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Direito ·
Psicologia Social
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Plenário responsável pela publicação Conselho Federal de Psicologia XV Plenário Gestão 20112013 Diretoria Humberto Cota Verona Presidente Clara Goldman Ribemboim Vicepresidente Monalisa Nascimento dos Santos Barros Tesoureira Deise Maria do Nascimento Secretária Conselheiros efetivos Flávia Cristina Silveira Lemos Secretária Região Norte Aluízio Lopes de Brito Secretário Região Nordeste Heloiza Helena Mendonça A Massanaro Secretária Região CentroOeste Marilene Proença Rebello de Souza Secretária Região Sudeste Ana Luiza de Souza Castro Secretária Região Sul Conselheiros suplentes Adriana Eiko Matsumoto Celso Francisco Tondin Cynthia Rejane Corrêa Araújo Ciarallo Henrique José Leal Ferreira Rodrigues Márcia Mansur Saadallah Maria Ermínia Ciliberti Mariana Cunha Mendes Torres Marilda Castelar Roseli Goffman Sandra Maria Francisco de Amorim Tânia Suely Azevedo Brasileiro Psicólogas convidadas Angela Maria Pires Caniato Ana Paula Porto Noronha o crime LOUCO Ernesto Venturini Domenico Casagrande e Lorenzo Toresini Conselho Federal de Psicologia BrasíliaDF 2012 ORGANIZADOR Virgílio de Mattos 1ª Edição BrasíliaDF 2012 É permitida a reprodução desta publicação desde que sem alterações e citada a fonte Disponível também em wwwcfporgbr 1ª Edição 2012 Capa Liberdade de Expressão Projeto Gráfico IDEORAMA Diagramação IDEORAMA Tradução MARIA LÚCIA KARAM Liberdade de Expressão Agência e Assessoria de Comunicação Direitos para esta edição Conselho Federal de Psicologia SAFSUL Quadra 2 Bloco B Edifício Via Office térreo sala 105 Brasília DF Brasil 70719900 BrasíliaDF 11 21090107 Email ascomcfporgbr wwwcfporgbr Impresso no Brasil Setembro 2012 Coordenação GeralCFP Yvone Magalhães Duarte Coordenação de ComunicaçãoCFP Cristina Bravo André AlmeidaEditoração Lívia Davanzo Gustavo Gonçalves Conselho Federal de Psicologia O CRIME LOUCO Ernesto Venturini Domenico Casagrande e Lorenzo Toresini autores Virgílio de Mattos Organizador Maria Lúcia Karam Tradutora Brasília CFP 2012 351 p ISBN ISBN 9788589208543 1 Psicologia 2 Saúde Mental 3Crimes I Título BF76 RESUMO O crime louco é uma obra com reflexões dados e análises de três crimes emblemáticos cometidos por portadores de sofrimento mental italianos que resultaram em processos criminais contra os profissionais antimanicomiais que neles foram envolvidos como réus em um inadmissível contorcionismo jurídico Complicadíssima questão dogmáticopenal de concurso culposo por parte do psiquiatra em delito doloso cometido pelo louco infrator é também objeto de análise nesse precioso trabalho que o Conselho Federal de Psicologia torna possível que você leia na bem cuidada tradução de Maria Lúcia Karam Endereço do CFP SAFSUL Quadra 2 Bloco B Edifício Via Office térreo sala 105 Brasília DF Brasil 70719900 BrasíliaDF O Crime Louco 9 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Virgílio de Mattos1 Por onde começar Desde a primeira vez que conversamos sobre a hipótese de traduzirmos O crime louco e Ernesto Venturini pediume este prefácio à edição brasileira fiquei em dúvida já no início Procurar correspondências tentar um tom formal e didático esquecendo o percurso de mais de uma década de amizade pareciame mesquinho e distante da realidade Definitivamente não começaria por aí Busco lembranças e a memória as faz vir em rajadas longas A primeira vez que conversamos por exemplo Inenarrável a tranquilidade que me passou com a simples frase pode falar em português se você preferir E prontamente agendou uma reunião para daí um par de dias A primeira vez que o vi parecia estar diante de um amigo de muito tempo Pareceume ser recíproco Ímola lembrava certa parte de uma Montevideo do passado ambas as cidades muito lindas e que parecem terse fixado no tempo Na Itália a expressão o levaram para Ímola corresponde ao mineiro e roseano o levaram para Barbacena Ser levado para um e outro lugar correspondia quase sempre a nunca mais voltar para lugar nenhum Nem na memória nem na vaga lembrança Um ponto para não sair e de onde não se pode voltar Ali pela primeira e última vez vi e toquei em uma camisa de força em um lugar mais do que apropriado um museu Naquele dia mesmo atarefado e às voltas com a feitura do orçamento anual Ernesto teve a suprema delicadeza de organizar uma reunião com os usuários em uma deliciosa Oficina de Vozes compartilhada naquela visita E na carona de volta até Bologna pudemos compartilhar a abertura que fazia da sua família para o pouco convencional trio estranho eu 1 Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade Do Fórum Mineiro de Saúde Mental Autor de Crime e Psiquiatria Preliminares para desconstrução das Medidas de Segurança dentre outros O Crime Louco 10 Laura Lambert e Francisco Caminha e o encantador jantar alguns dias depois As visitas dele aqui no Brasil quase sempre me proporcionavam a sorte de revêlo Pessoalmente me empenhei em duas que foram importantíssimas para mim um congresso antimanicomial em Belo Horizonte onde participou estupefato Ma come mai das bodas de ouro de Nélio e Maria José Lambert a visita à Favelinha e à festa junina e a outra em um congresso paulista de saúde mental em que rimos de todos os desencontros desses últimos dez anos Ernesto sempre teve uma relação muito família no que pode ter o signo de mais positivo respeitoso e afetivo com as várias outras famílias Em especial as de usuários trabalhadores estudiosos E por isso não sei se suponho ou deliro abre sempre aquilo que pensa sem se importar se vai agradar ou magoar alegrar ou enraivecer Ele diz sempre o que pensa e isso no Brasil muita vez é considerado um defeito dependendo em que ambiente se esteja Venturini é um amigo e uma referência nesta ordem Por isso você está lendo estas linhas como a preparálo para um grande espetáculo Segunda pergunta Fazendo coro a Basaglia o que é isso Falam os psiquiatras os magistrados os trabalhadores Há o direito à fala dos pacientes Só pode mesmo ser livro processo ou delírio Em que espaço dizem todos sobre tudo em um mesmo nível de atenção no discurso Afinal o trato dado ao portador de sofrimento mental sempre foi préBasaglia uma espécie de sonderbehandlung2 Os hospitais psiquiátricos judiciários da Itália os manicômios judiciários ou hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos como diz a lei no Brasil sempre operaram em relação ao crime do louco de modo a fazer com que fossem tratados de maneira a cumprir a profecia do afastamento para sempre a segregação eterna não prevista na legislação brasileira mas que ainda tem espaço no 2 Literalmente tratamento especial nomenclatura utilizada pelas SS hitleristas O Crime Louco 11 ergástulo italiano Pelo menos no mundo sombrio da previsão legal Na verdade a contenção manicomial varrida do mundo dos vivos como tratamento pela reforma basagliana fez do Hospital Psiquiátrico Judiciário OPG da sigla italiana e como são conhecidos e mencionados um local de manutenção da contenção e não de tratamento Símbolo e real produzindo o mesmo efeito no final a morte Complicadíssima questão dogmáticopenal de concurso culposo por parte do psiquiatra em delito doloso cometido pelo louco infrator é também objeto de análise nesse precioso trabalho que o Conselho Federal de Psicologia torna possível que você leia na bem cuidada tradução de Maria Lúcia Karam Aliás um justo registro é aqui indispensável Fundamental que se diga que a tradução primorosa de Maria Lúcia sempre tão cuidadosa elegante e brilhante não foi feita sem percalços no percurso A fratura de um braço em Roma a caminho de uma reunião sobre a tradução com o próprio Venturini funcionou como espécie de dolorosa piada privada entre aqueles envolvidos na construção dessa edição brasileira É que tanto Malu quanto alguns outros envolvidos creem em Deus dons dádivas Nenhum deles crê em desculpas Mas era como se uma deidade vinculada ao pensamento retrógrado quisesse punila pela ampliação do conteúdo deste livro Obviamente que se trata não importa em que língua você venha a lêlo leitor privilegiado de um livro de altíssima periculosidade A pronta resposta do Conselho Federal de Psicologia parceiro constante na luta por uma sociedade sem manicômios fez com que esse projeto se viabilizasse Penso que no Brasil em termos legislativos no que diz respeito ao trato hospitalocêntrico do louco infrator estejamos adiante do modelo legislativo italiano Na Itália ainda existe pelo menos na formalidade da lei a famigerada fórmula de duplo trilho pena medida de segurança entre nós varrida desde 1984 Este livro não trabalha comparações entre os dois sistemas sou eu que divago Este imprescindível livro cuida de responsabilidades O Crime Louco 12 tanto na área da psiquiatria quanto na área do direito Sobretudo na área da responsabilidade penal da psiquiatria Não é uma psiquiatria qualquer Psiquiatria comprometida com a solução antimanicomial Psiquiatria que só exclui a inclusão da contenção para sempre Os casos aqui narrados são emblemáticos e impactantes Alguns datam de mais de 40 anos mas a mesma ideia preconceituosa de perigoso porque louco e criminoso permeia São episódios ligados às mais radicais experiências de desinstitucionalização e bem por isso tornaramse tão midiáticos Há um certo medopânico atávico e o trial by media cuida de amplificar e multiplicar sempre que há um louco e criminoso no mesmo ato mesmo que de passagem Para ele os rigores da lei e de seus regulamentos Mas sobretudo a ausência de esperança Ausência que sobra e obviamente não está prevista nem na lei e nem em seus regulamentos Do ponto de vista da dogmática jurídica são absurdos pois se considerou o concurso culposo por parte dos psiquiatras em delito doloso cometido por seus pacientes Até os mais empedernidos dogmatas da Academia têm um pouco de dificuldade em vislumbrar exemplos disso no que se convencionou chamar mundo da vida como se a dogmática penal vivesse em outro mundo e vive Um dos comezinhos dos delitos culposos que os alunos de graduação em direito não acham tão difícil assim é levar com extremo cuidado a assertiva de que a capacidade de previsibilidade daquilo que é previsível é um dos elementos informadores dos crimes culposos Ser capaz de prever o que seria previsível é parte da estrutura Prever o imprevisível é oráculo Podemos sintetizar de forma simples que o crime culposo seja uma conduta defeituosa ou de direção mal dada que irá produzir um resultado que não era querido do contrário estaríamos diante de um crime doloso quando o agente quer o resultado ou assume o risco de produzilo mas objetivamente previsível É a conduta não diligente imprudente ou imperita neste último caso sempre reservada a episódios de arte ofício ou profissão Imperícia na O Crime Louco 13 linguagem técnicojurídico penal é despreparo falta de capacidade ou conhecimento insuficiente Diversa do erro profissional que trabalha como o próprio nome indica com a imperfeição e a precariedade dos conhecimentos do agente técnico e ultrapassa os limites da prudência e atenção Obviamente que os quatro casos aqui trazidos não foram tratados com imperícia pelos envolvidos e nem muito menos com qualquer eiva de erro profissional O direito estabelece que deve haver cuidado e diligência obligatio et diligentiam não prever aquilo que era previsível e possível de ser previsto nas circunstâncias desde que tal previsão a da modalidade culposa exista anteriormente na legislação Para parafrasearmos Friedrich Dürrenmatt A pane 1955 Um crime é algo que sempre se pode achar Os dogmatas penais gostam de dizer que a conduta praticada de forma que outra não lhe fosse exigida exatamente as três hipóteses de que cuida este livro não pode vir a ser objeto da reprovação penal exatamente pela inexigibilidade de outra conduta Nas hipóteses tratadas os comportamentos dos médicos acusados não foram reprováveis uma vez que o cuidado objetivo devido a cada caso foi sempre respeitado e aqui não quero e não posso raciocinar com condicionantes otimistas ou pessimistas mas apenas os fatos que estão nos autos dos respectivos processos O primeiro caso de Gorizia data de 1968 e é um marco da contrarreforma quando a reforma apenas começava Em 1971 e em 1977 durante o desenvolvimento da reforma psiquiátrica em Trieste outros dois casos monumentos e o último deles em Ímola ano 2000 com a reforma consolidada mas que não deixou de estar sob ataque um único dia sequer É um livro coletivo organizado por Venturini Os casos são apresentados por protagonistas da reforma psiquiátrica e de um modelo não hospitalocêntrico Domenico Casagrande psiquiatra e colaborador próximo de Franco Basaglia à época do incidente é O Crime Louco 14 quem o relata enriquecendo a reconstrução com material inédito tanto na Itália como entre nós Lorenzo Toresini também psiquiatra descreve os dois funestos casos ocorridos em Trieste exatamente no período de superação do hospital psiquiátrico Ele mesmo figurou como acusado em um dos casos escrevendo o fundamental La testa tagliata Cabeça Cortada ainda não traduzido em português Sobre o caso de Ímola fala Ernesto Venturini que àquela época era o diretor do Departamento de Saúde Mental daquela bela e significativa cidade Como ele mesmo diz em sua sempre impressionante síntese Em essência se recoloca mais uma vez a indagação que Franco Basaglia fazia a si mesmo e a nós em 1967 indagação que parecia resolvida e que no entanto ainda permanece em aberto o que é a psiquiatria A preocupação com a sentença da Corte de Cassação de final de 2007 uma exceção à majoritária jurisprudência que inadmite o concurso culposo em delito doloso praticado por outrem representa um retrocesso na cotidiana luta da reforma psiquiátrica pois tenta reintroduzir a lógica da custódia em contraposição àquilo exigido pelo tratamento Ao contrário de psiquiatras da estirpe de Venturini Casagrande e Toresini aqueles que emprestam seu curto alcance de pensamento à luta contra a reforma antihospitalocêntrica não têm nenhum temor de reproduzir um saber separado da realidade Afinal para conseguir lucrar com a desgraça alheia e operar em um sentido sabidamente inoperante como é o modelo de contenção dos corpos em loci de exclusão inflição de dor e vingança não se pode exigir senso crítico ou um mínimo de solidariedade de pessoas que lucram com o sofrimento de seres humanos Venturini Casagrande e Toresini não são inteligências superiores dominados pela certeza são trabalhadores na linha de frente Não reforçam o mecanicismo de que os sintomas derivam perfeitamente dos diagnósticos e todos os diagnósticos correspondem a uma precisa dosagem farmacológica Eles cuidam das necessidades dos O Crime Louco 15 pacientes como seres humanos e não como números em uma tabela estatística Sempre uma tarefa plena de riscos em uma sociedade de alta complexidade como a nossa Todos fizeram a seu tempo e modo escolhas difíceis para estar do lado certo da luta contra o manicômio e tudo aquilo que ele representou e representa Sobretudo recusaramse a fazer o papel de carcereiros não importando a gravidade da doença Antes que vocês passem à leitura uma lembrança simbólica como a memória de dias felizes a realização do sonho de Basaglia Em Ímola com o hospital deserto dos seres que eram ali depositados em quantidades industriais Venturini convidou a todos os exinternos sobreviventes seus parentes e cidadãos trabalhadores e amigos para que jogassem sal assim como faziam os romanos com as cidades vencidas para que ali nunca mais geminasse a ideia manicomial O obscurantismo desses tempos neoliberais a manter respirando por aparelhos o capitalismo ainda que em seus estertores parece que não desiste de ressuscitar seu velho e indispensável parceiro o manicômio Obviamente que o modelo da desinstitucionalização exige dos profissionais uma profunda responsabilização Responsabilizar verbo Responsabilizar adjetivo Fazerse responsável pela prática difícil do cuidado atento e extremo que às vezes escapa por um fio uma palavra um disparador que pode ser gesto olhar ou canção Se se chama o direito penal para essa discussão estarão todos contidos ao final inclusive a própria reforma Venturini é ferino e feliz na síntese de suas conclusões pinço Sou levado a pensar no entanto que em nossos serviços de saúde mental os erros infelizmente não parecem destinados a se reduzir Os operadores com demasiada freqüência estão aprisionados em uma cultura tecnicista de rendimentos carente de raciocínio clínico conforme um modelo de pensamento fundado em uma espécie de teste de múltipla escolha que confunde os meios com os fins e se deixa esmagar sob o esquema redutivo do O Crime Louco 16 DSMIV Esse comportamento sacrifica qualquer criatividade crítica do pensamento aumentando em conseqüência o risco de erro Uma última pergunta de novo fazendo coro a Basaglia e Venturini o que é a psiquiatria quando tem ao seu lado o direito penal Um trem de doido como dizem os mineiros Convém esquecer a bagagem do preconceito na estação de partida Bemvindo a bordo e boa leitura O Crime Louco 17 APRESENTAÇÃO A visão compartilhada por ErnestoVenturini Domenico Casagrande e Lorenzo Toresini no livro O crime louco Il folle reato das questões da responsabilidade penal e cível de psiquiatra e outros profissionais que atendem pacientes que cometeram delitos é um instrumental teórico e documental que fundamenta reflexões e procedimentos profissionais mais seguros e humanizados A análise de processos jurídicos ocorridos em território italiano a partir de delitos cometidos por pacientes de instituições psiquiátricas traz paralelos aplicáveis ao sistema judicial brasileiro A obra é um rico referencial para análise diálogos entre as instâncias envolvidas em planejamento de forma a buscar procedimentos que nos eximam de situações similares O tom humanista cauteloso e sincero norteia o trabalho dos autores italianos que em um dos casos participa dos procedimentos investigativos de um processo relatado Os autores demonstram a complexidade dos processos judiciários envolvendo o louco enumerando e explicitando as posições de psiquiatras que tratavam os pacientes peritospsiquiatras que examinaram os diversos aspectos das ocorrências de criminólogos de magistrados de advogados e outros atores de procedimentos relacionados Em alguns casos pertinentes a obra retrata os impactos nos indivíduos das comunidades onde aconteceram os crimes e as informações e opiniões veiculadas na mídia Os diversos níveis e âmbitos de leitura dos fatos delituosos são analisados a partir do objeto da pesquisa que originou o livro que é a imputação ao psiquiatra encarregado do tratamento de concurso culposo no delito doloso cometido por seu paciente Os quatro episódios apresentados e circustanciados vêm com o suporte de dados e opiniões sobre os debates judiciários e as sentenças definitivas de cada caso A influência da posição dos peritos nas sentenças dos juízes o tipo e a qualidade dos diagnósticos apresentados pelos profissionais de psiquiatria que se encarregam de O Crime Louco 18 perícias a visão das patologias portadas pelos que cometem aos crimes são alguns aspectos bem detalhados e documentados sobre os casos apresentados A previsibilidade das ocorrências criminosas se estabelece como cerne da análise e das motivações para o julgamento das ações dos profissionais que são colocados em condições de réu Os históricos prontuários e os contextos são os vetores para que se defina no processo judiciário especialmente em relação à análise pericial se era possível aos psiquiatras e outros integrantes dos corpos profissionais envolvidos nos casos prever ou não a possibilidade de ocorrência dos crimes relatados A responsabilidade da posição de garantidor a eficiência neste papel o cumprimento de requisitos terapêuticos institucionais e burocráticos são arrolados e investigados de forma a atribuir responsabilização ou absolvição do profissional de saúde mental Outros temas eficientemente abordados no livro são as constatações de que o tratamento da loucura é possível os efeitos transformadores da desinstitucionalização e a responsabilização do próprio paciente pelos seus atos delituosos Estes assuntos não estão isolados na obra mas permeiam a elaboração dos autores a partir de cada caso com dados históricos sobre o processo de reforma e transformação prática das instituições psiquiátricas na Itália além do contexto legal jurídico em que cada incidente ocorreu Os questionamentos acerca da legislação aplicada e dos procedimentos processuais são constantes e podem ser sintetizados numa dura constatação A criminologia italiana de inspiração lombrosiana desde o final do século XIX sanciona qualquer ato criminoso como patológico coloca como proeminente a individualização da periculosidade do mesmo ato em relação à sociedade calibra a conseqüente sanção sobre o mecanismo de defesa da sociedade com o conseqüente controle do louco As sentenças nos casos apresentados resultam para os pacientes em internação em manicômios judiciais de forma a isolar perpetuamente O Crime Louco 19 o sujeito Mesmo nos casos em que a sentença não estabelecia que a internação fosse pérpetua na maioria dos casos apresentados a morte dos pacientes aconteceu nestes estabelecimentos A possibilidade de cura ou as condições para que esta ocorressem não foram fatores preponderantes nas sentenças cumpridas A evolução do tratamento deste tipo de caso é evidente nas sentenças relativas ao caso Maria Letizia Michelazzi mais recente pois coloca em foco que não é mais automático que se alguém delinqüe e não é capaz de entender e querer o médico que tivera mesmo que só um contato com ele responda pelo fato de não ter impedido o resultado Nesta altura da obra se consegue estabelecer e contestar que a periculosidade seja a consequência inevitável de uma patologia e que a prerrogativa de reconhecer os possíveis danos a outros seres humanos seja do profissional Finalmente um dos méritos do livro é dar a vazão às versões dos próprios pacientes à voz do cidadãoloucoresponsável por um crime instruindo para que esta seja ouvida nos processos judiciários e levada em conta para a elaboração e aplicação de sentenças O crime louco é um referencial para profissionais da saúde mental juízes estudantes e docentes de Medicina e Psicologia familiares legisladores e criminalistas A linha evolutiva do cuidado ao louco infrator na Itália assim como a visão do judiciário sobre os mesmos pode nos ensinar muito sobre os avanços que ainda temos a realizar no Brasil em relação a este tema e à luta pelo fim do manicômio judiciário sem dúvida o pior do pior É com muita satisfação que o Conselho Federal de Psicologia publica a tradução para o português desta bela obra como um presente à sociedade pelos 50 anos da Psicologia como profissão regulamentada no Brasil O Crime Louco 20 Índice Introdução 19 I O problema 25 1 O incipit 25 2 O incidente 32 3 O concurso culposo no delito doloso 35 II O incidente de Ímola 43 1 O fato 24 de maio de 2000 43 2 As perícias 91 3 As sentenças 116 4 O procedimento civil 138 III O incidente de Gorízia 156 1 O fato 26 de setembro de 1968 156 2 As perícias psiquiátricas 161 3 As sentenças 184 4 Considerações sobre o incidente de Gorízia 188 IV O primeiro incidente de Trieste 197 1 O fato 10 de junho de 1972 197 2 As sentenças 199 3 Considerações sobre o primeiro caso de Trieste 201 V O segundo incidente de Trieste 208 1 O fato 29 de junho de 1977 208 2 A perícia 212 3 As sentenças 214 4 Considerações sobre o segundo caso de Trieste 217 O Crime Louco 21 VI As questões 222 1 A perícia psiquiátrica 222 2 A violência em psiquiatria e a noção de periculosidade social 232 3 O nó górdio do hospital psiquiátrico judiciário 236 4 Responsabilidade civil e penal do médico 245 VII Os documentos 257 1 Atestados de solidariedade a Franco Basaglia e Antonio Slavich 257 2 Perspectivas de reforma da imputabilidade e do correspondente tratamento sancionatório 282 VIII Conclusões 296 1 As sentenças 296 2 O erro profissional 298 3 O incidente 302 4 A imputação de homicídio culposo em delito doloso e a posição de garantidor 304 5 Uma sentença discutível 308 6 A voz ausente 310 Bibliografia 315 O Crime Louco 22 A flor da minha vida se desabrocharia de todos os lados se um vento cruel não tivesse murchado minhas pétalas do lado que vocês olhavam da aldeia Da poeira levanto meu protesto meu lado em flor vocês não vêem Vocês os vivos são verdadeiramente tolos não conhecem os caminhos do vento e as forças invisíveis que governam os processos da vida da Antologia de Spoon River de Edgar Lee Masters Dedicado a Alberto Ateo Caterina Fabio Giordano Giovanni S Giovanni M Maria Letizia Milena O Crime Louco 23 Introdução Ernesto Venturini Os temas da violência na psiquiatria da responsabilidade dos médicos e da imputabilidade do louco autor de crime constituem ponto complicado e complexo tanto no direito quanto na medicina A matéria é objeto de vivos debates e as sentenças judiciais evidenciam as incertezas com que esta é eventualmente enfrentada Não obstante o amplo consenso que acompanhou a revolução basagliana na Itália o nó do Hospital Psiquiátrico Judiciário desafia uma solução E se o tema da imputabilidade do louco e das medidas de segurança por periculosidade social ainda não encontrou uma formulação conforme o novo paradigma psiquiátrico temos que convir que razões difíceis e não resolvidas estão na base dessa problemática Pensei que confrontando a maneira com que foram enfrentados alguns emblemáticos episódios delituosos no arco de quase quarenta anos seria possível entender como a idéia da periculosidade do louco foi se modificando ao longo do tempo e especialmente qual tem sido o pensamento das instituições a que se delega a administração do crime a magistratura a psiquiatria a psiquiatria forense Selecionei quatro episódios ligados a algumas das experiências mais radicais de desinstitucionalização pois nesse âmbito é possível verificar mais eficazmente se o desafio lançado à psiquiatria tradicional obteve seus resultados Os quatro episódios dizem respeito a acusações feitas a psiquiatras de concurso culposo em delito doloso cometido por seus pacientes desenvolvendose segundo uma sucessão cronológica que atravessa o iter da reforma psiquiátrica no início do processo de desinstitucionalização em 1968 em Gorízia durante seu desenvolvimento em 1971 e em 1977 em Trieste e em época recente em 2000 em Ímola O episódio de Gorízia é apresentado por Domenico Casagrande psiquiatra colaborador de Franco Basaglia Ernesto Venturini gof9013iperbolebolognait O Crime Louco 24 à época do incidente Casagrande enriquece a reconstrução com material inédito com as perícias e sentenças do processo algumas cartas e declarações de apoio endereçadas a Franco Basaglia Por sua vez Lorenzo Toresini também psiquiatra descreve dois funestos eventos ocorridos em Trieste durante o período de superação do hospital psiquiátrico quando contribuía ativamente para o alcance de tal objetivo Acusado em um dos casos Toresini escreveu um precioso livro sobre o tema La testa tagliata Sobre o incidente de Ímola falo diretamente valendome de rica documentação processual À época dos fatos eu estava ali investido no cargo de diretor do Departamento de Saúde Mental Francesco Maisto presidente do Tribunale di Sorveglianza1 de Bolonha enfrenta com especial competência e clareza o tema da reforma da imputabilidade e do correspondente tratamento sancionador tendo em conta as mais recentes propostas de modificação do Código Penal Pergunteime se o confronto das sentenças concernentes aos quatro episódios revelaria coerência ou disparidade de juízos e neste último caso se estaríamos diante de uma evolução ou uma involução dos princípios da reforma psiquiátrica Em todo caso meu interesse é o de trazer à luz o papel desenvolvido pela psiquiatria forense na formulação do juízo penal e pesquisar os influxos que as transformadas condições políticosociais exercem sobre o pensamento jurídico As sentenças e perícias serão examinadas não para levantar críticas a técnicos e colegas cuja correção e profissionalismo são reconhecidos mas sim para tentar desenvolver a partir do material produzido leituras diversas das tradicionalmente sustentadas pelos especialistas e demonstrar o quanto a posição dos peritos acaba por influenciar as sentenças dos juízes Tratase de contrapor uma metodologia alternativa à que alguns psiquiatras 1 Nota à edição brasileira Tribunale di Sorveglianza é o órgão judiciário que atua na execução penal O Crime Louco 25 forenses e criminólogos usam correntemente fundada em uma visão da doença mental arcaica e reducionista Sob esse aspecto naturalmente é digna de preocupante atenção a sentença da Corte de Cassação IV Seção 14112007 concernente à condenação por homicídio culposo de um psiquiatra em razão do delito doloso cometido por um paciente Essa sentença parece representar uma exceção à jurisprudência tradicional Segundo alguns configuraria um verdadeiro ataque à lei da reforma psiquiátrica pois estaria a reintroduzir no agir psiquiátrico a lógica da custódia em contraposição às exigências do tratamento É oportuno portanto abrir espaço para uma reflexão aprofundada sobre o conceito de posição de garantidor em relação a terceiros atribuída na sentença ao psiquiatra embora também pareça oportuno reconsiderar a responsabilidade penal dos médicos a periculosidade do paciente psiquiátrico e ainda a problemática mais abrangente da imputabilidade dos loucos Estes temas são tratados no livro no capítulo das Questões Os que não têm familiaridade com a linguagem jurídica poderão achar enfadonha a leitura de alguns trechos em que são abundantes as referências a normas leis e sentenças Outros ao contrário poderão achar que tais referências estão incompletas julgar que tenham sido tratadas de maneira diletante torcer o nariz por conta de uma linguagem um tanto desenvolta Ambos estarão certos pois essa talvez seja uma consequência inevitável do confronto entre mundos diversos e linguagens especializadas quando se procura dar respostas a problemas complexos Em todo caso é minha intenção privilegiar como diria Maisto o factum em relação ao dictum dar relevância ao impacto que conceitos como periculosidade social inimputabilidade mas também homicídio culposo têm sobre o destino das pessoas evidenciar a distância entre as fórmulas do direito e da psiquiatria e a realidade da vida O Crime Louco 26 Mas outra motivação mais complexa e de todo modo intrigante também me levou a tratar desse tema Especialmente nestes últimos anos tem sempre me impressionado o modo como habitualmente se desenrolam no tempo alguns processos midiáticos da fase das investigações até a sentença Hoje é comum constatarmos como a utilização de peritos ao invés de esclarecer os fatos e conduzir a conclusões certas tende ao efeito oposto os acontecimentos se complicam e nos encontramos cada vez mais distantes da verdade O paradoxo é que não se trata de um déficit de conhecimento mas exatamente ao contrário estamos diante de um excesso de verdade Demasiadas verdades confundem e atenção não falo de falsas verdades ou verdades parciais falo de verdades verdadeiras Esta reflexão é particularmente evidente em uma das situações tratadas nesse livro a que diz respeito ao caso Ímola Meu interesse nesse caso sem dúvida deriva também de um envolvimento pessoal sou parte no evento na qualidade de diretor do Departamento de Saúde Mental de Ímola à época dos fatos A desinstitucionalização desenvolvida em Ímola constitui parte relevante da minha vida não apenas profissional É também resultado de um processo de grande relevância científica e ética levado a efeito com excepcional empenho e grande entusiasmo por tantos operadores médicos enfermeiros e educadores A maneira pela qual essa experiência foi descrita nos autos do processo não presta homenagem a essa verdade outras verdades sem dúvida respeitáveis são colocadas em primeiro plano e isso pode ser justo mas afinal correse o risco de que tais verdades sem um contraditório acabem por ser absolutizadas gerando confusão e incerteza Quando então reflito sobre como os juízos dos peritos foram elaborados me impressiona a relevância com que pequenos eventos ou pequenas faltas podem ter influenciado na reconstrução judiciária Constato como matizes omissões interpretações feitas de ângulos diversos podem conduzir a considerações tão distantes umas das outras De certo modo volta a se colocar e tenho certo pudor O Crime Louco 27 em falar de tema tão complexo o problema da investigação crítica em torno da estrutura lógica do conhecimento a que os filósofos chamam de epistemologia Sou fascinado por essa problemática reconhecendome no entanto incompetente e diletante ainda que o método de investigação de reconstrução de eventos de certo modo devesse me ser familiar O diagnóstico constitui efetivamente um dos momentos centrais da profissão médica O médico deve interpretar os sinais deve como um detetive seguir as pistas representadas pelos sintomas ouvir observar e chegar à conclusão diagnóstica A discussão de casos bem o sabem todos os que desenvolvem meu trabalho fundase na investigação na formulação de hipóteses na busca de provas constituindo um dos momentos formativos centrais da profissão do psiquiatra Representa uma espécie de conhecimento infinito pois não há como pôr um fim ao conhecimento do comportamento humano em cada discussão há sempre algo de novo e original a ser descoberto conforme as pessoas e a época em que o tema é tratado Quando então esse momento é conduzido por um supervisor particularmente competente experimentamos uma emocionante sensação de descoberta e revelação Os tempos lentos e dilatados da análise permitem perceber as realidades das pessoas e das coisas habitualmente escondidas A certa altura porém surge um problema poder examinar a frio um evento ou uma história analisar cada particularidade com uma lente de aumento deslocando o foco da atenção ora para frente ora para trás evidencia como aquilo que definimos como o real é tão somente uma das tantas das infinitas possibilidades da existência Se cristalizarmos os acontecimentos da vida na imobilidade da análise os acontecimentos acabarão por adquirir uma profundidade epifânica feita de méritos infinitos mas também de infinitos erros O suceder natural dos eventos de todo modo esconde ou resolve os erros enquanto uma análise parcelada fora do tempo pode impiedosamente revelarnos todos os nossos erros mesmo aqueles de que não temos consciência É por essa razão que as organizações fundadas no elemento humano como O Crime Louco 28 a organização de tratamento e assistência ao doente sempre se caracterizam por sua extrema relatividade e por serem meramente opinativas Eis porque as análises desse livro são assimiláveis a uma espécie de discussão de casos procurando corresponder ao dever primário da profissão médica compartilhar a própria experiência do erro para evitar que o erro se reproduza Ainda uma última consideração No caso de um processo judiciário por crime de um louco estão envolvidos níveis e âmbitos de leitura dos fatos delituosos diversos entre si complicando um juízo completivo além da ótica dos psiquiatras têmse a dos peritos psiquiatras a dos criminólogos a dos magistrados e ainda a dos advogados Aparentemente símiles tais óticas porém subentendem metodologias e fins diversos Enquanto a ótica do clínico por exemplo interessase pelo erro humano ou organizacional a ótica do jurista busca a culpa do indivíduo ou dos indivíduos Enquanto na psiquiatria clínica e na própria psiquiatria libertada pela lei da reforma propõese substancialmente o interesse do paciente na psiquiatria tradicional que infelizmente volta a campo com toda força em razão do descumprimento das missões dos políticos e do hoje tão difuso sentimento de insegurança da sociedade repropõe o interesse de terceiros as necessidades dos normais em detrimento das necessidades dos diferentes assim repropondo o controle social dos loucos Em essência recolocase mais uma vez a indagação que Franco Basaglia fazia a si mesmo e a nós em 1967 indagação que parecia resolvida e que no entanto ainda permanece em aberto o que é a psiquiatria O Crime Louco 29 I O problema Ernesto Venturini 1 O incipit Eu Pierre Rivière que degolei minha mãe minha irmã e meu irmão desejando revelar os motivos que me levaram a essa ação escrevi sobre toda a vida em comum de meu pai e minha mãe durante seu casamento A voz do jovem comissário inicialmente incerta e velada cresce em segurança à medida que prossegue na leitura do trecho que lhe foi designado O incipit da memória de Pierre Rivière obtém o resultado que eu esperava há um silêncio profundo na sala de aula da Universidade percebese uma tensão envolvente Costumo concluir meu curso no mestrado de Criminologia e Psiquiatria Forense com essa leitura extraída do célebre livro de Michel Foucault direi como resolvi cometer esse crime o que estava pensando na ocasião e qual era minha intenção falarei também sobre a vida que levava falarei sobre o que me passou pela cabeça depois dessa ação a vida que levei e os lugares onde estive depois do crime até minha prisão e quais foram as resoluções que tomei Todo esse trabalho será lavrado grosseiramente pois mal sei ler e escrever mas para que se compreenda o que quero dizer é isso que peço redigirei tudo da melhor forma que puder Preparei cinco cópias datilografadas e distribuí os papéis além de Pierre há a voz do narrador o doutor Bouchard e o doutor Vastel e finalmente o prof Esquirol Nossos atores se revezam na leitura Em tenra idade isto é por volta dos sete ou oito anos prossegue Pierre Rivière em suas memórias tive uma grande devoção Punhame à parte para rezar a deus pensava em ser padre e meu pai dizia que faria com que eu chegasse lá Mais tarde mudei de idéia pensava em ser como os outros No entanto tinha minhas particularidades Meus colegas de escola percebiam e zombavam de mim eu atribuía seu desprezo a alguma estupidez que eu tivesse O Crime Louco 30 feito inicialmente e que eu supunha tivesse me desacreditado para sempre Àquela época e mesmo antes eu estava tomado por idéias de grandeza e imortalidade me julgava muito superior aos outros e até hoje tive vergonha de dizêlo pensava que me elevaria muito além do meu estado Malgrado esses desejos de glória amava muito meu pai suas desgraças me tocavam profundamente O abatimento em que o vi imerso nos últimos tempos sua tristeza as dores constantes que sofria tudo isso me tocou vivamente Na primeira parte do curso durante o sempre apaixonado debate que acompanha o tema da periculosidade social do doente mental não pude deixar de pensar a quem atribuir os papéis Os inscritos no mestrado formam uma amostra bastante heterogênea há advogados psiquiatras forenses mas também funcionários públicos assistentes sociais jornalistas Não é fácil estabelecer uma linguagem comum De todo modo nenhum dos presentes conhecia esse livro Procurei então sintetizar através dessa representação o extraordinário estudo de Foucault Em torno desse caso de parricídio ele descreveu a estratégia dos aparatos estatais e científicos franceses que inspiraria a reforma legislativa de 1838 a primeira lei sobre psiquiatria de um Estado europeu lei promulgada três anos depois do evento descrito no livro Tratavase de um processo explica o próprio Foucault de um acontecimento em torno ao qual e a propósito do qual vieram a se cruzar discursos de origens de formas e de funções diversas o discurso do juiz de paz do procurador do presidente do tribunal do ministro da Justiça o discurso do médico da aldeia o de seus habitantes com o prefeito e o pároco e finalmente o discurso do homicida Creio prossegue Foucault que se decidirmos publicar esses documentos será para fazer emergir de alguma forma o plano dessas lutas diversas recuperar esses choques e essas batalhas Documentos como os do processo Rivière podem permitir a análise da formação e do jogo de um saber como a medicina a psiquiatria a psicopatologia em suas relações com determinadas instituições e os papéis ali estabelecidos como a instituição judiciária com O Crime Louco 31 o perito o acusado o louco criminoso etc Permitem decifrar as relações de poder de domínio e de luta no interior das quais os discursos se estabelecem e operam permitem portanto uma análise do discurso e também dos discursos científicos que esteja ligada ao acontecimento e seja ao mesmo tempo política e assim estratégica Ali se pode enfim encontrar o poder perturbador próprio de um discurso como o de Rivière e o conjunto das táticas pelas quais se procura encobrilo inserilo e qualificálo como discurso de um louco ou de um criminoso Meus improvisados atores nos levam para dentro da atmosfera do tribunal de Caen A assistente social que personifica o doutor Bouchard membro da Academia Real de Medicina de Paris está concluindo seu depoimento pericial diante dos jurados Dotado de um temperamento bilioso e melancólico testemunha frequente das brigas de seus pais Rivière se ressentiu profundamente com as desventuras de seu paiEm sua solidão concebeu a idéia do crime em sua solidão retemperou suas forças antes de levantar sobre sua mãe sua mão parricida Pierre Rivière não é monomaníaco pois não delira sobre um só e único objeto não é maníaco pois não se acha em estado habitual de agitação não é idiota pois escreveu Memórias plenas de sentido enfim não é demente como é fácil constatar Portanto Pierre Rivière não é louco A jovem assistente olha para os colegas de curso à frente dela dispostos em um semicírculo o parecer que acabara de expor expressa o nível de uma ciência psiquiátrica incapaz de entender o louco abandonandoo à instância repressiva da justiça e assim condenandoo à guilhotina Agora é a vez do doutor Vastel À luz de diversos documentos e pelo que eu mesmo pude observar logo adquiri a plena e profunda convicção de que a mente de Rivière não era sã e o ato que aos olhos do Ministério Público constituía um crime horrendo não passava de resultado de uma verdadeira alienação mentalAs razões que determinaram minha convicção e que serviram de base a meu juízo foram extraídas do aspecto O Crime Louco 32 exterior dos modos de Rivière de sua origem e de seu parentesco do estado de suas faculdades mentais desde a infância da própria natureza do ato cometido e das circunstâncias que o cercaramA sociedade tem o direito de pedir não a punição desse infeliz pois sem liberdade moral não se pode ser culpável mas sim sua internação com base em um provimento administrativo como único meio de garantirse contra ulteriores ações desse alienado Seu parecer contradiz as conclusões do colega mas usa uma semiologia psiquiátrica e uma linguagem um tanto primitiva não consegue de modo convincente circunscrever ao âmbito médico a problemática dos loucos criminosos O jovem advogado que representa a voz do narrador descreve imediatamente após a peroração plena de convicção do advogado de defesa descreve a incerteza e a expectativa da população de Aunay descreve o desconcerto diante do veredicto de culpa de Pierre Rivière e sua condenação à guilhotina O crime em sua atrocidade decididamente parece obra de um louco mas os escritos de Pierre Rivière confundiram tudo As Memórias não são obra de um monstro ao contrário revelam extraordinária sensibilidade e lucidez Exatamente por isso paradoxalmente tornase inaceitável a idéia da guilhotina Mesmo entre nosso público de estudantes há certo desconcerto um ou outro interrompe a leitura muitos julgam a sentença equivocada quem não fala se põe de pé nervosamente Com efeito os próprios jurados do Tribunal de Caen tentam se resguardar formulando ao rei uma demanda de comutação da pena Agora cabe a você intervir encorajo a jovem guarda carcerária que está prestes a ler o parecer dos grandes especialistas parisienses Lembrese de que você é Esquirol célebre professor da Faculdade de Medicina de Paris presidente de uma comissão de luminares dentre os quais o próprio médico pessoal do rei Sempre fico impressionado com a capacidade de quem sabe entrar dentro dos acontecimentos e viver na pele de outrem Diante de meus olhos está o próprio Esquirol expressão maior da conjunção entre o saber e o poder psiquiátricos O Crime Louco 33 Sua análise suas palavras darão força e credibilidade à demanda de comutação da pena incorporando Rivière ao novo aparato psiquiátricojudiciário que vai se constituindo no quadro da reforma legislativa Considerando que Pierre Rivière sempre buscou a solidão que com frequencia foi visto a falar sozinho e se entreter com interlocutores invisíveis Considerando que o supracitado Pierre Rivière provém de uma família na qual se contam muitos loucosConsiderando que os motivos que levaram Pierre Rivière a matar a mãe a irmã e o irmão quais sejam o de libertar seu pai dos sofrimentos domésticos e se Ímolar como Jesus Cristo pela salvação dos homens indicam a falta de juízoConsiderando que o relatório sobre sua vida escrito pelo próprio Pierre Rivière revela uma aberração profunda e constante de suas faculdades intelectivas e seus sentimentos morais que a integridade de sua memória e a concatenação das idéias de que faz prova tal relatório não exclui a alienação mental sendo encontrada com frequencia em relatórios de maníacos ou monomaníacos que escrevem a história de sua doençaAprovando as conclusões enunciadas no parecer de Vastel sou de opinião e declaro que desde a idade de quatro anos Pierre Rivière não deixou de dar sinais de alienação mental que sua alienação mental persistiu embora menos intensa depois dos homicídios cometidos que tais homicídios devem ser atribuídos unicamente ao delírio Agora se restabeleceu a ordem e o momentâneo desconcerto desapareceu percebeuse que existe um saber existem pessoas especiais aparatos que sabem como interpretar o delírio e como se comportar diante do louco criminoso O que há de mais inatural do que um parricídio ou o assassinato dos próprios filhos Só se pode aceitar tal gesto se existe uma grave alteração da consciência ou se eventos contingentes explicam sua dinâmica mas se nos encontramos diante de um raciocínio lúcido como no caso de Pierre Rivière então nos vemos diante de um abismo o abismo da loucura que não somos capazes de compreender e tolerar É tão alentador saber que existe O Crime Louco 34 alguém que possa subtrair o louco da repressão da justiça alguém que possa demarcar a linha que nos separa daquela monstruosidade alguém com um poder especial originado de um saber especial e que saiba adotar medidas protetivas para ele e para nós Até nossos estudantes parecem serenados masmas Pierre Rivière decidiu driblarnos de novo como já fizera anteriormente com suas esplêndidas e emocionantes memórias Com efeito nosso jovem advogado ainda tem algumas páginas a serem lidas Transcrição de extratos das sentenças do juízo por sentença do Tribunal de Calvados na data de 12 de novembro de 1836 o já mencionado JeanPierre Rivière com vinte e um anos de idade nascido em Courvaudon residente na aldeia de Faucterie profissão agricultor declarado culpado de parricídio foi condenado à pena de morte mas por carta de graça datada de 10 de fevereiro de 1836 Sua Majestade concedeu a graça ao dito Rivière comutando a pena de morte em prisão perpétua O supramencionado começou a cumprir a pena em 10 de fevereiro de 1836 dia da comutaçãoCausas e data de saída o supracitado JeanPierre Rivière morreu em 20 de outubro de 1840 à uma e meia da manhã Uma breve pausa e nosso advogado retoma a leitura Do jornal Pilote du Calvados de 22 de outubro de 1840 Rivière condenado há alguns anos atrás como parricida e fratricida cuja punição fora comutada em pena de prisão perpétua por ter seu crime características de alienação mental se enforcou na prisão de Beaulieu Há algum tempo vinham se notando nele inequívocos sinais de loucura Rivière acreditava estar morto e não queria ter quaisquer cuidados com seu corpo acrescentava que queria que cortassem seu pescoço o que não lhe causaria nenhum mal pois já estava morto e ameaçava matar a todos se seu desejo não fosse satisfeito Esta ameaça fez com que fosse separado dos demais detentos tendo ele se aproveitado desse isolamento para se suicidar A imprensa que nas discussões travadas à época da condenação desse infeliz sem dúvida influenciou de alguma maneira a comutação da pena se apressa O Crime Louco 35 em citar o tipo de morte que confirmaria plenamente sua opinião sobre o estado mental de Rivière Na sala de aula as luzes foram acesas o clarão da neblina do lado de fora é filtrado pelos vidros embaçados das janelas A solução dos sãos foi contestada pelo louco Pierre Rivière quis se manter coerente com sua loucura ou melhor quis simplesmente ser coerente consigo mesmo Ser julgado louco não afastara seu senso de culpa e sua necessidade de expiação ao contrário aprisionavao em um destino que negava sentido àquilo que fizera àquilo que fora O que as perícias colocaram em jogo dizia respeito à atuação de um novo aparato médicojurídico para gestão do louco criminoso dizia respeito à definição de um novo poder de controle social Mas o que foi colocado em jogo dizia respeito também ao destino de um homem o destino que Pierre Rivière em um ato extremo outro ato extremo reivindicou para si Os atores trocam impressões muitos alunos se retardam pela sala manifestando a necessidade de expressar sua emoção um ou outro me pede as referências para comprar o livro A aula acabou o que no entanto não acabou e permanece em aberto é o problema de nossa incapacidade de entender de ajudar pessoas como Pierre Rivière Me disseram para botar todas essas coisas no papel e eu o fiz agora que mostrei toda minha monstruosidade e que todas as explicações de meu crime foram dadas espero a sorte que me está destinada conheço o artigo do código penal correspondente ao parricídio aceitoo como expiação de minhas culpas ai de mim se eu ainda pudesse ver revividas as desafortunadas vítimas de minha crueldade se para isso bastasse suportar todos os suplícios possíveis mas não é inútil posso apenas seguilas assim espero a pena que mereço e o dia que porá fim a todos os meus ressentimentos Fim O Crime Louco 36 2 O incidente Ao final de Istituzione negata surgem dois importantes apêndices Il problema della gestione escrito por Franco Basaglia e Il problema dellincidente em coautoria com Franca Ongaro Basaglia Por que será que essas reflexões vêm exatamente ao fim do livro apresentadas de forma tão especial quase como um complemento do que fora expresso anteriormente O problema da gestão explicam os Basaglia colocase porque a realidade institucional ainda que negada há de sobreviver para prosseguir testemunhando a necessidade e a urgência de uma negação da realidade atual em todos os níveis Quanto ao problema do incidente e de seu significado em uma realidade subvertida um passo em falso ou um erro podem confirmar aos olhos da opinião pública a impossibilidade de uma ação que revele abertamente suas falhas e suas incertezas enquanto qualquer outra realidade institucional trata de escondêlas cada uma delas sob sua própria ideologia Os dois artigos refletem uma fase especial vivida com a experiência de Gorízia à época da publicação do livro um paciente em saída livre matou a própria esposa Franco Basaglia e Antonio Slavich são responsabilizados por concurso culposo em delito doloso É o exemplo emblemático do incidente temido A dramaticidade do luto e do sofrimento se faz acompanhar da instrumentalização do acontecimento diante do ataque frontal por parte das forças contrárias ao processo de transformação institucional há o risco de desmoronamento de toda a experiência Mas esse texto sobre o incidente pretende ir mais além do contingente pondose o objetivo de corrigir uma fácil e equivocada leitura do processo de negação institucional Uma advertência vem substancialmente expressa atenção a todo desequilíbrio fácil em relação a visões ingênuas e maniqueístas da realidade O paciente em si mesmo não é nem perigoso nem imune à violência Seu comportamento se determina não tanto por sua patologia mas pelo O Crime Louco 37 acúmulo de contradições do contexto e sobretudo pela maneira com que vem administrada a doença O tratamento do paciente deve portanto assumir também essas contradições e tentar resolvêlas Como sempre os Basaglia subvertem os estereótipos dos enfoques tradicionais fazendo uma leitura à contramão da violência e da periculosidade tradicionalmente ligadas à idéia de doença mental A periculosidade não reside na especificidade do diagnóstico dependendo sim da falta de respostas às necessidades das pessoas Com lúcida intuição os Basaglia deslocam as fronteiras dessa contradição para além da instituição manicomial que naquele momento poderia ser facilmente erigida em única e irracional matriz da violência O incidente em psiquiatria é um evento atribuível à fisiológica probabilidade de erro ínsito em qualquer acontecimento natural mais especificamente naqueles altamente prováveis como no âmbito da medicina que se coloca na área fronteiriça entre a vida e a morte Mas o incidente em psiquiatria é também e principalmente um produto da rejeição às necessidades de tratamento e às lógicas de injustiça social Com efeito no interior da instituição manicomial a profecia da violência acaba por se autorrealizar pois tudo conspira para sua realização a organização institucional é como uma alucinante armadilha sem escapatória Todavia a luta contra o manicômio não se esgota na eliminação da estrutura pois também do lado de fora persiste seria melhor dizer preexiste na medida em que precede o sistema manicomial a lógica da exclusão e da manipulação Essa lógica produz violência ela mesma é violenta tendo a capacidade de se esconder nas dobras do poder sabendo manipular seus efeitos e conseguindo estimular e acentuar a reação violenta da vítima Essas considerações naturalmente não representam uma tentativa de justificação em relação a qualquer tipo de violência empregada por pacientes psiquiátricos ao contrário pretendem ressaltar a necessidade de cada um sempre se manter responsável por seus próprios gestos pretendem remarcar além disso a necessidade de O Crime Louco 38 todos nós compreendermos as razões da violência prevenindoa e lutando contra os pressupostos sobre os quais se funda Mas a palavra incidente pode nesses casos parecer um eufemismo e talvez o seja por esconder a palavra homicídio Atrás dessa palavra estão as mortes de uma mulher de dois velhos genitores de um homem jovem e até a de uma criança Diante dessas mortes experimentamse perdas e comoções sinceras São vítimas inocentes Como inocentes são seus assassinos com vidas feitas de tanto demasiado sofrimento destinados a morrer da mesma forma dramática no Hospital Judiciário E há os médicos que certamente não desejavam aquelas mortes que voluntariamente optaram por se situar naquela fronteira dolorosa entre a vida e a morte pessoas que obtiveram êxitos e ofereceram conforto mas que sempre que não o conseguiram sofreram feridas profundas É possível se acostumar com a morte E há os familiares para quem nada jamais poderá compensar aquela ausência Finalmente por trás daquela palavra estão os que são chamados a decidir sobre a vida das pessoas fazendoo através de um ritual composto de fórmulas números parágrafos destinados a tornar menos pesadas suas palavras pois quem julga será julgado O Crime Louco 39 3 O concurso culposo no delito doloso Objeto dessa pesquisa como antecipado é a imputação ao psiquiatra encarregado do tratamento de concurso culposo no delito doloso cometido por seu paciente Nesse livro são examinados quatro episódios que dizem respeito a tal situação apresentandose as circunstâncias dos fatos a maneira como se desenvolveram os debates judiciários e as sentenças definitivas Preliminarmente porém pareceme oportuno retomar um breve exame da jurisprudência italiana sobre o tema Existem fundamentalmente duas teses uma negando a admissibilidade tese negativa de concurso culposo em delito doloso e outra que ao contrário julgao possível tese positiva A orientação que nega a admissibilidade se refere à sentença no 9542 da Corte de Cassação Penal Seção IV proferida em 11101996 Na sentença são mencionados dois artigos do Código Penal art 42 parágrafo 2º CP segundo o qual a punibilidade a título de culpa só é reconhecível nos casos expressamente previstos em lei art 113 CP segundo o qual a coparticipação culposa só é reconhecível em caso de delito culposo Da leitura conjugada desses dois artigos se concluiria que o concurso culposo não é configurável em relação ao delito doloso o art 42 parágrafo 2º CP requerendo expressa previsão que no caso se faz ausente enquanto o art 113 CP fala em cooperação culposa no delito assim contemplando tão somente o concurso culposo no delito culposo A jurisprudência vem seguidamente confirmando essa orientação Uma das sentenças mais importantes é a de no 2059 da Corte de Cassação Penal Seção IV de 1121986 A sentença parte da imputação feita a dois psiquiatras acusados de homicídio culposo em cooperação no delito doloso Os médicos foram acusados com base nos arts 113 e 589 este posteriormente modificado pelo art1º O Crime Louco 40 da Lei 296 de 11596 parágrafos 1º e 3º CP de ter deixado de internar uma paciente psiquiátrica que depois de alguns dias causou a morte do filho A sentença de primeiro grau do Tribunal de Trieste proferida em 18111980 absolvera os médicos plenamente o fato não constituía crime enquanto a Corte de Apelação de Trieste em pronunciamento de 7121982 proclamara uma absolvição por dúvida finalmente a Corte de Cassação em 1121986 confirmou a absolvição por dúvida asseverando que não se tratava de concurso culposo em delito doloso mas de mero nexo de causalidade não se pode qualificar a morte da criança como delito doloso devendo se sim considerar o que essa de fato foi um puro e simples fato jurídico isto é um acontecimento modificativo da realidade com consequências jurídicas mas não enquadrável no conceito de crime por absoluta ausência do elemento essencial da vontade Portanto a questão deve ser posta exclusivamente no plano do nexo de causalidade entre a conduta omissiva ou presumidamente tal de uma parte e o delito cometido de outra Também tem certa relevância a sentença da Corte de Cassação que anulou a sentença da Corte de Apelação de Perugia A Corte de Apelação de Perugia em 9111984 presidente o Juiz Temperini declarara que Responde por homicídio culposo o médico responsável por serviço de saúde mental que malgrado explícita reivindicação dos familiares deixou de propor tratamento sanitário obrigatório em regime de internação hospitalar abstendose ainda de prescrever medidas terapêuticas alternativas idôneas em relação a um esquizofrênico que dois dias depois se fez responsável por um esfaqueamento letal vitimando sua mãe O juiz nesse caso entendeu que recai sobre o psiquiatra a posição de garantia e controle o que significa que a omissão de intervenções voltadas a impedir danos à pessoa provocados por comportamentos do doente equivale à causação do resultado danoso Mas a Corte de Cassação Cass Pen S IV de 5 de maio de 1987 substituiu a sentença pronunciada em O Crime Louco 41 apelação sustentando a ausência do nexo de causalidade entre a omissão de atendimento ao pedido de TSO2 e o evento homicídio praticado pelo doente mental observando que do pedido do primeiro médico à ratificação do segundo e ao decreto do prefeito muito se passara para permitir a conclusão no juízo hipotético de que o atendimento ao pedido de TSO teria com probabilidade vizinha à certeza impedido o resultado A Suprema Corte assim motivou sua sentença A internação forçada de enfermos mentais deve ser remédio extremo de caráter temporário enquanto por outra parte não podem ser atribuídas ao médico do centro de saúde mental tarefas policiais eventualmente necessárias diante de ações do doente mental daí resultando que não pode ser tido como responsável pelo crime do art 328 recusa de atos de ofício o médico do centro que tenha se omitido em promover internação destinada a afastar uma continuada situação familiar de genérica periculosidade Importante a seguinte consideração Admitindose que o dever de impedir danos a terceiros provocados por ações perigosas do paciente possa ser extraído de uma genérica posição de garantidor do psiquiatralogo se conclui que seriam atribuíveis à sua responsabilidade omissiva culposa somente os eventos que ex ante aparecessem como previsíveis e evitáveis com base na situação concreta Mas o problema que mais frequentemente se apresenta nas sentenças não é o do concurso culposo no delito doloso e sim naturalmente a hipótese de homicídio culposo diante de suicídio do paciente Digo naturalmente por considerar que a ocorrência de suicídios infelizmente constitui evento estatisticamente significativo nas depressões e em consequência naturalmente mas dessa vez com amarga ironia o psiquiatra que trata do paciente é chamado a responder por sua morte Tratarei desse tema no capítulo da responsabilidade civil e penal do médico 2 Nota à edição brasileira TSO é a sigla para Tratamento Sanitário Obrigatório O Crime Louco 42 Em geral constatase certa incerteza jurisprudencial em torno do problema da custódia As sentenças da Corte de Cassação além daquela primeira já mencionada só enfrentam incidentalmente o problema relativo à posição de garantidor e seu conteúdo Não está claro se essa posição deve estar voltada para o tratamento do paciente com base nas normas vigentes ou se deve estar voltada também para a custódia como quer parte da doutrina da medicina legal que argumenta com dados de necessidade Alguns médicos legistas pretendem que os poderes do médico em relação ao paciente sejam legitimados exatamente pela permanência a cargo do psiquiatra do dever de custódia Ao dizer deles as alterações psíquicas referidas no art 34 da Lei 833 coincidiriam com a periculosidade voltada contra si mesmo Sem dúvida permanece difícil separar a periculosidade voltada contra si mesmo daquela voltada contra terceiros que no entanto está excluída dos pressupostos de ativação dos procedimentos do TSO O requisito da periculosidade seja para si mesmo seja para terceiros até pela indeterminação que o caracteriza não basta por si só para se julgar legitimamente válidos os procedimentos para o TSO Com efeito o requisito primário para dar início a um TSO se funda na exigência de melhora da saúde da pessoa tratada e não em outras considerações Quanto ao mérito do problema da previsibilidade do resultado demonstrouse na maior parte dos casos que era impossível prever ex ante o tipo particular de comportamento futuro que acabou por resultar no crime Mas mesmo que se estivesse diante de um paciente psiquiátrico que expressasse propósitos agressivos suscetíveis de serem postos em prática logo depois a situação teria a ver com um problema de ordem pública e o psiquiatra deveria no máximo como qualquer outro cidadão procurar alertar os organismos a quem se delega o uso da força polícia etc Mas voltando ao tema do concurso culposo em delito doloso a tese negativa que faz referência à sentença no 9542 da Corte O Crime Louco 43 de Cassação Penal seção IV prolatada em 11 de outubro de 1996 é logo invertida pela própria Corte de Cassação quando explicitamente afirma que o concurso culposo é configurável também em relação ao delito doloso não o impedindo a previsão do art 42 parágrafo II CP que referindose apenas à parte especial do Código não diz respeito às disposições dos arts 110 e 113 CP Cass Pen s IV 9 de outubro de 2002 no 39680 Tratase de episódio em que foi afirmada a responsabilidade a título de culpa de um sujeito que pelo estado de abandono e negligente desleixo em que mantinha um depósito de borracha contribuíra para criar condições para que se verificasse um incêndio posteriormente ateado por desconhecidos A tal sentença coligase a sentença no 19842005 proferida em 251105 pelo juiz da Audiência Preliminar do Tribunal de Bolonha Mas sem dúvida é a sentença no 10795 da Corte de Cassação Penal Seção IV de 1132008 que parece trazer uma reviravolta decisiva no tema A sentença estabelece que o art 113 não exclui o concurso culposo em delito doloso sendo o dolo algo a mais mas não estruturalmente diverso da culpa o art 42 diz respeito apenas à previsão das normas incriminadoras individualmente consideradas e não à disciplina das regras sobre concurso arts 110 e 113 CP O concurso culposo no delito doloso é configurável quando a conduta culposa concorra com a dolosa na causação nexo causal do resultado Naturalmente a sentença é motivada por um caso específico mas parece querer afirmar alguns princípios gerais de certa relevância A sentença discute alguns temas gerais o concurso culposo no delito doloso a posição de garantidor a previsibilidade do resultado o princípio da confiança e o dever de informação do médico o tratamento do paciente psiquiátrico e o Tratamento Sanitário Obrigatório Sobre o concurso culposo no delito doloso esta sentença estatui O Crime Louco 44 que para se verificar a subsistência de uma culpa causalmente eficiente é preciso verificar a finalidade da regra de cuidado violada pelo agente Se a regra de cuidado se dirige também à tutela de terceiros contra a agressão dolosa a seus bens é a tutela finalística destes que torna configurável a participação do agente atuando culposamente O que se deve estabelecer concretamente é o resultado que a norma quer evitar Se a conduta do agente cria a oportunidade para que o terceiro realize o ato doloso a responsabilidade culposa do primeiro agente ocorre quando este é titular de uma posição de garantidor ou de um dever de tutela ou proteção e quando o ato doloso do terceiro seja previsível Com relação à posição de garantidor a sentença afirma que O respeito aos princípios da taxatividade e determinação exige que o círculo dos titulares do dever de garantia seja determinado subjetivamente e que os deveres sejam objetivamente determinados com exclusão de deveres morais É preciso pois que os titulares da posição de garantidor estejam dotados de poderes direta ou indiretamente impeditivos dos resultados danosos Em geral a posição de garantidor pode ter uma fonte normativa de direito público uma fonte normativa de direito privado podendo ainda se originar de uma situação de fato ou de um ato de determinação voluntária É comum distinguiremse duas categorias de posição de garantidor a de proteção que impõe o dever de preservar o bem protegido de todos os riscos que possam atingir sua integridade pais e a de controle que impõe o dever de neutralizar eventuais fontes de perigo exercício de atividades perigosas Mas a posição de garantidor do médico somente pode derivar da instauração da relação terapêutica entre paciente e profissional da saúde Tal relação pode surgir de um contrato ou com base na normativa pública de tutela da saúde internação em hospital ou em estruturas protegidas Nesses casos o médico O Crime Louco 45 independentemente do consentimento do paciente tem um dever jurídico de impedir o resultado danoso Outro tema de relevância conceitual enfrentado pela sentença da Corte de Cassação diz respeito à previsibilidade do resultado A previsibilidade referindose a um elemento subjetivo deve ser determinada ex ante com base no princípio de que não se pode atribuir ao agente a falta de previsão de um resultado que não poderia prever a partir dos conhecimentos que tinha ou deveria ter O fundamento da previsibilidade sob o aspecto subjetivo reside na necessidade de evitar formas de responsabilidade objetiva não basta que o agente tenha atuado com violação a uma regra de cuidado sendo necessário que tenha previsto que tal violação teria como consequência a verificação do resultado Somente se o perigo de ocorrência do resultado danoso for previsível ou reconhecível o agente estará obrigado a respeitar aquelas específicas regras de cuidado aptas a evitar o fato danoso A Corte de Cassação debateu o conceito de previsibilidade acentuando que alguns autores preferem falar de possibilidade de representação este termo é mais compreensivo podendo se referir não apenas a acontecimentos futuros mas também a acontecimentos concomitantes ou até mesmo anteriores à ação do sujeito Outros falam de possibilidade de reconhecimento a culpa resulta configurável quando a situação concreta se caracterize pela presença de elementos jurídicos e fáticos que em correlação com as próprias leis científicas e os conhecimentos empíricos utilizados pelo juiz para os fins de imputação do resultado teriam permitido que o agente representasse a concreta realização do fato previsto em lei como crime culposo A Corte de Cassação enfrentou em seguida o princípio da confiança e o dever do médico de informação Nesse caso estatuiu que Cada um responde pelas consequências da própria conduta comissiva ou omissiva e no âmbito dos próprios conhecimentos e especializações não responde no entanto por eventual violação O Crime Louco 46 das regras de cuidado por parte de outros partícipes da mesma atividade ou que atuem no mesmo âmbito de atividade a não ser que lhe seja atribuída uma função de controle das ações alheias em relação ao respeito a essas regras por parte dessas pessoas o agente deve poder confiar princípio da confiança Somente na hipótese em que o agente se dê conta da violação das regras ou suspeite de uma violação da diligência terá o dever de agir O médico em especial tem o dever de buscar com o paciente ou se isso não for possível com outras fontes confiáveis todas as informações necessárias à correta execução do tratamento praticado O último tema examinado na sentença diz respeito ao tratamento do paciente psiquiátrico e o Tratamento Sanitário Obrigatório A Corte de Cassação ressalta o alto valor da Lei 1803 que conferiu dignidade aos pacientes psiquiátricos e limitou o TSO unicamente a casos de necessidade de acordo com a perspectiva de tratamento e o respeito à pessoa Quando a situação do paciente é capaz de se degenerar inclusive com atos de auto ou heteroagressividade o TSO junto a estruturas hospitalares se destina a evitar todas as consequências negativas que o sofrimento psíquico causa a manifestação de violência e agressividade não acarreta dano somente ao terceiro agredido mas também ao agressor Por isso não se pode sustentar que a tutela sanitária obrigatória esteja preordenada exclusivamente à tutela do doente e não também de terceiros 3 Nota à edição brasileira A lei da reforma psiquiátrica O Crime Louco 47 II O incidente de Ímola Ernesto Venturini 1 O fato 24 de maio de 2000 Objeto relatório de serviço Delegacia de Bolonha Comissariado de PS Squadra Volante Ímola4 Ímola 2452000 Ao senhor diretor do comissariado de PS S e d e O abaixoassinado Inspetor MM5 na qualidade de Coordenador de Patrulhas refere a VSa o que se segue Cerca de 8h45m de hoje por ordem da COT6 a Volante Pedagna composta pelos Superintendentes MA e PL e pelo Agente Especial DCA deslocavase pela rua Giovanni XXIII no 2 junto à instituição Albatros onde a senhora MM qualificada em outros autos comunicara através da linha telefônica do 1137 que um paciente após ter ferido um educador com uma faca entricheirarase no quarto Prontamente no local os operadores constataram a presença do 1188 e requereram o auxílio da Volante 9 composta do escrevente 4 Nota à edição brasileira PS Squadra Volante corresponderia a uma equipe de patrul hamento da Polícia Estatal PS é a sigla de Polizia di Stato Nota à edição brasileira PS Squadra Volante corresponderia a uma equipe de patrulha mento da Polícia Estatal PS é a sigla de Polizia di Stato 5 Nota à edição brasileira No original em todo o caso Ímola foram usadas apenas as iniciais dos nomes de pessoas ou nomes fictícios Em nota ali constante explicavase que embora se tratando de fatos e documentos de domínio público inclusive on line foi feita a opção de respeitar ao máximo a privacidade dada a relativa proximidade dos aconteci mentos O mesmo critério não foi utilizado nos demais casos tratados no livro pelo longo lapso de tempo decorrido entre os outros acontecimentos e a publicação Na presente edição foram utilizados os nomes verdadeiros também no caso Ímola pois dirigindose a público nãoitaliano ausentes estão as razões que fundamentaram aquela opção 6 Nota à edição brasileira COT é a sigla para Centrale Operativa ou seja a Central de Operações 7 Nota à edição brasileira 113 é equivalente ao nosso 190 8 Nota à edição brasileira 118 se refere ao pessoal do ProntoSocorro Sanitário O Crime Louco 48 e do Assistente CG comunicando ao COT a presença de um ferido grave estendido no chão Logo à chegada soubese pelo pessoal de serviço na instituição que o agressor estava entrincheirado no interior de seu quarto situado no andar superior tendo sido também informado que ele estava armado com uma faca Logo que alcançado o quarto indicado foi notada a presença de um homem posteriormente identificado como MG nascido aosem residente à portador da carteira de identidade no expedida aos pelo Prefeito de parado à porta que se abria sobre o longo corredor Imediatamente M foi contido No pavimento entre as duas únicas camas na porta e em parte do teto notaramse manchas de sangue tendo sido encontradas ainda no chão embalagens de medicamentos e o registro das terapias No andar inferior mais especialmente no patamar situado entre a escada e a entrada da cozinha após os cuidados médicos prestados pelo Dr M foi constatada a morte por parada cardiocirculatória provavelmente por hemorragia dos grandes vasos coração de CA nascido aos em onde residia à rua portador da carteira de identidade no expedida aos pelo Prefeito de Com efeito o cadáver apresentava uma ferida de cerca de 3 centímetros de largura na região subclavicular esquerda provocada por uma arma perfurocortante e outra ferida igualmente provocada por arma perfurocortante na parte retroauricular direita com um profundo corte na nuca De se notar que as manchas de sangue vinham como dito do quarto de M onde fora encontrado o cadáver de C Com relação ao ocorrido MG foi detido pelo crime de homicídio doloso Transportado ao Comissariado e tendo em seguida sentido um malestar foi acompanhado ao PS9 do hospital de Ímola Sobre o colchão da cama usada por MG foi encontrada uma faca descrita no auto de apreensão com uma ponta afiada com cerca de 345cm de comprimento cuja lâmina estava suja de sangue faca 9 Nota à edição brasileira PS é a sigla de Pronto Soccorso ou seja ProntoSocorro O Crime Louco 49 de largura compatível com a ferida apresentada por CA No interior da cozinha cuja porta estava aberta foram encontrados em uma gaveta munida de fechadura não operante 9 facas melhor descritas no auto de apreensão de aspecto semelhante ao da faca encontrada no quarto de M G No local interveio a polícia científica dado o relevo do caso Foram ouvidos alguns dos presentes e em especial MM que referiu ter ouvido rumores de luta corporal provenientes do quarto de MG o qual dentre outras coisas há cerca de 15 dias vinha se mostrando agressivo em relação ao pessoal de serviço e aos outros moradores da instituição Vale notar que no andar superior onde aconteceu o fato conforme os testemunhos encontravamse apenas CA MG e IB anciã surdamuda que normalmente para sua tranquilidade pede para se trancar a chave Com efeito o quarto da mesma estava fechado a chave tendo sido aberto pelo escrevente através de uma chave universal providenciada pelos operadores da instituição Do ocorrido foi informado o membro do MP10 de serviço Dr O que mais tarde interveio diretamente no local assumindo as investigações Interveio ainda a Dra V médica legal O cadáver por ordem do Dr O foi levado para o necrotério da rua Certosa em Bolonha ficando à disposição da Autoridade Judiciária Enquanto isso outro funcionário apreendia a cartela clínica a das instruções e a da terapia de MG e de outros moradores da instituição Do ocorrido foi avisado o advogado de ofício GM do foro de Bolonha Cabe precisar que MG sempre em estado de detenção foi conduzido por ordem do MP ao Hospital Malpighi de Bolonha sob guarda do pessoal da Polícia estatal e da Polícia Penitenciária O que se relata por dever de ofício 10 Nota à edição brasileira Ministério Público O Crime Louco 50 11 Exame dos autos do processo Concluise inclusive com base nas sia11 colhidas logo após o fato que CA dirigiuse ao quarto de MG para ministrarlhe a terapia diária quando este o atingiu com dois golpes tendo CA se precipitado para o andar inferior em busca de ajuda acabando por cair morto no vão situado entre a cozinha e as escadas No chão do quarto dentre outras coisas estavam espalhadas embalagens de remédios que provavelmente CA deixara cair ao ser atingido por MG Das declarações surge essencialmente que MG nos últimos tempos vinha manifestando uma piora em suas condições mentais com efeito recusava a comida julgando que estivesse envenenada isolavase sentindose perseguido por tudo que o circundava evitando tomar os remédios que lhe tinham sido prescritos Restou demonstrado que essa piora foi consequência da diminuição da dose dos fármacos ordenada pelo Dr PE psiquiatra que tinha MG a seus cuidados desde novembro passado De se destacar que CP referiu que na tarde de ontem CA lhe contara que fora atingido no dedo da mão por um urinol lançado por MG que se recusara a receber os remédios O Dr PE disse ter optado por uma redução gradual da dosagem das injeções de neurolépticos injetáveis há cerca de três meses acrescentando ter pedido a todos os operadores que lhe referissem eventuais variações do estado psíquico do paciente Disse ainda que na sextafeira 195 pp após MG ter se recusado a se submeter a uma consulta de avaliação de seu estado de saúde e tendo em conta indicações vindas das operadoras do centro Albatros a sinalizar aspectos delirantes de isolamento e recusa de alimentação dirigiuse à casa familiar constatando uma efetiva piora da situação psicopatológica do paciente que se recusava a tomar o neuroléptico injetável aceitando no entanto recebêlo no dia seguinte com a Dra DA Referiu finalmente ter contatado o 11 Nota à edição brasileira sia se refere a informações O Crime Louco 51 Dr G do Centro de Saúde Mental da AUSL de Ímola para avaliar conjuntamente a eventualidade de submeter MG a TSO Do relatório dos consultores técnicos do MP vejase mais adiante se verifica Dos autos de SIT12 de 24500 devemos apontar algumas declarações que como veremos fornecem elementos úteis para a reconstrução dos fatos Começaremos pelas declarações prestadas pela Dra ML diplomada em pedagogia coordenadora da Comunidade Albatros Após ter descrito a evolução das condições psíquicas de MG até os dias imediatamente anteriores ao homicídio de CA não nos deteremos sobre este fato pois o examinaremos detalhadamente mais tarde a Dra ML declara o seguinte Na manhã da segundafeira seguinte 220500 fui informada por um dos operadores que MG em nada mudara seu comportamento razão por que cerca de 12 horas telefonei para o Dr PE mas como ele estava com pressa pediu que o chamasse depois das 17 horas tendo eu então lhe dito que minha colega BC o faria na ocasião lhe disse que MG há alguns dias vinha se recusando a receber as gotas de Valium e Entumin tendo o Dr PE me dito que pretendia incluir na terapia o Clopixol e que no final da tarde nos informaria sobre a dosagem Na manhã de ontem 230500 procurei a Dra DA para que prescrevesse o fármaco sugerido pelo Dr PE tendo em seguida ido à farmácia da Avenida DAgostino onde me foi informado que o remédio não estava disponível no momento mas que procurariam obtêlo para o dia seguinte ADR13 As relações entre MG e CA sempre se desenvolveram em um âmbito de normalidade jamais tendo havido quaisquer 12 Nota à edição brasileira SIT é a sigla de Sommarie Informazioni Testemoniali ou seja resumo de declarações de testemunhas 13 Nota à edição brasileira ADR significa a domanda risponde que corresponderia a perguntado respondeu no linguajar processual brasileiro O Crime Louco 52 episódios litigiosos entre os dois somente nesses últimos dias MG se comportava com CA do mesmo modo com que se comportava com a maior parte dos operadores ou seja recusando qualquer contato físico e visual Ainda dentre as declarações prestadas imediatamente após o fato delituoso parecemnos de notável importância as de DA F assistente de base da Comunidade Na verdade estava muito preocupada com tal comportamento a tal ponto dessa preocupação se transformar em medo Falei sobre isso com minha coordenadora e anotei tudo no caderno de registros que foi apreendido Tinha a estranha sensação de que alguma coisa iria acontecer Em posterior colheita de informações cfr Autos de SIT de 26500 foram ouvidas as Dras PAM CA e DA A Dra PAM médica psiquiatra do Departamento de Saúde Mental de Ímola desde 1982 que declarou ter trabalhado no hospital psiquiátrico local denominado Osservanza por cerca de 9 anos até seu fechamento ocorrido em 1996 recordou ter trabalhado na enfermaria no 7 de longa hospitalização durante cerca de dois anos O então médico chefe Dr VV considerando que a Dra era ainda inexperiente recomendou que ela não reduzisse a terapia neuroléptica de MG mesmo que ele continuamente o pedisse pois existia a possibilidade de o paciente se descompensar Segundo o declarado a Dra PAM teve o cuidado de transmitir tal recomendação à Dra CA a partir do momento em que esta começou a seguir o tratamento de MG e posteriormente quando a Dra CA foi substituída pelo Dr PE entendeu oportuno reiterar também a ele a referida recomendação A Dra CA médica psiquiatra do DSM de Ímola desde dezembro de 1966 declarou ter sido a psiquiatra assistente de M da primavera de 1997 ao outono de 1999 recebendo tal encargo da Dra PAM na medida em que o paciente não aceitava mais relacionarse terapeuticamente com ela A Dra CA confirmou que MG era um paciente difícil de tratar na medida em que jamais aceitava O Crime Louco 53 facilmente os remédios por entender que deles não necessitava pelo que considerou a possibilidade de diminuir a terapia oral para poder manter um bom relacionamento com o paciente Não soube precisar se diminui a dosagem da terapia neuroléptica via injeção mas afirmou que esta sempre fora ministrada periodicamente A Dra DA enfatizando sua qualidade de médica de clínica geral tendo assistido MG nessa condição confirmou ter ido em 1905 à instituição Albatros e ter ministrado a injeção do neuroléptico que MG anteriormente recusara Alguns dias depois 23500 a requerimento do psiquiatra Dr PE redigiu a prescrição de terapia neuroléptica oral Clopixol 25 mg Foram obtidos novos elementos informativos e assim cfr Autos de SIT de 29500 lêse que segundo FA assistente de base na Albatros M mudou após o falecimento de dois moradores da instituição por causas naturais que provavelmente fez surgir nele o medo da morte começou a se isolar cada vez mais recusandose inclusive a se alimentar Contextualmente do quanto declarado M começou a recusar a terapia oral não tomando mais as gotas e talvez nem mesmo os comprimidos Análoga colocação temporal sobre a mudança sintomatológica cerca de 15 dias antes do fato foi apontada por outros operadores ouvidos GSP funcionária da limpeza FA em serviço civil MM assistente de base 12 Relatório do diretor do departamento de saúde mental Fui convidado pela Direção da ASL14 a realizar uma investigação com os elementos de que tive conhecimento concluí se tratar substancialmente de uma fatalidade na medida em que os erros que se puderam apontar não assumiam características de culpa grave sobretudo não podendo se inscrever como causa eficiente do resultado a morte 14 Nota à edição brasileira ASL é a sigla de Azienda Sanitaria Locale isto é Empresa Sanitária Local A ASL é uma empresa pública O Crime Louco 54 Objeto Homicídio do operador CA Avaliação Ao Responsável Provisório do Distrito da AUSL de Ímola Dr SL Com referência à requisição do Diretorgeral de 8 de junho de 2000 prot no 13624 por mim recebida em 962000 realizei uma investigação sobre o caso com a finalidade de avaliar eventuais comportamentos negligentes quer de parte dos funcionários da Empresa quer de parte da Cooperativa que administra a instituição da rua Giovanni XXIII A investigação levou em conta tanto elementos objetivos fichas clínicas como elementos subjetivos depoimentos dos diversos indivíduos envolvidos Não foi possível obter as informações contidas no livro de registros de Albatros na medida em que este foi apreendido pela Autoridade Judiciária É provável que tal livro contenha elementos decisivos para a reconstrução dos fatos Levei em conta as declarações prestadas à imprensa nos dias seguintes ao homicídio pela mãe de C e por outros operadores Entretanto não foi possível valorálas na medida em que as afirmações frequentemente se mostraram genéricas imprecisas descontextualizadas Cordiais saudações Ernesto Venturini Ímola 16 de junho de 2000 Relatório Considerações conclusivas Estamos diante de um episódio psicótico agudo que surgiu repentinamente e não foi avaliado como perigoso por parte de diversos sujeitos inclusive os envolvidos mais de perto nos cuidados do paciente O modelo organizacional das residências naturalmente contempla a possibilidade de surgimento de uma crise ou do reavivamento da sintomatologia psicopatológica dos moradores prevendo uma gama de intervenções que podem chegar até ao Tratamento Sanitário Obrigatório Toda avaliação de caráter clínico naturalmente compete ao médico psiquiatra assistente O Crime Louco 55 A redução gradual e a suspensão da flufenazina decanoato operada pelo doutor PE sem dúvida têm uma justificação Os efeitos de discinesia tardia são especialmente deletérios para o paciente e quando suas condições físicas estão comprometidas exigese a adoção desse procedimento A recente suspensão do fármaco talvez possa ter tido algum peso na evolução da crise mais do que sobre seu aparecimento A escolha é frequentemente imposta pela necessidade de recuperar a compliance ao tratamento farmacológico por parte do paciente em situações difíceis O efeito da flufenazina decanoato se manifesta após 2472 horas e a eficácia sintomática se torna significativa após 4896 horas A ação dura de 2 a 5 semanas Podese concluir portanto que a injeção dada em 19 de maio tenha atingido sua dosagem eficaz entre 21 e 23 de maio sem considerar que de todo modo ainda subsistia o efeito da precedente injeção de flufenazina Em situações de crise aguda porém é oportuno acompanhar tal tratamento com outros fármacos neurolépticos ou tranquilizantes menores As prescrições foram corretas permanece no entanto incerta a ingestão regular dos fármacos por via oral Da reconstrução dos fatos não parece emergir uma subestimação do caso a situação foi avaliada dia a dia e se entendeu poder contar com uma ampla margem de tempo para evitar que se precipitasse Esta parece ter sido a conduta do Dr PE mas também de todos os outros sujeitos envolvidos no acontecimento que na manhã de 23 não julgavam dever lançar mão de outros procedimentos além daqueles em execução Incidentalmente gostaria de ressaltar que a exigência de se levar em consideração uma margem suportável de risco diz respeito ao cotidiano do agir na psiquiatria diz respeito à própria essência da psiquiatria Se se tivessem informações sobre ameaças aos operadores ter seia agido de forma diversa presumivelmente isto teria implicado a imediata internação e execução de procedimentos de segurança Por outro lado o Sr MG não era tido como potencialmente perigoso Após episódios de agressividade nos primeiros anos de internação O Crime Louco 56 no hospital psiquiátrico em circunstâncias e contextos especiais seguiuse uma longa história de total ausência de episódios similares havia uma notável mudança positiva Se como parece surgir das declarações da mãe de CA C demonstra seus temores na noite de 23 é evidente que haveria uma relação com o que acontecera na tarde de 23 ou após a reunião da equipe da manhã Teria havido um confronto verbal talvez físico entre CA e MG A ameaça e a agitação o lançamento de um objeto assumem um significado decisivamente alarmante significam o precipitar da crise e a concretização na vivência delirante de MG da figura de CA como a de um inimigo Por outro lado as diversas declarações confirmam a imagem de CA como a de uma pessoa corajosa disposta a assumir para si as situações difíceis generoso com os colegas tendente a minimizar os riscos O rápido desenrolar dos acontecimentos não permitiu a avaliação do que ocorreu na tarde de 23 o registro da noite não foi lido pela coordenadora ML a não ser talvez na manhã de 24 quando o homicídio já tinha acontecido ou estava para acontecer De tudo se extraem as seguintes considerações estamos diante de uma série de acontecimentos que avaliados separadamente demonstram escolhas que não podem ser tidas por gravemente incorretas em condições de risco tidas como mínimas Paradoxalmente tudo parece ter funcionado segundo o exigido porém até certo ponto Podese pensar no entanto que uma maior presença dos médicos do DSM da psiquiatra de referência da residência e do psiquiatra do paciente talvez tivesse permitido colher mais elementos permitindo considerar as experiências dos operadores da comunidade A comunicação entre os vários atores revelou incertezas É nessa direção que devem seguir as próximas escolhas do DSM Sem dúvida o elemento desencadeador da crise é de ser imputado à doença e à morte da moradora a quem o Sr MG se sentia ligado A esse acontecimento se juntaram outras circunstâncias secundárias de efeitos negativos a suspensão da flufenazina a morte de outra moradora o desencontro entre o pedido O Crime Louco 57 de um remédio para MG e sua efetiva presença em depósito A internação hospitalar de MG chegou a ser cogitada mas decidiu se esperar julgandose possível uma melhora do estado clínico do paciente O episódio ocorrido na tarde de 23 que fez precipitar a situação certamente teve papel determinante para a superveniência do resultado a morte Nesse sentido achamonos diante de uma objetiva impossibilidade de intervenção por parte do DSM na medida em que a informação não veio em tempo hábil Concluindo não se identificam comportamentos gravemente negligentes por parte dos funcionários da Empresa ou da Cooperativa Cordiais saudações O Diretor do DSM E V 13 O impacto social do fato O impacto do acontecimento na cidade de Ímola foi enorme morreu em circunstâncias dramáticas um homem de 45 anos conhecido e benquisto por seus concidadãos deixando um filho de tenra idade Mas foram sobretudo o contexto e a modalidade do fato que suscitaram maiores emoções A cidade de Ímola desde a primeira metade do século XIX constituiu sua identidade social em torno da psiquiatria mérito de personagens como Cassiano Tozzoli Andrea Costa e sobretudo Luigi Lolli Os dois hospitais psiquiátricos um direcionado para a província de Bolonha o outro para toda a Romagna e o Instituto Médico Psicopedagógico até o final dos anos 60 constituíram a principal atividade econômica da cidade com seus 2500 doentes e cerca de 1500 funcionários não havia família que não tivesse um parente ocupado no setor da psiquiatria O próprio processo de desinstitucionalização iniciado ao final dos anos 80 desenvolveuse sob uma ótica de forte envolvimento dos cidadãos Exemplo disso é o slogan que acompanhou tal processo Reabilitar a cidade Enquanto a reabilitação dos pacientes se fazia acompanhar do progressivo fechamento das enfermarias e da abertura de 23 O Crime Louco 58 residências no território de Ímola enquanto a adesão das cooperativas sociais ao processo abria novas perspectivas de trabalho para os jovens de Ímola era sobretudo a lógica do dentrofora e do fora dentro que constituía a estratégia de impacto sobre a cidade Alunos das escolas médias e superiores tinham contínuas relações com os doentes companhias de teatro formadas por doentes e estudantes representavam suas peças nos teatros da cidade no mesmo jornal apareciam escritos e poesias de doentes e moradores concertos e eventos culturais com personagens da cultura e do espetáculo eram promovidos nas residências dos expacientes o parque do exhospital se tornava por algumas semanas do ano o lugar de encontro lúdico esportivo e cultural da cidade os pacientes eram os protagonistas de algumas transmissões da mídia local e nacional uma quantidade cada vez maior de cidadãos dava sua colaboração voluntária às atividades da desinstitucionalização Havia em suma um verdadeiro envolvimento forte emocionante das instituições e dos cidadãos para a superação do hospital psiquiátrico A mensagem central desse processo social se concentrava na capacidade de olhar a loucura de forma diversa eliminando os estereótipos da irrecuperabilidade e da periculosidade ainda presentes no imaginário coletivo dos anos 80 É fácil entender portanto como o acontecimento de 24 de maio de 2000 tenha tido o impacto de uma bofetada uma ducha fria um brusco despertar É como se repentinamente as pessoas se dessem conta de terem sido enganadas Murmurase protestase não é verdade o que nos foi dito nesses anos os doentes mentais são perigosos quantas pessoas foram postas em risco Os que primeiro manifestaram sua perturbação foram os jovens operadores das cooperativas Sua raiva no entanto se fundava também em outras problemáticas que diziam respeito às suas condições de trabalho às problemáticas sindicais e remuneratórias Os trabalhadores das cooperativas são explorados mal pagos realizam tarefas que não lhes competem e frequentemente arriscam a vida lêse em panfletos e artigos na imprensa O Departamento de Saúde Mental O Crime Louco 59 não os protege as cooperativas não aplicam os devidos contratos A desinstitucionalização nessas circunstâncias revelou toda a sua superficialidade e ideologia É tocante a notícia de que Giovanni M fora anteriormente interno do Hospital Psiquiátrico Judiciário e que esta informação não era conhecida nem pelos operadores da cooperativa nem pelo médico assistente Se isso fosse sabido se dizia teriam sido adotados procedimentos muito diversos As pessoas querem um bode expiatório para aplacar sua raiva e seu medo repentinos e inesperados A mãe da vítima declara publicamente que não quer nenhum usuário dos serviços de Saúde Mental no funeral do filho Dirseá que no fundo é uma atitude compreensível mas permanece sendo um ato injusto e impensado é uma raiva cega contra os mais fracos e também contra a dedicação do próprio filho Os usuários da residência Ca Del Vento com muito equilíbrio tentam raciocinar sobre o evento mas suas declarações não são ouvidas O assessor municipal da saúde no passado partidário do processo de desinstitucionalização publicamente ordena que nenhum paciente psiquiátrico seja acolhido nas Residências Sanitárias Assistidas do Município A imprensa local sempre ansiosa por episódios de sangue dada a escassez de notícias descobre nesse acontecimento um filão inesgotável Nas primeiras duas semanas aparecem 93 artigos na imprensa nacional mas especialmente na local e outros 20 saem nas duas semanas seguintes Aliviamse os aspectos fúnebres do evento mas se publica uma sucessão de declarações de acusações e contraacusações de bem que eu tinha dito Em uma espécie de psicodrama coletivo a Prefeitura para atender a absoluta transparência abre espaço para audições públicas durante as quais na presença das diversas correntes políticas intervêm cidadãos e dirigentes do Departamento de Saúde Mental Esses encontros que deveriam servir para esclarecer revelamse no entanto happenings de histeria coletiva instaurando crises políticas de todos contra todos a verdade objetiva dos fatos não é mais tão importante quanto sua interpretação política A oposição quer cavalgar a apetitosa crise que O Crime Louco 60 se abateu sobre o Departamento de Saúde Mental apoiado em diversas ocasiões pelos políticos da situação no município Mas a crise perpassa as diversas correntes a Margherita e a Rifondazione Comunista15 se dividem internamente dando lugar conforme consolidados copiões a cisões Os sindicatos brigam entre si Até a Liga das Cooperativas top da economia local é arrastada para as discussões com efeito a Liga é a entidade de referência da cooperativa social que administra a residência Albatros Os inimigos da reforma psiquiátrica vendo em dificuldades os personagens que durante anos pontificaram no panorama local reforçam seus ataques Esperase que a direção do DSM salte pelos ares Naqueles dias foram enviadas notificações referentes aos crimes dos artigos 590 e 589 CP a três médicos psiquiatras do DSM que trataram de Giovanni M à assistente social do DSM que cuidava da ligação entre a cooperativa e o serviço público e à coordenadora da residência Começa um iter judiciário que se prolongará por 9 anos Enquanto isso Giovanni M após uma perícia psiquiátrica é absolvido por incapacidade total de entender e querer Subsistindo a dizer do perito sua periculosidade social é enviado ao Hospital Psiquiátrico Judiciário de Montelupo Fiorentino Declarada sua incapacidade processual arts 70 71 CPP sai completamente de cena culpado mas inimputável Após alguns meses no entanto o MP requer o arquivamento de todo o inquérito por insubsistência de lesão pessoal O ato é impugnado pelos advogados da mãe da mulher e do filho da vítima e pelo advogado de ofício de Giovanni M O GIP16 do Tribunal de Bolonha que rejeita o arquivamento o processo prossegue Duas médicas são excluídas das imputações 15 Nota à edição brasileira Margherita e Rifondazione Comunista eram partidos políti cos do campo da esquerda italiana A Margherita não existe mais correspondendo hoje ao Partito Democratico PD 16 Nota à edição brasileira GIP giudice per le indagine preliminari que poderia ser traduzido por juiz dos procedimentos preliminares ou juiz instrutor Figura inexistente em nosso sistema processual penal O Crime Louco 61 permanecendo envolvidos a assistente social a responsável pela residência e o doutor Euro P que pede o procedimento abreviado 14 A reconstrução dos fatos na fase instrutória A opinião pública permanece sensibilizada pelo diagnóstico de Giovanni esquizofrenia paranóica e seu passado Impressionam negativamente as internações nos Hospitais Psiquiátricos Judiciários de Reggio Emilia e de Aversa as repetidas internações nos institutos psiquiátricos de Ímola os comportamentos particularmente bizarros e sobretudo os episódios de agressividade e violência É o quadro de um paciente difícil que rejeita as terapias e se torna controlável somente com o tratamento de um remédio injetável de lenta atuação O paciente foi liberado do Hospital Psiquiátrico em 1995 com o diagnóstico de Síndrome residual em psicose esquizofrênica indo morar em uma residência assistida É descrito como um paciente trabalhoso desafiador e fatigante frequentemente pede que seja suspenso o tratamento farmacológico Nos últimos anos Giovanni mudou de psiquiatra três vezes e as informações não pareciam suficientemente adequadas O novo psiquiatra demonstra um conhecimento parcial da história do paciente mas procede à redução e sucessivamente à suspensão de um remédio injetável que o paciente usava há quinze anos As condições psíquicas do paciente demonstram desde então certa piora Giovanni manifesta inicialmente o receio de ser roubado No livro de registros dos operadores da residência lêse que pede com insistência para ser acompanhado ao banco porque quer retirar os trinta milhões de liras que depositou há mais de cinco anos De nada valem as explicações de que não possui mais aquela quantia usada nesses anos para pagar tudo de que necessita para viver Continua a repetir obstinadamente que se ninguém o roubou aquele dinheiro deve estar ainda depositado de outro modo terá que se dirigir à polícia Precisa necessariamente atribuir a alguém a culpa por não ter mais o dinheiro O livro de registros vale recordar não O Crime Louco 62 é um instrumento oficial e seu conteúdo jamais foi dado a conhecer nem aos médicos nem à assistente social é apenas um dispositivo utilizado pelos operadores da cooperativa para comunicações de serviço Naquelas páginas aparece um progressivo acentuarse das idéias de Giovanni sobre envenenamento e contaminação Os sinais de um malestar interior acentuamse cada vez mais Giovanni tem uma expressão no rosto de alguém que não está muito tranquilo como se tivesse alguma coisa grave Nesse meio tempo morrem por causas naturais duas moradoras da residência Giovanni era bastante ligado afetivamente a uma delas É evidente que o luto incide negativamente nas condições psíquicas de Giovanni A coordenadora da residência solicita a visita do médico ao paciente A piora é tangível Giovanni rejeita qualquer tratamento e se mostra agressivo O médico concorda que seria oportuno retomar o tratamento farmacológico interrompido e avalia mesmo a possibilidade de praticar um Tratamento Sanitário Obrigatório No final entretanto condiciona a decisão à disponibilidade do paciente em permitir a injeção do remédio por parte do Médico de Clínica Geral Com efeito no dia seguinte o paciente aceita tomar a injeção e o psiquiatra fixa a próxima visita para algumas semanas depois Todavia diante da ausência de melhora de comportamentos cada vez mais bizarros de ameaças a coordenadora da residência insiste em nova intervenção do psiquiatra Este prescreve por telefone um remédio que não pode ser ministrado por estar em falta na farmácia Durante a reunião periódica de equipe que tem lugar na presença da assistente social os operadores mesmo demonstrando preocupações pelo estado de saúde de Giovanni não se referem a ameaças Essa atitude estranhamente contrasta com o que surge do livro de registros dos operadores As últimas páginas evidenciam uma situação de alarme entre os operadores descrevendo inquietantes ameaças de morte por parte de Giovanni Nisso os fatos se precipitam Há alguns dias o educador profissional Ateo C insistentemente tenta convencer Giovanni a O Crime Louco 63 assumir a terapia oral Há momentos de aberto conflito e numa tarde Giovanni atira um urinol contra Ateo ameaçandoo de morte Na manhã seguinte Ateo vai sozinho ao quarto de Giovanni para ministrarlhe a terapia mas é morto Os investigadores fixam sua atenção na bateria de facas de cozinha de onde fora subtraída a arma do crime e indagam sobre as medidas de segurança adotadas Surgem versões contraditórias sobre as disposições relativas ao controle das facas segundo alguns as facas deveriam estar fechadas a chave outros declaram no entanto que não existem disposições a respeito O responsável pela segurança da residência era Ateo A imprensa transmite à opinião pública as seguintes mensagens Albatros é uma residência mais próxima a uma Residência Sanitária Assistida do que a uma estrutura psiquiátrica protegida profissionais da saúde médicos e enfermeiros são pouco presentes a periculosidade dos pacientes é ocultada do pessoal que trabalha na residência funcionários não profissionais da saúde são encarregados de ministrar remédios contrariamente às normas vigentes Os peritos do Ministério Público consideram o psiquiatra responsável pelo agravamento psíquico do paciente e seu comportamento violento por ter suspendido o remédio de que necessitava apontam deficiências nos sistemas de segurança da casa denunciam carências nos processos de comunicação e um comportamento gravemente inadequado por parte de Ateo 15 Uma leitura mais aprofundada do fato A descrição anterior corresponde à reconstrução do fato como apreendido nos primeiros dias e como talvez tenha permanecido na consciência de muitos operadores e demais cidadãos Todavia é apenas uma primeira e incompleta reconstrução dos acontecimentos já que pouco a pouco o evento se enriquecerá com novas particularidades fatos desconhecidos ou mesmo ocultados irão emergir O Crime Louco 64 O relatório que apresentei à direção da ASL que eu mesmo hoje julgo incompleto por ausência de algumas informações que surgiriam somente com o passar do tempo poderia parecer viciado por uma involuntária parcialidade de julgamento Em todo caso o diretor geral da Empresa Sanitária pediu também um parecer de um experto psiquiatra consultor da Região Emilia Romagna O novo relatório acentuava fortemente a responsabilidade profissional do psiquiatra na gestão da crise e denunciava uma atitude de difusa subestimação da periculosidade dos pacientes psiquiátricos Nessa linha e não na linha por mim indicada moveramse os peritos do MP entendendo também responsáveis pelo ocorrido a assistente social e a coordenadora da residência Tal interpretação em parte desmentida e em parte confirmada pelas sentenças como já pude apontar não esclarece a dinâmica dos fatos e deixa muitas circunstâncias nas sombras Com sentenças já proferidas sem o envolvimento emocional dos primeiros tempos e utilizando os conhecimentos que foram se acumulando examinarei de perto os três protagonistas do evento o psiquiatra a vítima o paciente e sucessivamente o funcionamento e a organização da residência Por quê Naturalmente porque sinto necessidade de dar minha chave de leitura dos fatos mas sobretudo porque o evento como já pude explicar pareceme paradigmático para uma reflexão em todos os campos sobre os temas da responsabilidade da periculosidade e da imputabilidade em psiquiatria Não quero exprimir julgamentos sobre ninguém nem sobre quem foi tragicamente envolvido no evento nem sobre quem peritos juízes desenvolveu conscienciosamente seu próprio trabalho Não pretendo que essa reconstrução seja a verdade é apenas a minha verdade Moveme a exigência profissional de aprofundar despindo me de qualquer preconceito de entender de apreender para avaliar uma experiência negativa e oferecer a todos os que compartilham esse difícil e fascinante trabalho os instrumentos para não se ver na mesma situação É a clássica análise que grupos de trabalho fazem sobre casos na presença de um supervisor O pressuposto de tais O Crime Louco 65 análises é a honestidade intelectual e a disponibilidade de acolher serenamente críticas e sugestões pois em medicina o erro humano é uma eventualidade possível e não infrequente 16 O cenário Albatros está situada em uma zona residencial da cidade no começo de uma rua larga e sem saída uma rua organizada tranquila Tem o aspecto de uma casa com amplo jardim e árvores que dão sombra No andar térreo estão localizados os banheiros e quartos dos operadores Uma escadaria externa dá acesso a uma ampla varanda onde as mulheres se sentam a costurar e os homens a jogar cartas no interior há uma sala de estar espaçosa mas é a cozinha o lugar mais animado e frequentado A sala de estar dá acesso a um apartamento autônomo para quatro pessoas com banheiros e uma pequena cozinha já uma escada interna leva ao andar superior onde outros moradores têm seus quartos e banheiros O jardim é o grande recurso da casa quando se organizam as festas as mulheres preparam doces e arrumam as mesinhas Quando no entanto tem se vontade de encontrar pessoas novas podese ir à sociedade da bocha tratase de um círculo ARCI17 que se encontra a pouca distância sempre muito animado e acolhedor 17 O imputado O doutor Euro P é um profissional competente tendo demonstrado em sua história ser pessoa consciente e responsável Até por isso é justo interrogarse sobre as razões de seu comportamento naquelas circunstâncias Os peritos do Ministério Público focalizaram sua atenção na suspensão da flufenazina decanoato sem motivo razoável e sem observar os protocolos internacionais além disso imputaram ao psiquiatra o fato de não 17 Nota à edição brasileira ARCI é a sigla de Associazione Ricreativa Culturale Itali ana isto é Associação Recreativa Cultural Italiana Há cerca de seis mil círculos ARCI por toda a Itália O Crime Louco 66 ter instaurado os procedimentos necessários para uma intervenção de urgência diante da crise julgamno particularmente responsável por não ter requerido o TSO considerando sobretudo o diagnóstico do paciente a tornar atos de violência fortemente previsíveis Imputamlhe ainda o fato de não ter se documentado sobre a anamnese do paciente considerando que as velhas fichas clínicas eram facilmente encontráveis no lugar de trabalho do médico Na realidade o psiquiatra dá uma motivação para sua escolha considera oportuno reduzir os psicofármacos diante dos efeitos negativos que seu uso prolongado pode ter em um paciente cardiopata o ECG revela um hemibloqueio anterior esquerdo com um processo específico pulmonar pregresso comprometimento hepático e tendência à hipertensão arterial Tratase de uma remodelação de terapia correta e devida em busca da dose mínima eficaz Provavelmente tenta ainda conseguir a adesão do paciente condescendendo com sua reivindicação de redução dos remédios Em todo caso julga ter a situação sob controle e dispor de tempo para corrigir eventuais contingências negativas A propósito da inobservância dos protocolos internacionais sobre a redução dos remédios injetáveis é necessário precisar que tais protocolos certamente constituem referência útil mas não têm caráter vinculante Quem trabalha no setor médico sabe que a prática impõe escolhas que nem sempre estão na média dentre a gama de intervenções possíveis às vezes é preciso se colocar em uma das extremidades dessa gama Além disso como está claramente expresso nas observações dos peritos das partes B e B C é incorreto falar em uma suspensão do remédio pois o efeito da precedente impregnação farmacológica comportava a presença de níveis sanguíneos do remédio mesmo no período de suspensão da administração intramuscular O desconhecimento da história pregressa do paciente é decerto uma falha importante O psiquiatra imputaa ao modo confuso com que se produziu a passagem do encargo de tratamento cuja responsabilidade O Crime Louco 67 poderia ser atribuída à colega que anteriormente tratava de Giovanni As mudanças de terapeutas em um serviço frequentemente acontecem por exigências de caráter organizacional Podem porém traduzir também dificuldades de gestão por parte dos profissionais da saúde nesse caso é preciso que a motivação fique clara para todos os sujeitos envolvidos Por outro lado a relação entre médico e paciente nem sempre é fácil e certamente é preciso tentar novos enfoques Nesse caso parece justificado que depois de duas figuras femininas tenha sido introduzida uma figura masculina como terapeuta O psiquiatra talvez envolvido pelo ritmo frenético do trabalho quotidiano tanto quanto é o de um serviço público de Saúde Mental provavelmente terá adiado o aprofundamento sobre esse caso que não considerava particularmente urgente pensa que bastaria conhecer o diagnóstico ter um conhecimento direto do paciente e saber que este se encontra em uma residência onde deveria vigorar um sistema de proteção Não se deve excluir que nesse caso o psiquiatra se sentisse menos exposto do que em relação a seus pacientes habituais que vê todo dia em um território onde por exemplo a permanência em casa de um paciente em crise é uma eventualidade cheia de riscos É no âmbito da nova clientela que se podem esperar maiores situações de urgência Por outro lado a jornada habitual de um operador da psiquiatria é marcada por escolhas difíceis às vezes sobre a própria prioridade das situações de risco Nesse caso o médico confia em uma organização administrada por uma Cooperativa privada mas inserida no circuito do Departamento de Saúde Mental No entanto como ressalta a sentença do Tribunal constitui regra comum da experiência que em qualquer atividade humana ao crescimento dos riscos deva corresponder a preparação de um sistema de cautelas e precauções apto a exorcizar a verificação de eventos danosos ou perigosos Em resumo o profissional não pode ser isentado do conhecimento e da verificação pontual e direta da O Crime Louco 68 eficácia dos instrumentos que usa a função terapêutica do contexto o conhecimento da história pregressa de seu paciente ainda que compartilhe seu campo de intervenção com outros sujeitos Quando os operadores da residência lhe pedem que dê a Giovanni a notícia da morte de Deanna a pessoa a quem o paciente era mais ligado o médico se subtrai ao dever julga que isso não faça parte de seu dever de psiquiatra julga erradamente que isso não tenha a ver com o âmbito de seu tratamento Não se sente investido dessa responsabilidade na medida em que não conhece Deanna os operadores da residência a seu ver estão mais aptos a enfrentar tal situação Mesmo quando os operadores lhe transmitem como exemplo de ansiedade as fortes preocupações de Giovanni sobre seu depósito bancário sua resposta ainda que se continuasse com as injeções esse problema não estaria resolvido demonstra certo distanciamento do caso que será severamente reprovado pelo Tribunal de Bolonha Essa atitude merece uma reflexão geral até porque constitui uma problemática eventualmente presente nos serviços psiquiátricos existe um afastamento organizacional mas também conceitual entre quem se ocupa dos estados agudos e faz tratamento e quem ao contrário se encarrega dos doentes crônicos e faz reabilitação Essa circunstância pode criar equívocos e tensões Os operadores da residência julgam que o psiquiatra enquanto médico assistente deveria se encarregar também das situações existenciais do paciente o doutor Euro ao contrário parece se ver como um especialista de segundo nível a quem não compete o quotidiano da vida do paciente Os operadores da residência são postos em posição desfavorável se encontram sozinhos na gestão das dificuldades Todavia mesmo a gestão da crise do paciente levanta algumas perplexidades Alguns se perguntaram por que o psiquiatra diante de um paciente que está delirando que se mostra especialmente angustiado com o fantasma da morte que recusa o tratamento não tomou imediatamente a O Crime Louco 69 decisão de internação O comportamento de Giovanni sua recusa seu delírio constituem um claro pedido de ajuda da forma que pode manifestálo um paciente psicótico Decerto não se pode pensar que a injeção de Moditen possa restabelecer em curto prazo a situação precedente nem que uma dose de Clopixol consiga conter angústia tão intensa é preciso uma dosagem farmacológica mais elevada e mais rápida O doutor Euro não deveria se sentir em dificuldades diante de tais circunstâncias até porque situações análogas são comuns no quotidiano dos serviços e sua gestão se impõe quase como rotina Em linha de princípio não se pode sustentar porém como afirmam os peritos que naquelas circunstâncias fosse absolutamente necessário o Tratamento Sanitário Obrigatório Com efeito o paciente declara sua disponibilidade para o tratamento injetável que se realiza pontualmente no dia seguinte fazendo desaparecer as condições de obrigatoriedade do TSO Talvez o doutor Euro se preocupasse exatamente em evitar o mais possível uma intervenção de grande impacto emocional como é a internação compulsória que frequentemente deixa feridas psicológicas profundas no paciente Mas o problema não é o TSO o problema é como responder a uma angústia tão intensa durante aquelas primeiras horas mesmo sem atenção estar condicionado por nenhum pensamento subjacente sobre a periculosidade do paciente Com efeito é preciso poder contar com modalidades de tratamento que tenham a mesma eficácia de contenção do TSO ainda que em um nível terapêutico mais elevado é preciso dispensar uma atenção inteligente respeitosa mas determinada em torno do paciente é preciso que os operadores se joguem pessoalmente com coerência e convicção a partir do psiquiatra que deve dar sua própria disponibilidade de intervenção 24 horas por dia Por outro lado é sabido que o próprio empenho do subordinado que deve seguir as orientações é sempre proporcional ao empenho de quem promove tais orientações O erro do O Crime Louco 70 psiquiatra nesse caso talvez se funde no fato de ter superestimado as possibilidades de contenção na residência e não ter exercitado a função que seu papel exigiria de verificar tais possibilidades Nesse tipo de situação teria sido ainda oportuno buscar a opinião dos colaboradores requerer um parecer aos colegas levar a questão aos dirigentes Esses procedimentos digase incidentalmente também têm um valor instrumental pois protegem o profissional em suas decisões não o deixando só e sobretudo fazem parte das indicações de boa prática em psiquiatria trabalhar tanto quanto possível em equipe O doutor Euro na verdade menciona ao colega de plantão a possibilidade de um TSO temse a impressão porém a partir do comportamento do próprio médico de plantão que a menção ficara abaixo de um verdadeiro sinal de alarme Mas o fator efetivamente decisivo para adotar naquelas circunstâncias as escolhas mais idôneas residiam no conhecimento da história pregressa do paciente no conhecimento das violências praticadas e sofridas Nesse caso Euro sem dúvida teria adotado critérios diversos de avaliação e teria dado à coordenadora e indiretamente a Ateo a possibilidade de agir com prudência Em resumo encontramonos diante de alguns erros clínicos são erros involuntários que fazem parte de acontecimentos não raros da prática médica e que poderiam ter sido evitados se outros mecanismos regulatórios e de controle tivessem funcionado mas infelizmente isso não aconteceu Quero ser claro e direto quem sabe quantas vezes todos nós eu em primeiro lugar cometemos erros semelhantes nos dando conta só depois de um tempo ou até mesmo permanecendo sem consciência deles Toda situação complexa expõe a riscos e lamentavelmente a erros Mas quantas outras vezes ao contrário resolvemos situações similares ou talvez muito mais difíceis arriscandonos pessoalmente e sem que ninguém nos tenha expressado um reconhecimento ainda que mínimo O Crime Louco 71 18 A vítima Lembro de uma noite de verão nas colinas de Ímola O aniversário de uma das duas irmãs G tornarase a ocasião para celebrar em sua bela casa de campo a festa de fim de curso para educadores profissionais do qual ambas tinham participado Naquele dia estavam presentes os estudantes e alguns de nós professores O clima era afetuoso o Sangiovese e a piadina18 facilitavam a comunicação entre nós todos Pusemonos a cantar e a certa altura Ateo ele também um dos frequentadores do curso com sua bela voz entoou Signor Generale de De Gregori Ao invés de todos juntos acompanharem a canção como acontecera até então dessa vez todos escutávamos em silêncio e ao final os aplausos foram significativos Ateo sempre soube se fazer estimado era simples e generoso sempre o primeiro a oferecer ajuda Às vezes porém seu entusiasmo era excessivo envolviase emotivamente de maneira intensa em algumas situações e perdia a paciência Durante o estágio no Osservanza várias vezes externou seu entusiasmo pelo modo com que se realizava a superação do Hospital Psiquiátrico Tornarase frequentador assíduo das iniciativas de desinstitucionalização O trabalho cívico sempre fora uma tradição familiar e Ateo estava orgulhoso de mostrar mais uma vez seu empenho O avô fora um socialista anarquista que dera o nome de Ateo a seu filho mais velho19 Quando Ateo morreu como partigiano na batalha de Purocele sua irmã prometeu a si mesma que daria o mesmo nome a seu filho o que efetivamente aconteceu Ateo tinha o nome do tio o herói o mesmo nome escolhido pelo avô Nosso Ateo começara a trabalhar apaixonadamente com jovens com necessidades especiais Seu sonho era o de poder dirigir uma piscina em que eles pudessem ter alguma atividade motora Mas alguma coisa não funcionou em seu trabalho no setor dos portadores 18 Nota à edição brasileira O Sangiovese é um vinho tinto A piadina é um tipo de focaccia Ambos são produtos típicos da Romagna 19 Nota à edição brasileira O avô socialista anarquista era também anticlerical Daí o nome Ateo que significa ateu O Crime Louco 72 de deficiências físicas Em algumas circunstâncias queria fazer as coisas a seu modo e se colocava contra as recomendações dos pais dos jovens portadores de necessidades especiais Em determinado ponto houve uma denúncia contra ele por maustratos e o responsável pelos serviços sociais requereu seu afastamento porque lesara a imagem da capacidade assistencial dos Serviços Sociais Imolenses A cooperativa social na qual estava inscrito como sócio há um ano o transferira para o setor que cuidava dos pacientes psiquiátricos sem informar aos responsáveis pelo Departamento de Saúde Mental a verdadeira razão de tal decisão Era um fato grave considerando que o novo setor era ainda mais delicado e complexo do que o anterior Os peritos do MP definiriam Ateo como inapto a desempenhar sua atividade com pacientes psiquiátricos por características de temperamento O afastamento do precedente lugar de trabalho deve ter sido vivido por Ateo com grande perturbação parecendome natural que buscasse a todo custo uma oportunidade de resgate Assim quando se tornou responsável pela segurança no interior da residência Albatros Ateo se fez portavoz do descontentamento dos operadores em relação à direção da cooperativa ainda não fora aplicado o contrato nacional as condições econômicas e sindicais dos sócios não eram boas o trabalho era muito pesado Pensara em ir ao programa de televisão Mi manda Rai 3 para denunciar a exploração dos operadores do terceiro setor na Itália tendo inclusive começado a escrever uma carta a Marrazzo20 para que seu pedido fosse acolhido A coordenadora da residência Laura M no entanto criticara várias vezes seu comportamento tendente muito mais a exasperar as contradições do que a resolvêlas Escreveu uma carta aos dirigentes da cooperativa afirmando que ele não estava apto a trabalhar naquele ambiente requereu seu afastamento sob pena de 20 Nota à edição brasileira Marazzo era o apresentador do referido programa de televisão O Crime Louco 73 ela própria se afastar Além disso Ateo estava estressado também por razões familiares separado da mulher tinha que cuidar do filho que lhe fora confiado Embora contando com a ajuda da mãe e das tias era certamente difícil conciliar as obrigações do turno de trabalho com as exigências de educação do filho No entanto sempre se mostrara firme no cumprimento dessa tarefa as professoras da escola do filho se lembram dele como uma pessoa atenta e disponível Quando na Albatros o trato com Giovanni foi se tornando dia a dia mais difícil Ateo pensou que tal situação poderia ser a oportunidade para finalmente mostrar a todos sua capacidade Nessa residência ao contrário de outros contextos não havia enfermeiros Nesse caso os remédios eram autoassumidos pelos moradores o operador se limitava a preparar os remédios conforme as prescrições médicas Na realidade por hábito e praticidade os operadores acabavam por ministrar os remédios mas jamais deveriam forçar a situação Diante de uma recusa do paciente deveriam transmitir a informação para que fosse avaliada pelo médico assistente Em caso de necessidade enfermeiros deveriam intervir Ateo no entanto tinha a impressão de que não havia tal necessidade no caso de Giovanni procurava fazer com que suas preocupações e as dos colegas permanecessem letra morta Por isso decidira enfrentar pessoalmente o problema ligado à administração dos remédios queria estar presente e insistia diante da recusa e dos subterfúgios de Giovanni Como ele mesmo afirmava levantava a voz e procurava aplicar a técnica do olhar intenso e prolongado na direção do paciente a força do pensamento venceria a resistência do outro Giovanni sempre se mostrara pouco receptivo em relação a ele e nos últimos dias falando em dialeto chegara a ameaçálo de morte Ateo falara sobre isso com M sua companheira que ficara muito assustada Mas Ateo não demonstrara temer tal ameaça era campeão de TaeKwon Do era medalha de ouro e certamente não poderia ter medo de um velho Talvez por tal razão não tenha falado das ameaças recebidas na reunião de equipe que tivera lugar naqueles dias continuando O Crime Louco 74 sem hesitações sua guerra particular para vencer as resistências de Giovanni Como só posteriormente seria revelado alguns moradores de uma casa próxima à residência chegaram a ver de sua janela um entrevero entre Giovanni e Ateo durante o qual viram Ateo levantar a mão contra o paciente Quando Ateo anunciou a Giovanni a morte de Deanna a mulher por quem Giovanni se encantara este perguntou se fora ele quem chamara o rabecão Respondeu afirmativamente sem dar importância ao comentário ameaçador de Giovanni nunca mais você poderá fazêlo no futuro Na tarde do dia anterior ao incidente houve o enésimo confronto entre os dois A coordenadora da residência encontrouos no banheiro do andar superior para onde Giovanni provavelmente correra para cuspir os remédios tendo Ateo o seguido Giovanni atira um urinol contra Ateo ameaçandoo de morte tratase de um actingout especialmente carregado de significados negativos Ateo escreve no registro interno Desarmeio facilmente e lhe disse que não tinha medo Permaneci imóvel olhos nos olhos na frente dele e logo depois vendo que cedia tentei trazêlo de volta à realidade levantando a voz e intimandoo a deixar de dizer bobagens Ateo não se mostra alarmado A coordenadora da residência intervém e leva Ateo embora reprovandoo por ter se colocado em atitude de desafio em relação ao paciente Pela primeira vez Ateo concorda que talvez tivesse exagerado À noite depois do trabalho Ateo se abre com uma tia com quem havia deixado o filho dizendo que um paciente ameaçara matálo com uma faca mas acrescentando que não estava com medo Queria simplesmente mostrar o quanto era difícil e duro seu trabalho dizendo no entanto que tinha tudo sob controle Na manhã seguinte quando um colega está para subir ao quarto de Giovanni para levar os remédios interrompeo e diz com seu jeito um tanto irrefletido e generoso que aquela é tarefa sua Sobe as escadas ao encontro da morte Dois dias depois Laura M é chamada pelos dirigentes da cooperativa sendo convidada a rasgar na presença deles a carta O Crime Louco 75 de denúncia que escrevera contra Ateo Laura tem dúvidas mas os responsáveis insistem Ateo dizem infelizmente pagou muito mais do que devia por seu possível erro agora é tempo de dor e há um órfão em quem se deve pensar Laura rasga a carta Confessará esse fato depois em lágrimas ao juiz durante a audiência de 29 de setembro de 2005 a última do processo em que é acusada estando presente exatamente TR a diretora da cooperativa Diante das claras reticências da diretora o juiz determinaria a remessa dos autos ao MP a fim de que fosse avaliada a relevância penal das declarações prestadas por TR De fato a cooperativa tentou se proteger das graves falhas cometidas De todo modo Laura não conseguiria evitar sua própria condenação e os membros da cooperativa não seriam julgados em razão da prescrição Na época das investigações Laura declarara que o confronto entre Ateo e Giovanni na tarde anterior ao fato fora o único mas isso não era verdade os confrontos vinham de muito tempo ainda que não com a mesma gravidade daquele dia Os operadores da residência estavam especialmente desconcertados e amedrontados experimentando raiva e rancor por um fato que questionava a declarada nãopericulosidade dos doentes mentais Não acreditavam que o que haviam escrito em seus registros não tivesse sido transmitido aos médicos do Departamento de Saúde Mental criticavam a falta de informações sobre a história passada de Giovanni sentindose enganados entregues à própria sorte Enquanto isso crescia na cidade uma campanha política e midiática sobre o acontecimento e os operadores eram solicitados a declarar nos jornais seus medos e suas críticas Mas dentre eles está Florence que deixa claro que seria preciso sim dizer toda a verdade falando se inclusive do comportamento equivocado de Ateo Os operadores da Albatros ameaçam Florence deixando claro que contradiriam qualquer declaração sua Algumas semanas depois Florence mandaria uma carta ao Ministério Público denunciando o que presenciara Convocada mencionou inclusive as informações dos vizinhos da casa Depois disso pediria demissão da cooperativa O Crime Louco 76 19 O homicida De Giovanni M têmse poucas e incertas informações Nasce em Faenza em 23031941 primogênito tem duas irmãs Vivendo em Castel Bolognese na Romagna trabalha no campo com o pai A agricultura na região caracterizase por lógicas intensivas sobretudo no setor frutífero O trabalho no campo em geral rende bastante mas é especialmente duro e cansativo O pai Carlo sofre de uma cardiopatia crônica que o acompanhará por toda a vida pesando nos momentos decisivos da vida de Giovanni O pai parece ter uma personalidade forte e autoritária a mãe Renata se mostra sempre muita ansiosa em sua relação com o filho Em época não precisada entre a adolescência e a juventude Giovanni sofre uma tuberculose que o atinge duramente no aparelho ósseo Sofre uma cifoescoliose vendose obrigado a usar um colete ortopédico Podemos facilmente imaginar sua vivência de inferioridade e precariedade e talvez uma experiência subjetiva de deformidade O serviço militar é muito breve presumivelmente Giovanni fora reformado Aos 22 anos sofre um malestar agudo diagnosticado como uma intoxicação de natureza não precisada embora a descrição dos sintomas permita a presunção de ter se tratado de um episódio psiquiátrico talvez uma crise catatônica No mesmo período é condenado por furto pelo Tribunal de Ravenna a sentença será confirmada pelo Tribunal de Apelação Faltam informações a respeito mas a coincidência do período permite presumir uma ligação entre os dois eventos Aos 29 anos dáse o episódio decisivo da vida de Giovanni Atravessando um período de crise existencial consequente a uma desilusão amorosa Giovanni comete uma infração ao código de trânsito ainda que bastante leve violação ao T U21 das normas sobre circulação de veículos art 80 DPR no 393 de 1561959 mas tem uma reação desproporcional diante dos policiais que o notificam da infração Acaba preso por resistência art 337 CP Seu comportamento 21 Nota à edição brasileira TU Testo Unico isto é Texto Único O Crime Louco 77 piora ele perde as estribeiras Em seguida a uma perícia que o considera inimputável por completa enfermidade mental é enviado ao Hospital Psiquiátrico Judiciário de Reggio Emilia estamos em 1970 Durante a internação não quer ver a mãe nem participar de qualquer conversa Quanto mais a mãe se mostra ansiosa insistindo na necessidade de que ele se alimente tanto mais Giovanni recusa a comida Em determinado ponto Giovanni é obrigado a se alimentar com uma sonda Podem se intuir complexas dinâmicas psicológicas na origem de tais comportamentos ainda que faltem dados seguros Certamente a internação no Hospital Psiquiátrico Judiciário é totalmente desproporcional e inadequada No exórdio de um processo psicótico mesmo admitindo que a sintomatologia já tivesse se iniciado anteriormente uma intervenção médica localizada e tempestiva teria produzido uma evolução positiva da situação Mas essa possibilidade não é facilmente encontrável nos anos 70 nem a família dadas as condições econômicas e o nível cultural parece apta a assumir o peso da situação De um mal a internação no Hospital Psiquiátrico Judiciário de Reggio Emilia nasce um mal maior a transferência para Aversa após dois anos de tratamentos inúteis Não se compreende a lógica de tal transferência se não talvez por razões internas das duas instituições A distância reduz os contatos com a terra de origem e com a família Assim que chega a Aversa é agredido por um interno sofrendo uma ferida perfurocontusa Giovanni continua a recusar a comida sintoma de negativismo típico da esquizofrenia ou também uma oposição à internação Com frequência é contido amarrado conforme os normais procedimentos dos manicômios quando é submetido a terapias injetáveis sempre se opõe com raiva Nessa mesma época registra uma cardiopatia mitral talvez por razões familiares talvez como consequência dos tratamentos farmacológicos a que era submetido Após mais dois anos é transferido por competência territorial para o Hospital Psiquiátrico de Ímola Em Ímola é visitado pela irmã Federica com quem é acordada a liberação condicionada no entanto à assinatura de responsabilização por parte do pai No O Crime Louco 78 último momento a liberação é adiada devido a uma superveniente doença do pai verdadeira uma desculpa Os longos períodos de internação em geral tornam mais difíceis as liberações dos pacientes psiquiátricos na medida em que com o tempo novos equilíbrios se constroem no âmbito familiar Giovanni vive muito mal esse adiamento demonstrandoo com a piora de suas condições psíquicas Um dia tenta a fuga mas é facilmente alcançado na estação ferroviária De seu prontuário percebese a presença de sintomas extrapiramidais presumivelmente devido a uma dosagem excessiva de psicofármacos São situações de malestar difuso às vezes extremamente angustiantes que acabam por determinar uma atitude de suspeita e recusa em relação aos remédios Registrase além disso uma reagravação pulmonar do processo tuberculoso Transferido para a enfermaria 9 seu comportamento psíquico sofre notável piora É descrita uma tentativa de estrangulamento do médico da enfermaria falase em uma agressão aleivosa mas falta uma descrição dos fatos que torne compreensível a dinâmica do evento A este ato violento seguese outro pouco depois contra um interno Nesse período Giovanni tem febres altas e mostra visível emagrecimento Em seguida de determinado momento em diante conforme a lógica das anotações nos prontuários que documentam somente a violência os sintomas de doenças psíquicas ou físicas e qualquer bizarrice registrase que o paciente se alimenta quase exclusivamente de bifes e cappelletti22 A nota parece querer ressaltar um comportamento esquisito maneiroso mas que talvez na realidade correspondesse a uma necessidade nutricional e psicológica23 de Giovanni a ser justamente satisfeita Um dia Giovanni é transferido para outra enfermaria essa dirigida pelo doutor Giorgio A tratase de uma enfermaria aberta O doutor A coerentemente com suas 22 Nota à edição brasileira Cappelletti é uma massa com recheio de carne em forma de chapéu cappello típica da cozinha emiliana 23 Nota à edição brasileira Aqueles únicos alimentos aceitos por Giovanni são tradicionalmente servidos em dias de festa ou para doentes convalescentes necessitados de recuperar forças O Crime Louco 79 próprias convicções rejeita a violência manicomial assim rejeitando corajosa e solitariamente naqueles anos qualquer contenção dos pacientes e qualquer trancamento das portas da enfermaria A melhora de Giovanni naquele contexto aberto é rápida e evidente Seu comportamento se modifica positivamente Inicialmente vai ao parque do hospital sozinho e depois furtivamente mas com a implícita aprovação dos médicos assistentes sai do hospital até que recebe autorização para ir autonomamente à cidade para fazer compras Em julho de 1978 é liberado Nessa época o pai já havia morrido e em casa permanecia somente a mãe Mas as coisas logo vão mal É especialmente nas relações com os vizinhos que surgem os conflitos mais difíceis certamente Giovanni não tem uma boa fama embora também se comprometa o relacionamento com a irmã Federica Chegase dramaticamente a nova internação no Hospital Psiquiátrico É um período de grande tensão talvez porque Giovanni viva com profunda frustração a falência da liberação tão longamente cobiçada Luta contra as injeções mostrase agressivo Parece gravemente dissociado não tem consciência do estado de doença empreende uma tentativa de agressão contra um enfermeiro Entre outubro de 79 e março de 81 em obediência à nova lei da reforma psiquiátrica é transferido para uma enfermaria hospitalar Villa dei Fiori Mesmo nesse contexto assume um comportamento negativo Recusase a ir ao banheiro e joga as próprias fezes pela janela da enfermaria O gesto aparentemente um sintoma de descompensação psicótica desaparece quando Giovanni é colocado em um quarto que tem anexo um banheiro próprio talvez fosse um modo de responder a temores fóbicos e a temores de contaminação e transmissão de doenças alguns povos primitivos se recusam a misturar as próprias fezes com a de estranhos Naqueles dias viviase um momento de transição institucional estava para acabar a prorrogação das internações consentida pela lei 180 e era preciso estabelecer quem deveria reingressar no regime do velho manicômio e quem ao contrário não deveria mais voltar para lá Giovanni é destinado a O Crime Louco 80 retornar definitivamente para o manicômio Volta para a enfermaria 9 onde como documentado no prontuário frequentemente é trancado no quartinho de contenção especialmente quando há escassez de pessoal da enfermagem24 É experimentada uma terapia long acting que no entanto acaba sendo interrompida pelos efeitos extrapiramidais negativos Transferido em 1984 para nova enfermaria a enfermaria 5 melhora sensivelmente vai sozinho ao parque está tranquilo e disciplinado Retoma a terapia long acting que dessa vez tolera e continua sem posteriores interrupções Sai sozinho inclusive para a cidade Em 1987 muda a direção do Hospital Psiquiátrico e progressivamente se iniciam relevantes mudanças estruturais Giovanni trabalha no bar do Centro Social do hospital onde faz a limpeza é sociável e bemhumorado Guarda o dinheiro que alguns enfermeiros lhe dão por pequenos serviços abre sozinho uma conta corrente em um banco de Ímola Sai de férias com outros internos e enfermeiros em uma temporada nas montanhas também nessa ocasião mostrase comunicativo e autossuficiente O médico da enfermaria fala de uma possível liberação Participa com entusiasmo e grande empenho nos laboratórios para a preparação das festas e das atividades voltadas para a sociedade Todas as tardes vai sozinho para a cidade mostrase até mesmo irônico e brincalhão Melhoram os exames de laboratório para a TBC e para a cardiopatia embora subsistam tremores e rigidez de impregnação farmacológica É reduzida a dosagem de flufenazina mas depois retomase a posologia anterior Em 301295 Giovanni é definitivamente liberado do Hospital Psiquiátrico com diagnóstico de Síndrome residual de psicose esquizofrênica e vai viver na residência Albatros situada no centro da cidade de Ímola e administrada por uma cooperativa Como os demais moradores da residência Giovanni escolhe seu próprio 24 Nota à edição brasileira As palavras em itálico reproduzem literalmente o que consta do prontuário clinico de Giovanni O Crime Louco 81 médico clínico alguém de sua confiança No que se refere à terapia psiquiátrica inscrito no processo reabilitador de que participa como exinterno terá de se dirigir aos psiquiatras do Centro de Saúde Mental de Ímola A psiquiatra que o segue pede a uma colega que se encarregue dele na medida em que Giovanni demonstrara não aceitar facilmente a relação com ela É uma decisão legítima tomada com a intenção de melhorar a relação terapêutica Na residência Giovanni realiza algumas tarefas põe a mesa leva os sacos de lixo para as caixas coletoras É bastante autônomo em sua vida na cidade vai regulamente aos melhores cafés vai com frequência à sociedade da bocha local de reunião muito frequentado vai com frequência à Baracchina no Parque das Águas Minerais agradável local no interior do autódromo Leva em suma uma vida semelhante à dos tantos aposentados da cidade No interior da residência tem um comportamento de cumplicidade com os operadores com frequência convidaos a jogar cartas e a conversar Mas com as operadoras é um tanto invasivo com avanços de caráter sexual É deselegante desajeitado vêse que não entende da coisa Mais de uma vez é preciso chamar sua atenção São poucas as pessoas que se sentem à vontade com Giovanni Em geral os operadores devem controlar sua própria contratransferência Dir seá que tudo isso é uma patomimia da doença a inafetividade o narcisismo do esquizofrênico e que o erro de fundo dos operadores estaria baseado exatamente no desconhecimento de tal patologia Mas podese pensar também que o próprio peso atribuído ao diagnóstico tenha tornado secundário o esforço voltado para tornar Giovanni consciente de seus próprios limites de caráter A relação de Giovanni com a comida continua problemática Giovanni é exigente e sobretudo desconfiado Quer alimentos embalados quer assistir à preparação dos pratos e ser servido separado dos outros moradores Para atender suas exigências élhe consentido o acesso à cozinha e a preparação dos próprios pratos com isso mostrarseá por longo tempo mais tranquilo e confiante Segundo os peritos do MP no O Crime Louco 82 entanto apenas se ofereceu a um paranóico a possibilidade de se apropriar de facas Outro tema de constante confronto diz respeito à ingestão oral dos remédios objeto de contínuas discussões A controvérsia é a evidenciação de uma crise de relacionamento com os profissionais assistentes dado o alto valor simbólico ínsito na compliance ao tratamento Giovanni acha que os remédios lhe fazem mal e na verdade mostra certa rigidez na mímica certa disforia subjetiva provável consequência de uma intoxicação crônica por psicofármacos ou de um excesso em sua dosagem Em relação aos demais moradores da Albatros Giovanni às vezes mostrase arrogante demonstrando particular aversão por alguns deles que em seu aspecto físico alterado trazem a evidência dos sinais da doença Chega a parecer que recusando qualquer contato contaminador com os pacientes mais claramente estigmatizáveis queira demarcar seu estranhamento em relação ao mundo da doença E todavia pela primeira vez em sua vida instaura uma relação de amizade profunda com uma mulher com Deanna uma moradora extremamente dócil gravemente cardiopata Ele e Deanna passeiam juntos na cidade de mãos dadas isolamse na varanda trocam palavras afetuosas Após uma reorganização da equipe do Serviço de Saúde Mental em outubro de 99 Euro P substitui como médico psiquiatra a colega que estava seguindo Giovanni Depois de alguns meses o novo psiquiatra julga oportuno reduzir a dosagem farmacológica de Giovanni Naquele período a residência atravessa um momento especialmente difícil um paciente está em crise e deixa todos os operadores e moradores um tanto tensos P lêse no livro de registros ameaçou Giovanni com um punho fechado repetidas vezes Por essa razão Giovanni se apropria furtivamente de uma faca de cozinha Os operadores se dão conta e lhe tomam a faca Giovanni responde conscientemente que a usaria como arma de defesa se P o agredisse Aos olhos dos peritos esse episódio assumirá o valor de um gesto patonômico de doença e consequente periculosidade Sem dúvida o gesto é inquietante mas seria O Crime Louco 83 preciso considerar também seu valor dissuasório em relação a P naquele período é P que suscita muito medo entre os moradores da residência Há ainda um acontecimento que assumirá a posteriori uma interpretação negativa por parte dos peritos a suspeição delirante de Giovanni em relação à quantia que depositara no banco Nos primeiros anos após o fechamento do hospital psiquiátrico a direção do DSM conseguiu que o orçamento anteriormente usado para pagar as despesas de internação no hospital psiquiátrico fosse inteiramente mantido para pagar as despesas de ressocialização fora do hospital Passados alguns anos porém a direção da Empresa Sanitária Local por exigências orçamentárias impõe aos liberados do hospital psiquiátrico uma coparticipação nas despesas de gestão das estruturas locais A direção do DSM protesta energicamente defendendo a tese de um justo ressarcimento em relação aos ex internos do manicômio Mas todo o esforço mostrase inútil Por outro lado são poucos os familiares que protestam enquanto os curadores dos pacientes que em sua maior parte são representados pela única figura do Prefeito de Ímola nada objetam ao dispositivo Por essa razão Giovanni também é obrigado a pagar uma quota mensal por sua permanência na residência a soma é diretamente descontada de sua conta bancária Quando é acompanhado pelos operadores da residência ao Escritório de Gestão Monetária junto ao DSM onde se tratam das operações financeiras que dizem respeito aos moradores da residência e lhe são dadas as explicações Giovanni demonstra todo seu desapontamento Quando por isso Giovanni repetidamente afirma levaram meu dinheiro e querem que eu pague expressa ainda que de modo delirante um indiscutível dado de realidade Tendo em conta sua personalidade suspeitosa e anal segundo a terminologia psicanalítica o efeito desse desconto do dinheiro não poderia ser outro senão uma descompensação traz de volta o peso de uma realidade institucional que continua a subtrairlhe tudo a liberdade a vida o dinheiro Mas ainda mais grave é o sucederse de três eventos fúnebres O Crime Louco 84 todos por razões naturais em um breve arco de tempo dois deles nos últimos dias Dentre as mortes está a de Deanna A dor profunda é acompanhada por um sentimento de depressão mas também pelo medo e temor pela própria saúde Aqui querem nos matar a todos mataram minhas mulheres mataram Deanna Conforme a coordenadora Ele me acusou delirando de têla matado Giovanni manifesta em um crescendo dramático claros sintomas de piora Não aceita nenhum tipo de diálogo olha continuamente em volta observando tudo e todos Diante de suas ameaças os operadores se mostram em dificuldades o embaraço deles acaba por confirmar os temores de Giovanni Mas seus temores persecutórios se materializam em toda sua pregnância no comportamento de Ateo que a seus olhos se torna um verdadeiro inimigo O mesmo Ateo vale ressaltar com quem sempre teve uma relação conflituosa O desentendimento agora se torna uma espécie de desafio Giovanni diz claramente que se não o deixar em paz matáloá Chega a especificar que o matará com uma faca Grita na sua cara que quer viver Giovanni se sente só encurralado sem saída sente que seu jogo com a morte chegou ao fim e a morte chega dramaticamente Depois daquele dia qualquer contato com a realidade se interrompe Giovanni é totalmente incapaz de entender e querer não é mais uma pessoa agora é um estereótipo é um louco perigoso é o monstro que agita nossas angústias Por telefone sua irmã Federica grita Não quero nada com ele Encerramos qualquer relação há muitos anos É fotografado tem pernas e braços amarrados à cama é despachado para o Hospital Psiquiátrico de Montelupo Fiorentino é vigiado Na entrevista com os peritos Giovanni se mostra tomado por delírios e medos privado da responsabilidade por seus gestos é privado do decorrer do tempo Diz já estou morto Mais do que um delírio essas palavras parecem uma reflexão sobre o trágico destino que o persegue e que chegou a seu ato final Rivière se julgava morto e não queria ter qualquer cuidado com seu corpo acrescentava que desejava que lhe cortassem o pescoço o que não lhe causaria O Crime Louco 85 nenhum mal pois já estava morto Aconteceu aquilo que Giovanni sempre tentara negar a si próprio e contra o que lutara grande parte de sua vida ser um louco perigoso que deveria ser internado em um manicômio judiciário A profecia se realiza a derrota é irremediável agora ele está no buraco negro do HPJ Giovanni sempre lutou contra um paipatrão lutou contra o próprio pai que também era o dono do terreno agrícola em que trabalhava contra o pai que o deixou ficar no hospital psiquiátrico quando poderia ter sido liberado lutou contra os tribunais que o condenaram contra o agente que lhe notificara pelas infrações lutou contra os psiquiatras que lhe provocaram angustiantes crises disléticas lutou contra o educador profissional que queria demonstrar ser mais forte do que ele Lutou e continuará a lutar de cabeça baixa até à morte para não tomar consciência de que todos seus esforços foram inúteis e que os outros é que tinham razão Qualquer consideração sobre a importância decisiva de dosagens farmacológicas que pudessem ter evitado o homicídio encontra a prova que a esvazia nos dias e meses sucessivos a terapia retomada não tem a mínima incidência sobre as condições psíquicas do sujeito Não obstante submetido a tratamento long acting manifesta notável agressividade e escasso controle da impulsividade Em 8 de fevereiro de 2003 o paciente é transferido para o HPJ de Nápoles onde permanece internado até 4 de abril de 2003 Mas os comportamentos agressivos não mudam nem mesmo após a sucessiva transferência para a homóloga estrutura de Reggio Emilia Aqui a agressividade do paciente não permite que os profissionais da saúde nem mesmo se aproximem para retirarlhe sangue para exames Durante todo o período de sua detenção nos três Hospitais Psiquiátricos Judiciários o paciente é submetido a uma terapia farmacológica maciça e constante mas sem êxito Quando os episódios de agressividade se atenuam isto parece depender de mudanças ambientais e de relacionamentos muito mais do que do aumento de remédios Paradoxalmente a retomada terapia só incide O Crime Louco 86 e negativamente sobre suas condições físicas aquelas condições que Giovanni sentia estarem ameaçadas pelos remédios e que o psiquiatra assistente de alguma maneira preocuparase em defender Em 23 de setembro de 2003 Giovanni morre no HPJ de Reggio Emilia por choque hemorrágico provocado por significativa hemorragia digestiva derivada da fistulização de um vaso mediastínico de volumoso divertículo paraesofágico Também dessa vez é o escapamento de sangue que leva embora uma vida Mas dessa vez o sangue brota dentro invade e comprime os órgãos entope a traquéia Infinitos átimos de angústia átimos de puro terror Giovanni M morre aos 62 anos morre em um manicômio judiciário no lugar para onde jamais deveria ter ido nem 30 anos antes quando a lei 180 ainda não existia nem depois do homicídio em 2000 22 anos depois da promulgação daquela lei 110 Um artigo na imprensa De SABATO SERA revista semanal Ano XXXIX Nº 26 24 de junho de 2000 Sede Viale Zappi 58 Ímola Ausências e presenças Intervenção de Ernesto Venturini responsável pela Saúde Mental Esse ano transcorre o décimo aniversário da primeira residência surgida da superação do Hospital Psiquiátrico de Ímola Cà del Vento nascida de um pacto de solidariedade estipulado com grande intensidade e emoção entre os operadores do Sistema Sanitário os pacientes e os habitantes dessa cidade Experiência emblemática e original correspondente ao recíproco reconhecimento de um papel ativo desenvolvido na definição e na defesa da saúde A partir daquele momento outras importantes passagens de grande O Crime Louco 87 intensidade simbólica como a festa do Sal e das Árvores25 cumpriramse em um longo caminho que atravessou a cidade procurando corresponder às necessidades de saúde mas também às concernentes à contratualidade social dos portadores de desconfortos psíquicos No início desse ano diante de condições sociais alteradas diante de uma atitude às vezes ausente e distraída da comunidade indagamonos sobre como criar novas ocasiões que favorecessem a renovação daquele pacto De um ponto de vista institucional os Planos locais de Saúde previstos pelo Plano Sanitário Regional pareciam favorecer essa possibilidade Botamos em campo algumas iniciativas esperando atingir o quanto antes um momento forte um debate público sobre a Promoção da Saúde Mental que pudesse envolver o máximo de sujeitos possíveis As circunstâncias alteraram esse percurso Após o trágico evento de 24 de maio nada mais parece ser como antes Iniciouse um debate diverso daquele originariamente previsto conduzido principalmente pelos mass media feito de acusações de retaliações de tensões onde se notam vez por outra algumas presenças e algumas ausências Infelizmente CA está ausente As palavras diante dessa ausência real irrecuperável perdem qualquer significado parecem inidôneas Podese apenas balbuciar as próprias perdas e dores A consciência extraída da análise dos fatos de se estar diante de um acontecimento imprevisível não atenua um sentimento de malestar e desconforto Marteladoras perguntas 25 Nota à edição brasileira No dia do fechamento definitivo do Hospital Psiquiátrico de Ímola os exinternos e os moradores da cidade jogaram sal nas velhas enfermarias para que o sal jogado na terra impedisse qualquer crescimento de novos cultivos Ao mesmo tempo plantaram novas