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CADERNOS DE PSICOLOGIA Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Número 2 Versão Eletrônica Versão Impressa CADERNOS DE PSICOLOGIA Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Número 2 MINISTÉRIO DA SAÚDE Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva INCA MINISTÉRIO DA SAÚDE Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva INCA SOFRIMENTO PSÍQUICO DO PACIENTE ONCOLÓGICO O QUE HÁ DE ESPECÍFICO CADERNOS DE PSICOLOGIA Número 2 Rio de Janeiro RJ INCA 2014 2014 Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva Ministério da Saúde Todos os direitos reservados A reprodução adaptação modificação ou utilização deste conteúdo parcial ou integralmente são expressamente proibidas sem a permissão prévia por escrito do INCA e desde que não seja para qualquer fim comercial Venda proibida Distribuição gratuita Esta obra pode ser acessada na íntegra na Biblioteca Virtual em Saúde Prevenção e Controle de Câncer httpcontrolecancerbvsbr e no Portal do INCA httpwwwincagovbr Esta obra é disponibilizada nos termos da Licença Creative Commons Atribuição Não Comercial Sem Derivações 40 Internacional Tiragem 600 exemplares Elaboração distribuição e informações MINISTÉRIO DA SAÚDE INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA INCA Hospital do Câncer I Seção de Psicologia Rua Washington Luiz 35 Centro Rio de Janeiro RJ Tel 21 32074510 32074511 Email mswinerdincagovbr abernatincagovbr daphnepereiraincagovbr wwwincagovbr Edição COORDENAÇÃO DE PREVENÇÃO E VIGILÂNCIA Serviço de Edição e Informação TécnicoCientífica Rua Marquês de Pombal 125 Centro Rio de Janeiro RJ Cep 20230240 Tel 21 32075500 Organizadoras Ana Beatriz Rocha Bernat Daphne Rodrigues Pereira Monica Marchese Swinerd Equipe de Elaboração No anexo Revisão técnica Luciana da Silva Alcântara Supervisão Editorial Letícia Casado Edição e Produção Editorial Taís Facina Revisão Rita Rangel de S Machado Capa Projeto Gráfico e Diagramação Cecília Pachá Normalização Bibliográfica e Ficha Catalográfica Marcus Vinícius Pereira da Silva CRB76619 Ficha Catalográfica Camila Belo CRB75755 Impresso no Brasil Printed in Brazil Flama FICHA CATALOGRÁFICA I59s Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da SilvaHospital do Câncer I Seção de Psicologia Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva Ana Beatriz Rocha Bernat Daphne Rodrigues Pereira Monica Marchese Swinerd organizadores Rio de Janeiro INCA 2014 168 p il Cadernos de Psicologia 2 ISBN 9788573182460 versão impressa ISBN 9788573182477 versão eletrônica 1 Neoplasias psicologia 2 Estresse psicológico I Bernat Ana Beatriz Rocha II Pereira Daphne Rodrigues III Swinerd Monica Marchese IV Título V Série CDD 616994019 Catalogação na fonte Serviço de Edição e Informação TécnicoCientífica Títulos para indexação Em inglês Psychology Logbooks Psychological distress of cancer patients whats specific Number 2 Em espanhol Cuadernos de Psicología El sufrimiento psicológico de los pacientes con cáncer lo que es específico Número 2 Apresentação Apresentamos o segundo número do Cadernos de Psicologia que traz o tema Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Esse tema convoca à reflexão acerca do cuidado diário com o sujeito frente à dor não cabendo aqui nenhuma distinção entre as dimensões física ou psíquica pois ambas possuem o mesmo destino isso é aquele que as sofre É também um convite a considerar que os diferentes aspectos do sofrimento não concernem somente à área da psicologia Pelo contrário nossos parceiros de trabalho vêm aqui apresentar suas experiências e mostrar como cada um é tocado por aquilo que afeta o paciente oncológico No primeiro Caderno apresentamos textos que traziam um pouco da história da psicologia no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva INCA Agora damos mais um passo e concitamos não apenas nossos pares de dentro e de fora da instituição assim como os que aqui passam pela Residência Multiprofissional mas também profissionais de outras áreas a contarem como são atravessados e como atuam diante de uma doença tão grave e que pode trazer consequências tão devastadoras como o câncer Não queremos dizer com isso que a clínica do sofrimento psíquico na oncologia é uma especialidade conforme compreendida na área biomédica Nosso intuito porém é ressaltar que se não é uma subespecialidade nem por isso deixa de ter sua singularidade O sujeito é sempre de quem se trata não importa se atravessado pelo câncer por outra doença orgânica ou por um transtorno mental Mas o que é singular nessa práxis Somente ao pensar o trabalho e isso inclui a pesquisa o ensino e as outras atividades relacionadas à transmissão podese caminhar um pouco no sentido de responder à questão levantada de início e que dá título ao trabalho Para simples fim de organização optouse por dividir a publicação em duas partes a primeira referese ao tratamento oncológico sob diferentes perspectivas dentro da área da psicologia e a segunda ao olhar multidisciplinar acerca do sofrimento do sujeito Assim a autora Monica Pinheiro relata a experiência de atendimento a mulheres com diagnóstico de câncer do colo do útero destacando a sutileza em ouvir o impacto emocional não só frente à doença mas também aos desafios do acesso ao atendimento de qualidade e excelência pelo Sistema Único de Saúde SUS um tempo que urge É sobre essa urgência que fala Deborah Melo ao trazer a rica experiência de atendimentos a pacientes em vias de algum tipo de intervenção cirúrgica no corpo os impactos no psíquico fazendo aparecer no contexto hospitalar imerso em urgências de diferentes ordens a urgência subjetiva destacada pela autora que só pode ser acolhida com a presença atenta do psicólogo O sofrimento psíquico produzido pela enfermidade e pelo tratamento muitas vezes invasivo e mutilador é também apontado por Márcia Costa Mariana Rabello e Ingrid Raiol ao relatarem a experiência com mulheres em tratamento de câncer de mama que incide no corpo chamando a atenção para esse corpo que é mais do que biológico é sobretudo um corpo marcado por histórias imagens afetos e simbolismos Marcelo Chahon traz reflexões sobre as perdas trazidas pela doença sendo o diagnóstico oncológico em qualquer idade um tipo de evento imprevisto e idiossincrático que desafia os recursos cognitivos e emocionais trazendo para a cena os desafios da doença no momento da velhice etapa do desenvolvimento já marcada por perdas estruturais e ritos de passagem Ainda nesse contexto Jaqueline Romariz e colaboradores indicam em seu capítulo as especificidades do diagnóstico em psicologia no contexto hospitalar apontando que se trata de um trabalho de sustentar uma escuta Acompanhar os pacientes de forma dinâmica em suas invenções no enfrentamento de tratamentos médicos que tomam os pacientes muitas vezes como objeto de intervenção caberia ao psicólogo ao guardar um lugar para o sujeito na instituição e acompanhálo nesse percurso Nina Gomes Costa escreve sobre as especificidades do sofrimento apresentado por crianças e adolescentes ao longo do tratamento oncohematológico destacando a relevância do encontro com um clínico de modo a favorecer as invenções que esses pacientes fazem para tornar esse tratamento menos inóspito enquanto sujeitos de desejo Marcia Azevedo e Carolina Barbosa falam sobre a importância de respeitar e valorizar os recursos psíquicos dos quais o paciente se utiliza no enfrentamento da doença Marília Neves por sua vez também discorre sobre o assunto trazendo um estudo sobre a abertura de quadro psicótico após diagnóstico de câncer e a importância da rede de apoio Monica Marchese traz ao narrar sua experiência como psicóloga na hematologia a indagação de que ou de quem se trata quando o hospital recebe o sujeito que adoece marcando a importância da escuta da subjetividade no tratamento Finalmente Juliana de CastroArantes disserta sobre a especificidade da escuta da angústia no contexto da clínica da dor em um hospital oncológico concluindo que a angústia mesmo nesse contexto é sempre singular sublinhando a importância de escutar o sujeito em seu sofrimento Na segunda parte deste volume estão os trabalhos dos parceiros em suas experiências na assistência Cláudia Rabello traz indagações importantes acerca do poder de decisão de crianças e adolescentes no que concerne às intervenções que trazem alterações indeléveis em seus corpos e vidas consideradas pelo viés da fisioterapia Ana Beatriz Rocha Bernat e colaboradores apresentam um artigo produzido pelo núcleo de pesquisa Impasses no Reingresso à Escola de Crianças e Adolescentes Sobreviventes do Câncer acerca da importância do estudar como possibilidade de manter a criança e o adolescente como sujeitos do desejo e sustentar para eles uma perspectiva de futuro de vir a ser ainda que isso seja sem garantias Ana Maria Quintela e Clarissa Ruback fazem um breve histórico da assistência na saúde primeiro centrada na figura do médico depois com a gradativa abertura para a inserção de outros profissionais e suas contribuições no cuidado prestado em especial no que concerne à terapia ocupacional área em que ainda se encontra pouca produção científica a respeito Luciana Alcântara e Ana Celina partem da experiência com pacientes com câncer de laringe para abordarem e trazerem à reflexão a singularidade do cuidado no que tange aos efeitos e às repercussões de uma doença oncológica com o cuidado de não separar o sujeito que sofre de seu contexto social e familiar Ernani Mendes e Ana Paula Santos por sua vez abordam o sofrimento psíquico do paciente oncológico a partir do conceito de dor total introduzido pela médica inglesa Cicely Saunders na década de 1960 resgatando o que há de específico no sofrimento provocado pela dor física Nesse sentido o artigo de Andréa Ladislau traz a concepção de que os aspectos psicológicos que envolvem o sofrimento físico pressupõem a necessidade de valorização das vivências relacionadas ao adoecimento por parte da equipe multiprofissional no ambiente hospitalar No que tange à estrutura hospitalar o artigo de Kássia Siqueira traz como contribuição um olhar atento às dinâmicas e rotinas rígidas que fazem do hospital o espaço de construção da identidade do paciente ressaltando em sua análise a importância do direito de escolha do sujeito que adoece frente ao seu tratamento Ana Raquel de M Chaves e Laura Freitas ao analisarem os rebatimentos sociais presentes na realidade dos usuários da clínica de Hematologia do Hospital do Câncer I HCI trazem uma abordagem primorosa dos aspectos sociais que permeiam o tratamento e de como esses a partir de uma perspectiva interdisciplinar podem ser amenizados trazendo menos sofrimento psíquico ao paciente e à sua família Por fim Andressa Freitas discorre acerca dos papéis da fala e da deglutição para o homem muito além do aspecto meramente funcional Pontuando o lugar que essas funções ocupam na vida em sociedade sinaliza o quanto o sujeito pode vir a ficar à margem dessa sociedade em razão das sequelas de um câncer e do sofrimento que daí advém Como texto suplementar Romildo do Rego Barros oferece uma reflexão acerca da especificidade da escuta do psicólogo diante do paciente gravemente enfermo e por vezes terminal O psicanalista sublinha em sua intervenção a balança que há na vida entre angústia e desejo Tece considerações acerca da terminalidade e de um manejo específico do tempo nesses casos manejo esse que visa a favorecer a afirmação do desejo do paciente por meio de uma escuta singular e que confere dignidade à travessia de um processo tão difícil Romildo cita La Rochefoucauld e sublinha que Para o sol e para a morte não podemos olhar de frente logo há que se construir um véu alguma mediação junto ao paciente para velar o real que se torna presente de forma contundente nessa travessia Finalizando que essa leitura produza muitos efeitos para cada um que encetar essa viagem Mas que acima de tudo ela traga a possibilidade de gerar ainda mais trabalho para todos os que estão comprometidos com a clínica Organizadoras Sumário Apresentação 3 Lista de tabelas 9 Lista de siglas 10 Parte I Experiências diversas na Clínica de Psicologia Capítulo 1 Câncer corpo feminilidade o que há de específico 13 Capítulo 2 Algumas considerações sobre a urgência subjetiva em uma instituição de tratamento oncológico 21 Capítulo 3 Câncer de mama os impactos subjetivos causados pela mastectomia e o lugar da palavra 29 Capítulo 4 Considerações sobre o adoecimento oncológico na velhice 33 Capítulo 5 O diagnóstico em psicologia 39 Capítulo 6 A questão do sofrimento psíquico na clínica oncológica um relato da experiência com crianças e adolescentes 45 Capítulo 7 O sujeito e o combate ao câncer possibilidades de defesa contra o ataque de um inimigo silencioso 53 Capítulo 8 O que fazer quando o paciente oncológico tornase psicótico e recusa tratamento psiquiátrico O estudo de um caso sobre a colaboração multidisciplinar e a integração do support system 59 Capítulo 9 Corpo e sujeito no tratamento do câncer hematológico de quem se trata 67 Capítulo 10 Escuta do sujeito 75 Texto suplementar Redes e laços impasses e desafios 83 Parte 2 Um olhar multiprofissional Capítulo 11 Os aspectos que permeiam o sofrimento das crianças e dos Adolescentes percepções vivenciadas em vinte anos de assistência no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva 93 Capítulo 12 Especificidades do sofrimento psíquico apresentado por crianças e adolescentes ao longo do tratamento oncohematológico impasses e invenções por que estudar é tão importante 101 Capítulo 13 Terapia ocupacional e oncologia sutilezas de uma clínica atravessada pela vida 109 Capítulo 14 Implicações da doença oncológica entre pacientes com câncer de laringe a singularidade do cuidado 115 Capítulo 15 Dor total e sofrimento psíquico no paciente oncológico 127 Capítulo 16 Um olhar sobre os aspectos relevantes que envolvem o sofrimento psíquico do paciente oncológico 133 Capítulo 17 O hospital como lugar de produção da identidade paciente problematizando discursos e práticas de saúde 139 Capítulo 18 Rebatimentos sociais do tratamento oncológico reflexões do serviço social na clínica de hematologia 147 Capítulo 19 A vida após o câncer considerações sobre a comunicação a alimentação e o trabalho da fonoaudiologia com pacientes após o tratamento oncológico 153 Anexo Equipe de elaboração 161 9 Lista de Tabelas Tabela 1 Distribuição segundo as características dos portadores de câncer de laringe matriculados no período de 1 de março de 2012 a 23 de maio de 2013 120 Tabela 2 Distribuição segundo as características sóciohabitacionais trabalhistas e previdenciárias 121 Tabela 3 Distribuição segundo a existência de renda familiar participativa e da condição de provedor da família 122 Lista de Siglas AMP Associação Mundial de Psicanálise BPC Benefício de prestação continuada CBT Cognitive Behavioral Therapy Cemo Centro de Transplante de Medula Óssea CEP Comitê de Ética em Pesquisa CID Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde DCNT Doença crônica não transmissível Ensp Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca EPCI Ècole de propédeutique a la connaissance dinconscient Fiocruz Fundação Oswaldo Cruz HCI Hospital do Câncer I HCII Hospital do Câncer II HCIII Hospital do Câncer III HCIV Hospital do Câncer IV HEGV Hospital Estadual Getúlio Vargas HFSE Hospital Federal dos Servidores do Estado HPV Papilomavírus humano IASP International Association for the Study of Pain ICP Instituto de Clínica Psicanalítica IFF Instituto Nacional de Saúde da Mulher da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira ILP Instituição de Longa Permanência IMS Instituto de Medicina Social INCA Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva INSS Instituto Nacional do Seguro Social IP Instituto de Psicologia IPUB Instituto de Psiquiatria da UFRJ LMC Leucemia mieloide crônica OMS Organização Mundial da Saúde PNH Política Nacional de Humanização PUC Pontifícia Universidade Católica SMSDC Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil SNC Sistema Nervoso Central SUS Sistema Único de Saúde TCLE Termo de Consentimento Livre e Esclarecido Uerj Universidade do Estado do Rio de Janeiro UFF Universidade Federal Fluminense UFRJ Universidade Federal do Rio de Janeiro Unesa Universidade Estácio de Sá PARTE I EXPERIÊNCIAS DIVERSAS NA CLÍNICA DE PSICOLOGIA Câncer Corpo Feminilidade O Que Há De Específico Capítulo 1 15 O câncer do colo do útero tem alto índice de prevalência entre as mulheres logo é um problema de saúde pública Essa patologia tem como causa principal mas não única a infecção pelo papilomavírus humano HPV Dados do INCA apontam que esse é o terceiro tumor mais frequente na população feminina atrás do câncer de mama e do colorretal e a quarta causa de morte de mulheres por câncer no Brasil Prova de que o país avançou na sua capacidade de realizar diagnóstico precoce é que na década de 1990 70 dos casos diagnosticados eram da doença invasiva Ou seja o estágio mais agressivo da doença Atualmente 44 dos casos são de lesão precursora do câncer chamada in situ Esse tipo de lesão é localizada Mulheres diagnosticadas precocemente se tratadas adequadamente têm praticamente 100 de chance de cura INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 200 Apesar do alto potencial de cura quando descoberto inicialmente infelizmente existe uma triste realidade mulheres atendidas em grupo pela psicologia no Hospital do Câncer II HCII grupo préradioterapia trazem em seus discursos falhas e demora no diagnóstico tanto na rede pública quanto na rede privada Há relatos de mulheres atendidas pelo SUS que aguardam seis meses para receberem o resultado do exame Papanicolaou conhecido popularmente como exame preventivo Tal situação acaba por agravar não só o quadro clínico dessas mulheres pela demora no início do tratamento especializado o que pode acarretar o avanço da doença diminuindo ou até impossibilitando as chances de cura mas também o seu sofrimento psíquico já que por estarem impactadas emocionalmente frente ao diagnóstico de câncer lamentamse ou mesmo se culpam pelo tempo perdido Receber um diagnóstico de câncer remete a pessoa à sua própria finitude ao temor da morte mas não só dela Muitos referemse em especial ao medo do sofrimento produzido pela enfermidade e pelo próprio tratamento que é invasivo e mutilador Em especial quando se trata do câncer que atinge áreas como o útero ou mamas que são consideradas como símbolos do feminino existem algumas especificidades O momento do diagnóstico é relembrado pelas mulheres acometidas como uma experiência dramática e considerado o mais estressante de todos estando associado à insegurança e incerteza tanto em relação ao tratamento e sua eficácia quanto à convivência com a falta da mama e suas conseqüências para o relacionamento conjugal FERREIRA et al 2008 O útero é um órgão biologicamente associado à reprodução e socialmente vinculado à feminilidade e sexualidade por isso sua extirpação além de constituirse em ato agressivo e mutilante interfere tanto na expressão da sexualidade feminina quanto na imagem corporal e na vida social Culturalmente embora haja o reconhecimento da dissociação entre reprodução e sexualidade o término da capacidade para gerar gestar e parir ainda é muito valorizado e pode simbolizar o fim da vida sexual No entanto é inegável que a sexualidade de modo geral 16 e o ato sexual em particular integram o elenco de elementos que interferem no processo de viver e na qualidade de vida e saúde das pessoas inclusive das que se submeteram a histerectomia NUNES et al 2009 A histerectomia retirada do útero ou a mastectomia retirada da mama produz em muitas mulheres um sentimento de insegurança medo de serem abandonadas pelos seus companheiros como se junto com o útero ou a mama lhe tivessem extirpado a feminilidade e por isso tornassemse menos mulheres menos atraentes a cirurgia de remoção da massa tumoral é bastante freqüente acarretando uma mutilação parcial ou total da mama Esse procedimento altamente invasivo traz repercussões emocionais importantes danificando não somente a integridade física como também alterando a imagem psíquica que a mulher tem de si mesma e de sua sexualidade Esse evento é acompanhado geralmente de vivências extremamente dolorosas relacionadas a uma sensação de perda interna do próprio self como Parkes 1998 salienta alterando a relação que a paciente estabelece com seu corpo e sua mente ROSSI SANTOS 2003 Assim como a mama o útero possui um simbolismo muito grande para as mulheres sendo representativo da sua feminilidade Aristóteles citado em Lemgruber e Lemgruber 2001 acreditava que o útero seria o ponto central da feminilidade representando o espírito da mulher Desde a Antiguidade o mistério e o tabu cercam o corpo da mulher Ainda na atualidade a anatomia dos órgãos sexuais e reprodutivos femininos é desconhecida por muitas mulheres Nomear o corpo feminino é também afirmar sua existência sua complexidade e não conhecer o próprio corpo pode implicar em não reconhecer o seu funcionamento e a sua sexualidade Embora a sexualidade não se restrinja apenas aos órgãos sexuais ela perpassa por todo o corpo e está intimamente ligada à subjetividade o conhecimento dos órgãos contribui para desmistificar e quebrar os tabus que envolvem o corpo da mulher e sua relação com o sexo MELO BARROS 2009 Os efeitos da histerectomia são ainda maiores naquelas mulheres que ainda não têm filhos que veem o sonho da maternidade um filho biológico ser destruído Elas expressam um sentimento de vazio de tristeza e de incompletude o que não raras vezes faz com que se sintam envergonhadas de sua condição Para mulheres que não têm filhos a perda do útero poderá causar um impacto emocional pois a falta de opção e a falta do órgão podem despertar sentimentos de perda de inutilidade de destituição da condição feminina isto porque para muitas mulheres a feminilidade está intimamente associada à capacidade de conceber ANGERAMICAMON 1998 Este conceito de feminilidade associado ao útero parte de um ponto histórico onde há muitos séculos têm sido construídos vários significados em torno dele 17 mas todos eles sempre dão relevância ao papel da mulher como reprodutora praticamente resumindo a razão da sua existência na maternidade MEAD 1971 apud SBROGIO 2008 Percebemos então que o diagnóstico e o tratamento do câncer trazem consideráveis repercussões na área da sexualidade feminina a qual não se limita a sexo coito mas envolve a sensualidade a feminilidade o relacionamento com o companheiro Hoje a sexualidade é concebida como aspecto do eu que conecta corpo identidade e normas sociais adquirindo importância social e política além da moral Se na época vitoriana o erotismo envolvia relacionamentos sociais hoje a sexualidade envolve a identidade pessoal Apenas quando ela toma esta dimensão é incorporada como aspecto definidor do sujeito central na estruturação de sua subjetividade e manifestação inclusive de seu caráter UZIEL 2002 Durante o tratamento podem ocorrer o surgimento de fístulas1 Nesse caso pode ser necessária a realização de ostomias para correção O apoio do parceiro é de fundamental importância para aquela que precisa dessa cirurgia a fim de que possa ser minimizado o impacto psicológico do procedimento A inexistência do apoio familiar associada à ausência de envolvimento dos familiares no processo de adaptação resultou na adoção de comportamentos de isolamento afastamento do convívio social laboral e da expressão da sua sexualidade que caracterizaram negação ou não aceitação da doença e do estoma PAULA TAKAHASHI PAULA 2009 Se o parceiro sexual não consegue olhar o estoma isso certamente será entendido como rejeição e se o parceiro presta um cuidado físico demonstrando não querer sentindo nojo ou demonstrando estar rejeitando FREITAS PELÁ 2000 O processo de aceitação e adaptação ao estoma é evolutivo e sequencial durante o qual a pessoa desenvolve mecanismos de defesa em que há negação e repressão das emoções resultando em atitudes confusas de regressão e hostilidade geralmente direcionadas as pessoas mais próximas e afetivamente importantes Essas considerações corroboram com a percepção de que o apoio familiar parceiro foi essencial neste processo somados à qualidade das relações aí estabelecidas PAULA TAKAHASHI PAULA 2009 Além da fístula pode ocorrer durante o tratamento como efeito da radioterapia a estenose estreitamento do canal vaginal que se fecha impedindo a penetração do pênis ou até 1 Canal acidental que se comunica com uma glândula ou uma cavidade natural e que dá saída a secreções Fonte DICIONÁRIO online de Português Disponível em httpwwwdiciocombrfistula Acesso em 10 ago 2013 18 mesmo do dedo O casal precisa então encontrar formas diferentes e criativas para o exercício da sua sexualidade o que nem sempre é fácil As mulheres dessa forma podem ter afetada a sua autoestima e expressam sentimentos de insegurança de medo da rejeição e do abandono2 por não se sentirem atraentes sentimentos esses presentes também após a histerectomia como visto acima Somemse a isso as mudanças corporais como emagrecimento e queda do cabelo que fazem com que algumas mulheres evitem se olhar no espelho a fim de não se depararem com aquela imagem que remete ao estranhamento de si mesma à degradação do corpo à finitude O câncer é visto como uma doença impiedosa cruel temida estigmatizante As fantasias inspiradas pela tuberculose no século passado e pelo câncer agora constituem reflexos de uma concepção segundo a qual a doença é intratável e caprichosa ou seja um mal não compreendido numa era em que a premissa básica da medicina é a de que todas as doenças podem ser curadas Tal tipo de enfermidade é misterioso por definição Pois enquanto não se compreendeu a sua causa e as prescrições dos médicos mostraramse ineficazes a tuberculose foi considerada uma insidiosa e implacável ladra de vidas Agora é a vez do câncer ser a doença que não bate a porta antes de entrar É o câncer que desempenha o papel de enfermidade cruel e furtiva SONTAG 1984 Como consequência não raramente as mulheres acometidas pelo câncer entram em um quadro de depressão apresentando sintomas como irritabilidade insônia ou hipersonia perda do apetite hiporexia ou aumento da ingesta alimentar isolamento social e perda do sentido da vida podendo ocorrer ideias suicidas em virtude do adoecimento e do tratamento que trazem repercussões em vários aspectos da vida da mulher O câncer de mama possui um estigma muito forte devido às repercussões decorrentes do tratamento abalar a imagem corporal com repercussões na interação social Em nossa cultura a aparência visual é representada como belo e elegante logo quando algo foge desse padrão de beleza criado pela sociedade a pessoa passa a carregar consigo o estigma de ser diferente O câncer de mama é temido pelo fato de acometer uma parte valorizada do corpo da mulher e que em muitas culturas desempenham uma função significativa da sexualidade da mulher e sua identidade a mama A representação social do câncer como algo ruim expressa um sentimento de desvalorização social pois a doença não é apenas uma alteração biológica mas também interfere no meio social em que vive essa pessoa Ela se vê como um ser desvalorizado pelas limitações e mutilações impostas pela doença Enfrentar o preconceito de viver com uma doença estigmatizante é o que algumas mulheres estudadas vivenciaram na sua rotina O câncer é uma doença que afeta profundamente a pessoa acometida e as que fazem parte de suas relações sociais SILVA et al 2012 2 Pude observar em minha prática profissional que muitas mulheres são abandonadas durante o diagnóstico e o tratamento que são extremamente impactantes pelos seus companheiros 19 REFERÊNCIAS ANGERAMICAMON V A Org Urgências psicológicas no hospital São Paulo Pioneira 1998 FERREIRA et al Sentidos do Diagnóstico por Câncer de Mama Feminino para Casais que o Vivenciaram Interface comunicação saúde educação Botucatu v 12 n 27 outdez 2008 FREITAS M R I PELÁ N T R Subsídios para a compreensão da sexualidade do parceiro do sujeito portador de colostomia definitiva Revista LatinoAmericana de Enfermagem Ribeirão Preto v 8 n 5 p 2833 out 2000 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Tipos de Câncer colo de útero Rio de Janeiro 200 Disponível em httpwww2incagovbrwpswcm connecttiposdecancersitehomecolouterodefinicao Acesso em 23 mar 2014 MELO M C B BARROS E N de Histerectomia e Simbolismo do Útero Possíveis Repercussões na Sexualidade Feminina Revista SBPH Rio de Janeiro v 12 n 2 dez 2009 NUNES M P R S et al Representações de Mulheres Acerca da Histerectomia em seu Processo de Viver Escola Anna Nery revista de enfermagem Rio de Janeiro v 13 n 3 julset 2009 PAULA M A B TAKAHASHI R F PAULA P R Os Significados da Sexualidade para a Pessoa com Estoma Intestinal Definitivo Revista Brasileira de Coloproctologia Rio de Janeiro v 29 n 1 p 7782 2009 Disponível em ROSSI L SANTOS M A Repercussões psicológicas do adoecimento e tratamento em mulheres acometidas pelo câncer de mama Psicologia ciência e profissão Brasília DF v 23 n 4 p 3241 2003 SBROGGIO A M Autopercepção Corpórea e Sexual de Mulheres Submetidas à histerectomia 2008 88f Tese Doutorado em Tocoginecologia Faculdade de Ciências Médicas Universidade Estudal de Campinas Campinas 2008 SILVA E D et al Câncer de mama uma doença temida representação social de mulheres mastectomizada Revista Eletrônica Gestão Saúde Brasília DF v 3 n 2 p 730742 2012 SONTAG Susan A Doença como metáfora Rio de Janeiro Graal 1984 UZIEL A P Família e Homossexualidade Velhas Questões Novos Problemas 2002 234f Tese Doutorado em Antropologia Instituto de Fisolofia e Ciências Humanas Universidade Estadual de Campinas Campinas 2002 Algumas Considerações sobre a Urgência Subjetiva em uma Instituição de Tratamento Oncológico Capítulo 2 23 No âmbito hospitalar no processo de tratamento do câncer são trilhadas vias de intervenções em que a agilidade assume fator imprescindível de forma que o quanto antes o plano terapêutico for iniciado maior a probabilidade de eliminação da doença Pode acontecer de a confirmação do diagnóstico ser imediatamente seguida pelo início de um tratamento invasivo Tratase da urgência médica em jogo Podese localizar ainda outras urgências no trabalho em uma instituição médica O controle dos sintomas por meio do uso de protocolos na padronização de condutas visando a uma resposta positiva do paciente surge muitas vezes no contexto das internações hospitalares sob o compartilhamento de uma orientação de trabalho Nesse sentido é recorrente que a equipe de saúde vise também à alta hospitalar com o objetivo de diminuir os riscos físicos de uma internação prolongada tal como infecções Com isso o tratamento orgânico constitui um enfoque importante na dinâmica hospitalar com diversas urgências do ponto de vista fisiológico Entretanto vemos que pela sua especificidade isso é pela incidência da dor no processo pelas mutilações e pelas alterações da imagem corporal entre outros aspectos o tratamento pode produzir marcas psíquicas e cada um apresenta uma forma singular de posicionarse diante delas durante o processo Assim acompanhamse pacientes com suas mais diversas questões diante da emergência do câncer e de seu tratamento quando se deflagra outra urgência As urgências do sujeito são aquelas que escapam à condução do tratamento orgânico Vemos na clínica que já no encontro com o diagnóstico a angústia pode aparecer como o único recurso do sujeito uma vez que se introduz uma quebra na sua vida diante desse cenário Frente à oferta de um espaço para onde possam endereçar toda ordem de sofrimento psíquico inerente a esse momento não é incomum escutar dos pacientes que perderam o chão ou um buraco foi aberto diante de seus pés A radicalidade expressa nesses termos aponta para a perda de um suporte simbólico que tem a função de ancorar o sujeito em um lugar específico Entendemos aqui que a perda do chão da qual nos falam remete à falta de representação para a notícia recebida enfim para a experiência de descobrir um câncer na própria carne Com isso a resultante de atravessar esse espinhoso momento pode ser um certo descarrilamento da cadeia significante Com Lacan 1998a entendemos que o sujeito não está pronto a priori mas é constituído desde o nascimento biológico a partir do banho de linguagem recebido pelos que se ocupam de seus cuidados É por ter sido falado idealizado imaginado pelos pais o que acontece mesmo antes de sua concepção que o sujeito poderá advir o que equivale a dizer que esse advento é portanto em meio a palavras ou melhor significantes Assim temos a fórmula lacaniana de que o sujeito é representado por um significante para outro significante LACAN 1998a ou seja ele precisa estar entre significantes para localizarse na vida É isso o que dá origem à representação do sujeito os significantes vindos do Outro Quando por algum motivo esses significantes que o sustentam não bastam e caem o sujeito também cai Essa desarticulação de uma cadeia significante pode ser desencadeada em momentos de crise que fazem vacilar os significantes ou seja situações que marcam para o sujeito que algo escapa ao processo de simbolização excedendo ao campo das representações Nestes momentos as respostas que o sujeito sustenta já não são suficientes pois algo aconteceu que vacilou suas certezas A surpresa o acaso da doença a possibilidade da morte podem caracterizar um momento de crise Em uma crise 24 a experiência traumática irrompe na vida da pessoa quebrando violentamente esse transcorrer natural MOHALLEM SOUZA 2000 Pensamos que com a falta de significantes o sujeito pode perder o chão ou seja aquilo que o sustenta como nos falam nossos pacientes o que só pode ser percebido quando há alguém ali escutando aquele sujeito que sofre Com isso emergem algumas questões que tentaremos trabalhar ao longo do texto Será que a enunciação dessa experiência a alguém já não consiste em um primeiro ensaio para colocar palavras ali onde havia vazio Uma primeira tentativa de tratar esse encontro com o real Estamos chamando de encontro com o real os diversos momentos do tratamento do câncer não apenas ao primeiro momento do diagnóstico Com Freud 1996a temos no conceito de trauma uma primeira apresentação disso que concerne ao real na leitura lacaniana Ele consiste em algo que escapa à simbolização sendo portanto inapreensível ao sujeito Emerge na forma de susto FREUD 1996a instaurando a dimensão da surpresa do encontro com algo inesperado Sendo uma experiência que na maioria das vezes atropela o sujeito e deixao sem proteção o encontro com o câncer pode estar associado à dimensão de trauma aquilo sobre o qual o sujeito nada sabe ainda que busque compartilhar respostas informativas sobre a doença Para além disso vemos no enfrentamento do próprio tratamento como a quimioterapia a radioterapia ou as cirurgias mutiladoras o encontro com algo inconcebível Para Lacan 1998a o real é o que retorna sempre ao mesmo lugar LACAN 1998a p 52 o que faz o sujeito ficar tomado por uma dimensão de inassimilável diante de algo vivenciado enquanto excesso um resto ao seu mundo de representações imaginárias e simbólicas Um encontro é traumático na medida em que aparece uma visão nua e crua do real em que o véu imaginário não dá conta da sua cobertura e o real é escancarado Em muitos casos abordamos o paciente nesse momento de se submeter a um tratamento do qual não se sabe as consequências e que fica muitas vezes irrepresentável Com isso não é incomum que não chegue um pedido de socorro na forma de palavra pelo paciente que se encontra assolado pelo real perdido Escutamos de muitos o desespero diante de constatações do tipo eu não sei mais quem eu sou eu não era assim minha vida acabou Dessa forma propomos aqui uma leitura dessa perda dos ancoramentos o que fragiliza o sujeito durante o encontro com o câncer e seu tratamento pela via da urgência subjetiva A urgência subjetiva é disparada quando a dimensão do real está em jogo quando frente a um sofrimento inefável incontornável em que faltam imagens para representar o que acontece e palavras para significálo o sujeito cai em um mutismo sendo substituído por atos de desespero que são a mais próxima representação da angústia SELDES 2004 Essa urgência surge então com a ruptura abrupta da cadeia significante tendo como consequência uma falta de lugar para o sujeito o que pode ser representado pela sensação de estar perdido na medida em que são os significantes que lhe dão existência Sem um significante para representálo o sujeito fica atrelado ao puro ato que possui efeito de mortificação SELDES 2004 No contexto hospitalar de tratamento isso tem consequência em certa objetalização do sujeito que se deixa levar pelos cuidados da equipe totalmente entregue aos procedimentos desapropriado de si Nas situações mais graves para de comer desiste do tratamento o que sempre lhe imputará uma responsabilidade deixase morrer desiste Tal apagamento subjetivo exige uma intervenção MARON 2008 na tentativa de resgatar o sujeito 25 A urgência subjetiva se define nesse sentido como o estado agudo de um sujeito cuja questão não se prende diretamente nem a uma lesão ou disfunção no corpo nem a algum problema de ordem pública ou seja um sujeito que nos traz uma terceira dimensão entre a dimensão médica e a dimensão jurídica BARROS 2008 p 52 Dizer que o encontro com o traumático na experiência do câncer pode fazer emergir uma urgência subjetiva aponta para uma carência de tratamento do sujeito que sofre pois para além da urgência de tratamento da doença há as urgências do sujeito Do tratamento orgânico escapam as marcas psíquicas da doença A urgência subjetiva é disparada quando algo do imprevisível apresentase MARON 2008 tal como acontece em relação ao trauma deixando o sujeito sem respostas Como tratar a urgência subjetiva em meio a tantas demandas e urgências de outras ordens como leitos procedimentos cirurgias ou diversos protocolos de tratamento O tratamento da urgência subjetiva pressupõe que o sujeito possa ter a quem endereçar seu sofrimento psíquico O desafio consiste portanto em sustentar a singularidade do caso clínico no trabalho em uma equipe multiprofissional dando lugar aos impasses do sujeito que geram impasses na equipe em meio a outras urgências no tratamento Muitas vezes o paciente nos ensinará que uma determinada intervenção funcionará melhor no controle de sua dor mas sobretudo que a dor não é apenas orgânica isso precisará ser considerado em seu tratamento Tendo em vista a emergência de uma urgência subjetiva a angústia pode se instalar na tentativa de proteção contra novas surpresas desagradáveis Ela ganha consistência na tentativa de construir um remendo frente ao estrago produzido pelo real com o objetivo de estruturar uma proteção do sujeito frente a novas surpresas novos sustos FREUD 1996a Podemos associála a um estado de alerta em relação ao que pode vir na direção do sujeito um ensaio diante do encontro com o intolerável que é sempre repentino Frente ao escancaramento do real ou seja à queda dos véus que o encobriam ao longo da vida a angústia pode ser o preço pago pelo sujeito para se defender do traumático É um preço alto na medida em que não se trata de uma cobertura agradável A angústia é o afeto que não engana nos dirá Lacan 2005 que toma o sujeito de forma que ele saberá imediatamente identificála Barros 2008 descreve que a urgência do sujeito pode se manifestar tanto na forma da passagem ao ato em que o sujeito sai de cena sendo o suicídio sua representação mais drástica quanto na crise de angústia que deixa o sujeito sem chão Apesar de angústia e ato estarem em posições opostas na tentativa de responder ao traumático em ambos estaria embutida certa desarticulação no funcionamento particular daquele sujeito Quando Seldes 2004 aponta que o trabalho sustentase pela fórmula saber ao invés de atuar o autor indica que escutar o que urge para o sujeito nesse momento específico de sua vida pode fazer função de provocar seu advento na medida em que falar do que lhe acomete constitui uma via para a rearticulação da cadeia uma via de tratamento do real Assim não há uma rede de significantes e um sujeito que se associa ou se dissocia dela mas no ato de dizer o sujeito e as associações significantes emergem ao mesmo tempo Muitas vezes não será na primeira oferta de escuta que o paciente falará Nesse sentido localizamos