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Psicologia ·
Psicologia Social
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Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 O cérebro e o pensamento Georges Canguilhem É certo que cada um de nós se envaidece por ser capaz de pen sar e muitos até gostariam de saber como é possível que pensem como de fato pensam Ao que tudo indica entretanto essa questão já deixou ma nifestamente de ser puramente teórica pois parecenos que um número cada vez maior de poderes estão se interessando em nossa faculdade de pensar E se portanto procuramos saber como é que nós pensamos do modo como o fazemos é para nos defender contra a incitação sorrateira ou declarada a pensar como querem que pensemos Com efeito muitos se interrogam a respeito dos manifestos de alguns círculos políticos a res peito de certos métodos de psicoterapia dita comportamental e a respeito dos relatórios de certas empresas de informática Eles acreditam estar discernindo aí a virtualidade de uma extensão programada de técnicas que objetivam em última análise a normatização do pensamento Para simplificar sem espero deformar bastará citar um nome o de Leonid Pliouchtch e uma sigla a da IBM Conferência na Sorbonne para o MURS dezembro de 1980 primeira publi cação em Prospective et Santé n 14 verão de 1980 pp 8198 Os subtítulos que haviam sido acrescentados pela revista foram suprimidos A ordem de alguns pará grafos que haviam sido invertidos foi restabelecida de acordo com as indicações de Canguilhem NE In Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du Colloque 68 dezembro de 1990 Paris Albin Michel Agradecemos a Bernard Canguilhem a autorização para publicarmos essa tradução de Georges Canguilhem NE 184 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem Da mesma forma que os biólogos acharam que só podiam falar do cérebro humano situando esse cérebro no extremo de uma história dos seres vivos pareceme também apropriado para começar uma palestra sobre o cérebro e o pensamento situar essa questão antes de mais nada na história da cultura Se hoje é fato notório ser o cérebro humano o órgão do pensa mento é preciso entretanto lembrar que um dos maiores filósofos da Antiguidade Aristóteles ensinava que a função do cérebro antagonista da do coração é a de arrefecer o corpo do animal Foi Hipócrates quem ensinou que o cérebro é a sede das sensações o órgão dos movimentos e dos juízos É o que prova o tratado hipocrático Da doença sagrada isto é a epilepsia Essa doutrina retomada em parte por Platão notadamente no Timeu deve a Galeno o fato de terse imposto na cultura ocidental O aristotelismo militante de Galeno não o desviou da tarefa de procurar a confirmação da tese hipocrática praticando experiências muito engenho sas no sistema nervoso e no cérebro Tendo recebido de suas origens e conservado no correr dos séculos a feição de uma questão concernente à sede da alma nosso problema de hoje vem suscitando a partir da filosofia cartesiana uma filiação de teorias e uma sucessão de polêmicas de que somos hoje os herdeiros É indispensável que façamos um rápido histórico para identificar a época em que devemos iniciar nosso exame Tratase do século XIX momento em que se travou o combate do positivismo contra o espiritualismo a teoria das localizações cerebrais Costumase com demasiada freqüência situar o início desse histórico em Descartes Isso é um perfeito contrasenso Descartes ensi nava que a alma indivisível está unida ao corpo por inteiro por meio de um órgão único e por assim dizer fisicamente pontual a glândula pineal o conarium dos antigos a nossa epífise1 Não se tratava portanto de unir um pensamento dividido a um organe fédéral órgão central do governo 1 Epífise ou Glândula Pineal corpúsculo oval situado no cérebro por cima e atrás das camadas ópticas e ao qual se atribuem funções endócrinas NR 185 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Aqueles que posteriormente não entenderam que a função da glândula pineal era uma função metafisiológica criticaram Descartes e foram pro curar em outro lugar do cérebro a sede do sensorium commune A lista é longa de Willis a La Peyronier Até mesmo a invenção da guilhotina deu margem a argumentações por parte de médicos eminentes como Soemmering correspondente de Kant em favor desta ou daquela teoria Cabanis 1795 para quem o cérebro secreta pensamentos assim como o fígado secreta a bílis inseriuse na controvérsia e debateu o caso da decapitação de Charlotte Corday Em 1810 Gall publicou sua Anatomia e fisiologia do sistema ner voso em geral e do cérebro em especial Foi naquele momento que surgiu efeti vamente a ciência do cérebro embora ela devesse em seguida ultrapas sar o obstáculo inicial da frenologia feita ao mesmo tempo de ingenuida de e de pretensão O ponto forte da doutrina de Gall é a exclusividade que ele atribui ao encéfalo e mais especialmente aos hemisférios cere brais como sede de todas as faculdades intelectuais e morais O cérebro entendido como um sistema de sistemas é apresentado como o único suporte físico do quadro das faculdades A frenologia é uma cranioscospia baseada na correspondência entre o conteúdo e o continente entre a con figuração dos hemisférios e a forma do crânio Em oposição à ideologia sensualista e contra aquilo que hoje seria chamado de aquisição da expe riência sob pressão do ambiente Gall e seus discípulos sustentam a inerência das qualidades morais e dos poderes intelectuais Mas de forma oposta aos metafísicos espiritualistas eles fundamentam esse inatismo no substrato anatômico de um órgão e não na substancialidade ontológica de uma alma O interesse da controvérsia pode parecer à distância pura mente teórico quando na verdade ele não o era Ridicularizouse bastante a corcova dos matemáticos2 mas nestes últimos tempos já não se pensa em rir dos cromossomos dos 2 PaulJules Möbius 18531907 neurofisiologista alemão cognominado Gall redivivus situava a corcova dos matemáticos acima da órbita esquerda do lado externo Cf sua obra Über die Anlage zur Mathematik Leipzig 1907 Ele era neto 186 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem superdotados ou da hereditariedade genética do quociente intelectual porque mesmo que as pessoas só tenham um quociente intelectual mé dio elas conseguem perfeitamente entrever as conseqüências possíveis disso no campo das condições sociais É preciso lembrar entretanto que já Gall e Spurzheim não paravam de falar do alcance prático de suas teorias na área da pedagogia da identificação das aptidões o que se cha ma hoje de orientação da medicina e na esfera da segurança prevenção da delinqüência Uma das ilustrações de Daumier para o poema satírico de AntoineFrançois Hyppolite Fabre Nemesis médicale 1840 retrata um frenologista diante da tradicional coleção de crânios de gesso apalpando o crânio de um menino cuja mãe uma mulher do povo o tinha levado ao consultório para um diagnóstico de aptidões E na sua Histoire de la phrénologie Georges LanteriLaura relata a rapidez com a qual a frenologia trazida para os Estados Unidos pelo próprio Spurzheim e por um de seus discípulos um escocês chamado Combe transformouse em frenologia aplicada um instrumento usado para a orientação e a seleção profissional e até mesmo para fins de consulta matrimonial Podese dizer que a frenologia teve naquela ocasião nos Estados Unidos um sucesso compa rável e por razões comparáveis ao sucesso da psicanálise Mas não se pode de forma alguma subestimar pois ela é capi tal a influência da frenologia sobre a psicopatologia porque senão seria impossível entender que as primeiras localizações cerebrais das funções intelectuais tenham estado ligadas aos problemas da fala e da memória das palavras Em matéria de afasia Broca e Charcot confirmaram a des coberta de Bouillaud aluno de Gall ou seja a localização da função da linguagem nos lóbulos anteriores do cérebro 18251848 Na segunda metade do século XIX a exploração das funções do cérebro apoderouse da corrente elétrica galvânica ou farádica como instrumento privilegiado de análise E paralelamente a neurologia experimental foi alçada por alguns ao nível de uma filosofia do ilustre matemático e astrônomo Augusto Ferdinand Möbius 17901868 inventor do Anel de Möebius 187 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Com efeito desde 1835 um médico do Hospital de Bicêtre Lélut tinha escrito o seguinte na obra intitulada Questce que cest la phrénologie Para ser totalmente completo só faltaria a esse sistema fisiológicopsicoló gico tratar do modo de ação do cérebro na produção dos fatos intelectuais e morais isto é explicar o mecanismo de pensamento através da hipótese moderna da eletrização ou da eletromagnetização da massa encefálica p 239 Meio século depois as pesquisas de Ferrier Fritsch Hitzig Flechsig inauguravam o que Hecaen e LanteriLaura chamaram de idade de ouro das localizações cerebrais ensejando o estabelecimento do primeiro mapa topográfico do cérebro Mas já em 1891 o psiquiatra suíço Gottlieb Burckhardt convertia os conhecimentos topográficos em técnicas de psicocirurgia e começava a praticar na verdade sem grande sucesso o que foi chamado posteriormente de lobotomia3 Digna de nota novamente foi a rapidez com a qual o suposto conhecimento das funções do cérebro foi investido em técnicas de intervenção como se o processo teórico fosse congenitamente suscitado pelo interesse com relação à prática Paralelamente às pesquisas sobre neurologia cerebral a psicolo gia tendia a não ser mais do que uma sombra da fisiologia encorajada por uma filosofia mal pensante que buscava nessa psicologia suas razões para mal pensar O corifeu na França é Hyppolite Taine Já em 1854 na obra Les philosophes français au XIXe siècle ele contrapõe aos discursos espiritualistas de Paul RoyerCollard as pesquisas experimentais sobre o cérebro praticadas por Flourens que dificilmente poderia ser acusado de materialismo E a obra de 1870 De lintelligence vai tornar plausível a partir de uma teoria sobre a sensação a tese conhecida sob o nome de paralelismo psicofisiológico que os filósofos da universidade francesa os mestres daqueles que foram nossos mestres inclusive Bergson fizeram questão de refutar sob o olhar reprovador de Théodule Ribot uma espé cie de executor testamentário de Taine 3 G Burckhardt Über Rindenexcisionen als Beitrag zur operativen Therapie der Psychosen Allgemeine Zeitschrift für Psychiatrie 1891 n 47 Sobre o início da psicocirurgia cf artigo de Alain Jaubert Lexcision de Ia pierre de folie no n 4 19751976 da revista Autrement Guérir pour normaliser 188 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem Mas até o próprio Freud autor em 1888 de um artigo Cére bro para um dicionário médico não deixou de reconhecerse devedor de Taine Tendo redigido em 1895 seu trabalho Projeto para uma psicologia científica ele escreveu para Fliess fevereiro de 1896 O livro de Taine De lintelligence me agrada muito Espero que algo possa sair dali É talvez o que tenha autorizado Ludwig Binswanger a escrever que as con cordâncias são numerosas entre o naturalismo psicológico de Taine e o de Freud Contudo desde 1900 ao introduzir na Traumdeutung o conceito de aparelho psíquico Freud sem renunciar à topografia das localizações mostrouse interessado antes de tudo pelo que ele chamava de tópica psíquica Em 1915 ele acabou escrevendo no capítulo sobre o Incons ciente da Metapsicologia Todas as tentativas para adivinhar a partir daí as localizações cerebrais uma localização dos processos psíquicos todos os esforços para pensar as representações como estando armazenadas nas células nervosas fracassaram radicalmente E ele acrescenta que no mo mento a tópica psíquica distinção dos sistemas Ics PcsCs nada tem a ver com a anatomia Para me manter apenas na esfera francesa lembrarei dois títu los de obras da mesma época expressamente concebidos sem referência a conceitos filosóficos Se em 1905 Alfred Binet publicava um ensaio so bre a natureza da sensação com o título LÂme et le Corps em 1923 Henri Piéron diretor do Instituto de Psicologia publicava Le Cerveau et la Pensée O cérebro e o pensamento estão unidos de modo tão estreito e até mesmo confundidos no pensamento ou no cérebro dos fisiologistas dos médicos dos psicólogos que remeter ao cérebro toda a responsabili dade por um drama dolorosamente sentido se impõe até mesmo aos poe tas E é dessa forma que um herói das letras poeta e ator em dificuldades com seu ego escreve a Jacques Rivière A única coisa que peço agora é sentir meu cérebro Sou um homem que já sofreu demais com o espírito Eu só espero que meu cérebro mude e que suas gavetas superiores se abram Tratase de Antonin Artaud Foi em maio de 1923 e em março de 1924 E foi também no ano universitário de 19231924 que um 189 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 professor do Collège de France aluno de Charcot como Freud o foi e médico particular de um outro herói das letras também em dificuldades com seu ego chamado Raymond Roussel Pierre Janet4 declarou numa das suas aulas Foi um exagero vincular a psicologia ao estudo do cérebro Há cerca de cinqüen ta anos que nos falam demais do cérebro afirmase que o pensamento é uma secreção do cérebro o que é uma bobagem ou então que o pensamento está em relação com as funções do cérebro Haverá uma época em que riremos disso tudo isto não é exato O que chamamos de pensamento os fenômenos psicológi cos não são a função de nenhum órgão em particular não é nem a função da ponta dos dedos nem tampouco a função de uma parte do cérebro O cérebro não é senão um conjunto de comutadores um conjunto de aparelhos que movi menta os músculos através da excitação O que chamamos de idéia o que cha mamos de fenômenos de psicologia são um processo conjunto o indivíduo todo tomado em seu conjunto não devemos separar um do outro A psicologia é a ciência do homem por inteiro e não é a ciência do cérebro este é um erro psico lógico que fez muito mal durante muito tempo5 Esse retrospecto de uma psicologia talvez hoje injustamente esquecida não foi feito somente para mostrar erudição mas é pelo con trário uma preocupação da atualidade Esse relato permite creditar a Janet uma posição deliberada de nãoconformismo em matéria de patogenia e de terapêutica das doenças ditas mentais uma posição tão contestadora quanto a que poderia ter hoje em dia um adepto da anti psiquiatria Quando deixamos de acreditar na primazia do cerebral tornamonos céticos com relação à eficiência de um internamento quase carcerário Segundo Janet o conceito de alienação não é uma construção preliminarmente psicológica ele é antes de mais nada algo que se deve à polícia Janet declara Um demente é um homem que não consegui ria viver nas ruas de Paris Por pouco ele não estaria declarando serem as 4 Um estudo interessante de Pierre Janet deve ser consultado na tese de Claude Prévost La Psychophilosophie