árvores em cada residência substitutiva do manicômio como símbolo de uma nova vida O Crime Louco 88 acompanham todos os nossos momentos era possível fazer algo mais O que faltou Procurar substituir uma ausência com uma presença é um sentimento natural imediato Poderseia pensar então em se instituir uma bolsa de estudos um prêmio para os operadores do setor sóciosanitário que levasse o nome de CA que o recordasse que mantivesse viva sua memória Mas também está ausente outra voz a que alguém já definiu como a voz do delinquente a de MG o autor da facada o louco furioso Um destino iníquo reapareceu zombeteiramente exatamente quando parecia derrotado para sempreFomos incapazes de ajudar MG Seu refúgio na psicose evidencia nossa impotência e golpeia nossa presunção pensamos que a reabilitação posta em prática tivesse dado conta das feridas do manicômio Mas para alguns aquelas feridas são demasiado profundas são insanáveis Se Primo Levi26 ele tão privilegiado amparado pelos afetos e pela cultura não pôde em última análise suportar a ferida do holocausto é de se concluir que um grande desespero pode manter suas tramas mesmo depois do fechamento do manicômio Mas não se pode jogar sobre GM toda a responsabilidade do gesto GM não pode se tornar o fácil bode expiatório de tudo Por essa razão penso dever me colocar a seu lado em fazer minhas as suas razões em compartilhar com ele a condenação da parte dos outros Meu dever de médico é o de estar ao lado do paciente até o fim sem distinções e como dizia Basaglia sentir na própria pele o desprezo que em geral acompanha os gestos dos loucos Com efeito nesses dias estão ausentes exatamente as suas 26 Nota à edição brasileira Primo Levi foi um conhecido escritor judeu sobreivente de Auschwitz autor de um dos mais belos livros sobre o holocausto Se questo è un uomo que muitos anos depois da guerra em 1987 suicidouse O Crime Louco 89 vozes as vozes dos pacientes convidados a não se fazer ver recolhidos em suas instituições estranhos naquelas ruas e naquelas praças que acreditavam ter o direito de frequentar Alguns serão transferidos de uma estrutura para outra apenas em nome de sua história não de suas necessidades ou seus direitos Nas residências surgidas do fechamento do hospital psiquiátrico vigora a insegurança Quem sabe quanto tempo levará para se recuperar a naturalidade que acompanhou sua existência nesses últimos anos Quão distante está o tempo em que os pais dos jovens estudantes reivindicavam com energia que os professores fizessem seus filhos participar da realização comum entre expacientes e estudantes de algumas representações teatrais Está ausente nesse debate o otimismo aquele sentimento de profunda alegria que experimentamos no dia do Sal e das Árvores aquele sentirmonos protagonistas de um processo coletivo de restituição de direitos aquele perceber nos fatos a concretude da mudança Aliás também está ausente a memória do manicômio Esquecemonos mas talvez alguém jamais os tenha visto daqueles enormes dormitórios os gritos o cheiro de urina os quartos de isolamento aquela prisão que a todos acomunava pacientes e operadores e que com grande abnegação e competência muitos operadores tentaram durante tantos anos atenuar ou derrotar Hoje falase de qualidade de vida de resultados e fingese não lembrar qual foi o ponto de partida desse processo e foi há tão pouco tempo Por outro lado está presente o medo a raiva está presente uma espécie de delírio simétrico ao de GM que nos faz inimigos uns dos outros em busca de bodes expiatórios que possam aplacar nossa incerteza Está presente nesse debate a velha psiquiatria e suas categorias de imprevisibilidade e impossibilidade de recuperação Com efeito fixar a atenção nas residências foi O Crime Louco 90 algo totalmente instrumental o acontecimento se identifica até certo ponto com o risco da liberdade do paciente liberado dizendo respeito a situações onde tal risco não é previsto Diz respeito por exemplo ao mundo dos sãos dá calafrios constatar nesses dias quantas coisas tidas como raptus que acontecem na vida de tantas famílias sãs mas diz respeito ainda aos lugares de custódia onde vigora a violência nos velhos manicômios por exemplo mas também nos atuais Serviços de Diagnóstico e Tratamento O paciente psiquiátrico não é violento mas a situação psiquiátrica sim Há lugares de marginalização de grande sofrimento a situação psiquiátrica o cárcere o mundo dos tóxicodependentes etc para onde se canalizam todas as contradições sociais as necessidades psicológicas não resolvidas tudo aquilo que perturba a imagem de certa ordem e certa limpezasituações explosivas e violentas A periculosidade não é um fator individual é uma consequência da situação global em cujo interior a experiência individual se declina A situação psiquiátrica contém portanto o risco da violência mas a resposta não pode ser violenta deve desatar o nó das contradições e reconduzir a situação às suas possibilidades de cura Por que eu quis falar disso Para ressaltar o valor de uma profissão a psiquiatria onde os operadores dia a dia destrincham situações difíceis e complexas não muito diferentes às vezes da que hoje mobiliza nossa atenção fazendoo com grande profissionalismo e dedicação Falo dos psiquiatras dos enfermeiros dos assistentes sociais dos educadores profissionais do pessoal de serviço de todos aqueles que trabalham no Departamento de Saúde Mental de Ímola Falo de um serviço não autorreferenciado preocupado em se dotar de instrumentos de garantia de qualidade voltado para uma medicina baseada em evidências um serviço integrado O Crime Louco 91 a outros serviços da Empresa e que procura contribuir para o alcance de seus objetivos sanitários Um serviço imperfeito é certo como organização e instituição ainda que alguns talvez vejam demasiados argueiros em nossos olhos e não vejam as traves nos seus mas aberto a mudanças Mas então onde está a origem do malestar dos operadores das cooperativas que se mostra tão presente e difuso Antes de tudo seria preciso limpar o terreno de uma espécie de representação das residências como uma terra de ninguém abandonada à própria sorte Houve momentos de formação de supervisão houve um grande trabalho com os moradores e a comunidade exterior estudos sob o impacto social sobre a qualidade de vida nas residências há uma organização que prevê um sistema articulado de comunicação o operador pode expressar suas dúvidas ao coordenador da estrutura falar com a assistente social com o psiquiatra comunitário há as reuniões semanais do staff e das equipes e outras quinzenais e mensais Ainda que os operadores denunciem um malestar devem ser atentamente ouvidos Representam o ponto mais frágil da organização o que está submetido ao peso maior das contradições sociais e econômicas mas expressam reivindicações reais Portanto algo faltou Certamente não a atenção clínica nem o sistema de regras ou protocolos tudo formalmente presente Talvez o que tenha faltado tenha sido o grupo e com isso não quero dizer o trabalho de equipe sem dúvida necessário quero dizer o cimento ideal que dá sentido e motivação ao agir de um grupo que dá sentido de pertencimento que faz com que não nos sintamos sós Aquela idéia que agrega pacientes e operadores em um projeto de liberdade e direitos Quando esse sentimento permeia em um grupo os erros de distorção comunicativa diminuem é mais fácil tratar do outro suas razões estão mais próximas as paranóias e delírios ínsitos O Crime Louco 92 em qualquer relação atenuamse A psicose é forte demais para que possa ser enfrentada individualmente Quando não há estabilidade na equipe quando não há memória histórica dos acontecimentos o grupo está ausente Quem deveria ter providenciado essa idéia Certamente não alguém individualmente essa idéia é um processo complexo gerado por várias situações e várias pessoas gerado dentro de um campo social Essa idéia nasce da relação com a cidade da maneira com que a cidade olha para esses lugares reconhecendoos como parte de si Creio por exemplo que o modelo Cà del Vento tenha uma força intrínseca relevante que ajude a evitar recuos ou inércias Por que então não se reproduziu em outras circunstâncias Simplesmente porque não se encontram outros cidadãos dispostos como em Cà del Vento a compartilhar em fatos e palavras as razões dos mais fracos Dissemos tantas vezes que a solução das residências para superação do hospital psiquiátrico é análoga a diversas experiências européias Mas é verdade que o processo em Ímola se realizou com uma especificidade o envolvimento ativo da população e das cooperativas sociais de iniciativa privada Como teria sido possível operar uma transformação sem que se tivesse em conta os extraordinários recursos presentes no tecido social dessa cidade A riqueza da realidade imolense e vale ressaltar também sua riqueza econômica tem como ponto de referência exatamente seu capital social As residências de que estamos falando nascem da cultura da solidariedade dos valores de confiança e reciprocidade E pensando bem o que hoje é criticado não é exatamente o peso atribuído a esses valores no processo de superação do hospital psiquiátrico Não seriam esses valores o que se pretende deixar de lado como anacrônicos e fantasiosos Escuto com atenção as várias razões e creio ter muito a O Crime Louco 93 aprender embora não me pareça que a idéia de criar uma casa para quem foi liberado do hospital psiquiátrico seja intrinsecamente equivocada Não me parece que se deva envergonhar do que foi construído nesses anos nem que haja uma culpa a esconder nesses dias Pessoalmente sintome orgulhoso por ter participado junto a tantas outras pessoas do nascimento da Cà del Vento da Pascola da Casa Basaglia da Cà del Picchio de Samarcanda de Albatros dos grupos de Apartamentos situados em Ímola do Autogestito e do Lolliput sinto me lisonjeado por ter contribuído para o nascimento da Cà del Faro de Primo Vanni de Macondo do Hotel Selice de Leandra de Forniolo e da Casa Sintoni Os resultados desse trabalho coletivo podem ser lidos por todos foram documentados por trabalhos científicos publicados em revistas nacionais e internacionais A própria leitura dos projetos reabilitadores operados pelo pessoal das cooperativas nas residências testemunha um elevado grau de sucesso Tenho grande reconhecimento por quem favoreceu esse processo a AUSL a Região mas sobretudo os operadores a população os familiares os usuários Agradeço às pessoas que nesses anos puderam conhecer e apreciarpessoas como Ateo e Edoarda cuja carta continua a me ajudar nos momentos difíceis e amargos Castrocaro 27 de setembro de 1997 Sempre nos chamaram de loucos mas sofremos durante nossa existência e agora estamos velhos e queremos lhes dizer que somos normais Trabalhamos em nossa casa e a conta não vai para as casas de vocês Viemos para cá e depois de ter estado em Ímola sentimonos em férias Alguém confiou em nós e nos deu essa casa e nós cremos naqueles que confiam em nós Quando saímos não nos sentimos odiados sentimos a curiosidade das pessoas O Crime Louco 94 que nos olham mas isso não nos incomoda e deveria ser assim também para os outros Passamos os dias como se estivéssemos em nossa casa pela manhã fazemos os trabalhos de casa vamos às compras compramos pão frutas e assim aprendemos para quando estivermos sós Vamos dormir quando queremos comemos o que nos apraz como nas casas de todas as outras pessoas De manhã à noite nos divertimos com alguma coisa em harmonia desde a primeira hora quando acordamos até à última hora quando vamos dormir Tudo isso nos faz sentir em uma casa e nos faz felizes a felicidade para nós é poder aproveitar as coisas que nos faltavam no manicômio Edoarda L moradora da Cà del Faro O Crime Louco 95 2 As perícias Relato a seguir as perícias oficiais promovidas pelo Ministério Público e pelo GIP do Tribunal Penal e Civil de Bolonha Exponho integralmente os quesitos e as conclusões das quatro perícias mas em relação ao restante de seu conteúdo reproduzo apenas algumas frases Tenho consciência dos limites ínsitos em qualquer extrapolação peço desculpas mas ressalto o esforço exercido para aderir o quanto possível ao sentido literal do texto Por outro lado não pretendo contestar a correção profissional do trabalho desenvolvido pelos colegas Proponhome simplesmente partindo do material produzido desenvolver uma leitura diversa da operada pelos peritos que influiu decisivamente nas sentenças dos juízes Simplesmente utilizei uma chave de leitura da doença mental diversa da deles 21 Perícia do consultor técnico do MP sobre a imputabili dade e periculosidade social de M G Em 2452000 eu abaixoassinado Dr AR fui convocado pelo Dr SO Procurador da República Substituto de Bolonha ao Escritório do Comissariado de Polícia Estadual de Ímola na qualidade de consultor técnico do MP a fim de realizar avaliações psiquiátricas em relação à consumação do homicídio de CA ocorrido naquela mesma manhã na Comunidade Albatros onde a vítima desenvolvia a função de educador por parte de MG um dos moradores da estrutura Após ter sido informado dos fatos e participar juntamente com o MP de uma primeira vistoria na mencionada Comunidade foime formalizado o seguinte encargo queira responder o consultor se MG era no momento do fato capaz de entender eou querer ou se por defeito O Crime Louco 96 mental sua capacidade deva ser tida como excluída ou diminuída e em que medida queira responder se MG deva ser atualmente considerado socialmente perigoso queira referir o que mais for útil para os fins de justiça O MP recomendou ainda que os quesitos relativos à imputabilidade e à periculosidade social fossem prontamente respondidos ainda que parcialmente São as seguintes as conclusões da perícia Com base no quanto acima exposto e discutido julgo poder confirmar as respostas preliminares aos quesitos que me foram formulados nos seguintes termos à época dos fatos MG incorria por doença mental esquizofrenia crônica em fase de reagravação em condições de total exclusão da capacidade de entender e querer o sujeito apresenta elevada periculosidade social em razão da mencionada enfermidade Bolonha 19 de agosto de 2000 O perito do Procurador da República Substituto de Bolonha chamado a se expressar sobre as condições psíquicas de Giovanni M não tem dificuldade em declarar a total incapacidade de entender e querer do sujeito e sua periculosidade social Na formulação de seu juízo tem peso relevante a documentação produzida que no caso específico consiste na leitura dos prontuários e nos diagnósticos Os prontuários se referem às internações nos HPJ de Reggio Emilia e de Aversa e às internações sucessivas nos institutos psiquiátricos de Ímola Quem tem experiência no setor sabe quão escassa é a credibilidade científica dos prontuários escritos em hospitais psiquiátricos Após a fase inicial da internação durante a qual são obsessivamente O Crime Louco 97 descritos os parâmetros biológicos as dosagens farmacológicas e os comportamentos do paciente passase progressivamente a uma quase total carência de anotações Serão descritos apenas os eventos negativos as doenças físicas os momentos particularmente críticos É evidente que tal representação clínica pode incidir negativamente sobre o perfil do paciente servindo para justificar o aparelho de controle existente27 O prontuário serve para confirmar o diagnóstico e o diagnóstico psiquiátrico frequentemente precede qualquer observação Muitos psiquiatras acabam por confiar demais em sua intuição e naturalmente também em sua experiência e só a posteriori buscam as provas de sua hipótese Bem examinando também as perícias muitas vezes se orientam pela busca de confirmações daquilo que desde o início das operações periciais já estava predeterminado28 Com efeito escreve o perito antecipando desde logo que os juízos expressos à época serão integralmente confirmados É de todo modo especialmente sintomático um lapsus que se percebe na escrita os velhos prontuários sugerem um homem já imerso na dimensão psicótica Esse já não estaria a sublinhar de modo capcioso uma dimensão de irrecuperabilidade E quando o paciente recusa a terapia é aplicado um silogismo que precisaria ser demonstrado quer dizer que não tem consciência da doença Naturalmente não tem qualquer significado aos olhos do perito o 27 Gostaria de observar que o mau hábito de não transcrever nos diários médicos os acontecimentos positivos do paciente a autonomia o cuidado consigo os relacionamentos perdura até hoje Tal hábito pode ser imputado a processos psicológicos que tendem a registrar mais facilmente em nossa memória os dados negativos e não os positivos mas também expressa o temor do médico de ser denunciado por omissão de atos de ofício não registrar uma doença física pode ser avaliado como uma omissão grave enquanto não registrar uma melhora de relacionamento pode ser considerado apenas um leve esquecimento 28 Franco Basaglia denuncia a tendência a isolar os fenômenos como se esses não nascessem e não se apresentassem em uma rede de relações e nexos recíprocos para encarálos divididos separados do tecido de que constituem um dos elementos de modo a fazêlos assumir um caráter absoluto natural Psichiatria e Giustizia in La pratica della follia Ed Critica delle Istituzioni Venezia 1974 O Crime Louco 98 fato de o paciente aceitar os remédios que servem para equilibrar os efeitos colaterais dos antipsicóticos Com efeito o paciente não recusa genericamente a terapia farmacológica recusa sim os remédios que no passado tinhamlhe provocado grave mal estar Quando surgem atos de violência mas no clima repressivo de um HPJ é fácil deparar com tais eventos então significa que o paciente é extremamente perigoso no sentido psiquiátrico E mesmo Giovanni M estando bem por um longo período por quase 20 anos o perito logo se põe em guarda tratase de um simples arrefecimento do quadro psicopatológico Faz questão o perito de corrigir qualquer falaz ilusão revelandonos os truques da doença em relação a 1988 é descrito até mesmo como tranquilo e disposto ao diálogo sendo mesmo irônico e brincalhão O até mesmo e o mesmo revelam que aos olhos do experto a doença não tem escapatória só pode fingir Assim a leitura a posteriori permite sustentar a hipótese inicial Dirá o advogado de defesa de Euro P em seu recurso de apelação contra a sentença de primeiro grau o perito reduz a existência de Giovanni M de 1970 a 2000 a pouco mais de vinte episódios reativos a acontecimentos mas estes não são apreendidos e enquadrados em sua natureza reativa reação a terapias forçadas a restrições à liberdade a um clima emotivo de alta expressividade lutos agressões ameaças etc ao contrário consideraos à maneira de agitações autônomas derivadas de um mau funcionamento de uma máquina bélica fruto de uma mina incontrolável a ser desarmada Por outro lado não surge menos influenciada por estereótipos a própria perícia dos consultores da parte que para sufragar o valor dos eventos externos sobre o comportamento de Giovanni M declaram que os estudos mais recentes demonstraram que os pacientes esquizofrênicos embora dissociados da realidade frequentemente apresentam distúrbios da esfera afetiva que podem se seguir a legítimas e previsíveis reações a lutos e perdas Na prática é como dizer que O Crime Louco 99 os esquizofrênicos frequentemente são dotados de sentimentos quase mesmo como os sujeitos normais No comment O outro elemento objetivo para a formulação do juízo consiste na visita médica Nesse caso porém o perito não chega a estabelecer nenhum contato significativo A primeira visita médica ocorre logo depois do homicídio quando o elemento emocional é intensíssimo seja para Giovanni seja para todos os demais e portanto para o próprio perito A segunda visita se desenvolve no HPJ de Montelupo O perito aponta uma atitude de confronto e hostilidade de Giovanni para com ele o que ulteriormente confirmaria seu diagnóstico Mas o perito não parece considerar que Giovanni se encontra exatamente diante de quem de certo modo sancionara sua internação por que razão deveria se mostrar colaborativo Será que não seria de se considerar a hipótese de algum rancor Algum temor Giovanni pede a presença de um enfermeiro durante o diálogo manifestando a necessidade de se sentir defendido e protegido evidenciando que não se está diante de uma recusa genérica e generalizada de relacionamento mas sim de uma recusa especificamente voltada para o perito Este no entanto vê diante de si apenas um esquizofrênico paranóico delirante que afirma já estou morto Mas seria essa frase uma expressão delirante Não estaria talvez expressando uma vivência existencial de quem se acha encerrado em uma instituição que no passado já lhe despedaçara tragicamente a vida Não poderia essa frase expressar um sentimento de culpa que oprime a consciência e faz pressentir a angústia da morte Com base nos prontuários e nos encontros são expostas as seguintes considerações técnicas estamos diante de um caso clínico de esquizofrenia com fases ativas fases de esmagamento da afetividade com abulia negativismo refúgio e fechamento Estamos diante de uma típica alternância de sintomas positivos e negativosOs temas persecutórios demonstram relevância para o risco de agressividade heterodirigida típica da patologia O Crime Louco 100 Mas nessa perícia como em outras com demasiada frequência se esquecem as referências científicas que seriamente criticam todo rígido determinismo prognóstico29 Toda a experiência de vida do paciente seus relacionamentos o peso dos life events são anulados diante da inevitável alternância de sintomas da infausta evolução da doença após o arrefecimento iniciado nos anos 80 com ou sem flufenazina terseá mais cedo ou mais tarde uma reagravação com ou sem flufenazina Não é possível imaginar Giovanni socialmente inserido recuperado se isso acontece é apenas aparência é a astúcia da doença que se esconde e que no entanto por sorte não escapa aos olhos do experto Tornase assim inevitável a consideração conclusiva que assume valor crucial o homicídio é um gesto sintomático expressão direta da psicopatologia de que é portador O gesto é reificado tornado doença tornado ahistórico O perito registra as frases desesperadas de Giovanni mataram Deanna e eu quero viver registra o confronto com Ateo 29 Referimonos aos estudos longitudinais relativos a pacientes com diagnóstico de esquizofrenia Para citar apenas os mais famosos os de Bleuler 1968 Zurich de Ciompi e Muller 1980 Suíça de Tsuang et al 1979 Iowa US de Huber et al 1980 Alemanha de Ogawa et al 1987 Japão de Harding et al 1987 Vermont US de De Sisto et al 1995 Maine US Os resultados desses sete estudos de followup abrangendo um total de cerca de 1700 pacientes têm duração média de 30 anos e documentam uma nítida melhora dos pacientes em 31 dos casos Em todos os casos os estudos longitudinais evidenciaram a heterogeneidade dos prognósticos nas síndromes esquizofrênicas M Bleurer em conclusão às suas pesquisas afirma Com relação ao decurso e ao resultado das psicoses esquizofrênicas prolongadas pesquisas de que participei por mais de sessenta anos confirmaram aquilo de que se duvidara por longo período Não existe um decurso específico da doença M Bleuler 1978 Ciompi 1984 Ao contrário os resultados das psicoses esquizofrênicas são extremamente diversificados variando de restabelecimentos prolongados a decursos intermitentes a psicoses prolongadas de intensidade grave e leve Durante longo período muitos psiquiatras acreditaram que uma definição precisa do diagnóstico indicasse um prognóstico específico A experiência demonstrou que não importa como se formule o diagnóstico esse jamais assegura um decurso e um prognóstico previsíveis O decurso das psicoses esquizofrênicas jamais evolui na direção de um progressivo empobrecimento da vida interior jamais em direção de uma demência do tipo encontrado em danos cerebrais difusos A vida interior pode estar escondida por uma falta de expressão por exemplo no mutismo mas não estará perdida MBleuler 1991 O Crime Louco 101 com sua forte mensagem de desafio registra as graves lacunas de comunicação entre o médico e a coordenadora da residência registra as frases ameaçadoras de Giovanni eliminar os coveiros sou obrigado a matar vocês e lamento ter de fazêlo mensagens graves inequívocas mas ao mesmo tempo seguramente desesperados pedidos de ajuda Mas com a morte de Deanna a vinculação do gesto à atitude de Ateo é obnubilada Estamos diante de um homicídio anunciado não porque a pessoa em graves dificuldades esteja lançando mensagens contendo pedidos de ajuda que malgrado o medo provocado nos operadores não surtirão efeitos concretos mas simplesmente porque enquanto esquizofrênico paranóico só poderia mesmo cometer seu gesto sintomático O gesto extremo que ele executa na manhã de 2452000 nada mais é do que a exteriorização de tal angustiada percepção da realidade exterior representando em sua vivência delirante uma maneira de se defender do que sentia ser um perigo grave e iminente Sem mencionar as referências da literatura psiquiátrica tradicional parece suficiente reportar a título exemplificativo de tal condição psicopatológica e das dramáticas consequências dela deriváveis algumas passagens extraídas do livro Vontade de matar Análise de um desejo escrito por um psiquiatra Vittorino Andreoli A propósito da esquizofrenia ele afirma a forma que mais contribui para o homicídio é a esquizofrenia paranoide caracterizada especialmente no início por episódios de interpretação das pessoas e do ambiente como se o mundo se movesse com fins voltados exclusivamente para o doente inicialmente estimula suspeitas em seguida atitudes de defesa até o delírio persecutório propriamente dito pelo qual tudo e todos agem para provocar sua morte O doente se torna negativista não aceita a comida porque seguramente está envenenada não toma os remédios vê os médicos como inimigos Isolase em um cômodo concentrado em se defender das estratégias de morte E mais analisando as fases residuais da esquizofrenia quando teoricamente a produtividade delirante deveria deixar espaço para O Crime Louco 102 a cronicidade e o distanciamento do mundo ele acrescenta nessa fase o homicídio tem uma dinâmica diferente acontece por impulso quando o paciente se sente invadido quando não é deixado em paz como resposta imediata como reação Nessa weltanshauung não é sequestrado apenas o sentido do gesto do paciente mas também o de quem se confronta com ele os gestos são reificados privados de suas particularidades históricas e subjetivas As agressividades as ambiguidades em suma toda a complexidade comunicativa contida em cada mensagem são anuladas Ateo por exemplo certamente estava animado por boas intenções mas seu enfoque é equivocado não só pelo desconhecimento dos antecedentes de Giovanni como pela falta da empatia que poderia leválo a se identificar com o paciente a indagarse sobre as razões de seu comportamento a adotar um enfoque menos rígido Ateo pensa em sua redenção em seus problemas como operador posto em dificuldade pelas inadimplências dos médicos pensa que a única coisa importante é restabelecer a qualquer custo o predomínio da ordem sobre a desordem Diante porém da incapacidade de entender e querer do esquizofrênico o valor das vivências e relações de Ateo é completamente apagado O dever foi cumprido O perito provou sua tese toda a história do paciente se encaixa perfeitamente no esquema diagnóstico estabelecido A demonstração contém ainda outra mensagem Esses incidentes são a desagradável consequência de uma ideologia antipsiquiátrica que considera os pacientes somente como vítimas e não como doentes Vejam portanto aonde nos leva a pouca consideração da ciência diagnóstica particularmente aquela voltada para quem deveria sempre ser considerado como em alto risco de violência A perícia declara pois em poucos dias Giovanni inimputável e socialmente perigoso tratase no fundo de mero pro forma Tudo da atrocidade do crime à sua modalidade deixa poucas dúvidas Prontamente enviado para o Hospital Judiciário Giovanni desaparece de cena Seus gestos e suas palavras de agora em O Crime Louco 103 diante serão interpretados nos atos judiciários apenas por outros ele não terá mais o dever de se defender ou de declarar Reconhecese a falta de sentido de seus pensamentos e comportamentos seja pelo passado seja pelo presente mas fatalmente também para o futuro Na concepção do perito indiscutivelmente animado por elogiáveis intenções esses procedimentos estariam defendendo os direitos e interesses de Giovanni Na realidade como o desenrolar dos acontecimentos demonstra a internação no Hospital Psiquiátrico não só não será útil para as condições psíquicas do paciente mas será marcada sobretudo por sua dramática agravação até à morte O juiz de primeiro grau negando a juntada aos autos do processo de uma declaração sobre as condições psíquicas de Giovanni no HPJ que estando sob tratamento farmacológico não revela qualquer melhora declara candidamente que Giovanni não é mais a mesma pessoa pelo desenraizamento de um contexto ambiental tranquilizante e pelos efeitos de uma restrição précarcerária em uma estrutura primordialmente de contenção como é o Hospital Psiquiátrico Judiciário Pois bem tentemos imaginar agora uma trama diversa daquela que efetivamente aconteceu Poderseá objetar que diante da evidência da realidade tratarseá de um exercício ocioso e inútil Por outro lado raciocinemos se um tribunal inflige uma pena a alguém isto significa que julga que as coisas poderiam ter se passado de forma diversa Permitamnos portanto esse exercício abstrato feito de hipóteses Vimos que muitas pessoas fizeram coisas que não deveriam ter feito igualmente deixando de fazer o que deviam Penso sem hesitações que Giovanni também poderia ter se comportado de maneira diversa mesmo sendo esquizofrênico paranoico mesmo estando privado de sua dosagem terapêutica mesmo sendo fortemente provocado Imaginemos que o primeiro perito reconhecesse em Giovanni uma capacidade parcial de entender e querer à época do fato e que o segundo perito reconhecesse sua capacidade processual ou seja que a capacidade de entender e O Crime Louco 104 querer30 ainda que reduzida à época do crime possa sucessivamente ser recuperada mas imaginemos sobretudo que não se fale em periculosidade social por um diagnóstico psiquiátrico Consideremos que por força de tal juízo Giovanni seja obrigado a sair do estado de fuga da realidade em que se refugiou e deva se defender expondo suas próprias razões Em tais circunstâncias deve tomar consciência de seu próprio narcisismo escutar as razões dos outros confrontar suas próprias vivências com as dos outros Será uma ocasião difícil dolorosa dissolvendo o núcleo angustiante e ameaçador que constitui seu medo dos outros e de si mesmo mas será também uma oportunidade para se perceber portador de deveres além de direitos como todos os outros Naturalmente terá um advogado que o apoiará em suas razões se julgado responsável será condenado Mas dessa forma poderá acolher o valor reparatório da condenação o valor da expiação que jamais poderá acolher se condenado perpetuamente à monstruosa loucura da periculosidade social Imaginemos que desde logo vá para uma hipotética estrutura sanitária protegida dentro ou fora do cárcere cuja organização e finalidade naturalmente requerem um grande e inteligente esforço de realização por parte de muitas entidades e pessoas Imaginemos que suas relações quotidianas não se desenvolvam somente com aqueles estigmatizados como loucos perigosos e que junto com o tratamento farmacológico haja um tratamento psicoterapêutico intensivo e sobretudo a possibilidade de trocas sociais a recuperação de uma contratualidade relacional que reforce seu ego comprometido não se poderia então formular a hipótese de que sob essa ótica seria possível obter uma recuperação psicológica e social de Giovanni melhor do que foi obtido na realidade Eu acho que sim sem nenhuma dúvida E isto 30 A formulação apresentada pela Comissão Ministerial presidida pelo prof Grosso propõe a substituição de tal terminologia por a possibilidade de compreender o significado do fato ou de agir em conformidade com tal valoração tal formulação seguramente mostrase em melhor sintonia com a realidade clínica do paciente e os objetivos terapêuticoreabilitadores O Crime Louco 105 teria acontecido sem prejuízo naturalmente da responsabilidade de terceiros e dos legítimos direitos dos familiares da vítima Essas minhas considerações não nascem de uma abstrata declaração de princípios Têm sim em conta as muitas experiências que nesses últimos anos têm permitido percursos alternativos à declaração de total inimputabilidade do louco e envio de pacientes para HPJ São experiências que demonstram o valor existencial e terapêutico ínsito ao reconhecimento mesmo em casos extremos do livre arbítrio daquilo que dá sentido e valor à nossa vida sem o que só resta a morte psíquica ou física Se eliminarmos a palavra culpável e usarmos o termo responsável então devemos convir como declarei que o próprio Giovanni poderia ser julgado responsável de seu se deixar dominar pelos medos se acreditarmos no livre arbítrio Giovanni poderia como em outras circunstâncias escutar quem lhe fosse próximo A terapia é sempre um ato recíproco requerendo que o paciente saia de sua posição narcísica para entender as razões dos outros que não se deixe dominar pelo princípio do prazer e se meça pelo princípio da realidade Ao contrário com frequência parece se partir do pressuposto tanto para o paciente mas também e sobretudo para os terapeutas de que o paciente seja somente a vítima de tudo o que acontece em volta facilmente se minimizando suas responsabilidades Isso acontece também porque a situação é frequentemente condicionada por um perigo com efeito há o temor de que o surgimento de um sentimento de depressão e falência possa conduzir ao suicídio do paciente Para evitálo mostramo nos excessivamente tolerantes fornecemse justificações Mas isto deveria constituir apenas uma fase da terapia a inicial Com efeito a terapia para ser eficaz deve ir ao encontro dos riscos ela mesma é um risco A terapia não pode ser lisa nem se esconder por detrás da irremediabilidade do diagnóstico Perguntome várias vezes se Giovanni em determinado momento de sua vida voltou a ser paranóico quando demonstrara que era possível não sêlo mais O Crime Louco 106 Do que dependeu Têm razão os peritos que julgam impossível toda esperança de cura para quem foi reconhecido como esquizofrênico paranóico Ou têm razão os que imputam o evento a uma simples alteração do equilíbrio bioquímico artificialmente induzido pelo psicofármaco Ou talvez tudo isso tenha acontecido porque não fora suficientemente atacada não ainda a estrutura paranóica do sujeito seu modo de pensar através de um trabalho reabilitador feito com profundidade e coragem Onde fica o limite não enfrentado nessas circunstâncias Na nossa prática de terapeutas Em nossos conhecimentos Em nossa presunção Na solidão social em que nos encontramos junto com os pacientes Na carência de uma prática de cidadania que permita ao psiquiatra ao educador profissional ao perito ao juiz ao administrador à dona de casa ao estudante reconhecer os problemas de Giovanni como seus próprios problemas E sentir na própria pele suas vitórias e suas derrotas 22 Pericia dos consultores técnicos do MP sobre a respon sabilidade da equipe médica assistente e dos operadores da residência Em 2362000 o Dr SO Procurador da República Substituto conferiu a nós abaixoassinados Dr IM e prof SM o encargo de proceder a avaliações técnicas formulando os seguintes quesitos queiram os ct responder examinado o interno MG e vista a documentação clínica apreendida e obtida no âmbito do procedimento no 910500 mod21 além de qualquer outra documentação de interesse para o caso eventualmente existente em estruturas públicas e privadas 1 Se a patologia de que é portador MG era tal a tornar previsível a consumação de atos violentos a dano de pessoas em especial dos operadores com quem estava em contato à época do homicídio e em caso positivo O Crime Louco 107 se o tratamento farmacológico e terapêutico prestado ao referido MG no período imediatamente precedente e concomitante aos fatos objeto da causa era ou não idôneo para conter a periculosidade social 2 Se o livre acesso às facas apreendidas em especial àquela concretamente utilizada para desferir os golpes letais em CA estava em conformidade com a satisfação das exigências de cautela nos termos do quesito anterior podendose julgar correto e indicado em relação às condições do paciente conforme as noções da ciência psiquiátrica atual 3 Tudo o mais que for útil aos fins de justiça São as seguintes as conclusões da perícia Sintetizando nossas respostas aos quesitos formulados pelo senhor Promotor julgamos que 1 MG era portador de esquizofrenia paranoide crônica em fase de proclamada reagravação a presença de floridos delírios persecutórios de envenenamento contaminação e outros males bem como a total ausência de qualquer consciência da doença o induziram antes do homicídio a assumir comportamentos agressivos em relação ao pessoal de assistência e a proferir ameaças de morte as terapias farmacológicas e sobretudo o tratamento terapêutico global prestado a MG no período imediatamente precedente e concomitante aos fatos objeto da causa não resultaram idôneos para tratar de seus graves distúrbios e conter sua periculosidade social 2 O livre acesso às facas de cozinha especialmente àquela concretamente utilizada para desferir os golpes letais em CA não estava em conformidade com a satisfação das exigências de cautela necessárias à gestão de caso O Crime Louco 108 clínico tão grave comportando riscos manifestamente altos em uma gestão extrahospitalar do paciente mesmo se admitindo que em condições normais tal acesso pudesse lhe ser consentido para fins de reabilitação em condições excepcionais como as presentes durante a fase de alarmante descompensação delirante persecutória de MG o livre acesso às facas e a outros objetos potencialmente perigosos da mesma espécie não deveria ter sido consentido 3 No caso em exame como detalhadamente ilustramos nas considerações médicolegais encontramse inadimplências negligências imprudências e imperícias de maior ou menor gravidade dos operadores individualmente a de todo modo configurar uma induvidosa responsabilidade de equipe na gestão do caso clínico gestão que se mostrou claramente inadequada 12 de fevereiro de 2001 Vejamos como se desenvolve o raciocínio Os quesitos do MP dizem respeito à previsibilidade do evento à idoneidade do tratamento farmacológico à infração de medidas de segurança Naturalmente todo raciocínio se desenvolve a partir de um ponto central definir o perfil psiquiátrico do louco que cometeu um crime Notese todavia como esse perfil na realidade já está predeterminado e delineado Com efeito partese do pressuposto de que o paciente é portador de periculosidade social O juiz e os novos peritos dão como certa a perícia de AR que já se manifestara sobre o tema No fundo aquela perícia era para eles uma simples formalidade não parecendo valer a pena novas indagações sobre a imputabilidade e a periculosidade social de Giovanni É evidente que definido dessa forma o paciente definirseia também a responsabilidade do psiquiatra não mais a de tratamento mas sim a de controle O Crime Louco 109 Mas há um segundo pressuposto que também parece evidente que a periculosidade não seja uma circunstância complexa histórica e contextualmente determinada sendo antes um dado natural efeito de uma patologia que comportaria deterministicamente somente determinados comportamentos Falando do homicídio por exemplo os peritos declaram sem hesitações e com absoluto rigor que Tratase de um gesto sintomático expressão direta da psicopatologia de que é portador Os peritos não se dão conta de estar cometendo um grave erro enquanto tendem a equiparar comportamentos a sintomas E quando vinculam o agravamento do paciente à redução da terapia reiteram a persistência de um quadro psicopatológico que poderia ser atenuado pelo controle farmacológico mas que permanece substancialmente ativo não parece ter precedido uma doença em sentido técnico ao mencionado homicídio mas sim simplesmente um defeito de controle farmacológico sobre a preexistente patologia psicótica Em essência as considerações dos peritos se colocam no interior de um modelo de doença mental reducionista e biológico Os peritos confirmam a análise do colega AR segundo a qual Giovanni apresentaria uma total exclusão da capacidade de entender e querer Ou melhor adotam tout court tal juízo sem proceder à devida contraanálise e crítica Notese incidentemente que as avaliações das duas perícias se fundam em uma mesma visita conjunta efetuada pelos três peritos a Montelupo Fiorentino O comportamento de Giovanni sua recusa ao diálogo seu voltar as costas aos peritos sua reivindicação da presença de um enfermeiro suas frases já estou morto não preciso de vocês têm uma unívoca interpretação são expressões de uma patologia delirante Até sobre o diagnóstico há um absoluto compartilhamento esquizofrenia em decurso crônico Os peritos todavia julgam necessário fazer uma concessão a um breve desenvolvimento do tema Por quê Talvez porque julguem o caso emblemático e queiram reiterar o valor da clássica descrição da esquizofrenia É como se em um clima de incertezas e contestações finalmente se reencontrassem antigas O Crime Louco 110 evidências Os peritos descrevem as formas clássicas da esquizofrenia a de tipo catatônica a paranoide a residual Em alguns casos a doença em sua evolução espalhase por todas as diferentes fases em outros porém fixase somente em um estágio Para os peritos nenhuma melhora de um esquizofrênico e portanto aí incluídos os 17 anos de melhora de Giovanni pode representar um verdadeiro restabelecimento Paradoxalmente demonstram exatamente o contrário certa melhora mais do que qualquer outro evento é exatamente a confirmação indireta da existência da esquizofrenia paranoide a ação fármacoterapêutica e a natural evolução em fases do distúrbio atenuam a evidência sintomatológica fazendo emergir os sintomas negativos esmagamento da afetividade abulia negativismo fechamento Portanto a ausência de claras manifestações de agressividade outra coisa não é que a passagem da fase florida e positiva da doença para a fase dos sintomas negativos Alguém como os colegas psiquiatras que descreveram nos prontuários os 17 anos de bemestar de Giovanni pode ingenuamente acreditar reconhecer em Giovanni tranquilidade disponibilidade para conversas ironia sociabilidade bom humor ser brincalhão comunicativo e autossuficiente participar voluntariamente com entusiasmo e grande empenho das atividades de ressocialização na cidade estar enamorado de Deanna mas esse alguém estará errado são apenas sintomas negativos travestidos simples abulia esmagamento afetivo ou negativismo Nos prontuários hospitalares de Giovanni são privilegiadas somente as anotações concernentes ao comportamento sombrio hostil ameaçador francamente agressivo do paciente Mesmo a longa permanência de Giovanni no Hospital Psiquiátrico de Ímola abstraindose o período de melhora de suas condições psíquicas é automaticamente avaliada como um sinal patológico negativo Os peritos parecem não ter em conta o que alguns estudos científicos têm abundantemente documentado as liberações do hospital psiquiátrico geralmente se tornam difíceis muito mais por causa da subsistência de obstáculos sociais e O Crime Louco 111 familiares do que por razões inerentes à patologia dos internos Em suma parecem nos dizer os peritos não há nenhuma possibilidade de sair da loucura O olhar puro e rigoroso do perito semelhante ao do alienista dos hospitais psiquiátricos do século XIX consegue penetrar na máscara da loucura e fazer emergir seu pérfido disfarce Como os condenados às galés de Os miseráveis de V Hugo os esquizofrênicos também jamais poderão se libertar de sua verdadeira identidade não importa qual o resultado positivo que obtenham O máximo a que podem aspirar é a atenuação de sua evidência sintomática mas somente através da ação fármaco terapêutica prótese absolutamente necessária que os vincula inexoravelmente ao psiquiatra que gere tal poder A partir desse caso parecem praticamente dizer os peritos podese portanto medir mais uma vez a ingenuidade de quem subestima a psicopatologia e abaixa a guarda diante do esquizofrênico A mensagem vale para todos vale para o colega que pretendeu questionar a fármacoterapia mas vale também para todo o clima imolense demasiadamente pendente para a vertente da desinstitucionalização e do recovery Por isso quando os peritos enfrentam o tema da infração das exigências de controle afirmam que identificando oportunamente o contexto psicopatológico e ambiental era possível formular uma previsão de risco ou de reiteração de comportamentos agressivos e potencialmente lesivos Com efeito para os peritos são muitos e numerosos os acontecimentos que expressam a gravidade da situação Há antes de tudo situações dramáticas a morte de Franca e sobretudo a de Deanna o episódio com ZM sobre cujas consequências na psiché de Giovanni teria sido necessário indagar com atenção Mas há tantas outras campainhas de alarme expressadas no comportamento e nas palavras de Giovanni as ameaças de morte contra os operadores e a coordenadora e contra Ateo as expressões delirantes relativas à comida e ao depósito bancário Com efeito com uma reconstrução a posteriori estamos assistindo a uma espécie de morte anunciada e não conseguimos compreender porque à época O Crime Louco 112 essa impressão não tenha sido claramente percebida É necessário porém reportarse ao clima específico vivido pelos operadores nas circunstâncias Três moradores sofriam de graves problemas de saúde o que comportava incrível acúmulo de serviço marcar exames médicos acompanhar os moradores ao hospital providenciar um significativo acompanhamento assistencial A essa situação de intenso stress somaramse três mortes uma após a outra que além da grande frustração pelo empenho inútil que não conseguira evitar os eventos representaram uma verdadeira tríplice situação de luto para os operadores Com efeito é preciso considerar quão subjetivamente importante foi para todos a convivência de tantos anos com pessoas que com frequência envolveramnos em relações emocionais intensas Não surpreende pois que os operadores estivessem naqueles dias desorientados emocionalmente abalados Todavia é de se perguntar o que deveriam ter feito além do que efetivamente fizeram Para os peritos o Dr Euro foi negligente porque deixou o paciente sem controles médicos por vários meses porque não se empenhou em recuperar a documentação necessária Era suficiente o conhecimento aprofundado da história clínicocomportamental do paciente facilmente encontrável nos prontuários examinados não formulou um projeto terapêutico para o paciente teve uma atitude apressada nas visitas Além disso foi imprudente porque suspendeu a flufenazina decanoato sem motivações claras Mostrou imperícia quando após ter sido ele mesmo agredido não ativou o TSO não alertou suficientemente os operadores não se informou sobre os níveis de segurança de Albatros Mas toda a equipe é inadimplente Não foram definidos protocolos para as medidas cautelares e urgentes Na troca de terapeuta entre CA e PE surge certa superficialidade no registro Além disso tanto o Dr Euro quanto os médicos que o precederam não teriam formulado e verificado com a devida frequência o projeto terapêutico de Giovanni Na realidade o projeto terapêutico existia O Crime Louco 113 era regularmente atualizado e apenas por um erro de procedimento não foi juntado na fase instrutória A responsável pela residência e a assistente social dentre outras coisas deveriam ter registrado o dissenso dos operadores em relação à orientação farmacológica de PE deveriam estar a par do quão descontentes estavam esses operadores com o comportamento do psiquiatra que julgavam ser apressado e negligente deveriam ter transmitido as queixas ao Dr PE ou intervir com outras medidas junto ao responsável pela Unidade Operacional Ainda que não informadosera seu dever garantir que o clima de desconforto e crítica por parte dos operadorespudesse ser apresentado apertis verbis Também nesse caso é muito fácil julgar de fora examinando documentos com tranquilidade e raciocinando sobre acontecimentos distantes Essa condição feita de hipóteses e ficções não leva em conta por exemplo infinitas outras coisas que habitualmente acontecem em volta do evento documentado Tratase de ocorrências gestos palavras que ligados a outras situações sobrecarregam e tornam os operadores menos lúcidos frequentemente são outras urgências que se entrelaçam Só quem realiza esse trabalho pode entender o quanto é difícil manter lucidez e controle emocional em determinados momentos Por outro lado não se entende porque e como a assistente social deveria ter percebido o que não lhe foi dito Na reunião de equipe em um contexto idôneo para se comunicar qualquer informação as ameaças de morte não foram mencionadas nem mesmo por parte de Ateo que ali estava presente Naquela ocasião foi manifestada uma indiscutível preocupação pelas condições de Giovanni mas se concordou que uma vez retomado o tratamento farmacológico a situação já estaria sob controle Como exemplo de imprudência e negligência os peritos reportam a falta de comunicação aos responsáveis pelo Departamento de Saúde Mental das verdadeiras razões da transferência de Ateo do setor social para o psiquiátrico Imputam tal negligência e imprudência em especial à coordenadora da residência que não se pusera em O Crime Louco 114 ação como necessário nem ao menos após o confronto ocorrido em 23 de maio entre Giovanni e Ateo Além disso para os peritos a Dra Laura teria se mostrado inadimplente na avaliação do risco para a segurança diante da falta de vigilância sobre as facas da cozinha Não se entende porque não veio em mente a nenhum dos operadores que poderia ser muito perigoso deixar que um paciente portador de uma descompensação delirante persecutória tão grave se movesse em um ambiente onde poderia facilmente ter à disposição facas de cozinha É interessante notar que os peritos com frequência usam o termo facões referindose às facas usadas na cozinha de Albatros Na realidade tratase de uma normal bateria de facas de carne que o escritório de higiene da ASL durante uma inspeção insistentemente pedira sob pena de não conceder o credenciamento para o refeitório O comprimento as dimensões a forma das facas correspondem aos requisitos das normativas em vigor Por que então a palavra facões De que depende a qualidade de um objeto Nesse caso o termo expressa a vivência dos peritos que olhando para o objeto imaginam o pérfido olhar do assassino Freud certamente falaria de mecanismos de projeção Em todo caso não há dúvida de que o termo depreciativo contribui para a veiculação da mensagem de periculosidade de Giovanni dando uma leitura negativa da maneira pela qual a residência era administrada pela cooperativa e denunciando a falta de controle por parte dos operadores do DSM Mas voltando às referências feitas pelos peritos à coordenadora vale ressaltar que as considerações sobre o stress psicológico a que estavam submetidos todos os operadores em consequência das três mortes naturalmente se aplicam talvez em maior intensidade a ela Mas perguntemonos o que a Dra Laura deveria ter feito além do que fez Não conseguiu com grande esforço levar o psiquiatra a tomar consciência diretamente das condições psíquicas de Giovanni Será que não cumprira corretamente seu dever Não deveria achar que a situação crítica fora corretamente enfrentada e que dali em diante O Crime Louco 115 seria resolvida 23 Perícia dos consultores técnicos do GIP do Tribunal de Bolonha no 938500 RGNR no 1844804 RG GIP Em 19105 VExa encarregou os abaixoassinados prof GBT professor de Psicopatologia Forense na Universidade de S e Dr AA exdiretor de Psiquiatria e Diretor de Saúde Mental de Adultos na USL de S do exame dos autos processuais relativos ao senhor Dr PE médico cirurgião psiquiatra do DSM da USL de Ímola e especialista de referência do senhor MG nascido em Faenza Ravenna em 2321941 atualmente recolhido ao HPJ de Montelupo Fiorentino Objetivo da avaliação era o de responder aos seguintes quesitos queriam dizer os peritos examinados os autos do processo e vista a documentação clínica obtida no curso das investigações preliminares se na conduta do Dr PE durante o período em que teve a seus cuidados o paciente MG são encontráveis manifestações de negligência imprudência ou imperícia ou ainda violações específicas das regras da arte médica Em especial após delineada a patologia psiquiátrica específica sofrida por M e sua evolução histórica a partir do momento de seu ingresso na comunidade queiram avaliar se a modificação redução ou suspensão do tratamento farmacológico foi ou não uma escolha terapêutica adequada e ponderada tendo em consideração a patologia psiquiátrica de que M era portador se houve uma relação de causa e efeito entre a modificação redução ou suspensão do tratamento farmacológico e as manifestações de agressividade manifestadas pelo paciente que acabaram por desaguar na ação delituosa O Crime Louco 116 se de qualquer modo era previsível que em função de tal escolha terapêutica M pudesse novamente manifestar uma reagravação dos distúrbios psiquiátricos de que era portador se tal recidiva poderia se verificar mesmo que o paciente estivesse submetido ao precedente tratamento farmacológico se a modificação redução ou suspensão da administração dos remédios long acting e da terapia oral deveria ter sido acompanhada da adoção de precauções aptas a conter manifestações de periculosidade social por parte do paciente São as seguintes as conclusões dos peritos Examinados os autos do processo penal em questão e vista toda a documentação posta à nossa disposição julgamos poder afirmar que na conduta do Dr PE referente à assistência por ele prestada ao senhor MG são encontráveis sobretudo sinais de negligência e imprudência considerados especialmente os seguintes elementos 1 O senhor MG há longo tempo era portador de uma espécie de esquizofrenia paranoide crônica em parcial remissão tendo sofrido uma reagravação no curso do último mês que antecedeu o homicídio do senhor CA 2 A modificação do tratamento farmacológico com especial referência à redução e posterior suspensão da terapia depot terapia essa que M vinha assumindo ininterruptamente há muitos anos não é de se considerar uma escolha terapêutica oportuna e adequada considerando a patologia psiquiátrica de que M era portador 3 Entendemos ter havido uma relação de causa e efeito entre a modificação do tratamento farmacológico e as manifestações de agressividade do p que acabaram por O Crime Louco 117 desaguar na ação delituosa 4 Era previsível que considerando a escolha terapêutica acima mencionada M pudesse voltar a manifestar uma reagravação dos distúrbios psiquiátricos de que era portador 5 A recidiva não poderia em absoluto se verificar com o p submetido ao precedente tratamento farmacológico 6 A modificação do tratamento farmacológico redução e posterior suspensão do remédio depot deveria ter sido acompanhada da adoção de precauções aptas a tutelar a saúde psíquica do paciente e conter eventuais reagravações psicopatológicas e de periculosidade social 21 de julho de 2005 Vale recordar que o GIP rejeita o pedido de arquivamento formulado pelo MP fundado em insubsistência de lesão pessoal prosseguindo com o procedimento duas médicas são excluídas das imputações permanecendo acusados uma assistente social a responsável pela residência e o psiquiatra Este pede o rito abreviado e é exatamente em relação a ele que o GIP determina esse parecer que se revelará decisivo para a sentença Os quesitos nesse caso são mais específicos do que os das perícias anteriores entrando diretamente no mérito do aspecto da responsabilidade técnica do psiquiatra É especialmente abordado o perfil psicopatológico do homicida e a relação de causa e efeito entre a modificação do tratamento farmacológico e as manifestações de agressividade do paciente que posteriormente deságuam na ação delituosa As considerações dos peritos estão difusamente presentes na sentença proferida pelo mesmo juiz que será focalizada mais adiante Vale deterse nas considerações dos peritos apenas no que diz respeito às relações entre distúrbios mentais maiores e delinquência assim como na relação entre esquizofrenia ou outras psicoses e comportamento violento A propósito os mesmos citam um trecho O Crime Louco 118 do Tratado Italiano de Psiquiatria Diversos estudos evidenciam que o diagnóstico psicopatológico mais frequentemente associado a comportamentos hostis é a esquizofrenia Com efeito parece que a essa patologia pertencem pacientes mais violentos do que à dos distúrbios de personalidade ou à patologia afetiva ou à orgânica cerebral resultando inclusive que no âmbito de avaliações efetivadas em regime de internação hospitalar os pacientes esquizofrênicos sejam em média mais agressivos do que os pacientes com dependência de álcool ou drogas No âmbito da esquizofrenia é induvidoso que existem diferenças que dependem da forma clínica do decurso da doença do tipo de episódio e da resposta à terapia Por exemplo os pacientes com esquizofrenia de tipo paranoide podem apresentar comportamentos agressivos em relação a um delírio particular assim diretamente dirigidos contra uma ou mais pessoas específicas Segundo a literatura científica o prognóstico psiquiátrico do comportamento violento pode ser genérico condicional ou iminente Nivoli e outros 1993 O prognóstico pode ser dito genérico quando o paciente apresenta sintomas psiquiátricos não específicos de um provável comportamento violento ainda não iniciado em modo concreto Por exemplo um sujeito esquizofrênico com delírio estruturado de conteúdo persecutório pode em linha de princípio passar à ação com comportamentos violentos voltados contra os supostos perseguidores todavia a experiência clínica demonstra que são estatisticamente muito poucos os sujeitos esquizofrênicos com delírios de conteúdo persecutório que na realidade passam à ação violenta contra pessoas Nesses casos a capacidade de previsão do psiquiatra é bastante limitada e sujeita a erros diversos No caso do prognóstico condicional embora ainda não se tendo manifestado nenhum comportamento violento a previsibilidade de semelhante agir pode ser sob o aspecto clínico e estatístico deduzida de um sintoma específico ou de específicas constelações de sintomas desencadeadores Por exemplo pode ser considerado significativamente provável um comportamento O Crime Louco 119 violento se um sujeito esquizofrênico com delírio de conteúdo persecutório apresenta juntamente com esse sintoma um estado de agitação psicomotora mais de duas noites transcorridas insone e em estado de eretismo ameaças quentes com clara identificação de uma vítima antecedentes de agressão a pessoas por sensações subjetivas em contextos sociais análogos ao atual Nessas hipóteses o psiquiatra deve estar apto a identificar os sintomas específicos ou as específicas constelações de sintomas desencadeadores do comportamento violento e adotar todas as medidas necessárias para evitar a ocorrência de fatos danosos Finalmente no prognóstico iminente o comportamento violento do paciente já se iniciou concretamente requerendo do psiquiatra uma intervenção rápida em termos de neutralização de dinâmicas de atuações violentas O Crime Louco 120 3 As sentenças 31 As sentenças no processo por concurso culposo no delito doloso contra o médico psiquiatra Indeferimento de incidente probatório e requerimento de arquivamento de procedimento penal Tribunal de Bolonha Cartório do Juiz dos Procedimentos Preliminares Decisão de indeferimento de incidente probatório art 398 CPP 124 DLv 27189 A Juiza Dra G N examinado o requerimento apresentado em 19201 pelo MP Dr SO em relação ao procedimento penal no 236101 RG I P em face de 1 P E 2 ML 3 PAM 4 GA 5 CA CONSIDERANDO que o MP requer que se proceda a incidente probatório de perícia médicolegal destinada a verificar os aspectos de culpa profissional evidenciados na elaboração do ct ex art 359 CPP e causalmente relacionados à morte de C em referência ao hipotético crime do art 589 CP morte de CA ocorrida em Ímola em 24500 que na hipótese acusatória a alegada conduta do art 589 CP atribuída aos atuais investigados teria de necessariamente ser posta em concurso ex art 110 CP com o autor material MG do homicídio voluntário de CA ex art 575 CP que portanto deveria se configurar caso de concurso ex art 110 CP entre o crime do art 589 CP punido a título de culpa praticado na hipótese acusatória e cada um em relação ao papel específico desempenhado por PE ML PAM GA CA e o crime do art 575 CP punido a título de dolo O Crime Louco 121 praticado por MG aliás sujeito inimputável que portanto versase a hipótese de concurso culposo em fato doloso que para a jurisprudência dominante o concurso culposo não é configurável em relação ao delito doloso requerendo o art 42 parágrafo 2o CP expressa previsão que no entanto está ausente na medida em que o art 113 CP falando em cooperação no delito culposo e não em cooperação culposa no delito contempla tão somente concurso culposo no delito culposo Cass Penal Seção IV 11101996 no 9542 que a esse propósito também a doutrina alinhandose à citada jurisprudência afirma que a hipótese de concurso culposo em delito doloso de ser negada antes de tudo em nome da unidade do crime em concurso e excluir a própria possibilidade de diferenciação do elemento subjetivo entre os corréus que além disso observase que prevendo explicitamente o art 113 CP uma única hipótese de cooperação no delito culposo implicitamente se pode concluir pela exclusão da cooperação culposa no delito doloso tendo ainda em consideração o caráter necessariamente expresso da previsão de responsabilidade culposa ex artigo 42 parágrafo segundo CP que também o aprofundamento recente do tema expôs a inconciliabilidade de grande parte dos tradicionais exemplos de concurso culposo em ilícito doloso com a afirmada essencialidade da consciência de cooperar qual requisito psicológico adicional e indefectível da participação que para se ter a hipótese em questão a esse último requisito terseia que se somar a particularidade de a regra de cautela violada pelo agente culposo ser formulada também ou exclusivamente para o fim de prevenir um fato O Crime Louco 122 doloso de terceiro que se chegaria assim à conciliação de dois dados dificilmente compatíveis de um lado a violação de uma regra de cuidado construída sobre a previsibilidade de um fato doloso do terceiro de outro lado a efetiva representação do comportamento do terceiro que porém deveria aparecer para o agente mediato como uma conduta culposa e não como ao contrário é na realidade um comportamento doloso ainda que praticado por um sujeito inimputável que disso derivaria a conclusão de se excluir a admissibilidade dessa forma de participação considerada a ausência de referimentos normativos seguros que é possível chegar a análogas soluções ainda que não se concorde com a assertiva concernente à necessária presença de um especial coeficiente subjetivo na participação considerando antes de tudo o caráter excepcional da contribuição dolosa alheia capaz de interromper a sequência causal ex artigo 41 CP que o problema encontraria assim uma solução ainda no plano objetivo da imputação do resultado à chamada causa culposa mediata que a hipótese em questão é de ser descartada ainda em consideração a uma definição de culpa ancorada nas imprescindíveis observações pessoais próprias da responsabilidade penal que quando para a causação de um resultado convergem diversas ações autônomas de diferentes sujeitos pressupõe se em cada indivíduo capaz de entender e querer atitude voltada para a autodeterminação responsável o que exclui a natureza culposa de ações que não sendo perigosas em si mesmas simplesmente fornecem a terceiros a ocasião para delinquir devendo oportunamente ser valorada a unívoca opção do legislador pela configuração unicamente O Crime Louco 123 dolosa da participação no artigo 110 CP cfr Digesto delle Discipline penalistiche UTET II sub art 110 c p que ainda que se queira formular hipótese de responsabilidade dos atuais investigados ex art 41 CP por sua posição de garantidores derivada do papel específico por eles desempenhado no interior da estrutura Albatros ou de todo modo em ligação com essa irseia ao encontro de insuperável dificuldade que esse tipo de responsabilidade pressupõe a individualização precisa do resultado a ser impedido e a predisposição na mente do sujeito garantidor de um concreto domínio sobre o decurso causal que o provoca e assim a possibilidade de intervir sobre esse de maneira significativa que somente assim a própria inação poderia ser colocada como causa do resultado em si que portanto a invocação do art 41 CP tem apoio no ordenamento sob a condição da causação do resultado nesse caso a morte de AC poder ser referida a um decurso causal inteiramente dominado pelo sujeito garantidor e não determinado por uma ação inteiramente querida por um outro sujeito ainda que inimputável que também unicamente sob o aspecto objetivo causal estarseia sendo chamado a responder não mais por um fato próprio mas por um fato alheio que portanto deve ser indeferido de plano o requerimento de incidente probatório ex art 392 CPP formulado pelo MP não se visualizando a hipótese delituosa contestada PQM Indefere o requerimento formulado pelo MP Notifiquemse as partes Ao Cartório para as medidas cabíveis Bolonha 28501 O Crime Louco 124 Requerimento de arquivamento do MP Procuradoria da República junto ao Tribunal Ordinário de Bolonha Pedido de arquivamento arts 408411 CPP 125 e 126 DLV 27189 Ao Juiz dos procedimentos preliminares junto ao Tribunal de Bolonha O Ministério Público Dr SO Procurador da República Subst junto ao Tribunal Ordinário de Bolonha Vistos os autos do procedimento penal acima mencionado CONSIDERANDO QUE Das condutas atribuídas aos profissionais da saúde que se ocupavam a vários títulos do programa terapêutico de MG objeto de imputação penal no âmbito de procedimento autônomo relativo à morte de CA não parece ter se seguido uma doença em sentido técnico ao mencionado homicida mas sim mais simplesmente uma falta de controle farmacológico sobre patologia psicótica preexistente Portanto na falta do requisito técnico de existência de uma lesão pessoal o hipotético delito do art 590 CP se torna insubsistente Assim tida como infundada a notícia de crime na medida em que os elementos obtidos nas investigações preliminares não parecem idôneos para sustentar a acusação em juízo Considerados os arts 408411 CPP 125 e 126 DLV 27189 Requer que o Juiz dos procedimentos preliminares deste Tribunal promova o arquivamento do procedimento e determine a consequente remessa dos autos à Seção própria À Secretaria para as providências cabíveis Bolonha 17122001 O Crime Louco 125 Sentença de primeiro grau Sentença no 19842005 proferida em processo de rito abreviado em 251105 pelo Juiz de Audiência Preliminar do Tribunal de Bolonha depositada em cartório em 19106 Em nome do povo italiano o juiz Dr GA proferiu a seguinte sentença no procedimento instaurado contra PE acusado pela prática do delito dos arts 40 2º 41 e 589 CP PQM Nos termos dos arts 62 bis CP 442 533 c 535 CPP declara PE culpado do crime referido na ementa e concedendolhe as circunstâncias atenuantes genéricas e aplicada a redução pelo rito condenao à pena de quatro meses de reclusão além do pagamento das despesas processuais Nos termos dos arts 163 ss CP determina que a execução da pena acima imposta seja suspensa em relação ao mencionado PE pelo prazo de cinco anos nas condições estabelecidas em lei Nos termos dos arts 538 ss CPP condena PE ao ressarcimento dos danos em favor das partes civis constituídas BI BM e CA a ser liquidado em processo autônomo perante o competente juízo cível Condena o mencionado P ao pagamento a título provisional de execução imediata da quantia de 50000 euros a favor de BI e CA e 20000 euros a favor de BM Condena o mesmo ainda ao reembolso das despesas processuais despendidas pelas mesmas partes civis liquidandoas no total de 464000 euros excluídas as despesas não documentadas além de IVA e CPA na forma da lei a favor de BI e 472000 além de IVA e CPA a O Crime Louco 126 favor de BM e CA Visto o art 544 3º CPP indica o prazo de sessenta dias para o depósito em cartório da fundamentação da sentença Bolonha decisão em 25 de novembro de 2005 A sentença inicialmente aponta os contornos da culpa atribuída ao acusado abordando em seguida a subsistência de um nexo causal entre a conduta e o resultado a concreta previsibilidade deste último o concurso de causas e finalmente o concurso culposo no crime doloso O juiz encontra como configuração da culpa uma clara negligência no agir do acusado em contraste com o que foi estabelecido no documento redigido pelo Departamento de Saúde Mental de Ímola que ao atribuir aos médicos responsáveis o dever de assumir as medidas necessárias para cada paciente prevê que isso seja feito tendo em conta as indicações fornecidas por outros membros da equipe Rejeita o parecer dos consultores da defesa segundo os quais o paciente nos últimos quinze anos encontravase em fase de parcial remissão sem episódios significativos de recidiva pelo que era correta e devida uma remodelação da terapia realizada através da busca da dose mínima eficaz Adere ao contrário à opinião dos peritos do juízo que avaliaram MG como um paciente desde sempre particularmente difícil tendo em conta sua história clínica anterior ao ingresso na comunidade e o fato de que nos três anos anteriores ao homicídio três diferentes psiquiatras se encarregaram de seu tratamento devido exatamente às dificuldades de se relacionar com ele e bastante problemático dadas sua pouca compliance à terapia suas descargas agressivas e sua escassa tolerância às frustrações Tudo isso além de confirmar o quadro de sumário conhecimento por parte de PE das condições psíquicas e psicológicas do doente é certamente sinal de escassa empatia em relação ao mesmo O Crime Louco 127 O juiz não entra no mérito da oportunidade da escolha operada pelo médico de reduzir o tratamento farmacológico mas considera que se trata de uma escolha arriscada tendo em conta numerosos estudos científicos documentando os riscos elevados de recaída frequentemente conexos a tais comportamentos É regra comum de experiência que em qualquer atividade humana ao aumento dos riscos deva corresponder a adoção de um sistema de cautelas e precauções idôneo a evitar a ocorrência de resultados danosos ou perigosos A sentença refuta a objeção dos consultores técnicos da parte que expressam perplexidades em relação à condição da residência Albatros como lugar apto a fazer frente a uma condição aguda de um paciente psicótico na medida em que está desprovido de uma constante presença de pessoal sanitário médico e de enfermagem Com efeito Este fato não exclui que esta seja uma condição extrahospitalar suficientemente idônea aliás não se visualiza quais poderiam ser as alternativas a que alude a lei se não aquelas que se valem de pessoal especializado educadores e assistentes de base em âmbito psiquiátrico que a qualquer momento podem se dirigir ao médico psiquiatra de plantão 24 horas na sede que assim pode garantir uma quotidiana observação vigilância e contenção das angústias do paciente descompensado O juiz é particularmente categórico ao apontar os deveres e as atribuições do médico psiquiatra Diz Não pode haver qualquer dúvida sobre a existência a cargo do médico psiquiatra ora acusado de um dever de garantia em relação aos doentes mentais na forma da posição de controle que impõe ao sujeito obrigado a neutralização de determinadas fontes de perigo de modo a tutelar todos os bens jurídicos que se achem em contato com esse e que por tal razão possam ingressar em uma situação de perigo A fonte de tal posição de garantia reside principalmente na voluntária assunção por parte de PE psiquiatra empregado do DSM de Ímola da função de consultor da comunidade Albatros no que dizia respeito ao paciente MG Nas contrarrazões os consultores da parte tinham O Crime Louco 128 posto em discussão a existência de tal dever demonstrando que com base nos protocolos organizacionais do DSM de Ímola o médico psiquiatra estava encarregado primordialmente da gestão da terapia farmacológica dos pacientes Mas para o juiz na realidade em tema de culpa profissional o cumprimento concreto e pessoal de atividade médicoterapêutica por parte do profissional da saúde sempre comporta a assunção direta da posição de garantidor em relação ao paciente pois a ele incumbe o dever de observância das leges artis cuja finalidade é a de prevenir o risco não consentido ou o aumento do risco Em tema de responsabilidade profissional o juiz cita a Suprema Corte Cass Pen Seção IV 3 de fevereiro de 2003 no 4827 Perilli Ludovico segundo a qual subsiste a posição de garantidor do médico que mesmo a título de mero consultor verifique a existência de uma patologia de elevado e imediato risco de agravação Tal médico tem o dever de agir promovendo pessoalmente os tratamentos terapêuticos tidos como idôneos ou fazendo internar imediatamente o paciente em um hospital especializado Em tema de previsibilidade o juiz concorda com seus próprios peritos sobre o fato de que a emergência manifestada a partir de dez de maio com toda a constelação de sintomas significativos de uma descompensação aguda fortes temores de ser assassinado ameaças de morte contra vários operadores a agressão praticada contra a futura vítima com a utilização de um urinol etc levandose ainda em consideração a anamnese psicopatológica de MG deveria ter levado o Dr PE à luz de suas qualificações e sua experiência clínica a elaborar um prognóstico de violência condicional ou até mesmo de violência iminente tendo em conta que o comportamento agressivo e violento já havia sido de fato iniciado Com efeito entende o juiz que o impulso heteroagressivo que desaguou no ferimento mortal do operador CA não foi assim um evento inesperado e imprevisível tratandose sim de um ato perfeitamente enquadrável na patologia psiquiátrica de que era O Crime Louco 129 portador o paciente e típico da grave crise psicótica em que o mesmo se encontrava Não há dúvida pois que o ora acusado poderia e deveria imaginar a possível se não provável ocorrência de tal evento Ao afrontar o tema da subsistência de um nexo causal entre a conduta e o resultado o juiz GA não omite a dificuldade de se estabelecer com certeza a existência de uma relação de causa e efeito no campo psiquiátrico entre a adoção ou a não adoção de uma escolha terapêutica e a exacerbação da patologia do paciente Desenvolve erudita análise sobre a matéria A seu dizer hoje já foi repudiado no procedimento de explicação causal o método dedutivo que pressupondo um completo conhecimento de todas as condições iniciais do processo causal e uma perfeita demonstrabilidade científica e empírica de todas as fases pretende fornecer uma resposta certa e absoluta porque fundada em leis universais Não há dúvida que especialmente em matéria de culpa médica uma imputação objetiva do resultado fundada em base estritamente causal condicional tendo em conta a medida de incerteza que permeia a matéria da clínica e da medicina em geral comportaria substancial renúncia a sancionar penalmente comportamentos com frequência gravemente descuidados a incidir sobre o bem primário da vida humana O critério da certeza científica foi assim progressivamente substituído pelo da certeza processual com base no qual subsiste o necessário nexo de causalidade quando a conduta do agente tenha sido condição necessária do resultado com alto ou elevado grau de credibilidade racional ou probabilidade lógica cfr Cass Pen SU 13 de fevereiro de 2002 Franzese Na prática judiciária observase como subsistem hipóteses relativas a condutas culposas e comissivas nas quais a verificação do nexo causal não diverge da que se teria ao se qualificar como omissiva a conduta do agente É claro que o profissional da saúde que erra o tratamento incorre em culpa ativa do ponto de vista etiológico pondo em ação as condições positivas do resultado lesivo mas O Crime Louco 130 ao mesmo tempo do ponto de vista jurídico não tendo ativado as condições negativas do mesmo Sua conduta pois de um lado é condição do resultado porque o determina no mínimo acelerando os tempos do processo e por outro lado igualmente o é porque não ativa condições impeditivas do mesmo Ainda sobre o tema da causalidade entende o juiz que os peritos do juízo tenham documentado suficientemente com base em respeitáveis estudos científicos e dados estatísticos a relação entre distúrbios mentais maiores e delinquência assim como entre esquizofrenia ou outras psicoses e comportamento violento perfeitamente aplicável a essa situação Com relação à argumentação dos peritos da parte que formulavam a hipótese de que à base da descompensação de Giovanni poderiam estar causas diversas da modificação da terapia farmacológica como eventos traumáticos ou estressantes o juiz rejeita tal argumentação sem no entanto excluir o efeito de possíveis concausas Este juiz está convencido de que os eventos traumáticos apontados pelos especialistas da defesa como as mortes das companheiras de comunidade aliadas à situação relativa à descoberta do esgotamento de seus fundos bancários incidiram decisivamente sobre o estado psíquico de MG Todavia no que diz respeito à conduta objeto de inculpação é de se entender que tais fatores agiram apenas como concausas insuficientes por si sós para determinar o resultado Com efeito é de se aplicar nessa matéria o princípio jurídico da equivalência das causas segundo o qual o nexo causal só se exclui se se verificar uma causa autônoma e sucessiva em relação à qual a precedente seja de se considerar tamquam non esser enquanto tal nexo não pode ser excluído quando a causa sucessiva tenha apenas acelerado a produção do resultado Cass pen seção V 14 de julho de 2000 Falvo Na mesma linha o juiz repele a tese dos peritos da parte segundo a qual as manifestações comportamentais do paciente na realidade seriam uma variável dependente das mudanças ambientaisrelacionais e não do tratamento farmacológico Tal convencimento se baseia na O Crime Louco 131 documentação clínica relativa às internações no HPJ de Giovanni nos anos posteriores ao homicídio Com efeito em todo esse período o paciente embora submetido a uma terapia farmacológica maciça e constante não demonstra nenhuma melhora em sua agressividade Este julgador está convencido embora sem ter sobre o tema específico a contribuição cognoscitiva e valorativa dos peritos já que as deduções foram depositadas in limine litis de que tais cortantes conclusões não são aceitáveis Em primeiro lugar porque partem de uma premissa errada o M internado em 27 de maio de 2000 na estrutura de Montelupo Fiorentino não é do ponto de vista psiquiátrico a mesma pessoa que apenas um mês antes começava a manifestar os primeiros problemas comportamentais na comunidade residencial onde morava O paciente internado em seguida ao crime é um sujeito a quem à grave crise psicótica em ação juntamse dois traumas de dimensão relevante o homicídio perpetrado de maneira extremamente violenta e o desenraizamento de um contexto ambiental tranquilizador como era a comunidade residencial Albatros com o recolhimento para carcerário em uma estrutura predominantemente de contenção como é o hospital psiquiátrico judiciário De outro lado porque como já se observou anteriormente é razoável entender que a situação de grave descompensação psicótica de M não tenha sido determinada por um ou outro fator a modificação da terapia ou por condições externas como os lutos ou traumas mas sim pela combinação de todas essas condições que deixadas sem controle tornaram possível a ocorrência do homicídio Conforta tal conclusão a constatação de que após um primeiro período de internação em Montelupo caracterizado por impulsos de violência e agressividade M ambientandose à nova realidade e novamente sedado com a administração de neurolépticos foi progressivamente diminuindo suas agitações tendo ao menos nos últimos tempos se estabilizado substancialmente Quanto às sucessivas internações a progressiva evolução da patologia em psicose orgânica e os fatores O Crime Louco 132 traumáticos derivados das transferências para novas realidades ambientais impedem que se compreenda e se avalie completamente a etiologia de suas manifestações agressivas Finalmente a sentença enfrenta o tema do concurso culposo no crime doloso A defesa do acusado invocara a sentença da Cassação Penal Seção IV de 11101996 9542 na qual se faz referência a dois artigos do Código Penal o art 42 parágrafo 2º do CP segundo o qual a punibilidade a título de culpa é prevista somente nos casos expressamente previstos em lei e o art 113 CP pelo qual a coparticipação culposa é prevista somente no caso de delito culposo Da leitura combinada desses dois artigos seria de se concluir que o concurso culposo não é configurável em delito doloso requerendo o art 42 parágrafo 2º CP uma previsão expressa que no entanto está ausente enquanto o art 113 CP fala de cooperação no delito culposo e não de cooperação culposa no delito contemplando assim tão somente o concurso culposo no delito culposo Mas para o juiz GA tal construção aliás completamente desatenta da mais moderna doutrina penal foi recentemente invertida pela própria Cassação que explicitamente afirmou o concurso culposo é configurável ainda em relação ao delito doloso não o obstando a previsão do art 42 parágrafo 2º CP que referindose somente à parte especial do Código não diz respeito às disposições dos arts 110 e 113 CP Cass Pen seção IV 9 de outubro de 2002 no 39680 Giancarlo tratase de episódio em que foi afirmada a responsabilidade a título de culpa de um sujeito que pelo estado de abandono e negligente descuido em que mantinha um depósito de material de borracha contribuíra para pôr em atuação as condições para que se verificasse um incêndio que na realidade acabou por ser ateado por desconhecidos Na realidade no caso em espécie não parece sequer necessário despertar a problemática do concurso culposo no crime doloso posto que tal não pode ser considerado o ato do incapaz de entender e querer Raciocinando diversamente de fato se deveria excluir a punibilidade da conduta da professora O Crime Louco 133 primária que omitindose culposamente de exercer a necessária vigilância não impedisse que um aluno voluntariamente ferisse um companheiro de brincadeiras A criança assim como o enfermo psíquico para a lei penal é sujeito privado da capacidade de entender e querer todavia do ponto de vista psicológico não se pode excluir que possa cometer um ato intencionalmente A esse propósito a moderna doutrina fala referindose aos estados psicológicos dos incapazes de entender e querer em pseudodolo e pseudoculpa O que na realidade reprovase ao ora acusado não é ter concorrido com sua própria conduta culposa na atividade delituosa de M mas sim não ter impedido um resultado a morte de C que na qualidade de detentor de uma posição de garantidor tinha o dever jurídico de impedir Na conclusão quando da fixação da pena conforme os critérios estabelecidos no art 133 CP diz o juiz é de se considerar que embora a conduta do acusado frequentemente se caracterize por uma superficialidade comportamental e manifesta inadequação a escolha terapêutica adotada embora não na modalidade que o caso concreto impunha se mostra conforme uma interpretação mais evoluída e moderna da psiquiatria que vê o papel do médico mais de uma perspectiva terapêuticosanitária do que de contenção da periculosidade social do paciente Não se pode deixar de concordar com as argumentações da defesa no ponto em que evidenciam que o médico quando podia adotar uma escolha cômoda mantendo o paciente sedado até o fim de seus dias adotou ao contrário uma escolha terapêutica voltada a permitir que M tivesse uma melhor qualidade de vida Sentença de segundo grau sentença no 6607 no20061595 RG 12 jan 2007 da Corte de Apelação de Bolonha terceira seção penal Sentença da Câmara em Conselho na Causa Penal contra O Crime Louco 134 PE em impugnação à sentença proferida pelo GUP de Bolonha em 25112005 PQM Nos termos dos arts 592 e 605 CPP confirma a sentença pronunciada pelo GUP do Tribunal de Bolonha em 251105 contra a qual apelou o acusado PE condenandoo ao pagamento das despesas processuais relativas a esse grau de jurisdição Condena ainda o acusado a reembolsar as despesas despendidas pelas partes civis constituídas liquidandoas em 240000 euros a favor da parte civil B e 240000 euros a favor das partes civis B e C além das despesas gerais IVA e CPA Prazo para depósito em cartório da fundamentação 90 dias Bolonha 12 de janeiro de 2007 O procedimento em segundo grau concernente à sentença no 19842005 foi instaurado pelos advogados de defesa do Dr Euro em 8 de março de 2006 Os advogados entenderam que a indicação das provas em que se baseou a decisão poderia estar correta enquanto enumeração mas a valoração das provas em seu conjunto fora equivocada porque feita em violação ao art 192 parágrafos 1 e 2 CPP Além disso apontaram que a enunciação das razões pelas quais o juiz considerou não dignas de crédito as provas contrárias denunciava de um lado uma submissão acrítica às observações dos peritos do juízo não adequadamente motivada e de outro uma refutação às vezes ausente e sempre parcial e superficial dos argumentos dos consultores da defesa Em essência o juiz teria aplicado o conceito de dever de garantia do psiquiatra em manifesta contradição com o contexto normativo consequente à lei da reforma psiquiátrica No quadro das competências profissionais necessárias ao desenvolvimento da função psiquiátrica de fato não caberia ao psiquiatra a total responsabilidade pelo controle dos comportamentos manifestados pelo paciente que ao contrário O Crime Louco 135 tem quotas de autodeterminação não podendo ser considerado tout court como um sujeito perigoso A conduta do paciente psiquiátrico não pode ser sempre e unicamente manifestação de doença e insensatez analogamente a psicofarmacologia não pode ser considerada como instrumento de controle e repressão de tal conduta O remédio não tem o poder de eliminar um pensamento interpretativo da realidade podendo simplesmente atenuálo e tornar menos perturbadora a relação interpessoal Os peritos psiquiatras de que se valeram os magistrados teriam revelado uma ótica biologista e reducionista enquanto o mais autorizado pensamento científico considera como método de referência no campo do saber psiquiátrico a complexidade e como seu consequente corolário prático o tratamento integrado biopsicosocial Os peritos a posteriori e em relação a um evento dramático teriam erroneamente construído um nexo de causalidade direto entre redução do remédio e manifestação do pensamento interpretativodelirante Os advogados no entanto entendem ter documentado através da literatura científica e das considerações amplamente aprofundadas dos peritos da parte como é de se excluir um vínculo de causalidade linear e unívoco entre a redução da terapia farmacológica e o recrudescimento psicopatológico No recurso de apelação é contestada ainda a responsabilidade atribuída ao doutor Euro de não ter ativado o Tratamento Sanitário Obrigatório em relação a Giovanni para a parte recorrente não subsistiam os elementos previstos em lei Finalmente requereram os advogados a juntada de cópia do original do parecer pericial depositado no Tribunal de Ímola em sede do Juízo Cível onde se desenvolve o processo entre a AUSL de Ímola de quem era empregado o Dr Euro a Cooperativa gestora da Comunidade Albatros e os herdeiros de Ateo Tal parecer afirmaria que nada pode ser atribuído ao doutor Euro nem sob o aspecto da imperícia nem da negligência nem da imprudência tratouse de uma escolha terapêutica justificada talvez imperativa em uma avaliação ex post dos acontecimentos tratou se de erro escusável não estavam presentes os pressupostos do O Crime Louco 136 tratamento sanitário obrigatório A sentença da Corte de Apelação todavia rejeita toda a argumentação da defesa e confirma a sentença de primeiro grau com a condenação do doutor Euro ao ressarcimento dos danos e ao pagamento das despesas das partes civis Reitera o nexo de causalidade revelado pelas provas produzidas em relação à não internação do paciente em regime de TSO Sobretudo reitera que os comportamentos do doente mental são sempre uma manifestação da doença e que o paciente por definição não responde por suas ações por elas respondendo o psiquiatra que pode controlálo assim se revestindo de uma precisa posição de garantidor Sentença de terceiro grau Sentença da Cassação Seção IV Penal 11 de março de 2008 no 10795 Das considerações antes expostas segue a rejeição do recurso com a condenação do recorrente ao pagamento das despesas processuais além dos efeitos sobre a ação civil conforme disposto PQM a Corte Suprema de Cassação seção IV penal rejeita o recurso e condena o recorrente ao pagamento das despesas processuais Condenao ainda a reembolsar às partes civis as despesas por elas despendidas no presente grau de jurisdição despesas que liquida no total de 300000 euros para a parte civil BI e no total de 360000 para as partes civis BM e CA além de para todas as referidas partes civis IVA CPA e despesas gerais como estabelecido em lei Assim foi decidido em Roma em 15 de novembro de 2007 O Relator Dr CB Ao julgar culpado o doutor Euro a sentença considera a posição O Crime Louco 137 de garantidor do psiquiatra sua responsabilidade no tratamento do paciente examina a previsibilidade do resultado o princípio de confiança e o dever de informação do médico descrevendo enfim o mecanismo causal do resultado distinguindo entre causalidade comissiva e causalidade omissiva Preliminar e relevante é a afirmação concernente à posição de garantidor do psiquiatra Com efeito a sentença estabelece que qualquer que fosse o cargo formalmente atribuído ao doutor Euro de fato ele desenvolvia a função de tutela da saúde psíquica do paciente em vínculo contratual que a estrutura pública ou privada lhe conferiu e em vínculo normativo consequente à instauração de uma relação terapêutica O médico portanto estava sob o ônus de uma posição de garantidor no aspecto do dever de proteção ainda que os aspectos sociais relacionais reabilitadores e comunicativos fossem apanágio dos operadores não médicos e não sanitários Julga o psiquiatra responsável por imperícia e imprudência culpa por grosseira violação das regras da arte médica no tratamento do paciente Funda tal juízo na drástica redução do Moditen não executada com gradualismo 20 a cada vez com intervalos de três meses não tendo em conta a presença de distúrbios nos cinco anos anteriores nem a gravidade da patologia esquizofrenia paranoide crônica em fase de parcial remissão diante de um parecer contrário dos colegas A situação estava à beira da descompensação no momento da modificação da terapia e sofreu sucessivo agravamento O psiquiatra não acompanhou a redução da terapia com medidas necessárias de apoio quando a própria posologia no tratamento de urgência era ineficaz A Corte todavia não encontra culpa omissiva pela ausência do TSO enquanto ausente o requisito da falta de aceitação das terapias por parte do paciente A sentença entende que a previsibilidade do resultado restou afirmada sendo a patologia de Giovanni tratada de maneira incongruente a situação era apta a exasperar as manifestações O Crime Louco 138 de agressividade contra terceiros era iminente a reação violenta Confirmamno três episódios sintomáticos de possível descompensação a tentativa de esconder uma faca verificados depois da primeira redução do remédio e os outros dois episódios delirantes o delírio do desaparecimento do dinheiro verificados entre a redução e a suspensão do remédio Em relação ao princípio da confiança e ao dever de informação do médico a sentença encontra negligência por falta de obtenção das informações o médico ignorava que o paciente tivesse estado internado em HPJ deveria ter solicitado as periódicas verificações efetuadas pela equipe e ter se informado mais ativamente Além disso as visitas do médico eram marcadas pela pressa e superficialidade Diante das considerações da defesa a Corte precisa que as omissões de informações úteis por parte dos operadores da estrutura podem ter uma eficácia cocausal mas não excluem a culpa do médico Com referência à relação de causalidade a Corte rejeita a objeção concernente à omissão de verificação da concatenação causal em todos os seus aspectos fáticos e científicos necessários responsabilidade organizacional e de outros sujeitos e que mesmo um tratamento antipsicótico correto não excluiria o risco de recaída apenas reduzindoo em 23 Isto para a Cassação é um critério probabilístico inidôneo a fundar um juízo positivo sobre a causalidade Em apoio à tese da causalidade é citada a Sentença Cass Seção IV 61290 basta que o juiz traga à luz um ou mais antecedentes que assim o sejam de acordo com as leis da ciência sem os quais com alto grau de probabilidade o resultado não teria se verificado Enfim a Corte ressalta a necessidade de se evitar confusões entre causalidade comissiva e causalidade omissiva na primeira é uma proibição que é violada na segunda a violação de um comando Na responsabilidade profissional do médico estão presentes condutas ativas e passivas que interagem entre si tornando difícil precisar a causalidade É comum se dizer que médicos que erraram diagnósticos e terapias não violaram um comando penal mas sim O Crime Louco 139 somente uma proibição de causar ou contribuir para causar lesões ou mortes com negligência imperícia ou imprudência Mas o psiquiatra não violou um comando omitindose de intervir em um caso que requeresse sua ação causalidade omissiva violando sim a proibição de administrar as terapias farmacológicas de modo incongruente inicialmente com uma imotivada redução e depois suspendendoas causalidade comissiva O psiquiatra em essência introduziu no quadro clínico do paciente um fator de risco que acabou por efetivamente se concretizar Não se trata porém de uma referência genérica à teoria do aumento do risco mas da introdução de um fator causal que provocou ou contribuiu para provocar o resultado a descompensação verificada estava etiologicamente ligada à modificação terapêutica O procedimento relativo à coordenadora da residência e à assistente social Sentença de primeiro grau Tribunal de Bolonha Seção destacada de Ímola 2362006 Paralelamente ao processo contra o médico psiquiatra desenvolvese na sede autônoma de Ímola o procedimento relativo à coordenadora da residência e à assistente social do Departamento de Saúde Mental de Ímola O procedimento é complexo e se protrai no tempo Somente à distância de 6 anos em 23 de junho de 2006 é proferida a sentença de primeiro grau Em nome do Povo Italiano o Tribunal de Bolonha seção destacada de Ímola na pessoa do Dr SP proferiu e publicou mediante leitura do dispositivo a seguinte sentença em face de GA ML Nos termos dos arts 62 bis CP 533 535 CPP declara ML culpada do crime a ela atribuído e reconhecendo O Crime Louco 140 em seu favor as circunstâncias atenuantes genéricas condenaa à pena de quatro meses de reclusão além do pagamento das despesas processuais Nos termos dos arts 163 e 175 CP determina a suspensão condicional da pena pelo prazo de cinco anos determinando ainda que a presente sentença condenatória não seja mencionada em certidões penais expedidas a requerimento de particulares exceto por razões de direito eleitoral Nos termos do art 530 parágrafo 2º CPP absolve GA do crime a ela atribuído por não ter a mesma cometido o fato Nos termos do artigo 331 CPP determina a remessa dos autos ao MP junto a esse juízo para que avalie a relevância penal das declarações prestadas por TR na audiência de 29 de setembro de 2005 Nos termos do art 544 parágrafo 3º indica o prazo de 90 dias para o depósito em cartório das motivações Ímola 23 de junho de 2006 Na sentença o juiz acolhe as opiniões dos peritos do MP e as contrarrazões da defesa da assistente social GA rejeitando no entanto as da defesa da coordenadora da residência Dra Laura em relação à qual reconhece a responsabilidade derivada da subsistência de uma posição de garantidor Como se vê a sentença decalca a motivação formulada poucos meses antes pelo Tribunal de Bolonha em relação ao psiquiatra Mas por não falar explicitamente em concurso culposo podese legitimamente questionar se de certa forma as duas sentenças não seriam alternativas De todo modo vale a pena destacar a linguagem dessa sentença e assim de toda a sua impostação teórica fundada em uma ótica psiquiátrica decisivamente tradicional e organicista Estão presentes todos os sintomas da esquizofrenia que constituem os critérios universalmente aceitos em âmbito científicoa esquizofrenia O Crime Louco 141 se caracteriza por importantes distúrbios comportamentais e frequentes manifestações de violência e agressividade Em outras passagens são formuladas considerações desconcertantes a revelar um substancial preconceito em relação aos pacientes psiquiátricos Com efeito M até em sua aparência não era uma pessoa normal mas como é possível dizer uma coisa dessas fonte de perigo que de todo modo reside na doença mental de um ponto de vista sanitário Usa quer expressões alarmistas e de perigo as facas mortíferas quer expressões impregnadas de forte estigma um louco que se sabia potencialmente fora de controle Por outro lado atribuir ao louco responsável pelo homicídio a imagem de um monstro perigoso resulta da vontade de fazer crer que a gestão da crise por parte dos acusados teria sido irresponsável e culpável mas corresponde também à evidente ausência no processo do paciente desaparecido dentro do Hospital Psiquiátrico Judiciário na implícita confirmação de sua periculosidade social Naturalmente seria de se indagar se essas expressões teriam sido utilizadas mesmo na presença do interessado Mas sabese os direitos do ausente são sempre reduzidos O Crime Louco 142 4 O procedimento civil 41 Causa Cível perante a Seção de Ímola do Tribunal de Bolonha entre os herdeiros CA a AUSL de Ímola e a Cooperativa Albatros Relato a perícia dos consultores técnicos oficiais no procedimento civil entre os herdeiros C e a AUSL de Ímola e a Cooperativa Albatros O tema na realidade não deveria ter sido incluído no presente trabalho já que preestabelecido que a matéria a ser abordada diria respeito ao aspecto penal do concurso culposo em homicídio doloso Mas como a perícia trata do tema da responsabilidade profissional pareceume oportuno inserila no texto para uma maior completude das informações É de se considerar ainda que a defesa do psiquiatra tentou inutilmente utilizar exatamente tal perícia na apelação Essa perícia revela mais uma vez uma outra verdade com uma radical inversão do quanto afirmado pelos outros peritos mas também introduz muitas inexatidões que é preciso corrigir Preliminarmente vale notar que os quesitos formulados pelo juiz deslocam a ótica das indagações do plano individual para aquele mais complexo o da organização o projeto terapêutico a tipologia da estrutura os acordos entre ASL e Cooperativa Essa ótica se justifica pela própria natureza do processo estamos em uma causa cível onde adquire importância para o contencioso econômico o peso institucional dos sujeitos imputáveis Objetivamente é preciso ter presente que quando a perícia é entregue a sentença condenatória de primeiro grau em face do psiquiatra já fora proferida mas não a sentença em face da coordenadora da residência A ASL de Ímola está apenas marginalmente envolvida na sentença condenatória do Dr Euro pois o psiquiatra não subscrevera a apólice de seguro que a ASL previra para seus empregados já que tinha uma cobertura assecuratória diversa Os herdeiros C propuseram nesse caso uma ação cível que além de pretender responsabilizar o psiquiatra queria demonstrar O Crime Louco 143 através da responsabilidade da assistente social e da coordenadora da residência também a responsabilidade da ASL e da Cooperativa Seacoop Perícia dos consultores técnicos do juízo no procedimento civil em curso perante o Tribunal di Bolonha Seção Autônoma de Ímola no 2077901 R G N R em tema de responsabilidade profissional Diante de investidura prévia como Consultores Técnicos do Juízo em 16 de julho de 2004 o Exmo Dr CA Juiz do Tribunal Cível de Bolonha seção destacada de Ímola encarregou os abaixoassinados prof FU e prof GI de proceder a avaliações em tema de responsabilidade profissional no procedimento em epígrafe Após ser prestado o compromisso apresentounos os seguintes quesitos Queiram responder os CTJ examinados os autos do processo obtida onde necessário ulterior documentação sanitária obtido o registro das atas das reuniões de equipe e os livros de registros existentes na comunidadeabrigo Albatros e qualquer outra documentação que possa ser fornecida pelas partes bem como ouvidas se for o caso pessoas que tenham informações sobre os fatos 1 Se a formulação diagnóstica sobre o paciente MG no período anterior aos fatos objeto da causa com especial referência aos últimos meses estava correta e se o programa terapêutico previsto e as terapias efetuadas no mesmo período eram congruentes com uma correta colocação diagnóstica identificando em caso contrário as pessoas cujas condutas não foram coerentes com a correta prática operacional e dizendo se o comportamento de MG praticando o homicídio poderia ter sido evitado 2 Se a estrutura na qual MG estava inserido era definitivamente idônea para assegurar as necessidades O Crime Louco 144 terapêuticas e se por qualquer motivo tornarase temporariamente inidônea para assegurar os cuidados e a vigilância do paciente em tal caso queiram indicar as soluções diversas que em uma valoração ex ante deveriam ter sido adotadas 3 Se a estrutura era administrada de acordo com as normas legais vigentes na matéria e se a referida estrutura era administrada em conformidade com os acordos realizados entre AUSL e Seacoop em caso contrário queiram indicar os elementos de gestão não conformes dizendo ainda se com uma administração mais correta o evento posteriormente verificado poderia ter sido evitado 4 Se os acordos entre AUSL e Seacoop foram estipulados em conformidade com as normas legais em caso contrário queiram indicar os acordos não conformes e seus reflexos no tratamento do paciente MG e na ocorrência do evento em questão São as seguintes as considerações conclusivas Não se visualizam a nosso ver comportamentos culposos individuais no âmbito da atividade diagnóstica e terapêutica de modo a constituir fator causal necessário e suficiente para produzir o resultado posteriormente verificado e viceversa de modo a induzir a pensar que sem aquele comportamento culposo ou com comportamento diverso o fato teria sido evitado Em outras palavras entendemos que a complexidade do caso não pode ser reduzida exaustiva e realisticamente à censura da ação de uma ou mais pessoas Neste sentido afastamonos em grande parte das deduções efetuadas pelos peritos IM SM em seu relatório no que elencam uma série de faltas verificadas no tempo com efeito de acúmulo e interação O Crime Louco 145 quais sejam a não obtenção por parte do CSM à época da liberação de MG do hospital psiquiátrico 1995 dos prontuários clínicos anteriores como única fonte da história clínica pregressa do paciente a equivocada inserção do mesmo na estrutura Albatros as frequentes mudanças de terapeuta somente em parte justificadas e a escassa demonstração nos prontuários clínicos de uma passagem de entrega acompanhada de uma eficaz comunicação dos dados clínicos do caso a escassa comunicação e integração entre comunidade e CSM seja em geral seja no período específico da mudança de terapia a falta de comunicação do episódio entre MG e CA de 235 por parte da Dra ML falta de determinação de um caminho a seguir em situações de emergênciaurgência a insuficiente presença de psiquiatras no interior da comunidade a falta de um plano de tratamento individualizado compartilhado pela equipe do CSM e a equipe da estrutura várias inadimplências da equipe psiquiátrica a tornar menos válido e eficaz o tratamento do caso insuficiente presença e pouca atenção por parte de Ippogrifo e Seacoop na seleção e atualização profissional do pessoal acompanhada de escassa supervisão e controle por parte da AUSL Algumas dessas queixas fazem referência a responsabilidades individuais aí incluída a censura ao Dr PE por ter suspendido a terapia depot outras à responsabilidade de equipe atribuídas seja à equipe psiquiátrica seja à sócioreabilitadora enquanto outras ainda se referem à responsabilidade de tipo organizacional Com efeito no caso em questão é difícil fornecer uma visão unitária e uma chave interpretativa e argumentativa tal que consinta ao magistrado uma precisa atribuição de responsabilidades parece evidente que nenhuma das faltas individuais constitua causa necessária e suficiente do resultado verificado que portanto não se O Crime Louco 146 enquadra no âmbito de uma responsabilidade subjetiva nem mesmo o comportamento incongruente de CA que seguramente precipitou o evento pode ser tido como de valor unicausal na medida em que seu comportamento foi ditado em perfeita boafé profissional como surge das anotações no livro de registros da comunidade pela ausência ou insuficiência de preparo específico e pela atribuição de tarefas que requeriam tal preparo como a autoadministração de remédios assistida mas tampouco a chave de leitura plurissubjetiva de responsabilidade no interior da equipe ou da interação entre diversas equipes pode fornecer uma chave de leitura exaustiva na medida em que a análise não pode estar limitada à valoração do comportamento e da interação dos operadores individuais no último período segundo os critérios de confiança e não confiança ou segundo o da responsabilidade difusa este último pareceria bastante adequado na medida em que sem dúvida são identificáveis numerosas faltas individuais nenhuma delas causalmente eficaz ainda que concorrendo para determinar o resultado mas não exaustivo na medida em que existem importantes aspectos organizacionais de natureza administrativa que transcendem a ação técnica dos indivíduos e das equipes colocandose como um pressuposto destas com eficácia determinante no condicionamento do modus operandi dos indivíduos Tais aspectos devem ser buscados essencialmente na escassa dotação de pessoal do DSM imolense que condicionou o estabelecimento da subdivisão do trabalho dos operadores psiquiátricos de modo tal a provocar uma insuficiente presença nas comunidades na desobediência à subdivisão entre residências psiquiátricas com maior ou menor intensidade assistencial no que se refere à presença de pessoal sanitário especializado no interior das comunidades O Crime Louco 147 ou pelo menos na falta de previsão de uma maior presença do psiquiatra na residência Albatros e na falta de previsão da presença de um enfermeiro psiquiátrico pelo menos por faixas horárias Isso remete a uma carência organizacional de tipo estrutural de modo a condicionar negativamente a operacionalidade dos indivíduos e das equipes em seu conjunto e de modo a se colocar como fonte principal de responsabilidade Essa responsabilidade recai sobretudo sobre a AUSL mas também sobre IppogrifoSeacoop na medida em que no curso dos anos não requereu uma modificação dos termos contratuais e não denunciou ao contrário aceitou um regime que a expunha a evidentes riscos de inadequada gestão dos pacientes Depositado em cartório em 1 de março de 2006 As conclusões dos expertos invertem as considerações precedentemente formuladas pelos colegas peritos do MP e adotadas pela sentença de primeiro grau Com efeito contrariamente àquelas análises a suspensão do Moditen Depot por parte do Dr PE deve ser considerada a nosso ver como uma tentativa de verificação da possibilidade de modificação de uma terapia cada vez mais incômoda para o paciente na medida em que portadora de efeitos colaterais considerando ainda a instauração de uma melhor relação terapêutica médicopaciente Em essência a tentativa de suspensão da terapia a nosso ver não deve ser incluída no âmbito da culpa mas sim no do erro que no caso em questão se torna um erro escusável na medida em que diz respeito a um ato médico incluído nas possibilidades de erro da ciência médica enquanto ciência empírica que com bastante frequência deve proceder na prática por tentativas e erros Os peritos afirmam sem hesitações que nenhuma das faltas individuais constitui causa necessária e suficiente do resultado O Crime Louco 148 ocorrido e que portanto não nos encontramos no âmbito da responsabilidade subjetiva afirmando ainda que tampouco a chave de leitura plurissubjetiva da responsabilidade de equipe ou da interação entre diversas equipes pode fornecer uma chave de leitura exaustiva Para os peritos apenas importantes aspectos organizacionais de natureza administrativa transcendendo a atuação técnica dos indivíduos e das equipes colocamse como um seu pressuposto com eficácia determinante no condicionamento do modus operandi dos indivíduos Motivam tais afirmações referindose à normativa nacional e regional as normas legais preveem que as estruturas residenciais para pacientes psiquiátricos sejam diferenciadas conforme a tipologia de sua utilização e em função da maior ou menor necessidade de intervenção sanitária especializada Já no DPR 7494 as estruturas residenciais para longa permanência eram subdivididas em três categorias destinadas a três situações diversas a casos de não atribuição psiquiátrica b casos de assistência por serviços não psiquiátricos mas com problemáticas neuropsiquiátricas c casos de exclusiva pertinência psiquiátrica No mesmo DPR que previa tempos de intervenção de no máximo 5 anos se especificava que os liberados dos hospitais psiquiátricos com necessidades prevalentes de assistência psiquiátrica deveriam ser abrigados em estruturas residenciais psiquiátricas enquanto aqueles com necessidades predominantemente sócioassistenciais devido à idade à presença de desabilidades ou à situação social poderiam ser abrigados em uma das estruturas enumeradas nas alíneas a ou b do DPR 7494 Por deliberação da Junta Regional de 31398 no 759 foram estabelecidos os requisitos mínimos de pessoal orgânico para as comunidades protegidas psiquiátricas dentre os quais presença programada ou pronta possibilidade de localização do pessoal médico de enfermagem ou de reabilitação com relação operadorcliente não inferior a 1 para 2 e para as residências sanitárias psiquiátricas dentre os quais enfermeiros educadores e pessoal de assistência de base presença O Crime Louco 149 programada ou pronta possibilidade de localização do competente pessoal médico de enfermagem e de reabilitação com relação às características da clientela No convênio entre a AUSL de Ímola e a sociedade Ippogrifo não está prevista a presença programada de pessoal médico ou de enfermagem na comunidade Albatros não se encarregando a comunidade da gestão psiquiátrica enquanto a AUSL se compromete a fornecer à estrutura o serviço de consultoria psiquiátrica através de figuras profissionais idôneas na realidade a consultoria psiquiátrica é ofertada sob a forma de visitas psiquiátricas ambulatoriais possibilidade de localização para as emergências presença nas reuniões de equipe de um psiquiatra de referência para a estrutura uma vez por mês e de uma assistente social duas vezes por mês Um convênio assim concebido não parece estar conforme à normativa nacional nem àquela regional sobretudo no que se refere à falta de previsão de uma presença efetiva durante a semana ou por faixas horárias de um psiquiatra e um enfermeiro Em essência terseia a desobediência à normativa no que se refere à presença de pessoal sanitário especializado no interior da residência Albatros A motivação dos peritos faz referência à necessidade assistencial com uma relação operadorcliente de 1 para 1 expressa no convênio entre ASL e Cooperativa Tal dado implicitamente indicaria se tratar de estrutura residencial de exclusiva pertinência psiquiátrica necessitando portanto de uma relevante presença de pessoal sanitário Terseia além disso a inobservância da requerida subdivisão na organização do DSM de residências psiquiátricas de maior ou menor intensidade assistencial estando estas últimas até mesmo ausentes contrariamente às determinações regionais e nacionais Com efeito objetase quanto à colocação em tal estrutura de um paciente que apresentava grave patologia psiquiátrica esquizofrenia paranóica crônica Esse conceito é claramente expresso A estrutura não era idônea desde o início para o paciente MG na medida em que sua patologia aplacada pelos remédios mas não extinta requeria a colocação em uma O Crime Louco 150 estrutura residencial psiquiátrica de elevado nível assistencial verossimilmente inexistente no território imolense se como parece possível deduzir da documentação examinada todas as estruturas estavam estabelecidas do mesmo modo ou seja prevendose para cada estrutura tão somente uma miniequipe composta de psiquiatra e assistente social com a exclusiva tarefa de consultoria e supervisão Verificada a descompensação a única alternativa possível seria um TSO ou uma internação forçada por razões de emergência Os peritos criticam em seguida a autoadministração assistida dos remédios No convênio não há qualquer referência à administração dos remédios de fato executada na forma de autoadministração assistida vale dizer delegada ao pessoal não sanitário da estrutura Finalmente os peritos ressaltam a seleção e formação do pessoal das cooperativas Podemos em parte concordar com a censura feita em relação à seleção do pessoal e à falta de promoção de formação e aperfeiçoamento censura que quando a esse segundo ponto recai em parte também sobre a AUSL Com efeito no convênio estipuladopodem ser visualizadas obrigações relativas à formação e ao aperfeiçoamento profissional sendo a empreiteira responsável pelo fornecimento e portanto também pela seleção e aperfeiçoamento de seu próprio pessoal 42 Considerações sobre a perícia Na perícia foram formuladas críticas ao modelo organizacional de Albatros podendo ser resumidas nos seguintes conceitos A residência seria uma instalação reabilitadora socioassistencial semelhante a uma RSA31 seja pelas figuras profissionais presença de operadores sociossanitários de educadores profissionais ausência 31 Nota à edição brasileira RSA é a sigla de Residenza Sanitaria Assistenziale isto é Residência Sanitária Assistencial A RSA é uma estrutura residencial extrahospitalar destinada a fornecer acolhimento serviços de saúde e recuperação tutela e tratamentos reabilitadores aos idosos sem autossuficiência física e psíquica O Crime Louco 151 de enfermeiros seja pelo tipo de organização um montante de horas de pessoal sanitário bastante reduzido Teria sido por isso equivocada a colocação em tal estrutura de um paciente esquizofrênico e consequentemente a estrutura teria se revelado incapaz de enfrentar a situação de crise A própria administração dos remédios atribuída ao pessoal não sanitário da estrutura estaria a revelar essa contradição sendo ilegal Em um segundo passo teriam faltado cursos de formação e de atualização para os operadores da residência exatamente para que pudessem enfrentar semelhantes situações Finalmente é criticado o dispositivo que vetava a manutenção no ambulatório da residência dos prontuários das precedentes internações dos moradores justificada como direito à privacy e como repúdio ao estigma psiquiátrico esse dispositivo teria determinado uma condição objetiva de desconhecimento de um perigo a que estariam expostos os operadores Em essência denunciase implicitamente e às vezes também explicitamente uma superficial e ideológica posição antipsiquiátrica na gestão da residência e talvez em todo o processo de superação do hospital psiquiátrico de Ímola Tal posição teria julgado ingenuamente poder resolver a problemática da doença mental simplesmente através da negação da periculosidade do paciente psiquiátrico Tudo isto teria constituído um grave erro de avaliação especialmente em relação a uma tipologia de pacientes os esquizofrênicoparanóicos que objetivamente traziam um alto risco de violência e agressividade A toda evidência quem formula essas críticas não conhece o processo de desinstitucionalização como realizado em Ímola seu rigor metodológico a recusa a qualquer ideologia seu valor científico documentado pelos numerosos reconhecimentos de organismos internacionais e nacionais dentre os quais a OMS e o Ministério da Saúde Não conhece tampouco os dispositivos revelando graves erros de documentação Albatros era uma estrutura em que a finalidade sócioreabilitadora prevalecia sobre a sanitária Sem dúvida Mas é igualmente verdadeiro que o Departamento de Saúde Mental de O Crime Louco 152 Ímola estava dotado de uma ampla gama de estruturas de tratamento e reabilitação existiam estruturas de alta funcionalidade sanitária e outras onde ao contrário prevaleciam funções mais marcadamente reabilitadorasressocializantes Pelo menos três as duas unidades da residência Il Sole e a Lungodegenza Villa dei Fiori correspondiam à tipologia de estruturas residenciais psiquiátricas de elevada intensidade e com relevante presença profissional especializada estruturas administradas diretamente pelo DSM com pessoal próprio Albatros correspondia no entanto à tipologia das estruturas com prevalentes necessidades sócioassistenciais item dois do DPR 7494 estruturas para os casos assistidos por serviços não psiquiátricos mas com problemáticas neuropsiquiátricas A cada estrutura correspondiam organicidades diferentes maior ou menor número de figuras profissionais sanitárias eou sócioreabilitadoras e diferentes projetos terapêuticos Assim contrariamente ao quanto expresso pelos peritos Albatros não constituía a única escolha forçada para Giovanni no carente panorama da dotação do DSM de Ímola se ter 23 residências significa ser carente qual seria para os peritos a situação ideal No momento em que fosse constatada uma agravação das condições psíquicas de um morador de uma residência havia a possibilidade de transferilo para outras estruturas apropriadas A motivação dos peritos e suas conclusões se fundam sem dúvida em pressupostos e dados totalmente equivocados Mas de onde vem esse erro Provavelmente de um preconceito que fixa sua atenção na presença em Albatros de pacientes psiquiátricos e especialmente de Giovanni um esquizofrênicoparanóico crônico E sabese parecem dizer os peritos que um esquizofrênico mesmo residual permanece sempre um paciente necessitado de tratamento no interior de contextos psiquiátricos Assim adotando uma análise a posteriori se infirmam escolhas efetuadas em precedência Mas Giovanni foi incluído em Albatros após atenta avaliação que tivera em conta sua consolidada melhora e a simultânea necessidade de ter uma situação protegida de moradia e relacionamentos Durante onze O Crime Louco 153 anos conseguira alcançar uma condição de relativo equilíbrio que de todo modo não requeria medidas de contenção e certamente não se pode dizer que onze anos de bemestar constituam um arco de tempo pouco significativo Foi desenvolvido para ele um programa reabilitador individualizado conforme a metodologia da desinstitucionalização realizada em Ímola Os peritos dessa perícia técnica analogamente a todos os peritos do juízo mas não aos das partes parecem entender no entanto que a melhoria das condições psíquicas de Giovanni fosse atribuível somente ao remédio long acting e que de todo modo fosse aparente e transitória É uma visão primitiva ingênua além de redutora da realidade Além disso é até ofensiva em relação a quem com grande empenho conduziu e conduz processos relacionais e reabilitadores Com efeito gostaria de ressaltar que os operadores de Albatros demonstraram saber corresponder com alto profissionalismo às necessidades de Giovanni ainda que estas nem sempre fossem fáceis de interpretar e corresponder Em suma que Albatros constituísse uma estrutura idônea confirmam no exatamente os cinco anos ali vividos por Giovanni sem nenhum problema relevante de comportamento tratase de lapso de tempo suficiente para se verificar a correção de uma escolha Onde está então o problema Na verdade a objeção remete mais uma vez às diferentes óticas com que se afronta o tema do restabelecimento e da doença Ambos os conceitos correm o risco de desviar atenções na medida em que remetem a complexas considerações científicas Mas para simplificar poderseia dizer que Giovanni não estava totalmente curado dos efeitos de invalidez provocados pela doença e pela institucionalização mas tampouco era um falso restabelecido Mais simplesmente e mais corretamente segundo a terminologia da recovery Giovanni dera passos significativos no caminho da melhoria de suas condições psíquicas emocionais e relacionais estando em condições de fazer frente a uma vida social Nesse sentido a escolha da Albatros como moradia fora a melhor resposta possível O Crime Louco 154 Mas objetouse os operadores de Albatros por sua qualificação profissional seriam capazes de ler as situações de agravação de um paciente psiquiátrico A julgar pelos fatos e contrariamente a quanto assentado pelos peritos dirseia que sim Confirmamno por exemplo todas as suas observações no registro secreto Em todo caso eram capazes de fazêlo seja a coordenadora da residência para quem era exigida a qualificação de psicóloga ou pedagoga seja a assistente social seja naturalmente os psiquiatras que tinham o dever de acompanhar e monitorar os projetos terapêuticos dos pacientes Também no caso da formação e atualização dos operadores a documentação dos peritos é insuficiente e suas conclusões erradas Os empregados das cooperativas sociais privadas compartilharam diversas atividades de formação e atualização voltadas para o pessoal do DSM tendo participado de atividades específicas de formação as atividades da equipe transversal O problema da distribuição dos remédios aos moradores da residência já foi tratado nesse livro os dispositivos esclareciam que exatamente pela tipologia sócioassistencial da estrutura os remédios deveriam ser autoadministrados pelos moradores O operador deveria se limitar a ajudar os interessados a desenvolverem essa tarefa sem jamais forçar a situação Havendo necessidade os enfermeiros e o médico interviriam Essa modalidade fora objeto de longos aprofundamentos e se tornara executável pela Direção Sanitária da ASL A referência a dispositivo que vetava o conhecimento da história dos pacientes feita na perícia dos consultores do MP não tem fundamento talvez se baseando em um equívoco Ressaltei a exigência de fundar a avaliação das necessidades do paciente em um processo de conhecimento atento crítico profissional não baseado em estereótipos A leitura dos prontuários por exemplo requeria competência profissional e certa capacidade crítica numerosos estudos de revisão dos diagnósticos de internação O Crime Louco 155 em hospital psiquiátrico frequentemente mostraram sua falta de fundamento inclusive pela alteração dos critérios diagnósticos Portanto o dispositivo de não manter nas residências tenhase em conta em um contexto não sanitário os prontuários clínicos das precedentes internações correspondia à exigência de evitar o acesso indiscriminado a dados sanitários dos moradores o que estaria a lesar seu direito à privacy Mas isso era completamente diferente em relação à indiscutível exigência de informação por parte dos operadores sóciossanitários O psiquiatra avaliaria se e como dar conhecimento da história do paciente aos operadores da cooperativa fornecendolhe as chaves de leitura Feitos esses esclarecimentos é imperativo acolher algumas perplexidades formuladas pelos peritos É necessário fazêlo em relação a uma questão como ainda que limitada a investigação aos dias imediatamente anteriores ao evento delituoso diante de uma situação de tão grave sofrimento e perigo iminente não se pôs em ação uma intervenção rápida e eficaz Como essa percepção não foi transmitida aos responsáveis pelo DSM Por que não foram referidas ao doutor Euro ou à Dra PAM as ameaças de Giovanni por que se limitaram a anotálas em um registro sem saber se algum dia este seria consultado Por que durante a reunião de equipe não foram fortemente expressos os temores e dúvidas Como a Dra Laura não transmite com clareza as ameaças aos psiquiatras Como diante primeiro das exaustivas tentativas de envolver o psiquiatra com o caso de Giovanni e em seguida diante da ausência de melhora do paciente a coordenadora da residência não se vê na obrigação de se dirigir aos responsáveis pelo DSM Percebese uma difusa dificuldade de comunicação que cria equívocos e provoca erros é a mesma dificuldade que enfatizei em meu relatório ao Diretor do Distrito em 16 de junho de 2000 Estamos diante de um mau funcionamento do trabalho em equipe e uma escassa integração entre o Departamento de Saúde Mental e a Cooperativa A coordenadora da residência não consegue encontrar O Crime Louco 156 a forma de comunicar informações importantes e expressar as vivências dos operadores mas tampouco parece exigilo O psiquiatra modifica o tratamento farmacológico sem envolver os operadores da residência e quando sucessivamente dálhes uma tarefa pede lhes um comportamento passivo Quando em reunião falase de Giovanni parece natural para o psiquiatra mas também para os operadores que esteja ausente o terapeuta que tem a seu encargo o paciente E a Dra PAM que exerce as funções de supervisão não percebe a profunda ansiedade dos operadores e não visualiza as dificuldades em que se encontra a coordenadora As necessidades terapêuticas de Giovanni não se medem unicamente em miligramas de Moditen ou na realização de um TSO Em uma situação psicopatológica grave o que o paciente necessita é ser assumido por um grupo que se mova por um projeto claro que mostre generosidade e intensidade de pensamento Como ensinou a experiência de desinstitucionalização é essa espécie de energia coletiva que permite conter psicologicamente o paciente grave Nesse caso as carências são desconcertantes exatamente porque acontecem em um contexto em que aquela experiência era conhecida e praticada há longo tempo Na realidade o modelo original da residência previa um só psiquiatra de referência para todos os moradores o qual se tornava automaticamente ponto de referência também para os operadores Os projetos terapêuticos e sua verificação eram fruto de um trabalho comum entre o psiquiatra o assistente social e os operadores Com o tempo a atividade reabilitadora se assentara em níveis de rotina e parecera oportuno reduzir o empenho médico para encaminhálo a outros setores do DSM Além disso para atender as necessidades de escolha dos pacientes individualmente permitiuse a presença de outros psiquiatras nas residências Essa solução porém aumentava a complexidade da situação introduzindo dificuldades de comunicação e impondo exigências de coordenação maiores e mais delicadas Em Albatros do que se pôde apurar entrara em crise a O Crime Louco 157 função de coordenação do psiquiatra de referência e a de um grupo de trabalho coeso entusiasta e motivado em que se substituíram situações provocadoras de confusão e conflitos É oportuno ter presente no entanto que esse modelo foi substancialmente mantido em todas as outras residências sem criar conflitos trazendo ao contrário decisivas melhorias para os moradores Colocase então novamente a pergunta original o que não funcionou em Albatros É difícil responder talvez porque seja próprio das organizações fundadas no elemento humano serem opináveis e rapidamente modificáveis O suceder natural dos fatos às vezes resolve os erros outras vezes escondeos tornandoos críticos A Direção do Departamento de Saúde Mental certamente tem sua parcela de responsabilidade na ausência de indicativos claros de disfunção não existiram coisas demais foram tidas como certas Paradoxalmente exatamente os resultados positivos até então obtidos com a colaboração da organização social privada induziram um comportamento de presunção e reduziram a atenção De alguma forma era previsível certo desgaste do processo de desinstitucionalização por razões fisiológicas mas se esperava que isso acontecesse muito mais tarde A situação sentinela de Albatros mostrou no entanto como o processo de regressão poderia progredir rápida e seriamente quando se introduzem em um contexto consolidado algumas novidades um médico sem experiência antimanicomial um educador cheio de boa vontade mas inapto a trabalhar com pacientes psicóticos a perda do papel de referência do psiquiatra da residência o aumento do turn over do pessoal da cooperativa que à época inclusive mudara sua direção uma situação de transição no vértice do DSM Mas existiam também razões estruturais que faziam presumir o surgimento de ulteriores dificuldades A área de acolhimento dos velhos hospitais psiquiátricos de Ímola a catchment area se referia a toda a Romagna e à província de Bolonha A superação da instituição teve assim de envolver todas as empresas sanitárias dessa área Era portanto evidente que o O Crime Louco 158 processo se revelaria complexo e com graves dificuldades Os recursos do velho hospital psiquiátrico foram progressivamente se reduzindo corretamente com o objetivo de alcançar em cada realidade local uma relação ótima entre as exigências dos estados agudos e as da reabilitação Em essência era preciso operar uma progressiva transferência de responsabilidades e recursos de uma situação centralizada para as realidades do território Mas esse processo acabara por exacerbar as exigências das residências terapêuticas sem considerar simultaneamente os efeitos das políticas das ASL constantemente tendentes a reduzir as despesas sanitárias incidindo especialmente nos setores de menor peso tecnológico como a Saúde Mental Em essência era preciso fazer como atualmente há muitos anos vem se fazendo o casamento com figos secos32 Essa condição provocou um equilíbrio bastante precário do sistema com o risco de que elementos de relevância mínima pudessem induzir efeitos negativos relevantes Essa reflexão é útil para tornar compreensível a zona cinzenta em que se movia a cooperativa como a cooperativa não comunicou ao DSM as verdadeiras razões da transferência do educador Ateo por que não acolheu os pedidos da coordenadora de tirálo de Albatros por que constrangeu sua coordenadora a mentir e rasgar sua denúncia por que os sinais de malestar entre os operadores foram escondidos Podese antecipar uma hipótese existia uma necessidade da parte da cooperativa de minimizar os problemas por medo de ser julgada incapaz ou menos capaz do que outros para administrar as situações difíceis O clima competitivo criado entre as cooperativas de serviços em consequência da redução de recursos por parte da AUSL criava um forte temor de exclusão de futuras seleções Por isso era necessário 32 Nota à edição brasileira Fazer o casamento com figos secos é um dito italiano que significa querer fazer grandes coisas sem ter os meios para tanto ou economizando ao máximo Figos secos na Itália são alimento barato e muito comum não sendo portanto dignos de uma festa importante como um casamento O Crime Louco 159 minimizar e lavar a roupa suja em casa suscitando uma espiral perversa de perda de qualidade com aumento do turn over e do burn out dos operadores Os cortes do orçamento executados com critérios burocráticos aparecem somente como correções de números feitas nas instâncias do poder permanecendo sempre além de qualquer possibilidade de confronto por parte de quem os sofre A fria neutralidade dos números quase nunca representa os dramas humanos que irão se produzir Quase sempre imunes às sanções penais os dirigentes das empresas sanitárias poderão no máximo sofrer sanções administrativas E se isso acontecer não será porque não forneceram saúde para os cidadãos mas tão somente porque não reduziram suficientemente as despesas Em suma olhando bem por trás de eventos tão dramáticos como os descritos nesse livro sempre se descobrem tantos pequenos ou grandes erros Alguns permanecem ocultos sobre outros se fixa a atenção dos investigadores alguns são penalmente relevantes outros não são comprováveis outros ainda se ocultam por trás de alguns miligramas de psicofármacos da falta de controle sobre facas de uma cozinha ou de um simples diagnóstico psiquiátrico Mas quem é realmente esquizofrênico o paciente ou a situação Quem é verdadeiramente perigoso Onde nasce o incidente O Crime Louco 160 III O incidente de Gorízia Domenico Casagrande 1 O fato 26 de setembro de 1968 Dos autos do processo judiciário Em 26 de setembro de 1968 às 14h30m após chamada telefônica agentes da delegacia de Gorízia se deslocaram para o local denominado Oslavia Via Lenzuolo Bianco 2 onde encontraram o cadáver de Milena Kristancic que apresentava uma grande ferida na nuca A mulher fora morta pelo marido Alberto Miklus visto quando se afastava em direção a um matagal para os lados da fronteira com a Iugoslávia Miklus que desde 1951 estava internado no Hospital Psiquiátrico de Gorízia naquela manhã foi acompanhado à sua residência por um enfermeiro do Hospital Psiquiátrico para passar um dia de licença Miklus foi encontrado dois dias depois escondido em um bosque distante cerca de um quilômetro de sua residência Conduzido à delegacia e interrogado declarou que durante a permanência no Hospital Psiquiátrico fugira várias vezes mas sempre fora recapturado Fugia para poder visitar os familiares porque não queria que os três filhos fossem visitálo no Hospital não desejando que vissem os lugares onde estava recolhido A mulher o visitava a cada dois ou três meses mas ele não gostava dessas visitas estando convencido de que fora ela a causadora de sua internação no manicômio Na manhã de 26 de setembro um enfermeiro o confiara aos familiares fazendo o filho Marjan assinar um termo e antes de se retirar dissera que retornaria por volta de 21 horas para buscálo Durante a manhã esteve no pátio conversando com os dois filhos Domenico Casagrande colaborou com Franco Basaglia em Gorízia e em Trieste diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia e de Veneza também foi responsável pelo Departamento de Saúde Mental de Veneza e diretor sanitário da AUSL de Veneza O Crime Louco 161 Davide e Marjan que após encherem garrafões de vinho saíram Por volta de 12 horas a mulher o convidou para acompanhála ao campo para levar o almoço dos operários que colhiam as uvas Respondeu que não queria ir ao campo porque ficando próximo da fronteira iugoslava tinha medo de ser expatriado A mulher regressou por volta de 12h30m e se pôs a fazer os trabalhos de casa Surgiu uma discussão entre os dois porque ela reclamava por ele não ter querido ir ao campo e porque exigia que ele desse sua suéter para os filhos Após essa discussão pegou um martelo de pedreiro e bateu na cabeça da mulher Ao sofrer o primeiro golpe a mulher tentou escapar mas caiu no cômodo vizinho Quando estava caindo ele ainda a atingiu duas ou três vezes usando o martelo do lado da lâmina Saiu jogou o martelo no pátio e foi se esconder no bosque No dia seguinte aproximouse da residência para ter notícias do estado de saúde da mulher pensando que tivesse apenas a ferido Não fora em casa para matar a mulher só a atingiu após a discussão Marjan Miklus interrogado por um suboficial da PS relatou que em 25 de setembro um enfermeiro do hospital psiquiátrico se apresentou na cantina pedindo à sua irmã Giuseppina que no dia seguinte algum dos filhos fosse ao hospital para pegar o pai que expressara o desejo de transcorrer um dia em família A irmã explicou que não tinham meios para leválo até em casa sugerindo que eles mesmos o acompanhassem Com efeito no dia seguinte chegaram em casa o enfermeiro e o pai O enfermeiro pediu que assinasse um recibo de entrega acrescentando que não tinham com que se preocupar pois o pai estava tranquilo Com efeito o pai parecia bastante calmo Falou com a mãe com a maior tranquilidade mas ele sabendo que o pai no passado ameaçara a mãe de morte disseralhe para ficar atenta e tentar manter distância do pai Por volta de 11 horas ele e o irmão Davide saíram para levar o vinho para Gorízia regressando por volta de 12h30m Ao regressarem o pai estava sozinho em casa Às 13 horas a mãe voltou e pediu que fosse ao campo com o trator para pegar as vasilhas de vinho Saiu deixando em casa o irmão Davide O Crime Louco 162 que por sua vez saiu antes das 14h horas para ir à Biblioteca Municipal de Gorízia Regressou à casa por volta de 14h15m encontrando a mãe caída na cozinha O pai fugira muitas vezes do hospital Uns dez anos antes em uma dessas fugas vindo em casa ameaçou a mãe de morte com uma baioneta O pai não gostava que os filhos o visitassem no hospital não gostando tampouco das visitas da mãe porque estava convencido de que fora ela a causadora de sua internação no hospital psiquiátrico Davide Miklus confirmou as declarações do irmão afirmando que o pai pela manhã estava tranquilo nada fazendo prever o que aconteceria O pai lhe pediu notícias de seus estudos seu trabalho no campo de pessoas mortas na região e seus parentes Às vezes fantasiando explicava como morriam os doentes no hospital psiquiátrico dizendo que botavam remédios na comida e assim eles morriam Recomendava que prestassem atenção na mãe porque ela também poderia colocar pílulas na comida e fazêlos morrer Naquele dia saiu pouco antes das 14 horas tendo o pai o acompanhado até o final do pátio Em 7 de outubro de 1968 Marjan Miklus interrogado pelo Procurador da República confirmou o que antes declarara à polícia Precisou que jamais ouvira o pai proferir expressões ameaçadoras de morte dirigidas à sua mãe Somente uns dez anos antes vira o pai apontar uma baioneta para o peito da mãe durante uma de suas fugas do hospital No dia do fato o pai aparentava calma passando facilmente da brincadeira à seriedade jamais poderia pensar que ele iria matar a mãe Davide Miklus também relatou ao Procurador da República que o pai parecia tranquilo naquela manhã ainda que suas falas estivessem orientadas por bases fantásticas Jamais ouvira o pai ameaçar a mãe embora estivesse convencido de que ela fosse a causadora de sua internação e de sua doença Alguns dias antes do fato o irmão pegara o pai no hospital sendo obrigado a assinar um papel para poder leválo em casa sem a assistência de enfermeiros Ivan Klaniscek aluno de enfermagem do hospital psiquiátrico declarou ao Procurador da O Crime Louco 163 República que tendo Miklus lhe expressado o desejo de ir em casa para a vindima transmitira tal desejo ao chefe da seção o qual o levara à assembléia dos psiquiatras que tinha lugar toda semana às 8h30m Em seguida o chefe da seção lhe pedira para avisar os familiares de Miklus o que foi feito Como a filha do interno lhe dissera que não tinham meios para o transporte do pai até em casa o chefe da seção o encarregou de acompanhar Miklus à casa em seu carro Durante a viagem Miklus se manteve calmo parecendo estar muito contente Chegando à residência dos Miklus fez com que o filho Marjan assinasse o documento em que assumia a responsabilidade pelo caso retirandose e dizendo que voltaria à noite para buscar o interno Em 30968 Alberto Miklus relatou ao Procurador da República que naquele dia após as 13 horas começara a discutir com a mulher Esta lhe dissera que muitos de seus parentes estavam mortos e insistira para que fosse com ela ao campo próximo da fronteira para ver os que ali trabalhavam dentre os quais provavelmente estaria o primo Luigi Zulian Em determinado momento pegou um martelo e bateu na cabeça dela dizendo Pare de gritar A mulher caiu e ele se afastou escondendose nos bosques próximos porque sua intenção era voltar em casa ou ir à polícia não sabendo que a mulher estivesse morta A mulher sempre lhe chamara de louco mas não era verdade que ele fosse doente mental O prof Franco Basaglia diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia foi acusado de homicídio culposo Em 12101968 interrogado pelo Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia afirmou não ser previsível que Miklus chegasse ao ponto de cometer o crime pois jamais manifestara o propósito de eliminar a mulher A condição clínica de Miklus não levava necessariamente ao homicídio Miklus nos últimos dois anos vinha aceitando a visita dos filhos coincidindo com um clima na enfermaria que permitia relações O Crime Louco 164 interpessoais intensas e corretas Era chegada pois a ocasião de se iniciar o lento trabalho de recuperação dos laços familiares Miklus foi várias vezes em casa acompanhado pelo médico da seção e posteriormente por enfermeiros Em 15 de setembro Miklus afastandose do hospital fora à casa da família Um enfermeiro o encontrou em um bar perto de sua residência e o acompanhou até lá Os filhos prometeram ao pai que no dia seguinte iriam buscálo O caminho percorrido nos últimos dois anos de internação com a constante reaproximação com a família induziramno a conceder a licença sob responsabilidade dos filhos Por tais razões foi concedida a Miklus a licença de 259 Nesse dia ele estava ausente da sede A proposta de licença foi discutida na reunião ordinária da manhã na presença do médico assistente e do pessoal de enfermagem da seção O Crime Louco 165 2 As perícias psiquiátricas 21 A perícia do juízo O Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia determinou que Miklus fosse submetido a perícia psiquiátrica e como o acusado em 14101968 estivesse internado no manicômio judiciário de Reggio Emilia deprecou ao Juiz Instrutor do Tribunal de Reggio Emilia que o submetesse ao exame O Juiz Instrutor do Tribunal de Reggio Emilia em 28101968 nomeou o subscritor perito psiquiatra e em 9 de novembro após apresentar os quesitos de praxe acrescentou o seguinte quesito Queira o Sr Perito dizer se dadas as condições psíquicas de Miklus relacionadas a suas disposições de ânimo e atitude mental em face da própria esposa repetidamente manifestadas em várias ocasiões anteriores era previsível que o mesmo chegasse ao ponto de executar os propósitos ameaçadores contra ela Exame do sujeito Anamnese As seguintes notícias são extraídas dos autos da Cópia da Ficha Clínica do Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorízia e dos Questionários Informativos compilados pelo Prefeito de Gorízia e pelo Comandante da Delegacia Central da Polícia de Gorízia Antecedentes familiares O pai morreu aos 85 anos de hipertensão arterial A mãe morreu aos 83 anos por esclerose do miocárdio Esta teve cinco filhos dos quais três estão vivos Um filho morreu aos 15 anos de meningite e outro aos 32 anos de tbc pulmonar Não há casos psicopatológicos na família Antecedentes pessoais Terceiro filho o sujeito nasceu a termo de parto normal em 2771906 sendo amamentado O Crime Louco 166 Na infância não teve doenças dignas de nota Na escola demonstrou normal capacidade de aprender chegando à 8ª série elementar Considerado apto no recrutamento prestou o serviço militar de 2041926 a 15101926 Casouse aos 38 anos tendo três filhos todos ainda vivos e sãos De junho de 1942 a abril de 1945 atuou como partigiano33 na função de Comissário do 2º Batalhão da Brigada partigiana Simon Gregoric Em tal período sofreu uma pleurite basal bilateral e poliartrite reumática Em abril de 1947 recebeu uma carta anônima na qual era intimado a pagar 500000 liras sob ameaça de morte Não obedecendo à intimação em 2341947 dois indivíduos entraram em sua residência efetuando contra ele alguns disparos de arma de fogo que afortunadamente não o atingiram Um dos autores do atentado foi identificado e condenado Libertado após cumprir a pena fez uma visita a Miklus que se assustou muito e começou a demonstrar uma mudança de caráter tornandose depressivo preocupado desconfiado e bastante suspeitoso Em 30 de dezembro de 1951 foi internado no Hospital Psiquiátrico de Gorízia com diagnóstico de personalidade psicopática No início mostrava se assustado e ansioso suspeitava de todos até mesmo da própria mãe e da cunhada mas não da esposa Recusava a comida do hospital alimentandose somente do que lhe levava a esposa Submetido à terapia de eletrochoque em 2911952 estando bem melhor foi liberado condicionalmente e confiado à esposa Em 1731952 foi novamente internado no supramencionado hospital por estar tomado por delírio de perseguição Após um breve ciclo de choques terapêuticos em 29 do mesmo mês estando melhor foi liberado e entregue 33 Nota à edição brasileira Os partigiani foram guerrilheiros civis que lutaram contra os nazistas e fascistas na Itália durante a Segunda Guerra Mundial Os combates foram especialmente sangrentos na zona de Gorízia provocando dilaceração social e desejos de vingança que se prolongaram por longo tempo O Crime Louco 167 à esposa Em 1441953 foi internado pela terceira vez no hospital psiquiátrico porque acreditandose perseguido por motivos políticos tentava se expatriar para a Iugoslávia Dois dias depois fugiu do hospital atravessando a fronteira com a Iugoslávia onde foi capturado no dia 20 do mesmo mês sendo reconduzido ao hospital psiquiátrico Nesse período mostrava se hostil raivoso ameaçando matar alguém evidenciando um delírio de perseguição era divisionista desordenado negativista violento Após um ciclo de eletrochoques tornou se calmo tranquilo e expressava o desejo de ir à sua casa Em 1881954 com um salto acrobático pulou a cerca reticulada e se evadiu Em 208 foi visto nas vizinhanças de sua própria casa armado com uma barra de ferro uncinada Algumas noites depois apresentouse na casa da esposa e ameaçandoa com a barra de ferro apossouse de um garrafão de vinho e em seguida afastouse Em 238 foi capturado por agentes da P S e reconduzido ao hospital psiquiátrico Em 3121962 fugiu novamente sendo recapturado três dias depois pela polícia iugoslava reconduzido à Itália e internado novamente no hospital psiquiátrico Empreendeu outra fuga em 22101963 No dia seguinte foi detido pelas autoridades iugoslavas sendo entregue na fronteira Em 651966 afastouse arbitrariamente do hospital dirigiuse à fronteira e apresentandose à polícia iugoslava perguntou onde estava sepultada sua mãe morta uns quinze dias antes34 No dia seguinte foi acompanhado ao hospital Em 1491968 fugiu novamente sendo encontrado por um enfermeiro em um bar 34 Nota à edição brasileira Com o tratado de paz firmado ao final da Segunda Guerra Mundial a Itália foi obrigada a ceder à então Iugoslávia toda uma região a Istria e a cidade de Gorízia foi literalmente dividida em duas partes uma italiana e uma iugoslava O antigo cemitério ficou na zona iugoslava Miklus pertencia à minoria eslovena e presumivelmente nos momentos de dificuldade procurava se abrigar na Iugoslávia julgando que ali estaria mais protegido como um eslavo entre os eslavos O Crime Louco 168 e reconduzido ao Instituto Da cópia da ficha clínica verificase que a síndrome psicótica começou a apresentar alguns sinais de remissão em 1965 Nesse ano o paciente se tornou mais administrável embora ainda apresentando um delírio de envenenamento Em 2691968 saindo em breve licença domiciliar matou a esposa a golpes de martelo Exame somático Alberto Miklus é um sujeito em boas condições gerais de nutrição e formação sanguínea Altura 1m73cm Peso 82 kg O exame clínico dos vários órgãos e aparelhos da vida vegetativa evidenciou somente manifestações de pleurite encontradas também no exame de raiox Pressão arterial 15090 Vida de relação As sensibilidades táctil térmica e dolorífica são normais A audição é regular A visão é reduzida por presbiopia Os reflexos cutâneos e tendinosos são simetricamente regulares As pupilas tendem à midríase reagindo lentamente à luz e à acomodação O sujeito mantémse ereto mesmo em posição Romberg O andar é regular A inervação craniana está íntegra Não se encontram tremores apreciáveis A palavra é regular seja em relação à fonética seja em relação à articulação Exames de laboratório As reações de V D R L efetuadas sobre sangue extraído para pesquisa de sífilis foram negativas Exame psíquico Durante os diversos exames e entrevistas clínico psiquiátricas Miklus manifestou sinais evidentes de negativismo recusandose a sentar ou a apertar a mão em sinal de cumprimento ou a se submeter a determinados testes Com frequência sua linguagem foi pouco compreensível seja pela pobreza de vocabulário seja por seu agramatismo O Crime Louco 169 Julgamos que tal modo de se expressar se deva em parte ao pouco conhecimento da língua italiana e em parte à desintegração psíquica encontrável nos esquizofrênicos em fase demencial Frequentemente tivemos que pedir que repetisse uma resposta por não têla compreendido bem inclusive porque ele se punha a divagar interrompendo o fio do pensamento Interrogado sobre o fato objeto do processo relatou que a mulher naquele dia convidarao a acompanhála ao campo para ver os trabalhadores da vindima dentro os quais o primo Luigi Zulian A seu ver a mulher queria que ele o matasse a golpes e expatriasse para a Iugoslávia para que então fosse definitivamente internado no hospital para pensionistas de guerra ou seja como explicou depois no hospital psiquiátrico Mas ele que é um cidadão respeitador das leis e não quer ir contra o governo recusouse A mulher se pôs a berrar chamouo de louco e ele para fazer com que se calasse pegou o martelo para lhe dar um golpe nas costas a mulher para se esquivar do golpe abaixouse e ele involuntariamente atingiua na cabeça Estava certo no entanto de que a mulher não estava morta pois quando se afastou ela tinha os olhos abertos Falou em seguida de sua vida no Hospital Psiquiátrico de Gorízia Disse que estava internado na Enfermaria C que segundo ele é uma enfermaria militar Desde que foi transferido para essa enfermaria suas condições de vida melhoraram Chegou inclusive a trabalhar algumas semanas mas depois teve de abandonar o trabalho porque se recusara a assinar o recibo da quantia que lhe fora dada como recompensa Ele não era contrário à mulher mas suas visitas no hospital não lhe agradavam porque sempre que aparecia lá dizialhe sabe quem morreu e enumerava as pessoas falecidas Ele não queria ouvir essas coisas porque a mulher parecia O Crime Louco 170 querer lhe atribuir a culpa por essas mortes para depois fazê lo passar por louco e mantêlo no manicômio Convidado a falar sobre seu temor de ser envenenado tergiversou dando respostas incongruentes pelo que não conseguimos leválo a discorrer sobre esse assunto Das entrevistas clínicopsiquiátricas resultou que o sujeito quando interrogado de início se detém no assunto tratado mas logo depois começa a divagar de modo que seu discurso se mostra inconcluso Assim falou repetidas vezes de bodas de ouro dos pais e outros parentes Assegurounos várias vezes ser um cidadão respeitador das leis do Estado criticando os que não o são Deu estranhas interpretações a diversos fatos se a cama está voltada para o sul ou para o oriente se alguém dorme de lado ou de costas Lembrou de quando no hospital psiquiátrico andava para trás dando explicações pouco compreensíveis Relacionou esse modo de agir com suas idas à Iugoslávia Sustentou que jamais se senta mas não soube ou não quis dizer as razões de tal comportamento Dessas entrevistas e de seu comportamento em geral pudemos extrair elementos suficientes para conhecer o estado de suas principais atividades psíquicas Suficientemente orientado no tempo e no espaço Miklus demonstra uma percepção nem sempre correta certamente invalidada por fantasias