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P NAÇÃO NAÇÕES OS MODERNISTAS E A GERAÇÃO DE 30 Luís Bueno Universidade Federal do Paraná ouco se tem falado do forte embate que houve entre a geração surgida na década de 30 e os modernistas e a tendência dominante é ver o romance de 30 como um desdobramento do modernismo de 22 uma segun da fase da literatura surgida na Semana de Arte Moderna Mais do que a qualquer outro crítico coube a João Luiz Lafetá estabe lecer o modelo que vê o romance de 30 como parte integrante do movimen to modernista Ele conseguiu criar uma forma de pensar que de certa for ma harmoniza as diferenças entre os dois momentos Seu ponto de partida é o de que todo movimento estético tem um projeto estético e um projeto ideológico No caso do modernismo brasileiro teria ocorrido uma ênfase maior no projeto estético durante a fase heróica e nos anos 30 a ênfase estaria no projeto ideológico Entretanto não podemos dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas do Modernismo As duas fases não sofrem solução de continuidade apenas como dissemos atrás se o projeto estético a re volução na literatura é a predominante da fase heróica a literatura na revolução para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar o pro jeto ideológico é empurrado por certas condições políticas especiais para o primeiro plano nos anos 30 LAFETÁ 1974 p 19 Mas pode dar resultados tentar pensar numa outra direção Se olharmos em bloco as manifestações sobre o modernismo levadas a público pelos intelec tuais romancistas poetas críticos dos anos 30 veremos que a recusa domi 84 via atlântica n 7 out 2004 nava e não nos conduziu somente a uma certa poesia falsamente profunda que Lafetá denuncia em seu livro Levounos também ao melhor do romance de 30 A Graciliano Ramos por exemplo cujas manifestações contrárias ao movi mento modernistas são conhecidas Um levantamento do que os autores surgidos depois da revolução de outubro disseram do modernismo conduzirá a uma idéia central repetida até à náusea de que o movimento tinha um caráter destruidor revelandose incapaz de construir o que quer que fosse Os verdadeiros construtores da arte nova capazes de afrontar os preceitos da nobre arte da escrita ou ainda aqueles que fugiram das convenções lingüísticas redutoras não foram os par ticipantes do movimento modernista mas sim eles próprios os autores do romance de 301 A formulação geral naquele momento é a de que a geração de 22 des truiu o academicismo e com isso executou tarefa importante mas não su ficiente já que ficou faltando a criação de uma nova arte brasileira Em duas palavras podese dizer que a literatura de 30 era vista como um alar gamento do espírito de 22 e a nova geração não se via de maneira nenhu ma como integrante do movimento modernista preferia verse como pós modernista É bem nesse sentido olhando para o modernismo a partir da década de 30 que talvez se possa acrescentar uma outra dimensão à proposição de João Luiz Lafetá Como já se viu ele parte do princípio da continuidade para ele não há modernistas e pósmodernistas como havia para os novos intelectu ais dos anos 30 há apenas modernistas de duas fases Para pensar as diferen ças dentro desse movimento único ele elabora a proposição de que num primeiro momento o que estava em foco era a renovação estética Rompidas as resistências contra os novos procedimentos que findaram por rotinizar se a geração dos anos 30 priorizou o debate ideológico Para quem põe seu ponto de referência nos anos 30 não há como fugir da formulação de que temos dois momentos literários distintos Isso pode 1 Apenas para deixar indicadas algumas manifestações coletivas desse ponto de vista ver o número 4 da revista Lanterna Verde de 1936 e o inquérito publicado nos números 21 22 e 23 da Revista do Brasil já em 1940 No início de Literatura e subdesenvolvimento Antonio Candido faz uma observação sobre as formas de ver o Brasil antes e depois da Revolução de 30 A crise da nação na saga de Almeida Faria 85 levar à consideração de que para funcionar enquanto uma visão de conti nuidade a proposta de Lafetá toma em sentido bastante amplo os conceitos de projeto ideológico e de projeto estético Pensando de forma rigorosa a sustentação da proposição segundo a qual as transformações sofridas pela forma de fazer literatura no Brasil entre os decênios de 20 e de 30 não constituem dois momentos diferentes mas duas fases de um só momento a se diferenciarem por uma ênfase mai or no projeto estético ou no ideológico depende de se entender que existe um mesmo projeto estético e um mesmo projeto ideológico Se os projetos forem outros não faz sentido pensar em mera diferença de ênfase Quando um momento enfatiza um determinado projeto ideológico ou estético ele só pode ser continuidade de um momento anterior se nesse primeiro ins tante for possível localizar um mesmo projeto ideológico ou estético ainda que posto à sombra de um projeto estético ou ideológico No caso do mo dernismo é inegável que a geração dos autores que participaram da Sema na de Arte Moderna se preocupava sobretudo com uma revolução estética enquanto os que estrearam nos anos 30 centravam sua atenção nas ques tões ideológicas Não é muito fácil no entanto admitir uma continuidade dos projetos estético e ideológico de uma geração para outra de forma a que a ênfase num ou noutro desse conta dos desacordos que separam essas duas gerações Seria preciso saltar as enormes diferenças que há entre os inte lectuais formados antes da Primeira Guerra e os formados depois dela Mário Vieira de Mello um dos poucos que abordaram o problema das relações entre subdesenvolvimento e cultura estabelece para o caso brasileiro uma distinção que também é válida para toda a América Latina Diz ele que houve alteração marcada de perspectivas pois até mais ou menos o decênio de 1930 predominava entre nós a noção de país novo que ainda não pudera realizarse mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro Sem ter havido modificação essencial na distância que nos separa dos países ricos o que predomina agora é a noção de país subdesenvolvido Conforme a primeira pers pectiva salientavase a pujança virtual e portanto a grandeza ainda não realizada Conforme a segunda destacase a pobreza atual a atrofia o que falta não o que sobra CANDIDO 1987 p 140 86 via atlântica n 7 out 2004 Se a distância que nos separa dos países ricos não se modificou a mu dança de perspectiva sobre o país corresponde a um deslocamento no plano ideológico mudou a visão de Brasil Mesmo com a ressalva de Antonio Candido de que nos anos 30 ainda não havia exatamente uma consciência do subde senvolvimento apenas uma préconsciência temos um afastamento ideo lógico considerável entre a geração que fez a Semana de Arte Moderna e a que escreveu o romance de 30 Essa diferença de visão dominante do país é elemento central nas diferentes formas de ação privilegiadas pelos modernis tas e pelos romancistas de 30 Ora a idéia de país novo a ser construído é plenamente compatível com o tipo de utopia que um projeto de vanguarda artística sempre pressupõe ambos pensam o presente como ponto de onde se projeta o futuro Uma consciência nascente de subdesenvolvimento por sua vez adia a utopia e mergulha na incompletude do presente esquadrinhando o o que é compatível com o espírito que orientou os romancistas de 30 Tais diferenças ficaram claras muitas vezes nas relações entre os intelectuais apa recidos nos anos 20 e os dos anos 30 e são testemunha disso a correspondên cia de Mário de Andrade com Murilo Miranda um dos rapazes da Revista Acadêmica ANDRADE 1981 ou a avaliação repetida muitas vezes de que um livro como Macunaíma era um verdadeiro monstrengo estético2 Sem discordar da formulação de que o romance de 30 é o momento da literatura na revolução e que o modernismo de 22 é o da a revolução na literatura como propõe João Luiz Lafetá o que se quer mostrar aqui é que esse aparentemente pequeno deslocamento de sentido pode ser entendido de outra forma como demonstração de um afastamento dos projetos de cada geração e não de sua aproximação Pensar que o modernismo é uma arte utópica e o romance de 30 é uma arte pósutópica pode ajudar a escla recer como isso se dá As tensões as recusas forçadas a aceitação mais