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Psicologia ·

Psicologia Social

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29 LINGUAGEM E INTERDISCIPLINARIDADE José Luiz Fiorin Kiakudikila kiazanga O que se mistura separa Luandino Vieira Le cose tutte quante Hannordine tra loro e questo è forma Che luniverso a Dio fa simigliante Dante Paraíso I 103105 A multiformidade e a heterogeneidade da linguagem A linguagem é onipresente na vida de todos os homens Cer canos desde o despertar da consciência ainda no berço seguenos durante toda a nossa vida em todos os nossos atos e acompanha nos até na hora da morte Sem ela não se pode organizar o mun do do trabalho pois é ela que permite a cooperação entre os seres humanos e a troca de informações e experiências Sem ela o ho mem não pode conhecerse nem conhecer o mundo Sem ela não se exerce a cidadania porque ela possibilita infl uenciar e ser in fl uenciado Sem ela não se pode aprender Sem ela não se podem expressar sentimentos Sem ela não se podem imaginar outras rea lidades construir utopias e sonhos Sem ela não se pode falar do que é nem do que poderia ser A linguagem é objeto de estudo de várias disciplinas A lin güística por exemplo tem por fi nalidade a explicação dos meca nismos da linguagem por meio da descrição das diferentes línguas faladas no mundo Todas as línguas têm em comum certas propriedades e carac terísticas universais que defi nem o que é inerente à natureza mes ma da linguagem Através da extraordinária diversidade das línguas do mundo hoje se busca a unidade da linguagem humana aqui lo que faz sua especifi cidade em relação aos códigos não humanos A busca de uma origem única das línguas o mito da torre de Ba bel que seria responsável pela diversidade lingüística a nostalgia do paraíso perdido onde se falava uma só língua é isso que está na base no plano mítico da pesquisa contemporânea dos universais VIEIRA José Luandino Lourentinho Dona Antónia de Sousa Neto eu Estórias Luanda Edições Maianga 2004 60 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 p 2953 30 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 da linguagem das operações mentais que presidem ao funciona mento de todas as línguas Podemos estudar esses universais e es sas operações bem como a perda da capacidade de linguagem por lesões no cérebro Nesse caso a lingüística confi na com a biologia e as ciências cognitivas Podemos debruçarnos sobre as diferenças entre as línguas e então a lingüística faz fronteira com a antropologia e a etnologia Podemos ocuparnos da variação no espaço como fazem a diale tologia e a geolingüística e aí a lingüística acercase da geografi a Podemos examinar a variação de grupo social para grupo social e nesse caso a lingüística limitase com as teorias sociológicas Po demos observar a variação de uma situação de comunicação para outra e então a lingüística faz limites com a teoria da comunicação Podemos pesquisar a mudança lingüística e a evolução de uma lín gua ou de uma família de línguas e aí a lingüística avizinhase da história Podemos analisar a aquisição da linguagem e aí depen dendo da posição teórica com que se faz a análise a lingüística con fi na com a biologia ou a antropologia Podemos ver a linguagem como um sistema formal e então a lingüística se aproxima da ma temática e da computação Podemos investigar as unidades maio res do que a frase isto é o discurso e o texto Nesse caso quando se põe acento na dimensão lingüística os estudos do discurso têm vizinhança com a retórica com a dialética com a teoria da litera tura Quando se enfatiza a dimensão histórica do discurso a aná lise do discurso é limítrofe da história Poderíamos continuar a dar exemplos de formas de aborda gem do fenômeno da linguagem mas cremos que os elementos ex postos acima são sufi cientes para mostrar que a linguagem é como dizia Saussure multiforme e heteróclita está a cavaleiro de dife rentes domínios é ao mesmo tempo física fi siológica e psíqui ca pertence ao domínio individual e ao domínio social Por isso confi na com diferentes campos do saber não só das ciências humanas mas também das ciências exatas e biológicas A lingüística pelo próprio objeto parece ter uma função in terdisciplinar Antes de avançar é preciso pensar outra questão Nas Letras o campo dos estudos da linguagem tradicionalmente divi dese em de um lado os estudos de língua e de outro as investi gações sobre a literatura Cada um desses domínios é presidido por uma disciplina teórica a lingüística para o primeiro e a teoria da SAUSSURE Ferdinand de Curso de lingüística geral São Paulo EDUSPCultrix 1969 17 31 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade literatura para o segundo O primeiro como já se disse acima tem por objeto o estudo dos mecanismos da linguagem humana por meio do exame das diferentes línguas faladas pelo homem O segundo tem por fi nalidade a compreensão de um fato lingüís tico singular que é a literatura Embora claramente distintos esses dois módulos dos estudos da linguagem deveriam manter relações muito estreitas De um lado um literato não pode voltar as costas para os estudos lingüísticos porque a literatura é um fato de lin guagem de outro não pode o lingüista ignorar a literatura porque ela é o campo da linguagem em que se trabalha a língua em todas as suas possibilidades e em que se condensam as maneiras de ver de pensar e de sentir de uma dada formação social numa determi nada época A literatura é a súmula de toda a produção do espí rito humano ao longo da História Já lembrava o grande lingüis ta Roman Jakobson em texto antológico Esta minha tentativa de reivindicar para a Lingüística o direito e o dever de empreender a investigação da arte verbal em toda a sua am plitude e em todos os seus aspectos conclui com a mesma máxima que resumia meu informe à conferência que se realizou em 1953 aqui na Universidade de Indiana Linguista sum linguistici nihil me alienum puto Se o poeta Ranson estiver certo e o está em dizer que a poesia é uma espécie de linguagem o lingüista cujo campo abrange qualquer espécie de lin guagem pode e deve incluir a poesia no âmbito de seus estudos A presente confe rência demonstrou que o tempo em que os lingüistas tanto quanto os historiadores literá rios eludiam as questões referentes à estrutura poética fi cou feliz mente para trás Em verdade conforme escreveu Hollander pare ce não haver razão para a tentativa de apartar os problemas literários da Lingüística geral Se existem alguns críticos que ainda duvidam da competência da Lingüística para abarcar o campo da Poética tenho para mim que a incompetência poética de alguns lingüistas intolerantes tenha sido tomada por uma incapacidade da própria ciência lingüística Todos nós que aqui estamos todavia compre endemos defi nitivamente que um lingüista surdo à função poética da linguagem e um especialista de literatura indiferente aos proble mas lingüísticos são um e outro fl agrantes anacronismos Este trabalho pretende pensar o problema da interdisciplina ridade depois discutir de maneira mais aprofundada a questão da interdisciplinaridade em lingüística para terminar debatendo a problemática das relações entre lingüística e literatura JAKOBSON Roman Lin güística e comunicação São Paulo Cultrix 1969 162 32 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 Interdisciplinaridade Parece haver duas formas básicas de fazer ciência uma é re gida por um princípio de exclusão e a outra por um princípio da participação1 Esses dois princípios criam dois grandes regimes de funcionamento das atividades de pesquisa O primeiro é o da ex clusão cujo operador é a triagem Nele quando o processo de re lação entre objetos atinge seu termo leva à confrontação do exclu sivo e do excluído As atividades reguladas por esse regime colo cam em comparação o puro e o impuro O segundo regime é o da participação cujo operador é a mistura o que leva ao cotejo do igual e do desigual A igualdade pressupõe grandezas intercambi áveis a desigualdade implica grandezas que se opõem como supe rior e inferior Assim há dois tipos fundamentais de fazer científi co o da exclusão e o da participação ou em outras palavras o da triagem e o da mistura O fazer governado pelo princípio da triagem tem um aspecto descontínuo e tende a restringir a circulação de objetos que será pequena ou mesmo nula e de qualquer maneira desacelerada pe la presença do exclusivo e do excluído É um fazer do interdito Já a atividade gerida pelo princípio da mistura apresenta um aspecto contínuo favorecendo o comércio entre objetos métodos con ceitos Nela o andamento é rápido É a atividade do