Não encontramos a presença de alucinações visuais ou auditivas Sua memória pareceu bastante bem conservada mesmo se os eventos por ele recordados estivessem distorcidos por interpretações erradas e por suas delirantes constelações A associação de idéias não se efetua conforme o nexo lógico comum pelo que seu discurso frequentemente se mostra incompreensível Por outro lado a capacidade de abstração diminuída não lhe permite distinguir o essencial O Crime Louco 171 do acessório Além disso distraindose da idéia central seu pensamento divaga passando de um assunto para outro Às vezes notase uma sobreposição de elementos em seu discurso sem que haja uma ligação apropriada entre eles Por tais anomalias juízo e crítica são totalmente inadequados em seu discurso O sujeito procurou esconder as confusas constelações delirantes que se aglomeram no conteúdo de suas idéias Como frequentemente acontece com doentes há longo tempo internados em hospitais psiquiátricos Miklus também se esforça para dissimular seus delírios pois a essa altura sabe que suas convicções não são aceitas pelos psiquiatras fazendo com que o julguem doente mental É certo porém que seus delírios têm como tema uma contínua ameaça à sua vida e à sua liberdade teme ser envenenado ser obrigado a passar a vida nos manicômios ser levado a cometer atos que possam fazer com que os outros o julguem doente mental Seus delírios são portanto primordialmente delírios de perseguição Do defeito da capacidade de associação e abstração e de suas convicções delirantes derivam as errôneas interpretações de acontecimentos atos ou discursos referentes à sua própria pessoa Está sempre desconfiado e suspeitoso sobre suas experiências pronto a interpretar mal até os fatos mais inocentes e a acreditar que se queira prejudicá lo Embora vivendo nesse contínuo temor não mostra no entanto uma redução do tom de humor Com um sorriso estereotipado nos lábios expõe suas vicissitudes sem demonstrar ânsia ou depressão Parece que os delírios persecutórios perderam sua força e o anormal colorido afetivo Evidentemente se habituou à sua condição de perseguido e não reage mais a ela De fato durante a internação no manicômio judiciário não demonstrou variações afetivas mesmo ainda sendo capaz de reações O Crime Louco 172 emotivas violentas inclusive por estímulos inadequados como demonstra o próprio fato que lhe é imputado Toda sua vida instintiva e afetiva é pois distorcida por seu estado doentio Pode se alegrar ou se entristecer por fatos que para os outros seriam indiferentes enquanto pode se mostrar insensível diante de acontecimentos emocionantes São sobretudo os sentimentos superiores que estão distorcidos especialmente o senso ético Com efeito de um lado professase um cidadão respeitador das leis e de outro não demonstra arrependimento ou remorso por ter matado a mulher Sua capacidade de querer se ressente do estado intelectivo e afetivo anormal Com efeito encontramos estereotipias e negativismo constituindo para ele meios de defesa contra as supostas perseguições Não se senta e não aperta a mão para cumprimentar provavelmente por temor de sofrer algum tipo de dano Pouco sociável prefere viver isolado mas está sempre atento ao que dizem ou fazem os outros internos pronto para então extrair deduções absurdas É respeitoso e correto com o pessoal de custódia sempre disposto a demonstrar que obedece às normas regulamentares Alimentase regularmente mas revela diminuição do sono Discussão diagnóstica e parecer médicolegal Dos elementos encontrados na anamnese e dos sintomas psicopatológicos por nós observados chega se facilmente ao diagnóstico de esquizofrenia paranoide A dissociação psíquica as fantasias as interpretações errôneas as constelações delirantes a falta de afetividade as estereotipias e o negativismo são sintomas próprios da esquizofrenia paranoide Através da leitura da história clínica do hospital psiquiátrico de Gorízia podese observar o surgimento a evolução e a consolidação da síndrome esquizofrênica pelo que julgamos supérfluo descrever O Crime Louco 173 a evolução de tal psicose Cabe apenas ressaltar que o paranoide conserva no todo ou em parte sua personalidade pelo que não aceita passivamente sua internação no hospital psiquiátrico continuamente tentando se subtrair ao recolhimento forçado até porque faltando nele o sentido da doença considera injusta e ofensiva a atribuição da doença mental e a privação da liberdade Por tais razões Miklus se evadiu tantas vezes do Instituto Psiquiátrico Sabendo que os familiares podem provocar a liberação do doente recebendoo sob sua responsabilidade o periciando que de início não tinha nenhuma idéia hostil em relação à mulher passou a nutrir certo ressentimento contra a mesma porque ela não providenciava sua saída do hospital psiquiátrico Embora isso não resulte dos autos nem de suas declarações provavelmente ele atribui tudo isso ao desejo da mulher de se livrar dele quem sabe por qual inconfessável propósito O delírio inicial de Miklus tinha por objeto o envenenamento É de se ressaltar que em tal período enquanto suspeitava dos médicos dos enfermeiros e até de sua mãe alimentavase apenas com a comida que a mulher lhe levava a toda evidência excluíaa do grupo de seus supostos inimigos Só mais tarde incluiua no rol de seus perseguidores passando a suspeitar dela também De resto o tema do envenenamento é comum a muitos dos sujeitos internados em hospitais psiquiátricos porque esses por sua anormal conformação mental interpretam como um atentado à sua saúde todos os sintomas secundários que podem derivar das terapias de choques ou farmacológicas Por tal razão Miklus contava ao filho que no hospital dãose aos pacientes remédios que causam sua morte recomendando que desconfiasse da própria mãe A suspeita de morte por envenenamento era portanto genérica não era específica em relação à mulher O Crime Louco 174 na medida em que envolvia médicos enfermeiros e até mesmo a mãe Podemos agora estudar a dinâmica da ação delituosa do acusado Como a associação de idéias do esquizofrênico segue caminhos insólitos ele interpreta a realidade de modo diverso do normal à luz de sua temática delirante Por isso em 2691968 o simples convite da mulher para acompanhála ao campo para ver os trabalhadores da vindima dentre os quais o primo foi interpretado por Miklus como um convite para eliminar Zulian ou como uma tentativa de provocar seu expatrio para a Iugoslávia para então encontrar o pretexto para que o julgassem doente mental e o mantivessem por longo tempo no manicômio Não podemos precisar qual dessas duas doentias suposições provocou a reação homicida do acusado Basta notar que eventualmente no esquizofrênico há uma superposição de elementos pelo que duas imagens diversas e estranhas entre si podem se fundir em uma só pensamento assindético como pode acontecer no pensamento onírico Por tal mecanismo o convite a se dirigir ao campo se transformou na mente do periciando em uma incitação a matar Zulian e ao mesmo tempo ao expatrio Evidentemente quando a mulher voltou do campo Miklus lhe expôs tal suspeita provocando suas negativas e sua tentativa de convencêlo da inocência de suas intenções A ser verdadeira a narrativa de Miklus provavelmente a mulher em sua exasperação deixou escapar alguma imprudente alusão a seu estado mental O esquizofrênico às vezes é capaz de reações emocionais inesperadas e violentas inclusive a estímulos inadequados em tal estado afetivo pode se desinibir e cometer os delitos mais ferozes Foi o que aconteceu com Miklus que pegou o martelo e desferiu golpes mortais em sua consorte O O Crime Louco 175 periciando afirma que não tinha intenção de provocar lesões graves na mulher pode até acontecer que ele não tivesse claros propósitos de matar como às vezes acontece mesmo ao são de mente em estado de ira é certo porém que a reiteração dos golpes em uma parte do corpo sensível aos traumas desmente o que ele hoje afirma ou seja que pretendia atingila nas costas e não na cabeça apenas para fazer com que se calasse Na avaliação da imputabilidade de Miklus é preciso ter presente que a esquizofrenia pela dissociação psíquica pela perversão da afetividade pela completa desinibição dos instintos tira do doente a capacidade de compreender o valor moral de seus atos de discernir os motivos de sua conduta e de prever suas consequências penais Tal enfermidade além disso tira do doente a possibilidade de se determinar com base em motivações conscientes de escolher com uma crítica correta entre tais motivações e sua inibição Julgamos portanto que a capacidade de entender e querer do acusado no momento do fato estivesse totalmente excluída No estado atual como notamos no exame psíquico Miklus ainda sofre de esquizofrenia paranoide Essa é uma psicose eminentemente crônica Dada a desagregação psíquica atingida pelo periciando dificilmente poderá conseguir uma ainda que modesta remissão Como o acusado com o fato criminoso praticado demonstrou ser capaz de se desinibir entendemos provável que possa cometer novas ações delituosas pelo que o julgamos pessoa socialmente perigosa Antes de responder ao quesito apresentado julgamos oportuno fazer mais algumas considerações No primeiro estágio da doença Miklus não demonstrava nenhuma suspeita contra a mulher ao contrário julgavaa estranha O Crime Louco 176 ao suposto complô urdido contra ele Desconfiava dos médicos dos enfermeiros da cunhada e até mesmo da própria mãe mas não da mulher só dela aceitando a comida com que se alimentava Com o passar do tempo e o prolongamento de seu recolhimento forçado ao hospital psiquiátrico envolveu também a consorte no grupo de seus perseguidores porque ela não providenciava sua liberação Suspeição genérica portanto não específica Contra ela manifestou certo ressentimento mas não um verdadeiro ódio tampouco resultando que tenha expressado a intenção de matála Da leitura dos autos encontramos apenas dois atos hostis contra a mulher mais de dez anos antes do fato Durante a fuga do hospital psiquiátrico ocorrida em agosto de 1954 Miklus ameaçou a mulher com uma barra de ferro uncinada mas se limitou a se apossar de um garrafão de vinho O filho Davide em seus depoimentos relata que quando era pequeno o pai por ocasião de uma fuga do hospital ameaçara a mãe com uma baioneta Tudo indica que o filho se referisse à mesma evasão de agosto de 1954 e que tenha confundido em sua lembrança a barra de ferro uncinada com uma baioneta Ambos os filhos em seus depoimentos perante o Procurador da República declararam jamais ter ouvido o pai proferir ameaças contra a mãe embora estivesse convencido de que ela fosse a causa de sua internação e sua doença No primeiro estágio da doença Miklus apresentava alta periculosidade proveniente sobretudo do estado de ansiedade produzido por florescentes delírios persecutórios Mas sucessivamente seja pelos tratamentos realizados seja pela progressiva desagregação psíquica tal periculosidade parecia de menor entidade Com efeito nos estados avançados da esquizofrenia enquanto os delírios perdem força os doentes se tornam menos ativos sendo menos capazes de O Crime Louco 177 reações repentinas O estágio médicolegal da esquizofrenia é primordialmente o inicial no estágio avançado esses doentes mais dificilmente se tornam autores de crimes Com efeito lemos na Ficha Clínica do Hospital Psiquiátrico de Gorízia que Miklus em 1965 começou a demonstrar uma nítida melhora de comportamento Parecia tranquilo sereno calmo mais comunicativo e até trabalhador sem evidenciar sinais de agressividade Em 20111965 deu um empurrão em outro interno mandando que saísse do lugar onde estava sentado mas apenas para salválo de um suposto envenenamento Em 1966 se evadiu mas somente para visitar o túmulo da mãe morta há pouco Em 1491968 afastouse desautorizadamente do hospital apenas pelo desejo de ver a família sem ter porém qualquer intenção agressiva Não existiam portanto elementos claros que pudessem fazer julgar provável uma explosão agressiva É preciso admitir no entanto que sempre existe uma possibilidade remota que um esquizofrênico que se mostre durante anos em ambiente institucional calmo e tranquilo possa cometer atos criminosos Com efeito no Manicômio Judiciário em que trabalhamos não é raro encontrar internado algum paciente liberado de um hospital psiquiátrico recuperado e com melhoras que se tenha feito responsável por algum crime mais ou menos grave após poucos dias de liberdade Tendo presente essa possibilidade a Autoridade dirigente do Hospital Psiquiátrico de Gorízia ao conceder a Miklus uma breve licença tomou a precaução como de costume em tais casos de confiar o doente aos filhos a fim de que fosse vigiado e custodiado Considerando portanto que Miklus há mais de uma década não ameaçava a mulher que não mais apresentara manifestações de agressividade não externara claros O Crime Louco 178 propósitos uxoricidas que seu comportamento se tornara mais regular e que na concessão da licença foram adotadas as devidas precauções entendemos não ser previsível que o periciando pudesse cometer o ato criminoso Conclusões 1 Alberto Miklus no momento do fato objeto do processo sofrendo de esquizofrenia paranoide estava devido à doença em estado mental tal que excluía a capacidade de entender e querer 2 No estado atual Miklus ainda sofre de esquizofrenia paranoide 3 É pessoa socialmente perigosa 4 Pelas razões já expostas não era previsível que o acusado matasse a mulher Reggio Emilia 12121968 O perito Dr Francesco Coppola 22 A perícia da parte Universidade de Parma Clínica das Doenças Nervosas e Mentais Diretor prof F Visintini Tribunal de Reggio Emilia Observações sobre a Perícia do Juízo por parte do consultor da defesa do prof Franco Basaglia na causa contra Alberto Miklus O abaixoassinado prof Fabio Visintini filho do falecido Giovanni professor de Clínica das Doenças nervosas e mentais da Universidade de Parma consultor técnico da defesa do prof Franco Basaglia na causa penal contra Alberto Miklus tendo lido a perícia do juízo a cargo do O Crime Louco 179 prof Francesco Coppola sobre o estado mental de Alberto Miklus no momento em que cometeu o fato que lhe é imputado assim como a resposta aos quesitos nºs 3 e 4 observa a propósito o quanto segue O fato e os quesitos Alberto Miklus interno no Hospital psiquiátrico provincial de Gorízia com base em ordem de admissão definitiva desde 1951 usufruindo de licença de visita em domicílio na localidade Oslavia Via Lenzuolo Bianco nº 2 no dia 26 de setembro de 1968 mediante regular entrega sob custódia aos filhos Davide e Marjan na tarde do mesmo dia inesperada e subitamente matou a própria esposa Milena Kristacic No curso da instrução criminal contra Alberto Miklus o Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia convocou para interrogatório o diretor do Hospital psiquiátrico de Gorízia na qualidade de acusado de homicídio culposo determinando perícia psiquiátrica deprecada a nomeação do perito ao Juiz Instrutor de Reggio Emilia para onde Miklus fora transferido para o manicômio judiciário local Aos três quesitos de praxe sobre a imputabilidade e a eventual periculosidade social adicionou um quarto quesito assim formulado Queira o Sr Perito dizer se dadas as condições psíquicas de Miklus relacionadas a suas disposições de ânimo e atitude mental em face da própria esposa repetidamente manifestadas em várias ocasiões anteriores era previsível que o mesmo chegasse ao ponto de executar os propósitos ameaçadores contra ela Tal quesito contém a afirmação de que Miklus repetidamente manifestara propósitos violentos contra a própria esposa o que no entanto é desmentido pelos posteriores atos instrutórios e pelo claro relatório do perito do juízo que documenta como o rancor O Crime Louco 180 de Miklus em relação à família e à mulher inerente à longa e rejeitada internação jamais se expressara em propósitos violentos Por outro lado o quesito se segue àquele sobre a eventual periculosidade social e se refere à hipótese de periculosidade do doente mental eventualmente anterior ao crime e assim não só cronologicamente mas também substancialmente não podendo se justapor à outra Como é bastante sabido as duas periculosidades não são identificáveis Com efeito a periculosidade social é verificável em pessoas que cometeram fatos previstos em lei como crimes e que provavelmente poderão repetilos Tal diagnóstico é pedido aos profissionais da saúde exclusivamente em perícias criminais A periculosidade do doente mental foi introduzida em nossa legislação pela Lei de 1904 e o regulamento de 1909 sobre os manicômios e os alienados enquanto o dever de denúncia se contém no regulamento de segurança pública dirigindose aos profissionais da saúde quando estes pretendam tratar do doente mental ou do dependente de álcool e substâncias entorpecentes sem recorrer à internação em hospital psiquiátrico A finalidade do diagnóstico de periculosidade do doente mental é a de permitir sua internação compulsória ou voluntária no hospital psiquiátrico prevendo uma limitação da liberdade pessoal com fins de tratamento Não prevê medidas de segurança ou métodos rígidos de custódia podendo variar da internação à custódia na família de origem ou em outra família ou a liberação condicional conforme o andamento da doença e as necessidades do tratamento Por outro lado quando a periculosidade do doente mental se manifesta antes de ser diagnosticada aos parentes ou conhecidos do doente não é prevista qualquer O Crime Louco 181 sanção para quem sabendo de sua existência não a tenha denunciado O dever de custódia e tratamento subsiste porém quando o doente está internado ou confiado à família sem que a lei estabeleça as modalidades de custódia que se subordinam à oportunidade e às necessidades do tratamento até à mitigação das modalidades mais pesadas à concessão de licenças temporárias e à organização de atividades recreativas e laborais essas últimas dentro e fora do hospital Por outro lado a lei de 1904 atribui ao diagnóstico de periculosidade uma decisão de competência administrativa em face do doente mental que somente a esse título ou ao de escândalo público é admitido em um hospital especializado onde possa receber gratuitamente o tratamento de que necessita Enquanto em vários lugares invocase a abertura de enfermarias psiquiátricas em hospitais comuns na realidade o doente pobre não consegue ser tratado pelo competente especialista mediante internação fora do hospital psiquiátrico Assim o médico prudente habitualmente certifica a periculosidade presumida ao diagnosticar a doença independentemente da periculosidade manifesta ou do escândalo público real de modo a internar o doente Com efeito essa simulação é bastante frequente e aceita na prática pelas administrações competentes que tendem a transformar os hospitais psiquiátricos mais em lugares de tratamento do que de custódia Podese acrescentar que essa utilização do diagnóstico de periculosidade não era ignorada tampouco pelo antigo legislador estando implícita na obrigatória distinção entre as enfermarias do hospital psiquiátrico destinadas a doentes em observação a doentes tranquilos aos doentes semiagitados aos agitados às enfermarias de trabalhadores em claro reconhecimento O Crime Louco 182 da falta de homogeneidade entre a população dos hospitais psiquiátricos no que diz respeito à periculosidade Diagnóstico da doença de Alberto Miklus e previsível periculosidade em relação à esposa O perito do juízo conclui o exame anamnésico e o exame neuropsiquiátrico com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide forma bastante controvertida e tormentosa na moderna doutrina psiquiátrica Podese observar que nesse caso a doença não se iniciou de forma típica instaurandose como uma forma psicorreativa em uma personalidade bem definida de natureza sensível após uma série de ameaças que culminaram em um verdadeiro atentado Tratava se portanto no início de psicose traumática evoluindo através de remissões e recaídas na qual a reação delirante assumia a forma característica do pânico mimeticamente reprodutor do evento psicológico traumatizante causal Nas sucessivas recaídas esses aspectos iniciais da doença foram se perdendo diante do comparecimento dos sintomas habituais da reação paranoide explícita aí incluídas as alucinações o delírio de envenenamento e os distúrbios da vontade abrangendo a gesticulação estereotipada e uma desagregação da linguagem Na primeira fase florescente da doença Miklus foi submetido a terapias biológicas como os eletrochoques e sucessivamente ao tratamento com psicofármacos Podese notar que os delírios propriamente ditos e as alucinações cederam a esses tratamentos enquanto a longa internação se fez acompanhar por uma gradual deterioração revelada pelo aparecimento de estereotipias e distúrbios da psicomotricidade como a recusa a cumprimentar apertando a mão do interlocutor ou a se sentar durante o dia além de uma modificação da linguagem em parte devida a uma regressão ao léxico infantil em parte a neologismos O Crime Louco 183 Essas formas de deterioração não chegaram a comprometer decisivamente a personalidade de Miklus que sempre conservou certa capacidade de adaptação e uma iniciativa autônoma não autista Isto é Miklus podia ter seu próprio comportamento interpretado com base em motivos compreensíveis Enquanto o comportamento do esquizofrênico processual é incompreensível a não ser através de uma interpretação simbólica de seus atos o parafrênico ou o delirante psicorreativo oferecem uma dinâmica do próprio comportamento relativamente mais influenciável pela realidade Assim o comportamento social de Miklus no que diz respeito a terceiros é um comportamento motivado de um lado pelo desejo de privacidade e de outro pelo desejo de reconstrução de sua personalidade lesada pela internação Ele afirma não ser louco Uma complicada idéia de estar excluído pela família e pela sociedade porque não trabalha pertencendo a uma categoria de pensionistas do Estado como exmilitar contestada por muitos é sua idéia dominante Nessas condições mantém a tendência de fugir do hospital para chegar à família ou à fronteira É sempre encontrado nesses lugares e reconduzido ao hospital sem resistência sem violência e sem sanções Essas fugas são demonstrações de protesto que se esgotam em si mesmas Na enfermaria hospitalar isolase cada vez mais até o momento em que é instaurada a comunidade terapêutica35 Essa realidade é por ele aceita até fazêlo abandonar as formas antes estabelecidas de isolamento e algumas estereotipias Melhora sensivelmente 35 Nota à edição brasileira Franco Basaglia assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorízia em 1961 logo promovendo transformações radicais formas de contenção foram abolidas as portas das enfermarias foram abertas instaurouse a praxis da comunidade terapêutica O Crime Louco 184 frequenta as reuniões e nessas afinal abandona o hábito de não se sentar para conversar Sua iniciativa como expressão da vontade renasce com algumas variantes da atitude de protesto como aceitar as visitas da mulher e dos filhos e pedir permissões de saída É um sinal de sensível melhora e ressocialização percebido pelos outros internos pelos enfermeiros e pelos médicos Não obstante elabora um tema dominante que exprime de forma sintética e é formulado diversamente apenas por ocasião do interrogatório no manicômio penal Não é louco e poderia retornar a seu próprio domicílio Ali é instado a trabalhar embora devesse viver fora do manicômio sem trabalhar porque pensionista Não se percebe de onde lhe venha essa convicção Talvez da idéia de que no hospital de Gorízia estão internados alguns doentes do anteguerra em base a uma convenção estatal De todo modo ele interpreta o convite dos familiares a fazer algum trabalho em casa como um desconhecimento de sua posição e como um obstáculo para readquirir a liberdade sem condições Essa idéia não é criticada nem confrontada com a realidade e não é claramente formulada antes do interrogatório em foco Traz portanto as características de um delírio de referência A discussão com a mulher que antecede o fato delituoso é relatada por Miklus da seguinte forma a mulher o teria instado a colaborar com os filhos na colheita das uvas pelo menos ela o teria instado a ir até o campo como vigia do pessoal contratado para a tarefa Ele se recusara e se sentira ofendido especialmente com a proposta de agir como vigia porque dentre o pessoal contratado estava o primo Zulian que ele entendia se achar em sua mesma condição de pensionista do Estado exmilitar Essa proposta portanto se dirigia diretamente contra ele como eram diretamente O Crime Louco 185 dirigidas contra ele outras iniciativas da mulher dentre as quais a de informálo a cada visita da morte de pessoas idosas da aldeia Esses fatos e a categoria especial de pensão a que ele se refere são imaginários expressandose apenas como uma explicação de sua reação contra a mulher suscitada por tais imaginárias provocações Por outro lado obstina se em acreditar que não provocou a morte da mulher tendo apenas a ferido A lembrança dos acontecimentos é efetivamente confusa O perito do juízo interpreta a dinâmica do crime como uma reação em curtocircuito na qual a ação ocorre sem que entre o estímulo e a reação permeie um tempo de reflexão criticandoa por falta de capacidade ou perturbação emocional As duas condições estavam presentes em Miklus no momento do fato Tanto a debilidade das funções psíquicas superiores quanto a perturbação afetiva pois a atitude da mulher suscitava nele a reação emocional de contestação de uma confusa idéia delirante Nenhuma dúvida há portanto quanto à sua completa incapacidade de entender e querer no momento do fato produzida em Miklus por uma doença que podemos definir como demência paranoide por evolução deteriorada de uma personalidade psicopata Mais discutível é o diagnóstico médico de periculosidade social Já mencionamos como esse diagnóstico frequentemente se pronuncia muito mais por motivos jurídicoprocessuais do que por hipóteses propriamente médicas e psiquiátricas No caso presente como o diagnóstico da incapacidade de entender e querer no momento do fato baseiase na dinâmica de uma reação a curtocircuito e a temática delirante tem uma precisa configuração de referência que além do mais é totalmente elaborada após o fato delituoso por causa da dificuldade O Crime Louco 186 do próprio protagonista em interpretálo fica bastante claro que a probabilidade de o fato delituoso poder se repetir não encontra justificação no comportamento previsível com base no diagnóstico de doença Isto é a doença intervém como causa da debilidade crítica e portanto da impossibilidade de conter a reação atuada mas não como produtora da reação em si As reações anormais e as reações emocionais em curto circuito não são apanágio de nenhuma forma doentia ou de determinada personalidade no sentido de que devam ser julgadas como tal exatamente porque ultrapassam os limites da norma seja essa referida à norma dos sãos seja referida à doença É certo que a jurisprudência sustenta que quem demonstra ter saído da norma alguma vez terá a tendência de sair outras vezes mas esse é um diagnóstico a posteriori de ordem estatística e não médica devendo o perito declarála fora de sua própria competência Tal argumentação pode parecer supérflua para os fins de aplicação da medida de segurança no caso de Miklus dever ser absolvido por exclusão da imputabilidade Aliás torna se incômoda na resposta ao quarto quesito concernente à periculosidade do doente mental e à previsibilidade do crime quesito ao qual o perito do juízo corretamente respondeu em sentido negativo A negação de uma razoável previsibilidade do crime está abundantemente comprovada pela história clínica pela melhora ocorrida no decurso da doença pelo fato de Miklus jamais ter praticado atos de ameaça ou violência contra os familiares nem mesmo nas fases mais florescentes e mais decisivamente delirantes da doença enquanto demonstrara ser sensível à tentativa de ressocialização exercitada com a terapia comunitária aplicada no hospital e com a retomada das relações com O Crime Louco 187 os familiares Portanto o abaixoassinado no interesse da defesa do prof Franco Basaglia concordando plenamente com a resposta ao 4º quesito dada pelo perito do juízo expressa porém algumas reservas quanto ao diagnóstico pericial da periculosidade social Do que dá fé prof Fabio Visintini Parma 14 de fevereiro de 1969 O Crime Louco 188 3 As sentenças 31 Requerimento de envio a juízo formulado pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Gorízia 2911971 O MP Vistos os autos do procedimento penal contra 1 Miklus36 Alberto 2 Basaglia prof Franco 3 Slavich Dr Antonio Acusados o primeiro a do crime de uxoricídio agravado nos termos dos arts 575 e 577 CP como melhor precisado na capa dos autos b do crime de lesões pessoais ex art 582 CP como melhor precisado na capa dos autos em anexo Basaglia e Slavich c do crime de cooperação em homicídio culposo ex arts 113 e 589 CodPen como melhor precisado no mandato de notificação de 11 de dezembro de 1970 nos autos d da contravenção do art 714 cc art 110 CodPen como no mandato de notificação acima mencionado Dito isso vistos os arts antes mencionados e o art 369 ss CodProcPen requer ao Juiz Instrutor deste Tribunal se digne 1 Declarar encerrada a fase instrutória 2 Determinar o envio a juízo do Tribunal de Gorízia de Basaglia Franco e Slavich Antonio para que respondam pelo delito de cooperação em homicídio culposo a eles atribuído 3 Declarar a extinção do processo em relação aos mesmos no que se refere à contravenção do art 714 Cod Pen por extinção da infração penal diante de anistia 36 Em todas as peças seja no requerimento do MP seja nas sentenças Miklus é sempre erroneamente chamado de Mikulus A esposa de Miklus é chamada de Cristancic e não Kristancic mas se trata de erro datilográfico O Crime Louco 189 4 Declarar a extinção do processo em relação a Miklus Alberto no que se refere aos delitos a ele atribuídos por se tratar de pessoa inimputável por total comprometimento mental 5 Determinar a internação de Miklus Alberto em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de cinco anos Gorízia 29 de janeiro de 1971 O Procurador da República 32 Envio a juízo determinado pelo Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia no procedimento instaurado em face de Miklus Alberto Basaglia Dr Franco Slavich Dr Antonio 2151971 República Italiana Em nome do Povo Italiano O Juiz Instrutor junto ao Tribunal Civil e Penal de Gorízia pronunciou a seguinte sentença no procedimento penal instaurado contra Miklus Alberto Basaglia Dr Franco Slavich Dr Antonio acusados o primeiro a do delito de homicídio qualificado nos termos dos arts 575 e 577 parágrafo único CP b do crime previsto no art 582 CP por ter causado lesões pessoais em Evelino Braida Basaglia e Slavich c do crime de cooperação em homicídio culposo ex arts 113 e 589 CP d da contravenção do art 714 cc art 110 CodPen PQM Declara encerrada a instrução e discordando parcialmente dos requerimentos do Ministério Público nos termos do art 378 CPP decide O Crime Louco 190 1 Declarar extinto o processo em face de Miklus Alberto no que se refere aos delitos a ele atribuídos por se tratar de pessoa inimputável por total comprometimento mental determinando nos termos do art 222 CP a internação do mesmo em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de cinco anos 2 Declarar extinto o processo em face de Basaglia Franco no que se refere aos crimes a ele atribuídos na ementa por não ter o mesmo praticado o fato 3 Declarar extinto o processo em face de Slavich Antonio no que se refere à contravenção do art 714 CP por ter sido extinto o crime em razão de anistia Nos termos do art 374 CPP decide enviar a juízo perante o Tribunal de Gorízia competente em razão da matéria e do território Slavich Antonio para que responda pelo delito de homicídio culposo referido no item C da ementa Gorízia 21 de maio de 1971 O Juiz Instrutor Dr Raul Cenisi O Escrivão Olindo Loi 33 Sentença do Tribunal de Gorízia de 1821972 no processo contra Antonio Slavich República Italiana Em nome do Povo Italiano o Tribunal Penal de Gorízia composto dos Magistrados Dr Giuliano Malacrea Presidente Dr Raffaele Mancuso Juiz Dr Dario Succi Juiz pronunciou a seguinte sentença no procedimento penal contra Slavich Antonio solto presente acusado Basaglia e Slavich c do crime de cooperação em homicídio culposo ex O Crime Louco 191 arts 113 e 589 CP PQM Nos termos do art 479 CPP absolve o acusado Slavich do crime a ele atribuído por não ter praticado o fato Gorízia 1821972 34 Apelação do MP O Tribunal de Gorízia por decisão de 1241972 declarou a inadmissibilidade por renúncia da apelação do MP Transitada em julgado em 1641972 O Crime Louco 192 4 Considerações sobre o incidente de Gorízia Julgo oportuno descrever o clima que se estabeleceu naqueles anos em Gorízia devido à influência que tal clima teve sobre as investigações e as sentenças Em 1968 a experiência psiquiátrica de Gorízia vivia o que talvez tenha sido seu mais alto grau de popularidade Gorízia estava ao centro de um interesse específico na medida em que demonstrava através de uma transformação prática da instituição psiquiátrica que outro tratamento da loucura era possível O processo de questionamento do manicômio que com o Congresso de Bolonha de abril de 196437 conseguira uma unanimidade dos barões do mundo acadêmico aos Diretores e médicos dos hospitais psiquiátricos apesar de sua diversidade encontrou em Gorízia sua confirmação concreta através de um processo de mudança institucional Tornar o paciente responsável reconstruir sua individualidade destruída pela instituição total fazêlo partícipe de seu próprio tratamento tornarlhe possível a compreensão de seu próprio estado de sofrimento devolverlhe o autocontrole e a gestão de sua própria pessoa tudo isso era um fato real e não ideológico envolvendo toda a instituição em um processo de mudança e questionamento de todos os sujeitos Esse processo de questionamento prático do manicômio e da própria função da psiquiatria encontrara seu reconhecimento na promulgação da chamada Lei Mariotti em março de 196838 e no recebimento do Prêmio Literário Viareggio para ensaios no verão do mesmo ano A equipe começou a levar em consideração a possibilidade de reproduzir a experiência em outras cidades ou regiões de modo 37 Referimonos ao Congresso Processo ao Manicômio de 2426 de abril de 1964 organizado pela União Regional das Províncias Emilianas 38 Tratase da Lei no 431 de 18 de março de 1968 Providências para a assistência psiquiátrica O Crime Louco 193 a demonstrar que o que acontecera em Gorízia não era fruto de circunstâncias eventuais ou coincidências fortuitas mas sim que a mudança institucional era possível em qualquer lugar Surgiram duas modalidades diversas de entender essa mudança Alguns sustentavam que Gorízia já demonstrara a inutilidade e a nocividade do manicômio sendo portanto importante que de agora em diante se dedicassem ao território Outros sustentavam a necessidade de superar totalmente a internação manicomial e criar lugares alternativos ao manicômio derivados da dinâmica de sua superação lugares em que fosse possível encontrar a loucura em uma relação verdadeiramente livre É cada vez mais evidente que a experiência de Gorízia não se esgota na especificidade psiquiátrica e não é um episódio isolado sendo sim uma consequência do clima de renovação que tomou conta da sociedade italiana ao final dos anos 50 a necessidade de uma mudança social e cultural induzida pelo confronto com outras realidades nacionais dos países ocidentais como a França a Grã Bretanha e os Estados Unidos A valorização do homem posto ao centro da organização social a valorização do indivíduo de sua criatividade da necessidade de protagonismo e participação são a mola mestra dessa renovação que encontra em 1968 sua máxima expressão Todavia como lucidamente afirmará Franca Ongaro Basaglia em uma entrevista de 197639 o problema dos riscos existentes se coloca quando se sai da especificidade e se passa à generalização total em que tudo se torna político em uma visão única correse o risco de uma ideologização que é o mesmo do parcelamento A generalização política que não leva em conta a especificidade corre o risco de adiar tudo para outros lugares e outros momentos há um depois que justifica o fato de não se agir agora Essa contradição bastante clara para quem naqueles anos 38 Elkaïm M org 1977 Réseau Alternative à la psychiatrie Union Géneral dÉditions O Crime Louco 194 levava adiante a experiência de Gorízia parecenos poder constituir a mola mestra usada para demonstrar como escrevem Franco e Franca Basaglia que em uma realidade em ebulição um passo em falso ou um erro podem confirmar aos olhos da opinião pública a impossibilidade de ação40 Tanto dentro quanto fora da instituição nem todos aceitavam uma mudança que discutia não apenas no plano teórico mas também na prática quotidiana o rompimento da relação autoritáriohierárquica rompimento fundamental para a liberação da subjetividade e que comportava participação nas escolhas responsabilização e consequentemente constante questionamento das certezas em relação aos outros Nesse clima o incidente Miklus constituiu para alguns um episódio frustrante mas também um momento de reflexão como demonstra o citado artigo de Franco e Franca Basaglia para outros porém tornase o episódio que esperavam para sepultar a experiência Certamente o fato delituoso que envolve Miklus coloca o problema da contradição entre a tutela dos valores coletivos e a salvaguarda da personalidade individual Mas tal contradição não parece estar no centro dos interesses da investigação do MP nem nas sentenças do Juiz Instrutor e dos Juízes do Tribunal O problema fundamental parece ser muito mais o de verificar se os procedimentos burocrático administrativos foram desatentos e a quem devem ser imputadas as decisões Evitase aparentemente questionar a validade da nova terapia do hospital aberto mas toda a instrução por parte do Ministério Público voltase na prática para sustentar a prevalência da custódia sobre o tratamento A instrução é como consta da sentença do Tribunal de 1821972 no processo contra Antonio Slavich longa e trabalhosa mas o Dr Casagrande o Dr Jervis e o Dr Schittar que estavam de serviço à época do fato junto ao 40 Franco e Franca Basaglia Lincidente in LIstituzione Negata Ed Einaudi Torino1968 pag362 O Crime Louco 195 HPP não se sabe por que motivo jamais foram ouvidos A instrução buscou convalidar a tese segundo a qual Miklus pelo fato mesmo de ser um doente mental deveria ser considerado perigoso e irrecuperável necessitando assim de uma custódia contínua Em consequência qualquer afirmação de melhora nada mais era do que uma afirmação enganosa Sob esta ótica dentre todos os 14 depoimentos frequentemente contraditórios entre si foram privilegiados somente alguns Deuse ênfase por exemplo ao testemunho do enfermeiro Minardi que falava de uma tentativa de estrangulamento da mulher por parte de Miklus ocorrida na enfermaria mas que remontava a dez anos antes e que de todo modo não fora confirmada pelo enfermeiro Colognatti deuse ênfase ao testemunho do Dr Gobbo que como por ele mesmo admitido não estava presente no hospital naqueles dias e confundiu a reunião organizacional de serviço que ocorria todas as manhãs na biblioteca da Direção envolvendo médicos chefes de seção assistentes sociais e enfermeiros chefes com as Assembléias quotidianas da qual participavam os internos e todo o pessoal do hospital Tal confusão está presente seja no requerimento do MP de envio a juízo seja na decisão do Juiz Instrutor de envio a juízo seja na sentença definitiva do processo Slavich A isso se soma o fato de que Casagrande médico de plantão no dia do delito Jervis e Schittar presentes à reunião organizacional da manhã em que foi decidida a liberação experimental somente foram ouvidos no dia do julgamento Todos esses elementos parecem confirmar a dúvida sobre uma instrução tendenciosamente orientada o preconceito sobre a doença mental parece claro e inequívoco A renovação suscitada pela já citada lei Mariotti com a introdução da internação voluntária e a supressão da inscrição no registro judiciário do doente mental ainda não tinha à época suscitado aquela dialética aliás ainda hoje discutida entre a tutela dos direitos e valores coletivos e a tutela da liberdade pessoal com referência ao tratamento Naquele momento o tratamento no O Crime Louco 196 imaginário coletivo ainda era identificado com a custódia como defesa diante dos incômodos que o doente mental pode causar à sociedade Mas havia ainda outro aspecto a influenciar fortemente a instrução Era o conceito de liberalização à base do processo de mudança institucional a análise de uma realidade em que a opção pela custódia institucional dizia respeito às classes mais pobres e indigentes Eram conceitos que inevitavelmente traziam à luz o problema da contraposição de classe a natural convergência com os movimentos contestadores de outras instituições escola fábrica etc ou com a reivindicação de reconhecimento de direitos saúde educação trabalho família casa etc levando a considerar a experiência de Gorízia como um fato toutcourt político confundindoa com os movimentos que desfraldavam um conceito de liberdade como ausência de qualquer regra Essa visão política era contestada por outra visão contraposta nãodialética e rígida que se opunha a qualquer proposta ou reivindicação de mudança defendendo a todo custo a realidade existente Esses preconceitos o político e o da impossibilidade de cura da doença mental orientaram portanto toda a instrução Basta considerar que o MP jamais quis envolver o Dr Alì seu amigo com quem compartilhava ideais políticos Basta considerar que o MP era o mesmo procurador que deu início à famosa investigação sobre o massacre de Peteano na qual também esteve envolvido o J I Raul Cenisi41 A manifestação do MP que incrimina Franco Basaglia e Antonio Slavich por cooperação em homicídio culposo entra no mérito dos processos de tratamento quando afirma que os dois profissionais 41 O Massacre de Peteano foi um atentado terrorista em que morreram três policiais ocorrido em 31 de maio de 1972 nas proximidades de Peteano distrito de Sagrado na província de Gorízia presumivelmente praticado por militantes da organização terrorista de extremadireita Ordine Nuovo filiados ou dirigentes do MSI O procedimento se caracterizou por graves deficiências investigatórias e pela tendenciosidade das hipóteses acusatórias de modo tal a tornar impossível o estabelecimento da verdade Torino1968 pag362 O Crime Louco 197 não obedeceram às seguras e conquistadas realizações da ciência médica sendo portanto puníveis a título de imperícia negligência ou imprudência O MP ressalta ainda que eles não teriam observado as prescrições legais mas não menciona o Dr Alì que assinou o documento de liberação tampouco procurando obter o testemunho dos médicos presentes à reunião em que foi decidida a licença de Miklus O julgamento ao contrário é conduzido para a busca da responsabilidade burocráticoadministrativa de quem concedeu a liberação assinando a licença ou seja na direção da responsabilidade do Dr Alì que àquela altura já tinha morrido Essa minha interpretação encontra amparo dentre outros elementos em um artigo do jornal Il Gazzettino que já publicara matérias contra a experiência basagliana e que em matéria nacional de 19 de fevereiro a cargo do correspondente Franco Escoffiér assim se expressa a propósito da equipe de Gorízia A equipe Basaglia como é lógico era composta de jovens hoje quase todos em posições dirigentes aqui e acolá por toda a Itália todos naturalmente absolutamente convencidos da eficácia de uma revolução Toda a matéria dá bastante espaço às teses do MP e tende a levantar dúvidas sobre o Colégio Judicante insinuando que este teria optado por uma sentença préfabricada Conclui E então a brusca conclusão talvez previsível após as duas horas de apaixonadas alegações defensivas quinze minutos de reunião do conselho e o tribunal com quatro palavras liquidou o caso o prof Slavich foi absolvido por não ter praticado o fato Após o que a teoria sobre a escola Basaglia retoma seu caminho natural42 O julgamento se dá cerca de dois anos e meio após o fato em pleno clima político de estratégia de tensão43 42 Franco Escoffiér Assolto il medico a Gorízia per il caso del manicomio modello Il Gazzettino de 19 de fevereiro de 1972 43 Vejase a respeito G P Testa La strage di Peteano Ed Einaudi Torino 1976 em especial pp134135 e p141 Nota à edição brasileira A expressão estratégia de tensão se refere aos anos 70 na Itália durante os quais a abertura social e política aos partidos de esquerda foi hostilizada pelas forças conservadoras de direita que recorreram a atentados sanguinários O Crime Louco 198 Como antes mencionado Miklus tido como pessoa inimputável por comprometimento total da mente é condenado a cinco anos de permanência no mesmo HPJ Ali fica até a morte sofrendo de fato uma condenação à prisão perpétua em uma instituição total Franco Basaglia é absolvido pelo J I em 1971 por não ter praticado o fato Com a mesma fórmula Antonio Slavich também é absolvido pela sentença do Tribunal em 1972 Implicitamente é tido como responsável o Dr Alì que fazia as vezes de diretor na ausência de Basaglia e autorizara a liberação Certamente os juízes não entram no mérito dos procedimentos terapêuticos então adotados no hospital de Gorízia mas assim fazendo evidenciam a meu ver dois aspectos interessantes O Colégio judicante referindose a Miklus não considera a possibilidade de uma responsabilidade do doente mental não avalia a questão levantada pelo perito da defesa de não se assumir como automática a estreita correlação entre doença mental e periculosidade social A lei de reforma a chamada lei Mariotti claramente não é levada em nenhuma consideração Não poderia ser de outra forma na medida em que os juízes declaram não querer entrar no mérito técnico dos métodos de tratamento Mas é uma visão arcaica da psiquiatria a que influencia o comportamento dos juízes A criminologia italiana de inspiração lombrosiana desde o final do século XIX sanciona qualquer ato criminoso como patológico coloca como proeminente a individualização da periculosidade do mesmo ato em relação à sociedade calibra a consequente sanção sobre o mecanismo de defesa da sociedade com o consequente controle do louco Para os juízes Miklus é um esquizofrênico e por isso mesmo perigoso para a sociedade por causa do total comprometimento mental é incapaz de entender e querer e assim sendo inimputável não é sequer levado em consideração no julgamento de Slavich Mas a ele é cominado o máximo da pena será recolhido por toda a vida em uma instituição total Sancionado com um mecanismo que O Crime Louco 199 privilegia a defesa da sociedade Miklus desaparece como história e como indivíduo Miklus vale recordar nos anos turbulentos que se seguiram à segunda guerra mundial foi objeto de um atentado e depois de alguns anos recebeu a visita do autor do atentado já solto daquele momento em diante desenvolveu um estado de insegurança e em seguida de medo e terror pelo que após um ano foi internado tratado como personalidade psicopática com terapia de eletrochoques e depois definitivamente atado ao manicômio com diagnóstico de paranóia agravada Mas aos juízes parece não interessar o esforço reabilitador voltado para a revalorização de uma pessoa que combatera pela liberdade sua de sua família de sua terra uma pessoa que se considerava um militar digno de ter uma pensão mas que ao contrário tornase objeto de um atentado de sucessivas ameaças que o conduzem prisioneiro a um manicômio onde ninguém leva em consideração sua tragédia O importante é defender a sociedade de um louco que praticou um ato criminoso Certamente é preciso ter em conta a defesa da sociedade contra atos criminosos certamente quem pratica um crime deve ser sancionado mas é difícil compreender como uma pessoa inimputável e necessitada de tratamento possa ser recolhida por toda a vida e abandonada até a morte condenada por uma periculosidade social apenas porque se presume que possa vir a cometer outros atos criminosos A condenação se funda em uma presunção e não sobre um fato demonstrado O segundo problema que a sentença propõe se refere à conduta culposa do médico isto é de Slavich A conduta culposa pode estar referida a um nexo etiológico não apenas quando o resultado é uma consequência certa direta e inequívoca mas também quando é altamente provável ou previsível e provável Sob esse aspecto à diferença do MP o Colégio judicante acolhe a tese da perícia do juízo que afirma que pelas razões já expostas não era previsível que o acusado matasse a mulher Todavia não são levados em consideração os motivos que induziram O Crime Louco 200 o J I a enviar Slavich a juízo isto é a negligência e a imperícia profissionais Os defensores de Slavich sustentaram a insubsistência de tais motivos mas o Colégio judicante pondo a responsabilidade das liberações experimentais nas costas do Dr Alì falecido no curso prolongado da instrução evita como Pilatos entrar no problema do crime culposo por negligência eou imperícia por não ter o agente executado as medidas de cuidado ditadas pela lei ou pelo costume que substanciariam o crime culposo O aprofundamento desse aspecto significaria ter de verificar se foi executada uma intervenção lícita ainda que em presença de erros e assim entrar no mérito e ser obrigado a emitir um juízo sobre a intervenção terapêutica adotada Culpando uma pessoa não mais vivente evitouse tanto a diatribe científica realizada que deveria ter na devida consideração os testemunhos do mundo científico nacional e internacional solidário com Franco Basaglia quanto o perigo de se envolver na problemática política que informara a opinião do MP Em parte essas interpretações parecem dar razão ao jornalista do Gazzettino quando fala de sentença préfabricada mas por motivos totalmente opostos ao que ele afirma não para confirmar a justeza da experiência de Gorízia mas para permanecer acima de qualquer diatribe científica ou política O problema da responsabilidade dos sujeitos envolvidos permanece um fato não enfrentado e por isso mesmo não resolvido O Crime Louco 201 IV O primeiro incidente de Trieste Lorenzo Toresini 1 O fato 10 de junho de 1972 Em 14 de fevereiro de 1972 um sábado Giordano Savarin era liberado em caráter experimental conforme a terminologia da Lei 1904 Sobre Manicômios e alienados e posterior decreto regulamentador 1909 do Hospital Psiquiátrico Provincial de Trieste O paciente nascido em 1929 foi confiado aos cuidados da mãe Caterina Stupancich in Savarin que o levava para casa após uma internação de 39 dias Quatro meses depois em 10 de junho de 1972 Giordano Savarin matava ambos os genitores atingindoos repetidas vezes com uma faca rudimentar O Juiz Instrutor por sentença de 821973 absolvia Savarin reconhecendoo portador de incapacidade absoluta de entender e querer no momento do fato além de socialmente perigoso Em consequência determinou o J I a internação em manicômio judiciário por prazo não inferior a dez anos No mesmo contexto determinou o J I o envio a juízo de Franco Basaglia então diretor do HPP de Trieste juntamente com o Dr Edoardo De Michelini médico psiquiatra do Centro de Higiene Mental Para o primeiro a acusação foi de homicídio culposo por ter liberado em caráter experimental um paciente perigoso enquanto portador de esquizofrenia paranoide e especialmente por têlo confiado à mãe idosa e além do mais analfabeta Em consequência desse particular a senhora não deveria ter sido julgada apta para receber o paciente na medida em que incapaz de ler e portanto de seguir escrupulosamente as corretas prescrições farmacológicas Serenase gotas Nozinan cpr Fargan cpr Mogadon cpr Artane cpr O segundo foi acusado de na qualidade de diretor do CHM Lorenzo Toresini colaborou com Franco Basaglia em Trieste atualmente é diretor dos Serviços de Saúde Mental de Merano lorenzotoresiniliberoit O Crime Louco 202 ter omitido de exercitar um controle acurado sobre o paciente em liberdade domiciliar O julgamento em primeiro grau se celebra em novembro de 1975 resultando na absolvição de Franco Basaglia por insubsistência do fato O Dr Edoardo De Michelini no entanto foi condenado à pena de 1 ano e 4 meses de reclusão sendo reconhecido culpável por omissão por ter confiado excessivamente na palavra da mãe do réu louco que lhe dera garantias formais de querer se ocupar da regular administração da terapia ao filho O julgamento da apelação se celebra em abril de 1977 resultando na confirmação da absolvição de Franco Basaglia e na reforma da sentença de 1º grau em face do Dr Edoardo De Michelini que é então absolvido do crime que lhe foi atribuído por insuficiência de provas A Corte Suprema de Cassação julgando recurso interposto pelo P G rejeitao anulando a sentença impugnada sem necessidade de novo julgamento na parte em que absolveu De Michelini Edoardo por insuficiência de provas para substituir tal fórmula pelo fundamento de não estar o fato previsto em lei como crime O Crime Louco 203 2 As sentenças 21 Sentença de primeiro grau do Tribunal de Trieste de 25111975 República Italiana em nome do Povo Italiano o Tribunal de Trieste Seção Penal atualmente composto pelos magistrados Dr Italo Visalli presidente Dr Vincenzo DAmato juiz Dr Paolo Alberto Amodio juiz proferiu a seguinte sentença na causa penal contra 1 Basaglia Franco solto presente 2 De Michelini Edoardo solto presente acusados da prática do crime dos arts 41 e 589 mod pelo art 1º da Lei no 296 de 1151966 parágrafos 1º e 3º CP Em Trieste e Muggia até 10 de junho de 1972 PQM O Tribunal Nos termos dos arts 483 487 488 CPP declara o acusado Edoardo De Michelini culpado do crime a ele atribuído e concedendolhe as atenuantes genéricas condenao à pena de 1 ano e 4 meses de reclusão além do pagamento das despesas processuais determinando que a pena assim imposta seja condicionalmente suspensa sob as condições e cominações legais não se fazendo menção à condenação na folha de antecedentes penais do Registro Judiciário Nos termos do art 479 CPP absolve o acusado Franco Basaglia do crime que lhe foi atribuído por insubsistência do fato Trieste 25 de novembro de 1975 Sentença da Corte de Apelação de Trieste de 28 de abril de 1977 A Corte de Apelação de Trieste reformando parcialmente a sentença do Tribunal de Trieste de 25111975 impugnada por De Michelini Edoardo e pelo MP absolve De Michelini O Crime Louco 204 do crime que lhe foi atribuído por insuficiência de provas Confirma em seus demais termos a sentença apelada 22 Sentença da Corte Suprema de Cassação de 12 de abril de 1978 no 2389377 RG Em 2941977 o MP interpôs recurso de cassação contra os acusados Basaglia Franco e De Michelini Edoardo Segue sentença no 70775 Em 2941977 o adv Sergio Padovani pelo acusado De Michelini Edoardo interpôs recurso de cassação Em 2941977 o adv Enzo Morgera pelo acusado De Michelini Edoardo interpôs recurso de cassação A Corte Suprema de Cassação por sentença de 1241978 no 2389377 RG no recurso interposto pelo PG em face de 1 De Michelini Edoardo também recorrente 2 Basaglia Franco rejeita o recurso do PG anula a sentença impugnada sem necessidade de novo julgamento na parte em que absolveu De Michelini Edoardo por insuficiência de provas para substituir tal fórmula pelo fundamento de não estar o fato previsto em lei como crime Transitada em julgado em 1241978 O escrivão O Crime Louco 205 3 Considerações sobre o primeiro caso de Trieste 31 Previsibilidade A primeira indagação que se coloca diz a sentença do Tribunal de 1º grau de Trieste no já longínquo ano de 1975 é pois se o trágico resultado causado por Savarin em absoluta incapacidade de entender e querer seria vinculável em uma relação de causalidade eficiente à conduta do acusado Basaglia que determinou sua liberação do HPP A este respeito é oportuno ressaltar que a liberação de Savarin em 1421972 não foi adotada nem se encaixa no quadro das novas concepções da psiquiatria e da função dos manicômios de que o Dr Basaglia se fez tenaz e contestado defensor Ao Tribunal não interessa saber se naquela data o HPP já tinha se transformado em manicômio aberto e assim se nas relações com os doentes liberados em diversas formas já tinham sido introduzidas as inovações algumas das quais já recebidas pelas leis do Estado promovidas pelo Dr Basaglia O fato é que no que se refere a Savarin a liberação foi deliberada e executada exclusivamente segundo os critérios adotados por ocasião das precedentes internações pelos então diretores do HPP de Trieste e em rigoroso respeito às normas e práticas em vigor Deriva daí que na valoração da conduta do Dr Basaglia deve permanecer estranho o critério da previsibilidade e possibilidade de evitação do resultado grifo nosso adotado em algumas decisões recentes da Corte de Cassação referentes a fatos e ocorrências conexos à realização de ardentes inovações técnicocientíficas cujas concepções foram tão lucidamente expostas pelo MP em sua petição Portanto afirma a sentença o problema central é o da previsibilidade e essa é a eterna questão no âmbito temático da responsabilidade profissional dos psiquiatras Em outras palavras se um indivíduo é totalmente incapaz de entender e querer seu comportamento poderia ser assimilado a um fato de ordem mecânica de modo a configurar um percurso linear transparente O Crime Louco 206 visível previsível Isto entendase por parte de um olhar técnica e profissionalmente preparado Não seria verdade parece dizer a sentença ainda que para refutar tal tese que os psiquiatras sabem ler o que se passa na mente das pessoas E se sabem ler o que se passa na cabeça dos seres humanos não seriam talvez capazes de perceber naquelas mentes um tanto simplificadas aquilo que tão provável quanto inevitavelmente estaria por acontecer Salta aos olhos uma comparação que se impõe Até há poucos anos não parecia existir nada mais absolutamente imprevisível do que o tempo atmosférico Diziase tempo bizarro ou exatamente tempo louco Ora isso não é mais verdade A tecnologia a observação escrupulosa globalizada estendida ao mundo inteiro permite hoje com margem de certeza quase absoluta prever o tempo que fará O tempo atmosférico perdeu para toda a Humanidade sua bagagem de arbitrariedade A ciência a técnica e portanto a Razão afirmam que a mente humana o cérebro assolado por uma doença no fundo também não passa de um órgão mecânico devendo pois os técnicos na matéria serem capazes de prever Prever e assim prevenir E se não preveem devem responder pelo fato que não previram Porque certamente eram capazes exatamente de prever E se não previram e não preveniram isso certamente foi fruto de negligência e portanto certamente são responsáveis O que não se considera nessa concepção que naturalmente jamais é explicitada como tal mas aflora nesse pensamento naturalístico primordial ou se preferirmos que brota da esplêndida metáfora do Gênesis é a simples conclusão de que imaginar tal mecanicismo na mente humana estaria a implicar a abolição do livre arbítrio O ser humano sadio seria capaz de se autodeterminar e portanto quando transgride as leis morais fálo consciente e voluntariamente no interior de um projeto criminoso e doloso Já o sujeito afetado por um processo patológico perderia essa sua qualidade devendo assim ser considerado como um autômato incônscio inconsciente totalmente determinado e portanto inculpável A responsabilidade O Crime Louco 207 por seus atos deve todavia caber a alguém vale dizer ao técnico que não foi capaz ou não se dignou a intervir nos seus dispositivos doentes em seus parafusos Vem à lembrança o percurso lógico do rei do positivismo psiquiátrico o grande Cesare Lombroso que coerentemente com o espírito de seu tempo considerava o Homem inserido em seu percurso evolutivo Partindo assim da constatação anatômico funcional da existência de três córtices cerebrais no cérebro humano neopálio paleopálio e arquipálio em que normalmente um prevalece sobre o outro mantendose o córtex inferior sob seu próprio controle anatômico funcional mas também quase ético Lombroso julgava que a loucura consistisse em uma subversão de tal hierarquia Nessa subversão o arquipálio o córtex inferior aquele que dado o percurso na ontogênese da filogênese corresponde ao dos répteis prevaleceria sobre o neopálio Sobre aquele neopálio que constitui a base hardware do software que é a razão consciente fundamento da autoconsciência e do autocontrole humano Daí decorre que o ser humano regredido a réptil acaba por se tornar um sujeito mais elementar mais decifrável mais previsível Mas também obviamente mais perigoso Com efeito o crocodilo responde de maneira automática ou semiautomática aos estímulos olfativos E responde agredindo e mordendo Daí decorre pois que o crocodilo é perigoso Salta aos olhos uma concepção racista evidentemente baseada em uma tese um pressuposto e um preconceito de tipo biológico o do homem mecânico comparável ao tempo atmosférico que embora profundamente complexo em seus decisórios não deixa no entanto de permanecer sempre mecânico Tudo isso evidentemente dentro de uma concepção ingenuamente otimista de que a ciência a pesquisa e a técnica mais cedo ou mais tarde descobrirão o fundamento do comportamento e do livre arbítrio humano Vale dizer que como frequentemente acontece na pesquisa deveria e poderia ser exatamente da observação da patologia que se chegaria O Crime Louco 208 à compreensão da fisiologia analogamente ao fato de que da observação da psicopatologia às vezes mais facilmente se chega à psicologia isto é ao pensamento humano normal Pois bem de tudo isso a sentença de 1975 fala para dizer a verdade de maneira um tanto crítica na valoração da conduta do Dr Basaglia deve permanecer estranho o critério da previsibilidade do resultado o que não é e nem pode ser matéria de valoração judiciária Isto porque a previsibilidade do comportamento humano sadio mas também patológico não pode evidentemente ser matéria de reducionismo mecanicista 32 Circunstância interruptiva Diz mais a sentença do Tribunal de Trieste de 1975 E é lamentável constatar mas é preciso ser dito que a negligência ou imprudência seriam atribuíveis exatamente à guardiã e a seu marido por não terem alertado o HPP sobre o comportamento absolutamente anormal em que recaíra Giordano Savarin nos dias que precederam o fato criminoso comportamento esse caracterizado por inequívocos sintomas de uma superveniente e perigosa crise persecutória vejamse os depoimentos de Strain A omissão foi certamente ditada pelo afeto e pela esperança infelizmente infundada dos dois pobres genitores de que a crise desapareceria ou regrediria Todavia essa omissão aconteceu e se interpõe como circunstância interruptiva válida entre a conduta do Dr Franco Basaglia e o crime cometido pelo paranoico Savarin Existem pois afirmava o Tribunal de Trieste circunstâncias capazes de interromper o nexo de causalidade entre a responsabilidade do médico psiquiatra e os comportamentos de seus respectivos pacientes Uma dessas é o fato de não ter sido adequadamente informado sobre suas pioras por exemplo pelo silêncio dos familiares no caso presente da mãe Mas que circunstância interruptiva em relação à suposta responsabilidade culposa do médico psiquiatra seria maior do que O Crime Louco 209 em vez de se reconhecer o paciente como totalmente incapaz de entender e querer nos termos do art 88 CP fosse ele reconhecido parcialmente doente mental nos termos do art 89 CP Nesse segundo caso está implícito que a capacidade residual do sujeito que não perdeu o senso ético comum estando no máximo apenas parcialmente influenciado por sua própria doença constitui circunstância interruptiva da responsabilidade do médico Outra é a situação mencionada na sentença da Cassação seção penal IV no 39680 de 9 de outubro de 2002 já referida concernente ao caso do depósito de borracha44 Não por acaso a sentença assimila um sujeito reconhecido totalmente incapaz de entender e querer a um depósito de borracha Impossível não ver aqui uma concepção mecanicista do homem que reduz a zero a subjetividade qualquer subjetividade assimilandoa à de uma máquina ou até a um depósito de pneumáticos 33 A Lei 431 e a consciência da doença A Lei 431 de 1968 continha em seu texto o termo CHM Centro de Higiene Mental Com efeito promovia pela primeira vez desde a invenção da psiquiatria ao menos em nosso país a construção de dispensários estruturas externas ao Hospital Psiquiátrico que se ocupassem dos pacientes liberados A finalidade a própria palavra o expressa era a de dispensar psicofármacos conselhos exames controles apoio Tratase como facilmente se pode deduzir de alguns detalhes escondidos entre as linhas da sentença BasagliaDe Michelini de ambulatórios onde se desenvolvia um trabalho tão simples quanto basilar Não se fala de trabalho de equipe por exemplo tendose a impressão de que prevaleceria o 44 Nota à edição brasileira Tratase do episódio antes mencionado em que foi afirmada a responsabilidade a título de culpa de um sujeito que pelo estado de abandono e negligente descuido em que mantinha um depósito de material de borracha contribuíra para pôr em atuação as condições para que se verificasse um incêndio que na realidade acabou por ser ateado por desconhecidos O Crime Louco 210 aspecto burocrático Todavia é preciso reconhecer que tal estrutura assumiu pela primeira vez na história da psiquiatria45 um papel de ruptura com o anterior paradigma Um paradigma que previa a incapacidade absoluta do paciente psiquiátrico de como veio a sustentar anos depois o Ministro da Saúde pluriinvestigado e condenado Francesco de Lorenzo ter consciência da doença Da menção legal implicitamente decorria que a existência e a introdução do CHM no território estaria a pressupor o fato de que algumas ou muitas pessoas fossem capazes de bem compreender seu significado e portanto de recorrer àquele a toda evidência voluntariamente a partir da consciência de se achar naquela situação particular que comumente assume o nome de doença mental Tratase em essência de uma ruptura histórica com o aparato conceitual anterior que o Ministro De Lorenzo não podia ou não queria ter em conta Esse mesmo aparato conceitual que assimilava o louco a um ser inferior e automatizado pelo que não tinha responsabilidade sobre suas escolhas e seus gestos o crocodilo estando suas decisões desvinculadas do controle da razão soberana já que determinado pela desrazão instintiva doente e de todo modo negativa Simultaneamente a Lei 431 de 1968 da qual hoje não se fala mais na medida em que amplamente superada pela Lei 180 833 de dez anos depois previa outros aspectos de fundamental importância para a superação definitiva do paradigma psiquiátrico historicamente dado Primeiro desses aspectos era a previsão da internação voluntária O artigo 4º da Lei 431 de 1968 previa a possibilidade de internação voluntária no Hospital Psiquiátrico mas à diferença do art 63 da lei regulamentadora 1909 pelo qual o cidadãopaciente poderia requerer a internação voluntária mas se tornava automaticamente 45 Nota à edição brasileira Este ineditismo diz respeito à Itália pois na França desde 1958 já funcionava a psiquiatria de setor por obra de Philippe Paumelle Serge Lebovici e René Diatkine O Crime Louco 211 um interno compulsório perdendo os direitos civis o paciente voluntário mantinha seus direitos civis e a possibilidade de decidir o momento da própria liberação Nos termos do art 4º para quem se fazia internar o Hospital Psiquiátrico se tornava um hospital geral orientado pelo princípio do consentimento O segundo aspecto previa a instituição de divisões no interior do Hospital Psiquiátrico A lei instituiu uma divisão com um diretor um ajudante e pelo menos um assistente médico para cada 125 postosleitos Antes nos manicômios existia uma equipe formada por um diretor um ajudante e um assistente para os homens e uma para as mulheres não mais do que duas equipes médicas Em Trieste por exemplo onde em 1968 os pacientes eram 1200 foram instituídas dez divisões oito delas sendo as novas divisões Isto significou que o manicômio finalmente poderia se tornar também um lugar de tratamento não apenas de controle e de violência O Crime Louco 212 V O segundo incidente de Trieste Lorenzo Toresini 1 O fato 29 de junho de 1977 Em 27 de junho de 1977 um domingo por volta de 11 horas dirigese ao Hospital Psiquiátrico Provincial de Trieste uma jovem de 27 anos Maria Letizia Michelazzi in Trani a qual já havia apresentado pesado quadro psicopatológico Explica ter sido portadora de grave forma de neurose obsessiva e ter se submetido com seu consentimento a uma leucotomia préfrontal no ano anterior na Suíça dirá cortaramme a cabeça Esclarece ainda que o núcleo central de sua obsessão gira em torno do filhinho de quatro anos Naquele momento a paciente estava cansada após uma longa viagem e sentindose inapta como mãe pedia ajuda Dois psiquiatras a escutaram e pediram que esperasse a fim de se consultarem entre si Logo ficou claro para os dois médicos que internar na enfermaria de Acolhimento de Mulheres do Hospital Psiquiátrico de Trieste aquela mulher jovem e mais do que isso em aparente bom estado de compensação parecia ser profundamente contraindicado para ela própria Além da inquestionável capacidade de se representar corretamente descrevendo a si mesma de maneira crível e substancialmente equilibrada a jovem deixava escapar alguns traços histriônicos e embora apenas vagamente exibicionistas Por essa razão pareceulhes desaconselhável o acolhimento em uma enfermaria psiquiátrica onde dentre outras coisas estavam internadas mulheres com traços semelhantes com quem rapidamente se instalaria um clima conflituoso Decidiram então esperar a chegada de um terceiro psiquiatra que dali a pouco voltaria de sua visita dominical ao CSM46 de Muggia para com este 46 Nota à edição brasileira CSM é a sigla de Centro di Salute Mentale isto é Centro de Saúde Mental Os Centros de Saúde Mental correspondem aos CAPs da reforma psiquiátrica brasileira Os CSM de Trieste correspondem mais especialmente aos CAPs III O Crime Louco 213 começarem imediatamente a planejar um programa de tratamento e reabilitação domiciliar A mulher afastando um cacho de cabelo exibiu o que julgava ser visível como cicatriz em posição látero frontal fruto a seu dizer da mencionada leucotomia Tal cicatriz no entanto não foi vista pelo médico a quem ela a mostrara À chegada do terceiro médico a paciente que fora ao HPP voluntariamente e parecia substancialmente compensada já tinha ido embora Três dias depois em 28677 a mulher afogava dramaticamente o próprio filho de quatro anos na banheira de casa Declarada doente mental total Maria Letizia Michelazzi in Trani foi internada no HPJ de Castiglione delle Stiviere A Procuradoria da República formula a hipótese de negligência imperícia e imprudência por parte dos dois psiquiatras por não terem impedido o evento internando imediatamente a jovem e por não terem se preocupado em conduzila ou procurála em sua casa ou em outro lugar Expede então um mandado de notificação para os dois médicos que são acusados de homicídio culposo A Consultoria Técnica da Procuradoria demonstra claramente o fino déficit cognitivo que sobreveio à mulher após a leucotomia a que ela realmente se submetera acrescentando porém que tal déficit não era percebível em uma normal entrevista clínica Admite o erro profissional mas segundo o perito da Procuradoria a gravidade não era de tal forma a configurar o crime de culpa profissional A instrução se arrasta por mais de um ano e o procedimento contra os dois médicos certamente seria arquivado não fosse a intervenção de uma tão providencial quanto dirigida carta anônima Nessa carta afirmavase que os enfermeiros que falaram com a mãe homicida antes que fosse atendida pelos dois psiquiatras teriam ouvido de sua própria boca a intenção de matar o filho Chegouse assim ao envio a juízo pressupondose que o fato de a mulher ter expressado aos enfermeiros sua intenção de eliminar o filho significava que ela o dissera também para os médicos Consequentemente pressupunha se que o fato de ter declarado tal intenção constituía sintoma grave de O Crime Louco 214 uma doença perigosa qualquer que a internação no manicômio teria impedido o trágico evento posterior e finalmente que a verbalização de uma intenção infanticida deveria ser enquadrada como um aspecto clínico de competência médica não avaliável isoladamente sendo por isso de competência médica a intencionalidade do crime O julgamento em primeiro grau se desenvolveu em 1980 Desde os primeiros enfrentamentos de caráter procedimental a batalha se fazia dura O Tribunal excluíra a participação da mulher homicida enquanto totalmente incapaz de entender e querer sendo ela absolvida ao final da instrução por enfermidade mental nos termos do art 88 CP A senhora Maria Letizia Michelazzi in Trani fez uma rápida aparição na sala de audiências cercada por uma densa nuvem de policiais vinda do HPJ de Castiglione sendo após reconduzida ao lugar de onde viera O MP apostava em seu testemunho contra os acusados os médicos com o objetivo de descrever a suposta suficiência superficialidade e a seu ver a indiferença em uma palavra o escasso profissionalismo com que ela fora tratada durante a entrevista dois anos antes com os dois médicos Comentavase por baixo do pano que a Procuradoria prometera à mulher que se sustentasse a tese da superficialidade dos médicos sairia do HPJ ou pelo menos a mulher se iludira de que isso aconteceria Assim agindo o MP se preparava para enfrentar a contradição de fazer testemunhar uma acusada ainda que absolvida por total doença mental contra outros acusados Para avalizar essa escolha tática o MP acenava com as sentenças que naquela época serviam para legitimar os testemunhos dos pentiti em relação a outros acusados por crimes de terrorismo A Corte no entanto rejeitou o requerimento Afinal o Tribunal de 1º grau absolveu os dois acusados com fórmula plena por não terem cometido o fato Essa absolvição dentre outras que aconteceriam naqueles anos com análogo significado foi saudada como expressão da influência da nova Lei 180 de 13 de maio de 1978 sobre o Judiciário O julgamento da apelação se desenvolveu em 1982 concluindo O Crime Louco 215 com a confirmação da absolvição também com fórmula plena até porque a fórmula da dúvida fora abolida no transcurso daqueles anos A Procuradoria Geral interpôs recurso para a Cassação Em 1986 a Cassação confirmou a sentença proferida na apelação Um dos advogados da Defesa descreveu a audiência como efervescente não obstante a delicadeza da matéria O Crime Louco 216 2 A perícia Como antes mencionado a Consultoria Técnica da Procuradoria demonstrou claramente o fino déficit cognitivo que sobreveio à mulher em seguida à leucotomia tendo sido posteriormente esclarecido na CTU que ela efetivamente a sofrera ressaltando porém que esse déficit não era percebível em uma normal entrevista clínica Também já mencionado que a gravidade do presumido erro profissional dos médicos acusados não era de tal monta que pudesse configurar o crime de culpa profissional A CT da Procuradoria foi aceita pelo Juiz Instrutor que assim se viu malgrado sua vontade como restou evidente privado de elementos para determinar o envio a juízo dos dois médicos acusados A CT inicialmente da Procuradoria da República e depois do juiz de mérito chegou mesmo a sustentar que acontecera um erro diagnóstico por parte dos psiquiatras acusados que a seu ver teriam confundido uma neurose obsessiva com uma psicose pseudoneurótica sempre de caráter obsessivo Assim a CT esquecia a diferença entre juízo diagnóstico ex ante antes da prática do delito e juízo diagnóstico ex post após a prática do filicídio A visão e o dito juízo posterior são decisivamente diversos da visão e do juízo anteriores à prática de um delito A CT além disso dava como certo nesse nível o fato de que em se tratando de pessoa portadora de psicopatologia o delito estaria a pressupor tout court um diagnóstico de psicose enquanto um diagnóstico de neurose poderia inclusive não conduzir à incapacidade total de entender e querer Em outras palavras a CT dava como certo o fato de o diagnóstico de psicose pressupor um juízo de periculosidade reservando às neuroses uma margem maior de liberdade e portanto de responsabilidade Evidentemente tal não poderia ser o caso de Maria Letizia M in T pela simples razão dela ter matado Nada disse a CT sobre o tema da leucotomia Não questionou em absoluto se o fato de ter ignorado a presença de uma leucotomia O Crime Louco 217 poderia agravar a responsabilidade dos médicos psiquiatras dado que lesão tão grave do lobo frontal verossimilmente teria reduzido juntamente com a ansiedade sintomática e a estruturação defensiva obsessiva a própria autoinibição e o autocontrole Essa foi a realística tese após o delito de Hrayr Terzian catedrático de neurologia na Universidade de Verona reitor da mesma Universidade amigo íntimo e médico pessoal de Franco Basaglia Ainda mais estranhamente a CT tampouco se manifestou sobre eventual responsabilidade do cirurgião suíço que de algum modo poderia inclusive representar um antecedente causal da desinibição e assim da passagem ao ato por parte de Maria Letizia Michelazzi A Procuradoria da República tampouco ousou indagar sobre os efeitos devastadores da leucotomia dando por demonstrado que se tivesse tratado de uma intervenção terapêutica O Crime Louco 218 3 As sentenças 31 Sentença do Tribunal de Trieste no 84180 de 19 de novembro de 1980 República Italiana Em nome do Povo Italiano o Tribunal Civil e Penal de Trieste Seção Penal composto pelos magistrados Dr AB presidente Dr SL juiz Dr EN juiz pronunciou a seguinte sentença na causa penal contra Vincenzo Pastore solto presente e Lorenzo Toresini solto presente acusados a do delito de cooperação em homicídio culposo arts 113 589 com as modificações do art 1º da Lei no 296 de 11566 parágrafos 1º e 3º CP por ter o primeiro na qualidade de médicochefe do Hospital Psiquiátrico de Trieste de plantão naquela manhã e o segundo na qualidade de médico da enfermaria de acolhimento de mulheres do mesmo nosocômio deixado por imprudência e negligência de internar de providenciar algum tipo de apoio psiquiátrico e até mesmo de registrar o único contato ambulatorial em relação a Maria Letizia Michelazzi que na manhã de 26 de junho de 1977 apresentarase a eles referindo em entrevista com cerca de quarenta minutos de duração ter sido anteriormente internada por diversas vezes em clínicas e hospitais psiquiátricos ter sofrido uma operação de psicocirurgia no crânio lobotomia ter tentado o suicídio uma vez ter um filho pequeno em relação ao qual sentia impulsos agressivos e o preciso desejomedo de matálo acrescentando que se voltasse para casa faria alguma loucura e isso embora a mesma insistisse mais de uma vez e decisivamente pedindo para ser internada e afirmando não se sentir bem estar perturbada não poder mais tendo eles se limitado a sugerir sem nem mesmo O Crime Louco 219 registrar a entrevista e os dados da mulher que ela se dirigisse ao Centro de Higiene Mental de Muggia sem procurar reencontrála depois que desiludida pela recusa de internação e pela falta de assistência afastarse com uma desculpa de tal modo que Maria Letizia Michelazzi abandonada e entregue a si mesma causou a morte do filho Fabio de quatro anos afogandoo na banheira b do delito de concurso em recusa de atos de ofício arts 110 e 328 CP por terem na qualidade de encarregados de um serviço público como respectivamente diretor de plantão e assistente da enfermaria de acolhimento de mulheres do Hospital Psiquiátrico de Trieste indevidamente porque a tanto obrigados pelos sintomas apresentados pela paciente e por quanto por ela mesma referido e em desacordo com as disposições estabelecidas no art 14 DPR no 128 de 2731969 sobre o regulamento interno dos serviços hospitalares que impõe ao médico de plantão motivar por escrito a recusa de internação se negado em concurso de vontades e ações a internar Maria Letizia Michelazzi que a eles se apresentara pedindo repetida e decisivamente para ser internada e motivando tal pedido com suas condições psíquicas que a levavam a externar sua agressividade contra seu filho menor como de fato o fez dali a três dias matandoo Em Trieste 26 de junho de 1977 Nos termos do art 479 CPP Absolve Vincenzo Pastore e Lorenzo Toresini das acusações que lhes foram feitas porque os fatos não constituem crime Trieste 11180 O juiz relator EN O Crime Louco 220 32Sentença da Corte de Apelação de Trieste de 7 de dezembro de 1982 A Corte de Apelação de Trieste por sentença datada de 71282 reformando parcialmente a sentença do Tribunal datada de 191180 apelada pelo MP em relação a Vincenzo Pastore e Lorenzo Toresini absolve os acusados do crime referido no item a por insuficiência de provas Nos termos do art 1º e ss DPR no 744 de 181281 declara a extinção do processo em relação ao crime referido no item b por estar extinto por superveniente anistia 33Sentença da Cassação IV seção Penal 11 de outubro de 1996 no 9542 Em 91282 o acusado Lorenzo Toresini interpôs recurso perante a Cassação Em 91292 o defensor do acusado Vincenzo Pastore interpôs recurso perante a Cassação Em 101282 a parte civil interpôs recurso perante a Cassação A Corte Suprema de Cassação por sentença datada de 11296 em recursos interpostos pelo MP L Trani PC Vincenzo Pastore e Lorenzo Toresini declara inadmissível o recurso da parte civil Rejeita os recursos dos acusados e condena os recorrentes solidariamente ao pagamento das despesas processuais e da taxa de sentença Condenaos ainda ao pagamento da quantia de 300000 liras para cada um a serem recolhidos à Caixa das Multas Em 11286 O Escrivão O Crime Louco 221 4 Considerações sobre o segundo caso de Trieste Pier Aldo Rovatti em ensaio sobre o caso Una scena vuota47 escreveria O poder médico não se alforriou do poder judiciário mas se destacou dele e por isso foi atacado com violência O mecanismo cuja genealogia Foucault nos mostrou demonstra aqui não funcionar mais ou não funcionar de todo Há um obstáculo provocado pelo surgimento de outras práticas e um saber médico diverso A microfísica do poder revela uma pequena alteração Em outras palavras o mandante do controle social não era capaz de verificar e punir a traição de seu próprio mandato 41O nexo de causalidade A eterna questão da psiquiatria é a da periculosidade e da responsabilidade do psiquiatra em relação a comportamentos perigosos Se determinadas pessoas na sociedade sofrem de Desrazão definitivamente outras pessoas delegadas pela sociedade da Razão são obrigadas a gerir a ter a seu cargo a normalizar a silenciar se necessário até à força os sujeitos portadores de Desrazão A grande conquista do Século das Luzes confortada pelas certezas do Positivismo científico foi que tais sujeitos não respondem por seus comportamentos e portanto por seus crimes O senso comum é o de que tais sujeitos não são detentores do livre arbítrio De certa forma seus comportamentos aparecem como automáticos nos moldes do crocodilo que responde ao estímulo odor e imediata mordida na fonte do estímulo Mas se os indivíduos não estão submetidos ao controle da Razão assim não podendo responder por seus atos então por óbvio e por lei outros devem responder em seu lugar As pessoas a quem delegada a normalização das linguagens e dos 46 Nota à edição brasileira CSM é a sigla de Centro di Salute Mentale isto é Centro de Saúde Mental Os Centros de Saúde Mental correspondem aos CAPs da reforma psiquiátrica brasileira Os CSM de Trieste correspondem mais especialmente aos CAPs III O Crime Louco 222 comportamentos perigosos estão portanto obrigadas a responder pelos comportamentos dos terceiros que não conseguiram prever e assim não conseguiram prevenir e impedir O resgate da Psiquiatria Institucional está todo aqui Um artigo do código penal abolido pela Lei 180 de 1978 punia quem se fizesse responsável direta ou indiretamente pela evasão de quem estivesse internado no manicômio O sistema psiquiátrico se fundava nessa concatenização de eventos Quem quer que demonstrasse sintomas psiquiátricos deveria ser internado por indicação obrigatória de qualquer médico que tivesse conhecimento dos ditos sintomas Qualquer omissão nesse sentido automaticamente levava à declaração de responsabilidade do próprio médico Em outras palavras o psiquiatra era culpável pelos atos praticados por quem não sabia o que fazia As sentenças concernentes ao caso Maria Letizia Michelazzi põem fortemente em discussão esse posicionamento quase arquetípico das relações entre Psiquiatria e Justiça Não é mais automático que se alguém delinque e não é capaz de entender e querer o médico que tivera mesmo que só um contato com ele responda pelo fato de não ter impedido o resultado A ligação imediata entre a nãoresponsabilidade do terceiro que cometeu um crime em condições de total enfermidade mental sendo assim absolvido e a responsabilidade do médico que tratava tal pessoa ou que estivera em contato com ela ainda que apenas em um encontro fugaz por óbvio e por direito rompese A lei chancela que a doença mental não é mais aquele evento devastador a ocupar todo o espaço da pessoa e impedir seu portador de exercer o autocontrole a partir da prevalência da razão sobre os instintos A doença mental pelo menos aquela maior não é por definição causa automática e imediata de incapacidade de manter a titularidade do próprio livre arbítrio O nexo de causalidade entre a falta de responsabilidade por parte do doente e a responsabilidade imediata e evidente do médico já não existe O que as sentenças absolutórias nos processos sobre o caso de Maria Letizia Michelazzi põem em discussão é na realidade O Crime Louco 223 exatamente a existência de uma incapacidade total de entender e querer O art 88 CP no fundo vacila ainda que obviamente não tenha sido abolido tout court na medida em que isso pressuporia uma revisão bem mais profunda do Código Penal Todavia pensando bem todo o sistema da Justiça Penal evidentemente baseado no princípio da responsabilidade fundando se no pressuposto de existência do Livre Arbítrio baseiase também e acima de tudo na existência da exceção a tal princípio É a incapacidade de entender e querer que na realidade confirma e reforça a regra exatamente a regra da capacidade Se eventualmente alguém embora a toda evidência muito raramente pode ser tido somente mediante perícia psiquiátrica oficial como totalmente doente mental isso significa então que em todos os outros casos essa mesma capacidade de entender e querer evidentemente se mostra íntegra A condenação e a punição resultam reforçadas e legitimadas Sem dúvida essa visão exposta assim tão sucintamente no osso surge redutiva e maniqueísta bastando pensar na infinita variedade das percepções dos conhecimentos dos sentimentos humanos e na normal ambivalência das vivências subjetivas das pessoas As sentenças do caso Trani na realidade chancelam o fato de que essa visão físicomatemática newtoniana e simplista do livre arbítrio ligada à concepção brutalmente organicista biológica e racionalista da loucura finalmente estaria superada Mas desse modo haveria de ser confirmada a visão que pusera fim à própria existência dos manicômios daqueles cárceres não cárceres que se disfarçavam em hospitais mas que fundavam seu próprio princípio inspirador exatamente sobre uma concepção de doença mental reducionista e grosseira A que postulava exatamente a existência de uma total incapacidade de decidir livremente e de responder ainda que apenas potencialmente pelos próprios atos Com efeito quem não praticara crimes evidentemente não poderia ser encaminhado a procedimentos de caráter judiciário O problema portanto não se colocava ex post mas sim ex ante O tema era o da precognição O Crime Louco 224 do gesto impensado que o sujeito poderia praticar sendo o fim portanto o da previsão e como ultima ratio o da prevenção Como não impedir um resultado que se tem o dever jurídico de impedir equivale a causálo art 40 2º CP a responsabilidade do médico era concebida de maneira mecânica Na realidade se é verdade que esse posicionamento parece seguramente legítimo em relação a quem possui sociedades ou empresas de tipo industrial ou artesanal como depósitos de explosivos refinarias de gasolina ou depósitos de gás onde o elemento inflamável e explosivo não é dotado de capacidades subjetivas Cassação Penal seção IV 9 outubro 2002 no 39680 é igualmente evidente que estender essa concepção aos seres humanos significa negarlhes qualquer subjetividade e portanto infirmar desde o início qualquer possibilidade de intervenção terapêutica Das sentenças do caso Trani48 deriva como corolário imediato uma radical reviravolta da concepção até aqui descrita Concepção no fundo diretamente derivada do pensamento de Lombroso vale dizer de um posicionamento naturalístico e racista da diversidade humana baseado em uma interpretação arbitrária do Darwinismo aplicado ao Homem Tal doutrina prénazista trará como implicação lógica e imediata o projeto T4 de eliminação das vidas não dignas de serem vividas do III Reich48 Subsiste o fato de que quem cometeu um crime sem poder ser julgado responsável porque declarado incapaz por perícia psiquiátrica perante a Justiça em vez de condenação à detenção ser submetido à 47 Lorenzo Toresini La Testa Tagliata Edições Alfa Beta Merano 48 Nota à edição brasileira Aktion T4 foi o nome dado após a primeira guerra mundial ao programa nazista de eutanásia que sob responsabilidade médica previa a eliminação de pessoas portadoras de doenças genéticas incuráveis ou de deformações físicas mais ou menos graves Os médicos encarregados de levar adiante a operação decidiram matar 20 dos presentes nos institutos de tratamento em um total de 70000 pessoas O extermínio de pessoas com deficiências prosseguiu mesmo após o encerramento oficial da operação elevando o total de vítimas a um número estimado em cerca de 200000 O Crime Louco 225 medida de segurança nos termos do art 222 CP o que representa uma condenação de fato ainda pior do que a primeira permanecendo o HPJ fora dos controles e garantias da Constituição a No cárcere por exemplo é vedada qualquer intervenção sobre o corpo do detento sob pena de se cometer um crime Em uma Casa de Custódia não se pode por exemplo amarrar um detento No HPJ exatamente por se tratar de um hospital isso acontece normalmente Não está claro se isso é permitido mas de fato no HPJ acontece b Em regime de detenção sabese quando se entra e também quando se sai No fundo a condenação representa um pacto que deve ser respeitado por ambas as partes o condenado e o Estado No HPJ sabese quando se entra mas não se sabe quando se sai Depende do juízo de periculosidade Mas nós sabemos o quanto este último é elástico No fim depende apenas da existência ou não de um Serviço Territorial que dele se encarregue c O preso pode se candidatar e ser eleito Um sujeito submetido à medida de segurança em um HPJ nos termos do art 222 CP não pode se candidatar e muito menos ser eleito O HPJ afinal é substancialmente uma medida absurda e incoerente na medida em que não pune mas tampouco trata O Crime Louco 226 VI As questões Ernesto Venturini 1 A perícia psiquiátrica Diante de um crime cometido por uma pessoa suspeita de loucura o magistrado determina a perícia psiquiátrica para apurar se esta pessoa além de ter cometido o crime compreendera o significado de seu gesto e quisera realizálo O quesito pericial visa substancialmente saber se o ilícito foi ou não sintomático em relação ao distúrbio psiquiátrico mas a perícia pode se constituir também em fonte de prova no processo determinando efeitos penais O diagnóstico psiquiátrico se conecta ao raciocínio médico enquanto o quesito pericial é inerente à lógica jurídica A perícia consequentemente é um híbrido porque se constitui em dois cenários diversos movendose entre duas óticas que buscam fins desiguais e utilizam diferentes métodos o direito e a ciência médica Enquanto o fim da medicina se volta para a saúde da pessoa o da justiça se volta para a segurança e a defesa da ordem social existente A diversidade de perspectivas tornase especialmente evidente na relação entre os sujeitos envolvidos No âmbito da relação terapêutica médico paciente o médico tenta buscar a confiança do paciente impondo se o caráter confidencial Na perícia ao contrário o perito tem o juiz como referência sua função avaliadora não necessariamente se propõe ao bem estar do réupaciente Como o perito psiquiatra não pode se eximir de seus deveres deontológicos eventualmente poderá se achar diante de situações conflitantes O perito se descobre espremido entre duas óticas em uma situação dialeticamente delicada em um equilíbrio ambíguo e incerto onde às vezes um ponto de vista parece prevalecer outras vezes o ponto de vista diverso Na realidade ao perito psiquiatra exigese que se dispa de sua identidade de médico para aderir a um sistema de valores centrado em um juízo moral que prevê a possibilidade da privação O Crime Louco 227 da liberdade Por tais razões o cenário da perícia psiquiátrica é para o psiquiatra cheio de expressões ambíguas e rituais Exemplo claro disso são as incertezas e os equívocos quando o perito usa no juízo psiquiátricoforense a expressão enfermidade mental que não é relacionável a um verdadeiro conceito médico de doença ou distúrbio psíquico Penso todavia que não se pode supor uma efetiva assepsia do perito inexistindo uma neutralidade nesse âmbito Penso ao contrário que o perito psiquiatra deva sempre declarar seu campo de escolha e estar consciente de que deve se motivar somente por valores éticos Uma segunda consideração diz respeito à anacrônica formulação dos quesitos periciais que remonta aos anos 30 utilizando parâmetros científicos distanciados dos conhecimentos atuais e mais ainda distanciados das mudanças do paradigma científico que foram se determinando com a reforma psiquiátrica e o fechamento dos hospitais psiquiátricos O magistrado faz referência a dois parâmetros capacidade de entender e querer periculosidade social que nos reportam ao positivismo do século XIX tornando evidente a distância que se criou de um ponto de vista histórico entre a atual saúde mental comunitária e a psiquiatria forense A afirmada capacidade de entender e querer de fato representa um conceito obsoleto especialmente no que diz respeito à capacidade de querer Tratase de conceito sem possibilidade de verificação com os atuais conhecimentos neuropsicológicos A expressão com que o Código indica os aspectos psíquicos ou psicopatológicos não tem de fato valor científico representando tão somente um modo de falar convencional A capacidade de entender segundo o Código significa estar consciente do valor e do significado das próprias ações e poder avaliar suas consequências a capacidade de querer significa a capacidade de autodeterminação em relação às próprias pulsões controlandoas Mas nem todas as doenças psíquicas comportam tal incapacidade ou tampouco sua redução Os quesitos expressados pela linguagem do direito penal não são portanto apenas reducionistas em relação às conquistas da moderna psiquiatria e psicologia sendo O Crime Louco 228 também desviantes e inadequados Com efeito são deixadas à discrição dos magistrados e em alguns casos rigidamente tidas como inadmissíveis nas investigações tanto a complexidade das dinâmicas psicológicas como a avaliação global da personalidade do sujeito tão preciosas para se entender o comportamento da pessoa A estereotipada formulação tradicional dos quesitos psiquiátricos deveria ser modificada toda enunciação devendo ter em conta tanto o contexto de vida como a história social da pessoa de modo a compreender como tudo isso influiu em seu comportamento Finalmente a problemática da reiteração do crime deveria estar sempre focada muito mais no presente do que no passado Muitas vezes as perícias psiquiátricas apresentam uma fisionomia técnicocientífica anacrônica a linguagem é estereotipada o desenvolvimento e o tipo de indagações são comprimidos em uma visão da psicopatologia predominantemente biológica e tradicional a argumentação se concentra em um raciocínio centrado no juízo consumado Para compensar o esquema convencional e previsível concedemse longas citações reveladoras da situação crítica de uma ciência que como a psiquiátricoforense raramente consegue se ancorar em sólidas certezas científicas Na realidade deverseia admitir que o problema da indeterminação atinge toda a psiquiatria Com efeito bastaria considerar que a hipótese multifatorial da doença mental adotada em nossos dias demonstra exatamente a subsistência de uma não resolvida crise epistemológica da disciplina e a tentativa de chegar a um compromisso diante de sua incapacidade de se reconhecer em um paradigma definível cientificamente50 Frequentemente vemos pareceres dos diversos peritos os do MP do GIP ou da defesa a expressar conclusões diametralmente opostas suscitando uma compreensível desorientação Pode de fato acontecer a transferência do confronto processual entre acusação e defesa para o nível das teorias psiquiátricas A récita 50 Vejase Di Paola F Listituzione del male mentale Critica ai fondamenti scientifici della psichiatria biologica Le Esche Manifesto libri Roma 2000 O Crime Louco 229 que os peritos vez por outra desenvolvem ora em um bloco ora em outro leva o conflito a se configurar como uma espécie de luta entre paradigmas e sistemas científicos diversos uma luta que no entanto tem o sabor de um jogo de partes Mas a situação também se ressente da falta de homogeneidade dos papéis profissionais dos peritos que pertencem a ramos afins mas não similares a psiquiatria a psicologia a criminologia a medicina legal O juízo psiquiátricoforense resulta vez por outra condicionado pelos diferentes posicionamentos disciplinares dos peritos que examinam o evento a partir de óticas diversas A riqueza dos diferentes enfoques pode se constituir em uma vantagem para se chegar a uma avaliação equilibrada mas também pode se constituir em um sério problema quando se confrontam análises e perspectivas situadas em níveis e linguagens demasiadamente diversos É preciso ter em conta ainda outro fator desestabilizador como toda situação complexa a cena da perícia se ressente dos efeitos de envolvimentos emocionais e relacionais dos indivíduos malgrado a tentativa de fazêla parecer imparcial e asséptica Alguns autores51 descrevem as reações emocionais dos peritos no curso da perícia psiquiátrica relacionandoas a algumas variáveis o tipo de relação do perito com os representantes da justiça os advogados os outros peritos e os meios de comunicação a formação profissional do perito e sua influência na metodologia pericial os preconceitos em tema de comportamento violento e doença mental as características pessoais e a tipologia psiquiátrica do perito as reações de contratransferência e os mecanismos psicológicos de defesa em relação ao periciando Particularmente complexa é a relação entre perito e magistrado que se experiente e atento pode ter feito o diagnóstico dos peritos e têlos escolhido por sua sintonia com o objetivo que ainda que inconscientemente gostaria de ver demonstrado O mesmo juiz através de mensagens subliminares e não totalmente conscientes pode sugerir quais são suas próprias convicções em relação ao caso 51 Nivoli G Le reazioni emotive del perito nel corso della perizia psichiatrica Nóoç 32001 181194 O Crime Louco 230 em exame e o perito de sua parte pode aderir de maneira nem sempre consciente a tais convicções Esse comportamento pode se verificar quando o perito na fase instrutória mais do que ser aquele que traz para o caso clínico e forense ulteriores conhecimentos especializados tornase de modo deontologicamente incorreto braço armado da acusação Por outro lado o juiz embora reivindicando justamente seu papel de peritus peritorum jamais deveria se sobrepor ao perito ou se intrometer na matéria pericial sem dúvida é seu direito não levar em consideração um parecer técnico mas jamais deveria intervir ali com suas argumentações No entanto vemos sentenças em que o juiz apelando para seu bom senso claramente interfere no quanto expressado pelos psiquiatras Analogamente há perícias psiquiátricas que extravasam seu âmbito técnico para usar argumentações jurídicas Em nossos dias alguns processos têm assumido um peso midiático relevante devido a um papel doentio desenvolvido pelos mass media Na maior parte dessas situações talvez por certo protagonismo dos peritos têmse verificado inversões de análises periciais contra acusações fofocas acabando por resultar em uma confusão generalizada e um sentimento de desconfiança sobre a possibilidade de se chegar à verdade Mesmo não considerando essas situações extremas de todo modo se tem a impressão de que a leitura dos fatos feita pelos peritos psiquiatras não está ancorada em sólidas certezas parecendo ao contrário um tanto opinativa Cada nova interpretação acaba por introduzir novas verdades que se sobrepõem e conflitam entre si O apelo a tantas verdades acaba por produzir tantas meiasverdades Às vezes são os próprios quesitos postos pelo juiz que em sua formulação reduzem as possibilidades de compreensão e aprofundamento dos fatos limitando as possibilidades de análise Outras vezes é a própria negação da imputabilidade do louco autor de crime que acaba por reduzir e viciar a busca da verdade Eventualmente seria mesmo de se pensar que a verdadeira finalidade do processo e a utilização da perícia não estariam voltadas O Crime Louco 231 para a busca da verdade dos fatos mas muito mais para a busca do culpado Com efeito não devemos esquecer que o processo se põe em movimento não somente por razões de justiça mas também pela necessidade de dar uma resposta às legítimas pretensões das vítimas e de seus familiares a individualização do culpado permite resolver os nós econômicos do ressarcimento no mais das vezes conexos a condições securitárias Em essência mais uma vez podemos medir a distância que transcorre entre a medicina e o direito o perito ajuda o juiz a buscar o culpado o médico ao contrário ajuda os colegas a buscar o erro para poder corrigilo Cabe perguntar qual a origem de todas essas incertezas esses equívocos essas ambiguidades de fundo por que é tão difícil operar modernizações no campo da psiquiatria forense e sobretudo por que dificilmente são recepcionados nesse âmbito os conteúdos da reforma psiquiátrica de 1978 Para responder a essa pergunta vale a pena recorrer mais uma vez às reflexões de Michel Foucault que em algumas de suas lições no Collège de France em 1975 trata difusamente do tema da perícia médicolegal Foucault ressalta o quanto a perícia psiquiátrica representa uma espécie de paradoxo nascida para demarcar uma clara linha divisória entre a responsabilidade jurídica do sujeito normal e a irresponsabilidade do sujeito anormal de fato se constituiu em ponte de ligação entre dois mundos estruturalmente diversos o médico e o judiciário Foucault chama esse processo de domínio da perversidade à perversão do criminoso os psiquiatras forenses ligam a perversão do louco fazendoo através do uso de uma linguagem pueril O louco criminoso é frequentemente descrito como imaturo com um ego fraco com um ausente desenvolvimento do superego As razões desse dialeto são múltiplas Antes de tudo porque através de uma linguagem débil do ponto de vista da estrutura lógica é possível permutar mais facilmente noções entre categorias tão profundamente antitéticas como a judiciária e a médica sem que uma prevaleça sobre a outra Em segundo lugar O Crime Louco 232 a linguagem da perícia é infantil também por causa de sua intenção moralizadora com efeito evoca o discurso do perigo do medo e da necessidade de proteção habitualmente usado pelos pais quando se dirigem aos filhos O discurso psiquiátrico forense em sua essência efetivamente se conforma à reação da sociedade diante do indivíduo perigoso ainda que o faça fornecendo o tranquilizador panorama de uma rede defensiva e contínua de instituições médicojudiciárias que vão do tratamento à repressão e punição Mas é exatamente essa adesão à noção de perigo que nos ajuda a esclarecer o papel insidioso desenvolvido pela perícia médicolegal Pondo em prática uma espécie de ridicularização do saber médico e psiquiátrico e contemporaneamente assumindo função crucial na junção entre o judiciário e o médico a perícia demonstra o surgimento e o funcionamento de um novo e diverso poder Foucault52 observa que a perícia médicolegal não deriva nem do direito nem da medicinaprovém de outro lugar Tem outros termos de referência outras normas outras regras de formação No fundo na perícia a justiça e a psiquiatria são adulteradas uma na outraA perícia não se dirige a delinquentes ou inocentes a doentes em oposição a nãodoentes dirigese a algo que denominarei a categoria dos anormais Em outras palavras a perícia médicolegal se desenrola realmente em um campo não de oposição do normal ao patológico mas de gradação do normal ao anormal Foucault chama isso o poder da normalização um poder que além de produzir uma prescrição corretiva produz também uma prescrição de designação um verdadeiro projeto normativo A perícia psiquiátrica em razão do laço que garante entre o mundo judiciário e o médico altera tanto o poder judiciário quanto o saber psiquiátrico instituindose como instância indispensável de controle do anormal psiquiátrico Passando de um discurso de responsabilidade ao de 52 Foucault M Gli anormali Corso al Collège de France19741975 Feltrinelli Milano 2000 O Crime Louco 233 periculosidade social coloca no lugar de um indivíduo juridicamente responsável um sujeitoobjeto o anormal psiquiátrico a ser referido a técnicas de normalização É uma passagem crucial que legitima a existência de um aparato totalizante de repressão encarnado na monstruosidade do manicômio judiciário Diante da problemática e da complexidade do crime de um louco o perito como pessoa qualificada no interior de instituições científicas deveria permitir a tomada de decisões judiciárias claras e iniludíveis Com efeito são exatamente a credibilidade do experto e a enunciação de discursos com o status de verdade científica os pilares sobre os quais o juiz procura fundar as argumentações de sua decisão O paradoxo porém consiste no fato de que os enunciados do experto na maioria das vezes são desligados tanto dos métodos de um discurso científico quanto das normas do direito A razão desse paradoxo reside no objetivo da perícia oculto não declarado não o de tratar nem o de punir mas sim o de convalidar sob a forma de conhecimento científico a possibilidade de estender o poder sancionatório a realidades diversas das infrações jurídicas Isso acontece devido ao deslocamento do ponto de aplicação da sanção da violação como é definida por lei à criminalidade como examinada pela ótica psicológica Esse processo se põe em prática através do que Franco e Franca Basaglia tornaram evidente em La malattia e il suo doppio53 a racionalização de um problema que representa uma ameaça através de sua delimitação nos confins de uma ideologia que o mantém sob controle É exatamente uma espécie de desdobramento o que se põe em prática com a perícia psiquiátrica um desdobramento que opera em três diferentes níveis Em primeiro lugar a perícia subtrai legalidade ao crime como formulado no Código mostrando por trás dele seu duplo uma série de condutas incorretas e inconvenientes em relação 53 Basaglia F Basaglia Ongaro F La malattia e il suo doppio in La rivista di servizio sociale 4 1970 O Crime Louco 234 aos parâmetros e às regras psicológicas e morais um verdadeiro espaço existencial onde o crime tem origem Em segundo lugar o responsável pelo crime é desdobrado na figura do delinquente de sujeito jurídico é reduzido a objeto de um saber de emenda e controle no limite de um tratamento de reparação e readaptação Mostra como diz Foucault como o indivíduo se assemelha ao próprio crime antes mesmo de têlo cometido mostra como o sujeito está presente sob a forma de desejo do crime em pequenos particulares detalhes irrelevantes atipicidades colocadas em evidência na anamnese Tratase de indícios invisíveis aos olhos comuns mas não aos olhos atentos do experto que através dessa sua visão delineia a fisionomia lombrosiana do delinquente irremediavelmente aprisionado em seu trágico destino Diz agudamente Foucault O simples uso repetitivo do advérbio já é em si mesmo uma maneira de sobrepor de modo simplesmente analógico a série de ilegalidades infraliminares e incorreções não ilegais acumulandoas para fazêlas se assemelhar ao próprio crime Finalmente o terceiro duplo é na realidade o desdobramento e a inversão de papéis entre o psiquiatra e o juiz O primeiro mediante a certeza do diagnóstico extraído das infrações e dos comportamentos pregressos modifica o status de acusado do sujeito em status de condenado de fato emitindo o veredito O juiz de outro lado com sua decisão não mais infligirá uma pena prescrevendo sim uma forma de tratamento uma readaptação quase que assumindo o encargo de sua cura Essas considerações tornam evidente o papel crucial desenvolvido pela psiquiatria forense no processo de normalização dos loucos ou dos anormais como diria Foucault responsáveis por crimes evidenciando ainda como esse status original da perícia psiquiatria continua a conflitar com as instâncias de tratamento e de direito Em seu ensaio sobre John Conolly o psiquiatra inglês que na segunda metade do século XIX quando ainda não existiam os psicofármacos teorizava e sobretudo praticava um tratamento terapêutico O Crime Louco 235 absolutamente privado de qualquer meio de contenção Agostino Pirella54 pondera que a psiquiatria sempre teve uma liberdade ideológica desenfreada no interior de equilíbrios institucionais e acadêmicos mas com uma precisa e vinculante função de sequestro E que se trate disto demonstrao a função da perícia psiquiátrica diante de crimes que perturbam que desconcertam que aparentemente saem da lógica da sociedade burguesa certamente se alguém mata por dinheiro é compreensível se o marido mata a mulher por ciúme também mas se mata porque está sendo perseguido não mais se compreende É por essa razão que se torna necessária a entrada em cena de um experto o perito deve traduzir a culpa em doença e isolála em uma zona controlável Quando teremos então as razões dos loucos Quando teremos a atenção a seu saber experiente Quando teremos uma leitura das histórias capaz de tornar claras as razões da loucura as responsabilidades difusas do corpo social Quando loucos e sãos assumirão suas responsabilidades 54 Pirella A in Introduzione a Conolly J Trattamento del malato di mente Einaudi Torino 1976 O Crime Louco 236 2 A violência em psiquiatria e a noção de periculosidade social O concurso culposo em homicídio doloso implicitamente se funda na periculosidade do paciente psiquiátrico Esse juízo se sustenta nas argumentações científicas dos peritos Na realidade os peritos não entram facilmente no mérito de problemáticas genéricas concernentes à periculosidade dos pacientes psiquiátricos limitando se a afirmar que determinadas patologias apresentam um risco alto de periculosidade No caso específico de MG há referência ao diagnóstico de esquizofrenia paranoide crônica como o tipo de diagnóstico que conforme sufragado por determinada literatura científica apresentaria tal risco A agressividade nesse caso seria elemento fundante da doença Nesse caso o comportamento perigoso somente poderia ser contido com remédios jamais podendo ser totalmente eliminado Na verdade a presunção de periculosidade de MG é deduzida nas perícias também de sua história clínica e suas internações Todavia a análise é invertida ideologicamente invertida o comportamento de MG em determinados momentos de sua vida sua carreira moral55 não confirma exatamente uma história de violência praticada mas antes de tudo sofrida tanto quanto a demonstração da violência da doença que o possui a esquizofrenia Os dados psicopatológicos assumem uma pregnância relevante a tal ponto que fazem considerar o doente como um sujeito extremamente perigoso independentemente do que fez ou eventualmente poderá fazer ele é julgado perigoso enquanto doente Em sua perícia o consultor técnico do juízo AR introduz a consideração de que o longo período de bemestar de MG não seria sequer atribuível ao efeito do remédio embora o remédio pudesse têlo favorecido constituindo tal período na realidade apenas uma fase fisiológica 55 Nota à edição brasileira Sobre o conceito de carreira moral do doente mental vejase a análise de Erving Goffman in Asylums Anchor Books New York 1961 O Crime Louco 237 de falsa remissão da sintomatologia Por isso é dever do experto desmascarar a perversa astúcia de uma doença que engana os colegas mais ingênuos e que mais cedo ou mais tarde tornase fonte de graves incidentes Há no pensamento do perito que na verdade espelha o de boa parte de todos nós psiquiatras uma espécie de determinismo esse tipo de doença é substancialmente irrecuperável somente se pode tentar reduzir seus danos conter o mal em uma camisa de força farmacológica sendo necessário ter sempre alta a guarda contra a esperteza maligna da doença Sob esse ponto de vista o evento pode constituir um acontecimento exemplar merecendo ser enfatizado porque assume o valor de uma útil lição O tema da periculosidade social merece uma breve reflexão não somente em relação a seus aspectos práticos mas também à sua própria formulação teórica Com efeito a periculosidade social não corresponde a nenhum dos critérios que constroem o diagnóstico psiquiátrico sobre os quais se funda o método científico Não se reveste de qualquer valor terapêutico cumprindo ao contrário função de pura defesa social Não tem a ver com o paciente com sua proteção tem sim a ver com a coletividade e com a maneira pela qual esta percebe o tema de sua segurança O juízo de periculosidade se funda muito mais em um critério de probabilidade do que no de possibilidade expressa do ponto de vista estatístico uma perspectiva de recaída no evento negativo superior a 50 Esse critério que talvez seja válido em alguns âmbitos médicos resulta totalmente aleatório para não dizer arbitrário no campo psíquico exatamente pela complexidade das ciências humanas e porque o comportamento humano nesse setor não pode ser facilmente reduzido a algoritmos estatísticos Além disso tudo o que os poucos dados científicos nos permitem afirmar indica que a previsão de atos violentos está de todo modo limitada a um período de tempo extremamente limitado Esse dado torna totalmente sem valor o que o juiz pede na formulação de seu quesito pois as medidas que devem ser O Crime Louco 238 postas em prática serão válidas somente em um lapso de tempo muito amplo Em essência a previsão de atos violentos do ponto de vista da psicopatologia é duvidosa talvez limitada a poucas situações que de todo modo mereceriam uma forte revisão crítica Da leitura das perícias frequentemente se deduz que a previsão se funda na gravidade da doença na sua evolução na personalidade do culpado na natureza do crime Em todos os critérios de insuficiente validade científica no que se refere à formulação de uma previsão de periculosidade Frequentemente os peritos fazem referência aos antecedentes penais do acusado usando valorações e advertências que não se distanciam do senso comum e parecem não justificar substancialmente o requerimento de um parecer científico Acontece então talvez exatamente para compensar a obviedade das afirmações que muitos peritos incluem nos extensos relatórios periciais amplas citações extraídas dos manuais psiquiátricos quase como se a quantidade pudesse se tornar substância Mais do que o diagnóstico psiquiátrico se demonstraram previsíveis de violência fatores ligados à concretude das situações nas quais esta prende corpo sobretudo aqueles ligados à história pregressa da pessoa As mais diversas análises56 demonstram que as doenças mentais graves por si sós não permitem prever violência futura Esta é ao contrário associada a outros fatores históricos violências sofridas no passado encarceramento juvenil abusos físicos lembranças de prisões familiares clínicos abusos de substâncias ameaças percebidas características pessoais idade sexo renda e aos fatores contextuais divórcio recente desemprego vitimização O fato de a maior parte desses fatores se fazer presente em sujeitos portadores de doenças mentais graves mais frequentemente do que em outros sujeitos não invalida o dado ao contrário contribui para esclarecêlo 56 Elbogen E B Johnson S C The Intricate Link Between Violence and Mental Disorder in Arch Gen Psychiatry vol 66 n2 fev 2009 O Crime Louco 239 Em essência é totalmente contestável que a periculosidade seja efeito natural de uma patologia e que somente o psiquiatra possa reconhecêla A periculosidade social é um acontecimento complexo contextual e historicamente determinado Segundo G B Traverso57 do ponto de vista conceitual a noção de periculosidade inclusive pela relatividade de sua definição não tem qualquer caráter de cientificidade o que enfatiza a problemática da avaliação Para C Debuyst58 reconduzir o problema da periculosidade pondo ao centro das preocupações a personalidade e seus traços considerados como características estáveis e imutáveis do indivíduo constitui operação reducionista Essa redução opera ofuscando as problemáticas sociais gerais e além disso ao nível das relações interpessoais impede que se compreenda o sentido que um comportamento possa ter interpretandose tal comportamento unicamente como expressão de uma carência ou uma nãoconformidade Mas o que torna claro o papel normatizador do psiquiatra no sistema judiciário é o paradoxo segundo o qual o perito não pode proceder à verificação da periculosidade social sem que antes tenha afirmado a inimputabilidade da pessoa Esse mecanismo torna evidente o intuito de afirmar contra todas as evidências da ciência e da experiência contra o próprio espírito da lei de reforma que a loucura seria irresponsabilidade e periculosidade Por outro lado é exatamente desses dois juízos a inimputabilidade e a periculosidade social ambos ambíguos e carentes de demonstração científica que deriva a medida de segurança do Hospital Psiquiátrico Judiciário deriva o destino de uma pessoa que na maior parte dos casos se verá irremediavelmente sem esperança e sem reabilitação 57 Traverso G B Verde A Pericolosità e trattamento in criminologia Note in margine alle VIII Giornate Internazionale di Criminologia Clinica Comparata Genova 2527 maio 1981 58 Debuyst C La notion de dangerosité maladie infantile de la criminologie in Criminologie 17 7 1984 O Crime Louco 240 3 O nó górdio59 do hospital psiquiátrico judiciário A promulgação da Lei 180 confluída na 83379 tornou inevitável quase implícita a superação do HPJ com a mudança total no modo de entender a doença mental devem ser relidos os conceitos de imputabilidade a incapacidade de entender e querer e o conceito de periculosidade social por doença mental Com efeito pouco depois da promulgação da lei foram postas em prática ações visando afirmar automaticamente a superação do HPJ Em 1979 foi arguida uma exceção de constitucionalidade do HPJ a Lei 180 abolindo a lei de 1904 conduzia a uma situação precedente ao código penal Rocco que em 1930 introduzira as medidas de segurança Sem a lei de 1904 a instituição a que tais medidas se referiam deveria decair Mas essa ação não teve êxito seja por uma espécie de arrependimento do legislador em relação à reforma psiquiátrica cuja radicalidade talvez não tivesse sido suficientemente ponderada seja por razões contingentes já que envolvidos nos HPJ aparatos o judiciário e o penal ligados a um ministério o da Justiça diverso do da Saúde que levara a cabo a reforma Logo se viu que um dos nós a ser desatados era exatamente a necessidade de superar a declaração de total incapacidade de entender e querer para quem cometera um crime com efeito tal declaração constituía a premissa para a absolvição mas também para a consequente medida de segurança e o sucessivo envio ao HPJ Na vertente da abolição da inimputabilidade pôsse em movimento 59 Nota à edição brasileira A expressão nó górdio tem origem em antiga lenda grega sobre Gordio rei da Frígia Seu filho dedicara a carroça do pai às divindades frígias atandoa a uma estaca com um intrincado nó de casca de corniso Um oráculo previra que quem conseguisse desatar o nó teria poder sobre toda a Ásia Em 333 AC chegando à cidade de Telmisso Alexandre Magno tentou desatar o nó Não conseguindo fazêlo cortouo pela metade com um golpe de sua espada assim acabando por atingir seu objetivo Com o tempo a expressão assumiu valor metafórico passando a indicar um problema de intrincada solução suscetível de ser resolvido somente com um corte brutal mas decisivo O Crime Louco 241 o projeto de lei do senador Vinci Grossi substancialmente retomado pelo deputado Corleone Em direção diversa se pôs em ação o grupo de estudos relacionado à Fundação Michelucci e às regiões da Toscana e da Emilia Romagna O projeto previa algumas inovações uma redefinição mais rigorosa da inimputabilidade a aplicação da medida de segurança em dois momentos por parte do juiz que proferisse a sentença absolutória e sucessivamente por parte do juiz da execução penal que controlasse a internação duas medidas de segurança uma fechada e uma aberta a superação do critério de duração mínima da medida de segurança As resistências da magistratura e dos aparatos médicoforenses inicialmente se mostraram obstinadas e fechadas a qualquer espécie de mudança Somente em situações especiais como na experiência de desinstitucionalização de Trieste permitiuse a instauração de uma prática inovadora a formulação constante por parte dos peritos de Trieste da parcial incapacidade de entender e querer do paciente que se demonstrou instrumentalmente útil para evitar o envio para o HPJ mas sobretudo se revelou a resposta mais idônea às necessidades do paciente e às exigências de justiça A credibilidade dessa posição foi confirmada pela intervenção instaurada pelos triestinos no interior do cárcere e nos serviços territoriais sua capacidade de assumir o tratamento entendido como tomar a cargo de forma abrangente do paciente grave e problemático e a solução consequente com tal idéia de tratamento das exigências de custódia por periculosidade social Simultaneamente a resistência da lei de reforma psiquiátrica desembocava em importantes resultados Logo depois da 180 difundiuse o temor de que o fechamento dos hospitais psiquiátricos instauraria uma situação de perigo social com aumento dos suicídios e dos atos de violência por parte dos pacientes psiquiátricos e com um aumento exponencial de internações nos HPJs A realidade demonstrou exatamente o contrário o número de internações nos HPJs não aumentou devido a uma forte redução nos envios O Crime Louco 242 mantendose constante somente pela admissão de detentos em medida de segurança provisória ou por enfermidade superveniente demonstrando assim a crise de uma outra instituição o cárcere superpovoado por um número de detentos superior à sua capacidade e aos recursos disponíveis sem um projeto claro e sobretudo incapaz de denunciar a crescente criminalização das necessidades sociais Provavelmente como reconhecimento dos resultados positivos da reforma psiquiátrica a sentença da Corte Constitucional no 2532003 rompeu com o automatismo entre HPJ e medida de segurança permitindo seu cumprimento em lugares alternativos e conforme programas a serem definidos caso a caso Essa sentença se colocou em linha com as medidas alternativas à detenção já instauradas para pacientes tóxicodependentes e para os presos lei Gozzini Mas foi introduzida também outra importante disposição permitindo ao Juiz da Execução Penal a possibilidade de reformular inclusive por mudanças supervenientes as anteriores medidas de segurança Em essência devese aplicar a medida de segurança não de modo automático mas apenas quando se visualiza a presença de uma periculosidade social art231 da Lei de 10101986 posterior à abrogação do art204 CP Além disso o Juiz da Execução Penal deve verificar se a periculosidade social da pessoa perdura no momento em que a medida é executada art679 do novo CPP de 198889 Finalmente foi modificada a duração mínima da permanência em HPJ o que permitiu a superação da rigidez e das inércias institucionais anteriores Assim mesmo sem uma redefinição orgânica da moldura normativa pôsse em movimento um processo de reforma que atingiu os canais de ingresso e os mecanismos de saída dos HPJs Com efeito tais sentenças desferiram um forte golpe na existência da instituição HPJ Forte mas não decisivo antes de tudo porque a possibilidade de aplicação das medidas alternativas e a redução dos tempos de internação em HPJ permaneceram discricionárias O Crime Louco 243 para os magistrados em segundo lugar especialmente porque ficaram dependentes da vontadecapacidade dos prestadores de serviços psiquiátricos de assumir o tratamento dos pacientes responsáveis por crimes Duas são as dificuldades que se opõem a essas possibilidades a primeira de ordem prática institucional referese aos recursos a serem postos em campo e aos consequentes procedimentos relacionandose a dois ministérios diferentes é lógico esperar dificuldades e retardamentos na definição de competências e recursos a segunda mais ideológica referese às dificuldades de muitos DSMs de aceitar a exigência de tomar a seu cargo os pacientes a serem custodiados Com efeito desenvolveuse uma espécie de equívoco sobre o mandado da psiquiatria no pósreforma Para os serviços fundados na desinstitucionalização os serviços fortes abertos 24 horas o encarregarse do paciente se relaciona com a capacidade de tratamento terapêutico mas também com a exigência de responder às mais complexas problemáticas sociais inextricavelmente ligadas ao desconforto psiquiátrico Pois bem para os que têm essa experiência não há dificuldade em se disponibilizar para assumir essa nova função de tomar a cargo No entanto aqueles cuja experiência se dá nos serviços fracos que vivem a reforma como uma liberação das responsabilidades ligadas à custódia do paciente e concebem sua intervenção apenas no interior de um tratamento quase privado entre paciente e terapeuta mostramse avessos a modificar sua própria organização e a aceitar a tarefa de ter a seu encargo o paciente responsável por crime É paradigmática a surpresa com que alguns operadores descobrem depois da sentença da Cassação de 11 de março de 2008 estar investidos da posição de garantia em relação ao paciente Pois bem o problema consiste na capacidade de trocar a garantia da custódia pela garantia do tratamento dissolvendo na prática os nós não resolvidos das contradições sociais que assumem o perfil da periculosidade social e da exigência de custódia Uma ajuda consistente à solução desse impasse foi ofertada do O Crime Louco 244 ponto de vista organizacional pelo DLG 23099 Transferindo as funções sanitárias dos IPPs para o SSN60 põemse as premissas para o enfrentamento de maneira digna do grave problema da saúde no cárcere automaticamente se pondo as condições para resolver o equívoco subtendido nas funções do HPJ ambiguamente fundado em uma inimputabilidade por doença mas de fato estruturado apenas sobre exigências de custódia Outrossim o decreto estabelece vínculos para que os serviços psiquiátricos territoriais se encarreguem dos pacientes dos HPJs Todavia a passagem da medicina penitenciária para a do SSN foi muito difícil Somente com a lei orçamentária de 2008 Lei 24407 art2 parágrafos 238239 e graças à tenacidade de alguns sujeitos e organizações foi possível colocar em prática esse processo O DPCM61 de 142008 abriu importantes espaços operacionais a tratamentos terapêuticoreabilitadores para sujeitos com distúrbios mentais sobretudo em seu apelo ao valor da territorialidade A territorialidade em psiquiatria de fato comporta uma dimensão de continuidade terapêutica a possibilidade de intervir nas causas do malestar social ativando recursos da comunidade O conceito de territorialidade de um ponto de vista estratégico oferece ainda sustentação à hipótese de envolvimento direto das Regiões na solução dos HPJs Em essência após ter vivido durante anos sob condições de incerteza e frustração em que as inúmeras tentativas de abolir os HPJs eram consideradas veleidades e rejeitadas pelo legislador hoje assistimos à presença das premissas necessárias a uma progressiva e efetiva superação de tais instituições Diante da impossibilidade de seguir a via direta da abolição da inimputabilidade houve uma sinergia de intervenções envolvendo operadores da saúde mental e da justiça e políticos voltadas para a realização de um projeto 60 Nota à edição brasileira A sigla IPP se refere aos Institutos Penitenciários SSN é a sigla de Servizio Sanitario Nazionale isto é Serviço Sanitário Nacional 61 Nota à edição brasileira DPCM significa Decreto del Presidente del Consiglio dei Ministri isto é decreto emanado do Presidente do Conselho de Ministros O Crime Louco 245 que passo a passo step by step acabe por tornar inútil o HPJ Procurase fazêlo seja criando condições alternativas ao envio seja criando condições que progressivamente esvaziem os hospitais Assim foi criado um programa especial de superação dos HPJs e instituído um Comitê paritário de monitoramento de sua realização O Comitê paritário se vale de um Programa Nacional para intervenções psiquiátricas nos cárceres e HPJs segundo as linhas traçadas pelo DPCM de 142008 No programa estão explicitados os pontos e ações inclusive com a definição de um detalhado cronograma Essa estratégia porém é débil no panorama político atual com efeito pressupõe um complicado trabalho em grupo necessita da atuação de muitos sujeitos operando de forma sincronizada prevê uma vontade políticotécnica muito determinada O panorama político geral seja pela orientação dos partidos seja pela crise econômico social não nos faz ter muitas esperanças Com efeito se dirigirmos nossas considerações para níveis regionais será razoável supor que resultados poderão ser obtidos apenas em algumas regiões Toscana e Emilia Romagna promotoras do projeto e suficientemente motivadas e determinadas parecendo menos provável um envolvimento ativo e eficaz das outras regiões seja no que se refere à disponibilidade para acolher os liberados dos HPJs seja no que se refere à ativação de novas estruturas alternativas surgindo como especialmente problemática a intervenção das Regiões Sicilia e Campania para superação dos três HPJs meridionais62 62 Nota à edição brasileira Em dezembro de 2011 o senador Ignazio Marino apresentou o projeto de lei no 3036 do Senado Disposizioni per il definitivo superamento degli ospedali psichiatrici giudiziari Disposições para a superação definitiva dos hospitais psiquiátricos judiciários para dar concreta e rápida execução ao fechamento dos HPJs e para que não se perdessem os trabalhos da Comissão de inquérito sobre a eficácia e eficiência do Serviço Sanitário Nacional que em julho do mesmo ano lançara o Relatório sobre as condições de vida e tratamento no interior dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários A Comissão produziu dentre outras coisas um vídeo sobre as condições degradantes nos HPJs que recebeu grande destaque na mídia O Crime Louco 246 Mas há um aspecto de fundo sobre o qual é preciso refletir Esse projeto revela o saudável realismo de quem se mede com as contradições da prática e se afasta de qualquer instância radical fazendoo também porque depois de várias tentativas esse parece ser o único caminho historicamente possível Todavia o aspecto minimalista do projeto corre o risco de não aquecer os corações É como se uma batalha crucial para o reconhecimento do direito de alguns dizendo respeito portanto ao direito de todos se reduzisse a uma operação de simples engenharia institucional Certamente uma idônea alocação de recursos e um gradual desenvolvimento organizacional poderão afastar alguns obstáculos para que os serviços psiquiátricos tomem a seu cargo os pacientes mas conseguirão mudar a cabeça daqueles psiquiatras que se sentem constrangidos a cuidar também do problema dos HPJs além daqueles dos tóxico dependentes dos velhos dos imigrantes dos doentes crônicos Exigese uma adesão profunda ao projeto é necessária uma O projeto de lei 3036 prevê que até 1º de fevereiro de 2012 concluase a superação dos HPJs em todas as regiões mediante acordo entre a Região e a Administração Penitenciária instalandose estruturas residenciais psiquiátricas dotadas de guarnições de segurança e vigilância localizadas ao longo do perímetro das estruturas sanitárias substitutivas ou de todo modo fora das enfermarias em que estas se articulam Nessas estruturas deverão ser executadas as medidas de segurança de internação em HPJ ou de encaminhamento a Casa de custódia e tratamento O fechamento dos atuais HPJs ou sua reconversão em penitenciárias deverá acontecer até 31 de março de 2012 prevendose ainda a supervisão por comissários das regiões inadimplentes A opção exclusiva por estruturas residenciais psiquiátricas como únicos locais de tratamento parece no entanto rígida e pouco justificável Os pacientes e as pacientes autores e autoras de crime são pessoas diversas entre si com distúrbios diversos em fases diversas não se podendo afirmar que necessitem de um tratamento similar de longa duração em uma estrutura residencial psiquiátrica protegida Ao contrário exatamente em razão do critério de territorialidade na escolha dos lugares de tratamento que tem como consequência o fato de que o lugar de eleição da programação e da assunção do tratamento é o Departamento de Saúde Mental seria mais correto deixar a este a responsabilidade pela escolha dos lugares e das modalidades que poderiam pois ser diversas da colocação em residências protegidas até para não se excluir a possibilidade de utilização de outros espaços e oportunidades hoje já disponíveis e operantes O Crime Louco 247 motivação que arraste corações e mentes apontando para uma mudança dando sentido ao quotidiano e aos esforços do presente Tratase em essência de se colocar claramente as perguntas sobre o por quê e o para quem Tratase em essência de entender e fazer entender que essa desinstitucionalização diz respeito a todos diz respeito a cada um de nós diz respeito ao profissionalismo dos operadores Tratase de sentir o desafio do empenho a força política da paixão reencontrar aquelas instâncias de liberdade e justiça que sustentaram desde seu início a reforma da psiquiatria na Itália Devemos por exemplo dar um rosto aos números aos diagnósticos que preenchem as tabelas sobre os HPJs Devemos dar voz às pessoas que dizemos querer ajudar devemos sentir em nossa pele suas emoções e seus sofrimentos É preciso alargar o campo dos sujeitos envolvidos conscientes do papel que a sociedade civil pode e deve desempenhar A presença ativa do voluntariado por exemplo nos parece decisiva sua função não pode ser subsidiária subordinada instrumental o protagonismo dos voluntários é expressão dos laços que se devem instaurar entre o empenho dos profissionais e a sociedade civil Essa exigência de uma perspectiva política nos faz compreender mais profundamente que reduzir o número dos internados nos HPJs constituir pequenas instituições eficientes ancorar a gestão do louco responsável por crime à organização sanitária são passos que no entanto não eliminam o estereótipo da periculosidade e da irresponsabilidade do louco não dissolvem o nó górdio sobre os quais continuam a se estruturar ideologias e aparatos repressivos O juízo de incapacidade total de entender e querer é de fato a pedra angular sobre a qual se funda a ciência psiquiátrica e é também seu pecado original Podemos falar no máximo em incapacidade parcial diz Franco Rotelli63 mas a incapacidade total de entender 63 Rotelli F La questione forense in La testa tagliata org Toresini L Gutenberg Roma 1996 O Crime Louco 248 e querer jamais concerne à psiquiatria Pode dizer respeito a um estado confuso de origem biológica mas jamais a uma doença psiquiátrica A história demonstra como se criou sobre essa premissa uma espécie de automatismo entre o juízo de doença mental e o juízo de incapacidade de entender e querer Enquanto se mantiver esse preconceito não poderemos verdadeiramente nos libertar da idéia do manicômio mesmo se reduzirmos ao mínimo os internados nos HPJs Enquanto se mantiver a idéia de inimputabilidade por doença mental negarseá ao paciente o direito de ser um sujeito daí nascendo todas as instituições que procedem do manicômio e viceversa derivam daquele princípio Negarseá ao psiquiatra a possibilidade de tratamento a ele se reconhecendo no máximo tão somente a possibilidade de custódia e manipulação No momento em que se trata a doença mental acrescenta Rotelli devese investigar também a normalidade pois é preciso investigar também a riqueza das diversidades O louco também tem direito ao processo o louco tem direito a estar em juízo o louco também tem direito de fazer valer suas razões e tem direito a ser condenado enquanto essa for a lei geral Naturalmente existem mil possibilidades mil medidas alternativas possíveis para atenuar a pena para tratar e ajudar quem cometeu um crime Em essência cuidase de criar para todos inclusive o louco criminoso o direito de cidadania Tudo é possível quando se parte de um grande respeito pelas razões de todos É esse só esse o modo de desfazer o nó górdio da louca custódia O Crime Louco 249 4Responsabilidade civil e penal do médico 41A responsabilidade civil Intervenções médicas são fundamentalmente uma prestação de meios sem uma devida garantia de resultado Naturalmente a prestação exige um dever de cuidado a ser desenvolvido da maneira mais adequada e precisa Em nossos Códigos não existem normas específicas que digam respeito à categoria profissional dos médicos e cirurgiões não tendo por outro lado o código deontológico dos médicos italianos força de lei Há no entanto leis especiais na matéria textos únicos normas deontológicas decisões da Suprema Corte uma rica jurisprudência A Itália juntamente com o México é o único Estado a não prever o crime de culpa médica mas a Itália é também o único país europeu junto com a Polônia em que os erros clínicos são passíveis de persecução penal A condição do médico empregado no Sistema Sanitário Nacional é regulada por algumas diretivas Essas normas destacam que a obrigação do médico empregado no serviço sanitário tem natureza contratual que eventual responsabilidade por um resultado lesivo implica a obrigação do médico de ressarcir o dano injustamente causado que o seguro de responsabilidade civil cobre tão somente as consequências de um comportamento culposo As obrigações da seguradora em relação ao segurado são distintas e autônomas das que o segurado tem em relação ao lesado Atualmente as seguradoras dão especial atenção ao certificado do consenso informado exigido antes da realização do ato médico Existem pois dois tipos de responsabilidade para o médico a contratual derivada de uma relação direta e de confiança com o paciente ou no interior do serviço público e a extracontratual ou aquiliana quando o médico está ligado a uma estrutura através de uma relação contratual As principais características da Responsabilidade Contratual são O Crime Louco 250 A obrigação do profissional da saúde é de meios não de resultado O médico é responsável inclusive por culpa leve Há culpa quando o evento é atribuível à negligência imprudência imperícia inobservância de leis e regulamentos Se a prestação do médico implica problemas técnicos de especial dificuldade a responsabilidade só subsiste nos casos de dolo ou culpa grave No cumprimento de sua prestação o médico deve empregar a diligência ordinária exigida em sua atividade Para obter o ressarcimento do dano o paciente deve provar ter sido destinatário da prestação e ter sido lesado por esta O médico para evitar a condenação deve demonstrar ter cumprido corretamente suas próprias obrigações A prescrição em regra é decenal As principais características da Responsabilidade Extracontratual são A responsabilidade prescinde da existência de um vínculo contratual ou obrigacional A configuração da responsabilidade extracontratual subordina se à existência dos seguintes elementos Uma conduta dolosa ou culposa do médico Um dano Um nexo de causalidade entre a conduta e o dano Dolo ou culpa do causador do dano As principais diferenças com a responsabilidade contratual são O lesado deve provar além da existência do dano e da relação de causalidade a culpa do médico Em matéria de responsabilidade contratual são ressarcíveis todos os danos que sejam consequência imediata e direta da O Crime Louco 251 conduta de seu causador A prescrição é quinquenal Com o termo responsabilidade entendese em geral o dever de responder pela violação de uma norma de conduta qualquer sofrendo se as correspondentes e consequentes sanções O fundamento jurídico da responsabilidade civil profissional reside em alguns artigos do Código Civil diligência no cumprimento art1176 CC responsabilidade do devedor art1218 ressarcimento por fato ilícito art2043 responsabilidade do prestador de serviço art2236 A obrigação de meios e não de resultado significa que o médico se compromete com o paciente a utilizar seus próprios conhecimentos e todos os instrumentos e regras técnicas e científicas de maneira diligente sem no entanto garantir o resultado Estabelecido que por ressarcimento dos danos se entende a reintegração patrimonial do quanto perdido pelo sujeito passivo por obra daquele que praticou o fato há de se precisar que no âmbito civilístico diversamente do que ocorre em sede penal distinguemse a culpa leve e a culpa grave inescusável por imperícia imprudência negligência ou inobservância de leis ou regulamentos para a maioria dos que exercem aquela específica prestação sanitária Por culpa leve entendese geralmente a omissão de diligência ou a negligência configurada em preparação não coerente com o caso concreto e causadora de um dano na execução do tratamento cirúrgico ou no âmbito da terapia médica Por culpa grave nos termos do art2236 CC entendese o erro grosseiro devido à violação das regras e à falta de adoção dos instrumentos e portanto dos conhecimentos inerentes ao patrimônio mínimo do médico na medida em que adquiridos pela ciência médica A medida de avaliação da culpa varia conforme seu conteúdo objetivo negligência imperícia ou imprudência e a natureza da intervenção complexa ou rotineira requerida do médico O Crime Louco 252 42A responsabilidade penal Em geral entendese que a responsabilidade penal do médico ocorre quando sua conduta culposa esteja viciada por imperícia imprudência negligência ou inobservância de leis regulamentos e disciplinas daí derivando com claro nexo de causalidade a morte ou agravação da doença existente ou o surgimento de outra patologia A imperícia consiste na falta de competência ou habilidade profissional a negligência na falta de cuidado e atenção no agir a imprudência resulta do excesso de audácia de desafio à razão e à experiência a inobservância de leis e regulamentos consiste com frequência na omissão de normas que deveriam ser observadas Ao contrário do que acontecia no passado hoje o médico nos casos de imprudência e negligência responde tanto por culpa grave quanto por culpa leve Quando se provoca um dano a uma pessoa o evento não necessariamente implica a responsabilidade jurídica do médico tampouco significando que o fato danoso constitua por si a prova de sua culpa Com efeito é preciso examinar a conduta do médico em relação ao caso clínico Assim o fazendo percebese o quanto a cadeia causal de que em geral supõese uma natureza linear é na realidade ramificada e às vezes circular um evento pode assumir as vestes de causa ou alternativamente de efeito conforme as circunstâncias ou pontos de vista A norma penal mais comumente utilizada se refere ao art40 do Código Penal segundo o qual ninguém pode ser punido por um fato previsto em lei como crime se o resultado danoso ou perigoso de que depende a existência do crime não for consequência de sua ação ou omissão Não impedir um resultado de que se tem o dever jurídico de impedir equivale a causálo A ênfase deve ser colocada em dois termos a ação e a omissão além daquilo que em direito é definido como nexo de causalidade O art41 CP prevê além disso que as causas préexistentes simultâneas ou supervenientes à conduta humana ainda que desta independentes não excluem a responsabilidade penal do sujeito O Crime Louco 253 considerado Com efeito o concurso de causas jamais exclui a relação de causalidade Somente as causas supervenientes podem excluir o nexo causal desde que suficientes para produzir o resultado danoso art41 2 CP É pois a relação de causalidade elemento chave para a definição da responsabilidade do médico Na jurisprudência a análise da relação etiológica é dominada pela tradicional teoria das condições Tal teoria sustenta em síntese que é causa penalmente relevante a conduta que se põe como condição necessária conditio sine qua non na cadeia dos antecedentes que concorrem para a produção do resultado sem a qual esse resultado de que depende a existência do crime não teria podido se verificar A configuração do nexo causal segundo a teoria das condições baseiase essencialmente em uma espécie de procedimento de eliminação mental Como a conduta humana é condição necessária do resultado se mentalmente a eliminarmos deveremos esperar que automaticamente elimine se também o resultado Naturalmente só é possível utilizar tal reconstrução etiológica quando se conhece ex ante a relação existente entre uma determinada conduta e um determinado resultado Como é sabido a realidade porém é mais complexa do que qualquer hipótese determinista por essa razão no método científico e em sua linguagem preferese utilizar o conceito de probabilidade no aparecimento de um resultado Essa incerteza conflita com a lógica do direito sobretudo se se considera quão controversa pode ser inclusive no campo científico a leitura dos dados que definem a probabilidade científica de um fato quanto mais nas ciências do comportamento humano Por essa razão a sentença da Corte Constitucional n 364 de 1998 põe o conceito de probabilidade lado a lado com o de previsibilidade e evitabilidade das consequências danosas o médico responde penalmente somente se podia prever e evitar o fatocriminoso consequência de sua conduta com base em regras da experiência comum O verdadeiro ponto de referência sobre o tema da causalidade é O Crime Louco 254 hoje constituído pela chamada Sentença Franzese a sentença das Seções Penais Reunidas da Cassação SS UU sentença de 11 set 2002 n 30328 Tal sentença estabeleceu que no que diz respeito ao específico setor da atividade médicocirúrgica e em tema de causalidade no crime omissivo impróprio devem ser enunciados os seguintes princípios a o nexo causal somente pode ser visualizado quando à maneira do juízo contrafactual conduzido com base em uma regra comum da experiência ou uma lei científica universal ou estatística constatese que formulandose a hipótese de realização pelo médico da conduta devida impeditiva do resultado hic et nunc este não teria se verificado ou terseia verificado mas em época significativamente posterior ou com menor intensidade lesiva b não se pode deduzir automaticamente do coeficiente de probabilidade expresso por leis estatísticas a confirmação ou não da hipótese acusatória sobre a existência do nexo causal devendo o juiz avaliar sua validade no caso concreto com base nas circunstâncias do fato e nas provas disponíveis Esse segundo item põe em evidência a exigência de uma elevada credibilidade da conclusão judicial Para demonstração do nexo causal a sentença exclui qualquer avaliação apriorística e com caráter de mera presunção O procedimento lógicodedutivo deve conduzir à certeza processual excluindo qualquer interferência de percursos alternativos O juízo prognóstico deve ser rigoroso baseado quer em conhecimentos científicos ou estatísticos quer em conhecimentos de caráter geral 43 A responsabilidade jurídica do psiquiatra A sociedade exige do psiquiatra de maneira penetrante e implícita não só um diagnóstico e um prognóstico de doença mas também um prognóstico de conduta e uma terapia capaz de condicionar essa própria conduta do paciente Tal exigência social é manifestamente excessiva como é quase imediato o apelo à periculosidade para O Crime Louco 255 si e para os outros se um paciente psiquiátrico se suicida ou provoca lesões ou morte de terceiros Acusase o psiquiatra de não ter formulado o diagnóstico correto não ter feito um prognóstico fidedigno não ter prescrito a terapia capaz de esconjurar o evento danoso Todavia antes de se chegar a uma condenação terseá que demonstrar a ocorrência de um erro médico que tenha derivado de negligência imprudência ou imperícia e que ao erro tenha se seguido uma conduta anômala do paciente e desta um dano à pessoa O problema da responsabilidade jurídica do psiquiatra em seus termos essenciais acaba por ser o seguinte como de uma conduta errônea do psiquiatra deriva uma conduta anômala do paciente É evidente porém que fatores de caráter subjetivo podem modificar esses dois termos de tal modo que a tipologia lógicodedutiva que justifica a configuração de um nexo causal entre os dois eventos não é fácil de ser demonstrada Com efeito se é verdade que podemos concluir que um tratamento psiquiátrico inadequado seja causa de uma piora na doença do paciente também podemos nos perguntar se tal piora teria se verificado pela evolução natural da doença apesar da intervenção psiquiátrica e não por causa desta De modo geral parece que os juízes nos últimos tempos estariam tendentes a alargar sempre mais a área da culpa penal e civil a cargo dos psiquiatras Como já exposto esse fenômeno poderia ser apenas uma expressão de um trend mais amplo concernente a toda a área médica ou poderia estar a indicar uma específica atenção em matéria de saúde mental aos temas da ordem pública e da insegurança social percebida Sobre o argumento existe uma rica produção da jurisprudência Mencionarei apenas algumas dentre as sentenças mais significativas proferidas pela Corte de Cassação e alguns Tribunais Colegiados64 e de Apelação 64 Nota à edição brasileira Corti dAssisi O Crime Louco 256 A Corte de Cass Pen seção V 1974 no 128370 afirma o crime na medida em que falte pessoal especializado ou se confiem os internos a pessoas incompetentes e em número inadequado A Corte de Cass Pen seção V em 121082 configura como passível de persecução por crime de abandono o médico responsável por um Centro de Higiene Mental que se abstenha de usar formas de intervenção terapêutica em relação a portador de perturbações psíquicas A Corte de Cass Pen seção V 1989 no 183774 afirma que se deve entender como crime nos termos do art 591 CPP o fato de incapazes serem deixados aos cuidados de pessoal inidôneo A Corte de Cass Pen seção V em 28390 declara que a exposição a perigo da pessoa abandonada pode ser virtual não sendo excluída pela temporaneidade nem pela possibilidade de eventual socorro A Corte de Cass Pen seção V em 30111993 explica que todo abandono se torna perigoso e o interesse resulta violado ainda quando o desamparo seja apenas relativo ou parcial A Corte de Cass Pen seção V em 21995 afirma que para os fins de configuração do crime basta a falta de prestação de cuidados temporâneos independentemente de um particular animus derelinquendi A Corte de Cass Pen seção V 1995 no 203004 precisa que responde pelo delito quem se omite de intervir ou de fazer com que intervenham pessoas idôneas a evitar o próprio