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Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 3 Aproximação de João Cabral Jean Pierre Chauvin Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Autor para correspondência tupianouspbr RESUMO Neste artigo discutemse modos de analisar e interpretar a poesia de João Cabral de Melo Neto 19201999 As reflexões respaldamse na fortuna crítica e envolvem experiências na preparação dos conteúdos formais e sua discussão em sala de aula Tratase de versos a veicular poderosas metáforas escoradas em sintaxe econômica e cuja sonoridade é reforçada por aliterações Elementos recorrentes em sua obra a exemplo do rio da pedra e da luz demandam leitura atenta e cerebrina o que não impede ao leitor experimentar agradáveis sensações simultaneamente ao que a poesia diz sugere e ensina Palavraschave Poesia Brasileira João Cabral de Melo Neto Crítica Ensino ABSTRACT In this article we discuss some ways of analyzing and to interpretate João Cabral de Melo Netos poetry 1920 1999 These reflections are based on a critical fortune and involve experiences in the preparation of formal contents and their discussion in the classroom These verses are a shelter to powerful metaphors espoused in economic syntax whose sonority is reinforced by alliterations Recurring elements in his work like the river the stone and the light demand an attentive and cerebral reading which doesnt prevent the reader from experiencing pleasant sensations simultaneously to what poetry says suggests and teaches Keywords Brazilian Poetry João Cabral de Melo Neto Criticism Teaching As steadyas I can wish that my thoughts were Smooth as thy mistress glass or what shines there The sea is now and as the isles which we Seek when we can move our ships rooted be John Donne1 Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi Não vi nada Só o campo liso às vácuas aberto como o sol água limpíssima à dispersão da luz João Guimarães Rosa2 Um canavial tem a extensão ante a qual todo metro é vão João Cabral de Melo Neto3 Aula O que se vai ler é em síntese a versão par cial do discurso que preside as aulas sobre João Cabral de Melo Neto 19201999 com ênfase em sua vasta produção poética Redigido sob a forma ensaística o texto tenta reproduzir ordenadamente os momentos praticados em sala como fruto da preparação das aulas e da convivência com os alu nos que cursam a disciplina Cultura e Literatura Brasileira República ministrada na Escola de Comunicações e Artes da USP desde 20144 Apresentado o tema tratemos de sua disposi ção 1 As aulas em questão dividemse em cinco etapas Na primeira este professor compartilha com os alunos material impresso que contém dez poemas de João Cabral A ideia é favorecer o con tato inicial dos estudantes com os versos A seleção abrange livros publicados em etapas distantes da carreira do poeta 2 Disponibilizados os textos o professor resu me e comenta alguns lances biográficos do escri tor e diplomata pernambucano para em seguida 4 discutir as fases em que a sua obra costuma ser dividida segundo os historiadores e críticos lite rários Nessa ocasião o professor entrega alguns ensaios críticos que circulam na sala 3 Dirimidas as questões iniciais relativas à car reira do poeta e discutidos alguns conceitos que caracterizam a sua produção passase à leitura dos textos Nesse momento solicitase aos alunos que se revezem espontaneamente na declamação dos versos recebidos orientandoos conforme o caso a enfatizarem modos alternativos de ler poesia o que envolve ritmo de leitura entonação cesura etc 3 1 Para ilustrar outros modos de apreender o que o texto diz o professor compartilha com os estudantes a releitura de alguns excertos com vis tas a ressignificar determinadas imagens e temas recorrentes nos versos cabralinos A análise recai sobre os aspectos formais gêneros poéticos esti lísticos semânticos sintáticos gráficos e sonoros sugeridos pelos textos 4 Por se tratar de uma escrita prenhe de con ceitos e metáforas sutis os poemas costumam ser retomados de maneira a esclarecer o sentido de passagens cuja compreensão não seja simples ou imediata Nesse sentido à medida que os estu dantes se alternam na leitura dos versos o pro fessor relaciona palavras no quadro lousa que acumulam sentidos e estabelecem relações por vezes distantes 5 O contato com a poesia cabralina demanda retrabalho Uma das razões é que seus versos cos tumam contrariar os lugarescomuns e desafiam a sensibilidade e inteligência do leitor como o pró prio escritor confessou em mais de uma ocasião Tendo lido anotado analisado e interpretado os poemas sob a mediação do professor os alunos são convidados a comentar o que entenderam de maneira a apontarem relações entre o gênero lite rário o tema abordado e os recursos linguísticos empregados pelo poeta Este artigo tem em vista resgatar algumas dentre as valiosas contribuições de especialistas que colaboraram efetivamente na decifração e apreciação da poesia cabralina O propósito desta aproximação é didático o que implica o emprego de linguagem menos rebuscada sem que se com prometam o fórum da escrita e o ambiente em que o texto venha a circular O fato de se tratar de uma revista acadêmica voltada ao ensino na graduação sugere que o texto possa atrair como matéria amparo da crítica e método de abordagem professores alunos e de mais interessados em se reaproximarem da poe sia A eleição de João Cabral parece recomendável especialmente porque a sua obra está repleta de belas imagens ou metáforas cuja compreensão nem sempre é evidente Como forma de encaminhar a exposição a seguir pretendese mapear alguns dos temas re correntes na produção cabralina Razão segundo a qual o artigo busca alternar a análise mais detida dos poemas com a intervenção de diversos críticos que se debruçaram com inteligência e acerto so bre a obra do escritor Partida Em depoimento a Décio Pignatari João Guima rães Rosa afirmava que a ficção brasileira produ zida em seu tempo era muito frouxa quase metade de toda e qualquer prosa escrita no Brasil é feita de vogais Quer dizer mesmo quando pre tendia representar a fala em esporas e o ato bravio dos jagunços em simbiose com a paisagem serta neja as palavras sugeriam uma prosa que não tem tinha caráter PIGNATARI 2011 p 33 Objetivando obter maior sonoridade o autor de Grande Sertão Veredas recorria a uma quantida de inusual de consoantes a exemplo do r do s e do t com que criava uma prosa pedre gosa Idem ibidem Cumpre observar que para além do maior impacto sonoro o procedimento rosiano pode ter reforçado o ethos de suas persona gens e conferido maior concretude aos ambientes em que elas se moviam Tudo isso sem compro meter a verossimilhança do texto ficcional pelo contrário a linguagem pedregosa de Guimarães Rosa traduz com aparente fidedignidade a fala recortada do sertanejo e exprime as constantes disputas verbais entre os líderes dos bandos no sertão de Minas Aproximação de João Cabral 5 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 Algo análogo aconteceu no âmbito da poesia Numa entrevista para a televisão durante a década de 19705 QUATRO 2007 João Cabral de Melo Neto defendia a hipótese de que os seus versos tinham propósito sensorial estimulados pelo efei to de concretude e aspereza Por isso mesmo era uma poesia difícil de ser lida em voz alta Avesso ao embalo rítmico ao automatismo dos sonetos decassílabos que lera compulsoriamente nos tempos de escola para o poeta fazer versos não constituía trabalho espontâneo que brotasse con forme o maior ou menor lunatismo ou inspiração do sujeito É que para Cabral fazer poesia era fruto de arte rigorosa submetida a várias camadas de re escrita até que o verso chegasse à forma mais econômica possível e não ressoasse liso o que caracterizava os poetas líricos de outrora mas rugoso Não uma poesia como se fosse um carro deslizando em cima de um pavimento de asfalto aquela coisa lisa Eu gostaria de fazer uma poe sia na qual o leitor no caso identificado ao carro passasse em cima de uma rua muito mal calçada MELO NETO sd De acordo com Maria Lúcia Pinheiro Sampaio Como nos diz Jean Cohen a metáfora não é o desvio mas surge da redução deste A norma e a redução do desvio se situam no plano paradig mático ao passo que o desvio em si está no plano sintagmático A impertinência de sentido criada