permitido A triagem e a mistura variam em termos de tonicidade átona e tônica Há triagens mais ou menos drásticas e misturas mais ou menos homogêneas o que daria o seguinte esquema Triagem Mistura Tônica unidadenulidade universalidade Átona totalidade diversidade Cada um desses fazeres opera com um tipo de valor diferente os da triagem criam valores de absoluto que são valores da intensi dade os da mistura valores de universo que são valores da exten sidade Os primeiros são mais fechados tendendo a concentrar os 1 Zilberberg e Fontanille desenvolvem os conceitos de regimes de mistura e de triagem para mostrar como os valores tomam forma e circulam no discurso e não para analisar os modos de fazer ciência Tomamos as noções dos dois semioticistas para estudar os valores relativos à disciplinarização e a sua superação FONTANILLE Jacques ZILBERBERG Claude Ten são e signifi cação São Pau lo Discurso Editorial Hu manitas 2001 27 Idem 29 Idem 29 Idem 2030 Idem 33 33 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade valores desejáveis e a excluir os indesejáveis os segundos são mais abertos procurando a expansão e a participação Até meados do século XVII embora houvesse uma disciplina rização do conhecimento que remontava aos gregos predominava o fazer científi co regido pelo princípio da mistura Num certo tem po por exemplo não há diferença nítida entre alquimia e química ou entre astronomia e astrologia A ciência busca menos o modo de funcionamento do mundo do que seus grandes fi ns menos o como dos fenômenos do que seu porquê Assim Kepler ao estabe lecer as leis da mecânica celeste queria menos saber como se estru tura o universo e muito mais demonstrar que um mundo matema ticamente perfeito só poderia ressoar a perfeição divina A partir do século XVIII começa um movimento de especiali zação nas atividades científi cas ou seja uma atividade de investiga ção gerida pelo princípio da triagem Estabelecemse objetos muito precisos que não se misturam O ecletismo constitui um grave erro Os objetos são puros são autônomos Assim por exemplo Saus sure estabelece que o objeto da lingüística é a langue Esse objeto não se contamina da física da fi siologia da psicologia etc A lín gua será estudada em si mesma e por si mesma O gesto científi co fundamental é dividir o objeto para examinar seus elementos constituintes e a partir daí recompor o todo Assim a lingüística começa por dividir os períodos em orações estas em palavras es tas em morfemas estes em sílabas estas em fonemas Estudam se exaustivamente esses componentes para chegar à compreen são do objeto a língua Esse movimento de triagem chegou a seu apogeu no século XIX e atingiu dimensões alarmantes no século XX com especializações cada vez mais restritas mais particulares Não é preciso dizer que a especialização e a conseqüente discipli narização2 produziram resultados notáveis São elas que explicam o extraordinário desenvolvimento científi co a que se assistiu nes se período O método da divisão e recomposição produz análises muito fi nas e possibilita a ampliação do conhecimento Mas prin cipalmente é preciso dizer que opera uma mudança radical do que se compreende como ciência é a atividade que pretende descobrir o funcionamento das coisas 2 Comte na 60ª lição do Curso de fi losofi a positiva t 6 723774 mostra que a ciência é especulação ou ação no primeiro caso ela desvenda as leis dos fenôme nos e a possibilidade de prevêlos no segundo descobre sua utilidade e sua apli cação foi essa formulação que distinguiu a ciência pura da aplicada Idem 5354 Op cit 1525 COMTE Auguste Cours de philosophie positive Paris J B Baillière et Fils 1869 t1 e 6 Cf t 1 4788 34 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 A especialização não produziu só maravilhas De um lado é preciso considerar que o próprio desenvolvimento da ciência pro põe novos problemas que não cabem nesse programa científi co De outro ela deu lugar a uma institucionalização danosa do fazer científi co regulada também pelo princípio da triagem Os grupos de pesquisa atuam cindidos num regime de concorrência selvagem cada um competindo com outros A pesquisa tornase secreta o que é avesso ao ideal científi co da construção do conhecimento num processo de comunicação universal Com a especialização a triagem continua a operar e aí surgem os dogmas as igrejas as purezas as heresias as excomunhões os sumos sacerdotes os cães de guarda No entanto não são esses os aspectos mais ruinosos da especializa ção O mais grave é o que ela produz sobre a formação e a cultura dos homens de ciência Nos anos 20 do século passado Ortega y Gasset de modo premonitório pois estávamos longe do auge do processo já denunciava a barbárie da especialização Porque outrora os homens podiam dividirse simplesmente em sá bios e ignorantes em mais ou menos sábios e mais ou menos igno rantes Mas o especialista não pode ser submetido a nenhuma des sas duas categorias Não é um sábio porque ignora formalmente o que não entra na sua especialidade mas tampouco é um ignorante porque é um homem de ciência e conhece muito bem sua porci úncula do universo Devemos dizer que é um sábioignorante coisa sobremodo grave pois signifi ca que é um senhor que se comportará em todas as questões que ignora não como um ignorante mas com toda a petulância de quem na sua questão especial é um sábio No domínio do conhecimento da linguagem separamse niti damente os estudos lingüísticos e os literários Ficam de costas um para o outro Embora como se mostrou acima Jakobson conside re essa atitude um verdadeiro anacronismo lingüistas e especia listas em literatura ignoramse Isso produziu uma conseqüência devastadora de um lado é constrangedor verifi car a ignorância literária dos lingüistas e mais ainda constatar que eles não dão à literatura nenhuma importância de outro é ainda mais embara çoso ouvir especialistas em literatura enunciando com a petulân cia dos sábiosignorantes banalidades do senso comum eivadas de preconceito e de falsidade sobre a língua Num texto famoso Snow mostrava o distanciamento pro gressivo das ciências naturais das humanidades com prejuízo para uma e outra É curioso que no domínio dos estudos da linguagem parece reproduziremse essas duas culturas Com efeito algumas GASSET José Ortega y A rebelião das massas Rio de Janeiro Livro IberoAmeri cano 1962 174 SNOW Charles Percy As duas culturas e uma segunda leitura uma versão ampliada das duas culturas e a revolu ção científi ca 2 ed São Pau lo EDUSP 1995 35 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade especialidades da lingüística aproximaramse das ciências biológi cas ou das ciências exatas enquanto a literatura permanece solida mente ancorada entre as humanidades Um jovem professor de li teratura com a arrogância dos que têm um solene desprezo pelos outros assim resumiu essa dupla cultura no campo das Letras os lingüistas marcham e os especialistas em literatura sambam Qual quer brasileiro sabe o que é eufórico e o que é disfórico na perspec tiva desse jovem ignorante Mas não são apenas fi lósofos humanistas e cientistas sociais que se preocupam com as conseqüências da especialização selva gem Norbert Wiener o criador da cibernética diz Atualmente podem contarse nos dedos de uma mão os cientistas que não sejam exclusivamente matemáticos físicos ou biólogos Pode haver topólogos especialistas em acústica ou coleopteristas que dominam o jargão de sua especialidade e conhecem toda a li teratura de sua área e suas ramifi cações porém na maioria das ve zes considerarão qualquer outra disciplina como algo que pertence a um colega que trabalha no mesmo corredor três portas adiante e crerão que qualquer interesse de sua parte pelo tema é uma injus tifi cável violação de privacidade Na lingüística essa especialização fazse sentir fortemente Já não se encontram mais lingüistas mas foneticistas sintaticistas fonólogos semanticistas analistas do discurso e assim por diante Num processo de cissiparidade talvez já não se encontrem mais se manticistas mas semanticistas formais semanticistas lexicais etc Tornase cada vez mais difícil encontrar alguém com uma forma ção lingüística abrangente A preocupação mesmo dos cientistas com a especialização crescente deriva do fato de que os especialistas trabalham apenas no domínio restrito fazem progredir a ciência somente no interior de um dado paradigma No entanto as grandes criações científi cas não foram feitas por especialistas mas pelos sábios que tinham uma formação abrangente multidisciplinar aberta a todos os cam pos do saber Gilbert Durand mostra que se olharmos na histó ria da ciência para cada