de P Janet Payot 1973 5 Pierre Janet Curso do Collège de France 19231924 citado por Marcel Jousse Archives de philosophie v 2 caderno 4 Études de psychologie linguistique 190 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem ruas de Paris dementes Esse homem tranqüilo que escreveu em 1927 na obra La pensée intérieure et ses troubles o vocábulo louco é portanto um termo policial teria quem sabe aprovado sorrindo o conselho escrito nas paredes de sua universidade pelos alunos de Oxford Do not adjust your mind there is a fault in reality Vocês não precisam corrigir seu espí rito porque é a realidade que claudica Em resumo um século após Gall e Spurzheim era possível ser psicólogo sem ter que buscar argumentos na neurofisiologia Mas volte mos por um instante à frenologia para entender melhor a questão filosó fica ligada ao problema cérebropensamento A explicação das funções intelectuais e de seus efeitos pela es trutura e pela configuração do cérebro traz de imediato uma ambigüi dade que sua vulgarização tornou manifesta porque grosseira Uma das numerosas obras de vulgarização e de propaganda frenológica Le petit Docteur Gall de Alexandre David contém uma página de comentários sobre um retrato de Descartes tirado do Traité de physiognomonie de Lavater 1778 Tratase de um desenho copiado de uma pintura de Franz Hals O frenologista discípulo de Spurzheim descobre na cabeça de Descartes todas as faculdades intelectuais perceptivas individualidade configu ração extensão peso cor localidade cálculo ordem eventualidade tem po tons e linguagem Explicase assim que Descartes tenha tido muita regularidade na administração de seu interior que ele tenha aplicado a álgebra à geometria e a matemática à ótica Explicase também pela presença cerebral da localidade sua existência nômade E felicitase um certo senhor Imbert sábio frenologista por ter observado que o cogito é um simples efeito da eventualidade ou seja da faculdade que percebe as ações que estão em nós O Cogito não é de forma alguma um efeito das faculdades intelectuais reflexivas o que justifica o que Spurzheim havia dito ou seja que Descartes não é tão grande pensador quanto se pensava Em suma antes da frenologia acreditavase que Descartes era um pensador um autor responsável pelo seu sistema filosófico Segundo a frenologia Descartes é portador de um cérebro que pensa sob o nome de 191 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 René Descartes Exatamente porque Descartes é seu cérebro no qual a eventualidade está presente é que ele percebe nele próprio o cogito Por que Descartes é seu cérebro no qual a localidade está presente é que ele se desloca como um nômade do Poitou até a Suécia passando por Paris por Ulm por Amsterdã onde ele precede os hippies que ali se sentem à vontade por outros motivos diferentes dos seus Em suma a partir da ima gem do crânio de Descartes o sábio frenologista conclui que todo o Descar tes biografia e filosofia está num cérebro que é preciso dizer seu cérebro o cérebro de Descartes já que o cérebro contém a faculdade de perceber as ações que estão nele Mas finalmente que ele é esse Estamos aqui no âma go da ambigüidade Quem ou o que diz eu não somente no início do Dis curso do método mas sobretudo no início da Geometria de 1637 Eu nomearei a unidade Eu não terei receio de introduzir esses termos etc Durante todo o século XIX o Eu penso foi por diversas vezes recusado ou refutado em proveito de um pensar sem sujeito pessoal res ponsável Lichtenberg na sua obra Philosophische Bemerkungen disse Es denkt sollte man sagen sowie man sagt es bliekt Deverseia se dizer isso pensa como dizemos isso brilha O neurologista Exner citando essa frase de Lichtenberg num memorial Über allgemeine Denkfehler 1889 escreve As expressões eu penso eu sinto não são formas corretas de se expressar Seria preciso dizer isso pensa em mim es denkt in mir isso sente em mim es fühlt in mir O peso dos argumentos não depende de nossa vontade formase um juízo em nós es denkt is uns Anteriormente Rimbaud e Nietzsche independentemente um do outro acharam que deviam se desculpar por terem cedido à ilusão de seu ego pensante Na famosa carta a Izambard de 1871 onde Rimbaud se define como um vidente ele acrescenta é falso dizer eu penso De verseia dizer pensamme E em Além do bem e do mal em 1886 Nietzsche escreve É uma alteração dos fatos pretender que o sujeito eu seja a condição do atributo eu penso Alguma coisa pensa mas daí a acreditar que esse algo é o antigo e famoso eu é uma pura suposição 17 192 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem Nietzsche retomou a mesma idéia diversas vezes A lista pode ser encontrada no livro de Bernard Pautrat Versions du soleil no capítulo Decomposition du cogito Quanto maior for a concordância na denúncia de uma ilusão tanto mais o fato da ilusão será incontestável mas também maior será o dever de dar conta dela Wo Es war soll Ich werden Essas palavras de Freud cuja inter pretação divide as escolas de psicanálise pode ser desviada para nosso uso E a última frase desse nosso histórico é uma pergunta como é que um eu penso pode advir nisso que o fisiologista de hoje depois do frenologista indica e descreve Nisso um cérebro O que chamamos pensar Embora de acordo com as mundanidades filosóficas a questão tenha uma ressonância heideggeriana nós a tomaremos pelo seu lado banal trivial Segundo a definição que dermos de pensar admitiremos pensadores desta ou daquela espécie O autor de Pensées o inventor do caniço pensante escreveu A máquina de aritmética tem efeitos que se aproximam mais do pensamento do que tudo aquilo que os animais fazem mas ela não faz nada que permita dizer que ela tem vontade como os animais E aqui estamos quase no com putador cujos efeitos se aproximam ainda mais do pensamento do que fazia a máquina de Pascal Melhor ainda eles ultrapassam o pensamento A metáfora agora repetida do cérebrocomputador justificase na medi da em que se entende como pensamento as operações de lógica o cálculo o raciocínio Razão ratio deriva etimologicamente de reor calcular Quanto à vontade dos animais mesmo se considerarmos que Pascal tenha esten dido de modo abusivo esse conceito a toda sorte de condutas orientadas pela busca de uma satisfação vital devemos convir que existe pelo menos um animal capaz de desejar um efeito sem qualquer precedente na sua experiência É o homem inventor das máquinas como o próprio Pascal Se a máquina aritmética é o efeito do cálculo de um cérebro do qual ela própria é uma aproximação pelo menos devemos admitir que os cin qüenta modelos dessa máquina teimosamente construídos antes do mo delo definitivo são o indício de uma vontade de construir conscientemente 193 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 motivada Pascal acha que não há uma abordagem mecânica desse tipo de motivação Se não é possível conceber uma máquina motivada pelo projeto de construir uma máquina se não existe computador na origem absoluta do computador o que proibiria o filósofo de se interrogar a res peito de outras questões diferentes das dos fisiologistas Isso não significa de forma alguma contestar o saber do fisiologista na sua área A estrutura dos neurônios do cérebro e a relação entre eles são a condição de seu exercício Os progressos e a retificação do saber dos fisiologistas é assunto de fisiologistas O fisiologista manda na própria casa Mas o filósofo é indiscreto em qualquer lugar O computador é o resultado de uma tentativa de mimetizar graças à eletrônica do século XX as propriedades já reconhecidas no cé rebro pela fisiologia do século XIX recepção de estímulos transmissão e desvio de sinais elaboração de respostas registro de operações A descri ção desse esquema funcional na linguagem atual da informática não o altera de modo fundamental Podese falar à vontade do computador como se fosse um cérebro ou do cérebro como se fosse um computador Na sua obra Mémoire pour lavenir François Dagognet escreveu A verdadeira proeza é o homem ter conseguido exteriorizar os processos cerebrais graças aos quais ele calcula fala e pensa e inversamente que O próprio cére bro sai redefinido em razão de sua substituição pela memória material Existe aí um caso particular de estratégia teórica característica da ciência atual a partir de observações e de experiências conduzidas em determinado campo da realidade constróise um modelo e a partir des se modelo continuase a refinar o conhecimento como se estivéssemos lidando com a própria realidade Fazemos a seguinte pergunta o fisiologista admite perfeitamente que o cérebro seja uma parte de um organismo isto é de acordo com a definição de Nageotte de um mecanismo cuja edificação esteja compre endida no seu funcionamento Será que essa propriedade paradoxal em comparação com os mecanismos artificialmente produzidos pelo homem é ou não é ampliada por outra propriedade paradoxal que os fisiologistas 194 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem atribuem ao cérebro ou seja a de ser um órgão cuja representação de seu funcionamento está inserida no próprio funcionamento Para os redato res da revista Pour la Science6 que publicaram um número dedicado ao cérebro esse grande computador da nossa vida descobriu suas maravi lhosas propriedades refletindo sobre sua própria natureza Mas eles são somente jornalistas David Hubel conhecido neurofisiologista recusa o argumento materialistaespiritualista ou seja dualista segundo o qual o computador cerebral seria incapaz de entender a si próprio Hubel reco nhece aliás que o cérebro humano 1012 neurônios 1014 sinapses ou seja cem mil bilhões é diferente do computador cujos componentes até mesmo no futuro não teriam condições de atingir esses números Além disso o cérebro não funciona segundo um programa seqüencial linear Na mesma revista Francis Crick mostra ele também como e em que a analogia entre o cérebro e o computador é enganadora Ele constata com desgosto que o fisiologista não conseguiu descrever a percepção cons ciente de forma a esclarecer a experiência muito direta que nós temos dela Suspeitase fortemente ser esse fenômeno o resultado de uma retroação das vias de cálculo sobre si mesmas mas não se sabe exatamen te como isso ocorre Como se uma retroação pudesse ser considerada transcendente em relação a uma ação direta Existem entretanto fisiologistas que não confundem os marcos e os limites de sua ciência e que ao se esforçarem em fazer recuar esses limites mostramse prudentes quanto à possibilidade de ultrapassálos Um biomatemático Pierre Nelson termina o prólogo de sua obra Logique des neurones e du système nerveux tecendo reflexões sobre a insatisfatória objetividade do tipo de explicação que confunde o que é sentido com o que é lógico O professor Michel Jouvet ao responder a uma pergunta de um jornalista do Nouvel Observateur7 sobre se ele acreditava ser possível um dia a descoberta de uma fórmula química da consciência da cons 6 Pour la Science número especial novembro de 1979 Nouvel Observateur 29 out 1979 7 Nouvel Observateur 29 out 1979 195 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 ciência respondeulhe Um sistema só pode entender outro se ele for mais complexo Lógico Então nosso cérebro irá poder decifrar seus pró prios segredos Mesmo com o auxílio de um computador não estou mui to certo de que conseguiremos traduzir todos os processos de consciência em termos neurobiológicos Mas será essa questão realmente uma ques tão de lógica Anteriormente François Jacob havia invocado o teorema de Gödel como base para uma resposta semelhante à de Jouvet8 Cabe perguntar se não se estaria tomando muitas liberdades com relação a esse teorema da limitação ao invocálo para questões estranhas ao seu campo de validade a aritmética formal Devemos entretanto elogiar esses bió logos pela sua reticência em deduzir a consciência de uma ciência do cére bro mesmo fortalecida com o recurso do computador Mas a surpresa não poderia ser maior ao constatar o interesse manifestado pelo público no tocante à maquinaria eletrônica do pensa mento humano A lista das publicações de cultura anglosaxã na área cujos títulos aliam as palavras Mind ou Brain a Machine é bastante longa Quanto à divulgação junto ao público Bernard DEspagnat observa em obra recente não existir espiritualista hoje em dia que não se sinta obri gado a pensar no seu espírito em termos de contatos de computador Inútil sublinhar o uso ou melhor dizendo o abuso de expressões não pertinentes como cérebro consciente máquina consciente cérebro artificial ou inteligência artificial Mas aqui cabe perguntar por que essas justaposições de termos incompatíveis na ciência Certamente por que essas metáforas nascidas do uso legítimo de modelos heurísticos ou de simuladores sofisticados pelos cientistas foram habilmente transfor madas e repetidas em lugarescomuns publicitários no estágio industrial da informática Como poderíamos estar contra o computador se nosso 8 Mas descrever em termos de física e de química um movimento da consciência um sentimento uma decisão uma lembrança é outra coisa Nada indica que ve nhamos a conseguir Não somente por causa da complexidade mas também por que sabese desde Gödel que um sistema lógico não pode bastar à sua própria descrição La Logique du vivant p 337 196 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem próprio cérebro é um computador O computador na sua própria casa Porque não já que temos um computador em cada um de nós Um mo delo de pesquisa científica foi convertido em máquina de propaganda ideológica com dois objetivos prevenir ou desarmar a oposição à invasão de um meio de regulação automatizado das relações sociais dissimular a presença dos tomadores de decisão que existem por detrás do anonimato da máquina Mas quer se trate de máquinas analógicas ou de máquinas lógi cas uma coisa é o cálculo ou o tratamento de dados de acordo com ins truções e outra é a invenção de um teorema Calcular a trajetória de um foguete espacial é coisa que cabe a um computador Formular a lei da atração universal é uma performance que não está na esfera dele Não existe invenção sem a consciência de um vazio lógico sem tensão em direção a um possível sem os riscos de se enganar Quando perguntaram a Newton como é que ele tinha encontrado o que ele procurava ele teria respondido pensando sempre nisso Que sentido devemos reconhecer nesse isso Que situação é essa de pensamento onde se busca o que não se vê Que lugar para o isso numa maquinaria cerebral que seria montada para relacionar dados sob a limitação de um programa Inventar é criar informação Perturbar hábitos de pensamento o estado estacionário de um saber9 Da mesma forma que no Jogador de xadrez de Torrès y Quevedo um fonógrafo pode proclamar Xeque ao Rei também pode mos imaginar uma máquina gritando Eurêka após haver encontrado a solução de um problema cujos dados e dificuldades lhe tenham sido co municados Não