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Volume 2 número 2 2006 157 Artigos especiais Esta seção destinase à publicação de artigos de autores convidados Os textos serão publicados no idioma original Sentidos da vulnerabilidade característica condição princípio Senses of vulnerability characteristic condition principle M Patrão Neves Centro de Estudos de Bioética da Universidade de Açores Ponta Delgada Portugal patraonotesuacpt Resumo Vulnerabilidade é um termo comum na linguagem corrente que principalmente na última década tem se tornado cada vez mais freqüente no discurso bioético Este processo culminou com a enunciação do respeito pela vulnerabilidade humana como princípio ético na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO aprovada em outubro de 2005 Neste contexto tem aumentado o empenho em definir rigorosamente a significação que a noção de vulnerabilidade pode e deve assumir no do mínio específico da bioética objetivo para o qual queremos contribuir com esta reflexão Para tal recuaremos à noção etimológica do termo como funda mento objetivo da sua significação conceitual retomaremos os grandes textos da reflexão ética contemporânea em que a vulnerabilidade é referida com um sentido técnico preciso e exploraremos as diferentes modalidades da sua evocação no âmbito da bioética especificando igualmente a sua capacidade operativa Palavraschave Vulnerabilidade Bioética Experimentação humana Prática clínica Políticas de saúde Investigação biomédica Abstract Vulnerability is a commonly used term from the current language particularly in the last decade it has been more frequently used in bioethics discourse This process resulted in the enunciation of the respect for human vulnerability as an ethical principle in the Universal Declaration on Bioeth ics and Human Rights from UNESCO approved in October 2005 In this context there is increasing effort to strictly define the meaning that vulner 7 Revista Brasileira de Bioética 158 Vulnerabilidade é uma palavra de origem latina derivando de vulnus eris que significa ferida Assim sendo a vulnerabilidade é irredu tivelmente definida como susceptibilidade de se ser ferido Esta sig nificação etimológicoconceitual originária e radical mantémse ne cessariamente em todas as evocações do termo tanto na linguagem corrente como em domínios especializados não obstante o mesmo poder assumir diferentes especificações de acordo com os contextos em que é enunciado e com a própria evolução da reflexão e da prática bioéticas O primeiro texto no âmbito da bioética em que a noção de vulne rabilidade surgiu com uma significação ética específica foi o Belmont Report ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research 1 Este documento finalizado em 1978 corres ponde ao trabalho desenvolvido durante quatro anos pela National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research estabelecida pelo Congresso Estadunidense para formular os princípios éticos básicos a serem respeitados em toda a investigação envolvendo seres humanos A noção de vulnera bilidade é introduzida no Relatório Belmont para classificar de forma particular apenas alguns são ditos vulneráveis e em termos rela tivos comparativamente aos ditos não vulneráveis tanto pessoas singulares na seção sobre da voluntariedade como populações na seção dedicada à avaliação sistemática de riscos e benefícios que se encontrem numa situação de exposição agravada e que possam vir a ser feridas isto é serem prejudicadas nos seus interesses pelos ability can and must assume in bioethics field what we are here trying to contribute to To reach our objectives we will start from the etimological con cept of the term as a way to go back to its conceptual origin we will also take the greatest texts about contemporaneous ethics in which vulnerability is referred in a technical sense and precise way and we will explore the differ ent modalities of its evocation in the bioethics field specifying its practical capacity Key words Vulnerability Bioethics Human research Clinical practice Health policies Biomedical investigation 8 Volume 2 número 2 2006 159 interesses de outrem no âmbito da pesquisa biomédica e mais espe cificamente no da experimentação humana O surgimento da vulnerabilidade no contexto da experimentação humana e como classificação atribuída a algumas pessoas é determi nado por fatores históricos o recurso a sujeitos de experimentação no desenvolvimento da investigação biomédica foi crescendo ao longo da primeira metade do século XX recorrendo a grupos de pessoas desprotegidas ou institucionalizadas