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Literatura Ocidental II Liliana Reales Rogério Confortin Florianópolis 2009 3 Período Governo Federal Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro de Educação Fernando Haddad Secretário de Ensino a Distância Carlos Eduardo Bielschowky Coordenador Nacional da Universidade Aberta do Brasil Celso Costa Universidade Federal de Santa Catarina Reitor Alvaro Toubes Prata Vicereitor Carlos Alberto Justo da Silva Secretário de Educação a Distância Cícero Barbosa Próreitora de Ensino de Graduação Yara Maria Rauh Muller Próreitora de Pesquisa e Extensão Débora Peres Menezes Próreitora de PósGraduação Maria Lúcia de Barros Camargo Próreitor de Desenvolvimento Humano e Social Luiz Henrique Vieira da Silva Próreitor de InfraEstrutura João Batista Furtuoso Próreitor de Assuntos Estudantis Cláudio José Amante Centro de Ciências da Educação Wilson Schmidt Curso de Licenciatura em LetrasEspanhol na Modalidade a Distância Diretor Unidade de Ensino Felício Wessling Margutti Chefe do Departamento Rosana Denise Koerich Coordenadoras de Curso Maria José Damiani Costa Vera Regina de A Vieira Coordenador de Tutoria Felipe Vieira Pacheco Coordenação Pedagógica LANTECCED Coordenação de Ambiente Virtual HiperlabCCE Projeto Gráfico Coordenação Luiz Salomão Ribas Gomez Equipe Gabriela Medved Vieira Pricila Cristina da Silva Adaptação Laura Martins Rodrigues Comissão Editorial Adriana Kuerten Dellagnello Maria José Damiani Costa Meta Elisabeth Zipser Rosana Denise Koerich Vera Regina de Aquino Vieira Equipe de Desenvolvimento de Materiais Laboratório de Novas Tecnologias LANTECCED Coordenação Geral Andrea Lapa Coordenação Pedagógica Roseli Zen Cerny Material Impresso e Hipermídia Coordenação Thiago Rocha Oliveira Laura Martins Rodrigues Diagramação Eduardo Malaguti Santaella Jessé Torres Tratamento de imagens Thiago Rocha Oliveira Gabriel Nietsche Revisão gramatical Rosangela Santos de Souza Design Instrucional Coordenação Isabella Benfica Barbosa Designer Instrucional Felipe Vieira Pacheco Copyright2009 Universidade Federal de Santa Catarina Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida transmitida e gravada sem a prévia autorização por escrito da Universidade Federal de Santa Catarina Ficha catalográfica Catalogação na fonte elaborada na DECTI da Biblioteca Universitária da Universidade Federal de Santa Catarina R288l Reales Liliana Literatura ocidental II Liliana Reales Rogério Confortin Florianópolis LLECCEUFSC 2009 110 p ISBN 9788561483142 1 Literatura ocidental 2 Século XX I Confortin Rogério IITítulo CDU 82 Sumário Unidade A 9 1 O literário e os conceitos de Afecção e Duração 11 11 O literário 11 12 O conceito de afecção 12 13 O conceito de duração 17 2 A narração em primeira pessoa 19 2 1 A passagem da narração em terceira pessoa à narração em primeira pessoa 19 Unidade B 23 3 A dessacralização da obra de arte 25 31 Retomando algumas questões da Unidade anterior 25 32 As contribuições teóricas deWalter Benjamin 28 33 O narrador 30 Unidade C 35 4 A experimentação narrativa 37 41 Em busca de uma nova temporalidade ficcional 37 Unidade D 45 Introdução 47 5 A experiência figurativa do tempo e do espaço ficcionais 49 51 Marcel Proust 49 52 Marcel Proust crítico 53 6 Franz Kafka 57 61 Kafka e a transformação da literatura 57 62 A exigência da obra em Kafka 61 63 O papel fundamental da imagem do topógrafo na obra de Kafka 65 7 Um novo caminho contra a ilusão realista69 71 Virginia Woolf 69 72 Uma inovadora 70 8 A paixão da escritura 77 81 Samuel Beckett 77 82 Paixão melancólica 80 9 Um inovador 85 91 James Joyce breve biografia 85 92 Uma abordagem sobre o caráter parodístico do Ulisses 86 10 Uma crítica à teoria e à prática literárias 95 101 Alain RobbeGrillet 95 11 Um escritor erudito 99 111 Fama mundial 99 112 Uma biografia intelectual 100 113 Tlön metáfora do mundo 105 Referências 109 Apresentação Caro aluno A preparação deste livro didático Literatura Ocidental II apresentouse para nós não só como uma tarefa especialmente prazerosa mas também como um grande desafio A produção literária do Ocidente do século pas sado deu ao mundo uma extraordinária quantidade de obras de excelen te qualidade Em termos quantitativos teria que se ter promovido uma pesquisa exaustiva de catalogação das mais importantes publicações do século passado Em termos qualitativos a dificuldade da escolha é ainda maior devido às implicações teóricas que a Literatura Ocidental do Século XX passa a suscitar especialmente a narrativa Se a quantidade e a qualidade do material de uma Literatura Ocidental do Século XX são importantes em um estudo literário teríamos como outra questão implicada a dimensão da crítica enquanto construtora e legitima dora de modelos de apreciação dessa literatura Do mesmo modo como é densa a qualidade das obras literárias no ocidente no século XX também há uma visível variedade de escolas críticas que se empenharam em des crever e valorizar saberes dessa experiência literária Dada a diversidade e a densidade do objeto de nosso livro didático preten demos relacionar em dois tempos a escolha dos autores que aqui serão tra tados com uma observação geral sobre a qualidade da experiência literária enquanto experiência estética e a potência crítica de algumas escolas que se desenvolveram junto aos ritmos e aos desdobramentos de uma literatu ra que se instituiu como verdadeira experimentação e contraponto a um certo modelo de linguagem literária do século XIX Nesse sentido observamos também que o eixo principal de nossa propos ta será o de descrever em linhas gerais o desenvolvimento de uma certa passagem de um modelo de romance mimético apoiado numa estrutura narrativa em terceira pessoa que tende a esconder sutilmente o narrador através da ilusão retórica de um narrador onisciente à valorização de um narrador em primeira pessoa que traz consigo uma série de estratégias nar rativas diferenciadas e que elabora modelos diferenciados de tratamento do foco narrativo instituindo uma série de reelaborações da experiência narrativa do tempo e do espaço na Literatura Ocidental II Por outro lado levando em conta que há disciplinas específicas para tratar da lírica e do teatro decidimos nos concentrar no romance que traz desde o século XIX uma herança de valorização e na narrativa curta ou o conto muito valorizado também durante o século XX Para nossa disciplina com carga horária de 60 horasaulas dividimos o ma terial didático em quatro Unidades Na Unidade A propomos uma reflexão sobre a questão literária relacionada aos conceitos de afecção e de duração Na Unidade B estudaremos as contribuições de Walter Benjamin para se entender a arte e a literatura do século XX Na Unidade C estudaremos a busca da literatura por uma nova temporalidade ficcional e seu mergulho na experimentação narrativa Na Unidade D estudaremos alguns dos re presentantes mais importantes da literatura do século XX Desejamos a você um bom estudo Os autores Unidade A A questão literária e a questão crítica O literário e os conceitos de Afecção e Duração 11 CAPÍTULO 01 O literário e os conceitos de Afecção e Duração Neste Capitulo vamos ref etir sobre a questão literária os modos e as prá ticas singulares de experiência que ela elabora por meio da linguagem Também estudaremos o conceito de afecção entendido como operador de sentido da arte e o de duração enquanto conceito de f uxo de consciência do tempo 11 O literário A literatura se apresenta como verdadeiro tecido de formas e mo dos de expressão do sentido estético e cultural de uma sociedade em uma época Em outras palavras a escritura ou a textualidade literárias expressam no jogo de suas formas e na prática que fazem da linguagem as questões econômicas políticas f losóf cas e históricas presentes num determinado período histórico e em um determinado espaço Além de operar como um certo canal de exploração crítica dos acontecimentos históricos de um momento ou de uma época em nosso caso o século XX a literatura pode apresentar questões ainda não tematizadas pela ciência ou pela f losof a pois a escritura literária tem características pró prias que são os modos e as práticas singulares de experiência que ela elabora por meio da linguagem De um modo ou de outro a literatura tem relação com os fatos e desenvolvimentos culturais de um período os quais estão intimamente relacionados tanto à ciência quanto à f losof a Mas podemos af rmar que a literatura se dá enquanto tal ou seja enquanto fenômeno e expressão artística por meio de uma linguagem diferenciada da linguagem por meio da qual a ciência e a f losof a se tornam possíveis Isso não signif ca que a literatura não se interseccione a partir de uma estrutura comum de linguagem com a ciência e com a f losof a A linguagem como es trutura de signif cação constitui e institui modelos de compreensão do mundo Tanto a ciência quanto a f losof a e a arte se desdobram em pos 1 Literatura Ocidental II 12 síveis modelos através dos quais o mundo se apresenta de forma múlti pla e interseccionada Finalmente diríamos que os modelos mesmos se interpenetram gerando e transformandose a si próprios Segundo o f lósofo Gilles Deleuze enquanto a ciência operaria por meio de funções e percepções dos fenômenos a f losof a operaria a par tir de conceitos e proposições e a arte de modo geral como a literatura de modo particular operaria a partir de afecções ou modos expressivos específ cos de ordem estética 12 O conceito de afecção O conceito de afecção entendido como operador de sentido da arte seria grosso modo toda relação sempre mediada e intrínseca material e subjetiva que se estabeleceria de forma dinâmica na produção da obra de arte Nesse sentido ao qual remete Deleuze em relação à afecção a obra de arte é experimentada a partir de níveis de sensação que se dão no próprio trabalho de elaboração do artista e que continuam coexistindo como relações sensórias dinâmicas com uma idéia de arte compartilha da socialmente e corporalmente vale dizer que são vivenciadas no jogo de nossa subjetividade e de nossa coletividade Gilles Deleuze Não entraremos em uma discussão propriamente teórica dessas di ferenças conceituais Optaremos por apresentar por meio de links os autores e teóricos que são fundamentais para uma compreensão da variedade e da singularidade das transformações da linguagem literária no século XX Você pode acessar o endereço httpwww dossiedeleuzebloggercombr para obter informações sobre este importante f lósofo francês Nessa mesma página de Internet há outros links interessantes que possibilitam a leitura de textos e cur sos de Gilles Deleuze Não se preocupe em entender tudo logo de início o conhecimento é algo que se faz de forma progressiva e sempre com perseverança e curiosidade Consulte um bom dicio nário e sites com credibilidade para elaborar para você mesmo um conhecimento sempre mais detalhado e nuançado sobre os con ceitos teóricos O literário e os conceitos de Afecção e Duração 13 CAPÍTULO 01 Ora essas vivências subjetivas e coletivas a um só tempo e que di zem respeito à arte moderna e contemporânea incluindo aí a literatura são a própria experiência corpórea da arte São a experiência afectiva proporcionada aos corpos que vivenciam a arte como espectadores e atores dessa mesma situação artística se assim podemos dizer Os cor pos os nossos corpos afetam e são afetados pelas afecções proporciona das pela situação artística da obra de arte Nesse sentido contemporâneo de uma teoria da arte a própria obra de arte deixa de ser apenas um objeto artístico a ser interpretado pelo espectador ou leitor para ser pensada como coexistência junto ao es pectador ou leitor fazendo parte de um complexo de fatores que inf ui e é inf uenciado como situação ou performação artística A arte passa a ser percebida e mesmo afetada e não apenas a signif car simbolicamen te Ou seja a partir dessa noção de afecção podemos pensar a arte não apenas como objeto belo ou estranho ou diferente mas como ver dadeira possibilidade de expor uma relação complexa de forças afectivas que transitam por todo o processo de coexistência entre a experiência da arte e a multiplicidade das relações sócioculturais Um exemplo da operatória dessa noção de afecção pode ser obser vado na pintura impressionista que passa a desejar captar todo o mo vimento de transformação da luz durante o passar das horas A partir dessa relação perceptivaafectiva o impressionismo tenta dar conta de uma certa performance de afecção dessa transição luminosa enquanto interpretação dinâmica entre a passagem do tempo e sua possibilidade de f guração como experiência de representação nãorealista do real O fato de se colocar o termo representação entre aspas indica justamen te que o que se entende por representação pode ser percebido de forma afectiva ou seja que no trabalho de cópia de uma paisagem essa có pia não será e nunca o foi algo que poderia chegar a mimetizar sua origem real Isso porque justamente não é nunca uma cópia mas sim um processo que performa toda uma situação artística É sempre um complexo de relações que acontece numa multiplicidade de opções e escolhas Por exemplo o movimento da luz sobre os objetos a mudança da aparência da paisagem em função do jogo de sombras que ai se pro duz a escolha das cores e sua vacilação como ato na tela as interrupções de todo tipo exteriores ao trabalho do pintor etc Para saber mais sobre pin tura impressionista acesse a seguinte página http eswikipediaorgwikiImpre sionismo Também acesse a página onde você poderá ler sobre pósimpressionismo e sobre importantes pintores considerados por alguns críticos pertencentes a essa tendência tais como Vincent Van Gogh e Paul Gauguin httpeswikipediaorgwiki Postimpresionismo e httpwwwmonografi as comtrabajosimpresionismo impresionismoshtml Literatura Ocidental II 14 O trabalho do pintor passa da preocupação com um tipo de mode lo representativo para o exercício de outra forma de experiência plástica do real As artes plásticas tendem a partir desse momento situado a partir da segunda metade do século XIX e início do século XX a um processo dinâmico e intrinsecamente vinculado a uma nova atitude per ceptiva e de concepção do real Nesse sentido sujeito pintor e objeto de pintura se confundem e não representam mais pólos absolutamente opostos do ponto de vista físico e f losóf co O momento histórico de emergência do impressionismo nas artes plásticas se dá concomitantemente ao desenvolvimento da fotogra f a como técnica cada vez mais elaborada de reprodução de ima gens tornando possível toda uma nova experiência de reprodução pictórica do real As particularidades técnicas e o efeito realista da fotograf a inf uenciam diretamente na transformação dos modelos de representação das artes plásticas Uma nova revolução indus trial surgia instituindo formas inovadoras de leitura do mundo A questão tecnológica exemplif cada pela reprodução técnica em série fordismo na indústria automobilística e fotograf a e cine ma nas artes será um elemento importante de transformação do mundo Vale lembrar que o contexto histórico do f m do século XIX e começo do século XX mostra a emergência de correntes de pensamento econômico e social como o comunismo e o socialis mo baseadas na leitura de Marx e as ideologias nacionalistas de cunho fascista Nesse contexto de transformação radical dos meios de produção há todo um efervecimento das questões ideológicas que se trans formam a si próprias ao atravessarem as relações sociais Essas tensões sociais e políticas de um novo mundo maquinizado tan to produtor de ideologias socialistas quanto nacionalistas que se encrudeleceram como o stalinismo ou nazismo de Hitler numa Europa que passara pelas duas maiores guerras da história recente de 1914 a 1918 e de 1937 a 1945 constituem o panorama histórico complexo e multifacetado do que podemos a principio entender por Literatura Ocidental do século XX O literário e os conceitos de Afecção e Duração 15 CAPÍTULO 01 Dentre outras correntes estéticas o impressionismo se contraporia a um modelo de pintura realista que se conf guraria a partir de certas regras de perspectiva de enquadramento de uso das cores e de toda uma herança f gurativa O impressionismo surge como outro modelo de representação pictórica alicerçado por outros elementos perspectivos e f gurativos que se elaborarão como alternativa na pintura a busca de uma relação de representação dinâmica da luz a necessidade de uma liberação do realismo da pintura prémoderna inf uencia a transfor mação advinda do surgimento da técnica fotográf ca no contexto mais amplo de toda a revolução das técnicas do começo do séc XX Dessa contextualização geral das transformações políticas sociais técnicas e estéticas ocorridas na passagem do séc XIX ao séc XX e que implicam uma transformação profunda nos modos de interpretação f gu rativa da realidade poderíamos dizer que do mesmo modo como existi ram modelos estéticos específ cos nas artes plásticas e que foram radical mente contestados na virada do século a partir das diversas vanguardas artísticas como por exemplo o impressionismo o cubismo o expres sionismo o dadaísmo e o surrealismo também um certo modelo esté tico do romance do séc XIX e que se tornou diríamos hegemônico será contestado e superado de forma crescente e contundente durante todo o séc XX Nesse sentido em contraponto ao modelo preponderante do ro mance do século XIX calcado em um narrador em terceira pessoa modelo desenvolvido e levado a um grau de elaboração altíssimo por grandes escritores franceses como Victor Hugo Balzac Flaubert e ou tros e que almejava como entidade narrativa desaparecer para o lei tor por trás de uma espécie de ilusão retórica criada a partir das minú cias detalhistas de um narrador onisciente Marcel Proust no começo do século XX colocará em prática outro modelo estético baseado em diferentes procedimentos narrativos De fato Proust não irá estabelecer algo absolutamente inédito ao passar a narrar em primeira pessoa a história de sua obra mestra La Recherche du temps perdu traduzida para o português como Em busca do tempo perdido Nesse movimento de passagem da narrativa em ter ceira pessoa para uma narrativa em primeira pessoa há muito mais do Literatura Ocidental II 16 que um gesto autobiográf co Em outras palavras poderíamos dizer que com a entrada desse Eu que conta a história há toda uma construção estratégica da narrativa que envolverá uma nova relação com a descri ção do tempo e do espaço na história Para Proust fora fundamental conseguir contar a história da bus ca de uma experiência de suas memórias de vida ou seja para o escritor Proust a busca de um tempo perdido passado escoado ou f nalmente vivenciado enquanto lembrança exposta pela escritura e pela experiên cia literária seria a busca de um tipo de narrativa que superasse um certo modelo narrativo denominado mimético Esse modelo justamente por se caracterizar por uma idéia de re presentação ou de imitação f dedigna do real mimesis é um vocábulo latino mimēsis que vem do grego μίμησις mimeisis e signif ca imitação será o padrão canônico de descrição narrativa em termos li terários no séc XIX Vale lembrar que do mesmo modo como nas artes plásticas há toda uma transformação dos modos de representação da realidade e dos objetos do mundo o modo mimético de descrição nar rativa é um modo específ co organizado e determinado historicamente a partir do uso de certas formas e estratégias narrativas consagradas no séc XIX Esse modelo mimético consagrado pelas obras de escritores como Balzac e Flaubert será então aos poucos transgredido de modo que a própria experiência do tempo possa ser tematizada e elaborada em sua relação paradoxal com a memória a rememoração e o entroncamento dessas relações com o espaço Tratase de toda a discussão teórica que atravessa a problemática da literatura como representação específ ca da experiência do homem no mundo na forma do relato f ccional ou tes temunhal Para um quadro geral histórico de uma evolução da repre sentação da realidade na Literatura Ocidental ver o f lósofo Erich Auer bach Auerbach escreveu um livro importante Mimesis A representação da realidade na literatura ocidental traduzido para o português em 1953 e para o espanhol em 1951 httpwwwpanfl etonegro comtreintaydoslibrosshtml O literário e os conceitos de Afecção e Duração 17 CAPÍTULO 01 13 O conceito de duração Seria necessário agora remetermonos à importância que tiveram as pesquisas de Bergson nas várias transformações dos modelos artísti cos e literários do começo do século XX O f lósofo francês Henry Berg son nascido em Paris em 1859 e morto na mesma cidade em 1941 teve sua produção intelectual preponderante no começo do século XX Berg son desenvolveu uma ref exão f losóf ca sobre a duração durée do tem po enquanto f uxo de consciência em contraposição ao tempo enquanto variável científ ca Para ele o tempo vivido da consciência é outra coisa que o tempo relacionado ao espaço em função de uma compreensão científ ca O tempo vivido da consciência a duração tem outro sentido que o tempo calculado como função do espaço O tempo enquanto con ceito científ co está relacionado a uma medida de deslocamento de um corpo no espaço segundo o tempo de seu intervalo Esse intervalo para Bergson pode ser pensado como tempo científ co ou como duração de um f uxo de consciência Para a consciência o que importa é justamente o que escorre entre as bordas da abstração matemática que opera a ciência em relação ao tempo Bergson inf uenciou muito a construção de outros modelos de des crição narrativa do tempo da história como o que ocorre na obra de Marcel Proust Em Busca do tempo perdido Veremos que toda uma rela ção da descrição do tempo em relação ao espaço na literatura do século XX está relacionada às pesquisas sobre a duração enquanto conceito de f uxo de consciência do tempo Da complexidade das descrições sen sórias de um narrador que conta a história de sua vida como romance de si mesmo como em Proust à desf guração e despersonalização do narrador que se refere a um mundo onde as fronteiras do inteligível e do sensível já não são mais tão discerníveis como nas narrativas do Nouve au roman que estudaremos mais tarde observase um denso processo de transformação do discurso narrativo O historiador da literatura Henri Godard identif ca na obra mes tra de Proust para além do uso da narração em primeira pessoa e das complicações autobiográf cas que daí emergem uma série de estratégias discursivas que vão criar toda a complexidade do trabalho romanesco Henry Bergson Literatura Ocidental II 18 proustiano sobre a questão da memória e da possibilidade de constru ção de outro modelo narrativo Em seu livro Le roman modes demploi que poderíamos traduzir por O Romance modos de uso ou Romance manual prático Henri Godard apresenta a tese de um certo desenvol vimento estético do romance no século XX na França como uma série de experimentações narrativas tendendo todas à crítica e mesmo ao rechaço do modelo de representação mimética do romance do séc XIX exemplif cado principalmente por Balzac e Flaubert dentre outros es critores canônicos no séc XIX A idéia de modo de uso ou de manual prático que se pode ler a partir do título do livro de Godard aponta para o tema do desenvolvi mento do romance na França no sentido de se pensar o romance como um verdadeiro aparelho de linguagem como máquina de linguagem ou máquina narrativa Podemos perceber que essa máquina de linguagem que é o romance ou num sentido mais amplo o texto narrativo ou o re lato f ccional no século XX passa a ter como motivação e interesse funda mental o questionamento da própria linguagem enquanto possibilidade de representação do real em toda a sua complexidade ou seja do real pensado e experienciado como texto naturalmente possível de ser lido e conseqüentemente aberto a uma multiplicidade interpretativa O conceito de cânone diz respeito a uma determinada norma de gosto e de importância de escritores que teriam uma certa pre ponderância por suas regras de estilo e pela amplitude de sua qua lidade estética Há toda uma discussão muito calorosa sobre este assunto e sobre a validade teórica de um conceito desse tipo É a discussão mesma que abre nosso livro didático nos termos de uma ref exão sobre a quantidade e a qualidade da produção literária no século XX ocidental Procuraremos desenvolver uma discussão sobre esse tema indicando e elaborando durante a apresentação um panorama históricocrítico que possa sustentar algumas linhas gerais de explicação para a escolha dos autores que serão trabalha dos nas Unidades dedicadas aos escritores escolhidos e que possi velmente poderão ser enquadrados na acepção do termo Cânone no século XX A narração em primeira pessoa CAPÍTULO 02 19 A narração em primeira pessoa Neste capítulo estudaremos a passagem da estrutura da ilusão retórica e referencial de um narrador em 3ª pessoa à prática narrativa em 1ª pessoa Estudaremos que a literatura no século XX de um modo ou de outro far seá escritura de campos de subjetividade por meio de uma abordagem f ccional porém cada vez mais impulsionada por um desejo autobiográf co que em última instância não revelará jamais um Eu verdadeiro do escritor mas uma gama enorme de relações ou de construções subjetivas 2 1 A passagem da narração em terceira pessoa à narração em primeira pessoa Em outras palavras a literatura no século XX é marcada pela con f guração de uma ruptura entre um modo de representação mimético do real assentado numa estrutura narrativa em 3ª pessoa e na ilusão retórica de um sutil desaparecimento referencial desse narrador e o sur gimento de uma experiência narrativa calcada no uso da 1ª pessoa pelo narrador personagem sendo que este pode