um dos grandes criadores vamos verifi car que eles não eram especialistas mas cultivavam a mistura com sua abertura sua amplitude sua largueza e sua profundidade Os sábios criadores do fi m do século XIX e dos dez primeiros anos do século XX esse período áureo da criação científi ca em que se per fi lam nomes como os de Gauss Lobohevsky Riman Poincaré Bec querel Curie Pasteur Max Planck Niels Bohr Einstein etc tive WIENER Norbert Ciber netica o el control y comu nicación en animales y má quinas Barcelona Tusquets Editores 1985 24 36 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 ram todos uma larga formação pluridisciplinar herdeira do velho tri vium as humanidades e quadrivium os conhecimentos científi cos e também a matemática medievais prudente e parcimoniosamente organizados pelos colégios dos jesuítas e dos frades oratorianos e pelas pequenas escolas jansenistas do novo humanismo de Lakanal Atualmente estamos num momento de mudança da forma de fazer ciência Estamos passando de um fazer científi co regido pela triagem para um fazer investigativo governado pela mistura Falase em interdisciplinaridade pluridisciplinaridade multidis ciplinaridade transdisciplinaridade e mesmo indisciplinaridade Hoje esses termos são universais positivos do discurso enquanto a especialização é vista como algo fora de moda relacionada a um pensamento autoritário Afi nal a destruição das fronteiras é um fenômeno contemporâneo as grandes entidades transnacionais como a União Européia e o MERCOSUL derrubaram as frontei ras econômicas permitindo a livre circulação de bens e de capi tais a queda do muro de Berlim deitou abaixo uma linha semân tica divisória entre duas visões de mundo a famosa cortina de fer ro o espaço Shengen demoliu alfândegas e controles entre os esta dos nacionais Por outro lado estamos num tempo do elogio das margens do descentramento da alteridade da heterogeneidade do dialogismo vivemos num tempo de mestiçagens e de imigra ções de recusa da pureza Esse ar do tempo leva a pôr em questão as divisões disciplinares as fronteiras rígidas entre os campos do saber Ao mesmo tempo o desenvolvimento da ciência impulsio nado por essa epistemé do que foi chamado a pósmodernidade leva os pesquisadores a começar a pensar problemas que estão si tuados na fronteira das disciplinas e que durante muito tempo foram deixados de lado No entanto que é realmente interdisciplinaridade E mul tidisciplinaridade E pluridisciplinaridade Transdisciplinaridade então E essa tal de indisciplinaridade Ninguém sabe direito Va mos tentar uma defi nição a partir da etimologia das palavras3 Es se conjunto de termos tem um radical comum disciplina um su fi xo comum dade e prefi xos distintos in multi pluri inter trans Não se criam diferentes palavras para expressar o mesmo sentido A distinção do sentido está na parte diversifi cada e não 3 Essas defi nições elaboradas a partir da etimologia não diferem do que avança Piaget em seu lúcido ensaio sobre a interdisciplinaridade PIAGET Jean Pro blèmes géneraux de la recherche interdisciplinaire et mécanismes communs Em Épistémologie des sciences de lhomme Paris Gallimard 1970 253377 DURAND Gilbert Mul tidisciplinarités et heuristi que Em PORTELLA Edu ardo org Entre savoirs Linterdisciplinarité en acte enjeux obstacles perspec tives Toulouse ÈresUNES CO 1991 36 37 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade na parte idêntica dos vocábulos Disciplina provém do latim disci plina formada do radical indoeuropeu dek que signifi ca rece ber e está na base de discere aprender discipulus o que apren de disciplina o que se aprende Modernamente a palavra tem dois grandes sentidos a ramo do conhecimento principalmente entendido como componente de um currículo b normas de con duta O sufi xo dade é formador de substantivos abstratos a partir de adjetivos Para defi nir os termos a questão é pensar os prefi xos todos de origem latina sempre a partir das raízes indoeuropéias in ne indica negação e aparece em palavras como nulo neutro negar ninguém inútil inter en denota dentro de entre e ocorre por exemplo em interior íntimo interno entrar intestino pluri pel 4 remete ao sentido de encher abundância grande número e está presente em vocábulos como plural plenitude ple nipotenciário cheio pleno suprir multi mel traduz a noção de abundância quantitativa ou qualitativa e aparece em muito mul tidão múltiplo multiplicação melhor etc trans ter quer dizer atravessar chegar ao fi m e ocorre em termo término determinar traduzir transportar trásosmontes e assim por diante Observan do a etimologia das palavras em que aparecem os prefi xos pluri e multi podese dizer que há um matiz diferenciador entre eles o primeiro indica abundância de elementos homogêneos enquan to o segundo não traz essa idéia de homogeneidade No entanto essa nuança de sentido perdeuse na história Podemos pois di zer que multidisciplinaridade e pluridisciplinaridade querem dizer a mesma coisa Além disso se deixarmos de lado o termo indisci plinaridade porque apesar do charme dado pela conotação liber tária indica apenas uma negação sem qualquer valor positivo te mos três termos a defi nir pluri e multidisciplinaridade interdisci plinaridade e transdisciplinaridade Podese pensálos como o con tinuum de um processo Na multidisciplinaridade ou pluridisciplinaridade várias dis ciplinas analisam um dado objeto sem que haja ligação necessária entre essas abordagens disciplinares O que se faz é pôr em parale lo diferentes maneiras de enfocar um tema que são coordenadas com vistas ao conhecimento global de uma determinada matéria Tomemos por exemplo o caso da energia Esse assunto deve ne 4 A forma primeira da raiz é pel o que explica o inglês full cheio fi ll encher o alemão Fülle abundância füllen encher voll cheio o grego pólys muito e pólis cidade Essa forma transformase em ple 38 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 cessariamente ser enfocado multidisciplinarmente a física estuda as formas e transformações da energia a biologia investiga os pro cessos para obtenção da biomassa a geologia examina as formas de descobrir jazidas de recursos não renováveis de produção de ener gia como o carvão mineral o xisto o petróleo e o gás natural as engenharias pesquisam como aproveitar a energia como extraíla como distribuíla a economia analisa a oferta e a procura de ener gia as vantagens e desvantagens econômicas do uso de uma dada forma de energia a ecologia avalia os efeitos do uso de certo tipo de energia no meio ambiente a sociologia e a antropologia obser vam os efeitos do uso da energia em determinada comunidade hu mana e assim por diante A interdisciplinaridade pressupõe uma convergência uma complementaridade o que signifi ca de um lado a transferência de conceitos teóricos e de metodologias e de outro a combinação de áreas Assim por exemplo a sociologia pode utilizar conceitos da economia como faz Pierre Bourdieu quando se serve dos con ceitos de capital mercado e bens para todas as atividades sociais e não somente as econômicas ou quando faz largo uso da noção de troca Com muita freqüência a interdisciplinaridade dá origem a novos campos do saber que tendem a disciplinarizarse A bioquí mica unindo biologia e química estuda os processos químicos que ocorrem nos organismos vivos A sociobiologia é a tentativa de ex plicar biologicamente os comportamentos sociais Quando as fronteiras das disciplinas se tornam móveis e fl ui das num permeável processo de fusão temos a transdisciplinari dade É transdisciplinar uma poética da ciência Na poesia perce bemse analogias observamse correspondências não se respeita a autoridade dos códigos das estruturas da tradição dos signifi ca dos do discurso Da mesma forma a transdisciplinaridade é do mínio da audácia que leva a examinar todo o conhecimento não somente a partir dos três axiomas da lógica clássica o do tercei ro excluído o da identidade e o da não contradição nem apenas com base nos princípios que fundam a ciência moderna o da or dem que engloba o da determinação o da separação e o da redu ção mas a partir de fundamentos analógicos de conceitos como caos irreversibilidade degradação As interciências como as Ciên cias Cognitivas e a Ecologia são transdisciplinares A ecologia é o campo transdisciplinar emblemático pois contém um saber cien tífi co diversifi cado utilizado numa concepção generosa universa lizante e redentora da vida do homem no planeta cf PIAGET op cit 369 39 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade Examinemos mais detidamente a interdisciplinaridade que é uma das formas mais interessantes e produtivas de