pela metáfora é uma violação do código que re solve esse impasse reduzindo a impertinência e se reestruturando SAMPAIO 1978 p 9 Resumidamente sua poética estabelecia cons tantes relações entre o concreto e o abstrato re fletidas no diálogo entre o objeto cru por vezes reduzido ao menor significante possível e sua projeção na forma de poderosas metáforas po tencialização imagética sugerida pelas distantes relações entre os termos É curioso que seus ver sos estimulem numerosas análises e dizeres já que foram concebidos racionalmente6 e em apologia metrificada do antilirismo7 Duradoura e multifacetada a obra cabralina tem sido lida sob várias perspectivas literária sociológi ca filosófica psicológica e histórica o que sugere por si só a extensão e o alcance de seus versos Vale lembrar que o poeta chamou a atenção de Antonio Candido 1943 desde cedo com Pedra do Sono8 Não é de se espantar que ensaístas de grande talento te nham se dedicado à sua obra especialmente a partir da década de 1970 Daí a reverberação de uma po esia que questionava os temas as convenções e o transbordamento de estéticas anteriores João Cabral escrevia para o leitor em tom de desafio o que implicava o caráter didático de sua composição O paradoxo dificuldadedidatismo é aparente Tratavase não apenas de uma poesia a ser fruída mas que suscitasse o raciocínio do leitor exposto às imagens embutidas palavra a palavra depois de um Drummond um Murilo tentei fa zer uma poesia construída sem a espontaneidade do modernismo MELO NETO 1996 p 26 Outro aspecto relevante estava em sobrepu jar o elemento puramente referencial Na poesia cabralina o ambiente pode se transformar em personagem na forma da pedra que leciona silêncios ou do rio solidário às populações ribeiri nhas Como afirmou Haroldo de Campos o poeta afere categoria estética a muito daquilo que no chamado romance nordestino tinha apenas cate goria documentária CAMPOS 1967 p 72 De certa maneira ao desnudar o que era a matéria do poema aplicando a ela o seu método racional de composição João Cabral convertia o fazer poético em lição autoexplicativa Nesse sentido tomar contato com os seus ver sos é experiência irrepetível e pode se constituir em método eficaz de aprimorar nossa leitura Diante da poesia cabralina constatamos que determinados te mas personagens campos semânticos e limites do gênero logram outro estatuto para além da obsessão pelos dados biográficos ou pelas definições reprodu zidas periodicamente em manuais de literatura Chegada Esses dados podem ser muito produtivos Afi nal estamos a tratar de um de nossos maiores 6 representantes literários do século XX Isto pos to digamos que para escrever sobre João Cabral seja preciso considerar as singularidades da sua poesia resgatar a afinidade do poeta com as esté ticas de vanguarda destacar a representação ou mesmo a antropomorfização da paisagem seja ela pernambucana ou sevilhana enfatizar os aspec tos semânticos sonoros e imagéticos sintetizados pela palavra No reboque de seus versos a palavra é coisa essência substância Compreendida como maté ria ela tem aroma dimensão cor aspecto e peso Núcleo referente significante e de significado a palavra se amplifica graças à acumulação se mântica como sugeriram os poetas concretistas em mais de uma ocasião Disso decorre a reunião de linguagem direta economia e arquitetura funcional do verso CAMPOS PIGNATARI CAMPOS 2006 p 216 Acresce que sem ser propriamente um editor João Cabral também imprimiu livros maiormente os de seus amigos9 sob o selo de nome sugestivo O Livro Inconsútil Solange Rebuzzi ressalta que o poeta reconhecia que escrever era também se envolver com a fabricação do livro com a escolha do papel e com as letras o tipo etc tanto quanto com o texto REBUZZI 2010 p 99 Também por isso a aparente dureza ou crueza da palavra não a emudece nem a congela inerme em estágio de suspensão modos de frieza ou morte Na poesia cabralina a palavraessência é tão ou mais importante que as relações quase sempre im previstas entre um termo e outro e sua disposição na página mineral Daí se compreende o cons tante uso de metáforas agudas método basilar de sua composição Como observou Marly da Sil veira Às vezes o poema é gerado por um objeto De certo modo isso é que singulariza a poesia de João Cabral de Melo Neto na poesia brasileira e faz dele um inventor na acepção poundiana pois refoge o explicitamente confessional e faz da imagem o núcleo do poema SILVEIRA 1999 p 20 Reiteremos em João Cabral é a palavra que está em questão O poeta estava interessado em objetificar o poema síntese em lugar de extravasamento pala vra é coisa QUATRO 2007 Antonio Carlos Sec chin descreveu esse procedimento racionalista como desativação onírica Ou seja uma espécie de aguçamento da consciência poética que irá analisar o espaço onírico para aprender por sua superação a investir na direção do dado concreto SECCHIN 2014 p 44 grifos do autor Uma amostra disso Quando recebeu um gru po de jornalistas na sua residência ao final da vida João Cabral declarou aos entrevistadores Isto que você vê na minha poesia de apresentar uma metáfora e depois discutila associála a outras negála de novo reafirmála isto eu aprendi com eles poetas Claro que a substância das metáforas é diferente mas a técnica eu aprendi com os me tafísicos ingleses10 MELO NETO 1996 p 20 Se na Espanha o poeta flertava com o traba lho de Juan Miró e dos cubistas no Brasil o seu diálogo mais fecundo estabeleciase com Murilo Drummond e Bandeira João Cabral referese constantemente aos três como se publicizasse o débito para com os amigos poetas e missivistas Autor de versos capazes de sugerir a captação plástica do real SECCHIN 2014 p 20 quase assusta a sua habilidade em tomar de empréstimo o estilo o vocabulário e a expressão daqueles a quem se dirigia Daí a estilização de Murilo que tinha o curioso hábito de saudar os rios Explicação daquele rito vinte anos depois aqui tento nos rios cortejava o Rio o que sem lembrar temos dentro MELO NETO 2009 p 98 Se Murilo Mendes teria inspirado Cabral desde os primeiros versos o diálogo com Drummond foi tão ou mais marcante e duradouro Segundo Affon so Romano de SantAnna Não é novidade a pre sença ostensiva de Drummond nas obras iniciais de Cabral Todos os seus críticos já trataram disso As provas são evidentes e são muitas As primei ras publicações do poeta pernambucano ressoam até parafrasicamente o mineiro SANTANNA Aproximação de João Cabral 7 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 2014 p 20 É o que se nota por exemplo no poema A Carlos Drummond de Andrade Não há guardachuva contra o tédio o tédio das quatro paredes das quatro estações dos quatro pontos cardeais MELO NETO 1999 p 79 Maleável a dicção cabralina11 segue em nova direção aderindo à voz do outro poeta É o que se nota quando descreve a paisagem da capital per nambucana em evidente diálogo com Evocação do Recife de Manuel Bandeira O Recife até os anos quarenta era como os dedos da aranha que iam cada dia mais longe os dedos as linhas de bonde MELO NETO 2009 p 42 Alexandre Shiguehara observa que A revelação bandeiriana e drummondiana de que a poesia não precisava ser necessariamente afetada nem senti mental e de que podia ser tocada de uma nota algo prosaica foi fundamental para o jovem Cabral SHIGUEHARA 2010 p vii As amostras são numerosas Em outro poema impressionante por que tecido com os instrumentos de ofício redigido em papel timbrado inclusive12 topamos com os seguintes versos também dirigidos a Drummond Eu nunca suspeitaria Tanta roupa preta Tão pouco essas palavras Funcionárias sem amor SÜSSEKIND 2001 p 192 Por ora deixemos o ambiente burocrático e contemplemos a paisagem como sugere o poema Rios sem Discurso Não se trata apenas de iden tificar o elemento rio em eventual analogia com o homem mas de traduzir a torrente de palavras a fala desdobrada fluida feito água a discorrer nes tes termos Quando um rio corta cortase de vez o discursorio de água que ele fazia cortado a água se quebra em pedaços em poços de água em água paralítica Em situação de poço a água equivale a uma palavra em situação dicionária isolada estanque no poço dela mesma e porque assim estanque estancada e mais porque assim estancada muda e muda porque com nenhuma comunica porque cortouse a sintaxe desse rio o fio de água por que ele