como órfãos prisioneiros idosos e mais tarde judeus e outros grupos étnicos considerados inferiores e mesmo subumanos pelos nazistas ou povos como os chineses que os japoneses também exploraram em prol da prossecução dos seus objetivos científicos e militares São sobretudo estes grupos que vêm a ser classificados como vulneráveis aos quais se juntaram também posteriormente e em contextos mais ampliados outras etnias minori tárias grupos socialmente desfavorecidos e as mulheres A vulnerabilidade na função adjetivante com que é utilizada apresentase primeiramente como um fato num plano descritivo To davia não pode ser considerada como axiologicamente neutra mas antes denota já igualmente a expressão de valores na abertura a um plano prescritivo Com efeito a qualificação de pessoas e populações como vulneráveis impõe a obrigatoriedade ética da sua defesa e prote ção para que não sejam feridas maltratadas abusadas imperativo este que aliás o Relatório Belmont também enuncia na seção sobre a Seleção de Sujeitos1 Este documento porém vai ainda mais longe na afirmação de que a proteção dos vulneráveis deverá ser assegura da pelo cumprimento dos seus três princípios éticos básicos o res peito pelas pessoas na exigência de reconhecimento da autonomia dos indivíduos em geral e de proteção daqueles que possuem uma 1 One special instance of injustice results from the involvement of vulnerable subjects Certain groups such as racial minorities the economically disadvantaged the very sick and the institutionalized may continually be sought as research subjects owing to their ready availability in settings where research is conducted Given their dependent status and their frequently compromised capacity for free consent they should be protected against the danger of being involved in research solely for administrative convenience or because they are easy to manipulate as a result of their illness or socioeconomic condition Belmont Report ethical principles and guidelines for the protection of human subjects of research The National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research 1979 9 Revista Brasileira de Bioética 160 autonomia diminuída deste decorrendo a necessidade do consen timento informado o qual inclui a obrigatoriedade de informação compreensão e voluntariedade a beneficência na exigência de não fazer o mal maximizar os possíveis benefícios e minimizar possíveis prejuízos e a justiça na exigência de equidade na distribuição O Relatório Belmont desenha assim em traços largos o contexto em que a vulnerabilidade virá a ser predominantemente tematizada pela bioética experimentação humana e o sentido que mais fre quentemente assumirá como característica preconizando também as principais modalidades de ação tendentes à sua superação ou mes mo eliminação A reflexão bioética subsequente que se desenvolve então no con texto geocultural angloamericano especialmente a partir da sua es truturação teórica iniciada por Tom Beauchamp e James Childress em Principles of biomedical ethics de 1979 2 virá reforçar a idéia de que a vulnerabilidade que caracteriza particular e relativamente pessoas ou grupos populacionais deve ser combatida e estas devem ser prote gidas Isso apenas será possível por meio da exigência cada vez mais ampla e rigorosa do consentimento informado agora enunciado como regra de ação implicada no cumprimento do desde então designado princípio da autonomia mediante o reforço da sua respectiva auto nomia como capacidade que assiste à pessoa de se autodeterminar na rejeição de qualquer protecionismo paternalista O princípio éti co da autonomia é então definido num sentido bastante amplo como reconhecimento do direito comum a toda pessoa para manter suas perspectivas fazer suas escolhas e decidir agir baseada nos seus valo res e crenças pessoais mas também como promoção efetiva de con dições capacitando a pessoa para agir autonomamente2 Ou seja a autonomia não é apenas entendida numa acepção negativa como direito a respeitar mas também positiva enquanto exige do outro o estabelecimento de condições para o seu exercício O caráter contin 2 Do Belmont Report 1978 para Principles of biomedical ethics 1979 se avança de um paternalismo remanescente para o reforço do sentido da autonomia o protecionismo paternalista presente no princípio do respeito pelas pessoas do Relatório Belmont cede lugar a um amplo conceito de autonomia na obra de Beauchamp e Childress que exige também a promoção de condições para que a pessoa aja autonomamente 10 Volume 2 número 2 2006 161 gente e provisório da vulnerabilidade desde