ou menos disfarçada do movimento modernista foram elementos constituintes de uma dinâmica que pôde dar origem ao romance de 30 em toda sua diversidade Se o dese jo de fazer uma arte brasileira incluindo o uso de uma linguagem mais 2 Apenas para exemplificar vejamse as considerações de Benjamin Lima no livro Esse Jorge de Lima LIMA 1933 e as de José Lins do Rego no artigo Espécie de história literária REGO 1938 A crise da nação na saga de Almeida Faria 87 coloquial e uma aproximação da realidade do país é um dado de permanên cia do espírito de 22 durante a década de 30 a realização estética em si mesma é muito diferente e o predomínio do romance ao invés da poesia já é evidência suficiente desse fato A forma de atuação é também outra Os modernistas produziram manifestos e profissões de fé fundaram revistas e formaram grupos mesmo depois de terem sido percebidas as diferenças dentro do grande grupo inicial Os escritores de 30 não produziram um único manifesto estético A principal revista do período o Boletim de Ariel não era o espaço de manifestação de um grupo ou de um movimento era na verdade um empreendimento comercial da Ariel Editora Para entender essas diferenças pode ser útil voltar um pouco a algo apenas mencionado acima aquela diferença entre as gerações formadas an tes e depois da Primeira Guerra articulada à dinâmica do funcionamento dos projetos de vanguarda Em 1984 ao discutir o percurso do movimento con creto de que foi um dos líderes Haroldo de Campos vai aplicar ao caso brasi leiro uma idéia segundo a qual todo movimento de vanguarda só pode existir afinado com algum tipo de utopia Ele se vale mesmo de uma expressão de Ernst Bloch atribuída ao espírito de vanguarda princípioesperança e o liga a um momento histórico de perspectiva de desenvolvimento o Brasil dos anos 50 para traçar seu raciocínio Sem esse princípioesperança não como vaga abstração mas como pers pectiva efetivamente alimentada por uma prática prospectiva não pode haver vanguarda entendida como movimento O trabalho em equipe a renúncia às particularidades em prol do esforo coletivo e do resultado anônimo é algo que só pode ser movido por esse motor elpídico do grego elpis expectativa esperança CAMPOS 1984 p 4 A esse momento sucederia um outro de fechamento político que ten de a diluir as esperanças Sem perspectiva utópica o movimento de vanguarda perde o seu sentido Nessa acepção a poesia viável do presente é uma poesia de pósvanguar da não porque seja pósmoderna ou antimoderna mas porque é pós utópica Ao projeto totalizador de vanguarda que no limite só a utopia 88 via atlântica n 7 out 2004 redentora pode sustentar sucede a pluralização das poéticas possíveis Ao princípioesperança voltado para o futuro sucede o princípiorealida de fundamente ancorado no presente CAMPOS 1984 p 5 Como se vê Haroldo de Campos lança mão de um jogo de conceitos muito novo àquela altura o de pós utópico relacionado à derrocada dos regimes de esquerda no Leste Europeu redimensionando o sentido de utópi co e o define como um conceito de história literária aplicável aos movimen tos de vanguarda em geral Tomada em linhas gerais essa idéia pode explicar muito do que aconteceu na transição dos anos 20 para os anos 30 O projeto modernista nasceu em São Paulo e não há quem deixe de apontar o quanto do desenvolvimento industrial da cidade alimentou a esperança de que a modernização do país quando generalizada poderia até mesmo tirar da marginalidade as massas miseráveis Em Macunaíma mesmo o palco onde se dá o encontro prospectivo entre o início do desenvolvimento e o resgate da tradição ancestral é a cidade de São Paulo lugarsímbolo dessa utopia moder nista que deseja amalgamar numa feição presente de identidade nacional o passado que vale e o futuro que vai valer Se olhamos para um autor como Plínio Salgado em seu O estrangeiro veremos que em sentido diferente e perigosamente diferente mais adiante a utopia de fusão do primitivo com o moderno também está presente Esse tipo de utopia é possível numa mentalidade que percebe o Brasil ainda como país novo para retomar os termos empregados por Antonio Candido em Literatura e subdesenvolvimento Em certo sentido a mesma crença alimentou os movimentos sociais que desembocaram na revolução de 1930 O resultado no entanto se revelou frustrante Se é verdade que foram elimina dos certos aspectos arcaicos da sociedade brasileira também é verdade que foram apenas os que não podiam mais ser sustentados e o regime de Vargas resultado direto da revolução não foi o vetor de qualquer transformação que pudesse confirmar as esperanças que a prepararam Quando se associa essa frustração local à mentalidade antiliberal que vai dominando a intelectualidade brasileira naquele momento fica fácil perceber que a visão de país novo enve lhece Depois disso olhar para o presente não é ver um cenário muito agradá vel o que salta aos olhos é o atraso e a exclusão que a modernização já implementada não consegue cobrir Daí certamente nasce aquela préconsci A crise da nação na saga de Almeida Faria 89 ência do subdesenvolvimento ou seja o início da percepção de que o presente não se modificará sem que algo se modifique na própria estrutura das relações sociais A arte da década de 30 não poderá portanto abraçar qualquer projeto utópico e necessariamente se colocará como algo muito diverso do que os mo dernistas haviam levado a cabo É nesse sentido que se pode dizer que o roman ce de 30 vai se constituir como uma arte pósutópica Essa nova visada é localizável mesmo na obra dos escritores que parti ciparam do movimento Oswald muda bastante a direção de sua ficção com o projeto do Marco zero Mário de Andrade planeja um livro Café que vai tomar como tema a decadência de uma família a partir de 1928 bem ao gosto do romance de 30 Para quem vê de hoje não há como não lembrar do título do Cacau de Jorge Amado sugerindo um romance que se articula com o andamento ou nãoandamento da produção econômica relaciona da ao principal produto agrícola da região que ambienta a história o que até certo ponto se confirma na leitura do plano apresentado em carta a Moacyr Werneck de Castro em 19413 Do novo romance que surgiria na década de 30 está ausente qualquer crença na possibilidade de uma transformação positiva do país pela via da modernização É em São Bernardo de Graciliano Ramos que se encontrará a expressão romanesca mais acabada dessa descrença na modernização que vai junto com uma avaliação pouco otimista da revolução de 30 Paulo Honório acredita na modernização Quando consegue se apos sar de S Bernardo vai desenvolvêlo com novas máquinas novas técnicas de criação e plantio e mesmo com a introdução de novas culturas É em pessoa o homem de negócios para quem nada serve só para ser bonito tudo até as flores visam ao lucro e a certa altura ele se vangloria disso diante de d Glória Mas em nenhum ponto se encontrará maior desenvolvi mento desse problema do que através de seu Ribeiro O capítulo 7 que trata desse personagem e já foi considerado uma excrescência no romance na 3 Ver carta a Moacyr Werneck de Castro de 06111941 CASTRO 1989 p 183185 Este é um projeto acidentado de Mário de Andrade Nasceu como romance em 1929 transformouse em libreto de ópera a ser escrita por Francisco Mignone no início dos anos 30 voltou a ser romance em 1941 e terminou em dezembro de 1942 tomando a forma de um poema dramático incluído nas Poesias Completas 90 via atlântica n 7 out 2004 verdade oferece um contraponto ao caso do próprio Paulo Honório Escre vendo num momento em que ele se vê atropelado pela marcha da história é natural que o comova a história do velho mandachuva de uma pequena povoação caído em desgraça Para Paulo Honório o infortúnio de seu Ribei ro foi não ter acompanhado a evolução inevitável da modernização Depois de descrever a posição proeminente de seu Ribeiro diz Ora essas coisas se passaram antigamente Mudou tudo Gente nasceu gente morreu os afilhados do major cresce ram e foram para o serviço militar em estrada de ferro O povoado transformouse em vila a vila transformouse em cidade com chefe político juiz de direito promotor e delegado de polícia Trouxeram máquinas e a bolandeira do major parou RAMOS 1985 p 37 Não falta à caracterização feita por Paulo Honório a referência às má