em alguns casos ser repre sentado como o escritor f ccional do mesmo texto que o narra O século XX observará a emergência de uma complicação e aden samento da instância de um narradorpersonagem no sentido que a passagem da estrutura da ilusão retórica e referencial de um narrador em 3ª pessoa à prática narrativa em 1ª pessoa pressupõe em sua con textualização e emergência estética nada mais nem nada menos do que toda a caudalosa complexidade das transformações políticas técnicas e culturais que a história do século XX dif cilmente poderá esgotar A literatura do séc XX pode ser lida enquanto espaço ou território de experiência afectiva e cognitiva onde se reúnem os elementos absolu tamente interseccionados de uma experiência histórica e estética da rea lidade O pensamento do criador da psicanálise Sigmund Freud inf uen ciou fortemente para o advento do tipo de literatura que no século XX adquiriria um tom mais intimista e estratégias de f uxo de consciência 2 Para saber mais sobre o pai da psicanálise acesse as seguintes páginas http wwwbiografi asyvidascom monografi afreud e http eswikipediaorgwikiSig mundFreud Literatura Ocidental II 20 É a partir do conhecimento de um determinado esquema ou con f guração das forças afectivas desenvolvidas desde o nascimento que se pode estabelecer um conhecimento entre um certo quadro psíquico do indivíduo e um nível de consciência ou de linguagem capaz de com preender seu próprio desenvolvimento Naturalmente essa produção de conhecimento está também atravessada por uma multiplicidade de fatores que poderíamos chamar em grandes linhas fatores psicosocio econômicos Existiriam estruturas desse desenvolvimento que estariam mais ou menos fadadas a um certo esquecimento traumático como forma de de fesa da própria signif cação de um determinado evento na constituição da personalidade do indivíduo Toda uma dimensão de conhecimento sobre os modos de operação entre inconsciência e consciência a partir da conf guração psíquica do individuo passa a fazer parte do conhecimen to psicológico Na verdade o que Freud desenvolve é um conhecimento sobre a possibilidade de desmascarar certos efeitos de forças afectivas no desenvolvimento psíquico de certos indivíduos A esse método de investigação e de interpretação das conf gurações subjetivas dadas na relação do inconsciente e do consciente se nomeara de psicanálise Freud estabelecera na passagem do séc XIX ao séc XX as bases para o conhecimento do inconsciente entendido como verdadei ra dimensão das relações de afecção no homem O conhecimento sobre o desenvolvimento psíquico humano estaria daí em diante atrelado a toda uma pesquisa contínua da função do desenvolvi mento da sexualidade junto aos ritmos afetivos que o ser humano desenvolveria desde seu nascimento Como uma espécie de escri tura afectiva dimensionada a partir do inconsciente e funciona lizada na construção de modos de comportamento mais ou me nos condizentes com certas estruturas afectivas dadas a partir de processos ou fases do desenvolvimento psíquico Freud desenvolve uma verdadeira revolução no conhecimento a partir de uma lei tura do inconsciente interpretado enquanto estrutura arquetípica fundamental Saiba mais sobre o conceito de arquétipo visitando a página httpeswikipediaorgwikiArquetipo A narração em primeira pessoa CAPÍTULO 02 21 As anotações que acabamos de fazer sobre Freud procuram ape nas situar o acontecimento científ co das investigações freudianas no plano de conf guração da Literatura Ocidental do século XX Diversos serão os herdeiros e críticos da obra de Freud como por exemplo para citar apenas dois nomes Carl Jung e Jacques Lacan este último sendo aquele que desenvolve a idéia de um inconsciente estruturado como lin guagem Na verdade a obra de Freud por sua vasta dimensão e alcance epis temológico atravessará como um todo praticamente todas as áreas do conhecimento humano A literatura jamais será a mesma após o adven to da psicanálise pois de algum modo a escritura literária pode ser pen sada como verdadeiro trabalho de interpenetração e desdobramento da linguagem pensada a partir desse momento como dimensão de expo sição e retraimento de forças tanto afectivas quanto perceptivas da reali dade A literatura no século XX de um modo ou de outro se fará escri tura de campos de subjetividade por meio de uma abordagem f ccional porém cada vez mais impulsionada por um desejo autobiográf co que em última instância não revelará jamais um Eu verdadeiro do es critor mas uma gama enorme de relações ou de construções subjetivas que partem da subjetivização ou f ccionalização desse Eu à destinação f gurativa descritiva e narrativa de um Ele Este será a instância de diferença absoluta encarnada como Outro como o fora de mim aquele que não sou ou seja dimensão de negatividade ou de contraponto com a possibilidade de construção de identidade do sujeito Para saber mais sobre Carl Jung acesse httpwww psicomundoorgjung O site httpeswikipediaorg wikiJacquesLacan lhe aju dará a obter mais informação sobre Jacques Lacan A propósito dessa aparente força identitária a literatu ra do séc XX irá pouco a pouco e de forma sutil a um só tempo temática e semanticamente elabora da mostrar que ao mesmo tempo em que um Eu fi ctício é atravessado por questões autobiográfi cas ele se remete a si mesmo ou aos outros a sua volta a partir da exploração dos meandros muitas vezes ca óticos de sua subjetividade Essa subjetividade já não será a de um sujeito deter minado por uma analogia biográfi ca mas declarará a verdadeira complexidade de um mundo atravessado por questões tão densas quanto a própria dimensão do inconsciente em sua re lação indissociável com o que entendemos por cons ciência É nesse ponto bru moso onde se cruzam as questões fi losófi cas éticas e estéticas que nosso tem po procura estabelecer os nexos possíveis de entendi mento e onde procuramos observar também como a literatura ai se apresenta Unidade B A dessacralização da obra de arte Walter Benjamin A dessacralização da obra de arte 25 CAPÍTULO 03 A dessacralização da obra de arte Neste capitulo veremos como a arte não estando mais associada à valora ção de um caráter único e sagrado passa a ser considerada em relação ao seu valor de comércio de exposição de troca e de uso As transformações técnicas e materiais que passam a refundar a própria compreensão do mundo estão também relacionadas com uma transformação da signif cação simbólica e sociológica que a arte traduz como meio singular de interpretação histórica 31 Retomando algumas questões da Unidade anterior Tentaremos agora resumir o que delineamos até aqui como eixo crítico para se pensar o complexo e amplo tema de nossa disciplina Literatura Ocidental do século XX Não se poderia deixar de observar a complexidade quantitativa e qualitativa de um corpus que compreen de um século absolutamente conturbado por sua variedade de fatos e a emergência de toda uma indústria de reprodução técnica que transforma e multiplica vertiginosamente a obra de arte e a própria produção literá ria Lembremos o papel da fotograf a e do cinema como fundamentais em relação às inf uências técnicas e estéticas que terão sobre a literatura Lembremos também a complexidade do contexto histórico e político da passagem do séc XIX ao séc XX marcado por árduas lutas sociais e a formação das ideologias social nacionalistas que junto ao aconte cimento traumático das duas grandes guerras na primeira metade do século XX puseram a nu uma série de outras problemáticas históricas e culturais profundas que serão tematizadas a partir de conf gurações estéticas variadas nas obras literárias que trataremos mais adiante Verif cada a amplitude do corpus literário do século XX determi namos então como eixo organizador de análise da Literatura Ocidental desse século a passagem de uma estrutura narrativa mimética baseada 3 A noção de corpus se refere ao material documental e bi bliográfi co relacionado a um determinado tema de pesqui sa e que corresponde sempre a uma escolha metodológica que exige a delimitação de uma hipótese de trabalho cujo desenvolvimento tenta responder a determinadas questões Literatura Ocidental II 26 no uso da 3ª pessoa pelo narrador às estruturas e modos de descrição narrativa em 1ª pessoa Esse fenômeno estabelece uma experiência de exploração subjetiva do narrador que poderíamos compreender como a entrada em uma dimensão subjetivante e uma valorização da cena autobiográf ca da literatura do séc XX Em última análise essa dimensão autobiográf ca da literatura será também a abertura da narrativa a um desenvolvimento maior de suas próprias possibilidades formais e temáticas de contextualização críti ca estética e histórica do século XX O desdobramento da investigação subjetiva elaborada pelo narrador em 1ª pessoa não signif ca de forma alguma e é preciso que isso f que claro a eliminação do uso dis cursivo de um narrador em 3ª pessoa no desenvolvimento da literatura mas sim o deslocamento do foco narrativo a uma instância de subjetivi zação que passa a elaborar de outro modo a complexidade das questões que atravessam de forma inédita a literatura no séc XX Observado esse quadro de desenvolvimento estéticoformal da li teratura conf gurase na modernidade Para saber mais sobre o con ceito de Modernidade você pode consultar as seguintes páginas httpwwwmerca baorgDicPCMmodernidad htm e httpeswikipediaorg wikiModernidad O conceito de modernidade é chave para a compreensão da Li teratura Ocidental do séc XX Em linhas muito gerais podería mos marcar alguns traços descritivos do que se poderia chamar modernidade A Momento histórico mais ou menos delimitado entre a revolução francesa e a primeira metade do século XX B Essa circunscrição histórica e cronológica deve servir apenas para delimitar um espaço de análise que se relaciona em última instân cia à historia do conhecimento ocidental situado entre o advento do iluminismo e a continuidade da revolução industrial de f ns do século XIX também chamada pelos historiadores segunda e ter ceira revoluções industriais C Em termos f losóf cos a moder nidade se caracteriza como um amplo movimento de idéias que elabora uma crítica dos modos de pensamento moderno e anti go e que tem como eixo de análise um entendimento da natureza políticosocial do homem fundado na razão como controladora da sociedade em toda sua extensão Nesse sentido a razão antes de A dessacralização da obra de arte 27 CAPÍTULO 03 tudo passa a ser imposta como norma fundamental da socieda de D A modernidade carrega um sentido particular de crise dos parâmetros teóricos e históricos pois em seu sentido mais geral é o período no qual se desenvolve um pensamento que ao mesmo tempo em que situa a razão como guia do homem em direção aos ideais do iluminismo estampados nos lemas da revolução france sa Liberdade Igualdade e Fraternidade enfrentase com os pro blemas inerentes ao desenvolvimento histórico e social do próprio mundo ocidental quando a razão e a técnica não puderam superar inteiramente os desaf os de uma sociedade mais justa ou quando a ciência e as técnicas que surgem a partir do trabalho da razão como baluarte de uma emancipação social se tornam elas mesmas a ciência e a técnica formas de dominação e de exploração do ho mem Vale lembrar a crítica marxistasocialista da opressão das classes trabalhadoras do colonialismo e do imperialismo sobre os países alheios à hegemonia capitalista européia E No que concer ne à teoria literária propriamente dita a questão da modernidade está vinculada em seu espectro conceitual à produção e ao desen volvimento da literatura do século XX como experimentação de modos e de estratégias narrativas e estéticas que dêem conta da du pla relação complexa de construção da subjetividade desse homem moderno e suas relações intrínsecas à exterioridade do mundo social e político do qual ele faz parte Esse movimento apresenta os meios e os temas que a própria modernidade não deixa de conti nuar a elaborar como sua singular força histórica e f losóf ca uma postura literária de f ccionalização do Eu que operará um verda deiro cruzamento entre as preocupações estéticas e f losóf cas que engendram enquanto crise de paradigmas a cena do pensamento contemporâneo Literatura Ocidental II 28 32 As contribuições teóricas de Walter Benjamin Não poderíamos deixar de comentar em alguns parágrafos a im portância do ensaio A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica de Walter Benjamim De fato esse ensaio tem uma importância muito grande por trazer uma ref exão acurada sobre as relações sociológicas e simbólicas que atravessam na modernidade o sentido da obra de arte na passagem do século XIX ao século XX Vimos anteriormente como a fotograf a e o cinema representaram uma transformação importante nas formas de representação das artes plásticas e como já antes o mo vimento impressionista passara a representar o real a partir de outros modos de interpretação da luz e do movimento Benjamim em seu ensaio observa que com o advento de novas tecnologias e o surgimento de uma cultura baseada na reprodução téc nica de produtos e bens de consumo ocorrerá uma transformação no conceito de obra de arte A idéia central do ensaio é uma crítica a uma determinada evolução e derrocada do conceito de aura na obra de arte Com efeito para Benjamim a obra de arte operaria uma signif cação profunda relacionada com a idéia do sagrado e do divino desde a pré história Uma certa aura pairaria sobre a obra de arte implicando nes ta uma relação específ ca de poder vinculada às classes dominantes e aos modos como certas funções simbólicas são operadas na relação do artista com a obra e com o meio político e econômico que envolve a produção artística O caráter único da obra de arte remeteria a um certo ideal de poder das classes que poderiam ter acesso ou proximidade às obras que em sua caracterização profunda continuavam a emitir uma espécie de aura sagrada Com o advento dos meios de reprodução de massa como na indústria maquinizada e a produção de imagens em sé rie como ocorre com a técnica fotográf ca esse caráter de unicidade da obra se torna relativo Essas relações de reprodução técnica a partir do f m do século XIX terão papel fundamental na queda de uma idéia sagrada da obra de arte que Benjamim desenvolve junto à obra de Charles Baudelaire notadamente em relação ao poema La perte daureole A perda da aura Para saber sobre Walter Benjamin acesse http wwwepdlpcomescritor phpid1461 e httpwww infoamericaorgteoriabenja min1htm Para saber sobre este impor tante poeta e crítico francês acesse httpwwwbaudelai regaleoncom A dessacralização da obra de arte 29 CAPÍTULO 03 publicado originalmente em Spleen de Paris em 1862 no qual o poe ta francês descreve as transformações do meio urbano na cidade como ressonâncias incontornáveis de transformações no próprio trabalho de interpretação poética elaborado pelo artista Em resumo para Benjamim uma certa idéia de arte enquanto por tadora de uma aura simbólica é transformada em sua signif cação his tórica a partir do momento em que a arte não estando mais associada à valoração de um caráter único e sagrado passa a ser considerada em relação ao seu valor de comércio de exposição de troca e de uso As transformações técnicas e materiais que passam a refundar a própria compreensão do mundo estão também relacionadas com uma transfor mação da signif cação simbólica e sociológica que a arte traduz como meio singular de interpretação histórica Em última análise poderemos então pensar o tema da Literatura Ocidental no século XX a partir da leitura desse fundamental ensaio de Walter Benjamin A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica Diríamos para f nalizar que o ensaio de Benjamin pode ser lido como uma ref exão tributária de uma analítica dos meios de produção técnicos e econômicos associada a uma profunda compreensão socioló gica da arte enquanto atividade material e simbólica a um só tempo e que informa por sua experiência representativa e performativa da realidade a possibilidade de uma compreensão dinâmica do desenvolvimento his tórico do ocidente contextualizando um verdadeiro impasse político e cultural representado pelo advento das duas grandes guerras mundiais e que marcam de forma peremptória todo o século XX O ensaio de Benjamin trata essencialmente a discussão crítica do que poderíamos chamar análise históricosociológica do advento da cultura de massas Finalmente é do contexto do surgimento das massas populares proletárias e da constituição das multidões ou seja do contexto de emergência de uma dimensão do anonimato e do controle estatístico da população pelo estado que emerge como advento de uma nova etapa de industrialização e da constituição de ideologias de mercado voltadas para a produção e o controle do consumo qualquer consumo inclusive o consumo estético pelas multidões de que trata em última análise o ensaio de Benjamin Você poderá ler a íntegra deste ensaio de Benjamin em espanhol na página eletrôni ca que segue e que também contém em formato eletrô nico além de outros textos do fi lósofo outros importan tes textos de vários outros fi lósofos e críticos reconhe cidos historicamente neste tema fascinante da arte e de suas relações com a histó ria a sociedade a fi losofi a e a cultura no século XX httptijuanaartesblogspot com200503elarteenla eradelareproduccionhtml Charles Baudelaire Literatura Ocidental II 30 Podemos perceber nesse sentido a partir da ref exão benjaminia na o grau de importância que se estabelece entre uma compreensão sociológica do contexto político e econômico na primeira metade do século XX e o tema do estudo da literatura nesse início de século A constituição de modos diferentes de composição narrativa que se desen volve de forma diversif cada na literatura desse período se relaciona não apenas com uma vontade de inovação estilística ou estética por parte dos autores e artistas mas sobretudo impõese gradativamente como verdadeira necessidade crítica perante um mundo que emerge pleno de contradições de ordem política e econômica 33 O narrador Ao lado de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica podemos situar um outro importante ensaio de Benjamin O narrador De fato esse ensaio escrito no mesmo ano 1936 que o ensaio sobre a obra de arte é uma ref exão que tem como mérito estabelecer nexos profundos entre a atividade narrativa e as transformações políticas téc nicas e sociais que passam a descrever o mundo no século XX Esses nexos são fundamentais para podermos pensar os modos de construção de estratégias narrativas cada vez mais focadas numa fragmentação do sujeito enquanto entidade de papel que elabora seu próprio papel f c cional como narrador a meio caminho entre a f ccionalidade que o real empreende ao ser recortado em sua complexidade e a realidade da f cção enquanto processo de experimentação estética Para Benjamin há uma relação muito estreita entre a atividade de narrar enquanto fato imemorial e uma perda da experiência dessa mesma atividade no seio da sociedade moderna Na verdade Benjamin coloca essa perda de experiência como perda da capacidade de troca ou intercâmbio de experiências Essa perda da capacidade de troca de experiência é resultado de um desenvolvimento da técnica e da estru tura econômica capitalista bem como num sentido mais particular re sultado do verdadeiro trauma individual e coletivo que a experiência de guerra mundial apoiada por técnicas militares avassaladoras uso do avião de novos explosivos de bombas químicas etc deixara como A leitura de O narrador é fun damental para a compreen são das sutilezas e dos desen volvimentos de uma refl exão sobre o papel da estrutura da narração e de suas funções na história da literatura do século XX Você encontrará o ensaio na seguinte página httptijuanaartesblogspot com200503elnarrador html A dessacralização da obra de arte 31 CAPÍTULO 03 herança Por outro lado a antiga ética dos combates militares passa a ser substituída por uma estratégica e tática de guerra que transforma a própria lógica do combate que existia até então O homem que retornava da guerra em lugar de ter muitas experi ências para contar retornava emudecido e traumatizado A radicaliza ção das transformações que os avanços e o desenvolvimento da técnica que se mostram de forma traumática já na 1ª guerra mundial trou xeram transformará a atividade narrativa que se conhecia até então A experiência da narrativa oral ou seja da capacidade de narrar que se desenvolvia a partir do dizer e da fala entre os indivíduos de uma comunidade e da conseqüente transmissão de conhecimentos conse lhos e experiências entre eles passa por uma profunda transformação e desvalorização Pois como af rma Benjamin En todos los casos el que narra es un hombre que tiene consejos para el que escucha Y aunque hoy el saber dar consejo nos suene pasado de moda eso se debe a la circunstancia de una menguante comunicabili dad de la experiencia Consecuentemente estamos desasistidos de con sejo tanto en lo que nos concierne a nosotros mismos como a los demás El consejo no es tanto la respuesta a una cuestión como una propuesta referida a la continuación de una historia en curso Para procurárnoslo sería ante todo necesario ser capaces de narrarla Sin contar con que el ser humano sólo se abre a un consejo en la medida en que es capaz de articular su situación en palabras Benjamin 1936 Essa mudança que passa a ser percebida na experiência de narrar não se remete de forma nenhuma a uma decadência da atividade nar rativa e não se limita a ser pensada como fenômeno moderno ela faz parte de toda uma série de transformações materiais profundas que po dem ser situadas historicamente e que tem nessa mesma historicidade sua capacidade de ser pensada como complexo de relações tanto mate riais e técnicas como simbólicas e ideológicas Essas transformações em última instância irão deslocar a experiência da narração oral para outras formas de narrar seja a partir de suas mudança em nível simbólico seja a partir das novas tecnologias materiais de reprodução que advêm dos novos processos produtivos baseados na reprodutibilidade técnica lembremos do desenvolvimento da fotograf a e do cinema como verda deiros baluartes da nova industrialização Literatura Ocidental II 32 Essa mudança no estatuto da narração no começo do século XX não implica uma destituição total das formas tradicionais de narração mas sim numa mudança de suas formas de seus modos e de suas estra tégias narrativas É o caso do surgimento do romance que Benjamin coloca como exemplo De fato o romance depende em certa medida do desenvolvimento de uma imprensa baseada na reprodutibilidade e de exigências mate riais ou de suporte muito diferentes daquelas que sustentam a existên cia do gênero épico e que se apresenta como vimos atrelado às formas de intercâmbio do patrimônio de uma experiência de oralidade na for ma do conselho Na verdade o romance moderno representa a passagem de uma forma de narração baseada na experiência de intercâmbio das práticas narrativas coletivas à experiência narrativa baseada na segregação do indivíduo O narrador do romance narra experiências em sua origem baseadas em sua compreensão já apartada do sentido de narração fun dada na oralidade e na prática de uma experiência compartilhada como oralidade A análise de Benjamin em O narrador a respeito das transforma ções da experiência narrativa é sem dúvida uma das melhores ref exões sobre um tema que abarca para além dos temas relacionados à literatu ra do séc XX a amplitude de uma teoria geral da comunicação Nesse sentido o que devemos reter a partir dessa importante ref exão se refere ao relacionado ao paradigma de uma passagem de uma estrutura nar rativa calcada em um narrador em 3ª pessoa estabelecida no romance mimético do séc XIX aos desenvolvimentos diversif cados por todo o séc XX de outras estruturas narrativas baseadas numa introspecção e numa transformação muitas vezes radical do modelo mimético Nesse sentido ressaltaremos aqui em relação ao ensaio de Benja min sua aguda percepção sobre a mudança da forma de articulação de uma narrativa épica baseada na oralidade e uma narrativa que migra na modernidade chegando já no século XX à exploração de uma di mensão psicológica e explicativa sobre os fatos ou os núcleos de sentido da narrativa Desse modo aquilo que marca a contundência de uma A dessacralização da obra de arte 33 CAPÍTULO 03 narrativa baseada numa experiência de oralidade é sua estrutura bási ca subtraída de toda especulação explicativa e ou psicologizante Como af rma Benjamin Nada puede encomendar las historias a la memoria con mayor insisten cia que la continente concisión que las sustrae del análisis psicológico Y cuanto más natural sea esa renuncia a matizaciones psicológicas por parte del narrador tanto mayor la expectativa de aquélla de encontrar un lugar en la memoria del oyente y con mayor gusto tarde o tempra no éste la volverá a su vez a narrar Benjamin 1936 VIII Cf hiperlink O narrador que emerge na literatura do século XX é a f gura que corresponde ao contraponto mais expressivo do narrador oral Para Benjamin uma das garantias da transmissibilidade das histórias narra das estaria fundamentada na subtração de desdobramentos psicológi cos o que contrariamente é elevado à máxima potência pelo narrador em 1ª pessoa Esses fatos evocados na ref exão de Benjamin servirão para situar o contexto no qual se insere nossa ref exão sobre a Literatura Ocidental no século XX Veremos como cada vez mais haverá uma preocupação por parte dos escritores do século XX de aceder a outras formas e mo dos de se remeter ao tema da experiência narrativa e que em muitos casos ao invés de ocorrer a narração de acontecimentos ao modo de