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o Acreditavam os Gregos em Seus Mitos Paul Veyne º Cultura Brasileira e Identidade Nacional Renato Ortiz o As Culturas Populares no Capitalismo Nestor Garcia Canclini o Magia e Capitalismo Everardo P Guimarães Rocha o Os Pobres na Literatura Brasílelra Diversos Autores o ReVisão de Kitkerry Augusto de Campos Signagem da Televisão Décio Pignatari O Nacional e o Popular na Cultura Brasileira Artes Plásticas e Literatura Carlos ZHioLigia ChiappiniJ Luiz lafetá Música Enio SqueffJosé Miguel Wisnik o Televisão C A Messeder PereiraRicardo Miranda Seminários Marilena Chaul Coleção Primeiros Passos O que é Arte Jorge Coli O que é Cinema JeanClaude Bernardet O que é Conto luzia de Maria O que é Contracultura Carlos AM Pereira O que é Cultura José luiz dos Santos O que é Cultura Popular Antonio Augusto Arantes O que é Ideologia Mariena Chaul O que é Indústria Cultural Teixeira Coelho O que é Literatura Popular Joseph M luyten O que é Música J Jota de Moraes Coleção Tudo é História Música Popular Brasileira Valter Krausche José Paulo Paes o o Gregos baianos ensaios 1p iii a 1 a 1985 230 rosa PAULO PAES dizer sem os compromissos de maior ou menor respeito ao real assu midos pela ficção realista a FC se move livremente no campo do ima ginário onde se podem expandir sem entraves as pulsões da libido re calcadas pela ordem social exacerbadamente utilitária do capitalismo e pela racionalidade axiomática da ciência Nesse campo privilegiado tempo e espaço adquirem a mesma reversibilidade e a mesma malea bilidade de que os dota nossoinconsciente nos sonhos A FC no dizer da psicanalista Marie Langer institui um mundo psicótico onde po demos brincar com a nossa própria psicose entrar e sair com plena liberdade um mundo carente de limites para a nossa fantasia e sem o compromisso que impõe a obra séria Não se veja porém no jogo de fantasia proposto pela FC tãosomente uma fuga ao real alienante e psicótica Psicôtíco é amiúde o rótulo com que a ordem estabelecida procura minimizar ou invalidar diversas formas de contestação da sua normalidade cuja idolatria em troca tem muito de alienante Ade mais a vocação utópica e psicótica da FC tem pertinência aos tempos contraditórios que estamos vivendo Hoje sob a égide uniformizadora da tecnologia industrial os dois lados que partilham o domínio do mundo encontram a cada dia maiores pontos de afinidade enquanto um deles em nome do pragmatismo mais rasteiro decreta o fim das ideologias e de sua antítese dialética as utopias ó outro na defesa do imobilismo burocrático declara psicôticos seus contestadores e os interna em clínicas psiquiátricas Mas impõese ver também que é em nossa época que a antropologia começa a delinearse como ciência do futuro na medida em que superada a ótica colonialista propõese a constituição de uma filosofia do outro buscando compreender a sin gularidade de culturas nãoeuropéias sobretudo as culturas ditas pri mitivas e pondo implicitamente em discussão o conceito de progresso tecnológico Desse contexto todo dá testemunho Tiger Tigerl não só na sua denúncia ostensiva do conúbio capitalismociência como na morali dade infusa do seu epilogo quando o superhomem abdicando da artificialidade cibernética volta ao mundo natural pós ou trans cientifico e confiado apenas nas forças da própria mente viaja pela infinitude em busca de uma fé na fé Nessa viagem há um desafio e um convite permanentes 201 V Lá fantasía inconsciente en la ficción científica ln Fantasias Eter nas Bueos Aires p 170 Só disponho de uma cópia xerográfica desse capí tulo sem indicação do nome do editor ou da data da edição 21 Consultar l anthropoogie contemporaine de JeanMarie Auzias Pa ns PUF 1975 J i 1 il l 1 1 l A verdadeira história de Frankenstein Do horror ao riso Ü rosto é de uma palidez cadavérica na qual se tornam ainda mais visíveis as marcas das suturas cirúrgicas O cabelo negro gruda se anormalmente ao crânio feito uma crista As pálpebras semiaber tas lembram as de alguém que começasse a despertar de um longo sono ou então estivesse prestes a fechálas para sempre no mistério da morte Dois batoques metálicos ressaltam de ambos os lados do pescoço como estigmas a denunciar a artificialidade da criatura Foi com esta máscara