perigo A Corte de Cass Pen seção V em 2211998 no 4447 define como crime de abandono qualquer ação ou omissão que contradiga o dever jurídico de tratamento e custódia A Corte de Cass na sentença no 11024 de 22101998 recordando fato referente a psiquiatra de uma prisão que não diagnosticou doença que requeria uma intervenção cirúrgica define os limites discricionários do diagnóstico médico A Corte de Cass Pen seção IV em 1242005 no 13241 O Crime Louco 257 sentencia que o fundamento das normas do Tratamento Sanitário Obrigatório reside na periculosidade do paciente O Tribunal de Apelação de Bolonha em 1 de julho de 1975 exclui a responsabilidade do psiquiatra no caso de um paciente que se suicidara O Tribunal Colegiado de Parma em 16 de novembro de 1981 exclui a responsabilidade do psiquiatra no caso de paciente que se afastara do Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Tratamento e matara a esposa Algumas sentenças a meu modo de ver merecem especial atenção O Tribunal de Ravenna em 2992003 absolve um psiquiatra acusado de homicídio e lesões pessoais culposas em seguida a suicídio do paciente que tinha a seus cuidados A absolvição foi justificada pelo juiz com a impossibilidade de submeter o próprio paciente a uma contínua e estrita vigilância além de um raciocínio decisivamente técnicocientífico a responsabilidade profissional no setor das intervenções psiquiátricas há de ser devidamente enfrentada de maneira diversa e com maior rigor probatório do que em outros campos da medicina tendose em conta o menor grau de certeza atingido na psiquiatria em relação aos conhecimentos adquiridos em outros setores da mesma ciência De um lado o psiquiatra é absolvido porque após o fechamento dos manicômios falta a possibilidade concreta de um estrito controlevigilância por outro lado porque a psiquiatria ainda é uma ciência altamente imperfeita ou mais imperfeita do que outras mais aleatória do que outras e portanto mesmo um tratamento eventualmente errado ou baseado em conjeturas que não consiga evitar o suicídio não é por si só suficiente para demonstrar a falta de diligência médico profissional Vale a pena citar ainda o Tribunal de Brindisi em uma de suas sentenças referente a uma série de suicídios ocorridos em O Crime Louco 258 uma enfermaria psiquiátrica Segundo o tribunal da Puglia não respondem por homicídio culposo os médicos enfermeiros o diretor do departamento de saúde mental o diretor sanitário e tampouco o coordenador sanitário que deixaram cada um em relação às próprias funções de adotar as medidas capazes de impedir os repetidos suicídios de pacientes internados na enfermaria psiquiátrica estando a essa altura praticamente em desuso em seguida à Lei 18078 aquela visão da doença mental traduzida na assistência ao doente que se expressava fundamentalmente na estrita vigilância do mesmo a fim de impedir que acarretasse dano a si mesmo e aos outros agora prevalecendo uma assistência principalmente de tipo terapêutico Em novembro de 2003 foi proferida a bastante conhecida sentença da Cassação Cass Pen seção IV 4 de março de 2004 no 10430 que confirma a condenação do diretor de uma casa de tratamento milanesa julgado responsável pelo crime de homicídio culposo pela morte de uma paciente voluntariamente internada portadora de síndrome depressiva que se suicidou jogandose pela janela na casa de tratamento À base da causa excepcional superveniente esteve a conduta culposa do médico que não representando adequadamente os riscos de reincidência nas tentativas de suicídio e não indicando à acompanhante as cautelas aptas a evitar gestos autodestrutivos colocouse a si mesmo como condição idônea para a verificação da conduta que tornou possível o evento suicídio É novamente a IV Seção da Cassação que condena dois psiquiatras do Instituto Psiquiátrico de Pisa por homicídio culposo por sentença proferida em 12 de janeiro de 2005 publicada em cartório em 12 de abril de 2005 Tratavase do suicídio por enforcamento no banheiro da enfermaria de um paciente submetido a TSO A motivação da sentença é interessante porque a Corte limita expressamente a possibilidade de se visualizar a subsistência da posição de garantidor no psiquiatra ao fato de o paciente estar submetido a TSO Observa esta Corte que estando C submetido a tratamento sanitário obrigatório indiscutivelmente existe a posição de garantidor por parte O Crime Louco 259 dos médicos da estrutura Em tais casos portanto derrogada a voluntariedade inspiradora da Lei 1801978 que entendeu transfundir em lei ordinária o princípio ditado pelo art 32 2 da Const referente à liberdade de tratamento permitese a limitação da liberdade pessoal para tutela do próprio paciente e em via reflexa eventualmente de terceiros tutela que diante de uma situação de extrema gravidade e de falta de colaboração do sujeito que não adere ao tratamento voluntário só pode se efetuar através de sua custódia e se for o caso através de contenção Na realidade em matéria de contenção já se tinha posicionamento da Suprema Corte Vejase por exemplo o caso da sentença da Corte de Cassação de 17101990 concernente ao Tratamento Sanitário Obrigatório e contenção física em psiquiatria Contestando a justificação de atos coercitivos nos casos em que o estado mental do paciente não aconselhe a privação da liberdade a Corte de Cassação assim se expressa Para fins de configuração do crime de sequestro de pessoa prescindese da existência no ofendido da capacidade volitiva de movimento e instintiva de percepção da privação da liberdade razão por que configurase o delito mesmo em relação a enfermos mentais e paralíticos Dessa forma a Cassação demonstrou que a pessoa há de ser considerada livre não enquanto tenha capacidade de se mover mas enquanto esteja ausente qualquer coerção que subtraia de seu corpo a possibilidade de movimento no espaço Em suma se ao psiquiatra se pode eventualmente atribuir uma função de controle social esta deve ser entendida como mediação entre diversos impulsos sociais contrapostos e enquanto manutenção de níveis adequados de homeostase social mas não como uma função de controle social disciplinar típica de instituições primariamente voltadas ao controle social polícias etc Lêse na sentença que a supressão dos manicômios indubitavelmente mudou o perfil de responsabilidade dos psiquiatras pois estes com frequência achamse diante de situações em que não podem impedir um evento na medida em que o uso da força sobre o paciente está O Crime Louco 260 condicionado à presença de múltiplos e perigosos fatores A Corte de Cassação precisa que o uso legítimo da força física está limitado aos casos de estrita necessidade para subtrair o incapaz ao perigo de graves danos O caso concreto analisado pelos juízes é que dirá se e em que medida o psiquiatra pode ser responsável pelas condutas lesivas ou autolesivas do paciente que tem sob seus cuidados O Crime Louco 261 VII Os documentos 1 Atestados de solidariedade a Franco Basaglia e Antonio Slavich Domenico Casagrande e Ernesto Venturini 11 Anos 1968 e 1971 Os atestados aqui reunidos foram endereçados a Franco Basaglia em Gorízia pouco depois do fato delituoso perpetrado por Miklus bem como a Franco Basaglia e Antonio Slavic em Colorno em 1971 após sua incriminação pelo Ministério Público O material reunido poderia ter sido utilizado pela defesa em sede processual mas isso não aconteceu praticamente sem qualquer reflexo aparente no julgamento pois os juízes evitaram entrar no mérito do processo de tratamento levado a cabo no hospital psiquiátrico Tratase de material inédito entregue a Casagrande por Slavich É aqui publicado pela primeira vez para ilustrar o clima cultural e político daqueles anos enfatizando o peso da opinião pública no episódio papel fundamental para evitar o recuo do processo de mudança institucional iniciado em Gorízia Naturalmente o número dos atestados é maior do que o que aqui exibido para não sermos indelicados com os ausentes cabe esclarecer que estamos publicando somente o material enviado a Colorno que através de Slavich Basaglia confiou a Casagrande 12 Ano 1968 Quando aconteceu o incidente Miklus em setembro de 1968 a experiência de Gorízia atravessava um momento especialmente feliz Em abril Linstituzione negata era publicado pela Einaudi O livro teve um prestigioso reconhecimento no verão com o Premio Viareggio para ensaios A primeira edição esgotou rapidamente e o livro se tornou um texto cult não só no universo da psiquiatria e da psicologia mas para todos aqueles que percebiam a necessidade de O Crime Louco 262 uma profunda mudança das instituições De repente porém começa uma fase bastante difícil e crítica A dor e a emoção provocadas por um fato tão dramático naturalmente abrem uma reflexão sobre sua dinâmica para tentar entender suas razões e identificar os erros Era igualmente natural que se instaurasse um procedimento judiciário para esclarecer eventuais responsabilidades No entanto logo se evidenciou a instrumentalização do evento por quem sempre se opôs à mudança e o confronto se tornou extremamente áspero sem excluir golpes Basaglia tinha consciência de que seria decisivo descer em campo em defesa da experiência de Gorízia Por essa razão pôsse em ação pedindo manifestações de solidariedade embora na realidade inúmeras pessoas tenham sentido necessidade de espontaneamente manifestar seu apoio a Basaglia e a todo o grupo de Gorízia Dentre essas pessoas especialmente afetuoso e solícito foi Giulio Maccacaro diretor do Instituto de Estatística Médica e Biometria da Faculdade de Medicina e Cirurgia de Milão e diretor do Centro para Aplicações Biomédicas do cálculo eletrônico Soube através de amigos comuns das preocupações que nesses dias estão atormentando você seus colaboradores e seus doentes Como quem quer que os conheça verdadeiramente compartilho tais preocupações com afetuosa participação Penso que se nos tornamos um pouco mais civilizados terá sido também por mérito de vocês O escritor Carmelo Samonà docente universitário da Faculdade de Pedagogia de Roma um dos mais importantes hispanistas italianos também escreveu a Basaglia Tenho acompanhado desde o início o notório contencioso judiciário em torno ao hospital de Gorízia Hesitei em escrever porque decerto minha solidariedade de pouco pode valer do ponto de vista estritamente prático Mas estou cada vez mais preocupado com a situação italiana e de toda nossa cultura e em determinado ponto me convenci de que seu problema para além da contingência dessa odiosa e clamorosa imputação é também problema nosso e de todos aqueles que pensam como O Crime Louco 263 nós e trabalham nas estruturas do Estado Por isso quero que você saiba que se for necessário minha solidariedade nessas circunstâncias é plena e absoluta Leve em conta o fato de que aqui na Pedagogia e na Universidade de Roma somos um grupo de docentes e assistentes que embora pequeno em quantidade é no entanto bastante unido Saiba que a qualquer momento você pode contar com ações de nossa parte Outro que sentiu necessidade de manifestar sua solidariedade foi Diego Napolitani psiquiatra e membro associado da Sociedade Psicanalítica Italiana fundador e dirigente da comunidade terapêutica Villa Serena uma experiência de vanguarda Caríssimo Franco seguimos de perto suas recentes vicissitudesjudiciárias e todos nós pacientes e pessoal sanitário delas participamos com muito sentimento seja nessa como na outra comunidade a privada Sendo junto com você protagonistas do risco movidos pela dignidade humana queremos comunicar nossa admiração nossa solidariedade e nosso afeto desejando a você ou melhor desejando a nós mesmos que o desenrolar dos fatos acolha seus esforços O eco dos acontecimentos chegou à Câmara dos Deputados onde alguns grupos parlamentares dirigiram uma interpelação ao Ministério da Saúde Aldo Natoli parlamentar do PCI logo escreveu a Basaglia Caro Basaglia tenho muito prazer em travar conhecimento com o senhor nessa ocasião Junto com outros colegas apresentei uma interpelação Hesitei diante do texto porque gostaria de antes ouvir sua opinião Serei grato se o senhor puder me escrever com toda franqueza Pode endereçar sua carta para cá em Montecitorio Naturalmente gostaria muito de conhecêlo pessoalmente O Crime Louco 264 Segue o texto integral da interpelação CÂMARA DOS DEPUTADOS Roma 30 de outubro de 1968 INTERPELAÇÃO Ao Ministro da Saúde Visando saber se diante dos recentes e graves episódios de explícita hostilidade de órgãos periféricos do poder público contra as terapias de vanguarda no campo das doenças mentais e contra as iniciativas voltadas à reivindicação de uma corajosa reforma psiquiátrica episódios de hostilidade que culminaram com o aberrante processo judiciário contra o prof Basaglia diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia não entenda VSa ser indispensável promover uma ação de governo destinada a 1 Lançar um plano de saneamento e expansão dos serviços psiquiátricos destinado a eliminar a superpopulação dos institutos hospitalares e o grave fenômeno da promiscuidade dos doentes mentais de todos os tipos e graus 2 Criar condições para que nenhum doente mental seja abandonado na atual situação de exclusiva segregação inércia física ou ainda pior de coerção e violência na generalizada renúncia a qualquer tentativa de tratamento que ao contrário seria possível com base nos critérios da técnica mais atualizada 3 Assumir como parâmetro fundamental da reforma psiquiátrica a total eliminação de qualquer diferenciação entre os problemas da saúde mental e os da saúde em geral pondo fim de fato ao vergonhoso comportamento de nossa sociedade em relação à doença mental em parte derivado da subsistência de posições medievais de medo e O Crime Louco 265 culpa mas especialmente do fato de que um ordenamento social fundado no lucro recusa e tende a excluir os fracos e deficientes 4 Favorecer o desenvolvimento de serviços psiquiátricos fundados na continuidade terapêutica e portanto na unidade e indivisibilidade dos tratamentos hospitalares e extrahospitalares Expressando portanto com tal ação solidariedade e apoio à obra dos psiquiatras italianos mais empenhados no auspicioso trabalho de renovação de tal forma contribuindo para repelir direta ou indiretamente a ação persecutória que contra esses vem sendo exercida pelas forças mais retrógradas e conservadoras de nossa sociedade Eis o texto da resposta do Ministro da Saúde Luigi Mariotti Ministério da Saúde Roma 2 de janeiro de 1969 Objeto Interpelação à resposta escrita No 674 O Senhor Deputado apresentou a seguinte interpelação com pedido de resposta escrita Ao Ministro da Saúde Visando saber se pretende se manifestar sobre as circunstâncias e os fatos que estão na base da decisão do juiz instrutor de Gorízia que incriminou por homicídio culposo o diretor do Hospital psiquiátrico professor Franco Basaglia O interpelante independentemente do contestável fundamento jurídico da incriminação em questão indaga se o Ministro não julgue que o episódio se presta a ser instrumentalizado contra todo um grupo de estudiosos que estão experimentando uma terapia moderna e especialmente civilizada no campo da psiquiatria enquanto O Crime Louco 266 nesse setor da medicina nosso País mantém estruturas arcaicas e inadequadas bem como métodos de tratamento de caráter repressivo que retardam a cura dos pacientes e obstaculizam sua reinserção na sociedade Respondese o quanto segue Em 27 de setembro passado um paciente do Hospital psiquiátrico provincial de Gorízia internado desde 1951 por ocasião de uma licença diária concedida pela Autoridade sanitária do mesmo Hospital matou a própria esposa Fugindo foi encontrado pela polícia apenas dois dias depois das buscas sendo em seguida enviado ao manicômio criminal O referido interno foi acompanhado ao domicílio em veículo de um enfermeiro do hospital e confiado a seus familiares O Ministério da Justiça interessado na questão comunicou que o juiz instrutor junto ao Tribunal de Gorízia procede com instrução formal ainda em curso contra o mencionado interno pelo delito de homicídio doloso nos termos dos arts 575 e 577 CP Nenhuma imputação foi até hoje atribuída ao professor Basaglia Diretor do Hospital em questão De todo modo essa Administração ressalta que em relação às novas orientações sobre a assistência psiquiátrica e aos novos métodos para sua realização a socioterapia constitui um dos pontos cardeais do tratamento psicoterapêutico Incluise portanto em tais métodos e no quadro de tais novas orientações o sistema de socioterapia adotado pelo prof Basaglia no Hospital psiquiátrico de Gorízia No que se refere às licenças experimentais são contempladas pelo regulamento RD no 615 de 1681909 arts 646566 sendo o diretor por elas responsável Visando realizar a reinserção social dos enfermos mentais O Crime Louco 267 liberados tornase indispensável a efetivação de tais licenças experimentais Julgamse portanto regulares as medidas tomadas pela Direção do Hospital em questão no que concerne aos métodos socioterapêuticos e às liberações experimentais No que se refere ao doloroso caso verificado em 27 de setembro passado advertese que este não pode invalidar um método de tratamento psicoterapêutico postulado pelos cultores da matéria ou pelos expertos do MS nem modificar as normas legais citadas no que se refere às licenças experimentais ainda que tais liberações possam configurar um risco potencial Por outro lado a liberação dos internos psiquiátricos afirmada pela nova Lei no 431 de 1831968 enfatiza tal profunda exigência mesmo sendo evidente o maior risco de tais licenças e a evidente maior responsabilidade que recai sobre os diretores dos hospitais psiquiátricos Com efeito esse Ministério já emitiu circular dirigida aos Médicos Provinciais na qual são evocadas as precedentes disposições expedidas sobre o problema em questão bem como sua especial atenção na qualidade de Presidentes das ditas Comissões a fim de exercerem com respeito à lei e às novas orientações de liberalização da assistência psiquiátrica a mais estrita e prudente vigilância O Ministro Como se pode verificar o Ministro embora enfatizando a autonomia da magistratura demonstra a regularidade das medidas da Direção do Hospital no que concerne aos métodos socioterapêuticos e às licenças experimentais Não se trata de simples opinião pessoal tratase de um parecer técnico evidentemente fundado em conhecimentos específicos e expressado por uma fonte respeitável Mas o mais interessante é que tanto na interpelação quanto na O Crime Louco 268 resposta do Ministro emerge a relevância institucional da matéria em questão Há um juízo consolidado absolutamente crítico em relação ao estado dos hospitais psiquiátricos que se acham sob condições inadministráveis e não recuperáveis com intervenções parciais ou locais A problemática necessariamente exige medidas legislativas de relevante dimensão As intervenções devem estar em sintonia e em continuidade com as já promulgadas pela Lei no 431 de 18 de março de 1968 sobre Providências para a assistência psiquiátrica denominada lei provisória ou lei Mariotti que permitiu a internação voluntária dos pacientes psiquiátricos A propósito é oportuno recordar o empenho fundamental de Basaglia e de todo o grupo de Gorízia exatamente para a promulgação dessa lei frequentemente pouco conhecida em sua dimensão revolucionária Luigi Mariotti envolveuse ativamente no conhecimento da experiência de Gorízia com efeito visitou o Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorízia antes da promulgação da lei convidado pelo então Assessor Regional para a Saúde de FriuliVeneziaGiulia advogado Cesare Devetag Entendese assim porque para além da oficialidade dos autos o Ministro tenha sentido necessidade de se comunicar diretamente com Basaglia enviandolhe a seguinte carta Roma 29 de novembro de 1968 Egrégio Professor Vejo sua carta do último dia 8 e verdadeiramente lamento o infortúnio que lhe ocorreu como também lamento o pretexto que se quer extrair daí para evitar uma necessária e impreterível radical renovação estrutural terapêutica e de valorização social no setor psiquiátrico A esse respeito minha opinião é bastante conhecida de VSa e de quantos estão especialmente a par do problema É suficiente uma nova leitura das normas propostas e do anexo relatório ilustrativo para a reforma psiquiátrica cuja iniciativa assumi na qualidade de Ministro da Saúde O Crime Louco 269 Formulando meus melhores votos a VSa enviolhe saudações cordiais Luigi Mariotti Todavia nessa fase delicada Basaglia precisava também do parecer favorável do establishment científico Por essa razão solicitou o parecer de dois de seus mestres luminares da psiquiatria da época Maxwell Jones e Georges Daumezon O psiquiatra Maxwell Jones era um inovador carismático idealizador da primeira comunidade terapêutica criada em 1952 no Hospital Dingleton de Melrose na Escócia com o objetivo de fazer participar e responsabilizar os pacientes na gestão da instituição psiquiátrica em que residiam Franco Basaglia conheceu Maxwell Jones pessoalmente durante uma visita ao Hospital de Dingleton alguns anos antes Entre os dois permaneceria sempre viva uma relação de grande respeito e consideração Georges Daumezon inicialmente diretor do Hôpital Psychiatrique de SainteAnne e posteriormente do Hospital HenriRousselle em Paris desempenhou um papel fundamental na história da psiquiatria francesa tendo sido um dos promotores da chamada psicoterapia institucional psychothérapie institutionnelle Esse método visava mudar as condições de vida dos internos dos hospitais psiquiátricos consequentemente buscando transformar o hospital em uma instituição terapêutica Reproduzimos abaixo os textos integrais das duas cartas65 Telephone No 2727 65 Nota à edição brasileira Mantemos os textos destas cartas bem como de declaração que virá transcrita mais adiante em inglês e em francês como aparecem no original da obra ora traduzida O Crime Louco 270 Dingleton Hospital For Nervous and Mental Disorders SCOTLAND 25th October 1968 Dr Franco Basaglia Gorízia Italy Dear Franco I have just received your letter and hasten to reply There is in my opinion ample evidence that therapeutic community practice has become an integral part of psychiatry both in the USA and in the UK during the last few years The Universities and other progressive psychiatric departments have almost universally adopted a more democratic egalitarian approach to the treatment of patients and adopted many of the principles of a therapeutic community The general feeling is that patients can do a great deal to help patients and that they should be allowed to have as much responsibility as they are able to assume at any particular time in their treatment Moreover the sharing of responsibility by staff ensures that they have a much greater investment in carrying out decisions and assuming responsibility The therapeutic community approach has been compared frequently with the psychoanalytic movement as the two most important developments in modern psychiatry To leave the final authority to the doctor is still the accepted practice in the UK and the USA but such final decisions are much more likely to be balanced and wise if the opinions of the relevant people both patients and staff have first been taken into account In my experience the more these therapeutic community principles are carried out the less unrest and violence does one see in the patient population With warm regards Yours sincerely Maxwell Jones Physician Superintendent O Crime Louco 271 PREFECTURE DE PARIS HÔPITAL HENRIROUSSELLE Dr G DAUMEZON MÉDECIN EN CHEF Paris le 25 novembre 1968 Monsieur le Docteur Franco BASAGLIA Hôpital Psychiatrique Provincial Gorízia Italie Mon cher Ami Cest bien volontiers que je vous apporte mon témoignage sur la réalité des communautés thérapeutiques et plus particulièrement de votre expérience Le mot de Communauté thérapeutique a été utilisé à ma connaissance pour la première fois par les Anglais et en particulier par Maxwell Jones pour désigner soit des hôpitaux soit des portions dhôpitaux soit des portions dinstitutions dont lorganisation globale était conçue comme moyen de traitement Cette manière de vois se distingue de la position traditionnelle qui considère chaque malade isolément et pense que le traitement de chacun doit se concevoir uniquement par des procèdures individuelles soit biologiques médicaments soit de psychothérapie relation de chaque malade avec son médecin soit encore prescription pour chaque malade dun régime de vie particulier à lintérieur de linstitution de soins La communauté thérapeutique consiste au contraire à considérer que le malade baignant dans ce nouveau milieu quest pour lui lhôpital le climat et la vie sociale de cet O Crime Louco 272 ensemble sont des éléments essentiels de traitement Si le mot de communauté thérapeutique a été utilisé cest essentiellement dans les pays anglosaxons Des mouvements analogues se sont développés dans la plupart des pays évolués soit en même temps soit quelquefois même avant les initiatives de Maxwell Jones En ce qui concerne la France ces initiatives sont désignées dordinaire par lexpression psychothérapie institutionnelle ce mot indiquant que la structure de linstitution soignante doit être utilisée pour le traitement psychothérapique du sujet Le mouvement remonte aux années de guerre et à la période daprèsguerre Dans une conférence de 1947 au groupe de lEvolution Psychiatrique je résumais ce point de vue en indiquant quon pouvait considérer que la thérapeutique institutionnelle réalisait en une certàine manière une Communion des Saints où médecins malades et personnels de tous ordres participaient au traitement où les communications devaient être organisées de façon à permettre à chaque malade de tirer parti des expériences des autres à travers ce que lui en apportait le groupe Les orientations sont évidemment variées entres les diverses communautés thérapeutiques ou les diverses institutions se consacrant à la psychothérapie institutionnelle Cest ainsi que dans certains groupes français notamment mais tous les groupes français ne se rallient pas à cette perspective le modèle théorique auquel on se réfère est celui de la psychanalyse le travail thérapeutique consistant essentiellement en une interprétation psychanalytique des réactions de groupe et éventuellement des réactions de chaque malade dans le groupe laménagement de la vie de lhôpital ayant pour but de faciliter les attitudes significatives des malades de manière à permettre plús facilement leur interprétation O Crime Louco 273 Mais dautres orientations existent qui insistent davantage sur les facteurs proprement sociologiques analysent les diverses structures sociales de lhôpital et la position du malade dans cet ensemble Il existe aussi des orientations plus directives Mais en tout état de cause et quelle que soit la référence adoptée il est impérieusement nécessaire dans la perspective des tenants de ces divers courants que le malade trouve à lhôpital un cadre de vie non répressif le maniement des réactions du sujet étant lessentiel de lactivité thérapeutique de la communauté Dautre part le but de la thérapeutìque étant la réinsertion sociale à linverse des conceptions traditionnelles qui faisaient de linstitution un petit monde clos la communauté thérapeutique souvre sur lextérieur et recherche au contraire de constants échanges entre ses membres des malades au médecins et des membres de la communauté extérieure Personnellement jai joué un certain rôle dans le développement dinitiatives de cet ordre en 1944 et 1951 et je nai cessé depuis de mintéresser à ces divers problèmes Si les services qui mont été confiés ne mont pas permis de poursuivre les expériences de psychothérapie institutionnelle jai participé activement au mouvement qui a multiplié ces initiatives Jai suivi les efforts de léquipe de Gorízia au cours de ces dernières années demandant au Docteur Basaglia et à ses collaborateurs de venir exposer leur pratique aux médecins français qui sintéréssent à ces questions Cest ainsi quau printemps dernier sur mon invitation Monsieur Basaglia a fait dans le cadre du cercle dEtudes Psychiatriques une conférence sur la Communauté Thérapeutique de Gorízia à lhôpital SainteAnne Dautre part il était amené à participer à de multiples échanges et en particulier au Colloque de Courchevel O Crime Louco 274 Dans le mouvement général de la psychothérapie institutionnelle et des communautés thérapeutiques lexpérience de Gorízia a une originalité propre reconnue de tous et a valeur de témoígnage Daumézon Maxwell Jones naturalmente ressalta o alto valor curativo da comunidade terapêutica fazendo notar como com tal método diminuem inclusive os atos de violência dos pacientes Com essa opção também muda porém o poder absoluto do médico a responsabilidade passa a ser compartilhada com o staff e os pacientes e as decisões em geral são mais sábias e equilibradas Daumézon também fala da comunidade terapêutica fazendo notar que mesmo com algumas diferenças significativas entre a França e o Reino Unido de fato a essa altura o mundo todo se move na mesma direção a mesma assumida pelos Gorizianos o paciente deve encontrar no hospital condições não repressivas pois só assim pode desempenhar seu papel na atividade terapêutica da comunidade Além disso Daumézon faz ver que são inerentes ao processo terapêutico a abertura do hospital para o exterior e a busca de uma troca constante com os familiares e com a sociedade Reconhece enfim à experiência de Gorízia originalidade e alto valor científico Dentre o material reunido há também uma carta de Christian Müller Diretor da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Lousanne À época esse instituto gozava de notável crédito no mundo científico internacional pelo rigor metodológico e pelo empenho no campo da pesquisa científica A estrutura genérica do instituto no entanto era tradicional seja na utilização da farmacologia seja no campo das psicoterapias Müller em essência não põe em discussão o valor terapêutico do hospital psiquiátrico que critica em sua desumanidade julgando porém que se possa modernizar A carta assume especial significado exatamente porque ao sublinhar as diferenças ideológicas entendidas como concepções científicas diversas reconhece em O Crime Louco 275 Basaglia e em toda a experiência de Gorízia grande valor humano e científico Nessa perspectiva o evento criminoso deve ser lido como um fato isolado que não compromete o acerto do método escolhido Müller declara ao final sua própria admiração pela coragem de Basaglia DR CHRISTIAN MÜLLER PROFESSEUR DE PSYCHIATRIE DIRECTEUR DELA CLINIQUE PSYCHIATRIQUE UNIVERSITAIRE DE LAUSANNE D é c l a r a t i o n Connaissant le Professeur Basaglia et lHôpital psychiatrique de Gorízia je désire prendre position en ce qui concerne le crime qui a été commis par un malade de son hôpital Tout dabord je dois pourtant faire une remarque préliminaire je ne partage pas entièrement lidéologie du Professeur Basaglia et je tiens à souligner que je ne partage pas non plus à tous les égards son point de vue théorique concernant les maladies mentales et leur traitement Ceci dit il me semble important de relever que le travail accompli par le Professeur Basaglia jusquà présent dans son hôpital à Gorízia a une grande valeur Je me sens absolument solidaire avec lui et je lappuie 100 lorsquil dit que depuis des générations et dans beaucoup de pays le malade mental à tort a été traité de façon inhumaine quon a prolongé sans raison suffisante des hospitalisations qui nétaient rien dautre que des séquestrations et quil est grand temps de moderniser et de modifier de façon radicale nos hôpitaux psychiatriques Le Professeur Basaglia na O Crime Louco 276 pas hésité à mettre toute son énergie à loeuvre pour réaliser ce projet Il a secoué les consciences endormies de beaucoup dentre nous et ainsi il est devenu un ferment nécessaire à une restructuration de nos institutions psychiatriques Il sest engagé totalement et na reculé devant aucun obstacle pour atteindre son but qui répétonsle est un but idéal et profondément humain Il faut dailleurs dire que le Professeur Basaglia nest pas le seul dans le monde à avoir ouvert un hôpital psychiatrique et à avoir libéralisé un régime hospitalier En Angleterre par exemple daprès les derniers renseignements recueillis un grand nombre dhôpitaux psychiatriques ne possèdent plus de divisione fermées et il y a un passage tout à fait libre entre lhôspital et lextérieur Quant au crime commis par un malade il faut reconnaître que cest malheureusement aussi un fait qui nest pas isolé et qui peut arriver même dans un hôpital des plus classique et des plus traditionnel Ces années passées en Suisse également nous avons eu plusieurs procès où des malades étant sortis dun hôpital psychiatrique avaient commis des crimes majeurs et où lopinion publique avait accusé le médecindirecteur responsable davoir permis une sortie prématurée A ma connaissance pourtant ces procès se sont soldés par des nonlieux en ce qui concerne laccusation portée contre le psychiatre Certaines réactions danciens malades mentaux stabilisés dans le cadre hospitalier sont en effet imprévisibles La contrainte froide et impersonnelle dans une division fermée dun hôpital psychiatrique où le malade a peu de contact avec autrui ne peut que renforcer en lui un sentiment de revendication et favoriser des actes asociaux La communauté thérapeutique que le Professeur Basaglia a introduite à Gorízia est une tentative de résoudre O Crime Louco 277 les conflits dans le cadre dun groupe et de faire bénéficier le malade de tous les éléments positifs quune collectivité peut donner En résumé je peux donc dire encore une fois ceci il me semble erroné de vouloir attribuer un fait isolé comme celui dun crime commis par un malade mental à un système hospitalier particulier Malgré tout ce qui me sépare du point de vue idéologique du Professeur Basaglia je désire témoigner de ma grande admiration pour son courage son esprit de pionnier et de précurseur ainsi que pour son dévouement total à la cause du malade mental Prof C Müller 13 Ano 1971 Em 29 de janeiro de 1971 o MP junto ao Tribunal de Gorízia requer a extinção do processo em relação a Alberto Miklus com sua internação em manicômio judiciário aliás já efetivada por um mínimo de cinco anos requerendo ainda o envio a juízo de Basaglia e Slavich para que respondam pelo delito de cooperação em homicídio culposo O requerimento ocorre a quase dois anos e meio de distância do evento surpreendendo também porque já passada a primeira fase de forte impacto emocional muitos sinais faziam com que se vaticinasse uma queda das acusações voltadas contra o pessoal médico Basaglia e Slavich nesse meio tempo já haviam deixado Gorízia encontrandose no Hospital Psiquiátrico de Colorno em Parma junto com Lucio Schittar Basaglia voltara há pouco de uma temporada de estudos de cerca de seis meses no Community Mental Health Center do Maimonides Hospital do Brooklyn em New York Outros membros da equipe de Gorízia de 1968 também tinham se transferido Giovanni Jervis e Letizia Jervis Comba estavam em Reggio Emilia Agostino Pirella desde junho de 1971 fora chamado a dirigir o HPP de Arezzo Iniciarase uma espécie de fragmentação O Crime Louco 278 centrífuga do grupo inicial de Gorízia uma diáspora a expressar a vitalidade do movimento tendente a se difundir cada vez mais Em Gorízia a partir de 20 de julho de 1971 permaneceu dirigindo o hospital aberto Domenico Casagrande cercado por uma geração de médicos cuja tarefa era manter o processo instaurado e fazêlo progredir em um contexto que se tornara especialmente difícil tanto fora quanto no interior do hospital Nesse clima uma condenação de Basaglia poderia comportar um efeito particularmente negativo para todo o processo de mudança institucional iniciado em Gorízia e em outras partes da Itália A aposta em jogo era alta fácil entender portanto a intensidade da mobilização que vinha espontaneamente se construindo naqueles dias A acusação de cooperação em homicídio culposo voltada contra os médicos por um delito cometido pelo paciente já suscitava alvoroço pois era de todo inusitada ainda que dedutível da lei então em vigor Mas era evidente que a imputação se movia sob uma lógica claramente repressiva contra o processo de mudança iniciado no HPP de Gorízia É fácil perceber a forçação de barra no envolvimento dos médicos a licença experimental dos pacientes àquela altura era prática consagrada há anos e não apenas no hospital de Gorízia além disso o evento delituoso era imprevisível como claramente ressaltado pelo próprio perito do Tribunal A notícia do envio a juízo foi dada pelo telejornal das 20 horas em 13 de fevereiro e logo reproduzida com grande destaque pelos maiores jornais especialmente extenso e documentado foi o artigo de Zincone no Corriere della Sera A notícia foi divulgada ainda pela imprensa internacional vejase por exemplo o artigo do Le Monde de 20 de fevereiro As declarações de solidariedade foram espontâneas não solicitadas e muito mais numerosas do que as que temos em nosso poder limitadas como já mencionado às mensagens que chegaram em Colorno assim excluídas por exemplo as dirigidas à residência de Basaglia em Veneza que estão em processo de catalogação na sede O Crime Louco 279 da Fondazione Franco e Franca Basaglia em Isola di S Servolo em Veneza Há substancialmente três tipos de mensagens primeiro os testemunhos de amigos e colegas segundo os atestados de diversas entidades institucionais sanitárias e políticas e finalmente as cartas de gente comum na maior parte pacientes psiquiátricos daqueles que ouviram ou leram a notícia nos mass media e quiseram externar sua solidariedade Dentre as declarações dos conhecidos de Basaglia estão as de Sergio Piro protagonista dos processos de inovação no sul da Itália de Eliodoro Novello presidente da associação dos médicos dos hospitais psiquiátricos de Bianca Guidetti Serra pela Associação dos Juristas Democráticos do arquiteto Guglielmo Lusignoli de Laura Weiss filha de Edoardo o aluno de Freud que introduziu a psicanálise na Itália Em especial há a longa carta de Ferruccio Giacanelli um dos promotores da experiência inovadora de Perugia Mesmo não conseguindo de imediato encontrar o fio da meada obviamente vejo uma lógica intrínseca na questão Basaglia e tudo o que representa e quem está com ele ainda incomodam Em um nível próximo de quem te seguiu de perto ou te conheceu de longe o afeto e a indignação são evidentes Há gente e nem tanto médicos mas enfermeiros doentes estudantes que continua a visualizar perspectivas que se solidificam no nome de Basaglia É a minha experiência que comunico assim sem acrescentar nada É uma carta de um amigo que surge da notícia na TV Se o poder retorna ou continua a golpear queria que você sentisse por agora na espera de eventuais iniciativas diversas imediatamente nossa solidariedade e nosso afeto Basaglia enfatizaria o prazer que sentiu com essa carta Ainda mais numerosa é naturalmente a lista dos atestados institucionais Vai de uma coleta de assinaturas feita em Roma para um referendum nacional a favor de Basaglia a declarações vindas do mundo sanitário e psiquiátrico Dentre outros vale citar o Ministério da Saúde os médicos e enfermeiros do hospital Antonini O Crime Louco 280 de Milão os internos e médicos do HPP de Pistoia os de Villa Serena em Milão os médicos e a Comissão interna do hospital psiquiátrico Cerletti de Parabiago o centro italiano de Antropologia Cultural os colegas da Clinica Malattie Nervose Mentali de Nápoles sua atuação deve continuar a ser um dos pontos de referência para aqueles que se recusam a fazer da atividade psiquiátrica uma prática coercitiva discriminatória classista e repressiva a assembléia do Instituto de Psicologia do Conselho Nacional de Pesquisas denuncia o caráter repressivo de tal requerimento de incriminação em face dos impulsos inovadores hoje presentes em algumas instituições psiquiátricas italianas os participantes do Simpósio ítaloeslovenocroata de Psiquiatria Social o Presidente da Sociedade Italiana de Psiquiatria prof Lorenzo Cazzullo a Associazione Medici Organizzazioni Psichiatriche Italiane AMOPI de Modena e especialmente o Escritório Nacional da AMOPI que se dirige ao Ministro da Saúde O episódio judiciário de que são protagonistas os colegas independentemente de nossa plena convicção de que se concluirá com o pleno reconhecimento da validade de uma atuação profissional que conta com toda nossa solidariedade de fato recoloca junto às tristes condições da assistência psiquiátrica na Itália a necessidade de elaboração de novas normas no campo da tutela da saúde mental Estas como demonstra esse próprio episódio só podem se fundar no afastamento de qualquer lei especial na matéria e portanto na abrogação dos dispositivos legais atuais que se de um lado autorizam situações tão frequentemente denunciadas inclusive por nós por outro lado obstaculizam gravemente o pleno desenvolvimento de iniciativas terapêuticas como aquelas pelas quais os Colegas ora correm o risco de ser incriminados Certos de que a magistratura saberá avaliar corretamente a finalidade terapêutica de intervenções que são norma quase cotidiana de nossa atuação de psiquiatras não acomodados submeto tal questão mais uma vez à atenção de VSa em nome do Conselho Diretor da AMOPI para que com a O Crime Louco 281 reforma sanitária possamos logo eliminar qualquer discriminação entre os cidadãos com base em características derivadas de seus distúrbios sejam esses somáticos ou psíquicos Incidentemente essa carta confirma como a partir da interpelação ministerial de 1968 foise construindo por todo o decênio a exigência de uma nova legislação e como o debate científico e político já se movia com base em hipóteses concretas Essa observação deve ser feita para contestar os supostos voluntarismo e improvisação da Lei 180 que para alguns críticos teria se originado simplesmente de uma apressada decisão de evitar o referendum dos radicais de 1978 Também foram muitos os atestados de entidades locais regiões como a Umbria municípios Pistoia Vercelli províncias Bolzano Bolonha Modena Perugia Em especial o conselho provincial de Perugia subscreveu em sessão extraordinária um documento a ser enviado ao Ministro da Saúde ao Presidente da Região Umbria ao Presidente do Conselho Regional aos Presidentes dos grupos parlamentares do Senado e da Câmara dos Deputados O Conselhovisualiza nesse requerimento de incriminação iniciativa que objetivamente ameaça fazer retroceder em anos as conquistas da moderna psicoterapia e o processo de desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos na Itália expressa sua solidariedade professor Basaglia e ao doutor Slavich lembrando que a experiência do Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorízia sob a direção do professor Basaglia representou um primeiro e decisivo momento de ruptura com os velhos métodos de exclusão e repressão psiquiátrica em prejuízo daqueles que sofrem em sua própria personalidade as contradições sociais e as carências humanas do ambiente em que são levados a viver reafirma para hoje e para amanhã a validade da linha até aqui seguida em relação à qual diretamente se responsabiliza e se empenha para que superandose a prática de exclusão e institucionalização o problema das doenças mentais sirva para pôr em discussão não só as vítimas mas também o sistema social e os fatores e mecanismos patogênicos que nesse O Crime Louco 282 se enraízam decide apresentar esse documento às demais Administrações provinciais da República Italiana a fim de chegar nessa perspectiva a uma comum tomada de posição responsável e clara Organizações sindicais também tomaram posição a Comissão interna do HPP de Gorízia a CGILCISL do HPP de Arezzo o Sindicato Nacional das Entidades Locais e Hospitalares da CGIL Os trabalhadores hospitalares reafirmando a validade da luta para transformar a sociedade estão próximos de você e expressam toda sua solidariedade e estima Finalmente transcrevemos parte da carta do comitê provincial de Trieste da ARCI Associação Recreativo Cultural Italiana na Itália nos hospitais psiquiátricos morrese nos leitos de contenção e milhares de cidadãos sofrem a realidade da exclusão social nas instituições repressivas Em vez de se voltar contra os responsáveis por essa situação a magistratura abriu um procedimento contra você Está claro pois que se voltando contra você quer se atingir um modo novo de enfrentar o problema psiquiátrico e sobretudo atingir e desencorajar tudo aquilo que de novo surge na Itália Nossa solidariedade para com você será por nós expressa mostrando a todos que enquanto ARCI podemos atingir o que foi e o que é a experiência de Gorízia bem como abordando os problemas das doenças mentais em uma série de debates públicos nos bairros já iniciados no mês em curso Saudações fraternas Particularmente tocantes são as cartas dos pacientes ainda que se deva ter em conta a natural mitificação da figura do médico assistente habitualmente registrada no interior da relação terapêutica por quase todos os pacientes Especial relevância têm as cartas de pacientes que conheceram Basaglia pessoalmente como os membros da Comunidade terapêutica de Gorízia Estamos todos próximos do senhor de coração e estamos todos prontos a sustentar no campo nacional qualquer forma de luta que o senhor entender mais oportuna Ou como Wanda Viotti lhe prestamos perene gratidão pelo bem O Crime Louco 283 que nos fez Peço que me chame como testemunha Igualmente intensos são os testemunhos dos familiares Em um caso lêse Está sempre viva em mim sua nobre e humana obra desenvolvida em relação à minha família através de seu método psicoterapêutico trouxe à minha esposa a alegria de viver livrandoa daquela obsessão depressiva infernal em que vivia há muitos anos O valor dessa prática terapêutica também é enfatizado em outros casos contrapondoa aos horrores do passado Aturdidas e profundamente tristes com o que lhe foi imputado expressamos ao senhor nossa viva solidariedade e permanente admiração por tudo que se originou de sua nobilíssima alma a favor dos pobres doentes mentais VSa Senhor Professor conseguiu em empreendimento excepcional transformar o Hospital Psiquiátrico de Gorízia do verdadeiro lagher que era em uma clínica de tratamento modelo única na ItáliaEsquecese pois o método positivo seu obrar extraordinário a moderníssima terapia que fez milagres salvando tantos internos da apatia e da brutalidade a que estavam reduzidos os doentes daquele hospital Queira receber Ilustre Professor os sentimentos de nossa indefectível estima e permanente gratidão de modo especial por ter melhorado em muito as condições físicas e psíquicas de nosso caro L Há ainda fulgurantes testemunhos de quem não conheceu Basaglia pessoalmente mas sentiu o dever de testemunharlhe o quão importante foram e poderiam continuar a ser no futuro seu trabalho e suas idéias Da Certosa manicomial minha morada com sincero tom da minha Musa sirene heráldica de meus pensamentos e sentimentos quero expressarlhe como os intelectuais e as diversas organizações minha plena solidariedade louvando com loucura pensante sua iniciativa de alto valor humanitário civil e social Assinado CA Hospital Psiquiátrico de Collegno Seção 9 Basaglia nesses casos sempre respondia mostrandose solícito e atento Agradeço profundamente sua solidariedade Faço votos que deixe logo o hospital onde está internado O Crime Louco 284 Como os círculos na água de um pântano que se estendem ao infinito cada vez mais se sentiam envolvidos outros indivíduos desconhecidos e distantes mas próximos na comunhão de ideais e desejo de mudança Egrégio Diretor sou um alcoolista crônico com cirrose hepática e estive internado nos hospitais psiquiátricos de Torino por quatro anos nos dois primeiros anos os hospitais de Torino eram verdadeiros campos de concentração e nos dois últimos anos adotando seu sistema de Gorízia começávamos a nos sentir refeitos o hospital parecia ter se transformado de cárcere em casa de tratamento eu era um dos melhores ativistas que protestavam escrevendo para os vários jornais da Itália sobre os escândalos dos hospitais psiquiátricos de Torino com protestos de doentes de estudantes universitários médicos enfermeiros conseguimos levantar o cerco daquelas enfermarias infernais que mantiveram enclausuradas durante séculos quatro gerações de homens chegamos às portas abertas e de novo se sentia vontade de viver aquela pouca vida que Deus nos deu para viver Os doentes mais alegres menos suicídios sem camisa de força e contenção gente que vai e vem em contato com a sociedade que por anos repeliunos e com conversas com assembléias procuravase fazer entender que também nos hospitais psiquiátricos há gente recuperável Egrégio Diretor com as notícias lidas na imprensa em vinte e quatro de fevereiro fiquei muito oprimido enquanto uma magistratura possa condenar o senhor é como condenar milhares de nós pobres desventurados a voltar aos tempos das camisas de força àquela terrível contenção nas enfermarias fechadas Antes de voltar aos métodos de antes é melhor uma câmara de gás e não nos fazer sofrer mais não é justo que por um devamos pagar milhares de nós infelizes que não temos culpa Egrégio Diretor um conselho peço que me desculpe nas vossas reuniões e conferências é preciso fazer entender à constituição que os manicômios devem ser abolidos e criadas casas de tratamento confortáveis e não cárceres como são ainda hoje os vários manicômios da Itália onde O Crime Louco 285 existem histórias miseráveis suicídios instigações exploração chamada ergoterapia e o senhor tem muito mais experiência do que eu todas essas casas de punições não ajudam a recuperar os doentes em muitos casos pioram o estado de saúde e tornam o doente privado de qualquer esperança de retornar à sociedade que infelizmente é uma sociedade muito doente e agrava nossa situação de voltar a ser cidadãos livres penso que os senhores se sentem mal como médicos psiquiátricos como nós nos sentimos mal por muitos fatores o primeiro o bom senso das famílias e o bom senso da sociedade que nos descarta a cada minuto do dia e nos elimina moralmente e em muitos casos financeiramente pois não nos dá trabalho Respeitosamente Assinado LM Há ainda as pessoas comuns aquelas não diretamente atingidas pelo problema da doença mas que sentem necessidade de participar emocionalmente do evento Sou formado em direito e comerciante de máquinas e utensílios Quero transmitirlhe meus sentimentos de mais forte consideração alinhome totalmente ao seu lado considereme à sua inteira disposição para tudo que se fizer necessário E junto ao formado em direito há tantos outros nomes alguns indecifráveis tantas pessoas tantas históriasSão declarações testemunhos que nos fazem compreender o quanto o processo de reforma foi verdadeiramente resultado de uma presença harmoniosa que em sua determinação e coragem tornou possível o impossível O Crime Louco 286 2 Perspectivas de reforma da imputabilidade e do correspond ente tratamento sancionatório Francesco Maisto 21 A sentença Raso e o Projeto Grosso O alinhamento de enfoques jurisprudenciais aos resultados da pesquisa interdisciplinar fundante de projetos de lei de reforma inclusive setorial do ordenamento jurídico não é fenômeno novo na história italiana das relações entre evolução normativa e evolução jurisprudencial Em tal contexto não é de se espantar que a sentença Raso das Seções Reunidas da Corte de Cassação66 chegue aos mesmos resultados do penúltimo projeto de reforma do código penal o chamado projeto Grosso sobre a questão da relevância dos distúrbios da personalidade enquanto causa idônea a excluir ou reduzir significativamente em via autônoma e específica a capacidade de entender e querer Na verdade um exame atento dos pontoschave do aprofundado inusitado e original iter motivacional da sentença põe em evidência algumas fundamentais passagens argumentativas comuns que enfatizam inclusive os dois Relatórios do Projeto Grosso67 em matéria de inimputabilidade Surgem relevantes pelo menos três linhas de argumentação comuns Francesco Maisto é Presidente do Tribunal de Execução Penal de Bologna Intervenção análoga ao presente artigo foi apresentada pelo Autor por ocasião de seminário promovido pela Região Toscana e pela Fundação Michelucci os registros do seminário foram reunidos posteriormente no volume Ordine Disordine 2007 Fondazione Michelucci Firenze 66 Cass S U 251 832005 n 9163 in DPP 2005 843 ss com Comentários de M Bertolino ivi 853 in CP 2005 1862 ss com nota de G Fidelbo Le Sezioni unite riconoscono rilevanza ai disturbi della personalità ivi 1873 ss in RIDPP 2005 410 ss com nota de M T Collica Anche i disturbi della personalità sono infermità mentale ivi 421 ss mas v também F Centonze Limputabilità il vizio di mente e i disturbi di personalità in ibid 247 ss 67 in RIDPP2001574 ss E in httpwwwristrettiitareestudiogiuridiciriforma articolatogrossohtm O Crime Louco 287 aos dois elaborados voltados para a motivação da necessidade da reviravolta interpretativa da enfermidade de modo a compreender também um outro grave distúrbio da personalidade O primeiro argumento comum à sentença e ao Relatório do Projeto diz respeito à relevância do conceito de pena a ser privilegiado em relação à determinação dos limites da imputabilidade sendo óbvio que da ótica retributiva ou da preventiva em especial no aspecto da ressocialização derivam consequências diversas sobre os limites da imputabilidade cfr 42 Cass cit e Rel pag1 Portanto seja o espaço interpretativo seja o reformador não podem se limitar ao perfil epistemológico devendo sim ter em conta os possíveis e diversos tratamentos sancionadores como um todo68 O raciocínio da Corte para dizer a verdade bastante difuso articula se ao longo de duas diretrizes essenciais em uma leitura sistemática orientada pelos princípios constitucionais da individualização da responsabilidade penal e da função reeducativa da pena a imputabilidade não deve permanecer estranha ao conjunto dos elementos que justificam a punição do autor do crime na perspectiva da reprovabilidade de seu comportamento de sua culpabilidade Quaisquer que fossem as opiniões dos compiladores do código a imputabilidade não pode a essa altura ser mera capacidade de pena consistindo muito mais em capacidade de crime ou melhor capacidade de culpabilidade Nesse sentido é evocada a jurisprudência constitucional sobre a pertinência da culpabilidade no significado mínimo de consciência da antijuridicidade do comportamento com a estrutura constitucionalmente imposta ao fato criminoso é amplamente citada em especial a decisão que afirmou a parcial ilegitimidade do art 5º CP sent no 364 2324 março 1988 O sentido da reflexão é evidente toda margem interpretativa há de ser utilizada para o fim de assegurar a correspondência entre o conceito normativo de imputabilidade e a capacidade efetiva do agente 68 D Pulitanò Limputabilità come problema giuridico in AAVV Curare e punire Milano1985 O Crime Louco 288 de compreender o desvalor da conduta e se comportar de acordo com as prescrições do ordenamento O segundo argumento comum ao pensamento do Reformador e do Juiz de legitimidade diz respeito à preocupação de assegurar as condições da melhor adequação do sistema jurídico ao saber científico pag3 2º Rel Proj não se podendo prescindir em cada caso dos conteúdos do saber científico no enfoque do plano do juízo normativo após o preliminar juízo biológico 110 Cass cit Em terceiro lugar surge comum tanto à linha interpretativa quanto à legislativa a necessidade de utilizar conceitos abertos que respeitando o princípio da legalidade definam de modo claro os parâmetros de referência permitindo ao mesmo tempo uma adequação flexível ao mutamento ao progresso dos conhecimentos científicos e em geral às concepções pertinentes pag2 2º Rel Proj Com efeito a sentença 12 após evocar as características cláusulas abertas das mais recentes legislações de outros países qualifica tais fórmulas abertas como idôneas a atribuir relevância também aos distúrbios da personalidade para os fins da imputabilidade do sujeito ativo Nesse ponto não seria deslocado falar não apenas de ação sinérgica ou de reforço recíproco entre as argumentações da sentença e as dos dois relatórios do Projeto Grosso mas também de uma maturação no tempo do tema da imputabilidade por uma reflexão jurisprudencial do mais alto nível 22 Necessidade da Reforma É notório porém que as incertezas de juízes e peritos plasticamente representadas no caso definido pelas Seções reunidas são frequentes e relevantes desorientando a opinião pública inclusive recente interessada nesse mais do que em outros temas dada a gravidade dos acontecimentos em que em geral é posto dentre outros o problema da capacidade de entender e querer do acusado Com efeito ao típico caráter opinativo em que se manifesta a aplicação de um parâmetro normativo como certamente é a imputabilidade se soma a forte O Crime Louco 289 conotação crítica da ciência psiquiátrica historicamente69 marcada pelo confronto entre divergentes visões da patologia mental das concepções puramente biológicas de suas origens até o movimento da chamada antipsiquiatria Se é verdade que hoje prevalece um enfoque de tipo integrado ao fenômeno do desconforto mental o ponto de equilíbrio entre as diversas sensibilidades permanece variável e discutível É claro que toda mudança dos limites dentro dos quais a noção de doença é contida pela ciência psiquiátrica se resolve mais ou menos diretamente em um ajuste da composição ínsita ao sistema jurídicopenal entre lógicas de garantia individual e exigências de prevenção Nessas condições segundo alguns manifestase forte déficit de taxatividade posto na base inclusive de exceções de legitimidade constitucional previsivelmente resolvidas pela Consulta no sentido da manifesta inadmissibilidade ord no 374 29 novembro2 dezembro 2004 Diante deste quadro de qualificadas incertezas do mundo jurídico de instável alarme social e contrastes científicos mostrase cada vez mais necessária uma reforma da vigente legislação sobre a inimputabilidade por enfermidade Certamente a estrutura do art 94 do Projeto Grosso assumindo traços comuns aos da sentença Raso se de um lado mostra se ampliativa e promotora da adequação da expressão enfermidade para usar as palavras de M Bertolino em seus comentários às Seções Reunidas70 por outro lado seguramente mostrase idônea a uma distinção rigorosa entre as várias condições psíquicas que podem ou não integrar o conceito de enfermidade pondose de maneira mais ou menos consciente como barreira à temível prática judiciária de mera ratificação dos resultados periciais e excessivo recurso à absolvição por falha na imputabilidade Barreira aliás de certa urgência para o êxito da recente evolução da disciplina da periculosidade social e das 69 Para uma reconstrução histórica do conceito de imputabilidade a partir das doutrinas da escola clássica A Manna Limputabilità nel pensiero di Francesco Carrara in IP2005467 ss 70 Ainda em M Bertolino cit O Crime Louco 290 consequentes medidas de segurança Todavia a urgência não estaria a justificar a omissão de opções progressistas indicadas pela doutrina mais atenta às garantias e pelas ciências do comportamento como a abolição do duplo binário penasmedidas de segurança e da suspeita categoria da periculosidade social A necessidade dessa reforma do conceito de imputabilidade enquanto norma básica de uma Reforma do código ou enquanto norma básica de uma Reforma setorial abrangente com perfis interdisciplinares substanciais processuais de execução penal e ordina mentais deriva também do caráter ilusório da resistência da ordem normativointerpretativa vigente É verdade que no estágio atual não têm sido proferidas decisões de Seções da Cassação em desconformidade com a sentença Raso aliás vale remarcar a decisão conforme de no 16574 da 1ª Seção em 3 de maio de 2005 aos distúrbios da personalidade também pode ser atribuída uma atitude cientificamente aceita a se propor como causa idônea a excluir ou reduzir significativamente a capacidade de entender e querer do sujeito ativo princípio que se põe em perfeita consonância com o disposto no art 85 CP e com a orientação constitucional Os distúrbios da personalidade devem porém ser de consistência relevância e gravidade tais de modo a concretamente incidir sobre a capacidade de entender e querer com efeito estes como em geral os de neuroses e psicopatias mesmo quando não enquadráveis nas figuras típicas da nosografia clínica inscritas no mais estrito rol das doenças mentais podem constituir enfermidades ainda que temporárias para os fins dos artigos 88 e 89 CP determinando pois o mesmo resultado de prejudicar total ou significativamente a capacidade de entender e querer mas por outro lado não se podem silenciar as preocupações com os efeitos de aplicações excessivamente abertas das duas sentenças pontuais da Corte Constitucional de ilegitimidade constitucional do art 222 CP internação em HPJ e do art 206 CP aplicação provisória das medidas de segurança na parte em que permitem ao juiz nos casos previstos adotar no lugar da internação em hospital psiquiátrico judiciário medida de segurança diversa prevista em lei idônea para O Crime Louco 291 assegurar tratamentos adequados para o doente mental e para fazer frente à sua periculosidade social Corte Constitucional sentenças no 253 de 2 de julho de 2003 e no 367 de 17 de novembro de 2004 23 Os projetos de Reforma O grande alcance da sentença Raso já justificaria o destaque dado à sua motivação inclusive pelas sinalizações às perspectivas de Reforma tomadas em consideração de um lado no 40 com o fim de marcar a distância no seio do garantismo em relação à datada doutrina sobre a crise do conceito de imputabilidade e às correlatas propostas de abolição dessa própria categoria concretizadas nas propostas de lei no 177 de 1983 e no 151 de 1966 e assumidas por outro lado com a citação de cada artigo 130 desde o Projeto Pagliaro71 ao Projeto Ritz72 até as duas versões do Projeto Grosso qual uma confirmação da exatidão da abrangência do grave distúrbio da personalidade como ulterior e possível condição de enfermidade Pareceria possível nesse ponto sustentar uma posição unânime sobre a fórmula aberta assim como formalizada podendo surgir como ainda atual o destaque de autorizada voz da doutrina segundo a qual a Corte de legitimidade finalmente abriu os olhos para ver aquilo que já estava diante dos olhos de todos73 Mas recentemente o próprio prof Grosso74 recomendando grande atenção para a matéria da imputabilidade augurou uma nova formulação das causas de incapacidade total ou reduzida a sustentar o conceito de enfermidade enquanto causa de nãopunibilidade ou redução da 71 O Projeto foi publicado em M Pisani org Per un nuovo codice penale Padova 1993 72 O Projeto foi publicado juntamente com o Relatório introdutivo in RIDPP 1995 927 ss sobre esse ponto v ainda I Merzagora Limputabilità nel disegno di legge no 2038 Libro primo del codice penale in RassItcrim1996 227 ss 73 M Bertolino in Dignitas no 52005 74 In Alcune priorità per la Riforma del sistema penale sostanziale in Un progetto per la giustiziaIdee e proposte di rinnovamento orgs L Pepino e N Rossi Milano 2006 pag233 O Crime Louco 292 pena acrescentando que o conceito usado no Projeto utilizando uma noção que nos debates especializados não goza de compartilhamento incontestado deverá portanto ser repensado considerando as diversas orientações científicas que dividem os estudiosos da matéria Até desnecessário assinalar que este último Projeto deixa para trás a formulação mais restritiva do chamado Projeto Nordio75 evocada na sentença Raso embora com o limitado escopo de confirmar o ancoradouro comum da noção de enfermidade Com efeito está bastante claro que mesmo se movendo como recita o Relatório da Comissão pag29 2º pela irrenunciabilidade da referência à enfermidade e declarando ter presentes as diversas orientações fundadas nas clássicas conquistas científicas da psiquiatria da criminologia e da medicina legal este texto mais redutivo tem por objetivo evitar o que qualifica de dispersões aplicativas abertas a todos os mais originais e diversificados fenômenos numa perspectiva meramente psicológica ou emocional quando nunca para impedir nesse delicado campo fórmulas genéricas e onicompreensivas do tipo distúrbio psíquico distúrbio da personalidade fenômenos conforme práticas censuráveis avaliados inclusive por nãoespecialistas psiquiátricos ou médicolegais com base em parâmetros socioculturais do tipo da abusada figura do sujeito dito borderline Resta claro que o projeto Nordio mesmo descrevendo a incapacidade de entender e querer como possibilidade de compreender o significado do fato e agir de acordo com tal valoração amparase unicamente na enfermidade à diferença do Projeto Pagliaro que articula ao lado da enfermidade mental outra anomalia sem ulteriores especificações com consequente perda de determinação e à diferença do projeto Ritz que ao lado da enfermidade em geral e não só mental articula a eventual gravíssima anomalia psíquica de sentido excessivamente restritivo A noção de grave anomalia é retomada pelo Projeto Preliminar Grosso no sentido mais completo de incidência sobre condições mentais de modo a compreender a ilicitude do 75 publicado in CP 2005 243 ss O Crime Louco 293 fato e agir de acordo com tal valoração Mas tal noção de anomalia é substituída no texto de 26 de maio de 2001 pela de grave distúrbio da personalidade essa também como no texto precedente incidente nas condições mentais diferente do estado mental dos Projetos Pagliaro e Ritz como capacidade de compreender o significado do fato ou de agir de acordo com tal valoração Podemos então realizar um esforço ou uma reflexão suplementar motivada por algumas constatações Por mais que se trate de perfil léxico e semântico levandose em conta que as disciplinas jurídicas têm a característica peculiar de conter pouquíssimos termos realmente sinônimos logo se anuncia às vezes com vestes críticas ou polêmicas e outras vezes com subreptícia repetitividade uma série de argumentações que com o transcorrer do tempo vão perdendo cada vez mais o contato com os conhecimentos das disciplinas psiquiátricas adquiridos ao contrário de maneira suficientemente estável Assim acontece por exemplo com os distúrbios da personalidade como atualmente se tende a denominar um vasto e complexo âmbito grosso modo coincidentes com os limites de psicopatias chegando a ser definidos como simples anomalias de caráter quando há muito tempo já é sabido que estes constituem na realidade entidades bastante complexas e articuladas A técnica legislativa deveria então ser menos sintética e mais descritiva não permitindo assim que um termo científico possa ser reconduzido a múltiplos e diversos diagnósticos Foi e é essa a orientação das Regiões Toscana e Emilia Romagna escoltadas por ampla reflexão interdisciplinar promovida pela Fundação Michelucci de Fiesole e também com base no debate entre os operadores de saúde mental do Serviço Sanitário Nacional e da Administração Penitenciária orientação essa formalizada nos projetos de lei ex art 121 II Const apresentados na precedente legislatura e prontos para apresentação na que apenas se inaugurou Embora esses articulados utilizem os termos clássicos de imputabilidade capacidade de entender e querer e enfermidade em primeiro lugar definem a capacidade negativamente como a de quem não apresenta graves alterações da consciência e análise da O Crime Louco 294 realidade sendo capaz de avaliar o sentido dessa análise em relação à própria conduta Em segundo lugar relacionam a inimputabilidade à enfermidade ou à grave anomalia psíquica ou ainda à grave diminuição sensorial produtoras de um tal estado mental que exclua a capacidade de entender e querer Facilmente se percebe que mesmo essa linha de pensamento se move no sulco dos Projetos Grosso Ritz e Pagliaro claramente divergindo da orientação radical que etiquetada como ideológica pelo Relatório do Projeto Grosso independentemente da necessária reserva garantista estaria a repropor a ambiguidade e a periculosidade de uma sanção penal detentiva mais ou menos atenuada mas de todo modo necessariamente terapêutica 24 O tratamento dos sujeitos inimputáveis Bem sabem os especialistas das ciências do comportamento e os estudiosos das fórmulas mágicas das ciências jurídicas o quanto conceitos e palavras podem ser manipulados igualmente conhecendo perfeitamente a preponderância do factum sobre o dictum bem como o impacto da material e concreta substância aflitiva ou punitiva sobre a vida das pessoas envolvidas no circuito penal Nesse quadro constitui ensinamento exemplar o embuste das etiquetas que se aninhou na história do conceito de periculosidade social e nos institutos jurídicos e materiais das medidas de segurança detentivas Sem deixar de recordar as fundadas motivações dos movimentos de pensamento crítico e práticas alternativas à institucionalização total convém que nos limitemos a constatar que embora com amplas diferenças todos os Projetos de Reforma perpetuam a periculosidade social e as medidas de segurança ainda que com novas denominações O Projeto Grosso lúcida e realisticamente sintonizado com o modelo italiano de Reforma psiquiátrica embora acolhendo a instância doutrinária e clínica de substituição do critério da periculosidade social pelo da necessidade de tratamento e controle determinado pela subsistência das condições de incapacidade que deram causa ao delito de competência institucional O Crime Louco 295 diversa da justiça penal e portanto em elogiável ótica redutora de limitação aos delitos dolosos ou culposos contra a pessoa ou contra a incolumidade pública ou aos delitos contra o patrimônio puníveis com reclusão mas segundo o diverso sistema sancionatório da Reforma não escapa ao final de se ancorar no perigo concreto para a internação em uma estrutura fechada com finalidades terapêuticas Diversamente o Projeto Nordio não renuncia a definir o estado de periculosidade social mas subsumindo na definição geral os elementos que no Projeto Grosso representam apenas as condições para a aplicação das medidas prevê dentre outras a internação em uma estrutura judiciária de custódia com finalidades terapêuticas O Projeto das Regiões que vale repetir sendo setorial engatase no vigente sistema sancionatório não tendo podido levar em conta a recente Lei no 251 de 5 de dezembro de 2005 a chamada lei Cirielli de todo modo inverte a ordem entre periculosidade e medidas de segurança limitando a aplicação de quaisquer medidas de segurança aos delitos dolosos punidos com reclusão superior a dois anos e o encaminhamento a uma instituição somente a hipóteses de delitos dolosos punidos com reclusão não inferior a dez anos A noção de periculosidade social é integrada para além da probabilidade de prática de novos delitos com indicadores de verificação obrigatória a gravidade do fato e a circunstância do crime ser uma reiteração de precedentes condenações especialmente relevantes as condições que determinaram a incapacidade de entender e querer a relevância e subsistência das mesmas a adesão a possíveis intervenções terapêuticas a concreta situação relacional e ambiental inclusive em consequência do crime cometido Em seguida o Projeto dispõe sobre normas organizacionais e conscientemente normas de natureza regulamentar a fim de garantir a efetiva regionalização das instituições a redução de suas dimensões a vigilância atenuada o encaminhamento ao centro psiquiátrico de diagnóstico e tratamento de uma instituição O Crime Louco 296 penal por excepcionais exigências de segurança por determinação da Administração penitenciária recorrível nos termos do art 14 ter OP a distinção entre autonomia organizacional e de gestão interna do SSN e gestão do serviço de custódia externa por parte do DAP As modificações de caráter processual dizem respeito à perícia destinada exclusivamente à verificação da imputabilidade enquanto a determinação da periculosidade social é reservada ao juiz Disciplinam se em seguida o quesito pericial o procedimento das operações periciais com especial referência à pluralidade das visitas o quadro dos peritos psiquiatras O juiz deve motivar sua decisão sobre a imputabilidade de maneira específica e não com mera referência às conclusões periciais De especial relevância enfim embora um tanto desatualizada em relação à recente Lei no 46 de 20 de fevereiro de 2006 a chamada lei Pecorella sobre a irrecorribilidade das sentenças absolutórias por parte do MP e da Parte Civil que assim contempla a impossibilidade de um segundo juízo de mérito com base em novas perícias determinadas pela Corte de Apelação a previsão da ampliação da disciplina da revisão nos termos dos arts 629 ss CPP das sentenças de absolvição por incapacidade e das sentenças condenatórias fundadas na imputabilidade do condenado no caso de inconciliabilidade com homóloga decisão contida em outra sentença transitada em julgado e no caso de inconciliabilidade com decisão do magistrado ou do tribunal da execução penal As incertezas as demasiadas incertezas acumuladas em décadas especialmente nesse setor do ordenamento em que se somam crises e crises da crise da imputabilidade à da capacidade de entender e querer à da enfermidade à crise do próprio conceito de doença em geral para não falar da doença mental até à crise da noção de periculosidade social exigem afinal algum ancoradouro mas acredito que a tentação autoritária das certezas impostas terá vida curta Com efeito também na normatização da era da globalização é preciso ajustar contas com uma visão do ordenamento que ainda que O Crime Louco 297 se queira esquecer a lição de Flavio Lopez de Onate e de Calamandrei76 deve de todo modo excluir a certeza dos objetivos realistas de um ordenamento pósmoderno Como com efeito ensina Gustavo Zagrebelsky77 a fixidez que é um aspecto da certeza não é mais elemento portador dos atuais sistemas jurídicos o déficit de certeza daí derivado não podendo ser remediado Quando muito devese pensar em organizar essa tendência à transformação intrínseca ao ordenamento de modo a não tornála destrutiva de outros valores como a igualdade jurídica a previsibilidade a imparcialidade e o caráter nãoarbitrário da ação administrativa e judiciária pois é duvidoso que a certeza seja mesmo desejável 25 O Projeto Pisapia Os princípios da delegação ao Governo para promulgação do novo Código Penal elaborado pela Comissão presidida pelo advogado G Pisapia acolhem todos os argumentos críticos até aqui expostos e utilizando técnica normativa descritiva que explicita escolhas decisivas e claras finalmente dissolvem as antigas fórmulas híbridas secularmente cristalizadas As misturas entre pena e tratamento entre responsabilidade penal e terapia são finalmente superadas A imputabilidade encontra sua colocação sistemática no Título III O crime no art 22 e definitivamente desaparece a tão infame categoria da periculosidade social em consequência o Título IV dita somente a disciplina das penas distinguindoas em penas pecuniárias penas de interdição penas prescritivas dentre as quais não estão configuradas medidas de tratamento eou de controle e penas detentivas A consequência adquire um caráter épico pois são abolidos não só o HPJ e a Casa de tratamento e custódia mas também todas as outras medidas de segurança pessoais detentivas e nãodetentivas e patrimoniais 76 La certezza del diritto Milano1968 pag167 ss 77 Il diritto mite Torino1992 pag202 ss O Crime Louco 298 O art 22 alínea a do Título III define e disciplina a imputabilidade antes de tudo com consciente descrição negativa não aproximativa não é imputável quem não tem a capacidade de entender e querer Tratase portanto de definição até aqui bastante ampla O art 23 por sua vez se limitase a prever sem nenhuma definição a capacidade reduzida indicando em seguida as finalidades do tratamento e o regime sancionatório Naturalmente permanece inalterado o critério temporal de vinculação da imputabilidade ao tempus commissi delicti À verificação e declaração de inimputabilidade de todo modo vincula se à aplicação de uma medida de controle e tratamento Introduzidas categorias eventualmente alternativas à capacidade de entender ou de querer prosseguese na alínea b com a linha descritiva e explicativa de fórmulas amplas e abertas que tratam a incapacidade como inadequada ou de inexistente compreensão do significado do fato ou de todo modo de agir segundo tal capacidade de valoração A amplitude da fórmula estaria a permitir a subsunção direta tanto da enfermidade quanto dos graves distúrbios da personalidade no âmbito da inimputabilidade mas para evitar incertezas de ambientes psiquiátricos a alínea c especifica dentre as causas de exclusão da imputabilidade a enfermidade os graves distúrbios da personalidade a intoxicação crônica por álcool ou substâncias entorpecentes desde que relevantes em relação ao fato praticado Para ulterior determinação na alínea d excluise qualquer presunção de imputabilidade prevendose a necessidade de redefinir os limites nos quais o incapaz de entender ou querer por embriaguez ou entorpecimento responde pelo fato praticado por ter se colocado de forma culpável em tais condições As alíneas f g e h do parágrafo 1º do art 22 e o parágrafo 3º preveem a aplicação obrigatória de medidas de tratamento e controle indicando porém os seguintes critérios 1 Referência qualitativa à necessidade do tratamento 2 Referência quantitativa isto é duração não superior à duração da pena aplicável ao agente imputável 3 Determinação judicial da duração da medida O Crime Louco 299 4 Interrupção da execução da medida quando não se mostre mais necessária a fins reabilitadores 5 Agravação ou atenuação da medida ope iudicis no sentido da faculdade de impor quer uma medida menos restritiva conforme o bom andamento do percurso reabilitador quer mais restritiva no caso de violações de prescrições Finalmente o parágrafo 2º indica as medidas de tratamento e controle eventualmente aplicáveis em via alternativa ou gradual estruturas terapêuticas protegidas comunidades terapêuticas liberdade vigiada associada a tratamento terapêutico obrigação de se apresentar eventualmente associada a tratamento terapêutico encaminhamento aos serviços sociossanitários atividades laborativas ou prestação de serviços à comunidade Tratase pois de um amplo leque de medidas que exigirão a sábia conformação por parte do Juiz na necessária colaboração com os operadores sociossanitários O Crime Louco 300 VIII Conclusões Ernesto Venturini 1 As sentenças Propusme confrontar os percursos processuais dos quatro episódios os quatro incidentes na dicção basagliana para verificar se as sentenças exprimiriam uniformidade ou diferenças significativas Em primeiro lugar devo constatar duas aparentes obviedades A primeira diz respeito ao progressivo aumento da complexidade dos processos aumenta sua duração os graus de juízo aumenta o tamanho das sentenças a quantidade de referências a precedentes jurisprudenciais Aumentam especialmente a quantidade e o peso das perícias no primeiro processo de Gorízia atuaram somente o perito do MP e o da defesa no processo de Ímola no entanto interagiram nove peritos os seis do Tribunal eventualmente expressando opiniões contrastantes entre si Surgem no todo aquelas incertezas de juízes e peritos de que fala Maisto em sua análise sobre a imputabilidade Em especial tornase evidente a dificuldade de se encontrar um ponto de equilíbrio entre as lógicas de garantia individual próprias do sistema jurídicopenal e as exigências de prevenção e tratamento derivadas dos conhecimentos científicos das práticas pósreforma A segunda obviedade diz respeito à redação dos vereditos As sentenças formalmente parecem não querer entrar no mérito dos métodos de tratamento atuais limitandose a levar em consideração apenas a responsabilidade direta dos indivíduos baseandose na análise dos fatos como é natural Em alguns casos como no processo Savarin essa orientação é declarada explicitamente Nos processos Miklus e Savarin Basaglia é absolvido porque é demonstrada a ausência de qualquer envolvimento seu nos eventos que levaram aos fatos criminosos falta qualquer nexo de causalidade que ligue sua atuação como diretor da instituição ao crime No processo Miklus por acaso O Crime Louco 301 é a acusação do Ministério Público que entra pesadamente no mérito do processo de tratamento pondo em discussão a modalidade e a licitude das licenças dos pacientes exigindo a notificação preliminar das forças de segurança pública reforçando enfim o valor da custódia Mas no curso do processo facilmente se demonstra a inconsistência da acusação e a superficialidade das investigações Jogam a favor dessa solução os pareceres dos peritos o nomeado pelo juiz que nega a previsibilidade do evento e o da defesa que põe em discussão o próprio conceito de periculosidade social por enfermidade mental Também no processo Savarin a acusação põe em discussão a licitude e regularidade das liberações dos pacientes São utilizados argumentos inconsistentes fundados em meros pretextos como o analfabetismo da mãe do paciente liberado Percebemse nas argumentações da acusação instâncias ideológicas que pretendem frear o processo de desinstitucionalização Objetase em essência quanto à legitimidade da liberação de pacientes que com base em diagnósticos preconceituosos são tidos como socialmente perigosos Será fácil demonstrar que Basaglia agiu no rigoroso respeito das normas em vigor Também nesse caso são os peritos que reforçam a posição de Basaglia o perito do juízo com efeito não demonstra nenhuma incerteza ao declarar que o paciente no momento da liberação não era perigoso nem para si nem para terceiros No segundo incidente de Trieste e no de Ímola é fortemente chamada a responsabilidade institucional do médico em relação ao paciente essa responsabilidade não pode ser eliminada nem pelo caráter episódico da relação como no caso Trani nem por razões de caráter organizacional inerentes à complexidade do sistema de tratamento como no caso de GM Não se excluem as concausas e corresponsabilidades mas estas segundo os juízes não reduzem a relevância da relação médicopaciente em seus deveres e direitos No processo de Trieste a acusação se move sobre elementos inconsistentes tentando demonstrar a imperícia dos médicos na avaliação diagnóstica da paciente Mas também nesse caso é o O Crime Louco 302 consultor técnico da Procuradoria que redimensiona a acusação demonstrando como o eventual erro não é de tal monta a configurar um crime de culpa profissional A sentença absolve os acusados demonstrando a falta de qualquer nexo causal entre a omissão imputada aos médicos e o evento criminoso Diverso é o destino dos acusados nos processos de Ímola aqui é mais complexa a verificação das responsabilidades a coordenadora da residência é condenada no processo em primeiro grau e o médico julgado com o rito abreviado é condenado por homicídio culposo com sentença definitiva da Cassação Nesse caso os peritos do MP falam de uma previsibilidade do evento pondoa em relação com o comportamento dos acusados Em essência é na fase instrutória no envio a juízo na controvérsia entre peritos mais do que nas sentenças que se pode mais facilmente perceber o desencontro ideológico que perpassa o tema do tratamento e do controle é naquele âmbito que se podem identificar os argumentos críticos as hibridações entre a responsabilidade penal e a terapia mas também permitamme dizer os preconceitos que paralelamente a qualquer outro argumento influenciam as decisões dos peritos e dos juízes 2 O erro profissional O que dizer a propósito da responsabilidade dos médicos assistentes Logo me viria a objeção de que hoje no setor sanitário público e especialmente no psiquiátrico as intervenções terapêuticas são cada vez menos ligadas à relação médicopaciente e cada vez mais determinadas por outros fatores requerem o envolvimento de um grupo de trabalho são feitas por mais pessoas reportamse à organização sanitária como um todo A exclusividade do tratamento por parte do médico e assim sua exclusiva responsabilidade penal e civil pode parecer anacrônica mas não é de modo algum mesmo diante de uma complexidade de sujeitos e funções O Crime Louco 303 permanece invocada a responsabilidade do indivíduo Eis porque é exatamente a análise atenta dos fatos que constitui a fase crucial do processo permite separar as responsabilidades dos indivíduos das responsabilidades da organização como um todo Essa análise deveria distinguir porém o erro humano evento não frequente mas tampouco excepcional fruto de circunstâncias nem sempre facilmente previsíveis do que ao contrário se caracteriza como culpa profissional grave por relevante imperícia imprudência e negligência ou por inobservância de leis regulamentos e disciplinas Reportandonos à casuística deste livro que reflexões podem ser feitas quanto à problemática do erro humano No caso Trani como já mencionado o perito da Procuradoria admite por exemplo um erro dos médicos acusados mas esclarece que este não fora de tal monta a configurar o crime de culpa profissional Vale a pena pois refletir brevemente sobre a distinção entre erro médico leve e culpa profissional grave Para esse fim utilizaremos a catalogação dos erros incluída no documento Risco Clínico na Saúde elaborado pelo Ministério da Saúde da Itália No caso Miklus o erro pareceria ser de tipo latente imputável a carências na planificação de estratégias foi subestimado o papel negativo que o contexto no caso a mulher de Miklus poderia ter durante a licença do paciente Não por acaso no novo paradigma do tratamento serão exatamente os familiares que passarão a assumir cada vez mais um papel ativo na reabilitação do paciente No caso Savarin o problema também é de tipo organizacional demonstrase a cisão entre a velha anacrônica organização o Centro de Higiene Mental administrado sob uma ótica burocrática e o modelo da desinstitucionalização que ao contrário exige dos profissionais uma profunda responsabilização Serão os futuros Centros de Saúde Mental que irão recompor no interior do projeto terapêutico as anteriores divisões No episódio que diz respeito à senhora Trani os médicos segundo o MP teriam cometido um erro de habilidade técnica slips equivocandose no diagnóstico Tal hipótese porém O Crime Louco 304 demonstrarseá durante o processo incorreta e fundada em mero pretexto Se se quisesse falar de erro terseia que se referir à omissão dos enfermeiros que não comunicaram as ameaças feitas pela paciente No caso de Ímola enfim os erros do médico foram considerados pelos peritos como sendo do tipo comissivo por imperícia na administração dos remédios Em minha opinião porém tiveram maior relevância os erros do tipo omissivo na gestão das problemáticas existenciais do paciente e de sua crise Todavia mais relevantes do que o erro humano foram os erros organizacionais latentes comportando equívocos comunicativos dentre os quais sem dúvida e antes de tudo os mais importantes e determinantes foram as graves violações e omissões da cooperativa que administrava a residência As posteriores mudanças estruturais e organizacionais do DSM procuraram suprir tais carências Sou levado a pensar no entanto que em nossos serviços de saúde mental os erros infelizmente não parecem destinados a se reduzir Os operadores com demasiada frequência estão aprisionados em uma cultura tecnicista de rendimentos carente de raciocínio clínico conforme um modelo de pensamento fundado em uma espécie de teste de múltipla escolha que confunde os meios com os fins e se deixa esmagar sob o esquema redutivo do DSMIV Esse comportamento sacrifica qualquer criatividade crítica do pensamento aumentando em consequência o risco de erro Ao contrário há quem tenha uma visão otimista da condição dos serviços julgando prioritário declarar por exemplo quão deslocado seria hoje reportar a psiquiatria ao velho registro basagliano Se tal declaração servir para reprovar quaisquer posturas de mitificação do passado a insistir em retóricas e nostalgias de supostas idades de ouro em vez de enfrentar os desafios do presente então poderemos compartilhá la Se no entanto pretende zerar uma cultura de transformação institucional porque não homogênea e embaraçosa para os atuais projetos de transformação dos entes públicos em empresas será preciso afirmar então que o contrário é que é verdadeiro que na O Crime Louco 305 psiquiatria da Lei 180 seja no interior dos serviços de saúde mental seja nos tribunais verificase muito pouca presença do registro basagliano Quase não se encontra sua coragem seu proceder socrático sua entrega seu rigor científico Há muito pouco basaglia e ao contrário precisaríamos de tanto Definitivamente não é tão importante catalogar os erros Muito mais importante é produzir nas organizações sanitárias a efetivação de mecanismos eficazes de controle e prevenção permitindo melhor gestão das consequências sociais e jurídicas do erro Sendo evidente que o erro médico é um evento plausível não podemos submeter os médicos envolvidos ao desgaste de enfrentar sozinhos um percurso judiciário muitas vezes alucinante percurso que só se concluirá após vários anos impondo custos elevados tanto do ponto de vista psicológico quanto social e profissional Na Itália o número de causas contra médicos está em progressivo aumento e continuará a aumentar Se é justo pôr fim ao comportamento submisso do paciente e de seus familiares diante de um poder médico autoreferenciado não se pode deixar de notar o quanto esse aumento seja atribuível sobretudo a lógicas de mercado à avidez dos indivíduos e às distorções impostas pelas seguradoras Naturalmente muito está sendo feito nesse sentido por parte dos sistemas sanitários mas ainda resta tanto a fazer Certamente o caso de Ímola constitui um exemplo negativo no que se refere ao comportamento desejável em circunstâncias similares Com efeito a Empresa Sanitária Local e a Cooperativa não quiseram anuir logo após o incidente com as reivindicações dos familiares demonstrando miopia e escasso apoio a seus próprios empregados com o que induziram um percurso procedimental longo e mortificante para os acusados Poderseia objetar que é prática consolidada no processo civil se orientar pelo resultado do processo penal os próprios institutos seguradores se movendo sob tal perspectiva Mas o contrário também é verdadeiro É certo que a solução de um contencioso civil e nesse caso tratavase de um acidente de O Crime Louco 306 trabalho teria tornado menos áspero o confronto penal sem que se coloque em dúvida a absoluta autonomia dos dois processos Mais uma consideração a respeito do cenário das causas médicas indenizatórias no qual estamos nos movendo seria preciso ressaltar o papel que jogam na incidência dos erros profissionais as políticas da chamada racionalização das despesas sanitárias Essas políticas reduzindo drasticamente os recursos frequentemente levam a organização a se mover nos limites da segurança na corda bamba provocando falta de motivação e confusão entre os operadores Mas quase nunca os promotores dessas políticas se sentam no banco dos réus 3 O incidente Poderia parecer que essas considerações sobre o erro estariam a liquidar o conceito de incidente usado por nós se há erro não há incidente A teoria do incidente somente se justificaria como um expediente para escapar de um doloroso dilema excluindose o erro técnico do psiquiatra estarseia confirmando a periculosidade social do paciente psiquiátrico que no entanto se quereria negar admitindo se a previsibilidade do evento estarseia confessando a culpa do psiquiatra Dito de outra forma os eventos aqui apresentados poderiam ter sido evitados Para responder é preciso estar atento e não confundir os planos de análise sobre os quais estamos nos movendo O da análise do erro técnico é um plano abstrato um plano do fácil post hoc Não diz respeito ao passado voltase sim para o futuro servindo para avaliar a experiência e evitar que os incidentes se repitam O plano da realidade o plano fático das responsabilidades é outra coisa Essa confusão é bastante comum e com frequência espelhase exatamente nas análises periciais Se nos colocarmos no plano fático deveremos ter presentes pelos menos dois tipos de problemas O primeiro diz respeito ao conhecimento dos fatos devemos supor que além dos O Crime Louco 307 fatos descobertos existam outros que desconhecemos e podem ter sido determinantes na dinâmica dos eventos Como psiquiatra sei bem por exemplo que uma intervenção terapêutica conscienciosa e bem conduzida pode ficar comprometida simplesmente por um olhar uma palavra dita por um estranho uma circunstância fortuita Todo um trabalho difícil e complexo pode ser destruído em um instante sem que sempre possamos saber as razões Naturalmente a busca da responsabilidade jurídica necessariamente diz respeito apenas aos fatos conhecidos mas a consciência da complexidade das relações própria do âmbito psíquico deveria nos levar a prudentemente considerar com profundidade e atenção a hipótese do incidente O outro tipo de problemas se refere à responsabilidade difusa de que falei pouco antes a propósito das organizações sanitárias Podemos supor que a pessoa tida como responsável por um evento muitas vezes seja apenas aquela que foi encontrada com o famoso fósforo aceso nas mãos quando aconteceu o evento Mas perguntome não seriam igualmente responsáveis todos aqueles que anteriormente passaram esse fósforo entre as mãos Não teria talvez uma forte carga de responsabilidade aquele que decidiu operar Michela Trani de leucotomia invalidandoa por toda a vida e reduzindo sua possibilidade de controle dos impulsos Ou será que não seria responsável por despedaçar uma vida aquele que mandou MG para o manicômio judiciário por uma simples resistência a funcionário público E será que não teriam culpa aqueles que alimentando o clima de guerra com base no atentado de que foi objeto Miklus provocaram lhe um sentimento angustiado de alarme contra uma realidade persecutória O escritor Fredrich Dürrenmatt nos ajuda a compreender esse aspecto com um paradoxo Em seu romance Justiz 1987 fala de um rico e conhecido suíço Isaak Kohler que mata um ilustre professor universitário no meio de um restaurante não sem antes têlo cumprimentado cordialmente Após se deixar docilmente prender e elogiar os juízes pela condenação a vinte anos que lhe foi imposta vai satisfeito para a prisão e se torna um detento modelo sem jamais revelar contra qualquer lógica investigatória alguma motivação para seu O Crime Louco 308 gesto Um dia porém Kohler convoca à prisão o jovem advogado Spat pedindo que reexamine o caso a partir da hipótese de que não seja ele o assassino Tratase de um desafio aparentemente sem sentido todos viram o homicida disparar mas o desafio acaba por ser vencido concluindo com a absolvição de Kohler Com efeito demonstrase que existiam outras pessoas com sérios motivos para cometer o homicídio e que foram impedidas de fazêlo somente por circunstâncias fortuitas como somente por circunstâncias fortuitas o homicida se achava no restaurante sua ação fora apenas uma dentre as tantas declinações possíveis da realidade e sua culpa não era maior do que a de tantos outros O incidente parece nos dizer Dürrenmatt não seria talvez a trajetória de uma das tantas oportunidades conforme a teoria dos incidentes latentes Em todo caso para além de qualquer digressão literária ou de qualquer provocação fica claro a partir da documentação produzida que os eventos de Trieste e o de Gorízia não eram absolutamente previsíveis constituindose portanto em incidentes Para o fato de Ímola é possível supor certa previsibilidade mas como precisarei mais adiante não a previsibilidade que aparece nas sentenças 4 A imputação de homicídio culposo em delito doloso e a posição de garantidor Tentarei focalizar agora o problema da imputação de homicídio culposo em delito doloso No caso Miklus falase de cooperação em homicídio culposo no caso Savarin de homicídio culposo plúrimo e no caso Trani de cooperação em homicídio culposo Neste caso o juiz nota que a pouco feliz formulação da Acusação pode fazer surgir a dúvida sobre se a imputação feita aos médicos não consistiria em uma participação culposa destes em um homicídio doloso cometido por outrem figura claramente atípica pois não prevista na lei como crime Mas no caso de Ímola falase explicitamente em homicídio culposo O que se atribui aos acusados é uma clássica hipótese de O Crime Louco 309 cooperação em um homicídio culposo autônomo em relação a um delito voluntário posto em prática por um paciente Atribuise aos médicos a causação da morte de outrem por imprudência imperícia e negligência mediante a concessão de uma licença a omissão de uma internação a suspensão de remédios É preciso ter presente que os fatos Miklus e Savarin antecedem a entrada em vigor da lei de reforma psiquiátrica e portanto as acusações são condizentes com a normativa em vigor naqueles anos Para ambos os casos foi formulada ainda uma segunda acusação de descumprimento de dever que faz referência exatamente à Lei 1909 O caso Trani se situa no meio do percurso entre o velho e o novo modelo de tratamento O incidente acontece em 1977 e a sentença de primeiro grau é proferida em 1980 quando a lei da reforma fora há pouco promulgada Nesse caso em todos os três graus de jurisdição as sentenças se colocam na esteira da nova lei reforçando as instâncias inovadoras Seria de se esperar que também no processo de Ímola fossem ratificados os princípios de tratamento da lei de reforma fundados em instâncias terapêuticas e não mais em instâncias de controle social Mas não foi assim Ou melhor os princípios da reforma são invocados em palavras mas são invertidos em sua essência através do recurso ao conceito da posição de garantidor do psiquiatra em relação a terceiros Examinando os processos anteriores que se desenvolveram sobre hipóteses acusatórias similares terseia a impressão de que a posição de garantidor e a imputação de concurso em homicídio culposo estariam sendo quase mais temidas do que verdadeiramente buscadas uma espécie de força de dissuasão usada para reconduzir o psiquiatra a uma função de controle social Mais cedo ou mais tarde no curso da fase instrutória ou no julgamento introduziamse dissertações interpretativas sobre a leitura cruzada dos dois artigos do Código Penal o art 42 e o art 113 contornandose uma acusação que surgia como despropositada e excessiva talvez mesmo para os próprios juízes Sob essa ótica se move por exemplo o douto recurso do advogado Kostoris contra a sentença proferida na Apelação no O Crime Louco 310 processo Trani Na mesma perspectiva o requerimento de rejeição do incidente probatório promovido pelo GIP no processo de Ímola O requerimento que refuta qualquer hipótese de concurso culposo em ilícito doloso é especialmente documentado Faz referência a recentes aprofundamentos jurisprudenciais segundo os quais seria essencial a consciência da cooperação para que se possa verificar o requisito psicológico adicional e indefectível da participação ressalta ainda que a exigência de unicidade do crime em concurso excluiria a possibilidade de uma diferenciação do elemento subjetivo entre os corréus Mas sobretudo o GIP no requerimento de rejeição refuta a hipótese de uma posição de garantidor dos acusados Com efeito esse tipo de responsabilidade pressupõe a precisa identificação do resultado a ser impedido supondo a disposição por parte do sujeito garantidor de um concreto domínio do curso causal que o provoca assim indicando também sua possibilidade de intervir sobre o mesmo de maneira significativa Estes pontos não correspondem à situação em exame A hipótese da posição de garantidor seria rejeitada pelo GIP também sob o aspecto objetivo causal pelo simples fato de estarem os acusados chamados a responder não mais por um fato próprio mas por um fato de outrem O MP acolhe essas instâncias e decide arquivar o procedimento por ser infundada a notícia de crime na medida em que os elementos trazidos pelas investigações preliminares não parecem idôneos a sustentar a acusação em juízo não parecendo que tenha resultado uma doença em sentido técnico no referido homicida mas sim mais simplesmente uma falha no controle farmacológico da preexistente patologia psicótica Como é sabido o requerimento foi rejeitado pelo GUP que não entrou no mérito das argumentações do colega limitandose a citar em matéria de responsabilidade profissional a sentença no 4827 da Suprema Corte Seção Pen IV de 3 de fevereiro de 2003 Percorrendo a tese positiva da admissibilidade da imputação o GUP de certa forma escreve a sentença antes mesmo de qualquer debate processual Não rebaterá uma linha da Defesa que nega O Crime Louco 311 qualquer responsabilidade do médico atolandose em uma disputa estéril sobre a eficácia de alguns miligramas de psicofármaco Mas na realidade o GUP78 comete um equívoco quando confunde o fato de o médico assumir diretamente a posição de garantidor em relação ao paciente com o fato não contemplado normativamente conforme a lei da reforma psiquiátrica de assumir tal posição em relação a terceiros por não ter impedido a morte de C que na qualidade de destinatário de uma posição de garantidor tinha o dever jurídico de impedir O juiz em essência ratifica a legitimidade da acusação de concurso culposo em delito doloso evocando de forma absolutamente discutível a sentença da Cassação Cass Pen seção IV 9 de outubro de 2002 no 39680 que afirma a responsabilidade de quem abandonando material perigoso pode provocar um dano a terceiros Mas comparar uma pessoa ainda que esta pessoa seja um paciente psiquiátrico perdoemme a amarga ironia a um material viscoso é algo totalmente desconcertante Por outro lado é oportuno observar ainda em relação à evocação pelo juiz da posição de garantidor que não estamos diante de pessoas interditadas o parecer pericial de incapacidade é posterior aos eventos Trata se de um erro conceitual e um preconceito confundir os doentes psíquicos com os interditados Igualmente anacrônica diante das mais modernas concepções da doença mental é a assimilação do paciente psiquiátrico ao menor Por outro lado o juiz cai em contradição porque para sustentar a responsabilidade garantidora do psiquiatra ressalta a inadmissibilidade do ato doloso por parte do paciente enquanto incapaz de entender e querer mas logo depois admite que não se pode excluir que o paciente possa cometer um ato intencionalmente A esse propósito a moderna doutrina fala com relação aos estados psicológicos dos incapazes de entender e querer em pseudodolo e pseudoculpa 78 Nota à edição brasileira GUP é a abreviação de Giudice dellUdienza Preliminare ou seja o juiz da audiência preliminar aquele que decide sobre a admissibilidade da acusação e assim sobre o envio a juízo O Crime Louco 312 Na realidade a Cassação no processo Trani introduziu um conceito de extremo interesse que vale a pena destacar a morte da criança por obra de Trani não pode ser qualificada como delito doloso devendose entendêla como de fato o foi um puro e simples fato jurídico isto é um acontecimento modificador da realidade com consequências jurídicas mas não enquadrável no conceito de crime por absoluta falta do elemento essencial da vontade Trani foi absolvida na instrução por total incapacidade de entender e querer no momento do fato Portanto a questão há de ser posta como corretamente o foi pelos juízes de mérito exclusivamente no plano do nexo de causalidade Assim enquadrada teve a única exata e lógica solução como apontado nas conclusões da sentença impugnada Como se vê a questão do homicídio culposo em delito doloso não está resolvida ainda esperando por uma solução 5 Uma sentença discutível Baseandome na documentação produzida permitome afirmar que a sentença da Cassação no 10795 de 11 de março de 2008 foi infundada Ou melhor a Cassação simplesmente verificou a legitimidade das decisões dos juízes de mérito reafirmou princípios de direito mas nem poderia ser de outra forma deu como certas a validade e a indiscutibilidade dos pareceres dos peritos do juízo que no entanto de fato não o são79 O que surge amplamente discutível é exatamente a demonstração do nexo de causalidade e do conceito de previsibilidade e possibilidade de evitar o resultado Nesse caso é errado o nexo de causalidade baseado na inidônea utilização dos psicofármacos O verdadeiro nexo de causalidade 79 Esta aliás a opinião de ilustres expertos Fiori A Buzzi F Problemi vecchi e nuovi della professione psichiatrica riflessioni medicolegali alla luce della sentenza della Cass Pen N 107952008 Rivista Italiana di Medicina Legale n 6 2008 pagg 1438 1455 O Crime Louco 313 para se compreender as razões do homicídio de CA reside eventualmente no comportamento da vítima no fato desta assumir um papel objetivamente persecutório independentemente de qualquer boa intenção Esse nexo de causalidade se torna evidente no comportamento reativo de MG com precisas e explícitas ameaças Poderseia objetar que MG proferia ameaças também para outros operadores da estrutura mas examinando bem estas eram profundamente diversas eram diversas com um tom depressivo ligadas ao luto sofrido As voltadas contra CA eram ao contrário raivosas vingativas inequívocas pessoais A dinâmica dos fatos especialmente o clima de desafio e confronto físico entre os dois ocorrido poucas horas antes do crime tornam manifesto esse nexo causal Ainda que atenuada pela introdução do conceito de concausa vai nesta direção a sentença de Ímola de 23 de junho de 2006 que condena a responsável pela estrutura adotando uma reconstrução dos fatos diversa da exposta pelo Tribunal de Bolonha Mas a Cassação retoma a sentença do Tribunal de Bolonha e ratifica o nexo causal identificado pelos peritos do MP Segundo este parecer a causa do homicídio deve ser formulada fora de qualquer enunciação mais elaborada nestes termos toda suspensão ou redução de determinada quantidade de psicofármaco cuja eficácia tenha sido demonstrada em um esquizofrênico paranóico inequivocamente conduz ao cometimento de um ato criminoso Naturalmente não se quer negar o peso que uma redução farmacológica possa ter sobre as condições psíquicas de um sujeito ou sobre seu diminuído controle dos impulsos mas francamente este reducionismo e este automatismo nada têm de científico Como tentei demonstrar a periculosidade social por doença mental é bastante discutível não podendo existir qualquer determinismo entre o simples diagnóstico de paranóia e um comportamento de periculosidade Podese falar no máximo em probabilidade mas não em certeza São outros os fatores que sustentam a periculosidade de um sujeito sua história as violências sofridas e praticadas o estigma etc Naturalmente quando estes O Crime Louco 314 fatores se fazem presentes no paciente psiquiátrico e provavelmente isto acontecia no caso de MG podem concorrer para favorecer a periculosidade do sujeito mas a problemática não pode ser reduzida a um simples sistema de vasos comunicantes entre um diagnóstico e a quantidade de determinado psicofármaco presente no sangue O raciocínio da Cassação se baseia na demonstração de um nexo de causalidade na dinâmica do fato inexata e viciada por um preconceito ideológico a automática periculosidade do paciente portador de esquizofrenia paranoide Os peritos não utilizaram corretamente os critérios probabilísticos e sobretudo não se valeram de um critério de contraprova A sentença baseandose em um parecer técnico errôneo contradiz a sentença Franzese pressupondo uma conduta devida que impedisse o resultado hic et nunc a qual na realidade não o teria impedido Esta sentença se constitui portanto em um erro jurisprudencial à maneira de outro qualquer erro médico 6 A voz ausente Do quanto expresso nesse livro resta absolutamente evidente que a verdadeira periculosidade reside na noção de periculosidade social por doença mental Este conceito e as consequentes medidas de segurança em Hospital Psiquiátrico Judiciário têm sido responsáveis por grandes sofrimentos e grandes injustiças Há que se concordar portanto com quem deseja sua imediata eliminação80 Em especial há que se concordar com as modificações ao Código Penal propostas pela Comissão Justiça da Câmara presidida por Giuliano Pisapia Analogamente entendo que se deva dar o mais convicto apoio ao Projeto das Regiões coordenado pela Fundação Michelucci e 80 Vejase Documento della Commissione congiunta delle Società Italiane di Criminologia Medicina legale e Psichiatria publicado em Quaderni Italiani di Psichiatria volXXIV março 2005 e posteriormente nas revistas oficiais das três sociedades Sociedade Italiana de Criminologia Sociedade Italiana de Medicina Legal e Sociedade Italiana de Psiquiatria O Crime Louco 315 apresentado ao Parlamento o qual pretende o esvaziamento dos HPJs e a implantação de soluções alternativas ao encaminhamento para aquelas instituições Dentre outras coisas tais atitudes se fazem imperativas diante dos trinta e dois anos de uma lei de reforma que foi mutilada em sua plena realização Entendo ainda que é preciso análoga determinação para abolir a total inimputabilidade por enfermidade mental naturalmente estandose atentos a não confundir o caso de graves alterações orgânicas do cérebro com o de graves estados confusionais81 Com efeito os estudos das neurociências em relação às psicoses graves prudentemente têm verificado a impossibilidade de se excluir plenamente toda capacidade de entender e querer do paciente psiquiátrico Além disso como já amplamente argumentado declarar o doente mental totalmente incapaz de entender e querer significa prejudicar as possibilidades terapêuticas inseridas no processo de responsabilização Significa em essência violar o direito da pessoa ao tratamento Em todo caso é preciso ter consciência de que não obstante qualquer tipo de intervenção normativa o tema da doença mental sempre permanecerá em aberto pois neste campo são poucas as certezas e quanto mais aprendemos mais se torna evidente o quanto ainda desconhecemos É imperativo portanto um comportamento de grande cautela e inteligente abertura Um comportamento que corretamente interprete por exemplo o significado da posição de garantidor atribuída ao psiquiatra Quando se fala em posição de garantidor vimos que do ponto de vista jurídico fazse referência a duas configurações a de proteção e a de controle Com a primeira devemse afastar os riscos e 81 Ibidem A hipótese de um vício parcial da mente é portanto a que hoje melhor corresponde ao atual sentir científico que vê o doente mental na maioria dos casos como imputável embora com uma capacidade limitada por sua doença Em nossa opinião consequentemente o vício parcial da mente deveria ser a figura a que com maior frequência deverseia recorrer diante de um distúrbio mental cuja expressividade sintomatológica no momento do fato vinculese causalmente ao delito praticado O Crime Louco 316 ameaças em relação ao bem jurídico protegido com a segunda devem se evitar perigos para terceiros por parte do bem jurídico posto sob controle Tratase induvidosamente de funções diversas que deveriam ser atribuídas a sujeitos diversos Depois dessa sentença como anota o colega Euro Pozzi82 impõese ao psiquiatra a tarefa de responder a esse paradoxo lógico com efeito cumprese o primeiro dever desatendese o segundo e viceversa respondese ao que é ditado pelo segundo dever e inevitavelmente se trai o primeiro Em outras palavras ou defendemos o paciente da doença e às vezes também da sociedade que com frequência o marginaliza ou defendemos a sociedade do louco fonte de perigo e assim o marginalizamos Em suma a sentença da Cassação está em aberta contradição com a própria função do ato de tratamento comprometendo em seus fundamentos a relação de confiança entre o médico e seu paciente Isso não diz respeito tanto ou somente à lei 180 a sentença entra sim em conflito com o próprio Juramento de Hipócrates É de se perguntar neste ponto como passados mais de trinta anos da promulgação da lei e após o novo paradigma do tratamento ter se enraizado tão profundamente na prática ainda seja possível adotar uma símile leitura da responsabilidade do médico assistente O que parece emergir é a percepção de um substancial atraso no qual se movem determinados setores da jurisprudência Muitas vezes no cotidiano das práticas dos serviços de Saúde Mental percebe se claramente que para além de afirmações genéricas existe no pensamento oculto de alguns juízes a atribuição de uma substancial periculosidade aos pacientes psiquiátricos esquizofrênicos Os Tratamentos Sanitários Obrigatórios e a subsistência dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários instituições vergonhosas e arcaicas são exatamente por eles interpretados como uma implícita confirmação desta periculosidade Pressionados pelas tantas instâncias de insegurança percebida não desconhecem a necessidade de 82 Euro Pozzi Posizione di garanzia e Legge 180 compatibilità o antitesi O Crime Louco 317 tratamento do paciente mas enfatizam as exigências de controle social sem entender que é exatamente a resposta à necessidade de tratamento que permite resolver tais exigências No entanto não são os juízes que representam o aspecto mais crítico do problema Os juízes no fundo escutam os expertos e fundam suas considerações naquilo que estes elaboram Assim é com amargor que se há de admitir que no próprio campo médicolegal e criminológico ainda se revelam graves atrasos na recepção do novo paradigma psiquiátrico Posicionandose nos limites dos sistemas sanitários nem sempre participantes das práticas dos serviços territoriais não envolvidos em uma reforma que mexeu profundamente com o paradigma do tratamento na Saúde83 mas não no paradigma do direito na Justiça alguns desses colegas custam a se libertar dos preconceitos da periculosidade social do paciente psiquiátrico e dos rígidos esquemas dos diagnósticos tradicionais Às vezes é exatamente o jogo dialético do processo que os constringe a assumir papéis de que não estão totalmente convencidos Outras vezes como já descrito é a perícia a pôr em movimento mecanismos inconscientes nos quais se segue a rigidez diagnóstica do colega e se ostenta um erudito conhecimento da velha psiquiatria Esta é uma condição estrutural na qual alguns dos meus colegas estão aprisionados A existência do Hospital Psiquiátrico Judiciário e a manutenção do conceito de periculosidade social e das medidas de segurança não aprisionam apenas os pacientes aprisionam também os profissionais e os expertos Qual poderia ser portanto a solução para sair do impasse atual É preciso que a sociedade reconquiste a paixão pela justiça e a coragem das reformas Pois é por exemplo exatamente pela falta de reforma dos aparatos psiquiátricojudiciários que o paciente está totalmente ausente destes contextos Não se ouve sua voz não se conhecem suas razões não existe a necessidade de se confrontar com suas 83 Vejase Venturini E Prendersi cura della cura Psicoterapia e Scienze Umane Franco Angeli 2009 XLIII 3 381398 O Crime Louco 318 necessidades Incapaz de entender e querer o cidadãopaciente psiquiátrico não existe Tanto é rica sua presença e seu protagonismo em alguns serviços de saúde mental quanto é imensamente vazia sua realidade no sistema judiciário Ali estão os expertos que falam em seu lugar Mas seria verdadeiramente possível falar no lugar de outra pessoa Enquanto a voz do cidadãoloucoresponsável por um crime não estiver presente nas salas de audiência dos tribunais enquanto não for reconhecido seu direito de ser julgado e eventualmente até condenado enquanto a linguagem do poder não tiver que se confrontar com a linguagem dos diferentes dos loucos compreendendo que os cânones da normalidade não são absolutos mas sim relativos e contextuais enquanto isso não acontecer a linguagem dos expertos será um balbucio presunçoso e contraditório e ainda teremos de prever tanto sofrimento e tantas dores incidentes O Crime Louco 319 BIBLIOGRAFIA Bibliografia geralAAVV Crime and the Responsible Community A Christian Contribution to the Debate about Criminal Justice a cura di Scott J e Miller N London 1980 AAVV Tutela della salute mentale e responsabilità penale degli operatori A cura di A Manacorda Perugia Centro studi e Politici della Regione Umbria 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pensiero Scientifico Roma 1982 Debuyst C Dangerosité et justice pénale Ambiguïté dune pratique Genève Masson 1981 Debuyst Ch La notion de dangerosité maladie infantile de la criminologie in Criminologie 17 7 1984 Dozols J Lalonde M Poupart J Dangerosité et pratique criminologique en milieu adulte in Criminologie 17 25 1984 Elbogen E B Johnson S C The Intricate Link Between Violence O Crime Louco 333 and Mental Disorderin Arch Gen Psychiatry vol 66 n2 feb 2009 Foucault M Lévolution de la notion d individu dangereux dans la psychiatrie légale in Déviance et société 5 403 1981 Gatti U Traverso G B Malattia mentale e omicidio Realtà e pregiudizi sulla pericolosità del malato di mente in Rass Criminol 10 77 1979 Girolami P Jourdan S Lo psichiatra e il suicidio del paziente Viaggio attraverso le categorie giuridiche delle obligations de sécurité e degli obblighi di protezione Riv It Med Leg 1 53 2001 Guze S B Woonxuff R A Clayton P J Psychiatric disorders and criminality in JAMA 227 641 1974 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morto queria que cortassem seu pescoço o que não lhe causaria nenhum mal pois já estava morto VENTURINI p10 Na entrevista com os peritos Giovanni se mostra tomado por delírios e medos privado da responsabilidade por seus gestos é privado do decorrer do tempo Diz Já estou morto Mais do que um delírio essas palavras parecem uma reflexão sobre o trágico destino que o persegue e que chegou ao seu ato final A profecia se realiza a derrota é irremediável agora ele está no buraco negro do HPJ Em 23 de setembro de 2003 Giovanni morre no HPJ de Reggio Emília VENTURINI p3940 Quem responde pelo assassinato de Rivière Giovanni e tantos outros mortificados pela pedra sepulcral do silêncio como disse Althusser Ernesto Venturini com sua obra O crime louco traznos a apresentação da repetição irrefletida que durante mais de dois séculos tem sido recolhida do cotidiano dos procedimentos que movimentam os tribunais criminais sobretudo quando o processo judicial visa esclarecer a responsabilidade em caso de crime cometido por pessoas designadas como doentes mentais a partir da tese que os julga como incapazes de entender e de querer antes mesmo de seu atocrime O Crime Louco 337 Nesse livro percorremos a trajetória dirigida por essa tese antecipada instalada como pressuposto a orientar a leitura dos fatos e a condução dos processos Fomos aos confins dessa presunção para constatar que invariavelmente o destino processual e a vida dos envolvidos nesses casos sofrem a consequência mortífera de tal suposição Como se fosse natural desde o século XIX não é levamos em consideração a responsabilidade do sujeito que por vezes enlouquece sua voz estará ausente do processo expertos falam em seu lugar O que esperar da tese Incapazes de entender e de querer A partir de quatro casos diferentes o autor nos mostra o mesmo o cúmulo do absurdo gerado pela tese de que os ditos loucos são incapazes de responder por seus atos O sistema de justiça italiano decidiu mover suas engrenagens a procura dos responsáveis pelo incidente uma vez que os autores do ato não poderiam sêlo As investigações focaram naturalmente os psiquiatras e trabalhadores dos serviços de acompanhamento daqueles tidos como responsáveis pelos loucosperigosos Entenderam que os especialistas em saúde mental devem estar em posição de alerta permanente admitindose que o dever de impedir danos a terceiros resulta da posição de garantidor dos profissionais que acompanham o tratamento nas redes de saúde mental O que eles devem garantir O controle da ordem social Essa necessidade e suposto dever é herdeira da suposição de que os ditos loucos são monstros perigosos Sendo assim desde a desconstrução dos manicômios os especialistas e serviços de saúde mental passariam a ter no imaginário de tantos a função inequívoca de serem os corpos substitutivos dos muros dos hospícios cuja tarefa seria a de contenção da loucura e dos danos que esta provavelmente causaria a terceiros O livro que pudemos ler traz evidências inequívocas de que aquele que manifestou algum episódio de doença diagnosticado como mental no percurso de sua vida geralmente desaparece O Crime Louco 338 enquanto sujeito esmagado pela classificação científica A doença segundo a tese dos especialistas o transforma em doidoincapaz e loucoperigoso para sempre mesmo que potencialmente Tal veredicto passa a exigir do poder público mecanismos de controle permanentes Ao serviço de saúde mental pressupõem o dever de cuidar disso Os autores avaliaram que os incapazes de entender e de querer impõem ao poder público a obrigação de tutela permanente O dito louco foi suposto objeto aos cuidados de outrem cujo dever seria o de assumir a posição de garantidor seja na via da proteção que impõe o dever de preservar o objeto protegido de todos os riscos que possam atingir a sua integridade e a de controle que impõe o dever de neutralizar eventuais fontes de perigo exercício de atividades perigosas VENTURINI p 16 Os trabalhadores da assistência em saúde mental foram tomados pelo poder público como os responsáveis por o que acontecer aos doidosincapazes pois a crença na ciência é de tal sorte presunçosa que parte do delírio a ideia de que a ciência psiquiátrica teria consigo os instrumentos científicos válidos para realizar previsibilidades Kafkanianamente desenrolam os processos Seguimos sua leitura O crime louco revela que o delírio de controle do risco presumível no corpo marcado pelo diagnóstico tornou o próprio sistema de justiça enlouquecido As sentenças criminais ao conter os corpos a serem controlados mostramse incapazes de impedir os danos que geram na vida dessas pessoas Sua subjetividade e singularidade foram trituradas pelo trator nosológico deixando essas pessoas quase sempre incapazes de se protegerem e se defenderem face aos julgamentos que silenciam a sua voz promovendo o apagamento do sujeito e de suas respostas de sociabilidade O silêncio da voz do autor do crime louco é gritante No caminho das elucubrações do pensamento de outrem lemos o registro dos que falam em seu nome Uma vasta documentação processual é gerada e fica evidente para quem sabe ler que a loucura O Crime Louco 339 não está instalada no corpo do sujeito que cometeu o crime e sim no corpo documental que procura a verdade sobre a responsabilidade de um ato cujo autor foi silenciado Os resultados de tal esforço engendrado pelas engrenagens periciais e forenses acumulam um conjunto de ficções variáveis os laudos periciais como se fossem registros da verdade Apesar da precariedade de suas teses esse amontoado ficcional mostra se suficiente para subsidiar o sistema de controle social que ávido para eliminar o risco se revela pouco rigoroso engolindo qualquer ideologia como se fosse a verdade O risco não é eliminado por certo todos sabem Incapaz de oferecer a promessa de garantia tal parafernália ilusionista desaparece com o sujeito agora reduzido a um simples objeto para exame e controle de outro Esta tem sido a tese dominante e mortífera a conduzir os casos de sujeitos que em momento de sofrimento intenso realizaram um ato fora da lei Contudo nossa experiência com a loucura exige que ofereçamos resistência O crime louco dá um passo nessa direção Ernesto Venturini realiza uma análise minuciosa do discurso que anima as conclusões dos expertos demonstrando que são as ideias preconcebidas dos peritos e não o real do caso em si que amarram as costuras de seu julgamento Mas o flagrante da precariedade das conclusões dos procedimentos sobre o incidente notório abismo entre as ficções periciais e o real de cada acontecimento ou seja a evidência de sua fragilidade não parece ser suficiente para reduzir a força da sentença sempre danosa para o sujeito dito louco e emudecido pelo processo sempre catastrófica para o projeto de saúde mental que desde Basaglia busca reinserir a loucura de cada um no mapa da humanidade Orientados quanto ao real somos todos responsáveis Ernesto escreve esse livro porque não pode deixar de fazêlo Sente a necessidade de dar a sua chave de leitura dos fatos sobretudo porque esses casos são paradigmáticos para uma reflexão em todos os campos sobre os temas da responsabilidade da periculosidade e O Crime Louco 340 da inimputabilidade em psiquiatria VENTURINI p28 Sua obra é a resposta extraída de suas análises dos processos e da conjuntura política italiana frente às relações entre a loucura o direito penal a psiquiatria segregacionista e o projeto de saúde mental É sua responsabilidade A exposição e leitura da complexidade que nutre tal cenário descortinanos a honestidade intelectual do autor ao localizar os furos o erro o impossível as contingências que cotidianamente atravessam a experiência de uma proposta de saúde mental que suporta a convivência e por ser intrinsecamente tecida por sujeitos humanos está sujeita ao real Em determinado momento do texto quase anotei em suas margens as impressões que se impunham ao pensamento assentadas em hipóteses sobre o que não aconteceu Divagava E se outra posição fosse assumida pelos cuidadores pelos responsáveis pelo serviço pelos médicos psiquiatras E se outra orientação servisse de guia para ler os sinais apresentados naqueles dias Talvez outra direção do tratamento teria se imposto talvez pudéssemos presumir que as consequências registradas seriam outras se fossem outras se fossem outros Será que seria possível ao saber garantir o controle sobre o real Basta seguirmos adiante na leitura do texto corajoso de Venturini se suportarmos a emergência da nossa própria divisão para consentirmos com o real implacável a esburacar o frágil véu do saber com o qual por vezes pretendemos encobrir o impossível e proteger a suposição de um saberzinho qualquer Há um impossível de saber Não há como abolir a contingência não é possível prever a resposta a tal emergência seja médico paciente juiz educador familiar etc É no intervalo variável do cruzamento das respostas dos sujeitos em suas múltiplas possibilidades que o real se impõe sobre toda experiência humana Os fatos acontecem a partir dessa contingência Cálculos probabilidades estamos atentos Mas não há garantias Que estejamos então orientados quanto ao real O Crime Louco 341 A partir dessa chave de leitura o que a experiência com o acompanhamento de sujeitos encaminhados ao projeto de saúde mental nos deixa saber Podemos destacar no relato dos quatro casos desta obra a importância a ser dada ao saber do sujeito sobre o seu sofrimento a necessária construção do caso pelos vários que o acompanham o partilhar dos elementos recolhidos no percurso do sujeito e que indicam suas respostas e impasses seu saber fazer frente ao seu próprio sofrimento limites e possibilidades A transmissão do saber que é recolhido do cotidiano do acompanhamento frequentemente é a bússola que nos serve de guia para estabelecer a convivência e o cuidado pretendido entre os vários que passam a integrar uma determinada rede social Cada sujeito tem seu modo de vida seu sintoma e o modo de ter acesso à sua singularidade é dar lugar para o que ele nos ensina sobre o seu jeito de se apresentar a cada vez em cada encontrodesencontro O cuidado no acompanhamento de casos em saúde mental deve supor mais saber no sujeito que sofre do que nos manuais de psiquiatria Considerar as respostas do sujeito como demonstração de sua posição subjetiva e delas se servir como orientação em seu acompanhamento é uma direção para o tratamento Supor que ali tem um sujeito capaz de apresentar suas angústias e localizar seu sofrimento é condição primeira para sustentação ética e clínica de um projeto de saúde mental substitutivo à clausura e à tortura dos manicômios Somos responsáveis por considerar e inserir as respostas do sujeito no tecido da rede social que o concerne e que nos diz respeito quando ele nos confere um lugar ao seu lado É com isso que construímos a direção desse acompanhamento Enfim a condução do acompanhamento deve orientarse pelo cálculo desenhado das respostas recolhidas no cotidiano do cuidado que sofre das variações singulares daquele que fala daquele que escuta daquele que registra É gente cuidando de gente Portanto fica claro a importância da formação das pessoas que estão envolvidas O Crime Louco 342 nesta rede de atenção desde os especialistas em saúde até aqueles que cuidam das rotinas sociais e domésticas A formação para acolher e tratar o sofrimento humano é para todos sem distinção Aqui não registramos hierarquia todos estão ligados ao movimento da vida como ela é e que nem sempre é óbvio claro e direto Somos todos responsáveis Certo é que viver é perigoso diria Guimarães Rosa portanto navegar é preciso responde Fernando Pessoa Todos os dias ao sair de casa para cumprir o roteiro fazemos um cálculo da trajetória o fazemos melhor quando estamos esclarecidos e bem formados para realizar as manobras necessárias do percurso mas imprevistos acontecem e nem sempre se mostram a tempo de mudarmos a direção Pois é a vida humana não é matemática O detalhe imprevisto a causalidade pulsional invariável sempre aparece para mudar o rumo A razão não governa sempre Um dia não é igual a outro as variações de humor e de atenção também alcançam os sujeitos psiquiatras psicólogos assistentes sociais educadores peritos juízes etc no exercício de suas funções Perturbações inconfessas sem sentido desconhecidas atravessam sem dizer de onde vieram e exigem respostas para seu sossego É humano Só depois nos lembra Venturini poderemos montar com as peças disponíveis a complexidade que deu causa a determinado evento verificar como cada um tensionado pelos elementos perturbadores de seu ser pode responder a essa montagem impossível de prever Frente a um acontecimento real cada um com os recursos de que dispõe confere autenticidade subjetiva a sua resposta Não falaremos de erro ou culpa mas sim de responsabilidade Ao assumir o desafio de uma sociedade sem manicômios apostamos na capacidade do sujeito de poder inventar a sua maneira uma solução razoável de lidar com a sua diferença no convívio social e de responder pelas consequências de seu modo de vida Neste ponto não há diferença entre nós Cada um tem que arrumar O Crime Louco 343 um jeito de tratar a sua loucura no espaço das trocas compartilhadas de modo a fazer caberse aí A exclusão das ilhas de segregação do território das cidades ou seja o fechamento dos manicômios exigiu da sociedade sua responsabilidade na montagem de uma rede de atenção e convivência que suportasse a diferença de cada um suas esquisitices em suas tramas Uma rede feita de gente especialistas e não Dispositivos fizeramse necessários para amarrar essa rede feita por muitos para sustentar a atenção e o acompanhamento do sujeito que por vezes enlouquece Se isso acontece seu sofrimento pede por tratamento Mas outras vezes o sujeito arrumase com sua solução de vida ao seu modo Pode parecer um jeito esquisito aos olhos dos que acreditam em normalidade Mas que se diga de perto ninguém é normal Isso vale para os ditos loucos ou normais quando sossegados com seu sintoma A loucura não é uma doença é um modo de vida ainda que os loucos possam em algum tempo adoecer Como todos nós eles seguem o programa pulsional que nos faz humanos e o real que o movimenta estabilizados pela corda bamba da rotina do laço social que nos engendra O direito de responder como marca da humanidade O sistema penal na contramão dos avanços da reforma antimanicomial trata aqueles que já enlouqueceram na vida como exceção à regra da humanidade fixandoos eternamente ao seu diagnóstico O sistema penal ignora sua condição de sujeito de direito desde que foram catalogados Ali a doença mental não é uma situação uma crise que vem e que passa Aquele que um dia recebeu o diagnóstico de doente mental passa a ser uma aberração permanente aos olhos do sistema Loucoperigoso doenteincapaz Ah Apertem os cintos O sujeito sumiu prensado entre os predicativos que o representam Roubaramlhe o intervalo por onde cada um se apresenta portador de uma singularidade sem igual Onde está o larápio que responderá O Crime Louco 344 pelas consequências desse ato Os quesitos formulados pelos operadores do direito e os laudos periciais dos expertos revelam em O Crime Louco o contorno das ideologias e teses que os aprisionam na cela reduzida de sua miopia A patologia do sistema seria uma defesa ao real indomável ou um traço de perversidade O que podemos afirmar contudo é que tal pretensão de controle é sobretudo delirante A situação dos processos relatada por Venturini servese dos detalhes absurdos que abundam na documentação recolhida O que se repete em cada caso e processo é o erro incrustado no cerne do próprio sistema Erram porque não consideram a condição humana ali engendrada Escalam as montanhas do ideal e são enterrados pelos montes de equívocos Quando um crime demasiadamente humano acontece de que adianta buscar asilo na lógica abstrata das ideias sobre o homem normal fechar as janelas do mundo da vida e enterrarse nos formalismos dos ritos e dos conceitos pressupostos ditos científicos Sabemos que a lógica formal do certo e do errado é adversa àquela que constitui a nossa insondável humanidade É feita pela presunção ideológica quase sempre idiota e afastase do real da condição humana e de seus arranjos para lidar com o malestar da convivência nem sempre tão evidente A ideia de um sistema garantidor da ordem social a garantia do controle sempre impossível ao expulsar o elemento humano da órbita de seus dispositivos e análises encontráloá paradoxalmente ao final no fracasso de suas pretensões Atenção Não há nada mais humano do que o crime lembra nos JA Miller2 Responder pelos atos praticados é uma solução humanizante lembramnos os sujeitos que acompanhamos Responder por seus atos é a condição do ser falante através do aparelho da linguagem com o qual cada um se arranja para responder pela sua diferença e encontrar junto aos outros do convívio um modo de reconhecimento Por essa via partilhase na medida do possível O Crime Louco 345 uma ordem simbólica que estabelece regras e acordos em comum E se os acordos de convivência forem transgredidos Se ao sermos loucos o suficiente em tempo e razões diversas atravessarmos o rubicão proibido por lei Outrem deve responder por nós Acreditaríamos na potência da representatividade Um ato de loucura anula o autor desse ato Entregaremos à caneta do perito a resposta pelos nossos atos porque quando o fizemos não agimos racionalmente Não Todo ato tem consequência e o sujeito de qualquer modo responde pelas consequências de seus atos num reconhecimento da sua humanidade inclusive por suas falhas erros e toda sorte de loucuras Somos responsáveis inclusive por nossos sonhos dissenos Freud Ernesto Venturini pergunta em sua obra por que os loucos não são considerados responsáveis Por que seriam menos humanos menos capazes de demonstrarem sua responsabilidade para com seu ato do que os outros A lei é a borda é a resposta simbólica e social que indica o limite para nossos atos em uma comunidade numa determinada época A lei é uma referência inclusive para situações onde o sofrimento intenso embaraça a fronteira que demarca as condições de sociabilidade dos acordos de convivência reguladores da sua humanidade Apresentarse como responsável é reconhecer a lei e consentir com as consequências estabelecidas pela sociedade quando seu ato for fora da lei Um simples exemplo Atravessei o sinal vermelho O código de trânsito está lá desde antes Não interessa a causa de tal ato terei que responder por isso A multa vai direto ao meu endereço Sou responsável O que interessa não é a causa respondo pelas consequências Outro exemplo de que é no nível das consequências que somos chamados a responder e não pela causa de nossos atos o desejo de matar não é causa de nenhum processo judicial salvo se esse desejo se expressar através de ameaças tentativas ou a realização do assassinato O que causou esse desejo Impossível responder nos O Crime Louco 346 termos da objetividade jurídica isso talvez tenha alguma importância em outro lugar mas é de foro íntimo não deve ser motivo de investigação pública Sabemos que a pergunta sobre a causa dos atos do sujeito não é toda abordável matéria insondável infindável Impossível de responder sobre a causalidade que enreda e constitui a natureza humana Frente a tal impossível resta a cada um responder pelas consequências que advêm do que causa sua existência singularíssima No campo social no campo do possível no âmbito do público focase então o ato a consequência a resposta Cada um responde por seu ato conforme a letra da lei independentemente de suas tramas subjetivas quase sempre indecifráveis O normal é agir conforme a norma conforme a lei É o que se espera de uma convivência social regulada por um projeto compartilhado O que escapa à norma estabelecida é lido como anormal e portanto esperase dos que a transgridem que venham diante da justiça responder por seus atos anormais que respondam pelas consequências de terem agido fora da norma Por que tem sido diferente com os ditos loucos desde o século XIX Seu ato seria mais anormal que todos os outros que estão fora da norma Ou é a suposição de sua incapacidade suposição de que a loucura é uma deformidade humana de que ali estaria um humano menos capaz de ser humano Suposições que surgiram com o advento das ciências humanas e que desde o século XIX ensinam que outrem podemos colocar o outro deve falar em nome dos loucos por que sua voz e sua pessoa não são reconhecidas como suficientemente humanas para assumirem as consequências de seus atos As consequências ora bolas sabemos quais são Outros falam por aquele considerado louco Seu destino é decidido sem a sua participação foi reduzido a puro objeto e como tal vai ser enclausurado nos manicômios judiciários até que cesse a presunção de sua periculosidade Presunção diz respeito à suposição dos peritos sobre sua capacidade de convivência em sociedade O Crime Louco 347 Peritos em comportamento humano presumem o futuro com base em seu suposto saber Presunção é o nome Porém no final das contas é o tal dito louco julgado incapaz de responder pelas consequências de seus atos quem responderá Serão o seu corpo sua subjetividade e sua sociabilidade que sofrerão as consequências da sua suposta incapacidade e periculosidade É o dito louco que será varrido feito objeto para os porões dos manicômios Ele sofrerá o exílio de sua humanidade das redes sociais compartilhadas o que disser ou fizer desde então será expressão da sua doença nunca mais seu gesto será reconhecido como uma resposta de um ser humano qualquer frente às situações que lhe são apresentadas pela vida que leva Os predicativos louco perigoso incapaz doente etc estão afixados em seu corpo definitivamente em razão do seu ato No final das contas é o dito louco quem paga o preço por ter cometido um ato fora da lei Entretanto ele não poderá participar do processo com sua palavra não terá a chance de responder por seus atos como qualquer ser humano não terá acesso ao processo nem tampouco poderá se defender das elucubrações que dizem sobre si e seu ato não poderá responder a pergunta dos outros sobre o seu crime O sujeito dito louco está morto no processo criminal cujo veredicto tantas vezes tem sido violador de todos os seus direitos em nome da defesa social Desde então ninguém responderá pelas consequências desse assassinato dalma Ninguém será chamado a responder pelas inúmeras violações de direito que sofrem os cidadãos trazidos nos casos relatados por Venturini e tantos milhares de outros Eles sofreram as consequências de seu ato e outros ainda sofrerão até o final dos seus dias na forma da tortura da violação de direitos do sepulcro do silêncio Por que não puderam responder como qualquer cidadão que mata rouba ameaça Por que deles foi subtraído o direito de responder como qualquer cidadão de acordo com a letra da lei Por que O Crime Louco 348 apagaram a sua voz para dar lugar à voz patologizante e mortífera da ciência psiquiátrica pericial Por que essa violação de direitos é dada como natural inquestionável Quem responde por essa loucura Quem são os responsáveis Os processos em análise no livro O crime louco buscaram auferir responsabilidade aos psiquiatras e serviços em saúde mental São processos claramente comprometidos com a ideologia manicomial e segregativa O contexto político em torno dos processos nos avisa que em verdade buscaram responsabilizar o projeto de saúde mental que aposta e sustenta o convívio com a loucura na cidade aberta E na cidade incidentes acontecem A literatura documentada por Venturini frente à complexidade do incidente real é farta Encontramos a sua expressão nas matérias de jornais nos registros em segredo nas cartas rasgadas Porém diversas vezes a surpresa me pegou de jeito e me emocionei com os parênteses abertos pelo autor que como suspiros no texto os rasgavam para fazer escorrer por esse furo sua indignação frente a toda e qualquer pretensão de controle Controle este que busca se garantir pela redução da capacidade de respostas do sujeito e com isso subtrairlhe a potencialidade de expressão da sua condição humana Venturini não cede à impotência mas consente com o impossível Desculpase esclarece que este é o seu relato reconhece seu limite e segue adiante sem recuar frente ao seu desejo de abrir com sua obra uma nova janela para ler os mesmos fatos Leva o leitor a apostar em um mundo que suporta a convivência com a loucura de cada um Um mundo feito por muitos Com O Crime Louco uma janela para as inéditas e imprevistas manifestações da responsabilidade do sujeito foi aberta no lugar das oitocentistas portas fechadas que ainda apagam o sujeito transformandoo em objeto mortificado pelo exame dos especialistas por tempo indeterminado Se hoje nos perguntamos por que essa lei e não outra em relação aos sujeitos por vezes loucos infratores não é para anular a função da lei A obra de Venturini somase à luta que é de todos nós O Crime Louco 349 permitindonos elementos para continuarmos nosso enfrentamento do sistema ao questionarmos sim a forma do texto normativo justo ali onde o texto da lei segrega e anula o sujeito como responsável por seu ato Ali onde o perito aparece para falar em nome dele fazendo de alguns exceção à regra e portanto objetos do exame cientifico e nulos como sujeitos de direitos O crime e a lei fundamse engendrados no projeto de convivência entre humanos O atocrime aliás foi o ato inaugural da civilização fundação da sua humanidade A lei humaniza É desumano não ser considerado humano o suficiente para responder pelas consequências de sua existência não reconhecer em cada um a possibilidade de que possam advir outras respostas Venturini ao trazer às claras com sua obra os furos o imprevisível o impossível de controlar que atualiza e descortina a experiência complexa que envolve os atos e laços humanos deixanos um claro recado se por um lado existe um impossível de controlar posto que a convivência humana e a resposta de cada sujeito concernem a um real imprevisível é justamente do fracasso do controle que a potência da condição humana se vivifica quando se mostra capaz de inventar saídas inéditas diversas e imprevistas marcando sua radical diferença da condição de objeto calculável controlável domesticável Essa visada é possível somente quando se consente que não existe sujeito sem responsabilidade como princípio inabalável para pensarmos uma sociedade onde cada um responde por seus atos sem distinção Desde então muito se repete mas também anotamos o esforço daqueles que resistem à lógica da segregação do apagamento do sujeito Assim como Venturini não estamos entre os que acreditam na periculosidade intrínseca na domesticação do programa pulsional que movimenta a humanidade De tal sorte que propomos uma subversão no lugar da presunção da periculosidade elevar a presunção de sociabilidade e que cada um responda pela dor e O Crime Louco 350 delícia de ser o que é As considerações do autor conforme esclarece em sua obra não nascem de uma abstrata declaração de princípios Tem sim em conta as muitas experiências que nesses últimos anos têm permitido percursos alternativos à declaração de total inimputabilidade do louco e envio de pacientes para HPJ Se eliminarmos a palavra culpável e usarmos o termo responsável então devemos convir VENTURINI p50 É por essa via que deixo aqui anotada uma experiência cujo testemunho suponho trouxeme a indizível satisfação de posfaciar tão importante obra de quem muito admiro a vida e percurso político o autor Ernesto Venturini Uma política intersetorial orientada pelas respostas do sujeito Em Belo Horizonte temos trabalhado com situações complexas em que a proposta é promover a conexão do detalhe particular que humaniza cada sujeito com a resposta do sistema de justiça e da sociedade de forma geral Para tanto apostamos numa política intersetorial articuladora de ações entre os sistemas de justiça saúde e recursos sociais diversos dando lugar a respostas singulares para casos singulares sem abrir mão da responsabilidade do sujeito diante dos atos dos quais é autor1 Falo do PAIPJ um programa de atenção ao paciente judiciário Trabalho feito por muitos que visa oferecer ao Sistema Judiciário subsídios que atendam à individualização na aplicação da medida judicial enfatizando o acompanhamento de tais pessoas para garantirlhes a possibilidade de responderem por seus atos A proposta é avançar e desconstruir o mito da periculosidade que lança os portadores de sofrimento mental para o lugar marginal condenandoos a habitarem os porões da loucura Permitimosnos deixar em suspensão o modelo racional da modernidade e questionar os paradigmas responsáveis por uma prática de segregação ao inserirmos na cultura novos valores Permitimonos ainda mudar a postura diante da loucura e tratar os ditos loucos como cidadãos que O Crime Louco 351 têm direitos e o dever de responderem por suas ações na sociedade A história nos permite constatar que o princípio de uma universalidade dogmática para todos não possibilita a igualdade diante da lei A igualdade somente pode se colocar no campo jurídico quando o sujeito é convocado a responder pelo seu ato no tecido social e a inserir a singularidade de seu texto ao responder pelos princípios universais que orientam a convivência na cidade Por isso a medida jurídica só atingirá seu fim público se for cunhada a partir de um projeto que contemple a singularidade de cada caso a partir de princípios universais A sociedade é responsável por não dar ouvidos à loucura Perigosamente não assiste seus cidadãos quando deixa a loucura do lado de fora como convém aos aparelhos racionais de controle da ordem social As histórias de ninar apresentam os doidos como sendo do lado do mal bichopapão Mais tarde na universidade escola de Psicologia Psiquiatria Direito dentre outras apresenta nos a psicopatologia irrecuperável da loucura e todos os meios científicos de realizar a sua contenção e exclusão da ordem social A exclusão que sofrem os loucos infratores é indiscutível Mas sobre isso verificavase um silêncio consentido nos diversificados setores da sociedade O Tribunal de Justiça de Minas Gerais para transformar o cuidado a esses casos no seu campo de competência criou o PAIPJ fruto de uma ação coletiva do Poder Judiciário Rede de Saúde Pública e sociedade na atenção a esses cidadãos Hoje a rede pública de saúde de Belo Horizonte e de outros municípios mineiros assume o atendimento a eles sem distinção O Programa acontece como efeito desse conjunto de forças Nasce dentro do TJMG caracterizandose pela finalidade de oferecer à autoridade judicial subsídios para decisão nos incidentes de insanidade mental Isto ao mesmo tempo em que promove o acompanhamento do sujeito em suas redes sociais e o tratamento em saúde mental na rede pública de saúde De forma multidisciplinar O Crime Louco 352 informa ao juiz a medida anunciada pelo sujeito sobre seu modo de tratar o sofrimento auxiliando na aplicação a cada caso de uma medida singular tencionada pelos princípios normativos universais O Programa rompe com um processo histórico e dogmático fundamentado pelas práticas seculares de segregação e instaura o conceito da inserção no cerne de sua ação atuando em qualquer processo criminal em que um portador de sofrimento mental esteja na condição de réu Quando o juiz determina a intervenção do PAIPJ coloca em movimento uma ampla rede de atenção Enfim diante da complexidade de cada caso a rede de assistência em saúde mental desenhará um projeto de atenção singular O cidadão terá acesso como qualquer um à rede pública de saúde e às demais redes sociais da cidade Assumimos a posição de que a ampliação do acesso à experiência cidadã faz bem à saúde mental e à convivência com a ordem social Acesso à educação moradia trabalho cultura lazer e à cidade recolocam a dimensão da vida para o cidadão que cometeu um crime produzindo novas vias para a amarração de um novo laço social Neste espaço de convivência vão transmitindo e construindo formas de atravessarem os embaraços inventando novos sentidos e arranjos sociais Aprendemos com esses cidadãos que a responsabilidade pelo crime cometido restaura a dignidade perdida quando foi decretada a sua inimputabilidade Através desta sua palavra foi desqualificada enquanto portadora de um sentido possível de responder pela sua condição humana Muitos nos dizem sobre a importância de responder ao público Mesmo que no momento do ato não soubessem o que faziam construir um saber sobre as condições de seus atos mesmo que depois do crime constitui uma forma de responder por sua ação no espaço do público e por este ato a construção de um saber que serve de orientação Hoje no espaço de intervenção do PAIPJ esses cidadãos são chamados a responderem pela palavra pela linguagem que fazem com que partilhemos o sentido das regras e convenções sociais O Crime Louco 353 Auxiliares do Juiz e secretários do alienado esta é a função do Programa Procuramos encontrar formas racionais de fazer existir no campo do direito da saúde e do social enfim do espaço do público as formas razoáveis que cada um desses cidadãos vai inventando para seu laço com o outro durante o tempo que for preciso O Tribunal de Justiça de MG apresenta através deste Programa junto com as parcerias que o tornam viável uma mudança na lógica de tratamento jurisdicional a esses casos a partir da ênfase em novos conceitos Uma política que favorece o laço social e não sua ruptura pela segregação Uma política que aposta que a oferta da atenção e do cuidado podem promover a convivência no tecido social reconhecendo em cada um louco ou não sua condição de responsável São muitos os responsáveis muitas são as responsabilidades Que cada um tome a palavra para dar o testemunho da sua reflexão e experiência sua responsabilidade para com as soluções de nossa época frente às ideias perigosas para a humanidade que nos constitui Ernesto Venturini apresenta através de sua obra a sua resposta e eu confirmo e assino embaixo Enquanto a voz do cidadãoloucoresponsável por um crime não estiver presente nas salas de audiência dos tribunais enquanto não for reconhecido seu direito de ser julgado e eventualmente até condenado enquanto a linguagem do poder não tiver que se confrontar com a linguagem dos diferentes dos loucos compreendendo que os cânones da normalidade não são absolutos enquanto isso não acontecer a linguagem dos expertos será o balbucio presunçoso e contraditório e ainda teremos que prever tanto sofrimento e tantas dores incidentes VENTURINI p174 Fernanda Otoni de BarrosBrisset O Crime Louco 354 Notas Psicóloga e Psicanalista Doutora em Ciências Humanas pela UFMG Coordenadora do PAIPJ da Comissão de Direitos Humanos do CFP autora de Direito ao Pai dentre outras obras 1Cf BARROSBRISSET F Por uma política de atenção integral ao louco infrator Belo HorizonteTJMG 2010 Disponível em httpwwwtjmgjusbrpresidenciaprogramanovosrumospai pjlivretopaipdf 2Cf MILLER JA Nada mais humano do que o crime Texto traduzido e publicado na revista Almanaque online do IPSMMG n 3 Disponível em httpwwwinstitutopsicanalisemgcombr psicanalisealmanaquealmanaque4htm