trabalho cien tífi co de nossa época Poderíamos dizer que temos basicamente duas práticas interdisciplinares a transferência que é a passagem de conceitos metodologias e técnicas desenvolvidos numa ciência para outra b intersecção em que duas ou mais disciplinas se cru zam para tratar de determinados problemas Como se vê a inter disciplinaridade não pressupõe a diluição das fronteiras discipli nares num ecletismo frouxo Assim a interdisciplinaridade da lin güística com outras ciências não é o apagamento dos contornos da ciência da linguagem e sua transformação em outros campos do conhecimento Não é a biologização a matematização a sociolo gização a antropologização etc da lingüística Como dizia Sírio Possenti em recente conferência o papel dos lingüistas não é fa zer uma história ou uma sociologia de segunda mas uma lingüís tica de primeira A interdisciplinaridade supõe disciplinas que se interseccionam que se sobrepõem que se reorganizam que bus cam elementos noutras ciências Relação da lingüística com outras ciências Como se disse a interdisciplinaridade pressupõe de um lado a transferência de conceitos teóricos e de metodologia e de outro a intersecção de áreas Mostremos com alguns exemplos como is so se deu na lingüística Transferência de conceitos da lingüística para outras ciências A antropologia estrutural importa da lingüística antes de tudo um modelo de cientifi cidade Toma métodos e noções da lingüística considerada então ciência piloto das ciências humanas Antes de LéviStrauss a antropologia estava ligada às ciências da natureza e comprometida com toda sorte de racismos e com a noção de determinismo biológico O antropólogo francês para estudar as estruturas elementares de parentesco toma da fonologia a idéia da busca de constantes presentes sob a imensa variabilidade da realida de Sob as múltiplas práticas matrimoniais aparecem as invarian tes as estruturas elementares que determinam basicamente com quem se pode e com quem não se pode casar LéviStrauss coloca a proibição do incesto como um universal entendido não como um interdito moral mas como uma regra de positividade social desti 40 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 nada a proteger a espécie contra os efeitos funestos dos casamentos consangüíneos Assim ele desbiologiza o fenômeno do parentesco deslocando a questão das relações consangüíneas para o caráter de transação de comunicação que se instaura com a aliança matri monial Diz ele que a proibição do incesto exprime a passagem do fato natural da consangüinidade ao fato cultural da aliança A antropologia deixa a natureza e é colocada no terreno exclusi vo da cultura A lingüística em particular a fonologia permite com seus métodos suas teorias suas noções ultrapassar o estágio dos fenômenos conscientes para atingir aquilo que é inconscien te possibilita não ver os termos em sua positividade mas apreen dêlos em suas relações internas ou seja tomar por base da análi se as relações entre os termos e não os próprios termos propicia descobrir os sistemas e pôr em evidência suas estruturas proporcio na desvendar leis gerais LéviStrauss mostra que se podem anali sar certos fenômenos sociais como por exemplo o parentesco de maneira análoga à da fonologia porque eles são elementos dotados de signifi cação integramse em sistemas inconscientes resultam de leis gerais dado que se encontram fenômenos similares em regiões bastante afastadas umas das outras5 Diz o antropólogo francês que como os fonemas os termos de parentesco só adquirem signifi ca ção quando se integram em sistemas Na busca das invariantes para além da multiplicidade das variedades percebidas ele põe de lado todo recurso à consciência do sujeito6 Dá prevalência à sincronia Da mesma forma os mitos formam estruturas as variantes de um mesmo mito integramse num sistema no qual cada elemento se opõe a todos os outros Lacan teve para a psicanálise o mesmo papel que LéviStrauss para a antropologia A lingüística oferece para a psicanálise lacania na um modelo de cientifi cidade Por volta dos anos 50 do século passado na França reinava uma biologização das conquistas freu dianas e a psicanálise dissolviase na psiquiatria Lacan denuncia também o behaviorismo dominante nos Estados Unidos como 5 Diz LéviStrauss que o sistema de parentesco é uma linguagem LÉVI STRAUSS Claude Antropologia estrutural Rio de Janeiro Tempo Brasileiro 1975 65 afi rma ainda postulamos que existe uma correspondência formal entre a estrutura da língua e a do sistema de parentesco Idem 79 6 Esse é o modo de proceder de um fonólogo Observese por exemplo a argu mentação de Mattoso Camara para explicar por que o português não tem vo gais nasais CAMARA Jr Joaquim Mattoso Estrutura da língua portuguesa Pe trópolis Vozes 1970 4850 LÉVISTRAUSS Claude As estruturas elementares de parentesco Petrópolis Vozes 1976 70 Idem 48 41 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade uma adaptação do indivíduo às normas sociais como uma teoria que tem uma função de ordem de normalização Deseja a desme dicalização e a desbiologização do discurso freudiano e a retirada do inconsciente do seio das estruturas psicologizantes behavioristas Propõe uma ruptura enraizada na obra de Freud uma volta a Freud Esse retorno darseia levando em conta o modelo da lingüística Para Lacan há uma prevalência da dimensão sincrônica na orga nização do inconsciente Portanto ele não considera essencial em Freud a teoria dos estágios sucessivos mas a existência de uma es trutura edipiana de base caracterizada por sua universalidade in diferente às contingências de tempo e de espaço Para ele o homem só existe enquanto tal pela função simbólica Ele é pois produto da linguagem efeito dela Isso permite ao psicanalista francês criar sua famosa fórmula O inconsciente é estruturado como uma lingua gem A existência simbólica do ser humano deixa clara a impor tância dada à linguagem à relação com o outro Dessa forma ele desmedicaliza a abordagem do inconsciente objeto da psicanálise considerandoo como um discurso A psicanálise deixa de ser uma disciplina médica e passa a ser uma disciplina analítica Lacan fundamentase na teoria saussuriana do signo apor tandolhe uma série de modifi cações e mesmo de torções Saussu re mostrara que o signo não une um nome a uma coisa mas um conceito a uma imagem acústica Ele separou portanto o signo de qualquer relação com o referente O signo sem qualquer vínculo com o referente é para Lacan o fundamento da condição hu mana No entanto diferentemente de Saussure ele relega o sig nifi cado a um lugar acessório A fala cortada de qualquer acesso ao real veicula apenas signifi cantes que remetem uns aos outros O inconsciente objeto que funda a identidade científi ca da psica nálise é uma cadeia de signifi cantes O inconsciente é um efeito da linguagem de suas regras de seu código Lacan recorre aos conceitos de metáfora e de metonímia desenvolvidos por Jakobson e assimilaos aos dois processos de fun cionamento do inconsciente a condensação e o deslocamento Além desses modelos gerais Lacan toma conceitos particulares da lingüística por exemplo de Damourette e Pichon vem a divisão entre o je e o moi e o conceito de forclusão7 O primeiro serve para 7 Pichon era além de gramático psicanalista A forclusão é um fenômeno gra matical que diz respeito à negação O francês faz uma negação com um morfema descontínuo O primeiro elemento da negação é considerado por Damourette e LACAN Jacques Écrits I Paris Seuil 1966 145 Idem 165 Idem 250289 SAUSSURE Op cit 79 81 42 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 pensar a divisão entre o sujeito do inconsciente e o da consciência com seu imaginário o segundo para mostrar que há um processo de fracasso do recalcamento originário em que não se conserva o que se recalcou porque o recalcado é excluído ou barrado pura e simplesmente o que produz a psicose O recurso da psicanálise a conceitos lingüísticos não era novi dade Freud basearase em Sperber e Carl Abel para justifi car suas teses de que o simbolismo é sempre sexual mesmo quando parece que falamos de outra coisa e de que os símbolos são ambivalentes porque são aptos a signifi car dois conteúdos opostos De Sperber tomou o longo ensaio Da infl uência dos fatores sexuais na forma ção e na evolução da linguagem e utilizouo como base para de monstrar que se a linguagem se funda na sexualidade então não existe contradição entre o funcionamento da linguagem e o simbo lismo A Carl Abel dedica um estudo intitulado Sobre o sentido antitético das palavras primitivas O que interessava a Freud era a tese de Abel de que as línguas primitivas