quinas e em especial ao trem os grandes ícones da modernização O engenho primitivo da bolandeira tinha que morrer diante do poder da automação Por conseqüência o poder do velho major teria que cair também O que escapa a Paulo Honório e mesmo alimenta a idéia de que se ele quisesse poderia se reerguer rapidamente é que a sua própria ruína se deu apesar de ele ter acompanhado e até estado à frente de um processo de mo dernização da produção rural O que o arruinou foi a falta de percepção de que de nada adiantam técnicas modernas diante de uma estrutura social que se mantém intocada insensibilidade traduzida em sua absoluta incapacidade de compreender Madalena Nem mesmo para o mais otimista dos romancistas de 30 o tempo da utopia pode ser visível como fora para os modernistas que o vislumbram a partir de um presente no qual conseguem identificar os prenúncios desse futuro ao mesmo tempo utópico e palpável Com os pés fincados num pre sente que só faz poder prever o pior inclusive a Guerra da qual se falava desde a primeira metade da década parece que até mesmo o militante tem que se conformar a adiar seu sonho para um futuro indeterminado Isso tudo pode ser mais bem percebido se projetado numa figura a que o romance de 30 dedicou toda sua energia de criação o fracassado Não é à toa que o primeiro a apontar a recorrência dessa figura para reprovála A crise da nação na saga de Almeida Faria 91 seja um modernista Mário de Andrade Ele parece terse dado conta do problema em artigo escrito durante o período em que atuou como crítico no jornalismo carioca mantendo a coluna Vida Literária no Diário de Notíci as quando tratava de um grupo de cinco novos romances Depois de anotar o que lhe parecia digno de destacar em cada um dos cinco livros propõe uma síntese que ultrapassa os lançamentos em questão valendo como re flexão sobre toda a geração dos romancistas de 304 Mas vejo que acabei de empregar pela segunda vez nesta crônica a pala vra fracassado É estranho como está se fixando no romance nacional a figura do fracassado Bem entendase pra que haja drama pra que haja romance há sempre que estudar qualquer fracasso um amor uma terra uma luta social um ser que faliu Mas o que está se sistematizando em nossa literatura como talvez péssimo sintoma psicológico nacional ab solutamente não é isso Um Dom Quixote fracassa como fracassam Otelo e Mme Bovary Mas estes e com eles quase todos os heróis do bom ro mance são seres dotados de ideais de grandes ambições de forças mo rais intelectuais ou físicas São enfim seres capacitados para se impor conquistar vencer na vida mas que diante de forças mais transcenden tes sociais ou psicológicas se esfacelam se morrem na luta E não estará exatamente nisto neste fracasso na luta contra forças imponderáveis e fatais o maior elemento dramático da novela Mas em nossa novelística e é possível buscar bastante longe as raízes disto num Dom Casmurro por exemplo ou sistematicamente num Lima Barreto o que está se fi xando não é o fracasso proveniente de forças em luta mas a descrição do ser incapacitado para viver o indivíduo desfibrado incompetente que não opõe força pessoal nenhuma nenhum elemento de caráter contra as forças da vida mas antes se entrega sem quê nem porquê à sua própria insolução Será esta por acaso a profecia de uma nacionalidade desar mada para viver ANDRADE 1993 p 181 4 Lembrando que desses cinco escritores analisados na crônica pelo menos dois são autores de razoável sucesso nos anos 30 Fran Martins já publicara um livro de contos Manipueira em 1933 e dois romances Ponta de Rua 1936 e Poço dos Paus 1938 Cordeiro de Andrade por sua vez já publicara os romances Cassacos 1934 e Brejo 1936 Roberto Schwarz trata desta questão em Oswald de Andrade Ver SCHWARZ 1987 p 1128 92 via atlântica n 7 out 2004 A importância dessa sua formulação ele logo percebeu Tanto que um ano depois no primeiro número da revista Clima dirigindose à intelectualidade que surgia nos anos 40 vai dar grande destaque a ela e num texto que é um verdadeiro testamento para uma novíssima geração Depois de reproduzir numa versão revista o parágrafo de seu artigo de 1940 citado acima acrescenta Quan do ao denunciar este fenômeno me servi quase destas mesmas palavras jul guei lhe descobrir algumas raízes tradicionais Hoje estou convencido de que me enganei O fenômeno não tem raízes que não sejam contemporâneas e não pro longa qualquer espécie de tradição ANDRADE 1974 p 190 A hipótese de Mário de Andrade é a de que o fracasso domina o ro mance de 30 e define sua visão da nacionalidade Contrapondoa à sua pró pria visão de nacionalidade é natural que vá considerála derrotista vetor da desistência sintoma de que o homem brasileiro está às portas de desis tir de si mesmo ANDRADE 1974 p 191 como dirá mais adiante E ele acerta em cheio ao apontar o fracassado como a figura hegemônica no ro mance de 30 Mas há dois elementos importantes a serem discutidos a par tir de sua formulação Andrade a natureza do fracasso que domina o roman ce de 30 e sua articulação com uma idéia de identidade nacional Assim como não é adequado falar em otimismo ingênuo generalizado no romance de 30 não é muito apropriado identificar a exploração artística cons tante do fracasso à desistência Tratase antes de manifestação daquela avalia ção negativa do presente daquela impossibilidade de ver no presente um terre no onde fundar qualquer projeto que pudesse solucionar o que quer que seja enfim é uma manifestação do que se está chamando aqui de espírito pósutópi co A utopia está então adiada mas não de todo afastada Só será possível pensar qualquer utopia depois de mergulhar o mais profundamente possível nas misérias do presente Esquadrinhar palmo a palmo as misérias do país eis o que toma a peito fazer o romance de 30 E isso não se coloca apenas no plano dos problemas sociais onde se nota o fenômeno com mais clareza Para quem como Octávio de Faria vê no presente o reino da miséria moral há também uma recusa vigorosa da facilidade em se mudar esse presente É sintomático que ele no primeiro romance de um ciclo pensado para vários volumes en cerrouse em 1979 com o 13o romance mate atropelado o anjo Carlos Eduardo o único dos adolescentes de Mundos Mortos que vence as tentações com facili dade na verdade seria até mais apropriado dizer que ele não vence essas A crise da nação na saga de Almeida Faria 93 tentações porque nem sequer as sente E mais ele morre exatamente no dia em que outros adolescentes resolveram armar uma verdadeira armadilha para sua santidade ao arrumar um encontro com uma bela prostituta para ver se ele seria capaz de resistir Com a morte impedindo esse teste o leitor não pode nem ter certeza se o anjo é mesmo um anjo já que não passou por nenhuma provação maior O que fica para o resto da Tragédia burguesa são os persona gens vivendo no impasse na dúvida indo pendularmente do autocontrole à queda É o caso de Ivo o irmão de Carlos Eduardo que protagoniza a cena de abertura de Mundos mortos em luta vã consigo mesmo para não cair na tenta ção de cometer o pecado de se masturbar Dessa preferência pelo impasse vem a particularidade do realismo pra ticado pelo romance de 30 em relação ao realismo do século XIX É interes sante pensar por exemplo num autor cultuadíssimo nos anos 30 Dostoiévski Em Crime e castigo a ação positiva teorizada e praticada por Raskolnikoff redunda em fracasso Mas o romance não acaba no conflito entre esse ser afirmativo que chega ao assassinato e as forças morais que o levam à confis são e à prisão É preciso que ele através do amor de Sônia abrace a religião E essa força positiva não fica guardada para um futuro remoto mas já está em curso numa história palpável que poderia ser contada imediatamente É com essa perspectiva aliás que o romance se fecha Mas aqui começa uma segunda história da lenta transformação de um homem da sua regeneração da sua passagem gradual de um mundo para outro Podia ser o motivo de uma nova narração A que quisemos oferecer ao leitor terminou aqui DOSTOIÉVSKI 1941 p 445 Algo semelhante se passa nos romances do autor de língua portuguesa mais admirado entre nós naqueles anos Eça de Queirós para quem o de bruçar sobre as desgraças do presente é uma forma de entreabrir as corti nas e vislumbrar o futuro É exemplar