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Plenário responsável pela publicação Conselho Federal de Psicologia XV Plenário Gestão 20112013 Diretoria Humberto Cota Verona Presidente Clara Goldman Ribemboim Vicepresidente Monalisa Nascimento dos Santos Barros Tesoureira Deise Maria do Nascimento Secretária Conselheiros efetivos Flávia Cristina Silveira Lemos Secretária Região Norte Aluízio Lopes de Brito Secretário Região Nordeste Heloiza Helena Mendonça A Massanaro Secretária Região CentroOeste Marilene Proença Rebello de Souza Secretária Região Sudeste Ana Luiza de Souza Castro Secretária Região Sul Conselheiros suplentes Adriana Eiko Matsumoto Celso Francisco Tondin Cynthia Rejane Corrêa Araújo Ciarallo Henrique José Leal Ferreira Rodrigues Márcia Mansur Saadallah Maria Ermínia Ciliberti Mariana Cunha Mendes Torres Marilda Castelar Roseli Goffman Sandra Maria Francisco de Amorim Tânia Suely Azevedo Brasileiro Psicólogas convidadas Angela Maria Pires Caniato Ana Paula Porto Noronha o crime LOUCO Ernesto Venturini Domenico Casagrande e Lorenzo Toresini Conselho Federal de Psicologia BrasíliaDF 2012 ORGANIZADOR Virgílio de Mattos 1ª Edição BrasíliaDF 2012 É permitida a reprodução desta publicação desde que sem alterações e citada a fonte Disponível também em wwwcfporgbr 1ª Edição 2012 Capa Liberdade de Expressão Projeto Gráfico IDEORAMA Diagramação IDEORAMA Tradução MARIA LÚCIA KARAM Liberdade de Expressão Agência e Assessoria de Comunicação Direitos para esta edição Conselho Federal de Psicologia SAFSUL Quadra 2 Bloco B Edifício Via Office térreo sala 105 Brasília DF Brasil 70719900 BrasíliaDF 11 21090107 Email ascomcfporgbr wwwcfporgbr Impresso no Brasil Setembro 2012 Coordenação GeralCFP Yvone Magalhães Duarte Coordenação de ComunicaçãoCFP Cristina Bravo André AlmeidaEditoração Lívia Davanzo Gustavo Gonçalves Conselho Federal de Psicologia O CRIME LOUCO Ernesto Venturini Domenico Casagrande e Lorenzo Toresini autores Virgílio de Mattos Organizador Maria Lúcia Karam Tradutora Brasília CFP 2012 351 p ISBN ISBN 9788589208543 1 Psicologia 2 Saúde Mental 3Crimes I Título BF76 RESUMO O crime louco é uma obra com reflexões dados e análises de três crimes emblemáticos cometidos por portadores de sofrimento mental italianos que resultaram em processos criminais contra os profissionais antimanicomiais que neles foram envolvidos como réus em um inadmissível contorcionismo jurídico Complicadíssima questão dogmáticopenal de concurso culposo por parte do psiquiatra em delito doloso cometido pelo louco infrator é também objeto de análise nesse precioso trabalho que o Conselho Federal de Psicologia torna possível que você leia na bem cuidada tradução de Maria Lúcia Karam Endereço do CFP SAFSUL Quadra 2 Bloco B Edifício Via Office térreo sala 105 Brasília DF Brasil 70719900 BrasíliaDF O Crime Louco 9 PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA Virgílio de Mattos1 Por onde começar Desde a primeira vez que conversamos sobre a hipótese de traduzirmos O crime louco e Ernesto Venturini pediume este prefácio à edição brasileira fiquei em dúvida já no início Procurar correspondências tentar um tom formal e didático esquecendo o percurso de mais de uma década de amizade pareciame mesquinho e distante da realidade Definitivamente não começaria por aí Busco lembranças e a memória as faz vir em rajadas longas A primeira vez que conversamos por exemplo Inenarrável a tranquilidade que me passou com a simples frase pode falar em português se você preferir E prontamente agendou uma reunião para daí um par de dias A primeira vez que o vi parecia estar diante de um amigo de muito tempo Pareceume ser recíproco Ímola lembrava certa parte de uma Montevideo do passado ambas as cidades muito lindas e que parecem terse fixado no tempo Na Itália a expressão o levaram para Ímola corresponde ao mineiro e roseano o levaram para Barbacena Ser levado para um e outro lugar correspondia quase sempre a nunca mais voltar para lugar nenhum Nem na memória nem na vaga lembrança Um ponto para não sair e de onde não se pode voltar Ali pela primeira e última vez vi e toquei em uma camisa de força em um lugar mais do que apropriado um museu Naquele dia mesmo atarefado e às voltas com a feitura do orçamento anual Ernesto teve a suprema delicadeza de organizar uma reunião com os usuários em uma deliciosa Oficina de Vozes compartilhada naquela visita E na carona de volta até Bologna pudemos compartilhar a abertura que fazia da sua família para o pouco convencional trio estranho eu 1 Do Grupo de Amigos e Familiares de Pessoas em Privação de Liberdade Do Fórum Mineiro de Saúde Mental Autor de Crime e Psiquiatria Preliminares para desconstrução das Medidas de Segurança dentre outros O Crime Louco 10 Laura Lambert e Francisco Caminha e o encantador jantar alguns dias depois As visitas dele aqui no Brasil quase sempre me proporcionavam a sorte de revêlo Pessoalmente me empenhei em duas que foram importantíssimas para mim um congresso antimanicomial em Belo Horizonte onde participou estupefato Ma come mai das bodas de ouro de Nélio e Maria José Lambert a visita à Favelinha e à festa junina e a outra em um congresso paulista de saúde mental em que rimos de todos os desencontros desses últimos dez anos Ernesto sempre teve uma relação muito família no que pode ter o signo de mais positivo respeitoso e afetivo com as várias outras famílias Em especial as de usuários trabalhadores estudiosos E por isso não sei se suponho ou deliro abre sempre aquilo que pensa sem se importar se vai agradar ou magoar alegrar ou enraivecer Ele diz sempre o que pensa e isso no Brasil muita vez é considerado um defeito dependendo em que ambiente se esteja Venturini é um amigo e uma referência nesta ordem Por isso você está lendo estas linhas como a preparálo para um grande espetáculo Segunda pergunta Fazendo coro a Basaglia o que é isso Falam os psiquiatras os magistrados os trabalhadores Há o direito à fala dos pacientes Só pode mesmo ser livro processo ou delírio Em que espaço dizem todos sobre tudo em um mesmo nível de atenção no discurso Afinal o trato dado ao portador de sofrimento mental sempre foi préBasaglia uma espécie de sonderbehandlung2 Os hospitais psiquiátricos judiciários da Itália os manicômios judiciários ou hospitais de custódia e tratamento psiquiátricos como diz a lei no Brasil sempre operaram em relação ao crime do louco de modo a fazer com que fossem tratados de maneira a cumprir a profecia do afastamento para sempre a segregação eterna não prevista na legislação brasileira mas que ainda tem espaço no 2 Literalmente tratamento especial nomenclatura utilizada pelas SS hitleristas O Crime Louco 11 ergástulo italiano Pelo menos no mundo sombrio da previsão legal Na verdade a contenção manicomial varrida do mundo dos vivos como tratamento pela reforma basagliana fez do Hospital Psiquiátrico Judiciário OPG da sigla italiana e como são conhecidos e mencionados um local de manutenção da contenção e não de tratamento Símbolo e real produzindo o mesmo efeito no final a morte Complicadíssima questão dogmáticopenal de concurso culposo por parte do psiquiatra em delito doloso cometido pelo louco infrator é também objeto de análise nesse precioso trabalho que o Conselho Federal de Psicologia torna possível que você leia na bem cuidada tradução de Maria Lúcia Karam Aliás um justo registro é aqui indispensável Fundamental que se diga que a tradução primorosa de Maria Lúcia sempre tão cuidadosa elegante e brilhante não foi feita sem percalços no percurso A fratura de um braço em Roma a caminho de uma reunião sobre a tradução com o próprio Venturini funcionou como espécie de dolorosa piada privada entre aqueles envolvidos na construção dessa edição brasileira É que tanto Malu quanto alguns outros envolvidos creem em Deus dons dádivas Nenhum deles crê em desculpas Mas era como se uma deidade vinculada ao pensamento retrógrado quisesse punila pela ampliação do conteúdo deste livro Obviamente que se trata não importa em que língua você venha a lêlo leitor privilegiado de um livro de altíssima periculosidade A pronta resposta do Conselho Federal de Psicologia parceiro constante na luta por uma sociedade sem manicômios fez com que esse projeto se viabilizasse Penso que no Brasil em termos legislativos no que diz respeito ao trato hospitalocêntrico do louco infrator estejamos adiante do modelo legislativo italiano Na Itália ainda existe pelo menos na formalidade da lei a famigerada fórmula de duplo trilho pena medida de segurança entre nós varrida desde 1984 Este livro não trabalha comparações entre os dois sistemas sou eu que divago Este imprescindível livro cuida de responsabilidades O Crime Louco 12 tanto na área da psiquiatria quanto na área do direito Sobretudo na área da responsabilidade penal da psiquiatria Não é uma psiquiatria qualquer Psiquiatria comprometida com a solução antimanicomial Psiquiatria que só exclui a inclusão da contenção para sempre Os casos aqui narrados são emblemáticos e impactantes Alguns datam de mais de 40 anos mas a mesma ideia preconceituosa de perigoso porque louco e criminoso permeia São episódios ligados às mais radicais experiências de desinstitucionalização e bem por isso tornaramse tão midiáticos Há um certo medopânico atávico e o trial by media cuida de amplificar e multiplicar sempre que há um louco e criminoso no mesmo ato mesmo que de passagem Para ele os rigores da lei e de seus regulamentos Mas sobretudo a ausência de esperança Ausência que sobra e obviamente não está prevista nem na lei e nem em seus regulamentos Do ponto de vista da dogmática jurídica são absurdos pois se considerou o concurso culposo por parte dos psiquiatras em delito doloso cometido por seus pacientes Até os mais empedernidos dogmatas da Academia têm um pouco de dificuldade em vislumbrar exemplos disso no que se convencionou chamar mundo da vida como se a dogmática penal vivesse em outro mundo e vive Um dos comezinhos dos delitos culposos que os alunos de graduação em direito não acham tão difícil assim é levar com extremo cuidado a assertiva de que a capacidade de previsibilidade daquilo que é previsível é um dos elementos informadores dos crimes culposos Ser capaz de prever o que seria previsível é parte da estrutura Prever o imprevisível é oráculo Podemos sintetizar de forma simples que o crime culposo seja uma conduta defeituosa ou de direção mal dada que irá produzir um resultado que não era querido do contrário estaríamos diante de um crime doloso quando o agente quer o resultado ou assume o risco de produzilo mas objetivamente previsível É a conduta não diligente imprudente ou imperita neste último caso sempre reservada a episódios de arte ofício ou profissão Imperícia na O Crime Louco 13 linguagem técnicojurídico penal é despreparo falta de capacidade ou conhecimento insuficiente Diversa do erro profissional que trabalha como o próprio nome indica com a imperfeição e a precariedade dos conhecimentos do agente técnico e ultrapassa os limites da prudência e atenção Obviamente que os quatro casos aqui trazidos não foram tratados com imperícia pelos envolvidos e nem muito menos com qualquer eiva de erro profissional O direito estabelece que deve haver cuidado e diligência obligatio et diligentiam não prever aquilo que era previsível e possível de ser previsto nas circunstâncias desde que tal previsão a da modalidade culposa exista anteriormente na legislação Para parafrasearmos Friedrich Dürrenmatt A pane 1955 Um crime é algo que sempre se pode achar Os dogmatas penais gostam de dizer que a conduta praticada de forma que outra não lhe fosse exigida exatamente as três hipóteses de que cuida este livro não pode vir a ser objeto da reprovação penal exatamente pela inexigibilidade de outra conduta Nas hipóteses tratadas os comportamentos dos médicos acusados não foram reprováveis uma vez que o cuidado objetivo devido a cada caso foi sempre respeitado e aqui não quero e não posso raciocinar com condicionantes otimistas ou pessimistas mas apenas os fatos que estão nos autos dos respectivos processos O primeiro caso de Gorizia data de 1968 e é um marco da contrarreforma quando a reforma apenas começava Em 1971 e em 1977 durante o desenvolvimento da reforma psiquiátrica em Trieste outros dois casos monumentos e o último deles em Ímola ano 2000 com a reforma consolidada mas que não deixou de estar sob ataque um único dia sequer É um livro coletivo organizado por Venturini Os casos são apresentados por protagonistas da reforma psiquiátrica e de um modelo não hospitalocêntrico Domenico Casagrande psiquiatra e colaborador próximo de Franco Basaglia à época do incidente é O Crime Louco 14 quem o relata enriquecendo a reconstrução com material inédito tanto na Itália como entre nós Lorenzo Toresini também psiquiatra descreve os dois funestos casos ocorridos em Trieste exatamente no período de superação do hospital psiquiátrico Ele mesmo figurou como acusado em um dos casos escrevendo o fundamental La testa tagliata Cabeça Cortada ainda não traduzido em português Sobre o caso de Ímola fala Ernesto Venturini que àquela época era o diretor do Departamento de Saúde Mental daquela bela e significativa cidade Como ele mesmo diz em sua sempre impressionante síntese Em essência se recoloca mais uma vez a indagação que Franco Basaglia fazia a si mesmo e a nós em 1967 indagação que parecia resolvida e que no entanto ainda permanece em aberto o que é a psiquiatria A preocupação com a sentença da Corte de Cassação de final de 2007 uma exceção à majoritária jurisprudência que inadmite o concurso culposo em delito doloso praticado por outrem representa um retrocesso na cotidiana luta da reforma psiquiátrica pois tenta reintroduzir a lógica da custódia em contraposição àquilo exigido pelo tratamento Ao contrário de psiquiatras da estirpe de Venturini Casagrande e Toresini aqueles que emprestam seu curto alcance de pensamento à luta contra a reforma antihospitalocêntrica não têm nenhum temor de reproduzir um saber separado da realidade Afinal para conseguir lucrar com a desgraça alheia e operar em um sentido sabidamente inoperante como é o modelo de contenção dos corpos em loci de exclusão inflição de dor e vingança não se pode exigir senso crítico ou um mínimo de solidariedade de pessoas que lucram com o sofrimento de seres humanos Venturini Casagrande e Toresini não são inteligências superiores dominados pela certeza são trabalhadores na linha de frente Não reforçam o mecanicismo de que os sintomas derivam perfeitamente dos diagnósticos e todos os diagnósticos correspondem a uma precisa dosagem farmacológica Eles cuidam das necessidades dos O Crime Louco 15 pacientes como seres humanos e não como números em uma tabela estatística Sempre uma tarefa plena de riscos em uma sociedade de alta complexidade como a nossa Todos fizeram a seu tempo e modo escolhas difíceis para estar do lado certo da luta contra o manicômio e tudo aquilo que ele representou e representa Sobretudo recusaramse a fazer o papel de carcereiros não importando a gravidade da doença Antes que vocês passem à leitura uma lembrança simbólica como a memória de dias felizes a realização do sonho de Basaglia Em Ímola com o hospital deserto dos seres que eram ali depositados em quantidades industriais Venturini convidou a todos os exinternos sobreviventes seus parentes e cidadãos trabalhadores e amigos para que jogassem sal assim como faziam os romanos com as cidades vencidas para que ali nunca mais geminasse a ideia manicomial O obscurantismo desses tempos neoliberais a manter respirando por aparelhos o capitalismo ainda que em seus estertores parece que não desiste de ressuscitar seu velho e indispensável parceiro o manicômio Obviamente que o modelo da desinstitucionalização exige dos profissionais uma profunda responsabilização Responsabilizar verbo Responsabilizar adjetivo Fazerse responsável pela prática difícil do cuidado atento e extremo que às vezes escapa por um fio uma palavra um disparador que pode ser gesto olhar ou canção Se se chama o direito penal para essa discussão estarão todos contidos ao final inclusive a própria reforma Venturini é ferino e feliz na síntese de suas conclusões pinço Sou levado a pensar no entanto que em nossos serviços de saúde mental os erros infelizmente não parecem destinados a se reduzir Os operadores com demasiada freqüência estão aprisionados em uma cultura tecnicista de rendimentos carente de raciocínio clínico conforme um modelo de pensamento fundado em uma espécie de teste de múltipla escolha que confunde os meios com os fins e se deixa esmagar sob o esquema redutivo do O Crime Louco 16 DSMIV Esse comportamento sacrifica qualquer criatividade crítica do pensamento aumentando em conseqüência o risco de erro Uma última pergunta de novo fazendo coro a Basaglia e Venturini o que é a psiquiatria quando tem ao seu lado o direito penal Um trem de doido como dizem os mineiros Convém esquecer a bagagem do preconceito na estação de partida Bemvindo a bordo e boa leitura O Crime Louco 17 APRESENTAÇÃO A visão compartilhada por ErnestoVenturini Domenico Casagrande e Lorenzo Toresini no livro O crime louco Il folle reato das questões da responsabilidade penal e cível de psiquiatra e outros profissionais que atendem pacientes que cometeram delitos é um instrumental teórico e documental que fundamenta reflexões e procedimentos profissionais mais seguros e humanizados A análise de processos jurídicos ocorridos em território italiano a partir de delitos cometidos por pacientes de instituições psiquiátricas traz paralelos aplicáveis ao sistema judicial brasileiro A obra é um rico referencial para análise diálogos entre as instâncias envolvidas em planejamento de forma a buscar procedimentos que nos eximam de situações similares O tom humanista cauteloso e sincero norteia o trabalho dos autores italianos que em um dos casos participa dos procedimentos investigativos de um processo relatado Os autores demonstram a complexidade dos processos judiciários envolvendo o louco enumerando e explicitando as posições de psiquiatras que tratavam os pacientes peritospsiquiatras que examinaram os diversos aspectos das ocorrências de criminólogos de magistrados de advogados e outros atores de procedimentos relacionados Em alguns casos pertinentes a obra retrata os impactos nos indivíduos das comunidades onde aconteceram os crimes e as informações e opiniões veiculadas na mídia Os diversos níveis e âmbitos de leitura dos fatos delituosos são analisados a partir do objeto da pesquisa que originou o livro que é a imputação ao psiquiatra encarregado do tratamento de concurso culposo no delito doloso cometido por seu paciente Os quatro episódios apresentados e circustanciados vêm com o suporte de dados e opiniões sobre os debates judiciários e as sentenças definitivas de cada caso A influência da posição dos peritos nas sentenças dos juízes o tipo e a qualidade dos diagnósticos apresentados pelos profissionais de psiquiatria que se encarregam de O Crime Louco 18 perícias a visão das patologias portadas pelos que cometem aos crimes são alguns aspectos bem detalhados e documentados sobre os casos apresentados A previsibilidade das ocorrências criminosas se estabelece como cerne da análise e das motivações para o julgamento das ações dos profissionais que são colocados em condições de réu Os históricos prontuários e os contextos são os vetores para que se defina no processo judiciário especialmente em relação à análise pericial se era possível aos psiquiatras e outros integrantes dos corpos profissionais envolvidos nos casos prever ou não a possibilidade de ocorrência dos crimes relatados A responsabilidade da posição de garantidor a eficiência neste papel o cumprimento de requisitos terapêuticos institucionais e burocráticos são arrolados e investigados de forma a atribuir responsabilização ou absolvição do profissional de saúde mental Outros temas eficientemente abordados no livro são as constatações de que o tratamento da loucura é possível os efeitos transformadores da desinstitucionalização e a responsabilização do próprio paciente pelos seus atos delituosos Estes assuntos não estão isolados na obra mas permeiam a elaboração dos autores a partir de cada caso com dados históricos sobre o processo de reforma e transformação prática das instituições psiquiátricas na Itália além do contexto legal jurídico em que cada incidente ocorreu Os questionamentos acerca da legislação aplicada e dos procedimentos processuais são constantes e podem ser sintetizados numa dura constatação A criminologia italiana de inspiração lombrosiana desde o final do século XIX sanciona qualquer ato criminoso como patológico coloca como proeminente a individualização da periculosidade do mesmo ato em relação à sociedade calibra a conseqüente sanção sobre o mecanismo de defesa da sociedade com o conseqüente controle do louco As sentenças nos casos apresentados resultam para os pacientes em internação em manicômios judiciais de forma a isolar perpetuamente O Crime Louco 19 o sujeito Mesmo nos casos em que a sentença não estabelecia que a internação fosse pérpetua na maioria dos casos apresentados a morte dos pacientes aconteceu nestes estabelecimentos A possibilidade de cura ou as condições para que esta ocorressem não foram fatores preponderantes nas sentenças cumpridas A evolução do tratamento deste tipo de caso é evidente nas sentenças relativas ao caso Maria Letizia Michelazzi mais recente pois coloca em foco que não é mais automático que se alguém delinqüe e não é capaz de entender e querer o médico que tivera mesmo que só um contato com ele responda pelo fato de não ter impedido o resultado Nesta altura da obra se consegue estabelecer e contestar que a periculosidade seja a consequência inevitável de uma patologia e que a prerrogativa de reconhecer os possíveis danos a outros seres humanos seja do profissional Finalmente um dos méritos do livro é dar a vazão às versões dos próprios pacientes à voz do cidadãoloucoresponsável por um crime instruindo para que esta seja ouvida nos processos judiciários e levada em conta para a elaboração e aplicação de sentenças O crime louco é um referencial para profissionais da saúde mental juízes estudantes e docentes de Medicina e Psicologia familiares legisladores e criminalistas A linha evolutiva do cuidado ao louco infrator na Itália assim como a visão do judiciário sobre os mesmos pode nos ensinar muito sobre os avanços que ainda temos a realizar no Brasil em relação a este tema e à luta pelo fim do manicômio judiciário sem dúvida o pior do pior É com muita satisfação que o Conselho Federal de Psicologia publica a tradução para o português desta bela obra como um presente à sociedade pelos 50 anos da Psicologia como profissão regulamentada no Brasil O Crime Louco 20 Índice Introdução 19 I O problema 25 1 O incipit 25 2 O incidente 32 3 O concurso culposo no delito doloso 35 II O incidente de Ímola 43 1 O fato 24 de maio de 2000 43 2 As perícias 91 3 As sentenças 116 4 O procedimento civil 138 III O incidente de Gorízia 156 1 O fato 26 de setembro de 1968 156 2 As perícias psiquiátricas 161 3 As sentenças 184 4 Considerações sobre o incidente de Gorízia 188 IV O primeiro incidente de Trieste 197 1 O fato 10 de junho de 1972 197 2 As sentenças 199 3 Considerações sobre o primeiro caso de Trieste 201 V O segundo incidente de Trieste 208 1 O fato 29 de junho de 1977 208 2 A perícia 212 3 As sentenças 214 4 Considerações sobre o segundo caso de Trieste 217 O Crime Louco 21 VI As questões 222 1 A perícia psiquiátrica 222 2 A violência em psiquiatria e a noção de periculosidade social 232 3 O nó górdio do hospital psiquiátrico judiciário 236 4 Responsabilidade civil e penal do médico 245 VII Os documentos 257 1 Atestados de solidariedade a Franco Basaglia e Antonio Slavich 257 2 Perspectivas de reforma da imputabilidade e do correspondente tratamento sancionatório 282 VIII Conclusões 296 1 As sentenças 296 2 O erro profissional 298 3 O incidente 302 4 A imputação de homicídio culposo em delito doloso e a posição de garantidor 304 5 Uma sentença discutível 308 6 A voz ausente 310 Bibliografia 315 O Crime Louco 22 A flor da minha vida se desabrocharia de todos os lados se um vento cruel não tivesse murchado minhas pétalas do lado que vocês olhavam da aldeia Da poeira levanto meu protesto meu lado em flor vocês não vêem Vocês os vivos são verdadeiramente tolos não conhecem os caminhos do vento e as forças invisíveis que governam os processos da vida da Antologia de Spoon River de Edgar Lee Masters Dedicado a Alberto Ateo Caterina Fabio Giordano Giovanni S Giovanni M Maria Letizia Milena O Crime Louco 23 Introdução Ernesto Venturini Os temas da violência na psiquiatria da responsabilidade dos médicos e da imputabilidade do louco autor de crime constituem ponto complicado e complexo tanto no direito quanto na medicina A matéria é objeto de vivos debates e as sentenças judiciais evidenciam as incertezas com que esta é eventualmente enfrentada Não obstante o amplo consenso que acompanhou a revolução basagliana na Itália o nó do Hospital Psiquiátrico Judiciário desafia uma solução E se o tema da imputabilidade do louco e das medidas de segurança por periculosidade social ainda não encontrou uma formulação conforme o novo paradigma psiquiátrico temos que convir que razões difíceis e não resolvidas estão na base dessa problemática Pensei que confrontando a maneira com que foram enfrentados alguns emblemáticos episódios delituosos no arco de quase quarenta anos seria possível entender como a idéia da periculosidade do louco foi se modificando ao longo do tempo e especialmente qual tem sido o pensamento das instituições a que se delega a administração do crime a magistratura a psiquiatria a psiquiatria forense Selecionei quatro episódios ligados a algumas das experiências mais radicais de desinstitucionalização pois nesse âmbito é possível verificar mais eficazmente se o desafio lançado à psiquiatria tradicional obteve seus resultados Os quatro episódios dizem respeito a acusações feitas a psiquiatras de concurso culposo em delito doloso cometido por seus pacientes desenvolvendose segundo uma sucessão cronológica que atravessa o iter da reforma psiquiátrica no início do processo de desinstitucionalização em 1968 em Gorízia durante seu desenvolvimento em 1971 e em 1977 em Trieste e em época recente em 2000 em Ímola O episódio de Gorízia é apresentado por Domenico Casagrande psiquiatra colaborador de Franco Basaglia Ernesto Venturini gof9013iperbolebolognait O Crime Louco 24 à época do incidente Casagrande enriquece a reconstrução com material inédito com as perícias e sentenças do processo algumas cartas e declarações de apoio endereçadas a Franco Basaglia Por sua vez Lorenzo Toresini também psiquiatra descreve dois funestos eventos ocorridos em Trieste durante o período de superação do hospital psiquiátrico quando contribuía ativamente para o alcance de tal objetivo Acusado em um dos casos Toresini escreveu um precioso livro sobre o tema La testa tagliata Sobre o incidente de Ímola falo diretamente valendome de rica documentação processual À época dos fatos eu estava ali investido no cargo de diretor do Departamento de Saúde Mental Francesco Maisto presidente do Tribunale di Sorveglianza1 de Bolonha enfrenta com especial competência e clareza o tema da reforma da imputabilidade e do correspondente tratamento sancionador tendo em conta as mais recentes propostas de modificação do Código Penal Pergunteime se o confronto das sentenças concernentes aos quatro episódios revelaria coerência ou disparidade de juízos e neste último caso se estaríamos diante de uma evolução ou uma involução dos princípios da reforma psiquiátrica Em todo caso meu interesse é o de trazer à luz o papel desenvolvido pela psiquiatria forense na formulação do juízo penal e pesquisar os influxos que as transformadas condições políticosociais exercem sobre o pensamento jurídico As sentenças e perícias serão examinadas não para levantar críticas a técnicos e colegas cuja correção e profissionalismo são reconhecidos mas sim para tentar desenvolver a partir do material produzido leituras diversas das tradicionalmente sustentadas pelos especialistas e demonstrar o quanto a posição dos peritos acaba por influenciar as sentenças dos juízes Tratase de contrapor uma metodologia alternativa à que alguns psiquiatras 1 Nota à edição brasileira Tribunale di Sorveglianza é o órgão judiciário que atua na execução penal O Crime Louco 25 forenses e criminólogos usam correntemente fundada em uma visão da doença mental arcaica e reducionista Sob esse aspecto naturalmente é digna de preocupante atenção a sentença da Corte de Cassação IV Seção 14112007 concernente à condenação por homicídio culposo de um psiquiatra em razão do delito doloso cometido por um paciente Essa sentença parece representar uma exceção à jurisprudência tradicional Segundo alguns configuraria um verdadeiro ataque à lei da reforma psiquiátrica pois estaria a reintroduzir no agir psiquiátrico a lógica da custódia em contraposição às exigências do tratamento É oportuno portanto abrir espaço para uma reflexão aprofundada sobre o conceito de posição de garantidor em relação a terceiros atribuída na sentença ao psiquiatra embora também pareça oportuno reconsiderar a responsabilidade penal dos médicos a periculosidade do paciente psiquiátrico e ainda a problemática mais abrangente da imputabilidade dos loucos Estes temas são tratados no livro no capítulo das Questões Os que não têm familiaridade com a linguagem jurídica poderão achar enfadonha a leitura de alguns trechos em que são abundantes as referências a normas leis e sentenças Outros ao contrário poderão achar que tais referências estão incompletas julgar que tenham sido tratadas de maneira diletante torcer o nariz por conta de uma linguagem um tanto desenvolta Ambos estarão certos pois essa talvez seja uma consequência inevitável do confronto entre mundos diversos e linguagens especializadas quando se procura dar respostas a problemas complexos Em todo caso é minha intenção privilegiar como diria Maisto o factum em relação ao dictum dar relevância ao impacto que conceitos como periculosidade social inimputabilidade mas também homicídio culposo têm sobre o destino das pessoas evidenciar a distância entre as fórmulas do direito e da psiquiatria e a realidade da vida O Crime Louco 26 Mas outra motivação mais complexa e de todo modo intrigante também me levou a tratar desse tema Especialmente nestes últimos anos tem sempre me impressionado o modo como habitualmente se desenrolam no tempo alguns processos midiáticos da fase das investigações até a sentença Hoje é comum constatarmos como a utilização de peritos ao invés de esclarecer os fatos e conduzir a conclusões certas tende ao efeito oposto os acontecimentos se complicam e nos encontramos cada vez mais distantes da verdade O paradoxo é que não se trata de um déficit de conhecimento mas exatamente ao contrário estamos diante de um excesso de verdade Demasiadas verdades confundem e atenção não falo de falsas verdades ou verdades parciais falo de verdades verdadeiras Esta reflexão é particularmente evidente em uma das situações tratadas nesse livro a que diz respeito ao caso Ímola Meu interesse nesse caso sem dúvida deriva também de um envolvimento pessoal sou parte no evento na qualidade de diretor do Departamento de Saúde Mental de Ímola à época dos fatos A desinstitucionalização desenvolvida em Ímola constitui parte relevante da minha vida não apenas profissional É também resultado de um processo de grande relevância científica e ética levado a efeito com excepcional empenho e grande entusiasmo por tantos operadores médicos enfermeiros e educadores A maneira pela qual essa experiência foi descrita nos autos do processo não presta homenagem a essa verdade outras verdades sem dúvida respeitáveis são colocadas em primeiro plano e isso pode ser justo mas afinal correse o risco de que tais verdades sem um contraditório acabem por ser absolutizadas gerando confusão e incerteza Quando então reflito sobre como os juízos dos peritos foram elaborados me impressiona a relevância com que pequenos eventos ou pequenas faltas podem ter influenciado na reconstrução judiciária Constato como matizes omissões interpretações feitas de ângulos diversos podem conduzir a considerações tão distantes umas das outras De certo modo volta a se colocar e tenho certo pudor O Crime Louco 27 em falar de tema tão complexo o problema da investigação crítica em torno da estrutura lógica do conhecimento a que os filósofos chamam de epistemologia Sou fascinado por essa problemática reconhecendome no entanto incompetente e diletante ainda que o método de investigação de reconstrução de eventos de certo modo devesse me ser familiar O diagnóstico constitui efetivamente um dos momentos centrais da profissão médica O médico deve interpretar os sinais deve como um detetive seguir as pistas representadas pelos sintomas ouvir observar e chegar à conclusão diagnóstica A discussão de casos bem o sabem todos os que desenvolvem meu trabalho fundase na investigação na formulação de hipóteses na busca de provas constituindo um dos momentos formativos centrais da profissão do psiquiatra Representa uma espécie de conhecimento infinito pois não há como pôr um fim ao conhecimento do comportamento humano em cada discussão há sempre algo de novo e original a ser descoberto conforme as pessoas e a época em que o tema é tratado Quando então esse momento é conduzido por um supervisor particularmente competente experimentamos uma emocionante sensação de descoberta e revelação Os tempos lentos e dilatados da análise permitem perceber as realidades das pessoas e das coisas habitualmente escondidas A certa altura porém surge um problema poder examinar a frio um evento ou uma história analisar cada particularidade com uma lente de aumento deslocando o foco da atenção ora para frente ora para trás evidencia como aquilo que definimos como o real é tão somente uma das tantas das infinitas possibilidades da existência Se cristalizarmos os acontecimentos da vida na imobilidade da análise os acontecimentos acabarão por adquirir uma profundidade epifânica feita de méritos infinitos mas também de infinitos erros O suceder natural dos eventos de todo modo esconde ou resolve os erros enquanto uma análise parcelada fora do tempo pode impiedosamente revelarnos todos os nossos erros mesmo aqueles de que não temos consciência É por essa razão que as organizações fundadas no elemento humano como O Crime Louco 28 a organização de tratamento e assistência ao doente sempre se caracterizam por sua extrema relatividade e por serem meramente opinativas Eis porque as análises desse livro são assimiláveis a uma espécie de discussão de casos procurando corresponder ao dever primário da profissão médica compartilhar a própria experiência do erro para evitar que o erro se reproduza Ainda uma última consideração No caso de um processo judiciário por crime de um louco estão envolvidos níveis e âmbitos de leitura dos fatos delituosos diversos entre si complicando um juízo completivo além da ótica dos psiquiatras têmse a dos peritos psiquiatras a dos criminólogos a dos magistrados e ainda a dos advogados Aparentemente símiles tais óticas porém subentendem metodologias e fins diversos Enquanto a ótica do clínico por exemplo interessase pelo erro humano ou organizacional a ótica do jurista busca a culpa do indivíduo ou dos indivíduos Enquanto na psiquiatria clínica e na própria psiquiatria libertada pela lei da reforma propõese substancialmente o interesse do paciente na psiquiatria tradicional que infelizmente volta a campo com toda força em razão do descumprimento das missões dos políticos e do hoje tão difuso sentimento de insegurança da sociedade repropõe o interesse de terceiros as necessidades dos normais em detrimento das necessidades dos diferentes assim repropondo o controle social dos loucos Em essência recolocase mais uma vez a indagação que Franco Basaglia fazia a si mesmo e a nós em 1967 indagação que parecia resolvida e que no entanto ainda permanece em aberto o que é a psiquiatria O Crime Louco 29 I O problema Ernesto Venturini 1 O incipit Eu Pierre Rivière que degolei minha mãe minha irmã e meu irmão desejando revelar os motivos que me levaram a essa ação escrevi sobre toda a vida em comum de meu pai e minha mãe durante seu casamento A voz do jovem comissário inicialmente incerta e velada cresce em segurança à medida que prossegue na leitura do trecho que lhe foi designado O incipit da memória de Pierre Rivière obtém o resultado que eu esperava há um silêncio profundo na sala de aula da Universidade percebese uma tensão envolvente Costumo concluir meu curso no mestrado de Criminologia e Psiquiatria Forense com essa leitura extraída do célebre livro de Michel Foucault direi como resolvi cometer esse crime o que estava pensando na ocasião e qual era minha intenção falarei também sobre a vida que levava falarei sobre o que me passou pela cabeça depois dessa ação a vida que levei e os lugares onde estive depois do crime até minha prisão e quais foram as resoluções que tomei Todo esse trabalho será lavrado grosseiramente pois mal sei ler e escrever mas para que se compreenda o que quero dizer é isso que peço redigirei tudo da melhor forma que puder Preparei cinco cópias datilografadas e distribuí os papéis além de Pierre há a voz do narrador o doutor Bouchard e o doutor Vastel e finalmente o prof Esquirol Nossos atores se revezam na leitura Em tenra idade isto é por volta dos sete ou oito anos prossegue Pierre Rivière em suas memórias tive uma grande devoção Punhame à parte para rezar a deus pensava em ser padre e meu pai dizia que faria com que eu chegasse lá Mais tarde mudei de idéia pensava em ser como os outros No entanto tinha minhas particularidades Meus colegas de escola percebiam e zombavam de mim eu atribuía seu desprezo a alguma estupidez que eu tivesse O Crime Louco 30 feito inicialmente e que eu supunha tivesse me desacreditado para sempre Àquela época e mesmo antes eu estava tomado por idéias de grandeza e imortalidade me julgava muito superior aos outros e até hoje tive vergonha de dizêlo pensava que me elevaria muito além do meu estado Malgrado esses desejos de glória amava muito meu pai suas desgraças me tocavam profundamente O abatimento em que o vi imerso nos últimos tempos sua tristeza as dores constantes que sofria tudo isso me tocou vivamente Na primeira parte do curso durante o sempre apaixonado debate que acompanha o tema da periculosidade social do doente mental não pude deixar de pensar a quem atribuir os papéis Os inscritos no mestrado formam uma amostra bastante heterogênea há advogados psiquiatras forenses mas também funcionários públicos assistentes sociais jornalistas Não é fácil estabelecer uma linguagem comum De todo modo nenhum dos presentes conhecia esse livro Procurei então sintetizar através dessa representação o extraordinário estudo de Foucault Em torno desse caso de parricídio ele descreveu a estratégia dos aparatos estatais e científicos franceses que inspiraria a reforma legislativa de 1838 a primeira lei sobre psiquiatria de um Estado europeu lei promulgada três anos depois do evento descrito no livro Tratavase de um processo explica o próprio Foucault de um acontecimento em torno ao qual e a propósito do qual vieram a se cruzar discursos de origens de formas e de funções diversas o discurso do juiz de paz do procurador do presidente do tribunal do ministro da Justiça o discurso do médico da aldeia o de seus habitantes com o prefeito e o pároco e finalmente o discurso do homicida Creio prossegue Foucault que se decidirmos publicar esses documentos será para fazer emergir de alguma forma o plano dessas lutas diversas recuperar esses choques e essas batalhas Documentos como os do processo Rivière podem permitir a análise da formação e do jogo de um saber como a medicina a psiquiatria a psicopatologia em suas relações com determinadas instituições e os papéis ali estabelecidos como a instituição judiciária com O Crime Louco 31 o perito o acusado o louco criminoso etc Permitem decifrar as relações de poder de domínio e de luta no interior das quais os discursos se estabelecem e operam permitem portanto uma análise do discurso e também dos discursos científicos que esteja ligada ao acontecimento e seja ao mesmo tempo política e assim estratégica Ali se pode enfim encontrar o poder perturbador próprio de um discurso como o de Rivière e o conjunto das táticas pelas quais se procura encobrilo inserilo e qualificálo como discurso de um louco ou de um criminoso Meus improvisados atores nos levam para dentro da atmosfera do tribunal de Caen A assistente social que personifica o doutor Bouchard membro da Academia Real de Medicina de Paris está concluindo seu depoimento pericial diante dos jurados Dotado de um temperamento bilioso e melancólico testemunha frequente das brigas de seus pais Rivière se ressentiu profundamente com as desventuras de seu paiEm sua solidão concebeu a idéia do crime em sua solidão retemperou suas forças antes de levantar sobre sua mãe sua mão parricida Pierre Rivière não é monomaníaco pois não delira sobre um só e único objeto não é maníaco pois não se acha em estado habitual de agitação não é idiota pois escreveu Memórias plenas de sentido enfim não é demente como é fácil constatar Portanto Pierre Rivière não é louco A jovem assistente olha para os colegas de curso à frente dela dispostos em um semicírculo o parecer que acabara de expor expressa o nível de uma ciência psiquiátrica incapaz de entender o louco abandonandoo à instância repressiva da justiça e assim condenandoo à guilhotina Agora é a vez do doutor Vastel À luz de diversos documentos e pelo que eu mesmo pude observar logo adquiri a plena e profunda convicção de que a mente de Rivière não era sã e o ato que aos olhos do Ministério Público constituía um crime horrendo não passava de resultado de uma verdadeira alienação mentalAs razões que determinaram minha convicção e que serviram de base a meu juízo foram extraídas do aspecto O Crime Louco 32 exterior dos modos de Rivière de sua origem e de seu parentesco do estado de suas faculdades mentais desde a infância da própria natureza do ato cometido e das circunstâncias que o cercaramA sociedade tem o direito de pedir não a punição desse infeliz pois sem liberdade moral não se pode ser culpável mas sim sua internação com base em um provimento administrativo como único meio de garantirse contra ulteriores ações desse alienado Seu parecer contradiz as conclusões do colega mas usa uma semiologia psiquiátrica e uma linguagem um tanto primitiva não consegue de modo convincente circunscrever ao âmbito médico a problemática dos loucos criminosos O jovem advogado que representa a voz do narrador descreve imediatamente após a peroração plena de convicção do advogado de defesa descreve a incerteza e a expectativa da população de Aunay descreve o desconcerto diante do veredicto de culpa de Pierre Rivière e sua condenação à guilhotina O crime em sua atrocidade decididamente parece obra de um louco mas os escritos de Pierre Rivière confundiram tudo As Memórias não são obra de um monstro ao contrário revelam extraordinária sensibilidade e lucidez Exatamente por isso paradoxalmente tornase inaceitável a idéia da guilhotina Mesmo entre nosso público de estudantes há certo desconcerto um ou outro interrompe a leitura muitos julgam a sentença equivocada quem não fala se põe de pé nervosamente Com efeito os próprios jurados do Tribunal de Caen tentam se resguardar formulando ao rei uma demanda de comutação da pena Agora cabe a você intervir encorajo a jovem guarda carcerária que está prestes a ler o parecer dos grandes especialistas parisienses Lembrese de que você é Esquirol célebre professor da Faculdade de Medicina de Paris presidente de uma comissão de luminares dentre os quais o próprio médico pessoal do rei Sempre fico impressionado com a capacidade de quem sabe entrar dentro dos acontecimentos e viver na pele de outrem Diante de meus olhos está o próprio Esquirol expressão maior da conjunção entre o saber e o poder psiquiátricos O Crime Louco 33 Sua análise suas palavras darão força e credibilidade à demanda de comutação da pena incorporando Rivière ao novo aparato psiquiátricojudiciário que vai se constituindo no quadro da reforma legislativa Considerando que Pierre Rivière sempre buscou a solidão que com frequencia foi visto a falar sozinho e se entreter com interlocutores invisíveis Considerando que o supracitado Pierre Rivière provém de uma família na qual se contam muitos loucosConsiderando que os motivos que levaram Pierre Rivière a matar a mãe a irmã e o irmão quais sejam o de libertar seu pai dos sofrimentos domésticos e se Ímolar como Jesus Cristo pela salvação dos homens indicam a falta de juízoConsiderando que o relatório sobre sua vida escrito pelo próprio Pierre Rivière revela uma aberração profunda e constante de suas faculdades intelectivas e seus sentimentos morais que a integridade de sua memória e a concatenação das idéias de que faz prova tal relatório não exclui a alienação mental sendo encontrada com frequencia em relatórios de maníacos ou monomaníacos que escrevem a história de sua doençaAprovando as conclusões enunciadas no parecer de Vastel sou de opinião e declaro que desde a idade de quatro anos Pierre Rivière não deixou de dar sinais de alienação mental que sua alienação mental persistiu embora menos intensa depois dos homicídios cometidos que tais homicídios devem ser atribuídos unicamente ao delírio Agora se restabeleceu a ordem e o momentâneo desconcerto desapareceu percebeuse que existe um saber existem pessoas especiais aparatos que sabem como interpretar o delírio e como se comportar diante do louco criminoso O que há de mais inatural do que um parricídio ou o assassinato dos próprios filhos Só se pode aceitar tal gesto se existe uma grave alteração da consciência ou se eventos contingentes explicam sua dinâmica mas se nos encontramos diante de um raciocínio lúcido como no caso de Pierre Rivière então nos vemos diante de um abismo o abismo da loucura que não somos capazes de compreender e tolerar É tão alentador saber que existe O Crime Louco 34 alguém que possa subtrair o louco da repressão da justiça alguém que possa demarcar a linha que nos separa daquela monstruosidade alguém com um poder especial originado de um saber especial e que saiba adotar medidas protetivas para ele e para nós Até nossos estudantes parecem serenados masmas Pierre Rivière decidiu driblarnos de novo como já fizera anteriormente com suas esplêndidas e emocionantes memórias Com efeito nosso jovem advogado ainda tem algumas páginas a serem lidas Transcrição de extratos das sentenças do juízo por sentença do Tribunal de Calvados na data de 12 de novembro de 1836 o já mencionado JeanPierre Rivière com vinte e um anos de idade nascido em Courvaudon residente na aldeia de Faucterie profissão agricultor declarado culpado de parricídio foi condenado à pena de morte mas por carta de graça datada de 10 de fevereiro de 1836 Sua Majestade concedeu a graça ao dito Rivière comutando a pena de morte em prisão perpétua O supramencionado começou a cumprir a pena em 10 de fevereiro de 1836 dia da comutaçãoCausas e data de saída o supracitado JeanPierre Rivière morreu em 20 de outubro de 1840 à uma e meia da manhã Uma breve pausa e nosso advogado retoma a leitura Do jornal Pilote du Calvados de 22 de outubro de 1840 Rivière condenado há alguns anos atrás como parricida e fratricida cuja punição fora comutada em pena de prisão perpétua por ter seu crime características de alienação mental se enforcou na prisão de Beaulieu Há algum tempo vinham se notando nele inequívocos sinais de loucura Rivière acreditava estar morto e não queria ter quaisquer cuidados com seu corpo acrescentava que queria que cortassem seu pescoço o que não lhe causaria nenhum mal pois já estava morto e ameaçava matar a todos se seu desejo não fosse satisfeito Esta ameaça fez com que fosse separado dos demais detentos tendo ele se aproveitado desse isolamento para se suicidar A imprensa que nas discussões travadas à época da condenação desse infeliz sem dúvida influenciou de alguma maneira a comutação da pena se apressa O Crime Louco 35 em citar o tipo de morte que confirmaria plenamente sua opinião sobre o estado mental de Rivière Na sala de aula as luzes foram acesas o clarão da neblina do lado de fora é filtrado pelos vidros embaçados das janelas A solução dos sãos foi contestada pelo louco Pierre Rivière quis se manter coerente com sua loucura ou melhor quis simplesmente ser coerente consigo mesmo Ser julgado louco não afastara seu senso de culpa e sua necessidade de expiação ao contrário aprisionavao em um destino que negava sentido àquilo que fizera àquilo que fora O que as perícias colocaram em jogo dizia respeito à atuação de um novo aparato médicojurídico para gestão do louco criminoso dizia respeito à definição de um novo poder de controle social Mas o que foi colocado em jogo dizia respeito também ao destino de um homem o destino que Pierre Rivière em um ato extremo outro ato extremo reivindicou para si Os atores trocam impressões muitos alunos se retardam pela sala manifestando a necessidade de expressar sua emoção um ou outro me pede as referências para comprar o livro A aula acabou o que no entanto não acabou e permanece em aberto é o problema de nossa incapacidade de entender de ajudar pessoas como Pierre Rivière Me disseram para botar todas essas coisas no papel e eu o fiz agora que mostrei toda minha monstruosidade e que todas as explicações de meu crime foram dadas espero a sorte que me está destinada conheço o artigo do código penal correspondente ao parricídio aceitoo como expiação de minhas culpas ai de mim se eu ainda pudesse ver revividas as desafortunadas vítimas de minha crueldade se para isso bastasse suportar todos os suplícios possíveis mas não é inútil posso apenas seguilas assim espero a pena que mereço e o dia que porá fim a todos os meus ressentimentos Fim O Crime Louco 36 2 O incidente Ao final de Istituzione negata surgem dois importantes apêndices Il problema della gestione escrito por Franco Basaglia e Il problema dellincidente em coautoria com Franca Ongaro Basaglia Por que será que essas reflexões vêm exatamente ao fim do livro apresentadas de forma tão especial quase como um complemento do que fora expresso anteriormente O problema da gestão explicam os Basaglia colocase porque a realidade institucional ainda que negada há de sobreviver para prosseguir testemunhando a necessidade e a urgência de uma negação da realidade atual em todos os níveis Quanto ao problema do incidente e de seu significado em uma realidade subvertida um passo em falso ou um erro podem confirmar aos olhos da opinião pública a impossibilidade de uma ação que revele abertamente suas falhas e suas incertezas enquanto qualquer outra realidade institucional trata de escondêlas cada uma delas sob sua própria ideologia Os dois artigos refletem uma fase especial vivida com a experiência de Gorízia à época da publicação do livro um paciente em saída livre matou a própria esposa Franco Basaglia e Antonio Slavich são responsabilizados por concurso culposo em delito doloso É o exemplo emblemático do incidente temido A dramaticidade do luto e do sofrimento se faz acompanhar da instrumentalização do acontecimento diante do ataque frontal por parte das forças contrárias ao processo de transformação institucional há o risco de desmoronamento de toda a experiência Mas esse texto sobre o incidente pretende ir mais além do contingente pondose o objetivo de corrigir uma fácil e equivocada leitura do processo de negação institucional Uma advertência vem substancialmente expressa atenção a todo desequilíbrio fácil em relação a visões ingênuas e maniqueístas da realidade O paciente em si mesmo não é nem perigoso nem imune à violência Seu comportamento se determina não tanto por sua patologia mas pelo O Crime Louco 37 acúmulo de contradições do contexto e sobretudo pela maneira com que vem administrada a doença O tratamento do paciente deve portanto assumir também essas contradições e tentar resolvêlas Como sempre os Basaglia subvertem os estereótipos dos enfoques tradicionais fazendo uma leitura à contramão da violência e da periculosidade tradicionalmente ligadas à idéia de doença mental A periculosidade não reside na especificidade do diagnóstico dependendo sim da falta de respostas às necessidades das pessoas Com lúcida intuição os Basaglia deslocam as fronteiras dessa contradição para além da instituição manicomial que naquele momento poderia ser facilmente erigida em única e irracional matriz da violência O incidente em psiquiatria é um evento atribuível à fisiológica probabilidade de erro ínsito em qualquer acontecimento natural mais especificamente naqueles altamente prováveis como no âmbito da medicina que se coloca na área fronteiriça entre a vida e a morte Mas o incidente em psiquiatria é também e principalmente um produto da rejeição às necessidades de tratamento e às lógicas de injustiça social Com efeito no interior da instituição manicomial a profecia da violência acaba por se autorrealizar pois tudo conspira para sua realização a organização institucional é como uma alucinante armadilha sem escapatória Todavia a luta contra o manicômio não se esgota na eliminação da estrutura pois também do lado de fora persiste seria melhor dizer preexiste na medida em que precede o sistema manicomial a lógica da exclusão e da manipulação Essa lógica produz violência ela mesma é violenta tendo a capacidade de se esconder nas dobras do poder sabendo manipular seus efeitos e conseguindo estimular e acentuar a reação violenta da vítima Essas considerações naturalmente não representam uma tentativa de justificação em relação a qualquer tipo de violência empregada por pacientes psiquiátricos ao contrário pretendem ressaltar a necessidade de cada um sempre se manter responsável por seus próprios gestos pretendem remarcar além disso a necessidade de O Crime Louco 38 todos nós compreendermos as razões da violência prevenindoa e lutando contra os pressupostos sobre os quais se funda Mas a palavra incidente pode nesses casos parecer um eufemismo e talvez o seja por esconder a palavra homicídio Atrás dessa palavra estão as mortes de uma mulher de dois velhos genitores de um homem jovem e até a de uma criança Diante dessas mortes experimentamse perdas e comoções sinceras São vítimas inocentes Como inocentes são seus assassinos com vidas feitas de tanto demasiado sofrimento destinados a morrer da mesma forma dramática no Hospital Judiciário E há os médicos que certamente não desejavam aquelas mortes que voluntariamente optaram por se situar naquela fronteira dolorosa entre a vida e a morte pessoas que obtiveram êxitos e ofereceram conforto mas que sempre que não o conseguiram sofreram feridas profundas É possível se acostumar com a morte E há os familiares para quem nada jamais poderá compensar aquela ausência Finalmente por trás daquela palavra estão os que são chamados a decidir sobre a vida das pessoas fazendoo através de um ritual composto de fórmulas números parágrafos destinados a tornar menos pesadas suas palavras pois quem julga será julgado O Crime Louco 39 3 O concurso culposo no delito doloso Objeto dessa pesquisa como antecipado é a imputação ao psiquiatra encarregado do tratamento de concurso culposo no delito doloso cometido por seu paciente Nesse livro são examinados quatro episódios que dizem respeito a tal situação apresentandose as circunstâncias dos fatos a maneira como se desenvolveram os debates judiciários e as sentenças definitivas Preliminarmente porém pareceme oportuno retomar um breve exame da jurisprudência italiana sobre o tema Existem fundamentalmente duas teses uma negando a admissibilidade tese negativa de concurso culposo em delito doloso e outra que ao contrário julgao possível tese positiva A orientação que nega a admissibilidade se refere à sentença no 9542 da Corte de Cassação Penal Seção IV proferida em 11101996 Na sentença são mencionados dois artigos do Código Penal art 42 parágrafo 2º CP segundo o qual a punibilidade a título de culpa só é reconhecível nos casos expressamente previstos em lei art 113 CP segundo o qual a coparticipação culposa só é reconhecível em caso de delito culposo Da leitura conjugada desses dois artigos se concluiria que o concurso culposo não é configurável em relação ao delito doloso o art 42 parágrafo 2º CP requerendo expressa previsão que no caso se faz ausente enquanto o art 113 CP fala em cooperação culposa no delito assim contemplando tão somente o concurso culposo no delito culposo A jurisprudência vem seguidamente confirmando essa orientação Uma das sentenças mais importantes é a de no 2059 da Corte de Cassação Penal Seção IV de 1121986 A sentença parte da imputação feita a dois psiquiatras acusados de homicídio culposo em cooperação no delito doloso Os médicos foram acusados com base nos arts 113 e 589 este posteriormente modificado pelo art1º O Crime Louco 40 da Lei 296 de 11596 parágrafos 1º e 3º CP de ter deixado de internar uma paciente psiquiátrica que depois de alguns dias causou a morte do filho A sentença de primeiro grau do Tribunal de Trieste proferida em 18111980 absolvera os médicos plenamente o fato não constituía crime enquanto a Corte de Apelação de Trieste em pronunciamento de 7121982 proclamara uma absolvição por dúvida finalmente a Corte de Cassação em 1121986 confirmou a absolvição por dúvida asseverando que não se tratava de concurso culposo em delito doloso mas de mero nexo de causalidade não se pode qualificar a morte da criança como delito doloso devendo se sim considerar o que essa de fato foi um puro e simples fato jurídico isto é um acontecimento modificativo da realidade com consequências jurídicas mas não enquadrável no conceito de crime por absoluta ausência do elemento essencial da vontade Portanto a questão deve ser posta exclusivamente no plano do nexo de causalidade entre a conduta omissiva ou presumidamente tal de uma parte e o delito cometido de outra Também tem certa relevância a sentença da Corte de Cassação que anulou a sentença da Corte de Apelação de Perugia A Corte de Apelação de Perugia em 9111984 presidente o Juiz Temperini declarara que Responde por homicídio culposo o médico responsável por serviço de saúde mental que malgrado explícita reivindicação dos familiares deixou de propor tratamento sanitário obrigatório em regime de internação hospitalar abstendose ainda de prescrever medidas terapêuticas alternativas idôneas em relação a um esquizofrênico que dois dias depois se fez responsável por um esfaqueamento letal vitimando sua mãe O juiz nesse caso entendeu que recai sobre o psiquiatra a posição de garantia e controle o que significa que a omissão de intervenções voltadas a impedir danos à pessoa provocados por comportamentos do doente equivale à causação do resultado danoso Mas a Corte de Cassação Cass Pen S IV de 5 de maio de 1987 substituiu a sentença pronunciada em O Crime Louco 41 apelação sustentando a ausência do nexo de causalidade entre a omissão de atendimento ao pedido de TSO2 e o evento homicídio praticado pelo doente mental observando que do pedido do primeiro médico à ratificação do segundo e ao decreto do prefeito muito se passara para permitir a conclusão no juízo hipotético de que o atendimento ao pedido de TSO teria com probabilidade vizinha à certeza impedido o resultado A Suprema Corte assim motivou sua sentença A internação forçada de enfermos mentais deve ser remédio extremo de caráter temporário enquanto por outra parte não podem ser atribuídas ao médico do centro de saúde mental tarefas policiais eventualmente necessárias diante de ações do doente mental daí resultando que não pode ser tido como responsável pelo crime do art 328 recusa de atos de ofício o médico do centro que tenha se omitido em promover internação destinada a afastar uma continuada situação familiar de genérica periculosidade Importante a seguinte consideração Admitindose que o dever de impedir danos a terceiros provocados por ações perigosas do paciente possa ser extraído de uma genérica posição de garantidor do psiquiatralogo se conclui que seriam atribuíveis à sua responsabilidade omissiva culposa somente os eventos que ex ante aparecessem como previsíveis e evitáveis com base na situação concreta Mas o problema que mais frequentemente se apresenta nas sentenças não é o do concurso culposo no delito doloso e sim naturalmente a hipótese de homicídio culposo diante de suicídio do paciente Digo naturalmente por considerar que a ocorrência de suicídios infelizmente constitui evento estatisticamente significativo nas depressões e em consequência naturalmente mas dessa vez com amarga ironia o psiquiatra que trata do paciente é chamado a responder por sua morte Tratarei desse tema no capítulo da responsabilidade civil e penal do médico 2 Nota à edição brasileira TSO é a sigla para Tratamento Sanitário Obrigatório O Crime Louco 42 Em geral constatase certa incerteza jurisprudencial em torno do problema da custódia As sentenças da Corte de Cassação além daquela primeira já mencionada só enfrentam incidentalmente o problema relativo à posição de garantidor e seu conteúdo Não está claro se essa posição deve estar voltada para o tratamento do paciente com base nas normas vigentes ou se deve estar voltada também para a custódia como quer parte da doutrina da medicina legal que argumenta com dados de necessidade Alguns médicos legistas pretendem que os poderes do médico em relação ao paciente sejam legitimados exatamente pela permanência a cargo do psiquiatra do dever de custódia Ao dizer deles as alterações psíquicas referidas no art 34 da Lei 833 coincidiriam com a periculosidade voltada contra si mesmo Sem dúvida permanece difícil separar a periculosidade voltada contra si mesmo daquela voltada contra terceiros que no entanto está excluída dos pressupostos de ativação dos procedimentos do TSO O requisito da periculosidade seja para si mesmo seja para terceiros até pela indeterminação que o caracteriza não basta por si só para se julgar legitimamente válidos os procedimentos para o TSO Com efeito o requisito primário para dar início a um TSO se funda na exigência de melhora da saúde da pessoa tratada e não em outras considerações Quanto ao mérito do problema da previsibilidade do resultado demonstrouse na maior parte dos casos que era impossível prever ex ante o tipo particular de comportamento futuro que acabou por resultar no crime Mas mesmo que se estivesse diante de um paciente psiquiátrico que expressasse propósitos agressivos suscetíveis de serem postos em prática logo depois a situação teria a ver com um problema de ordem pública e o psiquiatra deveria no máximo como qualquer outro cidadão procurar alertar os organismos a quem se delega o uso da força polícia etc Mas voltando ao tema do concurso culposo em delito doloso a tese negativa que faz referência à sentença no 9542 da Corte O Crime Louco 43 de Cassação Penal seção IV prolatada em 11 de outubro de 1996 é logo invertida pela própria Corte de Cassação quando explicitamente afirma que o concurso culposo é configurável também em relação ao delito doloso não o impedindo a previsão do art 42 parágrafo II CP que referindose apenas à parte especial do Código não diz respeito às disposições dos arts 110 e 113 CP Cass Pen s IV 9 de outubro de 2002 no 39680 Tratase de episódio em que foi afirmada a responsabilidade a título de culpa de um sujeito que pelo estado de abandono e negligente desleixo em que mantinha um depósito de borracha contribuíra para criar condições para que se verificasse um incêndio posteriormente ateado por desconhecidos A tal sentença coligase a sentença no 19842005 proferida em 251105 pelo juiz da Audiência Preliminar do Tribunal de Bolonha Mas sem dúvida é a sentença no 10795 da Corte de Cassação Penal Seção IV de 1132008 que parece trazer uma reviravolta decisiva no tema A sentença estabelece que o art 113 não exclui o concurso culposo em delito doloso sendo o dolo algo a mais mas não estruturalmente diverso da culpa o art 42 diz respeito apenas à previsão das normas incriminadoras individualmente consideradas e não à disciplina das regras sobre concurso arts 110 e 113 CP O concurso culposo no delito doloso é configurável quando a conduta culposa concorra com a dolosa na causação nexo causal do resultado Naturalmente a sentença é motivada por um caso específico mas parece querer afirmar alguns princípios gerais de certa relevância A sentença discute alguns temas gerais o concurso culposo no delito doloso a posição de garantidor a previsibilidade do resultado o princípio da confiança e o dever de informação do médico o tratamento do paciente psiquiátrico e o Tratamento Sanitário Obrigatório Sobre o concurso culposo no delito doloso esta sentença estatui O Crime Louco 44 que para se verificar a subsistência de uma culpa causalmente eficiente é preciso verificar a finalidade da regra de cuidado violada pelo agente Se a regra de cuidado se dirige também à tutela de terceiros contra a agressão dolosa a seus bens é a tutela finalística destes que torna configurável a participação do agente atuando culposamente O que se deve estabelecer concretamente é o resultado que a norma quer evitar Se a conduta do agente cria a oportunidade para que o terceiro realize o ato doloso a responsabilidade culposa do primeiro agente ocorre quando este é titular de uma posição de garantidor ou de um dever de tutela ou proteção e quando o ato doloso do terceiro seja previsível Com relação à posição de garantidor a sentença afirma que O respeito aos princípios da taxatividade e determinação exige que o círculo dos titulares do dever de garantia seja determinado subjetivamente e que os deveres sejam objetivamente determinados com exclusão de deveres morais É preciso pois que os titulares da posição de garantidor estejam dotados de poderes direta ou indiretamente impeditivos dos resultados danosos Em geral a posição de garantidor pode ter uma fonte normativa de direito público uma fonte normativa de direito privado podendo ainda se originar de uma situação de fato ou de um ato de determinação voluntária É comum distinguiremse duas categorias de posição de garantidor a de proteção que impõe o dever de preservar o bem protegido de todos os riscos que possam atingir sua integridade pais e a de controle que impõe o dever de neutralizar eventuais fontes de perigo exercício de atividades perigosas Mas a posição de garantidor do médico somente pode derivar da instauração da relação terapêutica entre paciente e profissional da saúde Tal relação pode surgir de um contrato ou com base na normativa pública de tutela da saúde internação em hospital ou em estruturas protegidas Nesses casos o médico O Crime Louco 45 independentemente do consentimento do paciente tem um dever jurídico de impedir o resultado danoso Outro tema de relevância conceitual enfrentado pela sentença da Corte de Cassação diz respeito à previsibilidade do resultado A previsibilidade referindose a um elemento subjetivo deve ser determinada ex ante com base no princípio de que não se pode atribuir ao agente a falta de previsão de um resultado que não poderia prever a partir dos conhecimentos que tinha ou deveria ter O fundamento da previsibilidade sob o aspecto subjetivo reside na necessidade de evitar formas de responsabilidade objetiva não basta que o agente tenha atuado com violação a uma regra de cuidado sendo necessário que tenha previsto que tal violação teria como consequência a verificação do resultado Somente se o perigo de ocorrência do resultado danoso for previsível ou reconhecível o agente estará obrigado a respeitar aquelas específicas regras de cuidado aptas a evitar o fato danoso A Corte de Cassação debateu o conceito de previsibilidade acentuando que alguns autores preferem falar de possibilidade de representação este termo é mais compreensivo podendo se referir não apenas a acontecimentos futuros mas também a acontecimentos concomitantes ou até mesmo anteriores à ação do sujeito Outros falam de possibilidade de reconhecimento a culpa resulta configurável quando a situação concreta se caracterize pela presença de elementos jurídicos e fáticos que em correlação com as próprias leis científicas e os conhecimentos empíricos utilizados pelo juiz para os fins de imputação do resultado teriam permitido que o agente representasse a concreta realização do fato previsto em lei como crime culposo A Corte de Cassação enfrentou em seguida o princípio da confiança e o dever do médico de informação Nesse caso estatuiu que Cada um responde pelas consequências da própria conduta comissiva ou omissiva e no âmbito dos próprios conhecimentos e especializações não responde no entanto por eventual violação O Crime Louco 46 das regras de cuidado por parte de outros partícipes da mesma atividade ou que atuem no mesmo âmbito de atividade a não ser que lhe seja atribuída uma função de controle das ações alheias em relação ao respeito a essas regras por parte dessas pessoas o agente deve poder confiar princípio da confiança Somente na hipótese em que o agente se dê conta da violação das regras ou suspeite de uma violação da diligência terá o dever de agir O médico em especial tem o dever de buscar com o paciente ou se isso não for possível com outras fontes confiáveis todas as informações necessárias à correta execução do tratamento praticado O último tema examinado na sentença diz respeito ao tratamento do paciente psiquiátrico e o Tratamento Sanitário Obrigatório A Corte de Cassação ressalta o alto valor da Lei 1803 que conferiu dignidade aos pacientes psiquiátricos e limitou o TSO unicamente a casos de necessidade de acordo com a perspectiva de tratamento e o respeito à pessoa Quando a situação do paciente é capaz de se degenerar inclusive com atos de auto ou heteroagressividade o TSO junto a estruturas hospitalares se destina a evitar todas as consequências negativas que o sofrimento psíquico causa a manifestação de violência e agressividade não acarreta dano somente ao terceiro agredido mas também ao agressor Por isso não se pode sustentar que a tutela sanitária obrigatória esteja preordenada exclusivamente à tutela do doente e não também de terceiros 3 Nota à edição brasileira A lei da reforma psiquiátrica O Crime Louco 47 II O incidente de Ímola Ernesto Venturini 1 O fato 24 de maio de 2000 Objeto relatório de serviço Delegacia de Bolonha Comissariado de PS Squadra Volante Ímola4 Ímola 2452000 Ao senhor diretor do comissariado de PS S e d e O abaixoassinado Inspetor MM5 na qualidade de Coordenador de Patrulhas refere a VSa o que se segue Cerca de 8h45m de hoje por ordem da COT6 a Volante Pedagna composta pelos Superintendentes MA e PL e pelo Agente Especial DCA deslocavase pela rua Giovanni XXIII no 2 junto à instituição Albatros onde a senhora MM qualificada em outros autos comunicara através da linha telefônica do 1137 que um paciente após ter ferido um educador com uma faca entricheirarase no quarto Prontamente no local os operadores constataram a presença do 1188 e requereram o auxílio da Volante 9 composta do escrevente 4 Nota à edição brasileira PS Squadra Volante corresponderia a uma equipe de patrul hamento da Polícia Estatal PS é a sigla de Polizia di Stato Nota à edição brasileira PS Squadra Volante corresponderia a uma equipe de patrulha mento da Polícia Estatal PS é a sigla de Polizia di Stato 5 Nota à edição brasileira No original em todo o caso Ímola foram usadas apenas as iniciais dos nomes de pessoas ou nomes fictícios Em nota ali constante explicavase que embora se tratando de fatos e documentos de domínio público inclusive on line foi feita a opção de respeitar ao máximo a privacidade dada a relativa proximidade dos aconteci mentos O mesmo critério não foi utilizado nos demais casos tratados no livro pelo longo lapso de tempo decorrido entre os outros acontecimentos e a publicação Na presente edição foram utilizados os nomes verdadeiros também no caso Ímola pois dirigindose a público nãoitaliano ausentes estão as razões que fundamentaram aquela opção 6 Nota à edição brasileira COT é a sigla para Centrale Operativa ou seja a Central de Operações 7 Nota à edição brasileira 113 é equivalente ao nosso 190 8 Nota à edição brasileira 118 se refere ao pessoal do ProntoSocorro Sanitário O Crime Louco 48 e do Assistente CG comunicando ao COT a presença de um ferido grave estendido no chão Logo à chegada soubese pelo pessoal de serviço na instituição que o agressor estava entrincheirado no interior de seu quarto situado no andar superior tendo sido também informado que ele estava armado com uma faca Logo que alcançado o quarto indicado foi notada a presença de um homem posteriormente identificado como MG nascido aosem residente à portador da carteira de identidade no expedida aos pelo Prefeito de parado à porta que se abria sobre o longo corredor Imediatamente M foi contido No pavimento entre as duas únicas camas na porta e em parte do teto notaramse manchas de sangue tendo sido encontradas ainda no chão embalagens de medicamentos e o registro das terapias No andar inferior mais especialmente no patamar situado entre a escada e a entrada da cozinha após os cuidados médicos prestados pelo Dr M foi constatada a morte por parada cardiocirculatória provavelmente por hemorragia dos grandes vasos coração de CA nascido aos em onde residia à rua portador da carteira de identidade no expedida aos pelo Prefeito de Com efeito o cadáver apresentava uma ferida de cerca de 3 centímetros de largura na região subclavicular esquerda provocada por uma arma perfurocortante e outra ferida igualmente provocada por arma perfurocortante na parte retroauricular direita com um profundo corte na nuca De se notar que as manchas de sangue vinham como dito do quarto de M onde fora encontrado o cadáver de C Com relação ao ocorrido MG foi detido pelo crime de homicídio doloso Transportado ao Comissariado e tendo em seguida sentido um malestar foi acompanhado ao PS9 do hospital de Ímola Sobre o colchão da cama usada por MG foi encontrada uma faca descrita no auto de apreensão com uma ponta afiada com cerca de 345cm de comprimento cuja lâmina estava suja de sangue faca 9 Nota à edição brasileira PS é a sigla de Pronto Soccorso ou seja ProntoSocorro O Crime Louco 49 de largura compatível com a ferida apresentada por CA No interior da cozinha cuja porta estava aberta foram encontrados em uma gaveta munida de fechadura não operante 9 facas melhor descritas no auto de apreensão de aspecto semelhante ao da faca encontrada no quarto de M G No local interveio a polícia científica dado o relevo do caso Foram ouvidos alguns dos presentes e em especial MM que referiu ter ouvido rumores de luta corporal provenientes do quarto de MG o qual dentre outras coisas há cerca de 15 dias vinha se mostrando agressivo em relação ao pessoal de serviço e aos outros moradores da instituição Vale notar que no andar superior onde aconteceu o fato conforme os testemunhos encontravamse apenas CA MG e IB anciã surdamuda que normalmente para sua tranquilidade pede para se trancar a chave Com efeito o quarto da mesma estava fechado a chave tendo sido aberto pelo escrevente através de uma chave universal providenciada pelos operadores da instituição Do ocorrido foi informado o membro do MP10 de serviço Dr O que mais tarde interveio diretamente no local assumindo as investigações Interveio ainda a Dra V médica legal O cadáver por ordem do Dr O foi levado para o necrotério da rua Certosa em Bolonha ficando à disposição da Autoridade Judiciária Enquanto isso outro funcionário apreendia a cartela clínica a das instruções e a da terapia de MG e de outros moradores da instituição Do ocorrido foi avisado o advogado de ofício GM do foro de Bolonha Cabe precisar que MG sempre em estado de detenção foi conduzido por ordem do MP ao Hospital Malpighi de Bolonha sob guarda do pessoal da Polícia estatal e da Polícia Penitenciária O que se relata por dever de ofício 10 Nota à edição brasileira Ministério Público O Crime Louco 50 11 Exame dos autos do processo Concluise inclusive com base nas sia11 colhidas logo após o fato que CA dirigiuse ao quarto de MG para ministrarlhe a terapia diária quando este o atingiu com dois golpes tendo CA se precipitado para o andar inferior em busca de ajuda acabando por cair morto no vão situado entre a cozinha e as escadas No chão do quarto dentre outras coisas estavam espalhadas embalagens de remédios que provavelmente CA deixara cair ao ser atingido por MG Das declarações surge essencialmente que MG nos últimos tempos vinha manifestando uma piora em suas condições mentais com efeito recusava a comida julgando que estivesse envenenada isolavase sentindose perseguido por tudo que o circundava evitando tomar os remédios que lhe tinham sido prescritos Restou demonstrado que essa piora foi consequência da diminuição da dose dos fármacos ordenada pelo Dr PE psiquiatra que tinha MG a seus cuidados desde novembro passado De se destacar que CP referiu que na tarde de ontem CA lhe contara que fora atingido no dedo da mão por um urinol lançado por MG que se recusara a receber os remédios O Dr PE disse ter optado por uma redução gradual da dosagem das injeções de neurolépticos injetáveis há cerca de três meses acrescentando ter pedido a todos os operadores que lhe referissem eventuais variações do estado psíquico do paciente Disse ainda que na sextafeira 195 pp após MG ter se recusado a se submeter a uma consulta de avaliação de seu estado de saúde e tendo em conta indicações vindas das operadoras do centro Albatros a sinalizar aspectos delirantes de isolamento e recusa de alimentação dirigiuse à casa familiar constatando uma efetiva piora da situação psicopatológica do paciente que se recusava a tomar o neuroléptico injetável aceitando no entanto recebêlo no dia seguinte com a Dra DA Referiu finalmente ter contatado o 11 Nota à edição brasileira sia se refere a informações O Crime Louco 51 Dr G do Centro de Saúde Mental da AUSL de Ímola para avaliar conjuntamente a eventualidade de submeter MG a TSO Do relatório dos consultores técnicos do MP vejase mais adiante se verifica Dos autos de SIT12 de 24500 devemos apontar algumas declarações que como veremos fornecem elementos úteis para a reconstrução dos fatos Começaremos pelas declarações prestadas pela Dra ML diplomada em pedagogia coordenadora da Comunidade Albatros Após ter descrito a evolução das condições psíquicas de MG até os dias imediatamente anteriores ao homicídio de CA não nos deteremos sobre este fato pois o examinaremos detalhadamente mais tarde a Dra ML declara o seguinte Na manhã da segundafeira seguinte 220500 fui informada por um dos operadores que MG em nada mudara seu comportamento razão por que cerca de 12 horas telefonei para o Dr PE mas como ele estava com pressa pediu que o chamasse depois das 17 horas tendo eu então lhe dito que minha colega BC o faria na ocasião lhe disse que MG há alguns dias vinha se recusando a receber as gotas de Valium e Entumin tendo o Dr PE me dito que pretendia incluir na terapia o Clopixol e que no final da tarde nos informaria sobre a dosagem Na manhã de ontem 230500 procurei a Dra DA para que prescrevesse o fármaco sugerido pelo Dr PE tendo em seguida ido à farmácia da Avenida DAgostino onde me foi informado que o remédio não estava disponível no momento mas que procurariam obtêlo para o dia seguinte ADR13 As relações entre MG e CA sempre se desenvolveram em um âmbito de normalidade jamais tendo havido quaisquer 12 Nota à edição brasileira SIT é a sigla de Sommarie Informazioni Testemoniali ou seja resumo de declarações de testemunhas 13 Nota à edição brasileira ADR significa a domanda risponde que corresponderia a perguntado respondeu no linguajar processual brasileiro O Crime Louco 52 episódios litigiosos entre os dois somente nesses últimos dias MG se comportava com CA do mesmo modo com que se comportava com a maior parte dos operadores ou seja recusando qualquer contato físico e visual Ainda dentre as declarações prestadas imediatamente após o fato delituoso parecemnos de notável importância as de DA F assistente de base da Comunidade Na verdade estava muito preocupada com tal comportamento a tal ponto dessa preocupação se transformar em medo Falei sobre isso com minha coordenadora e anotei tudo no caderno de registros que foi apreendido Tinha a estranha sensação de que alguma coisa iria acontecer Em posterior colheita de informações cfr Autos de SIT de 26500 foram ouvidas as Dras PAM CA e DA A Dra PAM médica psiquiatra do Departamento de Saúde Mental de Ímola desde 1982 que declarou ter trabalhado no hospital psiquiátrico local denominado Osservanza por cerca de 9 anos até seu fechamento ocorrido em 1996 recordou ter trabalhado na enfermaria no 7 de longa hospitalização durante cerca de dois anos O então médico chefe Dr VV considerando que a Dra era ainda inexperiente recomendou que ela não reduzisse a terapia neuroléptica de MG mesmo que ele continuamente o pedisse pois existia a possibilidade de o paciente se descompensar Segundo o declarado a Dra PAM teve o cuidado de transmitir tal recomendação à Dra CA a partir do momento em que esta começou a seguir o tratamento de MG e posteriormente quando a Dra CA foi substituída pelo Dr PE entendeu oportuno reiterar também a ele a referida recomendação A Dra CA médica psiquiatra do DSM de Ímola desde dezembro de 1966 declarou ter sido a psiquiatra assistente de M da primavera de 1997 ao outono de 1999 recebendo tal encargo da Dra PAM na medida em que o paciente não aceitava mais relacionarse terapeuticamente com ela A Dra CA confirmou que MG era um paciente difícil de tratar na medida em que jamais aceitava O Crime Louco 53 facilmente os remédios por entender que deles não necessitava pelo que considerou a possibilidade de diminuir a terapia oral para poder manter um bom relacionamento com o paciente Não soube precisar se diminui a dosagem da terapia neuroléptica via injeção mas afirmou que esta sempre fora ministrada periodicamente A Dra DA enfatizando sua qualidade de médica de clínica geral tendo assistido MG nessa condição confirmou ter ido em 1905 à instituição Albatros e ter ministrado a injeção do neuroléptico que MG anteriormente recusara Alguns dias depois 23500 a requerimento do psiquiatra Dr PE redigiu a prescrição de terapia neuroléptica oral Clopixol 25 mg Foram obtidos novos elementos informativos e assim cfr Autos de SIT de 29500 lêse que segundo FA assistente de base na Albatros M mudou após o falecimento de dois moradores da instituição por causas naturais que provavelmente fez surgir nele o medo da morte começou a se isolar cada vez mais recusandose inclusive a se alimentar Contextualmente do quanto declarado M começou a recusar a terapia oral não tomando mais as gotas e talvez nem mesmo os comprimidos Análoga colocação temporal sobre a mudança sintomatológica cerca de 15 dias antes do fato foi apontada por outros operadores ouvidos GSP funcionária da limpeza FA em serviço civil MM assistente de base 12 Relatório do diretor do departamento de saúde mental Fui convidado pela Direção da ASL14 a realizar uma investigação com os elementos de que tive conhecimento concluí se tratar substancialmente de uma fatalidade na medida em que os erros que se puderam apontar não assumiam características de culpa grave sobretudo não podendo se inscrever como causa eficiente do resultado a morte 14 Nota à edição brasileira ASL é a sigla de Azienda Sanitaria Locale isto é Empresa Sanitária Local A ASL é uma empresa pública O Crime Louco 54 Objeto Homicídio do operador CA Avaliação Ao Responsável Provisório do Distrito da AUSL de Ímola Dr SL Com referência à requisição do Diretorgeral de 8 de junho de 2000 prot no 13624 por mim recebida em 962000 realizei uma investigação sobre o caso com a finalidade de avaliar eventuais comportamentos negligentes quer de parte dos funcionários da Empresa quer de parte da Cooperativa que administra a instituição da rua Giovanni XXIII A investigação levou em conta tanto elementos objetivos fichas clínicas como elementos subjetivos depoimentos dos diversos indivíduos envolvidos Não foi possível obter as informações contidas no livro de registros de Albatros na medida em que este foi apreendido pela Autoridade Judiciária É provável que tal livro contenha elementos decisivos para a reconstrução dos fatos Levei em conta as declarações prestadas à imprensa nos dias seguintes ao homicídio pela mãe de C e por outros operadores Entretanto não foi possível valorálas na medida em que as afirmações frequentemente se mostraram genéricas imprecisas descontextualizadas Cordiais saudações Ernesto Venturini Ímola 16 de junho de 2000 Relatório Considerações conclusivas Estamos diante de um episódio psicótico agudo que surgiu repentinamente e não foi avaliado como perigoso por parte de diversos sujeitos inclusive os envolvidos mais de perto nos cuidados do paciente O modelo organizacional das residências naturalmente contempla a possibilidade de surgimento de uma crise ou do reavivamento da sintomatologia psicopatológica dos moradores prevendo uma gama de intervenções que podem chegar até ao Tratamento Sanitário Obrigatório Toda avaliação de caráter clínico naturalmente compete ao médico psiquiatra assistente O Crime Louco 55 A redução gradual e a suspensão da flufenazina decanoato operada pelo doutor PE sem dúvida têm uma justificação Os efeitos de discinesia tardia são especialmente deletérios para o paciente e quando suas condições físicas estão comprometidas exigese a adoção desse procedimento A recente suspensão do fármaco talvez possa ter tido algum peso na evolução da crise mais do que sobre seu aparecimento A escolha é frequentemente imposta pela necessidade de recuperar a compliance ao tratamento farmacológico por parte do paciente em situações difíceis O efeito da flufenazina decanoato se manifesta após 2472 horas e a eficácia sintomática se torna significativa após 4896 horas A ação dura de 2 a 5 semanas Podese concluir portanto que a injeção dada em 19 de maio tenha atingido sua dosagem eficaz entre 21 e 23 de maio sem considerar que de todo modo ainda subsistia o efeito da precedente injeção de flufenazina Em situações de crise aguda porém é oportuno acompanhar tal tratamento com outros fármacos neurolépticos ou tranquilizantes menores As prescrições foram corretas permanece no entanto incerta a ingestão regular dos fármacos por via oral Da reconstrução dos fatos não parece emergir uma subestimação do caso a situação foi avaliada dia a dia e se entendeu poder contar com uma ampla margem de tempo para evitar que se precipitasse Esta parece ter sido a conduta do Dr PE mas também de todos os outros sujeitos envolvidos no acontecimento que na manhã de 23 não julgavam dever lançar mão de outros procedimentos além daqueles em execução Incidentalmente gostaria de ressaltar que a exigência de se levar em consideração uma margem suportável de risco diz respeito ao cotidiano do agir na psiquiatria diz respeito à própria essência da psiquiatria Se se tivessem informações sobre ameaças aos operadores ter seia agido de forma diversa presumivelmente isto teria implicado a imediata internação e execução de procedimentos de segurança Por outro lado o Sr MG não era tido como potencialmente perigoso Após episódios de agressividade nos primeiros anos de internação O Crime Louco 56 no hospital psiquiátrico em circunstâncias e contextos especiais seguiuse uma longa história de total ausência de episódios similares havia uma notável mudança positiva Se como parece surgir das declarações da mãe de CA C demonstra seus temores na noite de 23 é evidente que haveria uma relação com o que acontecera na tarde de 23 ou após a reunião da equipe da manhã Teria havido um confronto verbal talvez físico entre CA e MG A ameaça e a agitação o lançamento de um objeto assumem um significado decisivamente alarmante significam o precipitar da crise e a concretização na vivência delirante de MG da figura de CA como a de um inimigo Por outro lado as diversas declarações confirmam a imagem de CA como a de uma pessoa corajosa disposta a assumir para si as situações difíceis generoso com os colegas tendente a minimizar os riscos O rápido desenrolar dos acontecimentos não permitiu a avaliação do que ocorreu na tarde de 23 o registro da noite não foi lido pela coordenadora ML a não ser talvez na manhã de 24 quando o homicídio já tinha acontecido ou estava para acontecer De tudo se extraem as seguintes considerações estamos diante de uma série de acontecimentos que avaliados separadamente demonstram escolhas que não podem ser tidas por gravemente incorretas em condições de risco tidas como mínimas Paradoxalmente tudo parece ter funcionado segundo o exigido porém até certo ponto Podese pensar no entanto que uma maior presença dos médicos do DSM da psiquiatra de referência da residência e do psiquiatra do paciente talvez tivesse permitido colher mais elementos permitindo considerar as experiências dos operadores da comunidade A comunicação entre os vários atores revelou incertezas É nessa direção que devem seguir as próximas escolhas do DSM Sem dúvida o elemento desencadeador da crise é de ser imputado à doença e à morte da moradora a quem o Sr MG se sentia ligado A esse acontecimento se juntaram outras circunstâncias secundárias de efeitos negativos a suspensão da flufenazina a morte de outra moradora o desencontro entre o pedido O Crime Louco 57 de um remédio para MG e sua efetiva presença em depósito A internação hospitalar de MG chegou a ser cogitada mas decidiu se esperar julgandose possível uma melhora do estado clínico do paciente O episódio ocorrido na tarde de 23 que fez precipitar a situação certamente teve papel determinante para a superveniência do resultado a morte Nesse sentido achamonos diante de uma objetiva impossibilidade de intervenção por parte do DSM na medida em que a informação não veio em tempo hábil Concluindo não se identificam comportamentos gravemente negligentes por parte dos funcionários da Empresa ou da Cooperativa Cordiais saudações O Diretor do DSM E V 13 O impacto social do fato O impacto do acontecimento na cidade de Ímola foi enorme morreu em circunstâncias dramáticas um homem de 45 anos conhecido e benquisto por seus concidadãos deixando um filho de tenra idade Mas foram sobretudo o contexto e a modalidade do fato que suscitaram maiores emoções A cidade de Ímola desde a primeira metade do século XIX constituiu sua identidade social em torno da psiquiatria mérito de personagens como Cassiano Tozzoli Andrea Costa e sobretudo Luigi Lolli Os dois hospitais psiquiátricos um direcionado para a província de Bolonha o outro para toda a Romagna e o Instituto Médico Psicopedagógico até o final dos anos 60 constituíram a principal atividade econômica da cidade com seus 2500 doentes e cerca de 1500 funcionários não havia família que não tivesse um parente ocupado no setor da psiquiatria O próprio processo de desinstitucionalização iniciado ao final dos anos 80 desenvolveuse sob uma ótica de forte envolvimento dos cidadãos Exemplo disso é o slogan que acompanhou tal processo Reabilitar a cidade Enquanto a reabilitação dos pacientes se fazia acompanhar do progressivo fechamento das enfermarias e da abertura de 23 O Crime Louco 58 residências no território de Ímola enquanto a adesão das cooperativas sociais ao processo abria novas perspectivas de trabalho para os jovens de Ímola era sobretudo a lógica do dentrofora e do fora dentro que constituía a estratégia de impacto sobre a cidade Alunos das escolas médias e superiores tinham contínuas relações com os doentes companhias de teatro formadas por doentes e estudantes representavam suas peças nos teatros da cidade no mesmo jornal apareciam escritos e poesias de doentes e moradores concertos e eventos culturais com personagens da cultura e do espetáculo eram promovidos nas residências dos expacientes o parque do exhospital se tornava por algumas semanas do ano o lugar de encontro lúdico esportivo e cultural da cidade os pacientes eram os protagonistas de algumas transmissões da mídia local e nacional uma quantidade cada vez maior de cidadãos dava sua colaboração voluntária às atividades da desinstitucionalização Havia em suma um verdadeiro envolvimento forte emocionante das instituições e dos cidadãos para a superação do hospital psiquiátrico A mensagem central desse processo social se concentrava na capacidade de olhar a loucura de forma diversa eliminando os estereótipos da irrecuperabilidade e da periculosidade ainda presentes no imaginário coletivo dos anos 80 É fácil entender portanto como o acontecimento de 24 de maio de 2000 tenha tido o impacto de uma bofetada uma ducha fria um brusco despertar É como se repentinamente as pessoas se dessem conta de terem sido enganadas Murmurase protestase não é verdade o que nos foi dito nesses anos os doentes mentais são perigosos quantas pessoas foram postas em risco Os que primeiro manifestaram sua perturbação foram os jovens operadores das cooperativas Sua raiva no entanto se fundava também em outras problemáticas que diziam respeito às suas condições de trabalho às problemáticas sindicais e remuneratórias Os trabalhadores das cooperativas são explorados mal pagos realizam tarefas que não lhes competem e frequentemente arriscam a vida lêse em panfletos e artigos na imprensa O Departamento de Saúde Mental O Crime Louco 59 não os protege as cooperativas não aplicam os devidos contratos A desinstitucionalização nessas circunstâncias revelou toda a sua superficialidade e ideologia É tocante a notícia de que Giovanni M fora anteriormente interno do Hospital Psiquiátrico Judiciário e que esta informação não era conhecida nem pelos operadores da cooperativa nem pelo médico assistente Se isso fosse sabido se dizia teriam sido adotados procedimentos muito diversos As pessoas querem um bode expiatório para aplacar sua raiva e seu medo repentinos e inesperados A mãe da vítima declara publicamente que não quer nenhum usuário dos serviços de Saúde Mental no funeral do filho Dirseá que no fundo é uma atitude compreensível mas permanece sendo um ato injusto e impensado é uma raiva cega contra os mais fracos e também contra a dedicação do próprio filho Os usuários da residência Ca Del Vento com muito equilíbrio tentam raciocinar sobre o evento mas suas declarações não são ouvidas O assessor municipal da saúde no passado partidário do processo de desinstitucionalização publicamente ordena que nenhum paciente psiquiátrico seja acolhido nas Residências Sanitárias Assistidas do Município A imprensa local sempre ansiosa por episódios de sangue dada a escassez de notícias descobre nesse acontecimento um filão inesgotável Nas primeiras duas semanas aparecem 93 artigos na imprensa nacional mas especialmente na local e outros 20 saem nas duas semanas seguintes Aliviamse os aspectos fúnebres do evento mas se publica uma sucessão de declarações de acusações e contraacusações de bem que eu tinha dito Em uma espécie de psicodrama coletivo a Prefeitura para atender a absoluta transparência abre espaço para audições públicas durante as quais na presença das diversas correntes políticas intervêm cidadãos e dirigentes do Departamento de Saúde Mental Esses encontros que deveriam servir para esclarecer revelamse no entanto happenings de histeria coletiva instaurando crises políticas de todos contra todos a verdade objetiva dos fatos não é mais tão importante quanto sua interpretação política A oposição quer cavalgar a apetitosa crise que O Crime Louco 60 se abateu sobre o Departamento de Saúde Mental apoiado em diversas ocasiões pelos políticos da situação no município Mas a crise perpassa as diversas correntes a Margherita e a Rifondazione Comunista15 se dividem internamente dando lugar conforme consolidados copiões a cisões Os sindicatos brigam entre si Até a Liga das Cooperativas top da economia local é arrastada para as discussões com efeito a Liga é a entidade de referência da cooperativa social que administra a residência Albatros Os inimigos da reforma psiquiátrica vendo em dificuldades os personagens que durante anos pontificaram no panorama local reforçam seus ataques Esperase que a direção do DSM salte pelos ares Naqueles dias foram enviadas notificações referentes aos crimes dos artigos 590 e 589 CP a três médicos psiquiatras do DSM que trataram de Giovanni M à assistente social do DSM que cuidava da ligação entre a cooperativa e o serviço público e à coordenadora da residência Começa um iter judiciário que se prolongará por 9 anos Enquanto isso Giovanni M após uma perícia psiquiátrica é absolvido por incapacidade total de entender e querer Subsistindo a dizer do perito sua periculosidade social é enviado ao Hospital Psiquiátrico Judiciário de Montelupo Fiorentino Declarada sua incapacidade processual arts 70 71 CPP sai completamente de cena culpado mas inimputável Após alguns meses no entanto o MP requer o arquivamento de todo o inquérito por insubsistência de lesão pessoal O ato é impugnado pelos advogados da mãe da mulher e do filho da vítima e pelo advogado de ofício de Giovanni M O GIP16 do Tribunal de Bolonha que rejeita o arquivamento o processo prossegue Duas médicas são excluídas das imputações 15 Nota à edição brasileira Margherita e Rifondazione Comunista eram partidos políti cos do campo da esquerda italiana A Margherita não existe mais correspondendo hoje ao Partito Democratico PD 16 Nota à edição brasileira GIP giudice per le indagine preliminari que poderia ser traduzido por juiz dos procedimentos preliminares ou juiz instrutor Figura inexistente em nosso sistema processual penal O Crime Louco 61 permanecendo envolvidos a assistente social a responsável pela residência e o doutor Euro P que pede o procedimento abreviado 14 A reconstrução dos fatos na fase instrutória A opinião pública permanece sensibilizada pelo diagnóstico de Giovanni esquizofrenia paranóica e seu passado Impressionam negativamente as internações nos Hospitais Psiquiátricos Judiciários de Reggio Emilia e de Aversa as repetidas internações nos institutos psiquiátricos de Ímola os comportamentos particularmente bizarros e sobretudo os episódios de agressividade e violência É o quadro de um paciente difícil que rejeita as terapias e se torna controlável somente com o tratamento de um remédio injetável de lenta atuação O paciente foi liberado do Hospital Psiquiátrico em 1995 com o diagnóstico de Síndrome residual em psicose esquizofrênica indo morar em uma residência assistida É descrito como um paciente trabalhoso desafiador e fatigante frequentemente pede que seja suspenso o tratamento farmacológico Nos últimos anos Giovanni mudou de psiquiatra três vezes e as informações não pareciam suficientemente adequadas O novo psiquiatra demonstra um conhecimento parcial da história do paciente mas procede à redução e sucessivamente à suspensão de um remédio injetável que o paciente usava há quinze anos As condições psíquicas do paciente demonstram desde então certa piora Giovanni manifesta inicialmente o receio de ser roubado No livro de registros dos operadores da residência lêse que pede com insistência para ser acompanhado ao banco porque quer retirar os trinta milhões de liras que depositou há mais de cinco anos De nada valem as explicações de que não possui mais aquela quantia usada nesses anos para pagar tudo de que necessita para viver Continua a repetir obstinadamente que se ninguém o roubou aquele dinheiro deve estar ainda depositado de outro modo terá que se dirigir à polícia Precisa necessariamente atribuir a alguém a culpa por não ter mais o dinheiro O livro de registros vale recordar não O Crime Louco 62 é um instrumento oficial e seu conteúdo jamais foi dado a conhecer nem aos médicos nem à assistente social é apenas um dispositivo utilizado pelos operadores da cooperativa para comunicações de serviço Naquelas páginas aparece um progressivo acentuarse das idéias de Giovanni sobre envenenamento e contaminação Os sinais de um malestar interior acentuamse cada vez mais Giovanni tem uma expressão no rosto de alguém que não está muito tranquilo como se tivesse alguma coisa grave Nesse meio tempo morrem por causas naturais duas moradoras da residência Giovanni era bastante ligado afetivamente a uma delas É evidente que o luto incide negativamente nas condições psíquicas de Giovanni A coordenadora da residência solicita a visita do médico ao paciente A piora é tangível Giovanni rejeita qualquer tratamento e se mostra agressivo O médico concorda que seria oportuno retomar o tratamento farmacológico interrompido e avalia mesmo a possibilidade de praticar um Tratamento Sanitário Obrigatório No final entretanto condiciona a decisão à disponibilidade do paciente em permitir a injeção do remédio por parte do Médico de Clínica Geral Com efeito no dia seguinte o paciente aceita tomar a injeção e o psiquiatra fixa a próxima visita para algumas semanas depois Todavia diante da ausência de melhora de comportamentos cada vez mais bizarros de ameaças a coordenadora da residência insiste em nova intervenção do psiquiatra Este prescreve por telefone um remédio que não pode ser ministrado por estar em falta na farmácia Durante a reunião periódica de equipe que tem lugar na presença da assistente social os operadores mesmo demonstrando preocupações pelo estado de saúde de Giovanni não se referem a ameaças Essa atitude estranhamente contrasta com o que surge do livro de registros dos operadores As últimas páginas evidenciam uma situação de alarme entre os operadores descrevendo inquietantes ameaças de morte por parte de Giovanni Nisso os fatos se precipitam Há alguns dias o educador profissional Ateo C insistentemente tenta convencer Giovanni a O Crime Louco 63 assumir a terapia oral Há momentos de aberto conflito e numa tarde Giovanni atira um urinol contra Ateo ameaçandoo de morte Na manhã seguinte Ateo vai sozinho ao quarto de Giovanni para ministrarlhe a terapia mas é morto Os investigadores fixam sua atenção na bateria de facas de cozinha de onde fora subtraída a arma do crime e indagam sobre as medidas de segurança adotadas Surgem versões contraditórias sobre as disposições relativas ao controle das facas segundo alguns as facas deveriam estar fechadas a chave outros declaram no entanto que não existem disposições a respeito O responsável pela segurança da residência era Ateo A imprensa transmite à opinião pública as seguintes mensagens Albatros é uma residência mais próxima a uma Residência Sanitária Assistida do que a uma estrutura psiquiátrica protegida profissionais da saúde médicos e enfermeiros são pouco presentes a periculosidade dos pacientes é ocultada do pessoal que trabalha na residência funcionários não profissionais da saúde são encarregados de ministrar remédios contrariamente às normas vigentes Os peritos do Ministério Público consideram o psiquiatra responsável pelo agravamento psíquico do paciente e seu comportamento violento por ter suspendido o remédio de que necessitava apontam deficiências nos sistemas de segurança da casa denunciam carências nos processos de comunicação e um comportamento gravemente inadequado por parte de Ateo 15 Uma leitura mais aprofundada do fato A descrição anterior corresponde à reconstrução do fato como apreendido nos primeiros dias e como talvez tenha permanecido na consciência de muitos operadores e demais cidadãos Todavia é apenas uma primeira e incompleta reconstrução dos acontecimentos já que pouco a pouco o evento se enriquecerá com novas particularidades fatos desconhecidos ou mesmo ocultados irão emergir O Crime Louco 64 O relatório que apresentei à direção da ASL que eu mesmo hoje julgo incompleto por ausência de algumas informações que surgiriam somente com o passar do tempo poderia parecer viciado por uma involuntária parcialidade de julgamento Em todo caso o diretor geral da Empresa Sanitária pediu também um parecer de um experto psiquiatra consultor da Região Emilia Romagna O novo relatório acentuava fortemente a responsabilidade profissional do psiquiatra na gestão da crise e denunciava uma atitude de difusa subestimação da periculosidade dos pacientes psiquiátricos Nessa linha e não na linha por mim indicada moveramse os peritos do MP entendendo também responsáveis pelo ocorrido a assistente social e a coordenadora da residência Tal interpretação em parte desmentida e em parte confirmada pelas sentenças como já pude apontar não esclarece a dinâmica dos fatos e deixa muitas circunstâncias nas sombras Com sentenças já proferidas sem o envolvimento emocional dos primeiros tempos e utilizando os conhecimentos que foram se acumulando examinarei de perto os três protagonistas do evento o psiquiatra a vítima o paciente e sucessivamente o funcionamento e a organização da residência Por quê Naturalmente porque sinto necessidade de dar minha chave de leitura dos fatos mas sobretudo porque o evento como já pude explicar pareceme paradigmático para uma reflexão em todos os campos sobre os temas da responsabilidade da periculosidade e da imputabilidade em psiquiatria Não quero exprimir julgamentos sobre ninguém nem sobre quem foi tragicamente envolvido no evento nem sobre quem peritos juízes desenvolveu conscienciosamente seu próprio trabalho Não pretendo que essa reconstrução seja a verdade é apenas a minha verdade Moveme a exigência profissional de aprofundar despindo me de qualquer preconceito de entender de apreender para avaliar uma experiência negativa e oferecer a todos os que compartilham esse difícil e fascinante trabalho os instrumentos para não se ver na mesma situação É a clássica análise que grupos de trabalho fazem sobre casos na presença de um supervisor O pressuposto de tais O Crime Louco 65 análises é a honestidade intelectual e a disponibilidade de acolher serenamente críticas e sugestões pois em medicina o erro humano é uma eventualidade possível e não infrequente 16 O cenário Albatros está situada em uma zona residencial da cidade no começo de uma rua larga e sem saída uma rua organizada tranquila Tem o aspecto de uma casa com amplo jardim e árvores que dão sombra No andar térreo estão localizados os banheiros e quartos dos operadores Uma escadaria externa dá acesso a uma ampla varanda onde as mulheres se sentam a costurar e os homens a jogar cartas no interior há uma sala de estar espaçosa mas é a cozinha o lugar mais animado e frequentado A sala de estar dá acesso a um apartamento autônomo para quatro pessoas com banheiros e uma pequena cozinha já uma escada interna leva ao andar superior onde outros moradores têm seus quartos e banheiros O jardim é o grande recurso da casa quando se organizam as festas as mulheres preparam doces e arrumam as mesinhas Quando no entanto tem se vontade de encontrar pessoas novas podese ir à sociedade da bocha tratase de um círculo ARCI17 que se encontra a pouca distância sempre muito animado e acolhedor 17 O imputado O doutor Euro P é um profissional competente tendo demonstrado em sua história ser pessoa consciente e responsável Até por isso é justo interrogarse sobre as razões de seu comportamento naquelas circunstâncias Os peritos do Ministério Público focalizaram sua atenção na suspensão da flufenazina decanoato sem motivo razoável e sem observar os protocolos internacionais além disso imputaram ao psiquiatra o fato de não 17 Nota à edição brasileira ARCI é a sigla de Associazione Ricreativa Culturale Itali ana isto é Associação Recreativa Cultural Italiana Há cerca de seis mil círculos ARCI por toda a Itália O Crime Louco 66 ter instaurado os procedimentos necessários para uma intervenção de urgência diante da crise julgamno particularmente responsável por não ter requerido o TSO considerando sobretudo o diagnóstico do paciente a tornar atos de violência fortemente previsíveis Imputamlhe ainda o fato de não ter se documentado sobre a anamnese do paciente considerando que as velhas fichas clínicas eram facilmente encontráveis no lugar de trabalho do médico Na realidade o psiquiatra dá uma motivação para sua escolha considera oportuno reduzir os psicofármacos diante dos efeitos negativos que seu uso prolongado pode ter em um paciente cardiopata o ECG revela um hemibloqueio anterior esquerdo com um processo específico pulmonar pregresso comprometimento hepático e tendência à hipertensão arterial Tratase de uma remodelação de terapia correta e devida em busca da dose mínima eficaz Provavelmente tenta ainda conseguir a adesão do paciente condescendendo com sua reivindicação de redução dos remédios Em todo caso julga ter a situação sob controle e dispor de tempo para corrigir eventuais contingências negativas A propósito da inobservância dos protocolos internacionais sobre a redução dos remédios injetáveis é necessário precisar que tais protocolos certamente constituem referência útil mas não têm caráter vinculante Quem trabalha no setor médico sabe que a prática impõe escolhas que nem sempre estão na média dentre a gama de intervenções possíveis às vezes é preciso se colocar em uma das extremidades dessa gama Além disso como está claramente expresso nas observações dos peritos das partes B e B C é incorreto falar em uma suspensão do remédio pois o efeito da precedente impregnação farmacológica comportava a presença de níveis sanguíneos do remédio mesmo no período de suspensão da administração intramuscular O desconhecimento da história pregressa do paciente é decerto uma falha importante O psiquiatra imputaa ao modo confuso com que se produziu a passagem do encargo de tratamento cuja responsabilidade O Crime Louco 67 poderia ser atribuída à colega que anteriormente tratava de Giovanni As mudanças de terapeutas em um serviço frequentemente acontecem por exigências de caráter organizacional Podem porém traduzir também dificuldades de gestão por parte dos profissionais da saúde nesse caso é preciso que a motivação fique clara para todos os sujeitos envolvidos Por outro lado a relação entre médico e paciente nem sempre é fácil e certamente é preciso tentar novos enfoques Nesse caso parece justificado que depois de duas figuras femininas tenha sido introduzida uma figura masculina como terapeuta O psiquiatra talvez envolvido pelo ritmo frenético do trabalho quotidiano tanto quanto é o de um serviço público de Saúde Mental provavelmente terá adiado o aprofundamento sobre esse caso que não considerava particularmente urgente pensa que bastaria conhecer o diagnóstico ter um conhecimento direto do paciente e saber que este se encontra em uma residência onde deveria vigorar um sistema de proteção Não se deve excluir que nesse caso o psiquiatra se sentisse menos exposto do que em relação a seus pacientes habituais que vê todo dia em um território onde por exemplo a permanência em casa de um paciente em crise é uma eventualidade cheia de riscos É no âmbito da nova clientela que se podem esperar maiores situações de urgência Por outro lado a jornada habitual de um operador da psiquiatria é marcada por escolhas difíceis às vezes sobre a própria prioridade das situações de risco Nesse caso o médico confia em uma organização administrada por uma Cooperativa privada mas inserida no circuito do Departamento de Saúde Mental No entanto como ressalta a sentença do Tribunal constitui regra comum da experiência que em qualquer atividade humana ao crescimento dos riscos deva corresponder a preparação de um sistema de cautelas e precauções apto a exorcizar a verificação de eventos danosos ou perigosos Em resumo o profissional não pode ser isentado do conhecimento e da verificação pontual e direta da O Crime Louco 68 eficácia dos instrumentos que usa a função terapêutica do contexto o conhecimento da história pregressa de seu paciente ainda que compartilhe seu campo de intervenção com outros sujeitos Quando os operadores da residência lhe pedem que dê a Giovanni a notícia da morte de Deanna a pessoa a quem o paciente era mais ligado o médico se subtrai ao dever julga que isso não faça parte de seu dever de psiquiatra julga erradamente que isso não tenha a ver com o âmbito de seu tratamento Não se sente investido dessa responsabilidade na medida em que não conhece Deanna os operadores da residência a seu ver estão mais aptos a enfrentar tal situação Mesmo quando os operadores lhe transmitem como exemplo de ansiedade as fortes preocupações de Giovanni sobre seu depósito bancário sua resposta ainda que se continuasse com as injeções esse problema não estaria resolvido demonstra certo distanciamento do caso que será severamente reprovado pelo Tribunal de Bolonha Essa atitude merece uma reflexão geral até porque constitui uma problemática eventualmente presente nos serviços psiquiátricos existe um afastamento organizacional mas também conceitual entre quem se ocupa dos estados agudos e faz tratamento e quem ao contrário se encarrega dos doentes crônicos e faz reabilitação Essa circunstância pode criar equívocos e tensões Os operadores da residência julgam que o psiquiatra enquanto médico assistente deveria se encarregar também das situações existenciais do paciente o doutor Euro ao contrário parece se ver como um especialista de segundo nível a quem não compete o quotidiano da vida do paciente Os operadores da residência são postos em posição desfavorável se encontram sozinhos na gestão das dificuldades Todavia mesmo a gestão da crise do paciente levanta algumas perplexidades Alguns se perguntaram por que o psiquiatra diante de um paciente que está delirando que se mostra especialmente angustiado com o fantasma da morte que recusa o tratamento não tomou imediatamente a O Crime Louco 69 decisão de internação O comportamento de Giovanni sua recusa seu delírio constituem um claro pedido de ajuda da forma que pode manifestálo um paciente psicótico Decerto não se pode pensar que a injeção de Moditen possa restabelecer em curto prazo a situação precedente nem que uma dose de Clopixol consiga conter angústia tão intensa é preciso uma dosagem farmacológica mais elevada e mais rápida O doutor Euro não deveria se sentir em dificuldades diante de tais circunstâncias até porque situações análogas são comuns no quotidiano dos serviços e sua gestão se impõe quase como rotina Em linha de princípio não se pode sustentar porém como afirmam os peritos que naquelas circunstâncias fosse absolutamente necessário o Tratamento Sanitário Obrigatório Com efeito o paciente declara sua disponibilidade para o tratamento injetável que se realiza pontualmente no dia seguinte fazendo desaparecer as condições de obrigatoriedade do TSO Talvez o doutor Euro se preocupasse exatamente em evitar o mais possível uma intervenção de grande impacto emocional como é a internação compulsória que frequentemente deixa feridas psicológicas profundas no paciente Mas o problema não é o TSO o problema é como responder a uma angústia tão intensa durante aquelas primeiras horas mesmo sem atenção estar condicionado por nenhum pensamento subjacente sobre a periculosidade do paciente Com efeito é preciso poder contar com modalidades de tratamento que tenham a mesma eficácia de contenção do TSO ainda que em um nível terapêutico mais elevado é preciso dispensar uma atenção inteligente respeitosa mas determinada em torno do paciente é preciso que os operadores se joguem pessoalmente com coerência e convicção a partir do psiquiatra que deve dar sua própria disponibilidade de intervenção 24 horas por dia Por outro lado é sabido que o próprio empenho do subordinado que deve seguir as orientações é sempre proporcional ao empenho de quem promove tais orientações O erro do O Crime Louco 70 psiquiatra nesse caso talvez se funde no fato de ter superestimado as possibilidades de contenção na residência e não ter exercitado a função que seu papel exigiria de verificar tais possibilidades Nesse tipo de situação teria sido ainda oportuno buscar a opinião dos colaboradores requerer um parecer aos colegas levar a questão aos dirigentes Esses procedimentos digase incidentalmente também têm um valor instrumental pois protegem o profissional em suas decisões não o deixando só e sobretudo fazem parte das indicações de boa prática em psiquiatria trabalhar tanto quanto possível em equipe O doutor Euro na verdade menciona ao colega de plantão a possibilidade de um TSO temse a impressão porém a partir do comportamento do próprio médico de plantão que a menção ficara abaixo de um verdadeiro sinal de alarme Mas o fator efetivamente decisivo para adotar naquelas circunstâncias as escolhas mais idôneas residiam no conhecimento da história pregressa do paciente no conhecimento das violências praticadas e sofridas Nesse caso Euro sem dúvida teria adotado critérios diversos de avaliação e teria dado à coordenadora e indiretamente a Ateo a possibilidade de agir com prudência Em resumo encontramonos diante de alguns erros clínicos são erros involuntários que fazem parte de acontecimentos não raros da prática médica e que poderiam ter sido evitados se outros mecanismos regulatórios e de controle tivessem funcionado mas infelizmente isso não aconteceu Quero ser claro e direto quem sabe quantas vezes todos nós eu em primeiro lugar cometemos erros semelhantes nos dando conta só depois de um tempo ou até mesmo permanecendo sem consciência deles Toda situação complexa expõe a riscos e lamentavelmente a erros Mas quantas outras vezes ao contrário resolvemos situações similares ou talvez muito mais difíceis arriscandonos pessoalmente e sem que ninguém nos tenha expressado um reconhecimento ainda que mínimo O Crime Louco 71 18 A vítima Lembro de uma noite de verão nas colinas de Ímola O aniversário de uma das duas irmãs G tornarase a ocasião para celebrar em sua bela casa de campo a festa de fim de curso para educadores profissionais do qual ambas tinham participado Naquele dia estavam presentes os estudantes e alguns de nós professores O clima era afetuoso o Sangiovese e a piadina18 facilitavam a comunicação entre nós todos Pusemonos a cantar e a certa altura Ateo ele também um dos frequentadores do curso com sua bela voz entoou Signor Generale de De Gregori Ao invés de todos juntos acompanharem a canção como acontecera até então dessa vez todos escutávamos em silêncio e ao final os aplausos foram significativos Ateo sempre soube se fazer estimado era simples e generoso sempre o primeiro a oferecer ajuda Às vezes porém seu entusiasmo era excessivo envolviase emotivamente de maneira intensa em algumas situações e perdia a paciência Durante o estágio no Osservanza várias vezes externou seu entusiasmo pelo modo com que se realizava a superação do Hospital Psiquiátrico Tornarase frequentador assíduo das iniciativas de desinstitucionalização O trabalho cívico sempre fora uma tradição familiar e Ateo estava orgulhoso de mostrar mais uma vez seu empenho O avô fora um socialista anarquista que dera o nome de Ateo a seu filho mais velho19 Quando Ateo morreu como partigiano na batalha de Purocele sua irmã prometeu a si mesma que daria o mesmo nome a seu filho o que efetivamente aconteceu Ateo tinha o nome do tio o herói o mesmo nome escolhido pelo avô Nosso Ateo começara a trabalhar apaixonadamente com jovens com necessidades especiais Seu sonho era o de poder dirigir uma piscina em que eles pudessem ter alguma atividade motora Mas alguma coisa não funcionou em seu trabalho no setor dos portadores 18 Nota à edição brasileira O Sangiovese é um vinho tinto A piadina é um tipo de focaccia Ambos são produtos típicos da Romagna 19 Nota à edição brasileira O avô socialista anarquista era também anticlerical Daí o nome Ateo que significa ateu O Crime Louco 72 de deficiências físicas Em algumas circunstâncias queria fazer as coisas a seu modo e se colocava contra as recomendações dos pais dos jovens portadores de necessidades especiais Em determinado ponto houve uma denúncia contra ele por maustratos e o responsável pelos serviços sociais requereu seu afastamento porque lesara a imagem da capacidade assistencial dos Serviços Sociais Imolenses A cooperativa social na qual estava inscrito como sócio há um ano o transferira para o setor que cuidava dos pacientes psiquiátricos sem informar aos responsáveis pelo Departamento de Saúde Mental a verdadeira razão de tal decisão Era um fato grave considerando que o novo setor era ainda mais delicado e complexo do que o anterior Os peritos do MP definiriam Ateo como inapto a desempenhar sua atividade com pacientes psiquiátricos por características de temperamento O afastamento do precedente lugar de trabalho deve ter sido vivido por Ateo com grande perturbação parecendome natural que buscasse a todo custo uma oportunidade de resgate Assim quando se tornou responsável pela segurança no interior da residência Albatros Ateo se fez portavoz do descontentamento dos operadores em relação à direção da cooperativa ainda não fora aplicado o contrato nacional as condições econômicas e sindicais dos sócios não eram boas o trabalho era muito pesado Pensara em ir ao programa de televisão Mi manda Rai 3 para denunciar a exploração dos operadores do terceiro setor na Itália tendo inclusive começado a escrever uma carta a Marrazzo20 para que seu pedido fosse acolhido A coordenadora da residência Laura M no entanto criticara várias vezes seu comportamento tendente muito mais a exasperar as contradições do que a resolvêlas Escreveu uma carta aos dirigentes da cooperativa afirmando que ele não estava apto a trabalhar naquele ambiente requereu seu afastamento sob pena de 20 Nota à edição brasileira Marazzo era o apresentador do referido programa de televisão O Crime Louco 73 ela própria se afastar Além disso Ateo estava estressado também por razões familiares separado da mulher tinha que cuidar do filho que lhe fora confiado Embora contando com a ajuda da mãe e das tias era certamente difícil conciliar as obrigações do turno de trabalho com as exigências de educação do filho No entanto sempre se mostrara firme no cumprimento dessa tarefa as professoras da escola do filho se lembram dele como uma pessoa atenta e disponível Quando na Albatros o trato com Giovanni foi se tornando dia a dia mais difícil Ateo pensou que tal situação poderia ser a oportunidade para finalmente mostrar a todos sua capacidade Nessa residência ao contrário de outros contextos não havia enfermeiros Nesse caso os remédios eram autoassumidos pelos moradores o operador se limitava a preparar os remédios conforme as prescrições médicas Na realidade por hábito e praticidade os operadores acabavam por ministrar os remédios mas jamais deveriam forçar a situação Diante de uma recusa do paciente deveriam transmitir a informação para que fosse avaliada pelo médico assistente Em caso de necessidade enfermeiros deveriam intervir Ateo no entanto tinha a impressão de que não havia tal necessidade no caso de Giovanni procurava fazer com que suas preocupações e as dos colegas permanecessem letra morta Por isso decidira enfrentar pessoalmente o problema ligado à administração dos remédios queria estar presente e insistia diante da recusa e dos subterfúgios de Giovanni Como ele mesmo afirmava levantava a voz e procurava aplicar a técnica do olhar intenso e prolongado na direção do paciente a força do pensamento venceria a resistência do outro Giovanni sempre se mostrara pouco receptivo em relação a ele e nos últimos dias falando em dialeto chegara a ameaçálo de morte Ateo falara sobre isso com M sua companheira que ficara muito assustada Mas Ateo não demonstrara temer tal ameaça era campeão de TaeKwon Do era medalha de ouro e certamente não poderia ter medo de um velho Talvez por tal razão não tenha falado das ameaças recebidas na reunião de equipe que tivera lugar naqueles dias continuando O Crime Louco 74 sem hesitações sua guerra particular para vencer as resistências de Giovanni Como só posteriormente seria revelado alguns moradores de uma casa próxima à residência chegaram a ver de sua janela um entrevero entre Giovanni e Ateo durante o qual viram Ateo levantar a mão contra o paciente Quando Ateo anunciou a Giovanni a morte de Deanna a mulher por quem Giovanni se encantara este perguntou se fora ele quem chamara o rabecão Respondeu afirmativamente sem dar importância ao comentário ameaçador de Giovanni nunca mais você poderá fazêlo no futuro Na tarde do dia anterior ao incidente houve o enésimo confronto entre os dois A coordenadora da residência encontrouos no banheiro do andar superior para onde Giovanni provavelmente correra para cuspir os remédios tendo Ateo o seguido Giovanni atira um urinol contra Ateo ameaçandoo de morte tratase de um actingout especialmente carregado de significados negativos Ateo escreve no registro interno Desarmeio facilmente e lhe disse que não tinha medo Permaneci imóvel olhos nos olhos na frente dele e logo depois vendo que cedia tentei trazêlo de volta à realidade levantando a voz e intimandoo a deixar de dizer bobagens Ateo não se mostra alarmado A coordenadora da residência intervém e leva Ateo embora reprovandoo por ter se colocado em atitude de desafio em relação ao paciente Pela primeira vez Ateo concorda que talvez tivesse exagerado À noite depois do trabalho Ateo se abre com uma tia com quem havia deixado o filho dizendo que um paciente ameaçara matálo com uma faca mas acrescentando que não estava com medo Queria simplesmente mostrar o quanto era difícil e duro seu trabalho dizendo no entanto que tinha tudo sob controle Na manhã seguinte quando um colega está para subir ao quarto de Giovanni para levar os remédios interrompeo e diz com seu jeito um tanto irrefletido e generoso que aquela é tarefa sua Sobe as escadas ao encontro da morte Dois dias depois Laura M é chamada pelos dirigentes da cooperativa sendo convidada a rasgar na presença deles a carta O Crime Louco 75 de denúncia que escrevera contra Ateo Laura tem dúvidas mas os responsáveis insistem Ateo dizem infelizmente pagou muito mais do que devia por seu possível erro agora é tempo de dor e há um órfão em quem se deve pensar Laura rasga a carta Confessará esse fato depois em lágrimas ao juiz durante a audiência de 29 de setembro de 2005 a última do processo em que é acusada estando presente exatamente TR a diretora da cooperativa Diante das claras reticências da diretora o juiz determinaria a remessa dos autos ao MP a fim de que fosse avaliada a relevância penal das declarações prestadas por TR De fato a cooperativa tentou se proteger das graves falhas cometidas De todo modo Laura não conseguiria evitar sua própria condenação e os membros da cooperativa não seriam julgados em razão da prescrição Na época das investigações Laura declarara que o confronto entre Ateo e Giovanni na tarde anterior ao fato fora o único mas isso não era verdade os confrontos vinham de muito tempo ainda que não com a mesma gravidade daquele dia Os operadores da residência estavam especialmente desconcertados e amedrontados experimentando raiva e rancor por um fato que questionava a declarada nãopericulosidade dos doentes mentais Não acreditavam que o que haviam escrito em seus registros não tivesse sido transmitido aos médicos do Departamento de Saúde Mental criticavam a falta de informações sobre a história passada de Giovanni sentindose enganados entregues à própria sorte Enquanto isso crescia na cidade uma campanha política e midiática sobre o acontecimento e os operadores eram solicitados a declarar nos jornais seus medos e suas críticas Mas dentre eles está Florence que deixa claro que seria preciso sim dizer toda a verdade falando se inclusive do comportamento equivocado de Ateo Os operadores da Albatros ameaçam Florence deixando claro que contradiriam qualquer declaração sua Algumas semanas depois Florence mandaria uma carta ao Ministério Público denunciando o que presenciara Convocada mencionou inclusive as informações dos vizinhos da casa Depois disso pediria demissão da cooperativa O Crime Louco 76 19 O homicida De Giovanni M têmse poucas e incertas informações Nasce em Faenza em 23031941 primogênito tem duas irmãs Vivendo em Castel Bolognese na Romagna trabalha no campo com o pai A agricultura na região caracterizase por lógicas intensivas sobretudo no setor frutífero O trabalho no campo em geral rende bastante mas é especialmente duro e cansativo O pai Carlo sofre de uma cardiopatia crônica que o acompanhará por toda a vida pesando nos momentos decisivos da vida de Giovanni O pai parece ter uma personalidade forte e autoritária a mãe Renata se mostra sempre muita ansiosa em sua relação com o filho Em época não precisada entre a adolescência e a juventude Giovanni sofre uma tuberculose que o atinge duramente no aparelho ósseo Sofre uma cifoescoliose vendose obrigado a usar um colete ortopédico Podemos facilmente imaginar sua vivência de inferioridade e precariedade e talvez uma experiência subjetiva de deformidade O serviço militar é muito breve presumivelmente Giovanni fora reformado Aos 22 anos sofre um malestar agudo diagnosticado como uma intoxicação de natureza não precisada embora a descrição dos sintomas permita a presunção de ter se tratado de um episódio psiquiátrico talvez uma crise catatônica No mesmo período é condenado por furto pelo Tribunal de Ravenna a sentença será confirmada pelo Tribunal de Apelação Faltam informações a respeito mas a coincidência do período permite presumir uma ligação entre os dois eventos Aos 29 anos dáse o episódio decisivo da vida de Giovanni Atravessando um período de crise existencial consequente a uma desilusão amorosa Giovanni comete uma infração ao código de trânsito ainda que bastante leve violação ao T U21 das normas sobre circulação de veículos art 80 DPR no 393 de 1561959 mas tem uma reação desproporcional diante dos policiais que o notificam da infração Acaba preso por resistência art 337 CP Seu comportamento 21 Nota à edição brasileira TU Testo Unico isto é Texto Único O Crime Louco 77 piora ele perde as estribeiras Em seguida a uma perícia que o considera inimputável por completa enfermidade mental é enviado ao Hospital Psiquiátrico Judiciário de Reggio Emilia estamos em 1970 Durante a internação não quer ver a mãe nem participar de qualquer conversa Quanto mais a mãe se mostra ansiosa insistindo na necessidade de que ele se alimente tanto mais Giovanni recusa a comida Em determinado ponto Giovanni é obrigado a se alimentar com uma sonda Podem se intuir complexas dinâmicas psicológicas na origem de tais comportamentos ainda que faltem dados seguros Certamente a internação no Hospital Psiquiátrico Judiciário é totalmente desproporcional e inadequada No exórdio de um processo psicótico mesmo admitindo que a sintomatologia já tivesse se iniciado anteriormente uma intervenção médica localizada e tempestiva teria produzido uma evolução positiva da situação Mas essa possibilidade não é facilmente encontrável nos anos 70 nem a família dadas as condições econômicas e o nível cultural parece apta a assumir o peso da situação De um mal a internação no Hospital Psiquiátrico Judiciário de Reggio Emilia nasce um mal maior a transferência para Aversa após dois anos de tratamentos inúteis Não se compreende a lógica de tal transferência se não talvez por razões internas das duas instituições A distância reduz os contatos com a terra de origem e com a família Assim que chega a Aversa é agredido por um interno sofrendo uma ferida perfurocontusa Giovanni continua a recusar a comida sintoma de negativismo típico da esquizofrenia ou também uma oposição à internação Com frequência é contido amarrado conforme os normais procedimentos dos manicômios quando é submetido a terapias injetáveis sempre se opõe com raiva Nessa mesma época registra uma cardiopatia mitral talvez por razões familiares talvez como consequência dos tratamentos farmacológicos a que era submetido Após mais dois anos é transferido por competência territorial para o Hospital Psiquiátrico de Ímola Em Ímola é visitado pela irmã Federica com quem é acordada a liberação condicionada no entanto à assinatura de responsabilização por parte do pai No O Crime Louco 78 último momento a liberação é adiada devido a uma superveniente doença do pai verdadeira uma desculpa Os longos períodos de internação em geral tornam mais difíceis as liberações dos pacientes psiquiátricos na medida em que com o tempo novos equilíbrios se constroem no âmbito familiar Giovanni vive muito mal esse adiamento demonstrandoo com a piora de suas condições psíquicas Um dia tenta a fuga mas é facilmente alcançado na estação ferroviária De seu prontuário percebese a presença de sintomas extrapiramidais presumivelmente devido a uma dosagem excessiva de psicofármacos São situações de malestar difuso às vezes extremamente angustiantes que acabam por determinar uma atitude de suspeita e recusa em relação aos remédios Registrase além disso uma reagravação pulmonar do processo tuberculoso Transferido para a enfermaria 9 seu comportamento psíquico sofre notável piora É descrita uma tentativa de estrangulamento do médico da enfermaria falase em uma agressão aleivosa mas falta uma descrição dos fatos que torne compreensível a dinâmica do evento A este ato violento seguese outro pouco depois contra um interno Nesse período Giovanni tem febres altas e mostra visível emagrecimento Em seguida de determinado momento em diante conforme a lógica das anotações nos prontuários que documentam somente a violência os sintomas de doenças psíquicas ou físicas e qualquer bizarrice registrase que o paciente se alimenta quase exclusivamente de bifes e cappelletti22 A nota parece querer ressaltar um comportamento esquisito maneiroso mas que talvez na realidade correspondesse a uma necessidade nutricional e psicológica23 de Giovanni a ser justamente satisfeita Um dia Giovanni é transferido para outra enfermaria essa dirigida pelo doutor Giorgio A tratase de uma enfermaria aberta O doutor A coerentemente com suas 22 Nota à edição brasileira Cappelletti é uma massa com recheio de carne em forma de chapéu cappello típica da cozinha emiliana 23 Nota à edição brasileira Aqueles únicos alimentos aceitos por Giovanni são tradicionalmente servidos em dias de festa ou para doentes convalescentes necessitados de recuperar forças O Crime Louco 79 próprias convicções rejeita a violência manicomial assim rejeitando corajosa e solitariamente naqueles anos qualquer contenção dos pacientes e qualquer trancamento das portas da enfermaria A melhora de Giovanni naquele contexto aberto é rápida e evidente Seu comportamento se modifica positivamente Inicialmente vai ao parque do hospital sozinho e depois furtivamente mas com a implícita aprovação dos médicos assistentes sai do hospital até que recebe autorização para ir autonomamente à cidade para fazer compras Em julho de 1978 é liberado Nessa época o pai já havia morrido e em casa permanecia somente a mãe Mas as coisas logo vão mal É especialmente nas relações com os vizinhos que surgem os conflitos mais difíceis certamente Giovanni não tem uma boa fama embora também se comprometa o relacionamento com a irmã Federica Chegase dramaticamente a nova internação no Hospital Psiquiátrico É um período de grande tensão talvez porque Giovanni viva com profunda frustração a falência da liberação tão longamente cobiçada Luta contra as injeções mostrase agressivo Parece gravemente dissociado não tem consciência do estado de doença empreende uma tentativa de agressão contra um enfermeiro Entre outubro de 79 e março de 81 em obediência à nova lei da reforma psiquiátrica é transferido para uma enfermaria hospitalar Villa dei Fiori Mesmo nesse contexto assume um comportamento negativo Recusase a ir ao banheiro e joga as próprias fezes pela janela da enfermaria O gesto aparentemente um sintoma de descompensação psicótica desaparece quando Giovanni é colocado em um quarto que tem anexo um banheiro próprio talvez fosse um modo de responder a temores fóbicos e a temores de contaminação e transmissão de doenças alguns povos primitivos se recusam a misturar as próprias fezes com a de estranhos Naqueles dias viviase um momento de transição institucional estava para acabar a prorrogação das internações consentida pela lei 180 e era preciso estabelecer quem deveria reingressar no regime do velho manicômio e quem ao contrário não deveria mais voltar para lá Giovanni é destinado a O Crime Louco 80 retornar definitivamente para o manicômio Volta para a enfermaria 9 onde como documentado no prontuário frequentemente é trancado no quartinho de contenção especialmente quando há escassez de pessoal da enfermagem24 É experimentada uma terapia long acting que no entanto acaba sendo interrompida pelos efeitos extrapiramidais negativos Transferido em 1984 para nova enfermaria a enfermaria 5 melhora sensivelmente vai sozinho ao parque está tranquilo e disciplinado Retoma a terapia long acting que dessa vez tolera e continua sem posteriores interrupções Sai sozinho inclusive para a cidade Em 1987 muda a direção do Hospital Psiquiátrico e progressivamente se iniciam relevantes mudanças estruturais Giovanni trabalha no bar do Centro Social do hospital onde faz a limpeza é sociável e bemhumorado Guarda o dinheiro que alguns enfermeiros lhe dão por pequenos serviços abre sozinho uma conta corrente em um banco de Ímola Sai de férias com outros internos e enfermeiros em uma temporada nas montanhas também nessa ocasião mostrase comunicativo e autossuficiente O médico da enfermaria fala de uma possível liberação Participa com entusiasmo e grande empenho nos laboratórios para a preparação das festas e das atividades voltadas para a sociedade Todas as tardes vai sozinho para a cidade mostrase até mesmo irônico e brincalhão Melhoram os exames de laboratório para a TBC e para a cardiopatia embora subsistam tremores e rigidez de impregnação farmacológica É reduzida a dosagem de flufenazina mas depois retomase a posologia anterior Em 301295 Giovanni é definitivamente liberado do Hospital Psiquiátrico com diagnóstico de Síndrome residual de psicose esquizofrênica e vai viver na residência Albatros situada no centro da cidade de Ímola e administrada por uma cooperativa Como os demais moradores da residência Giovanni escolhe seu próprio 24 Nota à edição brasileira As palavras em itálico reproduzem literalmente o que consta do prontuário clinico de Giovanni O Crime Louco 81 médico clínico alguém de sua confiança No que se refere à terapia psiquiátrica inscrito no processo reabilitador de que participa como exinterno terá de se dirigir aos psiquiatras do Centro de Saúde Mental de Ímola A psiquiatra que o segue pede a uma colega que se encarregue dele na medida em que Giovanni demonstrara não aceitar facilmente a relação com ela É uma decisão legítima tomada com a intenção de melhorar a relação terapêutica Na residência Giovanni realiza algumas tarefas põe a mesa leva os sacos de lixo para as caixas coletoras É bastante autônomo em sua vida na cidade vai regulamente aos melhores cafés vai com frequência à sociedade da bocha local de reunião muito frequentado vai com frequência à Baracchina no Parque das Águas Minerais agradável local no interior do autódromo Leva em suma uma vida semelhante à dos tantos aposentados da cidade No interior da residência tem um comportamento de cumplicidade com os operadores com frequência convidaos a jogar cartas e a conversar Mas com as operadoras é um tanto invasivo com avanços de caráter sexual É deselegante desajeitado vêse que não entende da coisa Mais de uma vez é preciso chamar sua atenção São poucas as pessoas que se sentem à vontade com Giovanni Em geral os operadores devem controlar sua própria contratransferência Dir seá que tudo isso é uma patomimia da doença a inafetividade o narcisismo do esquizofrênico e que o erro de fundo dos operadores estaria baseado exatamente no desconhecimento de tal patologia Mas podese pensar também que o próprio peso atribuído ao diagnóstico tenha tornado secundário o esforço voltado para tornar Giovanni consciente de seus próprios limites de caráter A relação de Giovanni com a comida continua problemática Giovanni é exigente e sobretudo desconfiado Quer alimentos embalados quer assistir à preparação dos pratos e ser servido separado dos outros moradores Para atender suas exigências élhe consentido o acesso à cozinha e a preparação dos próprios pratos com isso mostrarseá por longo tempo mais tranquilo e confiante Segundo os peritos do MP no O Crime Louco 82 entanto apenas se ofereceu a um paranóico a possibilidade de se apropriar de facas Outro tema de constante confronto diz respeito à ingestão oral dos remédios objeto de contínuas discussões A controvérsia é a evidenciação de uma crise de relacionamento com os profissionais assistentes dado o alto valor simbólico ínsito na compliance ao tratamento Giovanni acha que os remédios lhe fazem mal e na verdade mostra certa rigidez na mímica certa disforia subjetiva provável consequência de uma intoxicação crônica por psicofármacos ou de um excesso em sua dosagem Em relação aos demais moradores da Albatros Giovanni às vezes mostrase arrogante demonstrando particular aversão por alguns deles que em seu aspecto físico alterado trazem a evidência dos sinais da doença Chega a parecer que recusando qualquer contato contaminador com os pacientes mais claramente estigmatizáveis queira demarcar seu estranhamento em relação ao mundo da doença E todavia pela primeira vez em sua vida instaura uma relação de amizade profunda com uma mulher com Deanna uma moradora extremamente dócil gravemente cardiopata Ele e Deanna passeiam juntos na cidade de mãos dadas isolamse na varanda trocam palavras afetuosas Após uma reorganização da equipe do Serviço de Saúde Mental em outubro de 99 Euro P substitui como médico psiquiatra a colega que estava seguindo Giovanni Depois de alguns meses o novo psiquiatra julga oportuno reduzir a dosagem farmacológica de Giovanni Naquele período a residência atravessa um momento especialmente difícil um paciente está em crise e deixa todos os operadores e moradores um tanto tensos P lêse no livro de registros ameaçou Giovanni com um punho fechado repetidas vezes Por essa razão Giovanni se apropria furtivamente de uma faca de cozinha Os operadores se dão conta e lhe tomam a faca Giovanni responde conscientemente que a usaria como arma de defesa se P o agredisse Aos olhos dos peritos esse episódio assumirá o valor de um gesto patonômico de doença e consequente periculosidade Sem dúvida o gesto é inquietante mas seria O Crime Louco 83 preciso considerar também seu valor dissuasório em relação a P naquele período é P que suscita muito medo entre os moradores da residência Há ainda um acontecimento que assumirá a posteriori uma interpretação negativa por parte dos peritos a suspeição delirante de Giovanni em relação à quantia que depositara no banco Nos primeiros anos após o fechamento do hospital psiquiátrico a direção do DSM conseguiu que o orçamento anteriormente usado para pagar as despesas de internação no hospital psiquiátrico fosse inteiramente mantido para pagar as despesas de ressocialização fora do hospital Passados alguns anos porém a direção da Empresa Sanitária Local por exigências orçamentárias impõe aos liberados do hospital psiquiátrico uma coparticipação nas despesas de gestão das estruturas locais A direção do DSM protesta energicamente defendendo a tese de um justo ressarcimento em relação aos ex internos do manicômio Mas todo o esforço mostrase inútil Por outro lado são poucos os familiares que protestam enquanto os curadores dos pacientes que em sua maior parte são representados pela única figura do Prefeito de Ímola nada objetam ao dispositivo Por essa razão Giovanni também é obrigado a pagar uma quota mensal por sua permanência na residência a soma é diretamente descontada de sua conta bancária Quando é acompanhado pelos operadores da residência ao Escritório de Gestão Monetária junto ao DSM onde se tratam das operações financeiras que dizem respeito aos moradores da residência e lhe são dadas as explicações Giovanni demonstra todo seu desapontamento Quando por isso Giovanni repetidamente afirma levaram meu dinheiro e querem que eu pague expressa ainda que de modo delirante um indiscutível dado de realidade Tendo em conta sua personalidade suspeitosa e anal segundo a terminologia psicanalítica o efeito desse desconto do dinheiro não poderia ser outro senão uma descompensação traz de volta o peso de uma realidade institucional que continua a subtrairlhe tudo a liberdade a vida o dinheiro Mas ainda mais grave é o sucederse de três eventos fúnebres O Crime Louco 84 todos por razões naturais em um breve arco de tempo dois deles nos últimos dias Dentre as mortes está a de Deanna A dor profunda é acompanhada por um sentimento de depressão mas também pelo medo e temor pela própria saúde Aqui querem nos matar a todos mataram minhas mulheres mataram Deanna Conforme a coordenadora Ele me acusou delirando de têla matado Giovanni manifesta em um crescendo dramático claros sintomas de piora Não aceita nenhum tipo de diálogo olha continuamente em volta observando tudo e todos Diante de suas ameaças os operadores se mostram em dificuldades o embaraço deles acaba por confirmar os temores de Giovanni Mas seus temores persecutórios se materializam em toda sua pregnância no comportamento de Ateo que a seus olhos se torna um verdadeiro inimigo O mesmo Ateo vale ressaltar com quem sempre teve uma relação conflituosa O desentendimento agora se torna uma espécie de desafio Giovanni diz claramente que se não o deixar em paz matáloá Chega a especificar que o matará com uma faca Grita na sua cara que quer viver Giovanni se sente só encurralado sem saída sente que seu jogo com a morte chegou ao fim e a morte chega dramaticamente Depois daquele dia qualquer contato com a realidade se interrompe Giovanni é totalmente incapaz de entender e querer não é mais uma pessoa agora é um estereótipo é um louco perigoso é o monstro que agita nossas angústias Por telefone sua irmã Federica grita Não quero nada com ele Encerramos qualquer relação há muitos anos É fotografado tem pernas e braços amarrados à cama é despachado para o Hospital Psiquiátrico de Montelupo Fiorentino é vigiado Na entrevista com os peritos Giovanni se mostra tomado por delírios e medos privado da responsabilidade por seus gestos é privado do decorrer do tempo Diz já estou morto Mais do que um delírio essas palavras parecem uma reflexão sobre o trágico destino que o persegue e que chegou a seu ato final Rivière se julgava morto e não queria ter qualquer cuidado com seu corpo acrescentava que desejava que lhe cortassem o pescoço o que não lhe causaria O Crime Louco 85 nenhum mal pois já estava morto Aconteceu aquilo que Giovanni sempre tentara negar a si próprio e contra o que lutara grande parte de sua vida ser um louco perigoso que deveria ser internado em um manicômio judiciário A profecia se realiza a derrota é irremediável agora ele está no buraco negro do HPJ Giovanni sempre lutou contra um paipatrão lutou contra o próprio pai que também era o dono do terreno agrícola em que trabalhava contra o pai que o deixou ficar no hospital psiquiátrico quando poderia ter sido liberado lutou contra os tribunais que o condenaram contra o agente que lhe notificara pelas infrações lutou contra os psiquiatras que lhe provocaram angustiantes crises disléticas lutou contra o educador profissional que queria demonstrar ser mais forte do que ele Lutou e continuará a lutar de cabeça baixa até à morte para não tomar consciência de que todos seus esforços foram inúteis e que os outros é que tinham razão Qualquer consideração sobre a importância decisiva de dosagens farmacológicas que pudessem ter evitado o homicídio encontra a prova que a esvazia nos dias e meses sucessivos a terapia retomada não tem a mínima incidência sobre as condições psíquicas do sujeito Não obstante submetido a tratamento long acting manifesta notável agressividade e escasso controle da impulsividade Em 8 de fevereiro de 2003 o paciente é transferido para o HPJ de Nápoles onde permanece internado até 4 de abril de 2003 Mas os comportamentos agressivos não mudam nem mesmo após a sucessiva transferência para a homóloga estrutura de Reggio Emilia Aqui a agressividade do paciente não permite que os profissionais da saúde nem mesmo se aproximem para retirarlhe sangue para exames Durante todo o período de sua detenção nos três Hospitais Psiquiátricos Judiciários o paciente é submetido a uma terapia farmacológica maciça e constante mas sem êxito Quando os episódios de agressividade se atenuam isto parece depender de mudanças ambientais e de relacionamentos muito mais do que do aumento de remédios Paradoxalmente a retomada terapia só incide O Crime Louco 86 e negativamente sobre suas condições físicas aquelas condições que Giovanni sentia estarem ameaçadas pelos remédios e que o psiquiatra assistente de alguma maneira preocuparase em defender Em 23 de setembro de 2003 Giovanni morre no HPJ de Reggio Emilia por choque hemorrágico provocado por significativa hemorragia digestiva derivada da fistulização de um vaso mediastínico de volumoso divertículo paraesofágico Também dessa vez é o escapamento de sangue que leva embora uma vida Mas dessa vez o sangue brota dentro invade e comprime os órgãos entope a traquéia Infinitos átimos de angústia átimos de puro terror Giovanni M morre aos 62 anos morre em um manicômio judiciário no lugar para onde jamais deveria ter ido nem 30 anos antes quando a lei 180 ainda não existia nem depois do homicídio em 2000 22 anos depois da promulgação daquela lei 110 Um artigo na imprensa De SABATO SERA revista semanal Ano XXXIX Nº 26 24 de junho de 2000 Sede Viale Zappi 58 Ímola Ausências e presenças Intervenção de Ernesto Venturini responsável pela Saúde Mental Esse ano transcorre o décimo aniversário da primeira residência surgida da superação do Hospital Psiquiátrico de Ímola Cà del Vento nascida de um pacto de solidariedade estipulado com grande intensidade e emoção entre os operadores do Sistema Sanitário os pacientes e os habitantes dessa cidade Experiência emblemática e original correspondente ao recíproco reconhecimento de um papel ativo desenvolvido na definição e na defesa da saúde A partir daquele momento outras importantes passagens de grande O Crime Louco 87 intensidade simbólica como a festa do Sal e das Árvores25 cumpriramse em um longo caminho que atravessou a cidade procurando corresponder às necessidades de saúde mas também às concernentes à contratualidade social dos portadores de desconfortos psíquicos No início desse ano diante de condições sociais alteradas diante de uma atitude às vezes ausente e distraída da comunidade indagamonos sobre como criar novas ocasiões que favorecessem a renovação daquele pacto De um ponto de vista institucional os Planos locais de Saúde previstos pelo Plano Sanitário Regional pareciam favorecer essa possibilidade Botamos em campo algumas iniciativas esperando atingir o quanto antes um momento forte um debate público sobre a Promoção da Saúde Mental que pudesse envolver o máximo de sujeitos possíveis As circunstâncias alteraram esse percurso Após o trágico evento de 24 de maio nada mais parece ser como antes Iniciouse um debate diverso daquele originariamente previsto conduzido principalmente pelos mass media feito de acusações de retaliações de tensões onde se notam vez por outra algumas presenças e algumas ausências Infelizmente CA está ausente As palavras diante dessa ausência