discorria MELO NETO 1999 pp 350351 O discurso vale lembrar é mote recorrente na obra cabralina Antonio Carlos Secchin percebe relações entre discurso poético e espaço referen cial no sentido de que o curso do rio Capibaribe será representado por um discurso que buscará na forma do objetorio o modelo de sua enunciação SECCHIN 2014 p 74 Ora supondo que a linguagem nos constitua qual seria a identidade conquistada pelo rio Estará o elemento rio em conjunção ou disjunção com a representação dimi nuta do homem Para Benedito Nunes a palavra se transfere ao rio ao mesmo cão sem plumas do poema anterior que então discorre sobre o seu próprio curso assu mindo o duplo papel de agente narrativo e de ob jeto da narração Já agora o percurso e o discurso do rio se fazem simultaneamente como narração NUNES 1974 p 75 Os rios que eu encontro vão seguindo comigo Rios são de água pouca em que a água sempre está por um fio Cortados no verão que faz secar todos os rios Rios todos com nome e que abraço como a amigos Uns com nome de gente outros com nome de bicho uns com nome de santo muitos só com apelido 8 Mas todos como a gente que por aqui tenho visto a gente cuja vida se interrompe quando os rios MELO NETO 1999 p 121 Ao aderir ao rio que percorre sinuoso a paisa gem o eu lírico alterna perspectivas sobre a exis tência uns outros muitos todos entre a terra e a água13 o campo e a cidade O grau de íntima convivência com a gente dos mangues não impede que o rio disfarce antropomórfico lhe reconheça o anonimato contrastado pela nomeação sistemática dos lugares e acidentes geográficos que não escapam ao seu olhar SHI GUEHARA 2010 p 35 Rio pedra canavial mar e luz são coisa ele mento e motivo Eles constituem uma seleta do léxico cabralino de que nos fala Antonio Car los Secchin 2014 João Cabral concedeulhes a primazia sobre muitos temas formas e seres incluindo o homem É que discorrer sobre uma espécie imperfeita e previsível como o bicho ho mem porventura implicasse falar sobre si mesmo o que não condiz com o método sonhado pelo engenheiro A luz o sol o ar livre envolvem o sonho do engenheiro O engenheiro sonha coisas claras Superfícies tênis um copo de água O lápis o esquadro o papel o desenho o projeto o número o engenheiro pensa o mundo justo mundo que nenhum véu encobre MELO NETO 1999 pp 6970 Estadia Afora enumerar elementos tratados sob forma artística cumpre mencionar o aspecto mineralógi co da poesia cabralina Não esqueçamos os versos de Psicologia da Composição em que o poeta feito arquiteto e engenheiro articula o ato da escrita com o suporte em branco e a qualidade do que é e pertence ao concreto mineral São minerais as flores e as plantas as frutas os bichos quando em estado de palavra É mineral a linha do horizonte nossos nomes essas coisas feitas de palavras MELO NETO 1999 p 96 A palavra que às vezes se apresenta em situ ação dicionária assume novo estatuto e muda de posição passa a ser parâmetro da fixidez aparente que nomeia classifica e define tudo o que é maté ria flora fauna e o resto João Alexandre Barbosa decifrou o método que preside o poema Na verdade sendo uma psicologia da compo sição e não do poeta é a personagem em que se transforma o poema que permite as afirmações em primeira pessoa E uma vez aceita a ideia de que é a própria composição que diz a sua psicologia pode ser rastreada sem que corra o risco de um enclausuramento BARBOSA 2008 pp 3132 grifos do autor Ler João Cabral implica lidar com procedimen tos aparentemente paradoxais É devorar com va gar uma poesia que enxuta demanda reflexão e parada É tomar contato com as obras de arte a que ele alude e averiguar a hipótese de fazer da palavra mais que um conceito objeto irredutível e matriz do poema Em sua estética mineralógica a palavra entre fluida e porosa alternase entre o comunicável e o indizível Se venta no canavial estendido sob o sol seu tecido inanimado fazse sensível lençol se muda em bandeira viva de cor verde sobre verde com estrelas verdes que no verde nascem se perdem Não lembra o canavial Aproximação de João Cabral 9 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 então as praças vazias não tem como têm as pedras disciplina de milícias É solta sua simetria como a das ondas na areia ou as ondas da multidão lutando na praça cheia MELO NETO 1999 p 151 Embora o escritor se declarasse refratário ao lirismo e cultivasse composições em que sobressa íam aspectos formais o planejamento e o desejo de simetria o leitor não estará imune aos efeitos extraordinários provocados por sua poética de um só gume A título de ilustração reparese que em Uma faca só lâmina o título do poema carece de ser retomado em determinadas estrofes de modo que os blocos textuais concebidos como elemen tos cubistas na definição de Antonio Candido 1999 adquirem pleno sentido e o poema comple ta seu movimento perante o leitor Uma faca só lâmina qual bala que tivesse um vivo mecanismo bala que possuísse um coração ativo igual ao de um relógio submerso em algum corpo ao de um relógio vivo e também revoltoso MELO NETO 1999 p 205 De acordo com Antonio Carlos Secchin em Uma faca só lâmina enquanto o humano é si tuado na morte um dos lados do morto os três termos minerais se caracterizam pela vida bala com vivo mecanismo faca habitando um corpo e pela insubmissão relógio também revoltoso A faca desde logo marcará diferença É a única que traz um postulado ético é toda impiedade de lâmina azulada SECCHIN 2014 p 128 É sugestivo que a maior parte de quem estuda Cabral contagie a sua análise com os modos exatos mas curvilíneos de sua composição Isso porque a dicção cabralina convoca o leitor a participar15 da desmontagem e reconstrução dos sentidos É como se a leitura metrificasse a sua compreensão Não se trata de nos posicionarmos estáticos ou estacionarmos bestificados diante dos versos A poesia de João Cabral convidanos à releitura porque não é contemplação Os versos propõem que relacionemos elementos distantes instaurados em poderosas metáforas Isso não implica afirmar que se trate de uma poesia neobarroca em função das imagens que concentra Afinal haverá poesia que não seja conotação som e imagem O rio ora lembrava a língua mansa de um cão ora o ventre triste de um cão ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão MELO NETO 1999 p 105 Consideremos a resposta interposta por João Alexandre Barbosa que destacou a historicida de da poesia cabralina como obra vincada pelas marcas de seu tempo e lugar Para o crítico em O cão sem plumas há imersão no Tempo na Cida de dos homens em que incide a radicalização do processo de desmontagem interna do próprio poe ma sobretudo através do elemento que dá origem à singularidade do poeta dentro de sua geração o tratamento da imagem BARBOSA 1975 p 92 João Cabral sintetizava o seu tempo e os lugares em que viveu Não por acaso afirmava reiterada mente que a poesia era fruto de horas vagas du rante uma longa carreira diplomática Se levarmos em conta a sua dificuldade confessa em escrever CASTELLO 2006 CABRAL 2016 talvez pos samos sugerir que dificultar a vida do leitor espe lhasse o receio do próprio poeta à autoexposição Retorno Não se trata de lirismo mas de antilira como definiu o próprio João Cabral na dedicatória a Manuel Bandeira em A Educação pela Pedra de 1966 As estrofes alinhadas em conteúdo forma e 10 expressão não falam necessariamente de si mas da concepção calculada do fazer poético que não bro ta da comoção desmedida tampouco das musas O verso de João Cabral é mineral e sob esse aspecto concreto O poeta reconhecia seu débito para com a metáfora semeada pelos poetas me tafísicos ingleses no exemplo acabado de John Donne preservara o diálogo com a arquitetura Le Corbusier a afinidade com as artes plásticas de vanguarda Juan Miró e admirava a expressão prosaica dos modernistas especialmente Bandei ra Murilo e Drummond Não por acaso integra ao lado de Ezra Pound James Joyce e Oswald de Andrade o repertório dos poetas concretistas em atividade a partir da década de 1950 Para se ler João Cabral de Melo Neto há que dedicar tempo esforço e engenho Não é poesia que nos desmereça ou desqualifique tampouco palavró rio de ornamentação que nada implique O poeta trabalhou persistente com conceitos e os dispôs em relação Daí o caráter autoexplicativo de seus versos como se vê em A Educação pela Pedra Uma