nesse sentido o encerramento de O crime do padre Amaro em que o atraso português aparece contraposto ao avanço da França sacudida pela revolução de 1848 e ao Portugal das con quistas marítimas cantado por Camões Vejam ia dizendo o conde vejam toda esta paz esta prosperidade este contentamento Meus senhores não admira realmente que seja mos a inveja da Europa 94 via atlântica n 7 out 2004 E o homem de estado os dois homens de religião todos três em linha junto às grades do monumento gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país ali ao pé daquele pedestal sob o frio olhar de bronze do velho poeta ereto e nobre com os seus largos ombros de cavaleiro forte a epopéia sobre o coração a espada firme cercado dos cronistas e dos poetas da antiga pátria pátria para sempre passada memória quase perdida QUEIRÓS sd v1 p 345 A solução é muito visível aqui tomar o caminho do desenvolvimento das grandes nações européias recuperar o espírito ativo de um Portugal que é memória quase perdida Abraçar o futuro lançarse a ele lembran dose do que fora capaz Nos dois casos há uma mudança possível e à vista Mesmo em O crime do padre Amaro onde há a vitória clara do que há de pior em Portugal oferecese um caminho a trilhar capaz de reverter o fra casso da nação Há um lugar lá fora em que se abdicou do contentamento para que se lançasse ao futuro e que pode servir de exemplo No caso do romance de 30 a formação da consciência de que o país é atrasado canalizou todas as forças Produziramse romances que se esgota vam ou na reprodução documental de um aspecto injusto da realidade bra sileira ou no aprofundamento de uma mentalidade equivocada que contri buiria para a figuração desse atraso O herói ao invés de promover ações para transformar essa realidade negativa servia para incorporar algum aspecto do atraso Em O Amanuense Belmiro ou em Angústia é o intelectu al que faz esse papel em Os corumbas é o operário em Vidas secas o camponês em Mundos mortos a burguesia em Mãos vazias ou em Ama nhecer a mulher Ao contrário do realismo do século XIX que havia estig matizado a narrativa em primeira pessoa muitas vezes o romance de 30 priorizoua com duplo efeito primeiro o de conferir veracidade maior ao documento já que assim ele aparece construído como depoimento de quem viveu aquele fracasso segundo o de sublinhar o caráter definitivo das der rotas narradas já que para ninguém o impasse pode ser tão profundo ou mais sem saída a situação do que para aquele a quem não é dada uma perspectiva mais ampla ou distanciada do problema Mas esse pessimismo todo não aponta necessariamente para uma na cionalidade desarmada para viver como diagnosticou Mário de Andrade A crise da nação na saga de Almeida Faria 95 Ao contrário tratase de uma nacionalidade que pretende mostrar sua força e seu aparelhamento para a vida ao encarar e incorporar o fracasso ao invés de escapulir para outros planos para o plano que os próprios romancistas de 30 chamariam de meramente estético por exemplo E neste ponto já se introduz a segunda questão que o texto de Mário de Andrade propõe ou seja que visão da nacionalidade o romance de 30 consa grou E é preciso admitir nele a ausência de projetos totalizadores No mo dernismo produção artística e busca de uma identidade nacional estão arti culadas integradas tanto na obra de Mário de Andrade quanto na de Oswald de Andrade ou na dos autores do verdeamarelismo Tais propostas de uma visão de nacionalidade expostas em manifestos eram em geral uma forma de articular passado e presente que dava sustentação à utopia modernista Distante da utopia da vanguarda os anos 30 assistiram a um outro tipo de comportamento por parte dos escritores Ninguém propôs visões nem mais nem menos unificadoras de Brasil Foi uma produção atomizada Sem ver a possibilidade de propor algum tipo de ação prospectiva imediata cada romancista se ocupou de mergulhar num aspecto específico do presen te Só é possível tentar enxergar alguma visão geral do país após uma leitu ra extensiva desses romances e mesmo a maneira pela qual Mário de Andrade percebeu a importância da figura do fracassado demonstra isso Não foi algo colhido em qualquer proposição sistematizada mas sim num processo de acumulação na leitura de uma série de romances incluindo vários de que ninguém mais fala hoje E é esse um dos maiores problemas para o estudo do romance de 30 Sendo uma produção atomizada e ancorada no presente sujeita às exigências imediatas acabou produzindo poucas obras que as gerações de críticos que a sucederam julgaram aptas a integrar nos so cânone literário Somente no conjunto extenso e muitas vezes desinteressante é que se pode perceber esse mergulho coletivo na tentati va de compreensão do momento presente Não havendo projeto coletivo há no entanto um desigual movimento coletivo que inclui todo o regionalismo assumido ou não já que mesmo em livros inequivocamente intimistas Lúcio Cardoso tira grande partido do ambiente das cidadezinhas do interior de Minas por exemplo mas também o romance urbano ambientado tanto nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo quanto nas capitais periféri cas ou cidades de médio porte como Santos ou Petrópolis 96 via atlântica n 7 out 2004 Além disso esse interesse pelo fracassado foi responsável direto por uma das maiores conquistas do romance de 30 para a ficção brasileira que viria a seguir a incorporação das figuras marginais Assim como é possível falar das dificuldades que o romance de 30 teria para se afirmar sem o modernismo é possível especular sobre como teria sido difícil a aceitação do sertanejo de Guimarães Rosa ou da mulher de Clarice Lispector sem a legitimação literária que o romance de 30 em suas várias vertentes aca bou conquistando para essas criaturas marginais alçadas a protagonistas O resultado é que com esse procedimento antiescola voluntariamente ou não os romancistas de 30 produziram uma vigorosa força de oposição a uma visão total totalitária mesmo de Brasil proposta por Getúlio Vargas É um contraste significativo o que se cria entre a visão do país como um conjunto de realidades locais que merece ser conhecido nas suas particulari dades e o modelo oficial de unidade nacional cuja tendência seria a de apagar as diferenças para se obter um conceito uno de nação5 A boa recepção ao romance regionalista por exemplo mesmo considerando as acanhadas di mensões de nosso público leitor àquela altura foi uma demonstração clara da distância de um projeto oficial unificador em relação à visão que ia se tornan do a mais viável para os próprios brasileiros que queriam simplesmente saber da vida nos engenhos do drama da seca da região amazônica das plantações de cacau e café da realidade dos pampas dos novos bairros que surgiam em Belo Horizonte e mais BIBLIOGRAFIA ANDRADE Mário de Vida literária São Paulo HucitecEdusp 1993 Edição de Sonia Sachs Aspectos da literatura brasileira 5 ed São Paulo Martins 1974 5 Quem formulou exemplar e radicalmente esse tipo de pretensão unificadora foi o Integralismo desde seu manifesto de outubro de 1932 Em artigo de jornal de 1945 reproduzido por Edgard Carone em A Segunda República CARONE 1973 o próprio Plínio Salgado recupera sua concordância com Getúlio Vargas acerca do perigo do regionalismo para a construção dessa idéia de nação A crise da nação na saga de Almeida Faria 97 Cartas a Murilo Miranda Rio de Janeiro Nova Fronteira 1981 CAMPOS Haroldo de Poesia e modernidade o poema pósutópico In Folhetim Folha de São Paulo São Paulo 404 14101984 CANDIDO Antonio A revolução de 1930 e a cultura In A educação pela noite e outros ensaios São Paulo Ática 1987 CARONE Edgard A segunda república São Paulo Difel 1973 CASTRO Moacyr Werneck de Mário de Andrade Exílio no Rio Rio de Janeiro Rocco 1989 LIMA Benjamin Esse Jorge de Lima Rio de Janeiro Adersen 1933 QUEIRÓS Eça de Obras Porto Lello sd RAMOS Graciliano São Bernardo 45 ed Rio de Janeiro Record 1985 REGO José Lins do Espécie de história literária In Lanterna Verde Rio de Janeiro 6 abr 1938 SCHWARZ Roberto A carroça o bonde e o poeta modernista In Que horas são São Paulo Companhia das Letras 1987
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Sequência Didática: Produção de Notícias
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Dicas de Estudo para Avaliação Didática