real irrecuperável perdem qualquer significado parecem inidôneas Podese apenas balbuciar as próprias perdas e dores A consciência extraída da análise dos fatos de se estar diante de um acontecimento imprevisível não atenua um sentimento de malestar e desconforto Marteladoras perguntas 25 Nota à edição brasileira No dia do fechamento definitivo do Hospital Psiquiátrico de Ímola os exinternos e os moradores da cidade jogaram sal nas velhas enfermarias para que o sal jogado na terra impedisse qualquer crescimento de novos cultivos Ao mesmo tempo plantaram novas árvores em cada residência substitutiva do manicômio como símbolo de uma nova vida O Crime Louco 88 acompanham todos os nossos momentos era possível fazer algo mais O que faltou Procurar substituir uma ausência com uma presença é um sentimento natural imediato Poderseia pensar então em se instituir uma bolsa de estudos um prêmio para os operadores do setor sóciosanitário que levasse o nome de CA que o recordasse que mantivesse viva sua memória Mas também está ausente outra voz a que alguém já definiu como a voz do delinquente a de MG o autor da facada o louco furioso Um destino iníquo reapareceu zombeteiramente exatamente quando parecia derrotado para sempreFomos incapazes de ajudar MG Seu refúgio na psicose evidencia nossa impotência e golpeia nossa presunção pensamos que a reabilitação posta em prática tivesse dado conta das feridas do manicômio Mas para alguns aquelas feridas são demasiado profundas são insanáveis Se Primo Levi26 ele tão privilegiado amparado pelos afetos e pela cultura não pôde em última análise suportar a ferida do holocausto é de se concluir que um grande desespero pode manter suas tramas mesmo depois do fechamento do manicômio Mas não se pode jogar sobre GM toda a responsabilidade do gesto GM não pode se tornar o fácil bode expiatório de tudo Por essa razão penso dever me colocar a seu lado em fazer minhas as suas razões em compartilhar com ele a condenação da parte dos outros Meu dever de médico é o de estar ao lado do paciente até o fim sem distinções e como dizia Basaglia sentir na própria pele o desprezo que em geral acompanha os gestos dos loucos Com efeito nesses dias estão ausentes exatamente as suas 26 Nota à edição brasileira Primo Levi foi um conhecido escritor judeu sobreivente de Auschwitz autor de um dos mais belos livros sobre o holocausto Se questo è un uomo que muitos anos depois da guerra em 1987 suicidouse O Crime Louco 89 vozes as vozes dos pacientes convidados a não se fazer ver recolhidos em suas instituições estranhos naquelas ruas e naquelas praças que acreditavam ter o direito de frequentar Alguns serão transferidos de uma estrutura para outra apenas em nome de sua história não de suas necessidades ou seus direitos Nas residências surgidas do fechamento do hospital psiquiátrico vigora a insegurança Quem sabe quanto tempo levará para se recuperar a naturalidade que acompanhou sua existência nesses últimos anos Quão distante está o tempo em que os pais dos jovens estudantes reivindicavam com energia que os professores fizessem seus filhos participar da realização comum entre expacientes e estudantes de algumas representações teatrais Está ausente nesse debate o otimismo aquele sentimento de profunda alegria que experimentamos no dia do Sal e das Árvores aquele sentirmonos protagonistas de um processo coletivo de restituição de direitos aquele perceber nos fatos a concretude da mudança Aliás também está ausente a memória do manicômio Esquecemonos mas talvez alguém jamais os tenha visto daqueles enormes dormitórios os gritos o cheiro de urina os quartos de isolamento aquela prisão que a todos acomunava pacientes e operadores e que com grande abnegação e competência muitos operadores tentaram durante tantos anos atenuar ou derrotar Hoje falase de qualidade de vida de resultados e fingese não lembrar qual foi o ponto de partida desse processo e foi há tão pouco tempo Por outro lado está presente o medo a raiva está presente uma espécie de delírio simétrico ao de GM que nos faz inimigos uns dos outros em busca de bodes expiatórios que possam aplacar nossa incerteza Está presente nesse debate a velha psiquiatria e suas categorias de imprevisibilidade e impossibilidade de recuperação Com efeito fixar a atenção nas residências foi O Crime Louco 90 algo totalmente instrumental o acontecimento se identifica até certo ponto com o risco da liberdade do paciente liberado dizendo respeito a situações onde tal risco não é previsto Diz respeito por exemplo ao mundo dos sãos dá calafrios constatar nesses dias quantas coisas tidas como raptus que acontecem na vida de tantas famílias sãs mas diz respeito ainda aos lugares de custódia onde vigora a violência nos velhos manicômios por exemplo mas também nos atuais Serviços de Diagnóstico e Tratamento O paciente psiquiátrico não é violento mas a situação psiquiátrica sim Há lugares de marginalização de grande sofrimento a situação psiquiátrica o cárcere o mundo dos tóxicodependentes etc para onde se canalizam todas as contradições sociais as necessidades psicológicas não resolvidas tudo aquilo que perturba a imagem de certa ordem e certa limpezasituações explosivas e violentas A periculosidade não é um fator individual é uma consequência da situação global em cujo interior a experiência individual se declina A situação psiquiátrica contém portanto o risco da violência mas a resposta não pode ser violenta deve desatar o nó das contradições e reconduzir a situação às suas possibilidades de cura Por que eu quis falar disso Para ressaltar o valor de uma profissão a psiquiatria onde os operadores dia a dia destrincham situações difíceis e complexas não muito diferentes às vezes da que hoje mobiliza nossa atenção fazendoo com grande profissionalismo e dedicação Falo dos psiquiatras dos enfermeiros dos assistentes sociais dos educadores profissionais do pessoal de serviço de todos aqueles que trabalham no Departamento de Saúde Mental de Ímola Falo de um serviço não autorreferenciado preocupado em se dotar de instrumentos de garantia de qualidade voltado para uma medicina baseada em evidências um serviço integrado O Crime Louco 91 a outros serviços da Empresa e que procura contribuir para o alcance de seus objetivos sanitários Um serviço imperfeito é certo como organização e instituição ainda que alguns talvez vejam demasiados argueiros em nossos olhos e não vejam as traves nos seus mas aberto a mudanças Mas então onde está a origem do malestar dos operadores das cooperativas que se mostra tão presente e difuso Antes de tudo seria preciso limpar o terreno de uma espécie de representação das residências como uma terra de ninguém abandonada à própria sorte Houve momentos de formação de supervisão houve um grande trabalho com os moradores e a comunidade exterior estudos sob o impacto social sobre a qualidade de vida nas residências há uma organização que prevê um sistema articulado de comunicação o operador pode expressar suas dúvidas ao coordenador da estrutura falar com a assistente social com o psiquiatra comunitário há as reuniões semanais do staff e das equipes e outras quinzenais e mensais Ainda que os operadores denunciem um malestar devem ser atentamente ouvidos Representam o ponto mais frágil da organização o que está submetido ao peso maior das contradições sociais e econômicas mas expressam reivindicações reais Portanto algo faltou Certamente não a atenção clínica nem o sistema de regras ou protocolos tudo formalmente presente Talvez o que tenha faltado tenha sido o grupo e com isso não quero dizer o trabalho de equipe sem dúvida necessário quero dizer o cimento ideal que dá sentido e motivação ao agir de um grupo que dá sentido de pertencimento que faz com que não nos sintamos sós Aquela idéia que agrega pacientes e operadores em um projeto de liberdade e direitos Quando esse sentimento permeia em um grupo os erros de distorção comunicativa diminuem é mais fácil tratar do outro suas razões estão mais próximas as paranóias e delírios ínsitos O Crime Louco 92 em qualquer relação atenuamse A psicose é forte demais para que possa ser enfrentada individualmente Quando não há estabilidade na equipe quando não há memória histórica dos acontecimentos o grupo está ausente Quem deveria ter providenciado essa idéia Certamente não alguém individualmente essa idéia é um processo complexo gerado por várias situações e várias pessoas gerado dentro de um campo social Essa idéia nasce da relação com a cidade da maneira com que a cidade olha para esses lugares reconhecendoos como parte de si Creio por exemplo que o modelo Cà del Vento tenha uma força intrínseca relevante que ajude a evitar recuos ou inércias Por que então não se reproduziu em outras circunstâncias Simplesmente porque não se encontram outros cidadãos dispostos como em Cà del Vento a compartilhar em fatos e palavras as razões dos mais fracos Dissemos tantas vezes que a solução das residências para superação do hospital psiquiátrico é análoga a diversas experiências européias Mas é verdade que o processo em Ímola se realizou com uma especificidade o envolvimento ativo da população e das cooperativas sociais de iniciativa privada Como teria sido possível operar uma transformação sem que se tivesse em conta os extraordinários recursos presentes no tecido social dessa cidade A riqueza da realidade imolense e vale ressaltar também sua riqueza econômica tem como ponto de referência exatamente seu capital social As residências de que estamos falando nascem da cultura da solidariedade dos valores de confiança e reciprocidade E pensando bem o que hoje é criticado não é exatamente o peso atribuído a esses valores no processo de superação do hospital psiquiátrico Não seriam esses valores o que se pretende deixar de lado como anacrônicos e fantasiosos Escuto com atenção as várias razões e creio ter muito a O Crime Louco 93 aprender embora não me pareça que a idéia de criar uma casa para quem foi liberado do hospital psiquiátrico seja intrinsecamente equivocada Não me parece que se deva envergonhar do que foi construído nesses anos nem que haja uma culpa a esconder nesses dias Pessoalmente sintome orgulhoso por ter participado junto a tantas outras pessoas do nascimento da Cà del Vento da Pascola da Casa Basaglia da Cà del Picchio de Samarcanda de Albatros dos grupos de Apartamentos situados em Ímola do Autogestito e do Lolliput sinto me lisonjeado por ter contribuído para o nascimento da Cà del Faro de Primo Vanni de Macondo do Hotel Selice de Leandra de Forniolo e da Casa Sintoni Os resultados desse trabalho coletivo podem ser lidos por todos foram documentados por trabalhos científicos publicados em revistas nacionais e internacionais A própria leitura dos projetos reabilitadores operados pelo pessoal das cooperativas nas residências testemunha um elevado grau de sucesso Tenho grande reconhecimento por quem favoreceu esse processo a AUSL a Região mas sobretudo os operadores a população os familiares os usuários Agradeço às pessoas que nesses anos puderam conhecer e apreciarpessoas como Ateo e Edoarda cuja carta continua a me ajudar nos momentos difíceis e amargos Castrocaro 27 de setembro de 1997 Sempre nos chamaram de loucos mas sofremos durante nossa existência e agora estamos velhos e queremos lhes dizer que somos normais Trabalhamos em nossa casa e a conta não vai para as casas de vocês Viemos para cá e depois de ter estado em Ímola sentimonos em férias Alguém confiou em nós e nos deu essa casa e nós cremos naqueles que confiam em nós Quando saímos não nos sentimos odiados sentimos a curiosidade das pessoas O Crime Louco 94 que nos olham mas isso não nos incomoda e deveria ser assim também para os outros Passamos os dias como se estivéssemos em nossa casa pela manhã fazemos os trabalhos de casa vamos às compras compramos pão frutas e assim aprendemos para quando estivermos sós Vamos dormir quando queremos comemos o que nos apraz como nas casas de todas as outras pessoas De manhã à noite nos divertimos com alguma coisa em harmonia desde a primeira hora quando acordamos até à última hora quando vamos dormir Tudo isso nos faz sentir em uma casa e nos faz felizes a felicidade para nós é poder aproveitar as coisas que nos faltavam no manicômio Edoarda L moradora da Cà del Faro O Crime Louco 95 2 As perícias Relato a seguir as perícias oficiais promovidas pelo Ministério Público e pelo GIP do Tribunal Penal e Civil de Bolonha Exponho integralmente os quesitos e as conclusões das quatro perícias mas em relação ao restante de seu conteúdo reproduzo apenas algumas frases Tenho consciência dos limites ínsitos em qualquer extrapolação peço desculpas mas ressalto o esforço exercido para aderir o quanto possível ao sentido literal do texto Por outro lado não pretendo contestar a correção profissional do trabalho desenvolvido pelos colegas Proponhome simplesmente partindo do material produzido desenvolver uma leitura diversa da operada pelos peritos que influiu decisivamente nas sentenças dos juízes Simplesmente utilizei uma chave de leitura da doença mental diversa da deles 21 Perícia do consultor técnico do MP sobre a imputabili dade e periculosidade social de M G Em 2452000 eu abaixoassinado Dr AR fui convocado pelo Dr SO Procurador da República Substituto de Bolonha ao Escritório do Comissariado de Polícia Estadual de Ímola na qualidade de consultor técnico do MP a fim de realizar avaliações psiquiátricas em relação à consumação do homicídio de CA ocorrido naquela mesma manhã na Comunidade Albatros onde a vítima desenvolvia a função de educador por parte de MG um dos moradores da estrutura Após ter sido informado dos fatos e participar juntamente com o MP de uma primeira vistoria na mencionada Comunidade foime formalizado o seguinte encargo queira responder o consultor se MG era no momento do fato capaz de entender eou querer ou se por defeito O Crime Louco 96 mental sua capacidade deva ser tida como excluída ou diminuída e em que medida queira responder se MG deva ser atualmente considerado socialmente perigoso queira referir o que mais for útil para os fins de justiça O MP recomendou ainda que os quesitos relativos à imputabilidade e à periculosidade social fossem prontamente respondidos ainda que parcialmente São as seguintes as conclusões da perícia Com base no quanto acima exposto e discutido julgo poder confirmar as respostas preliminares aos quesitos que me foram formulados nos seguintes termos à época dos fatos MG incorria por doença mental esquizofrenia crônica em fase de reagravação em condições de total exclusão da capacidade de entender e querer o sujeito apresenta elevada periculosidade social em razão da mencionada enfermidade Bolonha 19 de agosto de 2000 O perito do Procurador da República Substituto de Bolonha chamado a se expressar sobre as condições psíquicas de Giovanni M não tem dificuldade em declarar a total incapacidade de entender e querer do sujeito e sua periculosidade social Na formulação de seu juízo tem peso relevante a documentação produzida que no caso específico consiste na leitura dos prontuários e nos diagnósticos Os prontuários se referem às internações nos HPJ de Reggio Emilia e de Aversa e às internações sucessivas nos institutos psiquiátricos de Ímola Quem tem experiência no setor sabe quão escassa é a credibilidade científica dos prontuários escritos em hospitais psiquiátricos Após a fase inicial da internação durante a qual são obsessivamente O Crime Louco 97 descritos os parâmetros biológicos as dosagens farmacológicas e os comportamentos do paciente passase progressivamente a uma quase total carência de anotações Serão descritos apenas os eventos negativos as doenças físicas os momentos particularmente críticos É evidente que tal representação clínica pode incidir negativamente sobre o perfil do paciente servindo para justificar o aparelho de controle existente27 O prontuário serve para confirmar o diagnóstico e o diagnóstico psiquiátrico frequentemente precede qualquer observação Muitos psiquiatras acabam por confiar demais em sua intuição e naturalmente também em sua experiência e só a posteriori buscam as provas de sua hipótese Bem examinando também as perícias muitas vezes se orientam pela busca de confirmações daquilo que desde o início das operações periciais já estava predeterminado28 Com efeito escreve o perito antecipando desde logo que os juízos expressos à época serão integralmente confirmados É de todo modo especialmente sintomático um lapsus que se percebe na escrita os velhos prontuários sugerem um homem já imerso na dimensão psicótica Esse já não estaria a sublinhar de modo capcioso uma dimensão de irrecuperabilidade E quando o paciente recusa a terapia é aplicado um silogismo que precisaria ser demonstrado quer dizer que não tem consciência da doença Naturalmente não tem qualquer significado aos olhos do perito o 27 Gostaria de observar que o mau hábito de não transcrever nos diários médicos os acontecimentos positivos do paciente a autonomia o cuidado consigo os relacionamentos perdura até hoje Tal hábito pode ser imputado a processos psicológicos que tendem a registrar mais facilmente em nossa memória os dados negativos e não os positivos mas também expressa o temor do médico de ser denunciado por omissão de atos de ofício não registrar uma doença física pode ser avaliado como uma omissão grave enquanto não registrar uma melhora de relacionamento pode ser considerado apenas um leve esquecimento 28 Franco Basaglia denuncia a tendência a isolar os fenômenos como se esses não nascessem e não se apresentassem em uma rede de relações e nexos recíprocos para encarálos divididos separados do tecido de que constituem um dos elementos de modo a fazêlos assumir um caráter absoluto natural Psichiatria e Giustizia in La pratica della follia Ed Critica delle Istituzioni Venezia 1974 O Crime Louco 98 fato de o paciente aceitar os remédios que servem para equilibrar os efeitos colaterais dos antipsicóticos Com efeito o paciente não recusa genericamente a terapia farmacológica recusa sim os remédios que no passado tinhamlhe provocado grave mal estar Quando surgem atos de violência mas no clima repressivo de um HPJ é fácil deparar com tais eventos então significa que o paciente é extremamente perigoso no sentido psiquiátrico E mesmo Giovanni M estando bem por um longo período por quase 20 anos o perito logo se põe em guarda tratase de um simples arrefecimento do quadro psicopatológico Faz questão o perito de corrigir qualquer falaz ilusão revelandonos os truques da doença em relação a 1988 é descrito até mesmo como tranquilo e disposto ao diálogo sendo mesmo irônico e brincalhão O até mesmo e o mesmo revelam que aos olhos do experto a doença não tem escapatória só pode fingir Assim a leitura a posteriori permite sustentar a hipótese inicial Dirá o advogado de defesa de Euro P em seu recurso de apelação contra a sentença de primeiro grau o perito reduz a existência de Giovanni M de 1970 a 2000 a pouco mais de vinte episódios reativos a acontecimentos mas estes não são apreendidos e enquadrados em sua natureza reativa reação a terapias forçadas a restrições à liberdade a um clima emotivo de alta expressividade lutos agressões ameaças etc ao contrário consideraos à maneira de agitações autônomas derivadas de um mau funcionamento de uma máquina bélica fruto de uma mina incontrolável a ser desarmada Por outro lado não surge menos influenciada por estereótipos a própria perícia dos consultores da parte que para sufragar o valor dos eventos externos sobre o comportamento de Giovanni M declaram que os estudos mais recentes demonstraram que os pacientes esquizofrênicos embora dissociados da realidade frequentemente apresentam distúrbios da esfera afetiva que podem se seguir a legítimas e previsíveis reações a lutos e perdas Na prática é como dizer que O Crime Louco 99 os esquizofrênicos frequentemente são dotados de sentimentos quase mesmo como os sujeitos normais No comment O outro elemento objetivo para a formulação do juízo consiste na visita médica Nesse caso porém o perito não chega a estabelecer nenhum contato significativo A primeira visita médica ocorre logo depois do homicídio quando o elemento emocional é intensíssimo seja para Giovanni seja para todos os demais e portanto para o próprio perito A segunda visita se desenvolve no HPJ de Montelupo O perito aponta uma atitude de confronto e hostilidade de Giovanni para com ele o que ulteriormente confirmaria seu diagnóstico Mas o perito não parece considerar que Giovanni se encontra exatamente diante de quem de certo modo sancionara sua internação por que razão deveria se mostrar colaborativo Será que não seria de se considerar a hipótese de algum rancor Algum temor Giovanni pede a presença de um enfermeiro durante o diálogo manifestando a necessidade de se sentir defendido e protegido evidenciando que não se está diante de uma recusa genérica e generalizada de relacionamento mas sim de uma recusa especificamente voltada para o perito Este no entanto vê diante de si apenas um esquizofrênico paranóico delirante que afirma já estou morto Mas seria essa frase uma expressão delirante Não estaria talvez expressando uma vivência existencial de quem se acha encerrado em uma instituição que no passado já lhe despedaçara tragicamente a vida Não poderia essa frase expressar um sentimento de culpa que oprime a consciência e faz pressentir a angústia da morte Com base nos prontuários e nos encontros são expostas as seguintes considerações técnicas estamos diante de um caso clínico de esquizofrenia com fases ativas fases de esmagamento da afetividade com abulia negativismo refúgio e fechamento Estamos diante de uma típica alternância de sintomas positivos e negativosOs temas persecutórios demonstram relevância para o risco de agressividade heterodirigida típica da patologia O Crime Louco 100 Mas nessa perícia como em outras com demasiada frequência se esquecem as referências científicas que seriamente criticam todo rígido determinismo prognóstico29 Toda a experiência de vida do paciente seus relacionamentos o peso dos life events são anulados diante da inevitável alternância de sintomas da infausta evolução da doença após o arrefecimento iniciado nos anos 80 com ou sem flufenazina terseá mais cedo ou mais tarde uma reagravação com ou sem flufenazina Não é possível imaginar Giovanni socialmente inserido recuperado se isso acontece é apenas aparência é a astúcia da doença que se esconde e que no entanto por sorte não escapa aos olhos do experto Tornase assim inevitável a consideração conclusiva que assume valor crucial o homicídio é um gesto sintomático expressão direta da psicopatologia de que é portador O gesto é reificado tornado doença tornado ahistórico O perito registra as frases desesperadas de Giovanni mataram Deanna e eu quero viver registra o confronto com Ateo 29 Referimonos aos estudos longitudinais relativos a pacientes com diagnóstico de esquizofrenia Para citar apenas os mais famosos os de Bleuler 1968 Zurich de Ciompi e Muller 1980 Suíça de Tsuang et al 1979 Iowa US de Huber et al 1980 Alemanha de Ogawa et al 1987 Japão de Harding et al 1987 Vermont US de De Sisto et al 1995 Maine US Os resultados desses sete estudos de followup abrangendo um total de cerca de 1700 pacientes têm duração média de 30 anos e documentam uma nítida melhora dos pacientes em 31 dos casos Em todos os casos os estudos longitudinais evidenciaram a heterogeneidade dos prognósticos nas síndromes esquizofrênicas M Bleurer em conclusão às suas pesquisas afirma Com relação ao decurso e ao resultado das psicoses esquizofrênicas prolongadas pesquisas de que participei por mais de sessenta anos confirmaram aquilo de que se duvidara por longo período Não existe um decurso específico da doença M Bleuler 1978 Ciompi 1984 Ao contrário os resultados das psicoses esquizofrênicas são extremamente diversificados variando de restabelecimentos prolongados a decursos intermitentes a psicoses prolongadas de intensidade grave e leve Durante longo período muitos psiquiatras acreditaram que uma definição precisa do diagnóstico indicasse um prognóstico específico A experiência demonstrou que não importa como se formule o diagnóstico esse jamais assegura um decurso e um prognóstico previsíveis O decurso das psicoses esquizofrênicas jamais evolui na direção de um progressivo empobrecimento da vida interior jamais em direção de uma demência do tipo encontrado em danos cerebrais difusos A vida interior pode estar escondida por uma falta de expressão por exemplo no mutismo mas não estará perdida MBleuler 1991 O Crime Louco 101 com sua forte mensagem de desafio registra as graves lacunas de comunicação entre o médico e a coordenadora da residência registra as frases ameaçadoras de Giovanni eliminar os coveiros sou obrigado a matar vocês e lamento ter de fazêlo mensagens graves inequívocas mas ao mesmo tempo seguramente desesperados pedidos de ajuda Mas com a morte de Deanna a vinculação do gesto à atitude de Ateo é obnubilada Estamos diante de um homicídio anunciado não porque a pessoa em graves dificuldades esteja lançando mensagens contendo pedidos de ajuda que malgrado o medo provocado nos operadores não surtirão efeitos concretos mas simplesmente porque enquanto esquizofrênico paranóico só poderia mesmo cometer seu gesto sintomático O gesto extremo que ele executa na manhã de 2452000 nada mais é do que a exteriorização de tal angustiada percepção da realidade exterior representando em sua vivência delirante uma maneira de se defender do que sentia ser um perigo grave e iminente Sem mencionar as referências da literatura psiquiátrica tradicional parece suficiente reportar a título exemplificativo de tal condição psicopatológica e das dramáticas consequências dela deriváveis algumas passagens extraídas do livro Vontade de matar Análise de um desejo escrito por um psiquiatra Vittorino Andreoli A propósito da esquizofrenia ele afirma a forma que mais contribui para o homicídio é a esquizofrenia paranoide caracterizada especialmente no início por episódios de interpretação das pessoas e do ambiente como se o mundo se movesse com fins voltados exclusivamente para o doente inicialmente estimula suspeitas em seguida atitudes de defesa até o delírio persecutório propriamente dito pelo qual tudo e todos agem para provocar sua morte O doente se torna negativista não aceita a comida porque seguramente está envenenada não toma os remédios vê os médicos como inimigos Isolase em um cômodo concentrado em se defender das estratégias de morte E mais analisando as fases residuais da esquizofrenia quando teoricamente a produtividade delirante deveria deixar espaço para O Crime Louco 102 a cronicidade e o distanciamento do mundo ele acrescenta nessa fase o homicídio tem uma dinâmica diferente acontece por impulso quando o paciente se sente invadido quando não é deixado em paz como resposta imediata como reação Nessa weltanshauung não é sequestrado apenas o sentido do gesto do paciente mas também o de quem se confronta com ele os gestos são reificados privados de suas particularidades históricas e subjetivas As agressividades as ambiguidades em suma toda a complexidade comunicativa contida em cada mensagem são anuladas Ateo por exemplo certamente estava animado por boas intenções mas seu enfoque é equivocado não só pelo desconhecimento dos antecedentes de Giovanni como pela falta da empatia que poderia leválo a se identificar com o paciente a indagarse sobre as razões de seu comportamento a adotar um enfoque menos rígido Ateo pensa em sua redenção em seus problemas como operador posto em dificuldade pelas inadimplências dos médicos pensa que a única coisa importante é restabelecer a qualquer custo o predomínio da ordem sobre a desordem Diante porém da incapacidade de entender e querer do esquizofrênico o valor das vivências e relações de Ateo é completamente apagado O dever foi cumprido O perito provou sua tese toda a história do paciente se encaixa perfeitamente no esquema diagnóstico estabelecido A demonstração contém ainda outra mensagem Esses incidentes são a desagradável consequência de uma ideologia antipsiquiátrica que considera os pacientes somente como vítimas e não como doentes Vejam portanto aonde nos leva a pouca consideração da ciência diagnóstica particularmente aquela voltada para quem deveria sempre ser considerado como em alto risco de violência A perícia declara pois em poucos dias Giovanni inimputável e socialmente perigoso tratase no fundo de mero pro forma Tudo da atrocidade do crime à sua modalidade deixa poucas dúvidas Prontamente enviado para o Hospital Judiciário Giovanni desaparece de cena Seus gestos e suas palavras de agora em O Crime Louco 103 diante serão interpretados nos atos judiciários apenas por outros ele não terá mais o dever de se defender ou de declarar Reconhecese a falta de sentido de seus pensamentos e comportamentos seja pelo passado seja pelo presente mas fatalmente também para o futuro Na concepção do perito indiscutivelmente animado por elogiáveis intenções esses procedimentos estariam defendendo os direitos e interesses de Giovanni Na realidade como o desenrolar dos acontecimentos demonstra a internação no Hospital Psiquiátrico não só não será útil para as condições psíquicas do paciente mas será marcada sobretudo por sua dramática agravação até à morte O juiz de primeiro grau negando a juntada aos autos do processo de uma declaração sobre as condições psíquicas de Giovanni no HPJ que estando sob tratamento farmacológico não revela qualquer melhora declara candidamente que Giovanni não é mais a mesma pessoa pelo desenraizamento de um contexto ambiental tranquilizante e pelos efeitos de uma restrição précarcerária em uma estrutura primordialmente de contenção como é o Hospital Psiquiátrico Judiciário Pois bem tentemos imaginar agora uma trama diversa daquela que efetivamente aconteceu Poderseá objetar que diante da evidência da realidade tratarseá de um exercício ocioso e inútil Por outro lado raciocinemos se um tribunal inflige uma pena a alguém isto significa que julga que as coisas poderiam ter se passado de forma diversa Permitamnos portanto esse exercício abstrato feito de hipóteses Vimos que muitas pessoas fizeram coisas que não deveriam ter feito igualmente deixando de fazer o que deviam Penso sem hesitações que Giovanni também poderia ter se comportado de maneira diversa mesmo sendo esquizofrênico paranoico mesmo estando privado de sua dosagem terapêutica mesmo sendo fortemente provocado Imaginemos que o primeiro perito reconhecesse em Giovanni uma capacidade parcial de entender e querer à época do fato e que o segundo perito reconhecesse sua capacidade processual ou seja que a capacidade de entender e O Crime Louco 104 querer30 ainda que reduzida à época do crime possa sucessivamente ser recuperada mas imaginemos sobretudo que não se fale em periculosidade social por um diagnóstico psiquiátrico Consideremos que por força de tal juízo Giovanni seja obrigado a sair do estado de fuga da realidade em que se refugiou e deva se defender expondo suas próprias razões Em tais circunstâncias deve tomar consciência de seu próprio narcisismo escutar as razões dos outros confrontar suas próprias vivências com as dos outros Será uma ocasião difícil dolorosa dissolvendo o núcleo angustiante e ameaçador que constitui seu medo dos outros e de si mesmo mas será também uma oportunidade para se perceber portador de deveres além de direitos como todos os outros Naturalmente terá um advogado que o apoiará em suas razões se julgado responsável será condenado Mas dessa forma poderá acolher o valor reparatório da condenação o valor da expiação que jamais poderá acolher se condenado perpetuamente à monstruosa loucura da periculosidade social Imaginemos que desde logo vá para uma hipotética estrutura sanitária protegida dentro ou fora do cárcere cuja organização e finalidade naturalmente requerem um grande e inteligente esforço de realização por parte de muitas entidades e pessoas Imaginemos que suas relações quotidianas não se desenvolvam somente com aqueles estigmatizados como loucos perigosos e que junto com o tratamento farmacológico haja um tratamento psicoterapêutico intensivo e sobretudo a possibilidade de trocas sociais a recuperação de uma contratualidade relacional que reforce seu ego comprometido não se poderia então formular a hipótese de que sob essa ótica seria possível obter uma recuperação psicológica e social de Giovanni melhor do que foi obtido na realidade Eu acho que sim sem nenhuma dúvida E isto 30 A formulação apresentada pela Comissão Ministerial presidida pelo prof Grosso propõe a substituição de tal terminologia por a possibilidade de compreender o significado do fato ou de agir em conformidade com tal valoração tal formulação seguramente mostrase em melhor sintonia com a realidade clínica do paciente e os objetivos terapêuticoreabilitadores O Crime Louco 105 teria acontecido sem prejuízo naturalmente da responsabilidade de terceiros e dos legítimos direitos dos familiares da vítima Essas minhas considerações não nascem de uma abstrata declaração de princípios Têm sim em conta as muitas experiências que nesses últimos anos têm permitido percursos alternativos à declaração de total inimputabilidade do louco e envio de pacientes para HPJ São experiências que demonstram o valor existencial e terapêutico ínsito ao reconhecimento mesmo em casos extremos do livre arbítrio daquilo que dá sentido e valor à nossa vida sem o que só resta a morte psíquica ou física Se eliminarmos a palavra culpável e usarmos o termo responsável então devemos convir como declarei que o próprio Giovanni poderia ser julgado responsável de seu se deixar dominar pelos medos se acreditarmos no livre arbítrio Giovanni poderia como em outras circunstâncias escutar quem lhe fosse próximo A terapia é sempre um ato recíproco requerendo que o paciente saia de sua posição narcísica para entender as razões dos outros que não se deixe dominar pelo princípio do prazer e se meça pelo princípio da realidade Ao contrário com frequência parece se partir do pressuposto tanto para o paciente mas também e sobretudo para os terapeutas de que o paciente seja somente a vítima de tudo o que acontece em volta facilmente se minimizando suas responsabilidades Isso acontece também porque a situação é frequentemente condicionada por um perigo com efeito há o temor de que o surgimento de um sentimento de depressão e falência possa conduzir ao suicídio do paciente Para evitálo mostramo nos excessivamente tolerantes fornecemse justificações Mas isto deveria constituir apenas uma fase da terapia a inicial Com efeito a terapia para ser eficaz deve ir ao encontro dos riscos ela mesma é um risco A terapia não pode ser lisa nem se esconder por detrás da irremediabilidade do diagnóstico Perguntome várias vezes se Giovanni em determinado momento de sua vida voltou a ser paranóico quando demonstrara que era possível não sêlo mais O Crime Louco 106 Do que dependeu Têm razão os peritos que julgam impossível toda esperança de cura para quem foi reconhecido como esquizofrênico paranóico Ou têm razão os que imputam o evento a uma simples alteração do equilíbrio bioquímico artificialmente induzido pelo psicofármaco Ou talvez tudo isso tenha acontecido porque não fora suficientemente atacada não ainda a estrutura paranóica do sujeito seu modo de pensar através de um trabalho reabilitador feito com profundidade e coragem Onde fica o limite não enfrentado nessas circunstâncias Na nossa prática de terapeutas Em nossos conhecimentos Em nossa presunção Na solidão social em que nos encontramos junto com os pacientes Na carência de uma prática de cidadania que permita ao psiquiatra ao educador profissional ao perito ao juiz ao administrador à dona de casa ao estudante reconhecer os problemas de Giovanni como seus próprios problemas E sentir na própria pele suas vitórias e suas derrotas 22 Pericia dos consultores técnicos do MP sobre a respon sabilidade da equipe médica assistente e dos operadores da residência Em 2362000 o Dr SO Procurador da República Substituto conferiu a nós abaixoassinados Dr IM e prof SM o encargo de proceder a avaliações técnicas formulando os seguintes quesitos queiram os ct responder examinado o interno MG e vista a documentação clínica apreendida e obtida no âmbito do procedimento no 910500 mod21 além de qualquer outra documentação de interesse para o caso eventualmente existente em estruturas públicas e privadas 1 Se a patologia de que é portador MG era tal a tornar previsível a consumação de atos violentos a dano de pessoas em especial dos operadores com quem estava em contato à época do homicídio e em caso positivo O Crime Louco 107 se o tratamento farmacológico e terapêutico prestado ao referido MG no período imediatamente precedente e concomitante aos fatos objeto da causa era ou não idôneo para conter a periculosidade social 2 Se o livre acesso às facas apreendidas em especial àquela concretamente utilizada para desferir os golpes letais em CA estava em conformidade com a satisfação das exigências de cautela nos termos do quesito anterior podendose julgar correto e indicado em relação às condições do paciente conforme as noções da ciência psiquiátrica atual 3 Tudo o mais que for útil aos fins de justiça São as seguintes as conclusões da perícia Sintetizando nossas respostas aos quesitos formulados pelo senhor Promotor julgamos que 1 MG era portador de esquizofrenia paranoide crônica em fase de proclamada reagravação a presença de floridos delírios persecutórios de envenenamento contaminação e outros males bem como a total ausência de qualquer consciência da doença o induziram antes do homicídio a assumir comportamentos agressivos em relação ao pessoal de assistência e a proferir ameaças de morte as terapias farmacológicas e sobretudo o tratamento terapêutico global prestado a MG no período imediatamente precedente e concomitante aos fatos objeto da causa não resultaram idôneos para tratar de seus graves distúrbios e conter sua periculosidade social 2 O livre acesso às facas de cozinha especialmente àquela concretamente utilizada para desferir os golpes letais em CA não estava em conformidade com a satisfação das exigências de cautela necessárias à gestão de caso O Crime Louco 108 clínico tão grave comportando riscos manifestamente altos em uma gestão extrahospitalar do paciente mesmo se admitindo que em condições normais tal acesso pudesse lhe ser consentido para fins de reabilitação em condições excepcionais como as presentes durante a fase de alarmante descompensação delirante persecutória de MG o livre acesso às facas e a outros objetos potencialmente perigosos da mesma espécie não deveria ter sido consentido 3 No caso em exame como detalhadamente ilustramos nas considerações médicolegais encontramse inadimplências negligências imprudências e imperícias de maior ou menor gravidade dos operadores individualmente a de todo modo configurar uma induvidosa responsabilidade de equipe na gestão do caso clínico gestão que se mostrou claramente inadequada 12 de fevereiro de 2001 Vejamos como se desenvolve o raciocínio Os quesitos do MP dizem respeito à previsibilidade do evento à idoneidade do tratamento farmacológico à infração de medidas de segurança Naturalmente todo raciocínio se desenvolve a partir de um ponto central definir o perfil psiquiátrico do louco que cometeu um crime Notese todavia como esse perfil na realidade já está predeterminado e delineado Com efeito partese do pressuposto de que o paciente é portador de periculosidade social O juiz e os novos peritos dão como certa a perícia de AR que já se manifestara sobre o tema No fundo aquela perícia era para eles uma simples formalidade não parecendo valer a pena novas indagações sobre a imputabilidade e a periculosidade social de Giovanni É evidente que definido dessa forma o paciente definirseia também a responsabilidade do psiquiatra não mais a de tratamento mas sim a de controle O Crime Louco 109 Mas há um segundo pressuposto que também parece evidente que a periculosidade não seja uma circunstância complexa histórica e contextualmente determinada sendo antes um dado natural efeito de uma patologia que comportaria deterministicamente somente determinados comportamentos Falando do homicídio por exemplo os peritos declaram sem hesitações e com absoluto rigor que Tratase de um gesto sintomático expressão direta da psicopatologia de que é portador Os peritos não se dão conta de estar cometendo um grave erro enquanto tendem a equiparar comportamentos a sintomas E quando vinculam o agravamento do paciente à redução da terapia reiteram a persistência de um quadro psicopatológico que poderia ser atenuado pelo controle farmacológico mas que permanece substancialmente ativo não parece ter precedido uma doença em sentido técnico ao mencionado homicídio mas sim simplesmente um defeito de controle farmacológico sobre a preexistente patologia psicótica Em essência as considerações dos peritos se colocam no interior de um modelo de doença mental reducionista e biológico Os peritos confirmam a análise do colega AR segundo a qual Giovanni apresentaria uma total exclusão da capacidade de entender e querer Ou melhor adotam tout court tal juízo sem proceder à devida contraanálise e crítica Notese incidentemente que as avaliações das duas perícias se fundam em uma mesma visita conjunta efetuada pelos três peritos a Montelupo Fiorentino O comportamento de Giovanni sua recusa ao diálogo seu voltar as costas aos peritos sua reivindicação da presença de um enfermeiro suas frases já estou morto não preciso de vocês têm uma unívoca interpretação são expressões de uma patologia delirante Até sobre o diagnóstico há um absoluto compartilhamento esquizofrenia em decurso crônico Os peritos todavia julgam necessário fazer uma concessão a um breve desenvolvimento do tema Por quê Talvez porque julguem o caso emblemático e queiram reiterar o valor da clássica descrição da esquizofrenia É como se em um clima de incertezas e contestações finalmente se reencontrassem antigas O Crime Louco 110 evidências Os peritos descrevem as formas clássicas da esquizofrenia a de tipo catatônica a paranoide a residual Em alguns casos a doença em sua evolução espalhase por todas as diferentes fases em outros porém fixase somente em um estágio Para os peritos nenhuma melhora de um esquizofrênico e portanto aí incluídos os 17 anos de melhora de Giovanni pode representar um verdadeiro restabelecimento Paradoxalmente demonstram exatamente o contrário certa melhora mais do que qualquer outro evento é exatamente a confirmação indireta da existência da esquizofrenia paranoide a ação fármacoterapêutica e a natural evolução em fases do distúrbio atenuam a evidência sintomatológica fazendo emergir os sintomas negativos esmagamento da afetividade abulia negativismo fechamento Portanto a ausência de claras manifestações de agressividade outra coisa não é que a passagem da fase florida e positiva da doença para a fase dos sintomas negativos Alguém como os colegas psiquiatras que descreveram nos prontuários os 17 anos de bemestar de Giovanni pode ingenuamente acreditar reconhecer em Giovanni tranquilidade disponibilidade para conversas ironia sociabilidade bom humor ser brincalhão comunicativo e autossuficiente participar voluntariamente com entusiasmo e grande empenho das atividades de ressocialização na cidade estar enamorado de Deanna mas esse alguém estará errado são apenas sintomas negativos travestidos simples abulia esmagamento afetivo ou negativismo Nos prontuários hospitalares de Giovanni são privilegiadas somente as anotações concernentes ao comportamento sombrio hostil ameaçador francamente agressivo do paciente Mesmo a longa permanência de Giovanni no Hospital Psiquiátrico de Ímola abstraindose o período de melhora de suas condições psíquicas é automaticamente avaliada como um sinal patológico negativo Os peritos parecem não ter em conta o que alguns estudos científicos têm abundantemente documentado as liberações do hospital psiquiátrico geralmente se tornam difíceis muito mais por causa da subsistência de obstáculos sociais e O Crime Louco 111 familiares do que por razões inerentes à patologia dos internos Em suma parecem nos dizer os peritos não há nenhuma possibilidade de sair da loucura O olhar puro e rigoroso do perito semelhante ao do alienista dos hospitais psiquiátricos do século XIX consegue penetrar na máscara da loucura e fazer emergir seu pérfido disfarce Como os condenados às galés de Os miseráveis de V Hugo os esquizofrênicos também jamais poderão se libertar de sua verdadeira identidade não importa qual o resultado positivo que obtenham O máximo a que podem aspirar é a atenuação de sua evidência sintomática mas somente através da ação fármaco terapêutica prótese absolutamente necessária que os vincula inexoravelmente ao psiquiatra que gere tal poder A partir desse caso parecem praticamente dizer os peritos podese portanto medir mais uma vez a ingenuidade de quem subestima a psicopatologia e abaixa a guarda diante do esquizofrênico A mensagem vale para todos vale para o colega que pretendeu questionar a fármacoterapia mas vale também para todo o clima imolense demasiadamente pendente para a vertente da desinstitucionalização e do recovery Por isso quando os peritos enfrentam o tema da infração das exigências de controle afirmam que identificando oportunamente o contexto psicopatológico e ambiental era possível formular uma previsão de risco ou de reiteração de comportamentos agressivos e potencialmente lesivos Com efeito para os peritos são muitos e numerosos os acontecimentos que expressam a gravidade da situação Há antes de tudo situações dramáticas a morte de Franca e sobretudo a de Deanna o episódio com ZM sobre cujas consequências na psiché de Giovanni teria sido necessário indagar com atenção Mas há tantas outras campainhas de alarme expressadas no comportamento e nas palavras de Giovanni as ameaças de morte contra os operadores e a coordenadora e contra Ateo as expressões delirantes relativas à comida e ao depósito bancário Com efeito com uma reconstrução a posteriori estamos assistindo a uma espécie de morte anunciada e não conseguimos compreender porque à época O Crime Louco 112 essa impressão não tenha sido claramente percebida É necessário porém reportarse ao clima específico vivido pelos operadores nas circunstâncias Três moradores sofriam de graves problemas de saúde o que comportava incrível acúmulo de serviço marcar exames médicos acompanhar os moradores ao hospital providenciar um significativo acompanhamento assistencial A essa situação de intenso stress somaramse três mortes uma após a outra que além da grande frustração pelo empenho inútil que não conseguira evitar os eventos representaram uma verdadeira tríplice situação de luto para os operadores Com efeito é preciso considerar quão subjetivamente importante foi para todos a convivência de tantos anos com pessoas que com frequência envolveramnos em relações emocionais intensas Não surpreende pois que os operadores estivessem naqueles dias desorientados emocionalmente abalados Todavia é de se perguntar o que deveriam ter feito além do que efetivamente fizeram Para os peritos o Dr Euro foi negligente porque deixou o paciente sem controles médicos por vários meses porque não se empenhou em recuperar a documentação necessária Era suficiente o conhecimento aprofundado da história clínicocomportamental do paciente facilmente encontrável nos prontuários examinados não formulou um projeto terapêutico para o paciente teve uma atitude apressada nas visitas Além disso foi imprudente porque suspendeu a flufenazina decanoato sem motivações claras Mostrou imperícia quando após ter sido ele mesmo agredido não ativou o TSO não alertou suficientemente os operadores não se informou sobre os níveis de segurança de Albatros Mas toda a equipe é inadimplente Não foram definidos protocolos para as medidas cautelares e urgentes Na troca de terapeuta entre CA e PE surge certa superficialidade no registro Além disso tanto o Dr Euro quanto os médicos que o precederam não teriam formulado e verificado com a devida frequência o projeto terapêutico de Giovanni Na realidade o projeto terapêutico existia O Crime Louco 113 era regularmente atualizado e apenas por um erro de procedimento não foi juntado na fase instrutória A responsável pela residência e a assistente social dentre outras coisas deveriam ter registrado o dissenso dos operadores em relação à orientação farmacológica de PE deveriam estar a par do quão descontentes estavam esses operadores com o comportamento do psiquiatra que julgavam ser apressado e negligente deveriam ter transmitido as queixas ao Dr PE ou intervir com outras medidas junto ao responsável pela Unidade Operacional Ainda que não informadosera seu dever garantir que o clima de desconforto e crítica por parte dos operadorespudesse ser apresentado apertis verbis Também nesse caso é muito fácil julgar de fora examinando documentos com tranquilidade e raciocinando sobre acontecimentos distantes Essa condição feita de hipóteses e ficções não leva em conta por exemplo infinitas outras coisas que habitualmente acontecem em volta do evento documentado Tratase de ocorrências gestos palavras que ligados a outras situações sobrecarregam e tornam os operadores menos lúcidos frequentemente são outras urgências que se entrelaçam Só quem realiza esse trabalho pode entender o quanto é difícil manter lucidez e controle emocional em determinados momentos Por outro lado não se entende porque e como a assistente social deveria ter percebido o que não lhe foi dito Na reunião de equipe em um contexto idôneo para se comunicar qualquer informação as ameaças de morte não foram mencionadas nem mesmo por parte de Ateo que ali estava presente Naquela ocasião foi manifestada uma indiscutível preocupação pelas condições de Giovanni mas se concordou que uma vez retomado o tratamento farmacológico a situação já estaria sob controle Como exemplo de imprudência e negligência os peritos reportam a falta de comunicação aos responsáveis pelo Departamento de Saúde Mental das verdadeiras razões da transferência de Ateo do setor social para o psiquiátrico Imputam tal negligência e imprudência em especial à coordenadora da residência que não se pusera em O Crime Louco 114 ação como necessário nem ao menos após o confronto ocorrido em 23 de maio entre Giovanni e Ateo Além disso para os peritos a Dra Laura teria se mostrado inadimplente na avaliação do risco para a segurança diante da falta de vigilância sobre as facas da cozinha Não se entende porque não veio em mente a nenhum dos operadores que poderia ser muito perigoso deixar que um paciente portador de uma descompensação delirante persecutória tão grave se movesse em um ambiente onde poderia facilmente ter à disposição facas de cozinha É interessante notar que os peritos com frequência usam o termo facões referindose às facas usadas na cozinha de Albatros Na realidade tratase de uma normal bateria de facas de carne que o escritório de higiene da ASL durante uma inspeção insistentemente pedira sob pena de não conceder o credenciamento para o refeitório O comprimento as dimensões a forma das facas correspondem aos requisitos das normativas em vigor Por que então a palavra facões De que depende a qualidade de um objeto Nesse caso o termo expressa a vivência dos peritos que olhando para o objeto imaginam o pérfido olhar do assassino Freud certamente falaria de mecanismos de projeção Em todo caso não há dúvida de que o termo depreciativo contribui para a veiculação da mensagem de periculosidade de Giovanni dando uma leitura negativa da maneira pela qual a residência era administrada pela cooperativa e denunciando a falta de controle por parte dos operadores do DSM Mas voltando às referências feitas pelos peritos à coordenadora vale ressaltar que as considerações sobre o stress psicológico a que estavam submetidos todos os operadores em consequência das três mortes naturalmente se aplicam talvez em maior intensidade a ela Mas perguntemonos o que a Dra Laura deveria ter feito além do que fez Não conseguiu com grande esforço levar o psiquiatra a tomar consciência diretamente das condições psíquicas de Giovanni Será que não cumprira corretamente seu dever Não deveria achar que a situação crítica fora corretamente enfrentada e que dali em diante O Crime Louco 115 seria resolvida 23 Perícia dos consultores técnicos do GIP do Tribunal de Bolonha no 938500 RGNR no 1844804 RG GIP Em 19105 VExa encarregou os abaixoassinados prof GBT professor de Psicopatologia Forense na Universidade de S e Dr AA exdiretor de Psiquiatria e Diretor de Saúde Mental de Adultos na USL de S do exame dos autos processuais relativos ao senhor Dr PE médico cirurgião psiquiatra do DSM da USL de Ímola e especialista de referência do senhor MG nascido em Faenza Ravenna em 2321941 atualmente recolhido ao HPJ de Montelupo Fiorentino Objetivo da avaliação era o de responder aos seguintes quesitos queriam dizer os peritos examinados os autos do processo e vista a documentação clínica obtida no curso das investigações preliminares se na conduta do Dr PE durante o período em que teve a seus cuidados o paciente MG são encontráveis manifestações de negligência imprudência ou imperícia ou ainda violações específicas das regras da arte médica Em especial após delineada a patologia psiquiátrica específica sofrida por M e sua evolução histórica a partir do momento de seu ingresso na comunidade queiram avaliar se a modificação redução ou suspensão do tratamento farmacológico foi ou não uma escolha terapêutica adequada e ponderada tendo em consideração a patologia psiquiátrica de que M era portador se houve uma relação de causa e efeito entre a modificação redução ou suspensão do tratamento farmacológico e as manifestações de agressividade manifestadas pelo paciente que acabaram por desaguar na ação delituosa O Crime Louco 116 se de qualquer modo era previsível que em função de tal escolha terapêutica M pudesse novamente manifestar uma reagravação dos distúrbios psiquiátricos de que era portador se tal recidiva poderia se verificar mesmo que o paciente estivesse submetido ao precedente tratamento farmacológico se a modificação redução ou suspensão da administração dos remédios long acting e da terapia oral deveria ter sido acompanhada da adoção de precauções aptas a conter manifestações de periculosidade social por parte do paciente São as seguintes as conclusões dos peritos Examinados os autos do processo penal em questão e vista toda a documentação posta à nossa disposição julgamos poder afirmar que na conduta do Dr PE referente à assistência por ele prestada ao senhor MG são encontráveis sobretudo sinais de negligência e imprudência considerados especialmente os seguintes elementos 1 O senhor MG há longo tempo era portador de uma espécie de esquizofrenia paranoide crônica em parcial remissão tendo sofrido uma reagravação no curso do último mês que antecedeu o homicídio do senhor CA 2 A modificação do tratamento farmacológico com especial referência à redução e posterior suspensão da terapia depot terapia essa que M vinha assumindo ininterruptamente há muitos anos não é de se considerar uma escolha terapêutica oportuna e adequada considerando a patologia psiquiátrica de que M era portador 3 Entendemos ter havido uma relação de causa e efeito entre a modificação do tratamento farmacológico e as manifestações de agressividade do p que acabaram por O Crime Louco 117 desaguar na ação delituosa 4 Era previsível que considerando a escolha terapêutica acima mencionada M pudesse voltar a manifestar uma reagravação dos distúrbios psiquiátricos de que era portador 5 A recidiva não poderia em absoluto se verificar com o p submetido ao precedente tratamento farmacológico 6 A modificação do tratamento farmacológico redução e posterior suspensão do remédio depot deveria ter sido acompanhada da adoção de precauções aptas a tutelar a saúde psíquica do paciente e conter eventuais reagravações psicopatológicas e de periculosidade social 21 de julho de 2005 Vale recordar que o GIP rejeita o pedido de arquivamento formulado pelo MP fundado em insubsistência de lesão pessoal prosseguindo com o procedimento duas médicas são excluídas das imputações permanecendo acusados uma assistente social a responsável pela residência e o psiquiatra Este pede o rito abreviado e é exatamente em relação a ele que o GIP determina esse parecer que se revelará decisivo para a sentença Os quesitos nesse caso são mais específicos do que os das perícias anteriores entrando diretamente no mérito do aspecto da responsabilidade técnica do psiquiatra É especialmente abordado o perfil psicopatológico do homicida e a relação de causa e efeito entre a modificação do tratamento farmacológico e as manifestações de agressividade do paciente que posteriormente deságuam na ação delituosa As considerações dos peritos estão difusamente presentes na sentença proferida pelo mesmo juiz que será focalizada mais adiante Vale deterse nas considerações dos peritos apenas no que diz respeito às relações entre distúrbios mentais maiores e delinquência assim como na relação entre esquizofrenia ou outras psicoses e comportamento violento A propósito os mesmos citam um trecho O Crime Louco 118 do Tratado Italiano de Psiquiatria Diversos estudos evidenciam que o diagnóstico psicopatológico mais frequentemente associado a comportamentos hostis é a esquizofrenia Com efeito parece que a essa patologia pertencem pacientes mais violentos do que à dos distúrbios de personalidade ou à patologia afetiva ou à orgânica cerebral resultando inclusive que no âmbito de avaliações efetivadas em regime de internação hospitalar os pacientes esquizofrênicos sejam em média mais agressivos do que os pacientes com dependência de álcool ou drogas No âmbito da esquizofrenia é induvidoso que existem diferenças que dependem da forma clínica do decurso da doença do tipo de episódio e da resposta à terapia Por exemplo os pacientes com esquizofrenia de tipo paranoide podem apresentar comportamentos agressivos em relação a um delírio particular assim diretamente dirigidos contra uma ou mais pessoas específicas Segundo a literatura científica o prognóstico psiquiátrico do comportamento violento pode ser genérico condicional ou iminente Nivoli e outros 1993 O prognóstico pode ser dito genérico quando o paciente apresenta sintomas psiquiátricos não específicos de um provável comportamento violento ainda não iniciado em modo concreto Por exemplo um sujeito esquizofrênico com delírio estruturado de conteúdo persecutório pode em linha de princípio passar à ação com comportamentos violentos voltados contra os supostos perseguidores todavia a experiência clínica demonstra que são estatisticamente muito poucos os sujeitos esquizofrênicos com delírios de conteúdo persecutório que na realidade passam à ação violenta contra pessoas Nesses casos a capacidade de previsão do psiquiatra é bastante limitada e sujeita a erros diversos No caso do prognóstico condicional embora ainda não se tendo manifestado nenhum comportamento violento a previsibilidade de semelhante agir pode ser sob o aspecto clínico e estatístico deduzida de um sintoma específico ou de específicas constelações de sintomas desencadeadores Por exemplo pode ser considerado significativamente provável um comportamento O Crime Louco 119 violento se um sujeito esquizofrênico com delírio de conteúdo persecutório apresenta juntamente com esse sintoma um estado de agitação psicomotora mais de duas noites transcorridas insone e em estado de eretismo ameaças quentes com clara identificação de uma vítima antecedentes de agressão a pessoas por sensações subjetivas em contextos sociais análogos ao atual Nessas hipóteses o psiquiatra deve estar apto a identificar os sintomas específicos ou as específicas constelações de sintomas desencadeadores do comportamento violento e adotar todas as medidas necessárias para evitar a ocorrência de fatos danosos Finalmente no prognóstico iminente o comportamento violento do paciente já se iniciou concretamente requerendo do psiquiatra uma intervenção rápida em termos de neutralização de dinâmicas de atuações violentas O Crime Louco 120 3 As sentenças 31 As sentenças no processo por concurso culposo no delito doloso contra o médico psiquiatra Indeferimento de incidente probatório e requerimento de arquivamento de procedimento penal Tribunal de Bolonha Cartório do Juiz dos Procedimentos Preliminares Decisão de indeferimento de incidente probatório art 398 CPP 124 DLv 27189 A Juiza Dra G N examinado o requerimento apresentado em 19201 pelo MP Dr SO em relação ao procedimento penal no 236101 RG I P em face de 1 P E 2 ML 3 PAM 4 GA 5 CA CONSIDERANDO que o MP requer que se proceda a incidente probatório de perícia médicolegal destinada a verificar os aspectos de culpa profissional evidenciados na elaboração do ct ex art 359 CPP e causalmente relacionados à morte de C em referência ao hipotético crime do art 589 CP morte de CA ocorrida em Ímola em 24500 que na hipótese acusatória a alegada conduta do art 589 CP atribuída aos atuais investigados teria de necessariamente ser posta em concurso ex art 110 CP com o autor material MG do homicídio voluntário de CA ex art 575 CP que portanto deveria se configurar caso de concurso ex art 110 CP entre o crime do art 589 CP punido a título de culpa praticado na hipótese acusatória e cada um em relação ao papel específico desempenhado por PE ML PAM GA CA e o crime do art 575 CP punido a título de dolo O Crime Louco 121 praticado por MG aliás sujeito inimputável que portanto versase a hipótese de concurso culposo em fato doloso que para a jurisprudência dominante o concurso culposo não é configurável em relação ao delito doloso requerendo o art 42 parágrafo 2o CP expressa previsão que no entanto está ausente na medida em que o art 113 CP falando em cooperação no delito culposo e não em cooperação culposa no delito contempla tão somente concurso culposo no delito culposo Cass Penal Seção IV 11101996 no 9542 que a esse propósito também a doutrina alinhandose à citada jurisprudência afirma que a hipótese de concurso culposo em delito doloso de ser negada antes de tudo em nome da unidade do crime em concurso e excluir a própria possibilidade de diferenciação do elemento subjetivo entre os corréus que além disso observase que prevendo explicitamente o art 113 CP uma única hipótese de cooperação no delito culposo implicitamente se pode concluir pela exclusão da cooperação culposa no delito doloso tendo ainda em consideração o caráter necessariamente expresso da previsão de responsabilidade culposa ex artigo 42 parágrafo segundo CP que também o aprofundamento recente do tema expôs a inconciliabilidade de grande parte dos tradicionais exemplos de concurso culposo em ilícito doloso com a afirmada essencialidade da consciência de cooperar qual requisito psicológico adicional e indefectível da participação que para se ter a hipótese em questão a esse último requisito terseia que se somar a particularidade de a regra de cautela violada pelo agente culposo ser formulada também ou exclusivamente para o fim de prevenir um fato O Crime Louco 122 doloso de terceiro que se chegaria assim à conciliação de dois dados dificilmente compatíveis de um lado a violação de uma regra de cuidado construída sobre a previsibilidade de um fato doloso do terceiro de outro lado a efetiva representação do comportamento do terceiro que porém deveria aparecer para o agente mediato como uma conduta culposa e não como ao contrário é na realidade um comportamento doloso ainda que praticado por um sujeito inimputável que disso derivaria a conclusão de se excluir a admissibilidade dessa forma de participação considerada a ausência de referimentos normativos seguros que é possível chegar a análogas soluções ainda que não se concorde com a assertiva concernente à necessária presença de um especial coeficiente subjetivo na participação considerando antes de tudo o caráter excepcional da contribuição dolosa alheia capaz de interromper a sequência causal ex artigo 41 CP que o problema encontraria assim uma solução ainda no plano objetivo da imputação do resultado à chamada causa culposa mediata que a hipótese em questão é de ser descartada ainda em consideração a uma definição de culpa ancorada nas imprescindíveis observações pessoais próprias da responsabilidade penal que quando para a causação de um resultado convergem diversas ações autônomas de diferentes sujeitos pressupõe se em cada indivíduo capaz de entender e querer atitude voltada para a autodeterminação responsável o que exclui a natureza culposa de ações que não sendo perigosas em si mesmas simplesmente fornecem a terceiros a ocasião para delinquir devendo oportunamente ser valorada a unívoca opção do legislador pela configuração unicamente O Crime Louco 123 dolosa da participação no artigo 110 CP cfr Digesto delle Discipline penalistiche UTET II sub art 110 c p que ainda que se queira formular hipótese de responsabilidade dos atuais investigados ex art 41 CP por sua posição de garantidores derivada do papel específico por eles desempenhado no interior da estrutura Albatros ou de todo modo em ligação com essa irseia ao encontro de insuperável dificuldade que esse tipo de responsabilidade pressupõe a individualização precisa do resultado a ser impedido e a predisposição na mente do sujeito garantidor de um concreto domínio sobre o decurso causal que o provoca e assim a possibilidade de intervir sobre esse de maneira significativa que somente assim a própria inação poderia ser colocada como causa do resultado em si que portanto a invocação do art 41 CP tem apoio no ordenamento sob a condição da causação do resultado nesse caso a morte de AC poder ser referida a um decurso causal inteiramente dominado pelo sujeito garantidor e não determinado por uma ação inteiramente querida por um outro sujeito ainda que inimputável que também unicamente sob o aspecto objetivo causal estarseia sendo chamado a responder não mais por um fato próprio mas por um fato alheio que portanto deve ser indeferido de plano o requerimento de incidente probatório ex art 392 CPP formulado pelo MP não se visualizando a hipótese delituosa contestada PQM Indefere o requerimento formulado pelo MP Notifiquemse as partes Ao Cartório para as medidas cabíveis Bolonha 28501 O Crime Louco 124 Requerimento de arquivamento do MP Procuradoria da República junto ao Tribunal Ordinário de Bolonha Pedido de arquivamento arts 408411 CPP 125 e 126 DLV 27189 Ao Juiz dos procedimentos preliminares junto ao Tribunal de Bolonha O Ministério Público Dr SO Procurador da República Subst junto ao Tribunal Ordinário de Bolonha Vistos os autos do procedimento penal acima mencionado CONSIDERANDO QUE Das condutas atribuídas aos profissionais da saúde que se ocupavam a vários títulos do programa terapêutico de MG objeto de imputação penal no âmbito de procedimento autônomo relativo à morte de CA não parece ter se seguido uma doença em sentido técnico ao mencionado homicida mas sim mais simplesmente uma falta de controle farmacológico sobre patologia psicótica preexistente Portanto na falta do requisito técnico de existência de uma lesão pessoal o hipotético delito do art 590 CP se torna insubsistente Assim tida como infundada a notícia de crime na medida em que os elementos obtidos nas investigações preliminares não parecem idôneos para sustentar a acusação em juízo Considerados os arts 408411 CPP 125 e 126 DLV 27189 Requer que o Juiz dos procedimentos preliminares deste Tribunal promova o arquivamento do procedimento e determine a consequente remessa dos autos à Seção própria À Secretaria para as providências cabíveis Bolonha 17122001 O Crime Louco 125 Sentença de primeiro grau Sentença no 19842005 proferida em processo de rito abreviado em 251105 pelo Juiz de Audiência Preliminar do Tribunal de Bolonha depositada em cartório em 19106 Em nome do povo italiano o juiz Dr GA proferiu a seguinte sentença no procedimento instaurado contra PE acusado pela prática do delito dos arts 40 2º 41 e 589 CP PQM Nos termos dos arts 62 bis CP 442 533 c 535 CPP declara PE culpado do crime referido na ementa e concedendolhe as circunstâncias atenuantes genéricas e aplicada a redução pelo rito condenao à pena de quatro meses de reclusão além do pagamento das despesas processuais Nos termos dos arts 163 ss CP determina que a execução da pena acima imposta seja suspensa em relação ao mencionado PE pelo prazo de cinco anos nas condições estabelecidas em lei Nos termos dos arts 538 ss CPP condena PE ao ressarcimento dos danos em favor das partes civis constituídas BI BM e CA a ser liquidado em processo autônomo perante o competente juízo cível Condena o mencionado P ao pagamento a título provisional de execução imediata da quantia de 50000 euros a favor de BI e CA e 20000 euros a favor de BM Condena o mesmo ainda ao reembolso das despesas processuais despendidas pelas mesmas partes civis liquidandoas no total de 464000 euros excluídas as despesas não documentadas além de IVA e CPA na forma da lei a favor de BI e 472000 além de IVA e CPA a O Crime Louco 126 favor de BM e CA Visto o art 544 3º CPP indica o prazo de sessenta dias para o depósito em cartório da fundamentação da sentença Bolonha decisão em 25 de novembro de 2005 A sentença inicialmente aponta os contornos da culpa atribuída ao acusado abordando em seguida a subsistência de um nexo causal entre a conduta e o resultado a concreta previsibilidade deste último o concurso de causas e finalmente o concurso culposo no crime doloso O juiz encontra como configuração da culpa uma clara negligência no agir do acusado em contraste com o que foi estabelecido no documento redigido pelo Departamento de Saúde Mental de Ímola que ao atribuir aos médicos responsáveis o dever de assumir as medidas necessárias para cada paciente prevê que isso seja feito tendo em conta as indicações fornecidas por outros membros da equipe Rejeita o parecer dos consultores da defesa segundo os quais o paciente nos últimos quinze anos encontravase em fase de parcial remissão sem episódios significativos de recidiva pelo que era correta e devida uma remodelação da terapia realizada através da busca da dose mínima eficaz Adere ao contrário à opinião dos peritos do juízo que avaliaram MG como um paciente desde sempre particularmente difícil tendo em conta sua história clínica anterior ao ingresso na comunidade e o fato de que nos três anos anteriores ao homicídio três diferentes psiquiatras se encarregaram de seu tratamento devido exatamente às dificuldades de se relacionar com ele e bastante problemático dadas sua pouca compliance à terapia suas descargas agressivas e sua escassa tolerância às frustrações Tudo isso além de confirmar o quadro de sumário conhecimento por parte de PE das condições psíquicas e psicológicas do doente é certamente sinal de escassa empatia em relação ao mesmo O Crime Louco 127 O juiz não entra no mérito da oportunidade da escolha operada pelo médico de reduzir o tratamento farmacológico mas considera que se trata de uma escolha arriscada tendo em conta numerosos estudos científicos documentando os riscos elevados de recaída frequentemente conexos a tais comportamentos É regra comum de experiência que em qualquer atividade humana ao aumento dos riscos deva corresponder a adoção de um sistema de cautelas e precauções idôneo a evitar a ocorrência de resultados danosos ou perigosos A sentença refuta a objeção dos consultores técnicos da parte que expressam perplexidades em relação à condição da residência Albatros como lugar apto a fazer frente a uma condição aguda de um paciente psicótico na medida em que está desprovido de uma constante presença de pessoal sanitário médico e de enfermagem Com efeito Este fato não exclui que esta seja uma condição extrahospitalar suficientemente idônea aliás não se visualiza quais poderiam ser as alternativas a que alude a lei se não aquelas que se valem de pessoal especializado educadores e assistentes de base em âmbito psiquiátrico que a qualquer momento podem se dirigir ao médico psiquiatra de plantão 24 horas na sede que assim pode garantir uma quotidiana observação vigilância e contenção das angústias do paciente descompensado O juiz é particularmente categórico ao apontar os deveres e as atribuições do médico psiquiatra Diz Não pode haver qualquer dúvida sobre a existência a cargo do médico psiquiatra ora acusado de um dever de garantia em relação aos doentes mentais na forma da posição de controle que impõe ao sujeito obrigado a neutralização de determinadas fontes de perigo de modo a tutelar todos os bens jurídicos que se achem em contato com esse e que por tal razão possam ingressar em uma situação de perigo A fonte de tal posição de garantia reside principalmente na voluntária assunção por parte de PE psiquiatra empregado do DSM de Ímola da função de consultor da comunidade Albatros no que dizia respeito ao paciente MG Nas contrarrazões os consultores da parte tinham O Crime Louco 128 posto em discussão a existência de tal dever demonstrando que com base nos protocolos organizacionais do DSM de Ímola o médico psiquiatra estava encarregado primordialmente da gestão da terapia farmacológica dos pacientes Mas para o juiz na realidade em tema de culpa profissional o cumprimento concreto e pessoal de atividade médicoterapêutica por parte do profissional da saúde sempre comporta a assunção direta da posição de garantidor em relação ao paciente pois a ele incumbe o dever de observância das leges artis cuja finalidade é a de prevenir o risco não consentido ou o aumento do risco Em tema de responsabilidade profissional o juiz cita a Suprema Corte Cass Pen Seção IV 3 de fevereiro de 2003 no 4827 Perilli Ludovico segundo a qual subsiste a posição de garantidor do médico que mesmo a título de mero consultor verifique a existência de uma patologia de elevado e imediato risco de agravação Tal médico tem o dever de agir promovendo pessoalmente os tratamentos terapêuticos tidos como idôneos ou fazendo internar imediatamente o paciente em um hospital especializado Em tema de previsibilidade o juiz concorda com seus próprios peritos sobre o fato de que a emergência manifestada a partir de dez de maio com toda a constelação de sintomas significativos de uma descompensação aguda fortes temores de ser assassinado ameaças de morte contra vários operadores a agressão praticada contra a futura vítima com a utilização de um urinol etc levandose ainda em consideração a anamnese psicopatológica de MG deveria ter levado o Dr PE à luz de suas qualificações e sua experiência clínica a elaborar um prognóstico de violência condicional ou até mesmo de violência iminente tendo em conta que o comportamento agressivo e violento já havia sido de fato iniciado Com efeito entende o juiz que o impulso heteroagressivo que desaguou no ferimento mortal do operador CA não foi assim um evento inesperado e imprevisível tratandose sim de um ato perfeitamente enquadrável na patologia psiquiátrica de que era O Crime Louco 129 portador o paciente e típico da grave crise psicótica em que o mesmo se encontrava Não há dúvida pois que o ora acusado poderia e deveria imaginar a possível se não provável ocorrência de tal evento Ao afrontar o tema da subsistência de um nexo causal entre a conduta e o resultado o juiz GA não omite a dificuldade de se estabelecer com certeza a existência de uma relação de causa e efeito no campo psiquiátrico entre a adoção ou a não adoção de uma escolha terapêutica e a exacerbação da patologia do paciente Desenvolve erudita análise sobre a matéria A seu dizer hoje já foi repudiado no procedimento de explicação causal o método dedutivo que pressupondo um completo conhecimento de todas as condições iniciais do processo causal e uma perfeita demonstrabilidade científica e empírica de todas as fases pretende fornecer uma resposta certa e absoluta porque fundada em leis universais Não há dúvida que especialmente em matéria de culpa médica uma imputação objetiva do resultado fundada em base estritamente causal condicional tendo em conta a medida de incerteza que permeia a matéria da clínica e da medicina em geral comportaria substancial renúncia a sancionar penalmente comportamentos com frequência gravemente descuidados a incidir sobre o bem primário da vida humana O critério da certeza científica foi assim progressivamente substituído pelo da certeza processual com base no qual subsiste o necessário nexo de causalidade quando a conduta do agente tenha sido condição necessária do resultado com alto ou elevado grau de credibilidade racional ou probabilidade lógica cfr Cass Pen SU 13 de fevereiro de 2002 Franzese Na prática judiciária observase como subsistem hipóteses relativas a condutas culposas e comissivas nas quais a verificação do nexo causal não diverge da que se teria ao se qualificar como omissiva a conduta do agente É claro que o profissional da saúde que erra o tratamento incorre em culpa ativa do ponto de vista etiológico pondo em ação as condições positivas do resultado lesivo mas O Crime Louco 130 ao mesmo tempo do ponto de vista jurídico não tendo ativado as condições negativas do mesmo Sua conduta pois de um lado é condição do resultado porque o determina no mínimo acelerando os tempos do processo e por outro lado igualmente o é porque não ativa condições impeditivas do mesmo Ainda sobre o tema da causalidade entende o juiz que os peritos do juízo tenham documentado suficientemente com base em respeitáveis estudos científicos e dados estatísticos a relação entre distúrbios mentais maiores e delinquência assim como entre esquizofrenia ou outras psicoses e comportamento violento perfeitamente aplicável a essa situação Com relação à argumentação dos peritos da parte que formulavam a hipótese de que à base da descompensação de Giovanni poderiam estar causas diversas da modificação da terapia farmacológica como eventos traumáticos ou estressantes o juiz rejeita tal argumentação sem no entanto excluir o efeito de possíveis concausas Este juiz está convencido de que os eventos traumáticos apontados pelos especialistas da defesa como as mortes das companheiras de comunidade aliadas à situação relativa à descoberta do esgotamento de seus fundos bancários incidiram decisivamente sobre o estado psíquico de MG Todavia no que diz respeito à conduta objeto de inculpação é de se entender que tais fatores agiram apenas como concausas insuficientes por si sós para determinar o resultado Com efeito é de se aplicar nessa matéria o princípio jurídico da equivalência das causas segundo o qual o nexo causal só se exclui se se verificar uma causa autônoma e sucessiva em relação à qual a precedente seja de se considerar tamquam non esser enquanto tal nexo não pode ser excluído quando a causa sucessiva tenha apenas acelerado a produção do resultado Cass pen seção V 14 de julho de 2000 Falvo Na mesma linha o juiz repele a tese dos peritos da parte segundo a qual as manifestações comportamentais do paciente na realidade seriam uma variável dependente das mudanças ambientaisrelacionais e não do tratamento farmacológico Tal convencimento se baseia na O Crime Louco 131 documentação clínica relativa às internações no HPJ de Giovanni nos anos posteriores ao homicídio Com efeito em todo esse período o paciente embora submetido a uma terapia farmacológica maciça e constante não demonstra nenhuma melhora em sua agressividade Este julgador está convencido embora sem ter sobre o tema específico a contribuição cognoscitiva e valorativa dos peritos já que as deduções foram depositadas in limine litis de que tais cortantes conclusões não são aceitáveis Em primeiro lugar porque partem de uma premissa errada o M internado em 27 de maio de 2000 na estrutura de Montelupo Fiorentino não é do ponto de vista psiquiátrico a mesma pessoa que apenas um mês antes começava a manifestar os primeiros problemas comportamentais na comunidade residencial onde morava O paciente internado em seguida ao crime é um sujeito a quem à grave crise psicótica em ação juntamse dois traumas de dimensão relevante o homicídio perpetrado de maneira extremamente violenta e o desenraizamento de um contexto ambiental tranquilizador como era a comunidade residencial Albatros com o recolhimento para carcerário em uma estrutura predominantemente de contenção como é o hospital psiquiátrico judiciário De outro lado porque como já se observou anteriormente é razoável entender que a situação de grave descompensação psicótica de M não tenha sido determinada por um ou outro fator a modificação da terapia ou por condições externas como os lutos ou traumas mas sim pela combinação de todas essas condições que deixadas sem controle tornaram possível a ocorrência do homicídio Conforta tal conclusão a constatação de que após um primeiro período de internação em Montelupo caracterizado por impulsos de violência e agressividade M ambientandose à nova realidade e novamente sedado com a administração de neurolépticos foi progressivamente diminuindo suas agitações tendo ao menos nos últimos tempos se estabilizado substancialmente Quanto às sucessivas internações a progressiva evolução da patologia em psicose orgânica e os fatores O Crime Louco 132 traumáticos derivados das transferências para novas realidades ambientais impedem que se compreenda e se avalie completamente a etiologia de suas manifestações agressivas Finalmente a sentença enfrenta o tema do concurso culposo no crime doloso A defesa do acusado invocara a sentença da Cassação Penal Seção IV de 11101996 9542 na qual se faz referência a dois artigos do Código Penal o art 42 parágrafo 2º do CP segundo o qual a punibilidade a título de culpa é prevista somente nos casos expressamente previstos em lei e o art 113 CP pelo qual a coparticipação culposa é prevista somente no caso de delito culposo Da leitura combinada desses dois artigos seria de se concluir que o concurso culposo não é configurável em delito doloso requerendo o art 42 parágrafo 2º CP uma previsão expressa que no entanto está ausente enquanto o art 113 CP fala de cooperação no delito culposo e não de cooperação culposa no delito contemplando assim tão somente o concurso culposo no delito culposo Mas para o juiz GA tal construção aliás completamente desatenta da mais moderna doutrina penal foi recentemente invertida pela própria Cassação que explicitamente afirmou o concurso culposo é configurável ainda em relação ao delito doloso não o obstando a previsão do art 42 parágrafo 2º CP que referindose somente à parte especial do Código não diz respeito às disposições dos arts 110 e 113 CP Cass Pen seção IV 9 de outubro de 2002 no 39680 Giancarlo tratase de episódio em que foi afirmada a responsabilidade a título de culpa de um sujeito que pelo estado de abandono e negligente descuido em que mantinha um depósito de material de borracha contribuíra para pôr em atuação as condições para que se verificasse um incêndio que na realidade acabou por ser ateado por desconhecidos Na realidade no caso em espécie não parece sequer necessário despertar a problemática do concurso culposo no crime doloso posto que tal não pode ser considerado o ato do incapaz de entender e querer Raciocinando diversamente de fato se deveria excluir a punibilidade da conduta da professora O Crime Louco 133 primária que omitindose culposamente de exercer a necessária vigilância não impedisse que um aluno voluntariamente ferisse um companheiro de brincadeiras A criança assim como o enfermo psíquico para a lei penal é sujeito privado da capacidade de entender e querer todavia do ponto de vista psicológico não se pode excluir que possa cometer um ato intencionalmente A esse propósito a moderna doutrina fala referindose aos estados psicológicos dos incapazes de entender e querer em pseudodolo e pseudoculpa O que na realidade reprovase ao ora acusado não é ter concorrido com sua própria conduta culposa na atividade delituosa de M mas sim não ter impedido um resultado a morte de C que na qualidade de detentor de uma posição de garantidor tinha o dever jurídico de impedir Na conclusão quando da fixação da pena conforme os critérios estabelecidos no art 133 CP diz o juiz é de se considerar que embora a conduta do acusado frequentemente se caracterize por uma superficialidade comportamental e manifesta inadequação a escolha terapêutica adotada embora não na modalidade que o caso concreto impunha se mostra conforme uma interpretação mais evoluída e moderna da psiquiatria que vê o papel do médico mais de uma perspectiva terapêuticosanitária do que de contenção da periculosidade social do paciente Não se pode deixar de concordar com as argumentações da defesa no ponto em que evidenciam que o médico quando podia adotar uma escolha cômoda mantendo o paciente sedado até o fim de seus dias adotou ao contrário uma escolha terapêutica voltada a permitir que M tivesse uma melhor qualidade de vida Sentença de segundo grau sentença no 6607 no20061595 RG 12 jan 2007 da Corte de Apelação de Bolonha terceira seção penal Sentença da Câmara em Conselho na Causa Penal contra O Crime Louco 134 PE em impugnação à sentença proferida pelo GUP de Bolonha em 25112005 PQM Nos termos dos arts 592 e 605 CPP confirma a sentença pronunciada pelo GUP do Tribunal de Bolonha em 251105 contra a qual apelou o acusado PE condenandoo ao pagamento das despesas processuais relativas a esse grau de jurisdição Condena ainda o acusado a reembolsar as despesas despendidas pelas partes civis constituídas liquidandoas em 240000 euros a favor da parte civil B e 240000 euros a favor das partes civis B e C além das despesas gerais IVA e CPA Prazo para depósito em cartório da fundamentação 90 dias Bolonha 12 de janeiro de 2007 O procedimento em segundo grau concernente à sentença no 19842005 foi instaurado pelos advogados de defesa do Dr Euro em 8 de março de 2006 Os advogados entenderam que a indicação das provas em que se baseou a decisão poderia estar correta enquanto enumeração mas a valoração das provas em seu conjunto fora equivocada porque feita em violação ao art 192 parágrafos 1 e 2 CPP Além disso apontaram que a enunciação das razões pelas quais o juiz considerou não dignas de crédito as provas contrárias denunciava de um lado uma submissão acrítica às observações dos peritos do juízo não adequadamente motivada e de outro uma refutação às vezes ausente e sempre parcial e superficial dos argumentos dos consultores da defesa Em essência o juiz teria aplicado o conceito de dever de garantia do psiquiatra em manifesta contradição com o contexto normativo consequente à lei da reforma psiquiátrica No quadro das competências profissionais necessárias ao desenvolvimento da função psiquiátrica de fato não caberia ao psiquiatra a total responsabilidade pelo controle dos comportamentos manifestados pelo paciente que ao contrário O Crime Louco 135 tem quotas de autodeterminação não podendo ser considerado tout court como um sujeito perigoso A conduta do paciente psiquiátrico não pode ser sempre e unicamente manifestação de doença e insensatez analogamente a psicofarmacologia não pode ser considerada como instrumento de controle e repressão de tal conduta O remédio não tem o poder de eliminar um pensamento interpretativo da realidade podendo simplesmente atenuálo e tornar menos perturbadora a relação interpessoal Os peritos psiquiatras de que se valeram os magistrados teriam revelado uma ótica biologista e reducionista enquanto o mais autorizado pensamento científico considera como método de referência no campo do saber psiquiátrico a complexidade e como seu consequente corolário prático o tratamento integrado biopsicosocial Os peritos a posteriori e em relação a um evento dramático teriam erroneamente construído um nexo de causalidade direto entre redução do remédio e manifestação do pensamento interpretativodelirante Os advogados no entanto entendem ter documentado através da literatura científica e das considerações amplamente aprofundadas dos peritos da parte como é de se excluir um vínculo de causalidade linear e unívoco entre a redução da terapia farmacológica e o recrudescimento psicopatológico No recurso de apelação é contestada ainda a responsabilidade atribuída ao doutor Euro de não ter ativado o Tratamento Sanitário Obrigatório em relação a Giovanni para a parte recorrente não subsistiam os elementos previstos em lei Finalmente requereram os advogados a juntada de cópia do original do parecer pericial depositado no Tribunal de Ímola em sede do Juízo Cível onde se desenvolve o processo entre a AUSL de Ímola de quem era empregado o Dr Euro a Cooperativa gestora da Comunidade Albatros e os herdeiros de Ateo Tal parecer afirmaria que nada pode ser atribuído ao doutor Euro nem sob o aspecto da imperícia nem da negligência nem da imprudência tratouse de uma escolha terapêutica justificada talvez imperativa em uma avaliação ex post dos acontecimentos tratou se de erro escusável não estavam presentes os pressupostos do O Crime Louco 136 tratamento sanitário obrigatório A sentença da Corte de Apelação todavia rejeita toda a argumentação da defesa e confirma a sentença de primeiro grau com a condenação do doutor Euro ao ressarcimento dos danos e ao pagamento das despesas das partes civis Reitera o nexo de causalidade revelado pelas provas produzidas em relação à não internação do paciente em regime de TSO Sobretudo reitera que os comportamentos do doente mental são sempre uma manifestação da doença e que o paciente por definição não responde por suas ações por elas respondendo o psiquiatra que pode controlálo assim se revestindo de uma precisa posição de garantidor Sentença de terceiro grau Sentença da Cassação Seção IV Penal 11 de março de 2008 no 10795 Das considerações antes expostas segue a rejeição do recurso com a condenação do recorrente ao pagamento das despesas processuais além dos efeitos sobre a ação civil conforme disposto PQM a Corte Suprema de Cassação seção IV penal rejeita o recurso e condena o recorrente ao pagamento das despesas processuais Condenao ainda a reembolsar às partes civis as despesas por elas despendidas no presente grau de jurisdição despesas que liquida no total de 300000 euros para a parte civil BI e no total de 360000 para as partes civis BM e CA além de para todas as referidas partes civis IVA CPA e despesas gerais como estabelecido em lei Assim foi decidido em Roma em 15 de novembro de 2007 O Relator Dr CB Ao julgar culpado o doutor Euro a sentença considera a posição O Crime Louco 137 de garantidor do psiquiatra sua responsabilidade no tratamento do paciente examina a previsibilidade do resultado o princípio de confiança e o dever de informação do médico descrevendo enfim o mecanismo causal do resultado distinguindo entre causalidade comissiva e causalidade omissiva Preliminar e relevante é a afirmação concernente à posição de garantidor do psiquiatra Com efeito a sentença estabelece que qualquer que fosse o cargo formalmente atribuído ao doutor Euro de fato ele desenvolvia a função de tutela da saúde psíquica do paciente em vínculo contratual que a estrutura pública ou privada lhe conferiu e em vínculo normativo consequente à instauração de uma relação terapêutica O médico portanto estava sob o ônus de uma posição de garantidor no aspecto do dever de proteção ainda que os aspectos sociais relacionais reabilitadores e comunicativos fossem apanágio dos operadores não médicos e não sanitários Julga o psiquiatra responsável por imperícia e imprudência culpa por grosseira violação das regras da arte médica no tratamento do paciente Funda tal juízo na drástica redução do Moditen não executada com gradualismo 20 a cada vez com intervalos de três meses não tendo em conta a presença de distúrbios nos cinco anos anteriores nem a gravidade da patologia esquizofrenia paranoide crônica em fase de parcial remissão diante de um parecer contrário dos colegas A situação estava à beira da descompensação no momento da modificação da terapia e sofreu sucessivo agravamento O psiquiatra não acompanhou a redução da terapia com medidas necessárias de apoio quando a própria posologia no tratamento de urgência era ineficaz A Corte todavia não encontra culpa omissiva pela ausência do TSO enquanto ausente o requisito da falta de aceitação das terapias por parte do paciente A sentença entende que a previsibilidade do resultado restou afirmada sendo a patologia de Giovanni tratada de maneira incongruente a situação era apta a exasperar as manifestações O Crime Louco 138 de agressividade contra terceiros era iminente a reação violenta Confirmamno três episódios sintomáticos de possível descompensação a tentativa de esconder uma faca verificados depois da primeira redução do remédio e os outros dois episódios delirantes o delírio do desaparecimento do dinheiro verificados entre a redução e a suspensão do remédio Em relação ao princípio da confiança e ao dever de informação do médico a sentença encontra negligência por falta de obtenção das informações o médico ignorava que o paciente tivesse estado internado em HPJ deveria ter solicitado as periódicas verificações efetuadas pela equipe e ter se informado mais ativamente Além disso as visitas do médico eram marcadas pela pressa e superficialidade Diante das considerações da defesa a Corte precisa que as omissões de informações úteis por parte dos operadores da estrutura podem ter uma eficácia cocausal mas não excluem a culpa do médico Com referência à relação de causalidade a Corte rejeita a objeção concernente à omissão de verificação da concatenação causal em todos os seus aspectos fáticos e científicos necessários responsabilidade organizacional e de outros sujeitos e que mesmo um tratamento antipsicótico correto não excluiria o risco de recaída apenas reduzindoo em 23 Isto para a Cassação é um critério probabilístico inidôneo a fundar um juízo positivo sobre a causalidade Em apoio à tese da causalidade é citada a Sentença Cass Seção IV 61290 basta que o juiz traga à luz um ou mais antecedentes que assim o sejam de acordo com as leis da ciência sem os quais com alto grau de probabilidade o resultado não teria se verificado Enfim a Corte ressalta a necessidade de se evitar confusões entre causalidade comissiva e causalidade omissiva na primeira é uma proibição que é violada na segunda a violação de um comando Na responsabilidade profissional do médico estão presentes condutas ativas e passivas que interagem entre si tornando difícil precisar a causalidade É comum se dizer que médicos que erraram diagnósticos e terapias não violaram um comando penal mas sim O Crime Louco 139 somente uma proibição de causar ou contribuir para causar lesões ou mortes com negligência imperícia ou imprudência Mas o psiquiatra não violou um comando omitindose de intervir em um caso que requeresse sua ação causalidade omissiva violando sim a proibição de administrar as terapias farmacológicas de modo incongruente inicialmente com uma imotivada redução e depois suspendendoas causalidade comissiva O psiquiatra em essência introduziu no quadro clínico do paciente um fator de risco que acabou por efetivamente se concretizar Não se trata porém de uma referência genérica à teoria do aumento do risco mas da introdução de um fator causal que provocou ou contribuiu para provocar o resultado a descompensação verificada estava etiologicamente ligada à modificação terapêutica O procedimento relativo à coordenadora da residência e à assistente social Sentença de primeiro grau Tribunal de Bolonha Seção destacada de Ímola 2362006 Paralelamente ao processo contra o médico psiquiatra desenvolvese na sede autônoma de Ímola o procedimento relativo à coordenadora da residência e à assistente social do Departamento de Saúde Mental de Ímola O procedimento é complexo e se protrai no tempo Somente à distância de 6 anos em 23 de junho de 2006 é proferida a sentença de primeiro grau Em nome do Povo Italiano o Tribunal de Bolonha seção destacada de Ímola na pessoa do Dr SP proferiu e publicou mediante leitura do dispositivo a seguinte sentença em face de GA ML Nos termos dos arts 62 bis CP 533 535 CPP declara ML culpada do crime a ela atribuído e reconhecendo O Crime Louco 140 em seu favor as circunstâncias atenuantes genéricas condenaa à pena de quatro meses de reclusão além do pagamento das despesas processuais Nos termos dos arts 163 e 175 CP determina a suspensão condicional da pena pelo prazo de cinco anos determinando ainda que a presente sentença condenatória não seja mencionada em certidões penais expedidas a requerimento de particulares exceto por razões de direito eleitoral Nos termos do art 530 parágrafo 2º CPP absolve GA do crime a ela atribuído por não ter a mesma cometido o fato Nos termos do artigo 331 CPP determina a remessa dos autos ao MP junto a esse juízo para que avalie a relevância penal das declarações prestadas por TR na audiência de 29 de setembro de 2005 Nos termos do art 544 parágrafo 3º indica o prazo de 90 dias para o depósito em cartório das motivações Ímola 23 de junho de 2006 Na sentença o juiz acolhe as opiniões dos peritos do MP e as contrarrazões da defesa da assistente social GA rejeitando no entanto as da defesa da coordenadora da residência Dra Laura em relação à qual reconhece a responsabilidade derivada da subsistência de uma posição de garantidor Como se vê a sentença decalca a motivação formulada poucos meses antes pelo Tribunal de Bolonha em relação ao psiquiatra Mas por não falar explicitamente em concurso culposo podese legitimamente questionar se de certa forma as duas sentenças não seriam alternativas De todo modo vale a pena destacar a linguagem dessa sentença e assim de toda a sua impostação teórica fundada em uma ótica psiquiátrica decisivamente tradicional e organicista Estão presentes todos os sintomas da esquizofrenia que constituem os critérios universalmente aceitos em âmbito científicoa esquizofrenia O Crime Louco 141 se caracteriza por importantes distúrbios comportamentais e frequentes manifestações de violência e agressividade Em outras passagens são formuladas considerações desconcertantes a revelar um substancial preconceito em relação aos pacientes psiquiátricos Com efeito M até em sua aparência não era uma pessoa normal mas como é possível dizer uma coisa dessas fonte de perigo que de todo modo reside na doença mental de um ponto de vista sanitário Usa quer expressões alarmistas e de perigo as facas mortíferas quer expressões impregnadas de forte estigma um louco que se sabia potencialmente fora de controle Por outro lado atribuir ao louco responsável pelo homicídio a imagem de um monstro perigoso resulta da vontade de fazer crer que a gestão da crise por parte dos acusados teria sido irresponsável e culpável mas corresponde também à evidente ausência no processo do paciente desaparecido dentro do Hospital Psiquiátrico Judiciário na implícita confirmação de sua periculosidade social Naturalmente seria de se indagar se essas expressões teriam sido utilizadas mesmo na presença do interessado Mas sabese os direitos do ausente são sempre reduzidos O Crime Louco 142 4 O procedimento civil 41 Causa Cível perante a Seção de Ímola do Tribunal de Bolonha entre os herdeiros CA a AUSL de Ímola e a Cooperativa Albatros Relato a perícia dos consultores técnicos oficiais no procedimento civil entre os herdeiros C e a AUSL de Ímola e a Cooperativa Albatros O tema na realidade não deveria ter sido incluído no presente trabalho já que preestabelecido que a matéria a ser abordada diria respeito ao aspecto penal do concurso culposo em homicídio doloso Mas como a perícia trata do tema da responsabilidade profissional pareceume oportuno inserila no texto para uma maior completude das informações É de se considerar ainda que a defesa do psiquiatra tentou inutilmente utilizar exatamente tal perícia na apelação Essa perícia revela mais uma vez uma outra verdade com uma radical inversão do quanto afirmado pelos outros peritos mas também introduz muitas inexatidões que é preciso corrigir Preliminarmente vale notar que os quesitos formulados pelo juiz deslocam a ótica das indagações do plano individual para aquele mais complexo o da organização o projeto terapêutico a tipologia da estrutura os acordos entre ASL e Cooperativa Essa ótica se justifica pela própria natureza do processo estamos em uma causa cível onde adquire importância para o contencioso econômico o peso institucional dos sujeitos imputáveis Objetivamente é preciso ter presente que quando a perícia é entregue a sentença condenatória de primeiro grau em face do psiquiatra já fora proferida mas não a sentença em face da coordenadora da residência A ASL de Ímola está apenas marginalmente envolvida na sentença condenatória do Dr Euro pois o psiquiatra não subscrevera a apólice de seguro que a ASL previra para seus empregados já que tinha uma cobertura assecuratória diversa Os herdeiros C propuseram nesse caso uma ação cível que além de pretender responsabilizar o psiquiatra queria demonstrar O Crime Louco 143 através da responsabilidade da assistente social e da coordenadora da residência também a responsabilidade da ASL e da Cooperativa Seacoop Perícia dos consultores técnicos do juízo no procedimento civil em curso perante o Tribunal di Bolonha Seção Autônoma de Ímola no 2077901 R G N R em tema de responsabilidade profissional Diante de investidura prévia como Consultores Técnicos do Juízo em 16 de julho de 2004 o Exmo Dr CA Juiz do Tribunal Cível de Bolonha seção destacada de Ímola encarregou os abaixoassinados prof FU e prof GI de proceder a avaliações em tema de responsabilidade profissional no procedimento em epígrafe Após ser prestado o compromisso apresentounos os seguintes quesitos Queiram responder os CTJ examinados os autos do processo obtida onde necessário ulterior documentação sanitária obtido o registro das atas das reuniões de equipe e os livros de registros existentes na comunidadeabrigo Albatros e qualquer outra documentação que possa ser fornecida pelas partes bem como ouvidas se for o caso pessoas que tenham informações sobre os fatos 1 Se a formulação diagnóstica sobre o paciente MG no período anterior aos fatos objeto da causa com especial referência aos últimos meses estava correta e se o programa terapêutico previsto e as terapias efetuadas no mesmo período eram congruentes com uma correta colocação diagnóstica identificando em caso contrário as pessoas cujas condutas não foram coerentes com a correta prática operacional e dizendo se o comportamento de MG praticando o homicídio poderia ter sido evitado 2 Se a estrutura na qual MG estava inserido era definitivamente idônea para assegurar as necessidades O Crime Louco 144 terapêuticas e se por qualquer motivo tornarase temporariamente inidônea para assegurar os cuidados e a vigilância do paciente em tal caso queiram indicar as soluções diversas que em uma valoração ex ante deveriam ter sido adotadas 3 Se a estrutura era administrada de acordo com as normas legais vigentes na matéria e se a referida estrutura era administrada em conformidade com os acordos realizados entre AUSL e Seacoop em caso contrário queiram indicar os elementos de gestão não conformes dizendo ainda se com uma administração mais correta o evento posteriormente verificado poderia ter sido evitado 4 Se os acordos entre AUSL e Seacoop foram estipulados em conformidade com as normas legais em caso contrário queiram indicar os acordos não conformes e seus reflexos no tratamento do paciente MG e na ocorrência do evento em questão São as seguintes as considerações conclusivas Não se visualizam a nosso ver comportamentos culposos individuais no âmbito da atividade diagnóstica e terapêutica de modo a constituir fator causal necessário e suficiente para produzir o resultado posteriormente verificado e viceversa de modo a induzir a pensar que sem aquele comportamento culposo ou com comportamento diverso o fato teria sido evitado Em outras palavras entendemos que a complexidade do caso não pode ser reduzida exaustiva e realisticamente à censura da ação de uma ou mais pessoas Neste sentido afastamonos em grande parte das deduções efetuadas pelos peritos IM SM em seu relatório no que elencam uma série de faltas verificadas no tempo com efeito de acúmulo e interação O Crime Louco 145 quais sejam a não obtenção por parte do CSM à época da liberação de MG do hospital psiquiátrico 1995 dos prontuários clínicos anteriores como única fonte da história clínica pregressa do paciente a equivocada inserção do mesmo na estrutura Albatros as frequentes mudanças de terapeuta somente em parte justificadas e a escassa demonstração nos prontuários clínicos de uma passagem de entrega acompanhada de uma eficaz comunicação dos dados clínicos do caso a escassa comunicação e integração entre comunidade e CSM seja em geral seja no período específico da mudança de terapia a falta de comunicação do episódio entre MG e CA de 235 por parte da Dra ML falta de determinação de um caminho a seguir em situações de emergênciaurgência a insuficiente presença de psiquiatras no interior da comunidade a falta de um plano de tratamento individualizado compartilhado pela equipe do CSM e a equipe da estrutura várias inadimplências da equipe psiquiátrica a tornar menos válido e eficaz o tratamento do caso insuficiente presença e pouca atenção por parte de Ippogrifo e Seacoop na seleção e atualização profissional do pessoal acompanhada de escassa supervisão e controle por parte da AUSL Algumas dessas queixas fazem referência a responsabilidades individuais aí incluída a censura ao Dr PE por ter suspendido a terapia depot outras à responsabilidade de equipe atribuídas seja à equipe psiquiátrica seja à sócioreabilitadora enquanto outras ainda se referem à responsabilidade de tipo organizacional Com efeito no caso em questão é difícil fornecer uma visão unitária e uma chave interpretativa e argumentativa tal que consinta ao magistrado uma precisa atribuição de responsabilidades parece evidente que nenhuma das faltas individuais constitua causa necessária e suficiente do resultado verificado que portanto não se O Crime Louco 146 enquadra no âmbito de uma responsabilidade subjetiva nem mesmo o comportamento incongruente de CA que seguramente precipitou o evento pode ser tido como de valor unicausal na medida em que seu comportamento foi ditado em perfeita boafé profissional como surge das anotações no livro de registros da comunidade pela ausência ou insuficiência de preparo específico e pela atribuição de tarefas que requeriam tal preparo como a autoadministração de remédios assistida mas tampouco a chave de leitura plurissubjetiva de responsabilidade no interior da equipe ou da interação entre diversas equipes pode fornecer uma chave de leitura exaustiva na medida em que a análise não pode estar limitada à valoração do comportamento e da interação dos operadores individuais no último período segundo os critérios de confiança e não confiança ou segundo o da responsabilidade difusa este último pareceria bastante adequado na medida em que sem dúvida são identificáveis numerosas faltas individuais nenhuma delas causalmente eficaz ainda que concorrendo para determinar o resultado mas não exaustivo na medida em que existem importantes aspectos organizacionais de natureza administrativa que transcendem a ação técnica dos indivíduos e das equipes colocandose como um pressuposto destas com eficácia determinante no condicionamento do modus operandi dos indivíduos Tais aspectos devem ser buscados essencialmente na escassa dotação de pessoal do DSM imolense que condicionou o estabelecimento da subdivisão do trabalho dos operadores psiquiátricos de modo tal a provocar uma insuficiente presença nas comunidades na desobediência à subdivisão entre residências psiquiátricas com maior ou menor intensidade assistencial no que se refere à presença de pessoal sanitário especializado no interior das comunidades O Crime Louco 147 ou pelo menos na falta de previsão de uma maior presença do psiquiatra na residência Albatros e na falta de previsão da presença de um enfermeiro psiquiátrico pelo menos por faixas horárias Isso remete a uma carência organizacional de tipo estrutural de modo a condicionar negativamente a operacionalidade dos indivíduos e das equipes em seu conjunto e de modo a se colocar como fonte principal de responsabilidade Essa responsabilidade recai sobretudo sobre a AUSL mas também sobre IppogrifoSeacoop na medida em que no curso dos anos não requereu uma modificação dos termos contratuais e não denunciou ao contrário aceitou um regime que a expunha a evidentes riscos de inadequada gestão dos pacientes Depositado em cartório em 1 de março de 2006 As conclusões dos expertos invertem as considerações precedentemente formuladas pelos colegas peritos do MP e adotadas pela sentença de primeiro grau Com efeito contrariamente àquelas análises a suspensão do Moditen Depot por parte do Dr PE deve ser considerada a nosso ver como uma tentativa de verificação da possibilidade de modificação de uma terapia cada vez mais incômoda para o paciente na medida em que portadora de efeitos colaterais considerando ainda a instauração de uma melhor relação terapêutica médicopaciente Em essência a tentativa de suspensão da terapia a nosso ver não deve ser incluída no âmbito da culpa mas sim no do erro que no caso em questão se torna um erro escusável na medida em que diz respeito a um ato médico incluído nas possibilidades de erro da ciência médica enquanto ciência empírica que com bastante frequência deve proceder na prática por tentativas e erros Os peritos afirmam sem hesitações que nenhuma das faltas individuais constitui causa necessária e suficiente do resultado O Crime Louco 148 ocorrido e que portanto não nos encontramos no âmbito da responsabilidade subjetiva afirmando ainda que tampouco a chave de leitura plurissubjetiva da responsabilidade de equipe ou da interação entre diversas equipes pode fornecer uma chave de leitura exaustiva Para os peritos apenas importantes aspectos organizacionais de natureza administrativa transcendendo a atuação técnica dos indivíduos e das equipes colocamse como um seu pressuposto com eficácia determinante no condicionamento do modus operandi dos indivíduos Motivam tais afirmações referindose à normativa nacional e regional as normas legais preveem que as estruturas residenciais para pacientes psiquiátricos sejam diferenciadas conforme a tipologia de sua utilização e em função da maior ou menor necessidade de intervenção sanitária especializada Já no DPR 7494 as estruturas residenciais para longa permanência eram subdivididas em três categorias destinadas a três situações diversas a casos de não atribuição psiquiátrica b casos de assistência por serviços não psiquiátricos mas com problemáticas neuropsiquiátricas c casos de exclusiva pertinência psiquiátrica No mesmo DPR que previa tempos de intervenção de no máximo 5 anos se especificava que os liberados dos hospitais psiquiátricos com necessidades prevalentes de assistência psiquiátrica deveriam ser abrigados em estruturas residenciais psiquiátricas enquanto aqueles com necessidades predominantemente sócioassistenciais devido à idade à presença de desabilidades ou à situação social poderiam ser abrigados em uma das estruturas enumeradas nas alíneas a ou b do DPR 7494 Por deliberação da Junta Regional de 31398 no 759 foram estabelecidos os requisitos mínimos de pessoal orgânico para as comunidades protegidas psiquiátricas dentre os quais presença programada ou pronta possibilidade de localização do pessoal médico de enfermagem ou de reabilitação com relação operadorcliente não inferior a 1 para 2 e para as residências sanitárias psiquiátricas dentre os quais enfermeiros educadores e pessoal de assistência de base presença O Crime Louco 149 programada ou pronta possibilidade de localização do competente pessoal médico de enfermagem e de reabilitação com relação às características da clientela No convênio entre a AUSL de Ímola e a sociedade Ippogrifo não está prevista a presença programada de pessoal médico ou de enfermagem na comunidade Albatros não se encarregando a comunidade da gestão psiquiátrica enquanto a AUSL se compromete a fornecer à estrutura o serviço de consultoria psiquiátrica através de figuras profissionais idôneas na realidade a consultoria psiquiátrica é ofertada sob a forma de visitas psiquiátricas ambulatoriais possibilidade de localização para as emergências presença nas reuniões de equipe de um psiquiatra de referência para a estrutura uma vez por mês e de uma assistente social duas vezes por mês Um convênio assim concebido não parece estar conforme à normativa nacional nem àquela regional sobretudo no que se refere à falta de previsão de uma presença efetiva durante a semana ou por faixas horárias de um psiquiatra e um enfermeiro Em essência terseia a desobediência à normativa no que se refere à presença de pessoal sanitário especializado no interior da residência Albatros A motivação dos peritos faz referência à necessidade assistencial com uma relação operadorcliente de 1 para 1 expressa no convênio entre ASL e Cooperativa Tal dado implicitamente indicaria se tratar de estrutura residencial de exclusiva pertinência psiquiátrica necessitando portanto de uma relevante presença de pessoal sanitário Terseia além disso a inobservância da requerida subdivisão na organização do DSM de residências psiquiátricas de maior ou menor intensidade assistencial estando estas últimas até mesmo ausentes contrariamente às determinações regionais e nacionais Com efeito objetase quanto à colocação em tal estrutura de um paciente que apresentava grave patologia psiquiátrica esquizofrenia paranóica crônica Esse conceito é claramente expresso A estrutura não era idônea desde o início para o paciente MG na medida em que sua patologia aplacada pelos remédios mas não extinta requeria a colocação em uma O Crime Louco 150 estrutura residencial psiquiátrica de elevado nível assistencial verossimilmente inexistente no território imolense se como parece possível deduzir da documentação examinada todas as estruturas estavam estabelecidas do mesmo modo ou seja prevendose para cada estrutura tão somente uma miniequipe composta de psiquiatra e assistente social com a exclusiva tarefa de consultoria e supervisão Verificada a descompensação a única alternativa possível seria um TSO ou uma internação forçada por razões de emergência Os peritos criticam em seguida a autoadministração assistida dos remédios No convênio não há qualquer referência à administração dos remédios de fato executada na forma de autoadministração assistida vale dizer delegada ao pessoal não sanitário da estrutura Finalmente os peritos ressaltam a seleção e formação do pessoal das cooperativas Podemos em parte concordar com a censura feita em relação à seleção do pessoal e à falta de promoção de formação e aperfeiçoamento censura que quando a esse segundo ponto recai em parte também sobre a AUSL Com efeito no convênio estipuladopodem ser visualizadas obrigações relativas à formação e ao aperfeiçoamento profissional sendo a empreiteira responsável pelo fornecimento e portanto também pela seleção e aperfeiçoamento de seu próprio pessoal 42 Considerações sobre a perícia Na perícia foram formuladas críticas ao modelo organizacional de Albatros podendo ser resumidas nos seguintes conceitos A residência seria uma instalação reabilitadora socioassistencial semelhante a uma RSA31 seja pelas figuras profissionais presença de operadores sociossanitários de educadores profissionais ausência 31 Nota à edição brasileira RSA é a sigla de Residenza Sanitaria Assistenziale isto é Residência Sanitária Assistencial A RSA é uma estrutura residencial extrahospitalar destinada a fornecer acolhimento serviços de saúde e recuperação tutela e tratamentos reabilitadores aos idosos sem autossuficiência física e psíquica O Crime Louco 151 de enfermeiros seja pelo tipo de organização um montante de horas de pessoal sanitário bastante reduzido Teria sido por isso equivocada a colocação em tal estrutura de um paciente esquizofrênico e consequentemente a estrutura teria se revelado incapaz de enfrentar a situação de crise A própria administração dos remédios atribuída ao pessoal não sanitário da estrutura estaria a revelar essa contradição sendo ilegal Em um segundo passo teriam faltado cursos de formação e de atualização para os operadores da residência exatamente para que pudessem enfrentar semelhantes situações Finalmente é criticado o dispositivo que vetava a manutenção no ambulatório da residência dos prontuários das precedentes internações dos moradores justificada como direito à privacy e como repúdio ao estigma psiquiátrico esse dispositivo teria determinado uma condição objetiva de desconhecimento de um perigo a que estariam expostos os operadores Em essência denunciase implicitamente e às vezes também explicitamente uma superficial e ideológica posição antipsiquiátrica na gestão da residência e talvez em todo o processo de superação do hospital psiquiátrico de Ímola Tal posição teria julgado ingenuamente poder resolver a problemática da doença mental simplesmente através da negação da periculosidade do paciente psiquiátrico Tudo isto teria constituído um grave erro de avaliação especialmente em relação a uma tipologia de pacientes os esquizofrênicoparanóicos que objetivamente traziam um alto risco de violência e agressividade A toda evidência quem formula essas críticas não conhece o processo de desinstitucionalização como realizado em Ímola seu rigor metodológico a recusa a qualquer ideologia seu valor científico documentado pelos numerosos reconhecimentos de organismos internacionais e nacionais dentre os quais a OMS e o Ministério da Saúde Não conhece tampouco os dispositivos revelando graves erros de documentação Albatros era uma estrutura em que a finalidade sócioreabilitadora prevalecia sobre a sanitária Sem dúvida Mas é igualmente verdadeiro que o Departamento de Saúde Mental de O Crime Louco 152 Ímola estava dotado de uma ampla gama de estruturas de tratamento e reabilitação existiam estruturas de alta funcionalidade sanitária e outras onde ao contrário prevaleciam funções mais marcadamente reabilitadorasressocializantes Pelo menos três as duas unidades da residência Il Sole e a Lungodegenza Villa dei Fiori correspondiam à tipologia de estruturas residenciais psiquiátricas de elevada intensidade e com relevante presença profissional especializada estruturas administradas diretamente pelo DSM com pessoal próprio Albatros correspondia no entanto à tipologia das estruturas com prevalentes necessidades sócioassistenciais item dois do DPR 7494 estruturas para os casos assistidos por serviços não psiquiátricos mas com problemáticas neuropsiquiátricas A cada estrutura correspondiam organicidades diferentes maior ou menor número de figuras profissionais sanitárias eou sócioreabilitadoras e diferentes projetos terapêuticos Assim contrariamente ao quanto expresso pelos peritos Albatros não constituía a única escolha forçada para Giovanni no carente panorama da dotação do DSM de Ímola se ter 23 residências significa ser carente qual seria para os peritos a situação ideal No momento em que fosse constatada uma agravação das condições psíquicas de um morador de uma residência havia a possibilidade de transferilo para outras estruturas apropriadas A motivação dos peritos e suas conclusões se fundam sem dúvida em pressupostos e dados totalmente equivocados Mas de onde vem esse erro Provavelmente de um preconceito que fixa sua atenção na presença em Albatros de pacientes psiquiátricos e especialmente de Giovanni um esquizofrênicoparanóico crônico E sabese parecem dizer os peritos que um esquizofrênico mesmo residual permanece sempre um paciente necessitado de tratamento no interior de contextos psiquiátricos Assim adotando uma análise a posteriori se infirmam escolhas efetuadas em precedência Mas Giovanni foi incluído em Albatros após atenta avaliação que tivera em conta sua consolidada melhora e a simultânea necessidade de ter uma situação protegida de moradia e relacionamentos Durante onze O Crime Louco 153 anos conseguira alcançar uma condição de relativo equilíbrio que de todo modo não requeria medidas de contenção e certamente não se pode dizer que onze anos de bemestar constituam um arco de tempo pouco significativo Foi desenvolvido para ele um programa reabilitador individualizado conforme a metodologia da desinstitucionalização realizada em Ímola Os peritos dessa perícia técnica analogamente a todos os peritos do juízo mas não aos das partes parecem entender no entanto que a melhoria das condições psíquicas de Giovanni fosse atribuível somente ao remédio long acting e que de todo modo fosse aparente e transitória É uma visão primitiva ingênua além de redutora da realidade Além disso é até ofensiva em relação a quem com grande empenho conduziu e conduz processos relacionais e reabilitadores Com efeito gostaria de ressaltar que os operadores de Albatros demonstraram saber corresponder com alto profissionalismo às necessidades de Giovanni ainda que estas nem sempre fossem fáceis de interpretar e corresponder Em suma que Albatros constituísse uma estrutura idônea confirmam no exatamente os cinco anos ali vividos por Giovanni sem nenhum problema relevante de comportamento tratase de lapso de tempo suficiente para se verificar a correção de uma escolha Onde está então o problema Na verdade a objeção remete mais uma vez às diferentes óticas com que se afronta o tema do restabelecimento e da doença Ambos os conceitos correm o risco de desviar atenções na medida em que remetem a complexas considerações científicas Mas para simplificar poderseia dizer que Giovanni não estava totalmente curado dos efeitos de invalidez provocados pela doença e pela institucionalização mas tampouco era um falso restabelecido Mais simplesmente e mais corretamente segundo a terminologia da recovery Giovanni dera passos significativos no caminho da melhoria de suas condições psíquicas emocionais e relacionais estando em condições de fazer frente a uma vida social Nesse sentido a escolha da Albatros como moradia fora a melhor resposta possível O Crime Louco 154 Mas objetouse os operadores de Albatros por sua qualificação profissional seriam capazes de ler as situações de agravação de um paciente psiquiátrico A julgar pelos fatos e contrariamente a quanto assentado pelos peritos dirseia que sim Confirmamno por exemplo todas as suas observações no registro secreto Em todo caso eram capazes de fazêlo seja a coordenadora da residência para quem era exigida a qualificação de psicóloga ou pedagoga seja a assistente social seja naturalmente os psiquiatras que tinham o dever de acompanhar e monitorar os projetos terapêuticos dos pacientes Também no caso da formação e atualização dos operadores a documentação dos peritos é insuficiente e suas conclusões erradas Os empregados das cooperativas sociais privadas compartilharam diversas atividades de formação e atualização voltadas para o pessoal do DSM tendo participado de atividades específicas de formação as atividades da equipe transversal O problema da distribuição dos remédios aos moradores da residência já foi tratado nesse livro os dispositivos esclareciam que exatamente pela tipologia sócioassistencial da estrutura os remédios deveriam ser autoadministrados pelos moradores O operador deveria se limitar a ajudar os interessados a desenvolverem essa tarefa sem jamais forçar a situação Havendo necessidade os enfermeiros e o médico interviriam Essa modalidade fora objeto de longos aprofundamentos e se tornara executável pela Direção Sanitária da ASL A referência a dispositivo que vetava o conhecimento da história dos pacientes feita na perícia dos consultores do MP não tem fundamento talvez se baseando em um equívoco Ressaltei a exigência de fundar a avaliação das necessidades do paciente em um processo de conhecimento atento crítico profissional não baseado em estereótipos A leitura dos prontuários por exemplo requeria competência profissional e certa capacidade crítica numerosos estudos de revisão dos diagnósticos de internação O Crime Louco 155 em hospital psiquiátrico frequentemente mostraram sua falta de fundamento inclusive pela alteração dos critérios diagnósticos Portanto o dispositivo de não manter nas residências tenhase em conta em um contexto não sanitário os prontuários clínicos das precedentes internações correspondia à exigência de evitar o acesso indiscriminado a dados sanitários dos moradores o que estaria a lesar seu direito à privacy Mas isso era completamente diferente em relação à indiscutível exigência de informação por parte dos operadores sóciossanitários O psiquiatra avaliaria se e como dar conhecimento da história do paciente aos operadores da cooperativa fornecendolhe as chaves de leitura Feitos esses esclarecimentos é imperativo acolher algumas perplexidades formuladas pelos peritos É necessário fazêlo em relação a uma questão como ainda que limitada a investigação aos dias imediatamente anteriores ao evento delituoso diante de uma situação de tão grave sofrimento e perigo iminente não se pôs em ação uma intervenção rápida e eficaz Como essa percepção não foi transmitida aos responsáveis pelo DSM Por que não foram referidas ao doutor Euro ou à Dra PAM as ameaças de Giovanni por que se limitaram a anotálas em um registro sem saber se algum dia este seria consultado Por que durante a reunião de equipe não foram fortemente expressos os temores e dúvidas Como a Dra Laura não transmite com clareza as ameaças aos psiquiatras Como diante primeiro das exaustivas tentativas de envolver o psiquiatra com o caso de Giovanni e em seguida diante da ausência de melhora do paciente a coordenadora da residência não se vê na obrigação de se dirigir aos responsáveis pelo DSM Percebese uma difusa dificuldade de comunicação que cria equívocos e provoca erros é a mesma dificuldade que enfatizei em meu relatório ao Diretor do Distrito em 16 de junho de 2000 Estamos diante de um mau funcionamento do trabalho em equipe e uma escassa integração entre o Departamento de Saúde Mental e a Cooperativa A coordenadora da residência não consegue encontrar O Crime Louco 156 a forma de comunicar informações importantes e expressar as vivências dos operadores mas tampouco parece exigilo O psiquiatra modifica o tratamento farmacológico sem envolver os operadores da residência e quando sucessivamente dálhes uma tarefa pede lhes um comportamento passivo Quando em reunião falase de Giovanni parece natural para o psiquiatra mas também para os operadores que esteja ausente o terapeuta que tem a seu encargo o paciente E a Dra PAM que exerce as funções de supervisão não percebe a profunda ansiedade dos operadores e não visualiza as dificuldades em que se encontra a coordenadora As necessidades terapêuticas de Giovanni não se medem unicamente em miligramas de Moditen ou na realização de um TSO Em uma situação psicopatológica grave o que o paciente necessita é ser assumido por um grupo que se mova por um projeto claro que mostre generosidade e intensidade de pensamento Como ensinou a experiência de desinstitucionalização é essa espécie de energia coletiva que permite conter psicologicamente o paciente grave Nesse caso as carências são desconcertantes exatamente porque acontecem em um contexto em que aquela experiência era conhecida e praticada há longo tempo Na realidade o modelo original da residência previa um só psiquiatra de referência para todos os moradores o qual se tornava automaticamente ponto de referência também para os operadores Os projetos terapêuticos e sua verificação eram fruto de um trabalho comum entre o psiquiatra o assistente social e os operadores Com o tempo a atividade reabilitadora se assentara em níveis de rotina e parecera oportuno reduzir o empenho médico para encaminhálo a outros setores do DSM Além disso para atender as necessidades de escolha dos pacientes individualmente permitiuse a presença de outros psiquiatras nas residências Essa solução porém aumentava a complexidade da situação introduzindo dificuldades de comunicação e impondo exigências de coordenação maiores e mais delicadas Em Albatros do que se pôde apurar entrara em crise a O Crime Louco 157 função de coordenação do psiquiatra de referência e a de um grupo de trabalho coeso entusiasta e motivado em que se substituíram situações provocadoras de confusão e conflitos É oportuno ter presente no entanto que esse modelo foi substancialmente mantido em todas as outras residências sem criar conflitos trazendo ao contrário decisivas melhorias para os moradores Colocase então novamente a pergunta original o que não funcionou em Albatros É difícil responder talvez porque seja próprio das organizações fundadas no elemento humano serem opináveis e rapidamente modificáveis O suceder natural dos fatos às vezes resolve os erros outras vezes escondeos tornandoos críticos A Direção do Departamento de Saúde Mental certamente tem sua parcela de responsabilidade na ausência de indicativos claros de disfunção não existiram coisas demais foram tidas como certas Paradoxalmente exatamente os resultados positivos até então obtidos com a colaboração da organização social privada induziram um comportamento de presunção e reduziram a atenção De alguma forma era previsível certo desgaste do processo de desinstitucionalização por razões fisiológicas mas se esperava que isso acontecesse muito mais tarde A situação sentinela de Albatros mostrou no entanto como o processo de regressão poderia progredir rápida e seriamente quando se introduzem em um contexto consolidado algumas novidades um médico sem experiência antimanicomial um educador cheio de boa vontade mas inapto a trabalhar com pacientes psicóticos a perda do papel de referência do psiquiatra da residência o aumento do turn over do pessoal da cooperativa que à época inclusive mudara sua direção uma situação de transição no vértice do DSM Mas existiam também razões estruturais que faziam presumir o surgimento de ulteriores dificuldades A área de acolhimento dos velhos hospitais psiquiátricos de Ímola a catchment area se referia a toda a Romagna e à província de Bolonha A superação da instituição teve assim de envolver todas as empresas sanitárias dessa área Era portanto evidente que o O Crime Louco 158 processo se revelaria complexo e com graves dificuldades Os recursos do velho hospital psiquiátrico foram progressivamente se reduzindo corretamente com o objetivo de alcançar em cada realidade local uma relação ótima entre as exigências dos estados agudos e as da reabilitação Em essência era preciso operar uma progressiva transferência de responsabilidades e recursos de uma situação centralizada para as realidades do território Mas esse processo acabara por exacerbar as exigências das residências terapêuticas sem considerar simultaneamente os efeitos das políticas das ASL constantemente tendentes a reduzir as despesas sanitárias incidindo especialmente nos setores de menor peso tecnológico como a Saúde Mental Em essência era preciso fazer como atualmente há muitos anos vem se fazendo o casamento com figos secos32 Essa condição provocou um equilíbrio bastante precário do sistema com o risco de que elementos de relevância mínima pudessem induzir efeitos negativos relevantes Essa reflexão é útil para tornar compreensível a zona cinzenta em que se movia a cooperativa como a cooperativa não comunicou ao DSM as verdadeiras razões da transferência do educador Ateo por que não acolheu os pedidos da coordenadora de tirálo de Albatros por que constrangeu sua coordenadora a mentir e rasgar sua denúncia por que os sinais de malestar entre os operadores foram escondidos Podese antecipar uma hipótese existia uma necessidade da parte da cooperativa de minimizar os problemas por medo de ser julgada incapaz ou menos capaz do que outros para administrar as situações difíceis O clima competitivo criado entre as cooperativas de serviços em consequência da redução de recursos por parte da AUSL criava um forte temor de exclusão de futuras seleções Por isso era necessário 32 Nota à edição brasileira Fazer o casamento com figos secos é um dito italiano que significa querer fazer grandes coisas sem ter os meios para tanto ou economizando ao máximo Figos secos na Itália são alimento barato e muito comum não sendo portanto dignos de uma festa importante como um casamento O Crime Louco 159 minimizar e lavar a roupa suja em casa suscitando uma espiral perversa de perda de qualidade com aumento do turn over e do burn out dos operadores Os cortes do orçamento executados com critérios burocráticos aparecem somente como correções de números feitas nas instâncias do poder permanecendo sempre além de qualquer possibilidade de confronto por parte de quem os sofre A fria neutralidade dos números quase nunca representa os dramas humanos que irão se produzir Quase sempre imunes às sanções penais os dirigentes das empresas sanitárias poderão no máximo sofrer sanções administrativas E se isso acontecer não será porque não forneceram saúde para os cidadãos mas tão somente porque não reduziram suficientemente as despesas Em suma olhando bem por trás de eventos tão dramáticos como os descritos nesse livro sempre se descobrem tantos pequenos ou grandes erros Alguns permanecem ocultos sobre outros se fixa a atenção dos investigadores alguns são penalmente relevantes outros não são comprováveis outros ainda se ocultam por trás de alguns miligramas de psicofármacos da falta de controle sobre facas de uma cozinha ou de um simples diagnóstico psiquiátrico Mas quem é realmente esquizofrênico o paciente ou a situação Quem é verdadeiramente perigoso Onde nasce o incidente O Crime Louco 160 III O incidente de Gorízia Domenico Casagrande 1 O fato 26 de setembro de 1968 Dos autos do processo judiciário Em 26 de setembro de 1968 às 14h30m após chamada telefônica agentes da delegacia de Gorízia se deslocaram para o local denominado Oslavia Via Lenzuolo Bianco 2 onde encontraram o cadáver de Milena Kristancic que apresentava uma grande ferida na nuca A mulher fora morta pelo marido Alberto Miklus visto quando se afastava em direção a um matagal para os lados da fronteira com a Iugoslávia Miklus que desde 1951 estava internado no Hospital Psiquiátrico de Gorízia naquela manhã foi acompanhado à sua residência por um enfermeiro do Hospital Psiquiátrico para passar um dia de licença Miklus foi encontrado dois dias depois escondido em um bosque distante cerca de um quilômetro de sua residência Conduzido à delegacia e interrogado declarou que durante a permanência no Hospital Psiquiátrico fugira várias vezes mas sempre fora recapturado Fugia para poder visitar os familiares porque não queria que os três filhos fossem visitálo no Hospital não desejando que vissem os lugares onde estava recolhido A mulher o visitava a cada dois ou três meses mas ele não gostava dessas visitas estando convencido de que fora ela a causadora de sua internação no manicômio Na manhã de 26 de setembro um enfermeiro o confiara aos familiares fazendo o filho Marjan assinar um termo e antes de se retirar dissera que retornaria por volta de 21 horas para buscálo Durante a manhã esteve no pátio conversando com os dois filhos Domenico Casagrande colaborou com Franco Basaglia em Gorízia e em Trieste diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia e de Veneza também foi responsável pelo Departamento de Saúde Mental de Veneza e diretor sanitário da AUSL de Veneza O Crime Louco 161 Davide e Marjan que após encherem garrafões de vinho saíram Por volta de 12 horas a mulher o convidou para acompanhála ao campo para levar o almoço dos operários que colhiam as uvas Respondeu que não queria ir ao campo porque ficando próximo da fronteira iugoslava tinha medo de ser expatriado A mulher regressou por volta de 12h30m e se pôs a fazer os trabalhos de casa Surgiu uma discussão entre os dois porque ela reclamava por ele não ter querido ir ao campo e porque exigia que ele desse sua suéter para os filhos Após essa discussão pegou um martelo de pedreiro e bateu na cabeça da mulher Ao sofrer o primeiro golpe a mulher tentou escapar mas caiu no cômodo vizinho Quando estava caindo ele ainda a atingiu duas ou três vezes usando o martelo do lado da lâmina Saiu jogou o martelo no pátio e foi se esconder no bosque No dia seguinte aproximouse da residência para ter notícias do estado de saúde da mulher pensando que tivesse apenas a ferido Não fora em casa para matar a mulher só a atingiu após a discussão Marjan Miklus interrogado por um suboficial da PS relatou que em 25 de setembro um enfermeiro do hospital psiquiátrico se apresentou na cantina pedindo à sua irmã Giuseppina que no dia seguinte algum dos filhos fosse ao hospital para pegar o pai que expressara o desejo de transcorrer um dia em família A irmã explicou que não tinham meios para leválo até em casa sugerindo que eles mesmos o acompanhassem Com efeito no dia seguinte chegaram em casa o enfermeiro e o pai O enfermeiro pediu que assinasse um recibo de entrega acrescentando que não tinham com que se preocupar pois o pai estava tranquilo Com efeito o pai parecia bastante calmo Falou com a mãe com a maior tranquilidade mas ele sabendo que o pai no passado ameaçara a mãe de morte disseralhe para ficar atenta e tentar manter distância do pai Por volta de 11 horas ele e o irmão Davide saíram para levar o vinho para Gorízia regressando por volta de 12h30m Ao regressarem o pai estava sozinho em casa Às 13 horas a mãe voltou e pediu que fosse ao campo com o trator para pegar as vasilhas de vinho Saiu deixando em casa o irmão Davide O Crime Louco 162 que por sua vez saiu antes das 14h horas para ir à Biblioteca Municipal de Gorízia Regressou à casa por volta de 14h15m encontrando a mãe caída na cozinha O pai fugira muitas vezes do hospital Uns dez anos antes em uma dessas fugas vindo em casa ameaçou a mãe de morte com uma baioneta O pai não gostava que os filhos o visitassem no hospital não gostando tampouco das visitas da mãe porque estava convencido de que fora ela a causadora de sua internação no hospital psiquiátrico Davide Miklus confirmou as declarações do irmão afirmando que o pai pela manhã estava tranquilo nada fazendo prever o que aconteceria O pai lhe pediu notícias de seus estudos seu trabalho no campo de pessoas mortas na região e seus parentes Às vezes fantasiando explicava como morriam os doentes no hospital psiquiátrico dizendo que botavam remédios na comida e assim eles morriam Recomendava que prestassem atenção na mãe porque ela também poderia colocar pílulas na comida e fazêlos morrer Naquele dia saiu pouco antes das 14 horas tendo o pai o acompanhado até o final do pátio Em 7 de outubro de 1968 Marjan Miklus interrogado pelo Procurador da República confirmou o que antes declarara à polícia Precisou que jamais ouvira o pai proferir expressões ameaçadoras de morte dirigidas à sua mãe Somente uns dez anos antes vira o pai apontar uma baioneta para o peito da mãe durante uma de suas fugas do hospital No dia do fato o pai aparentava calma passando facilmente da brincadeira à seriedade jamais poderia pensar que ele iria matar a mãe Davide Miklus também relatou ao Procurador da República que o pai parecia tranquilo naquela manhã ainda que suas falas estivessem orientadas por bases fantásticas Jamais ouvira o pai ameaçar a mãe embora estivesse convencido de que ela fosse a causadora de sua internação e de sua doença Alguns dias antes do fato o irmão pegara o pai no hospital sendo obrigado a assinar um papel para poder leválo em casa sem a assistência de enfermeiros Ivan Klaniscek aluno de enfermagem do hospital psiquiátrico declarou ao Procurador da O Crime Louco 163 República que tendo Miklus lhe expressado o desejo de ir em casa para a vindima transmitira tal desejo ao chefe da seção o qual o levara à assembléia dos psiquiatras que tinha lugar toda semana às 8h30m Em seguida o chefe da seção lhe pedira para avisar os familiares de Miklus o que foi feito Como a filha do interno lhe dissera que não tinham meios para o transporte do pai até em casa o chefe da seção o encarregou de acompanhar Miklus à casa em seu carro Durante a viagem Miklus se manteve calmo parecendo estar muito contente Chegando à residência dos Miklus fez com que o filho Marjan assinasse o documento em que assumia a responsabilidade pelo caso retirandose e dizendo que voltaria à noite para buscar o interno Em 30968 Alberto Miklus relatou ao Procurador da República que naquele dia após as 13 horas começara a discutir com a mulher Esta lhe dissera que muitos de seus parentes estavam mortos e insistira para que fosse com ela ao campo próximo da fronteira para ver os que ali trabalhavam dentre os quais provavelmente estaria o primo Luigi Zulian Em determinado momento pegou um martelo e bateu na cabeça dela dizendo Pare de gritar A mulher caiu e ele se afastou escondendose nos bosques próximos porque sua intenção era voltar em casa ou ir à polícia não sabendo que a mulher estivesse morta A mulher sempre lhe chamara de louco mas não era verdade que ele fosse doente mental O prof Franco Basaglia diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia foi acusado de homicídio culposo Em 12101968 interrogado pelo Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia afirmou não ser previsível que Miklus chegasse ao ponto de cometer o crime pois jamais manifestara o propósito de eliminar a mulher A condição clínica de Miklus não levava necessariamente ao homicídio Miklus nos últimos dois anos vinha aceitando a visita dos filhos coincidindo com um clima na enfermaria que permitia relações O Crime Louco 164 interpessoais intensas e corretas Era chegada pois a ocasião de se iniciar o lento trabalho de recuperação dos laços familiares Miklus foi várias vezes em casa acompanhado pelo médico da seção e posteriormente por enfermeiros Em 15 de setembro Miklus afastandose do hospital fora à casa da família Um enfermeiro o encontrou em um bar perto de sua residência e o acompanhou até lá Os filhos prometeram ao pai que no dia seguinte iriam buscálo O caminho percorrido nos últimos dois anos de internação com a constante reaproximação com a família induziramno a conceder a licença sob responsabilidade dos filhos Por tais razões foi concedida a Miklus a licença de 259 Nesse dia ele estava ausente da sede A proposta de licença foi discutida na reunião ordinária da manhã na presença do médico assistente e do pessoal de enfermagem da seção O Crime Louco 165 2 As perícias psiquiátricas 21 A perícia do juízo O Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia determinou que Miklus fosse submetido a perícia psiquiátrica e como o acusado em 14101968 estivesse internado no manicômio judiciário de Reggio Emilia deprecou ao Juiz Instrutor do Tribunal de Reggio Emilia que o submetesse ao exame O Juiz Instrutor do Tribunal de Reggio Emilia em 28101968 nomeou o subscritor perito psiquiatra e em 9 de novembro após apresentar os quesitos de praxe acrescentou o seguinte quesito Queira o Sr Perito dizer se dadas as condições psíquicas de Miklus relacionadas a suas disposições de ânimo e atitude mental em face da própria esposa repetidamente manifestadas em várias ocasiões anteriores era previsível que o mesmo chegasse ao ponto de executar os propósitos ameaçadores contra ela Exame do sujeito Anamnese As seguintes notícias são extraídas dos autos da Cópia da Ficha Clínica do Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorízia e dos Questionários Informativos compilados pelo Prefeito de Gorízia e pelo Comandante da Delegacia Central da Polícia de Gorízia Antecedentes familiares O pai morreu aos 85 anos de hipertensão arterial A mãe morreu aos 83 anos por esclerose do miocárdio Esta teve cinco filhos dos quais três estão vivos Um filho morreu aos 15 anos de meningite e outro aos 32 anos de tbc pulmonar Não há casos psicopatológicos na família Antecedentes pessoais Terceiro filho o sujeito nasceu a termo de parto normal em 2771906 sendo amamentado O Crime Louco 166 Na infância não teve doenças dignas de nota Na escola demonstrou normal capacidade de aprender chegando à 8ª série elementar Considerado apto no recrutamento prestou o serviço militar de 2041926 a 15101926 Casouse aos 38 anos tendo três filhos todos ainda vivos e sãos De junho de 1942 a abril de 1945 atuou como partigiano33 na função de Comissário do 2º Batalhão da Brigada partigiana Simon Gregoric Em tal período sofreu uma pleurite basal bilateral e poliartrite reumática Em abril de 1947 recebeu uma carta anônima na qual era intimado a pagar 500000 liras sob ameaça de morte Não obedecendo à intimação em 2341947 dois indivíduos entraram em sua residência efetuando contra ele alguns disparos de arma de fogo que afortunadamente não o atingiram Um dos autores do atentado foi identificado e condenado Libertado após cumprir a pena fez uma visita a Miklus que se assustou muito e começou a demonstrar uma mudança de caráter tornandose depressivo preocupado desconfiado e bastante suspeitoso Em 30 de dezembro de 1951 foi internado no Hospital Psiquiátrico de Gorízia com diagnóstico de personalidade psicopática No início mostrava se assustado e ansioso suspeitava de todos até mesmo da própria mãe e da cunhada mas não da esposa Recusava a comida do hospital alimentandose somente do que lhe levava a esposa Submetido à terapia de eletrochoque em 2911952 estando bem melhor foi liberado condicionalmente e confiado à esposa Em 1731952 foi novamente internado no supramencionado hospital por estar tomado por delírio de perseguição Após um breve ciclo de choques terapêuticos em 29 do mesmo mês estando melhor foi liberado e entregue 33 Nota à edição brasileira Os partigiani foram guerrilheiros civis que lutaram contra os nazistas e fascistas na Itália durante a Segunda Guerra Mundial Os combates foram especialmente sangrentos na zona de Gorízia provocando dilaceração social e desejos de vingança que se prolongaram por longo tempo O Crime Louco 167 à esposa Em 1441953 foi internado pela terceira vez no hospital psiquiátrico porque acreditandose perseguido por motivos políticos tentava se expatriar para a Iugoslávia Dois dias depois fugiu do hospital atravessando a fronteira com a Iugoslávia onde foi capturado no dia 20 do mesmo mês sendo reconduzido ao hospital psiquiátrico Nesse período mostrava se hostil raivoso ameaçando matar alguém evidenciando um delírio de perseguição era divisionista desordenado negativista violento Após um ciclo de eletrochoques tornou se calmo tranquilo e expressava o desejo de ir à sua casa Em 1881954 com um salto acrobático pulou a cerca reticulada e se evadiu Em 208 foi visto nas vizinhanças de sua própria casa armado com uma barra de ferro uncinada Algumas noites depois apresentouse na casa da esposa e ameaçandoa com a barra de ferro apossouse de um garrafão de vinho e em seguida afastouse Em 238 foi capturado por agentes da P S e reconduzido ao hospital psiquiátrico Em 3121962 fugiu novamente sendo recapturado três dias depois pela polícia iugoslava reconduzido à Itália e internado novamente no hospital psiquiátrico Empreendeu outra fuga em 22101963 No dia seguinte foi detido pelas autoridades iugoslavas sendo entregue na fronteira Em 651966 afastouse arbitrariamente do hospital dirigiuse à fronteira e apresentandose à polícia iugoslava perguntou onde estava sepultada sua mãe morta uns quinze dias antes34 No dia seguinte foi acompanhado ao hospital Em 1491968 fugiu novamente sendo encontrado por um enfermeiro em um bar 34 Nota à edição brasileira Com o tratado de paz firmado ao final da Segunda Guerra Mundial a Itália foi obrigada a ceder à então Iugoslávia toda uma região a Istria e a cidade de Gorízia foi literalmente dividida em duas partes uma italiana e uma iugoslava O antigo cemitério ficou na zona iugoslava Miklus pertencia à minoria eslovena e presumivelmente nos momentos de dificuldade procurava se abrigar na Iugoslávia julgando que ali estaria mais protegido como um eslavo entre os eslavos O Crime Louco 168 e reconduzido ao Instituto Da cópia da ficha clínica verificase que a síndrome psicótica começou a apresentar alguns sinais de remissão em 1965 Nesse ano o paciente se tornou mais administrável embora ainda apresentando um delírio de envenenamento Em 2691968 saindo em breve licença domiciliar matou a esposa a golpes de martelo Exame somático Alberto Miklus é um sujeito em boas condições gerais de nutrição e formação sanguínea Altura 1m73cm Peso 82 kg O exame clínico dos vários órgãos e aparelhos da vida vegetativa evidenciou somente manifestações de pleurite encontradas também no exame de raiox Pressão arterial 15090 Vida de relação As sensibilidades táctil térmica e dolorífica são normais A audição é regular A visão é reduzida por presbiopia Os reflexos cutâneos e tendinosos são simetricamente regulares As pupilas tendem à midríase reagindo lentamente à luz e à acomodação O sujeito mantémse ereto mesmo em posição Romberg O andar é regular A inervação craniana está íntegra Não se encontram tremores apreciáveis A palavra é regular seja em relação à fonética seja em relação à articulação Exames de laboratório As reações de V D R L efetuadas sobre sangue extraído para pesquisa de sífilis foram negativas Exame psíquico Durante os diversos exames e entrevistas clínico psiquiátricas Miklus manifestou sinais evidentes de negativismo recusandose a sentar ou a apertar a mão em sinal de cumprimento ou a se submeter a determinados testes Com frequência sua linguagem foi pouco compreensível seja pela pobreza de vocabulário seja por seu agramatismo O Crime Louco 169 Julgamos que tal modo de se expressar se deva em parte ao pouco conhecimento da língua italiana e em parte à desintegração psíquica encontrável nos esquizofrênicos em fase demencial Frequentemente tivemos que pedir que repetisse uma resposta por não têla compreendido bem inclusive porque ele se punha a divagar interrompendo o fio do pensamento Interrogado sobre o fato objeto do processo relatou que a mulher naquele dia convidarao a acompanhála ao campo para ver os trabalhadores da vindima dentro os quais o primo Luigi Zulian A seu ver a mulher queria que ele o matasse a golpes e expatriasse para a Iugoslávia para que então fosse definitivamente internado no hospital para pensionistas de guerra ou seja como explicou depois no hospital psiquiátrico Mas ele que é um cidadão respeitador das leis e não quer ir contra o governo recusouse A mulher se pôs a berrar chamouo de louco e ele para fazer com que se calasse pegou o martelo para lhe dar um golpe nas costas a mulher para se esquivar do golpe abaixouse e ele involuntariamente atingiua na cabeça Estava certo no entanto de que a mulher não estava morta pois quando se afastou ela tinha os olhos abertos Falou em seguida de sua vida no Hospital Psiquiátrico de Gorízia Disse que estava internado na Enfermaria C que segundo ele é uma enfermaria militar Desde que foi transferido para essa enfermaria suas condições de vida melhoraram Chegou inclusive a trabalhar algumas semanas mas depois teve de abandonar o trabalho porque se recusara a assinar o recibo da quantia que lhe fora dada como recompensa Ele não era contrário à mulher mas suas visitas no hospital não lhe agradavam porque sempre que aparecia lá dizialhe sabe quem morreu e enumerava as pessoas falecidas Ele não queria ouvir essas coisas porque a mulher parecia O Crime Louco 170 querer lhe atribuir a culpa por essas mortes para depois fazê lo passar por louco e mantêlo no manicômio Convidado a falar sobre seu temor de ser envenenado tergiversou dando respostas incongruentes pelo que não conseguimos leválo a discorrer sobre esse assunto Das entrevistas clínicopsiquiátricas resultou que o sujeito quando interrogado de início se detém no assunto tratado mas logo depois começa a divagar de modo que seu discurso se mostra inconcluso Assim falou repetidas vezes de bodas de ouro dos pais e outros parentes Assegurounos várias vezes ser um cidadão respeitador das leis do Estado criticando os que não o são Deu estranhas interpretações a diversos fatos se a cama está voltada para o sul ou para o oriente se alguém