educação pela pedra por lições para aprender da pedra frequentála captar sua voz inenfática impessoal pela de dicção ela começa as aulas MELO NETO 1999 p 338 A palavra entesta com a condição de dicioná ria Emancipada dos limites semânticos é como se João Cabral concedesse maior autonomia ao verbo sugerindo ao leitor que o conceito pode ultrapassar o uso ordinário que dele pudéssemos fazer A pedra é capaz de ensinar à sua maneira o que talvez nos falte em silêncio tempo e modos Antonio Carlos Secchin sugere que esse poema seja um contraponto teórico a O Sertanejo Falando16 Quanto ao rio símbolo forma e personagem ele interpõe contornos na retidão e simetria das es trofes Mais uma vez é de identidade que se trata como se pode ver em O Vento no Canavial É anônimo o canavial sem feições como a campina é como um mar sem navios papel em branco de escrita É como um grande lençol sem dobras e sem bainha penugem de moça ao sol roupa lavada estendida MELO NETO 1999 p 150 Distanciados pela figuração na topografia e lu gar em meio à paisagem os elementos entram em imprevisto diálogo O canavial tornase cúmplice do mar aproximados não apenas devido à ima gem similar que desenham mas pelo aprendizado de que comungam e compartilham conosco Daí o caráter solidário de ambos os elementos fun damentais em uma poesia que por sua recusa ao estanque e ao óbvio mais ensina enquanto o poeta menos discorre João Cabral descreve e aplica aos seus versos uma autêntica didática da composição O que o mar sim aprende do canavial a elocução horizontal de seu verso a geórgica de cordel ininterrupta narrada em voz e silêncio paralelos O que o canavial sim aprende do mar o avançar em linha rasteira da onda o espraiarse minucioso de líquido alagando cova a cova onde se alonga MELO NETO 1999 p 335 Despedida Deve ficar claro para os alunos que ao abordar a poesia de João Cabral não se pode temer a forma concisa de seus versos nem supor que essa carac terística faça do poema ambiente hermético área restrita ou de difícil acesso Sob essa perspectiva o papel do professor pode ser decisivo Afinal devem se preencher eventuais lacunas de sentido propos tas como desafio pelo poeta com energia lucidez e divertimento A meta é corresponder ao pacto de lei tura lançado por um versejador que forjava de fora para dentro feito lição da pedra uma arte capaz de espicaçar a curiosidade e a inquietação do leitor Qual o saldo da aula Uma das principais ta refas do professor será relembrar ao aluno que Aproximação de João Cabral 11 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 ele não está diante de uma poesia de somenos tampouco passatempo a enfeixar livros atirados displicentemente em consultórios ou salas de visi tas O contato com os versos cabralinos resulta no empenho do leitor Do pouco que se disse depreendase que os po emas de qualidade não cabem em relógios ou es crivaninhas nem disputam o espaço ordinário das contas a pagar No caso de João Cabral a poesia não obedece a toques de recolher É sucessão de metáforas que expandem o imaginário do leitor ultrapassam os limites da sala e persistem como itens a decifrar para além do espaçotempo reser vado à aula Sigamos o poeta feito pedra sol e rio Notas 1 The Calm Tão firme quanto eu poderia desejar que meus pensamentos estivessem Polido como o copo da senhora ou o que ali brilha O mar está agora E assim como as ilhas que Procuramos quando podemos nos mover nossos navios estão ancorados 2 ROSA 2001 p 126 3 O nada que é MELO NETO 2009 p 31 4 A disciplina é uma herança do saudoso professor e pesquisador Ivan Prado Teixeira 19502013 que entre outras coisas colaborou ativamente da reformulação do curso de Editoração entre 2012 e 2013 Assumi as aulas relacionadas à Colônia Im pério e República na ECA em abril de 2014 5 Em 1974 João Cabral de Melo Neto cedeu uma en trevista a Primeiro Plano programa da TV Cultura de São Paulo 6 A minha ideia racionalista de escrever é uma coisa que eu me imponho Eu não escrevo ambiguida des MELO NETO 1996 pp 2122 7 Dedicatória de A Educação pela Pedra 1966 A Manuel Bandeira essa antilira para seus oi tentanos MELO NETO 1999 p 334 8 Esta crítica de Antonio Candido foi para mim uma revelação Foi ela que me deu coragem de continu ar escrevendo no início de minha carreira MELO NETO 1996 p 24 9 Nunca fui exatamente um editor Só editei livros de amigos Eu ia atrás deles pedia a obra e edita va Entre o final dos anos 40 e o início da de 50 imprimi catorze trabalhos MELO NETO 1996 p 22 10 De acordo com Inez Cabral na década de 1950 enquanto o poeta pernambucano serviu no Consu lado de Londres como o trabalho no consulado não deixava muito tempo livre mergulhou na li teratura e cultura inglesas assim como no cinema clássico mundial CABRAL 2016 p 32 11 Utilizo o conceito de dicção como forma de ressaltar o fato de que o eu lírico é uma persona criada pelo poeta e que não se confunde com ele Essa distinção tem se mostrado produtiva nas aulas não exclusivamente sobre a obra de João Cabral de Melo Neto 12 Cabral aprovado em concurso público começa ra a trabalhar como Assistente de Seleção do Dasp Departamento Administrativo do Serviço Público em 1943 SÜSSEKIND 2001 p 193 13 os símbolos da Pedra e do Rio a oposição dialética do seco e do úmido do sol e da água inte gram o patrimônio simbólico da humanidade desde a mais remota antiguidade Já Heráclito de Éfeso afirmava que a harmonia da água e do fogo no organismo constitui saúde a doença é a ruptura do equilíbrio harmonioso dos contrários ESCO REL 1973 p 53 14 Segundo Haroldo de Campos a poesia cabralina convida à participação poética por parte do leitor CAMPOS 1967 p 71 15 Daí porque o sertanejo fala pouco as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso o natural desse idioma fala à força Daí também porque ele fala devagar tem de pegar as palavras com cuidado confeitálas na língua rebuçálas pois toma tempo todo esse trabalho MELO NETO 1999 p 336 Referências Bibliográficas BARBOSA João Alexandre A Imitação da Forma uma Leitura de João Cabral de Melo Neto São Paulo Duas Cidades 1975 João Cabral de Melo Neto 2 ed São Paulo Publifolha 2008 CABRAL Inez João Cabral de Melo Neto a Literatu ra como Turismo São Paulo Alfaguara 2016 CAMPOS Augusto de PIGNATARI Décio CAMPOS Haroldo de Teoria da Poesia Concreta Textos Críticos e Manifestos 19501960 Cotia Ateliê 2006 CAMPOS Haroldo de Metalinguagem Petrópolis Vozes 1967 CANDIDO Antonio Poesia ao Norte Revista Remate de Males Campinas Editora Unicamp 1999 pp 914 12 CASTELLO José João Cabral de Melo Neto o Ho mem sem Alma Diário de Tudo Rio de Janeiro Ber trand 2006 DONNE John The Calm Disponível em ht tpswwwpoetryfoundationorgpoetsjohndonne Acessado em 13 jul 2017 ESCOREL Lauro A Pedra e o Rio uma Interpretação da Poesia de João Cabral de Melo Neto São Paulo Duas Cidades 1973 MELO NETO João Cabral de Cadernos de Litera tura Brasileira n 1 São Paulo Instituto Moreira Salles 1996 Obra completa 3 reimp Rio de Janeiro Nova Aguilar 1999 Agrestes Rio de Janeiro Objetiva 2009 NUNES Benedito João Cabral de Melo Neto 2 ed Petrópolis Vozes 1971 PIGNATARI Décio Depoimento In CALLA DO Antonio et al Depoimentos sobre João Guimarães Rosa e sua Obra Rio de Janeiro Nova Fronteira 2011 pp 3339 QUATRO Vezes Quatro João Cabral de Melo Neto Do cumentário TV Escola 2007 2709 Disponível em httptvescolamecgovbrtvevideomestresdalite raturaquatrovezesquatrojoaocabraldemeloneto Acessado em 13 jul 2017 REBUZZI Solange O Idioma Pedra de João Cabral São Paulo Perspectiva 2010 ROSA João Guimarães O Espelho In Primeiras Estórias 15 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2001 pp 119128 SAMPAIO Maria Lúcia Pinheiro Processos Retóricos na Obra de João Cabral de Melo Neto Assis Ilpha São Paulo Hucitec 1978 SANTANNA Affonso Romano de Entre Drum mond e Cabral São Paulo Editora Unesp 2014 SECCHIN Antonio Carlos João Cabral de Melo Neto uma Fala só Lâmina São Paulo Cosac Naify 2014 SHIGUEHARA Alexandre Koji Ao Longo do Rio João Cabral e Três Poemas do Capiberibe São Paulo He dra ECidade 2010 SILVEIRA Marly da Prefácio In MELO NETO João Cabral de Obra Completa 3 reimp Rio de Janeiro Nova Aguilar 1999 pp 1524 SÜSSEKIND Flora Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond Rio de Janeiro Nova Fronteira Edições Casa de Rui Barbosa 2001 Publicado em 22122017 Aproximação de João Cabral