se imagina essa máquina descobrindo as funções fuchsianas do modo como Henry Poincaré relatou essa descoberta em Science et Méthode Após vários períodos de trabalho infrutíferos abando 9 A persistência de um estado estacionário do saber além de uma invenção teórica é como a medida objetiva de originalidade dessa invenção É o que fez Max Planck dizer em sua Autobiographie que não basta que uma descoberta acumule provas teóricas para se impor muitas vezes ela precisa esperar que seus adversários te nham desaparecido e que uma nova geração chegue ao poder cientifico 197 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 nados e retomados Poincaré percebe num relance uma relação de iden tidade entre as transformações que lhe permitiram definir essas funções e aquelas da geometria não euclidiana Foi em Coutances subindo num ônibus No momento em que eu colocava meu pé no degrau veiome à idéia Será que algum dia existirão autômatos lógicos aos quais virão idéias Eu responderia com duas citações No seu estudo Au sujet dEurêka Valéry escreveu que as pesquisas insensatas são parentes das descobertas imprevistas E um matemático que se interrogava sobre as dificuldades de construção de modelos para nos aproximar do acaso e formalizar o informalizável René Thom escreveu Nessa tarefa o cérebro humano com seu velho passado biológico suas avaliações hábeis sua sutil sensibi lidade estética permanece e permanecerá ainda por muito tempo insubstituível10 Mas se não é possível assimilando o cérebro a uma máquina eletrônica entender como o cérebro é capaz de inventar será que isso pode ser entendido através de uma explicação química Da mesma forma como o uso de certas substâncias ditas psicotrópicas vem permitindo uma melhoria real de certas doenças nervosas ou mentais podese formular a esperança de estender à causa das perturbações o que se conseguiu sobre seus sintomas Daí o interesse crescente pela química cerebral e pelas moléculas próprias à modificação da transmissão das excitações no nível das sinapses A descoberta dos neuropeptídeos encefalinas e endorfinas substâncias endógenas assegurou um certo poder de inibição da dor psí quica e dos sofrimentos morais A hostilidade da antipsiquiatria contra a psicofarmacologia a denúncia sistemática das camisasdeforça químicas recobre um tanto de cegueira injusta para os casos de problemas metabólicos que encon 10 Citado por H Atlan Entre le cristal et Ia fumée Seuil 1979 p 229 R Thom insiste ainda mais no caráter aventureiro de invenção teórica quando diz Quase todos os progressos de álgebra provêm do desejo de fazer operações proibidas números ne gativos racionais imaginários etc Colloque de Royaumont Théories du langage théories de lapprentissage Seuil 1979 p 508 198 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem tram racionalmente sua suspensão ou sua atenuação na intervenção quí mica dos neuromediadores É o caso da doença de Parkinson à qual sabe mos contrapor a ação da LDopa e é o caso também da esquizofrenia tranqüilizada ou até mesmo curada através da administração de clorpromazina cuja descoberta foi julgada tão importante quanto o foi para a cirurgia a dos anestésicos Teria sido muito surpreendente se em razão de alguns resulta dos espetaculares e estimulantes os psicofarmacologistas não tivessem nutrido a esperança de estender os poderes da química não mais somente às deficiências do cérebro para atenuálas mas também e sobretudo ao desempenho deste para estimulálo Os redatores do artigo da revista Newsweek11 acreditam que está chegando o momento em que se descobri rá da mesma forma como foram descobertas as substâncias destinadas a fortalecer a memória substâncias próprias a fortalecer a invenção Falase de uma possível droga capaz de suscitar o sentimento do déjà vu para ajudar as pessoas a resolverem problemas que só lhes pareçam difíceis porque sem precedentes Não se fala de quais problemas se trata Existe uma grande distância entre problemas de manutenção ou de contraespio nagem e um problema de matemática como por exemplo a demonstra ção geral do famoso teorema de Fermat Como não ironizar o extremismo ao qual chegam os vulgarizadores E como deixar de observar que a invenção dessa droga que poderíamos chamar de pílula da invenção ou da concepção seria ela própria facilitada grandemente pela invenção prévia daquilo que ela objetiva produzir Noutras palavras o projeto de pesquisa para um sustento da heurística seria tributário por sua passa gem da potência ao ato da realização prévia daquilo de que ele é o proje to Pensase resolver o problema particular da solução dos problemas em geral no nível das microestruturas cerebrais pela invenção de uma espé cie de pílula prósolução ou próconcepção Tratase na verdade ape nas da reduplicação do problema ou para falar de modo mais simples do uso de uma alavanca sem ponto de apoio 11 Drugs for the mind Newsweek 12 nov 1979 199 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Conseqüentemente apesar da existência e dos felizes efeitos de alguns mediadores químicos apesar das perspectivas abertas por certas descobertas em neuroendocrinologia não parece ter chegado o momento de anunciar à moda de Cabanis que o cérebro vai secretar pensamento como o fígado secreta bílis Não esqueço que Pascal não esqueceu da memória Lembrome de dois de seus Pensamentos A memória é necessária para todas as opera ção da razão e quando eu era criança eu apertava meu livro Na primeira Pascal visa a memória do calculador do pesquisador do admi nistrador do estrategista A memóriaarquivo e inventário Aquela que nos orgulhamos de imitar de reduzir de aliviar e até mesmo de substi tuir através do tratamento automático dos bancos de dados por uma memória artificial isenta das doenças da memória Mas essa Memória para o futuro segundo a expressão de François Dagognet que futuro ela abre para a memória Para a memória do Quando eu era criança para a memória do tempo perdido e do tempo reencontrado para essas lembranças às quais Proust se referiu quando escreveu nas últimas linhas de sua obra que elas acabarão pere cendo quando o desejo de um corpo vivo não as mantiver mais O exame do assunto mereceria mais do que somente um mo mento na conferência e mais do que uma conferência É voluntariamente que não tratarei de uma questão que deveria logicamente conduzir à in terrogação sobre a probabilidade de ver um dia na vitrine de uma livra ria a Autobiografia de um Computador na falta de sua Autocrítica Mas o que chamamos pensar quando se trata desse poder do ser vivo que Pascal chamou de vontade e cuja capacidade de simulação ele nega à maquina Essa restrição poderia parecer imprópria a todos aqueles que lhe oporiam os robôs de hoje os animais eletrônicos e as tartarugas de GreyWalter ou de Albert Ducrocq todos máquinas que têm reconhe cidamente o sentido da oportunidade da adaptação às circunstâncias e que possuem a capacidade de aprender Pascal não poderia prever que Henri Piéron em 1908 iria utilizar o seu termo comportamento para 200 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem traduzir a palavra inglesa behaviour adotada no início do século nos Esta dos Unidos por Thorndike Jennings e Watson para designar os compor tamentos animais polarizados como fenômenos biológicos de adaptação ao meio ambiente Ainda que se continuasse chamando de psicologia esse estudo dos comportamentos na verdade por uma estranha conduta de exclusão e de retenção proibiase qualquer referência ao pensamento e à consciência interessandose pelo cérebro somente como uma caixa pre ta onde apenas as entradas e as saídas eram levadas em conta Distinguia se decerto entre as condutas dos vivos algumas que se continuava a chamar de inteligentes mas sem referência a qualquer capacidade reflexi va de juízo Objetivamente a inteligência é a correção do comportamen to em função dos obstáculos encontrados na busca de uma satisfação É notório que o estudo objetivo dos comportamentos utiliza as técnicas do condicionamento através de dispositivos de aprendizagem Mas nem sempre se distingue suficientemente dois tipos de condiciona mento o condicionamento pavloviano através do enxerto de uma relação estímuloresposta numa relação de tipo reflexo inato e o condicionamen to skinneriano ou instrumental que é a consolidação sistemática através do efeito reiterado de uma recompensa obtida de uma conduta de solu ção satisfatória conseguida inicialmente por acaso Na caixa de Skinner o rato ou o pombo adquirem através da repetição de situações errocastigo e correçãorecompensa o comportamento aparentemente inteligente de um cálculo de vantagens Numa e noutra teoria do condicionamento es timase poder extrapolar uma conclusão do animal para o homem e não se pode contestar que muitos daqueles que as defendem estão à beira de confundir adestramento com aprendizagem e de considerar qualquer meio como um ambiente inclusive o fato social e cultural no caso do homem e finalmente de passar progressivamente do conceito de educação ao de manipulação A qual dessas duas teorias deveríamos vincular as técnicas de orientação ou de direcionamento dos indivíduos no meio social atra vés da distribuição manifesta ou camuflada de recompensas 201 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Para se justo é preciso reconhecer que a teoria do condiciona mento resultante dos trabalhos de Pavlov é incorporada por uma certa antropologia que adota o materialismo dialético a uma filosofia que se autodenomina nãoreducionista na medida em que ela reconhece de modo expresso que o ambiente cultural humano é um efeito histórico e não um dado natural Sob essa ótica o pensamento não é mais uma fun ção puramente cerebral um produto biológico Ele é um efeito social relativo ao tipo de sociedade no qual ele intervém Numa sociedade con servadora ou repressora a equação pensamento cérebro serve de justi ficativa para as técnicas de normatização da conduta O condicionamento skinneriano é considerado pelos neurológos progressistas como o reflexo e como o meio de conservação da sociedade americana A isso os radicais americanos respondem que o condicionamento o descondicionamento a lavagem cerebral e a camisadeforça química não são o privilégio de país nenhum Mas o essencial do ambiente social humano é ser um sistema de significações Uma casa não é percebida como pedra ou madeira mas como abrigo Um caminho não é terra aplainada mas uma passagem uma pista Mesmo para o homem de Neanderthal um sílex talhado não é apenas pedra sua dureza não é apenas um dado de sensibilidade ela é antes de mais nada projeto de utensilidade A percussão é apenas um movimento um gesto cujos efeitos primordiais a ferramenta e o fogo constituem as raízes do sentido de sua existência para o ser vivo humano Conseqüentemente será que poderíamos admitir que a aprendizagem e o domínio do sentido das coisas e dos atos num ambiente cultural não trazem outros problemas de método além do simples adestramento por condicionamento Esses problemas culminam no problema da lingua gem A relação pensamentolinguagem remete à questão cérebropensa mento através da relação cérebrolinguagem Será que a linguagem é aprendida como qualquer outro comportamento na concepção de Skinner Será que o ensino da linguagem é análogo a um condicionamento que desemboca no vínculo durável entre um significante um significado 202 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem e um referente Se identificarmos aprendizagem e condicionamento não estaríamos ressuscitando com isso o empirismo contemporâneo da época em que as funções do cérebro eram ignoradas Se temos de levar em conta as capacidades lingüísticas inatas será que devemos por isso identi ficar inatismo e programação cerebral genética Esse foi o objeto do de bate organizado em Royaumont em 1975 entre Noam Chomsky e Jean Piaget recentemente publicado sob o título Teorias da linguagem teorias da aprendizagem Ao sustentar que a gramática de uma língua não é uma proprie dade dessa língua mas uma propriedade do cérebro humano Chomsky pensa dar conta do fato de que a mesma criança que aprende a falar na língua de seus locutores adultos aprenderia uma outra língua na comuni cação com outros locutores Quando se objeta que a inteligência geral poderia obter o que Chomsky supõe estar inscrito no núcleo fixo da lin guagem Chomsky responde que para aprender a aprender é necessária uma disposição inicial Segundo ele a obrigação de ter de recorrer a uma capacidade geral para explicar a aprendizagem da língua é justamente a confirmação desse aspecto da criatividade que Wilhelm von Humboldt reconheceu ao afirmar Uma língua pode fazer uso infinito de meios finitos Podese entender facilmente porque Chomsky invoca Descartes e Leibniz filósofos que defenderam o inatismo dos princípios racionais mas não se entende bem como ele pode identificar a necessidade das exi gências universais da competência lingüística com a determinação gené tica das capacidades cerebrais Certo é que sua oposição a Skinner e à teoria exposta na obra Verbal Behavior é paralela a sua atitude de oposição política às teses de Skinner expostas em Beyond Freedom and Dignity 1971 A crença de que o espírito humano é vazio fornece uma justificativa a toda sorte de sistemas autoritários Se o espírito humano é vazio qualquer método para conformar os espíritos à sua vontade é legítimo e isso é desenvolvido ao extremo em Skinner por exemplo tudo acaba numa espécie de esquema fascista Teorias da linguagem teorias da aprendizagem 203 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Mas os adversários de Chomsky respondem que o inatismo do poder intelectual pode se transformar num argumento em favor do elitismo como apoio para uma justificativa das relações sociais desiguais Basta lembrarmos no momento que na sua versão biológica atual o debate entre empirismo e inatismo fornece indiferentemente argumen tos a posições políticas opostas Sinal sem dúvida de que a justificação de escolhas políticas deve ser buscada noutro lugar que não no cérebro So bre esse último ponto aliás a conclusão da conferência do Sr Jouvet12 merece atenção Ele formulou a hipótese de que o sonho expressão de uma atividade cerebral fechada às aferências externas cortada do am biente poderia ser considerada como o indício de uma atividade de ma nutenção do programa hereditário de uma ruptura da relação social O sonho seria o guardião da liberdade natural em reação às restrições cul turais Surge aqui a tentação de evocar Rousseau a oposição do homem selvagem e do homem civil e o axioma segundo o qual o homem nasceu livre embora esteja em toda parte enjaulado Mas a Profissão de fé do Vicário da Savóia não permite incluir Rousseau entre os que buscam na fisiologia os fundamentos da pedagogia e da política Em resumo a linguagem humana é essencialmente uma fun ção semântica da qual as explicações de tipo fisicalista nunca chegaram a dar