sempre inerente à sua acepção como característica é agora reforçado de modo paralelo e proporcional ao reforço da autonomia das pessoas e grupos vulnerá veis ou como se diz hoje também pelo seu empowerment É no contexto descrito e no sentido definido que a vulnerabilidade tem feito história na bioética desde a sua introdução neste domínio no fim da década de 1970 até o presente Entretanto desde a década de 1990 assistimos a uma crescente valorização temática da vulne rabilidade que se evidencia em vários documentos fundamentais de índole éticojurídica e de alcance internacional Destacamos primeiramente o International Ethical Guidelines for Biomedical Research Involving Human Subjects do Council for Inter national Organizations of Medical Sciences em colaboração com a World Health Organization CIOMSWHO 3 considerandoas nas suas sucessivas formulações de 1982 1993 e 2002 Este texto restrin gindose necessariamente ao domínio da experimentação humana referese já na sua versão de 1993 extensamente à vulnerabilidade quase sempre na função adjetivante da noção aplicada a classes de indivíduos sujeitos pessoas grupos populações ou comunidades A revisão de 2002 mantém o sentido anteriormente atribuído à vul nerabilidade e reforça sua importância ao introduzir uma diretiva a de número 13 dedicada especificamente à investigação envolvendo pessoas vulneráveis3 Corroborando os aspectos relativos à vulnerabilidade que vimos sublinhando a expressão da vulnerabilidade como adjetivo a aplicar no âmbito da experimentação humana e tornandose cada vez mais 3 A revisão de 1993 apresenta apenas 15 diretivas enquanto a de 2002 apresenta 21 entre as quais se destaca a de número 13 sobre a investigação envolvendo pessoas vulneráveis Special justification is required for inviting vulnerable individuals to serve as research subjects and if they are selected the means of protecting their rights and welfare must be strictly applied Guideline 13 Research involving vulnerable persons CIOMSWHO International Ethical Guidelines for Biomedical Research Involving Hu man Subjects 2002 As duas últimas revisões incluem também uma mesma definição geral de vulnerabilidade Vulnerability refers to a substantial incapacity to protect ones own interests owing to such impediments as lack of capability to give informed consent lack of alternative means of obtaining medical care or other expensive necessities or being a junior or subordinate member of a hierarchical group Accordingly special pro vision must be made for the protection of the rights and welfare of vulnerable persons General Ethical Principles Justice Ibid 11 Revista Brasileira de Bioética 162 freqüente destacamos seguidamente a Declaration of Helsinki ethi cal principles for medical research involving human subjects da World Medical Association WMA 4 Verificamos então que o termo vul nerabilidade está ausente no documento original de 1964 bem como nas suas revisões de 1975 1983 e 1989 Ele surge pela primeira vez na década de 1990 mais precisamente na revisão de 1996 Somerset WestÁfrica do Sul da Declaração de Helsinque no seu artigo 8 para como habitualmente classificar sujeitos de investigação em termos particulares e relativos e enunciando a necessidade da sua adequada proteção4 Este artigo foi revisto na sua expressão escrita em 2000 EdinburgEscócia mantendo todavia seu conteúdo e já não so frendo quaisquer alterações nos textos de 2002 WashingtonEstados Unidos e de 2004 TokyoJapão5 Também a Universal Declaration on the Human Genome and Hu man Rights de 1997 a primeira declaração universal no âmbito da biomedicina elaborada pela UNESCO 5 corrobora os aspectos ante riormente apontados ao referirse nos seus artigos 17 e 24 aos gru pos vulneráveis indivíduos e famílias como merecendo especial atenção6 4 Some categories of subjects are more vulnerable than others and call for adapted pro tection art 8 WMA Declaration of Helsinki ethical principles for medical research in volving human subjects 1996 5 Medical research is subject to ethical standards that promote respect for all human beings and protect their health and rights Some research populations are vulnerable and need special protection The particular needs of the economically and medically disadvantaged must be recognized Special attention is also required for those who can not give or refuse consent for themselves for those who may be subject to giving consent under duress for those who will not benefit personally from the research and for those for whom the research is combined with care art 8 WMA Declaration of Helsinki ethical