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Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 3 Aproximação de João Cabral Jean Pierre Chauvin Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo Autor para correspondência tupianouspbr RESUMO Neste artigo discutemse modos de analisar e interpretar a poesia de João Cabral de Melo Neto 19201999 As reflexões respaldamse na fortuna crítica e envolvem experiências na preparação dos conteúdos formais e sua discussão em sala de aula Tratase de versos a veicular poderosas metáforas escoradas em sintaxe econômica e cuja sonoridade é reforçada por aliterações Elementos recorrentes em sua obra a exemplo do rio da pedra e da luz demandam leitura atenta e cerebrina o que não impede ao leitor experimentar agradáveis sensações simultaneamente ao que a poesia diz sugere e ensina Palavraschave Poesia Brasileira João Cabral de Melo Neto Crítica Ensino ABSTRACT In this article we discuss some ways of analyzing and to interpretate João Cabral de Melo Netos poetry 1920 1999 These reflections are based on a critical fortune and involve experiences in the preparation of formal contents and their discussion in the classroom These verses are a shelter to powerful metaphors espoused in economic syntax whose sonority is reinforced by alliterations Recurring elements in his work like the river the stone and the light demand an attentive and cerebral reading which doesnt prevent the reader from experiencing pleasant sensations simultaneously to what poetry says suggests and teaches Keywords Brazilian Poetry João Cabral de Melo Neto Criticism Teaching As steadyas I can wish that my thoughts were Smooth as thy mistress glass or what shines there The sea is now and as the isles which we Seek when we can move our ships rooted be John Donne1 Simplesmente lhe digo que me olhei num espelho e não me vi Não vi nada Só o campo liso às vácuas aberto como o sol água limpíssima à dispersão da luz João Guimarães Rosa2 Um canavial tem a extensão ante a qual todo metro é vão João Cabral de Melo Neto3 Aula O que se vai ler é em síntese a versão par cial do discurso que preside as aulas sobre João Cabral de Melo Neto 19201999 com ênfase em sua vasta produção poética Redigido sob a forma ensaística o texto tenta reproduzir ordenadamente os momentos praticados em sala como fruto da preparação das aulas e da convivência com os alu nos que cursam a disciplina Cultura e Literatura Brasileira República ministrada na Escola de Comunicações e Artes da USP desde 20144 Apresentado o tema tratemos de sua disposi ção 1 As aulas em questão dividemse em cinco etapas Na primeira este professor compartilha com os alunos material impresso que contém dez poemas de João Cabral A ideia é favorecer o con tato inicial dos estudantes com os versos A seleção abrange livros publicados em etapas distantes da carreira do poeta 2 Disponibilizados os textos o professor resu me e comenta alguns lances biográficos do escri tor e diplomata pernambucano para em seguida 4 discutir as fases em que a sua obra costuma ser dividida segundo os historiadores e críticos lite rários Nessa ocasião o professor entrega alguns ensaios críticos que circulam na sala 3 Dirimidas as questões iniciais relativas à car reira do poeta e discutidos alguns conceitos que caracterizam a sua produção passase à leitura dos textos Nesse momento solicitase aos alunos que se revezem espontaneamente na declamação dos versos recebidos orientandoos conforme o caso a enfatizarem modos alternativos de ler poesia o que envolve ritmo de leitura entonação cesura etc 3 1 Para ilustrar outros modos de apreender o que o texto diz o professor compartilha com os estudantes a releitura de alguns excertos com vis tas a ressignificar determinadas imagens e temas recorrentes nos versos cabralinos A análise recai sobre os aspectos formais gêneros poéticos esti lísticos semânticos sintáticos gráficos e sonoros sugeridos pelos textos 4 Por se tratar de uma escrita prenhe de con ceitos e metáforas sutis os poemas costumam ser retomados de maneira a esclarecer o sentido de passagens cuja compreensão não seja simples ou imediata Nesse sentido à medida que os estu dantes se alternam na leitura dos versos o pro fessor relaciona palavras no quadro lousa que acumulam sentidos e estabelecem relações por vezes distantes 5 O contato com a poesia cabralina demanda retrabalho Uma das razões é que seus versos cos tumam contrariar os lugarescomuns e desafiam a sensibilidade e inteligência do leitor como o pró prio escritor confessou em mais de uma ocasião Tendo lido anotado analisado e interpretado os poemas sob a mediação do professor os alunos são convidados a comentar o que entenderam de maneira a apontarem relações entre o gênero lite rário o tema abordado e os recursos linguísticos empregados pelo poeta Este artigo tem em vista resgatar algumas dentre as valiosas contribuições de especialistas que colaboraram efetivamente na decifração e apreciação da poesia cabralina O propósito desta aproximação é didático o que implica o emprego de linguagem menos rebuscada sem que se com prometam o fórum da escrita e o ambiente em que o texto venha a circular O fato de se tratar de uma revista acadêmica voltada ao ensino na graduação sugere que o texto possa atrair como matéria amparo da crítica e método de abordagem professores alunos e de mais interessados em se reaproximarem da poe sia A eleição de João Cabral parece recomendável especialmente porque a sua obra está repleta de belas imagens ou metáforas cuja compreensão nem sempre é evidente Como forma de encaminhar a exposição a seguir pretendese mapear alguns dos temas re correntes na produção cabralina Razão segundo a qual o artigo busca alternar a análise mais detida dos poemas com a intervenção de diversos críticos que se debruçaram com inteligência e acerto so bre a obra do escritor Partida Em depoimento a Décio Pignatari João Guima rães Rosa afirmava que a ficção brasileira produ zida em seu tempo era muito frouxa quase metade de toda e qualquer prosa escrita no Brasil é feita de vogais Quer dizer mesmo quando pre tendia representar a fala em esporas e o ato bravio dos jagunços em simbiose com a paisagem serta neja as palavras sugeriam uma prosa que não tem tinha caráter PIGNATARI 2011 p 33 Objetivando obter maior sonoridade o autor de Grande Sertão Veredas recorria a uma quantida de inusual de consoantes a exemplo do r do s e do t com que criava uma prosa pedre gosa Idem ibidem Cumpre observar que para além do maior impacto sonoro o procedimento rosiano pode ter reforçado o ethos de suas persona gens e conferido maior concretude aos ambientes em que elas se moviam Tudo isso sem compro meter a verossimilhança do texto ficcional pelo contrário a linguagem pedregosa de Guimarães Rosa traduz com aparente fidedignidade a fala recortada do sertanejo e exprime as constantes disputas verbais entre os líderes dos bandos no sertão de Minas Aproximação de João Cabral 5 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 Algo análogo aconteceu no âmbito da poesia Numa entrevista para a televisão durante a década de 19705 QUATRO 2007 João Cabral de Melo Neto defendia a hipótese de que os seus versos tinham propósito sensorial estimulados pelo efei to de concretude e aspereza Por isso mesmo era uma poesia difícil de ser lida em voz alta Avesso ao embalo rítmico ao automatismo dos sonetos decassílabos que lera compulsoriamente nos tempos de escola para o poeta fazer versos não constituía trabalho espontâneo que brotasse con forme o maior ou menor lunatismo ou inspiração do sujeito É que para Cabral fazer poesia era fruto de arte rigorosa submetida a várias camadas de re escrita até que o verso chegasse à forma mais econômica possível e não ressoasse liso o que caracterizava os poetas líricos de outrora mas rugoso Não uma poesia como se fosse um carro deslizando em cima de um pavimento de asfalto aquela coisa lisa Eu gostaria de fazer uma poe sia na qual o leitor no caso identificado ao carro passasse em cima de uma rua muito mal calçada MELO NETO sd De acordo com Maria Lúcia Pinheiro Sampaio Como nos diz Jean Cohen a metáfora não é o desvio mas surge da redução deste A norma e a redução do desvio se situam no plano paradig mático ao passo que o desvio em si está no plano sintagmático A impertinência de