uma narrativa tradicional essa nova fase literária e f ccional muitas ve zes autobiográf ca ou que toma como referência operações textuais da autobiograf a passa a construir universos literários onde ocorre uma experiência de fragmentação e despersonalização do sujeito encarnado na f gura móvel e paradoxal do narrador presente na literatura desse século Unidade C Em busca de uma nova temporalidade ficcional A experimentação narrativa 37 CAPÍTULO 04 A experimentação narrativa Neste capítulo observaremos que o monólogo interior seria a marca da própria emergência de uma estratégia de valorização da experiência tem poral subjetiva Essa condução verticalizante da narrativa em torno a um Eu que busca narrar o mundo do ponto de vista de sua experiência singular opera em contraponto à horizontalidade da experiência de su cessão temporal da história narrada a qual é levada a cabo pelo romance mimético durante o século XIX 41 Em busca de uma nova temporalidade fi ccional Devemos ter em mente quanto ao estatuto da narrativa do século XX e especif camente quanto às transformações na estrutura narrativa do romance nesse século que a passagem de uma narração da 3ª pessoa para a 1ª pessoa carrega consigo como lei geral da narrativa romanesca a questão do tempo e do espaço como categorias fundamentais Poderíamos dizer que a temporalidade de uma narrativa passa ne cessariamente pela conjugação das dimensões de Tempo e de Espaço mo dalizadas por estratégias narrativas que comporão a história narrada Podese observar em alguns casos que a história narrada vale dizer o assunto contado numa sucessão de acontecimentos no interior do romance sofre pouco a pouco um processo de perda de sua força ao ser diluída pela própria experiência narrativa concentrada muitas vezes numa experiência de subjetivação do narrador e levada a cabo por uma preocupação em narrar em 1ª pessoa A história a ser contada en tão passa a ser relativizada por outras preocupações que passam a ocu par um papel privilegiado entre os narradores do século XX tais como a temática e a forma daquilo que será narrado Desse modo também uma nova temporalidade necessariamente se propaga como condição da experiência narrativa 4 Literatura Ocidental II 38 Muitos críticos concordam em af rmar que o monólogo interior que surge de forma elaborada em obras como as de James Joyce e de Virginia Woolf dentre outros é a marca da própria emergência de uma estratégia de valorização da experiência temporal subjetiva Essa condução verti calizante da narrativa em torno a um Eu que busca narrar o mundo do ponto de vista de sua experiência singular opera em contraponto à horizontalidade da experiência de sucessão temporal da história narrada a qual é levada a cabo pelo romance mimético durante o século XIX O monólogo interior ou seja os momentos da narrativa que sur gem com a elaboração no século XX de estratégias de narração em primeira pessoa pode ser pensado como espaço próprio ao desenvolvi mento do tempo em sua multiplicidade não linear A experiência temporal que temos em nossa vida cotidiana é marca da por uma certa abstração em relação a uma linha do tempo Podemos nos lembrar de experiências que vivemos ontem ao mesmo tempo em que projetamos e esperamos as experiências para amanhã Esse posicio namento hoje numa presença mais ou menos estável e nunca absoluta é o que entretanto fazme conceber a possibilidade da lembrança das ex periências passadas e a esperança da continuidade dessas experiências no amanhã Podemos nos esforçar para retraçar cronologicamente as experi ências que tivemos no passado mas sabemos que de algum modo há uma série de intercalações ou intrusões de outras experiências entre as ações que rememoramos a partir de um presente que não deixa de se mover Inclusive todas as esperanças que temos no futuro e que são projetadas a partir de nossos desejos momentâneos atravessam essa experiência de re memoração Essa posição nunca estática do presente é o que caracteriza ria a complexidade da experiência temporal em nossa vida cotidiana No entanto a experiência de temporalidade f ccional oferecida pela literatura deve ser entendida como uma estruturação estratégica de construção de linguagem diferente de nossa experiência cotidiana pelo fato de que sua elaboração se dá fora do encadeamento temporal que nos atravessa em tempo real Mas de algum modo a relativização do tempo enquanto f e cha abstrata permanece atravessando a construção f ccional Poderíamos af rmar junto a Henri Godard que de um modo geral a experiência narrativa do século XX procura encontrar uma certa ex A experimentação narrativa 39 CAPÍTULO 04 periência do presente Essa experiência do presente se refere ao que di zíamos acima sobre a abstração e o sentido de temporalidade em nossa vida cotidiana Aquele espaço onde nos posicionamos sempre mais ou menos em relação à lembrança ou ao desejo e aos projetos futuros na verdade entre essas duas direções que de algum modo são irredutíveis a esse mesmo presente que escoa entre os instantes Henri Godard af rmará antes de descrever a evolução das estraté gias de temporalidade do romance que a questão básica da temporalida de linear do romance mimético no século XIX foi a de se criar um tempo outro que aquele que nós vivemos GODARD 2006 p 248 mas o qual estava relacionado à necessidade da narrativa de se submeter ela mesma à própria lei do tempo que é a sucessão GODARD 2006 p 248 Ora a construção de outro tempo f ccional pressupõe a renúncia ao tempo próprio de vivência cotidiana este tempo que também se ba seia numa abstração mais ou menos ef ciente sobre sua sucessão visto que somos atravessados por lembranças e esperanças oriundas de uma temporalidade complexa que pomos a prova cotidianamente seja em relação ao passado ou ao futuro O romance mimético do século XIX forjara uma concepção de temporalidade que se estabelecera com a força de uma evidência Cou be às experiências narrativas modernistas e contemporâneas o papel de experimentação e de aguda crítica a esse modelo bem sucedido de temporalidade baseado na construção de uma ilusão retórica de um narrador onisciente que acabara por se camuf ar em seu próprio modelo perspectivo e em suas estratégias descritivas baseadas numa temporali dade linear e sucessiva O efeito de temporalidade que experimentamos numa obra como Em busca do tempo perdido de Proust pode ser pensado como o de sencadeamento de novas experiências f ccionais postas em prática pelo romance no século XX Proust dará um passo fundamental para uma nova experiência de temporalidade da narrativa ocidental ao iniciar seu grande romance a partir da construção de séries temporais que iriam ser relacionadas Literatura Ocidental II 40 umas às outras durante a própria experiência de narrativa que ele colo cava em prática Assim essas séries que são por exemplo as experiên cias de sono a descrição do espaço do quarto e os momentos em que o narrador desperta e rememora cenas e experiências passadas se repetem durante o romance criando uma rede de relações retrospectivas que servem para a elaboração de uma outra temporalidade diferente da su cessão lógica e linear dos romances miméticos do século XIX Na obra de Proust há uma relação lógica mas não necessariamente linear entre as séries e que pode ser conectada em diferentes momentos da longa narrativa A experiência do tempo na obra de Proust pode ser pensada como uma verdadeira rede de conexões entre imagens ou séries de signif cantes que se reportam umas às outras a partir de seus ele mentos dispersos pelo romance Os quartos por onde passa o narrador proustiano serão os espaços onde uma temporalidade não linear pode entrar em jogo e onde a experiência do sono e do despertar exercem uma relação direta na construção de outra estratégia de sucessão tem poral da história Depois de Proust haverá muitas outras experiências de construção f ccional de temporalidades que se preocuparão de uma forma ou de outra em superar os modelos de temporalidade mimética estabelecidos durante o século XIX Na França mesmo a inovadora narrativa prous tiana será alvo de críticas notadamente e a principio dos surrealistas como André Breton Michel Leiris Antonin Artaud Paul Eluard Jo seph Delteil Louis Aragon Philippe Soupault dentre outros que radi calizariam a experiência literária de narração através da construção de narradores que cada vez mais transgrediriam os modos de constitui ção do tempo da história bem como relativizariam sua própria posição identitária como sujeito Assistiremos cada vez mais depois dos marcos de surgimento da narrativa de Proust bem como das consagradas obras em língua inglesa de James Joyce e de Virginia Woolf ao surgimento de experimenta ções narrativas que levarão a uma radicalização da experiência do tem po e do espaço que farão do narrador um paradoxal protagonista da experiência narrativa justamente por tornarse uma presença cada vez mais forte em sua posição discursiva porém fragmentado e cindido Você poderá saber mais sobre esses autores na seguinte página http argeocitiescomvanguar diasliterariasautoressurre alismohtm A experimentação narrativa 41 CAPÍTULO 04 O monólogo interior como brevemente exposto e que James Joyce e Virginia Woolf desenvolvem magistralmente no início do século XX tornarseá a partir do desdobramento estético que possibilitam as vanguardas artísticas dadaísmo surrealismo etc uma estratégia fundamental de contestação do romance mimético do século XIX Isso porque é no monólogo interior que se cruza uma série de questões de ordem f losóf ca e estética A respeito da constituição de uma nova temporalidade f ccional na literatura do século XX ressaltando a quantidade a pluralidade e a singularidade de suas experiências literárias poderíamos dizer que é na construção de uma temporalidade constituída como descrição intersubjetiva de estados de percepção híbridos sugestivos delirantes hipnóticos angustiosos ou oníricos que uma experiência limite de exis tência estética ou existencial pode ter lugar num século marcado pelas duas grandes guerras mundiais Essa experiência limite seria fruto da própria realidade material técnica e política que o tipo de conhecimento acumulado nos últimos 150 anos pôde fazer emergir como verdadeiro abismo de contradições e paradoxos os quais o século XX narra como experiência histórica e literária Tratase não apenas de uma experiência de importantes avanços técnicos e científ cos e de grandes descobertas mas também da traumática vivência de suas guerras e genocídios A representação de um narrador sensível às conturbações exis tenciais às angustias às inseguranças e à desestabilização emocional decorrentes desse momento histórico e que advêm também de uma longa transformação histórica material e ideológica da literatura pode ser percebida como emergência já no f m do século XIX No f nal desse século já podemos observar diversas estratégias discursivas que se con trapõem à f gura estável de um narrador em 3ª pessoa exemplif cado aqui na forma paradigmática de uma literatura mimética A literatura de escritores como Balzac e Flaubert entre outros é exemplo dessa mu dança Podemos entrever na literatura do século XX o desdobramento de uma consciência histórica e estética que passa a aceder através da experiência literária de um narrador em 1ª pessoa a modos narrativos que exploram o caráter anacrônico da experiência de duração do tem po uma verticalização de uma experiência subjetiva do tempo Tal Literatura Ocidental II 42 experiência relativiza a estabilidade concebida por teses que defendem um desenvolvimento linear e regular da história nos moldes de uma narração mimética que procurou durante todo o seu período de rei nado pelo menos durante todo o século XIX af rmar a ilusão retórica de uma história e de uma vida dos personagens descolada da vida e da temporalidade fática Foi do que falamos até agora em relação às diversas estratégias nar rativas inauguradas no começo do século XX e que deslocam o discurso do narrador a uma construção da história e dos personagens que põe em cheque a ilusão retórica mimética operada pelo paradigma narrati vo do século XIX Mais importante que a percepção concreta do uso da primeira pessoa pelo narrador da Literatura Ocidental do século XX será a compreensão da representação do narrador como centro da re f exão da própria atividade literária e das relações que essa experiência específ ca tece com a ref exão existencial e f losóf ca Veremos que em Samuel Beckett por exemplo que produz desde a década de 1930 uma literatura sobre a qual muitos críticos concordam em destacar a sua densidade experimental psicológica e f losóf ca como literatura limite em sua experiência estética haverá o uso da 3ª pessoa pelo narrador Em Bande e Sarabande e Murph textos iniciais de sua obra o narrador penetra de tal modo irônico e com tal intensidade de erudição f losóf ca em questões existenciais que ao invés dessa narrati va estabelecer uma ilusão mimética da história e dos personagens ela desperta uma grande desconf ança no leitor a respeito da história e dos personagens que aí se apresentam e que praticamente são manipulados como meras marionetes pelo narrador Devemos entender que se bem destacamos o tratamento privile giado que recebeu o uso da 1a pessoa no discurso do narrador no perí odo literário em estudo não devemos pensar que o uso da 3a pessoa foi totalmente esquecido O destaque dado à passagem da 3a pessoa para a 1a pessoa se entende como um dos paradigmas que nos permite or ganizar as informações com f ns didáticos O paradigma da passagem de estratégias narrativas miméticas do século XIX a uma experiência de temporalidade e de subjetivização da experiência vivida do narrador no século XX deve ser observado fundamentalmente porque se trata de A experimentação narrativa 43 CAPÍTULO 04 um narrador que permite a representação da instabilidade da descon f ança da perplexidade e das atribulações existenciais do homem desse século conf itos que esse narrador passa a performar Utilizase o termo performar no sentido de um narrador que expõe suas crises atribulações e conf itos dentro de uma perspectiva de ex ploração existencial de indagação e busca pelo sentido não somente de sua vida singular mas também do ser Nesse procedimento tal prática narrativa convoca um leitor quase cúmplice participante junto com ele de sua crise existencial De fato o narrador que passamos a constatar se caracteriza por um tipo de crise que poderíamos af rmar sendo de ordem ontológica e fenomenológica Vimos que o desenvolvimento do romance durante o século XX está marcado por intensas experimentações formais e temáticas na construção dos relatos e que de um modo ou de outro essas cons truções se debatiam vigorosamente contra um modelo de represen tação que valorizava uma certa tomada de perspectiva e de posição por parte do narrador que tendia a se esconder atrás da própria ilusão de representatividade fruto dessa própria estratégia Essas estratégias miméticas se constituíam nas formas de des crição do espaço e do tempo e que tendiam a naturalizar a maneira de representação do ambiente romanesco baseada na constituição do espaço e do tempo próprios para serem experimentados e usufruídos pelos personagens Pois bem veremos que esse narrador onipotente quase divino criador do espaço e do tempo da história passa a partici par mais ativamente e introspectivamente da história questionando o mundo em que vive e muitas vezes o próprio procedimento f ccional que o torna possível O questionamento dos procedimentos do relato dentro do relato é uma das características de certas experiências narra tivas do século XX Essa entrada na cena literária por parte desse narrador ferido e traumatizado pelas intensas transformações do século XX fazse como performação de estados psíquicos e de crises existenciais construídas Leia sobre Ontologia em httpeswikipediaorg wikiOntologia e Acesse httpeswikipediaorgwiki FenomenologC3Ada para saber sobre Fenomenologia Literatura Ocidental II 44 por meio de estratégias narrativas que expõem tais estados como di álogos cruzados transgressão da ordem temporal ambigüidade e até contradição naquilo que se narra etc De uma intensa produção de ilusão de representação da realidade no século XIX baseada na descrição realista passamos a uma verda deira construção performática de experiências subjetivas e de um agudo questionamento existencial Mesmo que em muitas narrativas observe mos a representação de um narrador em 3a pessoa poderemos observar também que este tipo de narrador por momentos cede a voz narrativa a personagens que a assumirão expondo sua subjetividade certo caos emocional narrando fatos de modo ambíguo desrespeitando a ordem temporal etc Mas é com o surgimento desse narrador contemporâneo que de forma contundente se institui uma voz híbrida e indiscernível lugar opaco e ambíguo entre o autor e sua performance literária Daí que a morte do autor que será proferida por críticos da importância de Roland Barthes e Michel Foucault passar a ser tema dos mais controver sos por sua ousadia e pertinência O autor passa a ser uma entidade que se funde na f ccionalidade desses personagens narradores contemporâ neos atravessados pelas incertezas de um mundo que chega a plurais platôs críticos e onde a ciência a f losof a e a crítica de um modo geral devem se defrontar com as marcas que o desenvolvimento técnico e as crises políticas e ideológicas ajudaram a construir As transformações de ordem material técnica e ideológica do século XX serão decisivas para a construção de uma literatura questionadora crítica e voltada para os paradoxos que constituem a complexidade obje tiva e subjetiva do homem contemporâneo o que para muitos críticos e não sem controvérsia marcaria a passagem para outro período histórico caracterizado por uma certa falência de toda certeza ideológica ou de toda possibilidade de constituição de sistemas fortes e coesos de pensamen to Esse momento marca na comunidade acadêmica uma série de debates teóricos muito intensos e calorosos e é batizado de pósmodernidade Entre aspas obrigatoriamen te pois se trata de apenas mais um modelo de constru ção representativa do real pela linguagem Unidade D Alguns representantes da literatura ocidental do século XX 47 Introdução O quadro geral de uma passagem de um tipo de narrador mimético ao narrador de algum modo autobiográf co que passa a relativizar e a fragmen tar a própria estrutura narrativa dada no romance deve apenas constituir uma perspectiva geral de um quadro de desenvolvimento literário múltiplo e plural que se caracteriza justamente por sua diversif cada qualidade estética Os autores que serão estudados individualmente na seqüência nesta disciplina introdutória à Literatura Ocidental II representarão apenas uma parte de uma vasta experiência literária a partir do quadro de uma escolha canônica ou seja resultado de uma valoração estética e representativa modulada a partir do impacto e de uma certa impor tância dada pela fortuna crítica a seus trabalhos De um quadro que comporta um corpus literário enorme e que ultrapassaria de longe o espaço destinado a nossa disciplina impõese a necessidade da escolha de determinados autores e obras que possam representar a Literatura Ocidental do séc XX Nesse sentido é neces sário percebermos que uma história complexa atravessa tanto os mo dos quanto a expressividade das formas estéticas e retóricas de que a literatura se serve ao mesmo tempo em que se desenvolve simbólica e materialmente Não é outra a mensagem dos dois brilhantes ensaios já estudados de Walter Benjamin A obra de arte na era da reprodutibili dade técnica e O narrador É claro que a sutileza de argumentação e a densidade das observações do crítico alemão evocam a singular com plexidade que o estudo da literatura impõe justamente no sentido desta literatura elaborar como verdadeira máquina de linguagem o que de algum modo representa a própria possibilidade material e simbólica de uma expressão da cultura no sentido mais amplo do termo Daí que para um estudo aprofundado da Literatura Ocidental do séc XX seja necessário estar atento a outras disciplinas como a história a f losof a e o estudo das artes em geral A literatura está em diálogo constante com todos os ramos do conhecimento e está justamente nisso sua riqueza e fonte inesgotável de interesse 48 Procurarseá dar uma introdução ao estudo de cada um dos auto res selecionados a seguir abrindo a possibilidade para outras pesquisas individuais que possam ser feitas utilizando materiais documentos te orias e escolas críticas diferentes para aceder a compreensões cada vez mais elaboradas de pontos de vista diversos sobre a importância a qua lidade estética ou mesmo o impacto que uma determinada obra possa vir a exercer no mundo da cultura Além do mais não poderemos nos esquecer como foi dito acima que esses autores exemplif cam uma pos sibilidade de escolha que neste momento procura criar um certo qua dro representativo possível da vasta experiência literária do séc XX Há muitos outros autores tão importantes quanto os que convidamos vocês a conhecer em linhas gerais e que devem ser lidos com tanto interesse quanto os que lhes propomos a seguir Desejamos a todos uma ótima leitura e relembramos que uma lei tura crítica se faz junto com a produção de f chamentos de leitura o que possibilita tanto o exercício da escrita compreensiva ou seja da cons trução de uma retórica ou de um estilo pessoal de escritura quanto um registro de trabalho que possibilite o recurso do retorno a idéias e hipó teses de trabalho sobre os textos que se deseje analisar criticamente Enf m o movimento crítico se estabelece justamente no cruzamen to das leituras teóricas e no desenvolvimento de habilidades compreen sivas que só podem ter êxito quando associadas ao conhecimento cada vez mais elaborado de uma experiência de leitura do corpus literário este tão vasto quanto o próprio conhecimento humano acumulado no percurso da história A experiência fi gurativa do tempo e do espaço fi ccionais 49 CAPÍTULO 05 A experiência fi gurativa do tempo e do espaço fi ccionais Neste capitulo você estudará uma introdução à biograf a e à produção li terária de Marcel Proust um dos escritores mais representativos da Litera tura Ocidental do século XX Procurarseá dar uma introdução ao estudo de sua obra abrindo a possibilidade para outras pesquisas individuais que possam ser feitas utilizando materiais documentos teorias e escolas críticas diferentes para aceder a compreensões cada vez mais elaboradas de pontos de vista diversos sobre a importância a qualidade estética ou mesmo o impacto que uma determinada obra possa vir a exercer no mun do da cultura 51 Marcel Proust Valentin Louis Georges Eugène Marcel Proust mais conhecido como Marcel Proust foi um dos escritores que tendo vivenciado a pas sagem do século XIX para o século XX com a prosperidade e o gla mour da belle époque a nostalgia do f n de siècle e a explosão e renovação cultural das vanguardas européias mais tarde inf uenciou fortemente a literatura do séc XX Marcel Proust nasceu em Paris em 10 de Julho de 1871 e faleceu em 18 de novembro de 1922 na mesma cidade Sua obra principal À la recherche du temps perdu traduzida para o português como Em busca do tempo perdido composta de sete romances é con siderada por muitos críticos como uma das obras mais importantes da Literatura Ocidental de todos os tempos Muitos biógrafos narram que Marcel Proust sofreu de asma desde a infância e que aos nove anos de idade teve uma forte crise respiratória que deixaria marcas profundas em toda a sua vida Isto porque com a chegada da primavera e com o ciclo biológico natural de polinização das plantas Proust passaria a viver com o fantasma das crises asmáticas provocadas por reações alérgicas ao pólen Muitas biograf as também se referem ao sofrimento e à depressão que se seguiu à morte de sua mãe em 1905 após 5 Marcel Proust Para você poder entender melhor o contexto histórico e cultural que deu as condi ções de possibilidade para que a literatura do século XX tivesse as características que teve é de grande importân cia dedicar algum tempo à pesquisa dos três momentos culturais que mencionamos como marcos históricos que não podem se desconhecer a belle époque o fi n de siècle e o surgimento das vanguardas na Europa Literatura Ocidental II 50 a qual Proust praticamente se isolou da vida social no número 102 do Boulevard Haussmann em Paris e iniciou a escrita de sua obra cume que seria publicada entre 1913 e 1927 Em busca do tempo perdido Já foi mencionada anteriormente a importância que a obra de Proust teve para a literatura do século XX A obra proustiana ao de senvolver uma narrativa não apoiada de modo preponderante na trama privilegiou um trabalho de investigação sobre a experiência f gurativa do tempo e do espaço f ccionais Muitos críticos concordam em af rmar que a primeira frase do cé lebre texto de Em busca do tempo perdido Por muito tempo eu fui me deitar cedo ao remeter a história à primeira pessoa mais que contar a história de vida de um narrador que se lembra de suas experi ências inaugura na verdade a possibilidade de uma nova forma de es critura narrativa desvinculada de um modelo narrativo que chamamos de mimético Sem a preocupação com o desenvolvimento conclusivo da intriga não há um f nal nessa história que não seja a abertura mesma de uma nova relação do leitor com essa verdadeira aventura do espírito ao relatar f ccionalmente as diversas faces da experiência dos sentidos da memória e da ref exão estética por meio da literatura A experiência do tempo afetivo é determinante no sentido de que para Proust o tempo será descrito a partir de determinados lapsos se assim podemos dizer