tinham uma só palavra para denotar sentidos opostos Isso comprovava sua tese sobre a ambiva lência dos símbolos que podem representar qualquer coisa pelo seu contrário No caso de um sonho não se pode em princípio saber se um elemento traduz um conteúdo positivo ou negativo Transferência de conceitos de outras ciências para a lingüística A lingüística histórica toma das ciências históricas ao longo de seu desenvolvimento três conceitos de história a a história como de cadência b a história como progresso c a história como mudança O primeiro vem da Antigüidade e é expresso na doutrina das idades do gênero humano por exemplo em Hesíodo a humani dade vai da idade de ouro em que os homens viviam como deuses até a idade do ferro em que os homens estão sujeitos a toda espécie Pichon da ordem da discordância O segundo elemento da negação é denomina do forclusivo Seu semantismo originário é o de uma ocorrência mínima pas goutte miette aucun nul personne rien Essa ocorrência remete a um paradig ma personne por exemplo é a ocorrência mínima que remete ao paradigma dos animados humanos rien ao paradigma dos não animados pás assim como nul lement ao paradigma das quantifi cações O que é dado por forclos ou excluído isto é localizado num exterior nocional é então a representação de um pa radigma evocado em intensão qualitativamente em outras palavras defi ni do por uma propriedade e não construído em extensão DAMOURETTE Jacques PICHON Edouard Des mots à la pensée Essai de grammaire de la lan gue française Paris Éditions dArtrey 1970 t 6 113143 LACAN Jacques Le sémi naire Livre III les psycho ses 19551956 Paris Seuil 1981 229 e 361 cf ARRIVÉ Michel Lin güística e psicanálise Freud Saussure Hjelmslev Lacan e os outros São Pau lo EDUSP 2001 7991 FREUD Sigmund Sobre el sentido antitético de las palabras primitivas Em Obras completas Buenos Aires Amorrortu Editores 2001 v 11 143154 43 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade de males passando pelas idades da prata do bronze e dos heróis Muitos comparatistas por exemplo Schleicher defendiam que as línguas antigas estavam num estágio superior de desenvolvimen to em comparação com as línguas modernas que representariam uma fase de decadência de degeneração Isso se devia à organiza ção morfológica mais densa declinações e conjugações que se gundo eles implicava uma maior capacidade de expressão por rea lizar um número maior de distinções gramaticais A História seria então um processo degenerador porque degradava as estruturas da língua Daí a relevância da reconstituição de seu passado para buscar atingir o que seria o período áureo das línguas O conceito da história como progresso é uma idéia iluminis ta que aparece por exemplo em Voltaire Herbert Spencer conce be a história humana como um processo contínuo e linear de evo lução Em Comte aparece um determinismo sociológico Sua lei dos três estados o teológico o metafísico e o positivo opera na ontogênese e na fi logênese Ela indica que assim como os indiví duos todas as sociedades caminham para atingir o mais alto estágio de desenvolvimento Otto Jespersen sustenta que na história das línguas há progresso há uma marcha na direção de formas mais aperfeiçoadas Como as formas se abreviaram estruturas analíti cas tomaram lugar das formas sintéticas as formas irregulares re gularizaramse a ordem das palavras tornouse fi xa a língua fi cou cada vez mais apta para a expressão porque adquire maior clare za e precisão e exige do usuário menor esforço de memória e até mesmo menor esforço muscular na fala O modelo de Jespersen era o inglês língua da qual escreveu uma monumental gramática Vendryès termina sua obra Le langage expondo a idéia de que a história das línguas é um aperfeiçoamento constante desse instru mento criado pelo homem A idéia da história como mudança não governada por ne nhuma teleologia rege as concepções atuais em lingüística históri ca Já Lucrécio negava o fi nalismo aduzindo que ele põe antes o que vem depois A lingüística atual não trabalha mais com as idéias de decadência e de progresso Mattoso Câmara diz que a palavra evolução em lingüística pressupõe apenas um processo de mudan ças graduais e coerentes Schleicher que além de lingüista era botânico preconizava que a ciência da linguagem deveria estar entre as ciências da natu reza Importa uma série de princípios da biologia Seu objetivo era estabelecer leis gerais e rigorosas do desenvolvimento das línguas HESÍODO Os trabalhos e os dias 4 ed São Paulo Ilu minuras 2002 v 106201 cf CAMARA Jr Joaquim Mattoso História da lingüís tica 4 ed Petrópolis Vozes 1986 5455 VOLTAIRE FrançoisMa rie Oeuvres historiques Pa ris Gallimard 2000 SPENCER Herbert Do progresso sua lei e sua cau sa Lisboa Editorial Inqué rito 1939 COMTE Auguste Cours de philosophie positive Pa ris Schleicher Frères 1908 t 4 328387 JESPERSEN Otto Progress in Language Amsterdam E John Benjamins 1993 JES PERSEN Otto Effi ciency in Linguistic Change Copenha guen E Munksgaard 194 JESPERSEN Otto Modern English Grammar on Histo rical Principles Londres G Allen Unwin Copenhaguen E Munksgaard 1961 7 v VENDRYÈS J Le langage Paris Albin Michel 1950 402420 LUCRÉCIO De la natu re Paris Les Belles Lèttres 1948 t II IV 822842 CAMARA Jr Joaquim Mat toso Princípios de lingüística geral Rio de Janeiro Livraria Acadêmica 1970a 192 44 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 Schleicher contrapunha a lingüística à fi lologia Esta é um ramo da história enquanto aquela não As três idéias que traz das ciências da natureza são a a língua é um organismo natural e portanto ela desenvolvese até um certo ponto e depois entra em decadên cia b a mudança lingüística deve ser entendida como uma evolu ção natural no sentido darwiniano c a língua depende de traços físicos do cérebro e do aparelho fonador e varia segundo as raças do mundo sendo portanto um critério adequado para elaborar uma classifi cação racial Mesmo que hoje essas idéias nos pareçam completamente erradas Schleicher teve uma importante infl uên cia em temas como a classifi cação das línguas indoeuropéias a re construção do indoeuropeu os estudos de fonética a classifi cação tipológica das línguas baseada na estrutura da palavra Para Sch leicher o ápice da evolução lingüística era o indoeuropeu depois dele começava a degeneração A chamada lingüística matemática trouxe desta ciência diver sos instrumentos para a realização da análise lingüística teoria dos conjuntos álgebra de Boole topologia estatística cálculo de pro babilidades teoria dos jogos Zellig Harris por exemplo publica um estudo da gramática em termos de teoria dos conjuntos De vemse lembrar ainda os usos da estatística nos estudos de lexico logia e lexicografi a Da computação a lingüística toma programas e técnicas para aplicálos a aspectos da linguagem humana fazendo um tratamento automático das línguas tradução automática cor reção ortográfi ca recuperação de informações e busca nos textos resumos automáticos reconhecimento de voz síntese vocal para o estabelecimento da interface homemmáquina etc Intersecção de áreas A sociolingüística estuda a língua como instrumento de integra ção social Em primeiro lugar interessase pela questão da variação lingüística examinando a covariância sistemática entre a estrutura lingüística e a estrutura social Estuda assim a variação por grupos sociais Analisa também a língua como classifi cador social e como fa tor de coesão social para as etnias as classes ou outros grupos sociais Estuda as relações entre as línguas em função de fatores sociais bem como toda a problemática do contato das línguas e do bilingüismo Como se vê da sociologia vem a questão dos fatores sociais e da lin güística a análise da língua O que a sociolingüística faz é estabele cer a correlação entre fatores sociais e fatos de linguagem Camara Jr 1986 5051 Idem 5255 HARRIS Zellig S Mathe matical Structures of Langua ge Nova York WileyInters cience 1968 45 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade A antropolingüística estabelece uma correlação entre língua e cultura Não estão mais em pauta grupos sociais como na sociolin güística mas fatores culturais Estudase a língua no contexto cul tural Interessa à antropolingüística a questão da língua em relação ao sagrado por exemplo línguas cultuais as teorias populares e os mitos a respeito da linguagem os tabus e as fórmulas mágicas e en cantatórias a visão das relações entre a palavra e a coisa as taxiono mias os sistemas de percepção e de categorização do mundo A psicolingüística estuda o conjunto de operações mentais li gadas à linguagem Assim ocupase da retenção e do