a importância na sustentação da oferta abrindo caminho para que o paciente possa endereçar seu sofrimento o que remete à disponibilidade em retornar ao paciente até que ele possa confiar e compartilhar sua angústia ação que pode nunca ter sido feita ao longo de sua vida 26 Sabemos que o enlaçamento pela transferência pode se dar ou não Por outro lado o inconsciente emergirá em sua evanescência LACAN 1998a apenas se houver alguém ali para escutálo função sustentada na psicanálise pelo desejo do analista LACAN 1998a que tem relação com um compromisso com o saber inconsciente Em decorrência do malestar físico da doença o paciente pode vir a exilarse nela como Freud 1996d alerta acerca da dor de dente que é capaz de envolver o sujeito de tal forma que causa um desinteresse em relação a qualquer outro aspecto da vida tamanha proporção de sua incidência Tal caminho é muitas vezes a comprovação de que o paciente não está na posição de quem apresentará uma demanda de fala não endereçará seu sofrimento assim como o faz aquele que procura o analista em seu consultório Freud 1996b aponta para a necessidade de ajustes da técnica da psicanálise a partir das especificidades das instituições em que o analista está inserido Frente ao avassalamento do sujeito pego de surpresa pelo avanço do câncer produzindo alterações drásticas na sua vida muitas vezes ele é paralisado pelo silêncio do vazio da falta de representação pelo encontro com o traumático Tal condição pode andar na contramão de um trabalho de endereçar seu sofrimento a alguém na forma de uma demanda falada me ajuda Ao mesmo tempo a urgência subjetiva já é uma localização que requer alguém que a escute Maron 2008 levanta a seguinte questão não caberia escutála então como uma demanda de atendimento um pedido silencioso de socorro algo que ressalta que aquele sujeito precisa ser considerado A introdução de um tempo de pausa SELDES 2004 no contexto da pressa pela cura do câncer articula na clínica a importância da dimensão do tempo O tempo de tratamento da doença é da ordem de uma urgência orgânica que podemos localizar de certa forma em um tempo de emergência do quanto antes Ele não coincide com o tempo que o sujeito leva para reestruturar se diante da ideia de ter um câncer o tempo de compreender LACAN 1998c Vemos que uma das consequências dessa não correspondência entre o tempo do tratamento físico e o tempo do sujeito incide muitas vezes em um início tardio do tratamento o que pode trazer complicações do ponto de vista do prognóstico da doença Tal passo pode ser efeito de uma solidão do sujeito em sua angústia sem conseguir dar sentido ao que se passa Por outro lado a inserção da escuta no momento de uma urgência que paralisa o sujeito visa à restauração do tempo de compreender também congelado diante do traumático diante do vazio de representação que o habita Apesar do encontro com o real ser sempre um encontro solitário uma vez que o sujeito não conta com seus recursos simbólicos atravessálo acompanhado por um analista pode fazer diferença Nesse sentido a direção do trabalho clínico não deslizará sem que aquele que ocupa essa função o lugar de analista suporte que o sujeito diante do encontro com o inesperado se pronuncie no seu tempo sem pressa e sem abandono o analista se coloca como parceiro para as invenções que cada sujeito lança mão para se aparelhar e se a ver com o fora do sentido MARON 2008 p 20 Apostamos então que o trabalho nessa clínica parte de um acolhimento desse vazio de palavra o que implica ofertarse sem esperar uma demanda pronta mas na criação de condições na aposta de que uma demanda possa ser estruturada E a condição fundamental na psicanálise é disponibilizarse como objeto da transferência em que nunca sabemos em que série o sujeito nos colocará Por meio da fala o real pode ser tratado pelos significantes o que quer dizer que aquilo que o deixou sem lugar pode retornar pela palavra movimento concomitante com a rearticulação da cadeia Falar tem efeitos para o sujeito LACAN 1998b distanciandoo do seu sofrimento MOHALLEM SOUZA 2000 na produção de um dizer em torno da experiência vivenciada 27 Dessa operação o sujeito pode emergir novamente O ato anula a palavra e a palavra faz o vazio do ato ser preenchido pelos significantes o que se mostra uma saída frente à urgência Por isso apostamos que a urgência precisa ser escutada caso contrário predomina o puro vazio puro automatismo sem a presença do sujeito O sujeito precisa ser suposto para advir sendo a oferta de um lugar de fala em meio a um cenário de urgência tal como a oncologia pode montar a autenticação dessa suposição Portanto oferecer um lugar de palavra não é pouca coisa A escuta convoca o sujeito em meio ao tratamento orgânico considerando o campo do desejo em jogo sempre inclusive durante todo o tratamento fazendo valer seu direito É apenas quando se considera a história singular do sujeito ou seja quando se trabalha na lógica do caso a caso que se viabiliza um trabalho frente à urgência subjetiva SELDES 2004 pois a intervenção daquele que escuta aponta para a urgência do sujeito que está diante dele e a urgência é sempre autêntica Antes de o sujeito tomar a palavra nada se sabe a seu respeito É ao convocálo a falar que a construção de uma história pode ser tecida com a circulação articulada dos significantes por meio do nosso instrumento de trabalho a associaçãolivre FREUD 1996c Assim a verdade do sujeito aparece na mesma proporção em que ele fala de como é cortado pelo traumático retomando um saber sobre si que é sempre inconsciente Vemos assim a importância de uma oferta de atravessar junto ao sujeito a angústia que pode estar atrelada ao tratamento do câncer na aposta de que esse novo encontro possa ter desdobramentos Aos poucos o paciente lança mão de uma palavra outra e outra e então uma demanda de trabalho psíquico pode se fazer e o sujeito pode vir a produzir um dizer sobre sua experiência na construção de um contorno ao real pela via do simbólico O manejo da urgência coincide com a oferta de escuta do que acomete o sujeito que invalida seus recursos subjetivos anteriores Ali onde havia o vazio o sujeito deve advir Certa vez o atendimento ao leito realizado a uma paciente em acompanhamento foi conduzido em torno de uma solicitação de que a ajudasse a se virar na cama pois encontravase impossibilitada de fazêlo sozinha após a concretização de um procedimento médico invasivo Podemos ler tal circunstância na transferência como uma demanda do sujeito um pedido de ajuda para se virar diante da condição em que o câncer a deixou Nas palavras de Seldes 2008 p 102 pensamos que cada um pode chegar no tratamento da urgência a um ponto em que a vida seja um pouco mais possível SELDES 2008 p 102 A aposta é de que a partir da urgência possa surgir um novo MARON 2008 uma invenção inédita de vida REFERÊNCIAS BARROS R R O sujeito tem urgência In INSTITUTO DE CLÍNICA PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO Urgência sem emergência Rio de Janeiro Subversos 2008 p 1021 FREUD S Além do princípio do prazer In Além do princípio do prazer psicologia de grupo e outros trabalhos 19201922 Rio de Janeiro Imago 1996a Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v 18 FREUD S Linhas de progresso na terapia psicanalítica In A neurose infantil e outros trabalhos 19171918 Rio de Janeiro Imago 1996b Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v 17 28 FREUD S Sobre o início do tratamento In O caso Schreber artigos sobre técnica e outros trabalhos 19111913 Rio de Janeiro Imago 1996c Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v 12 FREUD S Sobre o narcismo In A história do movimento psicanalítico artigos sobre a metapsico 19141916 Rio de Janeiro Imago 1996d Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud v 14 LACAN J O seminário livro 10 a angústia Rio de Janeiro J Zahar 2005 LACAN J O seminário livro 11 os quatros conceitos fundamentais da psicanálise Rio de janeiro J Zahar 1998a LACAN J Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise In Escritos Rio de Janeiro J Zahar 1998b LACAN J O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada In Escritos Rio de Janeiro J Zahar 1998b 1998c MARON G Introdução urgência sem emergência In INSTITUTO DE CLÍNICA PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO Urgência sem emergência Rio de Janeiro Subversos 2008 p 1012 MOHALLEM L N SOUZA E M C Nas vias do desejo In MOURA M D Org Psicanálise e Hospital 2 ed Rio de Janeiro Revinter 2000 SELDES R La urgencia subjetiva um nuevo tiempo In BELAGA G Org La urgencia generalizada Buenos Aires Grama 2004 p3142 SELDES R Pausa uma porta para a subjetividade hoje In INSTITUTO DE CLÍNICA PSICANALÍTICA DO RIO DE JANEIRO Urgência sem emergência Rio de Janeiro Subversos 2008 p 100103 Câncer de Mama os Impactos Subjetivos Causados pela Mastectomia e o Lugar da Palavra Capítulo 3 31 O sofrimento psicológico da mulher que passa pela circunstância de ser portadora de um câncer de mama e de ter de acolher um tratamento difícil transcende ao sofrimento configurado pela doença em si É um sofrimento que comporta representações e significados atribuídos à doença ao longo da história e da cultura e adentra as dimensões das propriedades do ser feminino interferindo nas relações interpessoais principalmente nas mais íntimas e básicas da mulher SILVA 2008 p 236 O câncer de mama é um importante problema de saúde pública e segundo estimativas brasileiras é o segundo tipo mais frequente no mundo e o primeiro quando se trata de mulheres INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2014 Os tratamentos geralmente invasivos implicam alterações significativas no corpo e nos diversos laços construídos ao longo do percurso de vida de cada sujeito Nesse artigo propomonos a discutir os impactos subjetivos causados pelo tratamento do câncer de mama especificamente pelo procedimento cirúrgico de mastectomia pois cerca de 70 daquelas que nos procuram chegam em estadiamento avançado INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2014 A escolha desse tema tem uma relevância para a práxis como psicólogos com atuação em uma instituição oncológica pois testemunhamos a reviravolta que esse tratamento traz para a vida dessas mulheres e as marcas que ele deixa tanto no corpo quanto na subjetividade A mastectomia tratamento cirúrgico de retirada da mama para além do impacto advindo do diagnóstico que traz à tona a possibilidade de morte parece presentificar uma ameaça à preservação do corpo da mulher ao colocar em xeque a sexualidade a maternidade e a feminilidade Isso nos faz considerar portanto o câncer de mama como uma doença que coloca o dedo em feridas psíquicas sempre abertas QUINTANA 1999 p 108 A alteração vivida no corpo parece refletir perdas em outras áreas da vida uma vez que é a partir dele que nos constituímos estabelecemos laços e ocupamos lugares e funções No caso da mulher mastectomizada podemos pensar que as relações ficam comprometidas uma vez que haverá uma modificação abrupta no modo pelo qual ela se reconhecia até então Quintana 1999 alerta que o corpo referido pela imagem corporal termo definido como uma figuração de nosso corpo em nossa mente ou seja o modo pelo qual o corpo se apresenta para nós SCHILDER 1999 p 7 é um corpo singular construído pelo sujeito por meio de identificações que se diferencia do corpo orgânico fisiológico marcado por um começo meio e fim Diante disso a perda da mama vai além de uma mera perda de uma parte do corpo uma vez que está culturalmente associada aos simbolismos já citados bem como ao fato de que na contemporaneidade vivemos um momento de exigências no qual o corpo é mais um gadget3 uma prótese do sujeito Isso se evidencia pelo número cada vez mais crescente das cirurgias plásticas dos tratamentos estéticos das academias de ginástica LIPOVETKKY 2007 Defrontamonos assim com situações no atendimento à mulher que falam de um sentimento de desvalorização de impotência do temor do abandono por seus parceiros e 3 É uma gíria tecnológica relacionada a qualquer equipamento que tenha uma função específica e que é constantemente atualizada tradução livre 32 familiares ou seja situações que falam do quanto seus papéis de mãe mulher profissional e esposa foram atingidos O que fica claro para nós é que os fatores que envolvem a experiência de um tratamento cirúrgico tão radical como o que discorremos favorecem que esse seja vivenciado como um trauma um encontro com algo que nos situa fora da curva e desancora nossas certezas torna inviável a simbolização rompe o sentido dentro do qual o sujeito encontra alguma homeostase e introduz uma falta de sentido um nãosenso JORGE 2007 p 38 Apostamos que o fazer dos psicólogos que atuam na área oncológica seria nesse sentido acompanhar a mulher em sua tentativa de dar palavras a essa experiência pois no momento em que for possível associar um afeto a um representante um contorno pode se dar minimizando o nível de angústia dessa vivência dessa sensação que poderíamos chamar por uma leitura freudiana de estranhamento Fazse necessário ficarmos alertas para o fato de que cada mulher vai vivenciar esse instante de forma singular e dinâmica daí nossa organização de trabalho procurar incluir a avaliação e a entrevista psicológica desde os momentos iniciais da deliberação do tratamento como um dispositivo que pode facilitar a elaboração do diagnóstico e as propostas de tratamento VENÂNCIO LEAL 2004 Enfim a dificuldade a ser enfrentada pelas mulheres após uma mastectomia é sua própria aceitação como do olhar no espelho ainda que esse seja o olhar do cônjuge o olhar da família o olhar da cultura e ainda assim ser capaz de construir um novo significado para essa experiência e de lidar com uma modificação no seu corpo Ressignificar a experiência de um adoecimento além do exposto acima pode possibilitar uma participação ativa enquanto sujeito nas decisões terapêuticas a que se submeterá no curso do tratamento REFERÊNCIAS INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Estimativa 2014 incidência de câncer no Brasil Rio de Janeiro Inca 2014 JORGE M A C Angústia e castração Reverso Belo Horizonte ano 29 n 54 p 3742 set 2007 LIPOVETSKY G Os tempos hipermodernos São Paulo Barcarolla 2007 QUINTANA A M Traumatismo e simbolização em pacientes com câncer de mama Temas em Psicologia v 7 n 2 p 107118 1999 SCHILDER P Imagem do corpo energias construtivas da psique 3 ed São Paulo Martins Fontes 1999 SILVA C L Câncer de mama e sofrimento psicológico aspectos relacionados ao feminino Psicologia em Estudo Maringá v 13 n 2 p 231237 abrjun 2008 VENÂNCIO J L LEAL V M S Importância da atuação do psicólogo no tratamento de mulheres com câncer de mama Revista Brasileira de Cancerologia v 50 n 1 p 5563 2004 Considerações sobre o Adoecimento Oncológico na Velhice Capítulo 4 35 A motivação para o presente texto decorre da experiência profissional anterior junto à Enfermaria de Cirurgia Vascular do Hospital Federal dos Servidores do Estado HFSE assistindo à população predominantemente idosa somado ao interesse de alguns outros profissionais do Serviço de Psicologia pelo estudo do tema da velhice a par da vivência específica do adoecimento orgânico Em vista de trabalho atual como profissional do INCA no setor de oncologia clínica e a despeito da doença oncológica compreender uma distribuição etária bem menos característica as atividades de ensino junto aos residentes reatualizaram o desejo de sistematizar leituras realizadas antes com vistas ao planejamento de aula dentro do Curso de Residência Multiprofissional finalmente estimulando a escrita dessa breve síntese para efeito de reflexão e divulgação Se existe uma decadência psíquica no velho doente isolado ou mal tolerado em sua família ou na instituição é porque na sua relação com o outro a pessoa idosa não é mais tratada como um sujeito mas tornase unicamente objeto de cuidados MANNONI 1995 p 29 A citação acima foi extraída do capítulo inicial da obra escrita pela brilhante psicanalista Maud Mannoni não por acaso nos anos finais de sua vida em que de forma muito pessoal pôde articular perdas sofridas recentemente à expressão de uma justa revolta frente à realidade do idoso em seu meio Um livro triste e corajoso erigido por uma autora privilegiada pela capacidade de traduzir em produção teórica psicanalítica as inquietações que a experiência clínica lhe transmitiu acerca de crianças família sociedade e educação Para ela velhice e morte não poderiam ser fonte de novos não ditos De um modo diverso configurando um pano de fundo abrangente à concepção da velhice em nossos dias Birman 1997 elege tal assunto entre tantos outros no contexto de obra em que busca conciliar a teoria freudiana sua historiografia e conceitos essenciais à temática da modernidade da qual a própria psicanálise é fruto Em particular as transformações atuais na relação da cultura com a velhice são analisadas evidenciando um reconhecimento tardio da subjetividade do idoso atravessada por mudanças recentes no âmbito sociofamiliar que impossibilitam sua temporalização gerando estilos psicopatológicos à vivência da finitude na ausência de uma perspectiva simbolizável de futuro Desamparo despersonalização depressão paranoia mania são assim marcas que a ética moderna do individualismo assenta sobre nossos velhos Mas Birman 1997 aponta nas considerações finais do capítulo a clínica psicanalítica como possível via de resgate à memória do sujeito É por meio de pesquisa da clínica de idosos que Kamkhagi 2008 busca encontrar processos curativos diante das muitas perdas vivenciadas pelo indivíduo ao longo do envelhecimento Confrontados as perdas corporais o estreitamento de possibilidades o temor do adoecimento incapacitante a perspectiva de proximidade da morte e as perdas de referências frente à contemporaneidade diante desses enfrentamentos estruturais evocados na escuta do idoso a autora reflete alternativas na aquisição de maior independência com relação ao status social de tolerância para com as fraquezas de si e do outro de um maior pragmatismo e maior flexibilidade na experiência do prazer em vivências estéticas amplas voltadas ao coletivo à natureza ou às místicas e no encontro de novas fontes de satisfação buscando um sentido ético às suas ações 36 Ao lado de referências de ordem clínica cabe serem mencionadas diferentes abordagens de pesquisa voltadas ao envelhecimento buscando examinar a par das diferenças individuais na representação da velhice e das pressões do meio circundante características que se conservam estáveis ou se transformam na personalidade e cognição ao longo do tempo e sobretudo visando a estabelecer os atributos de uma velhice bemsucedida para uma síntese desses estudos cf FONTAINE 2010 Entre teorias de cunho desenvolvimentista estruturadas em torno do conceito de estágio podese identificar o conhecido modelo de Erikson que considera a vida humana em toda a sua extensão O autor situa no período da velhice uma crise evolutiva marcada pela contradição integridadedesesperança cuja possível resolução se dá por um sentimento dominante de sabedoria fruto de um balanço de vida em que o indivíduo alcança certo distanciamento das relações sociais imediatas Ainda a visão psicanalítica de Jung evoca um modelo de desenvolvimento que se prolonga à vida adulta atribuindo ao envelhecimento características próprias de crescente introversão e androginia melhor equilíbrio entre os gêneros no plano das representações Entretanto outros paradigmas criticam a centralidade do critério de estágio por ignorar a história do indivíduo na análise do desenvolvimento e do envelhecimento posição das abordagens cognitiva e sociocognitiva FONTAINE 2010 Notadamente do ponto de vista metodológico a perspectiva de curso de vida destaca a importância de ocorrências históricas e expectativas sociais na origem sociogenética dos estágios e a perspectiva lifespan atenta para o contexto coorte como fundamental à pesquisa psicológica NERI 2001 Tais pressupostos salientam a maior variabilidade interindividual que parece caracterizar o idoso em comparação às etapas anteriores do ciclo vital tendo por base a vivência de eventos críticos ou não normativos cujo controle remete à avaliação cognitiva e às estratégias de enfrentamento empregadas FORTES NERI 2004 Em particular o conceito de resiliência recorrente em pesquisas voltadas à prevenção em saúde mental designa uma competência individual face ao estresse sendo esta associada por sua vez a constructos diversos como autoeficácia lócus de controle interno reminiscências processo de reinterpretação de eventos passados e suporte social FALCÃO BUCHERMALUSCHKE 2010 Enquanto processo dinâmico o modelo de resiliência é aqui especialmente importante por enfatizar fatores de proteção plasticidade que vão de encontro ao estereótipo de vulnerabilidade comumente atribuído ao idoso LARANJEIRA 2007 O diagnóstico oncológico em qualquer idade exemplifica evidentemente o tipo de evento imprevisto e idiossincrático que desafia os recursos cognitivos e emocionais do sujeito a par de outras vivências características de etapas do ciclo vital Na velhice a doença vem se somar a necessidades muito próprias de comunicação com o outro agravando o sentimento de desesperança do idoso em lugar de propiciar ocasião a um rito de passagem dos laços familiares a uma busca pessoal de sentido transcendência BARROS 2004 Tal vivência do câncer entre idosos carrega por fim diferentes significados para o paciente em tratamento desde a aceitação e a busca de compartilhamento até a resignação por viés religioso ou o medo diante do estigma da doença Seu enfrentamento é atravessado por discursos contraditórios do paciente notadamente a tentativa racional de exercer controle sobre o sofrimento SOARES SANTANA MUNIZ 2010 No ambulatório de psicologia do INCA como nas enfermarias acompanhando pacientes em vigência de tratamento clínico ou em controle é possível reconhecer no idoso muitas das 37 considerações aqui reunidas Embora haja o risco em generalizar traços de maturidade que naturalmente se espera observar nessa etapa da vida a assistência prestada permite testemunhar não sem admiração como frequentemente a vivência do câncer é de certa forma temperada no conjunto das experiências pessoais acumuladas vida conjugal profissional perdas e ganhos favorecendo algo no gênero do que diferentes autores sugerem como uma desaceleração e uma ressignificação global do passado e do presente no rumo de uma aceitação possível do diagnóstico do tratamento e dos cuidados REFERÊNCIAS BARROS M C M O ciclo vital e o câncer In AZEVEDO D R BARROS M C M MÜLLER M C Org Psicooncolgia e Interdisciplinaridade uma experiência na educação a distância Porto Alegre EDIPUCRS 2004 p 133166 BIRMAN J Estilo e Modernidade em Psicanálise Rio de Janeiro Ed 34 1997 FALCÃO D V S BUCHERMALUSCHKE J S N F Resiliência e Saúde Mental dos Idosos In FALCÃO D V S ARAÚJO L F Org Idosos e Saúde Mental Campinas Papirus 2010 p 3352 FORTES A C G NERI A L Enfrentamento de Eventos Estressantes e Depressão em Idosos In FALCÃO D V S ARAÚJO L F Org Idosos e Saúde Mental Campinas Papirus 2010 p 107124 FORTES AC G e NERI A L 2004 Eventos de Vida e Envelhecimento Humano In NERI A L e YASSUDA M Sorgs CACHIONI Mcolab Velhice BemSucedida 2ª ed pp 51 70 Campinas Papirus KAMKHAGI D Psicanálise e Velhice sobre a clínica do envelhecer São Paulo Via Lettera 2008 LARANJEIRA C A S J Do vulnerável ser ao resiliente envelhecer revisão de literatura Psicologia teoria e pesquisa Brasília v 23 n 3 p 327333 julset 2007 MANNONI M O nomeável e o inominável a última palavra da vida Rio de Janeiro J Zahar 1995 NERI A L Paradigmas contemporâneos sobre o desenvolvimento humano em Psicologia e Sociologia In NERI A L Org Desenvolvimento e envelhecimento perspectivas biológicas psicológicas e sociológicas Campinas Papirus 2001 p 1137 SOARES L C SANTANA M G MUNIZ R M O fenômeno do câncer na vida dos idoses Ciência Cuidado e Saúde Maringá v 9 n 4 p 660667 outdez 2010 O Diagnóstico em Psicologia Capítulo 5 41 Psicologia pensando o hospital No contexto do hospital a rapidez de obter um diagnóstico clínico e um tratamento é imperativa tanto para a instituição interessada em diminuir o tempo de permanência de seus pacientes quanto para o doente que estando longe do seu ambiente familiar quer ver o seu caso encaminhado e resolvido No mundo contemporâneo alguns métodos e valores são paradigmas Um grande exemplo disso é o próprio saber científico Ele possui suas particularidades suas características e seus valores como o método da racionalização a busca por respostas exatas e reprodutíveis e a clara distinção e o afastamento entre cientista e objeto de estudo Afinal tempos maiores de permanência aumentam a possibilidade de intercorrências o que permite inúmeras variáveis no relacionamento da equipe de saúde com o paciente Situações como essa colocam a psicologia numa zona crepuscular do saber científico tradicional na qual sujeito e objeto não se veem mais tão separados mas atravessados por situações de estresse e mesmo pela criação de um vínculo que significa o estabelecimento do paciente como um sujeito Foucault 1987 discorre no decorrer de seus estudos sobre uma disciplina que se refere à vigilância e ao monitoramento dos corpos a fim de domesticálos isso é de fazêlos agir e pensar de acordo com determinado saberpoder vigente em cada época e contexto Foucault chamou esses corpos já treinados de corpos dóceis corpos que cumprem exatamente com aquilo que se espera deles com o que aquele contexto precisa e exige No entanto essa docilidade vai além ela diz respeito a corpos que são normatizados pelo poder que está atento a qualquer deslize mas também domados o tempo todo por si mesmos por uma autovigilância Estamos inseridos numa cultura em que a todo o tempo somos vigiados e essa situação chega a um nível tal que nós mesmos acabamos por nos controlar e docilizar Tendemos a esperar e exigir essa docilidade muitas vezes sem nos perguntarmos a que contexto de poder e saber isso atende Devemos pensar essa dinâmica no cenário que nos compete o hospitalar O imperativo da eficiência médica da rotina e da técnica contém essa exigência por corpos dóceis aderidos ao seu tratamento No entanto sempre que ocorre certo ruído na relação ideal com o paciente em tratamento vemonos no limiar entre a técnica e a subjetividade São inúmeras as situações que podem mobilizar a equipe de saúde nesse sentido uma identificação uma simpatia uma angústia De repente a equipe de saúde e não só o paciente vêse em outra dimensão diferente da perícia da enfermagem ou de um manejo cirúrgico mas o mundo do afeto da ansiedade da frustração e da dor É nesse desconcerto tanto para o paciente quanto para a equipe que a psicologia atua Nesse campo nem sempre todas as questões e denominações podem ser respondidas com a precisão e a urgência de um diagnóstico clínico Embora esse trabalho se dê no sentido de facilitar uma internação mais serena e um tratamento com menos sofrimento emocional em certos momentos docilizar o paciente quando por exemplo ele se mostra mais resistente seria o mesmo que silenciálo enquanto dar voz a sua angústia pode fazer parte do seu processo de cura De acordo com Simonetti 2004 é preciso descobrir a verdade do paciente sobre a doença O psicólogo trabalha com o sentido das coisas não com a verdade das coisas Assim é preciso pensar se dentro dessa atuação a elaboração de um diagnóstico ou uma definição precisa sobre como encaminhar um tratamento psicológico seriam o mais importante A psicologia pretende antes de tudo escutar o que se passa com o sujeito quais suas expectativas medos o que pensa de 42 si dos outros e do mundo como conta sua história quais são suas experiências etc Tudo isso nos fornece conhecimento sobre que imagem ele tem de seu quadro clínico e de sua hospitalização bem como de seu tratamento e de sua relação com a equipe Exatamente por cada experiência ser tão particular a questão do diagnóstico é sempre muito delicada para a psicologia Esse modo de pensar nosso objeto de trabalho e estudo que no caso é sempre um sujeito colocanos diante de intervenções que precisam o tempo todo negociar com o timing da rotina clínica do hospital Em certos momentos a resposta a um pedido de parecer pode não ser precisa sendo o acompanhamento a única garantia O ritmo de tratamento é aqui sempre tecido numa confluência do tempo institucional com o tempo emocional do paciente Nessa convergência cada encontro é único e inédito Diante dessas reflexões iniciais cabenos questionar sobre o limite do poder de resposta que tem um diagnóstico Nesse momento é necessário pensar o que se espera da psicologia O que nós oferecemos para o benefício do paciente e da equipe de saúde A abordagem do psicólogo no contexto hospitalar De acordo com Araújo 2007 o conceito de diagnóstico tem origem na palavra grega diagnõstikós que significa discernimento faculdade de conhecer ou ver através de Na forma como vem sendo utilizado significa estudo aprofundado realizado com o objetivo de conhecer determinado fenômeno por meio de um conjunto de procedimentos teóricos técnicos e metodológicos Tradicionalmente usado na medicina o termo foi incorporado aos discursos e às práticas profissionais de diferentes áreas de conhecimento Para a psicologia hospitalar segundo Simonetti 2004 o diagnóstico é o conhecimento da situação existencial e subjetiva da pessoa adoentada em sua relação com a doença O hospital reúne diversos profissionais envolvidos no cuidado à saúde de um indivíduo Esse ambiente é rotineiramente sistematizado em torno de procedimentos que envolvem observação diagnóstico e tratamento de sintomas ou doenças Para que um plano de tratamento seja elaborado é crucial o momento do diagnóstico que do ponto de vista médico consiste em hipóteses baseadas na sintomatologia apresentada pelo paciente durante o exame direcionando a investigação clínica para um grupo de possíveis doenças posteriormente analisadas a partir de exames complementares Na confirmação da hipótese investigada é elaborado um plano terapêutico visando ao tratamento da doença ou à eliminação dos sintomas Como a psicologia se insere nessa estrutura Primeiramente o cenário é o seguinte o indivíduo hospitalizado pode atravessar um momento de crise ao adoecer uma vez que teve sua rotina interrompida necessitando deslocarse para um ambiente que geralmente remete à insegurança à ansiedade ao medo e à angústia além de não raro exigirlhe uma postura passiva Nesse contexto dadas as circunstâncias o olhar psicológico é diferenciado diante de reações do paciente à doença e à hospitalização que não raro afetam seu tratamento e adesão E assim nos diz Simonetti 2004 quando um psicólogo entrevista um paciente pela primeira vez procurando diagnosticar sua forma de reação à doença ao mesmo tempo já está oferecendo a ele uma escuta que o permite falar o que por si só já produz efeitos terapêuticos O lugar a importância e as características do processo diagnóstico dentro de um sistema terapêutico dependem da matriz epistemológica ética e política de cada sistema Nesse sentido 43 vale a reflexão de Foucault sobre que saberpoder estamos veiculando com o nosso discurso E possíveis discursos são analisados por exemplo no trabalho de Figueiredo e Tenório 2002 em que são comparados o diagnóstico psiquiátrico e o diagnóstico psicanalítico Para esses autores o primeiro é fundamentalmente fenomenológico e nos últimos anos tem apresentado uma tendência de substituição das grandes síndromes esquizofrenia psicose maníacodepressiva neurose por descrições cada vez mais específicas de fenômenos objetivos Para ilustrar essa tendência temos o transtorno mental e de comportamento decorrente do uso de solventes voláteis síndrome de dependência atualmente abstinente porém em ambiente protegido Esse é um diagnóstico encontrado na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde CID com o código F18221 Essa aproximação descritiva e taxonômica dos transtornos mentais ilustra a necessidade de transformar em objeto o sofrimento psíquico com a finalidade de tornálo manipulável e controlável objetivo próprio de uma psiquiatria biomédica de matriz cartesiana referindose àqueles sujeitos e objetos separadamente Por outro lado Figueiredo e Tenório 2002 citando Leguil 1986 apud FIGUEIREDO TENÓRIO 2002 apontam como o diagnóstico psicanalítico procura o maisalém dos fenômenos O diagnóstico é terapêutico e demanda o encontro o diálogo a clínica reclinarse sobre como escuta profunda à beira do leito do sujeito em tratamento Enquanto Saraceno et al 1994 afirmam que na psiquiatria biomédica o diagnóstico serve principalmente para definir a estratégia farmacológica adequada o diagnóstico de matriz psicanalítica é parte intrínseca da própria terapia não se reduz a uma descrição e demanda um processo de produção de subjetividade entre terapeuta e paciente A autorização e a escuta dessa subjetividade possibilitam um elo que acolhe demandas que não são médicas como a do paciente se sentir olhado e cuidado e além disso possibilita ao profissional da psicologia reconhecer as peculiaridades das reações do paciente como ocorre a sua adaptação como respondem as suas resistências de que esperanças e medos elas falam e principalmente como tudo isso estrutura sua individualidade A atenção no que está mais além dos fenômenos permite explorar potenciais criativos seja a internação o tratamento sejam as representações feitas sobre a doença que até então não eram vistos pelo paciente e pela equipe médica A devolutiva em psicologia portanto presume muito mais uma análise das relações e o papel de todos diante delas questionando constantemente que discurso cada um está veiculando ou que papel estamos representando O diagnóstico psicológico nesse processo deve ser mais um balizador do que um fechamento Do contrário pecaríamos contra a abordagem psicodinâmica que convida o paciente a também se questionar e interrogar qual a sua posição em relação à sua internação e ao seu processo de adoecimento Conclusão A busca pelo diagnóstico em psicologia é menos uma conclusão e mais uma oferta da escuta como oportunidade de o paciente elaborar seu conflito de maneira dinâmica Cabenos resgatar o significado da palavra diagnóstico como o conhecimento de algo um aprofundarse ou um ver através do que está exposto Pensando dessa forma fazemos diagnóstico o tempo inteiro A nossa devolução para a equipe multidisciplinar pode ser situacional mas a nossa escuta tem de 44 ser ampla Sendo a psicologia o estudo da alma para fazer um diagnóstico da alma precisamos estar abertos à sua linguagem Para nós tudo o que o paciente diz sinaliza suas saídas criativas para tempos de crise Dar voz ao paciente no hospital é buscar entender como ele vive sua doença e seu tratamento e nisso pode residir a diferença entre adesão ao tratamento ou um estado de isolamento dúvida e desconfiança Certas perguntas permeiam o plano de fundo de nossa escuta como o paciente vive a internação Como ele experimenta o contato com a equipe De que forma as prescrições médicas entram na sua vida Do que ele precisa abrir mão e que importância isso tem para ele e da mesma forma quais novos hábitos ele precisa tomar o que deve acrescentar em sua rotina e quais os desdobramentos disso Nosso trabalho se concentra nesse olhar para além do corpo para além do que está escrito prescrito e dito Isso redimensiona o que parecia evidente O diagnóstico na nossa área pode contribuir como um plano que salvaguarda manobras para o encontro entre o paciente e a instituição Isso no entanto não é mais primordial que a singularidade do encontro em si REFERÊNCIAS ARAÚJO M F Estratégias de diagnóstico e avaliação Psicologia teoria e prática São Paulo v 9 n 2 p 126141 2007 FIGUEIREDO A C TENÓRIO F O diagnóstico em psiquiatria e psicanálise Revista latinoamericana de psicopatologia fundamental São Paulo ano 5 n 1 p 2943 mar 2002 FOUCAULT M Vigiar e punir nascimento da prisão Petrópolis Vozes 1987 SARACENO B ASIOLI F TOGNONI G Manual de saúde mental guia básico para atenção primária São Paulo Hicitec 1994 SIMONETTI A Manual de Psicologia Hospitalar o mapa da doença São Paulo Casa do Psicólogo 2004 A Questão do Sofrimento Psíquico na Clínica Oncológica um Relato da Experiência com Crianças e Adolescentes Capítulo 6 47 O trabalho clínico com crianças e adolescentes no setor de oncologia pediátrica faz suscitar diversas questões acerca do tema sofrimento psíquico Tratase de uma clínica na qual o sofrimento aparece e faz ruídos não apenas para os pacientes infantojuvenis mas também para seus pais e familiares mais próximos e para a própria equipe assistente uma vez que cuidar de crianças e adolescentes com câncer e eventualmente ver esses pacientes morrerem não é tarefa fácil Assim sendo o sofrimento psíquico está sempre colocado nessa clínica O presente relato de experiência pretende debruçarse sobre o sofrimento na perspectiva dos pacientes procurando identificar as particularidades desse tema no contexto oncológico A experiência a ser relatada referese ao período de trabalho como residente de psicologia no serviço de oncologia pediátrica do INCA Nesse período por meio da realização da pesquisa Da sobrevida à vida considerações sobre crianças e adolescentes com câncer a partir da Psicanálise4 os pacientes foram atendidos ambulatorialmente e também durante suas internações hospitalares na enfermaria de modo que seu acompanhamento deuse de maneira longitudinal e bastante próxima possibilitando algumas reflexões sobre o tema Os fragmentos clínicos utilizados aqui têm o aval dos responsáveis legais dos pacientes que concordaram em participar da pesquisa por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido TCLE fornecido pelo Comitê de Ética e Pesquisa CEP do INCA Para crianças e adolescentes o adoecimento por câncer surge em meio ao processo de constituição de uma imagem de uma unidade e de um lugar para si no mundo isso é em meio ao processo de constituição do sujeito A partir da leitura da psicanálise compreendemos que o bebê humano chega ao mundo inacabado e marcado por um desamparo primordial uma vez que sozinho não tem recursos para lidar com as tensões que o agitam e que atravessam seu corpo O bebê portanto depende dos cuidados do Outro5 que nesse primeiro momento da vida é representado pela função materna Freud 1996c circunscreve esse momento da chegada do bebê ao mundo e assinala o estado de desamparo primordial afirmando que o organismo humano necessita de um elemento externo a ele próprio para obter o equilíbrio de suas tensões que nesse momento encontramse totalmente desordenadas O desamparo portanto diz respeito ao desconforto do sujeito frente a um excesso de tensões e excitações com as quais ele próprio não encontra recursos para lidar É somente a partir de uma ajuda alheia FREUD 1996c p 24 que o desamparo pode ganhar algum destino No processo de constituição do sujeito a partir da relação que se estabelece entre o bebê e o Outro materno o estado de desamparo vai dando lugar à constituição de uma imagem na qual o bebê se identifica e a partir da qual reconhece uma unidade afastandose então da experiência de corpo despedaçado LACAN 1998b p 100 Tratase do estádio do espelho e do primeiro esboço do Eu como assinalou Lacan 1998b Eis que a ocorrência do câncer e do tratamento oncológico dáse em meio a esse processo de construção de uma imagem e posteriomente de um lugar para si no mundo simbólico Assim um Eu que vem se constituindo repentinamente se vê diante de um acometimento orgânico 4Pesquisa aprovada pelo CEPINCA e desenvolvida ao longo de um ano como requisito de obtenção de grau no Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do INCA 5Tratase do Grande Outro lugar de constituição do sujeito de seu corpo e de seu sintoma bem como lugar de endereçamento sustentado pelo analista na condução do tratamento LACAN 19581998 48 severo e potencialmente letal O cenário das alterações provocadas pelo surgimento inesperado do câncer parece colocar o sujeito que ainda se encontra em constituição novamente frente a um acúmulo de excitação com o qual não pode lidar FREUD 1969 Diante do efeito potencialmente mortal e destruidor do câncer o estado de desamparo parece se reatualizar e se colocar como uma das principais marcas do sofrimento psíquico nessa clínica Todavia cabe assinalar o desamparo vivenciado no contexto da oncologia dáse sob circunstâncias bastante diferentes