momentos nos quais um certo evento muitas vezes banal inaugura uma linha de construção temporal que surge ou emerge da relação singularíssima da imaginação da ref exão e da experiência de escritura como elaboração formal e expressiva da me mória como f cção literária Assim é que se apresenta a famosa cena da Madeleine na qual uma experiência degustativa de um pedaço de bolo molhado numa colher de chá se alia à atmosfera que envol ve esse momento dispositivando uma longa série de acontecimentos narrados e que extrapolam completamente sua suposta origem rela cionando esteticamente um momento banal de vivência à construção de toda uma série de outras experiências que no f m das contas serão redobradas e disseminadas sobre a experiência singular primeira à qual não retorna mais Você pode ler algumas páginas em versão digital do livro do professor Ra fael Gómez Pérez sobre a belle époque no seguinte endereço httpbooks googleco mbooksidnL6SLlk5t X4CpgPA134lpg PA134dqbelleepo quesourcewebots 3HPgj80z7ysigpU38 9Mvi3xF57OjDz90XM ylFykPPA134M1 Sobre o fi n de siècle e as vanguardas européias você pode ler alguns dados importantes nas seguintes páginas http eswikipedia orgwikiFindesiC 3A8cle e httpe swikipediaorgwiki Vanguardismo A experiência fi gurativa do tempo e do espaço fi ccionais 51 CAPÍTULO 05 Fonte sem origem determinada verdadeiro f uxo do tempo que se revelara na distância de uma memória construída sobre a certeza daquela presença tênue de felicidade o prazer indescritível da experiência tem poral produzida pela Madeleine molhada no chá produziria uma série de outras experiências temporais que f nalmente jamais alcançariam sua cintilante e dispersiva origem mas a relançariam adiante numa constan te fuga numa estranha capacidade de descrever essa mesma impossibili dade ou seja a impossibilidade de retornar a mesma sensação mas que produzirá paradoxalmente outras tantas experiências temporais às quais somente o movimento próprio à escritura literária poderia aceder Há nesse movimento da literatura o paradoxo que a arte e a crítica não cessarão de pôr em evidência durante todo o século XX Qual seja o momento no qual se instaura o movimento próprio de coexistência da busca e da criação de uma experiência limite de temporalidade ou como diz o próprio Proust ao descrever pontualmente o teor f losóf co de sua obra Um pouco de tempo em estado puro A busca dessa experiência vivida jamais será atingida como o me taforiza o próprio Proust e ao contrário deverá coexistir no mesmo movimento que instaura e cria a experiência pela via dupla da escritura vale dizer representação e performação a um só tempo do tecido móvel do vivido A experiência desse tempo em estado puro será f nalmente o que gerará sua própria impossibilidade conclusiva ou puramente repre sentativa Ali onde o narrador proustiano mais do que simplesmente representar essa oblíqua temporalidade experimentou no próprio redo bramento do tempo como que saltar sobre sua própria sombra Propomoslhe a leitura de um belo trecho do primeiro romance da série Em busca do tempo perdido Du côté de chez Swann Esse ro mance foi traduzido ao português como A caminho de Swann e ao espanhol como Por el camino de Swann A seguir transcrevemos o trecho que gostaríamos que você lesse prestando especial atenção ao desencadeamento da memória e do profundo prazer provocado pelo sabor da Madeleine molhada no chá Hacía ya muchos años que no existía para mí de Combray más que el escenario y el drama del momento de acostarme cuando un día de in Reprodução da capa de Du côté de chez Swann Você poderá encontrar Por el camino de Swann na seguinte página http wwwlibrosgratisweb comhtmlproustmarcel porelcaminodeswann indexhtm O trecho que reproduzimos corresponde às páginas 38 e 39 desse site cuja leitura integral recomendamos Você pode ter acesso a todos os ro mances que compõem En busca del tiempo perdido em espanhol na seguin te página ttpwww librosgratiswebcomauto resproustmarcelhtml Mas se preferir você pode ter acesso à totalida de da obra de Proust em francês a partir do link httpjydupuisapincorg Proustindexhtm Literatura Ocidental II 52 vierno al volver a casa mi madre viendo que yo tenía frío me propuso que tomara en contra de mi costumbre una taza de té Primero dije que no pero luego sin saber por qué volví de mi acuerdo Mandó mi madre por uno de esos bollos cortos y abultados que llaman magdalenas que parece que tienen por molde una valva de concha de peregrino Y muy pronto abrumado por el triste día que había pasado y por la perspectiva de otro tan melancólico por venir me llevé a los labios unas cucharadas de té en el que había echado un trozo de magdalena Pero en el mismo instante en que aquel trago con las miga del bollo tocó mi paladar me estremecí fi ja mi atención en algo extraordinario que ocurría en mi interior Un placer delicioso me invadió me aisló sin noción de lo que lo causaba Y él me convirtió las vicisitudes de la vida en indiferentes sus desastres en inofensivos y su brevedad en ilusoria todo del mismo modo que opera el amor llenándose de una esencia preciosa pero me jor dicho esa esencia no es que estuviera en mí es que era yo mismo Dejé de sentirme mediocre contingente y mortal De dónde podría venirme aquella alegría tan fuerte Me daba cuenta de que iba unida al sabor del té y del bollo pero le excedía en mucho y no debía de ser de la misma naturaleza De dónde venía y qué signifi caba Cómo llegar a aprehenderlo Bebo un segundo trago que no me dice más que el primero luego un tercero que ya me dice un poco menos Ya es hora de pararse parece que la virtud del brebaje va aminorándose Ya se ve claro que la verdad que yo busco no está en él sino en mí El brebaje la despertó pero no sabe cuál es y lo único que puede hacer es repetir indefi nidamente pero cada vez con menos intensidad ese testimonio que no sé interpretar y que quiero volver a pedirle dentro de un instante y encontrar intacto a mi disposición para llegar a una aclaración decisiva Dejo la taza y me vuelvo hacia mi alma Ella es la que tiene que dar con la verdad Pero cómo Grave incertidumbre ésta cuando el alma se siente superada por sí misma cuando ella la que busca es juntamente el país oscuro por donde ha de buscar sin que le sirva para nada su bagaje Buscar No sólo buscar crear Se encuentra ante una cosa que todavía no existe y a la que ella sola puede dar realidad y entrarla en el campo de su visión Y otra vez me pregunto Cuál puede ser ese desconocido estado que no trae consigo ninguna prueba lógica sino la evidencia de su felicidad y de su realidad junto a la que se desvanecen todas las restantes realidades Intento hacerlo aparecer de nuevo Vuelvo con el pensamiento al instante en que tomé la primera cucharada de té Y me encuentro con el mismo estado sin ninguna claridad nueva Pido a mi alma un esfuerzo más que me traiga otra vez la sensación fugitiva Y para que nada la estorbe en ese arranque con que va a probar captarla A experiência fi gurativa do tempo e do espaço fi ccionais 53 CAPÍTULO 05 aparta de mí todo obstáculo toda idea extraña y protejo mis oídos y mi atención contra los ruidos de la habitación vecina Pero como siento que se me cansa el alma sin lograr nada ahora la fuerzo por el contrario a esa distracción que antes le negaba a pensar en otra cosa a reponerse antes de la tentativa suprema Y luego por segunda vez hago el vacío frente a ella vuelvo a ponerla cara a cara con el sabor reciente del primer trago de té y siento estremecerse en mí algo que se agita que quiere elevarse algo que acaba de perder ancla a una gran profundidad no sé qué pero que va ascendiendo lentamente percibo la resistencia y oigo el rumor de las distancias que va atravesando Indudablemente lo que así palpita dentro de mi ser será la imagen y el recuerdo visual que enlazado al sabor aquel intenta seguirlo hasta lle gar a mí Pero lucha muy lejos y muy confusamente apenas si distingo el refl ejo neutro en que se confunde el inaprensible torbellino de los colores que se agitan pero no puedo discernir la forma y pedirle como a único intérprete posible que me traduzca el testimonio de su contem poráneo de su inseparable compañero el sabor y que me enseñe de qué circunstancia particular y de qué época del pasado se trata 52 Marcel Proust crítico Marcel Proust também escreveu sobre arte e estética em geral É o que provam por exemplo suas traduções do esteta inglês John Ruskin nas quais aparecem além do trabalho de tradução alguns apontamen tos e textos críticos que o autor da La Recherche escreveu como posi cionamento crítico em relação a Ruskin e a questões pertinentes a sua época É o caso do prefácio que escreveu sobre a tradução que fez de Sésame et les lys do citado John Ruskin Sur la lecture ou Sobre a leitura é um ensaio literário sobre estética particularmente sobre a questão da leitura e os devaneios prazerosos que daí provêm onde Proust antes de apenas prefaciar ou remeterse a seu mestre tem voz própria e assu me singularmente suas convicções estéticas De fato desde 1908 quando Proust começa a se desinteressar do projeto de tradução das obras de Ruskin e escreve então Contre Sainte Beuve Contra SainteBeuve em tradução livre podemos perceber uma preocupação com a crítica em sua obra Nesse livro Proust se posiciona Você pode ler o texto no seguinte endereço http jydupuisapincorgProust ProustSurlalecturepdf Literatura Ocidental II 54 justamente como o indica o título contra as posições estéticas e os mé todos de crítica literária de SainteBeuve Poderíamos pensar justamente a partir de Contre SainteBeuve em como a tarefa crítica em Proust aparece em sua própria obra mestra Em busca do tempo perdido Pois se nos atermos à história da gênese de sua obra veremos que o próprio autor considera esse livro como um ver dadeiro romance Com efeito Proust elabora a questão crítica a partir de uma expressividade própria trabalhada a partir de um estilo que aí não difere substancialmente do que será incansavelmente aprimorado até sua morte O título original desse livro Contre SainteBeuve Souvenir dune ma tinée Contra SainteBeuve Lembrança de uma manhã em tradução li vre remete indubitavelmente à temática da memória involuntária e que operará em La Recherche como verdadeiro diagrama teórico interno se assim podemos dizer pois exercerá um papel estruturado do modo de concepção sobre a temática do tempo e do espaço na obra realizando verdadeiras pontes entre momentos diferentes no interior da mesma Com efeito a respeito da complexidade dessa narrativa quase sem enredo mas povoada de descrições minuciosas e de momentos que vivem de certa microscopia ao mesmo tempo em que se def nem por vas tidões tão inusitadas quanto as visões que possibilitam certas paisagens físicas ou da memória não importa a ordem af rma o crítico Paulo Mendes Campos em seu ensaio sobre Em busca do Tempo perdido Proust teve a visão de sua obra no decorrer de um fato corriqueiro levou à boca um bolinho chamado madeleine molhado numa infusão de tília e teve a revivência de sua infância Sentiu um prazer delicioso antes de saber a causa fi cou indiferente às vicissitudes aos desastres inofensivos da vida à sua brevidade ilusória Deixou de se sentir medíocre contin gente mortal e passou a ser uma essência preciosa Era a luta e a vitória do Espírito contra o Tempo A vida interior é incompreensível à inteligên cia Para demonstrar isso Proust criou um sistema lógico com as leis próprias da vida afetiva em contraposição às leis do raciocínio Como o criador da psicanálise mostrou que o mundo do inconsciente é de uma vastidão ilimitada iluminado pela pequena luz da consciência Seu in tento é revelar a imagem do universo deformado pela inteligência Para Para entender a importân cia do trabalho deste polê mico crítico do século XIX cuja obra provocou grande interesse em Proust e que depois o levou a repensar criticamente suas idéias contestandoas em seu Contre SainteBeuve reco mendamoslhe a leitura do artigo do crítico Juan Malpar tida no seguinte endereço httpwwwletraslibres comindexphpart9750 O artigo de Malpartida também lhe ajudará a compreender muitos dos grandes temas de debate que ocuparam a cena intelectual do século XIX e que formaram parte do contexto cultural que infl uen ciou na gênese das profundas mudanças nas artes e na literatura que acontece ram na passagem do séc XIX para o XX A experiência fi gurativa do tempo e do espaço fi ccionais 55 CAPÍTULO 05 conseguir seu intento Proust muniuse de um estilo fora do comum quase sem similar na historia literária In SEIXAS H 2005 P 5657 Nesse sentido e a partir dessa consciência sobre os avatares do in consciente através do trabalho da escritura e da memória involuntária as lembranças se enredam umas às outras em determinados momentos Elas seguem um ritmo dado muitas vezes por momentos banais mas de forte signif cação para o narrador onde os sentidos se amarram a per cepções sonoras olfativas e tácteis como na cena da Madeleine molha da no chá mas também em outras cenas como por exemplo naquelas do último livro da série Le Temps retrouvé traduzido como O tempo redescoberto Nelas se percebe por parte do narrador a construção de um verdadeiro campo de observação sobre as descrições e os fatos nar rados ao longo da obra Campo de observação sobre o tempo af nal onde um olhar sobre a memória é como um feixe de recordações que associa partes do tempo com descrições que possibilitam verdadeiros blocos de percepção a vivência ou revivência de certas cenas que advêm como jorros de lembrança e que reúne no admirável estilo proustiano o tempo em seu ritmo dissociado ou fragmentário mais uma vez emol durado na dinâmica da escritura Em O tempo redescoberto certos momentos inauguram verdadei ras passagens ou túneis na densa rede da memória trazendo de volta os acontecimentos que se reorganizaram em outra dimensão temporal e constituíram até ali a rede complexa de uma história que se projeta em todas as direções da memória aí onde o tempo enf m redescoberto é o próprio de um retorno do passado sob novas formas sorte de hibridiza ção temporal levada a cabo pelo discurso literário e que marca a própria constituição da escritura f ccional posicionando o narrador num lugar próprio à literatura campo de experimentação estética do tempo e do espaço Campo da experiência afetiva enf m da sensação tornada espa ço e tempo f ccionais Em uma palavra Temporalidade Veremos mais adiante como a questão da memória involuntária que é o tema f losóf co por excelência que perpassa toda a cena da Made leine a que acabamos de nos remeter articulase na obra mestra prous tiana como o grande eixo de discussão crítica e teórica dentro do roman ce Uma das grandes características de certas obras literárias do século O tema da memória invo luntária foi mencionado na primeira parte deste livro e está relacionado ao tema da duração na fi losofi a de Henri Bérgson De fato o tempo que é descrito em sua relação a uma série de percepções sensoriais que o narrador proustiano experi menta é a própria descrição de uma consciência do tempo que se elabora ela mesma em relação à imagem que certas experiências elaboram na construção literária operada pelo discurso do narrador Assim é que um fato de percepção infl uenciará outra percepção afetiva que pode levar à construção ou à reconstrução em outro nível de cenas já descritas em ou tros momentos da obra Literatura Ocidental II 56 XX é justamente entender o texto f ccional como campo de ref exão de questões teóricas entender a escrita f ccional como escrita crítica mas sem abandonar no entanto a linguagem narrativa e inventiva De fato há diversos momentos em que personagens proustianos ao se relacionarem em círculos artísticos nos sarais literários nas festas e vernissages embalados pela música clássica discutem questões políticas f losóf cas e estéticas Nessas ocasiões o autor pôde desenvolver uma série de ref exões acuradas a respeito de temas como a percepção estética sobre o tempo e suas conseqüências literárias o amor e o ciúme como afetos complexos que se atraem e se distanciam onde a ausência do ser amado pode ser pensada como verdadeiro eixo analítico de toda uma aproxima ção psicológica sobre o sentido do afeto e a elucubração estéticof losóf ca e também o tema do homossexualismo que é tematizado particularmente no livro Sodoma e Gomorra de Em busca do tempo perdido A questão da ref exão crítica em Proust não deve ser entendida como sendo semelhante à forma técnica ou metodológica dos textos críticos acadêmicos mas antes está incorporada pela linguagem literária e mes mo trabalhada criativamente ela conserva a força polêmica de um texto crítico Essa linguagem crítica aparece muitas vezes na voz de seus perso nagens e em outras ocasiões ela é proferida pelo próprio solilóquio desse narrador proustiano que se confunde irremediavelmente com a f gura do escritor sem contudo poder ser aí identif cado de forma absoluta 57 Franz Kafka CAPÍTULO 06 Franz Kafka Neste capítulo você terá uma introdução à biograf a e à obra de um dos escritores que mais contribuiu a uma verdadeira revolução da literatura do século passado que obrigou a crítica a se repensar e a repensar a literatura 61 Kafka e a transformação da literatura Em seu famoso ensaio Kaf a y sus precursores o argentino Jorge Luis Borges outro dos grandes escritores do século XX que estudaremos mais adiante falando sobre os escritores que de um modo ou de outro teriam antecipado Kaf a chega a uma engenhosa conclusão Na verdade diz Borges cada escritor crea a sus precursores Franz Kaf a foi um des ses escritores que obrigou a crítica os leitores críticos e os próprios escri tores posteriores a ele a repensar a literatura Su labor escreve Borges referindose a Kaf a modif ca nuestra concepción del pasado como ha de modif car el futuro Borges 1974 712 O impacto da obra de Kaf a foi tão grande que a partir da leitura de seus textos foi possível segundo Borges ler de um modo renovado os autores anteriores a ele e obvia mente modif car a concepção da literatura posterior a sua obra Os estudos sobre Kaf a são milhares e muitas vezes fortemente dis similes fato que naturalmente nos alerta sobre a dif culdade da crítica de poder dar conta de uma obra tão complexa quanto de inesgotáveis interpretações sobre a qual existe no entanto o consenso de se tratar de uma das que mais inf uenciou a literatura do século XX até hoje O f ló sofo e escritor francês JeanPaul Sartre por exemplo não duvidou em chamálo de pai da literatura moderna Tanto reconhecimento justo sem dúvidas contrasta com o que foi a sua existência uma vida humil de dirseia escondida de um homem marcado para a morte prematura e em cujo túmulo se escreveria a palavra que escreve o espectro na fa mosa gravura de Goya Nada af rma Otto Maria Carpeaux em um belo ensaio sobre o nosso autor Carpeaux 2005 15 6 Franz Kafka Literatura Ocidental II 58 Franz Kaf a nasceu em Praga em 1883 e morreu de tuberculose no sanatório de um obscuro médico de Kierling perto de Viena em 1924 Na época em que Kaf a nasceu a cidade estava sob o domínio do Império Austrohúngaro e somente em 1918 seis anos antes da morte de Kaf a foi proclamada a República de Tchecoslováquia com capital em Praga que durará até 1993 quando se divide em República Tcheca e Eslováquia Otto Maria Carpeaux crítico erudito e grande historiador da literatura nascido em Viena em 1900 e refugiado no Brasil durante a segunda guerra mundial traça no ensaio mencionado um esboço do que teria sido a atribulada vida de Kaf a e também das peripécias pelas que passaram os originais de sua obra Uma das observações mais interessantes de Carpeaux sobre a vida de Kaf a é a sua relação com a sua cidade natal onde morou a vida toda mas com a qual lhe teria sido difícil estabelecer laços identitários claros devido às características peculiares da Praga dessa época é uma cidade cheia de recordações e de espectros habitada por tchecos que não querem falar alemão e por alemães que não sabem falar tcheco e no meio entre eles uma minoria judaica que fala alemão sem ser alemã mas que tampouco é tcheca Em caso nenhum Kafka pode ser chamado como é usual nos países anglosaxônicos e no Brasil escritor tcheco Seria escri tor austríaco Não existe uma independente literatura austríaca faz parte da literatura alemã e Kafka escreveu sempre e tudo em alemão Mas seria então escritor alemão Seria ele o primeiro a protestar pois embora desobedecendo às crenças e às leis de sua religião paterna sempre julgou ser judeu Carpe aux 2005 16 Este esclarecedor trecho revela também uma questão essencial o próprio Kaf a se considerava judeu mesmo não seguindo as leis de sua religião A condição judaica é um tema dos mais ricos e interessantes e sobre o qual muitos grandes f lósofos se debruçaram e se debruçam atual mente A ele está associado o tema do exílio do sem pátria sem terra da displaced person a que Otto Maria Carpeaux se refere a pessoa deslocada que nunca encontra a sua casa seu lugar Um tema que como veremos adiante Maurice Blanchot destaca quando faz a sua leitura de Kaf a A ele está ligado outro tema importante que segundo muitos críticos teria sido decisivo para a vida literária de Kaf a a difícil relação com seu pai a quem Carpeaux se refere com as seguintes palavras Mal agüentou a Otto Maria Carpeaux foi um dos mais importantes críticos e historiadores da literatura no Brasil país aonde chegou em 1939 fugindo dos nazistas Car peaux nasceu na cosmo polita Viena de 1900 de pai judeu e mãe católica e morreu no Rio de Janei ro em 1978 Formouse em Direito e Filosofi a em Viena e também estudou matemáticas em Leipzig sociologia em Paris litera tura em Nápoles e ciências políticas em Berlim Em 1938 teve que fugir com sua esposa do avanço das tropas hitlerianas chegan do na Bélgica e depois no nosso país onde se natu ralizou brasileiro Carpeaux escreveu os oito volumes que compõem sua monu mental História da Litera tura Ocidental além de vá rios outros livros que estão sendo reeditados no Brasil Para saber mais sobre este grande intelectual que teve um papel importante para a formação da crítica brasi leira aconselhamoslhes a leitura da seguinte página httpwww2correioweb combrcw20010513 mat38011htm 59 Franz Kafka CAPÍTULO 06 atmosfera da casa do pai um velho em cuja cara milênios de perseguição e de estudo talmúdico tinham inscrito mil rugas em torno da boca cheia de sarcasmo um tirânico complexo de superioridade p 17 Porém Kaf a nunca conseguiu se liberar de sua relação de depen dência com seu pai nem por outro lado ou por isso mesmo assumir um casamento com nenhuma das mulheres com quem manteve rela ções amorosas Em 1922 é compulsoriamente aposentado após terem lhe diagnosticado uma tuberculose da laringe Morrerá dois anos mais tarde no sanatório de Kierling que Carpeaux em sua última viagem a sua cidade natal Viena visitara O relato dessa peregrinação a Kierling atrás de informações sobre os últimos e sofridos anos de Kaf a na clí nica de um tal Dr Hof mann é de uma beleza singular E também acrescenta um dado surpreendente à biograf a de Kaf a Depois de ter sido recebido com hostilidade pelo f lho também médico do falecido Dr Hof mann Carpeaux de volta em Viena foi informado que o Dr Hof mann foi provavelmente um exnazista que se assusta ao ouvir o nome de um judeu morto com medo de ser denunciado como assas sino Carpeaux 30 Na Kierling da década de setenta ninguém se lembra narra nosso crítico que nessa clínica passou os últimos anos de vida o homem que iria transformar radicalmente o destino da literatura de seu século Talvez Kierling continue hoje esquecendo Kaf a Mas a cidade velha de Praga conserva a casa em que Kaf a morou e ergueu um museu em sua memória Nesses quarteirões espectrais é possível tentar imaginar como teria sido a Praga de Kaf a daquele rapaz magro empregado durante dezenove anos em um certo Instituto de Seguros de Acidentes de Trabalho um burocrata subalterno que imaginou talvez sem proporse o destino do homem das grandes cidades Escreveu a solidão o exílio o deslocamento a dissolução do eu essa desolação e desamparo que são temáticas que a seu modo podemos ler em escri tores como Robert Müssil Samuel Becket e que no Brasil podemos ler em João Gilberto Noll um dos nomes maiores da literatura que hoje se escreve em nosso país Em vida Kaf a publicou somente dois volumes de contos que qua se ninguém leu Antes de morrer escreveu um testamento encarregan do seu amigo Max Brod que queimasse todos os originais por ventu Literatura Ocidental II 60 ra ainda existentes em suas gavetas Brod não somente não obedeceu publicouos Lembra Carpeaux que a editora Die Brücke publicou O processo em 1925 e O castelo em 1926 mas sem sucesso Logo depois a editora foi à falência e os livros vendidos como papel de embrulho Somente em 1932 depois de um artigo escrito dois anos antes pelo ale mão T omas Mann prêmio Nobel de literatura em 1929 elogiando a Kaf a é que um editor judeu de Berlim Schocken decidiu editar a obra completa de Kaf a Porém por causa do regime nazista tanto Schocken como Brod tiveram que iniciar uma série de fugas Finalmente Brod conseguiu fugir para a Palestina levando consigo os originais Foram feitas cópias e saiu enf m em 1941 a edição Schocken em Nova York base de todas as edições posteriores e das traduções para outras línguas escreve Carpeaux p 18 Como já comentamos apesar de morar em Praga e falar a língua tcheca Kaf a escreveu praticamente toda sua obra em alemão O cruza mento de línguas e a questão da inf uência política e cultural do germa nismo criarão uma espécie de jogo de forças muito específ co em sua es critura desenvolvendo tematicamente o absurdo o desespero e a solidão Todos esses temas irão compor a síntese das