conta Falar é significar dar a entender porque pensar é viver no sentido O sentido não é relação entre ele é relação com Eis porque ele escapa a qualquer redução que tente inserilo numa configuração orgâni ca ou mecânica As máquinas ditas inteligentes são máquinas de produzir relações entre os dados que lhes são fornecidos mas não estão em relação com o que o usuário se propõe a partir das relações que elas engendram para ele Porque o sentido é relação com o homem pode brincar com o sentido desviálo simulálo mentir criar armadilhas13 Pois tanto numa 12 Ver a conferência de Michel Jouvet Les états de vigilance bilan et perspectives in Prospective et Santé n 14 été de 1980 pp 7380 NE 13 Uma máquina não pode enganar nem tampouco se enganar Em outras palavras uma máquina não é capaz de maquinações Foi Michael Scriven que fez da capacidade 204 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem ocorrência como na outra é preciso levar em conta um desvio da relação com um entorse do sentido A relação de sentido na linguagem não é a réplica imaterial de relações físicas entre elementos ou sistemas de ele mentos no cérebro do locutor Inversamente o sentido da palavra profe rida na relação com não é a produção de uma configuração física no cére bro do interlocutor Da mesma forma que nossa área visual cerebral não vê por assim dizer os objetos que nossos olhos presumidamente deveri am nos dar a ver não existe nas dobras do córtex um pensamento con templando o fantasma dos objetos ou das situações visadas nas nossas palavras Hoje na idade da eletrônica do mesmo modo que no século XIX não se pode explicar o conhecimento científico ou a experiência poética pela réplica cerebral da relação entre o meio e o organismo Copérnico e Galileu podem ao falar com o jardineiro ou o camareiro dizer que o sol se levanta já que Copérnico e Galileu vêem como jardi neiro ou o camareiro o globo solar subir acima do horizonte mas eles sabem que o sol não se levanta Como Vitor Hugo pode fazer de conta que percebe o inverso do que ele está vendo no pôrdosol ele percebe por assim dizer a verdade do movimento aparente dos astros isto é aquilo que devemos pensar depois de Copérnico e Galileu O dia morria eu estava perto dos mares na praia E segurava pela mão minha filha criança que sonha Espírito jovem que se cala A terra inclinandose como um navio que naufraga Virando no espaço ia mergulhando nas sombras A pálida noite despontava As contemplações Magnitudo Parvi A relação entre o cérebro o pensamento e o mundo não pode portanto ser considerada como a reprodução mental ou interior dos efeitos físicos produzidos no cérebro pela introdução do mundo exterior de mentir o critério de demarcação entre um robô aparentemente consciente e a consciência The Mechanical Concept of Mind in Minds and Machines Prentice Hall Englewood Cliffs 1964 205 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 nele utilizando para isso a via dos canais sensoriais Wittgenstein escre ve incisivamente a esse respeito nas suas Zettel escritas entre 1945 e 1948 Os filósofos que acreditam que se pode por assim dizer prolongar a experiência no pensamento deveriam saber que a palavra pode ser transmi tida pelo telefone mas não o sarampo É certo que não se pode trans mitir o sarampo pelo telefone mas podem ser transmitidos pelo telefone discursos cuja cor simbólica não é agradável para todos Daí a prática da escuta telefônica Daí a exclusão de indivíduos por motivo de doença con tagiosa do pensamento afastamento mais longo geralmente que os de zoito dias de afastamento escolar em caso de sarampo Existem várias formas de se dar conta do fato de que a palavra humana remete ao pensamento o qual remete por sua vez a um sujeito que não é uma parte do mundo mas como diz Wittgenstein um pres suposto de sua existência Podese concordar com a reflexão crítica sobre a ilusão da interioridade psíquica reflexão inaugural da obra póstuma de Maurice MerleauPonty O visível e o invisível sem por isso concordar com todas as teses do existencialismo Podese preferir por motivo de não engajamento axiológico a referência a Wittgenstein já citada O autor do Tractatus lógicophilosophicus insiste para daí tirar uma conseqüência geral no fato de que nosso campo de visão não é ele próprio visto por uma espécie de olho mental localizável no mundo da percepção Existe realmente um sentido no qual pode ser questão de um eu não psicológico em filosofia O eu aparece em filosofia em decorrência do fato de que o mundo é o nosso próprio mundo O eu filosófico não é o homem nem o corpo humano nem a alma humana de que trata a psicologia mas o sujeito metafísico o limite não uma parte do mundo14 O melhor comentário sobre esse texto não deve ser procurado na filosofia mas sim na pintura A visão do pintor é ela também uma 14 É necessário esclarecer que com a expressão sujeito metafísico Wittgenstein não entende o sujeito ontológico mesmo na época du Tractatus logicophilosophicus e que posteriormente ele abandonou o conceito de sujeito metafísico 206 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem relação significante a Maurice Denis disse que Cézanne chamava de mo tivo aquilo que ele desejava representar o que o incitava a pintar e não o assunto isto é as coisas representadas das quais se pode falar Podese sustentar que para o filósofo a visão do pintor como ato de presença no mundo é mais instrutiva do que uma teoria psicofisiológica da visão O quadro de René Magritte A paisagem isolada é a imagem de uma paisa gem contemplada por um homem visto de costas e que diz numa bolha Eu não vejo nada em volta da paisagem É bem verdade que Eu não vejo nada em volta da paisagem como eu veria a parede em volta de um quadro representando a paisagem em torno da qual tem alguém que diz Eu não vejo nada Eu sou o todo da minha visão mas eu posso transfor mar sempre em outro o todo da minha visão ao me deslocar Prova de que eu não coincido com aquilo de que constituo o limite O campo perceptivo é como diria Raymond Ruyer uma superfície absoluta mas devese acrescentar móvel O Eu não está em relação de sobrevôo com o mundo mas sim numa relação de observação Eisnos de volta ao mesmo ponto ao qual chegamos no final do histórico inicial Pensar é um exercício do homem que exige a consciência de si na presença ao mundo não como a representação do sujeito Eu mas como sua reivindicação pois essa presença é observação e mais exata mente surveillance De um ponto de vista filosófico não há contradição em reconhecer uma subjetividade sem interioridade o que não acarreta a suspeita de idealismo solipsista Se examinarmos com atenção com efei to o conceito de interioridade veicula uma imagem espacial A interioridade é a exterioridade invertida mas não abolida Em relação a isso o Eu observador do mundo das coisas e dos homens é tanto o Eu de Spinoza quanto o Eu de Descartes Enquanto Descartes julga intima mente a evidência de seu Cogito Spinoza enuncia como axioma impessoal o Homo cogitat Mas quando ele compõe o Tratado TeológicoPolítico Spinoza é esse Eu que reivindica no último capítulo ante o reconhecido direito do Soberano de regular qualquer coisa no Estado com respeito às ações dos 207 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 cidadãos Que seja outorgado a cada um pensar o que quer e dizer o que pensa Se bem que Spinoza tenha utilizado o nós da modéstia ele não consegue deixar de escrever no fim acabei assim de tratar das questões que estavam no meu desígnio Sei que sou homem e que posso ter me enganado Desígnio erro marcas do pensamento nós o tínhamos pro posto O Eu spinozano não é a despeito da Ética geometricamente demonstrada menos Eu do que o Eu da geometria de Descartes em razão da quarta parte do discurso que a precede Qualquer que seja a oposição entre as concepções cartesianas e spinozianas das relações da alma e do corpo permanece o fato de Spinoza dizer Eu comportandose como mandatário solitário e reprovado da defesa de seu sistema da mesma forma que Descartes nas suas Réponses aux cinquièmes objections diz Eu ante Gassendi que ele designa pelo nome de Chair De minha parte não receio afirmar que entre Descartes e Spinoza é no segundo que a função subjetiva de presençaobservação é mais manifesta Na segunda parte do Discurso Descartes cuidou bastante de sua defesa diante da acusação feita a ele de crítico político Ele afirmou nada mais querer do que reformar seus próprios pensamentos Ele procu rou se distanciar daquelas pessoas cujo humor confuso e inquieto leva para a oposição O filósofo da generosidade começou com uma filosofia da prudência Spinoza tomou publicamente o partido do direito à liber dade de pensar Amigo de Jean de Witt Grande Pensionário da Holanda cujas convicções republicanas compartilhava ele foi testemunha de seu assassinato por insurretos orangistas na cidade de Haia em 1672 quan do os exércitos de Luis XIV invadiram a Holanda A indignação e a dor de Spinoza levaramno a sair de casa para pregar nas paredes da cidade um cartaz onde ele havia escrito Ultimi barbarorum Contase que seu pro prietário teve de usar a violência para contêlo15 Em suma essa filosofia 15 Às vezes contestada essa conduta de Spinoza foi relatada par Jakob Freudenthal Das Leben Spinozas Stuttgart 1904 Cf Oeuvres de Spinoza editadas por Ch Appuhn Garnier éd tomo I p 218 nota 1 e Georges Friedman Leibnitz et Spinoza Idées Gallimard p 110 208 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem que refuta e recusa os fundamentos da filosofia cartesiana o cogito a liber dade em Deus e no homem essa filosofia sem sujeito muitas vezes assi milada a um sistema materialista essa filosofia vivida pelo filósofo que a pensou imprimiu no seu autor a força necessária para se insurgir contra o fato consumado A filosofia deve dar conta de tal força Para essa tarefa a filosofia não tem nada a esperar dos serviços da psicologia uma disciplina que segundo Husserl da forma como entrou em cena na época de Aristóteles veio a ser uma calamidade per manente para os espíritos filosóficos Philosophie première 19231924 Entendemos com isso uma ciência que se quer objetiva situandose en tre as outras ciências objetivas com sua pretensão de instruílas sobre as funções intelectuais que permitem que elas sejam as ciências que são Contra essa pretensão de dar conta do todo sendo somente parte dele a filosofia não pode deixar de erguerse Assim ela deve deixar a psicologia continuar a propor ela própria suas aquisições teóricas para serem possi velmente exploradas pela pedagogia pela economia e finalmente pela política Quanto à filosofia sua tarefa não é a de aumentar o rendimento do pensamento mas de lembrarlhe o sentido de seu poder Atribuir à filosofia o encargo específico de defender o Eu como reivindicação inalienável da presençaobservação é não reconhecer que ela tem outro papel além do de crítica Aliás essa tarefa de negação não é negativa pois a defesa de uma reserva é a preservação das condições de possibilidade da saída Posso bem imaginar os sarcasmos que a palavra reserva convocada para dar sentido àquela palavrinha Eu não deixará de suscitar de um lado por parte dos psicanalistas psicanalizantes que a considerarão um sintoma de desconhecimento do inconsciente e por outro lado por parte dos psicanalistas fisicalizantes que denunciarão a herança ridiculamente conservada do espiritualismo defunto Mas a reserva filo sófica não é nem esconderijo nem santuário ela é a depositária da ener gia Suspender a aquiescência a adesão a aderência não é nem recuo nem abstenção Essa é a razão pela qual devemos tomar cuidado para não parecer interiorizar o Eu precisamente no momento em que teríamos a 209 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 tentação de confundir subjetividade com interioridade em reação contra a atual assimilação do pensamento àquilo que René Thom chamava de quinquilharia eletrônica Defender nossa reserva impõe que saíamos dela de vez em quando como Spinoza o fez Sair de nossa reserva é fazê lo com nosso cérebro com o regulador vivo das intervenções em ação no mundo e na sociedade Sair de nossa reserva é opornos a toda interven ção estrangeira no cérebro que tenda a privar o pensamento de seu poder de reserva em última instância Espero que reconheçam que ao tomar como exemplo a conduta de Spinoza eu não fiz confusão nem brinquei com as palavras Sair de nossa casa é a imagem simbólica de sair de nossa reserva Ocorre que Spinoza fez efetivamente as duas coisas Não devemos entretanto atri buir a Spinoza uma filosofia que não seja a dele Sua conduta é a prova de que de acordo com a última parte da Ética a ordem e a conexão das afecções do corpo regulamse pela ordem e pelo encadeamento dos pen samentos na alma correspondência cuja perfeição seria a verdadeira li berdade Mas a última palavra é que tudo que é belo é tão difícil quanto raro Enquanto o homem sábio não tiver obtido em razão de uma ne cessidade eterna a consciência de si mesmo de Deus e das coisas ele pode ter que decidir de repente tomar uma atitude com respeito aos perigos comuns da vida que podemos afastar e sobrepujar pela presença e pela força da alma Essa é a razão pela qual Spinoza se mostrou presen te para injuriar publicamente alguns homens chamandoos de bárbaros embora ele tivesse dito que a indignação geradora de ódio é forçosamen te má embora ele soubesse que a multidão é terrível quando não teme nada O homem que escreveu que não se conhecem todas as capacidades do corpo humano e que elas são às vezes erradamente atribuídas à alma esse homem saiu de sua casa com o seu cérebro e certamente em confor midade com sua filosofia Mas é possível que ele tenha saído dela através de uma imperceptível falha cartesiana de sua construção filosófica À primeira vista poderíamos considerar que Spinoza cometeu um erro O de acreditar que os bárbaros que ele denunciava publicamen 210 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem te eram os últimos Mas ele sabia latim e quis dizer que eram os mais recentes os últimos Conseqüentemente os filósofos de hoje qualquer que seja sua linha de pesquisa spinoziana ou cartesiana estão certos de que não lhes faltará ocasião ou razão para por sua própria conta e risco num gesto de engajamento controlado por seu cérebro escrever nos mu ros nas fortificações ou nas cercas Ultimi barbarorum Tradução de Sandra Yedid e Monah Winograd Recebido em 8 de abril de 2005 Aprovado em 12 de maio de 2005 Graduanda em Psicologia pela PUCRio Pesquisadora do grupo Matéria Pensante Psicanalista Doutora em Teoria Psicanalítica UFRJ Pesquisadora e Profdo Departamento de Psicologia da PUCRio FAPERJ Coordenadora do grupo de pesquisa Matéria Pensante Neurociência Psicanálise e saberes afins vinculado à linha de pesquisa Clínica e Neurociência da PósGraduação em Psicologia da Clínica da PUCRio Autora do livro Genealogia do Sujeito Freudiano e de diversos artigos científicos em periódicos de Psicologia
