que nunca para na área da dificuldade ver com precisão onde e até que ponto pode fazêlas funcionar Simultaneamente o cientista vai procurar maneiras de amplificar a área colapsada tornála mais nítida e talvez também mais sugestiva do que foi quando mostrada nos experimentos cujos resultados pensavase conhecer antecipadamente Por fim no derradeiro esforço mais do que em qualquer outra parte do desenvolvimento pósparadigma da ciência ele ficará muito parecido com a imagem mais usual que temos do cientista Em primeiro lugar com frequência ele vai parecer uma pessoa que procura aleatoriamente tentando diferentes experimentos só para ver o que acontece e procurando por algum efeito cuja natureza ele não pode estimar Ao mesmo tempo já que nenhum experimento pode ser concebido sem algum tipo de teoria o cientista em crise vai constantemente tentar produzir teorias especulativas que se bem 90 sucedidas podem abrir caminho para um novo paradigma e se mal sucedidas podem ser descartadas com relativa tranquilidade A exposição feita por Kepler de sua prolongada batalha com o movimento de Marte e a resposta de Priestley sobre a proliferação de novos gases fornecem exemplos clássicos do tipo de pesquisa mais aleatória produzida pela consciência da anomalia 90 Mas provavelmente as melhores ilustrações entre todas vêm da pesquisa contemporânea na teoria do campo e sobre partículas fundamentais O imenso esforço exigido para detectar o neutrino pareceria justificado se não fosse uma crise que tornou necessário ver até que ponto as regras da ciência normal poderiam ser esticadas Se as regras não tivessem sido tão obviamente quebradas em algum ponto não revelado teria a hipótese radical da não conservação da paridade sido sequer sugerida ou testada Esses experimentos foram em parte tentativas de localizar e definir a fonte de um conjunto ainda difuso de anomalias do mesmo modo que muitas outras pesquisas da física durante a década passada Esse tipo de pesquisa extraordinária geralmente é acompanhado por outro ainda que nem sempre isso ocorra Penso ser nos períodos em que a crise já foi reconhecida que os cientistas voltamse para a análise filosófica como um dispositivo para decifrar os enigmas do seu campo Normalmente os cientistas não precisariam ou desejariam ser filósofos Com efeito a ciência normal habitualmente mantém a filosofia criativa a uma certa distância provavelmente por boas razões Na medida em que o trabalho de investigação normal pode ser conduzido com o uso do paradigma como modelo regras e suposições não precisam ser explicitadas Na Seção V falamos que todo o conjunto de regras procurado pela análise filosófica não precisa nem mesmo existir Mas isso não quer dizer que a busca dos pressupostos mesmo os que não existem não possa ser um jeito eficaz de enfraquecer as garras da tradição cravadas na mente do cientista e sugerir as bases de uma nova tradição de pesquisa Não é acidente que a emergência da física newtoniana no século dezessete e a emergência das mecânicas relativista e quântica no século vinte tivessem que ser precedidas e acompanhadas por análises filosóficas dos fundamentos da tradição de pesquisa então vigente 91 Nem é um acidente que nesses dois períodos 90 Para uma exposição do trabalho de Kepler sobre Marte ver J L E Dreyer A History of Astronomy from Thales to Kepler 2d ed New York 1953 pp 38093 Imprecisões ocasionais não impedem que a síntese de Dreyer ofereça o material que necessitamos aqui Para Priestley ver seu próprio trabalho especialmente Experiments and Observations on Different Kinds of Air London 17741775 91 Para o contraponto filosófico que acompanhou a mecânica do século dezessete ver René Dugas La mécanique au XVIIe siècle Neuchâtel 1954 particularmente o cap 91 o assim chamado experimento em pensamento tenha exercido um papel tão crítico no desenvolvimento da pesquisa Como mostrei em outro lugar a experimentação analítica em pensamento que é tão proeminente nos escritos de Galileu Einstein Bohr e outros é inteiramente calculada para expor o velho paradigma ao conhecimento existente de modo a isolar a raiz da crise com uma clareza que não pode ser obtida no laboratório 92 Com o desenvolvimento isoladamente ou em conjunto desses procedimentos extraordinários pode ocorrer uma outra coisa Ao concentrar a atenção científica sobre uma área problemática restrita e ao preparar a mente científica para reconhecer anomalias experimentais pelo que elas são a crise geralmente faz as descobertas proliferarem Nós já observamos como a consciência da crise distingue o trabalho de Lavoisier sobre o oxigênio do trabalho de Priestley Ademais o oxigênio não foi o único gás que os químicos conscientes da crise foram capazes de descobrir no trabalho de Priestley E também novas descobertas da ótica acumularamse rapidamente pouco antes e durante a emergência da teoria ondulatória da luz Algumas dessas descobertas como a polarização por reflexo foram o resultado de acidentes que o trabalho concentrado numa área encrencada torna prováveis 93 Outras descobertas como o foco de luz no centro da sombra de um disco circular foram predições feitas a partir da nova hipótese O sucesso dessas predições ajudou a transformar a nova hipótese em um paradigma a ser daí por diante elaborado Ainda podemos indicar outras descobertas como as cores de ranhuras e de placas grossas que eram