cenas do mundo ocidental moderno com os fenômenos do fascismo das revoluções tecnológicas e as fortes transformações da geograf a urbana nas grandes cidades O romance A metamorfose conta a história de um homem Gregor Samsa que em um dia qualquer acorda transformado em um grande inseto Em O Processo um homem comum funcionário de uma em presa administrativa como o foi o próprio Kaf a em sua curta vida é preso processado e condenado sem jamais saber porque Em O Castelo livro inacabado no qual falta o último capítulo publicado após a sua morte o topógrafo K que não é o mesmo funcionário K de O processo f ca aguardando a resposta dos altos funcionários do Castelo para saber se pode ou não permanecer na cidade onde foi chamado para executar um trabalho que justamente ele não pode cumprir por determinação da mesma instância superior Enf m as histórias de Kaf a por descrevem o próprio absurdo e o irracional enquanto fatos humanos sem contudo jamais terem em sua forma expressiva nenhum tipo de apelo irracio nal como por exemplo a utilização de temas ou variantes sintáticas ou retóricas nãológicas deram origem ao termo kaf iano Capa e Contracapa de A metamorfose 61 Franz Kafka CAPÍTULO 06 Kaf a escreve de forma absolutamente clara e lógica esmiuçando mesmo a caracterização das cenas e dos personagens Trabalha temas a partir de uma operação expressiva que ao serem narrados revelamse no encadeamento de suas descrições como a própria essência do mun do em que vivemos Paradoxal e absurda A própria forma em que os fatos são contados de forma clara e objetiva ao mesmo tempo em que apresenta uma situação bizarramente paradoxal e sem saída em relação à historia e aos personagens cria a esperança f nalmente impossível de sua conclusão Essa artimanha elevada à perfeição no estilo de Kaf a produz uma sensação estranhamente desesperadora em qualquer um que leia seus textos Sem rebuscamento do estilo a historia é elaborada e pre enchida de uma estranha luz negra que paradoxalmente ilumina suas cenas a partir de intuições extremamente elaboradas sobre o espírito humano seus abismos e suas solidões Essa escritura se apresenta como uma expressão única da literatura no início do século XX aliando os temas ao próprio trabalho da linguagem levado a cabo pelo estilo de Kaf a Maurice Blanchot explicará a singularidade da obra e do estilo de Kaf a a partir do que ele chama de a exigência da obra no escritor de A metamorfose 62 A exigência da obra em Kafka Além do ambiente cultural híbrido e atravessado de intensas ques tões políticas e históricas a que se liga tanto o corpo da obra como o cor po do escritor pois veremos que a questão do corpo em Kaf a é funda mental para se compreender sua escritura e sua obra há o que o crítico Maurice Blanchot chama de exigência da obra em Kaf a De fato não podemos esquecer do ambiente familiar de Kaf a dos seus problemas de relacionamento com seu pai f gura dominadora e com a qual Kaf a se debatera por toda a sua vida No livro Carta ao Pai Kaf a dá toda a dimensão dessa crise fundamentalmente psíquica A exigência da obra para Kaf a é segundo Blanchot o resultado do somatório das questões sociais e familiares que Kaf a vivia na Pra Literatura Ocidental II 62 ga do começo do século XX e das particularidades que seu gênio pôde elaborar na forma de uma obra altamente reveladora dos meandros f losóf cos e psicológicos à que a arte da literatura está constitutivamente ligada Um dos documentos fundamentais para a compreensão da li teratura de Kaf a é seu Diário pessoal que de forma excepcional cons titui um dos documentos mais importantes para o entendimento das questões relacionadas à subjetividade e ao psiquismo que se elaboram em conjunto às problemáticas estéticas que emergem na composição de uma obra literária Kaf a elabora ref exões acuradas sobre todo esse complexo trabalho de composição da obra mas é possível observar que quando relata essas questões remete constantemente aos problemas de relação familiar de insegurança a respeito de seu próprio trabalho ar tístico e fundamentalmente dos problemas que seu desejo artístico en frenta diante de um projeto de escritura tão grande e tenso quanto sua complexa relação familiar Kaf a vive um eterno dilema entre escrever o melhor possível e uti lizar todo o seu tempo de vida a isso ou se submeter à lei natural da constituição de uma família e da repetição do exemplo paterno a quem como vimos ele se opunha intensamente por seu caráter dominador e castrador Daí que a biograf a de Kaf a mostre seus recorrentes fracassos se assim podemos dizer em relação a essa paradoxal estabilidade familiar que ele jamais pôde aceitar a lei específ ca de sociabilidade que coexiste na estrutura familiar Kaf a queria escrever acima de tudo mas ao mes mo tempo relacionava esse desejo extremo a uma certa incapacidade de manutenção da tarefa artística e da lei familiar e social que se liga simbo licamente ao matrimônio Blanchot explica essa questão num trecho de seu extraordinário livro sobre crítica e teoria literárias Lespace littéraire A propósito do dilema que vive Kaf a o crítico francês af rma Kafka oscila pateticamente Tanto que ele parece tudo fazer para criar uma morada entre os homens na qual a potência de atração é mons truosa Ele procura fi car noivo ele faz jardinagem ele exerce trabalhos manuais ele pensa na Palestina ele procura um apartamento em Pra ga para conquistar não apenas a tranqüilidade mas a independência de um homem maduro e vivaz Sobre esse plano o debate com o pai permanece essencial e todas as novas notas do Diário o confi rmam mostrando que Kafka não tem desconhecimento do que a psicanálise 63 Franz Kafka CAPÍTULO 06 poderia lhe revelar Sua dependência em relação à família não apenas o tornou fraco estranho às tarefas viris assim como ele o afi rma mas como essa dependência lhe horroriza tornamse insuportáveis para ele todas as formas de dependência e de início o casamento que lhe lembra com desgosto o do seus pais a vida em família da qual ele gosta ria de se liberar mas na qual ele gostaria também de se engajar porque ela também é o cumprimento da lei é a verdade aquela do pai que o atrai tanto quanto o afasta de modo que realmente eu me mantenho em pé diante de minha família e sem cessar em seu círculo eu brando facas para a ferir mas ao mesmo tempo para a defender Blanchot 2005 p 91 Tradução nossa Por outro lado dirá Blanchot no parágrafo seguinte remetendose à outra bandeja dessa balança que oscila sem parar e que nesse mesmo movimento elabora a própria escritura de Kaf a há o desejo da escritu ra e da literatura que constroem sem cessar o próprio espaço da obra e da exigência da obra Um desejo de literatura que deve ultrapassar todas as barreiras mesmo que essas barreiras sejam desejáveis mesmo que elas sejam o próprio cumprimento da lei social mais básica a lei do pai e da continuidade das gerações Por outro lado ele vê cada vez mais e a doença tuberculose natural mente o ajuda a ver que ele pertence à outra margem que banido ele não deve abusar desse banimento nem permanecer passivamente acuado e esmagado contra essas fronteiras através uma realidade da qual ele se sente excluído e a qual ele jamais teria vivenciado porque ele ao teria nem mesmo nascido Esta nova perspectiva poderia ser somen te aquela do desespero absoluto do niilismo que lhe atribuímos muito facilmente Que o desespero seja seu elemento como o negar É sua morada e seu tempo Mas esse desespero não é nunca sem esperança essa esperança não é freqüentemente a não ser o que refl ui do deses pero o que vem da esperança mas aquilo mesmo que nos impede que a desesperança nos retome aquilo que faz com que condenados a aí terminar somos também condenados a nos defender até o fi m e talvez então levados a inverter condenação em liberdade Blanchot 2005 p 91 Tradução nossa Observase no trecho acima citado que Blanchot desenvolve a partir de passagens do Diário de Kaf a uma espécie de inversão dos valores em Kaf a O desespero gera a própria esperança que não Literatura Ocidental II 64 produz a não ser uma forma de negatividade do desespero Mas essa negatividade do desespero pode ao se ligar ao seu contrário produzir a sensação e mesmo o movimento da própria esperança sem ilusões de conclusão ou resolução feliz de problemas que f nalmente serão a energia e a força paradoxal da escritura de Kaf a Toda a obra de Kaf a explora genialmente essas aporias entre forças positivas e negativas que não fazem a não ser serem remanejadas em sua intimidade intrínseca e originária Daí o gênio de Kaf a de saber elaborar de forma absoluta mente objetiva esse jogo de contrários que nunca se neutraliza a não ser como uma continuidade sem f m que joga do interior ao exterior de seu regime de atrações mútuas A sensação é de que algo patina e se afoga lentamente sem jamais chegar a termo exatamente como um discurso conclusivo ou uma literatura de tipo mimético na qual uma estrutura edif cada conduz o enredo a etapas mais ou menos encadeadas e nas quais um desfecho é preparado e levado a termo mais cedo ou mais tarde Em Kaf a cada imagem e cada parágrafo fazem se revolver a própria imagem ou a descrição de cenas paradoxais em seu posiciona mento no interior da história Mas esse tipo de construção paradoxal das cenas não é senão ela borada como uma espécie de ilusão retórica visto que o texto indica sempre uma direção dada pela força metonímica da própria construção textual e a própria história em seu sentido narrativo levao a um lugar prometido como o próprio da direção que o texto narrativo propõe se assim podemos dizer Se bem que esse lugar prometido se espalha e se confunde com o próprio movimento de elaboração paradoxal de sua construção narrativa é esse movimento mesmo de contrários na construção das cenas que se interpenetram na lógica particular do texto kaf iano que explora a essência do paradoxo ou em termos lógicos di ríamos que trata retoricamente da aporia A aporia em seu signif cado literal na lógica é justamente aquilo que se apresenta como uma dif culdade de resolução inultrapassável irresolúvel Como exemplo mas sem associar diretamente às preocupações de Kaf a pois deveríamos antes o fazer em relação à Cabala judaica que realmente foi assunto que o escritor de O processo estudou poderíamos pensar em várias imagens do conhecimento Zenbudista que operam a partir de aporias Mais sobre Zenbudismo em httpeswiki pediaorgwikiZen 65 Franz Kafka CAPÍTULO 06 Acima quando seguimos as palavras de Blanchot constatamos que ele se remeteu ao modo como a tuberculose de Kaf a teria inf uenciado na realização de sua obra Muitos críticos se referem ainda à existência de problemas psicológicos em Kaf a Uma depressão crônica seria um deles Outros problemas de ordem psíquica seriam aqueles vinculados à construção de sua personalidade e à inf uência de seu pai na consti tuição psíquica de seu gênio Não nos remeteremos à discussão dessas hipóteses mas apenas ao problema da doença pulmonar diagnosticada do escritor de Praga Como já falamos antes Kaf a adquiriu tuberculo se em 1917 começando a expectorar regularmente sangue De algum modo sua doença acaba agravando ainda mais ou pelo menos tendo intensa participação na tensão entre sua vida dentro de uma esfera de preocupações sociais e familiares e de sua própria exigência artística Kaf a viverá apenas sete anos mais quando sua doença evoluindo con sideravelmente por causa da falta de remédios que ainda não existiam e de uma dieta inadequada que o próprio Kaf a escolhe levado por ob sessões alimentares particulares acaba por leválo àquele sanatório em Kierling próximo de Viena onde falece no dia 3 de junho de 1924 63 O papel fundamental da imagem do topógrafo na obra de Kafka A obra de Kaf a é considerada por muitos críticos como alegoria do exílio O espaço que representa Praga no contexto histórico da época pode ser pensado como uma espécie de exílio híbrido onde se cruzam questões culturais lingüísticas e políticas O exílio na cultura judaica é uma imagem muito forte e de grande complexidade quando se pensa nas diásporas necessidade de dispersão do povo judeu por causa de fatores de dominações e perseguições por outros povos pelas que os ju deus tiveram que passar O deserto é uma imagem recorrente nos diários de Kaf a e como espaço de exílio por excelência representa a relação f ctícia com a própria esperança difícil e mitológica do encontro com a terra prometida nesse sentido com um ideal de resolução e de estabele cimento fora da errância secular do povo judeu Blanchot irá se referir à imagem que Kaf a teria feito desse espaço de exílio que ele mesmo teria sofrido de forma singular Como um jogo de espelhos no qual haveria ad inf nitun a imagem de um exílio de um exílio de um exílio Praga República Checa Literatura Ocidental II 66 Se em O Processo o personagem K nunca saberá por que e do que o culpam nem mesmo as razões de seu processo se esse personagem parece sofrer sem razão as forças misteriosas de uma máquina buro crática obscura e jamais visualizável em suas engrenagens desumanas essa imagem ainda não alcançaria toda a profundidade limite a que o personagem do topógrafo de O castelo oblitera em sua estranha e apa rente superf cialidade Segundo Blanchot o personagem Joseph K de O processo mesmo que de algum modo perdido dentro de seu processo ainda é negligente o suf ciente para imaginar que As coisas vão sempre continuar e que ele está ainda dentro do mundo mesmo que desde a primeira frase ele é rejeitado desse mundo Blanchot 2005 p 93 Blanchot acrescenta A culpa de Joseph como aquela que sem dúvida Kafka se recriminava na época que escrevia esse livro consiste em querer ganhar o seu pro cesso no próprio mundo ao qual ainda acreditava pertencer mas onde seu coração frio vazio sua existência de celibatário e de burocrata sua indiferença pela família todos traços de caráter que Kafka reenconta em si mesmo já o impedem de manterse O processo o banimento é sem dúvida um grande infortúnio tal vez seja uma injustiça incompreensível ou uma punição inexorável mas também é somente numa certa medida é verdade eis a desculpa do herói a armadilha onde se deixa prender também é um dado que não basta recusar invocando nos discursos ocos uma justiça mais alta do qual se deve pelo contrário tirar partido segundo a regra que Kafka fi zera sua Cumpre limitarmonos somente ao que ainda se possui O processo tem pelo menos esta vantagem a de fazer saber a K o que ele realmente é de dissipar a ilusão as consolações enganadoras que por ter um bom emprego e alguns prazeres indiferentes o levam a crer em sua existência em sua existência de homem do mundo Mas o pro cesso nem por isso é a verdade é pelo contrário um processo de erro como tudo o que está ligado ao lado de fora a essas trevas exteriores onde se é lançado pela força do banimento processo em que se resta uma esperança é aquele que avança não em contracorrente por uma oposição estéril mas no sentido mesmo do erro Blanchot 1987 p 73 Blanchot alude nesta passagem à imagem de que mesmo pelo pro cesso que Joseph K passa com sua indubitável carga de contradições e 67 Franz Kafka CAPÍTULO 06 de um certo desespero frente às incertezas que daí decorrem o perso nagem ainda pode estar sendo enganado por si próprio ao imaginarse pertencente a esse inferno burocrático que o localiza mesmo que de forma terrível ao menos em algum lugar O lugar do próprio proces so De outro modo será o horizonte sem nenhuma esperança ou pelo menos ainda mais distante de qualquer imagem satisfatória de um f m ou de uma conclusão para a errância nos arredores do Castelo que o personagem do topógrafo K vive Não portador das falhas de Joseph K o topógrafo K não procura retornar a nenhuma terra natal Não é mais negligente mas está sempre em movimento nunca se de tendo quase nunca se desencorajando jamais indo de fracasso em fra casso por um movimento incansável que evoca a inquietação fria do tempo sem repouso Sim ele caminha sempre com uma obstinação infl exível no sentido do erro extremo desdenhando a aldeia que ainda possui alguma realidade mas querendo o Castelo que talvez inexista Blanchot 1987 p 7374 Esse personagem diferentemente de Joseph K pecara por aquilo que Kaf a entendera como o pior dos pecados a impaciência A impaci ência seria a pior das faltas justamente porque ela desconheceria a verda de própria da errância a saber que não há f m próximo além da própria continuidade da busca e de nunca acreditar que o f m ou o objetivo está próximo a não ser como a lei mesma da errância Aí podese ler uma es pécie de lei nômade do erro enquanto único caminho do conhecimento crítica moderna das certezas da razão e crítica contemporânea da pró pria essência da verdade como possibilidade última do conhecimento A burocracia na obra kaf iana seria apenas o ref exo modulado de um problema maior e que tocaria uma questão eminentemente ontológi ca Seria o ref exo dessa impaciência constitutiva que atravessa a conduta do topógrafo esse prof ssional das medidas o construtor de limites no espaço que no f m das contas não pode jamais executar seu trabalho condenado a ser aquele que diagrama o espaço mas que não tem espaço a limitar condenado a ser e a viver num espaço sem limites e sem hori zonte de f nalidade Espaço do exílio de um exílio de um exílio que f nalmente marca a presença desesperada mas obstinada num espaço ex Literatura Ocidental II 68 teriorizado por sua própria impossibilidade de constituição Vivência de um fora sempre próximo ao espaço de sua vida no vilarejo o topógrafo espera as ordens que virão dessa exterioridade inalcançável do castelo Desse modo Blanchot conclui em grandes linhas uma certa ima gem crítica sobre a obra desse escritor considerado como inf uência maior da Literatura Ocidental do século XX A fantasmagoria burocrática essa ociosidade afobada que a caracteriza esses seres dúplices que nela são os seus executantes guardiões aju dantes mensageiros que andam sempre dois a dois como para mostrar bem que apenas são os refl exos um do outro e o refl exo de um todo invisível toda essa cadeia de metamorfoses esse crescimento metódi co da distância que nunca é dado como infi nito mas aprofundase in defi nidamente de maneira necessária pela transformação da meta em obstáculos mas também dos obstáculos em etapas intermediárias que conduzem à meta fi nal todas essas poderosas imagens não descrevem fi gurativamente a verdade do mundo superior nem mesmo a sua trans cendência elas representam antes a felicidade e a infelicidade da fi gura ção dessa exigência pela qual o homem do exílio é obrigado a fazer do erro um meio de verdade e daquilo que o engana indefi nidamente a possibilidade última de apreender o infi nito Blanchot 1987 p 7576 Um novo caminho contra a ilusão realista CAPÍTULO 07 69 Um novo caminho contra a ilusão realista Neste capítulo você estudará alguns aspectos da obra de Virginia Woolf considerada pelos críticos uma inovadora da linguagem literária de lín gua inglesa Observaremos a necessidade de transformação estilística que a escritora pretendia alcançar para chegar no ponto de tradução de suas afecções interiores e dos sentimentos e necessidades de descrição da am biência complexa que sua personalidade captava e procurava transmitir em palavras 71 Virginia Woolf Junto com Marcel Proust e James Joyce seja pelo contexto histórico seja por alguns traços ou preocupações estéticas principalmente no que diz respeito ao tratamento dado ao tempo e ao espaço na narração e pelo seu extraordinário modo de construir o monólogo interior de seus per sonagens Virginia Woolf 1882 1941 é uma expoente da literatura de língua inglesa que marcou profundamente a literatura do século XX Nascida em Londres Virginia Woolf foi educada dentro de um cír culo intelectual da alta sociedade inglesa do qual faziam parte seu pai Les lie Stephen teórico político escritor e alpinista e sua mãe Julia Stephen Duckworth chamada também Julia Prinsep Os pais de Virginia Woolf eram viúvos quando se casaram O pai de Virginia tinha sido casado an teriormente com Minny T ackeray f lha primogênita do escritor Willian Makepeace T ackeray tendo com Minny uma f lha Laura Makepeace Stephen que viria a ser internada a partir de 1891 até o f m de sua vida por problemas mentais enquanto a mãe de Virginia teve três f lhos com seu marido anterior Herbert Duckworth Esse quadro fez com que coexistis sem na família da escritora três tipos diferentes de linhagens de irmãos Essa situação pôde mais tarde a partir de estudos biográf cos so bre Virginia Woolf produzir um quadro no qual se teceram hipóteses a 7 Virginia Woolf Literatura Ocidental II 70 respeito de abusos sexuais sofridos pela escritora por parte de seus dois meios irmãos maternos Gerald e George Duckworth f lhos do primeiro casamento de sua mãe Esses abusos teriam provocado segundo estudos biográf cos um quadro de problemas emocionais hoje em dia diagnos ticados como distúrbio bipolar do humor e que inf uenciariam toda a vida e a obra da autora Alusões a esses abusos podem ser encontradas nos relatos e ensaios autobiográf cos da autora nos textos de A Sketch of the Past Um esboço do passado e 22 Hyde Park Gate 22 Hyde Park Outro importante traço biográf co da escritora é sua atuação como feminista Virginia Woolf deu muitas palestras e conferências sobre as relações de desigualdade da mulher na sociedade inglesa e produziu muitos textos críticos sobre a condição política e cultural das mulheres no mundo intelectual e literário britânico Esses textos são considerados hoje em dia como referência nos chamados Estudos de Gênero Virgi nia fazia parte também do importante círculo de intelectuais chamado Círculo de Bloomsbury do qual faziam parte vários intelectuais ingleses como por exemplo Lytton Strachey Clive Bell Saxon SydneyTurner e Leonard Woolf bem como o economista John Maynard Keynes 72 Uma inovadora Virginia Woolf é considerada uma inovadora da linguagem literária de língua inglesa Há uma série de traços em sua obra que também con f rmam uma linguagem literária preocupada em traduzir uma percepção poética sutil e singular relacionada indiretamente aos distúrbios emocio nais que acompanharam sua vida psíquica levandoa em 1941 ao suicí dio quando carregando pedras em seus bolsos adentrou o rio Ouse após ter deixado uma carta ao seu marido o escritor e coeditor de suas obras na editora T e Hogarth Press Leonard Woolf Nessa carta ela escreve Tenho certeza que vou me tornar louca sinto que não poderei mais suportar um desses terríveis períodos Eu sinto que não me recuperarei desta vez Começo a escutar vozes e não posso mais me concentrar En tão farei o que acho a melhor coisa a fazer Desteme a maior felicidade possível Não posso mais lutar eu sei que desperdiço tua vida e que sem mim poderás trabalhar Tradução nossa Você pode saber mais sobre o Círculo de Blooms bury pesquisando em httpeswikipediaorg wikiCC3Adrculo deBloomsbury Um novo caminho contra a ilusão realista CAPÍTULO 07 71 O primeiro livro publicado de Virginia Woolf T e Voyage Out em 1915 recebe o título A Viagem na edição portuguesa Suas obras mais conhecidas são Night and Day de 1919 Jacobs Room de 1922 O quarto de Jacó Mrs Dalloway de 1925 Mrs Dalloway To the Lighthouse de 1927 Passeio ao Farol Orlando de 1928 Orlando T e Waves de 1931 As Ondas Há ainda três volumes de contos sendo o mais conhecido A Haunted House and other Short stories A casa mal assombrada e outros contos publicado após sua mor te em 1943 Virginia Woolf escreveu muitas cartas aos seus ami gos intelectuais e escritores escreveu também um diário e muitos textos de caráter autobiográf co obras com caráter f ccionalbio gráf co como uma biograf a sobre Roger Fry e Flush a Biographie de 1933 história de um cachorro na forma literária de stream of consciousness ou Fluxo de consciência Ela produziu também uma peça de teatro chamada Freshwater A Comedy encenada em 1923 revisada em 1935 e publicada em 1976 Capa de Orlando edição americana de 1946 Antes de seu primeiro romance de 1915 Virginia já escrevia artigos e ensaios críticos no Times Litterary Supplement Sobre sua primeira f c ção o crítico E M Forster escreve É um livro estranho trágico que se passa numa América do Sul que não pode remos encontrar em nenhum mapa e onde não chegaremos por nenhum bar co o qual não poderia fl utuar sobre nenhum mar uma América cujas fronteiras espirituais são vizinhas daquelas de Atlântida Nesse romance a Sra Dalloway já aparece mas como personagem secundária sendo bem diferente da Sra Dalloway que conheceremos depois com o romance de 1925 Nesse primei ro romance Virginia já se apresenta como observadora sensível das comple xas sutilezas que se encadeiam nas transformações e nas nuances que se dão nos sentimentos Mas ainda nesse ponto sua escrita é ainda herdeira e muito próxima das estratégias narrativas dos escritores clássicos Esse estilo ou essa forma narrativa apesar de sensível e bem construída ainda corresponde a uma visão por demais próxima de uma descritividade romanesca baseada no que os críticos chamam atualmente estar vinculado a técnicas e procedimentos de criação de uma ilusão realista Essa tendência continuará ainda em Night and Day seu romance de 1919 Literatura Ocidental II 72 Ninguém melhor do que a própria Virginia para aludir à necessidade de transformação estilística que a escritora pretendia alcançar para che gar no ponto de tradução de suas afecções interiores e dos sentimentos e necessidades de descrição da ambiência complexa que sua personalidade captava e procurava transmitir em palavras As impressões da vida que ela buscava fazer ressoar como literatura não poderiam depender por mais que suas técnicas fossem complexas e adequadas dos procedimen