dorme de lado ou de costas Lembrou de quando no hospital psiquiátrico andava para trás dando explicações pouco compreensíveis Relacionou esse modo de agir com suas idas à Iugoslávia Sustentou que jamais se senta mas não soube ou não quis dizer as razões de tal comportamento Dessas entrevistas e de seu comportamento em geral pudemos extrair elementos suficientes para conhecer o estado de suas principais atividades psíquicas Suficientemente orientado no tempo e no espaço Miklus demonstra uma percepção nem sempre correta certamente invalidada por fantasias Não encontramos a presença de alucinações visuais ou auditivas Sua memória pareceu bastante bem conservada mesmo se os eventos por ele recordados estivessem distorcidos por interpretações erradas e por suas delirantes constelações A associação de idéias não se efetua conforme o nexo lógico comum pelo que seu discurso frequentemente se mostra incompreensível Por outro lado a capacidade de abstração diminuída não lhe permite distinguir o essencial O Crime Louco 171 do acessório Além disso distraindose da idéia central seu pensamento divaga passando de um assunto para outro Às vezes notase uma sobreposição de elementos em seu discurso sem que haja uma ligação apropriada entre eles Por tais anomalias juízo e crítica são totalmente inadequados em seu discurso O sujeito procurou esconder as confusas constelações delirantes que se aglomeram no conteúdo de suas idéias Como frequentemente acontece com doentes há longo tempo internados em hospitais psiquiátricos Miklus também se esforça para dissimular seus delírios pois a essa altura sabe que suas convicções não são aceitas pelos psiquiatras fazendo com que o julguem doente mental É certo porém que seus delírios têm como tema uma contínua ameaça à sua vida e à sua liberdade teme ser envenenado ser obrigado a passar a vida nos manicômios ser levado a cometer atos que possam fazer com que os outros o julguem doente mental Seus delírios são portanto primordialmente delírios de perseguição Do defeito da capacidade de associação e abstração e de suas convicções delirantes derivam as errôneas interpretações de acontecimentos atos ou discursos referentes à sua própria pessoa Está sempre desconfiado e suspeitoso sobre suas experiências pronto a interpretar mal até os fatos mais inocentes e a acreditar que se queira prejudicá lo Embora vivendo nesse contínuo temor não mostra no entanto uma redução do tom de humor Com um sorriso estereotipado nos lábios expõe suas vicissitudes sem demonstrar ânsia ou depressão Parece que os delírios persecutórios perderam sua força e o anormal colorido afetivo Evidentemente se habituou à sua condição de perseguido e não reage mais a ela De fato durante a internação no manicômio judiciário não demonstrou variações afetivas mesmo ainda sendo capaz de reações O Crime Louco 172 emotivas violentas inclusive por estímulos inadequados como demonstra o próprio fato que lhe é imputado Toda sua vida instintiva e afetiva é pois distorcida por seu estado doentio Pode se alegrar ou se entristecer por fatos que para os outros seriam indiferentes enquanto pode se mostrar insensível diante de acontecimentos emocionantes São sobretudo os sentimentos superiores que estão distorcidos especialmente o senso ético Com efeito de um lado professase um cidadão respeitador das leis e de outro não demonstra arrependimento ou remorso por ter matado a mulher Sua capacidade de querer se ressente do estado intelectivo e afetivo anormal Com efeito encontramos estereotipias e negativismo constituindo para ele meios de defesa contra as supostas perseguições Não se senta e não aperta a mão para cumprimentar provavelmente por temor de sofrer algum tipo de dano Pouco sociável prefere viver isolado mas está sempre atento ao que dizem ou fazem os outros internos pronto para então extrair deduções absurdas É respeitoso e correto com o pessoal de custódia sempre disposto a demonstrar que obedece às normas regulamentares Alimentase regularmente mas revela diminuição do sono Discussão diagnóstica e parecer médicolegal Dos elementos encontrados na anamnese e dos sintomas psicopatológicos por nós observados chega se facilmente ao diagnóstico de esquizofrenia paranoide A dissociação psíquica as fantasias as interpretações errôneas as constelações delirantes a falta de afetividade as estereotipias e o negativismo são sintomas próprios da esquizofrenia paranoide Através da leitura da história clínica do hospital psiquiátrico de Gorízia podese observar o surgimento a evolução e a consolidação da síndrome esquizofrênica pelo que julgamos supérfluo descrever O Crime Louco 173 a evolução de tal psicose Cabe apenas ressaltar que o paranoide conserva no todo ou em parte sua personalidade pelo que não aceita passivamente sua internação no hospital psiquiátrico continuamente tentando se subtrair ao recolhimento forçado até porque faltando nele o sentido da doença considera injusta e ofensiva a atribuição da doença mental e a privação da liberdade Por tais razões Miklus se evadiu tantas vezes do Instituto Psiquiátrico Sabendo que os familiares podem provocar a liberação do doente recebendoo sob sua responsabilidade o periciando que de início não tinha nenhuma idéia hostil em relação à mulher passou a nutrir certo ressentimento contra a mesma porque ela não providenciava sua saída do hospital psiquiátrico Embora isso não resulte dos autos nem de suas declarações provavelmente ele atribui tudo isso ao desejo da mulher de se livrar dele quem sabe por qual inconfessável propósito O delírio inicial de Miklus tinha por objeto o envenenamento É de se ressaltar que em tal período enquanto suspeitava dos médicos dos enfermeiros e até de sua mãe alimentavase apenas com a comida que a mulher lhe levava a toda evidência excluíaa do grupo de seus supostos inimigos Só mais tarde incluiua no rol de seus perseguidores passando a suspeitar dela também De resto o tema do envenenamento é comum a muitos dos sujeitos internados em hospitais psiquiátricos porque esses por sua anormal conformação mental interpretam como um atentado à sua saúde todos os sintomas secundários que podem derivar das terapias de choques ou farmacológicas Por tal razão Miklus contava ao filho que no hospital dãose aos pacientes remédios que causam sua morte recomendando que desconfiasse da própria mãe A suspeita de morte por envenenamento era portanto genérica não era específica em relação à mulher O Crime Louco 174 na medida em que envolvia médicos enfermeiros e até mesmo a mãe Podemos agora estudar a dinâmica da ação delituosa do acusado Como a associação de idéias do esquizofrênico segue caminhos insólitos ele interpreta a realidade de modo diverso do normal à luz de sua temática delirante Por isso em 2691968 o simples convite da mulher para acompanhála ao campo para ver os trabalhadores da vindima dentre os quais o primo foi interpretado por Miklus como um convite para eliminar Zulian ou como uma tentativa de provocar seu expatrio para a Iugoslávia para então encontrar o pretexto para que o julgassem doente mental e o mantivessem por longo tempo no manicômio Não podemos precisar qual dessas duas doentias suposições provocou a reação homicida do acusado Basta notar que eventualmente no esquizofrênico há uma superposição de elementos pelo que duas imagens diversas e estranhas entre si podem se fundir em uma só pensamento assindético como pode acontecer no pensamento onírico Por tal mecanismo o convite a se dirigir ao campo se transformou na mente do periciando em uma incitação a matar Zulian e ao mesmo tempo ao expatrio Evidentemente quando a mulher voltou do campo Miklus lhe expôs tal suspeita provocando suas negativas e sua tentativa de convencêlo da inocência de suas intenções A ser verdadeira a narrativa de Miklus provavelmente a mulher em sua exasperação deixou escapar alguma imprudente alusão a seu estado mental O esquizofrênico às vezes é capaz de reações emocionais inesperadas e violentas inclusive a estímulos inadequados em tal estado afetivo pode se desinibir e cometer os delitos mais ferozes Foi o que aconteceu com Miklus que pegou o martelo e desferiu golpes mortais em sua consorte O O Crime Louco 175 periciando afirma que não tinha intenção de provocar lesões graves na mulher pode até acontecer que ele não tivesse claros propósitos de matar como às vezes acontece mesmo ao são de mente em estado de ira é certo porém que a reiteração dos golpes em uma parte do corpo sensível aos traumas desmente o que ele hoje afirma ou seja que pretendia atingila nas costas e não na cabeça apenas para fazer com que se calasse Na avaliação da imputabilidade de Miklus é preciso ter presente que a esquizofrenia pela dissociação psíquica pela perversão da afetividade pela completa desinibição dos instintos tira do doente a capacidade de compreender o valor moral de seus atos de discernir os motivos de sua conduta e de prever suas consequências penais Tal enfermidade além disso tira do doente a possibilidade de se determinar com base em motivações conscientes de escolher com uma crítica correta entre tais motivações e sua inibição Julgamos portanto que a capacidade de entender e querer do acusado no momento do fato estivesse totalmente excluída No estado atual como notamos no exame psíquico Miklus ainda sofre de esquizofrenia paranoide Essa é uma psicose eminentemente crônica Dada a desagregação psíquica atingida pelo periciando dificilmente poderá conseguir uma ainda que modesta remissão Como o acusado com o fato criminoso praticado demonstrou ser capaz de se desinibir entendemos provável que possa cometer novas ações delituosas pelo que o julgamos pessoa socialmente perigosa Antes de responder ao quesito apresentado julgamos oportuno fazer mais algumas considerações No primeiro estágio da doença Miklus não demonstrava nenhuma suspeita contra a mulher ao contrário julgavaa estranha O Crime Louco 176 ao suposto complô urdido contra ele Desconfiava dos médicos dos enfermeiros da cunhada e até mesmo da própria mãe mas não da mulher só dela aceitando a comida com que se alimentava Com o passar do tempo e o prolongamento de seu recolhimento forçado ao hospital psiquiátrico envolveu também a consorte no grupo de seus perseguidores porque ela não providenciava sua liberação Suspeição genérica portanto não específica Contra ela manifestou certo ressentimento mas não um verdadeiro ódio tampouco resultando que tenha expressado a intenção de matála Da leitura dos autos encontramos apenas dois atos hostis contra a mulher mais de dez anos antes do fato Durante a fuga do hospital psiquiátrico ocorrida em agosto de 1954 Miklus ameaçou a mulher com uma barra de ferro uncinada mas se limitou a se apossar de um garrafão de vinho O filho Davide em seus depoimentos relata que quando era pequeno o pai por ocasião de uma fuga do hospital ameaçara a mãe com uma baioneta Tudo indica que o filho se referisse à mesma evasão de agosto de 1954 e que tenha confundido em sua lembrança a barra de ferro uncinada com uma baioneta Ambos os filhos em seus depoimentos perante o Procurador da República declararam jamais ter ouvido o pai proferir ameaças contra a mãe embora estivesse convencido de que ela fosse a causa de sua internação e sua doença No primeiro estágio da doença Miklus apresentava alta periculosidade proveniente sobretudo do estado de ansiedade produzido por florescentes delírios persecutórios Mas sucessivamente seja pelos tratamentos realizados seja pela progressiva desagregação psíquica tal periculosidade parecia de menor entidade Com efeito nos estados avançados da esquizofrenia enquanto os delírios perdem força os doentes se tornam menos ativos sendo menos capazes de O Crime Louco 177 reações repentinas O estágio médicolegal da esquizofrenia é primordialmente o inicial no estágio avançado esses doentes mais dificilmente se tornam autores de crimes Com efeito lemos na Ficha Clínica do Hospital Psiquiátrico de Gorízia que Miklus em 1965 começou a demonstrar uma nítida melhora de comportamento Parecia tranquilo sereno calmo mais comunicativo e até trabalhador sem evidenciar sinais de agressividade Em 20111965 deu um empurrão em outro interno mandando que saísse do lugar onde estava sentado mas apenas para salválo de um suposto envenenamento Em 1966 se evadiu mas somente para visitar o túmulo da mãe morta há pouco Em 1491968 afastouse desautorizadamente do hospital apenas pelo desejo de ver a família sem ter porém qualquer intenção agressiva Não existiam portanto elementos claros que pudessem fazer julgar provável uma explosão agressiva É preciso admitir no entanto que sempre existe uma possibilidade remota que um esquizofrênico que se mostre durante anos em ambiente institucional calmo e tranquilo possa cometer atos criminosos Com efeito no Manicômio Judiciário em que trabalhamos não é raro encontrar internado algum paciente liberado de um hospital psiquiátrico recuperado e com melhoras que se tenha feito responsável por algum crime mais ou menos grave após poucos dias de liberdade Tendo presente essa possibilidade a Autoridade dirigente do Hospital Psiquiátrico de Gorízia ao conceder a Miklus uma breve licença tomou a precaução como de costume em tais casos de confiar o doente aos filhos a fim de que fosse vigiado e custodiado Considerando portanto que Miklus há mais de uma década não ameaçava a mulher que não mais apresentara manifestações de agressividade não externara claros O Crime Louco 178 propósitos uxoricidas que seu comportamento se tornara mais regular e que na concessão da licença foram adotadas as devidas precauções entendemos não ser previsível que o periciando pudesse cometer o ato criminoso Conclusões 1 Alberto Miklus no momento do fato objeto do processo sofrendo de esquizofrenia paranoide estava devido à doença em estado mental tal que excluía a capacidade de entender e querer 2 No estado atual Miklus ainda sofre de esquizofrenia paranoide 3 É pessoa socialmente perigosa 4 Pelas razões já expostas não era previsível que o acusado matasse a mulher Reggio Emilia 12121968 O perito Dr Francesco Coppola 22 A perícia da parte Universidade de Parma Clínica das Doenças Nervosas e Mentais Diretor prof F Visintini Tribunal de Reggio Emilia Observações sobre a Perícia do Juízo por parte do consultor da defesa do prof Franco Basaglia na causa contra Alberto Miklus O abaixoassinado prof Fabio Visintini filho do falecido Giovanni professor de Clínica das Doenças nervosas e mentais da Universidade de Parma consultor técnico da defesa do prof Franco Basaglia na causa penal contra Alberto Miklus tendo lido a perícia do juízo a cargo do O Crime Louco 179 prof Francesco Coppola sobre o estado mental de Alberto Miklus no momento em que cometeu o fato que lhe é imputado assim como a resposta aos quesitos nºs 3 e 4 observa a propósito o quanto segue O fato e os quesitos Alberto Miklus interno no Hospital psiquiátrico provincial de Gorízia com base em ordem de admissão definitiva desde 1951 usufruindo de licença de visita em domicílio na localidade Oslavia Via Lenzuolo Bianco nº 2 no dia 26 de setembro de 1968 mediante regular entrega sob custódia aos filhos Davide e Marjan na tarde do mesmo dia inesperada e subitamente matou a própria esposa Milena Kristacic No curso da instrução criminal contra Alberto Miklus o Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia convocou para interrogatório o diretor do Hospital psiquiátrico de Gorízia na qualidade de acusado de homicídio culposo determinando perícia psiquiátrica deprecada a nomeação do perito ao Juiz Instrutor de Reggio Emilia para onde Miklus fora transferido para o manicômio judiciário local Aos três quesitos de praxe sobre a imputabilidade e a eventual periculosidade social adicionou um quarto quesito assim formulado Queira o Sr Perito dizer se dadas as condições psíquicas de Miklus relacionadas a suas disposições de ânimo e atitude mental em face da própria esposa repetidamente manifestadas em várias ocasiões anteriores era previsível que o mesmo chegasse ao ponto de executar os propósitos ameaçadores contra ela Tal quesito contém a afirmação de que Miklus repetidamente manifestara propósitos violentos contra a própria esposa o que no entanto é desmentido pelos posteriores atos instrutórios e pelo claro relatório do perito do juízo que documenta como o rancor O Crime Louco 180 de Miklus em relação à família e à mulher inerente à longa e rejeitada internação jamais se expressara em propósitos violentos Por outro lado o quesito se segue àquele sobre a eventual periculosidade social e se refere à hipótese de periculosidade do doente mental eventualmente anterior ao crime e assim não só cronologicamente mas também substancialmente não podendo se justapor à outra Como é bastante sabido as duas periculosidades não são identificáveis Com efeito a periculosidade social é verificável em pessoas que cometeram fatos previstos em lei como crimes e que provavelmente poderão repetilos Tal diagnóstico é pedido aos profissionais da saúde exclusivamente em perícias criminais A periculosidade do doente mental foi introduzida em nossa legislação pela Lei de 1904 e o regulamento de 1909 sobre os manicômios e os alienados enquanto o dever de denúncia se contém no regulamento de segurança pública dirigindose aos profissionais da saúde quando estes pretendam tratar do doente mental ou do dependente de álcool e substâncias entorpecentes sem recorrer à internação em hospital psiquiátrico A finalidade do diagnóstico de periculosidade do doente mental é a de permitir sua internação compulsória ou voluntária no hospital psiquiátrico prevendo uma limitação da liberdade pessoal com fins de tratamento Não prevê medidas de segurança ou métodos rígidos de custódia podendo variar da internação à custódia na família de origem ou em outra família ou a liberação condicional conforme o andamento da doença e as necessidades do tratamento Por outro lado quando a periculosidade do doente mental se manifesta antes de ser diagnosticada aos parentes ou conhecidos do doente não é prevista qualquer O Crime Louco 181 sanção para quem sabendo de sua existência não a tenha denunciado O dever de custódia e tratamento subsiste porém quando o doente está internado ou confiado à família sem que a lei estabeleça as modalidades de custódia que se subordinam à oportunidade e às necessidades do tratamento até à mitigação das modalidades mais pesadas à concessão de licenças temporárias e à organização de atividades recreativas e laborais essas últimas dentro e fora do hospital Por outro lado a lei de 1904 atribui ao diagnóstico de periculosidade uma decisão de competência administrativa em face do doente mental que somente a esse título ou ao de escândalo público é admitido em um hospital especializado onde possa receber gratuitamente o tratamento de que necessita Enquanto em vários lugares invocase a abertura de enfermarias psiquiátricas em hospitais comuns na realidade o doente pobre não consegue ser tratado pelo competente especialista mediante internação fora do hospital psiquiátrico Assim o médico prudente habitualmente certifica a periculosidade presumida ao diagnosticar a doença independentemente da periculosidade manifesta ou do escândalo público real de modo a internar o doente Com efeito essa simulação é bastante frequente e aceita na prática pelas administrações competentes que tendem a transformar os hospitais psiquiátricos mais em lugares de tratamento do que de custódia Podese acrescentar que essa utilização do diagnóstico de periculosidade não era ignorada tampouco pelo antigo legislador estando implícita na obrigatória distinção entre as enfermarias do hospital psiquiátrico destinadas a doentes em observação a doentes tranquilos aos doentes semiagitados aos agitados às enfermarias de trabalhadores em claro reconhecimento O Crime Louco 182 da falta de homogeneidade entre a população dos hospitais psiquiátricos no que diz respeito à periculosidade Diagnóstico da doença de Alberto Miklus e previsível periculosidade em relação à esposa O perito do juízo conclui o exame anamnésico e o exame neuropsiquiátrico com o diagnóstico de esquizofrenia paranoide forma bastante controvertida e tormentosa na moderna doutrina psiquiátrica Podese observar que nesse caso a doença não se iniciou de forma típica instaurandose como uma forma psicorreativa em uma personalidade bem definida de natureza sensível após uma série de ameaças que culminaram em um verdadeiro atentado Tratava se portanto no início de psicose traumática evoluindo através de remissões e recaídas na qual a reação delirante assumia a forma característica do pânico mimeticamente reprodutor do evento psicológico traumatizante causal Nas sucessivas recaídas esses aspectos iniciais da doença foram se perdendo diante do comparecimento dos sintomas habituais da reação paranoide explícita aí incluídas as alucinações o delírio de envenenamento e os distúrbios da vontade abrangendo a gesticulação estereotipada e uma desagregação da linguagem Na primeira fase florescente da doença Miklus foi submetido a terapias biológicas como os eletrochoques e sucessivamente ao tratamento com psicofármacos Podese notar que os delírios propriamente ditos e as alucinações cederam a esses tratamentos enquanto a longa internação se fez acompanhar por uma gradual deterioração revelada pelo aparecimento de estereotipias e distúrbios da psicomotricidade como a recusa a cumprimentar apertando a mão do interlocutor ou a se sentar durante o dia além de uma modificação da linguagem em parte devida a uma regressão ao léxico infantil em parte a neologismos O Crime Louco 183 Essas formas de deterioração não chegaram a comprometer decisivamente a personalidade de Miklus que sempre conservou certa capacidade de adaptação e uma iniciativa autônoma não autista Isto é Miklus podia ter seu próprio comportamento interpretado com base em motivos compreensíveis Enquanto o comportamento do esquizofrênico processual é incompreensível a não ser através de uma interpretação simbólica de seus atos o parafrênico ou o delirante psicorreativo oferecem uma dinâmica do próprio comportamento relativamente mais influenciável pela realidade Assim o comportamento social de Miklus no que diz respeito a terceiros é um comportamento motivado de um lado pelo desejo de privacidade e de outro pelo desejo de reconstrução de sua personalidade lesada pela internação Ele afirma não ser louco Uma complicada idéia de estar excluído pela família e pela sociedade porque não trabalha pertencendo a uma categoria de pensionistas do Estado como exmilitar contestada por muitos é sua idéia dominante Nessas condições mantém a tendência de fugir do hospital para chegar à família ou à fronteira É sempre encontrado nesses lugares e reconduzido ao hospital sem resistência sem violência e sem sanções Essas fugas são demonstrações de protesto que se esgotam em si mesmas Na enfermaria hospitalar isolase cada vez mais até o momento em que é instaurada a comunidade terapêutica35 Essa realidade é por ele aceita até fazêlo abandonar as formas antes estabelecidas de isolamento e algumas estereotipias Melhora sensivelmente 35 Nota à edição brasileira Franco Basaglia assumiu a direção do Hospital Psiquiátrico de Gorízia em 1961 logo promovendo transformações radicais formas de contenção foram abolidas as portas das enfermarias foram abertas instaurouse a praxis da comunidade terapêutica O Crime Louco 184 frequenta as reuniões e nessas afinal abandona o hábito de não se sentar para conversar Sua iniciativa como expressão da vontade renasce com algumas variantes da atitude de protesto como aceitar as visitas da mulher e dos filhos e pedir permissões de saída É um sinal de sensível melhora e ressocialização percebido pelos outros internos pelos enfermeiros e pelos médicos Não obstante elabora um tema dominante que exprime de forma sintética e é formulado diversamente apenas por ocasião do interrogatório no manicômio penal Não é louco e poderia retornar a seu próprio domicílio Ali é instado a trabalhar embora devesse viver fora do manicômio sem trabalhar porque pensionista Não se percebe de onde lhe venha essa convicção Talvez da idéia de que no hospital de Gorízia estão internados alguns doentes do anteguerra em base a uma convenção estatal De todo modo ele interpreta o convite dos familiares a fazer algum trabalho em casa como um desconhecimento de sua posição e como um obstáculo para readquirir a liberdade sem condições Essa idéia não é criticada nem confrontada com a realidade e não é claramente formulada antes do interrogatório em foco Traz portanto as características de um delírio de referência A discussão com a mulher que antecede o fato delituoso é relatada por Miklus da seguinte forma a mulher o teria instado a colaborar com os filhos na colheita das uvas pelo menos ela o teria instado a ir até o campo como vigia do pessoal contratado para a tarefa Ele se recusara e se sentira ofendido especialmente com a proposta de agir como vigia porque dentre o pessoal contratado estava o primo Zulian que ele entendia se achar em sua mesma condição de pensionista do Estado exmilitar Essa proposta portanto se dirigia diretamente contra ele como eram diretamente O Crime Louco 185 dirigidas contra ele outras iniciativas da mulher dentre as quais a de informálo a cada visita da morte de pessoas idosas da aldeia Esses fatos e a categoria especial de pensão a que ele se refere são imaginários expressandose apenas como uma explicação de sua reação contra a mulher suscitada por tais imaginárias provocações Por outro lado obstina se em acreditar que não provocou a morte da mulher tendo apenas a ferido A lembrança dos acontecimentos é efetivamente confusa O perito do juízo interpreta a dinâmica do crime como uma reação em curtocircuito na qual a ação ocorre sem que entre o estímulo e a reação permeie um tempo de reflexão criticandoa por falta de capacidade ou perturbação emocional As duas condições estavam presentes em Miklus no momento do fato Tanto a debilidade das funções psíquicas superiores quanto a perturbação afetiva pois a atitude da mulher suscitava nele a reação emocional de contestação de uma confusa idéia delirante Nenhuma dúvida há portanto quanto à sua completa incapacidade de entender e querer no momento do fato produzida em Miklus por uma doença que podemos definir como demência paranoide por evolução deteriorada de uma personalidade psicopata Mais discutível é o diagnóstico médico de periculosidade social Já mencionamos como esse diagnóstico frequentemente se pronuncia muito mais por motivos jurídicoprocessuais do que por hipóteses propriamente médicas e psiquiátricas No caso presente como o diagnóstico da incapacidade de entender e querer no momento do fato baseiase na dinâmica de uma reação a curtocircuito e a temática delirante tem uma precisa configuração de referência que além do mais é totalmente elaborada após o fato delituoso por causa da dificuldade O Crime Louco 186 do próprio protagonista em interpretálo fica bastante claro que a probabilidade de o fato delituoso poder se repetir não encontra justificação no comportamento previsível com base no diagnóstico de doença Isto é a doença intervém como causa da debilidade crítica e portanto da impossibilidade de conter a reação atuada mas não como produtora da reação em si As reações anormais e as reações emocionais em curto circuito não são apanágio de nenhuma forma doentia ou de determinada personalidade no sentido de que devam ser julgadas como tal exatamente porque ultrapassam os limites da norma seja essa referida à norma dos sãos seja referida à doença É certo que a jurisprudência sustenta que quem demonstra ter saído da norma alguma vez terá a tendência de sair outras vezes mas esse é um diagnóstico a posteriori de ordem estatística e não médica devendo o perito declarála fora de sua própria competência Tal argumentação pode parecer supérflua para os fins de aplicação da medida de segurança no caso de Miklus dever ser absolvido por exclusão da imputabilidade Aliás torna se incômoda na resposta ao quarto quesito concernente à periculosidade do doente mental e à previsibilidade do crime quesito ao qual o perito do juízo corretamente respondeu em sentido negativo A negação de uma razoável previsibilidade do crime está abundantemente comprovada pela história clínica pela melhora ocorrida no decurso da doença pelo fato de Miklus jamais ter praticado atos de ameaça ou violência contra os familiares nem mesmo nas fases mais florescentes e mais decisivamente delirantes da doença enquanto demonstrara ser sensível à tentativa de ressocialização exercitada com a terapia comunitária aplicada no hospital e com a retomada das relações com O Crime Louco 187 os familiares Portanto o abaixoassinado no interesse da defesa do prof Franco Basaglia concordando plenamente com a resposta ao 4º quesito dada pelo perito do juízo expressa porém algumas reservas quanto ao diagnóstico pericial da periculosidade social Do que dá fé prof Fabio Visintini Parma 14 de fevereiro de 1969 O Crime Louco 188 3 As sentenças 31 Requerimento de envio a juízo formulado pelo Ministério Público junto ao Tribunal de Gorízia 2911971 O MP Vistos os autos do procedimento penal contra 1 Miklus36 Alberto 2 Basaglia prof Franco 3 Slavich Dr Antonio Acusados o primeiro a do crime de uxoricídio agravado nos termos dos arts 575 e 577 CP como melhor precisado na capa dos autos b do crime de lesões pessoais ex art 582 CP como melhor precisado na capa dos autos em anexo Basaglia e Slavich c do crime de cooperação em homicídio culposo ex arts 113 e 589 CodPen como melhor precisado no mandato de notificação de 11 de dezembro de 1970 nos autos d da contravenção do art 714 cc art 110 CodPen como no mandato de notificação acima mencionado Dito isso vistos os arts antes mencionados e o art 369 ss CodProcPen requer ao Juiz Instrutor deste Tribunal se digne 1 Declarar encerrada a fase instrutória 2 Determinar o envio a juízo do Tribunal de Gorízia de Basaglia Franco e Slavich Antonio para que respondam pelo delito de cooperação em homicídio culposo a eles atribuído 3 Declarar a extinção do processo em relação aos mesmos no que se refere à contravenção do art 714 Cod Pen por extinção da infração penal diante de anistia 36 Em todas as peças seja no requerimento do MP seja nas sentenças Miklus é sempre erroneamente chamado de Mikulus A esposa de Miklus é chamada de Cristancic e não Kristancic mas se trata de erro datilográfico O Crime Louco 189 4 Declarar a extinção do processo em relação a Miklus Alberto no que se refere aos delitos a ele atribuídos por se tratar de pessoa inimputável por total comprometimento mental 5 Determinar a internação de Miklus Alberto em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de cinco anos Gorízia 29 de janeiro de 1971 O Procurador da República 32 Envio a juízo determinado pelo Juiz Instrutor do Tribunal de Gorízia no procedimento instaurado em face de Miklus Alberto Basaglia Dr Franco Slavich Dr Antonio 2151971 República Italiana Em nome do Povo Italiano O Juiz Instrutor junto ao Tribunal Civil e Penal de Gorízia pronunciou a seguinte sentença no procedimento penal instaurado contra Miklus Alberto Basaglia Dr Franco Slavich Dr Antonio acusados o primeiro a do delito de homicídio qualificado nos termos dos arts 575 e 577 parágrafo único CP b do crime previsto no art 582 CP por ter causado lesões pessoais em Evelino Braida Basaglia e Slavich c do crime de cooperação em homicídio culposo ex arts 113 e 589 CP d da contravenção do art 714 cc art 110 CodPen PQM Declara encerrada a instrução e discordando parcialmente dos requerimentos do Ministério Público nos termos do art 378 CPP decide O Crime Louco 190 1 Declarar extinto o processo em face de Miklus Alberto no que se refere aos delitos a ele atribuídos por se tratar de pessoa inimputável por total comprometimento mental determinando nos termos do art 222 CP a internação do mesmo em manicômio judiciário pelo prazo mínimo de cinco anos 2 Declarar extinto o processo em face de Basaglia Franco no que se refere aos crimes a ele atribuídos na ementa por não ter o mesmo praticado o fato 3 Declarar extinto o processo em face de Slavich Antonio no que se refere à contravenção do art 714 CP por ter sido extinto o crime em razão de anistia Nos termos do art 374 CPP decide enviar a juízo perante o Tribunal de Gorízia competente em razão da matéria e do território Slavich Antonio para que responda pelo delito de homicídio culposo referido no item C da ementa Gorízia 21 de maio de 1971 O Juiz Instrutor Dr Raul Cenisi O Escrivão Olindo Loi 33 Sentença do Tribunal de Gorízia de 1821972 no processo contra Antonio Slavich República Italiana Em nome do Povo Italiano o Tribunal Penal de Gorízia composto dos Magistrados Dr Giuliano Malacrea Presidente Dr Raffaele Mancuso Juiz Dr Dario Succi Juiz pronunciou a seguinte sentença no procedimento penal contra Slavich Antonio solto presente acusado Basaglia e Slavich c do crime de cooperação em homicídio culposo ex O Crime Louco 191 arts 113 e 589 CP PQM Nos termos do art 479 CPP absolve o acusado Slavich do crime a ele atribuído por não ter praticado o fato Gorízia 1821972 34 Apelação do MP O Tribunal de Gorízia por decisão de 1241972 declarou a inadmissibilidade por renúncia da apelação do MP Transitada em julgado em 1641972 O Crime Louco 192 4 Considerações sobre o incidente de Gorízia Julgo oportuno descrever o clima que se estabeleceu naqueles anos em Gorízia devido à influência que tal clima teve sobre as investigações e as sentenças Em 1968 a experiência psiquiátrica de Gorízia vivia o que talvez tenha sido seu mais alto grau de popularidade Gorízia estava ao centro de um interesse específico na medida em que demonstrava através de uma transformação prática da instituição psiquiátrica que outro tratamento da loucura era possível O processo de questionamento do manicômio que com o Congresso de Bolonha de abril de 196437 conseguira uma unanimidade dos barões do mundo acadêmico aos Diretores e médicos dos hospitais psiquiátricos apesar de sua diversidade encontrou em Gorízia sua confirmação concreta através de um processo de mudança institucional Tornar o paciente responsável reconstruir sua individualidade destruída pela instituição total fazêlo partícipe de seu próprio tratamento tornarlhe possível a compreensão de seu próprio estado de sofrimento devolverlhe o autocontrole e a gestão de sua própria pessoa tudo isso era um fato real e não ideológico envolvendo toda a instituição em um processo de mudança e questionamento de todos os sujeitos Esse processo de questionamento prático do manicômio e da própria função da psiquiatria encontrara seu reconhecimento na promulgação da chamada Lei Mariotti em março de 196838 e no recebimento do Prêmio Literário Viareggio para ensaios no verão do mesmo ano A equipe começou a levar em consideração a possibilidade de reproduzir a experiência em outras cidades ou regiões de modo 37 Referimonos ao Congresso Processo ao Manicômio de 2426 de abril de 1964 organizado pela União Regional das Províncias Emilianas 38 Tratase da Lei no 431 de 18 de março de 1968 Providências para a assistência psiquiátrica O Crime Louco 193 a demonstrar que o que acontecera em Gorízia não era fruto de circunstâncias eventuais ou coincidências fortuitas mas sim que a mudança institucional era possível em qualquer lugar Surgiram duas modalidades diversas de entender essa mudança Alguns sustentavam que Gorízia já demonstrara a inutilidade e a nocividade do manicômio sendo portanto importante que de agora em diante se dedicassem ao território Outros sustentavam a necessidade de superar totalmente a internação manicomial e criar lugares alternativos ao manicômio derivados da dinâmica de sua superação lugares em que fosse possível encontrar a loucura em uma relação verdadeiramente livre É cada vez mais evidente que a experiência de Gorízia não se esgota na especificidade psiquiátrica e não é um episódio isolado sendo sim uma consequência do clima de renovação que tomou conta da sociedade italiana ao final dos anos 50 a necessidade de uma mudança social e cultural induzida pelo confronto com outras realidades nacionais dos países ocidentais como a França a Grã Bretanha e os Estados Unidos A valorização do homem posto ao centro da organização social a valorização do indivíduo de sua criatividade da necessidade de protagonismo e participação são a mola mestra dessa renovação que encontra em 1968 sua máxima expressão Todavia como lucidamente afirmará Franca Ongaro Basaglia em uma entrevista de 197639 o problema dos riscos existentes se coloca quando se sai da especificidade e se passa à generalização total em que tudo se torna político em uma visão única correse o risco de uma ideologização que é o mesmo do parcelamento A generalização política que não leva em conta a especificidade corre o risco de adiar tudo para outros lugares e outros momentos há um depois que justifica o fato de não se agir agora Essa contradição bastante clara para quem naqueles anos 38 Elkaïm M org 1977 Réseau Alternative à la psychiatrie Union Géneral dÉditions O Crime Louco 194 levava adiante a experiência de Gorízia parecenos poder constituir a mola mestra usada para demonstrar como escrevem Franco e Franca Basaglia que em uma realidade em ebulição um passo em falso ou um erro podem confirmar aos olhos da opinião pública a impossibilidade de ação40 Tanto dentro quanto fora da instituição nem todos aceitavam uma mudança que discutia não apenas no plano teórico mas também na prática quotidiana o rompimento da relação autoritáriohierárquica rompimento fundamental para a liberação da subjetividade e que comportava participação nas escolhas responsabilização e consequentemente constante questionamento das certezas em relação aos outros Nesse clima o incidente Miklus constituiu para alguns um episódio frustrante mas também um momento de reflexão como demonstra o citado artigo de Franco e Franca Basaglia para outros porém tornase o episódio que esperavam para sepultar a experiência Certamente o fato delituoso que envolve Miklus coloca o problema da contradição entre a tutela dos valores coletivos e a salvaguarda da personalidade individual Mas tal contradição não parece estar no centro dos interesses da investigação do MP nem nas sentenças do Juiz Instrutor e dos Juízes do Tribunal O problema fundamental parece ser muito mais o de verificar se os procedimentos burocrático administrativos foram desatentos e a quem devem ser imputadas as decisões Evitase aparentemente questionar a validade da nova terapia do hospital aberto mas toda a instrução por parte do Ministério Público voltase na prática para sustentar a prevalência da custódia sobre o tratamento A instrução é como consta da sentença do Tribunal de 1821972 no processo contra Antonio Slavich longa e trabalhosa mas o Dr Casagrande o Dr Jervis e o Dr Schittar que estavam de serviço à época do fato junto ao 40 Franco e Franca Basaglia Lincidente in LIstituzione Negata Ed Einaudi Torino1968 pag362 O Crime Louco 195 HPP não se sabe por que motivo jamais foram ouvidos A instrução buscou convalidar a tese segundo a qual Miklus pelo fato mesmo de ser um doente mental deveria ser considerado perigoso e irrecuperável necessitando assim de uma custódia contínua Em consequência qualquer afirmação de melhora nada mais era do que uma afirmação enganosa Sob esta ótica dentre todos os 14 depoimentos frequentemente contraditórios entre si foram privilegiados somente alguns Deuse ênfase por exemplo ao testemunho do enfermeiro Minardi que falava de uma tentativa de estrangulamento da mulher por parte de Miklus ocorrida na enfermaria mas que remontava a dez anos antes e que de todo modo não fora confirmada pelo enfermeiro Colognatti deuse ênfase ao testemunho do Dr Gobbo que como por ele mesmo admitido não estava presente no hospital naqueles dias e confundiu a reunião organizacional de serviço que ocorria todas as manhãs na biblioteca da Direção envolvendo médicos chefes de seção assistentes sociais e enfermeiros chefes com as Assembléias quotidianas da qual participavam os internos e todo o pessoal do hospital Tal confusão está presente seja no requerimento do MP de envio a juízo seja na decisão do Juiz Instrutor de envio a juízo seja na sentença definitiva do processo Slavich A isso se soma o fato de que Casagrande médico de plantão no dia do delito Jervis e Schittar presentes à reunião organizacional da manhã em que foi decidida a liberação experimental somente foram ouvidos no dia do julgamento Todos esses elementos parecem confirmar a dúvida sobre uma instrução tendenciosamente orientada o preconceito sobre a doença mental parece claro e inequívoco A renovação suscitada pela já citada lei Mariotti com a introdução da internação voluntária e a supressão da inscrição no registro judiciário do doente mental ainda não tinha à época suscitado aquela dialética aliás ainda hoje discutida entre a tutela dos direitos e valores coletivos e a tutela da liberdade pessoal com referência ao tratamento Naquele momento o tratamento no O Crime Louco 196 imaginário coletivo ainda era identificado com a custódia como defesa diante dos incômodos que o doente mental pode causar à sociedade Mas havia ainda outro aspecto a influenciar fortemente a instrução Era o conceito de liberalização à base do processo de mudança institucional a análise de uma realidade em que a opção pela custódia institucional dizia respeito às classes mais pobres e indigentes Eram conceitos que inevitavelmente traziam à luz o problema da contraposição de classe a natural convergência com os movimentos contestadores de outras instituições escola fábrica etc ou com a reivindicação de reconhecimento de direitos saúde educação trabalho família casa etc levando a considerar a experiência de Gorízia como um fato toutcourt político confundindoa com os movimentos que desfraldavam um conceito de liberdade como ausência de qualquer regra Essa visão política era contestada por outra visão contraposta nãodialética e rígida que se opunha a qualquer proposta ou reivindicação de mudança defendendo a todo custo a realidade existente Esses preconceitos o político e o da impossibilidade de cura da doença mental orientaram portanto toda a instrução Basta considerar que o MP jamais quis envolver o Dr Alì seu amigo com quem compartilhava ideais políticos Basta considerar que o MP era o mesmo procurador que deu início à famosa investigação sobre o massacre de Peteano na qual também esteve envolvido o J I Raul Cenisi41 A manifestação do MP que incrimina Franco Basaglia e Antonio Slavich por cooperação em homicídio culposo entra no mérito dos processos de tratamento quando afirma que os dois profissionais 41 O Massacre de Peteano foi um atentado terrorista em que morreram três policiais ocorrido em 31 de maio de 1972 nas proximidades de Peteano distrito de Sagrado na província de Gorízia presumivelmente praticado por militantes da organização terrorista de extremadireita Ordine Nuovo filiados ou dirigentes do MSI O procedimento se caracterizou por graves deficiências investigatórias e pela tendenciosidade das hipóteses acusatórias de modo tal a tornar impossível o estabelecimento da verdade Torino1968 pag362 O Crime Louco 197 não obedeceram às seguras e conquistadas realizações da ciência médica sendo portanto puníveis a título de imperícia negligência ou imprudência O MP ressalta ainda que eles não teriam observado as prescrições legais mas não menciona o Dr Alì que assinou o documento de liberação tampouco procurando obter o testemunho dos médicos presentes à reunião em que foi decidida a licença de Miklus O julgamento ao contrário é conduzido para a busca da responsabilidade burocráticoadministrativa de quem concedeu a liberação assinando a licença ou seja na direção da responsabilidade do Dr Alì que àquela altura já tinha morrido Essa minha interpretação encontra amparo dentre outros elementos em um artigo do jornal Il Gazzettino que já publicara matérias contra a experiência basagliana e que em matéria nacional de 19 de fevereiro a cargo do correspondente Franco Escoffiér assim se expressa a propósito da equipe de Gorízia A equipe Basaglia como é lógico era composta de jovens hoje quase todos em posições dirigentes aqui e acolá por toda a Itália todos naturalmente absolutamente convencidos da eficácia de uma revolução Toda a matéria dá bastante espaço às teses do MP e tende a levantar dúvidas sobre o Colégio Judicante insinuando que este teria optado por uma sentença préfabricada Conclui E então a brusca conclusão talvez previsível após as duas horas de apaixonadas alegações defensivas quinze minutos de reunião do conselho e o tribunal com quatro palavras liquidou o caso o prof Slavich foi absolvido por não ter praticado o fato Após o que a teoria sobre a escola Basaglia retoma seu caminho natural42 O julgamento se dá cerca de dois anos e meio após o fato em pleno clima político de estratégia de tensão43 42 Franco Escoffiér Assolto il medico a Gorízia per il caso del manicomio modello Il Gazzettino de 19 de fevereiro de 1972 43 Vejase a respeito G P Testa La strage di Peteano Ed Einaudi Torino 1976 em especial pp134135 e p141 Nota à edição brasileira A expressão estratégia de tensão se refere aos anos 70 na Itália durante os quais a abertura social e política aos partidos de esquerda foi hostilizada pelas forças conservadoras de direita que recorreram a atentados sanguinários O Crime Louco 198 Como antes mencionado Miklus tido como pessoa inimputável por comprometimento total da mente é condenado a cinco anos de permanência no mesmo HPJ Ali fica até a morte sofrendo de fato uma condenação à prisão perpétua em uma instituição total Franco Basaglia é absolvido pelo J I em 1971 por não ter praticado o fato Com a mesma fórmula Antonio Slavich também é absolvido pela sentença do Tribunal em 1972 Implicitamente é tido como responsável o Dr Alì que fazia as vezes de diretor na ausência de Basaglia e autorizara a liberação Certamente os juízes não entram no mérito dos procedimentos terapêuticos então adotados no hospital de Gorízia mas assim fazendo evidenciam a meu ver dois aspectos interessantes O Colégio judicante referindose a Miklus não considera a possibilidade de uma responsabilidade do doente mental não avalia a questão levantada pelo perito da defesa de não se assumir como automática a estreita correlação entre doença mental e periculosidade social A lei de reforma a chamada lei Mariotti claramente não é levada em nenhuma consideração Não poderia ser de outra forma na medida em que os juízes declaram não querer entrar no mérito técnico dos métodos de tratamento Mas é uma visão arcaica da psiquiatria a que influencia o comportamento dos juízes A criminologia italiana de inspiração lombrosiana desde o final do século XIX sanciona qualquer ato criminoso como patológico coloca como proeminente a individualização da periculosidade do mesmo ato em relação à sociedade calibra a consequente sanção sobre o mecanismo de defesa da sociedade com o consequente controle do louco Para os juízes Miklus é um esquizofrênico e por isso mesmo perigoso para a sociedade por causa do total comprometimento mental é incapaz de entender e querer e assim sendo inimputável não é sequer levado em consideração no julgamento de Slavich Mas a ele é cominado o máximo da pena será recolhido por toda a vida em uma instituição total Sancionado com um mecanismo que O Crime Louco 199 privilegia a defesa da sociedade Miklus desaparece como história e como indivíduo Miklus vale recordar nos anos turbulentos que se seguiram à segunda guerra mundial foi objeto de um atentado e depois de alguns anos recebeu a visita do autor do atentado já solto daquele momento em diante desenvolveu um estado de insegurança e em seguida de medo e terror pelo que após um ano foi internado tratado como personalidade psicopática com terapia de eletrochoques e depois definitivamente atado ao manicômio com diagnóstico de paranóia agravada Mas aos juízes parece não interessar o esforço reabilitador voltado para a revalorização de uma pessoa que combatera pela liberdade sua de sua família de sua terra uma pessoa que se considerava um militar digno de ter uma pensão mas que ao contrário tornase objeto de um atentado de sucessivas ameaças que o conduzem prisioneiro a um manicômio onde ninguém leva em consideração sua tragédia O importante é defender a sociedade de um louco que praticou um ato criminoso Certamente é preciso ter em conta a defesa da sociedade contra atos criminosos certamente quem pratica um crime deve ser sancionado mas é difícil compreender como uma pessoa inimputável e necessitada de tratamento possa ser recolhida por toda a vida e abandonada até a morte condenada por uma periculosidade social apenas porque se presume que possa vir a cometer outros atos criminosos A condenação se funda em uma presunção e não sobre um fato demonstrado O segundo problema que a sentença propõe se refere à conduta culposa do médico isto é de Slavich A conduta culposa pode estar referida a um nexo etiológico não apenas quando o resultado é uma consequência certa direta e inequívoca mas também quando é altamente provável ou previsível e provável Sob esse aspecto à diferença do MP o Colégio judicante acolhe a tese da perícia do juízo que afirma que pelas razões já expostas não era previsível que o acusado matasse a mulher Todavia não são levados em consideração os motivos que induziram O Crime Louco 200 o J I a enviar Slavich a juízo isto é a negligência e a imperícia profissionais Os defensores de Slavich sustentaram a insubsistência de tais motivos mas o Colégio judicante pondo a responsabilidade das liberações experimentais nas costas do Dr Alì falecido no curso prolongado da instrução evita como Pilatos entrar no problema do crime culposo por negligência eou imperícia por não ter o agente executado as medidas de cuidado ditadas pela lei ou pelo costume que substanciariam o crime culposo O aprofundamento desse aspecto significaria ter de verificar se foi executada uma intervenção lícita ainda que em presença de erros e assim entrar no mérito e ser obrigado a emitir um juízo sobre a intervenção terapêutica adotada Culpando uma pessoa não mais vivente evitouse tanto a diatribe científica realizada que deveria ter na devida consideração os testemunhos do mundo científico nacional e internacional solidário com Franco Basaglia quanto o perigo de se envolver na problemática política que informara a opinião do MP Em parte essas interpretações parecem dar razão ao jornalista do Gazzettino quando fala de sentença préfabricada mas por motivos totalmente opostos ao que ele afirma não para confirmar a justeza da experiência de Gorízia mas para permanecer acima de qualquer diatribe científica ou política O problema da responsabilidade dos sujeitos envolvidos permanece um fato não enfrentado e por isso mesmo não resolvido O Crime Louco 201 IV O primeiro incidente de Trieste Lorenzo Toresini 1 O fato 10 de junho de 1972 Em 14 de fevereiro de 1972 um sábado Giordano Savarin era liberado em caráter experimental conforme a terminologia da Lei 1904 Sobre Manicômios e alienados e posterior decreto regulamentador 1909 do Hospital Psiquiátrico Provincial de Trieste O paciente nascido em 1929 foi confiado aos cuidados da mãe Caterina Stupancich in Savarin que o levava para casa após uma internação de 39 dias Quatro meses depois em 10 de junho de 1972 Giordano Savarin matava ambos os genitores atingindoos repetidas vezes com uma faca rudimentar O Juiz Instrutor por sentença de 821973 absolvia Savarin reconhecendoo portador de incapacidade absoluta de entender e querer no momento do fato além de socialmente perigoso Em consequência determinou o J I a internação em manicômio judiciário por prazo não inferior a dez anos No mesmo contexto determinou o J I o envio a juízo de Franco Basaglia então diretor do HPP de Trieste juntamente com o Dr Edoardo De Michelini médico psiquiatra do Centro de Higiene Mental Para o primeiro a acusação foi de homicídio culposo por ter liberado em caráter experimental um paciente perigoso enquanto portador de esquizofrenia paranoide e especialmente por têlo confiado à mãe idosa e além do mais analfabeta Em consequência desse particular a senhora não deveria ter sido julgada apta para receber o paciente na medida em que incapaz de ler e portanto de seguir escrupulosamente as corretas prescrições farmacológicas Serenase gotas Nozinan cpr Fargan cpr Mogadon cpr Artane cpr O segundo foi acusado de na qualidade de diretor do CHM Lorenzo Toresini colaborou com Franco Basaglia em Trieste atualmente é diretor dos Serviços de Saúde Mental de Merano lorenzotoresiniliberoit O Crime Louco 202 ter omitido de exercitar um controle acurado sobre o paciente em liberdade domiciliar O julgamento em primeiro grau se celebra em novembro de 1975 resultando na absolvição de Franco Basaglia por insubsistência do fato O Dr Edoardo De Michelini no entanto foi condenado à pena de 1 ano e 4 meses de reclusão sendo reconhecido culpável por omissão por ter confiado excessivamente na palavra da mãe do réu louco que lhe dera garantias formais de querer se ocupar da regular administração da terapia ao filho O julgamento da apelação se celebra em abril de 1977 resultando na confirmação da absolvição de Franco Basaglia e na reforma da sentença de 1º grau em face do Dr Edoardo De Michelini que é então absolvido do crime que lhe foi atribuído por insuficiência de provas A Corte Suprema de Cassação julgando recurso interposto pelo P G rejeitao anulando a sentença impugnada sem necessidade de novo julgamento na parte em que absolveu De Michelini Edoardo por insuficiência de provas para substituir tal fórmula pelo fundamento de não estar o fato previsto em lei como crime O Crime Louco 203 2 As sentenças 21 Sentença de primeiro grau do Tribunal de Trieste de 25111975 República Italiana em nome do Povo Italiano o Tribunal de Trieste Seção Penal atualmente composto pelos magistrados Dr Italo Visalli presidente Dr Vincenzo DAmato juiz Dr Paolo Alberto Amodio juiz proferiu a seguinte sentença na causa penal contra 1 Basaglia Franco solto presente 2 De Michelini Edoardo solto presente acusados da prática do crime dos arts 41 e 589 mod pelo art 1º da Lei no 296 de 1151966 parágrafos 1º e 3º CP Em Trieste e Muggia até 10 de junho de 1972 PQM O Tribunal Nos termos dos arts 483 487 488 CPP declara o acusado Edoardo De Michelini culpado do crime a ele atribuído e concedendolhe as atenuantes genéricas condenao à pena de 1 ano e 4 meses de reclusão além do pagamento das despesas processuais determinando que a pena assim imposta seja condicionalmente suspensa sob as condições e cominações legais não se fazendo menção à condenação na folha de antecedentes penais do Registro Judiciário Nos termos do art 479 CPP absolve o acusado Franco Basaglia do crime que lhe foi atribuído por insubsistência do fato Trieste 25 de novembro de 1975 Sentença da Corte de Apelação de Trieste de 28 de abril de 1977 A Corte de Apelação de Trieste reformando parcialmente a sentença do Tribunal de Trieste de 25111975 impugnada por De Michelini Edoardo e pelo MP absolve De Michelini O Crime Louco 204 do crime que lhe foi atribuído por insuficiência de provas Confirma em seus demais termos a sentença apelada 22 Sentença da Corte Suprema de Cassação de 12 de abril de 1978 no 2389377 RG Em 2941977 o MP interpôs recurso de cassação contra os acusados Basaglia Franco e De Michelini Edoardo Segue sentença no 70775 Em 2941977 o adv Sergio Padovani pelo acusado De Michelini Edoardo interpôs recurso de cassação Em 2941977 o adv Enzo Morgera pelo acusado De Michelini Edoardo interpôs recurso de cassação A Corte Suprema de Cassação por sentença de 1241978 no 2389377 RG no recurso interposto pelo PG em face de 1 De Michelini Edoardo também recorrente 2 Basaglia Franco rejeita o recurso do PG anula a sentença impugnada sem necessidade de novo julgamento na parte em que absolveu De Michelini Edoardo por insuficiência de provas para substituir tal fórmula pelo fundamento de não estar o fato previsto em lei como crime Transitada em julgado em 1241978 O escrivão O Crime Louco 205 3 Considerações sobre o primeiro caso de Trieste 31 Previsibilidade A primeira indagação que se coloca diz a sentença do Tribunal de 1º grau de Trieste no já longínquo ano de 1975 é pois se o trágico resultado causado por Savarin em absoluta incapacidade de entender e querer seria vinculável em uma relação de causalidade eficiente à conduta do acusado Basaglia que determinou sua liberação do HPP A este respeito é oportuno ressaltar que a liberação de Savarin em 1421972 não foi adotada nem se encaixa no quadro das novas concepções da psiquiatria e da função dos manicômios de que o Dr Basaglia se fez tenaz e contestado defensor Ao Tribunal não interessa saber se naquela data o HPP já tinha se transformado em manicômio aberto e assim se nas relações com os doentes liberados em diversas formas já tinham sido introduzidas as inovações algumas das quais já recebidas pelas leis do Estado promovidas pelo Dr Basaglia O fato é que no que se refere a Savarin a liberação foi deliberada e executada exclusivamente segundo os critérios adotados por ocasião das precedentes internações pelos então diretores do HPP de Trieste e em rigoroso respeito às normas e práticas em vigor Deriva daí que na valoração da conduta do Dr Basaglia deve permanecer estranho o critério da previsibilidade e possibilidade de evitação do resultado grifo nosso adotado em algumas decisões recentes da Corte de Cassação referentes a fatos e ocorrências conexos à realização de ardentes inovações técnicocientíficas cujas concepções foram tão lucidamente expostas pelo MP em sua petição Portanto afirma a sentença o problema central é o da previsibilidade e essa é a eterna questão no âmbito temático da responsabilidade profissional dos psiquiatras Em outras palavras se um indivíduo é totalmente incapaz de entender e querer seu comportamento poderia ser assimilado a um fato de ordem mecânica de modo a configurar um percurso linear transparente O Crime Louco 206 visível previsível Isto entendase por parte de um olhar técnica e profissionalmente preparado Não seria verdade parece dizer a sentença ainda que para refutar tal tese que os psiquiatras sabem ler o que se passa na mente das pessoas E se sabem ler o que se passa na cabeça dos seres humanos não seriam talvez capazes de perceber naquelas mentes um tanto simplificadas aquilo que tão provável quanto inevitavelmente estaria por acontecer Salta aos olhos uma comparação que se impõe Até há poucos anos não parecia existir nada mais absolutamente imprevisível do que o tempo atmosférico Diziase tempo bizarro ou exatamente tempo louco Ora isso não é mais verdade A tecnologia a observação escrupulosa globalizada estendida ao mundo inteiro permite hoje com margem de certeza quase absoluta prever o tempo que fará O tempo atmosférico perdeu para toda a Humanidade sua bagagem de arbitrariedade A ciência a técnica e portanto a Razão afirmam que a mente humana o cérebro assolado por uma doença no fundo também não passa de um órgão mecânico devendo pois os técnicos na matéria serem capazes de prever Prever e assim prevenir E se não preveem devem responder pelo fato que não previram Porque certamente eram capazes exatamente de prever E se não previram e não preveniram isso certamente foi fruto de negligência e portanto certamente são responsáveis O que não se considera nessa concepção que naturalmente jamais é explicitada como tal mas aflora nesse pensamento naturalístico primordial ou se preferirmos que brota da esplêndida metáfora do Gênesis é a simples conclusão de que imaginar tal mecanicismo na mente humana estaria a implicar a abolição do livre arbítrio O ser humano sadio seria capaz de se autodeterminar e portanto quando transgride as leis morais fálo consciente e voluntariamente no interior de um projeto criminoso e doloso Já o sujeito afetado por um processo patológico perderia essa sua qualidade devendo assim ser considerado como um autômato incônscio inconsciente totalmente determinado e portanto inculpável A responsabilidade O Crime Louco 207 por seus atos deve todavia caber a alguém vale dizer ao técnico que não foi capaz ou não se dignou a intervir nos seus dispositivos doentes em seus parafusos Vem à lembrança o percurso lógico do rei do positivismo psiquiátrico o grande Cesare Lombroso que coerentemente com o espírito de seu tempo considerava o Homem inserido em seu percurso evolutivo Partindo assim da constatação anatômico funcional da existência de três córtices cerebrais no cérebro humano neopálio paleopálio e arquipálio em que normalmente um prevalece sobre o outro mantendose o córtex inferior sob seu próprio controle anatômico funcional mas também quase ético Lombroso julgava que a loucura consistisse em uma subversão de tal hierarquia Nessa subversão o arquipálio o córtex inferior aquele que dado o percurso na ontogênese da filogênese corresponde ao dos répteis prevaleceria sobre o neopálio Sobre aquele neopálio que constitui a base hardware do software que é a razão consciente fundamento da autoconsciência e do autocontrole humano Daí decorre que o ser humano regredido a réptil acaba por se tornar um sujeito mais elementar mais decifrável mais previsível Mas também obviamente mais perigoso Com efeito o crocodilo responde de maneira automática ou semiautomática aos estímulos olfativos E responde agredindo e mordendo Daí decorre pois que o crocodilo é perigoso Salta aos olhos uma concepção racista evidentemente baseada em uma tese um pressuposto e um preconceito de tipo biológico o do homem mecânico comparável ao tempo atmosférico que embora profundamente complexo em seus decisórios não deixa no entanto de permanecer sempre mecânico Tudo isso evidentemente dentro de uma concepção ingenuamente otimista de que a ciência a pesquisa e a técnica mais cedo ou mais tarde descobrirão o fundamento do comportamento e do livre arbítrio humano Vale dizer que como frequentemente acontece na pesquisa deveria e poderia ser exatamente da observação da patologia que se chegaria O Crime Louco 208 à compreensão da fisiologia analogamente ao fato de que da observação da psicopatologia às vezes mais facilmente se chega à psicologia isto é ao pensamento humano normal Pois bem de tudo isso a sentença de 1975 fala para dizer a verdade de maneira um tanto crítica na valoração da conduta do Dr Basaglia deve permanecer estranho o critério da previsibilidade do resultado o que não é e nem pode ser matéria de valoração judiciária Isto porque a previsibilidade do comportamento humano sadio mas também patológico não pode evidentemente ser matéria de reducionismo mecanicista 32 Circunstância interruptiva Diz mais a sentença do Tribunal de Trieste de 1975 E é lamentável constatar mas é preciso ser dito que a negligência ou imprudência seriam atribuíveis exatamente à guardiã e a seu marido por não terem alertado o HPP sobre o comportamento absolutamente anormal em que recaíra Giordano Savarin nos dias que precederam o fato criminoso comportamento esse caracterizado por inequívocos sintomas de uma superveniente e perigosa crise persecutória vejamse os depoimentos de Strain A omissão foi certamente ditada pelo afeto e pela esperança infelizmente infundada dos dois pobres genitores de que a crise desapareceria ou regrediria Todavia essa omissão aconteceu e se interpõe como circunstância interruptiva válida entre a conduta do Dr Franco Basaglia e o crime cometido pelo paranoico Savarin Existem pois afirmava o Tribunal de Trieste circunstâncias capazes de interromper o nexo de causalidade entre a responsabilidade do médico psiquiatra e os comportamentos de seus respectivos pacientes Uma dessas é o fato de não ter sido adequadamente informado sobre suas pioras por exemplo pelo silêncio dos familiares no caso presente da mãe Mas que circunstância interruptiva em relação à suposta responsabilidade culposa do médico psiquiatra seria maior do que O Crime Louco 209 em vez de se reconhecer o paciente como totalmente incapaz de entender e querer nos termos do art 88 CP fosse ele reconhecido parcialmente doente mental nos termos do art 89 CP Nesse segundo caso está implícito que a capacidade residual do sujeito que não perdeu o senso ético comum estando no máximo apenas parcialmente influenciado por sua própria doença constitui circunstância interruptiva da responsabilidade do médico Outra é a situação mencionada na sentença da Cassação seção penal IV no 39680 de 9 de outubro de 2002 já referida concernente ao caso do depósito de borracha44 Não por acaso a sentença assimila um sujeito reconhecido totalmente incapaz de entender e querer a um depósito de borracha Impossível não ver aqui uma concepção mecanicista do homem que reduz a zero a subjetividade qualquer subjetividade assimilandoa à de uma máquina ou até a um depósito de pneumáticos 33 A Lei 431 e a consciência da doença A Lei 431 de 1968 continha em seu texto o termo CHM Centro de Higiene Mental Com efeito promovia pela primeira vez desde a invenção da psiquiatria ao menos em nosso país a construção de dispensários estruturas externas ao Hospital Psiquiátrico que se ocupassem dos pacientes liberados A finalidade a própria palavra o expressa era a de dispensar psicofármacos conselhos exames controles apoio Tratase como facilmente se pode deduzir de alguns detalhes escondidos entre as linhas da sentença BasagliaDe Michelini de ambulatórios onde se desenvolvia um trabalho tão simples quanto basilar Não se fala de trabalho de equipe por exemplo tendose a impressão de que prevaleceria o 44 Nota à edição brasileira Tratase do episódio antes mencionado em que foi afirmada a responsabilidade a título de culpa de um sujeito que pelo estado de abandono e negligente descuido em que mantinha um depósito de material de borracha contribuíra para pôr em atuação as condições para que se verificasse um incêndio que na realidade acabou por ser ateado por desconhecidos O Crime Louco 210 aspecto burocrático Todavia é preciso reconhecer que tal estrutura assumiu pela primeira vez na história da psiquiatria45 um papel de ruptura com o anterior paradigma Um paradigma que previa a incapacidade absoluta do paciente psiquiátrico de como veio a sustentar anos depois o Ministro da Saúde pluriinvestigado e condenado Francesco de Lorenzo ter consciência da doença Da menção legal implicitamente decorria que a existência e a introdução do CHM no território estaria a pressupor o fato de que algumas ou muitas pessoas fossem capazes de bem compreender seu significado e portanto de recorrer àquele a toda evidência voluntariamente a partir da consciência de se achar naquela situação particular que comumente assume o nome de doença mental Tratase em essência de uma ruptura histórica com o aparato conceitual anterior que o Ministro De Lorenzo não podia ou não queria ter em conta Esse mesmo aparato conceitual que assimilava o louco a um ser inferior e automatizado pelo que não tinha responsabilidade sobre suas escolhas e seus gestos o crocodilo estando suas decisões desvinculadas do controle da razão soberana já que determinado pela desrazão instintiva doente e de todo modo negativa Simultaneamente a Lei 431 de 1968 da qual hoje não se fala mais na medida em que amplamente superada pela Lei 180 833 de dez anos depois previa outros aspectos de fundamental importância para a superação definitiva do paradigma psiquiátrico historicamente dado Primeiro desses aspectos era a previsão da internação voluntária O artigo 4º da Lei 431 de 1968 previa a possibilidade de internação voluntária no Hospital Psiquiátrico mas à diferença do art 63 da lei regulamentadora 1909 pelo qual o cidadãopaciente poderia requerer a internação voluntária mas se tornava automaticamente 45 Nota à edição brasileira Este ineditismo diz respeito à Itália pois na França desde 1958 já funcionava a psiquiatria de setor por obra de Philippe Paumelle Serge Lebovici e René Diatkine O Crime Louco 211 um interno compulsório perdendo os direitos civis o paciente voluntário mantinha seus direitos civis e a possibilidade de decidir o momento da própria liberação Nos termos do art 4º para quem se fazia internar o Hospital Psiquiátrico se tornava um hospital geral orientado pelo princípio do consentimento O segundo aspecto previa a instituição de divisões no interior do Hospital Psiquiátrico A lei instituiu uma divisão com um diretor um ajudante e pelo menos um assistente médico para cada 125 postosleitos Antes nos manicômios existia uma equipe formada por um diretor um ajudante e um assistente para os homens e uma para as mulheres não mais do que duas equipes médicas Em Trieste por exemplo onde em 1968 os pacientes eram 1200 foram instituídas dez divisões oito delas sendo as novas divisões Isto significou que o manicômio finalmente poderia se tornar também um lugar de tratamento não apenas de controle e de violência O Crime Louco 212 V O segundo incidente de Trieste Lorenzo Toresini 1 O fato 29 de junho de 1977 Em 27 de junho de 1977 um domingo por volta de 11 horas dirigese ao Hospital Psiquiátrico Provincial de Trieste uma jovem de 27 anos Maria Letizia Michelazzi in Trani a qual já havia apresentado pesado quadro psicopatológico Explica ter sido portadora de grave forma de neurose obsessiva e ter se submetido com seu consentimento a uma leucotomia préfrontal no ano anterior na Suíça dirá cortaramme a cabeça Esclarece ainda que o núcleo central de sua obsessão gira em torno do filhinho de quatro anos Naquele momento a paciente estava cansada após uma longa viagem e sentindose inapta como mãe pedia ajuda Dois psiquiatras a escutaram e pediram que esperasse a fim de se consultarem entre si Logo ficou claro para os dois médicos que internar na enfermaria de Acolhimento de Mulheres do Hospital Psiquiátrico de Trieste aquela mulher jovem e mais do que isso em aparente bom estado de compensação parecia ser profundamente contraindicado para ela própria Além da inquestionável capacidade de se representar corretamente descrevendo a si mesma de maneira crível e substancialmente equilibrada a jovem deixava escapar alguns traços histriônicos e embora apenas vagamente exibicionistas Por essa razão pareceulhes desaconselhável o acolhimento em uma enfermaria psiquiátrica onde dentre outras coisas estavam internadas mulheres com traços semelhantes com quem rapidamente se instalaria um clima conflituoso Decidiram então esperar a chegada de um terceiro psiquiatra que dali a pouco voltaria de sua visita dominical ao CSM46 de Muggia para com este 46 Nota à edição brasileira CSM é a sigla de Centro di Salute Mentale isto é Centro de Saúde Mental Os Centros de Saúde Mental correspondem aos CAPs da reforma psiquiátrica brasileira Os CSM de Trieste correspondem mais especialmente aos CAPs III O Crime Louco 213 começarem imediatamente a planejar um programa de tratamento e reabilitação domiciliar A mulher afastando um cacho de cabelo exibiu o que julgava ser visível como cicatriz em posição látero frontal fruto a seu dizer da mencionada leucotomia Tal cicatriz no entanto não foi vista pelo médico a quem ela a mostrara À chegada do terceiro médico a paciente que fora ao HPP voluntariamente e parecia substancialmente compensada já tinha ido embora Três dias depois em 28677 a mulher afogava dramaticamente o próprio filho de quatro anos na banheira de casa Declarada doente mental total Maria Letizia Michelazzi in Trani foi internada no HPJ de Castiglione delle Stiviere A Procuradoria da República formula a hipótese de negligência imperícia e imprudência por parte dos dois psiquiatras por não terem impedido o evento internando imediatamente a jovem e por não terem se preocupado em conduzila ou procurála em sua casa ou em outro lugar Expede então um mandado de notificação para os dois médicos que são acusados de homicídio culposo A Consultoria Técnica da Procuradoria demonstra claramente o fino déficit cognitivo que sobreveio à mulher após a leucotomia a que ela realmente se submetera acrescentando porém que tal déficit não era percebível em uma normal entrevista clínica Admite o erro profissional mas segundo o perito da Procuradoria a gravidade não era de tal forma a configurar o crime de culpa profissional A instrução se arrasta por mais de um ano e o procedimento contra os dois médicos certamente seria arquivado não fosse a intervenção de uma tão providencial quanto dirigida carta anônima Nessa carta afirmavase que os enfermeiros que falaram com a mãe homicida antes que fosse atendida pelos dois psiquiatras teriam ouvido de sua própria boca a intenção de matar o filho Chegouse assim ao envio a juízo pressupondose que o fato de a mulher ter expressado aos enfermeiros sua intenção de eliminar o filho significava que ela o dissera também para os médicos Consequentemente pressupunha se que o fato de ter declarado tal intenção constituía sintoma grave de O Crime Louco 214 uma doença perigosa qualquer que a internação no manicômio teria impedido o trágico evento posterior e finalmente que a verbalização de uma intenção infanticida deveria ser enquadrada como um aspecto clínico de competência médica não avaliável isoladamente sendo por isso de competência médica a intencionalidade do crime O julgamento em primeiro grau se desenvolveu em 1980 Desde os primeiros enfrentamentos de caráter procedimental a batalha se fazia dura O Tribunal excluíra a participação da mulher homicida enquanto totalmente incapaz de entender e querer sendo ela absolvida ao final da instrução por enfermidade mental nos termos do art 88 CP A senhora Maria Letizia Michelazzi in Trani fez uma rápida aparição na sala de audiências cercada por uma densa nuvem de policiais vinda do HPJ de Castiglione sendo após reconduzida ao lugar de onde viera O MP apostava em seu testemunho contra os acusados os médicos com o objetivo de descrever a suposta suficiência superficialidade e a seu ver a indiferença em uma palavra o escasso profissionalismo com que ela fora tratada durante a entrevista dois anos antes com os dois médicos Comentavase por baixo do pano que a Procuradoria prometera à mulher que se sustentasse a tese da superficialidade dos médicos sairia do HPJ ou pelo menos a mulher se iludira de que isso aconteceria Assim agindo o MP se preparava para enfrentar a contradição de fazer testemunhar uma acusada ainda que absolvida por total doença mental contra outros acusados Para avalizar essa escolha tática o MP acenava com as sentenças que naquela época serviam para legitimar os testemunhos dos pentiti em relação a outros acusados por crimes de terrorismo A Corte no entanto rejeitou o requerimento Afinal o Tribunal de 1º grau absolveu os dois acusados com fórmula plena por não terem cometido o fato Essa absolvição dentre outras que aconteceriam naqueles anos com análogo significado foi saudada como expressão da influência da nova Lei 180 de 13 de maio de 1978 sobre o Judiciário O julgamento da apelação se desenvolveu em 1982 concluindo O Crime Louco 215 com a confirmação da absolvição também com fórmula plena até porque a fórmula da dúvida fora abolida no transcurso daqueles anos A Procuradoria Geral interpôs recurso para a Cassação Em 1986 a Cassação confirmou a sentença proferida na apelação Um dos advogados da Defesa descreveu a audiência como efervescente não obstante a delicadeza da matéria O Crime Louco 216 2 A perícia Como antes mencionado a Consultoria Técnica da Procuradoria demonstrou claramente o fino déficit cognitivo que sobreveio à mulher em seguida à leucotomia tendo sido posteriormente esclarecido na CTU que ela efetivamente a sofrera ressaltando porém que esse déficit não era percebível em uma normal entrevista clínica Também já mencionado que a gravidade do presumido erro profissional dos médicos acusados não era de tal monta que pudesse configurar o crime de culpa profissional A CT da Procuradoria foi aceita pelo Juiz Instrutor que assim se viu malgrado sua vontade como restou evidente privado de elementos para determinar o envio a juízo dos dois médicos acusados A CT inicialmente da Procuradoria da República e depois do juiz de mérito chegou mesmo a sustentar que acontecera um erro diagnóstico por parte dos psiquiatras acusados que a seu ver teriam confundido uma neurose obsessiva com uma psicose pseudoneurótica sempre de caráter obsessivo Assim a CT esquecia a diferença entre juízo diagnóstico ex ante antes da prática do delito e juízo diagnóstico ex post após a prática do filicídio A visão e o dito juízo posterior são decisivamente diversos da visão e do juízo anteriores à prática de um delito A CT além disso dava como certo nesse nível o fato de que em se tratando de pessoa portadora de psicopatologia o delito estaria a pressupor tout court um diagnóstico de psicose enquanto um diagnóstico de neurose poderia inclusive não conduzir à incapacidade total de entender e querer Em outras palavras a CT dava como certo o fato de o diagnóstico de psicose pressupor um juízo de periculosidade reservando às neuroses uma margem maior de liberdade e portanto de responsabilidade Evidentemente tal não poderia ser o caso de Maria Letizia M in T pela simples razão dela ter matado Nada disse a CT sobre o tema da leucotomia Não questionou em absoluto se o fato de ter ignorado a presença de uma leucotomia O Crime Louco 217 poderia agravar a responsabilidade dos médicos psiquiatras dado que lesão tão grave do lobo frontal verossimilmente teria reduzido juntamente com a ansiedade sintomática e a estruturação defensiva obsessiva a própria autoinibição e o autocontrole Essa foi a realística tese após o delito de Hrayr Terzian catedrático de neurologia na Universidade de Verona reitor da mesma Universidade amigo íntimo e médico pessoal de Franco Basaglia Ainda mais estranhamente a CT tampouco se manifestou sobre eventual responsabilidade do cirurgião suíço que de algum modo poderia inclusive representar um antecedente causal da desinibição e assim da passagem ao ato por parte de Maria Letizia Michelazzi A Procuradoria da República tampouco ousou indagar sobre os efeitos devastadores da leucotomia dando por demonstrado que se tivesse tratado de uma intervenção terapêutica O Crime Louco 218 3 As sentenças 31 Sentença do Tribunal de Trieste no 84180 de 19 de novembro de 1980 República Italiana Em nome do Povo Italiano o Tribunal Civil e Penal de Trieste Seção Penal composto pelos magistrados Dr AB presidente Dr SL juiz Dr EN juiz pronunciou a seguinte sentença na causa penal contra Vincenzo Pastore solto presente e Lorenzo Toresini solto presente acusados a do delito de cooperação em homicídio culposo arts 113 589 com as modificações do art 1º da Lei no 296 de 11566 parágrafos 1º e 3º CP por ter o primeiro na qualidade de médicochefe do Hospital Psiquiátrico de Trieste de plantão naquela manhã e o segundo na qualidade de médico da enfermaria de acolhimento de mulheres do mesmo nosocômio deixado por imprudência e negligência de internar de providenciar algum tipo de apoio psiquiátrico e até mesmo de registrar o único contato ambulatorial em relação a Maria Letizia Michelazzi que na manhã de 26 de junho de 1977 apresentarase a eles referindo em entrevista com cerca de quarenta minutos de duração ter sido anteriormente internada por diversas vezes em clínicas e hospitais psiquiátricos ter sofrido uma operação de psicocirurgia no crânio lobotomia ter tentado o suicídio uma vez ter um filho pequeno em relação ao qual sentia impulsos agressivos e o preciso desejomedo de matálo acrescentando que se voltasse para casa faria alguma loucura e isso embora a mesma insistisse mais de uma vez e decisivamente pedindo para ser internada e afirmando não se sentir bem estar perturbada não poder mais tendo eles se limitado a sugerir sem nem mesmo O Crime Louco 219 registrar a entrevista e os dados da mulher que ela se dirigisse ao Centro de Higiene Mental de Muggia sem procurar reencontrála depois que desiludida pela recusa de internação e pela falta de assistência afastarse com uma desculpa de tal modo que Maria Letizia Michelazzi abandonada e entregue a si mesma causou a morte do filho Fabio de quatro anos afogandoo na banheira b do delito de concurso em recusa de atos de ofício arts 110 e 328 CP por terem na qualidade de encarregados de um serviço público como respectivamente diretor de plantão e assistente da enfermaria de acolhimento de mulheres do Hospital Psiquiátrico de Trieste indevidamente porque a tanto obrigados pelos sintomas apresentados pela paciente e por quanto por ela mesma referido e em desacordo com as disposições estabelecidas no art 14 DPR no 128 de 2731969 sobre o regulamento interno dos serviços hospitalares que impõe ao médico de plantão motivar por escrito a recusa de internação se negado em concurso de vontades e ações a internar Maria Letizia Michelazzi que a eles se apresentara pedindo repetida e decisivamente para ser internada e motivando tal pedido com suas condições psíquicas que a levavam a externar sua agressividade contra seu filho menor como de fato o fez dali a três dias matandoo Em Trieste 26 de junho de 1977 Nos termos do art 479 CPP Absolve Vincenzo Pastore e Lorenzo Toresini das acusações que lhes foram feitas porque os fatos não constituem crime Trieste 11180 O juiz relator EN O Crime Louco 220 32Sentença da Corte de Apelação de Trieste de 7 de dezembro de 1982 A Corte de Apelação de Trieste por sentença datada de 71282 reformando parcialmente a sentença do Tribunal datada de 191180 apelada pelo MP em relação a Vincenzo Pastore e Lorenzo Toresini absolve os acusados do crime referido no item a por insuficiência de provas Nos termos do art 1º e ss DPR no 744 de 181281 declara a extinção do processo em relação ao crime referido no item b por estar extinto por superveniente anistia 33Sentença da Cassação IV seção Penal 11 de outubro de 1996 no 9542 Em 91282 o acusado Lorenzo Toresini interpôs recurso perante a Cassação Em 91292 o defensor do acusado Vincenzo Pastore interpôs recurso perante a Cassação Em 101282 a parte civil interpôs recurso perante a Cassação A Corte Suprema de Cassação por sentença datada de 11296 em recursos interpostos pelo MP L Trani PC Vincenzo Pastore e Lorenzo Toresini declara inadmissível o recurso da parte civil Rejeita os recursos dos acusados e condena os recorrentes solidariamente ao pagamento das despesas processuais e da taxa de sentença Condenaos ainda ao pagamento da quantia de 300000 liras para cada um a serem recolhidos à Caixa das Multas Em 11286 O Escrivão O Crime Louco 221 4 Considerações sobre o segundo caso de Trieste Pier Aldo Rovatti em ensaio sobre o caso Una scena vuota47 escreveria O poder médico não se alforriou do poder judiciário mas se destacou dele e por isso foi atacado com violência O mecanismo cuja genealogia Foucault nos mostrou demonstra aqui não funcionar mais ou não funcionar de todo Há um obstáculo provocado pelo surgimento de outras práticas e um saber médico diverso A microfísica do poder revela uma pequena alteração Em outras palavras o mandante do controle social não era capaz de verificar e punir a traição de seu próprio mandato 41O nexo de causalidade A eterna questão da psiquiatria é a da periculosidade e da responsabilidade do psiquiatra em relação a comportamentos perigosos Se determinadas pessoas na sociedade sofrem de Desrazão definitivamente outras pessoas delegadas pela sociedade da Razão são obrigadas a gerir a ter a seu cargo a normalizar a silenciar se necessário até à força os sujeitos portadores de Desrazão A grande conquista do Século das Luzes confortada pelas certezas do Positivismo científico foi que tais sujeitos não respondem por seus comportamentos e portanto por seus crimes O senso comum é o de que tais sujeitos não são detentores do livre arbítrio De certa forma seus comportamentos aparecem como automáticos nos moldes do crocodilo que responde ao estímulo odor e imediata mordida na fonte do estímulo Mas se os indivíduos não estão submetidos ao controle da Razão assim não podendo responder por seus atos então por óbvio e por lei outros devem responder em seu lugar As pessoas a quem delegada a normalização das linguagens e dos 46 Nota à edição brasileira CSM é a sigla de Centro di Salute Mentale isto é Centro de Saúde Mental Os Centros de Saúde Mental correspondem aos CAPs da reforma psiquiátrica brasileira Os CSM de Trieste correspondem mais especialmente aos CAPs III O Crime Louco 222 comportamentos perigosos estão portanto obrigadas a responder pelos comportamentos dos terceiros que não conseguiram prever e assim não conseguiram prevenir e impedir O resgate da Psiquiatria Institucional está todo aqui Um artigo do código penal abolido pela Lei 180 de 1978 punia quem se fizesse responsável direta ou indiretamente pela evasão de quem estivesse internado no manicômio O sistema psiquiátrico se fundava nessa concatenização de eventos Quem quer que demonstrasse sintomas psiquiátricos deveria ser internado por indicação obrigatória de qualquer médico que tivesse conhecimento dos ditos sintomas Qualquer omissão nesse sentido automaticamente levava à declaração de responsabilidade do próprio médico Em outras palavras o psiquiatra era culpável pelos atos praticados por quem não sabia o que fazia As sentenças concernentes ao caso Maria Letizia Michelazzi põem fortemente em discussão esse posicionamento quase arquetípico das relações entre Psiquiatria e Justiça Não é mais automático que se alguém delinque e não é capaz de entender e querer o médico que tivera mesmo que só um contato com ele responda pelo fato de não ter impedido o resultado A ligação imediata entre a nãoresponsabilidade do terceiro que cometeu um crime em condições de total enfermidade mental sendo assim absolvido e a responsabilidade do médico que tratava tal pessoa ou que estivera em contato com ela ainda que apenas em um encontro fugaz por óbvio e por direito rompese A lei chancela que a doença mental não é mais aquele evento devastador a ocupar todo o espaço da pessoa e impedir seu portador de exercer o autocontrole a partir da prevalência da razão sobre os instintos A doença mental pelo menos aquela maior não é por definição causa automática e imediata de incapacidade de manter a titularidade do próprio livre arbítrio O nexo de causalidade entre a falta de responsabilidade por parte do doente e a responsabilidade imediata e evidente do médico já não existe O que as sentenças absolutórias nos processos sobre o caso de Maria Letizia Michelazzi põem em discussão é na realidade O Crime Louco 223 exatamente a existência de uma incapacidade total de entender e querer O art 88 CP no fundo vacila ainda que obviamente não tenha sido abolido tout court na medida em que isso pressuporia uma revisão bem mais profunda do Código Penal Todavia pensando bem todo o sistema da Justiça Penal evidentemente baseado no princípio da responsabilidade fundando se no pressuposto de existência do Livre Arbítrio baseiase também e acima de tudo na existência da exceção a tal princípio É a incapacidade de entender e querer que na realidade confirma e reforça a regra exatamente a regra da capacidade Se eventualmente alguém embora a toda evidência muito raramente pode ser tido somente mediante perícia psiquiátrica oficial como totalmente doente mental isso significa então que em todos os outros casos essa mesma capacidade de entender e querer evidentemente se mostra íntegra A condenação e a punição resultam reforçadas e legitimadas Sem dúvida essa visão exposta assim tão sucintamente no osso surge redutiva e maniqueísta bastando pensar na infinita variedade das percepções dos conhecimentos dos sentimentos humanos e na normal ambivalência das vivências subjetivas das pessoas As sentenças do caso Trani na realidade chancelam o fato de que essa visão físicomatemática newtoniana e simplista do livre arbítrio ligada à concepção brutalmente organicista biológica e racionalista da loucura finalmente estaria superada Mas desse modo haveria de ser confirmada a visão que pusera fim à própria existência dos manicômios daqueles cárceres não cárceres que se disfarçavam em hospitais mas que fundavam seu próprio princípio inspirador exatamente sobre uma concepção de doença mental reducionista e grosseira A que postulava exatamente a existência de uma total incapacidade de decidir livremente e de responder ainda que apenas potencialmente pelos próprios atos Com efeito quem não praticara crimes evidentemente não poderia ser encaminhado a procedimentos de caráter judiciário O problema portanto não se colocava ex post mas sim ex ante O tema era o da precognição O Crime Louco 224 do gesto impensado que o sujeito poderia praticar sendo o fim portanto o da previsão e como ultima ratio o da prevenção Como não impedir um resultado que se tem o dever jurídico de impedir equivale a causálo art 40 2º CP a responsabilidade do médico era concebida de maneira mecânica Na realidade se é verdade que esse posicionamento parece seguramente legítimo em relação a quem possui sociedades ou empresas de tipo industrial ou artesanal como depósitos de explosivos refinarias de gasolina ou depósitos de gás onde o elemento inflamável e explosivo não é dotado de capacidades subjetivas Cassação Penal seção IV 9 outubro 2002 no 39680 é igualmente evidente que estender essa concepção aos seres humanos significa negarlhes qualquer subjetividade e portanto infirmar desde o início qualquer possibilidade de intervenção terapêutica Das sentenças do caso Trani48 deriva como corolário imediato uma radical reviravolta da concepção até aqui descrita Concepção no fundo diretamente derivada do pensamento de Lombroso vale dizer de um posicionamento naturalístico e racista da diversidade humana baseado em uma interpretação arbitrária do Darwinismo aplicado ao Homem Tal doutrina prénazista trará como implicação lógica e imediata o projeto T4 de eliminação das vidas não dignas de serem vividas do III Reich48 Subsiste o fato de que quem cometeu um crime sem poder ser julgado responsável porque declarado incapaz por perícia psiquiátrica perante a Justiça em vez de condenação à detenção ser submetido à 47 Lorenzo Toresini La Testa Tagliata Edições Alfa Beta Merano 48 Nota à edição brasileira Aktion T4 foi o nome dado após a primeira guerra mundial ao programa nazista de eutanásia que sob responsabilidade médica previa a eliminação de pessoas portadoras de doenças genéticas incuráveis ou de deformações físicas mais ou menos graves Os médicos encarregados de levar adiante a operação decidiram matar 20 dos presentes nos institutos de tratamento em um total de 70000 pessoas O extermínio de pessoas com deficiências prosseguiu mesmo após o encerramento oficial da operação elevando o total de vítimas a um número estimado em cerca de 200000 O Crime Louco 225 medida de segurança nos termos do art 222 CP o que representa uma condenação de fato ainda pior do que a primeira permanecendo o HPJ fora dos controles e garantias da Constituição a No cárcere por exemplo é vedada qualquer intervenção sobre o corpo do detento sob pena de se cometer um crime Em uma Casa de Custódia não se pode por exemplo amarrar um detento No HPJ exatamente por se tratar de um hospital isso acontece normalmente Não está claro se isso é permitido mas de fato no HPJ acontece b Em regime de detenção sabese quando se entra e também quando se sai No fundo a condenação representa um pacto que deve ser respeitado por ambas as partes o condenado e o Estado No HPJ sabese quando se entra mas não se sabe quando se sai Depende do juízo de periculosidade Mas nós sabemos o quanto este último é elástico No fim depende apenas da existência ou não de um Serviço Territorial que dele se encarregue c O preso pode se candidatar e ser eleito Um sujeito submetido à medida de segurança em um HPJ nos termos do art 222 CP não pode se candidatar e muito menos ser eleito O HPJ afinal é substancialmente uma medida absurda e incoerente na medida em que não pune mas tampouco trata O Crime Louco 226 VI As questões Ernesto Venturini 1 A perícia psiquiátrica Diante de um crime cometido por uma pessoa suspeita de loucura o magistrado determina a perícia psiquiátrica para apurar se esta pessoa além de ter cometido o crime compreendera o significado de seu gesto e quisera realizálo O quesito pericial visa substancialmente saber se o ilícito foi ou não sintomático em relação ao distúrbio psiquiátrico mas a perícia pode se constituir também em fonte de prova no processo determinando efeitos penais O diagnóstico psiquiátrico se conecta ao raciocínio médico enquanto o quesito pericial é inerente à lógica jurídica A perícia consequentemente é um híbrido porque se constitui em dois cenários diversos movendose entre duas óticas que buscam fins desiguais e utilizam diferentes métodos o direito e a ciência médica Enquanto o fim da medicina se volta para a saúde da pessoa o da justiça se volta para a segurança e a defesa da ordem social existente A diversidade de perspectivas tornase especialmente evidente na relação entre os sujeitos envolvidos No âmbito da relação terapêutica médico paciente o médico tenta buscar a confiança do paciente impondo se o caráter confidencial Na perícia ao contrário o perito tem o juiz como referência sua função avaliadora não necessariamente se propõe ao bem estar do réupaciente Como o perito psiquiatra não pode se eximir de seus deveres deontológicos eventualmente poderá se achar diante de situações conflitantes O perito se descobre espremido entre duas óticas em uma situação dialeticamente delicada em um equilíbrio ambíguo e incerto onde às vezes um ponto de vista parece prevalecer outras vezes o ponto de vista diverso Na realidade ao perito psiquiatra exigese que se dispa de sua identidade de médico para aderir a um sistema de valores centrado em um juízo moral que prevê a possibilidade da privação O Crime Louco 227 da liberdade Por tais razões o cenário da perícia psiquiátrica é para o psiquiatra cheio de expressões ambíguas e rituais Exemplo claro disso são as incertezas e os equívocos quando o perito usa no juízo psiquiátricoforense a expressão enfermidade mental que não é relacionável a um verdadeiro conceito médico de doença ou distúrbio psíquico Penso todavia que não se pode supor uma efetiva assepsia do perito inexistindo uma neutralidade nesse âmbito Penso ao contrário que o perito psiquiatra deva sempre declarar seu campo de escolha e estar consciente de que deve se motivar somente por valores éticos Uma segunda consideração diz respeito à anacrônica formulação dos quesitos periciais que remonta aos anos 30 utilizando parâmetros científicos distanciados dos conhecimentos atuais e mais ainda distanciados das mudanças do paradigma científico que foram se determinando com a reforma psiquiátrica e o fechamento dos hospitais psiquiátricos O magistrado faz referência a dois parâmetros capacidade de entender e querer periculosidade social que nos reportam ao positivismo do século XIX tornando evidente a distância que se criou de um ponto de vista histórico entre a atual saúde mental comunitária e a psiquiatria forense A afirmada capacidade de entender e querer de fato representa um conceito obsoleto especialmente no que diz respeito à capacidade de querer Tratase de conceito sem possibilidade de verificação com os atuais conhecimentos neuropsicológicos A expressão com que o Código indica os aspectos psíquicos ou psicopatológicos não tem de fato valor científico representando tão somente um modo de falar convencional A capacidade de entender segundo o Código significa estar consciente do valor e do significado das próprias ações e poder avaliar suas consequências a capacidade de querer significa a capacidade de autodeterminação em relação às próprias pulsões controlandoas Mas nem todas as doenças psíquicas comportam tal incapacidade ou tampouco sua redução Os quesitos expressados pela linguagem do direito penal não são portanto apenas reducionistas em relação às conquistas da moderna psiquiatria e psicologia sendo O Crime Louco 228 também desviantes e inadequados Com efeito são deixadas à discrição dos magistrados e em alguns casos rigidamente tidas como inadmissíveis nas investigações tanto a complexidade das dinâmicas psicológicas como a avaliação global da personalidade do sujeito tão preciosas para se entender o comportamento da pessoa A estereotipada formulação tradicional dos quesitos psiquiátricos deveria ser modificada toda enunciação devendo ter em conta tanto o contexto de vida como a história social da pessoa de modo a compreender como tudo isso influiu em seu comportamento Finalmente a problemática da reiteração do crime deveria estar sempre focada muito mais no presente do que no passado Muitas vezes as perícias psiquiátricas apresentam uma fisionomia técnicocientífica anacrônica a linguagem é estereotipada o desenvolvimento e o tipo de indagações são comprimidos em uma visão da psicopatologia predominantemente biológica e tradicional a argumentação se concentra em um raciocínio centrado no juízo consumado Para compensar o esquema convencional e previsível concedemse longas citações reveladoras da situação crítica de uma ciência que como a psiquiátricoforense raramente consegue se ancorar em sólidas certezas científicas Na realidade deverseia admitir que o problema da indeterminação atinge toda a psiquiatria Com efeito bastaria considerar que a hipótese multifatorial da doença mental adotada em nossos dias demonstra exatamente a subsistência de uma não resolvida crise epistemológica da disciplina e a tentativa de chegar a um compromisso diante de sua incapacidade de se reconhecer em um paradigma definível cientificamente50 Frequentemente vemos pareceres dos diversos peritos os do MP do GIP ou da defesa a expressar conclusões diametralmente opostas suscitando uma compreensível desorientação Pode de fato acontecer a transferência do confronto processual entre acusação e defesa para o nível das teorias psiquiátricas A récita 50 Vejase Di Paola F Listituzione del male mentale Critica ai fondamenti scientifici della psichiatria biologica Le Esche Manifesto libri Roma 2000 O Crime Louco 229 que os peritos vez por outra desenvolvem ora em um bloco ora em outro leva o conflito a se configurar como uma espécie de luta entre paradigmas e sistemas científicos diversos uma luta que no entanto tem o sabor de um jogo de partes Mas a situação também se ressente da falta de homogeneidade dos papéis profissionais dos peritos que pertencem a ramos afins mas não similares a psiquiatria a psicologia a criminologia a medicina legal O juízo psiquiátricoforense resulta vez por outra condicionado pelos diferentes posicionamentos disciplinares dos peritos que examinam o evento a partir de óticas diversas A riqueza dos diferentes enfoques pode se constituir em uma vantagem para se chegar a uma avaliação equilibrada mas também pode se constituir em um sério problema quando se confrontam análises e perspectivas situadas em níveis e linguagens demasiadamente diversos É preciso ter em conta ainda outro fator desestabilizador como toda situação complexa a cena da perícia se ressente dos efeitos de envolvimentos emocionais e relacionais dos indivíduos malgrado a tentativa de fazêla parecer imparcial e asséptica Alguns autores51 descrevem as reações emocionais dos peritos no curso da perícia psiquiátrica relacionandoas a algumas variáveis o tipo de relação do perito com os representantes da justiça os advogados os outros peritos e os meios de comunicação a formação profissional do perito e sua influência na metodologia pericial os preconceitos em tema de comportamento violento e doença mental as características pessoais e a tipologia psiquiátrica do perito as reações de contratransferência e os mecanismos psicológicos de defesa em relação ao periciando Particularmente complexa é a relação entre perito e magistrado que se experiente e atento pode ter feito o diagnóstico dos peritos e têlos escolhido por sua sintonia com o objetivo que ainda que inconscientemente gostaria de ver demonstrado O mesmo juiz através de mensagens subliminares e não totalmente conscientes pode sugerir quais são suas próprias convicções em relação ao caso 51 Nivoli G Le reazioni emotive del perito nel corso della perizia psichiatrica Nóoç 32001 181194 O Crime Louco 230 em exame e o perito de sua parte pode aderir de maneira nem sempre consciente a tais convicções Esse comportamento pode se verificar quando o perito na fase instrutória mais do que ser aquele que traz para o caso clínico e forense ulteriores conhecimentos especializados tornase de modo deontologicamente incorreto braço armado da acusação Por outro lado o juiz embora reivindicando justamente seu papel de peritus peritorum jamais deveria se sobrepor ao perito ou se intrometer na matéria pericial sem dúvida é seu direito não levar em consideração um parecer técnico mas jamais deveria intervir ali com suas argumentações No entanto vemos sentenças em que o juiz apelando para seu bom senso claramente interfere no quanto expressado pelos psiquiatras Analogamente há perícias psiquiátricas que extravasam seu âmbito técnico para usar argumentações jurídicas Em nossos dias alguns processos têm assumido um peso midiático relevante devido a um papel doentio desenvolvido pelos mass media Na maior parte dessas situações talvez por certo protagonismo dos peritos têmse verificado inversões de análises periciais contra acusações fofocas acabando por resultar em uma confusão generalizada e um sentimento de desconfiança sobre a possibilidade de se chegar à verdade Mesmo não considerando essas situações extremas de todo modo se tem a impressão de que a leitura dos fatos feita pelos peritos psiquiatras não está ancorada em sólidas certezas parecendo ao contrário um tanto opinativa Cada nova interpretação acaba por introduzir novas verdades que se sobrepõem e conflitam entre si O apelo a tantas verdades acaba por produzir tantas meiasverdades Às vezes são os próprios quesitos postos pelo juiz que em sua formulação reduzem as possibilidades de compreensão e aprofundamento dos fatos limitando as possibilidades de análise Outras vezes é a própria negação da imputabilidade do louco autor de crime que acaba por reduzir e viciar a busca da verdade Eventualmente seria mesmo de se pensar que a verdadeira finalidade do processo e a utilização da perícia não estariam voltadas O Crime Louco 231 para a busca da verdade dos fatos mas muito mais para a busca do culpado Com efeito não devemos esquecer que o processo se põe em movimento não somente por razões de justiça mas também pela necessidade de dar uma resposta às legítimas pretensões das vítimas e de seus familiares a individualização do culpado permite resolver os nós econômicos do ressarcimento no mais das vezes conexos a condições securitárias Em essência mais uma vez podemos medir a distância que transcorre entre a medicina e o direito o perito ajuda o juiz a buscar o culpado o médico ao contrário ajuda os colegas a buscar o erro para poder corrigilo Cabe perguntar qual a origem de todas essas incertezas esses equívocos essas ambiguidades de fundo por que é tão difícil operar modernizações no campo da psiquiatria forense e sobretudo por que dificilmente são recepcionados nesse âmbito os conteúdos da reforma psiquiátrica de 1978 Para responder a essa pergunta vale a pena recorrer mais uma vez às reflexões de Michel Foucault que em algumas de suas lições no Collège de France em 1975 trata difusamente do tema da perícia médicolegal Foucault ressalta o quanto a perícia psiquiátrica representa uma espécie de paradoxo nascida para demarcar uma clara linha divisória entre a responsabilidade jurídica do sujeito normal e a irresponsabilidade do sujeito anormal de fato se constituiu em ponte de ligação entre dois mundos estruturalmente diversos o médico e o judiciário Foucault chama esse processo de domínio da perversidade à perversão do criminoso os psiquiatras forenses ligam a perversão do louco fazendoo através do uso de uma linguagem pueril O louco criminoso é frequentemente descrito como imaturo com um ego fraco com um ausente desenvolvimento do superego As razões desse dialeto são múltiplas Antes de tudo porque através de uma linguagem débil do ponto de vista da estrutura lógica é possível permutar mais facilmente noções entre categorias tão profundamente antitéticas como a judiciária e a médica sem que uma prevaleça sobre a outra Em segundo lugar O Crime Louco 232 a linguagem da perícia é infantil também por causa de sua intenção moralizadora com efeito evoca o discurso do perigo do medo e da necessidade de proteção habitualmente usado pelos pais quando se dirigem aos filhos O discurso psiquiátrico forense em sua essência efetivamente se conforma à reação da sociedade diante do indivíduo perigoso ainda que o faça fornecendo o tranquilizador panorama de uma rede defensiva e contínua de instituições médicojudiciárias que vão do tratamento à repressão e punição Mas é exatamente essa adesão à noção de perigo que nos ajuda a esclarecer o papel insidioso desenvolvido pela perícia médicolegal Pondo em prática uma espécie de ridicularização do saber médico e psiquiátrico e contemporaneamente assumindo função crucial na junção entre o judiciário e o médico a perícia demonstra o surgimento e o funcionamento de um novo e diverso poder Foucault52 observa que a perícia médicolegal não deriva nem do direito nem da medicinaprovém de outro lugar Tem outros termos de referência outras normas outras regras de formação No fundo na perícia a justiça e a psiquiatria são adulteradas uma na outraA perícia não se dirige a delinquentes ou inocentes a doentes em oposição a nãodoentes dirigese a algo que denominarei a categoria dos anormais Em outras palavras a perícia médicolegal se desenrola realmente em um campo não de oposição do normal ao patológico mas de gradação do normal ao anormal Foucault chama isso o poder da normalização um poder que além de produzir uma prescrição corretiva produz também uma prescrição de designação um verdadeiro projeto normativo A perícia psiquiátrica em razão do laço que garante entre o mundo judiciário e o médico altera tanto o poder judiciário quanto o saber psiquiátrico instituindose como instância indispensável de controle do anormal psiquiátrico Passando de um discurso de responsabilidade ao de 52 Foucault M Gli anormali Corso al Collège de France19741975 Feltrinelli Milano 2000 O Crime Louco 233 periculosidade social coloca no lugar de um indivíduo juridicamente responsável um sujeitoobjeto o anormal psiquiátrico a ser referido a técnicas de normalização É uma passagem crucial que legitima a existência de um aparato totalizante de repressão encarnado na monstruosidade do manicômio judiciário Diante da problemática e da complexidade do crime de um louco o perito como pessoa qualificada no interior de instituições científicas deveria permitir a tomada de decisões judiciárias claras e iniludíveis Com efeito são exatamente a credibilidade do experto e a enunciação de discursos com o status de verdade científica os pilares sobre os quais o juiz procura fundar as argumentações de sua decisão O paradoxo porém consiste no fato de que os enunciados do experto na maioria das vezes são desligados tanto dos métodos de um discurso científico quanto das normas do direito A razão desse paradoxo reside no objetivo da perícia oculto não declarado não o de tratar nem o de punir mas sim o de convalidar sob a forma de conhecimento científico a possibilidade de estender o poder sancionatório a realidades diversas das infrações jurídicas Isso acontece devido ao deslocamento do ponto de aplicação da sanção da violação como é definida por lei à criminalidade como examinada pela ótica psicológica Esse processo se põe em prática através do que Franco e Franca Basaglia tornaram evidente em La malattia e il suo doppio53 a racionalização de um problema que representa uma ameaça através de sua delimitação nos confins de uma ideologia que o mantém sob controle É exatamente uma espécie de desdobramento o que se põe em prática com a perícia psiquiátrica um desdobramento que opera em três diferentes níveis Em primeiro lugar a perícia subtrai legalidade ao crime como formulado no Código mostrando por trás dele seu duplo uma série de condutas incorretas e inconvenientes em relação 53 Basaglia F Basaglia Ongaro F La malattia e il suo doppio in La rivista di servizio sociale 4 1970 O Crime Louco 234 aos parâmetros e às regras psicológicas e morais um verdadeiro espaço existencial onde o crime tem origem Em segundo lugar o responsável pelo crime é desdobrado na figura do delinquente de sujeito jurídico é reduzido a objeto de um saber de emenda e controle no limite de um tratamento de reparação e readaptação Mostra como diz Foucault como o indivíduo se assemelha ao próprio crime antes mesmo de têlo cometido mostra como o sujeito está presente sob a forma de desejo do crime em pequenos particulares detalhes irrelevantes atipicidades colocadas em evidência na anamnese Tratase de indícios invisíveis aos olhos comuns mas não aos olhos atentos do experto que através dessa sua visão delineia a fisionomia lombrosiana do delinquente irremediavelmente aprisionado em seu trágico destino Diz agudamente Foucault O simples uso repetitivo do advérbio já é em si mesmo uma maneira de sobrepor de modo simplesmente analógico a série de ilegalidades infraliminares e incorreções não ilegais acumulandoas para fazêlas se assemelhar ao próprio crime Finalmente o terceiro duplo é na realidade o desdobramento e a inversão de papéis entre o psiquiatra e o juiz O primeiro mediante a certeza do diagnóstico extraído das infrações e dos comportamentos pregressos modifica o status de acusado do sujeito em status de condenado de fato emitindo o veredito O juiz de outro lado com sua decisão não mais infligirá uma pena prescrevendo sim uma forma de tratamento uma readaptação quase que assumindo o encargo de sua cura Essas considerações tornam evidente o papel crucial desenvolvido pela psiquiatria forense no processo de normalização dos loucos ou dos anormais como diria Foucault responsáveis por crimes evidenciando ainda como esse status original da perícia psiquiatria continua a conflitar com as instâncias de tratamento e de direito Em seu ensaio sobre John Conolly o psiquiatra inglês que na segunda metade do século XIX quando ainda não existiam os psicofármacos teorizava e sobretudo praticava um tratamento terapêutico O Crime Louco 235 absolutamente privado de qualquer meio de contenção Agostino Pirella54 pondera que a psiquiatria sempre teve uma liberdade ideológica desenfreada no interior de equilíbrios institucionais e acadêmicos mas com uma precisa e vinculante função de sequestro E que se trate disto demonstrao a função da perícia psiquiátrica diante de crimes que perturbam que desconcertam que aparentemente saem da lógica da sociedade burguesa certamente se alguém mata por dinheiro é compreensível se o marido mata a mulher por ciúme também mas se mata porque está sendo perseguido não mais se compreende É por essa razão que se torna necessária a entrada em cena de um experto o perito deve traduzir a culpa em doença e isolála em uma zona controlável Quando teremos então as razões dos loucos Quando teremos a atenção a seu saber experiente Quando teremos uma leitura das histórias capaz de tornar claras as razões da loucura as responsabilidades difusas do corpo social Quando loucos e sãos assumirão suas responsabilidades 54 Pirella A in Introduzione a Conolly J Trattamento del malato di mente Einaudi Torino 1976 O Crime Louco 236 2 A violência em psiquiatria e a noção de periculosidade social O concurso culposo em homicídio doloso implicitamente se funda na periculosidade do paciente psiquiátrico Esse juízo se sustenta nas argumentações científicas dos peritos Na realidade os peritos não entram facilmente no mérito de problemáticas genéricas concernentes à periculosidade dos pacientes psiquiátricos limitando se a afirmar que determinadas patologias apresentam um risco alto de periculosidade No caso específico de MG há referência ao diagnóstico de esquizofrenia paranoide crônica como o tipo de diagnóstico que conforme sufragado por determinada literatura científica apresentaria tal risco A agressividade nesse caso seria elemento fundante da doença Nesse caso o comportamento perigoso somente poderia ser contido com remédios jamais podendo ser totalmente eliminado Na verdade a presunção de periculosidade de MG é deduzida nas perícias também de sua história clínica e suas internações Todavia a análise é invertida ideologicamente invertida o comportamento de MG em determinados momentos de sua vida sua carreira moral55 não confirma exatamente uma história de violência praticada mas antes de tudo sofrida tanto quanto a demonstração da violência da doença que o possui a esquizofrenia Os dados psicopatológicos assumem uma pregnância relevante a tal ponto que fazem considerar o doente como um sujeito extremamente perigoso independentemente do que fez ou eventualmente poderá fazer ele é julgado perigoso enquanto doente Em sua perícia o consultor técnico do juízo AR introduz a consideração de que o longo período de bemestar de MG não seria sequer atribuível ao efeito do remédio embora o remédio pudesse têlo favorecido constituindo tal período na realidade apenas uma fase fisiológica 55 Nota à edição brasileira Sobre o conceito de carreira moral do doente mental vejase a análise de Erving Goffman in Asylums Anchor Books New York 1961 O Crime Louco 237 de falsa remissão da sintomatologia Por isso é dever do experto desmascarar a perversa astúcia de uma doença que engana os colegas mais ingênuos e que mais cedo ou mais tarde tornase fonte de graves incidentes Há no pensamento do perito que na verdade espelha o de boa parte de todos nós psiquiatras uma espécie de determinismo esse tipo de doença é substancialmente irrecuperável somente se pode tentar reduzir seus danos conter o mal em uma camisa de força farmacológica sendo necessário ter sempre alta a guarda contra a esperteza maligna da doença Sob esse ponto de vista o evento pode constituir um acontecimento exemplar merecendo ser enfatizado porque assume o valor de uma útil lição O tema da periculosidade social merece uma breve reflexão não somente em relação a seus aspectos práticos mas também à sua própria formulação teórica Com efeito a periculosidade social não corresponde a nenhum dos critérios que constroem o diagnóstico psiquiátrico sobre os quais se funda o método científico Não se reveste de qualquer valor terapêutico cumprindo ao contrário função de pura defesa social Não tem a ver com o paciente com sua proteção tem sim a ver com a coletividade e com a maneira pela qual esta percebe o tema de sua segurança O juízo de periculosidade se funda muito mais em um critério de probabilidade do que no de possibilidade expressa do ponto de vista estatístico uma perspectiva de recaída no evento negativo superior a 50 Esse critério que talvez seja válido em alguns âmbitos médicos resulta totalmente aleatório para não dizer arbitrário no campo psíquico exatamente pela complexidade das ciências humanas e porque o comportamento humano nesse setor não pode ser facilmente reduzido a algoritmos estatísticos Além disso tudo o que os poucos dados científicos nos permitem afirmar indica que a previsão de atos violentos está de todo modo limitada a um período de tempo extremamente limitado Esse dado torna totalmente sem valor o que o juiz pede na formulação de seu quesito pois as medidas que devem ser O Crime Louco 238 postas em prática serão válidas somente em um lapso de tempo muito amplo Em essência a previsão de atos violentos do ponto de vista da psicopatologia é duvidosa talvez limitada a poucas situações que de todo modo mereceriam uma forte revisão crítica Da leitura das perícias frequentemente se deduz que a previsão se funda na gravidade da doença na sua evolução na personalidade do culpado na natureza do crime Em todos os critérios de insuficiente validade científica no que se refere à formulação de uma previsão de periculosidade Frequentemente os peritos fazem referência aos antecedentes penais do acusado usando valorações e advertências que não se distanciam do senso comum e parecem não justificar substancialmente o requerimento de um parecer científico Acontece então talvez exatamente para compensar a obviedade das afirmações que muitos peritos incluem nos extensos relatórios periciais amplas citações extraídas dos manuais psiquiátricos quase como se a quantidade pudesse se tornar substância Mais do que o diagnóstico psiquiátrico se demonstraram previsíveis de violência fatores ligados à concretude das situações nas quais esta prende corpo sobretudo aqueles ligados à história pregressa da pessoa As mais diversas análises56 demonstram que as doenças mentais graves por si sós não permitem prever violência futura Esta é ao contrário associada a outros fatores históricos violências sofridas no passado encarceramento juvenil abusos físicos lembranças de prisões familiares clínicos abusos de substâncias ameaças percebidas características pessoais idade sexo renda e aos fatores contextuais divórcio recente desemprego vitimização O fato de a maior parte desses fatores se fazer presente em sujeitos portadores de doenças mentais graves mais frequentemente do que em outros sujeitos não invalida o dado ao contrário contribui para esclarecêlo 56 Elbogen E B Johnson S C The Intricate Link Between Violence and Mental Disorder in Arch Gen Psychiatry vol 66 n2 fev 2009 O Crime Louco 239 Em essência é totalmente contestável que a periculosidade seja efeito natural de uma patologia e que somente o psiquiatra possa reconhecêla A periculosidade social é um acontecimento complexo contextual e historicamente determinado Segundo G B Traverso57 do ponto de vista conceitual a noção de periculosidade inclusive pela relatividade de sua definição não tem qualquer caráter de cientificidade o que enfatiza a problemática da avaliação Para C Debuyst58 reconduzir o problema da periculosidade pondo ao centro das preocupações a personalidade e seus traços considerados como características estáveis e imutáveis do indivíduo constitui operação reducionista Essa redução opera ofuscando as problemáticas sociais gerais e além disso ao nível das relações interpessoais impede que se compreenda o sentido que um comportamento possa ter interpretandose tal comportamento unicamente como expressão de uma carência ou uma nãoconformidade Mas o que torna claro o papel normatizador do psiquiatra no sistema judiciário é o paradoxo segundo o qual o perito não pode proceder à verificação da periculosidade social sem que antes tenha afirmado a inimputabilidade da pessoa Esse mecanismo torna evidente o intuito de afirmar contra todas as evidências da ciência e da experiência contra o próprio espírito da lei de reforma que a loucura seria irresponsabilidade e periculosidade Por outro lado é exatamente desses dois juízos a inimputabilidade e a periculosidade social ambos ambíguos e carentes de demonstração científica que deriva a medida de segurança do Hospital Psiquiátrico Judiciário deriva o destino de uma pessoa que na maior parte dos casos se verá irremediavelmente sem esperança e sem reabilitação 57 Traverso G B Verde A Pericolosità e trattamento in criminologia Note in margine alle VIII Giornate Internazionale di Criminologia Clinica Comparata Genova 2527 maio 1981 58 Debuyst C La notion de dangerosité maladie infantile de la criminologie in Criminologie 17 7 1984 O Crime Louco 240 3 O nó górdio59 do hospital psiquiátrico judiciário A promulgação da Lei 180 confluída na 83379 tornou inevitável quase implícita a superação do HPJ com a mudança total no modo de entender a doença mental devem ser relidos os conceitos de imputabilidade a incapacidade de entender e querer e o conceito de periculosidade social por doença mental Com efeito pouco depois da promulgação da lei foram postas em prática ações visando afirmar automaticamente a superação do HPJ Em 1979 foi arguida uma exceção de constitucionalidade do HPJ a Lei 180 abolindo a lei de 1904 conduzia a uma situação precedente ao código penal Rocco que em 1930 introduzira as medidas de segurança Sem a lei de 1904 a instituição a que tais medidas se referiam deveria decair Mas essa ação não teve êxito seja por uma espécie de arrependimento do legislador em relação à reforma psiquiátrica cuja radicalidade talvez não tivesse sido suficientemente ponderada seja por razões contingentes já que envolvidos nos HPJ aparatos o judiciário e o penal ligados a um ministério o da Justiça diverso do da Saúde que levara a cabo a reforma Logo se viu que um dos nós a ser desatados era exatamente a necessidade de superar a declaração de total incapacidade de entender e querer para quem cometera um crime com efeito tal declaração constituía a premissa para a absolvição mas também para a consequente medida de segurança e o sucessivo envio ao HPJ Na vertente da abolição da inimputabilidade pôsse em movimento 59 Nota à edição brasileira A expressão nó górdio tem origem em antiga lenda grega sobre Gordio rei da Frígia Seu filho dedicara a carroça do pai às divindades frígias atandoa a uma estaca com um intrincado nó de casca de corniso Um oráculo previra que quem conseguisse desatar o nó teria poder sobre toda a Ásia Em 333 AC chegando à cidade de Telmisso Alexandre Magno tentou desatar o nó Não conseguindo fazêlo cortouo pela metade com um golpe de sua espada assim acabando por atingir seu objetivo Com o tempo a expressão assumiu valor metafórico passando a indicar um problema de intrincada solução suscetível de ser resolvido somente com um corte brutal mas decisivo O Crime Louco 241 o projeto de lei do senador Vinci Grossi substancialmente retomado pelo deputado Corleone Em direção diversa se pôs em ação o grupo de estudos relacionado à Fundação Michelucci e às regiões da Toscana e da Emilia Romagna O projeto previa algumas inovações uma redefinição mais rigorosa da inimputabilidade a aplicação da medida de segurança em dois momentos por parte do juiz que proferisse a sentença absolutória e sucessivamente por parte do juiz da execução penal que controlasse a internação duas medidas de segurança uma fechada e uma aberta a superação do critério de duração mínima da medida de segurança As resistências da magistratura e dos aparatos médicoforenses inicialmente se mostraram obstinadas e fechadas a qualquer espécie de mudança Somente em situações especiais como na experiência de desinstitucionalização de Trieste permitiuse a instauração de uma prática inovadora a formulação constante por parte dos peritos de Trieste da parcial incapacidade de entender e querer do paciente que se demonstrou instrumentalmente útil para evitar o envio para o HPJ mas sobretudo se revelou a resposta mais idônea às necessidades do paciente e às exigências de justiça A credibilidade dessa posição foi confirmada pela intervenção instaurada pelos triestinos no interior do cárcere e nos serviços territoriais sua capacidade de assumir o tratamento entendido como tomar a cargo de forma abrangente do paciente grave e problemático e a solução consequente com tal idéia de tratamento das exigências de custódia por periculosidade social Simultaneamente a resistência da lei de reforma psiquiátrica desembocava em importantes resultados Logo depois da 180 difundiuse o temor de que o fechamento dos hospitais psiquiátricos instauraria uma situação de perigo social com aumento dos suicídios e dos atos de violência por parte dos pacientes psiquiátricos e com um aumento exponencial de internações nos HPJs A realidade demonstrou exatamente o contrário o número de internações nos HPJs não aumentou devido a uma forte redução nos envios O Crime Louco 242 mantendose constante somente pela admissão de detentos em medida de segurança provisória ou por enfermidade superveniente demonstrando assim a crise de uma outra instituição o cárcere superpovoado por um número de detentos superior à sua capacidade e aos recursos disponíveis sem um projeto claro e sobretudo incapaz de denunciar a crescente criminalização das necessidades sociais Provavelmente como reconhecimento dos resultados positivos da reforma psiquiátrica a sentença da Corte Constitucional no 2532003 rompeu com o automatismo entre HPJ e medida de segurança permitindo seu cumprimento em lugares alternativos e conforme programas a serem definidos caso a caso Essa sentença se colocou em linha com as medidas alternativas à detenção já instauradas para pacientes tóxicodependentes e para os presos lei Gozzini Mas foi introduzida também outra importante disposição permitindo ao Juiz da Execução Penal a possibilidade de reformular inclusive por mudanças supervenientes as anteriores medidas de segurança Em essência devese aplicar a medida de segurança não de modo automático mas apenas quando se visualiza a presença de uma periculosidade social art231 da Lei de 10101986 posterior à abrogação do art204 CP Além disso o Juiz da Execução Penal deve verificar se a periculosidade social da pessoa perdura no momento em que a medida é executada art679 do novo CPP de 198889 Finalmente foi modificada a duração mínima da permanência em HPJ o que permitiu a superação da rigidez e das inércias institucionais anteriores Assim mesmo sem uma redefinição orgânica da moldura normativa pôsse em movimento um processo de reforma que atingiu os canais de ingresso e os mecanismos de saída dos HPJs Com efeito tais sentenças desferiram um forte golpe na existência da instituição HPJ Forte mas não decisivo antes de tudo porque a possibilidade de aplicação das medidas alternativas e a redução dos tempos de internação em HPJ permaneceram discricionárias O Crime Louco 243 para os magistrados em segundo lugar especialmente porque ficaram dependentes da vontadecapacidade dos prestadores de serviços psiquiátricos de assumir o tratamento dos pacientes responsáveis por crimes Duas são as dificuldades que se opõem a essas possibilidades a primeira de ordem prática institucional referese aos recursos a serem postos em campo e aos consequentes procedimentos relacionandose a dois ministérios diferentes é lógico esperar dificuldades e retardamentos na definição de competências e recursos a segunda mais ideológica referese às dificuldades de muitos DSMs de aceitar a exigência de tomar a seu cargo os pacientes a serem custodiados Com efeito desenvolveuse uma espécie de equívoco sobre o mandado da psiquiatria no pósreforma Para os serviços fundados na desinstitucionalização os serviços fortes abertos 24 horas o encarregarse do paciente se relaciona com a capacidade de tratamento terapêutico mas também com a exigência de responder às mais complexas problemáticas sociais inextricavelmente ligadas ao desconforto psiquiátrico Pois bem para os que têm essa experiência não há dificuldade em se disponibilizar para assumir essa nova função de tomar a cargo No entanto aqueles cuja experiência se dá nos serviços fracos que vivem a reforma como uma liberação das responsabilidades ligadas à custódia do paciente e concebem sua intervenção apenas no interior de um tratamento quase privado entre paciente e terapeuta mostramse avessos a modificar sua própria organização e a aceitar a tarefa de ter a seu encargo o paciente responsável por crime É paradigmática a surpresa com que alguns operadores descobrem depois da sentença da Cassação de 11 de março de 2008 estar investidos da posição de garantia em relação ao paciente Pois bem o problema consiste na capacidade de trocar a garantia da custódia pela garantia do tratamento dissolvendo na prática os nós não resolvidos das contradições sociais que assumem o perfil da periculosidade social e da exigência de custódia Uma ajuda consistente à solução desse impasse foi ofertada do O Crime Louco 244 ponto de vista organizacional pelo DLG 23099 Transferindo as funções sanitárias dos IPPs para o SSN60 põemse as premissas para o enfrentamento de maneira digna do grave problema da saúde no cárcere automaticamente se pondo as condições para resolver o equívoco subtendido nas funções do HPJ ambiguamente fundado em uma inimputabilidade por doença mas de fato estruturado apenas sobre exigências de custódia Outrossim o decreto estabelece vínculos para que os serviços psiquiátricos territoriais se encarreguem dos pacientes dos HPJs Todavia a passagem da medicina penitenciária para a do SSN foi muito difícil Somente com a lei orçamentária de 2008 Lei 24407 art2 parágrafos 238239 e graças à tenacidade de alguns sujeitos e organizações foi possível colocar em prática esse processo O DPCM61 de 142008 abriu importantes espaços operacionais a tratamentos terapêuticoreabilitadores para sujeitos com distúrbios mentais sobretudo em seu apelo ao valor da territorialidade A territorialidade em psiquiatria de fato comporta uma dimensão de continuidade terapêutica a possibilidade de intervir nas causas do malestar social ativando recursos da comunidade O conceito de territorialidade de um ponto de vista estratégico oferece ainda sustentação à hipótese de envolvimento direto das Regiões na solução dos HPJs Em essência após ter vivido durante anos sob condições de incerteza e frustração em que as inúmeras tentativas de abolir os HPJs eram consideradas veleidades e rejeitadas pelo legislador hoje assistimos à presença das premissas necessárias a uma progressiva e efetiva superação de tais instituições Diante da impossibilidade de seguir a via direta da abolição da inimputabilidade houve uma sinergia de intervenções envolvendo operadores da saúde mental e da justiça e políticos voltadas para a realização de um projeto 60 Nota à edição brasileira A sigla IPP se refere aos Institutos Penitenciários SSN é a sigla de Servizio Sanitario Nazionale isto é Serviço Sanitário Nacional 61 Nota à edição brasileira DPCM significa Decreto del Presidente del Consiglio dei Ministri isto é decreto emanado do Presidente do Conselho de Ministros O Crime Louco 245 que passo a passo step by step acabe por tornar inútil o HPJ Procurase fazêlo seja criando condições alternativas ao envio seja criando condições que progressivamente esvaziem os hospitais Assim foi criado um programa especial de superação dos HPJs e instituído um Comitê paritário de monitoramento de sua realização O Comitê paritário se vale de um Programa Nacional para intervenções psiquiátricas nos cárceres e HPJs segundo as linhas traçadas pelo DPCM de 142008 No programa estão explicitados os pontos e ações inclusive com a definição de um detalhado cronograma Essa estratégia porém é débil no panorama político atual com efeito pressupõe um complicado trabalho em grupo necessita da atuação de muitos sujeitos operando de forma sincronizada prevê uma vontade políticotécnica muito determinada O panorama político geral seja pela orientação dos partidos seja pela crise econômico social não nos faz ter muitas esperanças Com efeito se dirigirmos nossas considerações para níveis regionais será razoável supor que resultados poderão ser obtidos apenas em algumas regiões Toscana e Emilia Romagna promotoras do projeto e suficientemente motivadas e determinadas parecendo menos provável um envolvimento ativo e eficaz das outras regiões seja no que se refere à disponibilidade para acolher os liberados dos HPJs seja no que se refere à ativação de novas estruturas alternativas surgindo como especialmente problemática a intervenção das Regiões Sicilia e Campania para superação dos três HPJs meridionais62 62 Nota à edição brasileira Em dezembro de 2011 o senador Ignazio Marino apresentou o projeto de lei no 3036 do Senado Disposizioni per il definitivo superamento degli ospedali psichiatrici giudiziari Disposições para a superação definitiva dos hospitais psiquiátricos judiciários para dar concreta e rápida execução ao fechamento dos HPJs e para que não se perdessem os trabalhos da Comissão de inquérito sobre a eficácia e eficiência do Serviço Sanitário Nacional que em julho do mesmo ano lançara o Relatório sobre as condições de vida e tratamento no interior dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários A Comissão produziu dentre outras coisas um vídeo sobre as condições degradantes nos HPJs que recebeu grande destaque na mídia O Crime Louco 246 Mas há um aspecto de fundo sobre o qual é preciso refletir Esse projeto revela o saudável realismo de quem se mede com as contradições da prática e se afasta de qualquer instância radical fazendoo também porque depois de várias tentativas esse parece ser o único caminho historicamente possível Todavia o aspecto minimalista do projeto corre o risco de não aquecer os corações É como se uma batalha crucial para o reconhecimento do direito de alguns dizendo respeito portanto ao direito de todos se reduzisse a uma operação de simples engenharia institucional Certamente uma idônea alocação de recursos e um gradual desenvolvimento organizacional poderão afastar alguns obstáculos para que os serviços psiquiátricos tomem a seu cargo os pacientes mas conseguirão mudar a cabeça daqueles psiquiatras que se sentem constrangidos a cuidar também do problema dos HPJs além daqueles dos tóxico dependentes dos velhos dos imigrantes dos doentes crônicos Exigese uma adesão profunda ao projeto é necessária uma O projeto de lei 3036 prevê que até 1º de fevereiro de 2012 concluase a superação dos HPJs em todas as regiões mediante acordo entre a Região e a Administração Penitenciária instalandose estruturas residenciais psiquiátricas dotadas de guarnições de segurança e vigilância localizadas ao longo do perímetro das estruturas sanitárias substitutivas ou de todo modo fora das enfermarias em que estas se articulam Nessas estruturas deverão ser executadas as medidas de segurança de internação em HPJ ou de encaminhamento a Casa de custódia e tratamento O fechamento dos atuais HPJs ou sua reconversão em penitenciárias deverá acontecer até 31 de março de 2012 prevendose ainda a supervisão por comissários das regiões inadimplentes A opção exclusiva por estruturas residenciais psiquiátricas como únicos locais de tratamento parece no entanto rígida e pouco justificável Os pacientes e as pacientes autores e autoras de crime são pessoas diversas entre si com distúrbios diversos em fases diversas não se podendo afirmar que necessitem de um tratamento similar de longa duração em uma estrutura residencial psiquiátrica protegida Ao contrário exatamente em razão do critério de territorialidade na escolha dos lugares de tratamento que tem como consequência o fato de que o lugar de eleição da programação e da assunção do tratamento é o Departamento de Saúde Mental seria mais correto deixar a este a responsabilidade pela escolha dos lugares e das modalidades que poderiam pois ser diversas da colocação em residências protegidas até para não se excluir a possibilidade de utilização de outros espaços e oportunidades hoje já disponíveis e operantes O Crime Louco 247 motivação que arraste corações e mentes apontando para uma mudança dando sentido ao quotidiano e aos esforços do presente Tratase em essência de se colocar claramente as perguntas sobre o por quê e o para quem Tratase em essência de entender e fazer entender que essa desinstitucionalização diz respeito a todos diz respeito a cada um de nós diz respeito ao profissionalismo dos operadores Tratase de sentir o desafio do empenho a força política da paixão reencontrar aquelas instâncias de liberdade e justiça que sustentaram desde seu início a reforma da psiquiatria na Itália Devemos por exemplo dar um rosto aos números aos diagnósticos que preenchem as tabelas sobre os HPJs Devemos dar voz às pessoas que dizemos querer ajudar devemos sentir em nossa pele suas emoções e seus sofrimentos É preciso alargar o campo dos sujeitos envolvidos conscientes do papel que a sociedade civil pode e deve desempenhar A presença ativa do voluntariado por exemplo nos parece decisiva sua função não pode ser subsidiária subordinada instrumental o protagonismo dos voluntários é expressão dos laços que se devem instaurar entre o empenho dos profissionais e a sociedade civil Essa exigência de uma perspectiva política nos faz compreender mais profundamente que reduzir o número dos internados nos HPJs constituir pequenas instituições eficientes ancorar a gestão do louco responsável por crime à organização sanitária são passos que no entanto não eliminam o estereótipo da periculosidade e da irresponsabilidade do louco não dissolvem o nó górdio sobre os quais continuam a se estruturar ideologias e aparatos repressivos O juízo de incapacidade total de entender e querer é de fato a pedra angular sobre a qual se funda a ciência psiquiátrica e é também seu pecado original Podemos falar no máximo em incapacidade parcial diz Franco Rotelli63 mas a incapacidade total de entender 63 Rotelli F La questione forense in La testa tagliata org Toresini L Gutenberg Roma 1996 O Crime Louco 248 e querer jamais concerne à psiquiatria Pode dizer respeito a um estado confuso de origem biológica mas jamais a uma doença psiquiátrica A história demonstra como se criou sobre essa premissa uma espécie de automatismo entre o juízo de doença mental e o juízo de incapacidade de entender e querer Enquanto se mantiver esse preconceito não poderemos verdadeiramente nos libertar da idéia do manicômio mesmo se reduzirmos ao mínimo os internados nos HPJs Enquanto se mantiver a idéia de inimputabilidade por doença mental negarseá ao paciente o direito de ser um sujeito daí nascendo todas as instituições que procedem do manicômio e viceversa derivam daquele princípio Negarseá ao psiquiatra a possibilidade de tratamento a ele se reconhecendo no máximo tão somente a possibilidade de custódia e manipulação No momento em que se trata a doença mental acrescenta Rotelli devese investigar também a normalidade pois é preciso investigar também a riqueza das diversidades O louco também tem direito ao processo o louco tem direito a estar em juízo o louco também tem direito de fazer valer suas razões e tem direito a ser condenado enquanto essa for a lei geral Naturalmente existem mil possibilidades mil medidas alternativas possíveis para atenuar a pena para tratar e ajudar quem cometeu um crime Em essência cuidase de criar para todos inclusive o louco criminoso o direito de cidadania Tudo é possível quando se parte de um grande respeito pelas razões de todos É esse só esse o modo de desfazer o nó górdio da louca custódia O Crime Louco 249 4Responsabilidade civil e penal do médico 41A responsabilidade civil Intervenções médicas são fundamentalmente uma prestação de meios sem uma devida garantia de resultado Naturalmente a prestação exige um dever de cuidado a ser desenvolvido da maneira mais adequada e precisa Em nossos Códigos não existem normas específicas que digam respeito à categoria profissional dos médicos e cirurgiões não tendo por outro lado o código deontológico dos médicos italianos força de lei Há no entanto leis especiais na matéria textos únicos normas deontológicas decisões da Suprema Corte uma rica jurisprudência A Itália juntamente com o México é o único Estado a não prever o crime de culpa médica mas a Itália é também o único país europeu junto com a Polônia em que os erros clínicos são passíveis de persecução penal A condição do médico empregado no Sistema Sanitário Nacional é regulada por algumas diretivas Essas normas destacam que a obrigação do médico empregado no serviço sanitário tem natureza contratual que eventual responsabilidade por um resultado lesivo implica a obrigação do médico de ressarcir o dano injustamente causado que o seguro de responsabilidade civil cobre tão somente as consequências de um comportamento culposo As obrigações da seguradora em relação ao segurado são distintas e autônomas das que o segurado tem em relação ao lesado Atualmente as seguradoras dão especial atenção ao certificado do consenso informado exigido antes da realização do ato médico Existem pois dois tipos de responsabilidade para o médico a contratual derivada de uma relação direta e de confiança com o paciente ou no interior do serviço público e a extracontratual ou aquiliana quando o médico está ligado a uma estrutura através de uma relação contratual As principais características da Responsabilidade Contratual são O Crime Louco 250 A obrigação do profissional da saúde é de meios não de resultado O médico é responsável inclusive por culpa leve Há culpa quando o evento é atribuível à negligência imprudência imperícia inobservância de leis e regulamentos Se a prestação do médico implica problemas técnicos de especial dificuldade a responsabilidade só subsiste nos casos de dolo ou culpa grave No cumprimento de sua prestação o médico deve empregar a diligência ordinária exigida em sua atividade Para obter o ressarcimento do dano o paciente deve provar ter sido destinatário da prestação e ter sido lesado por esta O médico para evitar a condenação deve demonstrar ter cumprido corretamente suas próprias obrigações A prescrição em regra é decenal As principais características da Responsabilidade Extracontratual são A responsabilidade prescinde da existência de um vínculo contratual ou obrigacional A configuração da responsabilidade extracontratual subordina se à existência dos seguintes elementos Uma conduta dolosa ou culposa do médico Um dano Um nexo de causalidade entre a conduta e o dano Dolo ou culpa do causador do dano As principais diferenças com a responsabilidade contratual são O lesado deve provar além da existência do dano e da relação de causalidade a culpa do médico Em matéria de responsabilidade contratual são ressarcíveis todos os danos que sejam consequência imediata e direta da O Crime Louco 251 conduta de seu causador A prescrição é quinquenal Com o termo responsabilidade entendese em geral o dever de responder pela violação de uma norma de conduta qualquer sofrendo se as correspondentes e consequentes sanções O fundamento jurídico da responsabilidade civil profissional reside em alguns artigos do Código Civil diligência no cumprimento art1176 CC responsabilidade do devedor art1218 ressarcimento por fato ilícito art2043 responsabilidade do prestador de serviço art2236 A obrigação de meios e não de resultado significa que o médico se compromete com o paciente a utilizar seus próprios conhecimentos e todos os instrumentos e regras técnicas e científicas de maneira diligente sem no entanto garantir o resultado Estabelecido que por ressarcimento dos danos se entende a reintegração patrimonial do quanto perdido pelo sujeito passivo por obra daquele que praticou o fato há de se precisar que no âmbito civilístico diversamente do que ocorre em sede penal distinguemse a culpa leve e a culpa grave inescusável por imperícia imprudência negligência ou inobservância de leis ou regulamentos para a maioria dos que exercem aquela específica prestação sanitária Por culpa leve entendese geralmente a omissão de diligência ou a negligência configurada em preparação não coerente com o caso concreto e causadora de um dano na execução do tratamento cirúrgico ou no âmbito da terapia médica Por culpa grave nos termos do art2236 CC entendese o erro grosseiro devido à violação das regras e à falta de adoção dos instrumentos e portanto dos conhecimentos inerentes ao patrimônio mínimo do médico na medida em que adquiridos pela ciência médica A medida de avaliação da culpa varia conforme seu conteúdo objetivo negligência imperícia ou imprudência e a natureza da intervenção complexa ou rotineira requerida do médico O Crime Louco 252 42A responsabilidade penal Em geral entendese que a responsabilidade penal do médico ocorre quando sua conduta culposa esteja viciada por imperícia imprudência negligência ou inobservância de leis regulamentos e disciplinas daí derivando com claro nexo de causalidade a morte ou agravação da doença existente ou o surgimento de outra patologia A imperícia consiste na falta de competência ou habilidade profissional a negligência na falta de cuidado e atenção no agir a imprudência resulta do excesso de audácia de desafio à razão e à experiência a inobservância de leis e regulamentos consiste com frequência na omissão de normas que deveriam ser observadas Ao contrário do que acontecia no passado hoje o médico nos casos de imprudência e negligência responde tanto por culpa grave quanto por culpa leve Quando se provoca um dano a uma pessoa o evento não necessariamente implica a responsabilidade jurídica do médico tampouco significando que o fato danoso constitua por si a prova de sua culpa Com efeito é preciso examinar a conduta do médico em relação ao caso clínico Assim o fazendo percebese o quanto a cadeia causal de que em geral supõese uma natureza linear é na realidade ramificada e às vezes circular um evento pode assumir as vestes de causa ou alternativamente de efeito conforme as circunstâncias ou pontos de vista A norma penal mais comumente utilizada se refere ao art40 do Código Penal segundo o qual ninguém pode ser punido por um fato previsto em lei como crime se o resultado danoso ou perigoso de que depende a existência do crime não for consequência de sua ação ou omissão Não impedir um resultado de que se tem o dever jurídico de impedir equivale a causálo A ênfase deve ser colocada em dois termos a ação e a omissão além daquilo que em direito é definido como nexo de causalidade O art41 CP prevê além disso que as causas préexistentes simultâneas ou supervenientes à conduta humana ainda que desta independentes não excluem a responsabilidade penal do sujeito O Crime Louco 253 considerado Com efeito o concurso de causas jamais exclui a relação de causalidade Somente as causas supervenientes podem excluir o nexo causal desde que suficientes para produzir o resultado danoso art41 2 CP É pois a relação de causalidade elemento chave para a definição da responsabilidade do médico Na jurisprudência a análise da relação etiológica é dominada pela tradicional teoria das condições Tal teoria sustenta em síntese que é causa penalmente relevante a conduta que se põe como condição necessária conditio sine qua non na cadeia dos antecedentes que concorrem para a produção do resultado sem a qual esse resultado de que depende a existência do crime não teria podido se verificar A configuração do nexo causal segundo a teoria das condições baseiase essencialmente em uma espécie de procedimento de eliminação mental Como a conduta humana é condição necessária do resultado se mentalmente a eliminarmos deveremos esperar que automaticamente elimine se também o resultado Naturalmente só é possível utilizar tal reconstrução etiológica quando se conhece ex ante a relação existente entre uma determinada conduta e um determinado resultado Como é sabido a realidade porém é mais complexa do que qualquer hipótese determinista por essa razão no método científico e em sua linguagem preferese utilizar o conceito de probabilidade no aparecimento de um resultado Essa incerteza conflita com a lógica do direito sobretudo se se considera quão controversa pode ser inclusive no campo científico a leitura dos dados que definem a probabilidade científica de um fato quanto mais nas ciências do comportamento humano Por essa razão a sentença da Corte Constitucional n 364 de 1998 põe o conceito de probabilidade lado a lado com o de previsibilidade e evitabilidade das consequências danosas o médico responde penalmente somente se podia prever e evitar o fatocriminoso consequência de sua conduta com base em regras da experiência comum O verdadeiro ponto de referência sobre o tema da causalidade é O Crime Louco 254 hoje constituído pela chamada Sentença Franzese a sentença das Seções Penais Reunidas da Cassação SS UU sentença de 11 set 2002 n 30328 Tal sentença estabeleceu que no que diz respeito ao específico setor da atividade médicocirúrgica e em tema de causalidade no crime omissivo impróprio devem ser enunciados os seguintes princípios a o nexo causal somente pode ser visualizado quando à maneira do juízo contrafactual conduzido com base em uma regra comum da experiência ou uma lei científica universal ou estatística constatese que formulandose a hipótese de realização pelo médico da conduta devida impeditiva do resultado hic et nunc este não teria se verificado ou terseia verificado mas em época significativamente posterior ou com menor intensidade lesiva b não se pode deduzir automaticamente do coeficiente de probabilidade expresso por leis estatísticas a confirmação ou não da hipótese acusatória sobre a existência do nexo causal devendo o juiz avaliar sua validade no caso concreto com base nas circunstâncias do fato e nas provas disponíveis Esse segundo item põe em evidência a exigência de uma elevada credibilidade da conclusão judicial Para demonstração do nexo causal a sentença exclui qualquer avaliação apriorística e com caráter de mera presunção O procedimento lógicodedutivo deve conduzir à certeza processual excluindo qualquer interferência de percursos alternativos O juízo prognóstico deve ser rigoroso baseado quer em conhecimentos científicos ou estatísticos quer em conhecimentos de caráter geral 43 A responsabilidade jurídica do psiquiatra A sociedade exige do psiquiatra de maneira penetrante e implícita não só um diagnóstico e um prognóstico de doença mas também um prognóstico de conduta e uma terapia capaz de condicionar essa própria conduta do paciente Tal exigência social é manifestamente excessiva como é quase imediato o apelo à periculosidade para O Crime Louco 255 si e para os outros se um paciente psiquiátrico se suicida ou provoca lesões ou morte de terceiros Acusase o psiquiatra de não ter formulado o diagnóstico correto não ter feito um prognóstico fidedigno não ter prescrito a terapia capaz de esconjurar o evento danoso Todavia antes de se chegar a uma condenação terseá que demonstrar a ocorrência de um erro médico que tenha derivado de negligência imprudência ou imperícia e que ao erro tenha se seguido uma conduta anômala do paciente e desta um dano à pessoa O problema da responsabilidade jurídica do psiquiatra em seus termos essenciais acaba por ser o seguinte como de uma conduta errônea do psiquiatra deriva uma conduta anômala do paciente É evidente porém que fatores de caráter subjetivo podem modificar esses dois termos de tal modo que a tipologia lógicodedutiva que justifica a configuração de um nexo causal entre os dois eventos não é fácil de ser demonstrada Com efeito se é verdade que podemos concluir que um tratamento psiquiátrico inadequado seja causa de uma piora na doença do paciente também podemos nos perguntar se tal piora teria se verificado pela evolução natural da doença apesar da intervenção psiquiátrica e não por causa desta De modo geral parece que os juízes nos últimos tempos estariam tendentes a alargar sempre mais a área da culpa penal e civil a cargo dos psiquiatras Como já exposto esse fenômeno poderia ser apenas uma expressão de um trend mais amplo concernente a toda a área médica ou poderia estar a indicar uma específica atenção em matéria de saúde mental aos temas da ordem pública e da insegurança social percebida Sobre o argumento existe uma rica produção da jurisprudência Mencionarei apenas algumas dentre as sentenças mais significativas proferidas pela Corte de Cassação e alguns Tribunais Colegiados64 e de Apelação 64 Nota à edição brasileira Corti dAssisi O Crime Louco 256 A Corte de Cass Pen seção V 1974 no 128370 afirma o crime na medida em que falte pessoal especializado ou se confiem os internos a pessoas incompetentes e em número inadequado A Corte de Cass Pen seção V em 121082 configura como passível de persecução por crime de abandono o médico responsável por um Centro de Higiene Mental que se abstenha de usar formas de intervenção terapêutica em relação a portador de perturbações psíquicas A Corte de Cass Pen seção V 1989 no 183774 afirma que se deve entender como crime nos termos do art 591 CPP o fato de incapazes serem deixados aos cuidados de pessoal inidôneo A Corte de Cass Pen seção V em 28390 declara que a exposição a perigo da pessoa abandonada pode ser virtual não sendo excluída pela temporaneidade nem pela possibilidade de eventual socorro A Corte de Cass Pen seção V em 