sentido criada pela metáfora é uma violação do código que re solve esse impasse reduzindo a impertinência e se reestruturando SAMPAIO 1978 p 9 Resumidamente sua poética estabelecia cons tantes relações entre o concreto e o abstrato re fletidas no diálogo entre o objeto cru por vezes reduzido ao menor significante possível e sua projeção na forma de poderosas metáforas po tencialização imagética sugerida pelas distantes relações entre os termos É curioso que seus ver sos estimulem numerosas análises e dizeres já que foram concebidos racionalmente6 e em apologia metrificada do antilirismo7 Duradoura e multifacetada a obra cabralina tem sido lida sob várias perspectivas literária sociológi ca filosófica psicológica e histórica o que sugere por si só a extensão e o alcance de seus versos Vale lembrar que o poeta chamou a atenção de Antonio Candido 1943 desde cedo com Pedra do Sono8 Não é de se espantar que ensaístas de grande talento te nham se dedicado à sua obra especialmente a partir da década de 1970 Daí a reverberação de uma po esia que questionava os temas as convenções e o transbordamento de estéticas anteriores João Cabral escrevia para o leitor em tom de desafio o que implicava o caráter didático de sua composição O paradoxo dificuldadedidatismo é aparente Tratavase não apenas de uma poesia a ser fruída mas que suscitasse o raciocínio do leitor exposto às imagens embutidas palavra a palavra depois de um Drummond um Murilo tentei fa zer uma poesia construída sem a espontaneidade do modernismo MELO NETO 1996 p 26 Outro aspecto relevante estava em sobrepu jar o elemento puramente referencial Na poesia cabralina o ambiente pode se transformar em personagem na forma da pedra que leciona silêncios ou do rio solidário às populações ribeiri nhas Como afirmou Haroldo de Campos o poeta afere categoria estética a muito daquilo que no chamado romance nordestino tinha apenas cate goria documentária CAMPOS 1967 p 72 De certa maneira ao desnudar o que era a matéria do poema aplicando a ela o seu método racional de composição João Cabral convertia o fazer poético em lição autoexplicativa Nesse sentido tomar contato com os seus ver sos é experiência irrepetível e pode se constituir em método eficaz de aprimorar nossa leitura Diante da poesia cabralina constatamos que determinados te mas personagens campos semânticos e limites do gênero logram outro estatuto para além da obsessão pelos dados biográficos ou pelas definições reprodu zidas periodicamente em manuais de literatura Chegada Esses dados podem ser muito produtivos Afi nal estamos a tratar de um de nossos maiores 6 representantes literários do século XX Isto pos to digamos que para escrever sobre João Cabral seja preciso considerar as singularidades da sua poesia resgatar a afinidade do poeta com as esté ticas de vanguarda destacar a representação ou mesmo a antropomorfização da paisagem seja ela pernambucana ou sevilhana enfatizar os aspec tos semânticos sonoros e imagéticos sintetizados pela palavra No reboque de seus versos a palavra é coisa essência substância Compreendida como maté ria ela tem aroma dimensão cor aspecto e peso Núcleo referente significante e de significado a palavra se amplifica graças à acumulação se mântica como sugeriram os poetas concretistas em mais de uma ocasião Disso decorre a reunião de linguagem direta economia e arquitetura funcional do verso CAMPOS PIGNATARI CAMPOS 2006 p 216 Acresce que sem ser propriamente um editor João Cabral também imprimiu livros maiormente os de seus amigos9 sob o selo de nome sugestivo O Livro Inconsútil Solange Rebuzzi ressalta que o poeta reconhecia que escrever era também se envolver com a fabricação do livro com a escolha do papel e com as letras o tipo etc tanto quanto com o texto REBUZZI 2010 p 99 Também por isso a aparente dureza ou crueza da palavra não a emudece nem a congela inerme em estágio de suspensão modos de frieza ou morte Na poesia cabralina a palavraessência é tão ou mais importante que as relações quase sempre im previstas entre um termo e outro e sua disposição na página mineral Daí se compreende o cons tante uso de metáforas agudas método basilar de sua composição Como observou Marly da Sil veira Às vezes o poema é gerado por um objeto De certo modo isso é que singulariza a poesia de João Cabral de Melo Neto na poesia brasileira e faz dele um inventor na acepção poundiana pois refoge o explicitamente confessional e faz da imagem o núcleo do poema SILVEIRA 1999 p 20 Reiteremos em João Cabral é a palavra que está em questão O poeta estava interessado em objetificar o poema síntese em lugar de extravasamento pala vra é coisa QUATRO 2007 Antonio Carlos Sec chin descreveu esse procedimento racionalista como desativação onírica Ou seja uma espécie de aguçamento da consciência poética que irá analisar o espaço onírico para aprender por sua superação a investir na direção do dado concreto SECCHIN 2014 p 44 grifos do autor Uma amostra disso Quando recebeu um gru po de jornalistas na sua residência ao final da vida João Cabral declarou aos entrevistadores Isto que você vê na minha poesia de apresentar uma metáfora e depois discutila associála a outras negála de novo reafirmála isto eu aprendi com eles poetas Claro que a substância das metáforas é diferente mas a técnica eu aprendi com os me tafísicos ingleses10 MELO NETO 1996 p 20 Se na Espanha o poeta flertava com o traba lho de Juan Miró e dos cubistas no Brasil o seu diálogo mais fecundo estabeleciase com Murilo Drummond e Bandeira João Cabral referese constantemente aos três como se publicizasse o débito para com os amigos poetas e missivistas Autor de versos capazes de sugerir a captação plástica do real SECCHIN 2014 p 20 quase assusta a sua habilidade em tomar de empréstimo o estilo o vocabulário e a expressão daqueles a quem se dirigia Daí a estilização de Murilo que tinha o curioso hábito de saudar os rios Explicação daquele rito vinte anos depois aqui tento nos rios cortejava o Rio o que sem lembrar temos dentro MELO NETO 2009 p 98 Se Murilo Mendes teria inspirado Cabral desde os primeiros versos o diálogo com Drummond foi tão ou mais marcante e duradouro Segundo Affon so Romano de SantAnna Não é novidade a pre sença ostensiva de Drummond nas obras iniciais de Cabral Todos os seus críticos já trataram disso As provas são evidentes e são muitas As primei ras publicações do poeta pernambucano ressoam até parafrasicamente o mineiro SANTANNA Aproximação de João Cabral 7 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 2014 p 20 É o que se nota por exemplo no poema A Carlos Drummond de Andrade Não há guardachuva contra o tédio o tédio das quatro paredes das quatro estações dos quatro pontos cardeais MELO NETO 1999 p 79 Maleável a dicção cabralina11 segue em nova direção aderindo à voz do outro poeta É o que se nota quando descreve a paisagem da capital per nambucana em evidente diálogo com Evocação do Recife de Manuel Bandeira O Recife até os anos quarenta era como os dedos da aranha que iam cada dia mais longe os dedos as linhas de bonde MELO NETO 2009 p 42 Alexandre Shiguehara observa que A revelação bandeiriana e drummondiana de que a poesia não precisava ser necessariamente afetada nem senti mental e de que podia ser tocada de uma nota algo prosaica foi fundamental para o jovem Cabral SHIGUEHARA 2010 p vii As amostras são numerosas Em outro poema impressionante por que tecido com os instrumentos de ofício redigido em papel timbrado inclusive12 topamos com os seguintes versos também dirigidos a Drummond Eu nunca suspeitaria Tanta roupa preta Tão pouco essas palavras Funcionárias sem amor SÜSSEKIND 2001 p 192 Por ora deixemos o ambiente burocrático e contemplemos a paisagem como sugere o poema Rios sem Discurso Não se trata apenas de iden tificar o elemento rio em eventual analogia com o homem mas de traduzir a torrente de palavras a fala desdobrada fluida feito água a discorrer nes tes termos Quando um rio corta cortase de vez o discursorio de água que ele fazia cortado a água se quebra em pedaços em poços de água em água paralítica Em situação de poço a água equivale a uma palavra em situação dicionária isolada estanque no poço dela mesma e porque assim estanque estancada e mais porque assim estancada muda e muda porque com nenhuma comunica porque cortouse a sintaxe desse rio o fio de água por que