tos das gerações de escritores logo anteriores Sejam eles George Eliot Hardy ou Galsworth Ela examina a condição de transformação por que passa sua necessidade de encontrar um caminho novo a seguir em rela ção aos procedimentos literários baseados numa ilusão realista É a vida ela mesma assim se perguntava ela é necessário que os ro mances seja assim Observe dentro e a vida parece está muito longe de ser parecida com isso Examine por um instante um espírito comum em um dia comum A mente recebe uma miríade de impressões banais fantásticas esvaecentes ou gravadas com a limpidez do aço Elas che gam de todos os lados chuva incessante de inumeráveis átomos E à medida que elas caem à medida que elas se reúnem para formar a vida de segunda ou a vida de terçafeira a intensidade se coloca diferente mente o momento importante não está mais aqui mas sim em outro lugar De modo que se o escritor fosse livre e não um escravo se ele pudesse escrever aquilo que lhe apraz e não aquilo que ele é obrigado não haveria intriga nem comédia nem tragédia nem história de amor nem catástrofe convencional e talvez nem um único gérmen concebi do como nos romances realistas A vida não é uma série de lâmpadas organizadas sistematicamente a vida é um halo luminoso um envelo pe meio transparente que nos envolve desde o nascimento de nossa consciência Seria então a tarefa do romancista a de discernir ou agarrar este espírito volúvel desconhecido mal delimitado as aberrações ou as complexidades que ele pode apresentar com a menor mistura de fatos exteriores que lhe seja possível Não sustentamos apenas pela coragem e sinceridade nos procuramos fazer entender que a verdadeira matéria do romance é um pouco diferente desta que a convenção nos habituou a considerar Vimos anteriormente como diversas correntes estéticas do início do século XX estavam justamente começando a instituir outras formas de percepção da vida em suas características tanto objetivas quanto subjetivas e ainda o quanto uma descrição do mundo não passava ela Um novo caminho contra a ilusão realista CAPÍTULO 07 73 mesma em termos técnicos e processuais por uma transformação das formas expressivas e estéticas que eram utilizadas até então Na pintura o caso do impressionismo foi e é exemplar Virginia Woolf entra com esse texto na mesma discussão e procura instaurar uma nova expressivi dade na literatura Não há uma forma f xa para os objetos Há toda uma ambiência e uma constituição processual na descrição ou na concepção consciente de um objeto no espaço O movimento da luz durante o dia dentro de uma consciência impressionista ou expressionista na arte faz com que uma cena um objeto ou um grupo de pessoas faz com que esse bloco perceptivo ou essa imagem entrem em ressonância segundo movimentos complexos que o artista deve conseguir fazer expressar de um modo dinâmico e que ao f xar esse movimento instaure em sua dinâmica o próprio sentido dessa linguagem própria ao impressionis mo Uma lógica específ ca da clareza ou nitidez do objeto retratado numa arte realista é apenas uma das possibilidades de se descrever esse objeto Na verdade existe uma preocupação que passa da f nalidade de retratar o objeto de arte para uma preocupação própria ao processo de retratação do próprio objeto Esse processo em sua dinâmica é inf nitamente mais rico do que o próprio objeto retratado segundo pro cedimentos ingenuamente considerados como objetivando apenas uma f dedignidade em relação ao seu modelo No caso da literatura diríamos que existe uma dimensão psicoló gica específ ca que também deverá ser discernida a partir dessa necessi dade de transgressão de padrões formais f xos realistas Ou pelo menos que esses procedimentos realistas f xados numa série de técnicas como numa certa ordem da intriga ou em um tratamento sobre o tempo e o espaço na história deverão ser questionados em uma certa perspectiva sobre sua própria insuf ciência relativa É onde se engajam os escrito res alinhados com as necessidades estilísticas e expressivas da geração de Virginia Woolf como Proust ou Joyce dentre outros Como os impressionistas Virginia não pode acreditar que um ca ractere um traço pessoal possa ser descrito apenas do exterior Seria necessário conceber a escritura desses traços como um movimento que possa fazer parte também dessa turbulência própria ao ser interior que procura captar tal gradação de forças sensíveis e móveis em uma rela Literatura Ocidental II 74 ção expressiva com seu próprio fora ou f nalmente conceber a escritura com toda essa atmosfera híbrida que corresponde às formas da sensibi lidade e do intimismo paradoxalmente relacionadas com a própria ma téria de um viver em comum e que contudo não pode ser discernível de forma pura lógica ou racional Virginia Woolf executa e performa um tratamento sobre a imagem portanto esta se elabora a partir dos f uxos de consciência e de toda uma estratégia posta em prática junto a procedimentos e efeitos sobre o tem po nuançados pela textura própria do monólogo interior Pela imagem e na imagem é o que constituirá em Virginia essa exacerbação de uma des crição dobrada e desdobrada a partir do embate entre uma interioridade psíquica desejosa de se fazer observadora e sua própria exterioridade expressa nos contornos inf nitos que os temas aí expostos fazem ressoar como o trabalho rigoroso sobre as formas translúcidas que o tempo vem depositar sobre o espaço relacional o que abre o efeito de uma expressi vidade literária impressionista e expressionista a um só tempo Em As Ondas livro considerado a obra prima de Virginia Woolf a escritora rompe de forma peremptória com uma necessidade da intriga Nesse texto não há absolutamente um fato que una os diversos perso nagens mas apenas uma série de descrições de seus movimentos inte riores em relação à exterioridade comum que a todos une sem contudo fazeos comungar da mesma força que em cada um só pode ocorrer em sua própria integridade móvel e singular Existe uma leitura desta obra feita por sua tradutora para o fran cês a também escritora Marguerite Yourcenar que f cou famosa por seu engenho em perceber uma relação lírica e musical alegórica submersa no interior da f cção Yourcenar assim descreve As Ondas de Virginia Woolf As Ondas é um livro com seis personagens ou melhor seis instrumen tos musicais pois consiste unicamente de monólogos interiores cujas curvas se sucedem se entrecruzam com a fi rmeza de um desenho que lembra A arte da fuga de Bach Nesta narrativa musical os breves pen samentos da infância as rápidas refl exões sobre os momentos de ju ventude e companheirismo confi ante parecem os allegros das sinfonias de Mozart abrindo cada vez mais espaço para os lentos andantes dos imensos solilóquios sobre a existência a solidão e a maturidade Com Capa de As Ondas edição britânica Um novo caminho contra a ilusão realista CAPÍTULO 07 75 efeito As ondas tanto quanto uma meditação sobre a vida apresenta se como um ensaio sobre o isolamento humano WOOLF Virginia As Ondas pp 78 De fato sem aprofundarmos uma leitura à altura de uma obra de tal magnitude podemos apenas introduzir uma relação entre esses acordes que conjugam cada um seis vibrações existenciais e afetivas diferentes e que são unidos todos por uma espécie de voz que antecede e produz um efeito cênico geral que engloba e compõe como que o fundo grave e inf nito de um movimento incessante do mar e das ondas Tratase de uma descrição de paisagem que antecede cada parte do texto Escrito em itálico esse fundo que emerge contudo no início de cada uma das partes dá o tom digamos assim das performances em forma de monólogo interior onde cada um dos personagens adentra uma vertigi nosa busca de compreensão sobre a grandeza inf nita da existência O Sol ainda não nascera O mar não se distinguia do céu exceto por estar um pouco encrespado como um tecido que se enrugasse Gradualmente con forme o céu alvejava uma linha escura assentouse no horizonte dividindo o mar e o céu e o tecido cinza listrouse de grossas pulsações movendose uma após outra sob a superfície perseguindose num ritmo sem fi m Vejo um anel disse Bernard suspenso acima de mim Treme e balança num laço de luz Vejo uma faixa de pálido amarelo disse Susan espalhandose até encontrar uma listra roxa Ouço um som disse Rhoda chip chap chip chap subindo e descendo Vejo um globo disse Neville pendendo como uma perola nos imensos fl ancos de uma colina Vejo uma borla vermelhovivo disse Jinny tramada com fi os de ouro Ouço alguma coisa batendo disse Louis A pata de um grande animal acorrentado Bate bate não para de bater Woolf Virginia As Ondas pp 78 Literatura Ocidental II 76 Se havia em suas obras anteriores como em Mrs Dalloway ou O quarto de Jacó por exemplo ainda um tênue f o narrativo que apontava um assunto comum que deveria ser desenvolvido na história em As Ondas ele não mais existe Os seis personagens estão imersos no âmago de suas vidas invadidos pela força de seus monólogos interiores numa busca certamente esplendorosa porém sem termo por uma compre ensão mesmo que fugidia do mundo que os cerca e que envolve inti mamente a própria impossibilidade de se sentirem realizados em uma plenitude que jamais poderia se igualar entretanto à beleza obscura de sua própria incompletude A paixão da escritura CAPÍTULO 08 77 A paixão da escritura Neste capítulo estudaremos alguns aspectos da literatura de Samuel Be ckett uma construção erudita e complexa na qual o caráter tragicômico se relaciona à profundidade de uma ref exão existencial e f losóf ca que sua obra realiza de forma única 81 Samuel Beckett Samuel Beckett Samuel Beckett nascido em Foxrock nas redondezas de Dublin na Irlanda em 1906 falece em Paris em 1989 sendo sepultado no fa moso cemitério de Montparnasse Beckett é se não o maior pelo menos um dos mais importantes escritores a marcar a transformação estética na construção da narrativa contemporânea O escritor irlandês escreve 8 Literatura Ocidental II 78 romances e peças de teatro em inglês e francês e é com estas últimas que obtém reconhecimento mundial chegando a ganhar o prêmio Nobel de Literatura de 1969 pelo conjunto de sua obra Porém Beckett se recusa a receber pessoalmente o prêmio cabendo ao seu editor na época Jérôme Lindon a incumbência de recebêlo Sua recusa se deve a sua rejeição de cerimônias e rituais relacionados com o mundo artístico e a uma deter minada idéia sobre a arte que Beckett não cessou de fazer aparecer em suas obras mesmo que evocadas sutilmente através de uma construção literária erudita e complexa onde o caráter tragicômico se relaciona à profundidade de uma ref exão existencial e f losóf ca que sua obra rea liza de forma única A narrativa de Beckett revisando desde já um certo conceito de ro mance que não cessou de ser reelaborado desde f ns do séc XIX é in f uenciada notadamente pelo também escritor irlandês James Joyce De fato Beckett vai produzir seu primeiro ensaio crítico Dante Bruno Vico Joyce em 1929 no qual defende os métodos de elaboração e de pesquisa estética de Joyce considerados obscuros por alguns críticos da época Com efeito podese ler nos primeiros textos em prosa de Beckett um trabalho extremamente erudito e elaborado em referência à tradição literária clássica observada as devidas distâncias no uso da linguagem por exemplo quando percebemos a inf uência da Divina Comédia de Dante Alighieri em seus primeiros textos como em More Pricks than Kicks de 1934 onde há um personagem chamado Belacqua homônimo do personagem dantesco Já nesse momento podese perceber certas linhas de força importantes que irão permanecer como indicações do estilo beckettiano Essas linhas de força irão reverberar por toda a obra do escritor ir landês como por exemplo a questão de uma certa potência paradoxal de inação desse e de vários outros personagens beckettianos Outra linha de força de sua literatura será a exploração do monólogo interior como mergulho dos personagens em si mesmos abrindo a possibilidade para um discurso f losóf co com acento hermético desdobrarse inf nitamen te e de forma elíptica conjugando a idéia de uma impossibilidade de se sair da linguagem e do pensamento com a própria condição existencial humana Ainda como outra variante temática e mesmo formal há um A paixão da escritura CAPÍTULO 08 79 tom sarcástico que atravessa toda a obra de Beckett funcionando como linha de força irônica e tragicômica a qual se remete em segundo plano ao caráter paradoxal da existência entendida como desejo e sofrimento em coexistência contínua nesse plano onde coexiste a irrevogável condição na qual se encontra o homem contemporâneo e que parece incansavel mente perseguir a própria sombra em direção ao desconhecido Beckett opera uma verdadeira performação da linguagem em sua obra Como argumenta Evelyne Grossman em seu livro La déf guration Artaud Beckett Michaux há uma paixão da escritura em Beckett Pai xão paradoxal que se remete a imagens de sofrimento de decadência e de fracasso porém a partir de um tom de aceitação como se a inevitável certeza de uma esperança duvidosa em sua existência impedisse que pu desse haver o mínimo sentimento de piedade ou de pena diante das ce nas de verdadeiro desespero que continuamente são evocadas Mas essa falta de piedade não é jamais associada a uma brutalidade ou a uma mal dade dos personagens pois estes são incapazes também de fazer o mal ao mesmo tempo em que o sofrem de forma absolutamente impotente Grossman af rma gostaria de ler em Comment cest a expressão de uma escritura da Paixão marcada sem dúvidas como uma escritura branca do paradoxo da melancolia Cruzando mística e melancolia Beckett faz escutar nova mente nessa Paixão o sofrimento de um penar Nas paixões narcisistas sublinha o psicanalista André Green nenhuma diferenciação é possível amor e destruição afetam no mesmo movi mento o Eu e o objeto São ele acrescenta paixões no sentido estri to vale dizer amores que fazem sofrer Reconhecemos no paradoxo entre escritura desafectada e crueldade passional um dos modelos da escritura beckettiana Podemos ver também na paixão beckettiana uma violência impassível uma tortura acolhedora Com efeito a tensão é constante entre o horror daquilo que é descrito e a tranqüilidade da constatação GROSSMAN E 2004 p 60 Devemos ressaltar que essa paixão deve ser entendida como observa Grossman como uma absoluta tensão entre a constatação do sofrimento da dor e da mutilação que o homem sofre em sua existência e uma impos sibilidade de fuga ou de resolução pacíf ca do que é a própria condição A crítica se remete a impor tantes críticos que pensam essa questão de estilo como por exemplo Roland Barthes e Maurice Blanchot A escritura ou escrita branca se caracte rizaria por um tipo de escritu ra que passa a ser percebida por volta desse período dos anos 1950 junto a outros escritores como Albert Camus e o próprio Maurice Blanchot por exemplo e que opera como performação de um nível discursivo neutro sem um estilo rebuscado e fazendo uso de uma lingua gem que é balanceada entre o prosaico e o poético Literatura Ocidental II 80 material carnal e existencial do homem Em uma palavra essa experiência dos limites da compreensão da condição humana é em última instância uma ref exão sobre a violência básica que coexiste como base présocial da humanidade e que está embutida e revestida pela linguagem dos or namentos de uma civilização tecnicamente desenvolvida mas incapaz de controlar essa potência diríamos préontológica que anima desde sempre as forças biológicas e materiais que nos perpassam cotidianamente A linguagem literária beckettiana deverá expor na forma de uma paixão angustiosa e melancólica próxima de um estranho sentimento de impotência indiferente perscrutadora da própria falta de esperan ça a complexidade que coabita a própria linguagem pensada como verdadeira máquina de sentido como única possibilidade de exercer performaticamente ou seja utilizando a mesma matéria da linguagem como produtora de efeitos expressivos críticos da própria idéia de lin guagem de ética e de estética algo como uma força de embate ao pen samento e à própria linguagem Pois se pensamos a existência o faze mos a partir da linguagem e se constatamos nossa impotência diante de certos quadros de sofrimento que o homem não é capaz de superar também o fazemos a partir de um pensamento operado fundamental mente pela linguagem daí que uma tarefa da literatura será cobrar ou exigir dessa própria linguagem um certo modo de funcionamento que a faça dobrarse a si revelando o desejo ou a paixão melancólica de uma escritura que atravessa os limites de um trabalho de ref exão sobre sua própria condição existencial 82 Paixão melancólica Grossmann se apóia no discurso psicanalítico para lançar a hipótese da paixão melancólica que atravessaria os textos de Beckett De fato em Beckett há todo um desenvolvimento jamais trivial e simples de imagens que se estabeleceriam no paradigma do melancólico O melancólico se relacionaria com um gesto paradoxal ligado a uma certa incompletude afetiva ao nível de um objeto de desejo que representa o afeto maternal na infância Segundo a hipótese de Freud argumenta Grossman A paixão da escritura CAPÍTULO 08 81 a tortura a que se infl ige o melancólico e que indubitavelmente lhe for nece um prazer se endereça com efeito ao objeto amado que insufi cientemente o amou e o abandonou As tendências sádicas e hostis que visavam o objeto retornam sobre a própria pessoa O melancólico se iden tifi ca daí em diante ao abjeto abandonado dessa forma a sombra do ob jeto recai sobre o Eu Entretanto a despeito da preciosa descrição freudia na freqüentemente desconhecemos a melancolia Esquecemos o acento posto sobre a raiva o sadismo e a tortura GROSSMAN 2004 p 64 Assim se caracterizaria a noção de Paixão melancólica que elaboraria toda uma série de imagens sobre a crueldade e a violência mas também sobre uma certa apatia e de indiferença nos textos de Beckett Pois jus tamente nesse paradoxo de um desejo retraído e reenviado a si próprio na forma de um objeto de desejo a meio caminho de sua realização é que se formam inúmeras imagens e situações de obsessão construídas a partir de tantas imagens de irônica e sarcástica crueldade que em geral são orientadas contra uma condição existencial atravessada pela singular gestualidade impassível dos próprios personagens beckettianos Grossman acrescenta Paixão melancólica portanto como bem sublinha Hassoun a melanco lia é o núcleo em torno do qual se organiza a paixão A luxuria apaixona da é o lugar paradoxal que obsessiona o melancólico e do que procura se curar O melancólico sabemos é obsessionado pelo luto impossível do objeto materno ou antes daquilo que Lacan chama a Coisa este pré objeto indeterminado ao mesmo tempo perdido para sempre e nunca perdido A Coisa a mãe primordial arcaica a mãe visada pelo incesto pode por lampejos retornar como dizemos da fantasia esse nem mor to nem vivo que se obsessiona sempre entre os dois mais do que um objeto de fantasia obsessiona literalmente os textos de Beckett de Pas à Mal vu mal dit passando pelo Trio du Fantôme GROSSMAN 2004 p 64 Literatura Ocidental II 82 Há toda uma grande densidade conceitual nas teorias psicanalí ticas freudianas ou lacanianas Procurase apenas referenciar al gumas passagens relacionadas ao tema psicanalítico no intuito de estabelecer um contato com linhas de pesquisa importantes no es tudo da teoria literária É necessário ter contato progressivo com as diversas teorias que envolvem o estudo da literatura sem neces sariamente se ater a uma ou outra dessas teorias mas sobretudo tendo em mente que o trabalho crítico é fundado sobre uma sé rie de possibilidades teóricas que serão exploradas de acordo com o percurso de conhecimento e de aprendizado de cada um bem como a partir das escolhas temáticas e metodológicas que possam vir a ocorrer em cada caso particular Citamos no início deste li vro didático a importância da teoria psicanalítica freudiana para a Literatura Ocidental bem como o nome de Jacques Lacan Ago ra podemos ter uma amostra de como entram essas teorias numa análise crítica sobre a obra desse expoente fundamental da litera tura do século XX Samuel Beckett Há muitos outros elementos importantes na obra de Beckett e não devemos nos ater apenas a um viés psicanalítico que procura descrever uma possibilidade no nível afetivo ou psíquico de operar conceitos junto à obra densa e sof sticada f losof camente de Samuel Beckett Com efeito diversas imagens literárias performam essa possibi lidade de ler na literatura beckettiana a relação conceitual com o que poderíamos chamar de perspectiva psicanalítica na qual a própria li teratura exerce a performação necessária a um movimento de desejo artístico que de algum modo pôde encenar a própria relação afetiva tanto mais paradoxal quanto mais levada a seus limites estéticos Nesse ponto chegamos ao momento que muitos críticos atuais seguindo a imagem da gagueira cunhada por Gilles Deleuze consideram como o de uma literatura na qual a voz literária se sobrepõe à língua coleti va apresentando ou criando uma certa diferença expressiva que pode afetar a compreensão da própria língua enquanto produtora de sentido seja histórico f losóf co ou literário Daí o movimento minimalista da última fase de Beckett no qual a expressividade de sua língua literária passa a ser quase um rumor desenfreado de sentidos arranjados numa Acerca do Minimalismo httpeswikipediaorg wikiMinimalismo A paixão da escritura CAPÍTULO 08 83 determinada seqüência não necessariamente linear De algum modo há uma certa visão da existência como atrelada à possibilidade irrefreável da fala de uma fala incessante o que torna essa gagueira mais plausível do que qualquer fala coesa e coerente A coerência da fase minimalista de Beckett é a coerência de uma língua dentro de outras línguas que se relacionam umas às outras Como uma imagem labiríntica mas elevada à enésima potência a gagueira pronunciada quase como delírio pelos personagens beckettianos se lança sem f m ao fundo sem fundo da lin guagem e o faz prometendo o próprio f m de toda promessa remetendo a estranha esperança de um nexo que advêm desse rumor incessante e reverberante aos limites da experiência literária A experiência literária beckettiana faz falar essa estranha gagueira que emana do fundo imemorial do tempo Aí mesmo onde a memória no sentido amplo daquilo que pertence também e arcaicamente ao es quecimento memória da infância ou do próprio curso da vida indeter minada e referenciada pelo acaso reabilita transgride ou paira como paradoxo sobre uma escritura que constrói e destrói a um só tempo cer tas possibilidades de sentido Essa experiência estética que passa pela língua outra de Beckett nem inglês nem francês literalmente descons trói sem f m determinadas lógicas narrativas e expressa como verdadeira performação a própria presença do inexpressivo o rumor ou a gagueira que subsiste indelével na própria linguagem em uma palavra expressa a insistência do que permanece inominável em toda nomeação Literatura Ocidental II 84 Há vários textos de Beckett traduzidos ao espanhol o que pode fa cilitar o acesso a essas obras que como se sabe foram escritas em inglês e francês quase sempre com tradução e adaptação nas duas línguas pelo próprio Beckett Para uma consulta mais completa da extensa bibliograf a de Beckett você poderá aceder aos endereços das páginas de Internet em espanhol francês inglês e português que seguem Você poderá também ter acesso a vários outros links e tex tos a partir dessas páginas eletrônicas ou pesquisando você mesmo com seu motor de pesquisa eletrônica preferido Boa leitura httpwwwepdlpcomescritorphpid1451 httpmuraluvessagrauindexhtml httpeswikipediaorgwikiSamuelBeckett em espanhol httpfrwikipediaorgwikiSamuelBeckett em francês httpenwikipediaorgwikiSamuelBeckett em inglês httpptwikipediaorgwikiSamuelBeckett em português Um inovador CAPÍTULO 09 85 Um inovador Neste capítulo você terá uma introdução ao romance considerado a maior inovação literária do século XX o Ulisses do escritor irlandês James Joyce obra sobre a qual os críticos não hesitaram em aclamar como um roman ce para acabar com todos os romances 91 James Joyce breve biografi a Considerado pelos críticos um dos autores mais importantes do sé culo XX James Joyce é sem dúvida alguma um marco na concepção e no desenvolvimento literário da modernidade Para uma entrada em sua obra devemos antes traçar um quadro sintético de sua biograf a e da seqüência resumida de sua produção lite rária para em seguida observar algumas das características de Ulisses considerado por muitos como sua obra prima e que sem dúvidas re volucionou a literatura ocidental no começo do século passado James Augustine Aloysius Joyce nasceu em Dublin em 1882 e mor reu em Zurique em 1940 Nascido de uma próspera família católica de Cork seu pai um bon vivant após ter dilapidado a fortuna da família trabalhou como secretário numa destilaria Depois de ter estudado com jesuítas no Clongowes Wood College no condado de Kildare depois na Belveder School após passagem pelo Christian Brothers ele entra em 1898 na University College em Dublin onde segue o curso de Letras e Línguas Modernas Depois de diplomado em 1902 inscrevese na esco la de medicina e freqüenta numerosos escritores como W B Yeats A E ou Lady Gregory Desde 1891 começa a escrever e em 1900 é que ele pu blica seu primeiro texto um ensaio sobre Ibsen na Fortnighle Review Em 1902 ele faz uma primeira estadia em Paris voltando a Du blin no ano seguinte onde começa a escrever seu livro Dublinenses Na mesma época escreve inúmeros poemas e um esboço autobiográf co intitulado Retrato do Artista texto que ele desenvolverá em seguida no 9 James Joyce Há diversas