principles for medical research involving human subjects 2004 É relevante sublinhar que a referência à vulnerabilidade na Declaração extravasa a dimensão biológica e considera também fatores econômicos como determinantes de vulnerabilidade 6 States should respect and promote the practice of solidarity towards individuals families and population groups who are particularly vulnerable to or affected by disease or disability of a genetic character art 17 Solidarity and international coopera tion UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights 1997 art 17 Importa sublinhar que esta Declaração aponta que a vulnerabilidade deve suscitar a solidariedade sem que fazer referência à autonomia O fato justificase pela vulnerabilidade classificar indivíduos afetados por doença genética o que impede que possa ser perspectivada como provisória passível de ser eliminada suscitando por isso um diferente sentido para a ação a solidariedade 12 Volume 2 número 2 2006 163 Em síntese a noção de vulnerabilidade é introduzida e persiste no vocabulário bioético numa função adjetivante como uma característi ca particular e relativa contingente e provisória de utilização restrita ao plano da experimentação humana tornandose cada vez mais fre qüente na constatação de uma realidade que se pretende ultrapassar ou mesmo suprimir por meio da atribuição de um poder crescente aos vulneráveis A vulnerabilidade como condição humana universal O desenvolvimento da bioética na Europa continental que se inicia assumidamente na década de 1980 determinou uma altera ção substancial no entendimento da noção de vulnerabilidade Nes te novo contexto geocultural a vulnerabilidade corroborando ainda e sempre a sua significação etimológica ganha um novo sentido mais amplo decorrente da reflexão que filósofos europeus como Emmanuel Lévinas e Hans Jonas lhes vinham dedicando desde o início da década de 1970 e que viria a ser assimilado pelo discurso bioético apenas na década de 1990 É Lévinas quem primeiro tematiza filosoficamente a vulnera bilidade na sua obra Lhumanisme de lautre homme de 1972 6 que a define como subjetividade sendo na subjetividade levinas siana o eu sempre posterior à alteridade ao outro que existe ne cessariamente antes do eu e que chama o eu à existência Então toda subjetividade é em relação a relação com outro na depen dência ao outro que o faz ser A subjetividade é pois originária e irredutivelmente dependência exposição ao outro e por isso vul nerabilidade 7 A vulnerabilidade todavia não define a subjetividade num pla no ontológico como sua identidade substancial ou natureza do ser humano mas no plano ético como apelo a uma relação não violen ta entre o eu e o outro no faceaface situação originária da subje tividade o eu na sua vulnerabilidade apresentase como resposta não violenta à eleição do outro que o faz ser Isto é a subjetividade ao surgir em resposta ao chamamento do outro apresentase como vulnerabilidade podendo ser ferida pelo outro e como responsabi lidade respondendo positivamente ao outro e sempre como apelo 13 Revista Brasileira de Bioética 164 a uma relação não violenta É esta a condição humana7 A vulnera bilidade entra assim no vocabulário filosófico como realidade cons titutiva do homem como condição universal da humanidade e como indissoluvelmente ligada à responsabilidade no sentido etimológico de resposta Jonas em Das prinzip verantwortung de 1979 8 chama também a atenção para a relevância da significação filosófica da vulnerabili dade que entende como carácter perecível de todo o existente sendo o existente todo o ser vivo perecível isto é finito mortal apresen tase também como originário e irredutivelmente vulnerável Neste sentido a vulnerabilidade não é especifica ao homem mas antes comum a todo o existente exprimindo a natureza mesma do vivente8 O homem tal como os demais viventes é pois natural e ontologi camente vulnerável Jonas porém situa sua reflexão no plano ético em que a vulnerabilidade apela para o dever isto é em que apela a uma resposta ética à responsabilidade do outro perante a ameaça de perecimento do existente Deste modo sendo a vulnerabilidade a condição universal do existente a ação ética não incide apenas sobre o homem não se restringe às relações interpessoais mas estendese a todos os viventes e seus habitats num irrecusável alargamento da reflexão ética ao plano animal vegetal e ambiental Não obstante a dimensão ética permanece específica do homem para Jonas são os que mais podem que mais devem pelo que apesar de toda a natureza ser vulnerável é apenas ao homem que tem o poder