hedionda que Boris Karloff se celebrizou na hist6ria do cinema enchendo de terrores a infância de nossos pais e a juventude de nossos avós Isso a partir de 1931 ano em que a Uni versal produziu o filme de James Whale Frankenstein cujo sucesso verdadeiramente fora do comum iria dar origem em anos posteriores a outros filmes do mesmo personagem vivido pelo mesmo ator Bem mais tarde ainda já em nossa geração o horror se dissolveria em riso quando o monstro personificado por Karloff virasse o Herman desa jeitado e ridículo de um seriado cômico de televisão e o seu criador inspirasse a Andy W arhol o cientista necrófilo dessa farsa de açougue que foi Carne Para Frankenstein Cumpriase assim um daqueles ciclos vistos por Marx como o andamento natural da História A última fase de uma forma histórica é a sua comédia Os deuses da Grécia que foram pela primeira vez tragicamente feridos de morte no Prometeu Acorrentado de Ésquilo tiveram de sofrer uma segunda morte cômica nos Diálogos de Luciano Por que essa marcha da História Para que a humanidade se separe alegremente do seu passado 1 reville Jean org Trechos Escolhidos de Marx Engels Lenine e Stalin Sobre literatura e Arte Trad Eneida Rio Calvino 1945 p 98 232 rosa PAULO PAES GREGOS BAIANOS 233 Esta aplicação de uma passagem da douta Contribuição à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel não a uma obra de alta cultura mas a um simples entertainment da indústria do lazer é menos descabida do que à primeira vista possa parecer Pois como os deuses da Grécia Frankenstein é também um mito um mito que articula no nível da fantasia uma neurose cultural profundamente sentida conforme as sinalam Dowse e Palmer em sua introdução a uma edição moderna do romance a que o cinema foi buscar o mais popular dos seus mons tros O fato de pouca gente saber o nome da autora de Frankenstein ou de ter jamais chegado a ler o romance e mais ainda o fato de o nome do cientista que criou o monstro servir hoje para designar este fazendo esquecer aquele ressalta o seu caráter mítico pois é próprio dos mitos serem criações anônimas Na verdade tratase do grande senão único mito original produzido pela idade da ciência e da técnica a cujos pri mórdios sua autora assistiu na Inglaterra e cuja culminação estamos hoje vivendo pelo mundo todo com o advento da cibernética e da enge nharia genética Isso quer dizer que ainda não nos separamos alegre mente do passado simbolizado por Frankenstein como o faria supor a degradação do mito em comédia Vêlo como agora o vemos sob a ótica do ridículo é um ato menos de libertação que de autodefesa da própria neurose por ele articulada no nível da fantasia Mas antes de deternos nesse aspecto convém ter alguma notícia das circunstâncias históricas do nascimento desse mito moderno Uma aposta cumprida A autora de Frankenstein3 Mary Shelley 17971851 era filha da escritora feminista Mary Woolstonecraft e do filósofo e romancista William Godwin Foram aliás as idéias de reforma políticosocial ex pressas por Godwin no seu livro mais famoso Considerações Acerca da Justiça Política em que preconizava a derrubada da autoridade e a abolição do casamento que trouxeram até a sua casa em Londres Percy Bisshe Shelley um jovem de idéias libertárias e de imaginação alada que se iria afirmar como um dos maiores poetas da língua inglesa Que Mary e Shelley logo se apaixonassem e juntos cuidassem de fugir da Inglaterra onde ainda vivia a primeira mulher do poeta Harriet 21 Dowse Robert E e Palmer D J lntroduction a Frankenstein de Mary W Shelley Londres Dent Everymans Library 1973 p v 31 Shelley Mary W Frankenstein Ed cit p 1 era coisa de esperarse naqueles tempos de romantismo ao pé da letra Em 1816 ano em que nasce William o primeiro filho do casal vi este fixarse na Suíça numa casa de campo perto de Genebra à beira de cujo lago passa a residir também o poeta Byron conviva diário em casa dos Shelley Nessa mesma casa para distrairse durante um verão chu voso em que não podiam flanar ao ar livre como gostavam de fazer hospedeiros e convidados isto é Percy Mary Byron e secretário deste Polidori idearam uma competição original quem sna capaz de escrever a melhor história de fantasmas Todavia o tempo logo me lhorou e os homens resolveram partir numa excursão