do desamparo experimentado em adoecimentos neuróticos por exemplo No câncer algo escapa à simbolização do aparato psíquico e permanece como um excesso que é inassimilável LACAN 1998c p 60 para o sujeito pois por mais que se tente não é possível encontrar palavras que deem conta de representálo por completo Ainda assim o que parece apaziguar esse sofrimento é justo a tentativa e o esforço do sujeito de procurar construir algum sentido e algumas saídas diante daquilo que abalou suas referências e sua própria imagem Na clínica com crianças e adolescentes escutamos algumas referências no discurso de nossos pacientes que nos remetem à dimensão de inassimilável desse adoecimento Alguns fragmentos auxiliam essa ilustração como o caso de L uma adolescente de 17 anos que tem o diagnóstico de osteossarcoma e em sua primeira internação encontrase extremamente angustiada diante da possibilidade de amputação da perna L esforçase para encontrar palavras que definam e dêem algum sentido a seu estado naquele momento e então diz eu não sei mas parece que tiraram meus pés do chão e parece que eles estão flutuando Eu tô desesperada Outro adolescente A 16 anos durante o atendimento relata o que experimenta diante do mesmo diagnóstico estou confuso pensando um monte de coisa é um monte de pensamento é tanta coisa que eu não sei nem dizer não consigo falar nada Segundo Costa e Cohen 2012 a doença oncológica na infância e na juventude é um acontecimento que dificulta a simbolização e que se caracteriza pelo encontro com o real tyché já que o sujeito está sem palavras COSTA COHEN 2012 p 60 Frente ao sofrimento sob a forma de desamparo a possibilidade de construir um vínculo com o Outro é fundamental No desamparo ocorre uma abertura ao Outro que é reconhecido como aquele que supostamente tem a possibilidade de nomear e dar algum destino ao desconforto experimentado pelo sujeito Assim a experiência de desamparo remete não só ao caos psíquico mas também a um movimento do sujeito que endereça ao Outro seu desconforto abrindo espaço para que alguma construção de sentido da experiência desprazerosa aconteça Barros 2000 considera que diante de uma situação traumática o que a psicanálise pode oferecer é uma escuta que possibilite à criançasujeito simbolizar pela palavra nomeando esta ruptura e significando sua perda de modo a integrála na sua história no seu discurso BARROS 2000 p 91 Na clínica infantojuvenil é possível observar que a construção de um vínculo do paciente com a equipe assistente ao longo do tratamento é fundamental pois pode auxiliar no manejo do desamparo e do sofrimento psíquico A prática clínica ensina que quando esses pacientes encontram profissionais advertidos da importante função do brincar o sofrimento pode ganhar algum sentido e por isso fazer parte do universo do tratamento de forma menos dolorosa As crianças e os adolescentes por meio das brincadeiras buscam dar algum lugar ao seu sofrimento de modo que na maioria das vezes o seu brincar relacionase diretamente com as vivências do adoecimento e do tratamento oncológico Freud 1996a p 29 assinala que se o médico examina a garganta de uma criança ou faz nela alguma pequena intervenção podemos 49 estar inteiramente certos de que essas assustadoras experiências serão tema da próxima brincadeira Isso revela que os pacientes infantojuvenis tendem a repetir as situações dolorosas como uma tentativa de simbolizar e de recolocarse diante do sofrimento Tratase de seu modo bastante peculiar de inventar saídas para o desamparo O brincar construído e inventado pela criança comparece como uma ferramenta valiosa de simbolização Freud 1996b p 79 afirma que ao brincar a criança cria um mundo próprio ou melhor reajusta os elementos de seu mundo de uma nova forma que lhe agrade Ainda de acordo com Freud o brincar é uma forma de dar outro colorido à realidade As saídas construídas pelos pacientes infantojuvenis apontam a brincadeira como um importante recurso frente ao que se tornou demasiadamente desagradável em suas vidas O fragmento clínico de M uma menina de seis anos com o diagnóstico de astrocitoma pilocítico6 pode ilustrar o importante papel do brincar diante do sofrimento psíquico M encontrase às voltas com a iminência da realização de uma neurocirurgia para retirada do tumor A pequena paciente muito esperta e atenta havia ficado bastante impactada ao presenciar o cirurgião conversando com seu pai sobre a retirada da massa de sua cabeça Nada fazia com que o humor e a ansiedade de M melhorassem após a notícia e a descrição da cirurgia Durante um de seus atendimentos M interessase especialmente por um apontador em formato de um cachorrinho que abria o focinho para fazer ponta no lápis e depois o fechava voltando ao normal Observando a curiosidade da paciente que passa a brincar com o apontador e a cuidar dele como um cachorrinho de fato pergunto o que a impressiona tanto M então passa a repetir o gesto de abrir e fechar uma parte da cabeça do bichinho e surpreendese quando ele volta ao normal mesmo após as mudanças necessárias em sua cabeça Digo a ela que a cirurgia pode ser algo parecido com aquela brincadeira pois o médico abre a cabeça fecha e depois o paciente pode voltar a brincar M sorri volta a brincar e passa a falar com seus pais e com a equipe sobre o medo da cirurgia pedindo a nós que a ajudássemos a construir algum sentido para aquilo que ela não conhecia e temia A partir das brincadeiras a pequena M pôde se ressituar diante do sofrimento e construir significados para o que a afligia O que chama a atenção na clínica com crianças e adolescentes são as estratégias e os recursos que esses sujeitos constroem ao longo do tratamento se encontram um interlocutor advertido da função de sua palavra e do seu brincar de modo a não sucumbir à angústia e também de modo a assumir um papel no tratamento diferente daquele de mero objeto de intervenção Trata se da construção como observada nos atendimentos psicológicos desses pacientes de recursos simbólicos como as brincadeiras as histórias e a palavra que procuram contornar o desamparo e o sofrimento inaugurados com a descoberta do diagnóstico nesse momento da vida COSTA 2014 Ao longo do cuidado oferecido a nossos pacientes e a seus familiares evidenciamos que eles se deparam com a aridez de um diagnóstico que produz marcas indeléveis na vida O sofrimento psíquico como vimos está relacionado ao estado de desamparo dado o excesso que se instala na vida a partir do encontro com algo potencialmente mortal e que abala as construções simbólicas a partir das quais o sujeito vinha se constituindo até então Para realizar um trabalho clínico diante do sofrimento psíquico vivenciado pelos pacientes infantojuvenis entendemos que é preciso a presença de alguém que entenda que brincar é coisa 6 Tumor do Sistema Nervoso Central SNC 50 séria pois quando um espaço de palavra e de brincadeira é reconhecido e estabelecese em meio aos procedimentos médicos invasivos e ao próprio avanço da doença isso que é da dimensão simbólica tem o poder de talvez construir algum sentido para o inassimilável COSTA 2014 A formação e o trabalho em saúde vêm através dos tempos concretizandose a partir de um modelo de atenção à saúde chamado modelo biomédico que privilegia a técnica a especialização e o fazer individualizado de cada categoria profissional Essa concepção apresenta limitações posto que ao priorizar a dimensão biológica do cuidar desconsidera as demais dimensões que se articulam na formação do ser humano psicológica social histórica e cultural Tratase de uma visada para a cura da doença já estabelecida isto é centrada no hospital e na figura do médico em detrimento das demais categorias profissionais da saúde Essa visão hierarquiza o conhecimento posto que valoriza o saber de uma categoria profissional e leva a uma fragmentação do cuidado ao favorecer a constituição de currículos organizados em saberes disciplinares compartimentados que pouco ou nada interagem entre si No processo de trabalho em saúde Merhy 2000 p 109 propõe o conceito de valises que representam caixas de ferramentas tecnológicas enquanto saberes e seus desdobramentos materiais e nãomateriais Tratase das tecnologias duras que estão representadas por equipamentos exames imagens das tecnologias leveduras pelos saberes e das tecnologias leves presentes no espaço relacional trabalhadorusuário implicadas com a produção das relações entre dois sujeitos Uma formação fragmentada e hierarquizada mostrase na prática profissional ou seja os profissionais executam tarefas de assistência sem refletir acerca do que significa o trabalho Nesse sentido desconsiderar o aspecto relacional entre profissional e paciente e entre os próprios profissionais fere os princípios do SUS entre eles a integralidade da atenção à saúde Para superar esse modelo de formação diferentes ações vêm sendo implementadas no sentido de reorientar a formação profissional para a saúde Uma dessas ações foi a instituição da Residência Multiprofissional em Saúde pela Portaria Interministerial Ministério da Educação Ministério da Saúde nº 2117 de 3 de novembro de 2005 destinada às categorias profissionais que integram a área da saúde excetuada a médica Já a Portaria Interministerial nº 1077 de 12 de novembro de 2009 dispõe que os programas de Residência Multiprofissional sejam norteados pelos princípios e diretrizes do SUS e orienta que a condução desses programas ocorra segundo alguns eixos norteadores Alguns desses eixos referemse a questões pedagógicas em que se considerem o profissional em formação como sujeito do processo ensinoaprendizagem trabalho os cenários de aprendizagem voltados para a linha de cuidado e um sistema de avaliação constitutiva favorecendo a formação integral e interdisciplinar de saberes e práticas com o intuito de desenvolver competências compartilhadas ou seja solidificando o processo de formação para o trabalho em equipe Cabe aqui desenvolver uma breve reflexão sobre o que se entende como uma formação interdisciplinar O nível de interação entre saberes é discutido por diversos autores que trazem diferentes classificações Carlos 2007 p 3637 afirma que a classificação mais aceita é a proposta por Jantsch que descreve quatro níveis de interação O primeiro é denominado multidisciplinaridade Essa se caracteriza por uma ação simultânea de diversas disciplinas em torno de uma temática comum Essa ação porém é fragmentada na medida em que não se explora a relação entre os conhecimentos disciplinares e não há nenhum tipo de cooperação entre as disciplinas Um nível imediatamente superior seria a pluridisciplinaridade em que se observa algum tipo de interação entre os conhecimentos embora eles ainda se situem em 51 um mesmo nível hierárquico Não há ainda nenhum tipo de coordenação proveniente de um nível hierarquicamente superior O terceiro a interdisciplinaridade caracterizase pela presença de um princípio comum a um grupo de disciplinas conexas definido no nível hierárquico imediatamente superior o que introduz a noção de finalidade Assim nesse nível de interação há cooperação e diálogo entre as disciplinas do conhecimento tratandose de uma ação coordenada que pode desse modo assumir variadas formas O último nível de interação descrito por Jantsch é a transdisciplinaridade proposta relativamente recente no campo epistemológico Pode ser definida como uma espécie de coordenação de todas as disciplinas e interdisciplinas sob um eixo comum Aí ocorre uma espécie de integração de vários sistemas interdisciplinares num contexto mais amplo gerando uma interpretação mais holística dos fatos e fenômenos O conceito de interdisciplinaridade é controverso mesmo entre seus teóricos CARLOS 2007 Contudo a ideia geral remete à interação entre áreas ou disciplinas Oriunda da educação tradicional a formação dos profissionais de saúde caracterizase por conteúdos abordados em saberes disciplinares compartimentados que pouco ou nada interagem entre si O ensino no INCA até 2010 caracterizavase pelo modelo biomédico que como dito anteriormente privilegia a técnica a especialização e o fazer individualizado de cada categoria profissional Os cursos eram então oferecidos na modalidade de especialização uniprofissional organizada em disciplinas isoladas A proposta do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do INCA é de substituição do modelo disciplinar fragmentado em que não há cooperação entre os diferentes saberes por uma abordagem interdisciplinar supondo como tema transversal a integralidade do cuidado Com o objetivo de especializar profissionais da saúde na área da oncologia em 2010 o INCA instituiu o Programa de Residência Multiprofissional que reúne as áreas profissionais de enfermagem farmácia fisioterapia nutrição odontologia psicologia e serviço social Em 2013 iniciouse a primeira turma incluindo a física médica O curso constituise em ensino de pós graduação Lato Sensu caracterizado por aprendizado em serviço com carga horária de 5760 horas sendo 1152 horas 20 destinadas às atividades teóricas e 4608 horas 80 às atividades práticas cumpridas em 60 horas semanais com um dia de folga em regime de dedicação exclusiva com duração de dois anos Diferente da formação tradicional oferecida até então o atual programa adota uma nova formatação Para tanto os profissionais das oito áreas envolvidos com o ensino na instituição assumiram a responsabilidade de elaboração e constante avaliação de um currículo que busca articular os saberes das diversas categorias baseado na integralidade do cuidado sob uma abordagem interdisciplinar O programa está estruturado de acordo com os dispositivos legais em um eixo transversal e oito eixos específicos correspondentes a cada área profissional O eixo transversal comum a todos os discentes é composto por nove módulos que abordam temas cruciais para a formação dos residentes favorecendo a troca entre as categorias em uma reflexão sobre a prática e constituindose em lugar privilegiado da interdisciplinaridade Os eixos específicos referemse aos conhecimentos inerentes a cada área profissional Tendo em vista a discussão acima o plano de curso foi elaborado entendendo que a interdisciplinaridade tem como objetivo levar todo profissional a identificar as fronteiras de seus saberes incorporando os de outras ciências Sendo assim elas se complementam convergindo para objetivos comuns FAZENDA 2006 Essa visão rompe como foi visto com o modelo de assistência na perspectiva tecnicista e contribui para a transformação das práticas Desse modo permite aos discentes das diferentes áreas de conhecimento a oportunidade de se relacionar com 52 os diversos contextos de forma interdisciplinar e integral Isso vem favorecer a prática em que o olhar do profissional é o sujeito seja ele o paciente ou o colega de equipe e não a doença atendendo à necessidade integral de cuidado Reconhecemse os avanços na direção da formação empara um trabalho interdisciplinar No entanto isso ainda não se concretizou plenamente e o exemplo princeps desse fato é a não inclusão da categoria médica nos Programas de Residência Multiprofissional Ainda que a legislação estabeleça uma demarcação sua efetivação não está dada e requer uma construção ou seja depende de um trabalho que é em si mesmo interdisciplinar REFERÊNCIAS BARROS M L G A Considerações sobre um caso clínico In MOURA M D Org Psicanálise e Hospital 2 ed Rio de Janeiro Revinter 2000 COSTA M R L COHEN R H P O sujeitocriança e suas surpresas Trivium estudos interdisciplinares Rio de Janeiro v 4 n 1 jun 2012 COSTA N G Da sobrevida à vida considerações sobre a criança e o adolescente com câncer a partir da Psicanálise 2014 Trabalho de Conclusão de Curso Especialização Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva Rio de Janeiro 2014 FREUD S Além do princípio do prazer In Além do princípio do prazer psicologia de grupo e outros trabalhos 19201922 Rio de Janeiro Imago 1996a Edição standard brasileira de obras pscicológicas completas de Sigmund Freud v 18 FREUD S Escritores criativos e devaneios In Gradiva de Jansen e outros trabalhos 19061908 Rio de Janeiro Imago 1996b Edição standard brasileira de obras pscicológicas completas de Sigmund Freud v 9 FREUD S Inibição sintoma e ansiedade In Pequena Coleção das Obras Completas de Freud Rio de Janeito Imago 1969 FREUD S Projeto para uma psicologia científica In Publicações prépsicanalíticas e esboços inéditos 18861889 Rio de Janeiro Imago 1996c Edição standard brasileira de obras pscicológicas completas de Sigmund Freud v 1 LACAN J A direção do tratamento e os princípios de seu poder In Escritos Rio de Janeiro J Zahar 1998a LACAN J O estádio do espelho como formador da função do eu In Escritos Rio de Janeiro J Zahar 1998b LACAN J O Seminário livro 11 os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 2 ed Rio de Janeiro J Zahar 1998c O Sujeito e o Combate ao Câncer Possibilidades de Defesa Contra o Ataque de Um Inimigo Silencioso Capítulo 7 55 Entre as possibilidades vivenciadas pela clínica encontrase a de investir no aprofundamento acerca da compreensão dos modos de enfrentamento do sofrimento humano Neste trabalho apresentamos o recorte de um estudo que se propõe teóricoclínico tendo em vista que cada sujeito reage de modo diferente às exigências da vida e às situações ditas traumáticas Sontag 1984 afirma que a vida possui um lado sombrio porque os sujeitos vivenciam ao longo de seu curso a doença Uma das possibilidades de enfrentamento dessa cruel realidade é o desenvolvimento de recursos metafóricos em torno do adoecimento O câncer é uma enfermidade considerada misteriosa e implacável um mal não compreendido de evolução progressiva e silenciosa como um inimigo que sorrateiramente se instala em terreno alheio para internamente sinalizar sua presença e produzir graves danos Desde a fase de investigação diagnóstica o sujeito parece fadado a sofrer uma série de transformações de ordem física social ou emocional isso porque de acordo com Gaspar 2011 p 107 se as outras doenças causam sofrimento o câncer parece destruir a pessoa É compreensível portanto a linguagem bélica desenvolvida em torno do tratamento oncológico do combate ao câncer conforme exemplifica Gaspar 2011 com grande riqueza metafórica O câncer é considerado um inimigo quando se recebe o diagnóstico Os médicos os soldados combatentes As armas são as baterias de exames e procedimentos invasivos solicitados os tratamentos cirurgia quimioterapia radioterapia Os remédios os salvadores da vida é o póstratamento quando o paciente está assintomático No entanto outras células podem tornarse invasivas e atacar o sistema de defesa do corpo são as recidivas eou progressão do câncer O cirurgião é o coronelcomandante desta batalha E a morte do paciente significa que se perdeu a guerra cuidados paliativos GASPAR 2011 p 107 A possibilidade de identificar refletir sobre e compreender os mecanismos psíquicos que se organizam com a inserção do sujeito na cultura vai se delineando a partir da possibilidade de desenvolver a capacidade de escuta do que é trazido pelo paciente em seu discurso seu sofrimento e seu processo de adoecimento Em uma pesquisa abrese espaço de articulação entre clínica e teoria sendo necessário perceber e atentar para as sutilezas a implicação ou não do sujeito com a sua própria história e seu modo de operar no mundo levandose em consideração que em nossa cultura as sintomatologias confundemse e mesclamse sendo essas que nos indicam o modo de funcionar daquele que solicita algum tipo de ajuda profissional E então a partir daí constituir conhecimento sobre os modos de intervenção clínica nos diferentes dispositivos Na experiência clínica aquilo que se impõe à nossa escuta é o modo como cada um conta sua história como a viveu e como foi vivido por ela Nessa narrativa apresentamse a realidade psíquica do sujeito com sua capacidade representacional suas possibilidades de defesa sua capacidade desejante o modo de ligação oferecido pelo grupo familiar a que pertence suas características afetivoemocionais a dimensão do funcionamento psíquico do grupo atravessado pelo contexto sóciohistórico e cultural em que se constitui Observamos juntamente com Green 2010 que aquele que sofre não consegue saber do que sofre nem do que o faz sofrer Diante do diagnóstico de câncer ou mesmo de uma evolução violenta o sujeito perde a certeza de si Não é raro ouvirmos pacientes dizerem travar uma batalha 56 contra o inimigo O câncer aparece como o negativo de si próprio uma vez que age em silêncio e permanece em muitas situações irreconhecível Nesse contexto metaforicamente podemos compreender o câncer como uma espécie de ente que habita o corpo com a capacidade de provocar uma série de modificações em seu funcionamento mas que materialmente não pode ser visto Percebese então que sendo o câncer uma espécie de inimigo invisível desconhecido e inominável o outro a ser atacado e objeto alvo de destruição passa a ser o próprio corpo em uma dinâmica destrutiva A complexidade dessa ação passa pela impossibilidade de discriminação euoutro e pelo prejuízo na capacidade representativa Esse último desenvolvese a partir de um momento muito primitivo ainda na fase da constituição das experiências sensórioperceptivas Para Carvalho 2004 as representações de coisa que são as mais primárias são pouco mobilizáveis pelo aparelho psíquico e não participam de forma significativa do processo de associações de ideias Entretanto apesar de no início as representações de palavra assemelharemse à representação de coisa observase uma mudança em termos de qualidade adquirindo significados de modo a contribuir para a instauração de uma comunicação simbólica interna e externa ao aparelho psíquico de modo a contribuir para a instauração de uma comunicação simbólica interna Eu e externa Outro ao aparelho psíquico Segundo McDougall 1996 quando há algum aspecto que entrave esse processo tais como lutos não elaborados da mãe ou mesmo afetos penosos ou intoleráveis circulantes silenciosamente no entorno da criança instaurase um comprometimento da capacidade de integração entre psique e soma O que importa aqui é perceber que em relação ao paciente oncológico há situações que ultrapassam a capacidade do sujeito de reagir uma vez que se apresenta empobrecido psiquicamente Assim sem a possibilidade de ter uma ligação significativa com movimentos representativos e com a ausência de um instrumental psíquico de ordem simbólica para lidar com seu adoecimento a desorganização psicossomática apresentase através do adoecimento do corpo e a batalha dáse como uma luta inglória Como então defenderse do ataque silencioso desse inimigo diante de tão precária realidade psíquica Nessa discussão acerca do trabalho clínico com situações limites tal como o que a clínica oncológica apresenta incluímos entre os norteadores uma premissa desenvolvida por Freud 1927 em O Futuro de uma Ilusão a qual diz que se o sujeito tem poucos recursos ou um único suporte não se pode despojálo disso que ele tem sem ter nada melhor a lhe oferecer em troca Com isso entre a realidade e a fantasia que sustenta o mundo fantasmático de cada sujeito existem possibilidades que precisam ser reconhecidas e trabalhadas como recurso sustentador Alguns sujeitos conseguem enfrentar uma dor psíquica ou um sofrimento de ordem física ou narcísica com mais recursos que outros Esses em função da precariedade psíquica e afetiva apresentam certa dificuldade em lidar com a dor nos seus diversos aspectos Nesse sentido o adoecimento somático pode ser visto a partir de diversas perspectivas como uma medida de proteção de autoataque de descarga de tentativa de separação ou de manutenção de um vínculo de retraimento ou de desvio da dor psíquica AZEVEDO 2006 Podemos apontar o objeto ou mais precisamente o Outro fundamental como o gerador do impasse psíquico Na clínica é por meio do discurso do sujeito que encontramos uma dificuldade em demarcar a distância e a fronteira entre o eu e o Outro e entre o interno e o externo Nesses casos a indiferenciação é a marca das relações A questão é que os impasses inerentes a esse objeto 57 transformarseão em impasses para o eu o que poderá vir a comprometer a constituição da subjetividade e a projetarlhe uma falsa estabilidade É nesse sentido que na clínica aparece o vazio de algo que não se constituiu adequadamente em termos do funcionamento psíquico Esse aspecto pode ser observado pelas histórias de violência física e simbólica de desamparo e de solidão Há que se realçar a importância das histórias de tragédias familiares dramas que marcam profundamente o funcionamento psíquico dos membros da família e consequente seus modos de operar no mundo De qualquer modo uma vez que o humano depende fundamentalmente de um Outro para constituirse este Outro passa a ser considerado o estranho em si na origem do sintoma O adoecimento oncológico tal qual se apresenta na clínica revela a relação com o intraduzível da proximidade da morte do inimigo cujo potencial destrutivo é desconhecido do fantasma que silenciosamente invade o corpo que deforma ameaça e que não pode ser expulso desestabiliza na maioria das vezes a possibilidade de uma mínima mediação de um eu cujo funcionamento encontrase fragilmente sustentado contudo em uma aparente integração Vale ressaltar a estreita relação entre esses conteúdos apreendidos na clínica com o que foi anteriormente mencionado acerca das metáforas da doença estudo desenvolvido por Sontag 1984 Nesse caso o corpo do sujeito tomado por um fenômeno sobre o qual não se tem controle deixao absolutamente desamparado sem instrumental bélico para combatêlo O trabalho aqui seria o de tentar criar junto ao sujeito a partir da constituição de um vínculo de trabalho sustentado pela transferência institucional e pessoal um lugar em que se pudesse pensar a sua condição de suportabilidade do sofrimento O objetivo do sujeito seria então o de recriar ou criar se possível recursos para o enfrentamento de seu próprio fantasma Esse trabalho requer um manejo transferencial a partir das pequenas percepções no campo da virtualidade das sensações inomináveis Pois sabese que aquilo que é da ordem do inominável para o paciente aparece para o profissional encarregado da escuta clínica desse sujeito a partir das falhas do discurso e muitas vezes de seu próprio corpo do seu próprio malestar tal como trabalhado por Fontes 2010 em sua proposta de uma psicanálise do sensível Essa proposta demanda muito mais trabalho ao analista na medida em que tem de intervir mais diretamente na situação clínica Quanto mais crítica a condição do paciente maior a necessidade de um balizamento entre presença e ausência entre fala e silêncio entre implicação e reserva FIGUEIREDO COELHO JÚNIOR 2008 FIGUEIREDO 2012 Entretanto vale dizer esses aspectos compõem todo e qualquer trabalho terapêutico não se tratando portanto de uma especificidade do trabalho com pacientes oncológicos Considerações finais A experiência do sofrimento humano quando reduzida ao silêncio exacerba o sentimento de desamparo e de vulnerabilidade diante daquilo que o arrebata mas quando compartilhada desperta a possibilidade de poder lidar com sentimentos perceptíveis ou não acessíveis ou não mas que incomodam e fragilizam Com isso a valorização da escuta e as possibilidades de acesso e de intervenção organizamse a partir da relação que advém de um encontro entre aquele que escuta e o que é escutado cuja dupla se apresenta em geral com o trabalhador da saúde e o paciente Ressaltamos que qualquer resquício ou indício de potência do eu para agir dáse nesse encontro Na perspectiva do cuidado o acolhimento oferecido não é proporcional ao sofrimento sendo necessário o reconhecimento da legitimidade desse último E com isso a compreensão dos modos 58 de acolhimento e a delicadeza implicada na escuta devem ser aspectos relevantes no atendimento ao paciente oncológico É por meio da escuta dos aspectos repetitivos dos vazios no discurso e dos fragmentos de história da incapacidade ou da dificuldade de estabelecerse vínculos da alienação da incapacidade de associação dos silêncios das situações repetitivas de violência e de adoecimento que são dadas ao analista as pistas sobre a existência de algo que se encontra encriptado em estado bruto em estado livre aguardando silenciosamente o momento de retornar procurando na repetição uma busca de sentido Importa lembrar que toda pulsionalidade é dirigida a um Outro a um objeto e espera ser recebida por esse Outro Encontramos então uma situação perigosa quando é o próprio corpo do sujeito o receptáculo das moções destrutivas Essa forma de manifestação sintomática não seria simbólica mas uma tentativa de busca de sentido muito mais primitiva na qual o corpo faz seu próprio pensamento ou seja o corpo manifesta por meio de seus recursos por mais primitivos que sejam aquilo que não pode ser dito ou dramatizado A escuta do sujeito pode ser então uma importante ferramenta para a ressignificação do seu sofrimento e um caminho para o estabelecimento de novos recursos psíquicos de enfrentamento ou de fortalecimento dos já existentes e atuantes em seu psiquismo Assim podemos compreender a escuta dentro do campo de batalha contra o câncer como uma arma modesta e silenciosa mas se considerarmos as ressonâncias de seus efeitos deveras potente e eficaz para o combate empreendido REFERÊNCIAS AZEVEDO M M A Segredos que adoecem um estudo psicanalítico sobre o críptico adoecimento somático na dimensão transgeracional 2006 170 f Tese Doutorado em Psicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro Rio de Janeiro 2006 CARVALHO V A A questão do câncer In CARVALHO F C VOLICH R M Org Psicossoma I psicanálise e psicossomática São Paulo Casa do Psicólogo 2004 FIGUEIREDO L C As diversas faces do cuidar novos ensaios de psicanálise contemporânea São Paulo Escuta 2012 FIGUEIREDO L C COELHO JUNIOR N Ética e técnica em Psicanálise São Paulo Escuta 2008 FONTES I Psicanálise do sensível fundamentos e clínica São Paulo Ideias e Letras 2010 FREUD S O futuro de uma ilusão 1927 In FREUD S Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud Edição Standard Brasileira v 21 Rio de Janeiro Imago 2006 GASPAR K C Psicologia Hospitalar e a Oncologia In ANGERAMICAMON V A Org Psicologia da saúde um novo significado para a prática clínica 2 ed rev ampl São Paulo Cengage Learning 2011 GREEN A O trabalho do negativo Porto alegre Artmed 2010 McDOUGALL J Teatros do corpo o psicossoma em psicanálise São Paulo Martins Fontes 1996 SONTAG S A doença como metáfora Rio de Janeiro Graal 1984 O Que Fazer Quando o Paciente Oncológico TornaSe Psicótico e Recusa Tratamento Psiquiátrico O Estudo de Um Caso Sobre a Colaboração Multidisciplinar e a Integração do Support System7 Capítulo 8 7 A autora escreve sobre sua experiência clínica no Bellevue Hospital Center em Nova Iorque Estados Unidos Dessa forma optouse por manter algumas expressões em inglês a fim de preservar o sentido original nota das organizadoras 61 Introdução Um diagnóstico de câncer é a causa de estresse em pessoas atingidas pela doença Esse estresse é o resultado da ameaça que o diagnóstico representa e que usualmente causa um desequilíbrio psíquico que se manifesta em distúrbios da saúde mental como depressão e ansiedade as quais são consideradas reações emocionais comuns em pacientes oncológicos recentemente diagnosticados STAFFORD et al 2013 Contudo quando muito acentuadas a depressão e a ansiedade podem resultar em uma crise com regressão psicológica VIEDERMAN PERRY 3rd 1980 que afeta a qualidade de vida a aderência ao tratamento oncológico e o cuidado de si próprio bem como contribui para uma disfunção física social e familiar e uma piora nos sintomas relacionados à doença e na vontade de viver MICHELLl et al 2011 RAYNER et al 2011 A regressão psicológica é relacionada ao medo que a doença impõe ao paciente O grau da regressão depende da dinâmica e dos recursos da estrutura psíquica que se desenvolve no decorrer da vida fundamentada na interação da predisposição biológica do paciente e de experiências durante seu crescimento Independentemente do grau da regressão por temor ao câncer mecanismos de defesa são ativados com a função de proteger o paciente de uma realidade que causa um insulto e ameaça o seu corpo e a sua existência Contudo os mecanismos de defesa manifestamse em formas que podem trabalhar a favor ou contra a adaptação ao diagnóstico de câncer e isso depende do grau da regressão e do nível de intensidade da depressão e da ansiedade Quando o paciente tem uma predisposição biológica e psicológica ao estresse incluindo uma disfunção em recursos psicológicos para lidar com situações estressantes que o levam a um alto nível de regressão a depressão e a ansiedade podem causar um desequilíbrio psíquico intenso que pode levar o paciente a apresentar sintomas de psicose que se manifestam de diferentes formas como a paranoia Se considerarmos apresentações psicóticas não somente um sintoma psiquiátrico característico de um extremo desequilíbrio psíquico mas também um mecanismo de defesa em um alto estado de vulnerabilidade o qual leva o paciente a desenvolver uma desconfiança em relação à equipe oncológica e aos tratamentos oferecidos para protegerse do medo causado pela doença a paranoia tornase um meio de informações para o cuidado oncológico A paranoia informa sobre a necessidade não só de medicação como também da colaboração e participação de todos os profissionais e a integração do support system do paciente para que o resultado do tratamento oncológico favoreçao Como a equipe médica oncológica em geral não tem o conhecimento e a habilidade para trabalhar com um paciente que apresenta tal extremo desequilíbrio psíquico o psicólogo torna se um catalisador facilitando o desenvolvimento do relacionamento entre o paciente e a equipe médica que se torna parte do support system do paciente além da família e da rede social Muito sabemos sobre a indispensável importância do support system do paciente com câncer USTA 2012 porém não encontramos pesquisas sobre as questões da dinâmica do relacionamento entre o paciente e seu oncologista ou cirurgião nem sobre as intervenções psicológicas para pacientes que abrem um quadro psicótico cuja etiologia não é orgânica em contexto oncológico Contudo há várias investigações sobre intervenções psicofarmacológicas as quais usualmente são rejeitadas por pacientes que nunca tiveram tratamento psiquiátrico antes do diagnóstico oncológico A paranoia em si também contribui para a desconfiança do tratamento psicofarmacológico levando a psicologia a uma posição de exploração sobre possibilidades de intervenções para promover a sobrevivência do paciente oncológico com um quadro psicótico 62 Esse texto relata o caso de uma paciente recentemente diagnosticada com câncer de mama que se tornou psicótica no decorrer do seu tratamento oncológico porém recusou cuidado psicofarmacológico O caso ilustra as intervenções psicológicas aplicadas para mobilizar o seu support system e fortalecer o relacionamento entre a equipe e a paciente Caso Uma paciente de 62 anos foi encaminhada ao serviço de psicologia pela cirurgiã de mama do centro de câncer do Bellevue Hospital Center da Cidade de Nova Iorque onde realiza tratamento para uma avaliação do seu estado emocional Havia recentemente sido diagnosticada com câncer de mama de estádio III estava acompanhada por uma amiga de infância e solicitou que essa estivesse presente durante a consulta Muito assustada com o seu recente diagnóstico de câncer a paciente chegou ao consultório parecendo extremamente ansiosa e preocupada com documentos dados a ela antes dessa consulta que continham informações sobre a cirurgia da mama e os tratamentos oncológicos Durante o atendimento ela mexia e remexia os documentos de uma forma desorganizada e confusa com uma aparência de obsessão e compulsão Parecia estar imensamente desesperada para restaurar o controle sobre algo desconhecido que havia se tornado uma grande ameaça ao seu ser Sua amiga também observou o seu comportamento e tentou redirecionála à entrevista expressando uma séria preocupação pela paciente Suas respostas eram evasivas e curtas com quase nenhuma elaboração Entretanto a paciente demonstrou entender que tinha câncer com estádio III em sua mama esquerda e que o plano seria que ela começasse quimioterapia para diminuir o tamanho do tumor permitindo uma mastectomia no futuro próximo seguida por radioterapia Ela se culpava excessivamente por não ter procurado um médico quando sentiu um nódulo no seu seio tempos atrás Sua amiga confirmou que a comunidade da igreja católica que a paciente frequentava e o padre da sua paróquia insistiram para que ela viesse à clínica quando notaram que ela sentia dor Quando perguntado à paciente o que poderia ter interferido com a sua vinda à clinica ela respondeu não sei resposta comum a muitas perguntas Contudo a paciente era uma pessoa agradável que parecia estar fazendo um grande esforço para cooperar com a entrevista Ela era a única filha de um casal americano muito religioso que frequentava a mesma igreja desde quando a filha nasceu Ela sempre morou com os seus pais que já haviam morrido e nunca se casou ou teve filhos Graduouse na faculdade de administração e trabalhava como administradora de uma loja O seu círculo social incluía amizades da igreja e uma prima que morava em outro estado Além de trabalhar todos os dias cantava no coro da sua igreja nos fins de semana e trabalhava como voluntária para ajudar a sua paróquia Sua vida social era restrita ao mesmo bairro onde sempre morou e referiuse somente a um relacionamento passageiro com um homem anos atrás Ela descreveu o seu relacionamento com seus pais sendo tão próximo que ela dormia com eles até os 14 anos Sua amiga confirmou que a mãe da paciente era extremamente protetora e não deixava sua filha fazer nada em casa A paciente revelou que ela não sabia cozinhar lavar ou passar roupas que comprava comida pronta e levava toda sua roupa a uma lavanderia Ela negou história psiquiátrica pregressa apesar do seu interessante histórico psicossocial e um comportamento bem incomum durante a consulta Negou também um histórico psiquiátrico em sua família Contudo a paciente descreveu sintomas de depressão e ansiedade que eram além do esperado em relação ao diagnóstico de câncer Como a paciente estava no começo de uma longa jornada contra o câncer pelo seu histórico 63 psicossocial além de sua apresentação psicológica em reação ao seu recente diagnóstico de câncer as recomendações feitas na consulta foram sobre psicoterapia semanal e um encaminhamento a uma consulta com o psiquiatra do mesmo centro de câncer A paciente compareceu à consulta psiquiátrica porém não quis tomar os remédios para depressão e ansiedade recomendados pelo médico por medo de que lhe fizessem mal a despeito das várias intervenções explorando as suas preocupações e as orientações quanto à medicação No entanto o seu quadro psíquico começou a agravarse com uma progressiva regressão acompanhada por uma piora na sua depressão e ansiedade a qual não correspondia a intervenções psicológicas como Cognitive Behavioral Therapy CBT terapia cognitivo comportamental e Supportive Psychotherapy Psicoterapia de apoio Durante esse período a sua oncologista informou que a paciente estava tendo dificuldades para iniciar a quimioterapia Ela não havia comparecido ao seu primeiro tratamento e apresentava comportamentos estranhos em suas visitas oncológicas A paciente evitava conversar com a sua oncologista sobre o câncer e parecia estar desenvolvendo delírios que se fixavam no seu estômago no qual ela acreditava que havia algo de errado sem evidência médica e insistia tratálo antes de começar a quimioterapia Explicações sobre o que a apresentação da paciente representava foram dadas à oncologista que compreendeu que a sua fixação no estômago era uma forma regressiva de comunicar inconscientemente que ela estava ansiosa com o tratamento e que para conseguir iniciálo precisaria cuidar primeiro da ansiedade Além do mais a paciente apresentava um intenso medo dos pacientes na sala de espera o que a levava a não ter tolerância em esperar por sua visita médica Ela também demonstrava medo das enfermeiras e de outros membros da equipe com quem ela evitava qualquer forma de contato Todos esses comportamentos paranoicos e o alto nível de ansiedade causavam barreiras no seu tratamento oncológico demandando intervenções imediatas A integração do seu