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Agenda da 19ª Semana: Orientações para a Finalização do Artigo
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P NAÇÃO NAÇÕES OS MODERNISTAS E A GERAÇÃO DE 30 Luís Bueno Universidade Federal do Paraná ouco se tem falado do forte embate que houve entre a geração surgida na década de 30 e os modernistas e a tendência dominante é ver o romance de 30 como um desdobramento do modernismo de 22 uma segun da fase da literatura surgida na Semana de Arte Moderna Mais do que a qualquer outro crítico coube a João Luiz Lafetá estabe lecer o modelo que vê o romance de 30 como parte integrante do movimen to modernista Ele conseguiu criar uma forma de pensar que de certa for ma harmoniza as diferenças entre os dois momentos Seu ponto de partida é o de que todo movimento estético tem um projeto estético e um projeto ideológico No caso do modernismo brasileiro teria ocorrido uma ênfase maior no projeto estético durante a fase heróica e nos anos 30 a ênfase estaria no projeto ideológico Entretanto não podemos dizer que haja uma mudança radical no corpo de doutrinas do Modernismo As duas fases não sofrem solução de continuidade apenas como dissemos atrás se o projeto estético a re volução na literatura é a predominante da fase heróica a literatura na revolução para utilizar o eficiente jogo de palavras de Cortázar o pro jeto ideológico é empurrado por certas condições políticas especiais para o primeiro plano nos anos 30 LAFETÁ 1974 p 19 Mas pode dar resultados tentar pensar numa outra direção Se olharmos em bloco as manifestações sobre o modernismo levadas a público pelos intelec tuais romancistas poetas críticos dos anos 30 veremos que a recusa domi 84 via atlântica n 7 out 2004 nava e não nos conduziu somente a uma certa poesia falsamente profunda que Lafetá denuncia em seu livro Levounos também ao melhor do romance de 30 A Graciliano Ramos por exemplo cujas manifestações contrárias ao movi mento modernistas são conhecidas Um levantamento do que os autores surgidos depois da revolução de outubro disseram do modernismo conduzirá a uma idéia central repetida até à náusea de que o movimento tinha um caráter destruidor revelandose incapaz de construir o que quer que fosse Os verdadeiros construtores da arte nova capazes de afrontar os preceitos da nobre arte da escrita ou ainda aqueles que fugiram das convenções lingüísticas redutoras não foram os par ticipantes do movimento modernista mas sim eles próprios os autores do romance de 301 A formulação geral naquele momento é a de que a geração de 22 des truiu o academicismo e com isso executou tarefa importante mas não su ficiente já que ficou faltando a criação de uma nova arte brasileira Em duas palavras podese dizer que a literatura de 30 era vista como um alar gamento do espírito de 22 e a nova geração não se via de maneira nenhu ma como integrante do movimento modernista preferia verse como pós modernista É bem nesse sentido olhando para o modernismo a partir da década de 30 que talvez se possa acrescentar uma outra dimensão à proposição de João Luiz Lafetá Como já se viu ele parte do princípio da continuidade para ele não há modernistas e pósmodernistas como havia para os novos intelectu ais dos anos 30 há apenas modernistas de duas fases Para pensar as diferen ças dentro desse movimento único ele elabora a proposição de que num primeiro momento o que estava em foco era a renovação estética Rompidas as resistências contra os novos procedimentos que findaram por rotinizar se a geração dos anos 30 priorizou o debate ideológico Para quem põe seu ponto de referência nos anos 30 não há como fugir da formulação de que temos dois momentos literários distintos Isso pode 1 Apenas para deixar indicadas algumas manifestações coletivas desse ponto de vista ver o número 4 da revista Lanterna Verde de 1936 e o inquérito publicado nos números 21 22 e 23 da Revista do Brasil já em 1940 No início de Literatura e subdesenvolvimento Antonio Candido faz uma observação sobre as formas de ver o Brasil antes e depois da Revolução de 30 A crise da nação na saga de Almeida Faria 85 levar à consideração de que para funcionar enquanto uma visão de conti nuidade a proposta de Lafetá toma em sentido bastante amplo os conceitos de projeto ideológico e de projeto estético Pensando de forma rigorosa a sustentação da proposição segundo a qual as transformações sofridas pela forma de fazer literatura no Brasil entre os decênios de 20 e de 30 não constituem dois momentos diferentes mas duas fases de um só momento a se diferenciarem por uma ênfase mai or no projeto estético ou no ideológico depende de se entender que existe um mesmo projeto estético e um mesmo projeto ideológico Se os projetos forem outros não faz sentido pensar em mera diferença de ênfase Quando um momento enfatiza um determinado projeto ideológico ou estético ele só pode ser continuidade de um momento anterior se nesse primeiro ins tante for possível localizar um mesmo projeto ideológico ou estético ainda que posto à sombra de um projeto estético ou ideológico No caso do mo dernismo é inegável que a geração dos autores que participaram da Sema na de Arte Moderna se preocupava sobretudo com uma revolução estética enquanto os que estrearam nos anos 30 centravam sua atenção nas ques tões ideológicas Não é muito fácil no entanto admitir uma continuidade dos projetos estético e ideológico de uma geração para outra de forma a que a ênfase num ou noutro desse conta dos desacordos que separam essas duas gerações Seria preciso saltar as enormes diferenças que há entre os inte lectuais formados antes da Primeira Guerra e os formados depois dela Mário Vieira de Mello um dos poucos que abordaram o problema das relações entre subdesenvolvimento e cultura estabelece para o caso brasileiro uma distinção que também é válida para toda a América Latina Diz ele que houve alteração marcada de perspectivas pois até mais ou menos o decênio de 1930 predominava entre nós a noção de país novo que ainda não pudera realizarse mas que atribuía a si mesmo grandes possibilidades de progresso futuro Sem ter havido modificação essencial na distância que nos separa dos países ricos o que predomina agora é a noção de país subdesenvolvido Conforme a primeira pers pectiva salientavase a pujança virtual e portanto a grandeza ainda não realizada Conforme a segunda destacase a pobreza atual a atrofia o que falta não o que sobra CANDIDO 1987 p 140 86 via atlântica n 7 out 2004 Se a distância que nos separa dos países ricos não se modificou a mu dança de perspectiva sobre o país corresponde a um deslocamento no plano ideológico mudou a visão de Brasil Mesmo com a ressalva de Antonio Candido de que nos anos 30 ainda não havia exatamente uma consciência do subde senvolvimento apenas uma préconsciência temos um afastamento ideo lógico considerável entre a geração que fez a Semana de Arte Moderna e a que escreveu o romance de 30 Essa diferença de visão dominante do país é elemento central nas diferentes formas de ação privilegiadas pelos modernis tas e pelos romancistas de 30 Ora a idéia de país novo a ser construído é plenamente compatível com o tipo de utopia que um projeto de vanguarda artística sempre pressupõe ambos pensam o presente como ponto de onde se projeta o futuro Uma consciência nascente de subdesenvolvimento por sua vez adia a utopia e mergulha na incompletude do presente esquadrinhando o o que é compatível com o espírito que orientou os romancistas de 30 Tais diferenças ficaram claras muitas vezes nas relações entre os intelectuais apa recidos nos anos 20 e os dos anos 30 e são testemunha disso a correspondên cia de Mário de Andrade com Murilo Miranda um dos rapazes da Revista Acadêmica ANDRADE 1981 ou a avaliação repetida muitas vezes de que um livro como Macunaíma era um verdadeiro monstrengo estético2 Sem discordar da formulação de que o romance de 30 é o momento da literatura na revolução e que o modernismo de 22 é o da a revolução na literatura como propõe João Luiz Lafetá o que se quer mostrar aqui é que esse aparentemente pequeno deslocamento de sentido pode ser entendido de outra forma como demonstração de um afastamento dos projetos de cada geração e não de sua aproximação Pensar que o modernismo