pelos Alpes de sistindo assim da competição Mary não desistiu em meados do ano seguinte pingava ponto final no prefácio de Frankenstein ou O Pro meteu Moderno cujo texto foi publicado em volume em 1818 O prefácio dessa primeira edição bem como da reedição de 1831 fornece importantes elementos para situar o romance no contexto lite rário e intelectual de sua época O primeiro elemento é a citação d nome do Dr Darwin e alguns dos autores fisiológicos da Alemanha como eventuais abonadores da verossimilhança da ficção imaginada por Mary Shelley Este Darwin não é Charles Darwin que a essa altura contava apenas nove anos de idade mas sim Erasmus Darwin 1731 1802 autor da Zoonomia ou Leis da Vida Orgânica tratado em que ao falar de seleção sexual do intercâmbio entre os seres vivos e o seu habitat e da grande antigüidade geológica do nosso planeta antecipava as teorias evolucionistas do seu ilustre neto Além de médico botânico inventor e admirador dos Enciclopedistas Erasmus era poeta Nesta última qualificação sua obra mais conhecida foi O Templo da Natu reza um poema científicodidático em 4 cantos e mais de 2000 versos rimados em que entre outros prodígios naturais descreviase o feto dos mamíferos a repetir no seu desenvolvimento os estágios da evolu ção animal celebravase a lei da sobrevivência do mais apto e previase o mundo do futuro com arranhacéus água encanada automóveis e superpopulação Percy Shelley leu para Byron esses versos de Erasmus Darwin na mesma época em que Mary escrevia Frankenstein onde a fisiologia e a evolução iriam desempenhar papel de destaque A primeira foi a disciplina em que o Dr Frankenstein se espe cializou entre os vários ramos da filosofia natural nome então dado à ciência física já que a sua obsessão era descobrir a causa da gera ção e da vida a fim de poder conferir animação à matéria inani 41 Idem ibidem p 42 234 JOS PAULO PAES mada 5 E a história do monstro por ele criado é o desenvolvimento lógico conquanto extremado da concepção de Erasmus Darwin para quem a evolução uma vez principiada prosseguiu por sua atividade inerente sem nenhuma intervenção divina tal ausência de Deus dei xava ao homem espaço livre para criar sua própria espécie de sub vida ainda que esta viesse a revelarse monstruosa e fatal para o seu próprio criador Para além do gótico Outro elemento importante para situar Frankenstein na história literáría é a declaração de sua autora de não ter pretendido ao escrevê lo entretecer uma enfiada de terrores sobrenaturais com basear seu romance num acontecimento cientificamente verossímil buscava ela isentálo das desvantagens de uma simples história de espectros e en cantamentostf Tal menção a terrores e seres sobrenaturais traz logo à lembrança o chamado romance gótico modalidade de ficção muito popular na Inglaterra durante a segunda metade do século XVIII e cuja voga já começara a declinar à altura em que Mary Shelley escrevia Frankenstein Este pode ser considerado não obstante um romance gótico ainda que inaugure ao mesmo tempo uma outra modalidade de ficção bem mais moderna a ficção científica O romance gótico teve início com O Castelo de Otranto de Ho race Walpole um aristocrata desiludido da política e nostálgico da Idade Média tanto assim que mandou construir para sua moradia um castelo em estilo gótico Ali teve ele certa noite um pesadelo em que viu uma gigantesca mão com luva de ferro agarrarse ao balaústre da escadaria Esse pesadelo lhe inspirou O Castelo de Otranto cuja ação ambientada na Idade Média e cujos ingredientes ficcionais fan tasmas usurpadores passagens secretas castelos arruinados elmos mágicos deram a nota da nova moda gótica que não tardou a encon trar continuadores igualmente bemsucedidos como William Beck ford Ann Radcliffe Mathew Gregory Lewis e Charles Robert Mathu rin O efeito que o romancista gótico esforçavase por provocar no âni mo de seus leitores era a sensação de horror aquele delicioso horror tido por Edmund Burke o grande teórico da estética no século XVIII 51 Idem ibidem p 456 6 Idem ibidem p 1 J GREGOS BAIANOS 235 como o mais genuíno efeito e a mais verdadeira pedra de toque do sublime Tão gótico era o romance de Mary Shelley que como o de W al pole foilhe também sugerido por um sonho no prefácio da reedição de 1831 