biografi as de Joyce disponíveis na WEB No nosso caso partimos da leitura do resumo da página em francês http frwikipediaorgwikiJa mesJoycecitenote3 e que pode ser lida em sua versão em espanhol acessando o link http eswikipediaorgwikiJa mesJoyce Literatura Ocidental II 86 longo romance Stephen Herói que em uma forma elaborada surgirá sob o título Dedalus Retrato do Artista quando Jovem Em 16 de junho de 1904 ele conhece Nora Bernacle por quem se apaixona deixando Dublin e indo com ela para Zurique Depois de uma breve estadia em Pola eles se instalam em Trieste onde logo se juntam ao irmão de Joyce Stanilaus Joyce ensina na escola Berlitz e dá cursos particulares notadamente a Ettore Schmitz em seguida após ter trabalhado num banco em Roma ele é nomeado professor na Escola de Comércio Revotella Em 1907 ele termina Dublinenses e planeja o que se tornará Ulisses Em 1912 ele tem uma curta estadia a última na Irlanda depois em 1914 consegue publicar Dublinenses termina o Retrato do Artista e compõe Os exilados e Giacomo Joyce Depois de ter passado grande parte da guerra em Zurique 1915 1919 Joyce retorna a Trieste alguns meses antes de se instalar em 1920 em Paris por conselho de Ezra Pound Ele encontra Valery Larbaud que lhe apresenta toda a Paris literária do mesmo modo que Silvia Be ach que publica a edição original de Ulisses em 1922 e Adrienne Mon nier que publica a versão francesa em 1929 O livro lhe trará inúmeros aborrecimentos com as censuras anglosaxônicas A partir de 1923 ele começa seu Work in Progress do qual ele apresentará durante mais de quinze anos numerosos fragmentos seja em revistas seja sob a forma de folhetos notadamente Anna Livia Plurabelle em 1928 antes da pu blicação completa sob o título de Finnegans Wake simultaneamente em Londres e Nova York em 1939 A partir de 1924 o estado de seus olhos piora ele se submete a várias operações Quase cego ele se refugia em Zurique em 1940 onde morre um ano mais tarde de uma úlcera do duodeno perfurado com peritonite generalizada 92 Uma abordagem sobre o caráter parodístico do Ulisses O crítico francês Jacques Aubert especialista em James Joyce e or ganizador pela editora Gallimard de Paris de uma inovadora tradução coletiva para o francês do Ulisses resume um perf l possível do grande escritor irlandês Um inovador CAPÍTULO 09 87 Os objetos de James Joyce escrutinados e adorados até a execração foram a Irlanda e a língua inglesa Sua leitura é européia e perspectivista através de Aristóteles Santo Tomás Dante Shakespeare Flaubert Ibsen e muitos outros Cada obra de Dublinenses a Finnegans Wake sutil ou brutalmente deslocou os limites da literatura a cada vez enquadran doa sob um novo e calculado ângulo interrogação interminável do comércio da imagem e do símbolo do som e do sentido do mesmo e do outro O Divino Joyce nem mais nem menos que Hermes com sua obra arriscou sua reputação ao permanecer obra de difícil visita ção ALBERT 1973 Tradução nossa De fato essa difícil visitação existiu ainda existe mas já se torna diferentemente difícil em nossa contemporaneidade Veremos como e por que Ulisses não é apenas uma paródia do clássico de Homero É o que já há quase um século e de forma exemplar e perene o crítico Valery Larbaud especialista francês da literatura inglesa do começo do século XX digamos instituiu em seu texto de defesa e promoção do ainda não canonizado autor irlandês Larbaud começa seu famoso artigo James Joyce publicado na Nouvelle Revue Française em 1922 defendendo Joyce das hordas de moralistas de mente bastante curta e preconceituosa oriundos no caso que ele comenta de uma famigerada Sociedade americana pela su pressão do vício Pois nessa época alguns fragmentos do Ulisses que como sabemos ainda não fora concluído foram apresentados na publicação norte ame ricana T e Little Review com a ajuda de sua diretora Margareth Ander son quem segundo Larbaud teria sido corajosamente combativa em prol da arte perseguida por preconceito Essa sociedade de moralistas se referia ao ainda não tão conhecido escritor pelo menos do outro lado do Atlântico pois Joyce já agregava na França e na Inglaterra muitos intelectuais e escritores em torno a sua obra como um escritor Irlan dês que escreve uma obra pornográf ca e que deveria ser perseguido pela polícia correcional Segundo o crítico essas pessoas desconheciam certamente tanto a opinião capacitada dos intelectuais que o liam como genial e não como pornográf co quanto certamente a própria com plexidade e a inovação de sua obra e de seu estilo Você pode saber mais sobre a narrativa épica de Homero em httpeswikipediaorg wikiOdisea Literatura Ocidental II 88 Joyce é sabido fez grande e inovador uso da técnica do monólogo interior ou do f uxo de consciência como também é chamado esse modo narrativo ou essa estratégia narratológica que desenvolve uma descrição de situações que se passam de forma variável ou seja mais ou menos com plexas e detalhadas desde o ponto de vista subjetivo dos personagens Há do ponto de vista estrutural no Ulisses de Joyce uma relação bem marcada com as partes da obra de Homero ou seja a Odisséia ho mérica que tem o título tomado a partir a derivação do nome grego de seu herói protagonista Odisseus em suas mais conhecidas traduções para a língua portuguesa Mas ao mesmo tempo existem nos dezoito capítulos do Ulisses de Joyce uma série de outras relações que dão a cada uma dessas partes ou desses capítulos sua ligação com os cantos da narrativa homérica mas também criam outros tipos de relação como por exemplo as relações com partes do corpo humano com cores e com as artes e seus materiais Além do mais o Ulisses de Joyce segundo a palavra do próprio es critor foi escrito explorando em cada um dos seus capítulos uma pers pectiva ou uma ótica diferente e para tanto se utiliza de um mosaico de perspectivas estilísticas diferentes de dicções e de usos da linguagem inglesa que na época tornaram a leitura desse romance uma experiên cia controversa para muitos de seus leitores e críticos De fato Joyce se utiliza de uma capacidade de experimentação da linguagem e do uso multiplicado de estratégias narrativas estas forte mente apoiadas no monólogo interior que acedem à possibilidade ci frada de tocar numa multiplicidade enorme de temas e questões que poderíamos hoje chamar transhistóricas Valery Larbaud já no início do século passado pôde exemplif car essa questão da inovação da linguagem de Joyce nos seguintes termos capacidade polissêmica e alegórica da narrativa joyceana Ou seja di ríamos que quando Joyce escreve o seu Ulisses ele o faz de maneira que o caráter paródico em relação ao poema de Homero não tenha a preo cupação de se fazer evidente e a partir disso possa também desenvolver de forma tão complexa quanto cifrada a transposição da aventura ho mérica para a época de Joyce penetrando a complexidade dos proble Um inovador CAPÍTULO 09 89 mas da temporalidade e do espaço pelo viés da capacidade polissêmica da linguagem e também pela característica que tem a narrativa literária de poder relacionar entre si eventos e acontecimentos que não necessa riamente acontecem de forma cronológica e linear Como veremos adiante Larbaud se refere à potência paródica e alegórica do Ulisses ou seja à capacidade dessa narrativa de se remeter a um signif cado ou a vários signif cados a partir do uso de uma série ou de uma rede de símbolos e simbologias que se entremeiam numa narra tiva ou em uma obra de arte em geral Mas antes teríamos que dizer que se na Odisséia homérica a história poderia ser contada a partir das vozes de três personagens principais Te lêmaco Ulisses e Penélope no Ulisses de Joyce a paródia é circunstanciada a partir dos personagens de Stephen Dedalus Leopold Bloon e Molly que podem ser associados também tomadas as devidas precauções com os exageros psicobiográf cos que já não têm mais lugar hoje em dia na crítica ao próprio James Joyce Leopold Bloon e Stephen Dedalus e a sua mulher Nora Bernacle sendo que personagens secundários se inspiraram em pessoas que envolviam Joyce em sua própria vida Enf m leiamos o exemplo de Larbaud Joyce traça um plano particular no interior de cada um dos dezoito quadros ou episódios Assim cada episódio tratará de uma ciência ou de uma arte particular conterá um símbolo particular representará um órgão dado do corpo humano terá sua cor particular como na liturgia católica terá sua técnica própria e uma temporalidade que correspon derá a uma das horas do dia período de dezoito horas em que ocorre toda a narrativa E não é tudo em cada um dos episódios assim dividi dos o autor inscreve novos símbolos correspondências Para ser mais claro tomemos um exemplo O episódio IV das aventuras Seu título é Éolo Aeolus O lugar onde se passa é a sala de redação de um jornal a hora na qual tem lugar é meio dia o órgão o qual cor responde o pulmão a arte da qual trata retórica sua cor o vermelho sua fi gura simbólica o redator chefe sua técnica entimema termo de lógica forma abreviada do silogismo suas correspondências um per sonagem que corresponde ao Éolo de Homero o incesto comparado ao jornalismo a ilha fl utuante de Éolo a imprensa o personagem cha Literatura Ocidental II 90 mado Dignam morre subitamente três dias antes e é no enterro ao qual Léopold Bloom vai constitui o episódio da descida ao Hades inferno dos gregos Elpenor Larbaud 1998 A capacidade estratégica e a potência de construção de pontes entre os acontecimentos numa história narrada têm com o monólogo interior uma ampla capacidade de construção alegórica no que diz res peito ao caráter épico da narrativa homérica e à possibilidade de se fazer uma leitura dessa obra a partir da produção de uma outra e a mesma história a um só tempo Não que Joyce quisesse fazer a mesma história de seu jeito tratase de uma questão mais sutil ou ao menos muito mais próxima de uma intenção de se pensar numa releitura transhistórica desse marco da literatura épica grega marco fundador de algum modo de toda a tradição literária ocidental Sabemos que a literatura no início do século XX passou a promover uma série de transformações de ordem estrutural e semântica intro duzindo uma série de outras problematizações tanto históricas quanto relacionadas seja ao estilo seja aos modos como a narrativa poderia ser diversamente exercida Vimos como as transformações materiais his tóricas políticas e culturais puderam apresentar um novo contexto de produção e recepção das produções artísticas e literárias que surgem na esteira da era de uma industrialização cada vez mais técnica onde a reprodução em massa dos bens de consumo passa a gerar toda uma nova percepção do mundo o quadro de uma aceleração e de uma trans formação radicais da civilização ocidental A literatura de James Joyce não é indiferente a isso pelo contrário também pode ser lida como uma revolução nesses modos de percepção De fato a literatura é um canal no qual podem ser percebidas as formas de subjetividade e os modos de pensamento de uma época Ulisses é nesse sentido um manancial enorme de experiências e modos de pensamento em um mundo que mais de dois mil anos de pois de Homero apesar de ter se transformado de forma muito intensa e vertiginosa paradoxalmente continua sendo um mundo onde se pode contar a história dos homens em sua enorme complexidade Se toda a história do velho herói grego Odisseus se desenvolveu em 18 partes e cada uma contava aspectos diferentes de uma mesma e Um inovador CAPÍTULO 09 91 imensa história de glórias e derrotas batalhas e grandes mistérios des tinos abertos sob o olhar dos deuses e destinos lançados ao sabor das vontades e da coragem desses personagens ou simplesmente desses ho mens que encarnavam nessas grandes narrativas épicas a grandeza e a f nalidade enigmática que os fazia perdurarem em suas lutas Joyce ao criar seu Ulisses não faz a não ser e isso não é pouco recriar numa aventura redobrada ou desdobrada a possibilidade de toda essa história em outra conf guração E portanto de lançar novamente toda uma criatividade enigmati camente potente e complexa de se refazer uma visão mítica da história numa espécie de retorno em espiral relacionando em cada ponto ou em cada cena do Ulisses antigo esse seu ou nosso Ulisses contemporâneo a existência desse extremo da história das primeiras décadas do século XX ali mesmo onde um personagem como Léopold Bloom participa de todo tipo de coisas e junto a Stephen Dedalus e Molly e aos outros diver sos personagens desse retorno inusitado de toda a história poderia aqui e ali perceber em mínimos ou em opacos detalhes situações e eventos que poderiam e puderam ter o tempo todo acontecido de forma tão se melhante quanto as diferenças que separam uma história de outra Como a nuvem que em determinado momento observa Stephen Dedalus às 0845 sessenta ou noventa páginas depois também vê a mesma nuvem Leopold Bloom enquanto atravessa uma rua Antonio Houaiss escreve Assim cada um dos nós pode ser um Ulisses ou uma Ulissa entre o acordar e o dormir entre o emigrar e a nostalgia entre f car adulto e de perecer com saudades da infância e juventude entre amar e desamar por que o amor deixou de ser o que era in SEIXAS 2005 p 60 Uma e outra narrativa por mais que estendam ou encurtem o tem po no interior de sua história contando de uma maneira ou de outra seus acontecimentos certamente diferentes no percurso de cada uma dessas fabulações manipulam uma mesma dimensão acessível a todos os homens mesmo que cada um de nós tenha dessa dimensão inapela velmente nossas diferenças relacionadas às singularidades de cada um O Ulisses de Joyce atravessaria ainda traços que possivelmente pela própria linguagem se dão em outros tantos pensadores e escritores do Ocidente e que de certa forma também participam daquela primei Literatura Ocidental II 92 ra Odisséia justamente ao modo do paradoxo que gera toda percepção histórica dada pelo ponto de vista do literário A paródia do Ulisses não geraria de algum modo no texto homérico um salto para frente de si próprio Quando pela imaginação literária e por estranho e impossível que possa parecer coexiste sempre um efeito inverso sobre o próprio texto homérico É só pensarmos que Joyce quando escreveu seu Ulisses retorna ao Ulisses homérico que ele havia lido relacionando com todas as di ferenças que virão a se inscrever em seu Ulisses um laço mínimo ou máximo de qualquer modo talvez mediano ou incalculável em direção e a partir daquela mesma origem grega tão recuada quanto próxima fa zendoa vacilar em sua própria constituição não pelo material e estático de suas páginas ou de seus signos concretos mas pela concreção que a leitura dessas páginas sempre e de todo modo simbolicamente adquiri das criam pelo efeito de uma reapropriação dinâmica uma espécie de transformação anacrônica No sentido que procuramos problematizar a literatura não precisa ser pensada apenas na forma genética de sua existência que sem dúvida pela evidência de sua materialidade física e histórica se localiza ante riormente ou posteriormente no tempo cronológico do mundo Mas a literatura e a signif cação possível a partir dela nos informam um acesso anacrônico aos fatos históricos A literatura e nesse caso o Ulisses de Joyce pode ser lido como abrindo uma ponte que atravessa toda uma percepção histórica da própria literatura e da história Pois a comple xidade das situações que são narradas e ao mesmo tempo sua simpli cidade cotidiana em muitos casos exemplif cada nas cenas banais que nela têm lugar situam uma forma moderna de concepção do tempo tornando o texto cheio de possibilidades ou de traços que o tornam uma espécie de máquina de sentidos e uma imensa alegoria de símbolos e imagens relacionando várias outras leituras de modo não evidente Esse tipo de complexidade e de sentidos que se abrem ou não num texto pas sa a exercer uma força anacrônica em relação ao histórico e a sua força simbólica pela experiência de leitura de cada um que entre em contato com a literatura posta em prova em Ulisses a partir do movimento que esse universo literário possibilita principalmente pelo recurso do mo nólogo interior É possível o acesso à obra em sua versão eletrônica e hipertextual no original em inglês em httpwww docicacukrac101con cordtextsulysses Um inovador CAPÍTULO 09 93 Nessa narrativa cheia de espirituosismo e sarcasmo gigantesca pluralidade de expressões tragicômicas dada na plástica inumerável dos gestos de seus personagens e suas vozes pela simplicidade e a pro fundeza copresentes dos mitos que lhe atravessam e a entrada pelos fundos em tantas f losof as quanto sua impossibilidade de responder ao todo da vida os três tempos cronológicos abstratos aí se interpenetram talvez também ao modo paródico numa experiência que torne acessível o fato incontornável do tempo destilado na curva inf nita em que toca o mundo No mesmo espaço em que só a literatura e a imaginação en tremeadas têm acesso Literalmente que séculos se passem em 18 horas e que 18 horas possam talvez jamais terminar como também durarem pouco mais que alguns dias Nessa curva ou no tempo suspenso de uma ou outra leitura Ulisses ou Léopold Bloom poderiam ser no futuro ou no passado quem sabe por um efêmero instante no próprio presente de todos esses tempos aquele herói que deveria se lançar ao desconhecido para f nalmente e segundo a roda inf nita do tempo retornar àquela Penélope ou Molly que não parava de f ar e desf ar sua própria tessitura e como a própria literatura ao se realizar tecendo e retecendo sua própria enunciação dá início ao estranho processo alegórico que se instaura de retorno ao início deslocado de seu próprio f m Você pode ler uma versão de Ulisses em espanhol no seguinte en dereço httpescolar1comarlibros3uliseszip Antonio Houaiss em seu excelente ensaio Ulisses de James Joyce assim se refere ao mito de Ulisses retomado e transfi gurado por Joyce Enriquecido de outros elementos reapare ce em diversas tragédias de Esquilo e Eurípedes entre os próprios gregos e em latim na Eneida do man tuano Virgílio projetando se depois através da Idade Média na Idade Moderna e na Contemporânea apa recendo em poemas narra tivas dramas óperas etc Essencialmente andanças do herói até o retorno ao ponto de partida Simbo licamente de como o fi m está no início e o início no fi m ou de como uma aven tura por exemplo a vida é um ciclo isto é algo que se desdobra forman do como um roteiro em círculo que se fecha ou de como tudo se repete in SEIXAS 2005 p 60 Uma crítica à teoria e à prática literárias CAPÍTULO 10 95 Uma crítica à teoria e à prática literárias Neste capítulo você estudará algo da literatura de Alain RobbeGrillet e o Nouveau Roman francês com as suas propostas de novas formas expressi vas e estéticas como o desaparecimento do herói dotado de uma biograf a a ausência total de intriga a destruição do tempo e do espaço e a negação de uma psicologia dos personagens 101 Alain RobbeGrillet Alain RobbeGrillet nasce em Brest em 18 de agosto de 1922 e mor re em Caen em 18 de fevereiro de 2008 Depois de estudar Agronomia e ter viajado várias vezes para as Antilhas e África Alain RobbeGrillet se consagra à literatura ou antes a pesquisas inovadoras relativas à es critura literária Desse modo ele se torna um dos maiores teóricos e representantes do Nouveau Roman francês Esta corrente literária diz respeito a autores que a partir dos anos cinqüenta até o f m da década de setenta rejeitam a forma romanesca tradicional ou seja a linearidade da intriga a cronologia do relato e a densidade psicológica dos personagens Na verdade RobbetGrillet aparece como uma f gura importante na história do movimento do Nouveau Roman por sua atuação crítica e teórica pois as bases ou os fundamentos dessa corrente literária surgiram ao mesmo tempo em vá rios escritores e escritoras no período entre 1950 e 1970 Dentre alguns nomes podemos citar as escritoras Nathalie Sarraute e Marguerite Du ras e os escritores Michel Butor Robert Pinget e Claude Simon O fato de RobbetGrillet ter escrito um verdadeiro manifesto so bre o Novo Romance intitulado Pour um Nouveau Roman 1963 que na verdade consiste num conjunto de ensaios de 1956 a 1963 sobre o Nouveau Roman também pode ser considerado um fator importante para seu nome ser lembrado como uma referência of cial dessa corrente literária da segunda metade do século XX 10 Alain RobbeGrillet Você pode ler sobre o Nouveau Roman no site httpwwwcanalso cialnetGERfi chaGER aspid9427 catLiteratura Literatura Ocidental II 96 RobbetGrillet foi amado e odiado na França pois defendia com certa agressividade seu modo de construção literária detendo um co nhecimento e uma inteligência teórica muito combativa em relação às expectativas e posições críticas que essa corrente literária desencadeara RobbetGrillet também foi cineasta escrevendo o roteiro e traba lhando junto do importante cineasta Alain Resnais no f lme Lannée dér niére à Marienbad O ano passado em Marienbad de 1961 vencedor nesse mesmo ano do Leão de Ouro do festival de Veneza Esse f lme considerado como uma das maiores realizações do cinema antecipa de algum modo segundo alguns críticos uma série de outros f lmes da Nouvelle Vague francesa Em O ano Passado em Marienbad a história se resume à tentativa de um homem convencer uma mulher que eles estiveram juntos no ano anterior sem que a mulher tenha qualquer lembrança desse fato O f l me todo se baseia numa espécie de ilusão ou de engano explorando as dif culdades de se estabelecer nexos sólidos com a lembrança O f lme também explora a própria relação problemática de qualquer narração com seu objeto fugaz de origem Isto faz com que neste f lme haja toda uma relação paradoxal da história com seu modo de narração desequi librando algumas formas expressivas utilizadas no cinema até então A primeira obra literária de RobbeGrillet é Les Gommes apare cendo em 1953 e inaugurando junto a outros escritores do Novo Ro mance esta nova forma de estrutura narrativa que de algum modo relativiza o próprio espaço de f xação do narrador em relação a uma perspectiva sobre o objeto narrado Com ressalvas pois se trata exatamente de uma certa impossibi lidade de se resumir um texto que se abre a uma inf nidade de situações descritivas e que dissolve por assim dizer uma línea diegética bem ob jetiva poderíamos tentar um pequeno resumo dessa obra O deteti ve Wallas é designado ao local de um crime Mas a vítima está mesmo morta A investigação tem realmente um sentido sem um cadáver Pas tiche de romance policial esta obra se esforça por denunciar a ilusão realista manipulando os elementos narrativos Outra característica é que os personagens não têm mais importância do que os objetos que Cartaz do fi lme O ano Passado em Marienbad A Nouvelle Vague é uma corrente cinematográfi ca que como o Nouveau Ro man instituiu novas formas expressivas na estética cinematográfi ca Os nomes mais conhecidos da Nouvelle Vague francesa são Jean Luc Godard Alain Resnais François Truffaut e Claude Chabrol Você pode saber mais sobre a Nouvelle Vague visitando a página eletrônica de Wikipedia em espanhol httpeswikipediaorg wikiNouvellevague Uma crítica à teoria e à prática literárias CAPÍTULO 10 97 são descritos por eles mesmos e não em função de sua utilidade com relação ao homem De algum modo há nessa estratégia narrativa uma crítica a uma visão antropomórf ca do mundo La Jalousie traduzido ao português por O ciúme é seu quarto ro mance publicado em 1957 pela Editions de Minuit de Paris editora na qual o autor foi consultor por muitos anos O ciúme tornouse um de seus livros mais comentados pela crítica ao descrever todo um percurso obsessivo incidindo sobre a narração sem contudo apontar a possibili dade de uma f xação dos pontos de vista aí relatados nem da substância do relato ou mesmo uma direção discernível na evolução da história Nesta obra o escritor joga com os dois sentidos do título pois jalousie em francês também signif ca persiana Ou seja o ciúme de um marido anônimo que espia sua mulher A e o amigo que ela recebe Franck se gundo ele seu amante e a visão desse mesmo ciúme através da persiana pela qual ele os observa numa casa colonial Outro romance importante de RobbeGrillet é Le Voyeur forman do a tríade que alguns teóricos e críticos teimaram digamos assim em considerar como sendo o que de mais inovador haveria em sua obra remetendo a segundo plano um certo retorno de RobbeGrillet em suas obras posteriores a um tratamento mais clássico ou realista de sua es critura Isto pelo fato de e o Próprio RobbeGrillet o diz no Colóquio de Cerisy que seus livros posteriores na verdade dão continuidade a toda uma relação fundamentalmente crítica de uma representação hu manista baseada nos moldes do romance realista tradicional Para Ro bbeGrillet como para o crítico Jean Ricardou um movimento sutil e intrateórico continuava progredindo mesmo em suas obras posteriores a Dans le Labyrinthe 1959 La Maison de rendezvous 1965 e Projet pour une revolution à New York 1970 Essa progressão continuava existindo como uma preocupação em contrapor outras questões formais e expressivas às relações de represen tação romanesca clássica baseadas no romance do século XIX de tipo balsaquiano as quais sua obra como a de outros escritores do Nouveau Roman punham em prática singularmente desde a década de 50 Na verdade existe toda uma discussão que procuramos comentar anterior mente seguindo uma leitura do crítico Henry Godard Este observa O colóquio de Cerisy de 1976 em CerisyLaSalle na Fran ça foi dedicado à obra de RobbeGrillet Neste colóquio houve uma intensa e prolífera discussão sobre as possibi lidades de relacionamento das experiências literárias do Nouveau Roman especifi ca mente da obra de Robbet Grillet com a psicanálise e as teorias literárias lingüísticas