esquecimen to de informações verbais da aquisição da linguagem do proces samento da informação pelo cérebro etc A geolingüística é um campo interdisciplinar em que se unem a linguística e a geografi a A geolingüística ocupase de estudar as línguas no seu contexto geográfi co Preocupase com a identifi ca ção e a descrição de áreas lingüísticas domínios lingüísticos áreas dialectais etc com a análise das dinâmicas geográfi cas das varia ções internas do idioma com o estudo da importância territorial das línguas e das suas variedades em diferentes escalas local regio nal nacional continental mundial com a análise das dinâmicas territoriais das línguas e das suas variedades evolução demolingü ística territórios onde são faladas dinâmicas de expansão e retro cesso territorial com o estudo de situações de confl ito territorial causado pelas diferenças lingüísticas com o conhecimento das re presentações que as pessoas têm dos espaços lingüísticos das suas falas e da sua dinâmica territorial A neurolingüística compartilhamento da neurologia e da lin güística durante muito tempo estudou e continua ainda a fazê lo as lesões no córtex cerebral e as defi ciências afásicas daí resul tantes No entanto ela não se restringe a isso pois estuda a elabo ração cerebral da linguagem Ocupase com o estudo dos mecanis mos do cérebro humano envolvidos na compreensão e na produ ção lingüística e no conhecimento da língua Ocupase tanto da elaboração da linguagem normal como das alterações lingüísticas causadas por distúrbios A neurolingüística leva a uma compreen são das bases biológicas da linguagem Como se mostrou acima que a linguagem é multiforme e hete róclita e portanto a interdisciplinaridade é da sua natureza pode ríamos continuar a mostrar a interdisciplinaridade da lingüística com outras ciências em suas diferentes formas ao longo da história No 46 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 entanto é preciso chegar ao ponto fi nal a discussão da relação entre lingüística e literatura os dois ramos em que se dividem as Letras Relação da lingüística com a literatura Até por volta dos anos 60 a relação entre a lingüística e a lite ratura era bastante simples de um lado na medida em que a aná lise do texto literário era o estudo da substância do plano do con teúdo em sua relação com uma realidade extralingüística não era preciso recorrer a qualquer categoria lingüística e portanto não havia qualquer ligação entre esses dois campos do conhecimento em que tradicionalmente se dividem os estudos da linguagem de outro no estabelecimento de textos e na estilística havia certa vin culação mas bastante rudimentar entre esses dois domínios Ex pliquemos melhor essas afi rmações Quando por exemplo a crítica machadiana mostra as tradi ções de que se valeu o autor para compor sua obra quando o acu sa de macaqueação de Sterne como faz Sílvio Romero quando detecta temas comuns a seus romances vinculados a sua biografi a como mostra Lúcia Miguel Pereira quando demonstra como As trojildo Pereira que Machado é o romancista do segundo reinado quando desvela que as formas dos grandes romances machadianos imitam processos históricosociais como faz Roberto Schwarz e assim por diante não há necessidade de recorrer à linguagem para estudar uma obra literária já que ela não é vista como linguagem mas como representação de uma realidade exterior a ela Por outro lado havia uma relação entre lingüística e literatu ra quando se estabeleciam textos antigos A literatura nesse traba lho fi lológico valiase das categorias e das descobertas da lingüística históricocomparada do século XIX considerada como algo pron to e acabado A relação entre língua e literatura ocorria também no domínio da estilística Inicialmente a estilística era o estudo dos meios de expressão dos conteúdos afetivos da língua pois um fato de estilo era entendido como uma ocorrência lingüística que provo cava um dado efeito no leitor Nessa estilística estudavamse frag mentariamente os fatos de estilo e numa análise de textos o que se procurava observar era a soma de efeitos que os fatos estilísticos nele presentes produziam Essa estilística tal como foi praticada por Bally e entre nós por Rodrigues Lapa e Mattoso Camara valiase de uma retórica reduzida porque restrita à dimensão tro pológica e de uma análise lingüística elementar que se encontra na ROMERO Silvio Macha do de Assis estudo compa rativo de literatura brasileira Campinas Editora da UNI CAMP 1992 164 PEREIRA Lúcia Miguel Machado de Assis ensaio crítico e biográfico 6 ed Belo HorizonteSão Paulo ItatiaiaEDUSP 1988 PEREIRA Astrojildo In terpretações Rio de Janei ro CEB 1944 SCHWARZ Roberto Ao vencedor as batatas forma literária e processo social nos inícios do romance bra sileiro São Paulo Duas Ci dades 1977 SCHWARZ Roberto Um mestre na pe riferia do capitalismo Ma chado de Assis São Paulo Duas Cidades 1990 BALLY Charles Le lan gage et la vie Paris Payot 1926 BALLY Charles Trai té de stylistique française 3 ed Genebra Georg Cie 1951 LAPA Manuel Rodrigues Estilística da língua portu guesa 5 ed Rio de Janeiro Livraria Acadêmica 1968 CAMARA Jr Joaquim Mat toso Contribuição à estilís tica portuguesa 3 ed Rio de Janeiro Ao Livro Técni co 1977 47 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade gramática tradicional Nada além disso Por isso também se con siderava que não havia progresso a fazer no domínio dos estudos lingüísticos Tudo estava feito e acabado Lembrame que uma vez uma professora de grego me consultou sobre o que eu achava do desejo de um orientando seu de estudar o sistema temporal do gre go clássico Antes que eu respondesse que achava interessante fazer um estudo desse sistema do ponto de vista das teorias da enuncia ção ela asseverou com muita certeza que nada mais havia a estu dar na gramática grega porque os alemães do século XIX haviam feito tudo nessa matéria Que concepção de ciência Mais tarde a estilística com Leo Spitzer e Damaso Alonso tornase mais orgânica porque para eles o estilo refl ete o mun do interior de um dado autor seu conteúdo espiritual sua intui ção suas vivências Apesar de ampliar seu escopo a estilística con tinua valendose das descrições lingüísticas elementares de qual quer gramática escolar A lingüística era algo que se aplicava no estudo do texto lite rário de maneira errática segundo o arbítrio do analista para jus tifi car uma interpretação que não tinha sido dada pela descrição lingüística O ensino seguia as orientações de pesquisa Nos cursos de línguas estrangeiras davase ênfase ao estudo da literatura em detrimento dos estudos de língua Essa orientação nitidamente li terária levava a um estudo de textos com abordagens estilísticas e fi lológicas Pierre Hourcade no Anuário da Faculdade de Filosofi a Ciências e Letras da USP de 19341935 traça as diretrizes gerais do ensino de Língua e Literatura Francesa na Faculdade O aluno precisa ter uma visão geral da Literatura Francesa Os exercícios por excelência eram a explicação de textos e a dissertação que era cha mada nos relatórios da cadeira dissertação francesa Portanto o conhecimento lingüístico era simplesmente instrumental destina vase a permitir que os alunos lessem os textos no original Pierre Hourcade previa a criação de um curso de Literatura Medieval e História da Língua O fato de o curso de História da Língua estar atrelado ao de Literatura Medieval fazia com que ele fosse subsidi ário para o acesso aos textos medievais Nos anos 60 o panorama muda Com o apogeu do estru turalismo a literatura apóiase nas aquisições da lingüística para a elaboração de uma teoria do texto literário Deslocase o foco do autor sua biografi a sua subjetividade o contexto social em que criou para o texto Isso se fez apesar das críticas acerbas e dos la mentos amargurados de muitos estudiosos da literatura Alguns SPITZER Leo Lingüística e história literária 2 ed Ma drid Gredos 1982 ALONSO Damaso Poesia espanhola ensaio de méto dos e limites estilísticos Rio de Janeiro Instituto Nacio nal do Livro 1960 Anuário da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras 1952 São Paulo Faculdade de Filosofi a Ciências e Le tras 1954 275 Anuário da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras 19341935 São Paulo Re vista dos Tribunais 1937 p 204 Anuário 1937 198206 Anuário da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras 1951 São Paulo Faculdade de Filosofi a Ciências e Le tras 1952 245 Anuário da Faculdade de Filosofi a Ciên cias e Letras 19391949 São Paulo Faculdade de Filoso fi a Ciências e Letras 1953 v I e II 481 Anuário 1937 203 48 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 