30111993 explica que todo abandono se torna perigoso e o interesse resulta violado ainda quando o desamparo seja apenas relativo ou parcial A Corte de Cass Pen seção V em 21995 afirma que para os fins de configuração do crime basta a falta de prestação de cuidados temporâneos independentemente de um particular animus derelinquendi A Corte de Cass Pen seção V 1995 no 203004 precisa que responde pelo delito quem se omite de intervir ou de fazer com que intervenham pessoas idôneas a evitar o próprio perigo A Corte de Cass Pen seção V em 2211998 no 4447 define como crime de abandono qualquer ação ou omissão que contradiga o dever jurídico de tratamento e custódia A Corte de Cass na sentença no 11024 de 22101998 recordando fato referente a psiquiatra de uma prisão que não diagnosticou doença que requeria uma intervenção cirúrgica define os limites discricionários do diagnóstico médico A Corte de Cass Pen seção IV em 1242005 no 13241 O Crime Louco 257 sentencia que o fundamento das normas do Tratamento Sanitário Obrigatório reside na periculosidade do paciente O Tribunal de Apelação de Bolonha em 1 de julho de 1975 exclui a responsabilidade do psiquiatra no caso de um paciente que se suicidara O Tribunal Colegiado de Parma em 16 de novembro de 1981 exclui a responsabilidade do psiquiatra no caso de paciente que se afastara do Serviço Psiquiátrico de Diagnóstico e Tratamento e matara a esposa Algumas sentenças a meu modo de ver merecem especial atenção O Tribunal de Ravenna em 2992003 absolve um psiquiatra acusado de homicídio e lesões pessoais culposas em seguida a suicídio do paciente que tinha a seus cuidados A absolvição foi justificada pelo juiz com a impossibilidade de submeter o próprio paciente a uma contínua e estrita vigilância além de um raciocínio decisivamente técnicocientífico a responsabilidade profissional no setor das intervenções psiquiátricas há de ser devidamente enfrentada de maneira diversa e com maior rigor probatório do que em outros campos da medicina tendose em conta o menor grau de certeza atingido na psiquiatria em relação aos conhecimentos adquiridos em outros setores da mesma ciência De um lado o psiquiatra é absolvido porque após o fechamento dos manicômios falta a possibilidade concreta de um estrito controlevigilância por outro lado porque a psiquiatria ainda é uma ciência altamente imperfeita ou mais imperfeita do que outras mais aleatória do que outras e portanto mesmo um tratamento eventualmente errado ou baseado em conjeturas que não consiga evitar o suicídio não é por si só suficiente para demonstrar a falta de diligência médico profissional Vale a pena citar ainda o Tribunal de Brindisi em uma de suas sentenças referente a uma série de suicídios ocorridos em O Crime Louco 258 uma enfermaria psiquiátrica Segundo o tribunal da Puglia não respondem por homicídio culposo os médicos enfermeiros o diretor do departamento de saúde mental o diretor sanitário e tampouco o coordenador sanitário que deixaram cada um em relação às próprias funções de adotar as medidas capazes de impedir os repetidos suicídios de pacientes internados na enfermaria psiquiátrica estando a essa altura praticamente em desuso em seguida à Lei 18078 aquela visão da doença mental traduzida na assistência ao doente que se expressava fundamentalmente na estrita vigilância do mesmo a fim de impedir que acarretasse dano a si mesmo e aos outros agora prevalecendo uma assistência principalmente de tipo terapêutico Em novembro de 2003 foi proferida a bastante conhecida sentença da Cassação Cass Pen seção IV 4 de março de 2004 no 10430 que confirma a condenação do diretor de uma casa de tratamento milanesa julgado responsável pelo crime de homicídio culposo pela morte de uma paciente voluntariamente internada portadora de síndrome depressiva que se suicidou jogandose pela janela na casa de tratamento À base da causa excepcional superveniente esteve a conduta culposa do médico que não representando adequadamente os riscos de reincidência nas tentativas de suicídio e não indicando à acompanhante as cautelas aptas a evitar gestos autodestrutivos colocouse a si mesmo como condição idônea para a verificação da conduta que tornou possível o evento suicídio É novamente a IV Seção da Cassação que condena dois psiquiatras do Instituto Psiquiátrico de Pisa por homicídio culposo por sentença proferida em 12 de janeiro de 2005 publicada em cartório em 12 de abril de 2005 Tratavase do suicídio por enforcamento no banheiro da enfermaria de um paciente submetido a TSO A motivação da sentença é interessante porque a Corte limita expressamente a possibilidade de se visualizar a subsistência da posição de garantidor no psiquiatra ao fato de o paciente estar submetido a TSO Observa esta Corte que estando C submetido a tratamento sanitário obrigatório indiscutivelmente existe a posição de garantidor por parte O Crime Louco 259 dos médicos da estrutura Em tais casos portanto derrogada a voluntariedade inspiradora da Lei 1801978 que entendeu transfundir em lei ordinária o princípio ditado pelo art 32 2 da Const referente à liberdade de tratamento permitese a limitação da liberdade pessoal para tutela do próprio paciente e em via reflexa eventualmente de terceiros tutela que diante de uma situação de extrema gravidade e de falta de colaboração do sujeito que não adere ao tratamento voluntário só pode se efetuar através de sua custódia e se for o caso através de contenção Na realidade em matéria de contenção já se tinha posicionamento da Suprema Corte Vejase por exemplo o caso da sentença da Corte de Cassação de 17101990 concernente ao Tratamento Sanitário Obrigatório e contenção física em psiquiatria Contestando a justificação de atos coercitivos nos casos em que o estado mental do paciente não aconselhe a privação da liberdade a Corte de Cassação assim se expressa Para fins de configuração do crime de sequestro de pessoa prescindese da existência no ofendido da capacidade volitiva de movimento e instintiva de percepção da privação da liberdade razão por que configurase o delito mesmo em relação a enfermos mentais e paralíticos Dessa forma a Cassação demonstrou que a pessoa há de ser considerada livre não enquanto tenha capacidade de se mover mas enquanto esteja ausente qualquer coerção que subtraia de seu corpo a possibilidade de movimento no espaço Em suma se ao psiquiatra se pode eventualmente atribuir uma função de controle social esta deve ser entendida como mediação entre diversos impulsos sociais contrapostos e enquanto manutenção de níveis adequados de homeostase social mas não como uma função de controle social disciplinar típica de instituições primariamente voltadas ao controle social polícias etc Lêse na sentença que a supressão dos manicômios indubitavelmente mudou o perfil de responsabilidade dos psiquiatras pois estes com frequência achamse diante de situações em que não podem impedir um evento na medida em que o uso da força sobre o paciente está O Crime Louco 260 condicionado à presença de múltiplos e perigosos fatores A Corte de Cassação precisa que o uso legítimo da força física está limitado aos casos de estrita necessidade para subtrair o incapaz ao perigo de graves danos O caso concreto analisado pelos juízes é que dirá se e em que medida o psiquiatra pode ser responsável pelas condutas lesivas ou autolesivas do paciente que tem sob seus cuidados O Crime Louco 261 VII Os documentos 1 Atestados de solidariedade a Franco Basaglia e Antonio Slavich Domenico Casagrande e Ernesto Venturini 11 Anos 1968 e 1971 Os atestados aqui reunidos foram endereçados a Franco Basaglia em Gorízia pouco depois do fato delituoso perpetrado por Miklus bem como a Franco Basaglia e Antonio Slavic em Colorno em 1971 após sua incriminação pelo Ministério Público O material reunido poderia ter sido utilizado pela defesa em sede processual mas isso não aconteceu praticamente sem qualquer reflexo aparente no julgamento pois os juízes evitaram entrar no mérito do processo de tratamento levado a cabo no hospital psiquiátrico Tratase de material inédito entregue a Casagrande por Slavich É aqui publicado pela primeira vez para ilustrar o clima cultural e político daqueles anos enfatizando o peso da opinião pública no episódio papel fundamental para evitar o recuo do processo de mudança institucional iniciado em Gorízia Naturalmente o número dos atestados é maior do que o que aqui exibido para não sermos indelicados com os ausentes cabe esclarecer que estamos publicando somente o material enviado a Colorno que através de Slavich Basaglia confiou a Casagrande 12 Ano 1968 Quando aconteceu o incidente Miklus em setembro de 1968 a experiência de Gorízia atravessava um momento especialmente feliz Em abril Linstituzione negata era publicado pela Einaudi O livro teve um prestigioso reconhecimento no verão com o Premio Viareggio para ensaios A primeira edição esgotou rapidamente e o livro se tornou um texto cult não só no universo da psiquiatria e da psicologia mas para todos aqueles que percebiam a necessidade de O Crime Louco 262 uma profunda mudança das instituições De repente porém começa uma fase bastante difícil e crítica A dor e a emoção provocadas por um fato tão dramático naturalmente abrem uma reflexão sobre sua dinâmica para tentar entender suas razões e identificar os erros Era igualmente natural que se instaurasse um procedimento judiciário para esclarecer eventuais responsabilidades No entanto logo se evidenciou a instrumentalização do evento por quem sempre se opôs à mudança e o confronto se tornou extremamente áspero sem excluir golpes Basaglia tinha consciência de que seria decisivo descer em campo em defesa da experiência de Gorízia Por essa razão pôsse em ação pedindo manifestações de solidariedade embora na realidade inúmeras pessoas tenham sentido necessidade de espontaneamente manifestar seu apoio a Basaglia e a todo o grupo de Gorízia Dentre essas pessoas especialmente afetuoso e solícito foi Giulio Maccacaro diretor do Instituto de Estatística Médica e Biometria da Faculdade de Medicina e Cirurgia de Milão e diretor do Centro para Aplicações Biomédicas do cálculo eletrônico Soube através de amigos comuns das preocupações que nesses dias estão atormentando você seus colaboradores e seus doentes Como quem quer que os conheça verdadeiramente compartilho tais preocupações com afetuosa participação Penso que se nos tornamos um pouco mais civilizados terá sido também por mérito de vocês O escritor Carmelo Samonà docente universitário da Faculdade de Pedagogia de Roma um dos mais importantes hispanistas italianos também escreveu a Basaglia Tenho acompanhado desde o início o notório contencioso judiciário em torno ao hospital de Gorízia Hesitei em escrever porque decerto minha solidariedade de pouco pode valer do ponto de vista estritamente prático Mas estou cada vez mais preocupado com a situação italiana e de toda nossa cultura e em determinado ponto me convenci de que seu problema para além da contingência dessa odiosa e clamorosa imputação é também problema nosso e de todos aqueles que pensam como O Crime Louco 263 nós e trabalham nas estruturas do Estado Por isso quero que você saiba que se for necessário minha solidariedade nessas circunstâncias é plena e absoluta Leve em conta o fato de que aqui na Pedagogia e na Universidade de Roma somos um grupo de docentes e assistentes que embora pequeno em quantidade é no entanto bastante unido Saiba que a qualquer momento você pode contar com ações de nossa parte Outro que sentiu necessidade de manifestar sua solidariedade foi Diego Napolitani psiquiatra e membro associado da Sociedade Psicanalítica Italiana fundador e dirigente da comunidade terapêutica Villa Serena uma experiência de vanguarda Caríssimo Franco seguimos de perto suas recentes vicissitudesjudiciárias e todos nós pacientes e pessoal sanitário delas participamos com muito sentimento seja nessa como na outra comunidade a privada Sendo junto com você protagonistas do risco movidos pela dignidade humana queremos comunicar nossa admiração nossa solidariedade e nosso afeto desejando a você ou melhor desejando a nós mesmos que o desenrolar dos fatos acolha seus esforços O eco dos acontecimentos chegou à Câmara dos Deputados onde alguns grupos parlamentares dirigiram uma interpelação ao Ministério da Saúde Aldo Natoli parlamentar do PCI logo escreveu a Basaglia Caro Basaglia tenho muito prazer em travar conhecimento com o senhor nessa ocasião Junto com outros colegas apresentei uma interpelação Hesitei diante do texto porque gostaria de antes ouvir sua opinião Serei grato se o senhor puder me escrever com toda franqueza Pode endereçar sua carta para cá em Montecitorio Naturalmente gostaria muito de conhecêlo pessoalmente O Crime Louco 264 Segue o texto integral da interpelação CÂMARA DOS DEPUTADOS Roma 30 de outubro de 1968 INTERPELAÇÃO Ao Ministro da Saúde Visando saber se diante dos recentes e graves episódios de explícita hostilidade de órgãos periféricos do poder público contra as terapias de vanguarda no campo das doenças mentais e contra as iniciativas voltadas à reivindicação de uma corajosa reforma psiquiátrica episódios de hostilidade que culminaram com o aberrante processo judiciário contra o prof Basaglia diretor do Hospital Psiquiátrico de Gorízia não entenda VSa ser indispensável promover uma ação de governo destinada a 1 Lançar um plano de saneamento e expansão dos serviços psiquiátricos destinado a eliminar a superpopulação dos institutos hospitalares e o grave fenômeno da promiscuidade dos doentes mentais de todos os tipos e graus 2 Criar condições para que nenhum doente mental seja abandonado na atual situação de exclusiva segregação inércia física ou ainda pior de coerção e violência na generalizada renúncia a qualquer tentativa de tratamento que ao contrário seria possível com base nos critérios da técnica mais atualizada 3 Assumir como parâmetro fundamental da reforma psiquiátrica a total eliminação de qualquer diferenciação entre os problemas da saúde mental e os da saúde em geral pondo fim de fato ao vergonhoso comportamento de nossa sociedade em relação à doença mental em parte derivado da subsistência de posições medievais de medo e O Crime Louco 265 culpa mas especialmente do fato de que um ordenamento social fundado no lucro recusa e tende a excluir os fracos e deficientes 4 Favorecer o desenvolvimento de serviços psiquiátricos fundados na continuidade terapêutica e portanto na unidade e indivisibilidade dos tratamentos hospitalares e extrahospitalares Expressando portanto com tal ação solidariedade e apoio à obra dos psiquiatras italianos mais empenhados no auspicioso trabalho de renovação de tal forma contribuindo para repelir direta ou indiretamente a ação persecutória que contra esses vem sendo exercida pelas forças mais retrógradas e conservadoras de nossa sociedade Eis o texto da resposta do Ministro da Saúde Luigi Mariotti Ministério da Saúde Roma 2 de janeiro de 1969 Objeto Interpelação à resposta escrita No 674 O Senhor Deputado apresentou a seguinte interpelação com pedido de resposta escrita Ao Ministro da Saúde Visando saber se pretende se manifestar sobre as circunstâncias e os fatos que estão na base da decisão do juiz instrutor de Gorízia que incriminou por homicídio culposo o diretor do Hospital psiquiátrico professor Franco Basaglia O interpelante independentemente do contestável fundamento jurídico da incriminação em questão indaga se o Ministro não julgue que o episódio se presta a ser instrumentalizado contra todo um grupo de estudiosos que estão experimentando uma terapia moderna e especialmente civilizada no campo da psiquiatria enquanto O Crime Louco 266 nesse setor da medicina nosso País mantém estruturas arcaicas e inadequadas bem como métodos de tratamento de caráter repressivo que retardam a cura dos pacientes e obstaculizam sua reinserção na sociedade Respondese o quanto segue Em 27 de setembro passado um paciente do Hospital psiquiátrico provincial de Gorízia internado desde 1951 por ocasião de uma licença diária concedida pela Autoridade sanitária do mesmo Hospital matou a própria esposa Fugindo foi encontrado pela polícia apenas dois dias depois das buscas sendo em seguida enviado ao manicômio criminal O referido interno foi acompanhado ao domicílio em veículo de um enfermeiro do hospital e confiado a seus familiares O Ministério da Justiça interessado na questão comunicou que o juiz instrutor junto ao Tribunal de Gorízia procede com instrução formal ainda em curso contra o mencionado interno pelo delito de homicídio doloso nos termos dos arts 575 e 577 CP Nenhuma imputação foi até hoje atribuída ao professor Basaglia Diretor do Hospital em questão De todo modo essa Administração ressalta que em relação às novas orientações sobre a assistência psiquiátrica e aos novos métodos para sua realização a socioterapia constitui um dos pontos cardeais do tratamento psicoterapêutico Incluise portanto em tais métodos e no quadro de tais novas orientações o sistema de socioterapia adotado pelo prof Basaglia no Hospital psiquiátrico de Gorízia No que se refere às licenças experimentais são contempladas pelo regulamento RD no 615 de 1681909 arts 646566 sendo o diretor por elas responsável Visando realizar a reinserção social dos enfermos mentais O Crime Louco 267 liberados tornase indispensável a efetivação de tais licenças experimentais Julgamse portanto regulares as medidas tomadas pela Direção do Hospital em questão no que concerne aos métodos socioterapêuticos e às liberações experimentais No que se refere ao doloroso caso verificado em 27 de setembro passado advertese que este não pode invalidar um método de tratamento psicoterapêutico postulado pelos cultores da matéria ou pelos expertos do MS nem modificar as normas legais citadas no que se refere às licenças experimentais ainda que tais liberações possam configurar um risco potencial Por outro lado a liberação dos internos psiquiátricos afirmada pela nova Lei no 431 de 1831968 enfatiza tal profunda exigência mesmo sendo evidente o maior risco de tais licenças e a evidente maior responsabilidade que recai sobre os diretores dos hospitais psiquiátricos Com efeito esse Ministério já emitiu circular dirigida aos Médicos Provinciais na qual são evocadas as precedentes disposições expedidas sobre o problema em questão bem como sua especial atenção na qualidade de Presidentes das ditas Comissões a fim de exercerem com respeito à lei e às novas orientações de liberalização da assistência psiquiátrica a mais estrita e prudente vigilância O Ministro Como se pode verificar o Ministro embora enfatizando a autonomia da magistratura demonstra a regularidade das medidas da Direção do Hospital no que concerne aos métodos socioterapêuticos e às licenças experimentais Não se trata de simples opinião pessoal tratase de um parecer técnico evidentemente fundado em conhecimentos específicos e expressado por uma fonte respeitável Mas o mais interessante é que tanto na interpelação quanto na O Crime Louco 268 resposta do Ministro emerge a relevância institucional da matéria em questão Há um juízo consolidado absolutamente crítico em relação ao estado dos hospitais psiquiátricos que se acham sob condições inadministráveis e não recuperáveis com intervenções parciais ou locais A problemática necessariamente exige medidas legislativas de relevante dimensão As intervenções devem estar em sintonia e em continuidade com as já promulgadas pela Lei no 431 de 18 de março de 1968 sobre Providências para a assistência psiquiátrica denominada lei provisória ou lei Mariotti que permitiu a internação voluntária dos pacientes psiquiátricos A propósito é oportuno recordar o empenho fundamental de Basaglia e de todo o grupo de Gorízia exatamente para a promulgação dessa lei frequentemente pouco conhecida em sua dimensão revolucionária Luigi Mariotti envolveuse ativamente no conhecimento da experiência de Gorízia com efeito visitou o Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorízia antes da promulgação da lei convidado pelo então Assessor Regional para a Saúde de FriuliVeneziaGiulia advogado Cesare Devetag Entendese assim porque para além da oficialidade dos autos o Ministro tenha sentido necessidade de se comunicar diretamente com Basaglia enviandolhe a seguinte carta Roma 29 de novembro de 1968 Egrégio Professor Vejo sua carta do último dia 8 e verdadeiramente lamento o infortúnio que lhe ocorreu como também lamento o pretexto que se quer extrair daí para evitar uma necessária e impreterível radical renovação estrutural terapêutica e de valorização social no setor psiquiátrico A esse respeito minha opinião é bastante conhecida de VSa e de quantos estão especialmente a par do problema É suficiente uma nova leitura das normas propostas e do anexo relatório ilustrativo para a reforma psiquiátrica cuja iniciativa assumi na qualidade de Ministro da Saúde O Crime Louco 269 Formulando meus melhores votos a VSa enviolhe saudações cordiais Luigi Mariotti Todavia nessa fase delicada Basaglia precisava também do parecer favorável do establishment científico Por essa razão solicitou o parecer de dois de seus mestres luminares da psiquiatria da época Maxwell Jones e Georges Daumezon O psiquiatra Maxwell Jones era um inovador carismático idealizador da primeira comunidade terapêutica criada em 1952 no Hospital Dingleton de Melrose na Escócia com o objetivo de fazer participar e responsabilizar os pacientes na gestão da instituição psiquiátrica em que residiam Franco Basaglia conheceu Maxwell Jones pessoalmente durante uma visita ao Hospital de Dingleton alguns anos antes Entre os dois permaneceria sempre viva uma relação de grande respeito e consideração Georges Daumezon inicialmente diretor do Hôpital Psychiatrique de SainteAnne e posteriormente do Hospital HenriRousselle em Paris desempenhou um papel fundamental na história da psiquiatria francesa tendo sido um dos promotores da chamada psicoterapia institucional psychothérapie institutionnelle Esse método visava mudar as condições de vida dos internos dos hospitais psiquiátricos consequentemente buscando transformar o hospital em uma instituição terapêutica Reproduzimos abaixo os textos integrais das duas cartas65 Telephone No 2727 65 Nota à edição brasileira Mantemos os textos destas cartas bem como de declaração que virá transcrita mais adiante em inglês e em francês como aparecem no original da obra ora traduzida O Crime Louco 270 Dingleton Hospital For Nervous and Mental Disorders SCOTLAND 25th October 1968 Dr Franco Basaglia Gorízia Italy Dear Franco I have just received your letter and hasten to reply There is in my opinion ample evidence that therapeutic community practice has become an integral part of psychiatry both in the USA and in the UK during the last few years The Universities and other progressive psychiatric departments have almost universally adopted a more democratic egalitarian approach to the treatment of patients and adopted many of the principles of a therapeutic community The general feeling is that patients can do a great deal to help patients and that they should be allowed to have as much responsibility as they are able to assume at any particular time in their treatment Moreover the sharing of responsibility by staff ensures that they have a much greater investment in carrying out decisions and assuming responsibility The therapeutic community approach has been compared frequently with the psychoanalytic movement as the two most important developments in modern psychiatry To leave the final authority to the doctor is still the accepted practice in the UK and the USA but such final decisions are much more likely to be balanced and wise if the opinions of the relevant people both patients and staff have first been taken into account In my experience the more these therapeutic community principles are carried out the less unrest and violence does one see in the patient population With warm regards Yours sincerely Maxwell Jones Physician Superintendent O Crime Louco 271 PREFECTURE DE PARIS HÔPITAL HENRIROUSSELLE Dr G DAUMEZON MÉDECIN EN CHEF Paris le 25 novembre 1968 Monsieur le Docteur Franco BASAGLIA Hôpital Psychiatrique Provincial Gorízia Italie Mon cher Ami Cest bien volontiers que je vous apporte mon témoignage sur la réalité des communautés thérapeutiques et plus particulièrement de votre expérience Le mot de Communauté thérapeutique a été utilisé à ma connaissance pour la première fois par les Anglais et en particulier par Maxwell Jones pour désigner soit des hôpitaux soit des portions dhôpitaux soit des portions dinstitutions dont lorganisation globale était conçue comme moyen de traitement Cette manière de vois se distingue de la position traditionnelle qui considère chaque malade isolément et pense que le traitement de chacun doit se concevoir uniquement par des procèdures individuelles soit biologiques médicaments soit de psychothérapie relation de chaque malade avec son médecin soit encore prescription pour chaque malade dun régime de vie particulier à lintérieur de linstitution de soins La communauté thérapeutique consiste au contraire à considérer que le malade baignant dans ce nouveau milieu quest pour lui lhôpital le climat et la vie sociale de cet O Crime Louco 272 ensemble sont des éléments essentiels de traitement Si le mot de communauté thérapeutique a été utilisé cest essentiellement dans les pays anglosaxons Des mouvements analogues se sont développés dans la plupart des pays évolués soit en même temps soit quelquefois même avant les initiatives de Maxwell Jones En ce qui concerne la France ces initiatives sont désignées dordinaire par lexpression psychothérapie institutionnelle ce mot indiquant que la structure de linstitution soignante doit être utilisée pour le traitement psychothérapique du sujet Le mouvement remonte aux années de guerre et à la période daprèsguerre Dans une conférence de 1947 au groupe de lEvolution Psychiatrique je résumais ce point de vue en indiquant quon pouvait considérer que la thérapeutique institutionnelle réalisait en une certàine manière une Communion des Saints où médecins malades et personnels de tous ordres participaient au traitement où les communications devaient être organisées de façon à permettre à chaque malade de tirer parti des expériences des autres à travers ce que lui en apportait le groupe Les orientations sont évidemment variées entres les diverses communautés thérapeutiques ou les diverses institutions se consacrant à la psychothérapie institutionnelle Cest ainsi que dans certains groupes français notamment mais tous les groupes français ne se rallient pas à cette perspective le modèle théorique auquel on se réfère est celui de la psychanalyse le travail thérapeutique consistant essentiellement en une interprétation psychanalytique des réactions de groupe et éventuellement des réactions de chaque malade dans le groupe laménagement de la vie de lhôpital ayant pour but de faciliter les attitudes significatives des malades de manière à permettre plús facilement leur interprétation O Crime Louco 273 Mais dautres orientations existent qui insistent davantage sur les facteurs proprement sociologiques analysent les diverses structures sociales de lhôpital et la position du malade dans cet ensemble Il existe aussi des orientations plus directives Mais en tout état de cause et quelle que soit la référence adoptée il est impérieusement nécessaire dans la perspective des tenants de ces divers courants que le malade trouve à lhôpital un cadre de vie non répressif le maniement des réactions du sujet étant lessentiel de lactivité thérapeutique de la communauté Dautre part le but de la thérapeutìque étant la réinsertion sociale à linverse des conceptions traditionnelles qui faisaient de linstitution un petit monde clos la communauté thérapeutique souvre sur lextérieur et recherche au contraire de constants échanges entre ses membres des malades au médecins et des membres de la communauté extérieure Personnellement jai joué un certain rôle dans le développement dinitiatives de cet ordre en 1944 et 1951 et je nai cessé depuis de mintéresser à ces divers problèmes Si les services qui mont été confiés ne mont pas permis de poursuivre les expériences de psychothérapie institutionnelle jai participé activement au mouvement qui a multiplié ces initiatives Jai suivi les efforts de léquipe de Gorízia au cours de ces dernières années demandant au Docteur Basaglia et à ses collaborateurs de venir exposer leur pratique aux médecins français qui sintéréssent à ces questions Cest ainsi quau printemps dernier sur mon invitation Monsieur Basaglia a fait dans le cadre du cercle dEtudes Psychiatriques une conférence sur la Communauté Thérapeutique de Gorízia à lhôpital SainteAnne Dautre part il était amené à participer à de multiples échanges et en particulier au Colloque de Courchevel O Crime Louco 274 Dans le mouvement général de la psychothérapie institutionnelle et des communautés thérapeutiques lexpérience de Gorízia a une originalité propre reconnue de tous et a valeur de témoígnage Daumézon Maxwell Jones naturalmente ressalta o alto valor curativo da comunidade terapêutica fazendo notar como com tal método diminuem inclusive os atos de violência dos pacientes Com essa opção também muda porém o poder absoluto do médico a responsabilidade passa a ser compartilhada com o staff e os pacientes e as decisões em geral são mais sábias e equilibradas Daumézon também fala da comunidade terapêutica fazendo notar que mesmo com algumas diferenças significativas entre a França e o Reino Unido de fato a essa altura o mundo todo se move na mesma direção a mesma assumida pelos Gorizianos o paciente deve encontrar no hospital condições não repressivas pois só assim pode desempenhar seu papel na atividade terapêutica da comunidade Além disso Daumézon faz ver que são inerentes ao processo terapêutico a abertura do hospital para o exterior e a busca de uma troca constante com os familiares e com a sociedade Reconhece enfim à experiência de Gorízia originalidade e alto valor científico Dentre o material reunido há também uma carta de Christian Müller Diretor da Clínica Psiquiátrica da Universidade de Lousanne À época esse instituto gozava de notável crédito no mundo científico internacional pelo rigor metodológico e pelo empenho no campo da pesquisa científica A estrutura genérica do instituto no entanto era tradicional seja na utilização da farmacologia seja no campo das psicoterapias Müller em essência não põe em discussão o valor terapêutico do hospital psiquiátrico que critica em sua desumanidade julgando porém que se possa modernizar A carta assume especial significado exatamente porque ao sublinhar as diferenças ideológicas entendidas como concepções científicas diversas reconhece em O Crime Louco 275 Basaglia e em toda a experiência de Gorízia grande valor humano e científico Nessa perspectiva o evento criminoso deve ser lido como um fato isolado que não compromete o acerto do método escolhido Müller declara ao final sua própria admiração pela coragem de Basaglia DR CHRISTIAN MÜLLER PROFESSEUR DE PSYCHIATRIE DIRECTEUR DELA CLINIQUE PSYCHIATRIQUE UNIVERSITAIRE DE LAUSANNE D é c l a r a t i o n Connaissant le Professeur Basaglia et lHôpital psychiatrique de Gorízia je désire prendre position en ce qui concerne le crime qui a été commis par un malade de son hôpital Tout dabord je dois pourtant faire une remarque préliminaire je ne partage pas entièrement lidéologie du Professeur Basaglia et je tiens à souligner que je ne partage pas non plus à tous les égards son point de vue théorique concernant les maladies mentales et leur traitement Ceci dit il me semble important de relever que le travail accompli par le Professeur Basaglia jusquà présent dans son hôpital à Gorízia a une grande valeur Je me sens absolument solidaire avec lui et je lappuie 100 lorsquil dit que depuis des générations et dans beaucoup de pays le malade mental à tort a été traité de façon inhumaine quon a prolongé sans raison suffisante des hospitalisations qui nétaient rien dautre que des séquestrations et quil est grand temps de moderniser et de modifier de façon radicale nos hôpitaux psychiatriques Le Professeur Basaglia na O Crime Louco 276 pas hésité à mettre toute son énergie à loeuvre pour réaliser ce projet Il a secoué les consciences endormies de beaucoup dentre nous et ainsi il est devenu un ferment nécessaire à une restructuration de nos institutions psychiatriques Il sest engagé totalement et na reculé devant aucun obstacle pour atteindre son but qui répétonsle est un but idéal et profondément humain Il faut dailleurs dire que le Professeur Basaglia nest pas le seul dans le monde à avoir ouvert un hôpital psychiatrique et à avoir libéralisé un régime hospitalier En Angleterre par exemple daprès les derniers renseignements recueillis un grand nombre dhôpitaux psychiatriques ne possèdent plus de divisione fermées et il y a un passage tout à fait libre entre lhôspital et lextérieur Quant au crime commis par un malade il faut reconnaître que cest malheureusement aussi un fait qui nest pas isolé et qui peut arriver même dans un hôpital des plus classique et des plus traditionnel Ces années passées en Suisse également nous avons eu plusieurs procès où des malades étant sortis dun hôpital psychiatrique avaient commis des crimes majeurs et où lopinion publique avait accusé le médecindirecteur responsable davoir permis une sortie prématurée A ma connaissance pourtant ces procès se sont soldés par des nonlieux en ce qui concerne laccusation portée contre le psychiatre Certaines réactions danciens malades mentaux stabilisés dans le cadre hospitalier sont en effet imprévisibles La contrainte froide et impersonnelle dans une division fermée dun hôpital psychiatrique où le malade a peu de contact avec autrui ne peut que renforcer en lui un sentiment de revendication et favoriser des actes asociaux La communauté thérapeutique que le Professeur Basaglia a introduite à Gorízia est une tentative de résoudre O Crime Louco 277 les conflits dans le cadre dun groupe et de faire bénéficier le malade de tous les éléments positifs quune collectivité peut donner En résumé je peux donc dire encore une fois ceci il me semble erroné de vouloir attribuer un fait isolé comme celui dun crime commis par un malade mental à un système hospitalier particulier Malgré tout ce qui me sépare du point de vue idéologique du Professeur Basaglia je désire témoigner de ma grande admiration pour son courage son esprit de pionnier et de précurseur ainsi que pour son dévouement total à la cause du malade mental Prof C Müller 13 Ano 1971 Em 29 de janeiro de 1971 o MP junto ao Tribunal de Gorízia requer a extinção do processo em relação a Alberto Miklus com sua internação em manicômio judiciário aliás já efetivada por um mínimo de cinco anos requerendo ainda o envio a juízo de Basaglia e Slavich para que respondam pelo delito de cooperação em homicídio culposo O requerimento ocorre a quase dois anos e meio de distância do evento surpreendendo também porque já passada a primeira fase de forte impacto emocional muitos sinais faziam com que se vaticinasse uma queda das acusações voltadas contra o pessoal médico Basaglia e Slavich nesse meio tempo já haviam deixado Gorízia encontrandose no Hospital Psiquiátrico de Colorno em Parma junto com Lucio Schittar Basaglia voltara há pouco de uma temporada de estudos de cerca de seis meses no Community Mental Health Center do Maimonides Hospital do Brooklyn em New York Outros membros da equipe de Gorízia de 1968 também tinham se transferido Giovanni Jervis e Letizia Jervis Comba estavam em Reggio Emilia Agostino Pirella desde junho de 1971 fora chamado a dirigir o HPP de Arezzo Iniciarase uma espécie de fragmentação O Crime Louco 278 centrífuga do grupo inicial de Gorízia uma diáspora a expressar a vitalidade do movimento tendente a se difundir cada vez mais Em Gorízia a partir de 20 de julho de 1971 permaneceu dirigindo o hospital aberto Domenico Casagrande cercado por uma geração de médicos cuja tarefa era manter o processo instaurado e fazêlo progredir em um contexto que se tornara especialmente difícil tanto fora quanto no interior do hospital Nesse clima uma condenação de Basaglia poderia comportar um efeito particularmente negativo para todo o processo de mudança institucional iniciado em Gorízia e em outras partes da Itália A aposta em jogo era alta fácil entender portanto a intensidade da mobilização que vinha espontaneamente se construindo naqueles dias A acusação de cooperação em homicídio culposo voltada contra os médicos por um delito cometido pelo paciente já suscitava alvoroço pois era de todo inusitada ainda que dedutível da lei então em vigor Mas era evidente que a imputação se movia sob uma lógica claramente repressiva contra o processo de mudança iniciado no HPP de Gorízia É fácil perceber a forçação de barra no envolvimento dos médicos a licença experimental dos pacientes àquela altura era prática consagrada há anos e não apenas no hospital de Gorízia além disso o evento delituoso era imprevisível como claramente ressaltado pelo próprio perito do Tribunal A notícia do envio a juízo foi dada pelo telejornal das 20 horas em 13 de fevereiro e logo reproduzida com grande destaque pelos maiores jornais especialmente extenso e documentado foi o artigo de Zincone no Corriere della Sera A notícia foi divulgada ainda pela imprensa internacional vejase por exemplo o artigo do Le Monde de 20 de fevereiro As declarações de solidariedade foram espontâneas não solicitadas e muito mais numerosas do que as que temos em nosso poder limitadas como já mencionado às mensagens que chegaram em Colorno assim excluídas por exemplo as dirigidas à residência de Basaglia em Veneza que estão em processo de catalogação na sede O Crime Louco 279 da Fondazione Franco e Franca Basaglia em Isola di S Servolo em Veneza Há substancialmente três tipos de mensagens primeiro os testemunhos de amigos e colegas segundo os atestados de diversas entidades institucionais sanitárias e políticas e finalmente as cartas de gente comum na maior parte pacientes psiquiátricos daqueles que ouviram ou leram a notícia nos mass media e quiseram externar sua solidariedade Dentre as declarações dos conhecidos de Basaglia estão as de Sergio Piro protagonista dos processos de inovação no sul da Itália de Eliodoro Novello presidente da associação dos médicos dos hospitais psiquiátricos de Bianca Guidetti Serra pela Associação dos Juristas Democráticos do arquiteto Guglielmo Lusignoli de Laura Weiss filha de Edoardo o aluno de Freud que introduziu a psicanálise na Itália Em especial há a longa carta de Ferruccio Giacanelli um dos promotores da experiência inovadora de Perugia Mesmo não conseguindo de imediato encontrar o fio da meada obviamente vejo uma lógica intrínseca na questão Basaglia e tudo o que representa e quem está com ele ainda incomodam Em um nível próximo de quem te seguiu de perto ou te conheceu de longe o afeto e a indignação são evidentes Há gente e nem tanto médicos mas enfermeiros doentes estudantes que continua a visualizar perspectivas que se solidificam no nome de Basaglia É a minha experiência que comunico assim sem acrescentar nada É uma carta de um amigo que surge da notícia na TV Se o poder retorna ou continua a golpear queria que você sentisse por agora na espera de eventuais iniciativas diversas imediatamente nossa solidariedade e nosso afeto Basaglia enfatizaria o prazer que sentiu com essa carta Ainda mais numerosa é naturalmente a lista dos atestados institucionais Vai de uma coleta de assinaturas feita em Roma para um referendum nacional a favor de Basaglia a declarações vindas do mundo sanitário e psiquiátrico Dentre outros vale citar o Ministério da Saúde os médicos e enfermeiros do hospital Antonini O Crime Louco 280 de Milão os internos e médicos do HPP de Pistoia os de Villa Serena em Milão os médicos e a Comissão interna do hospital psiquiátrico Cerletti de Parabiago o centro italiano de Antropologia Cultural os colegas da Clinica Malattie Nervose Mentali de Nápoles sua atuação deve continuar a ser um dos pontos de referência para aqueles que se recusam a fazer da atividade psiquiátrica uma prática coercitiva discriminatória classista e repressiva a assembléia do Instituto de Psicologia do Conselho Nacional de Pesquisas denuncia o caráter repressivo de tal requerimento de incriminação em face dos impulsos inovadores hoje presentes em algumas instituições psiquiátricas italianas os participantes do Simpósio ítaloeslovenocroata de Psiquiatria Social o Presidente da Sociedade Italiana de Psiquiatria prof Lorenzo Cazzullo a Associazione Medici Organizzazioni Psichiatriche Italiane AMOPI de Modena e especialmente o Escritório Nacional da AMOPI que se dirige ao Ministro da Saúde O episódio judiciário de que são protagonistas os colegas independentemente de nossa plena convicção de que se concluirá com o pleno reconhecimento da validade de uma atuação profissional que conta com toda nossa solidariedade de fato recoloca junto às tristes condições da assistência psiquiátrica na Itália a necessidade de elaboração de novas normas no campo da tutela da saúde mental Estas como demonstra esse próprio episódio só podem se fundar no afastamento de qualquer lei especial na matéria e portanto na abrogação dos dispositivos legais atuais que se de um lado autorizam situações tão frequentemente denunciadas inclusive por nós por outro lado obstaculizam gravemente o pleno desenvolvimento de iniciativas terapêuticas como aquelas pelas quais os Colegas ora correm o risco de ser incriminados Certos de que a magistratura saberá avaliar corretamente a finalidade terapêutica de intervenções que são norma quase cotidiana de nossa atuação de psiquiatras não acomodados submeto tal questão mais uma vez à atenção de VSa em nome do Conselho Diretor da AMOPI para que com a O Crime Louco 281 reforma sanitária possamos logo eliminar qualquer discriminação entre os cidadãos com base em características derivadas de seus distúrbios sejam esses somáticos ou psíquicos Incidentemente essa carta confirma como a partir da interpelação ministerial de 1968 foise construindo por todo o decênio a exigência de uma nova legislação e como o debate científico e político já se movia com base em hipóteses concretas Essa observação deve ser feita para contestar os supostos voluntarismo e improvisação da Lei 180 que para alguns críticos teria se originado simplesmente de uma apressada decisão de evitar o referendum dos radicais de 1978 Também foram muitos os atestados de entidades locais regiões como a Umbria municípios Pistoia Vercelli províncias Bolzano Bolonha Modena Perugia Em especial o conselho provincial de Perugia subscreveu em sessão extraordinária um documento a ser enviado ao Ministro da Saúde ao Presidente da Região Umbria ao Presidente do Conselho Regional aos Presidentes dos grupos parlamentares do Senado e da Câmara dos Deputados O Conselhovisualiza nesse requerimento de incriminação iniciativa que objetivamente ameaça fazer retroceder em anos as conquistas da moderna psicoterapia e o processo de desinstitucionalização dos hospitais psiquiátricos na Itália expressa sua solidariedade professor Basaglia e ao doutor Slavich lembrando que a experiência do Hospital Psiquiátrico Provincial de Gorízia sob a direção do professor Basaglia representou um primeiro e decisivo momento de ruptura com os velhos métodos de exclusão e repressão psiquiátrica em prejuízo daqueles que sofrem em sua própria personalidade as contradições sociais e as carências humanas do ambiente em que são levados a viver reafirma para hoje e para amanhã a validade da linha até aqui seguida em relação à qual diretamente se responsabiliza e se empenha para que superandose a prática de exclusão e institucionalização o problema das doenças mentais sirva para pôr em discussão não só as vítimas mas também o sistema social e os fatores e mecanismos patogênicos que nesse O Crime Louco 282 se enraízam decide apresentar esse documento às demais Administrações provinciais da República Italiana a fim de chegar nessa perspectiva a uma comum tomada de posição responsável e clara Organizações sindicais também tomaram posição a Comissão interna do HPP de Gorízia a CGILCISL do HPP de Arezzo o Sindicato Nacional das Entidades Locais e Hospitalares da CGIL Os trabalhadores hospitalares reafirmando a validade da luta para transformar a sociedade estão próximos de você e expressam toda sua solidariedade e estima Finalmente transcrevemos parte da carta do comitê provincial de Trieste da ARCI Associação Recreativo Cultural Italiana na Itália nos hospitais psiquiátricos morrese nos leitos de contenção e milhares de cidadãos sofrem a realidade da exclusão social nas instituições repressivas Em vez de se voltar contra os responsáveis por essa situação a magistratura abriu um procedimento contra você Está claro pois que se voltando contra você quer se atingir um modo novo de enfrentar o problema psiquiátrico e sobretudo atingir e desencorajar tudo aquilo que de novo surge na Itália Nossa solidariedade para com você será por nós expressa mostrando a todos que enquanto ARCI podemos atingir o que foi e o que é a experiência de Gorízia bem como abordando os problemas das doenças mentais em uma série de debates públicos nos bairros já iniciados no mês em curso Saudações fraternas Particularmente tocantes são as cartas dos pacientes ainda que se deva ter em conta a natural mitificação da figura do médico assistente habitualmente registrada no interior da relação terapêutica por quase todos os pacientes Especial relevância têm as cartas de pacientes que conheceram Basaglia pessoalmente como os membros da Comunidade terapêutica de Gorízia Estamos todos próximos do senhor de coração e estamos todos prontos a sustentar no campo nacional qualquer forma de luta que o senhor entender mais oportuna Ou como Wanda Viotti lhe prestamos perene gratidão pelo bem O Crime Louco 283 que nos fez Peço que me chame como testemunha Igualmente intensos são os testemunhos dos familiares Em um caso lêse Está sempre viva em mim sua nobre e humana obra desenvolvida em relação à minha família através de seu método psicoterapêutico trouxe à minha esposa a alegria de viver livrandoa daquela obsessão depressiva infernal em que vivia há muitos anos O valor dessa prática terapêutica também é enfatizado em outros casos contrapondoa aos horrores do passado Aturdidas e profundamente tristes com o que lhe foi imputado expressamos ao senhor nossa viva solidariedade e permanente admiração por tudo que se originou de sua nobilíssima alma a favor dos pobres doentes mentais VSa Senhor Professor conseguiu em empreendimento excepcional transformar o Hospital Psiquiátrico de Gorízia do verdadeiro lagher que era em uma clínica de tratamento modelo única na ItáliaEsquecese pois o método positivo seu obrar extraordinário a moderníssima terapia que fez milagres salvando tantos internos da apatia e da brutalidade a que estavam reduzidos os doentes daquele hospital Queira receber Ilustre Professor os sentimentos de nossa indefectível estima e permanente gratidão de modo especial por ter melhorado em muito as condições físicas e psíquicas de nosso caro L Há ainda fulgurantes testemunhos de quem não conheceu Basaglia pessoalmente mas sentiu o dever de testemunharlhe o quão importante foram e poderiam continuar a ser no futuro seu trabalho e suas idéias Da Certosa manicomial minha morada com sincero tom da minha Musa sirene heráldica de meus pensamentos e sentimentos quero expressarlhe como os intelectuais e as diversas organizações minha plena solidariedade louvando com loucura pensante sua iniciativa de alto valor humanitário civil e social Assinado CA Hospital Psiquiátrico de Collegno Seção 9 Basaglia nesses casos sempre respondia mostrandose solícito e atento Agradeço profundamente sua solidariedade Faço votos que deixe logo o hospital onde está internado O Crime Louco 284 Como os círculos na água de um pântano que se estendem ao infinito cada vez mais se sentiam envolvidos outros indivíduos desconhecidos e distantes mas próximos na comunhão de ideais e desejo de mudança Egrégio Diretor sou um alcoolista crônico com cirrose hepática e estive internado nos hospitais psiquiátricos de Torino por quatro anos nos dois primeiros anos os hospitais de Torino eram verdadeiros campos de concentração e nos dois últimos anos adotando seu sistema de Gorízia começávamos a nos sentir refeitos o hospital parecia ter se transformado de cárcere em casa de tratamento eu era um dos melhores ativistas que protestavam escrevendo para os vários jornais da Itália sobre os escândalos dos hospitais psiquiátricos de Torino com protestos de doentes de estudantes universitários médicos enfermeiros conseguimos levantar o cerco daquelas enfermarias infernais que mantiveram enclausuradas durante séculos quatro gerações de homens chegamos às portas abertas e de novo se sentia vontade de viver aquela pouca vida que Deus nos deu para viver Os doentes mais alegres menos suicídios sem camisa de força e contenção gente que vai e vem em contato com a sociedade que por anos repeliunos e com conversas com assembléias procuravase fazer entender que também nos hospitais psiquiátricos há gente recuperável Egrégio Diretor com as notícias lidas na imprensa em vinte e quatro de fevereiro fiquei muito oprimido enquanto uma magistratura possa condenar o senhor é como condenar milhares de nós pobres desventurados a voltar aos tempos das camisas de força àquela terrível contenção nas enfermarias fechadas Antes de voltar aos métodos de antes é melhor uma câmara de gás e não nos fazer sofrer mais não é justo que por um devamos pagar milhares de nós infelizes que não temos culpa Egrégio Diretor um conselho peço que me desculpe nas vossas reuniões e conferências é preciso fazer entender à constituição que os manicômios devem ser abolidos e criadas casas de tratamento confortáveis e não cárceres como são ainda hoje os vários manicômios da Itália onde O Crime Louco 285 existem histórias miseráveis suicídios instigações exploração chamada ergoterapia e o senhor tem muito mais experiência do que eu todas essas casas de punições não ajudam a recuperar os doentes em muitos casos pioram o estado de saúde e tornam o doente privado de qualquer esperança de retornar à sociedade que infelizmente é uma sociedade muito doente e agrava nossa situação de voltar a ser cidadãos livres penso que os senhores se sentem mal como médicos psiquiátricos como nós nos sentimos mal por muitos fatores o primeiro o bom senso das famílias e o bom senso da sociedade que nos descarta a cada minuto do dia e nos elimina moralmente e em muitos casos financeiramente pois não nos dá trabalho Respeitosamente Assinado LM Há ainda as pessoas comuns aquelas não diretamente atingidas pelo problema da doença mas que sentem necessidade de participar emocionalmente do evento Sou formado em direito e comerciante de máquinas e utensílios Quero transmitirlhe meus sentimentos de mais forte consideração alinhome totalmente ao seu lado considereme à sua inteira disposição para tudo que se fizer necessário E junto ao formado em direito há tantos outros nomes alguns indecifráveis tantas pessoas tantas históriasSão declarações testemunhos que nos fazem compreender o quanto o processo de reforma foi verdadeiramente resultado de uma presença harmoniosa que em sua determinação e coragem tornou possível o impossível O Crime Louco 286 2 Perspectivas de reforma da imputabilidade e do correspond ente tratamento sancionatório Francesco Maisto 21 A sentença Raso e o Projeto Grosso O alinhamento de enfoques jurisprudenciais aos resultados da pesquisa interdisciplinar fundante de projetos de lei de reforma inclusive setorial do ordenamento jurídico não é fenômeno novo na história italiana das relações entre evolução normativa e evolução jurisprudencial Em tal contexto não é de se espantar que a sentença Raso das Seções Reunidas da Corte de Cassação66 chegue aos mesmos resultados do penúltimo projeto de reforma do código penal o chamado projeto Grosso sobre a questão da relevância dos distúrbios da personalidade enquanto causa idônea a excluir ou reduzir significativamente em via autônoma e específica a capacidade de entender e querer Na verdade um exame atento dos pontoschave do aprofundado inusitado e original iter motivacional da sentença põe em evidência algumas fundamentais passagens argumentativas comuns que enfatizam inclusive os dois Relatórios do Projeto Grosso67 em matéria de inimputabilidade Surgem relevantes pelo menos três linhas de argumentação comuns Francesco Maisto é Presidente do Tribunal de Execução Penal de Bologna Intervenção análoga ao presente artigo foi apresentada pelo Autor por ocasião de seminário promovido pela Região Toscana e pela Fundação Michelucci os registros do seminário foram reunidos posteriormente no volume Ordine Disordine 2007 Fondazione Michelucci Firenze 66 Cass S U 251 832005 n 9163 in DPP 2005 843 ss com Comentários de M Bertolino ivi 853 in CP 2005 1862 ss com nota de G Fidelbo Le Sezioni unite riconoscono rilevanza ai disturbi della personalità ivi 1873 ss in RIDPP 2005 410 ss com nota de M T Collica Anche i disturbi della personalità sono infermità mentale ivi 421 ss mas v também F Centonze Limputabilità il vizio di mente e i disturbi di personalità in ibid 247 ss 67 in RIDPP2001574 ss E in httpwwwristrettiitareestudiogiuridiciriforma articolatogrossohtm O Crime Louco 287 aos dois elaborados voltados para a motivação da necessidade da reviravolta interpretativa da enfermidade de modo a compreender também um outro grave distúrbio da personalidade O primeiro argumento comum à sentença e ao Relatório do Projeto diz respeito à relevância do conceito de pena a ser privilegiado em relação à determinação dos limites da imputabilidade sendo óbvio que da ótica retributiva ou da preventiva em especial no aspecto da ressocialização derivam consequências diversas sobre os limites da imputabilidade cfr 42 Cass cit e Rel pag1 Portanto seja o espaço interpretativo seja o reformador não podem se limitar ao perfil epistemológico devendo sim ter em conta os possíveis e diversos tratamentos sancionadores como um todo68 O raciocínio da Corte para dizer a verdade bastante difuso articula se ao longo de duas diretrizes essenciais em uma leitura sistemática orientada pelos princípios constitucionais da individualização da responsabilidade penal e da função reeducativa da pena a imputabilidade não deve permanecer estranha ao conjunto dos elementos que justificam a punição do autor do crime na perspectiva da reprovabilidade de seu comportamento de sua culpabilidade Quaisquer que fossem as opiniões dos compiladores do código a imputabilidade não pode a essa altura ser mera capacidade de pena consistindo muito mais em capacidade de crime ou melhor capacidade de culpabilidade Nesse sentido é evocada a jurisprudência constitucional sobre a pertinência da culpabilidade no significado mínimo de consciência da antijuridicidade do comportamento com a estrutura constitucionalmente imposta ao fato criminoso é amplamente citada em especial a decisão que afirmou a parcial ilegitimidade do art 5º CP sent no 364 2324 março 1988 O sentido da reflexão é evidente toda margem interpretativa há de ser utilizada para o fim de assegurar a correspondência entre o conceito normativo de imputabilidade e a capacidade efetiva do agente 68 D Pulitanò Limputabilità come problema giuridico in AAVV Curare e punire Milano1985 O Crime Louco 288 de compreender o desvalor da conduta e se comportar de acordo com as prescrições do ordenamento O segundo argumento comum ao pensamento do Reformador e do Juiz de legitimidade diz respeito à preocupação de assegurar as condições da melhor adequação do sistema jurídico ao saber científico pag3 2º Rel Proj não se podendo prescindir em cada caso dos conteúdos do saber científico no enfoque do plano do juízo normativo após o preliminar juízo biológico 110 Cass cit Em terceiro lugar surge comum tanto à linha interpretativa quanto à legislativa a necessidade de utilizar conceitos abertos que respeitando o princípio da legalidade definam de modo claro os parâmetros de referência permitindo ao mesmo tempo uma adequação flexível ao mutamento ao progresso dos conhecimentos científicos e em geral às concepções pertinentes pag2 2º Rel Proj Com efeito a sentença 12 após evocar as características cláusulas abertas das mais recentes legislações de outros países qualifica tais fórmulas abertas como idôneas a atribuir relevância também aos distúrbios da personalidade para os fins da imputabilidade do sujeito ativo Nesse ponto não seria deslocado falar não apenas de ação sinérgica ou de reforço recíproco entre as argumentações da sentença e as dos dois relatórios do Projeto Grosso mas também de uma maturação no tempo do tema da imputabilidade por uma reflexão jurisprudencial do mais alto nível 22 Necessidade da Reforma É notório porém que as incertezas de juízes e peritos plasticamente representadas no caso definido pelas Seções reunidas são frequentes e relevantes desorientando a opinião pública inclusive recente interessada nesse mais do que em outros temas dada a gravidade dos acontecimentos em que em geral é posto dentre outros o problema da capacidade de entender e querer do acusado Com efeito ao típico caráter opinativo em que se manifesta a aplicação de um parâmetro normativo como certamente é a imputabilidade se soma a forte O Crime Louco 289 conotação crítica da ciência psiquiátrica historicamente69 marcada pelo confronto entre divergentes visões da patologia mental das concepções puramente biológicas de suas origens até o movimento da chamada antipsiquiatria Se é verdade que hoje prevalece um enfoque de tipo integrado ao fenômeno do desconforto mental o ponto de equilíbrio entre as diversas sensibilidades permanece variável e discutível É claro que toda mudança dos limites dentro dos quais a noção de doença é contida pela ciência psiquiátrica se resolve mais ou menos diretamente em um ajuste da composição ínsita ao sistema jurídicopenal entre lógicas de garantia individual e exigências de prevenção Nessas condições segundo alguns manifestase forte déficit de taxatividade posto na base inclusive de exceções de legitimidade constitucional previsivelmente resolvidas pela Consulta no sentido da manifesta inadmissibilidade ord no 374 29 novembro2 dezembro 2004 Diante deste quadro de qualificadas incertezas do mundo jurídico de instável alarme social e contrastes científicos mostrase cada vez mais necessária uma reforma da vigente legislação sobre a inimputabilidade por enfermidade Certamente a estrutura do art 94 do Projeto Grosso assumindo traços comuns aos da sentença Raso se de um lado mostra se ampliativa e promotora da adequação da expressão enfermidade para usar as palavras de M Bertolino em seus comentários às Seções Reunidas70 por outro lado seguramente mostrase idônea a uma distinção rigorosa entre as várias condições psíquicas que podem ou não integrar o conceito de enfermidade pondose de maneira mais ou menos consciente como barreira à temível prática judiciária de mera ratificação dos resultados periciais e excessivo recurso à absolvição por falha na imputabilidade Barreira aliás de certa urgência para o êxito da recente evolução da disciplina da periculosidade social e das 69 Para uma reconstrução histórica do conceito de imputabilidade a partir das doutrinas da escola clássica A Manna Limputabilità nel pensiero di Francesco Carrara in IP2005467 ss 70 Ainda em M Bertolino cit O Crime Louco 290 consequentes medidas de segurança Todavia a urgência não estaria a justificar a omissão de opções progressistas indicadas pela doutrina mais atenta às garantias e pelas ciências do comportamento como a abolição do duplo binário penasmedidas de segurança e da suspeita categoria da periculosidade social A necessidade dessa reforma do conceito de imputabilidade enquanto norma básica de uma Reforma do código ou enquanto norma básica de uma Reforma setorial abrangente com perfis interdisciplinares substanciais processuais de execução penal e ordina mentais deriva também do caráter ilusório da resistência da ordem normativointerpretativa vigente É verdade que no estágio atual não têm sido proferidas decisões de Seções da Cassação em desconformidade com a sentença Raso aliás vale remarcar a decisão conforme de no 16574 da 1ª Seção em 3 de maio de 2005 aos distúrbios da personalidade também pode ser atribuída uma atitude cientificamente aceita a se propor como causa idônea a excluir ou reduzir significativamente a capacidade de entender e querer do sujeito ativo princípio que se põe em perfeita consonância com o disposto no art 85 CP e com a orientação constitucional Os distúrbios da personalidade devem porém ser de consistência relevância e gravidade tais de modo a concretamente incidir sobre a capacidade de entender e querer com efeito estes como em geral os de neuroses e psicopatias mesmo quando não enquadráveis nas figuras típicas da nosografia clínica inscritas no mais estrito rol das doenças mentais podem constituir enfermidades ainda que temporárias para os fins dos artigos 88 e 89 CP determinando pois o mesmo resultado de prejudicar total ou significativamente a capacidade de entender e querer mas por outro lado não se podem silenciar as preocupações com os efeitos de aplicações excessivamente abertas das duas sentenças pontuais da Corte Constitucional de ilegitimidade constitucional do art 222 CP internação em HPJ e do art 206 CP aplicação provisória das medidas de segurança na parte em que permitem ao juiz nos casos previstos adotar no lugar da internação em hospital psiquiátrico judiciário medida de segurança diversa prevista em lei idônea para O Crime Louco 291 assegurar tratamentos adequados para o doente mental e para fazer frente à sua periculosidade social Corte Constitucional sentenças no 253 de 2 de julho de 2003 e no 367 de 17 de novembro de 2004 23 Os projetos de Reforma O grande alcance da sentença Raso já justificaria o destaque dado à sua motivação inclusive pelas sinalizações às perspectivas de Reforma tomadas em consideração de um lado no 40 com o fim de marcar a distância no seio do garantismo em relação à datada doutrina sobre a crise do conceito de imputabilidade e às correlatas propostas de abolição dessa própria categoria concretizadas nas propostas de lei no 177 de 1983 e no 151 de 1966 e assumidas por outro lado com a citação de cada artigo 130 desde o Projeto Pagliaro71 ao Projeto Ritz72 até as duas versões do Projeto Grosso qual uma confirmação da exatidão da abrangência do grave distúrbio da personalidade como ulterior e possível condição de enfermidade Pareceria possível nesse ponto sustentar uma posição unânime sobre a fórmula aberta assim como formalizada podendo surgir como ainda atual o destaque de autorizada voz da doutrina segundo a qual a Corte de legitimidade finalmente abriu os olhos para ver aquilo que já estava diante dos olhos de todos73 Mas recentemente o próprio prof Grosso74 recomendando grande atenção para a matéria da imputabilidade augurou uma nova formulação das causas de incapacidade total ou reduzida a sustentar o conceito de enfermidade enquanto causa de nãopunibilidade ou redução da 71 O Projeto foi publicado em M Pisani org Per un nuovo codice penale Padova 1993 72 O Projeto foi publicado juntamente com o Relatório introdutivo in RIDPP 1995 927 ss sobre esse ponto v ainda I Merzagora Limputabilità nel disegno di legge no 2038 Libro primo del codice penale in RassItcrim1996 227 ss 73 M Bertolino in Dignitas no 52005 74 In Alcune priorità per la Riforma del sistema penale sostanziale in Un progetto per la giustiziaIdee e proposte di rinnovamento orgs L Pepino e N Rossi Milano 2006 pag233 O Crime Louco 292 pena acrescentando que o conceito usado no Projeto utilizando uma noção que nos debates especializados não goza de compartilhamento incontestado deverá portanto ser repensado considerando as diversas orientações científicas que dividem os estudiosos da matéria Até desnecessário assinalar que este último Projeto deixa para trás a formulação mais restritiva do chamado Projeto Nordio75 evocada na sentença Raso embora com o limitado escopo de confirmar o ancoradouro comum da noção de enfermidade Com efeito está bastante claro que mesmo se movendo como recita o Relatório da Comissão pag29 2º pela irrenunciabilidade da referência à enfermidade e declarando ter presentes as diversas orientações fundadas nas clássicas conquistas científicas da psiquiatria da criminologia e da medicina legal este texto mais redutivo tem por objetivo evitar o que qualifica de dispersões aplicativas abertas a todos os mais originais e diversificados fenômenos numa perspectiva meramente psicológica ou emocional quando nunca para impedir nesse delicado campo fórmulas genéricas e onicompreensivas do tipo distúrbio psíquico distúrbio da personalidade fenômenos conforme práticas censuráveis avaliados inclusive por nãoespecialistas psiquiátricos ou médicolegais com base em parâmetros socioculturais do tipo da abusada figura do sujeito dito borderline Resta claro que o projeto Nordio mesmo descrevendo a incapacidade de entender e querer como possibilidade de compreender o significado do fato e agir de acordo com tal valoração amparase unicamente na enfermidade à diferença do Projeto Pagliaro que articula ao lado da enfermidade mental outra anomalia sem ulteriores especificações com consequente perda de determinação e à diferença do projeto Ritz que ao lado da enfermidade em geral e não só mental articula a eventual gravíssima anomalia psíquica de sentido excessivamente restritivo A noção de grave anomalia é retomada pelo Projeto Preliminar Grosso no sentido mais completo de incidência sobre condições mentais de modo a compreender a ilicitude do 75 publicado in CP 2005 243 ss O Crime Louco 293 fato e agir de acordo com tal valoração Mas tal noção de anomalia é substituída no texto de 26 de maio de 2001 pela de grave distúrbio da personalidade essa também como no texto precedente incidente nas condições mentais diferente do estado mental dos Projetos Pagliaro e Ritz como capacidade de compreender o significado do fato ou de agir de acordo com tal valoração Podemos então realizar um esforço ou uma reflexão suplementar motivada por algumas constatações Por mais que se trate de perfil léxico e semântico levandose em conta que as disciplinas jurídicas têm a característica peculiar de conter pouquíssimos termos realmente sinônimos logo se anuncia às vezes com vestes críticas ou polêmicas e outras vezes com subreptícia repetitividade uma série de argumentações que com o transcorrer do tempo vão perdendo cada vez mais o contato com os conhecimentos das disciplinas psiquiátricas adquiridos ao contrário de maneira suficientemente estável Assim acontece por exemplo com os distúrbios da personalidade como atualmente se tende a denominar um vasto e complexo âmbito grosso modo coincidentes com os limites de psicopatias chegando a ser definidos como simples anomalias de caráter quando há muito tempo já é sabido que estes constituem na realidade entidades bastante complexas e articuladas A técnica legislativa deveria então ser menos sintética e mais descritiva não permitindo assim que um termo científico possa ser reconduzido a múltiplos e diversos diagnósticos Foi e é essa a orientação das Regiões Toscana e Emilia Romagna escoltadas por ampla reflexão interdisciplinar promovida pela Fundação Michelucci de Fiesole e também com base no debate entre os operadores de saúde mental do Serviço Sanitário Nacional e da Administração Penitenciária orientação essa formalizada nos projetos de lei ex art 121 II Const apresentados na precedente legislatura e prontos para apresentação na que apenas se inaugurou Embora esses articulados utilizem os termos clássicos de imputabilidade capacidade de entender e querer e enfermidade em primeiro lugar definem a capacidade negativamente como a de quem não apresenta graves alterações da consciência e análise da O Crime Louco 294 realidade sendo capaz de avaliar o sentido dessa análise em relação à própria conduta Em segundo lugar relacionam a inimputabilidade à enfermidade ou à grave anomalia psíquica ou ainda à grave diminuição sensorial produtoras de um tal estado mental que exclua a capacidade de entender e querer Facilmente se percebe que mesmo essa linha de pensamento se move no sulco dos Projetos Grosso Ritz e Pagliaro claramente divergindo da orientação radical que etiquetada como ideológica pelo Relatório do Projeto Grosso independentemente da necessária reserva garantista estaria a repropor a ambiguidade e a periculosidade de uma sanção penal detentiva mais ou menos atenuada mas de todo modo necessariamente terapêutica 24 O tratamento dos sujeitos inimputáveis Bem sabem os especialistas das ciências do comportamento e os estudiosos das fórmulas mágicas das ciências jurídicas o quanto conceitos e palavras podem ser manipulados igualmente conhecendo perfeitamente a preponderância do factum sobre o dictum bem como o impacto da material e concreta substância aflitiva ou punitiva sobre a vida das pessoas envolvidas no circuito penal Nesse quadro constitui ensinamento exemplar o embuste das etiquetas que se aninhou na história do conceito de periculosidade social e nos institutos jurídicos e materiais das medidas de segurança detentivas Sem deixar de recordar as fundadas motivações dos movimentos de pensamento crítico e práticas alternativas à institucionalização total convém que nos limitemos a constatar que embora com amplas diferenças todos os Projetos de Reforma perpetuam a periculosidade social e as medidas de segurança ainda que com novas denominações O Projeto Grosso lúcida e realisticamente sintonizado com o modelo italiano de Reforma psiquiátrica embora acolhendo a instância doutrinária e clínica de substituição do critério da periculosidade social pelo da necessidade de tratamento e controle determinado pela subsistência das condições de incapacidade que deram causa ao delito de competência institucional O Crime Louco 295 diversa da justiça penal e portanto em elogiável ótica redutora de limitação aos delitos dolosos ou culposos contra a pessoa ou contra a incolumidade pública ou aos delitos contra o patrimônio puníveis com reclusão mas segundo o diverso sistema sancionatório da Reforma não escapa ao final de se ancorar no perigo concreto para a internação em uma estrutura fechada com finalidades terapêuticas Diversamente o Projeto Nordio não renuncia a definir o estado de periculosidade social mas subsumindo na definição geral os elementos que no Projeto Grosso representam apenas as condições para a aplicação das medidas prevê dentre outras a internação em uma estrutura judiciária de custódia com finalidades terapêuticas O Projeto das Regiões que vale repetir sendo setorial engatase no vigente sistema sancionatório não tendo podido levar em conta a recente Lei no 251 de 5 de dezembro de 2005 a chamada lei Cirielli de todo modo inverte a ordem entre periculosidade e medidas de segurança limitando a aplicação de quaisquer medidas de segurança aos delitos dolosos punidos com reclusão superior a dois anos e o encaminhamento a uma instituição somente a hipóteses de delitos dolosos punidos com reclusão não inferior a dez anos A noção de periculosidade social é integrada para além da probabilidade de prática de novos delitos com indicadores de verificação obrigatória a gravidade do fato e a circunstância do crime ser uma reiteração de precedentes condenações especialmente relevantes as condições que determinaram a incapacidade de entender e querer a relevância e subsistência das mesmas a adesão a possíveis intervenções terapêuticas a concreta situação relacional e ambiental inclusive em consequência do crime cometido Em seguida o Projeto dispõe sobre normas organizacionais e conscientemente normas de natureza regulamentar a fim de garantir a efetiva regionalização das instituições a redução de suas dimensões a vigilância atenuada o encaminhamento ao centro psiquiátrico de diagnóstico e tratamento de uma instituição O Crime Louco 296 penal por excepcionais exigências de segurança por determinação da Administração penitenciária recorrível nos termos do art 14 ter OP a distinção entre autonomia organizacional e de gestão interna do SSN e gestão do serviço de custódia externa por parte do DAP As modificações de caráter processual dizem respeito à perícia destinada exclusivamente à verificação da imputabilidade enquanto a determinação da periculosidade social é reservada ao juiz Disciplinam se em seguida o quesito pericial o procedimento das operações periciais com especial referência à pluralidade das visitas o quadro dos peritos psiquiatras O juiz deve motivar sua decisão sobre a imputabilidade de maneira específica e não com mera referência às conclusões periciais De especial relevância enfim embora um tanto desatualizada em relação à recente Lei no 46 de 20 de fevereiro de 2006 a chamada lei Pecorella sobre a irrecorribilidade das sentenças absolutórias por parte do MP e da Parte Civil que assim contempla a impossibilidade de um segundo juízo de mérito com base em novas perícias determinadas pela Corte de Apelação a previsão da ampliação da disciplina da revisão nos termos dos arts 629 ss CPP das sentenças de absolvição por incapacidade e das sentenças condenatórias fundadas na imputabilidade do condenado no caso de inconciliabilidade com homóloga decisão contida em outra sentença transitada em julgado e no caso de inconciliabilidade com decisão do magistrado ou do tribunal da execução penal As incertezas as demasiadas incertezas acumuladas em décadas especialmente nesse setor do ordenamento em que se somam crises e crises da crise da imputabilidade à da capacidade de entender e querer à da enfermidade à crise do próprio conceito de doença em geral para não falar da doença mental até à crise da noção de periculosidade social exigem afinal algum ancoradouro mas acredito que a tentação autoritária das certezas impostas terá vida curta Com efeito também na normatização da era da globalização é preciso ajustar contas com uma visão do ordenamento que ainda que O Crime Louco 297 se queira esquecer a lição de Flavio Lopez de Onate e de Calamandrei76 deve de todo modo excluir a certeza dos objetivos realistas de um ordenamento pósmoderno Como com efeito ensina Gustavo Zagrebelsky77 a fixidez que é um aspecto da certeza não é mais elemento portador dos atuais sistemas jurídicos o déficit de certeza daí derivado não podendo ser remediado Quando muito devese pensar em organizar essa tendência à transformação intrínseca ao ordenamento de modo a não tornála destrutiva de outros valores como a igualdade jurídica a previsibilidade a imparcialidade e o caráter nãoarbitrário da ação administrativa e judiciária pois é duvidoso que a certeza seja mesmo desejável 25 O Projeto Pisapia Os princípios da delegação ao Governo para promulgação do novo Código Penal elaborado pela Comissão presidida pelo advogado G Pisapia acolhem todos os argumentos críticos até aqui expostos e utilizando técnica normativa descritiva que explicita escolhas decisivas e claras finalmente dissolvem as antigas fórmulas híbridas secularmente cristalizadas As misturas entre pena e tratamento entre responsabilidade penal e terapia são finalmente superadas A imputabilidade encontra sua colocação sistemática no Título III O crime no art 22 e definitivamente desaparece a tão infame categoria da periculosidade social em consequência o Título IV dita somente a disciplina das penas distinguindoas em penas pecuniárias penas de interdição penas prescritivas dentre as quais não estão configuradas medidas de tratamento eou de controle e penas detentivas A consequência adquire um caráter épico pois são abolidos não só o HPJ e a Casa de tratamento e custódia mas também todas as outras medidas de segurança pessoais detentivas e nãodetentivas e patrimoniais 76 La certezza del diritto Milano1968 pag167 ss 77 Il diritto mite Torino1992 pag202 ss O Crime Louco 298 O art 22 alínea a do Título III define e disciplina a imputabilidade antes de tudo com consciente descrição negativa não aproximativa não é imputável quem não tem a capacidade de entender e querer Tratase portanto de definição até aqui bastante ampla O art 23 por sua vez se limitase a prever sem nenhuma definição a capacidade reduzida indicando em seguida as finalidades do tratamento e o regime sancionatório Naturalmente permanece inalterado o critério temporal de vinculação da imputabilidade ao tempus commissi delicti À verificação e declaração de inimputabilidade de todo modo vincula se à aplicação de uma medida de controle e tratamento Introduzidas categorias eventualmente alternativas à capacidade de entender ou de querer prosseguese na alínea b com a linha descritiva e explicativa de fórmulas amplas e abertas que tratam a incapacidade como inadequada ou de inexistente compreensão do significado do fato ou de todo modo de agir segundo tal capacidade de valoração A amplitude da fórmula estaria a permitir a subsunção direta tanto da enfermidade quanto dos graves distúrbios da personalidade no âmbito da inimputabilidade mas para evitar incertezas de ambientes psiquiátricos a alínea c especifica dentre as causas de exclusão da imputabilidade a enfermidade os graves distúrbios da personalidade a intoxicação crônica por álcool ou substâncias entorpecentes desde que relevantes em relação ao fato praticado Para ulterior determinação na alínea d excluise qualquer presunção de imputabilidade prevendose a necessidade de redefinir os limites nos quais o incapaz de entender ou querer por embriaguez ou entorpecimento responde pelo fato praticado por ter se colocado de forma culpável em tais condições As alíneas f g e h do parágrafo 1º do art 22 e o parágrafo 3º preveem a aplicação obrigatória de medidas de tratamento e controle indicando porém os seguintes critérios 1 Referência qualitativa à necessidade do tratamento 2 Referência quantitativa isto é duração não superior à duração da pena aplicável ao agente imputável 3 Determinação judicial da duração da medida O Crime Louco 299 4 Interrupção da execução da medida quando não se mostre mais necessária a fins reabilitadores 5 Agravação ou atenuação da medida ope iudicis no sentido da faculdade de impor quer uma medida menos restritiva conforme o bom andamento do percurso reabilitador quer mais restritiva no caso de violações de prescrições Finalmente o parágrafo 2º indica as medidas de tratamento e controle eventualmente aplicáveis em via alternativa ou gradual estruturas terapêuticas protegidas comunidades terapêuticas liberdade vigiada associada a tratamento terapêutico obrigação de se apresentar eventualmente associada a tratamento terapêutico encaminhamento aos serviços sociossanitários atividades laborativas ou prestação de serviços à comunidade Tratase pois de um amplo leque de medidas que exigirão a sábia conformação por parte do Juiz na necessária colaboração com os operadores sociossanitários O Crime Louco 300 VIII Conclusões Ernesto Venturini 1 As sentenças Propusme confrontar os percursos processuais dos quatro episódios os quatro incidentes na dicção basagliana para verificar se as sentenças exprimiriam uniformidade ou diferenças significativas Em primeiro lugar devo constatar duas aparentes obviedades A primeira diz respeito ao progressivo aumento da complexidade dos processos aumenta sua duração os graus de juízo aumenta o tamanho das sentenças a quantidade de referências a precedentes jurisprudenciais Aumentam especialmente a quantidade e o peso das perícias no primeiro processo de Gorízia atuaram somente o perito do MP e o da defesa no processo de Ímola no entanto interagiram nove peritos os seis do Tribunal eventualmente expressando opiniões contrastantes entre si Surgem no todo aquelas incertezas de juízes e peritos de que fala Maisto em sua análise sobre a imputabilidade Em especial tornase evidente a dificuldade de se encontrar um ponto de equilíbrio entre as lógicas de garantia individual próprias do sistema jurídicopenal e as exigências de prevenção e tratamento derivadas dos conhecimentos científicos das práticas pósreforma A segunda obviedade diz respeito à redação dos vereditos As sentenças formalmente parecem não querer entrar no mérito dos métodos de tratamento atuais limitandose a levar em consideração apenas a responsabilidade direta dos indivíduos baseandose na análise dos fatos como é natural Em alguns casos como no processo Savarin essa orientação é declarada explicitamente Nos processos Miklus e Savarin Basaglia é absolvido porque é demonstrada a ausência de qualquer envolvimento seu nos eventos que levaram aos fatos criminosos falta qualquer nexo de causalidade que ligue sua atuação como diretor da instituição ao crime No processo Miklus por acaso O Crime Louco 301 é a acusação do Ministério Público que entra pesadamente no mérito do processo de tratamento pondo em discussão a modalidade e a licitude das licenças dos pacientes exigindo a notificação preliminar das forças de segurança pública reforçando enfim o valor da custódia Mas no curso do processo facilmente se demonstra a inconsistência da acusação e a superficialidade das investigações Jogam a favor dessa solução os pareceres dos peritos o nomeado pelo juiz que nega a previsibilidade do evento e o da defesa que põe em discussão o próprio conceito de periculosidade social por enfermidade mental Também no processo Savarin a acusação põe em discussão a licitude e regularidade das liberações dos pacientes São utilizados argumentos inconsistentes fundados em meros pretextos como o analfabetismo da mãe do paciente liberado Percebemse nas argumentações da acusação instâncias ideológicas que pretendem frear o processo de desinstitucionalização Objetase em essência quanto à legitimidade da liberação de pacientes que com base em diagnósticos preconceituosos são tidos como socialmente perigosos Será fácil demonstrar que Basaglia agiu no rigoroso respeito das normas em vigor Também nesse caso são os peritos que reforçam a posição de Basaglia o perito do juízo com efeito não demonstra nenhuma incerteza ao declarar que o paciente no momento da liberação não era perigoso nem para si nem para terceiros No segundo incidente de Trieste e no de Ímola é fortemente chamada a responsabilidade institucional do médico em relação ao paciente essa responsabilidade não pode ser eliminada nem pelo caráter episódico da relação como no caso Trani nem por razões de caráter organizacional inerentes à complexidade do sistema de tratamento como no caso de GM Não se excluem as concausas e corresponsabilidades mas estas segundo os juízes não reduzem a relevância da relação médicopaciente em seus deveres e direitos No processo de Trieste a acusação se move sobre elementos inconsistentes tentando demonstrar a imperícia dos médicos na avaliação diagnóstica da paciente Mas também nesse caso é o O Crime Louco 302 consultor técnico da Procuradoria que redimensiona a acusação demonstrando como o eventual erro não é de tal monta a configurar um crime de culpa profissional A sentença absolve os acusados demonstrando a falta de qualquer nexo causal entre a omissão imputada aos médicos e o evento criminoso Diverso é o destino dos acusados nos processos de Ímola aqui é mais complexa a verificação das responsabilidades a coordenadora da residência é condenada no processo em primeiro grau e o médico julgado com o rito abreviado é condenado por homicídio culposo com sentença definitiva da Cassação Nesse caso os peritos do MP falam de uma previsibilidade do evento pondoa em relação com o comportamento dos acusados Em essência é na fase instrutória no envio a juízo na controvérsia entre peritos mais do que nas sentenças que se pode mais facilmente perceber o desencontro ideológico que perpassa o tema do tratamento e do controle é naquele âmbito que se podem identificar os argumentos críticos as hibridações entre a responsabilidade penal e a terapia mas também permitamme dizer os preconceitos que paralelamente a qualquer outro argumento influenciam as decisões dos peritos e dos juízes 2 O erro profissional O que dizer a propósito da responsabilidade dos médicos assistentes Logo me viria a objeção de que hoje no setor sanitário público e especialmente no psiquiátrico as intervenções terapêuticas são cada vez menos ligadas à relação médicopaciente e cada vez mais determinadas por outros fatores requerem o envolvimento de um grupo de trabalho são feitas por mais pessoas reportamse à organização sanitária como um todo A exclusividade do tratamento por parte do médico e assim sua exclusiva responsabilidade penal e civil pode parecer anacrônica mas não é de modo algum mesmo diante de uma complexidade de sujeitos e funções O Crime Louco 303 permanece invocada a responsabilidade do indivíduo Eis porque é exatamente a análise atenta dos fatos que constitui a fase crucial do processo permite separar as responsabilidades dos indivíduos das responsabilidades da organização como um todo Essa análise deveria distinguir porém o erro humano evento não frequente mas tampouco excepcional fruto de circunstâncias nem sempre facilmente previsíveis do que ao contrário se caracteriza como culpa profissional grave por relevante imperícia imprudência e negligência ou por inobservância de leis regulamentos e disciplinas Reportandonos à casuística deste livro que reflexões podem ser feitas quanto à problemática do erro humano No caso Trani como já mencionado o perito da Procuradoria admite por exemplo um erro dos médicos acusados mas esclarece que este não fora de tal monta a configurar o crime de culpa profissional Vale a pena pois refletir brevemente sobre a distinção entre erro médico leve e culpa profissional grave Para esse fim utilizaremos a catalogação dos erros incluída no documento Risco Clínico na Saúde elaborado pelo Ministério da Saúde da Itália No caso Miklus o erro pareceria ser de tipo latente imputável a carências na planificação de estratégias foi subestimado o papel negativo que o contexto no caso a mulher de Miklus poderia ter durante a licença do paciente Não por acaso no novo paradigma do tratamento serão exatamente os familiares que passarão a assumir cada vez mais um papel ativo na reabilitação do paciente No caso Savarin o problema também é de tipo organizacional demonstrase a cisão entre a velha anacrônica organização o Centro de Higiene Mental administrado sob uma ótica burocrática e o modelo da desinstitucionalização que ao contrário exige dos profissionais uma profunda responsabilização Serão os futuros Centros de Saúde Mental que irão recompor no interior do projeto terapêutico as anteriores divisões No episódio que diz respeito à senhora Trani os médicos segundo o MP teriam cometido um erro de habilidade técnica slips equivocandose no diagnóstico Tal hipótese porém O Crime Louco 304 demonstrarseá durante o processo incorreta e fundada em mero pretexto Se se quisesse falar de erro terseia que se referir à omissão dos enfermeiros que não comunicaram as ameaças feitas pela paciente No caso de Ímola enfim os erros do médico foram considerados pelos peritos como sendo do tipo comissivo por imperícia na administração dos remédios Em minha opinião porém tiveram maior relevância os erros do tipo omissivo na gestão das problemáticas existenciais do paciente e de sua crise Todavia mais relevantes do que o erro humano foram os erros organizacionais latentes comportando equívocos comunicativos dentre os quais sem dúvida e antes de tudo os mais importantes e determinantes foram as graves violações e omissões da cooperativa que administrava a residência As posteriores mudanças estruturais e organizacionais do DSM procuraram suprir tais carências Sou levado a pensar no entanto que em nossos serviços de saúde mental os erros infelizmente não parecem destinados a se reduzir Os operadores com demasiada frequência estão aprisionados em uma cultura tecnicista de rendimentos carente de raciocínio clínico conforme um modelo de pensamento fundado em uma espécie de teste de múltipla escolha que confunde os meios com os fins e se deixa esmagar sob o esquema redutivo do DSMIV Esse comportamento sacrifica qualquer criatividade crítica do pensamento aumentando em consequência o risco de erro Ao contrário há quem tenha uma visão otimista da condição dos serviços julgando prioritário declarar por exemplo quão deslocado seria hoje reportar a psiquiatria ao velho registro basagliano Se tal declaração servir para reprovar quaisquer posturas de mitificação do passado a insistir em retóricas e nostalgias de supostas idades de ouro em vez de enfrentar os desafios do presente então poderemos compartilhá la Se no entanto pretende zerar uma cultura de transformação institucional porque não homogênea e embaraçosa para os atuais projetos de transformação dos entes públicos em empresas será preciso afirmar então que o contrário é que é verdadeiro que na O Crime Louco 305 psiquiatria da Lei 180 seja no interior dos serviços de saúde mental seja nos tribunais verificase muito pouca presença do registro basagliano Quase não se encontra sua coragem seu proceder socrático sua entrega seu rigor científico Há muito pouco basaglia e ao contrário precisaríamos de tanto Definitivamente não é tão importante catalogar os erros Muito mais importante é produzir nas organizações sanitárias a efetivação de mecanismos eficazes de controle e prevenção permitindo melhor gestão das consequências sociais e jurídicas do erro Sendo evidente que o erro médico é um evento plausível não podemos submeter os médicos envolvidos ao desgaste de enfrentar sozinhos um percurso judiciário muitas vezes alucinante percurso que só se concluirá após vários anos impondo custos elevados tanto do ponto de vista psicológico quanto social e profissional Na Itália o número de causas contra médicos está em progressivo aumento e continuará a aumentar Se é justo pôr fim ao comportamento submisso do paciente e de seus familiares diante de um poder médico autoreferenciado não se pode deixar de notar o quanto esse aumento seja atribuível sobretudo a lógicas de mercado à avidez dos indivíduos e às distorções impostas pelas seguradoras Naturalmente muito está sendo feito nesse sentido por parte dos sistemas sanitários mas ainda resta tanto a fazer Certamente o caso de Ímola constitui um exemplo negativo no que se refere ao comportamento desejável em circunstâncias similares Com efeito a Empresa Sanitária Local e a Cooperativa não quiseram anuir logo após o incidente com as reivindicações dos familiares demonstrando miopia e escasso apoio a seus próprios empregados com o que induziram um percurso procedimental longo e mortificante para os acusados Poderseia objetar que é prática consolidada no processo civil se orientar pelo resultado do processo penal os próprios institutos seguradores se movendo sob tal perspectiva Mas o contrário também é verdadeiro É certo que a solução de um contencioso civil e nesse caso tratavase de um acidente de O Crime Louco 306 trabalho teria tornado menos áspero o confronto penal sem que se coloque em dúvida a absoluta autonomia dos dois processos Mais uma consideração a respeito do cenário das causas médicas indenizatórias no qual estamos nos movendo seria preciso ressaltar o papel que jogam na incidência dos erros profissionais as políticas da chamada racionalização das despesas sanitárias Essas políticas reduzindo drasticamente os recursos frequentemente levam a organização a se mover nos limites da segurança na corda bamba provocando falta de motivação e confusão entre os operadores Mas quase nunca os promotores dessas políticas se sentam no banco dos réus 3 O incidente Poderia parecer que essas considerações sobre o erro estariam a liquidar o conceito de incidente usado por nós se há erro não há incidente A teoria do incidente somente se justificaria como um expediente para escapar de um doloroso dilema excluindose o erro técnico do psiquiatra estarseia confirmando a periculosidade social do paciente psiquiátrico que no entanto se quereria negar admitindo se a previsibilidade do evento estarseia confessando a culpa do psiquiatra Dito de outra forma os eventos aqui apresentados poderiam ter sido evitados Para responder é preciso estar atento e não confundir os planos de análise sobre os quais estamos nos movendo O da análise do erro técnico é um plano abstrato um plano do fácil post hoc Não diz respeito ao passado voltase sim para o futuro servindo para avaliar a experiência e evitar que os incidentes se repitam O plano da realidade o plano fático das responsabilidades é outra coisa Essa confusão é bastante comum e com frequência espelhase exatamente nas análises periciais Se nos colocarmos no plano fático deveremos ter presentes pelos menos dois tipos de problemas O primeiro diz respeito ao conhecimento dos fatos devemos supor que além dos O Crime Louco 307 fatos descobertos existam outros que desconhecemos e podem ter sido determinantes na dinâmica dos eventos Como psiquiatra sei bem por exemplo que uma intervenção terapêutica conscienciosa e bem conduzida pode ficar comprometida simplesmente por um olhar uma palavra dita por um estranho uma circunstância fortuita Todo um trabalho difícil e complexo pode ser destruído em um instante sem que sempre possamos saber as razões Naturalmente a busca da responsabilidade jurídica necessariamente diz respeito apenas aos fatos conhecidos mas a consciência da complexidade das relações própria do âmbito psíquico deveria nos levar a prudentemente considerar com profundidade e atenção a hipótese do incidente O outro tipo de problemas se refere à responsabilidade difusa de que falei pouco antes a propósito das organizações sanitárias Podemos supor que a pessoa tida como responsável por um evento muitas vezes seja apenas aquela que foi encontrada com o famoso fósforo aceso nas mãos quando aconteceu o evento Mas perguntome não seriam igualmente responsáveis todos aqueles que anteriormente passaram esse fósforo entre as mãos Não teria talvez uma forte carga de responsabilidade aquele que decidiu operar Michela Trani de leucotomia invalidandoa por toda a vida e reduzindo sua possibilidade de controle dos impulsos Ou será que não seria responsável por despedaçar uma vida aquele que mandou MG para o manicômio judiciário por uma simples resistência a funcionário público E será que não teriam culpa aqueles que alimentando o clima de guerra com base no atentado de que foi objeto Miklus provocaram lhe um sentimento angustiado de alarme contra uma realidade persecutória O escritor Fredrich Dürrenmatt nos ajuda a compreender esse aspecto com um paradoxo Em seu romance Justiz 1987 fala de um rico e conhecido suíço Isaak Kohler que mata um ilustre professor universitário no meio de um restaurante não sem antes têlo cumprimentado cordialmente Após se deixar docilmente prender e elogiar os juízes pela condenação a vinte anos que lhe foi imposta vai satisfeito para a prisão e se torna um detento modelo sem jamais revelar contra qualquer lógica investigatória alguma motivação para seu O Crime Louco 308 gesto Um dia porém Kohler convoca à prisão o jovem advogado Spat pedindo que reexamine o caso a partir da hipótese de que não seja ele o assassino Tratase de um desafio aparentemente sem sentido todos viram o homicida disparar mas o desafio acaba por ser vencido concluindo com a absolvição de Kohler Com efeito demonstrase que existiam outras pessoas com sérios motivos para cometer o homicídio e que foram impedidas de fazêlo somente por circunstâncias fortuitas como somente por circunstâncias fortuitas o homicida se achava no restaurante sua ação fora apenas uma dentre as tantas declinações possíveis da realidade e sua culpa não era maior do que a de tantos outros O incidente parece nos dizer Dürrenmatt não seria talvez a trajetória de uma das tantas oportunidades conforme a teoria dos incidentes latentes Em todo caso para além de qualquer digressão literária ou de qualquer provocação fica claro a partir da documentação produzida que os eventos de Trieste e o de Gorízia não eram absolutamente previsíveis constituindose portanto em incidentes Para o fato de Ímola é possível supor certa previsibilidade mas como precisarei mais adiante não a previsibilidade que aparece nas sentenças 4 A imputação de homicídio culposo em delito doloso e a posição de garantidor Tentarei focalizar agora o problema da imputação de homicídio culposo em delito doloso No caso Miklus falase de cooperação em homicídio culposo no caso Savarin de homicídio culposo plúrimo e no caso Trani de cooperação em homicídio culposo Neste caso o juiz nota que a pouco feliz formulação da Acusação pode fazer surgir a dúvida sobre se a imputação feita aos médicos não consistiria em uma participação culposa destes em um homicídio doloso cometido por outrem figura claramente atípica pois não prevista na lei como crime Mas no caso de Ímola falase explicitamente em homicídio culposo O que se atribui aos acusados é uma clássica hipótese de O Crime Louco 309 cooperação em um homicídio culposo autônomo em relação a um delito voluntário posto em prática por um paciente Atribuise aos médicos a causação da morte de outrem por imprudência imperícia e negligência mediante a concessão de uma licença a omissão de uma internação a suspensão de remédios É preciso ter presente que os fatos Miklus e Savarin antecedem a entrada em vigor da lei de reforma psiquiátrica e portanto as acusações são condizentes com a normativa em vigor naqueles anos Para ambos os casos foi formulada ainda uma segunda acusação de descumprimento de dever que faz referência exatamente à Lei 1909 O caso Trani se situa no meio do percurso entre o velho e o novo modelo de tratamento O incidente acontece em 1977 e a sentença de primeiro grau é proferida em 1980 quando a lei da reforma fora há pouco promulgada Nesse caso em todos os três graus de jurisdição as sentenças se colocam na esteira da nova lei reforçando as instâncias inovadoras Seria de se esperar que também no processo de Ímola fossem ratificados os princípios de tratamento da lei de reforma fundados em instâncias terapêuticas e não mais em instâncias de controle social Mas não foi assim Ou melhor os princípios da reforma são invocados em palavras mas são invertidos em sua essência através do recurso ao conceito da posição de garantidor do psiquiatra em relação a terceiros Examinando os processos anteriores que se desenvolveram sobre hipóteses acusatórias similares terseia a impressão de que a posição de garantidor e a imputação de concurso em homicídio culposo estariam sendo quase mais temidas do que verdadeiramente buscadas uma espécie de força de dissuasão usada para reconduzir o psiquiatra a uma função de controle social Mais cedo ou mais tarde no curso da fase instrutória ou no julgamento introduziamse dissertações interpretativas sobre a leitura cruzada dos dois artigos do Código Penal o art 42 e o art 113 contornandose uma acusação que surgia como despropositada e excessiva talvez mesmo para os próprios juízes Sob essa ótica se move por exemplo o douto recurso do advogado Kostoris contra a sentença proferida na Apelação no O Crime Louco 310 processo Trani Na mesma perspectiva o requerimento de rejeição do incidente probatório promovido pelo GIP no processo de Ímola O requerimento que refuta qualquer hipótese de concurso culposo em ilícito doloso é especialmente documentado Faz referência a recentes aprofundamentos jurisprudenciais segundo os quais seria essencial a consciência da cooperação para que se possa verificar o requisito psicológico adicional e indefectível da participação ressalta ainda que a exigência de unicidade do crime em concurso excluiria a possibilidade de uma diferenciação do elemento subjetivo entre os corréus Mas sobretudo o GIP no requerimento de rejeição refuta a hipótese de uma posição de garantidor dos acusados Com efeito esse tipo de responsabilidade pressupõe a precisa identificação do resultado a ser impedido supondo a disposição por parte do sujeito garantidor de um concreto domínio do curso causal que o provoca assim indicando também sua possibilidade de intervir sobre o mesmo de maneira significativa Estes pontos não correspondem à situação em exame A hipótese da posição de garantidor seria rejeitada pelo GIP também sob o aspecto objetivo causal pelo simples fato de estarem os acusados chamados a responder não mais por um fato próprio mas por um fato de outrem O MP acolhe essas instâncias e decide arquivar o procedimento por ser infundada a notícia de crime na medida em que os elementos trazidos pelas investigações preliminares não parecem idôneos a sustentar a acusação em juízo não parecendo que tenha resultado uma doença em sentido técnico no referido homicida mas sim mais simplesmente uma falha no controle farmacológico da preexistente patologia psicótica Como é sabido o requerimento foi rejeitado pelo GUP que não entrou no mérito das argumentações do colega limitandose a citar em matéria de responsabilidade profissional a sentença no 4827 da Suprema Corte Seção Pen IV de 3 de fevereiro de 2003 Percorrendo a tese positiva da admissibilidade da imputação o GUP de certa forma escreve a sentença antes mesmo de qualquer debate processual Não rebaterá uma linha da Defesa que nega O Crime Louco 311 qualquer responsabilidade do médico atolandose em uma disputa estéril sobre a eficácia de alguns miligramas de psicofármaco Mas na realidade o GUP78 comete um equívoco quando confunde o fato de o médico assumir diretamente a posição de garantidor em relação ao paciente com o fato não contemplado normativamente conforme a lei da reforma psiquiátrica de assumir tal posição em relação a terceiros por não ter impedido a morte de C que na qualidade de destinatário de uma posição de garantidor tinha o dever jurídico de impedir O juiz em essência ratifica a legitimidade da acusação de concurso culposo em delito doloso evocando de forma absolutamente discutível a sentença da Cassação Cass Pen seção IV 9 de outubro de 2002 no 39680 que afirma a responsabilidade de quem abandonando material perigoso pode provocar um dano a terceiros Mas comparar uma pessoa ainda que esta pessoa seja um paciente psiquiátrico perdoemme a amarga ironia a um material viscoso é algo totalmente desconcertante Por outro lado é oportuno observar ainda em relação à evocação pelo juiz da posição de garantidor que não estamos diante de pessoas interditadas o parecer pericial de incapacidade é posterior aos eventos Trata se de um erro conceitual e um preconceito confundir os doentes psíquicos com os interditados Igualmente anacrônica diante das mais modernas concepções da doença mental é a assimilação do paciente psiquiátrico ao menor Por outro lado o juiz cai em contradição porque para sustentar a responsabilidade garantidora do psiquiatra ressalta a inadmissibilidade do ato doloso por parte do paciente enquanto incapaz de entender e querer mas logo depois admite que não se pode excluir que o paciente possa cometer um ato intencionalmente A esse propósito a moderna doutrina fala com relação aos estados psicológicos dos incapazes de entender e querer em pseudodolo e pseudoculpa 78 Nota à edição brasileira GUP é a abreviação de Giudice dellUdienza Preliminare ou seja o juiz da audiência preliminar aquele que decide sobre a admissibilidade da acusação e assim sobre o envio a juízo O Crime Louco 312 Na realidade a Cassação no processo Trani introduziu um conceito de extremo interesse que vale a pena destacar a morte da criança por obra de Trani não pode ser qualificada como delito doloso devendose entendêla como de fato o foi um puro e simples fato jurídico isto é um acontecimento modificador da realidade com consequências jurídicas mas não enquadrável no conceito de crime por absoluta falta do elemento essencial da vontade Trani foi absolvida na instrução por total incapacidade de entender e querer no momento do fato Portanto a questão há de ser posta como corretamente o foi pelos juízes de mérito exclusivamente no plano do nexo de causalidade Assim enquadrada teve a única exata e lógica solução como apontado nas conclusões da sentença impugnada Como se vê a questão do homicídio culposo em delito doloso não está resolvida ainda esperando por uma solução 5 Uma sentença discutível Baseandome na documentação produzida permitome afirmar que a sentença da Cassação no 10795 de 11 de março de 2008 foi infundada Ou melhor a Cassação simplesmente verificou a legitimidade das decisões dos juízes de mérito reafirmou princípios de direito mas nem poderia ser de outra forma deu como certas a validade e a indiscutibilidade dos pareceres dos peritos do juízo que no entanto de fato não o são79 O que surge amplamente discutível é exatamente a demonstração do nexo de causalidade e do conceito de previsibilidade e possibilidade de evitar o resultado Nesse caso é errado o nexo de causalidade baseado na inidônea utilização dos psicofármacos O verdadeiro nexo de causalidade 79 Esta aliás a opinião de ilustres expertos Fiori A Buzzi F Problemi vecchi e nuovi della professione psichiatrica riflessioni medicolegali alla luce della sentenza della Cass Pen N 107952008 Rivista Italiana di Medicina Legale n 6 2008 pagg 1438 1455 O Crime Louco 313 para se compreender as razões do homicídio de CA reside eventualmente no comportamento da vítima no fato desta assumir um papel objetivamente persecutório independentemente de qualquer boa intenção Esse nexo de causalidade se torna evidente no comportamento reativo de MG com precisas e explícitas ameaças Poderseia objetar que MG proferia ameaças também para outros operadores da estrutura mas examinando bem estas eram profundamente diversas eram diversas com um tom depressivo ligadas ao luto sofrido As voltadas contra CA eram ao contrário raivosas vingativas inequívocas pessoais A dinâmica dos fatos especialmente o clima de desafio e confronto físico entre os dois ocorrido poucas horas antes do crime tornam manifesto esse nexo causal Ainda que atenuada pela introdução do conceito de concausa vai nesta direção a sentença de Ímola de 23 de junho de 2006 que condena a responsável pela estrutura adotando uma reconstrução dos fatos diversa da exposta pelo Tribunal de Bolonha Mas a Cassação retoma a sentença do Tribunal de Bolonha e ratifica o nexo causal identificado pelos peritos do MP Segundo este parecer a causa do homicídio deve ser formulada fora de qualquer enunciação mais elaborada nestes termos toda suspensão ou redução de determinada quantidade de psicofármaco cuja eficácia tenha sido demonstrada em um esquizofrênico paranóico inequivocamente conduz ao cometimento de um ato criminoso Naturalmente não se quer negar o peso que uma redução farmacológica possa ter sobre as condições psíquicas de um sujeito ou sobre seu diminuído controle dos impulsos mas francamente este reducionismo e este automatismo nada têm de científico Como tentei demonstrar a periculosidade social por doença mental é bastante discutível não podendo existir qualquer determinismo entre o simples diagnóstico de paranóia e um comportamento de periculosidade Podese falar no máximo em probabilidade mas não em certeza São outros os fatores que sustentam a periculosidade de um sujeito sua história as violências sofridas e praticadas o estigma etc Naturalmente quando estes O Crime Louco 314 fatores se fazem presentes no paciente psiquiátrico e provavelmente isto acontecia no caso de MG podem concorrer para favorecer a periculosidade do sujeito mas a problemática não pode ser reduzida a um simples sistema de vasos comunicantes entre um diagnóstico e a quantidade de determinado psicofármaco presente no sangue O raciocínio da Cassação se baseia na demonstração de um nexo de causalidade na dinâmica do fato inexata e viciada por um preconceito ideológico a automática periculosidade do paciente portador de esquizofrenia paranoide Os peritos não utilizaram corretamente os critérios probabilísticos e sobretudo não se valeram de um critério de contraprova A sentença baseandose em um parecer técnico errôneo contradiz a sentença Franzese pressupondo uma conduta devida que impedisse o resultado hic et nunc a qual na realidade não o teria impedido Esta sentença se constitui portanto em um erro jurisprudencial à maneira de outro qualquer erro médico 6 A voz ausente Do quanto expresso nesse livro resta absolutamente evidente que a verdadeira periculosidade reside na noção de periculosidade social por doença mental Este conceito e as consequentes medidas de segurança em Hospital Psiquiátrico Judiciário têm sido responsáveis por grandes sofrimentos e grandes injustiças Há que se concordar portanto com quem deseja sua imediata eliminação80 Em especial há que se concordar com as modificações ao Código Penal propostas pela Comissão Justiça da Câmara presidida por Giuliano Pisapia Analogamente entendo que se deva dar o mais convicto apoio ao Projeto das Regiões coordenado pela Fundação Michelucci e 80 Vejase Documento della Commissione congiunta delle Società Italiane di Criminologia Medicina legale e Psichiatria publicado em Quaderni Italiani di Psichiatria volXXIV março 2005 e posteriormente nas revistas oficiais das três sociedades Sociedade Italiana de Criminologia Sociedade Italiana de Medicina Legal e Sociedade Italiana de Psiquiatria O Crime Louco 315 apresentado ao Parlamento o qual pretende o esvaziamento dos HPJs e a implantação de soluções alternativas ao encaminhamento para aquelas instituições Dentre outras coisas tais atitudes se fazem imperativas diante dos trinta e dois anos de uma lei de reforma que foi mutilada em sua plena realização Entendo ainda que é preciso análoga determinação para abolir a total inimputabilidade por enfermidade mental naturalmente estandose atentos a não confundir o caso de graves alterações orgânicas do cérebro com o de graves estados confusionais81 Com efeito os estudos das neurociências em relação às psicoses graves prudentemente têm verificado a impossibilidade de se excluir plenamente toda capacidade de entender e querer do paciente psiquiátrico Além disso como já amplamente argumentado declarar o doente mental totalmente incapaz de entender e querer significa prejudicar as possibilidades terapêuticas inseridas no processo de responsabilização Significa em essência violar o direito da pessoa ao tratamento Em todo caso é preciso ter consciência de que não obstante qualquer tipo de intervenção normativa o tema da doença mental sempre permanecerá em aberto pois neste campo são poucas as certezas e quanto mais aprendemos mais se torna evidente o quanto ainda desconhecemos É imperativo portanto um comportamento de grande cautela e inteligente abertura Um comportamento que corretamente interprete por exemplo o significado da posição de garantidor atribuída ao psiquiatra Quando se fala em posição de garantidor vimos que do ponto de vista jurídico fazse referência a duas configurações a de proteção e a de controle Com a primeira devemse afastar os riscos e 81 Ibidem A hipótese de um vício parcial da mente é portanto a que hoje melhor corresponde ao atual sentir científico que vê o doente mental na maioria dos casos como imputável embora com uma capacidade limitada por sua doença Em nossa opinião consequentemente o vício parcial da mente deveria ser a figura a que com maior frequência deverseia recorrer diante de um distúrbio mental cuja expressividade sintomatológica no momento do fato vinculese causalmente ao delito praticado O Crime Louco 316 ameaças em relação ao bem jurídico protegido com a segunda devem se evitar perigos para terceiros por parte do bem jurídico posto sob controle Tratase induvidosamente de funções diversas que deveriam ser atribuídas a sujeitos diversos Depois dessa sentença como anota o colega Euro Pozzi82 impõese ao psiquiatra a tarefa de responder a esse paradoxo lógico com efeito cumprese o primeiro dever desatendese o segundo e viceversa respondese ao que é ditado pelo segundo dever e inevitavelmente se trai o primeiro Em outras palavras ou defendemos o paciente da doença e às vezes também da sociedade que com frequência o marginaliza ou defendemos a sociedade do louco fonte de perigo e assim o marginalizamos Em suma a sentença da Cassação está em aberta contradição com a própria função do ato de tratamento comprometendo em seus fundamentos a relação de confiança entre o médico e seu paciente Isso não diz respeito tanto ou somente à lei 180 a sentença entra sim em conflito com o próprio Juramento de Hipócrates É de se perguntar neste ponto como passados mais de trinta anos da promulgação da lei e após o novo paradigma do tratamento ter se enraizado tão profundamente na prática ainda seja possível adotar uma símile leitura da responsabilidade do médico assistente O que parece emergir é a percepção de um substancial atraso no qual se movem determinados setores da jurisprudência Muitas vezes no cotidiano das práticas dos serviços de Saúde Mental percebe se claramente que para além de afirmações genéricas existe no pensamento oculto de alguns juízes a atribuição de uma substancial periculosidade aos pacientes psiquiátricos esquizofrênicos Os Tratamentos Sanitários Obrigatórios e a subsistência dos Hospitais Psiquiátricos Judiciários instituições vergonhosas e arcaicas são exatamente por eles interpretados como uma implícita confirmação desta periculosidade Pressionados pelas tantas instâncias de insegurança percebida não desconhecem a necessidade de 82 Euro Pozzi Posizione di garanzia e Legge 180 compatibilità o antitesi O Crime Louco 317 tratamento do paciente mas enfatizam as exigências de controle social sem entender que é exatamente a resposta à necessidade de tratamento que permite resolver tais exigências No entanto não são os juízes que representam o aspecto mais crítico do problema Os juízes no fundo escutam os expertos e fundam suas considerações naquilo que estes elaboram Assim é com amargor que se há de admitir que no próprio campo médicolegal e criminológico ainda se revelam graves atrasos na recepção do novo paradigma psiquiátrico Posicionandose nos limites dos sistemas sanitários nem sempre participantes das práticas dos serviços territoriais não envolvidos em uma reforma que mexeu profundamente com o paradigma do tratamento na Saúde83 mas não no paradigma do direito na Justiça alguns desses colegas custam a se libertar dos preconceitos da periculosidade social do paciente psiquiátrico e dos rígidos esquemas dos diagnósticos tradicionais Às vezes é exatamente o jogo dialético do processo que os constringe a assumir papéis de que não estão totalmente convencidos Outras vezes como já descrito é a perícia a pôr em movimento mecanismos inconscientes nos quais se segue a rigidez diagnóstica do colega e se ostenta um erudito conhecimento da velha psiquiatria Esta é uma condição estrutural na qual alguns dos meus colegas estão aprisionados A existência do Hospital Psiquiátrico Judiciário e a manutenção do conceito de periculosidade social e das medidas de segurança não aprisionam apenas os pacientes aprisionam também os profissionais e os expertos Qual poderia ser portanto a solução para sair do impasse atual É preciso que a sociedade reconquiste a paixão pela justiça e a coragem das reformas Pois é por exemplo exatamente pela falta de reforma dos aparatos psiquiátricojudiciários que o paciente está totalmente ausente destes contextos Não se ouve sua voz não se conhecem suas razões não existe a necessidade de se confrontar com suas 83 Vejase Venturini E Prendersi cura della cura Psicoterapia e Scienze Umane Franco Angeli 2009 XLIII 3 381398 O Crime Louco 318 necessidades Incapaz de entender e querer o cidadãopaciente psiquiátrico não existe Tanto é rica sua presença e seu protagonismo em alguns serviços de saúde mental quanto é imensamente vazia sua realidade no sistema judiciário Ali estão os expertos que falam em seu lugar Mas seria verdadeiramente possível falar no lugar de outra pessoa Enquanto a voz do cidadãoloucoresponsável por um crime não estiver presente nas salas de audiência dos tribunais enquanto não for reconhecido seu direito de ser julgado e eventualmente até condenado enquanto a linguagem do poder não tiver que se confrontar com a linguagem dos diferentes dos loucos compreendendo que os cânones da normalidade não são absolutos mas sim relativos e contextuais enquanto isso não acontecer a linguagem dos expertos será um balbucio presunçoso e contraditório e ainda teremos de prever tanto sofrimento e tantas dores incidentes O Crime Louco 319 BIBLIOGRAFIA Bibliografia geralAAVV Crime and the Responsible Community A Christian Contribution to the Debate about Criminal Justice a cura di Scott J e Miller N London 1980 AAVV Tutela della salute mentale e responsabilità penale degli operatori A cura di A Manacorda Perugia Centro studi e Politici della Regione Umbria 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morto queria que cortassem seu pescoço o que não lhe causaria nenhum mal pois já estava morto VENTURINI p10 Na entrevista com os peritos Giovanni se mostra tomado por delírios e medos privado da responsabilidade por seus gestos é privado do decorrer do tempo Diz Já estou morto Mais do que um delírio essas palavras parecem uma reflexão sobre o trágico destino que o persegue e que chegou ao seu ato final A profecia se realiza a derrota é irremediável agora ele está no buraco negro do HPJ Em 23 de setembro de 2003 Giovanni morre no HPJ de Reggio Emília VENTURINI p3940 Quem responde pelo assassinato de Rivière Giovanni e tantos outros mortificados pela pedra sepulcral do silêncio como disse Althusser Ernesto Venturini com sua obra O crime louco traznos a apresentação da repetição irrefletida que durante mais de dois séculos tem sido recolhida do cotidiano dos procedimentos que movimentam os tribunais criminais sobretudo quando o processo judicial visa esclarecer a responsabilidade em caso de crime cometido por pessoas designadas como doentes mentais a partir da tese que os julga como incapazes de entender e de querer antes mesmo de seu atocrime O Crime Louco 337 Nesse livro percorremos a trajetória dirigida por essa tese antecipada instalada como pressuposto a orientar a leitura dos fatos e a condução dos processos Fomos aos confins dessa presunção para constatar que invariavelmente o destino processual e a vida dos envolvidos nesses casos sofrem a consequência mortífera de tal suposição Como se fosse natural desde o século XIX não é levamos em consideração a responsabilidade do sujeito que por vezes enlouquece sua voz estará ausente do processo expertos falam em seu lugar O que esperar da tese Incapazes de entender e de querer A partir de quatro casos diferentes o autor nos mostra o mesmo o cúmulo do absurdo gerado pela tese de que os ditos loucos são incapazes de responder por seus atos O sistema de justiça italiano decidiu mover suas engrenagens a procura dos responsáveis pelo incidente uma vez que os autores do ato não poderiam sêlo As investigações focaram naturalmente os psiquiatras e trabalhadores dos serviços de acompanhamento daqueles tidos como responsáveis pelos loucosperigosos Entenderam que os especialistas em saúde mental devem estar em posição de alerta permanente admitindose que o dever de impedir danos a terceiros resulta da posição de garantidor dos profissionais que acompanham o tratamento nas redes de saúde mental O que eles devem garantir O controle da ordem social Essa necessidade e suposto dever é herdeira da suposição de que os ditos loucos são monstros perigosos Sendo assim desde a desconstrução dos manicômios os especialistas e serviços de saúde mental passariam a ter no imaginário de tantos a função inequívoca de serem os corpos substitutivos dos muros dos hospícios cuja tarefa seria a de contenção da loucura e dos danos que esta provavelmente causaria a terceiros O livro que pudemos ler traz evidências inequívocas de que aquele que manifestou algum episódio de doença diagnosticado como mental no percurso de sua vida geralmente desaparece O Crime Louco 338 enquanto sujeito esmagado pela classificação científica A doença segundo a tese dos especialistas o transforma em doidoincapaz e loucoperigoso para sempre mesmo que potencialmente Tal veredicto passa a exigir do poder público mecanismos de controle permanentes Ao serviço de saúde mental pressupõem o dever de cuidar disso Os autores avaliaram que os incapazes de entender e de querer impõem ao poder público a obrigação de tutela permanente O dito louco foi suposto objeto aos cuidados de outrem cujo dever seria o de assumir a posição de garantidor seja na via da proteção que impõe o dever de preservar o objeto protegido de todos os riscos que possam atingir a sua integridade e a de controle que impõe o dever de neutralizar eventuais fontes de perigo exercício de atividades perigosas VENTURINI p 16 Os trabalhadores da assistência em saúde mental foram tomados pelo poder público como os responsáveis por o que acontecer aos doidosincapazes pois a crença na ciência é de tal sorte presunçosa que parte do delírio a ideia de que a ciência psiquiátrica teria consigo os instrumentos científicos válidos para realizar previsibilidades Kafkanianamente desenrolam os processos Seguimos sua leitura O crime louco revela que o delírio de controle do risco presumível no corpo marcado pelo diagnóstico tornou o próprio sistema de justiça enlouquecido As sentenças criminais ao conter os corpos a serem controlados mostramse incapazes de impedir os danos que geram na vida dessas pessoas Sua subjetividade e singularidade foram trituradas pelo trator nosológico deixando essas pessoas quase sempre incapazes de se protegerem e se defenderem face aos julgamentos que silenciam a sua voz promovendo o apagamento do sujeito e de suas respostas de sociabilidade O silêncio da voz do autor do crime louco é gritante No caminho das elucubrações do pensamento de outrem lemos o registro dos que falam em seu nome Uma vasta documentação processual é gerada e fica evidente para quem sabe ler que a loucura O Crime Louco 339 não está instalada no corpo do sujeito que cometeu o crime e sim no corpo documental que procura a verdade sobre a responsabilidade de um ato cujo autor foi silenciado Os resultados de tal esforço engendrado pelas engrenagens periciais e forenses acumulam um conjunto de ficções variáveis os laudos periciais como se fossem registros da verdade Apesar da precariedade de suas teses esse amontoado ficcional mostra se suficiente para subsidiar o sistema de controle social que ávido para eliminar o risco se revela pouco rigoroso engolindo qualquer ideologia como se fosse a verdade O risco não é eliminado por certo todos sabem Incapaz de oferecer a promessa de garantia tal parafernália ilusionista desaparece com o sujeito agora reduzido a um simples objeto para exame e controle de outro Esta tem sido a tese dominante e mortífera a conduzir os casos de sujeitos que em momento de sofrimento intenso realizaram um ato fora da lei Contudo nossa experiência com a loucura exige que ofereçamos resistência O crime louco dá um passo nessa direção Ernesto Venturini realiza uma análise minuciosa do discurso que anima as conclusões dos expertos demonstrando que são as ideias preconcebidas dos peritos e não o real do caso em si que amarram as costuras de seu julgamento Mas o flagrante da precariedade das conclusões dos procedimentos sobre o incidente notório abismo entre as ficções periciais e o real de cada acontecimento ou seja a evidência de sua fragilidade não parece ser suficiente para reduzir a força da sentença sempre danosa para o sujeito dito louco e emudecido pelo processo sempre catastrófica para o projeto de saúde mental que desde Basaglia busca reinserir a loucura de cada um no mapa da humanidade Orientados quanto ao real somos todos responsáveis Ernesto escreve esse livro porque não pode deixar de fazêlo Sente a necessidade de dar a sua chave de leitura dos fatos sobretudo porque esses casos são paradigmáticos para uma reflexão em todos os campos sobre os temas da responsabilidade da periculosidade e O Crime Louco 340 da inimputabilidade em psiquiatria VENTURINI p28 Sua obra é a resposta extraída de suas análises dos processos e da conjuntura política italiana frente às relações entre a loucura o direito penal a psiquiatria segregacionista e o projeto de saúde mental É sua responsabilidade A exposição e leitura da complexidade que nutre tal cenário descortinanos a honestidade intelectual do autor ao localizar os furos o erro o impossível as contingências que cotidianamente atravessam a experiência de uma proposta de saúde mental que suporta a convivência e por ser intrinsecamente tecida por sujeitos humanos está sujeita ao real Em determinado momento do texto quase anotei em suas margens as impressões que se impunham ao pensamento assentadas em hipóteses sobre o que não aconteceu Divagava E se outra posição fosse assumida pelos cuidadores pelos responsáveis pelo serviço pelos médicos psiquiatras E se outra orientação servisse de guia para ler os sinais apresentados naqueles dias Talvez outra direção do tratamento teria se imposto talvez pudéssemos presumir que as consequências registradas seriam outras se fossem outras se fossem outros Será que seria possível ao saber garantir o controle sobre o real Basta seguirmos adiante na leitura do texto corajoso de Venturini se suportarmos a emergência da nossa própria divisão para consentirmos com o real implacável a esburacar o frágil véu do saber com o qual por vezes pretendemos encobrir o impossível e proteger a suposição de um saberzinho qualquer Há um impossível de saber Não há como abolir a contingência não é possível prever a resposta a tal emergência seja médico paciente juiz educador familiar etc É no intervalo variável do cruzamento das respostas dos sujeitos em suas múltiplas possibilidades que o real se impõe sobre toda experiência humana Os fatos acontecem a partir dessa contingência Cálculos probabilidades estamos atentos Mas não há garantias Que estejamos então orientados quanto ao real O Crime Louco 341 A partir dessa chave de leitura o que a experiência com o acompanhamento de sujeitos encaminhados ao projeto de saúde mental nos deixa saber Podemos destacar no relato dos quatro casos desta obra a importância a ser dada ao saber do sujeito sobre o seu sofrimento a necessária construção do caso pelos vários que o acompanham o partilhar dos elementos recolhidos no percurso do sujeito e que indicam suas respostas e impasses seu saber fazer frente ao seu próprio sofrimento limites e possibilidades A transmissão do saber que é recolhido do cotidiano do acompanhamento frequentemente é a bússola que nos serve de guia para estabelecer a convivência e o cuidado pretendido entre os vários que passam a integrar uma determinada rede social Cada sujeito tem seu modo de vida seu sintoma e o modo de ter acesso à sua singularidade é dar lugar para o que ele nos ensina sobre o seu jeito de se apresentar a cada vez em cada encontrodesencontro O cuidado no acompanhamento de casos em saúde mental deve supor mais saber no sujeito que sofre do que nos manuais de psiquiatria Considerar as respostas do sujeito como demonstração de sua posição subjetiva e delas se servir como orientação em seu acompanhamento é uma direção para o tratamento Supor que ali tem um sujeito capaz de apresentar suas angústias e localizar seu sofrimento é condição primeira para sustentação ética e clínica de um projeto de saúde mental substitutivo à clausura e à tortura dos manicômios Somos responsáveis por considerar e inserir as respostas do sujeito no tecido da rede social que o concerne e que nos diz respeito quando ele nos confere um lugar ao seu lado É com isso que construímos a direção desse acompanhamento Enfim a condução do acompanhamento deve orientarse pelo cálculo desenhado das respostas recolhidas no cotidiano do cuidado que sofre das variações singulares daquele que fala daquele que escuta daquele que registra É gente cuidando de gente Portanto fica claro a importância da formação das pessoas que estão envolvidas O Crime Louco 342 nesta rede de atenção desde os especialistas em saúde até aqueles que cuidam das rotinas sociais e domésticas A formação para acolher e tratar o sofrimento humano é para todos sem distinção Aqui não registramos hierarquia todos estão ligados ao movimento da vida como ela é e que nem sempre é óbvio claro e direto Somos todos responsáveis Certo é que viver é perigoso diria Guimarães Rosa portanto navegar é preciso responde Fernando Pessoa Todos os dias ao sair de casa para cumprir o roteiro fazemos um cálculo da trajetória o fazemos melhor quando estamos esclarecidos e bem formados para realizar as manobras necessárias do percurso mas imprevistos acontecem e nem sempre se mostram a tempo de mudarmos a direção Pois é a vida humana não é matemática O detalhe imprevisto a causalidade pulsional invariável sempre aparece para mudar o rumo A razão não governa sempre Um dia não é igual a outro as variações de humor e de atenção também alcançam os sujeitos psiquiatras psicólogos assistentes sociais educadores peritos juízes etc no exercício de suas funções Perturbações inconfessas sem sentido desconhecidas atravessam sem dizer de onde vieram e exigem respostas para seu sossego É humano Só depois nos lembra Venturini poderemos montar com as peças disponíveis a complexidade que deu causa a determinado evento verificar como cada um tensionado pelos elementos perturbadores de seu ser pode responder a essa montagem impossível de prever Frente a um acontecimento real cada um com os recursos de que dispõe confere autenticidade subjetiva a sua resposta Não falaremos de erro ou culpa mas sim de responsabilidade Ao assumir o desafio de uma sociedade sem manicômios apostamos na capacidade do sujeito de poder inventar a sua maneira uma solução razoável de lidar com a sua diferença no convívio social e de responder pelas consequências de seu modo de vida Neste ponto não há diferença entre nós Cada um tem que arrumar O Crime Louco 343 um jeito de tratar a sua loucura no espaço das trocas compartilhadas de modo a fazer caberse aí A exclusão das ilhas de segregação do território das cidades ou seja o fechamento dos manicômios exigiu da sociedade sua responsabilidade na montagem de uma rede de atenção e convivência que suportasse a diferença de cada um suas esquisitices em suas tramas Uma rede feita de gente especialistas e não Dispositivos fizeramse necessários para amarrar essa rede feita por muitos para sustentar a atenção e o acompanhamento do sujeito que por vezes enlouquece Se isso acontece seu sofrimento pede por tratamento Mas outras vezes o sujeito arrumase com sua solução de vida ao seu modo Pode parecer um jeito esquisito aos olhos dos que acreditam em normalidade Mas que se diga de perto ninguém é normal Isso vale para os ditos loucos ou normais quando sossegados com seu sintoma A loucura não é uma doença é um modo de vida ainda que os loucos possam em algum tempo adoecer Como todos nós eles seguem o programa pulsional que nos faz humanos e o real que o movimenta estabilizados pela corda bamba da rotina do laço social que nos engendra O direito de responder como marca da humanidade O sistema penal na contramão dos avanços da reforma antimanicomial trata aqueles que já enlouqueceram na vida como exceção à regra da humanidade fixandoos eternamente ao seu diagnóstico O sistema penal ignora sua condição de sujeito de direito desde que foram catalogados Ali a doença mental não é uma situação uma crise que vem e que passa Aquele que um dia recebeu o diagnóstico de doente mental passa a ser uma aberração permanente aos olhos do sistema Loucoperigoso doenteincapaz Ah Apertem os cintos O sujeito sumiu prensado entre os predicativos que o representam Roubaramlhe o intervalo por onde cada um se apresenta portador de uma singularidade sem igual Onde está o larápio que responderá O Crime Louco 344 pelas consequências desse ato Os quesitos formulados pelos operadores do direito e os laudos periciais dos expertos revelam em O Crime Louco o contorno das ideologias e teses que os aprisionam na cela reduzida de sua miopia A patologia do sistema seria uma defesa ao real indomável ou um traço de perversidade O que podemos afirmar contudo é que tal pretensão de controle é sobretudo delirante A situação dos processos relatada por Venturini servese dos detalhes absurdos que abundam na documentação recolhida O que se repete em cada caso e processo é o erro incrustado no cerne do próprio sistema Erram porque não consideram a condição humana ali engendrada Escalam as montanhas do ideal e são enterrados pelos montes de equívocos Quando um crime demasiadamente humano acontece de que adianta buscar asilo na lógica abstrata das ideias sobre o homem normal fechar as janelas do mundo da vida e enterrarse nos formalismos dos ritos e dos conceitos pressupostos ditos científicos Sabemos que a lógica formal do certo e do errado é adversa àquela que constitui a nossa insondável humanidade É feita pela presunção ideológica quase sempre idiota e afastase do real da condição humana e de seus arranjos para lidar com o malestar da convivência nem sempre tão evidente A ideia de um sistema garantidor da ordem social a garantia do controle sempre impossível ao expulsar o elemento humano da órbita de seus dispositivos e análises encontráloá paradoxalmente ao final no fracasso de suas pretensões Atenção Não há nada mais humano do que o crime lembra nos JA Miller2 Responder pelos atos praticados é uma solução humanizante lembramnos os sujeitos que acompanhamos Responder por seus atos é a condição do ser falante através do aparelho da linguagem com o qual cada um se arranja para responder pela sua diferença e encontrar junto aos outros do convívio um modo de reconhecimento Por essa via partilhase na medida do possível O Crime Louco 345 uma ordem simbólica que estabelece regras e acordos em comum E se os acordos de convivência forem transgredidos Se ao sermos loucos o suficiente em tempo e razões diversas atravessarmos o rubicão proibido por lei Outrem deve responder por nós Acreditaríamos na potência da representatividade Um ato de loucura anula o autor desse ato Entregaremos à caneta do perito a resposta pelos nossos atos porque quando o fizemos não agimos racionalmente Não Todo ato tem consequência e o sujeito de qualquer modo responde pelas consequências de seus atos num reconhecimento da sua humanidade inclusive por suas falhas erros e toda sorte de loucuras Somos responsáveis inclusive por nossos sonhos dissenos Freud Ernesto Venturini pergunta em sua obra por que os loucos não são considerados responsáveis Por que seriam menos humanos menos capazes de demonstrarem sua responsabilidade para com seu ato do que os outros A lei é a borda é a resposta simbólica e social que indica o limite para nossos atos em uma comunidade numa determinada época A lei é uma referência inclusive para situações onde o sofrimento intenso embaraça a fronteira que demarca as condições de sociabilidade dos acordos de convivência reguladores da sua humanidade Apresentarse como responsável é reconhecer a lei e consentir com as consequências estabelecidas pela sociedade quando seu ato for fora da lei Um simples exemplo Atravessei o sinal vermelho O código de trânsito está lá desde antes Não interessa a causa de tal ato terei que responder por isso A multa vai direto ao meu endereço Sou responsável O que interessa não é a causa respondo pelas consequências Outro exemplo de que é no nível das consequências que somos chamados a responder e não pela causa de nossos atos o desejo de matar não é causa de nenhum processo judicial salvo se esse desejo se expressar através de ameaças tentativas ou a realização do assassinato O que causou esse desejo Impossível responder nos O Crime Louco 346 termos da objetividade jurídica isso talvez tenha alguma importância em outro lugar mas é de foro íntimo não deve ser motivo de investigação pública Sabemos que a pergunta sobre a causa dos atos do sujeito não é toda abordável matéria insondável infindável Impossível de responder sobre a causalidade que enreda e constitui a natureza humana Frente a tal impossível resta a cada um responder pelas consequências que advêm do que causa sua existência singularíssima No campo social no campo do possível no âmbito do público focase então o ato a consequência a resposta Cada um responde por seu ato conforme a letra da lei independentemente de suas tramas subjetivas quase sempre indecifráveis O normal é agir conforme a norma conforme a lei É o que se espera de uma convivência social regulada por um projeto compartilhado O que escapa à norma estabelecida é lido como anormal e portanto esperase dos que a transgridem que venham diante da justiça responder por seus atos anormais que respondam pelas consequências de terem agido fora da norma Por que tem sido diferente com os ditos loucos desde o século XIX Seu ato seria mais anormal que todos os outros que estão fora da norma Ou é a suposição de sua incapacidade suposição de que a loucura é uma deformidade humana de que ali estaria um humano menos capaz de ser humano Suposições que surgiram com o advento das ciências humanas e que desde o século XIX ensinam que outrem podemos colocar o outro deve falar em nome dos loucos por que sua voz e sua pessoa não são reconhecidas como suficientemente humanas para assumirem as consequências de seus atos As consequências ora bolas sabemos quais são Outros falam por aquele considerado louco Seu destino é decidido sem a sua participação foi reduzido a puro objeto e como tal vai ser enclausurado nos manicômios judiciários até que cesse a presunção de sua periculosidade Presunção diz respeito à suposição dos peritos sobre sua capacidade de convivência em sociedade O Crime Louco 347 Peritos em comportamento humano presumem o futuro com base em seu suposto saber Presunção é o nome Porém no final das contas é o tal dito louco julgado incapaz de responder pelas consequências de seus atos quem responderá Serão o seu corpo sua subjetividade e sua sociabilidade que sofrerão as consequências da sua suposta incapacidade e periculosidade É o dito louco que será varrido feito objeto para os porões dos manicômios Ele sofrerá o exílio de sua humanidade das redes sociais compartilhadas o que disser ou fizer desde então será expressão da sua doença nunca mais seu gesto será reconhecido como uma resposta de um ser humano qualquer frente às situações que lhe são apresentadas pela vida que leva Os predicativos louco perigoso incapaz doente etc estão afixados em seu corpo definitivamente em razão do seu ato No final das contas é o dito louco quem paga o preço por ter cometido um ato fora da lei Entretanto ele não poderá participar do processo com sua palavra não terá a chance de responder por seus atos como qualquer ser humano não terá acesso ao processo nem tampouco poderá se defender das elucubrações que dizem sobre si e seu ato não poderá responder a pergunta dos outros sobre o seu crime O sujeito dito louco está morto no processo criminal cujo veredicto tantas vezes tem sido violador de todos os seus direitos em nome da defesa social Desde então ninguém responderá pelas consequências desse assassinato dalma Ninguém será chamado a responder pelas inúmeras violações de direito que sofrem os cidadãos trazidos nos casos relatados por Venturini e tantos milhares de outros Eles sofreram as consequências de seu ato e outros ainda sofrerão até o final dos seus dias na forma da tortura da violação de direitos do sepulcro do silêncio Por que não puderam responder como qualquer cidadão que mata rouba ameaça Por que deles foi subtraído o direito de responder como qualquer cidadão de acordo com a letra da lei Por que O Crime Louco 348 apagaram a sua voz para dar lugar à voz patologizante e mortífera da ciência psiquiátrica pericial Por que essa violação de direitos é dada como natural inquestionável Quem responde por essa loucura Quem são os responsáveis Os processos em análise no livro O crime louco buscaram auferir responsabilidade aos psiquiatras e serviços em saúde mental São processos claramente comprometidos com a ideologia manicomial e segregativa O contexto político em torno dos processos nos avisa que em verdade buscaram responsabilizar o projeto de saúde mental que aposta e sustenta o convívio com a loucura na cidade aberta E na cidade incidentes acontecem A literatura documentada por Venturini frente à complexidade do incidente real é farta Encontramos a sua expressão nas matérias de jornais nos registros em segredo nas cartas rasgadas Porém diversas vezes a surpresa me pegou de jeito e me emocionei com os parênteses abertos pelo autor que como suspiros no texto os rasgavam para fazer escorrer por esse furo sua indignação frente a toda e qualquer pretensão de controle Controle este que busca se garantir pela redução da capacidade de respostas do sujeito e com isso subtrairlhe a potencialidade de expressão da sua condição humana Venturini não cede à impotência mas consente com o impossível Desculpase esclarece que este é o seu relato reconhece seu limite e segue adiante sem recuar frente ao seu desejo de abrir com sua obra uma nova janela para ler os mesmos fatos Leva o leitor a apostar em um mundo que suporta a convivência com a loucura de cada um Um mundo feito por muitos Com O Crime Louco uma janela para as inéditas e imprevistas manifestações da responsabilidade do sujeito foi aberta no lugar das oitocentistas portas fechadas que ainda apagam o sujeito transformandoo em objeto mortificado pelo exame dos especialistas por tempo indeterminado Se hoje nos perguntamos por que essa lei e não outra em relação aos sujeitos por vezes loucos infratores não é para anular a função da lei A obra de Venturini somase à luta que é de todos nós O Crime Louco 349 permitindonos elementos para continuarmos nosso enfrentamento do sistema ao questionarmos sim a forma do texto normativo justo ali onde o texto da lei segrega e anula o sujeito como responsável por seu ato Ali onde o perito aparece para falar em nome dele fazendo de alguns exceção à regra e portanto objetos do exame cientifico e nulos como sujeitos de direitos O crime e a lei fundamse engendrados no projeto de convivência entre humanos O atocrime aliás foi o ato inaugural da civilização fundação da sua humanidade A lei humaniza É desumano não ser considerado humano o suficiente para responder pelas consequências de sua existência não reconhecer em cada um a possibilidade de que possam advir outras respostas Venturini ao trazer às claras com sua obra os furos o imprevisível o impossível de controlar que atualiza e descortina a experiência complexa que envolve os atos e laços humanos deixanos um claro recado se por um lado existe um impossível de controlar posto que a convivência humana e a resposta de cada sujeito concernem a um real imprevisível é justamente do fracasso do controle que a potência da condição humana se vivifica quando se mostra capaz de inventar saídas inéditas diversas e imprevistas marcando sua radical diferença da condição de objeto calculável controlável domesticável Essa visada é possível somente quando se consente que não existe sujeito sem responsabilidade como princípio inabalável para pensarmos uma sociedade onde cada um responde por seus atos sem distinção Desde então muito se repete mas também anotamos o esforço daqueles que resistem à lógica da segregação do apagamento do sujeito Assim como Venturini não estamos entre os que acreditam na periculosidade intrínseca na domesticação do programa pulsional que movimenta a humanidade De tal sorte que propomos uma subversão no lugar da presunção da periculosidade elevar a presunção de sociabilidade e que cada um responda pela dor e O Crime Louco 350 delícia de ser o que é As considerações do autor conforme esclarece em sua obra não nascem de uma abstrata declaração de princípios Tem sim em conta as muitas experiências que nesses últimos anos têm permitido percursos alternativos à declaração de total inimputabilidade do louco e envio de pacientes para HPJ Se eliminarmos a palavra culpável e usarmos o termo responsável então devemos convir VENTURINI p50 É por essa via que deixo aqui anotada uma experiência cujo testemunho suponho trouxeme a indizível satisfação de posfaciar tão importante obra de quem muito admiro a vida e percurso político o autor Ernesto Venturini Uma política intersetorial orientada pelas respostas do sujeito Em Belo Horizonte temos trabalhado com situações complexas em que a proposta é promover a conexão do detalhe particular que humaniza cada sujeito com a resposta do sistema de justiça e da sociedade de forma geral Para tanto apostamos numa política intersetorial articuladora de ações entre os sistemas de justiça saúde e recursos sociais diversos dando lugar a respostas singulares para casos singulares sem abrir mão da responsabilidade do sujeito diante dos atos dos quais é autor1 Falo do PAIPJ um programa de atenção ao paciente judiciário Trabalho feito por muitos que visa oferecer ao Sistema Judiciário subsídios que atendam à individualização na aplicação da medida judicial enfatizando o acompanhamento de tais pessoas para garantirlhes a possibilidade de responderem por seus atos A proposta é avançar e desconstruir o mito da periculosidade que lança os portadores de sofrimento mental para o lugar marginal condenandoos a habitarem os porões da loucura Permitimosnos deixar em suspensão o modelo racional da modernidade e questionar os paradigmas responsáveis por uma prática de segregação ao inserirmos na cultura novos valores Permitimonos ainda mudar a postura diante da loucura e tratar os ditos loucos como cidadãos que O Crime Louco 351 têm direitos e o dever de responderem por suas ações na sociedade A história nos permite constatar que o princípio de uma universalidade dogmática para todos não possibilita a igualdade diante da lei A igualdade somente pode se colocar no campo jurídico quando o sujeito é convocado a responder pelo seu ato no tecido social e a inserir a singularidade de seu texto ao responder pelos princípios universais que orientam a convivência na cidade Por isso a medida jurídica só atingirá seu fim público se for cunhada a partir de um projeto que contemple a singularidade de cada caso a partir de princípios universais A sociedade é responsável por não dar ouvidos à loucura Perigosamente não assiste seus cidadãos quando deixa a loucura do lado de fora como convém aos aparelhos racionais de controle da ordem social As histórias de ninar apresentam os doidos como sendo do lado do mal bichopapão Mais tarde na universidade escola de Psicologia Psiquiatria Direito dentre outras apresenta nos a psicopatologia irrecuperável da loucura e todos os meios científicos de realizar a sua contenção e exclusão da ordem social A exclusão que sofrem os loucos infratores é indiscutível Mas sobre isso verificavase um silêncio consentido nos diversificados setores da sociedade O Tribunal de Justiça de Minas Gerais para transformar o cuidado a esses casos no seu campo de competência criou o PAIPJ fruto de uma ação coletiva do Poder Judiciário Rede de Saúde Pública e sociedade na atenção a esses cidadãos Hoje a rede pública de saúde de Belo Horizonte e de outros municípios mineiros assume o atendimento a eles sem distinção O Programa acontece como efeito desse conjunto de forças Nasce dentro do TJMG caracterizandose pela finalidade de oferecer à autoridade judicial subsídios para decisão nos incidentes de insanidade mental Isto ao mesmo tempo em que promove o acompanhamento do sujeito em suas redes sociais e o tratamento em saúde mental na rede pública de saúde De forma multidisciplinar O Crime Louco 352 informa ao juiz a medida anunciada pelo sujeito sobre seu modo de tratar o sofrimento auxiliando na aplicação a cada caso de uma medida singular tencionada pelos princípios normativos universais O Programa rompe com um processo histórico e dogmático fundamentado pelas práticas seculares de segregação e instaura o conceito da inserção no cerne de sua ação atuando em qualquer processo criminal em que um portador de sofrimento mental esteja na condição de réu Quando o juiz determina a intervenção do PAIPJ coloca em movimento uma ampla rede de atenção Enfim diante da complexidade de cada caso a rede de assistência em saúde mental desenhará um projeto de atenção singular O cidadão terá acesso como qualquer um à rede pública de saúde e às demais redes sociais da cidade Assumimos a posição de que a ampliação do acesso à experiência cidadã faz bem à saúde mental e à convivência com a ordem social Acesso à educação moradia trabalho cultura lazer e à cidade recolocam a dimensão da vida para o cidadão que cometeu um crime produzindo novas vias para a amarração de um novo laço social Neste espaço de convivência vão transmitindo e construindo formas de atravessarem os embaraços inventando novos sentidos e arranjos sociais Aprendemos com esses cidadãos que a responsabilidade pelo crime cometido restaura a dignidade perdida quando foi decretada a sua inimputabilidade Através desta sua palavra foi desqualificada enquanto portadora de um sentido possível de responder pela sua condição humana Muitos nos dizem sobre a importância de responder ao público Mesmo que no momento do ato não soubessem o que faziam construir um saber sobre as condições de seus atos mesmo que depois do crime constitui uma forma de responder por sua ação no espaço do público e por este ato a construção de um saber que serve de orientação Hoje no espaço de intervenção do PAIPJ esses cidadãos são chamados a responderem pela palavra pela linguagem que fazem com que partilhemos o sentido das regras e convenções sociais O Crime Louco 353 Auxiliares do Juiz e secretários do alienado esta é a função do Programa Procuramos encontrar formas racionais de fazer existir no campo do direito da saúde e do social enfim do espaço do público as formas razoáveis que cada um desses cidadãos vai inventando para seu laço com o outro durante o tempo que for preciso O Tribunal de Justiça de MG apresenta através deste Programa junto com as parcerias que o tornam viável uma mudança na lógica de tratamento jurisdicional a esses casos a partir da ênfase em novos conceitos Uma política que favorece o laço social e não sua ruptura pela segregação Uma política que aposta que a oferta da atenção e do cuidado podem promover a convivência no tecido social reconhecendo em cada um louco ou não sua condição de responsável São muitos os responsáveis muitas são as responsabilidades Que cada um tome a palavra para dar o testemunho da sua reflexão e experiência sua responsabilidade para com as soluções de nossa época frente às ideias perigosas para a humanidade que nos constitui Ernesto Venturini apresenta através de sua obra a sua resposta e eu confirmo e assino embaixo Enquanto a voz do cidadãoloucoresponsável por um crime não estiver presente nas salas de audiência dos tribunais enquanto não for reconhecido seu direito de ser julgado e eventualmente até condenado enquanto a linguagem do poder não tiver que se confrontar com a linguagem dos diferentes dos loucos compreendendo que os cânones da normalidade não são absolutos enquanto isso não acontecer a linguagem dos expertos será o balbucio presunçoso e contraditório e ainda teremos que prever tanto sofrimento e tantas dores incidentes VENTURINI p174 Fernanda Otoni de BarrosBrisset O Crime Louco 354 Notas Psicóloga e Psicanalista Doutora em Ciências Humanas pela UFMG Coordenadora do PAIPJ da Comissão de Direitos Humanos do CFP autora de Direito ao Pai dentre outras obras 1Cf BARROSBRISSET F Por uma política de atenção integral ao louco infrator Belo HorizonteTJMG 2010 Disponível em httpwwwtjmgjusbrpresidenciaprogramanovosrumospai pjlivretopaipdf 2Cf MILLER JA Nada mais humano do que o crime Texto traduzido e publicado na revista Almanaque online do IPSMMG n 3 Disponível em httpwwwinstitutopsicanalisemgcombr psicanalisealmanaquealmanaque4htm