ôe Frankenstein conta ela ter visto nesse sonho o hediondo fantasma de um homem estirado e em seguida graças à ação de al guma máquina poderosa mostrar ele sinais de vida mexendose com movimentos contrafeitos semivivas Aliás a importância dos sonhos e dos pesadelos na gênese do romance gótico é bem ilustrada por uma anedota contada por Brian Aldiss em sua história da ficção científica Billion Year Spree onde foram colhidos vários dados para este artigo Ann RadcÚffe a mais famosa das romancistas góticas ingeria proposi tadamente à noite alimentos difíceis de digerir só para ter pesadelos de que pudesse tirar matéria para os seus livros Na citação acima do prefácio da reedição de 1831 convém aten tar além da referência ao sonho para as expressões graças à ação de alguma máquina poderosa e movimentos contrafeitos semivivas No capítulo V de Frankenstein onde é descrito o momento decisivo em que o monstro se anima inexiste qualquer indicação acerca dos meios utilizados pelo seu criador para insuflarlhe a centelha da vida Esta é produto todavia não de artes mágicas ou de recurso ao sobrenatural como na ficção gótica mas de uma descoberta científica a artificiali dade dessa recriação de vida está bem marcada no prefácio de 1831 pela alusão ao uso de uma máquina para conseguila e ao próprio cará ter maquinal dos movimentos executados pelo monstro que já parece participar dessa simbiose entre o mecânico e o biológico característica dos cyborgs da moderna ficção científica Ficção de que acentua Brian Aldiss Frankenstein é o marco inaugural na medida em que substi tuindo o sobrenatural do reviva gótico pelo natural da invenção cientí fica apela contudo para os efeitos de espanto e horror sistematicamente cultivados por W alpole e seus imitadores Os atuais autores de FC con tinuam a valerse deles para manifestar sob o signo da exageração fic cional o temor com que o homem comum acompanha os feitos a um só tempo prodigiosos e ameaçadores da ciência moderna 7 Apud Aldiss Brian Bilion Year Spree the history of science fiction Londres Weidenfeld Nicholson 1973 p 156 181 ApudAldiss B Op cit p 24 236 A verdadeira história JOSS PAULO PAES Ninguém ignora a semcerimônia com que as obras literárias cos tumam ser adaptadas à tela Essa semcerimônia chega amiúde à des figuração o que certamente acontece salvo uma ou duas honrosas ex ceções com os filmes do ciclo de Frankenstein Por isso mesmo fazse indispensável recordar em suas linhas gerais o enredo do hoje quase esquecido romance de Mary Shelley Em Frankenstein ou O Prometeu Moderno pratica a sua autora uma técnica de ficção muito usada no século XVIII com vistas a dar maior naturalidade aos acontecimentos relatados o romance episto lar Ao leitor de nossos dias habituado com uma linguagem narrativa de maior concisão e dinamismo o difuso estilo vitoriano de Mary Shelley com o seu pendor para o explicativo e o moralizante poderá parecer enfadonho Mas apesar de tais imperfeições perdoáveis numa romancista de apenas 19 anos de idade Frankenstein merece ser lido pela notável pertinência do mito com que figurou a neurose cultural do homo scientificus a avirse com forças por ele próprio desencadea das mas que lhe escapam ao controle O romance principia e termina com as cartas endereçadas por Robert Walton um jovem inglês cheio de curiosidade científica e espí rito aventureiro à sua irmã em Londres para darlhe conta dos percal ços de uma viagem que empreendia ao Pólo Norte para descobrir uma passagem marítima ou então o segredo do magnetismo terrestre A pri meira carta é datada de 11 de dezembro de um ano qualquer do século XVIII e a última de 12 de setembro do ano imediatamente seguinte Após a carta V em que Walton refere o seu encontro nos desertos polares com um estranho viajante de nome Victor Frankenstein que andava a perseguir alguém interrompese a narrativa epistolar para dar lugar à autobiografia de Frankenstein tal como ele a contou a Walton que a anotou por escrito Embora nascido em Nápoles Victor era de nacionalidade suíça seus pais fixaramse em Genebra Interessado desde os anos escolares pela alquimia orientou seus estudos universitários em Ingolstadt na Alemanha para a química e a fisiologia Graças à sua obsessiva apli cação à investigação científica e a