chegavam com base numa visão conspiratória da História a dizer que o estruturalismo lingüístico era um programa de estudos fi nanciado pela CIA para naturalizar a linguagem e assim afastar a História com vistas a aumentar a alienação Deixando de lado esses pontos de vista que hoje nos parecem no mínimo estranhos devese notar que nesse período a literatura não mais buscava na lingüística descrições de fatos próprios das línguas naturais nem explicações de tropos mas conceitos gerais como conotaçãode notação signifi cadosignifi cante sintagmaparadigma etc Na ver dade o que a literatura transfere da lingüística são os conceitos que explicam como se estruturam os sistemas signifi cantes quais quer que eles sejam Mais do que a lingüística o que mantém re lações com a literatura é uma semiologia tal como fora proposta por Saussure Nesse período duas vertentes dos estudos literários desenvolvemse a poética e a teoria da narrativa A primeira uma teoria da poeticidade deriva do programa dos formalistas russos e encontra em Jakobson seu grande formulador que assim enuncia o princípio da função poética projeta o princípio de equivalên cia do eixo de seleção sobre o eixo de combinação8 A segunda vertente busca com base na idéia de sistema as invariantes para digmáticas e sintagmáticas que ocorrem sob a diversidade quase infi nita das narrativas realizadas Esses dois ramos dos estudos li terários tiveram um desenvolvimento notável apesar da acusação de muitos fundados ainda numa ideologia romântica que como diz Régine Robin é anterior a Marx e a Freud de que esses mo delos eram redutores9 Para esses estudiosos os produtos humanos não podem ser examinados do ponto de vista de suas invariantes porque os seres humanos em sua infi nita criatividade não estão submetidos a quaisquer coerções sociais e psíquicas Afi nal para eles o sujeito é neutro mestre de si mesmo sem qualquer deter minação sócioideológica 8 Um belo exemplo de análise poética com base nos conceitos da lingüística é o estudo feito pelo próprio Jakobson com a colaboração de Luciana Stegagno Pic chio sobre os oxímoros em Fernando Pessoa JAKOBSON Roman Lingüística poética cinema São Paulo Perspectiva 1970 93118 Um livro teórico edita do no Brasil sobre poética foi Teoria da literatura Formalistas russos organizado por Dionísio de Oliveira Toledo TOLEDO Dionísio de Oliveira Teoria da li teratura Formalistas russos Porto Alegre Globo 1971 9 Um exemplo brasileiro de análise estrutural da narrativa realizada com compe tência é o livro de Affonso Romano de SantAnna intitulado Análise estrutural de romances brasileiros SANTANNA Affonso Romano de Análise estrutural de romances brasileiros 2 ed Petrópolis Vozes 1973 Op cit 2325 Idem 130 ROBIN Régine História e lingüística São Paulo Cul trix 1977 25 49 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade No entanto o mais importante não foi o fato de que a lite ratura passou a utilizarse de conceitos da lingüística mas sim de que ela começou a fundar sua concepção de literatura na noção de arbitrariedade do signo princípio basilar da ciência da linguagem A obra é construção e não representação direta e imediata da reali dade seja ela a consciência do autor ou a consciência de uma classe social ou de uma fração de classe Se a literatura é construção ela é linguagem regida portanto por códigos que é preciso descobrir no estudo da obra literária Não se buscam mais as fontes extralingüísti cas do texto literário e afastase a ideologia de que a linguagem repre senta o real de que a linguagem é refl exo da realidade Isso não de veria causar como provocou espanto ou fortes reações pois afi nal Antonio Candido considerado o expoente da análise sociológica já dissera que a mimese é sempre uma forma de poiese Mais que o contexto da criação interessa o estudo da obra em si mesma Entre o fi nal dos anos 70 e o início dos 80 há um novo rom pimento entre a lingüística e a literatura De um lado os estudiosos de literatura consideram que a lingüística nada tem de interessan te a dizer sobre a literatura e voltam a utilizar a velha e elementar gramática tradicional para justifi car algum fato de língua que sir va de apoio a suas conclusões Muito da produção lingüística por sua vez abandona a perspectiva mais ampla da semiologia que se ocupava de explicar os sistemas de signo em geral a fi m de voltar se para os fatos de língua É o período do apogeu das idéias forma listas como as da gramática gerativa Mesmo a pragmática que se consagra ao estudo do uso da linguagem dedicase à análise da lin guagem verbal cf por exemplo os trabalhos de Austin Searle Grice Ducrot Mas o campo da lingüística vai ampliandose A partir dos trabalhos de Benveniste sobre a enunciação a ciência da linguagem cria um novo objeto teórico o discurso Diversas teo rias do discurso são criadas Uma delas a semiótica francesa bus ca construir o projeto saussuriano de uma semiologia agora ten do como objeto não mais os sistemas de signo mas a signifi cação Debruçase sobre os textos manifestação do discurso A obra de Bakhtin e a análise do discurso de linha francesa procuram com os conceitos de dialogismo e de interdiscursividade mostrar o modo de funcionamento real do discurso sua inscrição na História Pa ralelamente às teorias do discurso aparece uma lingüística do tex to que se debruça sobre os fatores de textualidade como a coesão a coerência a intertextualidade CANDIDO Antonio Lite ratura e sociedade estudos de teoria e história literária 4 ed São Paulo Editora Na cional 1975 12 AUSTIN John Langshaw Quando dizer é fazer Pala vras e ação Porto Alegre Ar tes Médicas 1990 SEARLE John R Os actos de fala um ensaio de fi loso fi a da linguagem Coimbra Almedina 1991 GRICE H Paul Logique et conversation Commu nications Paris 30 1979 5772 DUCROT Oswald Princí pios de semântica lingüística dizer e não dizer São Paulo Cultrix 1977 BENVENISTE Emile Pro blemas de lingüística geral São Paulo Nacional EDUSP 1976 t 1 284296 50 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 Uma relação entre lingüística e literatura atualmente não se fundará no uso pela literatura de rudimentos de uma gramática elementar nem em princípios de organização gerais sobre os quais assentar os estudos literários mas em conceitos que explicam a or ganização do discurso literário e seu modo de funcionamento Is so quer dizer que os conceitos lingüísticos devem ser um instru mento de investigação do texto literário que será estudado como processo enunciativo e totalidade textual É preciso que o recurso aos conceitos desenvolvidos pela lingüística do discurso sirva para desvelar novas camadas de sentido Não pode ser nunca um meio de validar conclusões oriundas da intuição do analista Por isso não serão sufi cientes as descrições morfológicas e sintáticas É pre ciso recorrer a todos os estudos de fenômenos enunciativos fi gu rativização isotopia modalização temporalização actorialização espacialização modulação tensiva metaenunciação aspectualiza ção contrato enunciativo atos de fala gêneros do discurso pres supostos e subentendidos leis do discurso conectores argumen tativos cenografi a interdiscursividade heterogeneidade espaços discursivos campos discursivos dialogismo éthos estilo e assim sucessivamente bem como àqueles a respeito dos mecanismos de textualização categorias plásticas semisimbolismo etc Mas as teorias do discurso permitem ainda ver o próprio processo de cria ção literária como um ato enunciativo como uma atividade como uma práxis discursiva o que possibilita analisar a adoção ou rejei ção de usos inovadores ou cristalizados e a criação dos cânones e dos bestsellers o desgaste e a cristalização das formas a resseman tização de fórmulas desgastadas ou cristalizadas etc Pensemos agora a questão do lado contrário o que a lingüís tica importa da literatura É necessário colocar o texto literário e os estudos literários no coração da lingüística para pensar a natu reza da linguagem humana como um mecanismo que contém as regras de sua própria subversão bem como para ampliar a com preensão da linguagem e dos mecanismos lingüísticos É a leitura de João e Maria de Chico Buarque com seu uso do pretérito im perfeito pelo presente Agora eu era herói E o meu cavalo só fa lava inglês ou do poema Profundamente de Manuel Bandeira com sua presentifi cação do passado que nos leva a ver a tempora lização não como um decalque do tempo do mundo mas como a construção lingüística de uma vertigem temporal em que presen te se torna passado em que passado se presentifi ca em que futuro GREIMAS Algirdas Julien COURTES Joseph Sémioti que Dictionnaire