ele discorria MELO NETO 1999 pp 350351 O discurso vale lembrar é mote recorrente na obra cabralina Antonio Carlos Secchin percebe relações entre discurso poético e espaço referen cial no sentido de que o curso do rio Capibaribe será representado por um discurso que buscará na forma do objetorio o modelo de sua enunciação SECCHIN 2014 p 74 Ora supondo que a linguagem nos constitua qual seria a identidade conquistada pelo rio Estará o elemento rio em conjunção ou disjunção com a representação dimi nuta do homem Para Benedito Nunes a palavra se transfere ao rio ao mesmo cão sem plumas do poema anterior que então discorre sobre o seu próprio curso assu mindo o duplo papel de agente narrativo e de ob jeto da narração Já agora o percurso e o discurso do rio se fazem simultaneamente como narração NUNES 1974 p 75 Os rios que eu encontro vão seguindo comigo Rios são de água pouca em que a água sempre está por um fio Cortados no verão que faz secar todos os rios Rios todos com nome e que abraço como a amigos Uns com nome de gente outros com nome de bicho uns com nome de santo muitos só com apelido 8 Mas todos como a gente que por aqui tenho visto a gente cuja vida se interrompe quando os rios MELO NETO 1999 p 121 Ao aderir ao rio que percorre sinuoso a paisa gem o eu lírico alterna perspectivas sobre a exis tência uns outros muitos todos entre a terra e a água13 o campo e a cidade O grau de íntima convivência com a gente dos mangues não impede que o rio disfarce antropomórfico lhe reconheça o anonimato contrastado pela nomeação sistemática dos lugares e acidentes geográficos que não escapam ao seu olhar SHI GUEHARA 2010 p 35 Rio pedra canavial mar e luz são coisa ele mento e motivo Eles constituem uma seleta do léxico cabralino de que nos fala Antonio Car los Secchin 2014 João Cabral concedeulhes a primazia sobre muitos temas formas e seres incluindo o homem É que discorrer sobre uma espécie imperfeita e previsível como o bicho ho mem porventura implicasse falar sobre si mesmo o que não condiz com o método sonhado pelo engenheiro A luz o sol o ar livre envolvem o sonho do engenheiro O engenheiro sonha coisas claras Superfícies tênis um copo de água O lápis o esquadro o papel o desenho o projeto o número o engenheiro pensa o mundo justo mundo que nenhum véu encobre MELO NETO 1999 pp 6970 Estadia Afora enumerar elementos tratados sob forma artística cumpre mencionar o aspecto mineralógi co da poesia cabralina Não esqueçamos os versos de Psicologia da Composição em que o poeta feito arquiteto e engenheiro articula o ato da escrita com o suporte em branco e a qualidade do que é e pertence ao concreto mineral São minerais as flores e as plantas as frutas os bichos quando em estado de palavra É mineral a linha do horizonte nossos nomes essas coisas feitas de palavras MELO NETO 1999 p 96 A palavra que às vezes se apresenta em situ ação dicionária assume novo estatuto e muda de posição passa a ser parâmetro da fixidez aparente que nomeia classifica e define tudo o que é maté ria flora fauna e o resto João Alexandre Barbosa decifrou o método que preside o poema Na verdade sendo uma psicologia da compo sição e não do poeta é a personagem em que se transforma o poema que permite as afirmações em primeira pessoa E uma vez aceita a ideia de que é a própria composição que diz a sua psicologia pode ser rastreada sem que corra o risco de um enclausuramento BARBOSA 2008 pp 3132 grifos do autor Ler João Cabral implica lidar com procedimen tos aparentemente paradoxais É devorar com va gar uma poesia que enxuta demanda reflexão e parada É tomar contato com as obras de arte a que ele alude e averiguar a hipótese de fazer da palavra mais que um conceito objeto irredutível e matriz do poema Em sua estética mineralógica a palavra entre fluida e porosa alternase entre o comunicável e o indizível Se venta no canavial estendido sob o sol seu tecido inanimado fazse sensível lençol se muda em bandeira viva de cor verde sobre verde com estrelas verdes que no verde nascem se perdem Não lembra o canavial Aproximação de João Cabral 9 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 então as praças vazias não tem como têm as pedras disciplina de milícias É solta sua simetria como a das ondas na areia ou as ondas da multidão lutando na praça cheia MELO NETO 1999 p 151 Embora o escritor se declarasse refratário ao lirismo e cultivasse composições em que sobressa íam aspectos formais o planejamento e o desejo de simetria o leitor não estará imune aos efeitos extraordinários provocados por sua poética de um só gume A título de ilustração reparese que em Uma faca só lâmina o título do poema carece de ser retomado em determinadas estrofes de modo que os blocos textuais concebidos como elemen tos cubistas na definição de Antonio Candido 1999 adquirem pleno sentido e o poema comple ta seu movimento perante o leitor Uma faca só lâmina qual bala que tivesse um vivo mecanismo bala que possuísse um coração ativo igual ao de um relógio submerso em algum corpo ao de um relógio vivo e também revoltoso MELO NETO 1999 p 205 De acordo com Antonio Carlos Secchin em Uma faca só lâmina enquanto o humano é si tuado na morte um dos lados do morto os três termos minerais se caracterizam pela vida bala com vivo mecanismo faca habitando um corpo e pela insubmissão relógio também revoltoso A faca desde logo marcará diferença É a única que traz um postulado ético é toda impiedade de lâmina azulada SECCHIN 2014 p 128 É sugestivo que a maior parte de quem estuda Cabral contagie a sua análise com os modos exatos mas curvilíneos de sua composição Isso porque a dicção cabralina convoca o leitor a participar15 da desmontagem e reconstrução dos sentidos É como se a leitura metrificasse a sua compreensão Não se trata de nos posicionarmos estáticos ou estacionarmos bestificados diante dos versos A poesia de João Cabral convidanos à releitura porque não é contemplação Os versos propõem que relacionemos elementos distantes instaurados em poderosas metáforas Isso não implica afirmar que se trate de uma poesia neobarroca em função das imagens que concentra Afinal haverá poesia que não seja conotação som e imagem O rio ora lembrava a língua mansa de um cão ora o ventre triste de um cão ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão MELO NETO 1999 p 105 Consideremos a resposta interposta por João Alexandre Barbosa que destacou a historicida de da poesia cabralina como obra vincada pelas marcas de seu tempo e lugar Para o crítico em O cão sem plumas há imersão no Tempo na Cida de dos homens em que incide a radicalização do processo de desmontagem interna do próprio poe ma sobretudo através do elemento que dá origem à singularidade do poeta dentro de sua geração o tratamento da imagem BARBOSA 1975 p 92 João Cabral sintetizava o seu tempo e os lugares em que viveu Não por acaso afirmava reiterada mente que a poesia era fruto de horas vagas du rante uma longa carreira diplomática Se levarmos em conta a sua dificuldade confessa em escrever CASTELLO 2006 CABRAL 2016 talvez pos samos sugerir que dificultar a vida do leitor espe lhasse o receio do próprio poeta à autoexposição Retorno Não se trata de lirismo mas de antilira como definiu o próprio João Cabral na dedicatória a Manuel Bandeira em A Educação pela Pedra de 1966 As estrofes alinhadas em conteúdo forma e 10 expressão não falam necessariamente de si mas da concepção calculada do fazer poético que não bro ta da comoção desmedida tampouco das musas O verso de João Cabral é mineral e sob esse aspecto concreto O poeta reconhecia seu débito para com a metáfora semeada pelos poetas me tafísicos ingleses no exemplo acabado de John Donne preservara o diálogo com a arquitetura Le Corbusier a afinidade com as artes plásticas de vanguarda Juan Miró e admirava a expressão prosaica dos modernistas especialmente Bandei ra Murilo e Drummond Não por acaso integra ao lado de Ezra Pound James Joyce e Oswald de Andrade o repertório dos poetas concretistas em atividade a partir da década de 1950 Para se ler João Cabral de Melo Neto há que dedicar tempo esforço e engenho Não é poesia que nos desmereça ou desqualifique tampouco palavró rio de ornamentação que nada implique O poeta trabalhou persistente com conceitos e os dispôs em relação Daí o caráter autoexplicativo de seus versos como se vê em A Educação pela