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Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 O cérebro e o pensamento Georges Canguilhem É certo que cada um de nós se envaidece por ser capaz de pen sar e muitos até gostariam de saber como é possível que pensem como de fato pensam Ao que tudo indica entretanto essa questão já deixou ma nifestamente de ser puramente teórica pois parecenos que um número cada vez maior de poderes estão se interessando em nossa faculdade de pensar E se portanto procuramos saber como é que nós pensamos do modo como o fazemos é para nos defender contra a incitação sorrateira ou declarada a pensar como querem que pensemos Com efeito muitos se interrogam a respeito dos manifestos de alguns círculos políticos a res peito de certos métodos de psicoterapia dita comportamental e a respeito dos relatórios de certas empresas de informática Eles acreditam estar discernindo aí a virtualidade de uma extensão programada de técnicas que objetivam em última análise a normatização do pensamento Para simplificar sem espero deformar bastará citar um nome o de Leonid Pliouchtch e uma sigla a da IBM Conferência na Sorbonne para o MURS dezembro de 1980 primeira publi cação em Prospective et Santé n 14 verão de 1980 pp 8198 Os subtítulos que haviam sido acrescentados pela revista foram suprimidos A ordem de alguns pará grafos que haviam sido invertidos foi restabelecida de acordo com as indicações de Canguilhem NE In Georges Canguilhem Philosophe historien des sciences Actes du Colloque 68 dezembro de 1990 Paris Albin Michel Agradecemos a Bernard Canguilhem a autorização para publicarmos essa tradução de Georges Canguilhem NE 184 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem Da mesma forma que os biólogos acharam que só podiam falar do cérebro humano situando esse cérebro no extremo de uma história dos seres vivos pareceme também apropriado para começar uma palestra sobre o cérebro e o pensamento situar essa questão antes de mais nada na história da cultura Se hoje é fato notório ser o cérebro humano o órgão do pensa mento é preciso entretanto lembrar que um dos maiores filósofos da Antiguidade Aristóteles ensinava que a função do cérebro antagonista da do coração é a de arrefecer o corpo do animal Foi Hipócrates quem ensinou que o cérebro é a sede das sensações o órgão dos movimentos e dos juízos É o que prova o tratado hipocrático Da doença sagrada isto é a epilepsia Essa doutrina retomada em parte por Platão notadamente no Timeu deve a Galeno o fato de terse imposto na cultura ocidental O aristotelismo militante de Galeno não o desviou da tarefa de procurar a confirmação da tese hipocrática praticando experiências muito engenho sas no sistema nervoso e no cérebro Tendo recebido de suas origens e conservado no correr dos séculos a feição de uma questão concernente à sede da alma nosso problema de hoje vem suscitando a partir da filosofia cartesiana uma filiação de teorias e uma sucessão de polêmicas de que somos hoje os herdeiros É indispensável que façamos um rápido histórico para identificar a época em que devemos iniciar nosso exame Tratase do século XIX momento em que se travou o combate do positivismo contra o espiritualismo a teoria das localizações cerebrais Costumase com demasiada freqüência situar o início desse histórico em Descartes Isso é um perfeito contrasenso Descartes ensi nava que a alma indivisível está unida ao corpo por inteiro por meio de um órgão único e por assim dizer fisicamente pontual a glândula pineal o conarium dos antigos a nossa epífise1 Não se tratava portanto de unir um pensamento dividido a um organe fédéral órgão central do governo 1 Epífise ou Glândula Pineal corpúsculo oval situado no cérebro por cima e atrás das camadas ópticas e ao qual se atribuem funções endócrinas NR 185 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Aqueles que posteriormente não entenderam que a função da glândula pineal era uma função metafisiológica criticaram Descartes e foram pro curar em outro lugar do cérebro a sede do sensorium commune A lista é longa de Willis a La Peyronier Até mesmo a invenção da guilhotina deu margem a argumentações por parte de médicos eminentes como Soemmering correspondente de Kant em favor desta ou daquela teoria Cabanis 1795 para quem o cérebro secreta pensamentos assim como o fígado secreta a bílis inseriuse na controvérsia e debateu o caso da decapitação de Charlotte Corday Em 1810 Gall publicou sua Anatomia e fisiologia do sistema ner voso em geral e do cérebro em especial Foi naquele momento que surgiu efeti vamente a ciência do cérebro embora ela devesse em seguida ultrapas sar o obstáculo inicial da frenologia feita ao mesmo tempo de ingenuida de e de pretensão O ponto forte da doutrina de Gall é a exclusividade que ele atribui ao encéfalo e mais especialmente aos hemisférios cere brais como sede de todas as faculdades intelectuais e morais O cérebro entendido como um sistema de sistemas é apresentado como o único suporte físico do quadro das faculdades A frenologia é uma cranioscospia baseada na correspondência entre o conteúdo e o continente entre a con figuração dos hemisférios e a forma do crânio Em oposição à ideologia sensualista e contra aquilo que hoje seria chamado de aquisição da expe riência sob pressão do ambiente Gall e seus discípulos sustentam a inerência das qualidades morais e dos poderes intelectuais Mas de forma oposta aos metafísicos espiritualistas eles fundamentam esse inatismo no substrato anatômico de um órgão e não na substancialidade ontológica de uma alma O interesse da controvérsia pode parecer à distância pura mente teórico quando na verdade ele não o era Ridicularizouse bastante a corcova dos matemáticos2 mas nestes últimos tempos já não se pensa em rir dos cromossomos dos 2 PaulJules Möbius 18531907 neurofisiologista alemão cognominado Gall redivivus situava a corcova dos matemáticos acima da órbita esquerda do lado externo Cf sua obra Über die Anlage zur Mathematik Leipzig 1907 Ele era neto 186 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem superdotados ou da hereditariedade genética do quociente intelectual porque mesmo que as pessoas só tenham um quociente intelectual mé dio elas conseguem perfeitamente entrever as conseqüências possíveis disso no campo das condições sociais É preciso lembrar entretanto que já Gall e Spurzheim não paravam de falar do alcance prático de suas teorias na área da pedagogia da identificação das aptidões o que se cha ma hoje de orientação da medicina e na esfera da segurança prevenção da delinqüência Uma das ilustrações de Daumier para o poema satírico de AntoineFrançois Hyppolite Fabre Nemesis médicale 1840 retrata um frenologista diante da tradicional coleção de crânios de gesso apalpando o crânio de um menino cuja mãe uma mulher do povo o tinha levado ao consultório para um diagnóstico de aptidões E na sua Histoire de la phrénologie Georges LanteriLaura relata a rapidez com a qual a frenologia trazida para os Estados Unidos pelo próprio Spurzheim e por um de seus discípulos um escocês chamado Combe transformouse em frenologia aplicada um instrumento usado para a orientação e a seleção profissional e até mesmo para fins de consulta matrimonial Podese dizer que a frenologia teve naquela ocasião nos Estados Unidos um sucesso compa rável e por razões comparáveis ao sucesso da psicanálise Mas não se pode de forma alguma subestimar pois ela é capi tal a influência da frenologia sobre a psicopatologia porque senão seria impossível entender que as primeiras localizações cerebrais das funções intelectuais tenham estado ligadas aos problemas da fala e da memória das palavras Em matéria de afasia Broca e Charcot confirmaram a des coberta de Bouillaud aluno de Gall ou seja a localização da função da linguagem nos lóbulos anteriores do cérebro 18251848 Na segunda metade do século XIX a exploração das funções do cérebro apoderouse da corrente elétrica galvânica ou farádica como instrumento privilegiado de análise E paralelamente a neurologia experimental foi alçada por alguns ao nível de uma filosofia do ilustre matemático e astrônomo Augusto Ferdinand Möbius 17901868 inventor do Anel de Möebius 187 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Com efeito desde 1835 um médico do Hospital de Bicêtre Lélut tinha escrito o seguinte na obra intitulada Questce que cest la phrénologie Para ser totalmente completo só faltaria a esse sistema fisiológicopsicoló gico tratar do modo de ação do cérebro na produção dos fatos intelectuais e morais isto é explicar o mecanismo de pensamento através da hipótese moderna da eletrização ou da eletromagnetização da massa encefálica p 239 Meio século depois as pesquisas de Ferrier Fritsch Hitzig Flechsig inauguravam o que Hecaen e LanteriLaura chamaram de idade de ouro das localizações cerebrais ensejando o estabelecimento do primeiro mapa topográfico do cérebro Mas já em 1891 o psiquiatra suíço Gottlieb Burckhardt convertia os conhecimentos topográficos em técnicas de psicocirurgia e começava a praticar na verdade sem grande sucesso o que foi chamado posteriormente de lobotomia3 Digna de nota novamente foi a rapidez com a qual o suposto conhecimento das funções do cérebro foi investido em técnicas de intervenção como se o processo teórico fosse congenitamente suscitado pelo interesse com relação à prática Paralelamente às pesquisas sobre neurologia cerebral a psicolo gia tendia a não ser mais do que uma sombra da fisiologia encorajada por uma filosofia mal pensante que buscava nessa psicologia suas razões para mal pensar O corifeu na França é Hyppolite Taine Já em 1854 na obra Les philosophes français au XIXe siècle ele contrapõe aos discursos espiritualistas de Paul RoyerCollard as pesquisas experimentais sobre o cérebro praticadas por Flourens que dificilmente poderia ser acusado de materialismo E a obra de 1870 De lintelligence vai tornar plausível a partir de uma teoria sobre a sensação a tese conhecida sob o nome de paralelismo psicofisiológico que os filósofos da universidade francesa os mestres daqueles que foram nossos mestres inclusive Bergson fizeram questão de refutar sob o olhar reprovador de Théodule Ribot uma espé cie de executor testamentário de Taine 3 G Burckhardt Über Rindenexcisionen als Beitrag zur operativen Therapie der Psychosen Allgemeine Zeitschrift für Psychiatrie 1891 n 47 Sobre o início da psicocirurgia cf artigo de Alain Jaubert Lexcision de Ia pierre de folie no n 4 19751976 da revista Autrement Guérir pour normaliser 188 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem Mas até o próprio Freud autor em 1888 de um artigo Cére bro para um dicionário médico não deixou de reconhecerse devedor de Taine Tendo redigido em 1895 seu trabalho Projeto para uma psicologia científica ele escreveu para Fliess fevereiro de 1896 O livro de Taine De lintelligence me agrada muito Espero que algo possa sair dali É talvez o que tenha autorizado Ludwig Binswanger a escrever que as con cordâncias são numerosas entre o naturalismo psicológico de Taine e o de Freud Contudo desde 1900 ao introduzir na Traumdeutung o conceito de aparelho psíquico Freud sem renunciar à topografia das localizações mostrouse interessado antes de tudo pelo que ele chamava de tópica psíquica Em 1915 ele acabou escrevendo no capítulo sobre o Incons ciente da Metapsicologia Todas as tentativas para adivinhar a partir daí as localizações cerebrais uma localização dos processos psíquicos todos os esforços para pensar as representações como estando armazenadas nas células nervosas fracassaram radicalmente E ele acrescenta que no mo mento a tópica psíquica distinção dos sistemas Ics PcsCs nada tem a ver com a anatomia Para me manter apenas na esfera francesa lembrarei dois títu los de obras da mesma época expressamente concebidos sem referência a conceitos filosóficos Se em 1905 Alfred Binet publicava um ensaio so bre a natureza da sensação com o título LÂme et le Corps em 1923 Henri Piéron diretor do Instituto de Psicologia publicava Le Cerveau et la Pensée O cérebro e o pensamento estão unidos de modo tão estreito e até mesmo confundidos no pensamento ou no cérebro dos fisiologistas dos médicos dos psicólogos que remeter ao cérebro toda a responsabili dade por um drama dolorosamente sentido se impõe até mesmo aos poe tas E é dessa forma que um herói das letras poeta e ator em dificuldades com seu ego escreve a Jacques Rivière A única coisa que peço agora é sentir meu cérebro Sou um homem que já sofreu demais com o espírito Eu só espero que meu cérebro mude e que suas gavetas superiores se abram Tratase de Antonin Artaud Foi em maio de 1923 e em março de 1924 E foi também no ano universitário de 19231924 que um 189 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 professor do Collège de France aluno de Charcot como Freud o foi e médico particular de um outro herói das letras também em dificuldades com seu ego chamado Raymond Roussel Pierre Janet4 declarou numa das suas aulas Foi um exagero vincular a psicologia ao estudo do cérebro Há cerca de cinqüen ta anos que nos falam demais do cérebro afirmase que o pensamento é uma secreção do cérebro o que é uma bobagem ou então que o pensamento está em relação com as funções do cérebro Haverá uma época em que riremos disso tudo isto não é exato O que chamamos de pensamento os fenômenos psicológi cos não são a função de nenhum órgão em particular não é nem a função da ponta dos dedos nem tampouco a função de uma parte do cérebro O cérebro não é senão um conjunto de comutadores um conjunto de aparelhos que movi menta os músculos através da excitação O que chamamos de idéia o que cha mamos de fenômenos de psicologia são um processo conjunto o indivíduo todo tomado em seu conjunto não devemos separar um do outro A psicologia é a ciência do homem por inteiro e não é a ciência do cérebro este é um erro psico lógico que fez muito mal durante muito tempo5 Esse retrospecto de uma psicologia talvez hoje injustamente esquecida não foi feito somente para mostrar erudição mas é pelo con trário uma preocupação da atualidade Esse relato permite creditar a Janet uma posição deliberada de nãoconformismo em matéria de patogenia e de terapêutica das doenças ditas mentais uma posição tão contestadora quanto a que poderia ter hoje em dia um adepto da anti psiquiatria Quando deixamos de acreditar na primazia do cerebral tornamonos céticos com relação à eficiência de um internamento quase carcerário Segundo Janet o conceito de alienação não é uma construção preliminarmente psicológica ele é antes de mais nada algo que se deve à polícia Janet declara Um demente é um homem que não consegui ria viver nas ruas de Paris Por pouco ele não estaria declarando serem as 4 Um estudo interessante de Pierre Janet deve ser consultado na tese de Claude Prévost La Psychophilosophie de P Janet Payot 1973 5 Pierre Janet Curso do