support system incluindo a participação da sua oncologista e sua cirurgiã no seu plano de tratamento psicológico tornouse não só uma tentativa para controlar o seu intenso medo e grave ansiedade mas também para motivar a sua aderência ao tratamento oncológico e iniciar o tratamento psiquiátrico A definição do support system tornouse mais ampla do que o que é colocado na literatura sobre esse tema em psicooncologia Não só sua prima amizades e o padre da igreja como também a psicóloga a oncologista e a cirurgiã todos se tornaram parte do seu support system O seu relacionamento tanto com a oncologista quanto com a cirurgiã foi fortalecido por recomendações feitas para visitas oncológicas mais frequentes com sensibilidade e tolerância às peculiaridades da apresentação psíquica da paciente Sessões de psicoterapia foram aumentadas para de três a quatro vezes por semana as quais incluíam intervenções individuais e atendimentos com os demais membros do seu support system O esforço de cada um para apoiála criou uma oportunidade para o estabelecimento da sua confiança no nosso cuidado por ela como pessoa Essa confiança começou a refletirse no seu tratamento oncológico Apesar dos comportamentos e delírios paranoicos a paciente começou a demonstrar maior vínculo com a psicóloga a oncologista e a cirurgiã Tal vínculo foi o catalisador da confiança necessária para que ela começasse o seu tratamento oncológico Consequentemente ela finalmente iniciou a quimioterapia porém ainda recusando tratamento psiquiátrico apesar das várias intervenções feitas Por recusarse a tomar os remédios recomendados pelo psiquiatra não foi possível a continuidade dessas visitas Apesar do seu grande desequilíbrio psíquico a paciente era capaz de desenvolver relacionamentos sólidos e correspondêlos quando tendo a oportunidade Infelizmente isso não foi possível no contexto psiquiátrico apesar das várias 64 tentativas de incluir esse profissional no seu plano de tratamento O quadro psicológico da paciente agravouse ainda mais durante o percurso do seu tratamento de quimioterapia A sua prima e o padre da sua igreja comunicaram suas preocupações quanto à acentuada piora no comportamento peculiar da paciente e pontuavam a necessidade de uma internação psiquiátrica A paciente continuava o tratamento oncológico assiduamente realizando todos os exames médicos sem recusa Intervenções com o seu support system incluíam o suporte emocional bem como ajudála a entender as consequências de uma possível internação psiquiátrica quando havia estabelecido um relacionamento de muita confiança na equipe que a acompanhava Com o grande temor que a paciente sentia pelo câncer havia a preocupação de que uma internação psiquiátrica pudesse alienála de seu tratamento oncológico Entre os membros do seu support system decidimos continuar trabalhando com a paciente de forma a não interromper seu tratamento de quimioterapia Depois completar a primeira fase do seu tratamento oncológico a paciente não compareceu em uma sessão psicoterápica Preocupada com o significado da sua ausência dado que ela nunca faltava às sessões sua psicóloga tentou contato telefônico sem sucesso No mesmo dia essa profissional recebeu um recado da prima da paciente e da assistente social do centro de câncer sobre preocupações referentes aos comportamentos paranoicos da paciente A psicóloga então entrou em contato com a familiar da paciente informandolhe sobre a ausência na última consulta Como a segunda fase do seu tratamento seria a mastectomia cogitouse que a paciente pudesse ter piorado o que não a deixava chegar até o centro de câncer A profissional entrou em contato com a equipe ambulatorial para estabilização de crise solicitando uma avaliação psiquiátrica da paciente em sua residência Como essa avaliação seria feita dentro de 48 horas a paciente teria a oportunidade de comparecer na próxima sessão marcada antes de ser vista em sua casa resultando em uma oportunidade de ser atendida por uma das pessoas em quem ela tinha confiança a sua psicóloga Não sendo algo inesperado a paciente compareceu em um estado gravíssimo Sua regressão chegou a tal ponto que ela não conseguia formular uma frase limitando a sua comunicação verbal a barulhos vocais como se fosse um bebê Sua postura e expressão facial aparentavam extremo terror A paciente chegou a um ponto em que uma internação psiquiátrica não poderia mais ser evitada para que ela pudesse realizar a mastectomia Sua psicóloga a acompanhou à sala de emergência de psiquiatria do Bellevue Hospital Center e comunicou à oncologista à cirurgiã e aos demais membros do support system sobre a internação Enquanto hospitalizada psicóloga e cirurgiã a visitavam regularmente seguiam o progresso do seu tratamento psiquiátrico e mantinhamse em contato com os demais membros do support system que faziam o mesmo Infelizmente o estado de psicose depressão e ansiedade da paciente não respondia a nenhuma classe de remédio psiquiátrico Em razão do curto tempo de que se dispunha entre o fim da quimioterapia e a mastectomia ela necessitava ser estabilizada psiquicamente o mais rápido possível do contrário a mastectomia não poderia ser realizada O tratamento de eletrochoque tornouse a única opção viável de estabilização Várias reuniões entre psiquiatria e os principais membros do support system foram necessárias para determinar o curso desse tratamento Em sessões de psicoterapia após o tratamento de eletrochoque a paciente teve oportunidade de relatar a sua experiência com a internação psiquiátrica e o tratamento de eletrochoque Como esperado a paciente disse ter sentido muito medo enquanto internada e sentia alívio quando a psicóloga e a cirurgiã a visitavam Mais medo sentia sobre o tratamento de eletrochoque o qual ela 65 acreditava ser cruel como demonstrado no filme One Flew Over the Cuckoos Nest8 Entretanto sua experiência com o tratamento de eletrochoque começou com a preparação que recebeu da equipe médica que a paciente descreveu como sendo de muita compaixão empatia e sensibilidade ao seu medo Eles lhe explicaram que haveria o total de doze tratamentos realizados três vezes por semana e que ela não estaria acordada e não sentiria nada pois lhe dariam uma forma de anestesia para mantêla cômoda durante o tratamento Ela se surpreendeu com um imenso alívio por não estar acordada durante as sessões de eletrochoque Depois de seis sessões a paciente começou a notar uma significante melhora no seu estado emocional e passou a relacionarse com outros pacientes internados A paciente também demonstrou uma capacidade de reflexão sobre o desenvolvimento do seu autoconhecimento relacionado ao seu desequilíbrio psíquico que começou com o diagnóstico de câncer e agravouse durante o tratamento oncológico Ela concluiu que em situações de grande estresse corre o risco de uma severa crise psicológica na qual sofre uma séria regressão e que caso uma nova situação estressante se apresente no futuro confiar nas orientações feitas para ajudá la a prevenir outra crise é fundamental Ela também concluiu que o tratamento de eletrochoque não era o que ela imaginava tal como o público leigo acredita e que esse tratamento como todo o apoio que ela recebeu de todos que participaram no seu cuidado oncológico contribuiu com a sua atual existência e recuperação A paciente pôde expressar uma imensa gratidão por todo o cuidado recebido por parte de todos envolvidos e implicados em seu processo de tratamento Depois de haver finalizado o seu tratamento de eletrochoque a paciente teve êxito em superar sua depressão e ansiedade e muito sucesso em sua adaptação à perda do seio e à última fase do seu tratamento oncológico a radioterapia Com a estabilização do seu equilíbrio psíquico e a manutenção dos acompanhamentos psiquiátrico e psicológico a paciente retornou à rotina anterior ao diagnóstico REFERÊNCIAS MITCHELL A J et al Prevalence of depression anxiety and adjustment disorder in oncological haematological and palliativecare settings a metaanalysis of 94 interviewbased studies Lancet Oncology London v 12 n 12 p 160174 feb 2011 RAYNER L et al The clinical epidemiology of depression in palliative care and the predictive value of somatic symptoms crosssectional survey with fourweek followup Palliative Medicine London v 25 no 3 p 229241 apr 2011 STAFFORD L et al Screening for depression and anxiety in women with breast and gynaecologic cancer course and prevalence of morbidity over 12 months PsychoOncology Sl v 22 n 9 p 20712078 sep 2013 USTA Y Y Importance of social support in cancer patients Asian Pacific Journal of Cancer Prevention Republic of Korea v 13 n 8 p 35693572 2012 VIERDEMAN M PERRY 3rd S W Use of psychodynamic life narrative in the treatment of depression in the physically ill General Hospital Psychiatry New York v 2 n 3 p 177185 sep 1980 8 No Brasil este filme recebeu o título de Um Estranho no Ninho nota das organizadoras Corpo e Sujeito no Tratamento do Câncer Hematológico de Quem Se Trata Capítulo 9 69 Sou adepto da superficialidade simpatizo com os peixes que voam e com os pássaros que mergulham9 O momento do diagnóstico de uma doença grave e estigmatizada como o câncer traz para o indivíduo em tratamento diferentes repercussões físicas e também psíquicas Assim como outros conflitos no decorrer da vida de uma pessoa a descoberta de uma doença grave é considerada um momento de crise que faz com que o sujeito entre em sofrimento e busque uma reorganização psíquica e emocional É sobre isso que trata este capítulo sobre o que incide no corpo mas sem afastar o lado psíquico e que portanto nos faz falar de um sujeito Em determinado momento de minha prática como psicóloga da clínica de hematologia chama a minha atenção o fato de alguns pacientes chegarem a partir de um encaminhamento médico no momento de controle da doença Isso é em sua maioria pacientes que já passaram pelo pior do tratamento diagnóstico quimioterapia internação e estão nesse momento sem sinal de doença portanto apenas em controle O que se apresenta para o médico é um paciente que está bem sem doença ativa assintomático sem queixas hemograma sem alterações A única queixa que aparece é de ordem psicológica assim nomeada pelos médicos tais como depressão tristeza insônia desesperança O que se apresenta dáse em forma de interrogação o que terá sido questão para esse sujeito a partir de sua experiência no tratamento de um câncer E porque só agora tais sintomas irrompem Partindo de minha referência psicanalítica como teoria e como ética a partir do modo como me situo diante do sujeito que nos procura com seu sofrimento muito singular e advertida dos efeitos de que cada ato ou dizer podem produzir a partir desse encontro proponhome a receber esse paciente e deixar que ele fale Falar parece oferecer alguma possibilidade de fazer um contorno uma borda para aquilo que transborda como excesso escapando à significação do sujeito Pareceme em um primeiro olhar que esse dispositivo opera quando o dispositivo médico já não tem nada a dizer algo que fica fora como um resto nomeado então como psicológico aquele malestar trazido pelo paciente aquilo que escapa ao saber médico Algo fora do corpo que nesse momento está assintomático Indago sobre esse estatuto de resto do que sobra e escapa que fica fora do possível de dizer É desse lugar que me sinto convocada a ouvir Mas o que escutar Essa é a questão uma virada da clínica do olhar para a clínica da escuta o que significa tratar o corpo pela palavra dar um lugar para a subjetividade em cena O que se escuta é menos sobre a doença e mais sobre a vida daquele paciente cortada pelo momento do aparecimento da doença oncológica Escutamos sujeitos devastados por uma doença grave chamada câncer cuja primeira ideia que se associa é a da morte A morte não chegou mas o que restou em seu lugar Recebemos então os restos as sequelas os destroços de um corposujeito devastado pelo câncer e indagamos o que sobra dessa experiência de ter passado por uma doença muitas vezes incurável que mata ou anuncia a morte Uma angústia diante do real da morte do véu que se desvela e faz o paciente se perguntar o que fazer agora A morte não é anunciada mas o sujeito a enuncia como certeza antecipada Segundo Miller 2004 a morte antecipada aquela que usurpa a vida é diferente da morte natural biológica é equivalente a um desaparecimento significante do sujeito que se vê faltar O sujeito tomado então por um vazio e na tentativa de preenchêlo busca 9 Fala de um paciente ao longo de seu tratamento que usou a criação poética como forma de melhor dizer sua doença 70 o psicólogo Esse encontro com um Outro sujeito suposto saber10 porta uma certa fantasia do encontro com alguém que sabe que é capaz de ouvir e dar conta do seu sofrimento Uma aposta num saber inconsciente Um apelo que aos poucos vai se transformando em demanda O corpo físico que se apresenta que é visto muitas vezes está intacto Aliás é uma característica de alguns pacientes em controle de doença hematológica que não transparece fisicamente o sofrimento do corpo Tal clínica a hematologia trata das doenças ligadas ao sangue à medula óssea produtora das células de defesa e ao sistema imunológico No caso de algumas doenças o tratamento hematológico preserva fisicamente o paciente Alguns quimioterápicos podem não causar queda de cabelo por exemplo Mas o sujeito sofre com as marcas não mais no corpo e sim psíquicas deixadas pela doença A psicanálise toma o corpo como um corpo apreendido pela fala representação simbólica marcada por uma experiência de satisfação o que faz dele um corpo libidinal e não meramente um organismo biológico Por ter um corpo um corpo vivo é que o sujeito deparase com a afetação da morte Lacan diz que é justamente nessa hiância ou seja um espaço um lugar vazio onde algo pode se produzir entre ser um corpo e ter um corpo que a psicanálise ganha seu espaço pois se há um corpo há um sintoma É disso que se trata afinal quando aos olhos do saber médico não há o que ser tratado pois talvez não seja do que se trata e sim de quem se trata Da falta a ser significante do sujeito Daquilo que desorganiza esse corpo a partir da linguagem acontecimentos de discurso Se o corpo biológico sobre o qual incide o saber médico responde ao tratamento no sentido da cura ausência e remissão dos sintomas e sinais da doença a que responde o saber da psicanálise quando convidada a ouvir o sofrimento do paciente Enquanto na medicina o sintoma é algo a ser eliminado na psicanálise é a partir dele com ele que um trabalho é possível o sintoma para psicanálise é uma organização psíquica que permite ao sujeito estar na vida aquilo que faz o sujeito trabalhar no sentido de tentar construir uma verdade para si No cotidiano da assistência seja em uma enfermaria seja no ambulatório o que escutamos do sujeito marcado pelo significante câncer é menos sobre um corpo biológico e mais sobre a vida algo da vida em contraposição à ideia da morte Algo que retroage a partir da escuta do diagnóstico cujo efeito é muito maior que a extensão tumoral Esses pacientes falam de um corpo e da constituição de uma nova imagem de corpo que não é mais aquela imagem na qual se via sustentada a identidade do sujeito eu me olho no espelho mas não me reconheço essa não sou eu ele não gosta quando eu tento tocálo parece que a pele dele não reconhece mais o meu toque esposa de um paciente póstransplante de célulatronco hematopoética Essas falas remetem a um então quem sou eu agora Não é disso que se trata então Da subjetividade que comparece nesse sofrimento muitas vezes escondida no tratamento de um câncer O sujeito que se constitui pelos laços pelas fantasias que por hora encontramse destruídos Casamentos e namoros que se desfazem filhos que não poderá ter profissão que é interrompida Esse sujeito precisa fazer um luto desses objetos que lhe constituíram e conferiam alguma identidade Eu queria ter de volta a vida que eu tinha dizia um paciente A fala tem aí sua importante função a de reconstituir ao sujeito um novo corpo A vida tem algo a ver com a morte interroga Lacan 1997 p353 Pensamos que é diante desse significante morte que um trabalho por meio da fala é possível Nesse trabalho o sujeito vai reconstruindo um novo corpo vivo no qual possa se reconhecer Por meio dessa 10 Tratase de um termo utilizado por Lacan para falar do lugar do analista na transferência LACAN 1998 71 experiência tão radical frente à finitude permitese que o sujeito construa uma nova narrativa sobre sua vida seu corpo algo sobre si Com isso criase uma nova ficção um novo véu que torne mais possível a vida diante da angústia da morte Ou como diz Laurent sobre a prática da psicanálise essa prática obtém através do seu manejo da verdade alguma coisa que toca o real A partir do simbólico alguma coisa ressoa no corpo e faz com que o sintoma responda LAURENT 2012 p 2 Escutando o paciente11 P chega ao ambulatório de psicologia com um encaminhamento médico dizendo estar em depressão que assim descreve nervosismo insônia desânimo para as atividades de vida cotidiana e muita tristeza Aos 55 anos casado três filhos operário de uma fábrica de cigarros sindicalista homem justo com forte sentimento de responsabilidade comprometimento com seu trabalho e compromissos na vida o homem da casa o provedor da família recebe o diagnóstico de uma leucemia mieloide crônica LMC12 A doença não é visível Aos poucos essa imagem vai se transformando e ele passa a um homem extremamente frágil e sensível com medo da morte medo de decepcionar e fazer infelizes as pessoas ao seu redor Não consegue ser mais aquele homem forte que resolvia tudo e era o agregador da família Queixase da perda da capacidade laborativa pela instabilidade emocional que ora se apresenta sente que pode explodir a qualquer momento Essa questão do trabalho parece estar fortemente marcada na depressão como um regulador do tempo do cotidiano do compasso da vida como aquilo que efetivamente conta o tempo Sem isso trabalho que tempo é esse Como pensar em futuro tempo quando não há nada que no presente o preencha E ao mesmo tempo esse tempo vazio está repleto por um passado marcado por uma imagem ideal perdida como nos diz Maria Rita Kehl 2009 o deprimido em sua amargura faz referência à imagem ideal perdida eu já fui e hoje não sou mais e a imagem de si presente é sempre insuficiente perante a exigência do euideal absoluto e perdido Vale a pena trazer essa citação de Kehl sobre o tempo na depressão O tempo que não passa é o tempo que não produz diferença que não promete nada a não ser a perpetuação de um presente estagnado vazio O que nos faz afinal esperar pelo futuro próximo desejar o futuro senão alguma fantasia ainda que vaga de que alguma experiência interessante ou prazerosa há de acontecer ainda que seja a repetição dos pequenos prazeres cotidianos conhecidos KEHL 2009 p 229230 Contudo P perguntase pra que pensar em momentos felizes planejar futuro se eu vou morrer Eu tenho um câncer Freud 2006b em seu texto sobre a transitoriedade diz tudo aquilo que em outra circunstância ele teria amado e admirado pareceulhe despojado de seu valor por estar fadado à transitoriedade FREUD 2006b p182 O valor da transitoriedade é 11 Os fragmentos clínicos citados aqui foram submetidos e aprovados pelo CEP do INCA sob parecer de nº 531869 CAAE 270775146000005274 12 LMC é um subtipo das leucemias doença maligna das células de defesa do sangue caracterizada pela excessiva proliferação da linhagem mieloide e que não é curável pelo tratamento de quimioterapia Fonte INCAMS Serviço de Hematologia Rotinas internas RJ 2008 72 o valor da escassez no tempo por isso o luto é antecipado por saber que está inevitavelmente fadado à finitude P afastase do trabalho fica licenciado pelo Instituto Nacional do Seguro Social INSS pois tem muita insônia muita irritabilidade queda em sua capacidade produtiva prefere se afastar com medo de fazer mal a alguém O quadro depressivo permanece mesmo após início de medicação Afirma por várias vezes que prefere a morte à vida assim sem perspectiva de planejar um futuro A morte não é anunciada mas P a enuncia como a certeza antecipada Em certo momento de seus atendimentos P conta que um de seus filhos será pai e isso traz à tona um sentimento de tristeza pois conta que tem um neto filho de sua filha do primeiro casamento com quem nunca teve contato É o momento de resgatar algo que ficou para trás rever aquelas verdades verdadeiras como me diz outra paciente que sustentam a nossa existência O que aparece na fala de P é o desejo de ser um bom pai e um bom avô Mas de que adianta Vou morrer Terá tempo para isso Aos poucos P vai falando do aparecimento da doença que vem num momento difícil marcado pela perda recente do cunhado com câncer de pulmão P o acompanhava em suas consultas foi quem ficou com ele até o momento da morte Logo em seguida perde um emprego em uma firma que faliu Não tive tempo para me preparar Penso no que o sintoma pode falar dessa doença no sintoma como mensagem segundo Lacan rico de sentido Penso naquilo que marca o corpo e deixa uma marca psíquica que se impõe ao trabalho analítico P fala daquilo que faliu que não lhe deixou tempo para prepararse o que nos faz pensar no trauma como aquilo que não deixa tempo para o sujeito defenderse E sem defesas não se pode encarar a morte é preciso algum anteparo Em Projeto para uma Psicologia Científica Freud 2006a p 358 diz que todos os dispositivos de natureza biológica têm limite de eficiência e falham quando um limite é ultrapassado Quando esse limite é ultrapassado algo excede ficando como uma porção não assimilável e aí surge a dor como aquilo que resulta da falha desses dispositivos Isso que não pode ser assimilável que o aparelho psíquico não encontra recursos para simbolizar restando como algo que excede à economia do próprio aparelho psíquico é o que podemos nomear de sofrimento psíquico Um texto que se lê pela doença O que falhara em suas defesas Pensamos que é a partir do malestar produzido pela doença mal estar que P nomeou como depressão que se tornou possível para esse paciente narrar algo sobre si sua história sua vida suas defesas Só é possível pensar o sofrimento psíquico no individual no singular de cada caso no que é para cada um que sofre Talvez esteja aí toda a riqueza do trabalho psíquico capaz de tornar suportável a dor e a angústia diante da finitude do desamparo diante da morte Sustentar a palavra mesmo no silêncio é permitir que o sujeito possa recontar a sua história E só ele pode fazer isso num trabalho psíquico de ligar e religar pensamentos ideias afetos Afinal como lembra Françoise Dolto isso é viver com esse limite que dá sentido à vida e sem o qual a vida não faz sentido13 13 Conferência proferida em 16 de outubro de 1985 na Ècole de propédeutique à la connaissance dinconscient EPCI redigido por Muriel DjéribiValentin e transcrito e gravado por Denise Ackerman 73 REFERÊNCIAS FREUD S Publicações prépsicanalíticas e esboços inéditos Rio de Janeiro Imago 2006a Obras completas de Sigmund Freud v 1 FREUD S Sobre a transitoriedade Rio de Janeiro Imago 2006b Obras completas de Sigmund Freud v 14 KEHL M R O tempo e o cão atualidade das depressões 1 reimpr São Paulo Boitempo 2009 LACAN J O seminário livro 11 os quatro conceitos fundamentais da psicanálise Rio de Janeiro J Zahar 1998 LACAN J O seminário livro 7 ética da psicanálise Rio de Janeiro J Zahar 1997 LAURENT E Falar com seu sintoma falar com seu corpo 2012 Disponível em httpwww enapolcompttemplatephpfileArgumentoHablarconelpropiosintomaEricLaurent html Acesso em ago 2013 MILLER J A Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo Opção Lacaniana Revista Brasileira Internacional de Psicanálise São Paulo n 42 fev 2005 Escuta do Sujeito Capítulo 10 77 Iniciaremos a nossa discussão tratando da palavra o significante angústia que em sua etimologia remete a concisão apertar o cerco vereda sufocamento flecha aguçada penúria A palavra angustioso tem o sentido passivo de apertado de desejo que sofre e o ativo de violento cruel extremo REY 2004 Nas falas de muitos dos nossos pacientes escutados em um hospital público de oncologia há a perda das palavras e do fôlego associada à angústia que podemos aproximar de sufocamento Esses são os termos flecha aguçada penúria aperto de desejo crueldade que se repercutem e orientam a construção deste texto Da porta de entrada A abertura é decisiva Freud 1998b já dizia sobre o jogo de xadrez que o princípio da partida é determinante porque todas as jogadas que virão depois terão sido necessariamente marcadas pelo lance de entrada É um começo que perdura mantendo o vigor do início Dito de outro modo entrar por uma porta não é a mesma coisa de tomar outra porque há determinações que se estabelecem e que não são simples de serem mudadas depois CZERMAK 2007 2013 No nosso trabalho está em jogo o deslocamento da problemática de um campo em que o sujeito colocase frente à impotência para outro em que não se trata de saber o que ele pode ou não fazer mas de encontrar com o impossível implicado na condição que enfrenta Se o sujeito decide tomar as condições impostas pela doença na ordem do impossível isso abre para ele novas portas Essas são novas portas de entrada para suportar a vida pois como lembra Freud 1998a p 301 suportar a vida continua sendo o primeiro dever de todo ser vivo Nesse sentido entendemos que o trabalho analítico consiste em encontrar junto com o paciente portas de entrada isto é recursos que o sustentem na direção de suportar a vida E como Freud também acrescenta a vida traz com ela a dimensão de finitude que nos funda a todos como viventes mas a qual constantemente desconhecemos Acompanhar o paciente é estar junto dele na aridez do que atravessa é acompanhálo no enfrentamento dessa condição de finitude Para ele ter um lugar para o endereçamento de seu trabalho subjetivo pode fazer toda a diferença Está colocada aí a construção de um saber próprio na medida em que não se trata de algo que se dê a ele pronto mas de uma construção na relação transferencial em uma tessitura na palavra Esse processo de construção vem culminar na escrita mesma da história do sujeito Isso é tratase de uma escuta que pode viabilizar a cristalização de algo e desse modo escrever história Não se sabem de antemão os caminhos para onde o tratamento levará Por isso admiramo nos junto ao que terá surgido na palavra do paciente como efeito de nossa presença Isso significa que é com surpresa que recebemos o lugar que nos será dado na transferência Ou seja os desdobramentos a que a transferência nos levará são tecidos junto com o paciente não são previsíveis só podemos ler seu encadeamento a posteriori Quando se suporta ficar com o que o paciente diz ou seja em uma escuta rente ao significante a nossa presença que implica a aposta em um lugar de palavra o endereçamento a investigação com o paciente pode ter efeito de uma produção de verdade sem necessidade de intérprete Isso tem consequências pagase um preço pela transferência pois o efeito da incidência de real que surge na palavra corta dos dois lados do paciente e do analista Encontramonos nós mesmos com a finitude que funda a vida de cada um e de todos 78 Se falamos em presença do analista e sustentação de um lugar de palavra por conseguinte a posição em que se está ao receber o paciente faz toda a diferença Abordálo por exemplo valorizando o que ainda dá para ele fazer apesar dos prejuízos que a doença vem lhe trazendo ou querer que ele se adapte à sua nova situação seria recebêlo a partir da posição da sugestão de que se teria o saber sobre o que seria o melhor para ele A sugestão irá sempre na direção de um forçamento imaginário levando de maneira injuntiva à manipulação o que coloca o paciente na dimensão de humilhação vergonha e culpabilização Sugerir será a maneira de dizer ao paciente que se tem o saber sobre o gozo esse conceito que fala das formas de satisfação como se se soubesse a melhor forma de alcançála Como dissemos ao contrário somos sujeitos ao mesmo impossível Impossível de tudo saber de tudo dominar e controlar Pois somos antes de tudo sujeitos ao inconsciente às lacunas e às falhas presentes no nosso operar consciente cotidiano Sugerir é pois negar o inconsciente e o furo introduzido por ele em nosso viver Sugerir nada mais é do que dizer que se é proprietário de um saber sobre as formas de gozo E se estamos nessa posição de quem dá sugestão não há lugar para a alteridade condição para a dimensão da enunciação que é o modo puro do dizer endereçado ao outro que pode responder Na sugestão não havendo esse endereçamento ao outro permanecemos na dimensão imaginária não dando chance a que o simbólico se instaure na relação e mostrenos tanto a nós quanto ao paciente que somos sujeitos a ele e à linguagem que o suporta como simbólico LACÔTE 2002 Atrelada à sugestão ainda nesses casos está a dimensão da pena que não passa de comiseração desdenhosa sendo marca do desprezo travestido de ternura Há desse modo na pena o desdém e o desprezo daquele que defendido se crê inteiro frente ao outro mutilado Quer dizer considerar a desolação que o paciente atravessa como digna de pena é uma tentativa de dissimular para si próprio o horror impactante e o impossível aí em jogo A pena sustenta narcisicamente o eu inteiro em uma tentativa de apagar a divisão subjetiva e o desamparo Esses são revelados no outro por identificação o que provoca reativamente o desprezo Expressar pena cala o sujeito porque fecha qualquer espaço de construção de fala que toque no real do que experimenta Isso poupa especialmente o clínico porque a fragilidade e a falta de qualquer garantia de estar a salvo disso são compartilhadas por todos nós e disso não se quer saber nada CASTROARANTES LO BIANCO 2013 Diferente disso é a posição de compaixão Compaixão é sofrer juntamente tomar parte no sofrimento do outro do latim compatio sofrimento comum que tem origem no grego páthos paixão o que se experimenta tudo o que bem e mal afeta o corpo ou a alma e move o sujeito REY 2004 A aposta em uma direção analítica então é a de que o sujeito possa atravessar isso não tão sozinho Encontrar alguém a quem se endereçar e constituir aí um lugar de palavra onde possa elaborar minimamente algo do horror que o atinge pode ter como efeito colocar isso em palavras quer dizer tomar esse real do corpo e da morte pelo simbólico da palavra do significante da construção da história do sujeito É dar ao paciente as condições de enfrentar a finitude que o constitui como sujeito e não apenas vêlo padecer da condição de objeto a tornarse dejeto Tratase de acompanhar o paciente em seu desbravamento sem saber de antemão os caminhos onde a transferência levará como vimos e responsabilizarse por isso dando suporte ao que daí advier Não há solução mas fragmento pedaço de um percurso na construção de uma história na escrita do sujeito Aí estão os limites e possibilidades do trabalho não há o que se dê 79 ao paciente de conforto de paliação como encobrimento disso que é Resta acompanhálo na travessia tomar parte no que o afeta como testemunha Mais uma vez deparamonos com o fato de que isso tem efeitos também para o clínico pois pagase um preço pela transferência talvez por isso mesmo muitas vezes resistase à transferência Pagase por ela na escuta do real que perpassa a fala do paciente causa o desejo e tal faca só lâmina corta dos dois lados Portanto compartir o páthos afeta aquele que escuta aqui ressaltamos seja ele o clínico ou o paciente mesmo leitor de sua própria fala Trazemos um recorte da Faca só lâmina de João Cabral de Melo Neto 1955 Assim como uma faca que sem bolso ou bainha se transformasse em parte de vossa anatomia Qual uma faca íntima ou faca de uso interno habitando num corpo como o próprio esqueleto de um homem que o tivesse E sempre doloroso de homem que se ferisse contra seus próprios ossos MELO NETO 1955 não paginado A crueldade da psicanálise exercese pois sobre o próprio analista É nele que a castração o encontro com a finitude incide antes de tudo pois só daí ele pode proceder em sua operação Ou seja não há trabalho analítico sem que a castração esteja colocada primeiramente para o clínico porque é no campo mesmo do desamparo e da solidão da castração isso é no submetimento à sua penúria que paradoxalmente por não se resignar encontra recursos para operar Tratase de submeterse ao inexorável e justamente nisso está a liberdade do sujeito se assim decidir de responsabilizarse pelo que lhe acontece consequentemente sem demitirse O clínico porque é também dividido e sujeito ao desamparo de estar vivo submetese ao inexorável e desse lugar partilha do páthos Isso é cabe àquele que escuta a escolha entre submeterse e escutar na compaixão ou senão demitirse na pena e fazer calar Entendemos que é na penúria mesma daquele que escuta que opera a flecha aguçada como dizíamos acima da faca só lâmina CASTROARANTES LO BIANCO 2013 Do lugar em que se está Trabalhando com pacientes que recebemos em um hospital de oncologia não é infrequente depararmonos com expressões como a clínica com os pacientes com câncer a clínica com pacientes oncológicos a clínica em oncologia a clínica oncológica Nesse ponto ao invés de clínica com pacientes oncológicos propomos a clínica em uma instituição de tratamento oncológico Isso porque ao se dizer por exemplo da angústia na clínica com pacientes com câncer pode haver aí um equívoco uma vez que a angústia não é do paciente com câncer é do sujeito Isso fica bem demarcado na escuta dos nossos pacientes É importante ressaltar que não se trata de delimitar qual a função de um psicólogo com uma escuta marcada pela psicanálise em uma instituição de oncologia Fica claro especialmente quando tratamos dos nossos pacientes que isso não funciona Não funciona porque justamente escutamos o sujeito na sua singularidade a cada vez e por isso não há como protocolar Dissemos que a angústia é do sujeito Isso é a escuta é endereçada ao sujeito e não ao paciente com câncer muitas vezes inclusive não é necessariamente do câncer que o paciente vem falar embora isso perpasse seu discurso Nesse sentido não podemos dizer que haveria uma angústia em oncologia e outra no consultório Contudo há implicações no fato de receber os 80 pacientes no ambulatório de um hospital ou quando estão internados por exemplo Vamos além disso há que se levar em conta a história da própria instituição em que se trabalha pois não há como reduzir o trabalho ao seu atendimento ao paciente higienizado disso Quando trabalhamos em uma instituição é ilusório pensar que nossa clínica é independente do contexto em que ela tem lugar o que implica mais uma vez também por esse motivo não ser possível fazer um protocolo de atendimento psicológico para instituições oncológicas já que é imprescindível considerar cada contexto institucional específico em sua complexidade É preciso levar em conta esse contexto em seus múltiplos aspectos advertenos Jamart 2011 Toda clínica inscrevese em um contexto maior que é preciso identificar em toda a sua complexidade cultural ética sociológica organizacional discursiva financeira e política Não basta que fechemos a porta do nosso consultório com o paciente para que a psicanálise floresça lá dentro Isso colore as paredes inconscientemente JAMART 2011 Qual a história da instituição em que trabalhamos que lugar ocupamos ali de que posição nos autorizamossomos autorizados e colocamonos a escutar Essas são questões determinantes para nosso trabalho tendo em conta que o que se diz depende daquele que escuta Ou seja a fala não é primeira como se estivesse pronta esperando a escuta para ser dita pelo contrário a escuta antecede como condição a fala é porque há escuta que só então a fala terá sido formulada a posteriori no tempo do futuro anterior É porque trazemos nossas questões sempre no caso a caso que ressaltamos uma vez mais não há como protocolar Universalizar o que seria o papel do psicólogo em oncologia seria matar qualquer vertente da ordem do analítico O analítico opera nas brechas do discurso universitário tão presente no âmbito científico e hospitalar Nosso trabalho é feito de um lugar dividido no rigor da sustentação dos significantes psicanalíticos e diz de uma abertura Não se trata portanto de um embate histérico e estéril mas de achar frestas Isto é abertura que é preciso cavar a cada vez construindo algo da dimensão analítica e constituir o trabalho a partir desse lugar Aí está o significante nas suas duas vertentes a abertura como fresta que toca a psicanálise e a abertura a porta de entrada determinante desde o início REFERÊNCIAS CASTROARANTES J M LO BIANCO A C Corpo e finitude a escuta do sofrimento como instrumento de trabalho em instituição oncológica Revista Ciência e Saúde Coletiva Rio de Janeiro v 18 n 9 p 25152522 set 2013 CZERMAK M A porta de entrada e a clínica psicanalítica Rio de Janeiro Tempo Freudiano 2013 CZERMAK M O ensino da psicanálise a porta de entrada da clínica Tempo Freudiano Rio de Janeiro n 8 p 1528 2007 FREUD S De guerra y muerte temas de actualidad In Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico trabajos sobre metapsicología y otras obras 19141916 Buenos Aires Amorrortu 1998a Sigmund Freud obras completas 14 v 81 FREUD S Sobre la iniciación del tratamiento In Sobre un caso de paranoia descrito autobiográficamente caso Schreber trabajos sobre técnica psicoanalítica y otras obras 1911 1913 Buenos Aires Amorrortu 1998b Sigmund Freud obras completas 12 v LACÔTE C La suggestion maternelle Cahiers de lAssociation Lacanienne Internationale Paris p523 mai 2002 MELO NETO J C Uma faca só lâmina 1955 Disponível em httpwwwacademiaorgbr ablcgicgiluaexesysstarthtminfoid675sid337 Acesso em 06 fev 2014 REY A Dictionnaire historique de la langue française Paris Le Robert 2004 Redes e Laços Impasses e Desafios14 Texto suplementar 14 Conferência de encerramento proferida por Romildo do Rêgo Barros na IX Jornada de Psicologia Oncológica do INCA e III Encontro INCASBPO Desafios do Cuidado Integral em Oncologia ocorrida em 9 de agosto de 2013 Agradecemos à Mariana de Almeida Rabello pelo minucioso trabalho de transcrição e a Romildo do Rego Barros pelo trabalho de elaboração e revisão da versão escrita de sua conferência 85 Se há uma contribuição que um psicanalista pode trazer para vocês e que realmente tenha alguma utilidade é tentar dizer alguma coisa sobre nossa experiência comum com a angústia Esse é pareceme um ponto que reúne as várias intervenções clínicas que além da tentativa que é própria dos nossos tempos democráticos de construir conjuntos cada vez mais amplos e coletivos cada vez mais consistentes o fenômeno da angústia rompe vai na direção contrária à constituição dos coletivos e interpela cada um de nós É nesse sentido que o encontro entre nós pode de fato tornarse possível e proveitoso Para isso é preciso que saibamos do que se está falando e que estejamos falando de alguma coisa comum quando se usa a palavra angústia que provavelmente cada um de nós conhece separadamente Quando se trata de uma discussão fica um pouco mais difícil então eu queria propor uma definição muito simples da angústia A angústia é um afeto que nos avisa que estamos diante de um limite Talvez não se possa definir a angústia de maneira mais simples É o afeto que se impõe a alguém diante de um limite Esse limite me mostra que além dele as coisas já não dependem de mim Além desse limite diante do qual estou nada mais depende de mim tudo vai vir de fora e tenho toda a razão de temer que além desse limite eu me dissolva destrua morra não me reconheça mais Seja na dimensão da saúde corporal seja na dimensão psíquica a angústia é a experiência de um limite a partir do qual ninguém pode saber o que vai vir Ou seja a angústia é um afeto voltado para o futuro é um afeto que nos faz temer o que pode vir lá na frente Não é a nostalgia não é o sofrimento de alguma coisa que está incomodando agora mas uma espécie de perplexidade em relação ao que pode vir e o que pode vir pode ser que me destrua Isso pareceme é uma definição muito simples da angústia e ela é a âncora o centro de gravidade que me permite vir aqui falar para vocês a partir da minha experiência de psicanalista A angústia é portanto o ponto que temos em comum a partir do qual podemos conversar Poderíamos começar por exemplo por uma palavra que está no próprio título desta conferência e que não é muito fácil de definir que é a palavra impasse Então se vocês mantêm no horizonte que mesmo quando eu não