é uma arte utópica e o romance de 30 é uma arte pósutópica pode ajudar a escla recer como isso se dá As tensões as recusas forçadas a aceitação mais ou menos disfarçada do movimento modernista foram elementos constituintes de uma dinâmica que pôde dar origem ao romance de 30 em toda sua diversidade Se o dese jo de fazer uma arte brasileira incluindo o uso de uma linguagem mais 2 Apenas para exemplificar vejamse as considerações de Benjamin Lima no livro Esse Jorge de Lima LIMA 1933 e as de José Lins do Rego no artigo Espécie de história literária REGO 1938 A crise da nação na saga de Almeida Faria 87 coloquial e uma aproximação da realidade do país é um dado de permanên cia do espírito de 22 durante a década de 30 a realização estética em si mesma é muito diferente e o predomínio do romance ao invés da poesia já é evidência suficiente desse fato A forma de atuação é também outra Os modernistas produziram manifestos e profissões de fé fundaram revistas e formaram grupos mesmo depois de terem sido percebidas as diferenças dentro do grande grupo inicial Os escritores de 30 não produziram um único manifesto estético A principal revista do período o Boletim de Ariel não era o espaço de manifestação de um grupo ou de um movimento era na verdade um empreendimento comercial da Ariel Editora Para entender essas diferenças pode ser útil voltar um pouco a algo apenas mencionado acima aquela diferença entre as gerações formadas an tes e depois da Primeira Guerra articulada à dinâmica do funcionamento dos projetos de vanguarda Em 1984 ao discutir o percurso do movimento con creto de que foi um dos líderes Haroldo de Campos vai aplicar ao caso brasi leiro uma idéia segundo a qual todo movimento de vanguarda só pode existir afinado com algum tipo de utopia Ele se vale mesmo de uma expressão de Ernst Bloch atribuída ao espírito de vanguarda princípioesperança e o liga a um momento histórico de perspectiva de desenvolvimento o Brasil dos anos 50 para traçar seu raciocínio Sem esse princípioesperança não como vaga abstração mas como pers pectiva efetivamente alimentada por uma prática prospectiva não pode haver vanguarda entendida como movimento O trabalho em equipe a renúncia às particularidades em prol do esforo coletivo e do resultado anônimo é algo que só pode ser movido por esse motor elpídico do grego elpis expectativa esperança CAMPOS 1984 p 4 A esse momento sucederia um outro de fechamento político que ten de a diluir as esperanças Sem perspectiva utópica o movimento de vanguarda perde o seu sentido Nessa acepção a poesia viável do presente é uma poesia de pósvanguar da não porque seja pósmoderna ou antimoderna mas porque é pós utópica Ao projeto totalizador de vanguarda que no limite só a utopia 88 via atlântica n 7 out 2004 redentora pode sustentar sucede a pluralização das poéticas possíveis Ao princípioesperança voltado para o futuro sucede o princípiorealida de fundamente ancorado no presente CAMPOS 1984 p 5 Como se vê Haroldo de Campos lança mão de um jogo de conceitos muito novo àquela altura o de pós utópico relacionado à derrocada dos regimes de esquerda no Leste Europeu redimensionando o sentido de utópi co e o define como um conceito de história literária aplicável aos movimen tos de vanguarda em geral Tomada em linhas gerais essa idéia pode explicar muito do que aconteceu na transição dos anos 20 para os anos 30 O projeto modernista nasceu em São Paulo e não há quem deixe de apontar o quanto do desenvolvimento industrial da cidade alimentou a esperança de que a modernização do país quando generalizada poderia até mesmo tirar da marginalidade as massas miseráveis Em Macunaíma mesmo o palco onde se dá o encontro prospectivo entre o início do desenvolvimento e o resgate da tradição ancestral é a cidade de São Paulo lugarsímbolo dessa utopia moder nista que deseja amalgamar numa feição presente de identidade nacional o passado que vale e o futuro que vai valer Se olhamos para um autor como Plínio Salgado em seu O estrangeiro veremos que em sentido diferente e perigosamente diferente mais adiante a utopia de fusão do primitivo com o moderno também está presente Esse tipo de utopia é possível numa mentalidade que percebe o Brasil ainda como país novo para retomar os termos empregados por Antonio Candido em Literatura e subdesenvolvimento Em certo sentido a mesma crença alimentou os movimentos sociais que desembocaram na revolução de 1930 O resultado no entanto se revelou frustrante Se é verdade que foram elimina dos certos aspectos arcaicos da sociedade brasileira também é verdade que foram apenas os que não podiam mais ser sustentados e o regime de Vargas resultado direto da revolução não foi o vetor de qualquer transformação que pudesse confirmar as esperanças que a prepararam Quando se associa essa frustração local à mentalidade antiliberal que vai dominando a intelectualidade brasileira naquele momento fica fácil perceber que a visão de país novo enve lhece Depois disso olhar para o presente não é ver um cenário muito agradá vel o que salta aos olhos é o atraso e a exclusão que a modernização já implementada não consegue cobrir Daí certamente nasce aquela préconsci A crise da nação na saga de Almeida Faria 89 ência do subdesenvolvimento ou seja o início da percepção de que o presente não se modificará sem que algo se modifique na própria estrutura das relações sociais A arte da década de 30 não poderá portanto abraçar qualquer projeto utópico e necessariamente se colocará como algo muito diverso do que os mo dernistas haviam levado a cabo É nesse sentido que se pode dizer que o roman ce de 30 vai se constituir como uma arte pósutópica Essa nova visada é localizável mesmo na obra dos escritores que parti ciparam do movimento Oswald muda bastante a direção de sua ficção com o projeto do Marco zero Mário de Andrade planeja um livro Café que vai tomar como tema a decadência de uma família a partir de 1928 bem ao gosto do romance de 30 Para quem vê de hoje não há como não lembrar do título do Cacau de Jorge Amado sugerindo um romance que se articula com o andamento ou nãoandamento da produção econômica relaciona da ao principal produto agrícola da região que ambienta a história o que até certo ponto se confirma na leitura do plano apresentado em carta a Moacyr Werneck de Castro em 19413 Do novo romance que surgiria na década de 30 está ausente qualquer crença na possibilidade de uma transformação positiva do país pela via da modernização É em São Bernardo de Graciliano Ramos que se encontrará a expressão romanesca mais acabada dessa descrença na modernização que vai junto com uma avaliação pouco otimista da revolução de 30 Paulo Honório acredita na modernização Quando consegue se apos sar de S Bernardo vai desenvolvêlo com novas máquinas novas técnicas de criação e plantio e mesmo com a introdução de novas culturas É em pessoa o homem de negócios para quem nada serve só para ser bonito tudo até as flores visam ao lucro e a certa altura ele se vangloria disso diante de d Glória Mas em nenhum ponto se encontrará maior desenvolvi mento desse problema do que através de seu Ribeiro O capítulo 7 que trata desse personagem e já foi considerado uma excrescência no romance na 3 Ver carta a Moacyr Werneck de Castro de 06111941 CASTRO 1989 p 183185 Este é um projeto acidentado de Mário de Andrade Nasceu como romance em 1929 transformouse em libreto de ópera a ser escrita por Francisco Mignone no início dos anos 30 voltou a ser romance em 1941 e terminou em dezembro de 1942 tomando a forma de um poema dramático incluído nas Poesias Completas 90 via atlântica n 7 out 2004 verdade oferece um contraponto ao caso do próprio Paulo Honório Escre vendo num momento em que ele se vê atropelado pela marcha da história é natural que o comova a história do velho mandachuva de uma pequena povoação caído em desgraça Para Paulo Honório o infortúnio de seu Ribei ro foi não ter acompanhado a evolução inevitável da modernização Depois de descrever a posição proeminente de seu Ribeiro diz Ora essas coisas se passaram antigamente Mudou tudo Gente nasceu gente morreu os afilhados do major cresce ram e foram para o serviço militar em estrada de ferro O povoado transformouse em vila a vila transformouse em cidade com chefe político juiz de direito promotor e