Collège de France 19231924 citado por Marcel Jousse Archives de philosophie v 2 caderno 4 Études de psychologie linguistique 190 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem ruas de Paris dementes Esse homem tranqüilo que escreveu em 1927 na obra La pensée intérieure et ses troubles o vocábulo louco é portanto um termo policial teria quem sabe aprovado sorrindo o conselho escrito nas paredes de sua universidade pelos alunos de Oxford Do not adjust your mind there is a fault in reality Vocês não precisam corrigir seu espí rito porque é a realidade que claudica Em resumo um século após Gall e Spurzheim era possível ser psicólogo sem ter que buscar argumentos na neurofisiologia Mas volte mos por um instante à frenologia para entender melhor a questão filosó fica ligada ao problema cérebropensamento A explicação das funções intelectuais e de seus efeitos pela es trutura e pela configuração do cérebro traz de imediato uma ambigüi dade que sua vulgarização tornou manifesta porque grosseira Uma das numerosas obras de vulgarização e de propaganda frenológica Le petit Docteur Gall de Alexandre David contém uma página de comentários sobre um retrato de Descartes tirado do Traité de physiognomonie de Lavater 1778 Tratase de um desenho copiado de uma pintura de Franz Hals O frenologista discípulo de Spurzheim descobre na cabeça de Descartes todas as faculdades intelectuais perceptivas individualidade configu ração extensão peso cor localidade cálculo ordem eventualidade tem po tons e linguagem Explicase assim que Descartes tenha tido muita regularidade na administração de seu interior que ele tenha aplicado a álgebra à geometria e a matemática à ótica Explicase também pela presença cerebral da localidade sua existência nômade E felicitase um certo senhor Imbert sábio frenologista por ter observado que o cogito é um simples efeito da eventualidade ou seja da faculdade que percebe as ações que estão em nós O Cogito não é de forma alguma um efeito das faculdades intelectuais reflexivas o que justifica o que Spurzheim havia dito ou seja que Descartes não é tão grande pensador quanto se pensava Em suma antes da frenologia acreditavase que Descartes era um pensador um autor responsável pelo seu sistema filosófico Segundo a frenologia Descartes é portador de um cérebro que pensa sob o nome de 191 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 René Descartes Exatamente porque Descartes é seu cérebro no qual a eventualidade está presente é que ele percebe nele próprio o cogito Por que Descartes é seu cérebro no qual a localidade está presente é que ele se desloca como um nômade do Poitou até a Suécia passando por Paris por Ulm por Amsterdã onde ele precede os hippies que ali se sentem à vontade por outros motivos diferentes dos seus Em suma a partir da ima gem do crânio de Descartes o sábio frenologista conclui que todo o Descar tes biografia e filosofia está num cérebro que é preciso dizer seu cérebro o cérebro de Descartes já que o cérebro contém a faculdade de perceber as ações que estão nele Mas finalmente que ele é esse Estamos aqui no âma go da ambigüidade Quem ou o que diz eu não somente no início do Dis curso do método mas sobretudo no início da Geometria de 1637 Eu nomearei a unidade Eu não terei receio de introduzir esses termos etc Durante todo o século XIX o Eu penso foi por diversas vezes recusado ou refutado em proveito de um pensar sem sujeito pessoal res ponsável Lichtenberg na sua obra Philosophische Bemerkungen disse Es denkt sollte man sagen sowie man sagt es bliekt Deverseia se dizer isso pensa como dizemos isso brilha O neurologista Exner citando essa frase de Lichtenberg num memorial Über allgemeine Denkfehler 1889 escreve As expressões eu penso eu sinto não são formas corretas de se expressar Seria preciso dizer isso pensa em mim es denkt in mir isso sente em mim es fühlt in mir O peso dos argumentos não depende de nossa vontade formase um juízo em nós es denkt is uns Anteriormente Rimbaud e Nietzsche independentemente um do outro acharam que deviam se desculpar por terem cedido à ilusão de seu ego pensante Na famosa carta a Izambard de 1871 onde Rimbaud se define como um vidente ele acrescenta é falso dizer eu penso De verseia dizer pensamme E em Além do bem e do mal em 1886 Nietzsche escreve É uma alteração dos fatos pretender que o sujeito eu seja a condição do atributo eu penso Alguma coisa pensa mas daí a acreditar que esse algo é o antigo e famoso eu é uma pura suposição 17 192 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem Nietzsche retomou a mesma idéia diversas vezes A lista pode ser encontrada no livro de Bernard Pautrat Versions du soleil no capítulo Decomposition du cogito Quanto maior for a concordância na denúncia de uma ilusão tanto mais o fato da ilusão será incontestável mas também maior será o dever de dar conta dela Wo Es war soll Ich werden Essas palavras de Freud cuja inter pretação divide as escolas de psicanálise pode ser desviada para nosso uso E a última frase desse nosso histórico é uma pergunta como é que um eu penso pode advir nisso que o fisiologista de hoje depois do frenologista indica e descreve Nisso um cérebro O que chamamos pensar Embora de acordo com as mundanidades filosóficas a questão tenha uma ressonância heideggeriana nós a tomaremos pelo seu lado banal trivial Segundo a definição que dermos de pensar admitiremos pensadores desta ou daquela espécie O autor de Pensées o inventor do caniço pensante escreveu A máquina de aritmética tem efeitos que se aproximam mais do pensamento do que tudo aquilo que os animais fazem mas ela não faz nada que permita dizer que ela tem vontade como os animais E aqui estamos quase no com putador cujos efeitos se aproximam ainda mais do pensamento do que fazia a máquina de Pascal Melhor ainda eles ultrapassam o pensamento A metáfora agora repetida do cérebrocomputador justificase na medi da em que se entende como pensamento as operações de lógica o cálculo o raciocínio Razão ratio deriva etimologicamente de reor calcular Quanto à vontade dos animais mesmo se considerarmos que Pascal tenha esten dido de modo abusivo esse conceito a toda sorte de condutas orientadas pela busca de uma satisfação vital devemos convir que existe pelo menos um animal capaz de desejar um efeito sem qualquer precedente na sua experiência É o homem inventor das máquinas como o próprio Pascal Se a máquina aritmética é o efeito do cálculo de um cérebro do qual ela própria é uma aproximação pelo menos devemos admitir que os cin qüenta modelos dessa máquina teimosamente construídos antes do mo delo definitivo são o indício de uma vontade de construir conscientemente 193 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 motivada Pascal acha que não há uma abordagem mecânica desse tipo de motivação Se não é possível conceber uma máquina motivada pelo projeto de construir uma máquina se não existe computador na origem absoluta do computador o que proibiria o filósofo de se interrogar a res peito de outras questões diferentes das dos fisiologistas Isso não significa de forma alguma contestar o saber do fisiologista na sua área A estrutura dos neurônios do cérebro e a relação entre eles são a condição de seu exercício Os progressos e a retificação do saber dos fisiologistas é assunto de fisiologistas O fisiologista manda na própria casa Mas o filósofo é indiscreto em qualquer lugar O computador é o resultado de uma tentativa de mimetizar graças à eletrônica do século XX as propriedades já reconhecidas no cé rebro pela fisiologia do século XIX recepção de estímulos transmissão e desvio de sinais elaboração de respostas registro de operações A descri ção desse esquema funcional na linguagem atual da informática não o altera de modo fundamental Podese falar à vontade do computador como se fosse um cérebro ou do cérebro como se fosse um computador Na sua obra Mémoire pour lavenir François Dagognet escreveu A verdadeira proeza é o homem ter conseguido exteriorizar os processos cerebrais graças aos quais ele calcula fala e pensa e inversamente que O próprio cére bro sai redefinido em razão de sua substituição pela memória material Existe aí um caso particular de estratégia teórica característica da ciência atual a partir de observações e de experiências conduzidas em determinado campo da realidade constróise um modelo e a partir des se modelo continuase a refinar o conhecimento como se estivéssemos lidando com a própria realidade Fazemos a seguinte pergunta o fisiologista admite perfeitamente que o cérebro seja uma parte de um organismo isto é de acordo com a definição de Nageotte de um mecanismo cuja edificação esteja compre endida no seu funcionamento Será que essa propriedade paradoxal em comparação com os mecanismos artificialmente produzidos pelo homem é ou não é ampliada por outra propriedade paradoxal que os fisiologistas 194 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem atribuem ao cérebro ou seja a de ser um órgão cuja representação de seu funcionamento está inserida no próprio funcionamento Para os redato res da revista Pour la Science6 que publicaram um número dedicado ao cérebro esse grande computador da nossa vida descobriu suas maravi lhosas propriedades refletindo sobre sua própria natureza Mas eles são somente jornalistas David Hubel conhecido neurofisiologista recusa o argumento materialistaespiritualista ou seja dualista segundo o qual o computador cerebral seria incapaz de entender a si próprio Hubel reco nhece aliás que o cérebro humano 1012 neurônios 1014 sinapses ou seja cem mil bilhões é diferente do computador cujos componentes até mesmo no futuro não teriam condições de atingir esses números Além disso o cérebro não funciona segundo um programa seqüencial linear Na mesma revista Francis Crick mostra ele também como e em que a analogia entre o cérebro e o computador é enganadora Ele constata com desgosto que o fisiologista não conseguiu descrever a percepção cons ciente de forma a esclarecer a experiência muito direta que nós temos dela Suspeitase fortemente ser esse fenômeno o resultado de uma retroação das vias de cálculo sobre si mesmas mas não se sabe exatamen te como isso ocorre Como se uma retroação pudesse ser considerada transcendente em relação a uma ação direta Existem entretanto fisiologistas que não confundem os marcos e os limites de sua ciência e que ao se esforçarem em fazer recuar esses limites mostramse prudentes quanto à possibilidade de ultrapassálos Um biomatemático Pierre Nelson termina o prólogo de sua obra Logique des neurones e du système nerveux tecendo reflexões sobre a insatisfatória objetividade do tipo de explicação que confunde o que é sentido com o que é lógico O professor Michel Jouvet ao responder a uma pergunta de um jornalista do Nouvel Observateur7 sobre se ele acreditava ser possível um dia a descoberta de uma fórmula química da consciência da cons 6 Pour la Science número especial novembro de 1979 Nouvel Observateur 29 out 1979 7 Nouvel Observateur 29 out 1979 195 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 ciência respondeulhe Um sistema só pode entender outro se ele for mais complexo Lógico Então nosso cérebro irá poder decifrar seus pró prios segredos Mesmo com o auxílio de um computador não estou mui to certo de que conseguiremos traduzir todos os processos de consciência em termos neurobiológicos Mas será essa questão realmente uma ques tão de lógica Anteriormente François Jacob havia invocado o teorema de Gödel como base para uma resposta semelhante à de Jouvet8 Cabe perguntar se não se estaria tomando muitas liberdades com relação a esse teorema da limitação ao invocálo para questões estranhas ao seu campo de validade a aritmética formal Devemos entretanto elogiar esses bió logos pela sua reticência em deduzir a consciência de uma ciência do cére bro mesmo fortalecida com o recurso do computador Mas a surpresa não poderia ser maior ao constatar o interesse manifestado pelo público no tocante à maquinaria eletrônica do pensa mento humano A lista das publicações de cultura anglosaxã na área cujos títulos aliam as palavras Mind ou Brain a Machine é bastante longa Quanto à divulgação junto ao público Bernard DEspagnat observa em obra recente não existir espiritualista hoje em dia que não se sinta obri gado a pensar no seu espírito em termos de contatos de computador Inútil sublinhar o uso ou melhor dizendo o abuso de expressões não pertinentes como cérebro consciente máquina consciente cérebro artificial ou inteligência artificial Mas aqui cabe perguntar por que essas justaposições de termos incompatíveis na ciência Certamente por que essas metáforas nascidas do uso legítimo de modelos heurísticos ou de simuladores sofisticados pelos cientistas foram habilmente transfor madas e repetidas em lugarescomuns publicitários no estágio industrial da informática Como poderíamos estar contra o computador se nosso 8 Mas descrever em termos de física e de química um movimento da consciência um sentimento uma decisão uma lembrança é outra coisa Nada indica que ve nhamos a conseguir Não somente por causa da complexidade mas também por que sabese desde Gödel que um sistema lógico não pode bastar à sua própria descrição La Logique du vivant p 337 196 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem próprio cérebro é um computador O computador na sua própria casa Porque não já que temos um computador em cada um de nós Um mo delo de pesquisa científica foi convertido em máquina de propaganda ideológica com dois objetivos prevenir ou desarmar a oposição à invasão de um meio de regulação automatizado das relações sociais dissimular a presença dos tomadores de decisão que existem por detrás do anonimato da máquina Mas quer se trate de máquinas analógicas ou de máquinas lógi cas uma coisa é o cálculo ou o tratamento de dados de acordo com ins truções e outra é a invenção de um teorema Calcular a trajetória de um foguete espacial é coisa que cabe a um computador Formular a lei da atração universal é uma performance que não está na esfera dele Não existe invenção sem a consciência de um vazio lógico sem tensão em direção a um possível sem os riscos de se enganar Quando perguntaram a Newton como é que ele tinha encontrado o que ele procurava ele teria respondido pensando sempre nisso Que sentido devemos reconhecer nesse isso Que situação é essa de pensamento onde se busca o que não se vê Que lugar para o isso numa maquinaria cerebral que seria montada para relacionar dados sob a limitação de um programa Inventar é criar informação Perturbar hábitos de pensamento o estado estacionário de um saber9 Da mesma forma que no Jogador de xadrez de Torrès y Quevedo um fonógrafo pode proclamar Xeque ao Rei também pode mos imaginar uma máquina gritando Eurêka após haver encontrado a solução de um problema cujos dados e dificuldades lhe tenham sido co municados Não se imagina essa máquina descobrindo as funções