tratar do assunto diretamente eu vou estar falando da angústia podemos começar tentando diferenciar o impasse da impossibilidade Todo trabalho tem impasses que duram um certo tempo mas impasse refere se basicamente ao que é tratável Cada pessoa aqui com suas atividades profissionais saberia dar um exemplo de um impasse Um certo dia eu estive num certo impasse e 24 horas depois eu saí do impasse ou sucumbi ao impasse Uma outra coisa é a impossibilidade A impossibilidade situame diante de um limite meu ou do ser humano ou da saúde ou da loucura do que vocês quiserem Diante da impossibilidade nenhuma medida é possível para que ela se torne possibilidade A gente conhece a velha tradição de considerar a morte como um fracasso do médico e pareceria um assunto precioso hoje teríamos o assunto do fracasso da equipe interdisciplinar e seria um assunto muito interessante de ver o que é que se pode dizer sobre a morte Talvez nada talvez possamos dizer somente alguma coisa até a angústia não daí para frente como experiência subjetiva claro Essa diferença entre impasse e impossibilidade no lugar do impasse poderíamos falar segundo um comentário que Lacan fez certa vez de impotência essa diferença interpelanos cotidianamente Cada vez que encontramos alguém que está diante de um certo limite seja qual 86 for vamos ter de nos definir em relação à diferença entre impasse e impossibilidade O que se faz diante de um impasse e o que se faz diante de uma impossibilidade Um outro termo de grande importância atualmente apesar de referirse a alguma coisa que ganhou importância séculos atrás é humanização Se pensarmos bem não é um termo tão simples assim A humanização é o ideal de todos os humanistas Tanto dos humanistas antigos dos gregos como dos humanistas do Renascimento para cá A gente pode pensar como Protágoras o sofista que dizia O homem é a medida de todas as coisas Essa é uma maneira de falar do humanismo A humanização é aquilo que se deve fazer na direção de um certo humanismo Essa é também uma definição difícil de contestar Humanizar o tratamento então não quer dizer simplesmente tratar os outros como seres humanos Isso não deveria nem ter um nome para ser chamado deveria ser só uma prática uma coisa evidente Não precisaria de adjetivo nem de substantivo para falar em tratar dignamente as pessoas os pacientes os profissionais etc Mas infelizmente precisa de um nome humanização humanizar humanizado etc Não se trata simplesmente de tratar os outros como seres humanos vocês podem pôr aspas nessa expressão pois existem horrores cometidos em nome de tratar os outros como seres humanos Mas também e pareceme que isso é mais importante porque é mais preciso humanizar quer dizer elevar o homem concreto ao que ele deveria ser e não exatamente ao que ele é Se vocês prestarem atenção nos termos humanização ou humanizar vão ver que existe uma pitada de ideal nessas palavras Humanização é um processo que como a angústia contempla o futuro e não o presente É preciso humanizar o tratamento de tais pacientes quer dizer que ainda não está suficientemente humanizado Então provavelmente não existe um ponto ótimo Existe o péssimo mas não um ótimo de humanização A humanização pode então ser entendida como a maneira de viver quando não existem obstáculos essenciais à vida tanto no sentido do funcionamento das estruturas e das instituições sociais quanto no que se refere aos limites mentais físicos sociais afetivos de cada um Ninguém vai encontrar alguém 100 humanizado Sempre vai ser alguém que ou está desumanizado ou está em processo de humanização Isso tem alguma coisa a ver com o que eu estava falando da angústia porque é também um processo que só se define em relação ao futuro e não ao presente Humanização quer dizer no meu entender a criação de algumas condições que permitam que cada um possa dar o que tem de melhor Então é fundamentalmente uma criação de condições e não necessariamente o enquadramento em uma utopia Humanização pode ser entendida muito concretamente como medidas práticas que deveriam fazer com que o usuário ou o paciente possa dar o melhor de si Tanto no sentido de conviver no hospital quanto no sentido de contribuir para a melhor evolução possível da doença Tornar possível que se dê o que se tem de melhor serve para definir o que é a humanização Também deve nos pôr as orelhas em pé porque o homem enquanto tal é capaz do pior Ele não nasce bom contrariamente ao que pensava Rousseau e nem mau Entra em um processo de aperfeiçoamento mas é alguém seriamente dividido entre o melhor e o pior Não há nenhuma razão portanto para sermos excessivamente otimistas Há um certo realismo que é muito necessário e esse realismo engloba uma certa ideia de que o ser humano diferentemente dos animais é capaz do pior Você diz você se comporta como um animal Provavelmente nenhum animal se comporta como essa pessoa que você está criticando 87 É preciso pois que a gente não perca de vista que o afeto da angústia é acima de tudo o afeto que mostra que o ser humano como chamamos é por definição dividido se não ao meio enfim dividido E eu queria sobretudo trazer para vocês a partir dessa ideia da humanização que se existe alguma coisa que de fato é uma prerrogativa do ser humano é a capacidade de mudar o sentido do tempo e isso interessa tanto à minha prática clínica quanto à prática clínica dos psicólogos ligados à oncologia O ser humano é capaz seja para o melhor seja para o pior de mudar o sentido e a velocidade do tempo Certamente vem daí eu confesso que não conheço muita coisa da psicooncologia uma frase que li em um artigo e que me interessou justamente porque coincidia com o que eu tinha para dizer a vocês A frase é a seguinte Na fase inicial do diagnóstico a esperança que é uma palavra de origem religiosa aparece em geral focalizada na cura o artigo está falando de pacientes com câncer Já na fase terminal a esperança pode focalizar os aspectos gratificantes de viver o momento presente é uma frase muito séria propiciando no futuro por exemplo uma morte tranquila Há na frase um deslocamento da ideia de esperança que também é alguma coisa que se dirige ao futuro eu espero para amanhã para daqui a dez anos daqui a vinte anos O ser humano pode ele é capaz de trazer a esperança para o presente Então é por isso que eu tinha tanta curiosidade de assistir a mesa dos cuidados paliativos porque me pareceu e eu estou falando como um leigo que se trata exatamente disso o que é possível fazer para que a esperança passe do futuro para o presente Pareceume que essa seria uma ideia interessante A frase está num artigo de duas pessoas que não conheço Zuriel Mello de Christo e Elisete Soares Traesel e o artigo chamase Aspectos psicológicos do paciente oncológico e a atuação da psicooncologia no hospital publicado em Santa Maria no Rio Grande do Sul Ou seja na fase inicial pensem em uma doença mas pensem na fase inicial do que quer que seja a cura representa o futuro O futuro é a cura Vocês que tratam diretamente com pacientes gravemente doentes sabem o tesouro que pode representar para eles o fato de a cura aparecer como representante do futuro Se a cura desaparece o futuro vai junto Essa é uma experiência clínica cotidiana Na psicanálise também evidente podemos pensar no que acontece com o paciente que se mata foi exatamente essa brusca ruptura da relação que ele tinha com o futuro Na fase terminal ainda seguindo a frase que eu citei o presente ganha a primazia e não mais o futuro Ou melhor dizendo o presente condensa o que seria o futuro é uma capacidade extraordinária como é que se pode condensar em pouco tempo aquilo que pediria muito tempo Quem tem trabalhos para escrever sabe que quando o prazo é muito longo a gente não produz É necessária uma condensação do tempo uma compressão uma certa exigência para que trabalhemos no presente como se fosse o futuro Pareceme que não é muito diferente da experiência de um paciente terminal pelo que sei é uma experiência cotidiana ou quase cotidiana de vocês Nessa frase que citei à primeira vista podese ter a impressão de que parece um absurdo a ideia da esperança como coisa do presente e não do futuro Voltada para o presente e não para o futuro O nosso desafio é como fazer uma condensação do tempo ou melhor fazer com que o futuro caiba inteirinho na experiência que vai durar muito pouco na experiência do presente sem ter que necessariamente ou quase nunca eu imagino apelar para a escatologia religiosa 88 É evidente que cada um de nós está acostumado cada um a sua maneira a pensar alguma coisa sobre o sentido da morte Na verdade a morte só em parte tem sentido Ou seja somente em parte parcialmente o sujeito pode assumir para si o peso da sua morte Como pensava Freud a morte sempre vem do outro Isso quer dizer seja qual for a doença todos nós morremos assassinados Num certo sentido a morte sempre é uma coisa que vem de fora e que afeta o nosso corpo Existe sempre necessariamente em boa parte ou em grande parte talvez na maior parte a experiência de que a morte nos acomete Nós não somos senhores da morte Essa parte esse pedaço de sentido que cada um de nós pode dar à morte vai ter muitas ou várias orientações Quem tem religião pensa no depois da morte como vida Quem não tem religião tenta dar dignidade à dimensão que a morte tem de fim Quando se trata da morte de uma criança isso se torna ainda mais dramático pelo fato de nos perguntamos Como é que pode terminar alguma coisa que mal começou Como é que se pode concentrar tudo no presente quando não dá para avistar um futuro Vocês certamente conhecem uma máxima do La Rochefoucauld que diz que não se pode olhar diretamente nem o sol e nem a morte Penso que isso não é somente porque a morte em analogia com o sol é tão forte que pode nos ofuscar ou seja é algo que tem um excesso de luz e de força que é maior que a capacidade da nossa retina ou do nosso corpo Eu diria que não podemos olhar de frente para a morte ou para o sol porque a relação direta com eles dois pode nos destruir O sol nos queima a morte nos mata Ou algo que é tão devastador quanto isso o sol e a morte podem nos deixar sem significação e sem significação não há ser humano não há humanização Aliás nem desumanidade Entre a morte e nós tem de haver uma mediação A nossa responsabilidade em algumas profissões seria a de trocar em miúdos botar em linguagem em atividade prática o que seria a mediação bem concretamente quando algum de nós se encontra com alguém que não se sabe nunca mas enfim alguém que por hipótese vai morrer daqui a muito pouco tempo O que não é possível é pensar a morte como um salto no nada Não é por razões afetivas somente é porque a gente não sabe dizer nada sobre o nada então não sabe dizer nada sobre a morte Em 1922 Freud escreveu um artigo por sinal muito bonito que se chama A cabeça da Medusa A Medusa era um monstro da mitologia grega um monstro horrível que no lugar dos cabelos tinha serpentes e que tinha um poder terrível o de transformar em pedra qualquer pessoa que olhasse diretamente para ela Mas a Medusa era mortal ao mesmo tempo Então um herói grego chamado Perseu descobriu um estratagema muito interessante para vencer a Medusa Ele mandou fazer um escudo espelhado um escudo com a capacidade de reflexão muito grande e olhou a medusa pelo reflexo no seu escudo Então a Medusa e não ele ficou ofuscada com os raios de sol refletidos no escudo e ele cortou a cabeça da Medusa que era a única maneira possível de neutralizar de matar esse monstro A gente pode dizer no nosso jargão no meu jargão que Perseu construiu aí precisamente uma mediação Uma mediação entre ele e o impossível O que é impossível É impossível olhar a Medusa cara a cara Perseu usou o escudo como mediador olhou a Medusa indiretamente e foi assim que ganhou Essa seria uma imagem precisa do que significa o encontro eficaz com a impossibilidade Freud tratou como vocês sabem a decapitação da Medusa como imagem da castração A castração para Freud além do imaginário corporal era a mediação Por exemplo somente por meio da castração se acede à sexualidade Não é possível se ter acesso à sexualidade sem algum tipo de mediação Freud chamava essa mediação de castração que seria uma mediação entre a libido o apetite o tesão como se diz no Brasil e os objetos impossíveis como a morte 89 por exemplo ou no texto de Freud os objetos incestuosos São objetos mais impossíveis do que proibidos A proibição surge num segundo momento A castração é um dos conceitos que Freud vai forjar para falar daquilo que muitos anos mais tarde Lacan vai chamar de simbólico que também é uma forma de mediação Ou seja diante da impossibilidade por exemplo da morte há que se ter uma mediação simbólica No meu entender a função do psicólogo que trabalha com doentes terminais é sobretudo a de não abrir mão da mediação É de se esperar que em algum momento o profissional responda a esse desafio com ilusões Essa seria uma outra maneira de responder a algo que não tem saída a algo que é impossível A primeira ilusão seria a crença talvez ingênua de que a boa ação diante de alguém que vai morrer é o apelo a uma fórmula técnica realmente eficaz Você está ausente o doente está ausente e você dispõe de uma certa técnica uma certa metodologia que faz com que você e o doente na verdade estejam fora da jogada O que existe é um corpo uma cabeça que recebeu um aprendizado técnico e sabe como aplicálo A mediação nesse caso é confundida com o uso de um instrumento como se pode dizer de um bisturi um martelo ou qualquer coisa assim Uma segunda ilusão que vai na direção contrária mas é tão nefasta quanto a primeira pretende que o paciente possa aprofundar a sua experiência da morte ou prepararse diretamente para ela sem mediação ou contando com a verdade completa da sua situação no lugar da mediação Freud nos ensinava que a morte não existe no inconsciente Isso significa que quando se fala da morte sempre estaremos falando segundo Freud da castração Ou seja não se pode falar da morte fora daquilo que une os humanos que é essa mediação simbólica Talvez nem o maior dos místicos tenha conseguido falar da morte de cara limpa O sujeito vai poder falar naturalmente das perdas que estão implicadas em torno da palavra morte ou mesmo em torno da ideia de que a morte vai virar uma experiência para ele em relativamente pouco tempo A perda da vida que não quer dizer a morte aliás nem se precisa ter nenhuma ideia de morte para se falar de perder a vida a perda que o sujeito vai representar para os outros a perda dos contatos com os objetos de prazer e de amor sempre em negativo Sobre a morte positivamente é impossível de falar Então se é impossível de falar não pode inspirar nenhuma abordagem clínica A Ana Beatriz falavame de uma experiência havida aqui no INCA com um adolescente de 15 anos que estava em tratamento com o psicólogo Tratavase de um adolescente num estado extremamente grave que veio a morrer algum tempo depois e que a partir do seu trabalho com a psicóloga pareceme teve a ideia de exigir uma coisa um prato de macarrão com salsicha que só a mãe dele sabia fazer É penso um exemplo de mediação A mediação de quê Essa história nos ensina algo de muito importante o que pode se contrapor à morte não é a vida que a gente tampouco sabe o que é mas o desejo Não abrir mão do seu desejo qualquer um de vocês sabe o que é do ponto de vista do fenômeno não abrir mão do seu desejo quer dizer não ceder ao desespero hoje em dia se fala mais de pânico não ceder ao pânico Freud em 1921 produziu uma teoria sobre o pânico no exército dizia Freud se o general é morto o conjunto se dissolve mesmo que tenha a mesma força as mesmas armas mas se o general desaparece não há nada que garanta que inspire a união daqueles soldados Existe então uma dissolução do coletivo se aquilo em nome do qual o coletivo funcionava já não funciona 90 Gilberto Gil no último disco dele eu acho que é o último canta quer dizer mais recita do que canta na verdade é um rap uma canção muito bonita extremamente sábia que se chama Não tenho medo da morte Tem uma pequena percussão no violão um dedilhado nas cordas e é o único acompanhamento que tem e é de uma beleza sublime essa canção Ele distingue é um trabalho teórico também o medo da morte do medo de morrer Ele diz Eu não tenho medo da morte eu tenho medo de morrer Penso que podemos dizer que a tarefa do psicólogo ou de quem quer que se confronte com a situação de uma vida que chega ao fim não é de aplicar alguma técnica com a esperança de que vai ficar fora dessa passagem como se diz na religião mas de ajudar alguém como foi a conquista importante desse garoto que comeu um prato de macarrão com salsicha e molho de tomate eu imagino queijo parmesão que só a mãe dele sabia fazer Então é disso que dispomos Contra a morte nós não dispomos de milagres mas dispomos o que não é tão fácil assim dessa arma extraordinária que é a função do desejo O que é o desejo É uma tentativa de reunir a libido a satisfação o tesão o gozo com a mediação O desejo é aquilo de que a gente pode dispor contra a angústia Vocês podem comparar a vida se ela pode ser comparada a uma balança cujos pratos são ocupados de um lado o desejo do outro a angústia Obrigado PARTE II Os Aspectos que Permeiam o Sofrimento das Crianças e dos Adolescentes Percepções Vivenciadas em Vinte Anos de Assistência no Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva Capítulo 11 95 Introdução A concepção dos sentidos do sofrimento leva em consideração diversos fatores que podem contribuir em sua agudização ou amenização O conceito de dor total SAUNDERS 1990 a aplicação prática da principiologia bioética PESSINI 2004 como ferramenta fundamental e os princípios fundamentais de direitos humanos na ótica infantil tais como proteção prioridade de assistência melhor interesse do menor e qualidade de vida deve ser utilizado por todos os profissionais que lidam com oncopediatria e representam um pilar fundamental na interpretação e tentativa de soluções de conflitos no cotidiano com a finalidade precípua de amenizar seus sofrimentos Como o sofrimento vem correlacionado e tangenciado ao conceito de dor total vários são os aspectos que podem levar ao sofrimento humano de crianças e adolescentes com câncer como questões que digam respeito a sua autonomia com todas as suas nuances a questão da dinâmica familiar em si as questões sociais as questões inerentes ao tratamento oncológico e a Política de Assistência à Saúde voltada para crianças e adolescentes Em relação ao atendimento fisioterapêutico prestado no INCA ressaltase que dos quase 20 anos de assistência 15 são especificamente voltados para oncopediatria e que anteriormente a esse período além do serviço contar apenas com quatro profissionais sua prestação em relação à oncopediatria era essencialmente ambulatorial sem um espaço e sem um profissional com formação e dedicação específica para tal sendo os pacientes internados atendidos apenas sob a forma de parecer Percebendo que era urgente a necessidade de uma mudança que abarcasse algumas mínimas necessidades e prioridades foi sugerido aos demais profissionais que se mudasse a forma de atendimento destinado às crianças e aos adolescentes elegendo um responsável pela totalidade dos atendimentos no ambulatório agora num espaço um pouco mais apropriado para as crianças e na enfermaria É imprescindível que isso seja explanado para vermos o quanto são recentes algumas pequenas mudanças e como representam um verdadeiro divisor de águas no Instituto São das pequenas coisas que emergem todas as demais e isso pode ter contribuído para mudança no enfrentamento da ótica do papel da fisioterapia no câncer infantil Hoje há uma equipe de fisioterapia pediátrica que atua na enfermaria na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica e no ambulatório participando de todo o processo decisório terapêutico e em todas as fases da doença A atuação do fisioterapeuta em um espaço de oncopediatria extrapola o aspecto eminentemente técnico e passa a ocupar um espaço que é comum a todos os demais profissionais que ora se mescla ora se separa para construir um bemestar único da criança do adolescente e de seu familiar É certo que ações concretas do fisioterapeuta representam sempre um agir sobre o outro e sobre o corpo do outro que podem despertar emoções várias Além disso sua atuação na melhora das funções auxiliando nas incapacidades seja amenizandoas seja revertendoas e o auxílio no controle da dor e no alívio dos sintomas principalmente nos cuidados paliativos sem dúvida sempre agregam benefícios e atuam diretamente sobre a autonomia a reconstrução da autoimagem e a sexualidade contribuindo inexoravelmente para a melhora da qualidade de vida O sofrimento das crianças e dos adolescentes com câncer será enfocado no presente artigo tendo sempre por base a concepção de dor total em todas as suas dimensões por meio de dois principais pontos nevrálgicos quais sejam a Política de Atenção à Saúde destinada a crianças 96 e adolescentes por ser o ponto de partida para quaisquer outras discussões e o Princípio da Autonomia que tangencia todos os outros processos interligados ao sofrer humano Toda essa biografia institucional permitiu vislumbrar algumas percepções e experiências únicas com crianças e adolescentes que ouso tentar desvendar e revelar com uma leitura simplificada Como esse é essencialmente um artigo de opinião e como tal dotado de grande subjetividade há grandes chances de estar contaminado pelo próprio sofrimento advindo tanto da atuação em si como profissional quanto como ser humano A Política de Atenção à Saúde voltada para crianças e adolescentes o que há de real Como o conceito holístico de saúde tem como fatores condicionantes e determinantes aspectos sociais econômicos e de acessibilidade dificilmente encontraremos um indivíduo que já não seja vulnerável KOTTOW 2003 sendo que crianças e adolescentes são tidas como vulneráveis não pelo sentido cronológico em si mas por sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento sendo então muito mais propensas ao sofrimento Apesar do direito à saúde ser elevado à categoria de direito fundamental e de as crianças e os adolescentes gozarem de direitos pelos diversos ordenamentos jurídicos internacionais que tratam de direitos humanos a exemplo da Convenção 19 da Organização das Nações Unidas ONU e por leis pátrias tais como a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 BRASIL 1988 o Estatuto da Criança e Adolescente ECA de 1990 BRASIL 1990b a Lei do Sistema Único de Saúde BRASIL 1990a e da Portaria do Gabinete Ministerial GM no 2439 de 8 de dezembro de 2005 BRASIL 2005 que estabelece a Rede de Atenção Oncológica para garantir a proteção a prioridade de assistência e a assistência integral existe uma grande distância entre o que é assegurado e o que de fato acontece Nesse ponto esses atores já experimentam um novo sofrimento no que diz respeito ao acesso e ao diagnóstico que na maioria das vezes de precoce nada tem haja vista o estádio avançado de doença com que chegam ao Instituto Apesar de algumas ações serem desenvolvidas pelo serviço de oncopediatria do INCA em parceria com o terceiro setor junto à Atenção Básica programa unidos para cura essas ainda se apresentam de forma muito tímida e sem muita resolubilidade não dando conta da demanda reprimida principalmente pelo fato de o INCA atender a pacientes dos diversos estados brasileiros e também de certa forma sobrecarregar ainda mais o serviço de oncopediatria ao ter de realizar diagnósticos diferenciais de pacientes referenciados pela Atenção Básica Uma vez ultrapassados os problemas do acesso e do diagnóstico há de se enfrentar outros interna corporis ou seja os diversos gargalos a serem ultrapassados fruto da ausência de uma estrutura adequada de atendimento para suas especificidades sendo a oncopediatria um setor pequeno dentro de um grande centro oncológico que é voltado primordialmente para o tratamento de adultos Refirome entre muitas à dificuldade na realização de certos procedimentos e exames já que além de não terem a dita prioridade assegurada na lei ficam horas em jejum aguardando nem sempre realizandoos Crianças e adolescentes muitas vezes disputam vagas com adultos em tratamentos a despeito dos tratamentos cirúrgico e radioterápico que apesar dos esforços dos profissionais que atuam na ponta nem sempre se realizam a contento enfrentam dificuldades na internação em razão da escassez de vagas o que sobrecarrega a emergência pediátrica e estagna 97 a Unidade de Terapia Intensiva infantil Frisase que esse é um problema estrutural e político e que as equipes que atuam na oncopediatria entre elas a de fisioterapia esforçamse ao máximo para assegurar o cumprimento das ações assistenciais Tudo isso somado às demandas sociais contribui para a sobrecarga emocional das crianças e de seus familiares Outro ponto a ser enfrentado são os cuidados paliativos voltados para população infantil que se apresentam completamente distantes do preconizado pelos discursos do Ministério da Saúde presentes na Política de Desospitalização e na Política Nacional de Humanização BRASIL 2004 havendo ainda o predomínio do modelo hospitalocêntrico O modelo de cuidados paliativos oferecido nos hospitais às crianças é inadequado em geral por não considerar o espaço domiciliar como um forte aliado já que os grandes Institutos brasileiros a exemplo do INCA só os oferece como um programa estruturado aos adultos O modelo ideal de cuidados paliativos deve englobar todas as fases da doença e deve ser instituído desde o seu diagnóstico em conjunto com o tratamento clínico indo até o pósluto quando em caso de pacientes terminais conforme propõem Wolfe et al 2001 abarca o cuidador familiar também como objeto desse cuidado Por conta de não haver uma política institucionalizada algumas poucas crianças e adolescentes conseguem atendimento domiciliar de acordo com alguns critérios que de certa forma se comportam como tratamento não isonômico por não incluir a maioria delas Muitas delas vêm a óbito no hospital o que soma mais um aspecto de sofrimento no fim de vida Outra questão importante diz respeito à invisibilidade dessas crianças no sistema dada a escassez de estudos epidemiológicos que sejam estratificados levando em consideração a classificação diferenciada dos adultos com separação de cada tipo tumoral por faixa etária e por estádio da doença que abarquem a dependência de tecnologia em crianças com câncer e em cuidados paliativos As estimativas do INCA por muito tempo nem sequer contemplavam os tumores pediátricos A de 2014 já apresenta um pequeno avanço ao apontar que ocorrerão 11840 novos casos no corrente ano e que o câncer ocupou a segunda posição de óbitos em crianças e adolescentes de 1 a 19 anos em 2011 configurandose como principal causa de morte por doença para essa faixa etária INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2014 Isso mostra a urgência de uma política voltada exclusivamente para essa finalidade objetivando pelo menos proporcionar uma melhor qualidade de vida tendo em vista que o censo demográfico de 2010 mostra que 30 da população encontrase na faixa abaixo dos 19 anos Vale ressaltar que outros problemas necessitam de amparo de uma política pública eficaz para que essas crianças possam também sofrer o mínimo possível ao sobreviverem ao câncer A garantia de um follow up adequado a contrarreferência o congelamento de óvulos quando há possibilidade de esterelidade a continuidade do processo de reabilitação como um todo o acompanhamento psicológico que englobe toda a família entre várias medidas visam a assegurar minimamente novas possibilidades em suas vidas A política pública não cura o sofrimento em todas as suas formas mas é certo que um indivíduo acolhido tem maior possibilidade de ser mais resiliente O princípio da autonomia analisado sobre um duplo ângulo A legislação brasileira considera como relativamente incapazes indivíduos maiores de 16 e menores de 18 anos e absolutamente incapazes os menores de 16 anos Isso significa que abaixo de 16 anos essas pessoas necessitam de representação para praticar atos da vida civil e acima de 16 98 anos estão aptos para a prática de alguns atos que a lei autoriza havendo problemas no processo de tomada de decisão em relação aos aspectos de seu tratamento oncológico principalmente quando há conflito entre ele e os demais atores O fato é que mesmo esse indivíduo tido como incapaz por vezes possui uma capacidade de entendimento maior do que os adultos que o cercam Além disso o tratamento em si é sobre o seu corpo que sentirá todos os seus efeitos e sintomas como dor deformidades perda de funções restrições e incapacidades Em princípio qualquer ação sobre o corpo de outro que não a autoriza é no mínimo capitulada como uma lesão corporal mas não no caso das crianças Mesmo que possam não consentir seus corpos são invadidos crendo numa premissa de um bem maior que nem sempre é real Isso também aparece nos tratamentos embasados em protocolos de pesquisa em que embora haja um TCLE é precária a participação efetiva da criança e viciadas as decisões dos pais que usualmente se pautaram na esperança de cura de seu filho segundo estudo de Teixeira e Braz 2010 Vários são os conflitos existentes na prática cotidiana que envolvem colisão de autonomias dada a pluralidade do ser humano por exemplo transfusão sanguínea colocação de ostomias sedação no fim da vida amputações cirurgias mutiladoras solicitação de alta precoce por demandas várias não adesão ao tratamento entre outras Defendo que o Princípio da Autonomia do qual emerge o sentido do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana fruto do imperativo categórico kantiano MORAES 2003 deve ser visto por um duplo ângulo ou seja como a capacidade de deliberar e como a capacidade inerente à própria condição humana como possibilidade de locomoverse de ir e vir e de realizar o autocuidado Isso porque indivíduos sem condições de realizar o autocuidado e a locomoção perdem também grande parte de sua autonomia Enquanto para alguns indivíduos pode ser mais importante a preservação da capacidade para decidir para crianças e adolescentes pode ser mais importante a possibilidade de locomoção para que possam brincar livremente ir a escola e ter o seu lazer preservado Embora essas condições estejam sedimentadas não podendo separar o neuromotor do cognitivo costumamos pensar em autonomia de modo fragmentado Nesse ponto ressalto a grande importância da atuação do fisioterapeuta no resgate dessas funções seja recuperando a força muscular seja realizando readaptações de órteses e próteses e diminuindo a dor oportunizando e devolvendo a possibilidade de um novo agir Considerações finais O sofrimento de crianças e adolescentes tem as mais variadas formas O modo como a doença é enfrentada por pais e responsáveis também ocupa um lugar muito importante Uma criança pode sofrer mais ou menos de acordo com o comportamento dos pais e com os conflitos familiares com que tem de lidar Por isso pais e cuidadores também devem ser alvos de cuidado A política pública deverá passar por severas mudanças em relação ao enfoque na saúde da criança e dos adolescentes principalmente na área oncológica cumprindo pelo menos parte do que já contém a legislação sendo urgente a construção de um centro oncológico especializado A equipe multidisciplinar que atua em oncologia necessita urgentemente ser reestruturada em seu quantitativo pois o tratamento oncológico tem como principal vertente a comunicação e baseiase em uma relação de confiança estabelecida entre a criança sua família e a equipe Para isso necessitase de um espaço adequado e de uma disponibilidade maior para a conversa a fim reforçar esse vínculo e evitar a distanásia Ocuparnos de oferecer a maior autonomia possível 99 propiciar o melhor conforto no alívio da sintomatologia principalmente da dor e da dispneia e a sedação no fim da vida representam verdadeiros instrumentos de Habeas Corpus REFERÊNCIAS BRASIL Constituição 1988 Constituição da República Federativa do Brasil Organização de Cláudio Brandão de Oliveira 9 ed Rio de Janeiro DPEA 2001 BRASIL Estatuto da Criança e do Adolescente Lei Federal nº 8069 de 13 de julho de 1990b Organização de Yussef Said Cahali 5 ed Rio de Janeiro Revista dos Tribunais 2003 BRASIL Lei nº 8080 de 19 de setembro de 1990a Disponível em httpwwwplanaltogov brccivil03leisl8080htm Acesso em 02 abr 2014 BRASIL Ministério da Saúde HumanisaSUS política nacional de humanização a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias Brasília DF Ministério da Saúde 2004 Disponível em httpbvsmssaudegovbrbvspublicacoes humanizasus2004pdf Acesso em 02 abr 2014 BRASIL Portaria nº 2439GM de 8 de dezembro de 2005 Disponível em httpdtr2001 saudegovbrsasPORTARIASPort2005GMGM2439htm Acesso em 02 abr 2014 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Estimativa 2014 incidência de câncer no Brasil Rio de Janeiro Inca 2014 MORAES M C B Danos à pessoa humana uma leitura civilconstitucional dos danos morais Rio de Janeiro Renovar 2003 PESSINI L A filosofia dos cuidados paliativos uma resposta diante da obstinação terapêutica In PESSINI L BERTACHINI L Org Humanização e cuidados paliativos São Paulo EDUNISC Loyola 2004 Especificidades do Sofrimento Psíquico Apresentado por Crianças e Adolescentes ao Longo do Tratamento OncoHematológico Impasses e Invenções Por Que Estudar É Tão Importante15 Capítulo 12 15 Pesquisa aprovada pelo CEP do INCA sob o nº 18622013000005274 em 21 de novembro de 2013 103 Por que é que tem que ser assim se o meu desejo não tem fim16 No dia a dia do trabalho clínico e pedagógico com crianças e adolescentes em uma instituição de tratamento para o câncer identificamos diversas fontes de sofrimento psíquico As especificidades do cuidado clínico dispensado a pacientes com câncer são diversas uma vez que se trata do diagnóstico de um grupo de várias doenças que têm em comum a proliferação descontrolada de células anormais e que podem ocorrer em qualquer local do organismo SOCIEDADE BRASILEIRA DE ONCOLOGIA PEDIÁTRICA 20 apresentando características crônicas e degenerativas além de ser potencialmente letal17 O tratamento oncológico implica a realização de protocolos rigorosos responsáveis pela redução da doença e sua possibilidade de cura mas também por efeitos adversos devastadores Entre os efeitos colaterais comuns observados nessa clínica salientamos alopécia perda do cabelo vômitos e náuseas mucosites reação tóxica inflamatória que afeta o trato gastrointestinal da boca ao ânus18 astenia diminuição ou perda da força muscular anemia procedimentos invasivos queda drástica da imunidade entre outros efeitos que afetam a vida dos pacientes infantojuvenis de modo que eles vivenciam de forma contundente o seu desamparo COSTA 2009 p84 Além dos efeitos físicos do tratamento outra importante consequência para a vida desses pacientes é o afastamento de suas atividades habituais como frequentar a escola Pretendemos ressaltar neste capítulo o sofrimento decorrente da impossibilidade de a criança e o adolescente terem o convívio escolar ao longo do tratamento oncológico procurando esclarecer por que estudar é tão importante em um contexto como esse e de que maneira enquanto profissionais podemos contribuir no sentido de minimizar na medida do possível os impasses do afastamento escolar É característica presente na vida de muitos pacientes oncológicos infatojuvenis o afastamento da escola A internação os tratamentos que exigem constante presença na instituição médica assim como as graves limitações físicas impedem que as crianças continuem a realizar a rotina com a qual estão acostumadas Segundo Fontes 2005 a escola para crianças e jovens que estão hospitalizados aparece como referência à vida normal e saudável e que portanto estão fora do ambiente hospitalar Nesses casos há uma prescrição médica que determina o afastamento da criança da escola Segundo pesquisa de Gonçalves e Valle 1999 realizada com crianças com câncer o afastamento escolar é visto por elas de maneira negativa uma vez que as afasta tanto dos estudos quanto do convívio com outras crianças Diante disso é importante estarmos atentos para que esse afastamento ocorra somente quando estritamente necessário uma vez constatada a importância da escola na vida das crianças e dos adolescentes 16 Trecho da música Fico assim sem você de Claudinho e Buchecha escolhida por uma criança porque ilustra sua relação com o seu desejo diante da evolução desfavorável e fatal de sua doença oncológica 17 No que tange à taxa de mortalidade estudos do INCA mostram que no ano de 2009 óbitos por câncer na faixa etária de 0 a 18 anos apresentavamse entre as dez primeiras causas de morte no Brasil e que a partir dos 5 anos a morte por câncer aparece como a primeira causa de morte por doença em ambos os sexos INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2010 18 De acordo com Lindoni 2013 104 Para isso é importante que nos casos em que a presença da criança na escola é possível haja uma interlocução entre escola e equipe de saúde para que os impasses encontrados possam ser solucionados ao invés de resultarem no distanciamento da escola Nosso papel enquanto profissionais que assistem aos pacientes oncológicos infantojuvenis é portanto o de evitar que as crianças deixem de frequentar a escola quando têm condições para tal e contribuir para que o afastamento escolar quando necessário aconteça da maneira menos penosa possível Ceccim et al 1997 abordam a questão da criança hospitalizada e discutem acerca das possibilidades pedagógicas nesse contexto Segundo os autores o afastamento escolar tende a deixar a criança num lugar de solidão BARBOSA 1991 apud CECCIM et al 1997 p 77 uma vez que a escola desempenha o importante papel de oferecer um espaço de convívio social O desligamento desse laço tem consequências na interação social e no lugar dessa criança eou adolescente na vida Assim sendo ficar longe da escola e sem a possibilidade de aprender coisas novas pode se configurar como um aspecto do sofrimento psíquico desses pacientes É importante destacar a relevância das diversas necessidades que estão presentes na atenção à saúde de crianças e adolescentes hospitalizados que não se restringem a questões clínicas e fisiológicas Ceccim et al 1997 p 76 assinalam que em um trabalho no hospital é preciso reconhecer que outros fenômenos possuem igual relevância no agravamento ou reestabelecimento de quadros mórbidos O modelo anatomoclínico tradicional é hegemônico em instituições de saúde no entanto não dá conta de questões mais amplas que estão para além das repercussões orgânicas da doença Pretendemos enfatizar a importância da escola e de uma escuta singular às necessidades dos pacientes infantojuvenis no tratamento oncológico Fonseca e Ceccim 1999 também se referem a outras necessidades que a criança ou o jovem hospitalizado podem vir a ter como as psicológicas e as pedagógicas que resultam em apoio psicológico a eles e a seus acompanhantes eou familiares e em atividades de recreação e atendimento pedagógico educacional no hospital Nesse contexto a classe hospitalar é uma importante ferramenta uma vez que tem por objetivo dar continuidade ao processo de aprendizagem e desenvolvimento que essas crianças tiveram de interromper por conta do adoecimento Segundo legislação vigente Denominase Classe Hospitalar o atendimento pedagógicoeducacional que ocorre em ambientes de tratamento de saúde seja na circunstância de internação como tradicionalmente conhecida seja na circunstância do atendimento em hospitaldia e hospitalsemana ou em serviços de atenção integral à saúde mental BRASIL 2002 A criança e o adolescente em tratamento oncológico possuem necessidades e interesses que por conta da complexidade desse tratamento não são atendidos O que eles sentem suas dúvidas o que eles imaginam de sua doença Por que eu estou aqui O que está acontecendo comigo geram momentos de medo e angústia Suas inquietações precisam sair e percorrer os espaços vazios de respostas Respostas que eles não têm muitas vezes por não serem ouvidos Eles fazem exames tomam medicações mas precisam ser considerados não apenas como um objeto de tratamento mas como um sujeito que tem vez e voz A necessidade do esclarecimento das perguntas citadas anteriormente pode como mencionado por Fontes 2005 p135 auxiliar no tratamento uma vez que o conhecimento de seu 105 estado de saúde e do ambiente hospitalar em que se encontra pode alimentar