para destruir todo o existente que compete a responsabilidade de zelar pela vul nerabilidade de responder de modo proporcional ao seu poder de cumprir o seu dever de solicitude face à ameaça de deterioração e morte que compete cuidar pela vulnerabilidade A vulnerabilidade entendida agora como condição universal do vivente consolidase no vocabulário da filosofia europeia continental como domínio inaliená 7 Le Moi de pied en cap jusquà la moelle des os est vulnerabilité Emmanuel Lévinas Op cit 8 Quon considère par exemple la vulnerabilité critique de la nature par linterven tion technique de lhomem une vulnerabilité qui navait jamais été pressentie non seulement la nature de lagir humain sest modifiée de facto et quun objet dun type entièrement nouveau rien de moins que la biosphère entière de la planète sest ajouté à ce pour quoi nous devons être responsables parce que nous avons pouvoir sur lui H Jonas Op cit pp 2425 14 Volume 2 número 2 2006 165 vel do agir do homem impondo a responsabilidade como norma da ação moral A vulnerabilidade é pois agora reconhecida como constitutiva do humano9 e até mesmo do existente Deste modo a noção de vulne rabilidade surge sempre como substantivo e nunca como adjetivo Por isso não pode ser compreendida ou utilizada como um fator de dife renciação entre pessoas e populações tal como se verificava na sua acepção como característica Assumida tacitamente como expressão de uma discriminação positiva quando da sua introdução no discur so bioético a classificação de vulnerável veio a ser denunciada mais recentemente e sobretudo em virtude do crescimento do movimento de inclusão no âmbito dos ensaios clínicos como uma forma de discri minação negativa 910 Constitutiva do humano a vulnerabilidade é irredutível e inalienável Por isso não pode ser ultrapassada ou elimi nada e o reforço da autonomia ao lado da crescente exigência de con sentimento são não obstante inexoravelmente insuficientes para neu tralizar os prejuízos a que cada vulnerabilidade se encontra exposta uma vulnerabilidade que é manifesta afinal em todas as dimensões de expressão do humano e não restrita ao plano da experimentação humana Lévinas e Jonas convergem na afirmação da vulnerabilidade como condição universal do homem a que só a responsabilidade como res posta não violenta ao outro como resposta proporcionada à amea ça pendente sobre o perecível respectivamente responde efetiva e cabalmente 10 Uma responsabilidade comumente entendida como 9 É já também neste sentido que o prestigiado bioeticista norteamericano emprega a noção de vulnerabilidade em The vulnerability of the human condition In Rendtorff Jacob e Kemp Peter Eds Basic ethical principles in bioethics and biolaw I autonomy dignity integrity and vulnerability Copenhagen Barcelona Centre for Ethics and Law Institut Borja de Bioètica 2000 pp 11522 10 O movimento de inclusão defende de acordo com a sua designação a inclusão ou livre acesso dos grupos tradicionalmente considerados vulneráveis nos ensaios clínicos A sua invariável rejeição privaos dos potenciais benefícios que os ensaios clínicos ofe recem quer em termos individuais na assistência clínica excelente e gratuita quer em termos sociais na obtenção de dados científicos rigorosos acerca daquele segmento da população A rejeição das pessoas e populações consideradas vulneráveis dos ensaios clínicos deixa pois de ser interpretada como uma medida de proteção passando a ser denunciada como um fator de exclusão e de discriminação Backlar P Op cit pp 641 51 15 Revista Brasileira de Bioética 166 resposta do eu de cada um à presença do outro na sua radical vul nerabilidade11 A vulnerabilidade exprime pois o modo de ser do homem a sua humanidade e exige um modo específico de agir na resposta não violenta de cada um ao outro uma ação responsável e solidária instaurando uma ética de fundamentação antropológica o modo como devemos agir decorre do modo como somos e como queremos ser sendo a nossa comum vulnerabilidade que instaura um sentido universal do dever na ação humana É também nesta sua ampla acepção que a vulnerabilidade extravasa os estreitos limites de toda e qualquer classificação a ser aplicada de modo a se tornar efetivamente um tema bioético a problematizar Em síntese e tomando em consideração a reflexão desenvolvida até o presente diríamos que das referências circunstanciais da bio ética de expressão angloamericana à vulnerabilidade para sua fre qüente tematização na bioética de expressão europeia as diferenças são significativas se bem que complementarmente articuláveis de função adjetivante