delegado de polícia Trouxeram máquinas e a bolandeira do major parou RAMOS 1985 p 37 Não falta à caracterização feita por Paulo Honório a referência às má quinas e em especial ao trem os grandes ícones da modernização O engenho primitivo da bolandeira tinha que morrer diante do poder da automação Por conseqüência o poder do velho major teria que cair também O que escapa a Paulo Honório e mesmo alimenta a idéia de que se ele quisesse poderia se reerguer rapidamente é que a sua própria ruína se deu apesar de ele ter acompanhado e até estado à frente de um processo de mo dernização da produção rural O que o arruinou foi a falta de percepção de que de nada adiantam técnicas modernas diante de uma estrutura social que se mantém intocada insensibilidade traduzida em sua absoluta incapacidade de compreender Madalena Nem mesmo para o mais otimista dos romancistas de 30 o tempo da utopia pode ser visível como fora para os modernistas que o vislumbram a partir de um presente no qual conseguem identificar os prenúncios desse futuro ao mesmo tempo utópico e palpável Com os pés fincados num pre sente que só faz poder prever o pior inclusive a Guerra da qual se falava desde a primeira metade da década parece que até mesmo o militante tem que se conformar a adiar seu sonho para um futuro indeterminado Isso tudo pode ser mais bem percebido se projetado numa figura a que o romance de 30 dedicou toda sua energia de criação o fracassado Não é à toa que o primeiro a apontar a recorrência dessa figura para reprovála A crise da nação na saga de Almeida Faria 91 seja um modernista Mário de Andrade Ele parece terse dado conta do problema em artigo escrito durante o período em que atuou como crítico no jornalismo carioca mantendo a coluna Vida Literária no Diário de Notíci as quando tratava de um grupo de cinco novos romances Depois de anotar o que lhe parecia digno de destacar em cada um dos cinco livros propõe uma síntese que ultrapassa os lançamentos em questão valendo como re flexão sobre toda a geração dos romancistas de 304 Mas vejo que acabei de empregar pela segunda vez nesta crônica a pala vra fracassado É estranho como está se fixando no romance nacional a figura do fracassado Bem entendase pra que haja drama pra que haja romance há sempre que estudar qualquer fracasso um amor uma terra uma luta social um ser que faliu Mas o que está se sistematizando em nossa literatura como talvez péssimo sintoma psicológico nacional ab solutamente não é isso Um Dom Quixote fracassa como fracassam Otelo e Mme Bovary Mas estes e com eles quase todos os heróis do bom ro mance são seres dotados de ideais de grandes ambições de forças mo rais intelectuais ou físicas São enfim seres capacitados para se impor conquistar vencer na vida mas que diante de forças mais transcenden tes sociais ou psicológicas se esfacelam se morrem na luta E não estará exatamente nisto neste fracasso na luta contra forças imponderáveis e fatais o maior elemento dramático da novela Mas em nossa novelística e é possível buscar bastante longe as raízes disto num Dom Casmurro por exemplo ou sistematicamente num Lima Barreto o que está se fi xando não é o fracasso proveniente de forças em luta mas a descrição do ser incapacitado para viver o indivíduo desfibrado incompetente que não opõe força pessoal nenhuma nenhum elemento de caráter contra as forças da vida mas antes se entrega sem quê nem porquê à sua própria insolução Será esta por acaso a profecia de uma nacionalidade desar mada para viver ANDRADE 1993 p 181 4 Lembrando que desses cinco escritores analisados na crônica pelo menos dois são autores de razoável sucesso nos anos 30 Fran Martins já publicara um livro de contos Manipueira em 1933 e dois romances Ponta de Rua 1936 e Poço dos Paus 1938 Cordeiro de Andrade por sua vez já publicara os romances Cassacos 1934 e Brejo 1936 Roberto Schwarz trata desta questão em Oswald de Andrade Ver SCHWARZ 1987 p 1128 92 via atlântica n 7 out 2004 A importância dessa sua formulação ele logo percebeu Tanto que um ano depois no primeiro número da revista Clima dirigindose à intelectualidade que surgia nos anos 40 vai dar grande destaque a ela e num texto que é um verdadeiro testamento para uma novíssima geração Depois de reproduzir numa versão revista o parágrafo de seu artigo de 1940 citado acima acrescenta Quan do ao denunciar este fenômeno me servi quase destas mesmas palavras jul guei lhe descobrir algumas raízes tradicionais Hoje estou convencido de que me enganei O fenômeno não tem raízes que não sejam contemporâneas e não pro longa qualquer espécie de tradição ANDRADE 1974 p 190 A hipótese de Mário de Andrade é a de que o fracasso domina o ro mance de 30 e define sua visão da nacionalidade Contrapondoa à sua pró pria visão de nacionalidade é natural que vá considerála derrotista vetor da desistência sintoma de que o homem brasileiro está às portas de desis tir de si mesmo ANDRADE 1974 p 191 como dirá mais adiante E ele acerta em cheio ao apontar o fracassado como a figura hegemônica no ro mance de 30 Mas há dois elementos importantes a serem discutidos a par tir de sua formulação Andrade a natureza do fracasso que domina o roman ce de 30 e sua articulação com uma idéia de identidade nacional Assim como não é adequado falar em otimismo ingênuo generalizado no romance de 30 não é muito apropriado identificar a exploração artística cons tante do fracasso à desistência Tratase antes de manifestação daquela avalia ção negativa do presente daquela impossibilidade de ver no presente um terre no onde fundar qualquer projeto que pudesse solucionar o que quer que seja enfim é uma manifestação do que se está chamando aqui de espírito pósutópi co A utopia está então adiada mas não de todo afastada Só será possível pensar qualquer utopia depois de mergulhar o mais profundamente possível nas misérias do presente Esquadrinhar palmo a palmo as misérias do país eis o que toma a peito fazer o romance de 30 E isso não se coloca apenas no plano dos problemas sociais onde se nota o fenômeno com mais clareza Para quem como Octávio de Faria vê no presente o reino da miséria moral há também uma recusa vigorosa da facilidade em se mudar esse presente É sintomático que ele no primeiro romance de um ciclo pensado para vários volumes en cerrouse em 1979 com o 13o romance mate atropelado o anjo Carlos Eduardo o único dos adolescentes de Mundos Mortos que vence as tentações com facili dade na verdade seria até mais apropriado dizer que ele não vence essas A crise da nação na saga de Almeida Faria 93 tentações porque nem sequer as sente E mais ele morre exatamente no dia em que outros adolescentes resolveram armar uma verdadeira armadilha para sua santidade ao arrumar um encontro com uma bela prostituta para ver se ele seria capaz de resistir Com a morte impedindo esse teste o leitor não pode nem ter certeza se o anjo é mesmo um anjo já que não passou por nenhuma provação maior O que fica para o resto da Tragédia burguesa são os persona gens vivendo no impasse na dúvida indo pendularmente do autocontrole à queda É o caso de Ivo o irmão de Carlos Eduardo que protagoniza a cena de abertura de Mundos mortos em luta vã consigo mesmo para não cair na tenta ção de cometer o pecado de se masturbar Dessa preferência pelo impasse vem a particularidade do realismo pra ticado pelo romance de 30 em relação ao realismo do século XIX É interes sante pensar por exemplo num autor cultuadíssimo nos anos 30 Dostoiévski Em Crime e castigo a ação positiva teorizada e praticada por Raskolnikoff redunda em fracasso Mas o romance não acaba no conflito entre esse ser afirmativo que chega ao assassinato e as forças morais que o levam à confis são e à prisão É preciso que ele através do amor de Sônia abrace a religião E essa força positiva não fica guardada para um futuro remoto mas já está em curso numa história palpável que poderia ser contada imediatamente É com essa perspectiva aliás que o romance se fecha Mas aqui começa uma segunda história da lenta transformação de um homem da sua regeneração da sua passagem gradual de um mundo para outro Podia ser o motivo de uma nova narração A que quisemos oferecer ao leitor terminou aqui DOSTOIÉVSKI 1941 p 445 Algo semelhante se passa nos romances do autor de língua portuguesa mais admirado entre nós