o aspecto positivo da emoção da criança hospitalizada e contribuir para o seu bemestar físico e psicológico Aprender significa mudança Mudar transformar o que era verdadeiro ou desconhecido em algo que irá revelar mostrar o momento que ela está vivendo Alguns relatos ilustram o significado e o papel da classe hospitalar enquanto representante da educação no hospital e na vida de crianças e adolescentes Uma criança de 8 anos com diagnóstico de autismo com longas e sucessivas internações reagia de forma exacerbada às tentativas de contato em seu tratamento Suas vontades eram satisfeitas em função da sua reação quando contrariado Gritos xingamentos atitudes agressivas eram a resposta a tudo o que queria e não recebia o que era altamente frustrante para ela Ao frequentar a sala de aula essas atitudes repetiramse Mas as trocas entre professor e aluno mostraram a ela os limites de suas ações limites que de início eram muito amplos para que ela pudesse suportar o não frustrador de sua vontade mas que foram sendo negociados aos poucos Nada foi imposto Sua vontade e seu desejo foram ouvidos e respeitados Foi permitido que ela fizesse escolhas porém salientando que toda escolha implica uma renúncia o que permitiu a ela fazêlas e afirmar seu desejo Essa parceria foi importante para ajudála a se organizar durante seu tratamento Esse exemplo revela o quanto é importante permitir que a criança e o adolescente expressem suas crenças convicções e afetos diante desse momento tão difícil de suas vidas Além disso não se pode desconsiderar o fato de que o tratamento oncológico é assombrado pela possibilidade da morte em muitos casos porque como citamos o câncer é uma doença potencialmente mortal Há algo para além dos protocolos que precisa ser considerado no tratamento oncológico de crianças e adolescentes que permite que esse tratamento seja singularizado de acordo com a história e as idiossincrasias de cada paciente e entorno familiar que é acolhido na instituição Fonseca e Ceccim 1999 p26 retratam essa questão quando citam Bowlby 1958 e Lindquist 1980 que dizem quando uma relação de vínculo se estabelece entre a criança e o profissional que com ela trabalha sistematicamente esta relação lhe propicia a oportunidade de seguir sem bloqueios o seu desenvolvimento normal FONSECA CECCIM 1999 Cabe salientar ainda que é na escola que as crianças têm a experiência da escolha do que elas querem ser quando crescerem A escola ou a classe hospitalar durante o tratamento oncológico significa uma aposta num paraalém como disse um menino se a sua professora estava convidandoo para estudar era porque ele não iria morrer É importante destacar a relação professoraluno nesse caso pois como demonstrado em Fontes 2005 p 123 o professor no ambiente hospitalar apresenta algumas faces pedagógica social ideológica entre outras porém nenhuma é tão constante quanto a da disponibilidade de estar com o outro e para o outro E estar com o outro na perspectiva de um futuro de um vir a ser que trata de certa forma o horror suscitado em nossos pacientes pela travessia desse tratamento e aponta para uma saída uma chance de escapar dali Testemunhamos o afinco e a determinação com que muitos de nossos pacientes se engajam para manter viva a sua intenção de seguir as suas vidas O desejo norteia impulsiona é a força motriz de muitos pequenos que conhecemos e é no desenvolvimento intelectual que se instaura segundo Ceccim 1997 p 76 uma instilação de desejo de vida Podemos constatar isso em uma criança que dos 5 aos 8 anos enfrentou bravamente todos os caminhos apontados para sua cura 106 e quando nada mais se pôde fazer ela cantou que seu desejo não tinha fim e coincidentemente essa foi a música tema da primeira apresentação de sua curta vida escolar A escola para ela apesar de doente tinha um lugar de destaque seus olhos brilhavam com a descoberta das letras Aprender e viver eram sinônimos Ou ainda numa adolescente que mesmo com agravamento do seu quadro clínico se empenhou para terminar as avaliações do semestre e não descansou enquanto não conferiu suas notas no boletim eletrônico acessado em sua última internação Depois de sabêlo ela descansou dignamente Considerações finais Trabalhar em uma instituição que trata de uma patologia tão nefasta em alguns casos leva nos a tomar esses sujeitos como ativos e construtores de seu cuidado Mesmo que o desfecho desse tratamento seja desfavorável acreditamos que o desejo confere dignidade à vida a ser vivida e que cada um de nós não sabe quando vai terminar Então investir e singularizar o cuidado prestado a cada criança acolhida parece uma possibilidade de dar qualidade a seu tempo e a seu tratamento bem como conferir a nossos assistidos o lugar de protagonistas de seu cuidado Isso contribui para minimizar o sofrimento inevitável nesse tratamento Apontamos como importante discussão a ser travada com a equipe de saúde os critérios e bases que motivam o afastamento e a prescrição de saída das escolas de modo a clarificar e divulgar tais critérios Em nosso trabalho cotidiano testemunhamos uma ampla variação desse critério de um assistente para outro o que nos leva a apontar a relevância de sua pactuação na própria equipe de saúde Procuraremos favorecer que a criança deixe de frequentar a escola só quando estritamente necessário tais critérios parecem convocar a discussão de cada caso em sua singularidade Propomos ainda um Fórum Intersetorial com frequência mensal que envolva num primeiro tempo a saúde e a educação no qual serão levantadas as possibilidades e os limites de cada caso e a retomada singular das atividades escolares de cada criança e adolescente por nós assistidos Realizamos desde setembro de 2013 o grupo de pesquisa Impasses no Reingresso Escolar de Crianças e Adolescentes egressos de tratamento oncológico e analisamos caso a caso para enumerar tais impasses e construir junto à educação estratégias singularizadas de retomada de suas atividades escolares por nossos assistidos e seu entorno social mais amplo REFERÊNCIAS BRASIL Ministério da Educação Secretaria de Educação Especial Classe hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar estratégias e orientações Brasília DF MEC 2002 CAVALCANTI R T K Muito além da escola In BRASIL Ministério da Educação Classe hospitalar e atendimento pedagógico domiciliar estratégias e orientações Brasília DF MEC 2002 p 13 CECCIM R B et al Escuta pedagógica à criança hospitalizada In CECCIM R B CARVALHO P R A Org Criança hospitalizada atenção integral como escuta à vida Porto Alegre UFRGS 1997 p 7684 107 COSTA M R L A família a criança e a doença uma versão psicanalítica 2009 Dissertação Mestrado em Psicologia Instituto de Psicologia Universidade Federal do Rio de Janeiro 2009 FONSECA E S CECCIM R B Atendimento pedagógicoeducacional hospitalar promoção do desenvolvimento psíquico e cognitivo da criança hospitalizada Temas sobre desenvolvimento São Paulo v 7 n 42 p 2436 1999 FONTES R S A escuta pedagógica à criança hospitalizada discutindo o papel da educação no hospital Revista Brasileira de Educação n 29 p 119139 2005 GONÇALVES C F VALLE E R M O significado do abandono escolar para a criança com câncer Acta Oncológica Brasileira São Paulo v 19 n 1 p 273279 juldez 1999 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Estimativas da incidência e mortalidade por câncer Rio de Janeiro INCA 2010 KOTTOW M H Comentários sobre Bioética Vulnerabilidade e Proteção In GARRAFA V PESSINI L Org Bioética poder e injustiça São Paulo Centro Universitário São Camilo Loyola 2003 LINDONI C Mucosite e seu tratamento 2013 Disponível em httpwwwdentistaesaude combrindexphpartigos60tratamentodamucositeempacientesdecancer Acesso em 9 set 2013 SAUNDERS C Hospice and Palliative Care an Interdisciplinary Approach London Edward Amold 1990 SOCIEDADE BRASILEIRA DE ONCOLOGIA PEDIÁTRICA O câncer infantil 20 Disponível em httpsobopeorgbrapexfp106138725783191374NODFLPAGEID201 Acesso em 20 ago 2013 TEIXEIRA V M F BRAZ M Estudos sobre o respeito ao Princípio da Autonomia em crianças e adolescentes sob tratamento oncológico experimental através do Processo de Obtenção do Consentimento Livre e Esclarecido Revista Brasileira de Cancerologia Rio de Janeiro v 56 n 1 p 5159 2010 WOLFE J et al Symptoms and suffering at the end of life in children whith cancer New England Journal of Medicine Waltham v 342 n 5 p 326333 feb 2003 Terapia Ocupacional e Oncologia Sutilezas de Uma Clínica Atravessada pela Vida Capítulo 13 111 As práticas de cuidado em terapia ocupacional constituíramse até a década de 1980 como um espelho da prática médica definindose por doenças doentes deficiências e condições de saúde Com os movimentos de redemocratização do país e de reorganização das políticas públicas de saúde no final da década de 1980 os campos na terapia ocupacional passaram então a ser constituídos a partir das demandas das populações e de sua capacidade de negociação por serviços e bens sociais das dinâmicas e particularidades do mercado de trabalho e da construção de discursos e diálogos com as demais profissões MÂNGIA 1998 apud GALHEIGO 2008 p 21 Nesse sentido ganha espaço a atuação do terapeuta ocupacional na área social na atenção básica com a população em situação de rua ou seja em espaços comunitários nos quais esse profissional propõe ações de promoção e proteção de saúde em serviços abertos A inserção do terapeuta ocupacional nas práticas hospitalares é algo recente porém não descolada da própria história da profissão Nossos primeiros campos de atuação lá nos idos do século XX deramse em instituições hospitalares com características asilares para os cuidados de tuberculosos hansenianos e loucos Foi necessária a desconstrução das instituições hospitalares com essas características para que outros campos da terapia ocupacional pudessem se constituir e para que o próprio campo no âmbito hospitalar pudesse se reconfigurar Há de fato certa tensão gerada pelo fato da atuação da terapia ocupacional no hospital de agudos para cuidados clínicos e cirúrgicos ter se constituído ao mesmo tempo em que as medidas de desconstrução do hospital de crônicos estavam sendo implementadas e de que tudo que se identificasse com asilamento institucionalização e segregação fosse firmemente negado enquanto possibilidade humanamente aceitável do cuidado Leiase aqui não apenas a hospitalização e o asilamento de loucos como o de idosos hansenianos pessoas com deficiências físicas e mentais e de crianças jovens e adultos em situação de vulnerabilidade GALHEIGO 2008 p 24 O movimento de reforma sanitária que se consolidou no fim da década de 1980 possibilitou que as ações dos terapeutas ocupacionais inseridos em instituições hospitalares pudessem repensar os modelos de cuidado adotados centrados exclusivamente na doença e na execução de procedimentos Foram propostas práticas que tomassem os pacientes enquanto sujeitos ativos no seu processo de saúdedoença desenhando práticas mais humanizadas e integrais Ao se deparar com o sujeito em sofrimento os profissionais de saúde se veem diante de inúmeras demandas que vão desde o desconhecimento do seu próprio quadro de adoecimento até a angústia e o medo da morte O câncer como uma doença altamente invasiva desde o diagnóstico até o tratamento que provoca rupturas significativas no cotidiano dos pacientes e de seus familiares tem tido bastante atenção no que tange aos aspectos psicossociais O diagnóstico da doença pode ultrapassar a questão patológica em si e reverberar no cotidiano dos pacientes que sofrem diariamente com os tratamentos altamente agressivos e 112 invasivos Poderão vivenciar diferentes situações que irão interferir em seus papéis ocupacionais desenvolvimento e rotina familiar além de provocar sentimentos e representações sociais que são comuns às pessoas com câncer o sentimento de devastação de perda da própria imagem corporal e descontrole de seu próprio corpo a troca de processos fisiológicos aparição de cicatrizes perdas na autonomia de atividade de vida diária AVD a percepção de finitude da vida e alterações de suas funções pessoais em todos os níveis sexual marital de trabalho econômico e social dando lugar a produção de grandes conflitos que necessitam ser resolvidos OLIVEIRA et al 2003 p119 O processo de adoecimento altera muitas vezes de forma brusca e urgente a vida cotidiana de todos os envolvidos seu lugar de vida e seu papel social com sofrimento físico emocional social e familiar levando os sujeitos a dificuldades de adaptação e de autorreconhecimento comprometendo a qualidade e a organização das atividades necessárias para o desenvolvimento físico mental e social saudável No processo de diagnóstico e tratamento devem ser levados em consideração o significado que a vida e a morte têm para o indivíduo sua história seus valores éticos culturais religiosos o momento em que isso ocorre as experiências pessoais e familiares anteriores o estado emocional entre outros Tudo isso reflete de forma significativa como o indivíduo reage se posiciona e se manifesta durante essa nova situação em sua vida PALM 2011 p 488 Ao terapeuta ocupacional cabe inclinarse diante desse sujeito que sofre recuperando o sentido que a palavra clínica traz do grego na sua raiz etimológica Vem do verbo klino que indica a ação de inclinar o ato de inclinarse sobre determinado cliente sobre suas questões seus espaços seus tempos suas vidas VAZ 2011 p 139 Levandose em conta os aspectos psicossociais que atravessam as vidas dos sujeitos com câncer é fundamental que se perceba como esse sujeito interage com a sociedade e processa as suas emoções É necessário que se faça um trabalho com o objetivo de tornar o indivíduo mais ativo de forma que passe de espectador a protagonista de seu tratamento Portanto reconstruir a pessoa de quem tem uma larga e agressiva doença é ressignificar o seu corpoalma que frente a tanto medo agressões e mutilações se tem sedimentado OLIVEIRA et al 2003 p119 Seguindo os apontamentos dados pela PNH a qual define que uma equipe multiprofissional deve ser referência nos cuidados à saúde o terapeuta ocupacional é mais uma ferramenta de apoio e cuidado para o tratamento do câncer Ele desenvolve um papel importante para esses pacientes de forma a auxiliar na participação das atividades cotidianas possibilitando que os indivíduos tenham condições físicas e emocionais para a manutenção e o resgate de seus planos de vida diante das atuais circunstâncias As intervenções da terapia ocupacional podem acontecer em qualquer fase da doença diagnóstico tratamento e cuidados paliativos e devem buscar significar o fazer cotidiano minimizando os possíveis impactos do adoecimento na vida dos sujeitos Serão definidas 113 a partir das necessidades e problemáticas de cada paciente sendo considerado condições clínicas significado que assume a doença para cada pessoa em particular atitude do paciente diante a vida problemática atual condições de saúdedoença precedentes educacionais étnicos religiosos e sociais idade e sexo variáveis psicológicas situação familiar OTHERO 2010 p81 Durante todo o tratamento é importante proporcionar ao paciente um espaço para expressar seus medos e percepções seus projetos de vida favorecer os interesses os contatos sociais e valorizar as potencialidades de cada um As atividades humanas são recursos largamente utilizados na terapia ocupacional como forma de tratamento que irá formar o cotidiano dos sujeitos de modo singular Essas são constituídas por um conjunto de ações que apresentam qualidades demandam capacidades materialidade e estabelecem mecanismos internos para a sua realização CASTRO LIMA BRUNELLO 2001 p 47 Tais atividades podem estar inseridas no campo da arte do trabalho do lazer da cultura do autocuidado e da circulação social Ao indicar uma atividade o terapeuta ocupacional deve considerar se é significativa para o paciente de forma a tornar o processo terapêutico mais prazeroso e motivando o cliente a investir na sua recuperação DORNELAS GALVÃO 2011 p104 Além disso o terapeuta ocupacional deve estimular que o paciente possa adquirir mais consciência de si mesmo e descobrir novos interesses e valores especialmente nestes momentos em que o eu está drasticamente fragmentado pelo processo da doença OLIVEIRA et al 2003 p 120 A partir da perspectiva da integralidade e da humanização do cuidado em saúde e de um olhar menos fragmentado do processo de saúdedoença o terapeuta ocupacional inserese no cuidado à população com câncer Por meio da escuta e do acolhimento cuidadosos ao sujeito adoecido e à sua família será possível acessar os movimentos e as singularidades que marcam a vida de cada um dos pacientes Nesse sentido é importante que o terapeuta ocupacional possa percorrer as diferentes linhas de cuidado independente de qual seja ela o hospital o ambulatório a unidade básica de saúde de forma que os encontros entre terapeuta e paciente possam ser potentes e produzir vida REFERÊNCIAS BRASIL Ministério da Saúde HumanizaSUS Política Nacional de Humanização a humanização como eixo norteador das práticas de atenção e gestão em todas as instâncias do SUS Brasília DF Ministério da Saúde 2004 CASTRO E D LIMA E M F A BRUNELLO M I B Atividades humanas e terapia ocupacional In CARLO M M R P BARTALOTTI C C Org Terapia Ocupacional no Brasil fundamentos e perspectivas São Paulo Plexus 2001 p 4159 DORNELAS A GALVÃO C Avaliação das habilidades psicossociais e componentes psicológicos In ALBUQUERQUE A C GALVÃO C R C Terapia Ocupacional fundamentação prática Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2011 p102105 114 GALHEIGO S M Terapia ocupacional a produção do cuidado em saúde e o lugar do hospital reflexões sobre a constituição de um campo de saber e prática Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo São Paulo v 19 n 1 p 2028 janabr 2008 OLIVEIRA A S et al Reflexões sobre a prática de terapia ocupacional em oncologia na cidade de São Carlos Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar São Carlos v 11 n 2 p 118123 2003 OTHERO M B Org Terapia Ocupacional práticas em Oncologia São Paulo Rocca 2010 PALM R C M Oncologia In ALBUQUERQUE A C GALVÃO C R C Terapia Ocupacional fundamentação prática Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2011 p 487492 VAZ L R Intervenção pela abordagem Junguiana In ALBUQUERQUE A C GALVÃO C R C Terapia Ocupacional fundamentação prática Rio de Janeiro Guanabara Koogan 2011 p 139145 Implicações da Doença Oncológica entre Pacientes com Câncer de Laringe a Singularidade do Cuidado Capítulo 14 117 Introdução A vivência profissional no INCA no ambulatório de cirurgia de cabeça e pescoço clarifica a complexidade do atendimento a pacientes acometidos por neoplasia de laringe os quais podem desenvolver comprometimento de funções corporais essenciais como a respiração a deglutição e a fonação Além disso tanto a doença quanto o tratamento são visíveis na face e no pescoço e portanto perceptíveis para outras pessoas Decorre do exposto a importância de um atendimento que contemple aspectos relacionados à dificuldade ou à impossibilidade de comunicação verbal e às alterações significativas da imagem corporal que por sua vez trazem repercussões no relacionamento interpessoal e consequentemente na dinâmica laborativa dos usuários Com isso destacamos que a proposta do presente estudo está assentada na compreensão de que a condição de saúde dos trabalhadores não está separada da dinâmica social e histórica do trabalho Envolve o coletivo composto por aqueles que vivenciam hoje as mazelas de um contexto marcado pela precarização das condições de trabalho pelo aumento da informalidade e pela consequente restrição de direitos Tal quadro caótico de restrição de direitos é acentuado ou explicitase de forma mais contundente quando ocorre o acometimento por doenças crônicas não transmissíveis que passam a interferir na vida social na organização familiar e sobretudo nas condições de sobrevivência limitando ainda mais o acesso aos serviços e à satisfação das necessidades básicas Não é raro depararmonos com estágios avançados com possibilidade iminente de morte que fazem emergir nos familiares sentimentos de angústia de receio quanto à reação do paciente ao saber do agravamento da doença de conflitos familiares e até mesmo de negação da doença Assim foi desenvolvido um estudo objetivando 1 demonstrar a importância da orientação referente à proteção social no processo saúdedoença a partir da experiência na atenção oncológica e 2 promover a análise dos resultados obtidos na pesquisa tendo como aporte a perspectiva da integralidade e do cuidado em saúde buscando desvendar o que há de específico na demanda oncológica Refletindo sobre a atuação na atenção oncológica Como afirma Sarreta 2008 a implantação e o desenvolvimento do SUS em âmbito nacional requer a atuação do assistente social e dos demais profissionais de saúde no processo de reorganização dos serviços nas ações interdisciplinares e intersetoriais no controle social entre outras demandas buscando fortalecer a perspectiva da universalização do acesso a bens e serviços relativos aos programas e às políticas sociais Somase a isso a necessidade de uma formação profissional em saúde que agregue conteúdos que valorizem o abandono de uma prática educativa de cunho tecnicista ahistórica e acrítica representando uma busca para situar o homem em sua realidade histórica AMÂNCIO FILHO 2004 p 378 Tal formação deverá consistir em um processo que rompa com a dicotomia entre teoria e prática agregando conceitos concernentes ao trabalho à educação e à saúde Entretanto sabemos que infelizmente a formação dos profissionais em saúde ainda permanece centrada na doença desconsiderandoa como resultante das condições de alimentação habitação renda meio ambiente trabalho transporte lazer acesso à posse da terra e a serviços de saúde Desse modo é fundamental a concepção de que a formação dos profissionais não deva ser só técnica tem que compreender cultura sistema e relação já que a atenção integral não se dará desqualificando 118 a cultura das populações a mudança na graduação deve envolver também domínio técnico compreensão dos processos de organização da vida e compreensão de que os eventos de adoecimento não são apenas biológicos são eventos de uma história de vida MACHADO 2004 p16 Os profissionais que lidam de forma direta com o paciente devem partir do pressuposto de que os instrumentos de trabalho no hospital contemporâneo não são apenas as suas instalações e os equipamentos mas o saber dos seus profissionais de saúde categorizados Concordamos com Andrade e Vaitsman 2002 no que tange à concepção que vem se destacando no campo da Saúde Pública a de que o avanço na qualidade dos serviços e das ações de saúde as preventivas ou de promoção só é possível a partir da participação efetiva da população que por sua vez tem a dimensão dos seus problemas e possíveis soluções que atendam às suas necessidades Corroborando o objetivo do estudo podemos afirmar de modo geral que o perfil epidemiológico do câncer vem suscitando mundialmente a preocupação governamental No contexto brasileiro quanto à prevenção e ao controle do câncer o INCA desenvolve ações campanhas e programas em âmbito nacional em consonância com a Portaria GMMS no 874 de 16 de maio de 2013 BRASIL 2013 que institui a Política Nacional para a Prevenção e o Controle do Câncer na Rede de Atenção à Saúde das Pessoas com Doenças Crônicas no Âmbito do SUS Essa portaria considera a diversidade regional e reconhece a integralidade como diretriz para a organização da linha de cuidados em atenção oncológica a fim de garantir condições de acesso aos cuidados em oncologia e diagnóstico precoce na rede básica de saúde Schreider e Monteiro 2013 acrescentam que o tratamento oncológico agrega outras inúmeras demandas entre elas as que se referem ao acesso considerando a localização da moradia e a distância até o Instituto bem como as despesas e outros entraves à continuidade do tratamento de modo que o processo que envolve o adoecimento exige o desenvolvimento de ações de atendimento prevenção e promoção da saúde além do acesso aos direitos previdenciários e trabalhistas enquanto aspectos determinantes da sobrevivência Nesse contexto a demanda por renda tem caráter central Por compreendermos esse caráter recorremos à análise de dados secundários dos prontuários de portadores de câncer de laringe matriculados no ambulatório da seção de cirurgia de cabeça e pescoço do INCA no período de 1 de março de 2012 a 23 de maio de 2013 Reconhecemos que o conhecimento sobre a doença e sua evolução permite o estabelecimento de prioridades em relação ao atendimento prestado com ênfase na orientação previdenciária iniciando um processo reflexivo pautado na socialização de informações e na promoção da educação em saúde Pesquisa e resultados Os dados apresentados neste capítulo foram recortados da pesquisa Assistência aos portadores de câncer de laringe sob a perspectiva da integralidade a abordagem interdisciplinar do assistente social e do enfermeiro no INCA de maior abrangência e realizada com financiamento próprio O grupo de pesquisadores19 partiu da análise de dados secundários No período escolhido para o estudo foram matriculados no ambulatório de cirurgia de cabeça e pescoço 153 pacientes portadores de tumores de laringe com diagnóstico histopatológico de carcinoma epidermoide 19 Projeto de pesquisa aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do INCA sob o nº CAAE 17952413400005274 119 Desse total 122 pacientes foram atendidos no setor de serviço social de modo que o público restante n31 foi incluído no presente estudo como não informado Tabelas 2 e 3 Nesse sentido deve ser ressaltado que na realização de todo o processo de pesquisa foram reconhecidos e respeitados os princípios e critérios éticos presentes na Resolução no 196 de 1996 e complementares do Ministério da Saúde quanto à pesquisa envolvendo seres humanos BRASIL 1996 bem como aqueles relacionados ao Código de Ética Profissional do Assistente Social CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL 1993 Foram considerados os dados das pessoas com idade igual ou superior a 18 anos e as variáveis coletadas incluíram sexo idade naturalidade cor estado civil escolaridade município de domicílio tabagismo etilismo situação habitacional situação trabalhista previdenciária eou assistencial ocupação renda familiar participativa renda mensal familiar e condição de provedor da família Conforme a Tabela 1 a maioria dos pacientes pertence ao sexo masculino n134 88 com idades variando entre 46 a 65 anos n99 647 afirmando estarem casados ou em união consensual n87 57 A cor branca foi identificada em 93 pacientes 61 Quanto à moradia pouco mais da metade reside fora da cidade do Rio de Janeiro n79 52 O nível de escolaridade mais frequente foi o Ensino Fundamental n107 70 Entre os participantes do estudo tabagismo 9477 e etilismo 8431 foram citados frequentemente Tal dado ratifica o que Maciel Leite e Soares 2010 classificam como os fatores de risco mais bem estabelecidos para o câncer de laringe O risco carcinogênico do fumo tem grande magnitude principalmente quando associado ao álcool O álcool sozinho tem importância moderada mas juntandose com o tabaco parece aumentarlhe a potência como fator de risco MACIEL LEITE SOARES 2010 p129 120 Tabela 1 Distribuição segundo as características dos portadores de câncer de laringe matriculados no período de 1 de março de 2012 a 23 de maio de 2013 Características N Sexo Masculino 134 8758 Feminino 19 1241 Faixa etária De 18 a 45 anos 3 196 De 46 a 65 anos 99 647 66 anos ou mais 51 3333 Cor Brancapele claraclara 93 6078 Pardamorenamulatamestiça 42 2745 Pretanegraafricanaescura 18 1176 Município de domicílio Rio de Janeiro Capital 74 4836 Municípios fora do Rio de Janeiro Capital 79 5163 Estado civil Casadounião consensual 87 5686 Separadodivorciado 18 1176 Solteiro 31 2026 Viúvo 17 1111 Escolaridade Analfabetoalfabetização de adultos 14 915 Ensino Fundamental completo ou incompleto 107 6993 Ensino Médio completo ou incompleto 22 1437 Ensino Superior completo ou incompleto 10 653 Tabagismo Sim 145 9477 Não 8 522 Etilismo Sim 129 8431 Não 24 1568 Total 153 100 Fonte Dados da pesquisa No que se refere às condições sóciohabitacionais trabalhistas previdenciárias eou assistenciais dos pacientes Tabela 2 verificase que a maioria deles possui residência própria n102 667 encontrase em atividade laborativa n48 314 e possui vínculo autônomo com a Previdência Social n45 294 Entre os tipos de ocupação apesar de 54 prontuários 353 não terem informação registrada prevaleceram as profissões de pedreiro n29 19 e auxiliar de serviços gerais n25 163 121 Tabela 2 Distribuição segundo as características sóciohabitacionais trabalhistas e previdenciárias Condição sóciohabitacional N Própria 102 667 Alugada 10 65 Cedida 6 39 Agregada 1 07 Financiada 1 07 Instituição de longa permanência ILP 1 07 Área de risco 1 07 Não informado 31 203 Situação trabalhista previdenciáriaassistencial Ausente 29 19 Aposentado 5 33 Aposentado por invalidez 4 26 Em auxíliodoença 14 92 Aguardando decisão do INSS 6 39 Pensionista 5 33 Em atividade 48 314 Bolsa Família 3 2 Benefício de prestação continuada BPC 8 52 Não informado 31 203 Vínculo Nunca trabalhou 23 15 Celetista 13 85 Autônomo 45 294 Servidor público 1 07 Militar 2 13 Informal 36 235 Não informado 33 216 Profissão Pedreiro 29 19 Cozinheira 12 78 Advogado 3 2 Auxiliar de serviços gerais 25 163 Cabeleireira 6 39 Corretor 2 13 Assistente administrativo 6 39 Doméstica 16 105 Não informado 54 353 Total 153 100 Fonte Dados da pesquisa No que tange à renda Tabela 3 a maioria dos pacientes conta com renda familiar participativa n85 556 em valor superior a um salário mínimo e até dois salários mínimos n46 315 enquadrandose no perfil de provedor da família n79 516 122 Tabela 3 Distribuição segundo a existência de renda familiar participativa e da condição de provedor da família Características N Renda familiar participativa Sim 85 556 Não 33 216 Não informado 35 229 Renda familiar Até 1 salário mínimo 42 275 Mais de 1 até 2 salários mínimos 46 315 Mais de 2 até 5 salários mínimos 12 78 Mais de 5 salários mínimos 7 46 Não informado 46 301 Provedor da família Sim 79 516 Não 39 255 Não informado 35 229 Total 153 100 Fonte Dados da pesquisa Discussão O hospital enquanto espaço organizado para atender aos cuidados necessários ao paciente ocupa na sociedade ocidental um lugar central e quase naturalizado no que concerne à prestação de serviços direcionados à saúde à doença e à morte Convém assim destacar que as demandas que chegam aos profissionais atravessam as fronteiras das questões relativas à Política de Saúde estão atreladas à assistência exigindo conhecimento da rede por parte do profissional compreendendo a saúde como um estado físico mental e social e não somente como a ausência de doenças ALCANTARA SANTANNA SOUZA 2013 O Ministério da Saúde classifica o câncer como doença crônica não transmissível DCNT por ser multifatorial e estar relacionado a fatores de risco não modificáveis como idade sexo e raça e aos modificáveis destacandose o tabagismo o consumo excessivo de bebidas alcoólicas a obesidade as dislipidemias determinadas principalmente pelo consumo excessivo de gorduras saturadas de origem animal o consumo excessivo de sal a ingestão insuficiente de frutas e verduras e a inatividade física Estimativas da Organização Mundial da Saúde OMS apontam que as DCNT já são responsáveis por 585 de todas as mortes ocorridas no mundo e por 459 da carga global de doença constituindo um sério problema de saúde pública tanto nos países ricos quanto nos de média e baixa renda agravando as iniquidades e aumentando a sua pobreza BRASIL 2013 Estudos recentes demonstram que as DCNT constituem o problema de saúde de maior magnitude no Brasil Atingem fortemente camadas pobres da população correspondendo a 72 das causas de mortes e a 75 dos gastos com atenção à saúde no SUS BRASIL 2013 No que tange ao presente estudo é importante destacar a estimativa de aproximadamente 6110 casos novos de câncer de laringe risco estimado de 6 casos a cada 100 mil homens INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCE JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2011 Quanto ao tratamento Maciel Leite e Soares 2010 sinalizam que 123 a fala é afetada em todo o tipo de radioterapia da laringe por e sua vez a deglutição também se mostra prejudicada Este conjunto de efeitos por si só compromete a qualidade de vida do paciente após o tratamento Separar os efeitos do câncer daqueles inerentes ao tratamento é difícil No entanto dentre as complicações é possível citar como de destaque aquelas do campo social nas quais se nota uma ruptura no convívio do paciente com as outras pessoas MACIEL LEITE SOARES 2010 p127 Tal comprometimento da qualidade de vida evidencia a importância de a abordagem ao paciente ter início precocemente de preferência na primeira consulta do paciente na clínica de modo a possibilitar que a equipe interaja e possa subsidiar o entendimento do diagnóstico dos processos de tratamento e dos serviços existentes na instituição Esse movimento também encontra justificativa nos resultados obtidos na pesquisa uma vez que verificamos a preponderância de usuários provedores da família n79 516 com vínculo previdenciário autônomo n45 294 e com renda familiar de até 2 salários mínimos n46 315 A orientação previdenciária na conjuntura da avaliação social realizada adquire suma importância pela repercussão na dinâmica sociofamiliar do usuário não abrangido pela Previdência Social ou outras formas de proteção social a exemplo do Programa Bolsa Família n3 2 e do BPC n8 52 A condição de ausência de vínculo previdenciário ou assistencial atrelada na maioria dos casos à baixa qualificação e ao baixo rendimento é agravada quando o paciente eou seu cuidador são os provedores da família Desse modo a compreensão de que o tratamento oncológico pode vir a exigir do paciente o afastamento do trabalho por tempo indeterminado por ser prolongado e recorrentemente limitador da atividade laborativa exige dos profissionais de saúde a troca de informações e a necessidade de anteciparse às situações que potencialmente possam repercutir negativamente no curso do tratamento Nos atendimentos é necessário transmitir orientações que permitam a inserção dos usuários na tomada de decisão Verificamos também na atuação cotidiana que muitos pacientes desconhecem os meios de acesso aos recursos de assistência à saúde e aos recursos sociais tendo o acesso aos benefícios previdenciários dificultado pela falta ou perda da qualidade de segurado20 Isso reforça a necessidade da atuação interdisciplinar para que sejam identificadas expressões da questão social que venham a repercutir na continuidade do tratamento Importante ressaltar que uma quantidade significativa de usuários não está inserida no mercado de trabalho n29 19 ou possui trabalho informal n36 235 o que leva a equipe de serviço social a primar pelo desenvolvimento de ações coletivas de modo a contemplar a educação em saúde como um diferencial no acesso dos pacientes aos seus direitos O atendimento aos pacientes do HCI evidencia cotidianamente as condições vivenciadas por eles sendo essas muitas vezes desencadeadoras do próprio adoecimento Nesse sentido os usuários verbalizam a exposição a condições insalubres com o ingresso em trabalhos temporários com ou sem vínculo previdenciário precários com riscos para sua vida submetidos a exigências 20 Sobre a manutenção e perda da qualidade de segurado consultar Art 10 Instrução normativa INSSPRES nº 45 de 06 de agosto de 2010 DOU DE 11 de agosto de 2010 INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL 2010 124 pressões insegurança e fadiga A orientação referente à proteção social disponível ao paciente assume no contexto do atendimento uma dimensão fundamental O que tem de comum o camelô o biscateiro o empregado pela própria família o trabalhador sazonal e o desempregado Além da precariedade das condições de manutenção da própria existência e dos seus dependentes a ausência de cobertura por morte morbidade invalidez aposentadoria etc Tal quadro legitima a afirmação de que a terceirização seria um determinante do caldo em que estamos mergulhados de dialética histórica entre pósmodernidade e medievalização MELO et al1998 p 211212 Como desfecho sinalizamos que longe de ser uma defesa aos critérios hoje estabelecidos pela Previdência Social e compreendendo os limites de um sistema de Seguridade Social híbrido entre o seguro e a assistência buscamos por meio deste breve estudo demonstrar que o processo de adoecimento requer dos profissionais o desenvolvimento de ações de atendimento prevenção e promoção da saúde sobretudo as que viabilizem o acesso dos usuários aos direitos previdenciários assistenciais e trabalhistas enquanto aspectos determinantes da sobrevivência e que influenciam drasticamente na adesão efetiva dos usuários e de seus familiares ao tratamento Considerações finais Partimos da concepção de que a atenção oncológica requer um tratamento especializado que coadune a atenção e o cuidar em saúde entre o usuário a família e a equipe de saúde primando pelas práticas de educação e comunicação em saúde A complexidade do setor saúde pressupõe envolvimento dos diversos saberes exigindo o exercício de uma comunicação efetiva entre os profissionais no respeito ao conhecimento de cada um no processo e entre os profissionais e os usuários facilitando a troca de informações e o acolhimento No presente estudo julgamos pertinente relatarmos nossa experiência junto aos pacientes portadores de câncer de laringe enquanto iniciativa que possibilita além do vínculo com a equipe e da ação mais resolutiva a expressão efetiva das demandas relativas ao adoecimento eou à iminência da morte REFERÊNCIAS ALCANTARA L S SANTANNA J L SOUZA M G N Adoecimento e finitude considerações sobre a abordagem interdisciplinar no Centro de Tratamento Intensivo oncológico Ciência Saúde Coletiva Rio de Janeiro v 18 n 9 p 25072514 set 2013 AMÂNCIO FILHO A Dilemas e desafios da formação profissional em saúde Interface Comunicação Saúde Educação Botucatu v 8 n 15 p 375380 marago 2004 ANDRADE G R B VAITSMAN J Apoio social e redes conectando solidariedade e Saúde Ciência Saúde Coletiva Rio de Janeiro v 7 n 4 p 925934 2002 BRASIL Ministério da Saúde As doenças crônicas não transmissíveis 2013 Disponível em httpportalsaudegovbr404html Acesso em 3 nov 2013 125 BRASIL Ministério da Saúde Portaria nº 874 de 16 de maio de 2013 Disponível em http bvsmssaudegovbrbvssaudelegisgm2013prt087416052013html Acesso em 24 nov 2013 BRASIL Ministério da Saúde Resolução nº 196 de 10 de outubro de 1996 Diário Oficial da República Federativa do Brasil Pode Executivo Brasília DF 16 out 1996 Seção 1 p21082 CONSELHO FEDERAL DE SERVIÇO SOCIAL Código de Ética Profissional do Assistente Social 10 ed rev e atual Brasília DF Conselho Federal de Serviço Social 1993 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Estimativa 2012 incidência do câncer no Brasil Rio de Janeiro Inca 2011 INSTITUTO NACIONAL DO SEGURO SOCIAL Brasil Instrução normativa INSSPRES nº 45 de 06 de agosto de 2010 DOU de 11082010 Disponível em httpwww3dataprevgov brsislexpaginas38insspres201045htm Acesso em 20 mar2013 MACHADO K Integralidade a cidadania do cuidado Radis comunicação e saúde Rio de Janeiro n 27 p 1516 nov 2004 MACIEL C T V LEITE I C G SOARES T V Câncer de laringe um olhar sobre a qualidade de vida Revista Interdisciplinar de Estudos Experimentais Juiz de Fora v 2 n 4 p 126134 2010 MELO A I S C et al Na corda bamba do trabalho precarizado a terceirização e a saúde dos trabalhadores In MOTA A E Org A nova fábrica de consensos ensaios sobre a reestruturação empresarial o trabalho e as demandas ao serviço social São Paulo Cortez 1998 SARRETA F O O trabalho do Assistente Social na saúde Ciência et Praxis Passos v 1 n 2 p 3946 juldez 2008 SCHREIDER E MONTEIRO M V C Serviço Social e a atenção à saúde de crianças e adolescentes em tratamento oncológico In SOARES M C M COSTA N F Org O Serviço Social na teoria e na prática desafios contemporâneos Rio de Janeiro SUAM 2013 Dor Total e Sofrimento Psíquico no Paciente Oncológico Capítulo 15 129 Introdução A dor é uma das mais frequentes razões de incapacidade e sofrimento para pacientes com câncer em progressão Em algum momento da evolução da doença 80 dos pacientes experimentarão algum