e do cinema Neste Colóquio participaram além do pró prio RobbeGrillet os críticos teóricos e psicanalistas Jean Ricardou Pierre Fedida J C Raillon M de Gandillac dentre outros RobbeGrillet dirigiu e co dirigiu diversos fi lmes além de sua participação inicial com O Ano Passado em Marienbad Filmes como LImmortelle 1963 Trans EuropExpress 1966 LHomme qui ment 1968 LEden et après 1971 Glissements progressifs du plaisir 1974 Le Jeu avec le feu 1975 La Belle Cap tive 1983 Un bruit qui rend fou 1995 coreali zado com Dimitri de Clerq e Cest Gradiva qui vous appelle 2007 constituem sua importante participa ção na Nouvelle Vague do cinema francês Literatura Ocidental II 98 uma espécie de gradação na construção formal do romance do século XX e vê nesse processo apenas uma diferença singular de estilo em cada autor e não especif camente de temática ou de intenção f losóf ca entre as experiências literárias anteriores ao Nouveau Roman como por exemplo pode ser observado já desde Marcel Proust James Joyce Vir ginia Woolf entre outros e em seguida a partir da década de 30 na lite ratura surrealista e em seus desdobramentos fortemente heterogêneos indo até a década de 50 quando se estabelece de forma pedagógica ou históricoliterária o início das experiências do Nouveau Roman Enf m construindo uma escritura que transformava os próprios dispositivos narrativos vinculados a uma preocupação romanesca re alista RobbeGrillet operava segundo Jean Ricardou a partir de um processo de crítica interna à teoria e à prática literárias Fazendo da pa ródia por exemplo um meio de se reverter a própria noção do paródi co na literatura e operando estratégias de linguagem que relativizariam a preponderância do próprio uso do conceito de metáfora operando em sua escritura o que desde então passou a ser analisado seguindo os estudos do teórico da literatura Roman Jakobson como função poética da linguagem e o uso metonímico ou sintagmático das próprias ca deias metafóricas ou paradigmáticas existentes no trabalho descritivo da cena e no sentido que emerge da dinâmica da voz narrativa no texto f ccional literário Apenas para situar um pequeno quadro da trama em Le Voyeur alguns traços gerais da história seriam a posta em cena de um agente de comércio em viagem seus trajetos de bicicleta em uma ilha Desse tema absolutamente simples é que de repente o chão é retirado bruscamente dos pés do leitor Pois se há um crime esse agente de comércio quase anônimo pode têlo cometido se há um enigma dessa história ele está em toda parte tanto na narração como na intriga quase inexistente em certo sentido Você pode saber mais sobre este importante teórico da lingüística que trabalha as fi guras retóricas em sua fun ção poética em httpwww pucspbrposcoscultura biojakobhtm Um escritor erudito CAPÍTULO 11 99 Um escritor erudito Neste capítulo você estudará um dos escritores mais importantes da Amé rica Latina com uma inquestionável projeção internacional o argentino Jorge Luis Borges Poeta narrador e ensaísta Borges foi um escritor ex cepcional que conquistou o mundo como poeta da f losof a e f lósofo da poesia como af rma o estudioso de sua obra Daniel Balderston quem não duvida em reconhecêlo como o maior escritor erudito do século XX 111 Fama mundial O argentino Jorge Luis Borges foi um dos escritores mais impor tantes do século XX Conhecida mundialmente e cultuada por teóricos da literatura e importantes f lósofos sua obra transcende amplamente o espaço literário de seu país Desde a década de cinqüenta quando tra duções para o francês de alguns textos seus apareceram em Les Temps Modernes Borges passou a fazer parte de um reduzido grupo de autores periféricos que logo se tornariam conhecidos no mundo inteiro Essa fama mundial se deve a uma série de complexas razões mas em pri meiro lugar à rara perfeição de sua escrita aliada a temas que exploram certas teorias que se tornariam centrais no pensamento ocidental Hiper erudito e hiper crítico Borges pref gurou teorias tais como a teoria do intertexto antes que se disseminara pelos manuais de crítica literária como af rma Beatriz Sarlo Sarlo 1993 p 11 E argumentou contra a autoridade do autor desenhou uma teoria da linguagem da escrita da leitura da interpretação desconf ando profundamente de todo um le gado hermenêutico explorando como ninguém os paradoxos de uma tradição metafísica fundada na idéia de univocidade do sentido nos seus textos ensaísticos e f ccionais Já desde seu ingresso na cena cultural de Buenos Aires no início da década de vinte o jovem Borges imprime a suas intervenções as marcas da polêmica e do debate intelectual em um tom altamente transgressivo e irre verente ancorado em suas pacientes leituras de um denso corpus f losóf co 11 Jorge Luis Borges Literatura Ocidental II 100 e literário da tradição ocidental que terão como resultado um desarranjo dessa tradição e uma reorganização do sistema narrativo argentino Se o efeito Borges na cultura argentina do século XX terá de ser motivo de am plos debates no presente século quando o país vizinho no bicentenário de sua fundação terá que revisitar seu complexo passado o efeito Borges na cultura ocidental terá que ser pensado desde uma postura póscolonial que consiga perceber as reverberações de textualidades periféricas na forma ção de um pensamento crítico tendente a rejeitar fronteiras e hierarqui zações eurocentristas O tema é polêmico mas não mais polêmico que a atual presença de culturas não eurocêntricas na exigência de reorganização das trocas de bens materiais e de bens simbólicos mundiais A seu modo Borges colaborou para que vozes outras constelassem o que chamamos de literatura ocidental assumindo a prerrogativa dos latinoamericanos de pensar de trabalhar e de discutir dentro de todas as tradições 112 Uma biografi a intelectual Filho de Jorge Guillermo Borges e de Leonor Acevedo Jorge Luis Borges nasceu em 1899 em Buenos Aires e passou os primeiros anos de sua vida no bairro de Palermo na época subúrbio da capital argentina De sua infância Borges lembra especialmente da esmerada educação que recebeu em sua casa paterna onde se falava espanhol e inglês e se contava com uma farta biblioteca onde o futuro escritor leria as pri meiras grandes obras que marcariam sua vida Também do suburbano Palermo com seus compadritos e cuchilleros Borges irá guardar lem branças que povoarão seu imaginário ao longo de toda sua vida e lhe servirão de material para belíssimas páginas poéticas Em 1914 o pai de Borges se muda com sua família à Europa em busca de tratamento of almológico para sua cegueira progressiva Por causa da Primeira Guerra Mundial os Borges se instalam em Genebra Suíça onde o jovem Borges e sua irmã Norah freqüentam a escola Ali Borges estuda o francês e o alemão e entra em contato com a obra de escritores expressionistas e simbolistas assim como com textos de f lósofos que terão forte presença na sua obra futura tais como Schope nhauer Nietzsche e Mauthner Um escritor erudito CAPÍTULO 11 101 Em 1919 a família se muda à Espanha onde Borges entra em con tato com o ultraísmo movimento espanhol fundado pelo escritor sevi lhano Cansinos Asséns e do qual fez parte o escritor Guillermo de Torre quem mais tarde se casaria com Norah Borges Os Borges retornam a Buenos Aires em 1921 Depois de sete anos de ausência o jovem Borges vivencia um redescobrimento apaixonado de sua cidade natal sentimento que nunca o abandonará e que se pode ler em boa parte de sua obra Em 1923 Borges publica seu primeiro livro de poemas Fervor de Buenos Aires um conjunto de trinta e três poemas num dos quais escreve Esta ciudad que yo creí mi pasado Es mi porvenir mi presente Los años que he vivido en Europa son ilusorios Yo estaba siempre y estaré en Buenos Aires De fato a literatura de Borges é absolutamente inseparável da cida de que ele amou fervorosamente e no entanto a sua literatura é insepa rável do conjunto das grandes obras que representam os momentos mais fortes da formação do cânone da literatura ocidental do século passado Os críticos borgeanos destacam que sua obra seguiu duas vertentes fun damentais No seu ingresso na cena cultural na década de vinte o jo vem Borges irá intervir calorosamente nas polêmicas sobre a formação cultural de seu país principalmente de sua cidade na procura de uma literatura local que reorganizando a herança decimonônica permitisse no entanto o ingresso da literatura argentina no cenário mundial Entre 1924 e 1930 Borges publica Luna de enfrente Inquisiciones Cuaderno San Martín e Evaristo Carriego encerrando uma primeira fase intelectu al caracterizada por uma literatura do arrabalde portenho e por inquie tações de ordem nacionalista ou regionalista Você pode ler o manifesto desse movimento literário no seguinte endereço http eswikipediaorgwikiMani fi estoultraC3ADsta Em um dos volumes de sua famosa História das literaturas de vanguarda Guillermo de Torre assim escreve sobre os ideais do ultraísmo Se a poesia foi até hoje desenvolvimento de agora em diante passará a ser síntese Fusão de vá rios estados anímicos num só Simultaneísmo Veloci dade imaginativa A rima desaparece totalmente da nova lírica Alguns poetas ultraístas os melhores uti lizam o ritmo Um ritmo próprio variado mutável que não se sujeita a uma pauta Constantemente modifi cado adaptado à estrutura do poema DE TORRE 1972 p 81 Literatura Ocidental II 102 O crítico argentino Jorge Panesi assim escreve sobre a produção borgeana dos anos vinte Na década dos anos vinte Borges ensaia uma literatura nacionalista que mais estritamente deveria chamar se doméstica localista ou regionalista a literatura do arrabalde e em secreta aliança com essa invenção da mão de suas leituras alemãs intervém em um debate intelectual típico do Centenário e que se remonta à herança das inquietações lingüísticopolíticas do século XIX o problema pedagógico do idioma nacional PANE SI 2000 p 132 Dessas inquietações lingüísticas e de suas leituras f losóf cas em geral e de f losof a da linguagem em especial Borges tirará importantíssimos subsídios para as suas melhores criações Em 1930 Borges publica Evaristo Carriego coletânea de ensaios que comentam a obra a vida e o Palermo do poeta do arrabalde porte nho Evaristo Carriego que foi amigo de seu pai durante os primeiros anos de vida do escritor quando a família morava naquele subúrbio de Buenos Aires Em 1932 o argentino publica Discusión uma reunião de ensaios sobre diversos temas entre os que se destaca La poesia gauches ca uma aguda ref exão sobre a gauchesca e em especial sobre o famoso poema de José Hernandez Martin Fierro Em 1935 publicase o livro de relatos Historia universal de la infamia e um ano depois o livro de ensaios Historia de la eternidad Mas será entre 1944 e metade da década de cinqüenta quando se publicam seus extraordinários contos reunidos em Ficciones e El aleph e a coletânea de ensaios intitulada Otras inquisi ciones que Borges começará a ganhar fama internacional Traduzido pela importante editora francesa Gallimard no início da década de cinqüenta exatamente em 1951 Ficciones em francês Fic tions logo se tornou um livro cultuado por certos intelectuais franceses Na mesma década a Gallimard lança Labyrinthes em 1953 uma sele ção de contos extraídos de Ficciones e El Aleph Enquêtes em espanhol Otras Inquisiciones em 1957 e no mesmo ano relança Fictions Esses textos mais os dez títulos que se publicaram na França durante a déca da de sessenta encabeçados por La Bibliothèque de Babel em espanhol La Biblioteca de Babel em 1963 não só consolidaram a presença do es critor latinoamericano nas rodas literárias da França mas também lhe Um escritor erudito CAPÍTULO 11 103 garantiram um lugar no campo de ref exão e renovação teórica que ge raria condições de possibilidade para o que passará a conhecerse como pósestruturalismo francês O célebre prefácio a Les mots et les choses As palavras e as coisas de Michel Foucault publicado pela Gallimard em 1966 testemunha a contribuição borgeana ao que se conhece como o linguistic turn e rhetorical turn das ciências humanas No mesmo ano Richard Macksey chama a atenção do f losofo francês Jacques Derrida sobre a relação de seu famoso ensaio Estrutura signo e jogo no discur so das ciências humanas uma crítica à Metafísica representada pela te oria do jogo com a do criador de Pierre Menard Jorge Luis Borges As leituras borgeanas de Derrida podem ser mapeadas em alguns momen tos importantes de sua obra e do mesmo modo citações como as que encabeçam o capítulo terceiro de A farmácia de Platão uma das quais é extraída de Tlön Uqbar Orbis Tertius que faz parte de Ficciones O crítico argentino Alan Pauls destaca que a vida de Borges a par tir dos anos trinta se volta drasticamente às letras e menos à ação Decide aceitar o destino ao qual o condena sua miopía ser um homem de letras não de ação E logo af rma A vida de Borges é uma vida puramente literária uma existência cortada de ação feita apenas de palavras e de signos encerrada em si mesma uma vida autista A grande obra borgeana de f nais dos anos trinta até metade dos cinqüenta parece aprofundar essa direção Os livros Ficciones El Aleph u Otras inquisiciones põem o acento nas qualidades mais literárias menos vitais da literatura a ref exão a especulação as proezas técnicas ou retóricas a perfeição do estilo a erudição Detetives que são puro raciocínio bibliotecas inf nitas labirintos paradoxos f losóf cos exotismos importados do Oriente aparente mente nada mais afastado do mundo a vida o presente o aqui e agora que o mundo do melhor Borges que pisa a década dos anos setenta como o protótipo do escritor intelectual entrincheirado em sua fortaleza verbal menos interessado em ser um homem de uma vasta e complexa literatura como ele mesmo escreveu de Joyce de Goethe e de Shakespeare PAULS 2004 pp 3132 Literatura Ocidental II 104 Em 1955 no mesmo ano em que o escritor é escolhido diretor da Biblioteca Nacional de Buenos Aires seu of almologista lhe proíbe ler e escrever por causa de mesma doença congênita que afetou a seu pai Porém esse não foi motivo para parar com sua carreira de escritor con tinuou escrevendo e pedia para lerem para ele O mesmo Borges co mentou o fato numa conferência ministrada anos mais tarde com as seguintes palavras Poco a poco fui comprendiendo la extraña ironía de los hechos Yo siempre me había imaginado el Paraíso bajo la espe cie de una biblioteca Ahí estaba yo Era de algún modo el centro de novecientos mil volúmenes en diversos idiomas Comprobé que apenas podía descifrar las carátulas y los lomos Entonces escribí el Poema de los dones BORGES 1980 p 144 Nadie rebaje a lágrima o reproche esta declaración de la maestría de Dios que con magnífi ca ironía me dio a la vez los libros y la noche Borges continuou escrevendo e publicando até o f nal de sua vida ministrou palestras cursos e conferências em vários países e recebeu vários prêmios Por algum motivo preferiu morrer longe de sua amada Buenos Aires Sabendose doente mudase com sua mulher Maria Ko dama a Genebra cidade onde morara na sua adolescência e primeira juventude onde aprendera o alemão e tomara conhecimento de teorias que cuja fascinação o acompanhariam a vida toda Ali morre em 14 de junho de 1986 Sugerimos que você aces se o site da Fundacion In ternacional Jorge Luis Bor ges no seguinte endereço httpwwwfundacion borgescomprincipalin troesphtml e o site do Centro Borges excelente site do Borges Center di rigido pelo pesquisador e professor Daniel Balders ton httpwwwborges pitteduspanishphp Um escritor erudito CAPÍTULO 11 105 O crítico uruguaio e amigo pessoal de Borges Emir Rodriguez Mo negal assim lembra dos últimos vinte e cinco anos de vida do es critor Em 1961 Borges comparte com Samuel Beckett o Prêmio Formentor outorgado pelo Congresso Internacional de Editores que será o começo de sua reputação em todo o mundo ocidental Receberá logo o título de Commendatore pelo governo italiano o de Comandante da Ordem das Letras e Artes pelo governo francês a Insígnia de Cavalheiro da Ordem do Império Britânico e o Prêmio Cervantes entre outros numerosos prêmios e títulos Uma pesqui sa de opinião mundial publicada em 1970 pelo Corriere della Sera revela que Borges obteve mais votos como candidato ao Prêmio Nobel que Solzhenitsyn a quem a Academia Sueca distinguirá esse ano Em 27 de março de 1983 publica no jornal La Nación de Bue nos Aires o relato Agosto 25 1983 em que profetiza seu suicídio para essa data exata Perguntado tempo mais tarde sobre por que não tinha se suicidado na data anunciada responde sinceramen te Por covardia Nesse mesmo ano a Academia sueca outorga o Prêmio Nobel a William Golding Um dos acadêmicos denuncia a mediocridade da eleição Todos seguem preguntandose por que Borges é sistematicamente ignorado O prêmio a Golding parece dar a razão àqueles que duvidam de que os acadêmicos suecos sai bam realmente ler Jorge Luis Borges morreu em Genebra no dia 14 de junho de 1986 113 Tlön metáfora do mundo Vamos agora comentar um dos relatos mais densos e ambiciosos de Borges Tlön Uqbar Orbis Tertius conto que abre seu famoso livro Ficciones Nele lemos certas inquietações que se tornaram não raro te máticas obsessivas em Borges tal é o caso da problemática em torno da questão da linguagem Enunciar a complexidade que tal problemática assumiu ao longo do século XX excederia em muito este espaço Mas vale lembrar que Borges assim como outros escritores de sua época mergulharam em profundidade no que se conhece como a virada lin güística das ciências humanas que ocupa um espaço importante na cena Você pode ler o resto do texto no seguinte endere ço httpwwwliteratura orgBorgesBorgeshtml Literatura Ocidental II 106 das discussões teóricas da contemporaneidade Segundo uma arriscada redução talvez possa se colocar o problema do seguinte modo a uma fase em que se acreditou na transparência da linguagem sobreveio outra em que se entende a linguagem como um jogo que gera uma realidade artif cial substituindo a histórica uma fase em que a profunda perten ça da linguagem e do mundo foi desfeita Foucault 1992 25 Ora se aceitamos com LéviStrauss que a linguagem discursiva é que distin gue o homem dos demais animais que são as mentes lingüísticas as que efetivamente podem realizar a distinção entre mundo e linguagem não será o mundo então aquilo que a linguagem articulada permite re conhecer como tal O que seria a rigor aquilo que permitiria levantar a barreira entre mundo e linguagem senão o próprio discurso Quan do alguém enuncia isto pertence ao mundo e isto pertence à linguagem não está executando uma operação através da linguagem está executan do algo que somente lhe é permitido porque é linguagem Teríamos então que recolocar o problema nos seguintes termos se negarmos a possibilidade de transparência da linguagem se negarmos que o dis curso seja o meio transparente pelo qual expressamos um determinado pensamento ou idéia ou seja se descrermos que exista algo que precede o discurso e que no entanto pode ser enunciado seríamos levados a aceitar que a linguagem articulada se apresenta como um artifício que necessariamente nos privaria de aceder ao mundo aos fatos à realidade histórica Outra possibilidade seria pensar que a rigor a única realidade de que dispomos é aquela formada dentro do léxico da gramática e da sintaxe do sistema lingüístico ao qual acedemos desde o momento em que somos lançados ao mundo Essa parece ser a idéia sustentada pelo narrador de Tlön Uqbar Orbis Tertius Ficciones 1956 Tentando reconstruir a trama urdida por Borges em Tlön de sejamos destacar os seguintes pontos a falsa enciclopédia que o perso nagem Bioy Casares teria adquirido em um leilão sem saber que era falsa registrava en la sección idioma y literatura que a literatura de Uqbar país inventado pelos autores dessa falsa enciclopédia era de ca rácter fantástico y que sus epopeyas y sus leyendas no se referían ja más a la realidad sino a las dos regiones imaginarias de Mlejnas y de Tlön p 415 À falsa enciclopédia seguese o achado dois anos mais tarde do tomo XI de outra falsa enciclopédia A f rst Encyclopaedia of Capa de Ficciones edição argentina Um escritor erudito CAPÍTULO 11 107 Tlön que descrevia agora não um país imaginário e sim um planeta o de Tlön que segundo a primeira enciclopédia pirata seria uma região imaginária mítica de Uqbar Do planeta imaginário Tlön descrito na enciclopédia o narrador destaca Su lenguaje y las derivaciones de su lenguaje la religión las letras la metafísica presuponen el idealismo p 20 grifos nossos E logo af rma que no hemisfério austral do pla neta No hay sustantivos en la conjetural Ursprache de Tlön de la que proceden los idiomas actuales y los dialectos hay verbos impersona les calif cados por suf jos o pref jos monosilábicos de valor adverbial p 435 Já no hemisfério boreal la célula primordial no es el verbo sino el adjetivo monosilábico El sustantivo se forma por acumulación de adjetivos p 21 Lembremos também que de Tlön surge um outro mundo imaginário Orbis Tertius descrito na língua de Tlön que como sabemos é composta de verbos impessoais e adjetivos e acumulação de adjetivos ou seja onde o substantivo não existe É por este motivo que em Tlön a percepção da realidade se dá como uma descontinuidade temporal e espacial Se não há um nome que designe uma coisa e sim acumulações de adjetivos ou verbos impessoais qualif cados por suf xos ou pref xos de valor adverbial não há substância a ser designada há qualidades em transmutação e ações cujos suf xos ou pref xos adverbiais as localizam em seu devir Para os habitantes de Tlön o mundo no es un concurso de objetos en el espacio es una serie heterogénea de obje tos en el espacio p 436 A ausência de nome estaria relacionada à au sência de identidade a si do objeto O objeto então é algo heterogêneo cujo sentido se dá efêmera e circunstancialmente pelo ato de diferir de si mesmo Desse modo o processo cognitivo do mundo em Tlön darse ia condicionado pela trama discursiva que o léxico e a sintaxe permitem operar Se o tempo e o espaço em Tlön são descontínuos é porque não há nem objeto nem substância que permaneçam no tempo e no espaço E se isto é desse modo é porque a linguagem de Tlön determina um processo cognitivo que abdica da nomeação segundo um procedimen to de ordenação em categorias estáveis onde a essência das coisas estaria como que preservada sob o seu nome A história de Tlön segue uma armação em abismo Tlön seria um planeta ideado pelos escritores de Uqbar um país inexistente e Orbis Tertius que signif ca terceira órbita é um mundo descrito pelos escri Literatura Ocidental II 108 tores de Tlön E sabemos que as três regiões são produtos da armação de uma seita de sábios agnósticos Então quando lemos cuyo narrador omitiera o desf gurara los hechos e incurriera en diversas contradiccio nes p 431 poderíamos estar lendo dados sobre o próprio narrador que narra o que lemos É inevitável não ignorar ou esquivar a af rmação Las naciones de ese planeta de Tlön son congénitamente idealis tas Su lenguaje y las derivaciones de su lenguaje la religión las letras la metafísica presuponen el idealismo p 20 O idealismo tanto em sua corrente gnosiológica quanto na romântica discute a existência real dos próprios corpos e do mundo que teriam existência ideal em nosso espírito Sabemos no entanto que objetos de Tlön um mundo inven tado por um estranho mecanismo aparecem em nosso mundo real vindos de la frontera p 432 com todo o peso e as marcas que podem deixar os objetos reais Se no mundo real os corpos teriam existência ideal pois o idealismo é uma corrente f losóf ca do mundo real e quando vindos do mundo irreal ao real eles acederiam a uma existência real teríamos que aceitar que o nome que os designa no mundo real possibilitaria a sua real existência De fato o mundo se torna cognos cível dentro das possibilidades de ser nomeado de ser narrado idéia que supera o idealismo mencionado pelo narrador borgeano e entra na concepção de uma linguagem já não capaz de expressar o mundo e sim de construílo dentro de um mecanismo ou um sistema incapaz de apreender e deter o sentido daquilo que nomeia El mundo será Tlön prognostica Borges em 1940 109 Referências ALBERT Jacques Introduction à lesthétique de James Joyce Paris Éditions DidierÉrudition Études anglaises n 46 1973 BENJAMIN Walter El arte en la época de su reprodución mecánica in CUR RAN J GUREVITCH M WOOLLACOTT J Sociedad y Comunicación de Masas México Fondo de Cultura Económica 1981 BLANCHOT Maurice O espaço literário Rio de Janeiro Rocco 1987 BORGES Jorge Luis Obras completas19231972 Buenos Aires Emecé 1974 Siete noches Conferencias pronunciadas por Bor ges en 1977 Buenos Aires Ediciones Nuevo País pp 144160 1980 CARPEAUX Otto Maria O castelo de Franz Kafka in SEIXAS Heloisa org As obrasprimas que poucos leram Volume 1 Romance e Conto São Pau lo Record 2005 COMPAGNON Antoine O demônio da Teoria Literatura e senso comum Trad Cleonice P Barreto Mourão e Consuelo Fortes Santiago Belo Hori zonte UFMG 2001 DE TORRE Guillermo História das literaturas de vanguarda Trad Maria do Carmo Cary Porto Presença1972 FOUCAULT Michel As palavras e as coisas Trad Salma Tannus Muchail São Paulo Martins Fontes 1992 GODARD Henri Le roman mode demploi Gallimard Paris 2006 GROSSMAN Evelyne La défi guratin Artaud Beckett Michaux Paris Mi nuit 2004 LARBAUD Valery Ce vice impuni la lecture Coll Blanche Paris Gallimard 1998 PANESI Jorge Crítica Buenos Aires Norma 2000 PAULS Alan El factor Borges Barcelona Anagrama 2004 SARLO Beatriz Borges un escritor en las orillas Buenos Aires Ariel 1995 SEIXAS Heloisa Org As obras primas que poucos leram Vol 1 Rio de Janeiro Record 2005 WOLF Virginia As Ondas Trad Lia Luft Rio de Janeiro Nova Fronteira 1980