raisonné de la théorie du langage Pa ris Hachette 1979 FIO RIN José Luiz As astúcias da enunciação São Paulo Áti ca 1996 Bertrand 2003 cf MAINGUENEAU Do minique Pragmatique pour le discours littéraire Pa ris Bordas 1990 e MAIN GUENEAU Dominique O contexto da obra literária São Paulo Martins Fontes 1995 cf MAINGUENEAU Domi nique Sémantique de la po lémique Discours religieux et ruptures idéologiques au XVIIe siècle Lausanne LAge dHomme 1983 MAINGUE NEAU Dominique Genèses du discours Bruxelas Pierre Mardaga 1984 e MAINGUE NEAU Dominique Nouvel les tendances en analyse du discours Paris Hachet te 1987 cf BAKHTIN Mikhail La poétique de Dostoïewski Pa ris Seuil 1970a e BAKHTIN Mikhail Loeuvre de Fran çois Rabelais et la culture populaire au Moyen Âge et sous la Renaissance Paris Gallimard 1970b MAINGUENEAU Domini que Cenas da enunciação Curitiba Criar 2006 FIO RIN José Luiz O éthos do enunciador Em CORTINA Arnaldo MARCHEZAN Re nata Coelho Razões e sensi bilidades Araraquara Cultu ra Acadêmica Editora 2004 117138 DISCINI Norma O estilo nos textos São Paulo Con texto 2003 cf TEIXEIRA Lucia Leitu ra de textos visuais na esco la Comunicação apresen tada no III Encontro Fran coBrasileiro de Análise do Discurso Rio de Janeiro UFRJ 1999 Fontanille e Zilberberg Op cit BANDEIRA Manuel Poe sia completa e prosa Rio de Janeiro Nova Aguilar 1983 217218 51 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade é passado e assim por diante A leitura da Profi ssão de fé de Bilac um poeta que hoje não goza de qualquer favor da crítica universitá ria permite apreender o modo de funcionamento real do discurso com suas recusas aceitações deslizamentos ressignifi cações reto madas É a leitura de um poema de Manoel de Barros como o que se inicia com o verso A menina apareceu grávida de um gavião que possibilita pensar os deslimites da referenciação e as possibili dades com o processo de fi gurativização de criação de realidades na linguagem O capítulo XV intitulado Marcela de Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis mostra para nós os processos de tematização e fi gurativização A forma como Riobal do revela à pessoa com quem conversa seus sentimentos por Dia dorim e seu verdadeiro sexo obriga a postular uma distinção entre o narrador e o observador Manuel de Barros no poema O apa nhador de desperdícios leva a recusar o caráter utilitário da lingua gem mostrando que ela é uma fonte de prazer Uso a palavra para compor meus silêncios Não gosto das palavras fatigadas de informar Dou mais respeito às que vivem de barriga no chão tipo água pedra sapo Entendo bem o sotaque das águas Dou respeito às coisas desimportantes e aos seres desimportantes Prezo insetos mais que aviões Prezo a velocidade das tartarugas mais que a dos mísseis Tenho em mim esse atraso de nascença Eu fui aparelhado para gostar de passarinhos Tenho abundância de ser feliz por isso Meu quintal é maior do que o mundo Sou um apanhador de desperdícios amo os restos como as boas moscas Queria que a minha voz tivesse um formato de canto Porque eu não sou da informática eu sou da invencionática Só uso a palavra para compor meus silêncios Poderíamos continuar a desfi ar exemplos para mostrar que a li teratura tem que estar no coração da refl exão lingüística tem que ser nutrida por ela pois não é possível construir uma teoria lingüística BILAC Olavo Poesias 19 ed Rio de Janeiro Francis co Alves 1942 57 BARROS Manoel de Re trato do artista quando coi sa Rio de Janeiro Record 1998 77 ASSIS Machado de Obra completa Rio de Janeiro No va Aguilar 1979 v I 534 ver por exemplo ROSA João Guimarães Grande sertão veredas 22 ed Rio de Janeiro Nova Fronteira 1986 469 471 560 BARROS Manuel de Memórias inventadas a in fância São Paulo Plane ta 2003 52 ALEA VOLUME 10 NÚMERO 1 JANEIROJUNHO 2008 com frases como Maria compra arroz e João passeia pelo Rio de Janeiro No entanto resta uma última pergunta é possível renovar o diálogo entre a lingüística e a literatura ele tem chance de acontecer A resposta é pessimista nenhuma Para que houvesse uma in terdisciplinaridade entre as duas áreas seria preciso disposição pa ra mudar hábitos intelectuais respeito pela diferença abertura pa ra a alteridade vontade de abandonar a comodidade de trilhar os sendeiros já batidos Seria necessário olhar para nossos vizinhos de sala sem desprezo admitir que em ciência não há feudo não há exclusividade reconhecer a legitimidade do outro para tratar do assunto em que se é especialista Entretanto a ciência desertou de nossas escolas pois quando um ponto de vista teórico ou um cam po do saber são vistos como a totalidade do conhecimento como a verdade estamos longe do discurso científi co e muito perto do dis curso religioso Aí a aventura da interdisciplinaridade some porque aparecem sumos sacerdotes dogmas interdições excomunhões A triagem sobreleva a mistura É isso que vivemos em nossas igre jas que estão fazendo estiolar qualquer projeto científi co José Luiz Fiorin José Luiz Fiorin é mestre e doutor em Letras Lingüística pela Uni versidade de São Paulo Fez pósdoutorado na École des Hautes Études en Sciences Sociales Paris 19831984 e na Universidade de Bucareste 19911992 Atualmente é Professor Associado do Departamento de Lingüística da FFLCH da Universidade de São Paulo Foi membro do Conselho Deliberativo do CNPq 2000 2004 e Representante da Área de Letras e Ligüística na CAPES 19951999 Publicou muitos artigos em revistas especializadas e diversos livros Entres estes citamse As astúcias da enunciação Li ções de texto Para entender o texto Elementos de análise do discurso Discurso e ideologia Introdução ao pensamento de Bakhtin Resumo Depois de mostrar que a interdisciplinaridade é da natureza dos es tudos lingüísticos porque a linguagem é multiforme e heterogênea este trabalho expõe os dois modos básicos de fazer ciência um regi do pelo princípio da exclusão e outro governado pelo princípio da participação que produzem respectivamente a especialização e a sua ultrapassagem A partir daí discute as vantagens e os problemas da disciplinaridade apresenta as razões pelas quais hoje a interdis Palavraschave lingüística estudos literários interdis ciplinaridade multidisci plinaridade transdiscipli naridade 53 JOSÉ LUIZ FIORIN Linguagem e interdisciplinaridade ciplinaridade é um universal positivo do discurso e conceitua com base na etimologia os termos interdisciplinaridade multidiscipli naridade pluridisciplinaridade e transdisciplinaridade Examina os vínculos da lingüística com outras ciências para terminar traçando um histórico das relações entre lingüística e literatura no Brasil Abstract Since language is multifaceted and heterogeneous interdisci plinarity is natural to linguis tic studies In this article after demonstrating that I present two basic ways of doing science One is ruled by the principle of exclusion whereas the other is ruled by the principle of par ticipation The former leads to specialization whereas the latter leads to the surpassing of spe cialization From that I discuss the advantages and problems of disciplinarity and present the reasons why nowadays interdis ciplinarity is a positive univer sal in scientifi c and pedagogical discourses Also based on ety mology I discuss the concepts of interdisciplinarity multidis ciplinarity pluridisciplinarity and transdisciplinarity Finally I examine the bonds between linguistics and other sciences by drawing a brief history of the relations between linguistics and literature in Brazil Résumé Après avoir montré que linter disciplinarité est de lordre des études linguistiques car le lan gage est multiforme et hétérogè ne cet essai expose les deux fa çons de faire de la science lune régie par le principe de lexclu sion et lautre gouvernée par le principe de la participation Ces deux principes produisent res pectivement la spécialisation et son dépassement A partir de là on discute les avantages et les inconvénients de la disci plinarité on avance les raisons selon lesquelles linterdiscipli narité est aujourdhui un uni versel positif du discours et on défi nit en sappuyant sur léty mologie les termes dinterdis ciplinarité multidisciplinarité pluridisciplinarité et transdis ciplinarité On analyse les rap ports de la linguisitique avec dautres sciences et on fi nit par tracer lhistorique des relations entre la linguistique et la litté rature au Brésil Key words linguistics litera ry studies interdisciplinari ty multidisciplinarity trans disciplinarity Motsclés Linguistique étu des littéraires interdiscipli narité multidisciplinarité transdisciplinarité Recebido em 15032008 Aprovado em 15042008