qualificadora de alguns grupos e pessoas a vul nerabilidade passa a ser assumida como substantivo descrevendo a realidade comum do homem de característica contingente e provisó ria passa a condição universal e indelével de fator de diferenciação entre populações e indivíduos passa a fator de igualdade entre todos da consideração privilegiada do âmbito da experimentação humana passa para uma atenção constante também no plano da assistência clínica e das políticas de saúde de uma exigência de autonomia e da prática do consentimento informado passa à solicitação da responsa bilidade e da solidariedade A vulnerabilidade como princípio ético internacional Atualmente e tomando em consideração a bioética na projeção mundial que logrou alcançar podemos dizer que a noção de vulne rabilidade protagoniza os dois sentidos anteriormente indicados o primeiro como característica numa função adjetiva é o mais restri 11 As diferenças entre as reflexões de Lévinas e de Jonas sobre a responsabilidade são muitas e profundas não obstante os pontos de convergência destacados Neves MCP Op cit pp 85170 16 Volume 2 número 2 2006 167 to comum e imediatamente apreensível o segundo como condição numa função nominal é o mais amplo e remete a uma concepção antropológica como fundamento da ética A confluência destes dois sentidos na sua possível articulação é excelentemente testemunhada pelo artigo 8 da recente Universal Declaration on Bioethics and Human Rights 11 da UNESCO que enuncia a obrigatoriedade de respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade pessoal Este artigo afirma que a vulnerabilidade humana deve ser tomada em consideração o que corresponde ao seu reconhecimento como traço indelével da condição humana pers pectivada na sua irredutível finitude e fragilidade como exposição permanente a ser ferida não podendo como tal jamais ser suprimi da Acrescenta que indivíduos e grupos especialmente vulneráveis devem ser protegidos sempre que a inerente vulnerabilidade huma na se encontra agravada por circunstâncias várias devendo aqueles ser adequadamente protegidos12 Com efeito é na articulação desta sua dupla acepção que a vul nerabilidade veio a ser mais recentemente apresentada como prin cípio o que como já indicamos se verifica com um alcance ímpar na citada Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005 Na verdade o respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individual constitui um dos 15 princípios éticos formu lados pela Declaração para toda a decisão e prática bioéticas e seu posicionamento relativo aos outros princípios confirma a justeza da interpretação apresentada O princípio do Respeito pela vulnerabili dade é introduzido posteriormente ao princípio do Consentimento artigo 6 e imediatamente a seguir ao das Indivíduos sem capaci dade para consentir artigo 7 visando assim responder todas as si tuações que possam ferir a integridade do ser humano que possam ofender a dignidade da pessoa e que não são prevenidas por estes dois artigos que antecedem o da vulnerabilidade Isto é o princípio da vulnerabilidade visa garantir o respeito pela dignidade humana 12 In applying and advancing scientific knowledge medical practice and associated technologies human vulnerability should be taken into account Individuals and groups of special vulnerability should be protected and the personal integrity of such individuals respected article 8 Respect for Human Vulnerability and Personal Integrity UNESCO Op cit 17 Revista Brasileira de Bioética 168 nas situações em relação às quais os princípios da autonomia e do consentimento se manifestam insuficientes De fato o princípio do respeito pela vulnerabilidade humana e pela integridade individu al articulase preferencialmente com o da dignidade humana ar tigo 3 cujo enunciado do valor incondicional da pessoa é reforçado com a exigência da sua inviolabilidade É no entanto em 1998 na Barcelona Declaration 1213 que a formulação da vulnerabilidade como princípio surge pela primeira vez ao lado da autonomia da dignidade e da integridade conside radas conjuntamente como os princípios éticos básicos na bioética e biodireito europeus 13 A vulnerabilidade é então apresentada como exprimindo simultaneamente duas idéias que a partir da refle xão anterior designamos como sendo a da condição humana na sua universalidade e a da caracterização particular de algumas pessoas Com efeito a primeira idéia segundo aquele documento enuncia a finitude e a fragilidade da vida num sentido que já apresentamos e que se explicita também como real naqueles capazes de autono mia fundando assim