fuchsianas do modo como Henry Poincaré relatou essa descoberta em Science et Méthode Após vários períodos de trabalho infrutíferos abando 9 A persistência de um estado estacionário do saber além de uma invenção teórica é como a medida objetiva de originalidade dessa invenção É o que fez Max Planck dizer em sua Autobiographie que não basta que uma descoberta acumule provas teóricas para se impor muitas vezes ela precisa esperar que seus adversários te nham desaparecido e que uma nova geração chegue ao poder cientifico 197 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 nados e retomados Poincaré percebe num relance uma relação de iden tidade entre as transformações que lhe permitiram definir essas funções e aquelas da geometria não euclidiana Foi em Coutances subindo num ônibus No momento em que eu colocava meu pé no degrau veiome à idéia Será que algum dia existirão autômatos lógicos aos quais virão idéias Eu responderia com duas citações No seu estudo Au sujet dEurêka Valéry escreveu que as pesquisas insensatas são parentes das descobertas imprevistas E um matemático que se interrogava sobre as dificuldades de construção de modelos para nos aproximar do acaso e formalizar o informalizável René Thom escreveu Nessa tarefa o cérebro humano com seu velho passado biológico suas avaliações hábeis sua sutil sensibi lidade estética permanece e permanecerá ainda por muito tempo insubstituível10 Mas se não é possível assimilando o cérebro a uma máquina eletrônica entender como o cérebro é capaz de inventar será que isso pode ser entendido através de uma explicação química Da mesma forma como o uso de certas substâncias ditas psicotrópicas vem permitindo uma melhoria real de certas doenças nervosas ou mentais podese formular a esperança de estender à causa das perturbações o que se conseguiu sobre seus sintomas Daí o interesse crescente pela química cerebral e pelas moléculas próprias à modificação da transmissão das excitações no nível das sinapses A descoberta dos neuropeptídeos encefalinas e endorfinas substâncias endógenas assegurou um certo poder de inibição da dor psí quica e dos sofrimentos morais A hostilidade da antipsiquiatria contra a psicofarmacologia a denúncia sistemática das camisasdeforça químicas recobre um tanto de cegueira injusta para os casos de problemas metabólicos que encon 10 Citado por H Atlan Entre le cristal et Ia fumée Seuil 1979 p 229 R Thom insiste ainda mais no caráter aventureiro de invenção teórica quando diz Quase todos os progressos de álgebra provêm do desejo de fazer operações proibidas números ne gativos racionais imaginários etc Colloque de Royaumont Théories du langage théories de lapprentissage Seuil 1979 p 508 198 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem tram racionalmente sua suspensão ou sua atenuação na intervenção quí mica dos neuromediadores É o caso da doença de Parkinson à qual sabe mos contrapor a ação da LDopa e é o caso também da esquizofrenia tranqüilizada ou até mesmo curada através da administração de clorpromazina cuja descoberta foi julgada tão importante quanto o foi para a cirurgia a dos anestésicos Teria sido muito surpreendente se em razão de alguns resulta dos espetaculares e estimulantes os psicofarmacologistas não tivessem nutrido a esperança de estender os poderes da química não mais somente às deficiências do cérebro para atenuálas mas também e sobretudo ao desempenho deste para estimulálo Os redatores do artigo da revista Newsweek11 acreditam que está chegando o momento em que se descobri rá da mesma forma como foram descobertas as substâncias destinadas a fortalecer a memória substâncias próprias a fortalecer a invenção Falase de uma possível droga capaz de suscitar o sentimento do déjà vu para ajudar as pessoas a resolverem problemas que só lhes pareçam difíceis porque sem precedentes Não se fala de quais problemas se trata Existe uma grande distância entre problemas de manutenção ou de contraespio nagem e um problema de matemática como por exemplo a demonstra ção geral do famoso teorema de Fermat Como não ironizar o extremismo ao qual chegam os vulgarizadores E como deixar de observar que a invenção dessa droga que poderíamos chamar de pílula da invenção ou da concepção seria ela própria facilitada grandemente pela invenção prévia daquilo que ela objetiva produzir Noutras palavras o projeto de pesquisa para um sustento da heurística seria tributário por sua passa gem da potência ao ato da realização prévia daquilo de que ele é o proje to Pensase resolver o problema particular da solução dos problemas em geral no nível das microestruturas cerebrais pela invenção de uma espé cie de pílula prósolução ou próconcepção Tratase na verdade ape nas da reduplicação do problema ou para falar de modo mais simples do uso de uma alavanca sem ponto de apoio 11 Drugs for the mind Newsweek 12 nov 1979 199 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Conseqüentemente apesar da existência e dos felizes efeitos de alguns mediadores químicos apesar das perspectivas abertas por certas descobertas em neuroendocrinologia não parece ter chegado o momento de anunciar à moda de Cabanis que o cérebro vai secretar pensamento como o fígado secreta bílis Não esqueço que Pascal não esqueceu da memória Lembrome de dois de seus Pensamentos A memória é necessária para todas as opera ção da razão e quando eu era criança eu apertava meu livro Na primeira Pascal visa a memória do calculador do pesquisador do admi nistrador do estrategista A memóriaarquivo e inventário Aquela que nos orgulhamos de imitar de reduzir de aliviar e até mesmo de substi tuir através do tratamento automático dos bancos de dados por uma memória artificial isenta das doenças da memória Mas essa Memória para o futuro segundo a expressão de François Dagognet que futuro ela abre para a memória Para a memória do Quando eu era criança para a memória do tempo perdido e do tempo reencontrado para essas lembranças às quais Proust se referiu quando escreveu nas últimas linhas de sua obra que elas acabarão pere cendo quando o desejo de um corpo vivo não as mantiver mais O exame do assunto mereceria mais do que somente um mo mento na conferência e mais do que uma conferência É voluntariamente que não tratarei de uma questão que deveria logicamente conduzir à in terrogação sobre a probabilidade de ver um dia na vitrine de uma livra ria a Autobiografia de um Computador na falta de sua Autocrítica Mas o que chamamos pensar quando se trata desse poder do ser vivo que Pascal chamou de vontade e cuja capacidade de simulação ele nega à maquina Essa restrição poderia parecer imprópria a todos aqueles que lhe oporiam os robôs de hoje os animais eletrônicos e as tartarugas de GreyWalter ou de Albert Ducrocq todos máquinas que têm reconhe cidamente o sentido da oportunidade da adaptação às circunstâncias e que possuem a capacidade de aprender Pascal não poderia prever que Henri Piéron em 1908 iria utilizar o seu termo comportamento para 200 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem traduzir a palavra inglesa behaviour adotada no início do século nos Esta dos Unidos por Thorndike Jennings e Watson para designar os compor tamentos animais polarizados como fenômenos biológicos de adaptação ao meio ambiente Ainda que se continuasse chamando de psicologia esse estudo dos comportamentos na verdade por uma estranha conduta de exclusão e de retenção proibiase qualquer referência ao pensamento e à consciência interessandose pelo cérebro somente como uma caixa pre ta onde apenas as entradas e as saídas eram levadas em conta Distinguia se decerto entre as condutas dos vivos algumas que se continuava a chamar de inteligentes mas sem referência a qualquer capacidade reflexi va de juízo Objetivamente a inteligência é a correção do comportamen to em função dos obstáculos encontrados na busca de uma satisfação É notório que o estudo objetivo dos comportamentos utiliza as técnicas do condicionamento através de dispositivos de aprendizagem Mas nem sempre se distingue suficientemente dois tipos de condiciona mento o condicionamento pavloviano através do enxerto de uma relação estímuloresposta numa relação de tipo reflexo inato e o condicionamen to skinneriano ou instrumental que é a consolidação sistemática através do efeito reiterado de uma recompensa obtida de uma conduta de solu ção satisfatória conseguida inicialmente por acaso Na caixa de Skinner o rato ou o pombo adquirem através da repetição de situações errocastigo e correçãorecompensa o comportamento aparentemente inteligente de um cálculo de vantagens Numa e noutra teoria do condicionamento es timase poder extrapolar uma conclusão do animal para o homem e não se pode contestar que muitos daqueles que as defendem estão à beira de confundir adestramento com aprendizagem e de considerar qualquer meio como um ambiente inclusive o fato social e cultural no caso do homem e finalmente de passar progressivamente do conceito de educação ao de manipulação A qual dessas duas teorias deveríamos vincular as técnicas de orientação ou de direcionamento dos indivíduos no meio social atra vés da distribuição manifesta ou camuflada de recompensas 201 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Para se justo é preciso reconhecer que a teoria do condiciona mento resultante dos trabalhos de Pavlov é incorporada por uma certa antropologia que adota o materialismo dialético a uma filosofia que se autodenomina nãoreducionista na medida em que ela reconhece de modo expresso que o ambiente cultural humano é um efeito histórico e não um dado natural Sob essa ótica o pensamento não é mais uma fun ção puramente cerebral um produto biológico Ele é um efeito social relativo ao tipo de sociedade no qual ele intervém Numa sociedade con servadora ou repressora a equação pensamento cérebro serve de justi ficativa para as técnicas de normatização da conduta O condicionamento skinneriano é considerado pelos neurológos progressistas como o reflexo e como o meio de conservação da sociedade americana A isso os radicais americanos respondem que o condicionamento o descondicionamento a lavagem cerebral e a camisadeforça química não são o privilégio de país nenhum Mas o essencial do ambiente social humano é ser um sistema de significações Uma casa não é percebida como pedra ou madeira mas como abrigo Um caminho não é terra aplainada mas uma passagem uma pista Mesmo para o homem de Neanderthal um sílex talhado não é apenas pedra sua dureza não é apenas um dado de sensibilidade ela é antes de mais nada projeto de utensilidade A percussão é apenas um movimento um gesto cujos efeitos primordiais a ferramenta e o fogo constituem as raízes do sentido de sua existência para o ser vivo humano Conseqüentemente será que poderíamos admitir que a aprendizagem e o domínio do sentido das coisas e dos atos num ambiente cultural não trazem outros problemas de método além do simples adestramento por condicionamento Esses problemas culminam no problema da lingua gem A relação pensamentolinguagem remete à questão cérebropensa mento através da relação cérebrolinguagem Será que a linguagem é aprendida como qualquer outro comportamento na concepção de Skinner Será que o ensino da linguagem é análogo a um condicionamento que desemboca no vínculo durável entre um significante um significado 202 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem e um referente Se identificarmos aprendizagem e condicionamento não estaríamos ressuscitando com isso o empirismo contemporâneo da época em que as funções do cérebro eram ignoradas Se temos de levar em conta as capacidades lingüísticas inatas será que devemos por isso identi ficar inatismo e programação cerebral genética Esse foi o objeto do de bate organizado em Royaumont em 1975 entre Noam Chomsky e Jean Piaget recentemente publicado sob o título Teorias da linguagem teorias da aprendizagem Ao sustentar que a gramática de uma língua não é uma proprie dade dessa língua mas uma propriedade do cérebro humano Chomsky pensa dar conta do fato de que a mesma criança que aprende a falar na língua de seus locutores adultos aprenderia uma outra língua na comuni cação com outros locutores Quando se objeta que a inteligência geral poderia obter o que Chomsky supõe estar inscrito no núcleo fixo da lin guagem Chomsky responde que para aprender a aprender é necessária uma disposição inicial Segundo ele a obrigação de ter de recorrer a uma capacidade geral para explicar a aprendizagem da língua é justamente a confirmação desse aspecto da criatividade que Wilhelm von Humboldt reconheceu ao afirmar Uma língua pode fazer uso infinito de meios finitos Podese entender facilmente porque Chomsky invoca Descartes e Leibniz filósofos que defenderam o inatismo dos princípios racionais mas não se entende bem como ele pode identificar a necessidade das exi gências universais da competência lingüística com a determinação gené tica das capacidades cerebrais Certo é que sua oposição a Skinner e à teoria exposta na obra Verbal Behavior é paralela a sua atitude de oposição política às teses de Skinner expostas em Beyond Freedom and Dignity 1971 A crença de que o espírito humano é vazio fornece uma justificativa a toda sorte de sistemas autoritários Se o espírito humano é vazio qualquer método para conformar os espíritos à sua vontade é legítimo e isso é desenvolvido ao extremo em Skinner por exemplo tudo acaba numa espécie de esquema fascista Teorias da linguagem teorias da aprendizagem 203 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Mas os adversários de Chomsky respondem que o inatismo do poder intelectual pode se transformar num argumento em favor do elitismo como apoio para uma justificativa das relações sociais desiguais Basta lembrarmos no momento que na sua versão biológica atual o debate entre empirismo e inatismo fornece indiferentemente argumen tos a posições políticas opostas Sinal sem dúvida de que a justificação de escolhas políticas deve ser buscada noutro lugar que não no cérebro So bre esse último ponto aliás a conclusão da conferência do Sr Jouvet12 merece atenção Ele formulou a hipótese de que o sonho expressão de uma atividade cerebral fechada às aferências externas cortada do am biente poderia ser considerada como o indício de uma atividade de ma nutenção do programa hereditário de uma ruptura da relação social O sonho seria o guardião da liberdade natural em reação às restrições cul turais Surge aqui a tentação de evocar Rousseau a oposição do homem selvagem e do homem civil e o axioma segundo o qual o homem nasceu livre embora esteja em toda parte enjaulado Mas a Profissão de fé do Vicário da Savóia não permite incluir Rousseau entre os que buscam na fisiologia os fundamentos da pedagogia e da política Em resumo a linguagem humana é essencialmente uma fun ção semântica da qual as explicações de tipo fisicalista nunca chegaram a dar conta Falar é significar dar a entender porque pensar