um lampejo de genialidade alcança descobrir a causa da geração e da vida conhecimento que aplica na criação de um ser de estatura gigantesca feito com partes de cadáveres humanos e nãohumanos a que infunde a centelha da vida Contudo em vez do belo ser que pretendia criar só consegue pôr no mundo um monstro de que foge aterrorizado quando o vê moverse pela pri 1 GREGOS BAIANOS 237 meira vez Dotado porém de força resistência e velocidade sobrehuma nas o monstro o persegue até a sua residência em Genebra onde para vingarse do horror e desprezo que lhe manifestam não só o seu criador como os demais seres humanos a que ansioso por afeição e companhia como qualquer outra criatura tentou achegarse mata ele William o irmão caçula de Victor Ameaça aniquilarlhe a família toda caso ele não crie uma companheira ainda que tão monstruosa quanto ele mas com quem possa consolarse de sua total solidão Promete retirarse com ela para as selvas da América do Sul onde viverá pacificamente longe da civilização Receoso das ameaças da criatura a que impruden temente dera vida Victor aceita a imposição e instalase numa ilha deserta do litoral da Escócia ali malgrado sua aversão à macabra ta refa põese a afeiçoar uma Eva para o seu criminoso Adão criado com os materiais da sala de dissecção e do matadouro No momento de insuflarlhe vida a idéia de que daquela Eva poderá nascer uma raça de demônios capaz de exterminar a espécie humana e dominar o mun do fálo deterse e ele se põe a destruir alucinadamente a obra recém acabada O monstro que o perseguira até a Escócia não o perdoa por isso e juralhe que estará com ele na sua noite de núpcias Tempos mais tarde já de volta à pátria Victor cumpre a promessa que fizera à mãe no seu leito de morte e desposa a irmã de criação Elizabeth Esta é estrangulada na mesma noite dos seus esponsais enlouquecido pelo desejo de vingança Victor sai em perseguição do monstro para des truílo com suas próprias mãos No encalço dele atravessa a Europa inteira até a Rússia e a região do Pólo Norte onde se dá finalmente o seu encontro com Walton a quem narra essa terrível odisséia Pouco depois de narrála vencido pelos sofrimentos e agruras da longa perse guição à sua malograda criatura ele morre nos braços de W alton Sur ge então em cena pela última vez o monstro de Frankenstein a fim de confessar os seus remorsos e declarar seu propósito de embrenharse nos confins dos gelos eternos para ali perecer livrando o mundo para sempre da sua indesejada e odiosa presença Algumas raízes míticas Um resumo como este se serve para evidenciar o exagero melo dramático da efabulação de Frankenstein não faz jus aos seus mo mentos mais felizes Ao número destes pertencem os capítulos em que assumindo a elocução na primeira pessoa o monstro narra ao seu cria dor quanto lhe aconteceu desde o momento em que se viu abandonado J J 238 JOSE PAULO PAÊS GREGOS BAIANOS 239 por ele num mundo hostil no qual não obstante o seu instinto de pre servação o forçava a sobreviver como pudesse Nesses capítulos o foco de interesse se desloca das desventuras do criador para os infortúnios não menores de sua criatura fazendo com que se volte para ela a sim patia do leitor Com isso a criação monstruosa de Frankenstein se reveste da mesma aura de positividade de que JeanJacques Rousseau e os Enciclopedistas rodearam a figura do Bom Selvagem tornandoa cara à sensibilidade romântica Sucessivamente vai o monstro descrevendo as primeiras sensa ções de dor e de prazer que experimentou ao despertar para a vida a sua descoberta pessoal do fogo o susto e as pedradas com que o rece beram alguns camponeses a quem foi pedir alimento o refúgio que encontrou num velho telheiro abandonado onde viveu escondido mui tos meses a observar por um orifício na parede a vida dos habitantes de uma cabana contígua Com isso foilhes aprendendo a pouco e pouco a língua os hábitos o conhecimento do mundo este se ampliou enormemente a partir do momento em que encontrou abandonados na floresta a que ia na calada da noite buscar frutas e raízes para ali mentarse alguns livros cujos caracteres conseguiu à força de muita aplicação finalmente decifrar Essa apaixonada atividade de voyeur e mais tarde de leitor incutiulhe no espírito virgem as idéias e os senti mentos humanos