a possibilidade e a necessidade de toda a mo ralidade Para além de se corroborar a já afirmada impossibilidade da autonomia suprimir a vulnerabilidade afirmase também que é esta dimensão do humano que é a suscetibilidade de ser ferido que instaura o dever de não ferir14 Isso funda a ética como relação não violenta numa reflexão assumidamente herdeira do pensamento filosófico europeu continental A segunda idéia sublinha a necessida de de cuidado para os vulneráveis num inequívoco destaque dos particularmente vulneráveis15 A assunção da vulnerabilidade como princípio reúne pois de forma harmoniosa os dois sentidos anterior mente identificados na noção de vulnerabilidade 13 A Declaração de Barcelona corresponde à concretização de um projeto da União Européia de apresentação dos princípios fundamentais da bioética e do biodireito en raizados na cultura europeia tendo em vista a formulação de uma política européia conjunta no domínio da biomedicina 14 Robert Goodin havia já apresentado esta idéia em 1985 na sua obra Protecting the vulnerable a reanalysis of our social responsabilities Chicago University of Chicago 15 Vulnerability expresses two basic ideas a It expresses the finitude and fragility of life which in those capable of autonomy grounds the possibility and necessity for all moral ity b Vulnerability is the object of a moral principle requiring care for the vulnerable The vulnerable are those whose autonomy or dignity or integrity is capable of being threatened The Barcelona Declaration 1998 18 Volume 2 número 2 2006 169 A enunciação da vulnerabilidade como princípio não concretiza porém apenas a possibilidade de conjugação dos seus dois diferen tes sentidos sublinhados por dois diferentes contextos geoculturais e o enriquecimento conceptual do termo daí decorrente O estatuto de princípio atribuído à vulnerabilidade trazlhe algo de novo Um princípio obriga Todo o princípio exprime uma obrigação que como tal se impõe à consciência moral sob a expressão de um dever de um dever a ser cumprido Assim sendo o aspecto fundamental da afir mação da vulnerabilidade como princípio ético é o de formular uma obrigação da ação moral Alguns bioeticistas interrogamse sobre a possibilidade da vulne rabilidade poder ser afirmada e reconhecida como princípio Uns afirmam que o conceito é demasiado ambíguo ao ser confrontado com a possibilidade de duas acepções e sobretudo com a compreensão da vulnerabilidade como condição humana que consideram demasiado ampla Outros centrandose precisamente na acepção mais ampliada afirmam que esta não possui qualquer dimensão normativa pelo que não é passível de se tornar um princípio De fato a vulnerabilidade como princípio obriga na sua acepção mais comum de característi ca particular à proteção adequada dessa fragilidade acrescida numa ação positiva que varia de acordo com as necessidades específicas na sua acepção mais ampla de condição universal obriga ao reconhe cimento de que todas as pessoas são de algum modo vulneráveis podendo todas serem feridas por outrem pelo que todas exigindo respeito no seu modo de ser numa ação negativa no distanciamento ou abstenção de qualquer prejuízo mas também positiva na exigên cia do zelo do cuidado da solicitude para com a vulnerabilidade A formulação da vulnerabilidade como princípio tem implicações importantes não apenas num plano teórico reflexivo mas também no plano prático da ação efetiva Com efeito podemos apontar mui to brevemente e a título ilustrativo como este princípio intervém de forma pertinente e indispensável para a salvaguarda da dignidade humana em situações de fragilidade acrescida nos três níveis em que a bioética se desenvolve o da experimentação humana o da prática clínica e o das políticas de saúde e de investigação biomédica O princípio da vulnerabilidade obriga ao reconhecimento de que o exercício da autonomia e de dar consentimento não eliminam a 19 Revista Brasileira de Bioética 170 vulnerabilidade Esta sutil e disfarçadamente continua a ser explo rada no plano da experimentação humana por exemplo por meio da apresentação otimista de ensaios clínicos para os quais se procu ra voluntários ou das contrapartidas oferecidas a esses voluntários como os exames médicos e a assistência clínica gratuita ou ainda a hiperbolização dos sucessos biomédicos pela mídia Nesta última situação criamse expectativas irrealistas nos doentes e na sociedade em geral agravandose o processo de medicalização da sociedade Este coloca na biomedicina a esperança de resolução de todos os pro blemas humanos numa pressão insustentável para a biomedicina