Pedra Uma educação pela pedra por lições para aprender da pedra frequentála captar sua voz inenfática impessoal pela de dicção ela começa as aulas MELO NETO 1999 p 338 A palavra entesta com a condição de dicioná ria Emancipada dos limites semânticos é como se João Cabral concedesse maior autonomia ao verbo sugerindo ao leitor que o conceito pode ultrapassar o uso ordinário que dele pudéssemos fazer A pedra é capaz de ensinar à sua maneira o que talvez nos falte em silêncio tempo e modos Antonio Carlos Secchin sugere que esse poema seja um contraponto teórico a O Sertanejo Falando16 Quanto ao rio símbolo forma e personagem ele interpõe contornos na retidão e simetria das es trofes Mais uma vez é de identidade que se trata como se pode ver em O Vento no Canavial É anônimo o canavial sem feições como a campina é como um mar sem navios papel em branco de escrita É como um grande lençol sem dobras e sem bainha penugem de moça ao sol roupa lavada estendida MELO NETO 1999 p 150 Distanciados pela figuração na topografia e lu gar em meio à paisagem os elementos entram em imprevisto diálogo O canavial tornase cúmplice do mar aproximados não apenas devido à ima gem similar que desenham mas pelo aprendizado de que comungam e compartilham conosco Daí o caráter solidário de ambos os elementos fun damentais em uma poesia que por sua recusa ao estanque e ao óbvio mais ensina enquanto o poeta menos discorre João Cabral descreve e aplica aos seus versos uma autêntica didática da composição O que o mar sim aprende do canavial a elocução horizontal de seu verso a geórgica de cordel ininterrupta narrada em voz e silêncio paralelos O que o canavial sim aprende do mar o avançar em linha rasteira da onda o espraiarse minucioso de líquido alagando cova a cova onde se alonga MELO NETO 1999 p 335 Despedida Deve ficar claro para os alunos que ao abordar a poesia de João Cabral não se pode temer a forma concisa de seus versos nem supor que essa carac terística faça do poema ambiente hermético área restrita ou de difícil acesso Sob essa perspectiva o papel do professor pode ser decisivo Afinal devem se preencher eventuais lacunas de sentido propos tas como desafio pelo poeta com energia lucidez e divertimento A meta é corresponder ao pacto de lei tura lançado por um versejador que forjava de fora para dentro feito lição da pedra uma arte capaz de espicaçar a curiosidade e a inquietação do leitor Qual o saldo da aula Uma das principais ta refas do professor será relembrar ao aluno que Aproximação de João Cabral 11 Rev Grad USP vol 2 n 3 dez 2017 ele não está diante de uma poesia de somenos tampouco passatempo a enfeixar livros atirados displicentemente em consultórios ou salas de visi tas O contato com os versos cabralinos resulta no empenho do leitor Do pouco que se disse depreendase que os po emas de qualidade não cabem em relógios ou es crivaninhas nem disputam o espaço ordinário das contas a pagar No caso de João Cabral a poesia não obedece a toques de recolher É sucessão de metáforas que expandem o imaginário do leitor ultrapassam os limites da sala e persistem como itens a decifrar para além do espaçotempo reser vado à aula Sigamos o poeta feito pedra sol e rio Notas 1 The Calm Tão firme quanto eu poderia desejar que meus pensamentos estivessem Polido como o copo da senhora ou o que ali brilha O mar está agora E assim como as ilhas que Procuramos quando podemos nos mover nossos navios estão ancorados 2 ROSA 2001 p 126 3 O nada que é MELO NETO 2009 p 31 4 A disciplina é uma herança do saudoso professor e pesquisador Ivan Prado Teixeira 19502013 que entre outras coisas colaborou ativamente da reformulação do curso de Editoração entre 2012 e 2013 Assumi as aulas relacionadas à Colônia Im pério e República na ECA em abril de 2014 5 Em 1974 João Cabral de Melo Neto cedeu uma en trevista a Primeiro Plano programa da TV Cultura de São Paulo 6 A minha ideia racionalista de escrever é uma coisa que eu me imponho Eu não escrevo ambiguida des MELO NETO 1996 pp 2122 7 Dedicatória de A Educação pela Pedra 1966 A Manuel Bandeira essa antilira para seus oi tentanos MELO NETO 1999 p 334 8 Esta crítica de Antonio Candido foi para mim uma revelação Foi ela que me deu coragem de continu ar escrevendo no início de minha carreira MELO NETO 1996 p 24 9 Nunca fui exatamente um editor Só editei livros de amigos Eu ia atrás deles pedia a obra e edita va Entre o final dos anos 40 e o início da de 50 imprimi catorze trabalhos MELO NETO 1996 p 22 10 De acordo com Inez Cabral na década de 1950 enquanto o poeta pernambucano serviu no Consu lado de Londres como o trabalho no consulado não deixava muito tempo livre mergulhou na li teratura e cultura inglesas assim como no cinema clássico mundial CABRAL 2016 p 32 11 Utilizo o conceito de dicção como forma de ressaltar o fato de que o eu lírico é uma persona criada pelo poeta e que não se confunde com ele Essa distinção tem se mostrado produtiva nas aulas não exclusivamente sobre a obra de João Cabral de Melo Neto 12 Cabral aprovado em concurso público começa ra a trabalhar como Assistente de Seleção do Dasp Departamento Administrativo do Serviço Público em 1943 SÜSSEKIND 2001 p 193 13 os símbolos da Pedra e do Rio a oposição dialética do seco e do úmido do sol e da água inte gram o patrimônio simbólico da humanidade desde a mais remota antiguidade Já Heráclito de Éfeso afirmava que a harmonia da água e do fogo no organismo constitui saúde a doença é a ruptura do equilíbrio harmonioso dos contrários ESCO REL 1973 p 53 14 Segundo Haroldo de Campos a poesia cabralina convida à participação poética por parte do leitor CAMPOS 1967 p 71 15 Daí porque o sertanejo fala pouco as palavras de pedra ulceram a boca e no idioma pedra se fala doloroso o natural desse idioma fala à força Daí também porque ele fala devagar tem de pegar as palavras com cuidado confeitálas na língua rebuçálas pois toma tempo todo esse trabalho MELO NETO 1999 p 336 Referências Bibliográficas BARBOSA João Alexandre A Imitação da Forma uma Leitura de João Cabral de Melo Neto São Paulo Duas Cidades 1975 João Cabral de Melo Neto 2 ed São Paulo Publifolha 2008 CABRAL Inez João Cabral de Melo Neto a Literatu ra como Turismo São Paulo Alfaguara 2016 CAMPOS Augusto de PIGNATARI Décio CAMPOS Haroldo de Teoria da Poesia Concreta Textos Críticos e Manifestos 19501960 Cotia Ateliê 2006 CAMPOS Haroldo de Metalinguagem Petrópolis Vozes 1967 CANDIDO Antonio Poesia ao Norte Revista Remate de Males Campinas Editora Unicamp 1999 pp 914 12 CASTELLO José João Cabral de Melo Neto o Ho mem sem Alma Diário de Tudo Rio de Janeiro Ber trand 2006 DONNE John The Calm Disponível em ht tpswwwpoetryfoundationorgpoetsjohndonne Acessado em 13 jul 2017 ESCOREL Lauro A Pedra e o Rio uma Interpretação da Poesia de João Cabral de Melo Neto São Paulo Duas Cidades 1973 MELO NETO João Cabral de Cadernos de Litera tura Brasileira n 1 São Paulo Instituto Moreira Salles 1996 Obra completa 3 reimp Rio de Janeiro Nova Aguilar 1999 Agrestes Rio de Janeiro Objetiva 2009 NUNES Benedito João Cabral de Melo Neto 2 ed Petrópolis Vozes 1971 PIGNATARI Décio Depoimento In CALLA DO Antonio et al Depoimentos sobre João Guimarães Rosa e sua Obra Rio de Janeiro Nova Fronteira 2011 pp 3339 QUATRO Vezes Quatro João Cabral de Melo Neto Do cumentário TV Escola 2007 2709 Disponível em httptvescolamecgovbrtvevideomestresdalite raturaquatrovezesquatrojoaocabraldemeloneto Acessado em 13 jul 2017 REBUZZI Solange O Idioma Pedra de João Cabral São Paulo Perspectiva 2010 ROSA João Guimarães O Espelho In Primeiras Estórias 15 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 2001 pp 119128 SAMPAIO Maria Lúcia Pinheiro Processos Retóricos na Obra de João Cabral de Melo Neto Assis Ilpha São Paulo Hucitec 1978 SANTANNA Affonso Romano de Entre Drum mond e Cabral São Paulo Editora Unesp 2014 SECCHIN Antonio Carlos João Cabral de Melo Neto uma Fala só Lâmina São Paulo Cosac Naify 2014 SHIGUEHARA Alexandre Koji Ao Longo do Rio João Cabral e Três Poemas do Capiberibe São Paulo He dra ECidade 2010 SILVEIRA Marly da Prefácio In MELO NETO João Cabral de Obra Completa 3 reimp Rio de Janeiro Nova Aguilar 1999 pp 1524 SÜSSEKIND Flora Correspondência de Cabral com Bandeira e Drummond Rio de Janeiro Nova Fronteira Edições Casa de Rui Barbosa 2001 Publicado em 22122017 Aproximação de João Cabral