de par com certas perplexidades nascidas da compa ração da afeição familiar que via reinar entre os moradores da cabana com os relatos históricos de guerras e morticínios lidos nos livros mal lhe parecia pudessem ser obra de seres da mesma espécie A longa con vivência à distância acaba por fazêlo sentirse quase como um membro da familia da cabana à qual resolve um dia apresentarse confiante em poder convencêla de que a despeito do seu aspecto assustador era uma criatura cheia de amor necessitada de compreensão e simpatia Suas boas intenções têm a pior das acolhidas o horror que desperta e a agressão de que é alvo vão inimizálo daí por diante com o gênero hu mano Não é difícil perceber neste passo um eco da nota de crítica social sempre implícita no confronto natureza versus civilização com a positividade posta no primeiro termo da oposição confronto de que o Bom Selvagem nas suas várias transfigurações de Montaigne a Rousseau Voltaire e Diderot foi o símbolo por excelência Assim como não é difícil ver por trás desse símbolo romântico o mito bíblico do paraíso e da sua perda irremediável por culpa daquela ciência do bem e do mal que Adão insistiu em aprender Aliás o caráter essen cialmente adâmico do monstro de Frankenstein pela sua mesma con 1 1 l t l o dição de o primeiro homem artificial recorda de imediato a lenda me dieval judaica do galem palavra hebraica que significa embrião O protagonista da lenda é um certo rabino Low de Praga o qual persua diu o Imperador Rodolfo de ser capaz de dar vida a umgolem ou seja a um feio e tosco Adão moldado em barro mediante certos exorcismos O uso de fórmulas sagradas ou mágicas para satisfazer ambições inferiores em vez de servir à maior glória da divindade é um pecado cuja punição surge hiperbolicamente num poema de Goethe O Aprendiz de Feiticeiro tornado popular pela música de Paul Dukas e mais ainda pelo desenho animado de Walt Disney acerca de um aju dante de bruxo que ao tentar imitar o mestre quase morre afogado O nome de Goethe por sua vez logo traz à baila outra lenda medieval a do Doutor Fausto um alquimista que se atreve a ir além das limitações do conhecimento humano por via de um pacto com o Diabo de cujas garras no grande poema de Goethe ele é salvo por na sua qualidade de criação divina como todo homem ter o instinto do único e verda deiro caminho o mesmo instinto que leva Victor Frankenstein a re nunciar à sua perigosa ciência por amor da humanidade ameaçada O subtítulo do romance de Mary Shelley o vincula alusivamente à mitologia grega através da menção a Prometeu o antepassado mais remoto de todos os bruxos alquimistas e aprendizes de feiticeiro A propósito deste herói mítico convém lembrar não só o seu roubo do fogo celeste símbolo do intelecto revoltado para Paul Diel e o castigo de sua audácia por ordem de Zeus como sobretudo o fato ainda mais significativo de ele ser tido como o criador da raça humana ao amassar com argila e barro o primeiro homem em quem Atena insu flou o sopro da vida o que nos leva de volta à vertente adâmica da história de Victor Frankenstein Prometeu da ciência moderna casti gado por sua própria consciência de culpa no mundo da evolução dar winiana onde Deus nada mais tem a fazer nem mesmo punir os usur padores do seu poder de criação Outra particularidade de Prometeu pelo visto o mito preferido do casal Shelley pois Percy compunha o seu Prometheus Unbound à mesma altura em que Mary rabiscava Frankenstein é a de ele ser filho de um titã de um daqueles seres monstruosos filhos de Cronos o Tempo cujo domínio dos céus ante cedeu o dos Olímpicos O monstro de Frankenstein é um titã por sua altura e força descomunais sobrehumanas noque parece ele implicar o sonho fracassado embora da criação do superhomem o qual en contraria em Nietzsche anos mais tarde e noutra ordem de idéias a sua formulação filosófica definitiva Ao criar o superhomem o homem se coloca acima de Deus que só conseguiu criar o próprio homem 240 JOS8 PAULO PAES A neurose racionalizada Ponto de encontro de linhas arquetípicas que vão do advento de Adão e sua expulsão do Paraíso ao desafio de Prometeu filho dos titãs primevos da imagem grotesca do golem ao sonho da superhumani dade do pacto demoníaco do Dr Fausto e do malogro do aprendiz de