e desmotivadora da procura de vias alternativas de resolução o casal infértil por exemplo pode recorrer a tecnologias reprodutivas mas também pode recusar submeterse aos tratamentos de infertilidade e assumila como condição de vida o que tende a ser uma hipótese cada vez mais remota Assim já no plano da assistência clínica pode mos acrescentar que em termos gerais o princípio da vulnerabilida de interpela diretamente o profissional de saúde na sua responsabili dade de estabelecer relações simétricas com a pessoa doente e obriga as instituições a proteger a zelar por todos os cidadãos igualmente mesmo quando estes não têm poder de reivindicação No domínio es pecífico da prestação de cuidados de saúde diríamos que a existência de associações de doentes algumas bastante poderosas e que atuam como verdadeiros lobbies de interesses não pode contribuir para que se negligencie ou subestime doentes ou grupos de doentes com me nor capacidade organizativa No âmbito das políticas de saúde e de investigação o princípio da vulnerabilidade exige tanto no plano social interno como no interna cional que o benefício de alguns não seja alcançado pela exploração da fraqueza de outros bem como a compreensão de que a melhoria do bemestar de apenas alguns torna os restantes marginalizados ainda mais vulneráveis Exigese então que as políticas nacionais interna cionais e também de poderes econômicos multinacionais como por exemplo o das bioindústrias não agravem a vulnerabilidade huma na mas antes procurem eliminála na medida do possível e respeitar no que escapa ao seu alcance Em síntese consideramos que os três sentidos que a vulnerabi lidade tem protagonizado no discurso bioético e que destacamos no 20 Volume 2 número 2 2006 171 título do presente trabalho são articuláveis entre si e se apresentam hoje como constituintes indispensáveis da sua plena compreensão Simultaneamente consideramos que o mais recente estatuto da vul nerabilidade como princípio instaura uma nova lógica na racionali dade ética testemunhada nos diferentes grandes domínios em que se dão a reflexão e a ação éticas aplicadas à vida O princípio da vul nerabilidade excede a lógica preponderante da reivindicação dos di reitos que assistem às pessoas e anuncia a lógica da solicitude dos deveres que a todas competem visando a complementaridade entre uma consolidada ética dos direitos firmada na liberdade do indivíduo e desenvolvida pelo reforço da autonomia e uma urgente ética dos deveres firmada na responsabilidade do outro e desenvolvida pelo reforço da solidariedade Conferência proferida no IV Encontro LusoBrasileiro de Bioética realizado em São Paulo 2006 Referências 1 The National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomed ical and Behavioral Research Belmont Report ethical principles and guide lines for the protection of human subjects of research 1979 Disponível em httpohsrodnihgovguidelinesbelmonthtml Acesso em 18102006 2 Beauchamp T Childress J Principles of biomedical ethics Oxford Ox ford University Press 2002 5th edition p 63 3 CIOMSWHO International Ethical Guidelines for Biomedical Research Involving Human Subjects 2002 Disponível em httpwwwciomschframe guidelinesnov2002html Acesso em18102006 4 WMA Declaration of Helsinki ethical principles for medical research in volving human subjects 2004 Disponível emhttpwwwwmanetepolicy b3htm Acesso em 18102006 5 UNESCO Universal Declaration on the Human Genome and Human Rights 1997 Disponível em httpportalunescoorgenevphpURLID13177URLDODO TOPICURLSECTION201html Acesso em 18102006 6 Lévinas E Lhumanisme de lautre homme Paris Fata Morgana1972 7 Op cit p 104 21 Revista Brasileira de Bioética 172 8 Jonas H Das prinzip verantwortung Frankfurt Isnel V 1979 9 Backlar P Human subjects research ethics research on vulnerable popu lations In Murray T Mchlman M Eds Encyclopedia of ethical legal and policy issues in biotechnology 2 New York John Wiley Sons 2000 pp 641651 10 Neves MCP Na senda da responsabilidade moral In Poiética do mundo Lisboa Edições Colibri 2001 pp 851870 11 UNESCO Universal Declaration on Bioethics and Human Rights 2005 Disponível emhttpunesdocunescoorgimages0014001461146180Epdf Acesso em18102006 12 EU Declaração de Barcelona Disponível em httpwwwethiclawdkpublicationTHE20BARCELONA20Dec20Enels kpdfsearch22Barcelona20Declaration20bioethics22 13 Rendtorff J Kemp P eds Basic ethical principles in bioethics and biolaw I autonomy dignity integrity and vulnerability CopenhagenBarce lona Centre for Ethics and Law Institut Borja de Bioètica 2000 p 428 Recebido em 1092006 Aprovado em 24092006 22