tipo de dor BRASIL 2001 Nos últimos 20 anos as técnicas de tratamento de câncer sofreram significativas mudanças para tanto tornouse imprescindível uma abordagem multiprofissional desses pacientes para uma reabilitação global nos âmbitos físico psicológico social e profissional CAMARGO MARX 2000 Será que a dor física observada na maioria dos pacientes com câncer principalmente naqueles em estadiamento avançado seria a causa exclusiva de sofrimento psíquico Baseados nas experiências empíricas da clínica oncológica a resposta seria não E em uma perspectiva de entendermos a gênese da dor física discorreremos brevemente sobre a neurofisiologia dolorosa para depois trabalharmos com o conceito de dor total introduzido pela médica inglesa Cicely Saunders na década de 1960 dor essa que descreve efetivamente o sofrimento psíquico do paciente oncológico De acordo com a International Association for the Study of Pain 1986 dor é uma sensação ou experiência emocional desagradável associada a danos teciduais reais ou potenciais ou descrita nos termos de tal dano Dor é sempre subjetiva e pessoal BRASIL 2001 p15 Sendo assim a severidade da dor pode não estar diretamente ligada à proporção da quantidade de tecido lesado pois muitos fatores podem influenciar a percepção desse sintoma fadiga depressão raiva medo muito grande da dor e da incapacitação ansiedade sentimentos de falta de esperança e desamparo Embora existam aspectos comuns a avaliação e a intervenção na dor aguda e na dor crônica devem ser diferentes Os relatos de dor aguda têm ênfase nas características da dor nas repercussões biológicas da dor ao passo que os relatos de dor crônica enfatizam além desses aspectos psicossociais e culturais que devem ser incluídos A dor apresenta várias dimensões possibilitando diversas descrições das suas qualidades e a sua percepção pode ser subjetivamente modificada por experiências passadas KOPF PATEL 2009 p 123 Dor aguda Caracterizada pelo início súbito podendo ser causada por infecção lesão ou progressão de uma disfunção metabólica ou de uma doença degenerativa Estimase que desapareça após intervenção na causa cura da lesão imobilização ou em resposta a medicamentos A dor aguda tem tendência a responder rapidamente às intervenções na causa e não costuma ser recorrente Ela provoca respostas neurovegetativas como aumento da pressão arterial taquicardia taquipneia agitação psicomotora e ansiedade podendo ser de forte intensidade ou incapacitante com alto impacto na qualidade de vida BRASIL 2001 Dor crônica Vai além do prolongamento da dor aguda sendo esse um conceito básico mas pouco assimilado pelos profissionais de saúde envolvidos no tratamento de pacientes oncológicos ou não e é diagnosticada quando a dor dura mais que seis meses KOPF PATEL 2009 As estimulações nociceptivas repetidas levam a uma variedade de modificações no SNC Mal delimitada no tempo e no espaço é a que persiste por processos patológicos crônicos de forma 130 contínua ou recorrente sem respostas neurovegetativas associadas e com respostas emocionais de ansiedade e depressão frequentes As respostas físicas emocionais e comportamentais ao quadro álgico podem ser atenuadas ou acentuadas por variáveis biológicas psíquicas e socioculturais do indivíduo e do meio Tem padrão evolutivo e intensidade com variação individual BRASIL 2001 Dor nociceptiva A dor nociceptiva abarca a dor visceral e a somática Ocorre com frequência em situações inflamatórias traumáticas invasivas ou isquêmicas A dor somática surge da lesão da pele ou dos tecidos mais profundos e é comumente localizada A dor visceral tem sua origem nas vísceras abdominais eou torácicas e é frequentemente associada a outros sintomas como náusea e vômitos Ambas têm boas respostas a analgésicos opiáceos e não opiáceos BRASIL 2001 A dor no câncer Os mecanismos que levam a dor no câncer podem ser variados e normalmente se apresentam como Lesão direta provocada pelo tumor ou por processo inflamatório Compressão de estruturas em razão de crescimento tumoral edema peritumoral infecção e necrose Oclusão vascular Obstrução visceral em função da expansão do tumor Consequências do tratamento oncológico Outros fatores não relacionados ao câncer A dor física não pode ser encarada e tratada nos pacientes oncológicos sem considerar vários aspectos imbricados em sua gênese mesmo porque as abordagens farmacológicas por si só não são suficientes para a resolutividade do problema A dor observada nos pacientes com câncer principalmente naqueles com doença avançada é um dos motivos de sofrimento psíquico na clínica oncológica O alívio da dor é atualmente visto como um direito humano básico e portanto tratase não apenas de uma questão clínica mas também de uma questão ética e moral que envolve todos os profissionais de saúde Cerca de 80 dos pacientes oncológicos tem dor não tratada adequadamente em algum momento de sua doença Dor e câncer não são sinônimos FIGUEIREDO 2006 p 46 entretanto é o principal sintoma não controlado de pacientes com câncer Dor é uma importante causa de depressão sensação de impotência e abandono Gera um processo de retroalimentação dor depressão mais dor Dor é sempre subjetiva e pessoal assim como o sofrimento gerado por ela O sofrimento foi definido no Guía de Práctica Clínica en el SNS como un complejo estado afectivo y cognitivo negativo caracterizado por la sensación que tiene el individuo de sentirse amenazado en su integridad por el sentimiento de impotencia para hacer frente a dicha amenaza y por el agotamiento de los recursos personales y psicosociales que le permitirían afrontarla ESPANHA 2008 p 282 131 Mediante o exposto o paciente com câncer passa por vários processos de transformação em sua condição de ser humano em que sua dignidade terá que ser respeitada e protegida para tanto esse homem que é um ser biopsicossocial deverá ser tratado com uma visão integral por um sistema de saúde também integral voltado a promover proteger e recuperar sua saúde numa abordagem multidimensional RONCALLI 2003 Na década de 1960 Cicely Saunders introduziu o conceito de dor total constituída por vários componentes físico mental social e espiritual Esse conceito mostra a importância de todas essas dimensões do sofrimento humano Mostra também que e o bom alívio da dor não é alcançado sem dar atenção a essas áreas Cicely Saunders concluiu que a dor persistente carece de controle constante Sendo assim a dor não pode ser separada da personalidade e do ambiente do paciente com doença avançada e fatal Para tanto uma abordagem interdisciplinar e a presença de uma equipe multiprofissional para que se obtenha o máximo sucesso no tratamento dessa pessoa se faz imprescindível SAUNDERS 1980 Segundo a mesma autora o sofrimento somente é intolerável quando ninguém cuida SAUNDERS 1980 Pacientes com doença avançada deparamse com muitas perdas perda da normalidade da saúde de potencial de futuro A dor impõe limitações no estilo de vida particularmente na mobilidade paciência resignação podendo ser interpretada como um saldo da doença que progride provocando muitas vezes luto antecipatório21 FONSECA 2004 Qualquer doente com câncer ou outra doença crônica evolutiva em fase final de vida está sujeito à dor total Esses pacientes deverão receber cuidados intensivos de conforto e gestão do sofrimento principalmente por serem direitos do ser humano assim como o apoio e a assistência nas suas fases de adoecimento O conceito de dignidade aponta para a adequada atitude em relação à pessoa a sua reta compreensão o que a filosofia contemporânea chama de reconhecimento Sabese que o reconhecimento é uma das gradações do cuidado BARZOTTO 2010 WORLD HEALTH ORGANIZATION 2002 MAIA 2009 Os cuidados deverão ter início desde o diagnóstico numa perspectiva humanista e solidária antecipando os sintomas e reduzindo sensivelmente o sentimento de menosvalia dos pacientes e suas respectivas famílias no conflito gerado por uma doença crônica evolutiva como câncer Esses cuidados se afinam com a filosofia dos cuidados paliativos que afirmam a vida e tratam a morte como um processo normal e não implicam apressar ou adiar a morte Nesse contexto integram os aspectos psicossociais e espirituais nos cuidados ao paciente oferecendo um sistema de apoio e ajuda para que vivam tão ativamente quanto possível até a morte WORLD HEALTH ORGANIZATION 2002 O conceito de cuidados paliativos da Organização Mundial da Saúde destaca o atendimento interdisciplinar com objetivo de alcançar a qualidade de vida do paciente e de seus familiares diante de uma doença que ameace a vida considerandose principalmente os aspectos da bioética autonomia veracidade beneficência não maleficência e justiça o que garante o direito à saúde e o respeito à cidadania de todos WORLD HEALTH ORGANIZATION 2002 Segundo Reich 1978 bioética é um estudo sistemático da conduta humana na área das ciências da vida e dos cuidados de saúde quando se examina esse comportamento à luz dos valores 21 O luto antecipatório é um fenômeno que se desenvolve quando o paciente eou os familiares se deparam com uma condição de morte anunciada 132 e dos princípios morais Definição empregada na Encyclopedia of Bioethics que traz o caráter de bioética aplicada significando um sistema de reflexão e não uma nova moralidade ou sistema ético CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO 2008 p 577 Essa reflexão deverá pautar a nossa pergunta inicial Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Acreditamos que é necessário estabelecer uma ética do cuidado o quanto antes defender um tratamento em que a dignidade da pessoa humana esteja em primeiro lugar Devemos desenvolver atitudes morais e compromissadas com o bemestar de nossos pacientes resguardando com isso um percurso de tratamento mais harmonioso resolutivo e consequentemente menos sofrido REFERÊNCIAS BARZOTTO L F Pessoa e reconhecimento uma análise estrutural da dignidade da pessoa humana In ALMEIDA FILHO A MELGARÉ P Org Dignidade da Pessoa Humana fundamentos e critérios interpretativos São Paulo Malheiros 2010 BRASIL Ministério da Saúde Instituto Nacional de Câncer Cuidados paliativos oncológicos controle da dor Rio de Janeiro INCA 2001 CAMARGO M C MARX A G Reabilitação física no câncer de mama São Paulo Roca 2000 CONSELHO REGIONAL DE MEDICINA DO ESTADO DE SÃO PAULO Cuidado Paliativo São Paulo Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo 2008 FIGUEIREDO M T A Coord Coletânea de textos sobre Cuidados Paliativos e Tanatologia São Paulo sn 2006 FONSECA J P Luto antecipatório Campinas Livro Pleno 2004 INTERNATIONAL ASSOCIATION FOR THE STUDY OF PAIN Subcommittee on Taxonomy Classification of chronic pain descriptions of chronic pain syndromes and definitions of pain terms Pain Supplement Amsterdam n 3 p 1226 1986 KOPF A PATEL N B Guia para o tratamento da dor em contextos de poucos recursos Seattle IASP 2009 MAIA M S Org Por uma ética do cuidado Rio de Janeiro Garamond 2009 ESPANHA Ministerio de Sanidad y Consumo Guías de práctica clínica en el SNS Vitoria Gasteiz 2008 REICH W T Encyclopedia of Bioethics New York Free PressMacmillan 1978 RONCALLI A G O desenvolvimento das políticas públicas de saúde no Brasil e a construção do Sistema único de Saúde In PEREIRA A C Odontologia em Saúde Coletiva planejando ações e promovendo saúde Porto Alegre Artemed 2003 p 2849 WORLD HEALTH ORGANIZATION National cancer control programmes policies and managerial guidelines 2 ed Geneva World Health Organization 2002 SAUNDERS C Caring to the end Nursing Mirror n 4 p 4347 1980 Um Olhar Sobre os Aspectos Relevantes que Envolvem o Sofrimento Psíquico do Paciente Oncológico Capítulo 16 135 O lidar com o sofrimento do outro não é tarefa fácil principalmente quando ele vem acompanhado da dor da insegurança da depressão e do receio trazidos por um diagnóstico de câncer que impacta na rotina do indivíduo e na de sua família Nesse sentido a tarefa dos psicólogos e de todos os membros de uma equipe multidisciplinar deve estar direcionada à escuta e ao apoio pessoal Trabalhar com pacientes oncológicos é envolverse com a prevenção o tratamento a reabilitação e a fase terminal visando ao atendimento integral do paciente para diminuir o sofrimento inerente ao processo da doença COSTA NAKAMOTO ZENI 2009 O câncer pode ser caracterizado pela perda do controle da divisão celular e a capacidade de invadir outras estruturas metástases pois essas células tendem a ser muito agressivas e invasivas formando tumores desencadeados a partir de um crescimento celular desordenado INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER 200 Trazendo a nossa reflexão para o aspecto psicológico ressaltase que toda doença encontra se repleta de subjetividade Com isso o papel do psicólogo e de toda a equipe multidisciplinar envolvida no atendimento ao paciente oncológico é de extrema importância pois é necessário focar no sujeito além da doença abordando vivências relativas ao adoecer e possibilitando não só a elaboração do sofrimento psíquico implicado nesse contexto mas também a reapropriação do sentido da vida permitindo uma maior compreensão do paciente sobre o significado do câncer em sua existência É preciso olhar para as pessoas doentes e não para a doença evidenciando o sujeito acometido pelo câncer dentro de sua história pessoal ou seja lembrar que ali existe um sujeito não um determinado tumor que inclusive o nomeia ANGERAMICAMON 1994 A principal tarefa dos profissionais das diversas áreas é resgatar vida nesses pacientes englobando os aspectos físicos e psíquicos para assim permitir a eles revelarem seus medos desejos emoções e sentimentos É fundamental estar em contato autêntico com esse ser humano E no caso do psicólogo ele se vale de seu único e legítimo instrumento a palavra E já que o foco está na palavra O trabalho clínico consiste em ajudar a pessoa a reencontrar a magia das palavras FREUD 1980 O diagnóstico de uma doença grave como o câncer exige alteração de papéis e busca de estratégias para o enfrentamento do problema e a adaptação às mudanças uma vez que quebra o equilíbrio homeostático e provoca desequilíbrio psicológico do indivíduo gerando a concomitância do sofrer físico e orgânico com o sofrer psíquico originado pela doença Perda da autoestima dores fortes ansiedade medo da morte estresses aborrecimentos interrupção dos planos de vida mudanças da imagem corporal e dos estilos social e financeiro são fatores extremamente relevantes dentro do contexto de avaliação do sofrimento psíquico pois deixam os pacientes desmotivados e deprimidos Não há dúvidas que a eficácia do tratamento dependerá muito do estado emocional do paciente É necessário enfrentar lidar lutar diante do diagnóstico de câncer O enfrentamento é um fator relevante para a qualidade de vida pois traz por exemplo a potencialização da esperança como estratégia importante para a trajetória do câncer que pode mudar o transcorrer do tratamento Na fase inicial do diagnóstico a esperança aparece em geral focada na cura Já na fase terminal a esperança pode centrarse nos aspectos gratificantes de viver o momento presente propiciando no futuro por exemplo uma morte tranquila 136 A partir de uma perspectiva psicanalítica podese falar não de um processo analítico mas de uma escuta analítica em que há um sujeito de um suposto saber e um desejo do analista que pode levar o paciente a elaborar e a lidar melhor com a situação traumática vivida Aquele que adoece e sofre é um sujeito e não um corpo FIGUEIREDO 2002 Portanto sua fala não deve ser vista prioritariamente como manifestação patológica a qual exige correção mas sim como possibilidade de fazer emergir uma dimensão singular da queixa enquanto pedido de ajuda O suporte psicológico e do tratamento em geral oferecido ao paciente deve pautarse no esclarecimento e na afirmação de que a doença é um marco em sua trajetória e não um fim sentenciado pelo diagnóstico E aqui entra a importância da interação completa da medicina com a psicologia O objetivo maior das equipes multidisciplinares é contemplar os pacientes em sua totalidade psíquica visando a resgatar continuamente a perspectiva humana mesmo diante dos inúmeros procedimentos técnicos O paciente precisa retomar o sentido da existência É preciso fazêlo resgatar suas forças e concentrarse em seus projetos de vida dando a ele a oportunidade de falar de suas dores elaborar suas perdas e refletir sobre suas escolhas entendendo melhor o significado pessoal do câncer para sua vida E é com a escuta clínica o apoio psicológico oferecido a ele e a seus familiares e cuidadores além do tratamento humanizado e individualizado prestado por toda a equipe multidisciplinar que podemos chegar à efetiva diminuição do sofrimento psíquico do paciente oncológico Como em todo processo de adoecer ao reconhecer o diagnóstico o paciente passa a perceberse enfermo e adota uma nova condição ser doente e portanto ser passivo É importante fortalecer as considerações dos sentimentos do outro pois para os pacientes o relacionamento humano é a essência do cuidado que sustenta a fé e a esperança nos momentos mais difíceis Sendo assim a preocupação com o ser humano e o alívio de sua dor seja física seja emocional são deveres de toda a equipe que está atuando Seja qual for a origem dos sintomas e do quadro geral que o paciente apresenta é necessário explicar da melhor forma possível o que está ocorrendo e as possíveis questões que possam preocupálo Também a família deve estar bem informada SÁNCHEZ 2000 Nosso olhar deve estar atento ao fato de que o paciente está vivendo um emaranhado de emoções que incluem a ansiedade lutas pela sua dignidade e conforto além de um acentuado receio do porvir que está relacionado com as alterações na sua rotina diária composta por necessidades que vão além do cuidado médico Ele precisa de apoio precisa sentirse digno amparado e protegido Enfim o câncer ainda assusta muito as pessoas e não se deve menosprezar esse sentimento em relação à doença É preciso valorizar essas vivências relacionadas ao adoecimento para compreender os aspectos psicológicos que envolvem o sofrimento físico É uma parte do corpo que está doente mas existe no corpo um sujeito único e singular que está lidando com suas fragilidades receios e medos 137 REFERÊNCIAS ANGERAMICAMON V A Org Psicologia Hospitalar teoria e prática São Paulo Pioneira 1994 COSTA C L NAKAMOTO L H ZENI L L Psicooncologia em discussão São Paulo Lemar 2009 FIGUEIREDO A C Vastas confusões e atendimentos imperfeitos 3 ed Rio de Janeiro Relume Dumará 2002 FREUD S Título do capítulo In Conferências introdutórias sobre psicanálise I e II Rio de Janeiro Imago 1980 Edição standart brasileira das obras psicanalíticas completas de Sigmund Freud v 15 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER Brasil Estimativa da incidência de câncer para 2008 no Brasil e nas cinco regiões 200 Disponível em http wwwincagovbrconteudoviewasp id1793 Acesso em 29 mar 2014 KUBLERROSS E Sobre a morte e o morrer 8 ed São Paulo Martins Fontes 1998 SÁNCHEZ 2000 Dificuldades do paciente em receber o diagnóstico de que está com câncer Recuperado de httpwwwpsicologianetcombrdificuldadesdopacienteaorecebero diagnosticodequeestacomcancer2272 O Hospital como Lugar de Produção da Identidade Paciente Problematizando Discursos e Práticas de Saúde Capítulo 17 141 Introdução Nos corredores de um hospital especializado em oncologia todos os dias pessoas passam de um lado para o outro Adultos e crianças Muitos sem cabelo alguns com feridas no rosto e pescoço cobertas com curativos grandes e pequenos Cruzam os corredores também muitos profissionais usando roupas brancas já que é obrigatório o uso de jaleco branco para grande parte dos que atuam na assistência aos pacientes22 Assim os pacientes crianças e adultos submetidos ao tratamento oncológico vivenciam uma rotina em que o espaço físico dividese em alas leitos medicações cadeiras de rodas e higiênicas poltronas para acompanhantes salas de cirurgia postos de enfermagem uniformes brancos quartos com janelas fechadas cobertas por película escurecida que muitas vezes inviabiliza até mesmo a entrada da luz do sol O arcondicionado frio em demasia ressalta a rigidez do ambiente justificada pelo medo de infecção O odor constante em algumas alas é muito intenso e a cor branca e bege das paredes da maioria dos quartos e das escadas contribui para a falta de alegria e potência no hospital que muitas vezes parece hostil sem cor sem calor A preocupação com os registros e a relevância que a disciplina tem no cotidiano hospitalar parece substituir a força das relações que poderiam se dar entre pessoas que vivenciam momentos tão importantes e marcantes em suas vidas momentos de mudança de dor de transformação Considerando o cenário descrito como produtor de subjetividades e por elas produzido buscamos a problematização nos discursos da área da saúde da prevalência da concepção da vida enquanto dever arraigada nas práticas de saúde contemporâneas Nesse contexto voltamo nos à análise de como é construída a identidade paciente numa relação que envolve a saúde e a naturalização de certas práticas atravessadas pela judicialização dos corpos e da vida Resultados e discussão A resistência ao tratamento de saúde frente à produção da identidade paciente Machado 2006 aponta que Foucault chamou de disciplina ou poder disciplinar uma forma de poder que nem é um aparelho de Estado nem uma instituição já que funciona como uma rede que os atravessa sem se limitar às suas fronteiras Assim para Foucault a disciplina é uma técnica um dispositivo um mecanismo um instrumento do poder métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo e que asseguram a sujeição constante de suas forças impondolhes uma relação de docilidadeutilidade Tal forma de poder não atua do exterior mas trabalha o corpo dos homens manipula seus elementos produz seu comportamento enfim fabrica o tipo de homem necessário ao funcionamento e à manutenção da sociedade industrial capitalista A disciplina é antes de tudo uma prática Segundo Fischer 2012 tudo é prática em Foucault e tudo está imerso em relações de poder e saber que se implicam mutuamente Assim os enunciados textos e instituições bem como o ato de falar e ver constituem práticas sociais por definição permanentemente presas amarradas às relações de poder que as supõem e as atualizam FISCHER 2012 p 75 22 O termo paciente é utilizado na área da saúde para definir aquele que está submetido ao tratamento Muitas vezes é associado também à passividade já que em âmbito hospitalar o paciente pode ter pouca ou nenhuma possibilidade de afirmar desejos e decisões acerca de sua vida sua morte e seu corpo Por esse motivo usaremos o termo entre aspas ao longo do capítulo Outros termos também estarão entre aspas ora por tratarem de conceitos de outros autores ora pelo fato de não compartilharmos das concepções a que geralmente estão relacionados 142 Para a autora o discurso ultrapassa a simples referência a coisas existindo para além da mera utilização de letras palavras e frases não podendo ser entendido apenas como um fenômeno de mera expressão de algo visto que apresenta regularidades intrínsecas a si mesmo através das quais é possível definir uma rede conceitual que lhe é própria FISCHER 2012 p 75 Nesse sentido o discurso a formação discursiva deve ser vista antes de qualquer coisa como o princípio de dispersão e repartição dos enunciados segundo o qual se sabe o que pode e o que deve ser dito dentro de um determinado campo e de acordo com uma certa posição que se ocupa nesse campo Ela funcionaria como uma matriz de sentido e os falantes nela se reconheceriam porque as significações ali lhes parecem óbvias naturais FISCHER 2012 p 79 Na área da saúde mais especificamente na oncologia sendo essa uma especialidade da medicina há a naturalização de discursos e práticas voltadas ao controle e à cura do câncer Uma das práticas mais recorrentes nesse campo de atuação é a amputação de uma parte do corpo do indivíduo quando essa está afetada pela doença A amputação é realizada tanto em crianças quanto em adultos Por ser um tratamento doloroso nem sempre as pessoas aceitam a realização de cirurgia que é indicada principalmente para os casos em que há perspectiva de cura da doença O tratamento voltado às pessoas definidas como portadoras de neoplasia maligna é muitas vezes invasivo gerando grande sofrimento e em alguns casos recusa A quimioterapia pode provocar reações adversas assim como a radioterapia No caso das cirurgias essas são muitas vezes mutiladoras e as equipes de saúde compostas por diversos profissionais têm como objetivo a adesão ao tratamento por parte dos pacientes já que todo o trabalho desenvolvido no hospital deve visar à cura ou à minimização dos sintomas Alguns tipos de câncer são curáveis com cirurgia outros não O discurso profissional que defende a necessidade de amputação é respaldado cientificamente e seu uso é tão recorrente que pode tornar uma amputação algo familiar naturalizado para nós os especialistas já que são centenas de pessoas perdendo partes de seus corpos mensalmente No entanto a recusa ao tratamento que exige amputação significa mais que um não pois coloca em questão a identidade paciente aquele que acata passivamente o diagnóstico o tratamento e o acompanhamento Mas como se produziu tal identidade Como o hospital tornouse o lugar da cura Essas são questões importantes a serem problematizadas já que tais práticas não são naturais mas uma produção embora sejam muitas vezes afirmadas como tais O discurso dos profissionais de saúde amparado pelo discurso da lei do direito e da justiça define que há algo certo e justo a ser feito assim como a existência de alguém que estaria em uma instância superior sendo apto a julgar por exemplo a decisão do pai da mãe ou do responsável de respeitar a escolha da criança ou do adolescente quando esse recusa submeter se à cirurgia de amputação Nesse contexto a culpa pela necessária intervenção e o julgamento recaem sobre o paciente sobre sua resistência ao tratamento No entanto retirar ou não uma parte do seu corpo deve ser uma possibilidade acessível a todos o que infelizmente não ocorre nos casos em que estão envolvidos crianças e adolescentes É fundamental analisar o discurso que tais práticas colocam em vigor visto que 143 analisar o discurso seria dar conta exatamente disso de relações históricas de práticas muito concretas que estão vivas nos discursos na medida em que as palavras são também construções na medida em que a linguagem também é constituidora de práticas FISCHER 2012 p 74 O discurso que defende a necessidade de amputação do corpo de uma criança mesmo em desacordo com a própria criança ou responsável não é um discurso errado ou cruel mas uma produção social e histórica O hospital tornouse o lugar da cura da saúde sendo o Estado principalmente na figura do médico o responsável em promovêla mesmo quando alguém não quer se curar não quer se tratar não quer viver Mesmo quando alguém faz a opção de permanecer com alguma parte do seu corpo quando essa deveria segundo prescrição médica ser retirada Mas por que todo esse interesse do Estado nos corpos das pessoas Por que toda essa necessidade de garantir a vida mesmo contra a vontade daquele que a possui Como o hospital se tornou esse lugar da cura hoje tão aceita e normalizada De acordo com Foucault 1979 o hospital como instrumento terapêutico é uma invenção relativamente nova que data do final do século XVIII O autor aponta que a consciência de que o hospital pode e deve ser um instrumento destinado a curar aparece em torno de 1780 e é assinalada por uma nova prática a visita e a observação sistemática e comparada dos hospitais Para Foucault antes do século XVIII o hospital era essencialmente uma instituição de assistência aos pobres visto que o pobre como pobre tem necessidade de assistência e como doente portador de doença e de possível contágio é perigoso Por essas razões o hospital deve estar presente tanto para recolhêlo quanto para proteger os outros do perigo que ele encarna FOUCAULT 1979 p 101 Assim Foucault aponta que o personagem ideal do hospital até o século XVIII não era o doente que é preciso curar mas o pobre que está morrendo A função essencial do hospital nesse período era assistir material e espiritualmente o pobre para darlhe os últimos cuidados e o último sacramento O hospital que temos hoje segundo Foucault 1979 transformouse no lugar da cura e foi medicalizado a partir da disciplina que passou a ser empregada enquanto técnica voltada ao controle dos corpos e das vidas dos doentes A justificativa para a medicalização do hospital foi a desordem que nele havia O primeiro fator da transformação foi não a busca de uma ação positiva do hospital sobre o doente ou a doença mas simplesmente a anulação dos efeitos negativos do hospital Não se procurou primeiramente medicalizar o hospital mas purificálo dos efeitos nocivos da desordem que ele acarretava E desordem aqui significa doenças que ele podia suscitar nas pessoas internadas e espalhar na cidade em que estava situado como também a desordem econômicosocial de que era foco perpétuo FOUCAULT 1979 p 103 144 Assim há uma produção histórica do hospital enquanto lugar de recolhimento realizada inicialmente por pessoas caridosas em uma prática que tornava o hospital um morredouro um lugar onde morrer E o pessoal hospitalar não era fundamentalmente destinado a realizar a cura do doente mas a conseguir a sua própria salvação Era um pessoal caritativo religioso ou leigo que estava no hospital para fazer uma obra de caridade que lhe assegurava uma salvação eterna FOUCAULT 1979 p 102 A lógica hospitalar antes do século XVIII era a do recolhimento e da caridade onde se salvavam as almas tanto dos pobres que estavam morrendo quanto daqueles que se disponibilizavam a cuidar deles Nessa lógica o poder pastoral perpassa o hospital desde sua origem já que o padre ou pastor analisado nas obras de Nietzsche e Foucault conduz o rebanho e cada um individualmente e ao mesmo tempo visando à salvação de todos e de cada um Desse modo o poder pastoral já estava presente no hospital antes de sua disciplinarização e medicalização e com essa última as práticas em âmbito hospitalar não deixaram de ser menos pastorais Foucault 2012 afirma que o poder pastoral manteve um caráter essencial e singular na história das civilizações exercendose como qualquer outro poder do tipo religioso ou político sobre o grupo inteiro Essa forma de poder tem por preocupação e tarefa principal velar pela salvação de todos apenas operando sobre cada elemento em particular cada ovelha do rebanho cada indivíduo não somente para obrigálo a agir dessa ou daquela maneira mas também de modo a conhecêlo a desvendálo a fazer aparecer a sua subjetividade e visando estruturar a relação que ele estabelece consigo próprio e com sua própria consciência FOUCAULT 2012 p 51 Desse modo o poder pastoral está presente fortemente nas práticas consideradas de saúde e no cotidiano hospitalar desde o início A escuta que visa a desvendar conhecer classificar que visa ao esquadrinhamento do corpo da vida da subjetividade buscando a salvação todas essas práticas estão presentes no hospital desde que passou a existir como lugar da cura e mesmo antes quando lugar de recolhimento dos pobres Nesse sentido é fundamental colocar em análise as relações de poder que perpassam a relação entre pacientes e profissionais de saúde com o objetivo de analisar a naturalização de certas práticas que são atravessadas também pela judicialização dos corpos e da vida Tal judicialização fica evidente no caso daquele que ao negar ter seu membro amputado passa a ter seu corpo submetido à decisão do juiz já que seu caso será encaminhado à justiça Nesse sentido algumas questões são colocadas a que ponto chega esse controle dos corpos essa regulamentação da vida É possível que o Estado possa até mesmo retirar parte do corpo de uma pessoa sem que ela permita Ao discutirmos essa problemática não culpabilizamos os profissionais de saúde representados pelas suas categorias específicas mas problematizamos o discurso produtor de saúde e como se dá a produção desse discurso para que hoje seja aceito como natural cabendo 145 perguntar o que é saúde O que é ser saudável É possível ter saúde nessa lógica judicializante sem seguir as orientações e prescrições médicas Como se dão tais prescrições Saúde e medicalização são a mesma coisa É possível que o paciente participe ativamente em seu tratamento a partir de suas escolhas sendo a resistência ao tratamento considerada como uma possibilidade legítima como algo saudável O que é ser paciente de acordo com as práticas médicas e de saúde atuais Assim problematizar a historicidade do discurso e a concepção de saúde faz com que analisemos o discurso de quem fala nesse caso a equipe de saúde como uma produção histórica Na lógica da judicialização da vida enquanto paciente devemos fazer os tratamentos propostos seguindo as orientações médicas e o maior paradoxo temos o direito à vida mas não temos o direito à morte se assim o desejamos Nosso direito à vida é na verdade uma obrigação de viver É para evitar a morte que se garante a vida não pela vida em sua potência enquanto uma paixão alegre Assim a saúde do modo como está definida produz subjetividades e por elas é produzida e ser paciente são produções desse modelo saudável em que se devem acatar as decisões dos especialistas muitas vezes sem ter sequer a chance de conversar sobre elas de decidir sobre o próprio corpo Assim problematizar a identidade paciente é debater como essa concepção de saúde que não é natural mas sim construída socialmente produz também subjetividade Muitas vezes nós desejamos pedimos por mais saúde e mais hospitais ainda que o hospital seja um lugar triste de paixões tristes A forma de ver a vida naquilo que ela tem de forte potente e alegre valorizando uma vida ativa e a manifestação da diferença a potência e a singularidade que cada um de nós tem e até mesmo a dor como algo que pode tornarnos ainda mais fortes em muito se diferencia da vida a que temos obrigação de viver segundo os discursos de saúde atuais incentivadores de práticas pastorais A vida garantida pela atual concepção de saúde está pautada em generalizações universalidades modelos sendo sempre afirmada como um direito e obviamente não menos como uma obrigação não sendo de modo algum a vida que se quer viver mas a vida que se deve viver Voltando à questão da judicialização em casos de recusa ao tratamento não raro os membros da equipe de saúde como médicos assistentes sociais enfermeiros fisioterapeutas psicólogos entre outros estabelecem contato com o psiquiatra da unidade hospitalar entendendo que o paciente apresenta alguma doença mental pois sua atitude não é normal Na lógica judicializante não há a possibilidade de desejar algo que não seja essa vida que nos é oferecida como direito e afirmada como obrigação Tal situação nos faz questionar o que de fato não é saudável o que recusa tratamento mutilador ou as relações e práticas que se estabelecem no âmbito hospitalar respaldadas por códigos de ética que são pautados em valores morais e não éticos O hospital enquanto local em que práticas pastorais naturalizaramse em muitos momentos desvaloriza a força e a coragem que podem estar presentes nas situações de doença como momento de fundamental importância da vida sendo o adoecimento um processo que faz parte da vida do homem enquanto natureza Com isso o doente passou a ser alvo de piedade e compaixão visando à salvação e à cura que muitas vezes são contrárias às suas forças ativas sua singularidade e seus desejos 146 A potência que o sofrimento pode ter como possibilitador de novas experiências e multiplicidades como afirma Nietzsche 2004 é suprimida pela necessidade de fazer viver seja lá em que circunstância for e do sentimento de compaixão e pena que deve ser destinado ao paciente sentimento esse que muito mais o enfraquece do que o torna forte Considerações finais A problematização das relações de poder que atravessam o cotidiano hospitalar é fundamental por colocar em análise práticas naturalizadas que muitas vezes não são discutidas por serem consideradas normais para aqueles que a vivenciam diariamente Assim é necessário o seu estranhamento para que sejam pensadas como produção social e histórica Nesse sentido quando pensada como produção a recusa ao tratamento que pode ser entendida também como resistência não é desqualificada ou punível mas é abordada como uma possibilidade legítima frente ao sofrimento da pessoa com câncer que não se define pela identidade paciente mas é uma pessoa com sua história seus desejos e sua singularidade Esse modo de entender a resistência como algo legítimo em muito difere da visão tradicional presente nos discursos e práticas de saúde contemporâneos que associam recusa ao tratamento à existência de anormalidade ou doença mental devendo essa ser sempre medicalizada Diferente disso respeitar a decisão das pessoas sobre a sua vida sua morte e seu próprio corpo é antes de tudo uma postura ética atravessada por um investimento e insistência em uma estética da existência pautada em uma ética da diversidade da vida ZANELLA FURTADO 2012 p 208 REFERÊNCIAS FISCHER R M B Trabalhar com Foucault arqueologia de uma paixão Belo Horizonte Autêntica 2012 FOUCAULT M Ética sexualidade política 3 ed Rio de Janeiro Forense Universitária 2012 FOUCAULT M O Nascimento do Hospital In Microfísica do poder Rio de Janeiro Graal 1979 MACHADO R Foucault a ciência e o saber 3 ed rev ampl Rio de Janeiro J Zahar 2006 NIETZSCHE F W Além do bem e do mal prelúdio a uma filosofia do futuro 2 ed 11 reimpr São Paulo Companhia das Letras 2004 ZANELLA A FURTADO J Resistir In FONSECA T NASCIMENTO M L MARASCHIN C Org Pesquisar na diferença um abecedário Porto Alegre Sulina 2012 Rebatimentos Sociais do Tratamento Oncológico Reflexões do Serviço Social na Clínica de Hematologia Capítulo 18 149 O presente capítulo tem como objetivo central apresentar alguns apontamentos sobre os rebatimentos do adoecimento por câncer no cotidiano dos pacientes da clínica de hematologia de adultos do HCI unidade assistencial do INCA Nesse sentido serão destacados os aspectos sociais que influenciam o processo de tratamento e como esses aspectos podem ser trabalhados em uma perspectiva interdisciplinar de maneira a amenizar os sofrimentos decorrentes das dificuldades enfrentadas pelos pacientes O câncer é atualmente uma das principais causas de morte no mundo e no Brasil estima se que ocorrerão aproximadamente 576 mil novos casos em 2014 Desses 5050 casos novos de leucemia em homens e 4320 em mulheres valores que correspondem a um risco estimado de 520 casos novos para cada 100 mil homens e 424 para cada 100 mil mulheres23 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2014b Uma doença que apresenta tamanha incidência e altas taxas de mortalidade considerada como um problema de saúde pública acarreta grandes repercussões à vida dos seus pacientes como será mostrado mais detidamente adiante Não se pode deixar de mencionar antes de prosseguir o atual processo de precarização da saúde pública que vem sofrendo grandes golpes pelos últimos governos como parte do desmonte das políticas públicas engendrado pelo neoliberalismo com seu trinômio privatização focalização seletividade e descentralização DRAIBE 1993 apud BHERING BOSCHETTI 2008 a fim de que se possa compreender de forma mais abrangente os sofrimentos vivenciados por essa população Seguindo essa lógica Schreider e Monteiro 2013 p 78 destacam que se vive na atualidade um contexto marcado pela redução do valor real do salário da classe trabalhadora sua inserção precária no mercado de trabalho bem como a flexibilização deste mercado a valorização do trabalhador polivalente e o desemprego estrutural fatores que dentre outros geram a pauperização cada vez mais acentuada dos trabalhadores SCHREIDER MONTEIRO 2013 p 78 Essas são algumas das expressões da chamada questão social24 objeto do trabalho do assistente social que somadas ao adoecimento por câncer trazem uma série de dificuldades tanto para os pacientes em tratamento quanto para os seus familiares O que se pretende dizer com isso é que em muitos casos o paciente costuma ser o principal provedor da família comprometendo o rendimento familiar ao verse impedido de seguir com as suas atividades laborativas situação esta agravada quando o usuário não contribui com a