feiticeiro ao Bom Selvagem e ao homem natural recriado pela artificia lidade da ciência isso para não falar de temas subsidiários como o do mortovivo protagonizado pelos zumbis do vodu haitiano ou pelo vam piro folclórico da Europa oriental o mito de Frankenstein articula exemplarmente como já se disse uma neurose cultural nascida com a primeira revolução científica e confirmada pela segunda de que so mos contemporâneos No campo do imaginário tal neurose se reflete nas fantasias da ficção científica onde as maravilhas tecnológicas ora servem para ins taurar a utopia ora o apocalipse numa alternância por si s6 neuroti zante No campo da racionalização o sentimento de culpa desse an gustiado Prometeu da ciência moderna que foi o Dr Victor Frankens tein encontra ecos tanto mais simétricos quanto curiosos num livrinho escrito há uns vinte anos pelo criador da cibernética Norbert Wiener Pertinentemente para a ordem de considerações há pouco desenvolvi das o livrinho se chama God and Golem Inc e tem por tema as rela ções entre religião e ciência Ao discutilas evidentemente do ponto de vista dos cientistas a cujo número pertence e dos quais se inculca impli citamente por portavoz Wiener retoma certas questões já subjacentes à mítica cientificista do romance de Mary Shelley Partindo da cons tatação deque o cientista vive num mundo que olha a Ciência de modo suspeitoso propõese ele a combater a atitude desfavorável que se associava no passado ao pecado da feitiçaria e que hoje se associa às especulações feitas em torno da moderna cibernética 10 Para mostrar o despropósito dessa atitude negativa cuida ele de escla recer três aspectos da cibernética que têm implicações religiosas O primeiro está relacionado com as máquinas dotadas da capa cidade de aprender Wiener as exemplifica pelo computador que con seguiu vencer um jogador humano de xadrez após ter analisado e me morizado lances bem e mal sucedidos num grande número de partidas Se se tiver em conta que o aprendizado constitui uma propriedade an 9 Wlener Norbert Deus Golem Cia Trad L Hegenberg e O S da Mota S Paulo Cultrix 1971 p17 10 Idem ibidem p 55 I 1 GREGOS BAIANOS 241 tes só associável a seres vivos dotados de consciência de que o caso limite é o do homem seguese que ao construir uma máquina capaz de aprender o homem usurpou de Deus uma de suas prerrogativas A similitude com a situação de Frankenstein salta aos olhos basta consi derar a passagem há pouco referida em que o monstro relata todo o seu aprendizado conquanto não seja ele uma máquina em sentido es trito élhe um equivalente dada a sua condição de ser criado artificial mente A segunda prerrogativa usurpada a Deus pelo cientista moderno é a de ter ideado máquinas capazes de construir outras máquinas iguais a si mesmas Wiener chega a falar de uma genética das máqui nas 11 da mesma maneira por que Deus fez o homem à sua imagem e semelhança Mais uma vez Frankenstein se revela um texto precur sor Victor desiste de criar uma nova Eva quando se dá conta de dela poderem nascer outros monstros iguais ao seu titânico Adão O último ponto de contato entre cibernética e religião focalizado por Wiener é o das relações entre máquinas e seres vivos relações que a seu ver suscitam preocupações de ordem ética2 Entre elas o pecado de utilizar a mágica da moderna automação para enriqu cer isto é para atender aos interesses de uma economia baseada no lucro ou então para liberar os terrores apocalípticos da guerra nu clear3 Desse pecado capital em que Wiener discerne uma simonia científica vale dizer uma compra ou venda dos poderes sobre naturaíst da ciência para fins de lucro ou de poder e a cujo propósito recorda ele os mitos admonítôrios do golem e do aprendiz de feiticeiro salvase Victor Frankenstein como vimos pelo sacrifício de sua pró pria vida criador destruído pela criatura Que tantos anos depois um ilustre teórico da ciência do século XX se ocupe em racionalizar as mesmas fantasias de uma esquecida romancista do século XIX confirma não s6 a índole premonitória de tais fantasias como a sua atualidade para os dias que correm Uma atualidade verdadeiramente sinistra ainda que o mito de Frankenstein se haja degradado em comédia 111 Idem ibidem p 54 12 Idem ibidem p 23 13 Idem ibidem p õl 14 Idem ibidem p 57