efeitos que antes já eram vistos com frequência e às vezes eram registrados mas que como o oxigênio de Priestley foram assimilados a outros efeitos já bem conhecidos de maneiras que impediram que fossem vistos pelo que eram 94 Um relato similar poderia ser feito das múltiplas descobertas que foram uma concomitante permanente da emergência da mecânica quântica desde cerca de 1895 A pesquisa extraordinária ainda deve ter outras manifestações e efeitos mas nessa área nós mal começamos a xi Para o episódio similar do século dezenove ver o livro anterior do mesmo autor Histoire de la mécanique Neuchâtel 1950 pp 41943 92 T S Kuhn A Function for Thought Experiments in Mélanges Alexandre Koyré ed R Taton e I B Cohen a ser publicado pela Hermann Paris em 1963 93 Malus o descobridor da polarização por reflexo estava apenas começando o seu trabalho de preparação do ensaio para o prêmio da Academia sobre a refração dupla um assunto amplamente reconhecido pelo seu estado insatisfatório 94 Para as novas descobertas da ótica em geral ver V Ronchi Histoire de la lumière Paris 1956 cap vii Para uma explicação anterior de um desses efeitos ver J Priestley The History and Present State of Discoveries Relating Vision Light and Colours London 1772 pp 498520 92 descobrir as questões que precisam ser feitas Se bem que talvez nada mais seja necessário acrescentar nesse ponto As observações precedentes deveriam ser suficientes para mostrar como a crise simultaneamente fragiliza os estereótipos e fornece os dados adicionais para uma mudança de paradigma a partir dos fundamentos Às vezes a forma do novo paradigma é antecipada na estrutura que a pesquisa extraordinária deu à anomalia Einstein escreveu que antes que ele tivesse um substituto para a mecânica clássica já podia ver a interrelação entre as anomalias conhecidas da radiação do corpo negro o efeito fotoelétrico e calores específicos 95 Em geral uma estrutura como essa não é conscientemente visualizada antes da hora Em vez disso o novo paradigma ou uma proposta suficientemente desenvolvida dele para permitir articulação posterior emerge todo de uma vez na mente de uma pessoa profundamente imersa na crise às vezes no meio da noite Qual a natureza desse estágio final isto é como um indivíduo inventa ou acha que inventou uma nova maneira de dar ordem aos dados que agora já estão todos concatenados deve permanecer inescrutável aqui e isso pode ficar permanentemente assim Aqui vamos considerar apenas uma coisa sobre esse estágio final Quase sempre as pessoas que realizaram essas invenções fundamentais de um novo paradigma ou eram muito jovens ou muito novas no campo cujo paradigma elas mudam 96 Talvez esse ponto nem precise ser explicitado pois obviamente se trata de pessoas que por estarem em decorrência de sua prática anterior pouco comprometidas com as regras tradicionais da ciência normal são particularmente suscetíveis de ver que as regras da ciência normal já não definem um jogo que possa ser jogado e para conceber um novo conjunto de regras que possa substituílas A transição que resulta em um novo paradigma é uma revolução científica um assunto que finalmente estamos preparados para abordar diretamente Primeiro notemos contudo um último e aparentemente enganador aspecto para o qual as últimas três seções prepararam o caminho Até a Seção VI em que o conceito de anomalia foi introduzido pela primeira vez os termos revolução e 95 Einstein loc cit 96 Essa generalização do papel da juventude na pesquisa científica fundamental é tão comum a ponto de se tornar um clichê Como se não bastasse uma olhadinha em quase toda lista de contribuições fundamentais à teoria científica vai fornecer uma confirmação impressionista Não obstante a generalização requer investigação sistemática em uma escala maior Harvey C Lehman Age and Achievement Princeton 1953 fornece muitos dados úteis Mas seus estudos não procuram individualizar as contribuições que envolvem reconceituação fundamental Nem inquirem sobre as circunstâncias especiais se é que há alguma que podem acompanhar uma produtividade individual relativamente tardia nas ciências 93 ciência extraordinária podem ter parecido equivalentes O mais relevante é que nenhuma dessas duas expressões pareceu significar mais que ciência não normal numa circularidade que certamente terá incomodado pelo menos alguns imagino que poucos leitores Na prática essa circularidade não precisaria ter feito isso Estamos próximos de descobrir que uma circularidade semelhante é característica das teorias científicas Incomodativa ou não contudo essa circularidade acabou sendo qualificada A presente seção do ensaio e as duas seções precedentes destacaram numerosos critérios para a identificação de um colapso da atividade da ciência normal Critérios que de modo algum dependem de que o colapso seja seguido de uma revolução Quando confrontados com uma crise os cientistas tomam uma atitude diferente para com os paradigmas existentes E a natureza da sua pesquisa mudará correspondentemente A proliferação de articulações concorrentes a determinação de tentar qualquer coisa a clara manifestação de descontentamento e o recurso à filosofia e ao debate sobre os fundamentos são todos sintomas de uma transição da ciência normal para a ciência extraordinária A noção de ciência normal depende mais de todas essas coisas que da noção de revoluções