Previdência Social ficando sem a possibilidade de receber o benefício previdenciário Salienta se ainda que um familiar próximo exercendo atividade com vínculo trabalhista não encontra na legislação25 garantias para que possa acompanhar o paciente em seu período de tratamento tendo muitas vezes que abandonar o local de trabalho para dedicarse aos cuidados daquele 23 Cabe lembrar que a clínica de hematologia adulta matricula pacientes com outros tipos de neoplasias como linfomas 24 De acordo com Iamamoto e Carvalho 2004 p 77 grifo dos autores a questão social não é senão as expressões do processo de formação e desenvolvimento da classe operária e de seu ingresso no cenário político da sociedade exigindo seu reconhecimento como classe por parte do empresariado e do Estado É a manifestação no cotidiano da vida social da contradição entre o proletariado e a burguesia 25 A possibilidade ainda existe nos casos de familiares que possuem vínculo estatutário já que esses podem solicitar licença para acompanhamento de familiar mesmo que por um período determinado 150 Aqui já é possível perceber alguns dos impactos na vida não só do paciente com câncer mas também para os seus familiares Diversos são os exemplos que ilustram vivências dos profissionais no cotidiano Nesse sentido na atuação do serviço social em oncologia exemplificado aqui pela clínica de hematologia temse como premissa de trabalho a identificação do contexto sociofamiliar e econômico dos usuários do serviço com vistas à avaliação das condições de acessibilidade ao tratamento É necessário verificar situações de vulnerabilidade e risco fragilidade de vínculos socioafetivos bem como a identificação de questões sociofamiliares que possam interferir no processo de tratamento com o objetivo de viabilizar e garantir o acesso desses usuários Assim é possível minimizar dificuldades e conflitos na interlocução com a rede de apoio do paciente além de promover o diálogo com a equipe de saúde no intuito de discutir os aspectos sociais que permeiam a vida do usuário e seu grupo familiar O serviço de hematologia do INCA tem como população usuária adultos e crianças atendidos por uma equipe multiprofissional O acompanhamento pela equipe percorre todas as fases do tratamento do diagnóstico aos cuidados ao fim da vida26 com possível encaminhamento para unidade de cuidados paliativos27 do INCA nos casos de doença avançada Destacase que essa clínica tem como principais características longos períodos de internação hospitalar reinternações frequentes em função de intercorrências como neutropenia febril que exige imediata internação pelos riscos que envolve restrições impostas aos pacientes como contato com animais de estimação terra e locais com grande número de pessoas com a finalidade de prevenir infecções entre outras Sendo assim a atenção a esse paciente resulta em uma maior proximidade e vinculação inclusive em momentos de grande sofrimento No que tange ao Serviço Social comumente no atendimento às famílias constatase o relato da difícil trajetória até chegar ao local de atendimento oncológico especializado a dificuldade de acesso aos serviços de imagens e de diagnóstico longa espera por consultas com profissional especializado etc Essas dificuldades são frutos das deficiências do SUS como a fragmentação e a precariedade da organização da atenção integral à saúde Tal situação pode resultar em momentos diferenciados experimentados por esses usuários ao chegarem ao INCA representações sociais por vezes do alívio por chegar à unidade de tratamento que repercute na esperança de um tratamento especializado de alta complexidade e com profissionais qualificados em unidade específica outros de dor e sofrimento por confirmação de um diagnóstico e tratamento difícil de lidar e muitas vezes com a associação de morte como resultado esperado tendo em vista o estigma de uma doença como o câncer ainda nos dias atuais Aliado a esses sentimentos apresentase ainda a necessidade de o usuário compreender seu diagnóstico e o plano de cuidados proposto 26 Os cuidados ao fim da vida referemse em geral aos últimos dias ou últimas 72 horas de vida O reconhecimento dessa fase pode ser difícil mas é extremamente necessário para o planejamento do cuidado e o preparo do paciente e de sua família para perdas e óbito INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 200 27 O INCA dispõe no que tange aos cuidados paliativos de uma unidade assistencial Hospital do Câncer IV HC IV para acompanhamento dos pacientes em doença avançada sem possibilidade de tratamento curativo e em progressão da doença De acordo com a OMS Cuidados Paliativos consistem na assistência promovida por uma equipe multidisciplinar que objetiva a melhoria da qualidade de vida do paciente e seus familiares diante de uma doença que ameace a vida por meio da prevenção e alívio do sofrimento da identificação precoce avaliação impecável e tratamento de dor e demais sintomas físicos sociais psicológicos e espirituais INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA 2014a 151 Diante desse cenário o usuário demanda uma intervenção profissional que leve em consideração os mais diferentes aspectos da vida desse paciente seus hábitos rotinas vínculos familiares e afetivos local de moradia facilidade de acesso ao Instituto entre outros o que exige uma intervenção multiprofissional e mais do que isso interdisciplinar28 Para tanto é necessário que exista uma integração entre os membros da equipe que irão atuar junto ao paciente médicos enfermeiros psicólogos assistentes sociais fisioterapeutas e outros que estejam vinculados ao caso a fim de garantir a troca de informações a elaboração do plano de cuidado visando sobretudo à garantia da continuidade do tratamento atendendo ao paciente nas suas demandas clínicas físicas psicológicas e sociais Importante ressaltar quanto ao acompanhamento ao paciente por profissionais de diversas categorias que a própria Política Nacional de Prevenção e Controle do Câncer dispõe em seu art 14 inciso 2º a garantia de atendimento multiprofissional a todos os usuários com câncer com oferta de cuidado compatível a cada nível de atenção e evolução da doença Entre as demandas que o usuário apresenta no decorrer do tratamento oncológico podemos citar a necessidade de comparecimento ao hospital com frequência interferindo na sua condição para deslocamento do domicílio ao hospital e as internações prolongadas que exigem do usuário e de sua rede familiar mínimas condições para tal assim como a presença de familiar ou acompanhante Ou seja há o afastamento das atividades habituais seja de trabalho seja de lazer bem como a interferência nas relações familiares de trabalho e de renda O tratamento oncológico configura portanto uma série de dificuldades vivenciadas pelo paciente e pela família com rebatimentos da questão social que vão se traduzir em demandas para o profissional de saúde O sofrimento e a dor incluindo a dor física relacionada à realidade do tratamento são os focos de acolhimento da equipe multiprofissional mais especificamente dos profissionais de serviço social e psicologia cujo objeto de trabalho aproximase dessa realidade subjetiva materializada nas condições de vida dos usuários do serviço de saúde sejam os pacientes sejam seus familiares que se apresentam mormente no tratamento oncológico no papel de acompanhantes e ou cuidadores desse paciente Percebese que muitas vezes o paciente tem a disposição a vontade para dar seguimento ao tratamento porém faltamlhe meios práticos para realizálo como acesso a passagens e alimentação adequada apoio de familiares e amigos durante esse período distância do local de moradia entre outros Sendo assim algumas alternativas foram construídas no sentido de garantir direitos e suprir dificuldades tanto no âmbito das políticas públicas que garantem os direitos sociais do paciente como acesso a passelivre para transporte público coletivo que pode ou não incluir acompanhantes encaminhamento à rede assistencial do seu município de origem quanto pelas iniciativas filantrópicas como casas de apoio auxíliotransporte bolsa de alimentos Essas alternativas auxiliam no prosseguimento do tratamento uma vez que minimizam preocupações concernentes à vida prática tais como resolução ou alívio de pendências financeiras geradas pelo período de internação A impossibilidade ou o adiamento de resoluções de problemas pessoais entretanto atrelados às angústias próprias do processo de adoecimento ampliam o 28 De acordo com Machado 2009 p 54 a interdisciplinaridade implica o entrelaçamento das diversas especialidades de saberes e práticas profissionais na construção de propostas de trabalho na perspectiva da integralidade intersetorialidade e equidade que contemple ou aproxime ao máximo as necessidades dos grupos e indivíduos em sua totalidade 152 desgaste do paciente gerando nele uma sobrecarga emocional que pode consequentemente resultar em dificuldade ou impossibilidade de adesão ou manutenção do tratamento oncológico Por fim considerando o exposto é mister observar que a atuação do profissional em uma esfera pública de serviços de saúde como a oncologia pressupõe uma aproximação adequada dessa população usuária e suas demandas captandoas e compreendendoas no cotidiano em que se delineiam como expressões da questão social posta na sociedade capitalista Isso permitirá a partir de uma análise social política econômica e institucional inserir a população na rede de serviços disponíveis intra e extrainstitucionalmente Diante do exposto destacase o caráter preliminar do presente texto ressaltando a importância de discussões acerca da temática em uma perspectiva interdisciplinar envolvendo os aspectos da atenção integral ao usuário especificamente no campo da oncologia área privilegiada do saber REFERÊNCIAS BHERING E R BOSCHETTI I Política Social fundamentos e história 5 ed São Paulo Cortez 2008 BRASIL Ministério da Saúde Portaria nº 874 de 16 de maio de 2013 IAMAMOTO M V CARVALHO R Relações Sociais e Serviço Social no Brasil esboço de uma interpretação históricometodológica 16 ed São Paulo Lima Peru Cortez CELATS 2004 INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Conceito de cuidados ao fim da vida Disponível em httpwww1incagovbrconteudoview aspID474 Acesso em 27 de março de 2014a INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Estimativa 2014 incidência de câncer no Brasil Rio de Janeiro Inca 2014b INSTITUTO NACIONAL DE CÂNCER JOSÉ ALENCAR GOMES DA SILVA Hospital do Câncer IV cuidados paliativos Rio de Janeiro Inca 200 Disponível em httpwww1 incagovbrconteudoviewaspID474 Acesso em 27 mar de 2014 MACHADO G S Reforma Psiquiátrica e Serviço Social o trabalho dos assistentes sociais na equipe dos CAPS In VASCONCELOS E M Org Abordagens Psicossociais São Paulo Aderaldo e Rothschild 2009 3 v SHREIDER E MONTEIRO M V C Serviço Social e a atenção à saúde de crianças e adolescentes em tratamento oncológico In SOARES M C M COSTA N F Org O Serviço Social na Teoria e na Prática os desafios contemporâneos Rio de Janeiro SUAM 2013 p 7587 A Vida Após o Câncer Considerações Sobre a Comunicação a Alimentação e o Trabalho da Fonoaudiologia com Pacientes Após o Tratamento Oncológico Capítulo 19 155 É natural e intrínseco da natureza humana o ato de comunicarse É uma das características marcantes que nos diferencia dos outros animais Comunicação é uma palavra que vem do latim communicare que tem o significado de trocar opiniões partilhar tornar comum conferenciar É um processo que viabiliza a troca de mensagens entre pessoas Essa peculiaridade da comunicação humana intermediada pela linguagem ajudou muito o processo de evolução do homem com a passagem do conhecimento Os homens são capazes de transmitir e ensinar as experiências adquiridas à sua descendência sem submetêla a tais situações por vezes doloridas Essa transmissão no entanto efetuase por meio da comunicação dos mais velhos para os mais novos dos hábitos de proceder pensar e sentir DEWEY 1936 A sociedade não só continua a existir pela transmissão pela comunicação como também se pode perfeitamente dizer que ela é transmissão e é comunicação Há mais do que um nexo verbal entre os termos comum comunidade e comunicação Os homens vivem em comunidade em virtude das coisas que têm em comum e a comunicação é o meio por que chegam a possuir coisas comuns O que eles devem ter em comum para formar uma comunidade ou sociedade são os objetivos as crenças as aspirações os conhecimentos DEWEY 1936 É por meio da comunicação mais precisamente pela fala que expressamos desejos emoções e pensamentos A teoria da linguagem como expressão do pensamento preconiza que essa expressão é produzida no interior da mente dos indivíduos E da capacidade de o homem organizar a lógica do pensamento dependerá a sua exteriorização por meio de linguagem articulada e organizada Assim a linguagem é considerada a tradução do pensamento PERFEITO 2007 Lacan considera que o inconsciente obedece às leis da linguagem por isso coloca a fala como o instrumento por meio do qual podemos verificar as manifestações do inconsciente pelos atos falhos chistes relato dos sonhos e sintomas Propõe que é a linguística cujo modelo é o jogo combinatório que confere ao inconsciente um estatuto podendo esse ser qualificável acessível e objetivável LACAN 1985 E muito mais do que isso nossa fala traz traços de nossa personalidade Um simples alô pode revelar muito sobre a pessoa do outro lado da linha Podemos imaginar várias características como idade sexo procedência geográfica nível educacional e até mesmo o estado emocional Conhecemos as pessoas pelas suas palavras Podemos considerar assim a fala como uma das extensões mais fortes da personalidade A voz uma ferramenta da fala pode ser considerada uma impressão digital pois ela traz características próprias de cada ser humano Como a forma e o comprimento de cada cavidade do trato vocal são distintos a fonação tornase única para cada indivíduo e pode inclusive ser instrumento para análise de vários elementos técnicocomparativos nos exames periciais SCATENA 2010 Uma voz bem colocada com boa entonação persuasiva convincente agradável carregada de emoção e motivação vai fazer do indivíduo uma pessoa que transmite seriedade sobriedade inteligência domínio de si próprio e conhecimento Esse indivíduo terá uma imagem positiva de um bom profissional e também de um bom comunicador Com a voz o indivíduo cria emoções aproxima ou afasta pessoas por meio do diálogo A voz é o tato da comunicação pois toca o outro ao transmitir ideias e sentimentos 156 Ainda no campo da socialização com o outro a alimentação exerce importante papel nas relações sociais As refeições estão sempre no centro de interações sociais e festividades e qualquer distúrbio que possa interferir no seu processo ocasiona importante afastamento social A deglutição é um processo neuromotor extremamente complexo que envolve a coordenação de um grande grupo de músculos responsáveis por efetuar o transporte do bolo alimentar da cavidade oral para o estômago Tem como principais funções a nutrição e a hidratação do corpo FURKIM SILVA 1999 COSTA 2005 O perfeito funcionamento desse processo garante não somente a nutrição do indivíduo mas também sua saúde pulmonar já que a deglutição e a respiração utilizam a mesma estrutura anatômica orofaringe para passagem de alimento na deglutição e ar na respiração Assim um controle muscular extremamente fino garante que durante a deglutição a passagem para via aérea inferior seja excluída direcionando o bolo alimentar com segurança para o estômago Qualquer dificuldade nesse mecanismo direciona parte ou a totalidade desse bolo alimentar para as vias aéreas levando a complicações pulmonares severas COSTA 2005 Segundo Douglas 1975 a comida e a refeição são expressões simbólicas de uma ordem social e mais do que isso a refeição é um sistema de comunicação que reflete os relacionamentos entre grupos sociais Assim a comida deve ser tratada como um código Para o Douglas 1975 as mensagens contidas nos alimentos tratam de níveis de hierarquia inclusão e exclusão classes sociais e transgressões Comer deixa de ter apenas a sua função biológica óbvia de nutrição para sobreviver e entra para a categoria de lazer e entretenimento bem como passa a ser indicador de status e classe social classificando e distinguindo gostos culinários Sair de casa para comer fora ou receber amigos para uma refeição em casa são atividades de lazer muito populares HECK 2004 A comunicação é uma das principais formas de exteriorização dos sentimentos e a deglutição é a função mais primitiva e sofisticada da sobrevivência física e da afetividade do homem Durante a fala a produção vocal e a deglutição há uma integração de sistemas e uma sequência complexa de movimentos de estruturas fonoarticulatórias que interagem de modo síncrono e preciso nas quais estão envolvidas a laringe a faringe o esôfago a cavidade oral e a região orofacial Essa ação depende da integridade de vários sistemas neuroniais e musculoesqueléticos além do comando voluntário e da intenção de comunicarse e alimentar se A partir dessa integração vivemos o prazer da degustação e da interação com o mundo pela expressão de nossos sentimentos e ideias CARVALHO BARBOSA 2012 Muitas patologias podem acometer as estruturas envolvidas na fala e deglutição mas o câncer ocupa lugar de destaque já que cria problemas estéticos e clínicos graves dependendo do estágio em que a patologia encontrase no início do tratamento A cirurgia é uma das principais opções de tratamento O avanço obtido com novas técnicas cirúrgicas grandes reconstruções melhor compreensão do comportamento do tumor e padronização de estadiamentos entre outros fatores contribuiu para que pacientes considerados inoperáveis fossem submetidos ao tratamento cirúrgico exclusivo ou associado à quimioterapia eou à radioterapia A escolha deve ser o método menos mutilante quando as possibilidades de cura são iguais Como muitos pacientes chegam em estágios avançados da doença os que são elegíveis para cirurgia permanecem com defeitos estéticos devastadores NORONHA DIAS 1997 No caso do câncer de cabeça e pescoço a complexidade que existe entre as estruturas e suas respectivas funções e aparência pessoal para a comunicação alimentação e conforto faz 157 com que o planejamento terapêutico seja bastante complicado NORONHA DIAS 1997 As pessoas acometidas por esse tipo de tumor podem ficar com a face desfigurada sendo que em alguns casos sem partes inteiras do rosto As sequelas cirúrgicas na cavidade oral podem levar a alterações importantes na articulação da fala e na fase oral da deglutição podendo provocar até mesmo a total inteligibilidade da fala ou a impossibilidade de alimentarse pela boca Nos casos dos tumores de laringe e hipofaringe as mudanças são ainda maiores pois levam à construção de um traqueostoma definitivo e à perda da voz laríngea No serviço de cirurgia de cabeça e pescoço do INCA em função dos estágios mais avançados em que os pacientes se apresentam muitos procedimentos alargados são realizados laringectomias totais faringolaringectomias laringectomias subtotais maxilarectomias glossectomias subtotais e totais queilectomias etc levando a grandes mutilações e alterações na funcionalidade e na estética desses pacientes NORONHA DIAS 1997 Segundo Ferlito et al 2002a a principal meta do tratamento do câncer é a sua cura mas também objetivase a preservação da função e dos aspectos estéticos satisfatórios Costa Costa Neto Araújo e Curado 2000 afirmam que a expectativa da equipe médica com relação às intervenções nos pacientes com câncer de cabeça e pescoço é a de que sejam proporcionadas condições de vida mais funcionais adaptadas e satisfatórias No entanto para esses autores nem sempre o que se traduz como condição de adaptação comodidade e prazer para a equipe médica é visto com o mesmo entusiasmo pelos pacientes As mudanças nos aspectos físicos e funcionais da fonoarticulação e da deglutição após o tratamento do tumor podem trazer consequências indesejáveis em termos sociais e psicossociais acarretando maior ou menor impacto na qualidade de vida dos indivíduos a depender de sua representação pessoal e da necessidade de interação social familiar ou profissional Estudos recentes demonstram que os aspectos relacionados à comunicação e à deglutição apresentam impacto negativo sobre a qualidade de vida dos pacientes e dos seus cônjuges Esses mesmos aspectos são considerados como a segunda causa de afastamento do trabalho para os pacientes tratados por câncer de cabeça e pescoço BUCKWALTER et al 2007 VARTANIAN et al 2006 VERDONCKDELEEUW et al 2010 As alterações físicas e funcionais decorrentes do tratamento desse câncer podem levar o paciente ao isolamento Conduzem à marginalização social à redução das atividades de lazer e à participação nos grupos sociais uma vez que alterações emocionais e da imagem corporal levam ao medo da rejeição e à solidão VARTANIAN et al 2007 É nesse contexto que se insere o profissional da fonoaudiologia O fonoaudiólogo é o responsável pela promoção da saúde a prevenção a avaliação o diagnóstico a orientação a terapia habilitação e reabilitação e o aperfeiçoamento dos aspectos fonoaudiológicos da função auditiva periférica e central da função vestibular da linguagem oral e escrita da voz da fluência da articulação da fala e dos sistemas miofuncional orofacial e de deglutição A inserção da fonoaudiologia nos serviços de cirurgia de cabeça e pescoço no Brasil teve início na década de 1970 e está alicerçada na necessidade de oferecer ao paciente que foi submetido a cirurgias mutilantes uma possibilidade de reabilitação Nesse período a maior demanda era o desenvolvimento da voz esofágica em pacientes laringectomizados totais Questões vinculadas à qualidade de vida e aos aspectos bioéticos impuseram aos profissionais que assistem a esses indivíduos novos desafios Esse trabalho tornouse gradativo e irreversível nos serviços de cirurgia de cabeça e pescoço do país e acompanhou o desenvolvimento da própria profissão CARVALHO BARBOSA 2012 158 Portanto todos os pacientes que sofrem alguma sequela seja ela cirúrgica decorrente de protocolos de radioterapia e quimioterapia seja ainda secundária a outras complicações clínicas são encaminhados para a reabilitação da função No início do tratamento todo o processo é muito intenso o impacto do diagnóstico o medo as dúvidas a luta contra o tempo para realizar todos os procedimentos Já durante o tratamento propriamente dito as dores os sangramentos as sondas nasogástricas e de aspiração o soro os remédios muitos profissionais etc provocam uma mudança brusca na vida do paciente O corpo passa a ser invadido por sensações possivelmente nunca antes vivenciadas e a ser examinado exaustivamente por pessoas desconhecidas A vida passa a ter uma conotação coletiva no sentido de que cada decisão é em conjunto a individualidade já não é mais a mesma Na sequência vem a expectativa em relação ao resultado do tratamento e se tudo correr como esperado o fim desse tratamento Nesse momento quando a vida parece querer voltar ao normal começa a existir a expectativa de que tudo volte a ser como era antes Mas a agressividade do tratamento oncológico deixa marcas que muitas vezes não podem ser apagadas e aquela vida que foi interrompida não volta mais Há agora uma nova forma de falar uma nova voz uma nova forma de alimentarse um novo rosto definitivamente um novo ser Não raramente os pacientes relatam não se reconhecer e dizem que esse não sou eu Como exemplo podese citar o caso de um paciente jovem de cerca de 35 anos que foi submetido a uma maxilarectomia parcial Compareceu à consulta acompanhado da mãe já idosa e durante a avaliação da voz e da fala olhandose para o espelho perguntou Quem é essa pessoa que eu estou vendo refletida no espelho Com esse rosto desfigurado que não consegue falar ser entendido não consigo mais comer normalmente na rua Mãe acho que seu filho morreu O desafio de reabilitar um paciente oncológico e reconhecer o limite terapêutico é muito grande limite esse que geralmente fica muito aquém das expectativas do paciente Como dizer para um cantor que sua voz nunca mais voltará a ser como era antes Como dizer para um professor que a inteligibilidade da sua fala vai fazer com que seus alunos não o compreendam mais Como dizer para um amante da boa culinária que ele está limitado a comer tudo na consistência de purês Como falar para um pescador que ele nunca mais poderá mergulhar como antes Como promover a comunicação entre um casal de idosos em que um tem hipoacusia e o outro tem a fala ininteligível Um sofrimento sem limites para a imaginação daqueles que não passam pelo dilema Na tentativa de minimizar essas questões o fonoaudiólogo procura acompanhar tais pacientes ainda no prétratamento com o objetivo de avaliar as alterações já instaladas e auxiliar em todo o processo de tratamento com o manejo de tais dificuldades Pacientes com dificuldade de comunicação quando não são elegíveis para terapia formal são instruídos a alguma forma de comunicação alternativa pacientes com dificuldades alimentares quando não conseguem manter toda a nutrição por via oral realizam dietas com volumes reduzidos ou mesmo pequenas provas apenas para prazer Quando o tratamento tem seu término são avaliadas as sequelas e iniciase o período de reabilitação propriamente dito O objetivo sempre é a maior independência possível o mais próximo do padrão funcional anterior respeitandose a individualidade e o desejo do paciente O desafio é reconhecer os limites da terapia e junto com o paciente o novo padrão funcional 159 A descoberta desse novo padrão funcional é um desafio para especialistas e um mistério para outros profissionais levando muitas vezes à criação de falsas expectativas por parte dos pacientes Outro exemplo marcante é o de uma senhora cerca de 50 anos submetida a uma pelvemandibulectomia com reconstrução com a própria língua Essa cirurgia leva a uma fixação da língua no assoalho da boca mudando drasticamente a articulação da fala e a manipulação do bolo alimentar na fase oral da deglutição Essa senhora chegou acompanhada da filha e cheia de expectativas relatou sua ansiedade para que sua língua voltasse para o lugar de antes Nesse momento foi necessária a união da equipe multidisciplinar a cirurgiã de cabeça e pescoço para auxiliar na explicação do processo cirúrgico a fonoaudióloga para explicar as limitações que seriam ocasionadas pelo processo cirúrgico e as adaptações que seriam feitas e a psicóloga para trabalhar os danos emocionais causados pelo tratamento oncológico A adaptação a essa nova condição é quase sempre muito difícil pois o sujeito ganha um novo rosto uma nova voz uma nova fala outra maneira de comer Mesmo os casos considerados mais simples como os tireoidectomizados sofrem grande impacto com as alterações vocais às vezes imperceptível até mesmo para um especialista da voz mas marcante para o paciente São muitas as adaptações que necessitam ser feitas Os pontos articulatórios da fala precisam ser novamente treinados a alimentação tem que ser adaptada muitas vezes com auxílio de técnicas terapêuticas para garantir uma deglutição com segurança sem que o alimento chegue ao pulmão Não raro os alimentos de maior agrado ao paciente têm que ser contraindicados pela disfagia dificuldade de deglutição sem contar na alteração do paladar muito presente em quase todos os casos E como fica o retorno para as relações sociais O impacto por vezes é tão intenso que pode significar mudanças radicais na vida dessas pessoas alterando em algum nível seus papéis familiares e sociais SILVEIRA et al 2012 O indivíduo acaba ficando isolado não consegue conversar adequadamente não fala ao telefone suas refeições são feitas isoladamente pois a família não quer vêlo sofrer por não conseguir deglutir Aquele que antes era reconhecido como alegre falante feliz passa a ser quieto isolado antissocial Não há mais o prazer na alimentação essa tornase um sacrifício a integração com o mundo é dolorosa Podese ainda relatar o caso de uma moça jovem usando uma máscara que compareceu ao ambulatório Tinha sido submetida a uma queilectomia Retirou a máscara e perguntou ao terapeuta o que ele achava da cirurgia O terapeuta a avaliou observando a cicatrização a possibilidade de oclusão labial durante a alimentação a possibilidade de articulação dos fonemas bilabiais e concluiu que após algumas sessões de terapia conseguiriam um bom resultado A resposta da paciente foi a seguinte Essa é minha preocupação pois todos dizem que está ótimo mas para mim está terrível Contudo quando tudo parece perdido eis que se pode ver que o trabalho em conjunto de toda a equipe multidisciplinar leva essa nova pessoa a aprender a lidar com todas as mudanças ocorridas e a conviver com suas limitações Meses depois do término do tratamento chega ao ambulatório aquela mesma pessoa que tanto sofreu por ter tido sua língua presa como sequela cirúrgica Entra sentase e começa a conversar sobre a realização da terapia e a melhora na articulação da fala a adaptação com a alimentação e diz que está feliz pois consegui ver que eu pude ter uma nova chance para estar perto de todos que eu amo e se as mudanças na minha língua foram o preço que tive que pagar foi muito bem pago valeu a pena Obrigada por tudo 160 O papel do fonoaudiólogo junto a toda a equipe multidisciplinar é ajudar o indivíduo que precisa encontrar uma nova identidade uma nova função social um novo jeito de se comunicar e se alimentar Apesar dos avanços inquestionáveis os desafios ainda são inúmeros e é responsabilidade de toda a equipe trabalhar para vencer cada um desses desafios e proporcionar uma melhor qualidade de vida para esses pacientes REFERÊNCIAS BUCKWALTER A E et al Patientreported factors associated with discontinuing employment following head and neck cancer treatment Archives of otolaryngology head neck surgery Chicago v 133 n 5 p 464470 may 2007 CARVALHO V BARBOSA E A Org Fononcologia Rio de Janeiro Revinter 2012 COSTA NETO S B ARAÚJO T C C F CURADO M P Avaliação da qualidade de vida de pessoas portadoras de câncer de cabeça e pescoço Acta oncológica brasileira São Paulo v 20 n 3 p 96104 julset 2000 COSTA M Deglutição e disfagia anatomia fisiologia videofluoroscopia conceitos básicos In ENCONTRO TUTORIAL E ANALÍTICO DAS BASES MORFOFUNCIONAIS E VIDEOFLUOROSCÓPICA DA DINÂMICA DA DEGLUTIÇÃO NORMAL E PATOLÓGICA 15 Material institucional Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro 2005 DEWEY J Democracia e educação breve tratado de philosophia de educação São Paulo Companhia Editora Nacional 1936 DOUGLAS M Deciphering a meal In Implicit meanings selected essays in anthropology London Routledge 1975 FERLITO A et al Evolution of Laryngeal Cancer Surgery Acta otolaryngologica London v 122 n 6 p 665672 sep 2002a FERLITO A et al Organ and voice preservation in advanced laryngeal cancer Acta oto laryngologica London v 122 n 4 p 438442 jun 2002b FURKIM A M SILVA R G Programas de reabilitação em disfagia neurogênica São Paulo Frôntis 1999 HECK M C Comer como atividade de lazer Estudos históricos Rio de Janeiro n 33 p 136146 janjun 2004 LACAN J O Seminário livro 11 os quatro conceitos fundamentais da psicanálise 2 ed corr Rio de Janeiro J Zahar 1985 SCATENA H J A física aplicada a pericia criminal fonética forense 32 f Trabalho de Conclusão de Curso Graduação em Física Universidade Católica de Brasília Brasília DF 2010 NORONHA M J R DIAS F L Câncer da Laringe uma abordagem multidisciplinar Rio de Janeiro Revinter 1997 SILVEIRA A et al Oncologia de Cabeça e Pescoço enquadramento epidemiológico e clínico na avaliação da Qualidade de Vida Relacionada com a Saúde Revista Brasileira de Epidemiologia São Paulo v 15 n 1 p 3848 mar 2012 Equipe de elaboração Anexo 163 ORGANIZADORAS Ana Beatriz da Rocha Bernat Psicóloga do serviço de oncologia pediátrica HCIINCA Mestre em teoria psicanalítica pelo Instituto de Psicologia IP Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ especialista em atendimento psicanalítico em instituição pública pelo Instituto de Psiquiatria IPUBUFRJ coordenadora da pesquisa Impasses no reingresso escolar de crianças e adolescentes egressos de tratamento oncológico HCIINCA Email abernatincagovbr Daphne Rodrigues Pereira Psicóloga do Centro de Transplante de Medula Óssea Cemo do INCA mestranda em teoria psicanalítica pela UFRJ especialista em terapia de família membro do núcleo de pesquisa Corpo e Finitude INCAUFRJ Email daphnepereiraincagovbr Monica Marchese Swinerd e Capítulo 9 Psicóloga do HCIINCA especialista em atendimento psicanalítico em instituição pelo IPUB UFRJ formação psicanalítica pelo Instituto de Clínica Psicanalítica ICP da Escola Brasileira de Psicanálise EBP do Rio de Janeiro Email mswinerdincagovbr REVISÃO TÉCNICA Luciana da Silva Alcântara e Capítulo 14 Assistente social do HCIINCA mestre e doutoranda do programa de pósgraduação em serviço social da Uerj Email lalcantaraincagovbr CAPÍTULO 1 Monica Pinheiro Psicóloga do HCIIINCA graduada pela Uerj especialista em psicologia clínica pelo Instituto de Gestalt Terapia e Atendimento Familiar especialista em gênero e sexualidade pelo IMSUerj Email monicpinheiroyahoocombr CAPÍTULO 2 Deborah Melo Ferreira Psicóloga mestranda em teoria psicanalítica pela UFRJ especialista em oncologia pelo INCA especialista em clínica psicanalítica em instituição de saúde mental pelo IPUBUFRJ Email deborahmf05gmailcom CAPÍTULO 3 Ingrid Raiol da Silveira Psicóloga residente do programa de residência multiprofissional em oncologia do INCA Email ingridraiolgmailcom Márcia Regina Lima Costa Psicóloga do HCIIIINCA mestre e doutoranda em psicologia da UFRJ Email márciacosta incagovbr Mariana Almeida Rabelo Psicóloga residente do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do INCA Email marialmeidarabellogmailcom 164 CAPÍTULO 4 Marcelo Chahon Psicólogo do HCIINCA graduado pela UFRJ mestre e doutor em psicologia pela UFRJ área de concentração desenvolvimento cognitivo especialização em psiquiatria e psicoterapia da infância pelo instituto de psiquiatria da UFRJ Email psichahongmailcom CAPÍTULO 5 Gabriela Mendonça Discente do curso de psicologia pela Universidade Federal Fluminense UFF estagiária do serviço de psicologia do HFSE Email gabipm21yahoocombr Jaqueline Romariz Psicóloga do HFSE e do Hospital Estadual Getúlio Vargas HEGV mestre em saúde da criança e da mulher pela Fiocruz Email jaquelineromarizgmailcom Martha Gonçalves Ferreira Discente do curso de psicologia pela Universidade Estácio de Sá Unesa e estagiária do serviço de psicologia do HFSE Email marthagoncalvesferreiragmailcom Susana Medeiros Ramos Discente do curso de psicologia da Unesa e estagiária do serviço de psicologia do HFSE Email susanaramospsigmailcom Pedro Chaves Jornalista pela PUC discente do curso de psicologia da Unesa e estagiário do serviço de psicologia do HFSE Email pchavespsigmailcom CAPÍTULO 6 Nina Gomes Costa Psicóloga com especialização em oncologia bolsista da seção de oncologia pediátrica do INCA Email gcninayahoocombr CAPÍTULO 7 Carolina Ferreira Barbosa Psicóloga residente do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do INCA Email caroldoicmgmailcom Marcia Maria dos Anjos Azevedo Psicanalista diretora técnica da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio de Janeiro SPCRJ professora adjunta do curso de psicologia da UFF Campus Rio das Ostras e supervisora de estágio Email mmazevedoglobocom CAPÍTULO 8 Marilia Guisard Neves Psicóloga doutora em psicologia diretora do Behavioral Science Training and Education of the Institute for Family Health Harlem Residency Program in Family Medicine professora assistente do departamento de Family Medicine and Community Health da Icahn Escola de Medicina do Hospital Mount Sinai Nova Iorque Email Marilianeves1mssmedu 165 CAPÍTULO 9 Monica Marchese Swinerd Psicóloga do HCIINCA especialista em atendimento psicanalítico em instituição pelo IPUB UFRJ formação psicanalítica ICPEBP Rio Email mswinerdincagovbr CAPÍTULO 10 Juliana de Miranda e CastroArantes Psicóloga da clínica da dor do INCA pósdoutora em teoria psicanalítica pela UFRJ membro do Tempo Freudiano Associação Psicanalítica Email jucastroterracombr TEXTO SUPLEMENTAR Romildo do Rêgo Barros Psicanalista membro da Associação Mundial de Psicanálise AMP Email romildorbarros terracombr CAPÍTULO 11 Claudia Azevedo Ferreira Guimarães Rabello Fisioterapeuta da oncopediatria do INCA mestre em saúde da família especialista em bioética e graduada em direito Email claudiaafgrabellterracombr CAPÍTULO 12 Ana Beatriz da Rocha Bernat Psicóloga do serviço de oncologia pediátrica HCIINCA Mestre em teoria psicanalítica pelo Instituto de Psicologia IP Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ especialista em atendimento psicanalítico em instituição pública pelo Instituto de Psiquiatria IPUBUFRJ coordenadora da pesquisa Impasses no reingresso escolar de crianças e adolescentes egressos de tratamento oncológico HCIINCA Email abernatincagovbr Bárbara Braga Wepler Professora do Instituto Benjamin Constant formada em pedagogia e pósgraduanda em educação especial na perspectiva da educação inclusiva Email babibragaigcombr Izabel Christina Machado de Oliveira Professora da Classe hospitalar do INCA fonoaudióloga especialista em psicopedagogia clínica Email izachristinayahoocombr Mariana Almeida Rabelo Psicóloga residente do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do INCA Email marialmeidarabellogmailcom Nina Gomes Costa Psicóloga com especialização em oncologia bolsista da seção de oncologia pediátrica do INCA Email gcninayahoocombr Rosane Martins dos Santos Professora da classe hospitalar do INCA psicóloga com especialização em saúde mental da infância e da adolescência Emailrosanemsantosyahoocombr 166 CAPÍTULO 13 Ana Maria Quintela Maia Terapeuta ocupacional professora substituta do curso de graduação em terapia ocupacional da UFRJ especialista em saúde mental nos moldes de residência IPUBUFRJSecretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil SMSDCRJ mestre em saúde coletiva pelo Instituto de Medicina Social IMS da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Uerj Email aninhaquintelayahoocombr Clarissa Ruback Discente do curso de terapia ocupacional da UFRJ Estagiária no Instituto Nacional de Saúde da Mulher da Criança e do Adolescente Fernandes Figueira IFF da Fundação Oswaldo Cruz Fiocruz no Programa Saúde Brincar Email Kkubrackhotmailcom CAPÍTULO 14 Ana Celina Alves Muniz de Oliveira Assistente social do HCIINCA especialista em oncologia pelo INCA Email smdooicombr Luciana da Silva Alcântara Assistente social do HCIINCA mestre e doutoranda do programa de pósgraduação em serviço social da Uerj Email lalcantaraincagovbr CAPÍTULO 15 Ana Paula Menezes Bragança dos Santos Assistente social mediadora de conflitos Email anapaulambhotmailcom Ernani Costa Mendes Doutorando em saúde pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca Ensp Fiocruz fisioterapeuta do HCIINCA Email ernanimendesincagovbr CAPÍTULO 16 Andréa Ladislau Graduada em letras pela Pontifícia Universidade Católica PUCBH pósgraduada em gestão em saúde e administração hospitalar pela EstácioRJ pósgraduanda em psicanálise pela Sociedade MiesperanzaRJ Email andrealadislauigcombr CAPÍTULO 17 Kássia de Oliveira Martins Siqueira Assistente social especialista em serviço social e saúde mestre e doutoranda em políticas públicas e formação humana pela Uerj Tecnologista Júnior do INCA Email kassiasiqueirayahoocombr CAPÍTULO 18 Ana Raquel de Mello Chaves Assistente social mestre tecnologista do INCA Email achavesincagovbr Laura Freitas Oliveira Assistente social mestre em serviço social pela Uerj Tecnologista do INCA Email laurafrei2009 yahoocombr 167 CAPÍTULO 19 Andressa Silva de Freitas Fonoaudióloga do HCIINCA doutoranda pelo departamento de radiologia da faculdade de medicina da UFRJ mestre em ciências morfológicas pelo instituto de ciências biomédicas da UFRJ Email andressafreitasincagovbr Esta revista foi impressa na Gráfica Flama em offset papel couche mate 120g 44 Fonte Book Antigua corpo 11 Rio de Janeiro agosto de 2014 CADERNOS DE PSICOLOGIA Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Número 2 Versão Eletrônica Versão Impressa CADERNOS DE PSICOLOGIA Sofrimento psíquico do paciente oncológico o que há de específico Número 2 MINISTÉRIO DA SAÚDE Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva INCA