é viver no sentido O sentido não é relação entre ele é relação com Eis porque ele escapa a qualquer redução que tente inserilo numa configuração orgâni ca ou mecânica As máquinas ditas inteligentes são máquinas de produzir relações entre os dados que lhes são fornecidos mas não estão em relação com o que o usuário se propõe a partir das relações que elas engendram para ele Porque o sentido é relação com o homem pode brincar com o sentido desviálo simulálo mentir criar armadilhas13 Pois tanto numa 12 Ver a conferência de Michel Jouvet Les états de vigilance bilan et perspectives in Prospective et Santé n 14 été de 1980 pp 7380 NE 13 Uma máquina não pode enganar nem tampouco se enganar Em outras palavras uma máquina não é capaz de maquinações Foi Michael Scriven que fez da capacidade 204 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem ocorrência como na outra é preciso levar em conta um desvio da relação com um entorse do sentido A relação de sentido na linguagem não é a réplica imaterial de relações físicas entre elementos ou sistemas de ele mentos no cérebro do locutor Inversamente o sentido da palavra profe rida na relação com não é a produção de uma configuração física no cére bro do interlocutor Da mesma forma que nossa área visual cerebral não vê por assim dizer os objetos que nossos olhos presumidamente deveri am nos dar a ver não existe nas dobras do córtex um pensamento con templando o fantasma dos objetos ou das situações visadas nas nossas palavras Hoje na idade da eletrônica do mesmo modo que no século XIX não se pode explicar o conhecimento científico ou a experiência poética pela réplica cerebral da relação entre o meio e o organismo Copérnico e Galileu podem ao falar com o jardineiro ou o camareiro dizer que o sol se levanta já que Copérnico e Galileu vêem como jardi neiro ou o camareiro o globo solar subir acima do horizonte mas eles sabem que o sol não se levanta Como Vitor Hugo pode fazer de conta que percebe o inverso do que ele está vendo no pôrdosol ele percebe por assim dizer a verdade do movimento aparente dos astros isto é aquilo que devemos pensar depois de Copérnico e Galileu O dia morria eu estava perto dos mares na praia E segurava pela mão minha filha criança que sonha Espírito jovem que se cala A terra inclinandose como um navio que naufraga Virando no espaço ia mergulhando nas sombras A pálida noite despontava As contemplações Magnitudo Parvi A relação entre o cérebro o pensamento e o mundo não pode portanto ser considerada como a reprodução mental ou interior dos efeitos físicos produzidos no cérebro pela introdução do mundo exterior de mentir o critério de demarcação entre um robô aparentemente consciente e a consciência The Mechanical Concept of Mind in Minds and Machines Prentice Hall Englewood Cliffs 1964 205 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 nele utilizando para isso a via dos canais sensoriais Wittgenstein escre ve incisivamente a esse respeito nas suas Zettel escritas entre 1945 e 1948 Os filósofos que acreditam que se pode por assim dizer prolongar a experiência no pensamento deveriam saber que a palavra pode ser transmi tida pelo telefone mas não o sarampo É certo que não se pode trans mitir o sarampo pelo telefone mas podem ser transmitidos pelo telefone discursos cuja cor simbólica não é agradável para todos Daí a prática da escuta telefônica Daí a exclusão de indivíduos por motivo de doença con tagiosa do pensamento afastamento mais longo geralmente que os de zoito dias de afastamento escolar em caso de sarampo Existem várias formas de se dar conta do fato de que a palavra humana remete ao pensamento o qual remete por sua vez a um sujeito que não é uma parte do mundo mas como diz Wittgenstein um pres suposto de sua existência Podese concordar com a reflexão crítica sobre a ilusão da interioridade psíquica reflexão inaugural da obra póstuma de Maurice MerleauPonty O visível e o invisível sem por isso concordar com todas as teses do existencialismo Podese preferir por motivo de não engajamento axiológico a referência a Wittgenstein já citada O autor do Tractatus lógicophilosophicus insiste para daí tirar uma conseqüência geral no fato de que nosso campo de visão não é ele próprio visto por uma espécie de olho mental localizável no mundo da percepção Existe realmente um sentido no qual pode ser questão de um eu não psicológico em filosofia O eu aparece em filosofia em decorrência do fato de que o mundo é o nosso próprio mundo O eu filosófico não é o homem nem o corpo humano nem a alma humana de que trata a psicologia mas o sujeito metafísico o limite não uma parte do mundo14 O melhor comentário sobre esse texto não deve ser procurado na filosofia mas sim na pintura A visão do pintor é ela também uma 14 É necessário esclarecer que com a expressão sujeito metafísico Wittgenstein não entende o sujeito ontológico mesmo na época du Tractatus logicophilosophicus e que posteriormente ele abandonou o conceito de sujeito metafísico 206 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem relação significante a Maurice Denis disse que Cézanne chamava de mo tivo aquilo que ele desejava representar o que o incitava a pintar e não o assunto isto é as coisas representadas das quais se pode falar Podese sustentar que para o filósofo a visão do pintor como ato de presença no mundo é mais instrutiva do que uma teoria psicofisiológica da visão O quadro de René Magritte A paisagem isolada é a imagem de uma paisa gem contemplada por um homem visto de costas e que diz numa bolha Eu não vejo nada em volta da paisagem É bem verdade que Eu não vejo nada em volta da paisagem como eu veria a parede em volta de um quadro representando a paisagem em torno da qual tem alguém que diz Eu não vejo nada Eu sou o todo da minha visão mas eu posso transfor mar sempre em outro o todo da minha visão ao me deslocar Prova de que eu não coincido com aquilo de que constituo o limite O campo perceptivo é como diria Raymond Ruyer uma superfície absoluta mas devese acrescentar móvel O Eu não está em relação de sobrevôo com o mundo mas sim numa relação de observação Eisnos de volta ao mesmo ponto ao qual chegamos no final do histórico inicial Pensar é um exercício do homem que exige a consciência de si na presença ao mundo não como a representação do sujeito Eu mas como sua reivindicação pois essa presença é observação e mais exata mente surveillance De um ponto de vista filosófico não há contradição em reconhecer uma subjetividade sem interioridade o que não acarreta a suspeita de idealismo solipsista Se examinarmos com atenção com efei to o conceito de interioridade veicula uma imagem espacial A interioridade é a exterioridade invertida mas não abolida Em relação a isso o Eu observador do mundo das coisas e dos homens é tanto o Eu de Spinoza quanto o Eu de Descartes Enquanto Descartes julga intima mente a evidência de seu Cogito Spinoza enuncia como axioma impessoal o Homo cogitat Mas quando ele compõe o Tratado TeológicoPolítico Spinoza é esse Eu que reivindica no último capítulo ante o reconhecido direito do Soberano de regular qualquer coisa no Estado com respeito às ações dos 207 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 cidadãos Que seja outorgado a cada um pensar o que quer e dizer o que pensa Se bem que Spinoza tenha utilizado o nós da modéstia ele não consegue deixar de escrever no fim acabei assim de tratar das questões que estavam no meu desígnio Sei que sou homem e que posso ter me enganado Desígnio erro marcas do pensamento nós o tínhamos pro posto O Eu spinozano não é a despeito da Ética geometricamente demonstrada menos Eu do que o Eu da geometria de Descartes em razão da quarta parte do discurso que a precede Qualquer que seja a oposição entre as concepções cartesianas e spinozianas das relações da alma e do corpo permanece o fato de Spinoza dizer Eu comportandose como mandatário solitário e reprovado da defesa de seu sistema da mesma forma que Descartes nas suas Réponses aux cinquièmes objections diz Eu ante Gassendi que ele designa pelo nome de Chair De minha parte não receio afirmar que entre Descartes e Spinoza é no segundo que a função subjetiva de presençaobservação é mais manifesta Na segunda parte do Discurso Descartes cuidou bastante de sua defesa diante da acusação feita a ele de crítico político Ele afirmou nada mais querer do que reformar seus próprios pensamentos Ele procu rou se distanciar daquelas pessoas cujo humor confuso e inquieto leva para a oposição O filósofo da generosidade começou com uma filosofia da prudência Spinoza tomou publicamente o partido do direito à liber dade de pensar Amigo de Jean de Witt Grande Pensionário da Holanda cujas convicções republicanas compartilhava ele foi testemunha de seu assassinato por insurretos orangistas na cidade de Haia em 1672 quan do os exércitos de Luis XIV invadiram a Holanda A indignação e a dor de Spinoza levaramno a sair de casa para pregar nas paredes da cidade um cartaz onde ele havia escrito Ultimi barbarorum Contase que seu pro prietário teve de usar a violência para contêlo15 Em suma essa filosofia 15 Às vezes contestada essa conduta de Spinoza foi relatada par Jakob Freudenthal Das Leben Spinozas Stuttgart 1904 Cf Oeuvres de Spinoza editadas por Ch Appuhn Garnier éd tomo I p 218 nota 1 e Georges Friedman Leibnitz et Spinoza Idées Gallimard p 110 208 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem que refuta e recusa os fundamentos da filosofia cartesiana o cogito a liber dade em Deus e no homem essa filosofia sem sujeito muitas vezes assi milada a um sistema materialista essa filosofia vivida pelo filósofo que a pensou imprimiu no seu autor a força necessária para se insurgir contra o fato consumado A filosofia deve dar conta de tal força Para essa tarefa a filosofia não tem nada a esperar dos serviços da psicologia uma disciplina que segundo Husserl da forma como entrou em cena na época de Aristóteles veio a ser uma calamidade per manente para os espíritos filosóficos Philosophie première 19231924 Entendemos com isso uma ciência que se quer objetiva situandose en tre as outras ciências objetivas com sua pretensão de instruílas sobre as funções intelectuais que permitem que elas sejam as ciências que são Contra essa pretensão de dar conta do todo sendo somente parte dele a filosofia não pode deixar de erguerse Assim ela deve deixar a psicologia continuar a propor ela própria suas aquisições teóricas para serem possi velmente exploradas pela pedagogia pela economia e finalmente pela política Quanto à filosofia sua tarefa não é a de aumentar o rendimento do pensamento mas de lembrarlhe o sentido de seu poder Atribuir à filosofia o encargo específico de defender o Eu como reivindicação inalienável da presençaobservação é não reconhecer que ela tem outro papel além do de crítica Aliás essa tarefa de negação não é negativa pois a defesa de uma reserva é a preservação das condições de possibilidade da saída Posso bem imaginar os sarcasmos que a palavra reserva convocada para dar sentido àquela palavrinha Eu não deixará de suscitar de um lado por parte dos psicanalistas psicanalizantes que a considerarão um sintoma de desconhecimento do inconsciente e por outro lado por parte dos psicanalistas fisicalizantes que denunciarão a herança ridiculamente conservada do espiritualismo defunto Mas a reserva filo sófica não é nem esconderijo nem santuário ela é a depositária da ener gia Suspender a aquiescência a adesão a aderência não é nem recuo nem abstenção Essa é a razão pela qual devemos tomar cuidado para não parecer interiorizar o Eu precisamente no momento em que teríamos a 209 O cérebro e o pensamento Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 tentação de confundir subjetividade com interioridade em reação contra a atual assimilação do pensamento àquilo que René Thom chamava de quinquilharia eletrônica Defender nossa reserva impõe que saíamos dela de vez em quando como Spinoza o fez Sair de nossa reserva é fazê lo com nosso cérebro com o regulador vivo das intervenções em ação no mundo e na sociedade Sair de nossa reserva é opornos a toda interven ção estrangeira no cérebro que tenda a privar o pensamento de seu poder de reserva em última instância Espero que reconheçam que ao tomar como exemplo a conduta de Spinoza eu não fiz confusão nem brinquei com as palavras Sair de nossa casa é a imagem simbólica de sair de nossa reserva Ocorre que Spinoza fez efetivamente as duas coisas Não devemos entretanto atri buir a Spinoza uma filosofia que não seja a dele Sua conduta é a prova de que de acordo com a última parte da Ética a ordem e a conexão das afecções do corpo regulamse pela ordem e pelo encadeamento dos pen samentos na alma correspondência cuja perfeição seria a verdadeira li berdade Mas a última palavra é que tudo que é belo é tão difícil quanto raro Enquanto o homem sábio não tiver obtido em razão de uma ne cessidade eterna a consciência de si mesmo de Deus e das coisas ele pode ter que decidir de repente tomar uma atitude com respeito aos perigos comuns da vida que podemos afastar e sobrepujar pela presença e pela força da alma Essa é a razão pela qual Spinoza se mostrou presen te para injuriar publicamente alguns homens chamandoos de bárbaros embora ele tivesse dito que a indignação geradora de ódio é forçosamen te má embora ele soubesse que a multidão é terrível quando não teme nada O homem que escreveu que não se conhecem todas as capacidades do corpo humano e que elas são às vezes erradamente atribuídas à alma esse homem saiu de sua casa com o seu cérebro e certamente em confor midade com sua filosofia Mas é possível que ele tenha saído dela através de uma imperceptível falha cartesiana de sua construção filosófica À primeira vista poderíamos considerar que Spinoza cometeu um erro O de acreditar que os bárbaros que ele denunciava publicamen 210 Natureza Humana 81 183210 janjun 2006 Georges Canguilhem te eram os últimos Mas ele sabia latim e quis dizer que eram os mais recentes os últimos Conseqüentemente os filósofos de hoje qualquer que seja sua linha de pesquisa spinoziana ou cartesiana estão certos de que não lhes faltará ocasião ou razão para por sua própria conta e risco num gesto de engajamento controlado por seu cérebro escrever nos mu ros nas fortificações ou nas cercas Ultimi barbarorum Tradução de Sandra Yedid e Monah Winograd Recebido em 8 de abril de 2005 Aprovado em 12 de maio de 2005 Graduanda em Psicologia pela PUCRio Pesquisadora do grupo Matéria Pensante Psicanalista Doutora em Teoria Psicanalítica UFRJ Pesquisadora e Profdo Departamento de Psicologia da PUCRio FAPERJ Coordenadora do grupo de pesquisa Matéria Pensante Neurociência Psicanálise e saberes afins vinculado à linha de pesquisa Clínica e Neurociência da PósGraduação em Psicologia da Clínica da PUCRio Autora do livro Genealogia do Sujeito Freudiano e de diversos artigos científicos em periódicos de Psicologia