naqueles anos Eça de Queirós para quem o de bruçar sobre as desgraças do presente é uma forma de entreabrir as corti nas e vislumbrar o futuro É exemplar nesse sentido o encerramento de O crime do padre Amaro em que o atraso português aparece contraposto ao avanço da França sacudida pela revolução de 1848 e ao Portugal das con quistas marítimas cantado por Camões Vejam ia dizendo o conde vejam toda esta paz esta prosperidade este contentamento Meus senhores não admira realmente que seja mos a inveja da Europa 94 via atlântica n 7 out 2004 E o homem de estado os dois homens de religião todos três em linha junto às grades do monumento gozavam de cabeça alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país ali ao pé daquele pedestal sob o frio olhar de bronze do velho poeta ereto e nobre com os seus largos ombros de cavaleiro forte a epopéia sobre o coração a espada firme cercado dos cronistas e dos poetas da antiga pátria pátria para sempre passada memória quase perdida QUEIRÓS sd v1 p 345 A solução é muito visível aqui tomar o caminho do desenvolvimento das grandes nações européias recuperar o espírito ativo de um Portugal que é memória quase perdida Abraçar o futuro lançarse a ele lembran dose do que fora capaz Nos dois casos há uma mudança possível e à vista Mesmo em O crime do padre Amaro onde há a vitória clara do que há de pior em Portugal oferecese um caminho a trilhar capaz de reverter o fra casso da nação Há um lugar lá fora em que se abdicou do contentamento para que se lançasse ao futuro e que pode servir de exemplo No caso do romance de 30 a formação da consciência de que o país é atrasado canalizou todas as forças Produziramse romances que se esgota vam ou na reprodução documental de um aspecto injusto da realidade bra sileira ou no aprofundamento de uma mentalidade equivocada que contri buiria para a figuração desse atraso O herói ao invés de promover ações para transformar essa realidade negativa servia para incorporar algum aspecto do atraso Em O Amanuense Belmiro ou em Angústia é o intelectu al que faz esse papel em Os corumbas é o operário em Vidas secas o camponês em Mundos mortos a burguesia em Mãos vazias ou em Ama nhecer a mulher Ao contrário do realismo do século XIX que havia estig matizado a narrativa em primeira pessoa muitas vezes o romance de 30 priorizoua com duplo efeito primeiro o de conferir veracidade maior ao documento já que assim ele aparece construído como depoimento de quem viveu aquele fracasso segundo o de sublinhar o caráter definitivo das der rotas narradas já que para ninguém o impasse pode ser tão profundo ou mais sem saída a situação do que para aquele a quem não é dada uma perspectiva mais ampla ou distanciada do problema Mas esse pessimismo todo não aponta necessariamente para uma na cionalidade desarmada para viver como diagnosticou Mário de Andrade A crise da nação na saga de Almeida Faria 95 Ao contrário tratase de uma nacionalidade que pretende mostrar sua força e seu aparelhamento para a vida ao encarar e incorporar o fracasso ao invés de escapulir para outros planos para o plano que os próprios romancistas de 30 chamariam de meramente estético por exemplo E neste ponto já se introduz a segunda questão que o texto de Mário de Andrade propõe ou seja que visão da nacionalidade o romance de 30 consa grou E é preciso admitir nele a ausência de projetos totalizadores No mo dernismo produção artística e busca de uma identidade nacional estão arti culadas integradas tanto na obra de Mário de Andrade quanto na de Oswald de Andrade ou na dos autores do verdeamarelismo Tais propostas de uma visão de nacionalidade expostas em manifestos eram em geral uma forma de articular passado e presente que dava sustentação à utopia modernista Distante da utopia da vanguarda os anos 30 assistiram a um outro tipo de comportamento por parte dos escritores Ninguém propôs visões nem mais nem menos unificadoras de Brasil Foi uma produção atomizada Sem ver a possibilidade de propor algum tipo de ação prospectiva imediata cada romancista se ocupou de mergulhar num aspecto específico do presen te Só é possível tentar enxergar alguma visão geral do país após uma leitu ra extensiva desses romances e mesmo a maneira pela qual Mário de Andrade percebeu a importância da figura do fracassado demonstra isso Não foi algo colhido em qualquer proposição sistematizada mas sim num processo de acumulação na leitura de uma série de romances incluindo vários de que ninguém mais fala hoje E é esse um dos maiores problemas para o estudo do romance de 30 Sendo uma produção atomizada e ancorada no presente sujeita às exigências imediatas acabou produzindo poucas obras que as gerações de críticos que a sucederam julgaram aptas a integrar nos so cânone literário Somente no conjunto extenso e muitas vezes desinteressante é que se pode perceber esse mergulho coletivo na tentati va de compreensão do momento presente Não havendo projeto coletivo há no entanto um desigual movimento coletivo que inclui todo o regionalismo assumido ou não já que mesmo em livros inequivocamente intimistas Lúcio Cardoso tira grande partido do ambiente das cidadezinhas do interior de Minas por exemplo mas também o romance urbano ambientado tanto nas metrópoles do Rio de Janeiro e São Paulo quanto nas capitais periféri cas ou cidades de médio porte como Santos ou Petrópolis 96 via atlântica n 7 out 2004 Além disso esse interesse pelo fracassado foi responsável direto por uma das maiores conquistas do romance de 30 para a ficção brasileira que viria a seguir a incorporação das figuras marginais Assim como é possível falar das dificuldades que o romance de 30 teria para se afirmar sem o modernismo é possível especular sobre como teria sido difícil a aceitação do sertanejo de Guimarães Rosa ou da mulher de Clarice Lispector sem a legitimação literária que o romance de 30 em suas várias vertentes aca bou conquistando para essas criaturas marginais alçadas a protagonistas O resultado é que com esse procedimento antiescola voluntariamente ou não os romancistas de 30 produziram uma vigorosa força de oposição a uma visão total totalitária mesmo de Brasil proposta por Getúlio Vargas É um contraste significativo o que se cria entre a visão do país como um conjunto de realidades locais que merece ser conhecido nas suas particulari dades e o modelo oficial de unidade nacional cuja tendência seria a de apagar as diferenças para se obter um conceito uno de nação5 A boa recepção ao romance regionalista por exemplo mesmo considerando as acanhadas di mensões de nosso público leitor àquela altura foi uma demonstração clara da distância de um projeto oficial unificador em relação à visão que ia se tornan do a mais viável para os próprios brasileiros que queriam simplesmente saber da vida nos engenhos do drama da seca da região amazônica das plantações de cacau e café da realidade dos pampas dos novos bairros que surgiam em Belo Horizonte e mais BIBLIOGRAFIA ANDRADE Mário de Vida literária São Paulo HucitecEdusp 1993 Edição de Sonia Sachs Aspectos da literatura brasileira 5 ed São Paulo Martins 1974 5 Quem formulou exemplar e radicalmente esse tipo de pretensão unificadora foi o Integralismo desde seu manifesto de outubro de 1932 Em artigo de jornal de 1945 reproduzido por Edgard Carone em A Segunda República CARONE 1973 o próprio Plínio Salgado recupera sua concordância com Getúlio Vargas acerca do perigo do regionalismo para a construção dessa idéia de nação A crise da nação na saga de Almeida Faria 97 Cartas a Murilo Miranda Rio de Janeiro Nova Fronteira 1981 CAMPOS Haroldo de Poesia e modernidade o poema pósutópico In Folhetim Folha de São Paulo São Paulo 404 14101984 CANDIDO Antonio A revolução de 1930 e a cultura In A educação pela noite e outros ensaios São Paulo Ática 1987 CARONE Edgard A segunda república São Paulo Difel 1973 CASTRO Moacyr Werneck de Mário de Andrade Exílio no Rio Rio de Janeiro Rocco 1989 LIMA Benjamin Esse Jorge de Lima Rio de Janeiro Adersen 1933 QUEIRÓS Eça de Obras Porto Lello sd RAMOS Graciliano São Bernardo 45 ed Rio de Janeiro Record 1985 REGO José Lins do Espécie de história literária In Lanterna Verde Rio de Janeiro 6 abr 1938 SCHWARZ Roberto A carroça o bonde e o poeta modernista In Que horas são São Paulo Companhia das Letras 1987